arquivo de armas de luta subalterna - livro, com elementos pretextuais e papel timbrado

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS PROGRAMA NACIONAL DE COOPERAÇÃO ACADÊMICA – PROCAD Arquivos literários e culturais: representações e políticas do valor OSMAR MOREIRA DOS SANTOS ARQUIVO DE ARMAS DE LUTA SUBALTERNA Texto apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UFMG como um dos requisitos para a obtenção do título de Pós-doc, sob supervisão do Prof. Dr. Wander Melo Miranda. 1

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Arquivos de lutas: relatório pos doc Ormar moreira

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIAUNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAISPROGRAMA NACIONAL DE COOPERAO ACADMICA PROCADArquivos literrios e culturais:representaes e polticas do valor

OSMAR MOREIRA DOS SANTOS

ARQUIVO DE ARMAS DE LUTA SUBALTERNA

Texto apresentado ao Programa de Ps-Graduao em Estudos Literrios da UFMG como um dos requisitos para a obteno do ttulo de Ps-doc, sob superviso do Prof. Dr. Wander Melo Miranda.

Alagoinhas, 30 de maio de 2015SumrioIntroduo 31 - Comuna de Paris e sua potncia semitica 62 - Se um anarquivista num cenrio de vigilncia e controle 192.1 Escritores filmando cmeras de segurana 212.2 Pesquisadores rastreando rastros 252.3 Lgica anarquivista ensinada s crianas 292.4 Ruas digitais e black brocs 332.5 Z Ningum como performer 372.6 Minorias (an)arquivadas e o crepsculo do estado 403 O subalterno e sua luta (des)armada 463.1 Modos de falar, modos de lutar 463.2 Dostoivski e sua fbrica de duplos 523.3 Lies da China 60Concluso 70Referncias bibliogrficas 76

INTRODUO

O maior desafio desta investigao no apenas a redefinio de arquivo, armas, luta e subalterno, mas articular isso a partir de pressupostos da crtica cultural, engendrados no campo lingustico-literrio. Primeiro, necessrio localizar o sentido de representao e funcionamento da arte propostos durante a Comuna de Paris (1871) tanto para identificar sua anulao atravs dos dispositivos burgueses ou stalinistas tardios, quanto para elev-los a uma nova funo epistemolgica: o trono vazio do poder assemelha-se ao vazio e esvazivel do signo.Segundo, construir uma srie de mapas, a partir das noes de arquivo, armas, luta e subalterno, com a funo de problematizar a mera representao literria do pobre, sem que esta tenha vislumbrado esse mesmo pobre como um sujeito em condies de ocupar a gesto das instituies literrias e culturais.Terceiro, se o estado uma inveno cultural ou uma instituio de direito pblico, o arquivo derivaria das demandas da sociedade civil organizada e no o contrrio, servir, principalmente, para arquivar e controlar essa mesma sociedade.Quarto, e ltimo, se a cultura, ou poltica cultural, contemporaneamente, uma arena de luta pelos direitos lingusticos, territoriais e identitrios, caberia a um pas como o Brasil, que nunca protagonizou uma revoluo agrria, nem se consolidou como democracia burguesa, assumir um papel decisivo quanto a uma pauta cultural, tanto para preparar o seu povo para uma luta permanente contra a hegemonia cultural norte-americana, quanto para realizar uma virada econmica em direo ao socialismo ou a um outro mundo possvel, sem tanta misria, controle e explorao.O leitor encontrar, ento, em todos os captulos e seus tpicos, uma srie de elementos para se montar um plano para uma arqueologia da cultura brasileira, identificando formas de poder e violncia implicadas nas ordens de despejo lingustico, cultural, territorial e ontolgica a que foi submetido o povo pobre do Brasil, bem como de outras partes do mundo ocidental e oriental.Assim, em Comuna de Paris e sua potncia semitica, alm do evento histrico, tematizado por marxistas e anarquistas, pode-se tanto eleger cenas da literatura brasileira sobre pobreza e seu cosmopolitismo, quanto encaminhamentos dos fruns locais, territoriais e nacionais sobre efetiva participao dos pobres na construo de uma poltica cultural capaz de ocupar o estado e faz-lo funcionar, de fato, como instituio de direito pblico. Em Se um anarquivista num cenrio de vigilncia e controle, sentir-se (o leitor) como uma espcie de centro de documentao em mos do estado e no ter outra escolha, como condio de passagem de assujeitado a sujeito, seno bioficcionalizar-se, para isso aprendendo a lgica anarquivista das crianas, colocando mscaras de black brocs, adotando a performance de Z Ningum ou ocupando o estado como membro de minorias (an)arquivadas.No ltimo capitulo, O subalterno e sua luta (des)armada, h a possibilidade no apenas de se fazer das marcas e dos traos o lugar de expanso de uma poltica da subjetividade, mas de mapear problemas subalternos comuns e propor pontos de conexo com ativistas do mundo revolucionrio.Eis, portanto, nossa hiptese de trabalho de investigao: seria a noo de comuna, como operador ou significante, um modo de pensamento e prtica poltica em condies de facultar ao Brasil uma arqueologia de suas foras culturais e, ao mesmo tempo, o estabelecimento de uma pauta de cultura ou de poltica cultural com alcance internacional?A mobilizao, confronto e anlise de uma srie de dados bibliogrficos, envolvendo textos de literatura brasileira, ocidental e oriental, bem como envolvendo textos de teoria revolucionria moderna e contempornea, indica, com bastante segurana, que a noo de comuna no s estaria na base constitutiva da sociedade brasileira a sociedade contra o estado, entre os indgenas mas compe, tambm, um aporte epistemolgico que sustenta o retorno em diferena de valores fundamentais daquela sociedade entre os povos contemporneos, hoje destitudos da esperana de uma revoluo socialista, por conta, em certa medida, da comdia stalinista. E a definio da pauta cultural, entre a hegemonia norte-americana e o controle da arte por parte dos regimes de exceo, viria de uma poltica cultural, com forte protagonismo da sociedade civil organizada, sob um vis antropofgico, como nesta passagem de Um Oswald de bolso:Entre o modernismo, que conquistou a lngua literria e estabeleceu as condies de possibilidade para uma conscincia do Brasil, e uma cultura ps-64, que adota as runas da linguagem como lugar da inveno e deixa de lado o nacional e o universal para cotidianizar a poltica e politizar o cotidiano, cremos que, com a nova poltica cultural em curso e seus eixos de atuao nos mais de 5.000 municpios brasileiros (cultura como um bem simblico; cultura como um acesso no apenas s obras universais, mas aos modos de produo; cultura como possibilidade de gerar emprego e renda) j podemos vislumbrar outra nao brasileira, cujos protagonistas (o povo brasileiro) formaram-se com o biscoito fino massivamente distribudo pelo tropicalismo e esto se empenhando ( maneira modernista) para fazerem dos tristes trpicos, ou Anel Equatorial, o lugar da alegria e de reinveno da humanidade.

ICOMUNA DE PARIS E SUA POTNCIA SEMITICA

Aps a Segunda Guerra Mundial, o modelo comunista o Estado de partido nico, monoplio ideolgico, niilismo legal, atesmo militante, terror estatal e eliminao de todas as instituies de autoridade rivais foi transferido para a Europa Oriental, a China, Sudeste da sia e, eventualmente, pases do Caribe e da frica. O comunismo foi dissolvido na Europa Oriental em 1989 e na URSS no final de 1991.Robert Service(Lnin: a biografia definitiva)

Mesmo quando a Revoluo estava ameaada pelos exrcitos brancos e pelas tropas de interveno, quando a Rssia inteira, ainda em grande parte analfabeta, era devastada pela guerra civil e pela fome, nas piores dificuldades econmicas, o governo sovitico consagrou uma energia feroz defesa dessas investigaes artsticas e nunca as considerou como secundrias. Poucos pases defenderam com tanta paixo o trabalho e a pesquisa artsticas como a jovem Repblica dos Sovietes, e isto nas mais desfavorveis condies. um facto que hoje se esquece com demasiada facilidade. Posto isto, como compreender que esta formidvel efervescncia tenha sido bruscamente detida depois da morte de Lnine, e que se tenha assistido a uma degenerescncia quase total com poucas excepes da arte sovitica na poca estalinista?Jean Michel Palmier(Lnine: a arte e a revoluo)

Uma fotografia da Comuna de Paris como uma mirade de signos, no de pixels, nem de cenas acadmicas, seria mais que uma coleo de fotos, como a do arquivo on line Amigos da Comuna, mais que uma dezena de eventos rememorando seus 144 anos, mas, radicalmente, um agenciamento epistemolgico capaz de combinar marxismo com ps-estruturalismo tanto para combater daquele sua atrofia stalinista quanto para combater deste sua flutuao reativa de signos. Espera-se com essa combinao, atingir certas condies para um permanente esvaziamento de signos ao tempo em que se engendram outras formas de representao do poder na poltica, decretando, com isso, a abertura de novos processos de criao voltados a uma atualizao da esttica da existncia posta em movimento, h milnios, por pobres e subalternos, e que no cessa de ser reinventada.O tema Comuna de Paris e sua dimenso esttico-poltica articulou-se a partir da seguinte estratgia: a) a configurao da Comuna como um evento histrico, descrito por anarquistas e marxistas contemporneos ao evento, bem como posteriores a ele; b) a instalao de certas condies de distanciamento, no interior do evento, e a partir da pea Los dias de la Comuna de Bertold Brecht; c) a reconfigurao da comuna como um operador de leitura de dois livros clssicos, Os pobres na literatura brasileira (1983), organizado por Roberto Schwarz, e O cosmopolitismo de pobre (2004) de Silviano Santiago.Em Comuna de Paris: os assaltantes do cu (GONZALES, 1989), temos, alm de uma descrio das foras polticas que envolveram a guerra franco-prussiana em incio da dcada de setenta do sculo XIX, com a derrocada do exrcito e do imprio de Luis Bonaparte III, a tomada da cidade de Paris pelas tropas de Bismarck, a defesa nacional assumida pelo povo de Paris que no se armou apenas para enfrentar as tropas inimigas, mas para expulsar a burguesia parisiense (movimento de contrarrevoluo articulada por Versalhes) alm das foras militares bismarckianas, que, de inimigas daquela burguesia, foram, ao longo dos combates, compradas por ela para massacrar o povo organizado em barricadas. Alm dessa descrio, temos um julgamento do movimento communard, tomado como ingnuo, por suas estratgias e tticas organizativas pouco profissionais, pelo comunismo internacional.Em A guerra civil na Frana, texto escrito por Marx, dias aps a dizimao completa do povo em armas, temos uma imagem da emergncia da classe trabalhadora no poder, ainda que por apenas 72 dias. Nota-se, no texto de Marx, no s uma profunda solidariedade com aqueles que lutaram e deram suas vidas, independentemente de erros tericos e estratgicos cometidos por proudhonianos, blanquistas, republicanistas radicais (exceto, claro, os internacionalistas comunistas), mas a crena de que sua teoria estava cada vez se tornando cientfica, i., havia provas cabais, naqueles erros cometidos, que um socialismo cientfico era mais que necessrio no apenas para que a classe trabalhadora (operrios e camponeses) pudesse ter um farol para as suas lutas, mas que, de uma vez por todas, e com a Comuna de Paris, j era possvel considerar, essa mesma classe trabalhadora, como sujeito histrico.As leituras de Kropotkin e de Bakunin, ao contrrio do livro de Marx, celebra as formas libertrias de organizao dos trabalhares no interior das barricadas, as lies a serem tiradas para as organizaes internacionais de trabalhadores, alm de afirmarem que nenhum texto pode, a priori, tornar-se um manual para as lutas futuras. Partindo do princpio de que todo e qualquer forma de governo, qualquer instituio burguesa, deve ser questionada e banida, a pertinncia dessas leituras consiste em oferecer antdotos ao centralismo nas organizaes sindicais e partidrias e, ao mesmo tempo, uma metodologia aberta conceitualizao do acontecimento a partir das armas semiolgicas de cada momento de luta e de resistncia.Em O Estado e a revoluo, Lnin, relendo a Comuna, atravs de Marx, destaca a) supresso do exrcito permanente pelo povo armado; b) constituio de assembleias ao mesmo legislativas e executivas; c) supresso dos altos salrios de funcionalismo pelo salrio mnimo de operrios; d) a figura do poder como um espao vazio.Em A Comuna de Paris, Leon Trotski, a partir de sua experincia como organizador do exercito vermelho na revoluo sovitica, detona principalmente a no apropriao do banco da Frana para o financiamento da luta armada, a tomada de Versalhes, e a ausncia de comando, entre os communards, a partir de um centralismo rigoroso.Lies por lies, o que dizer do centralismo leninista nas mos de Stalin e seu triunvirato; de Trotski, como um dos trinviros, e que tempos depois ter sua cabea espicaada a golpes de picareta, alm da proliferao desse centralismo, suspeito e autoritrio, na forma das organizaes partidrias e sindicais?Em Metodologia para conhecimento do mundo: como se desembaraar do marxismo, Michel Foucault (2010) demonstra como o marxismo de estado no s destruiu o espao pblico do debate e da experimentao, como condio para a vida do imaginrio poltico aberto a outras direes e temporalidades, mas, principalmente, destruiu a noo de luta implicada resistncia e criao ante os mecanismos da sociedade de controle. Tanto aquela noo de luta de classe, proposta por Marx e Engels, quanto s noes atuais de luta minoritrias (envolvendo ndios, negros, mulheres, homossexuais, entre outros), alm de destrudas pelo marxismo de estado, i., o stalinismo, e banalizadas pelo nazifascismo contemporneo, precisariam ser repensadas a partir de um crivo epistemolgico e poltico, a exemplo da Comuna de Paris.A passagem da Comuna de Paris de evento histrico e poltico para um modo de distanciamento esttico poltico, posta em movimento aqui neste trabalho, dar-se-, num primeiro momento, a partir do texto Los dias de la Comuna (1967; 2001) de Bertold Brecht. Trata-se de uma encenao de acontecimentos de janeiro e maio de 1871, fazendo-os passar pelo crivo de uma dialtica do distanciamento. Em toda a pea h cenas evocando momentos importantes: 22 de janeiro: contra a represso do governo ao povo e guarda nacional, uma oficina de recrutamento de cidados para o exrcito do povo; 25 de janeiro, planejamento de Thiers e Jules Favre, em Bordeaux, de aniquilar o povo, uma vez que este mudou a funo de suas armas; noite de 17 a 18 de maro, na rua Pigalle, Thiers tenta tomar armas do povo, mas o povo acaba tomando o poder municipal e instala a Comuna.Em 19 de maro, em vez de marchar para tomar Versalhes, eleies, nos 20 distritos de Paris, para constituir o Conselho da Comuna; mobilizao para a derrubada da coluna Vendme de Napoleo, realizada com o bronze fundido de 1.200 canhes europeus conquistados; 29 de maro, sesso inaugural da Comuna e seus decretos, comeando com a derrubada do exrcito permanente e a criao de um exrcito popular, passando pela igualdade de remunerao, ensino gratuito e acessvel a todos, merenda escolar para as crianas, separao da igreja do estado, trabalho coletivo nas fbricas apropriadas. O governador ou gerente do banco da Frana aguarda a qualquer momento sua deteno por parte dos delegados da Comuna.Entre 15 a 20 de abril, definio do programa da Comuna e encenao de infiltrao de inimigos dos communards; semana sangrenta de maio: communards armados de canhes versus soldados alemes e versalhenses armados de metralhadoras; Paris incendiada pelos communards; cai a ltima barricada de Fauburg du Temple, massacres dos resistentes, fechamento da pea com aplausos detonao promovida por Versalhes, cujos personagens, o aristocrata, a senhora burguesa, o arcebispo e Thiers, celebram a dizimao da Comuna e a entrega de Paris a mesdames y messieurs.Como estratgia de distanciamento, h uma seleo de elementos opositivos e dialetizveis (represso/recrutamento, armas para matar/armas para se defender e revolucionar um sistema de dominao, exrcito permanente/exrcito popular e contingencial, massacre dos resistentes/perpetuao da chama revolucionria) para se perguntar, em 1967, quase 100 anos depois da Comuna e 50 anos da revoluo bolchevique, desviada pelo stalinismo: que fazer para dramatizar uma autocrtica da revoluo e levar adiante uma crtica da razo dialtica?O teatro, ento, torna-se uma oficina de recrutamento em condies de confrontar essas marcas no corpo do guerrilheiro e do revolucionrio com a vontade sanguinria das mquinas de captura e de poder, de direita e de esquerda, no para assombrar, mas para esconjurar o medo e fazer fugir as mquinas da covardia, disfaradas de mquinas de guerra.Quem que o distanciamento? Um signo a partir do qual se evoca uma ferida, um fantasma e desdobra-se, atravs desse recrutamento, numa cartografia de foras reacionrias de direita e/ou de esquerda como conjurao e condio para outra prxis esttico-poltica revolucionria. Com a descoberta do poder como um espao vazio, a fabricao do significante como condio de esvaziamento do significado transcendental, e o crivo do distanciamento como performance, a comuna de paris emerge como um operador crtico cultural e portanto para alm de um evento histrico a ser fetichizado. Assim, em que medida livros como Os pobres na literatura brasileira (SCHWARZ ) e O cosmopolitismo do pobre (SANTIAGO), para alm de definirem e representarem a pobreza nas letras brasileiras e escaparem da estreiteza nacionalista ou de equvocos neoliberais, funcionariam como um recrutamento do povo brasileiro em contexto de institucionalizao da malha cultural no Brasil, que depois de 2003 tem tido por base: a) a cultura como bem simblico; b) o acesso s obras universais e aos modos de produo alternativos; c) a economia da cultura como possibilidade de gerao de emprego, renda e criao de um mercado diferencial?Em Atrao pelo mundo: polticas de globalizao e de identidade na moderna cultura brasileira (SANTIAGO, op., cit.), destaca-se o mal-estar do colonizado que, permanentemente, precisa ser dramatizado para que polticos e intelectuais, educadores, enfim, aqueles mediadores que facilitariam o trabalho revolucionrio junto e com os pobres, possam resolver o difcil dilema envolvendo o processo de suas subjetivaes marcado pela cultura europeia, enquanto falsas razes, e pela cultura norte-americana, enquanto labirinto a ser mapeado.O questionamento da institucionalizao da malha cultural, a partir de um crivo communard, implicaria, ento, situar uma mquina de guerra mvel em cada um dos mais de 5.000 municpios brasileiros, em que os diversos segmentos culturais (teatro, msica, cinema, artes visuais, literatura, entre outros), tivessem representao junto ao poder pblico tanto na definio e execuo do plano decenal de cultura, quanto na mobilizao da sociedade civil como instncia de fiscalizao e presso social.Assim, o segmento literrio, por exemplo, e para implicar uma radical atividade anfbia (SANTIAGO, op., cit.), parece dever comear por uma politizao do simblico na sua relao entre o real e o imaginrio (DELEUZE, 1997). O que seria um imaginrio ativo entre a vontade de ser europeu e operando em lnguas europeias assimiladas e sem cultura poltica suficiente para engajar seu modo de vida com e contra o american way of life? Em que medida tal atividade do imaginrio, compartilhado entre comunidades, permitiria a construo de um universal em diferena em que os sujeitos subalternos e seus mediadores, nem sejam deslumbrados provincianos pelo grande universal, nem localistas ingnuos? A cidade communard, ento, com suas ocas e tribos, senzalas e casas-grandes, mocambos, cortios, favelas e arranha-cus, quilombos e tendas de sem-terras, entre outros, estaria sendo construda desde os vadios e desordeiros da literatura colonial (SOUZA, 1983), articulados ao poeta antimercantilista (DIMAS, 1983), contra os desmandos do estado de exceo originrio, com seus fanfarres e donos de latifndios e escravos (EULLIO, 1983), dramatizados em Martins Pena, perito em mostrar os usos dos aparelhos governamentais como propriedade privada (ARAS, 1983).Sem lugar equidistante para situar o rico e o pobre, s restaria o brejeiro e a carnavalizao para a representao romntica da pobreza (SANTIAGO, 1983), combinada com a orfandade, sentimento materno violentado, tortura, desenraizamento, reificao, como elementos da condio escrava em Castro Alves (VILLAA, 1983), passando por um crivo radical do materialismo em que honradez e humildade no fazem o menor sentido em contexto capitalista e liberal, fundado que est na mercantilizao no apenas da fora de trabalho, mas da prpria classe trabalhadora (SCHWARZ, 1983). O que faz emergir Canudos, em Os Sertes, e sua noo de decrepitude da raa, cuja soluo viria da construo de barragens, distribuio de cartilhas e aplicao da lei criada pelo sistema republicano.Os retirantes operrios, em Luzia-Homem, provocariam maior impacto que a mercantilizao da mo de obra escrava (TAVARES, 1983), e assim, por fora de se pensar a realidade com os instrumentos de saber oferecidos pela prpria mquina de dominao, resta apenas reproduzir fetichismos e fazer da misria uma fico.Nessa linha de pensamento e atividade esttico-poltica posicionada contra as anomias e vontade de dominao do ser, engendradas pelo estado de exceo (AGAMBEN, 2007) tomada, aqui, como a suspenso do direito pelos dspotas em sua mltiplas metamorfoses temos, ainda, a aproximao do burgus ao mendigo em Joo do Rio (PRADO, 2003), o saber autntico sem valor e fora de ascenso social em Lima Barreto (RESENDE, 2003), a quase absoluta ausncia de acordo entre a pobreza e a palavra nos escritos libertrios pr-modernistas (HARDMAN, 1983), uma arqueologia, para alm da histria e dos monumentos, visando, atravs da imaginao, suprir a ausncia de documentos (CHIAPPINI, 1983), ou um parntese questionando o sentido da mediao literria envolvendo pobres e analfabetos (LAJOLO, 1983).Manuel Bandeira elege a pobreza como condio do sujeito e mtodo para a forma do poema (ARRIGUCCI Jr. 1983), Mrio de Andrade, como manancial de riqueza (LOPEZ, 1983), Oswald, como potncia para expropriar os expropriadores (BOAVENTURA, 1983), Drummond, questiona se o lugar do poeta e da poesia faz sentido em sociedade dividida (SIMON, 1983), Graciliano, estabelece o contraponto entre a voz pobre e partida do iletrado e a oca e perigosa do letrado, Clarice Lispector constri a potica do descondicionamento da ordem burguesa, lidando com personagens vulgares ou abominveis tanto para direita quanto para a esquerda (SPERBER, 1983), Joo Cabral, sem opor severinos e comendadores, faz manifestar a vida em que o retirante vegeta (CARONE, 1983), Guimares Rosa, apropriando-se do imaginrio popular, colonizado, ocidentalizado, faz da pobreza uma dramatizao do insuportvel e condio para superar o naturalizado em mitos e contos populares (ALVIM, 1983), Adoniram Barbosa, a construo da imagem de um trabalhador que se orgulha do seu trabalho, ainda que mal remunerado, habitando uma maloca, e buscando instituies legais, como forma qualquer de segurana (PAES, 1983). De Machado de Assis poesia concreta o funcionamento dessa arte de menos, rachando a relao entre palavras e coisas, tornando visvel a manifestao dos funcionrios do sistema de opresso e estabelecendo as condies para oficinas do pensamento com outras estruturas lgicas ou antiestruturas paralgicas (CAMPOS, 1983).Assim, para se reerguer a cidade communard depois de Canudos e da Paris incendiada, no cabem mais falar pelos pobres como se estes fossem tabulas rasas, nem retrica oca e palavras de ordem como se revelassem conceitualizao do acontecimento sem estud-lo nem pesquis-lo (LAFET, 1983), mas, por uma lgica paradoxal, enfrentar os simulacros e fetichismos, assumir a lgica do copista e fazer do fragmento o signo de uma totalidade perdida (WALDMAN, 1983), levar a literatura a funcionar entre os analfabetos e mediar a proliferao dos dirios como em Carolina de Jesus, cuja escritura implique uma experincia social e um modo de dramatizar o dia-a-dia do dinheiro coisa (VOGT, 1983), a sobrevivncia de quem engendra sua existncia catando e comercializando o lixo, como situao extrema de um povo, ou mesmo uma multido, que foi despejada lingustica, cultural, territorial e mesmo ontologicamente, ao longo dos sculos XVI, XVII e XVIII, no Brasil, e que apesar disso no cessa de nascer sertanejos, que no se submetem; nem valentes, como os da literatura de cordel (LONDRES, 1983).Como em Auschwitz (AGAMBEN, 2008), em que milhes de judeus desapareceram sem poder testemunhar, ou assombrando os modos do testemunho, assim so as legies de pobres e subalternos, cujas memrias foram sistematicamente apagadas sob a fora daquelas ordens de despejo lingustico, cultural, territorial e ontolgico. Assim, o que diriam esses sujeitos se no fossem representados pela literatura, crtica e historiografia? Como se configurariam as reparaes lingusticas, culturais, territoriais e ontolgicas se o estado, enquanto mediador das tenses capital e trabalho, favorecesse a um empoderamento dessa sociedade civil organizada em cooperativas, associaes, legies de pobres e subalternos, e ao mesmo tempo investisse na destruio do capital e de si mesmo o estado enquanto estado de exceo? O que os segmentos artsticos e culturais, uma vez empoderados atravs dos planos decenais de cultura, espalhados pelos mais de 5.500 municpios, fariam dos restos e das runas provocados pelos processos de modernizao, em suas perspectivas histrica, filosfica e esttica?Em O cosmopolitismo do pobre (SANTIAGO, 2004), dramatiza-se como a mudana do olhar terico literrio, antes fundado no fetichismo da literariedade, e, a partir do final dos anos setenta, do sculo XX, comprometido com uma arqueologia do cultural, pode, no apenas situar as dobras do estado de exceo em todo o sistema literrio e cultural (academias, universidades, programas de disciplinas, programas artsticos, entre outros), mas mobilizar um conjunto de procedimentos para se enfrentar o discurso do ocidente em sua vontade de nomeao e prescrio, legitimao do despotismo, e imposio de uma lgica da repetio e do controle.Assim, em captulos como Democratizao do Brasil (1979-1981): cultura versus arte (ANTELO, org., 1998), (SANTIAGO, op., cit., p. 134 - 155), faz emergir a cultura no campo das belas letras, situando o debate acerca da esquerda poltica brasileira, antes unida em torno da luta contra a ditadura militar e, em final dos anos setenta, divida em suas prospeces culturais. Se de um lado, e seguindo uma linha stalinista, havia um patrulhamento da arte que se abria ao mercado de bens simblicos e ao campo de experimentao das formas, sobretudo a partir da msica e do cinema, por outro, e contra esse patrulhamento, havia um reposicionamento do debate poltico, agora mais em torno de uma politizao do cotidiano e de uma cotidianizao da poltica para alm do estado, partidos e sindicatos.Da mera representao da cultura no texto literrio, teramos, com esse reposicionamento poltico, outro procedimento do escritor, agora mais empenhado em criticar todas as formas de poder, de direita e de esquerda, em acolher outros procedimentos em relao ao pblico leitor, em deslocar os usos da aparelhagem do sistema (mdias, instituies acadmicas, formas de circulao do livro), bem como, outro procedimento do pesquisador literrio, em seus mbitos crtico, terico e historiogrfico, agora mais preocupados com relaes intersemiticas (literatura/msica; literatura/cinema; literatura/artes plsticas, entre outras), tematizaes do minoritrio, mapeamentos crtico do funcionamento das instituies literrias como aparatos de poder e dobras do estado de exceo. na arte, portanto, que vai se dar, primeiro, esse debate multicultural, essa dramatizao da democracia no Brasil, muito longe, ainda, de uma democratizao do Brasil. Nessa linha de reflexo, h, nos outros textos que compem o livro, uma ampliao das linhas desse debate, bem como, uma formulao de uma pauta poltica diferencial. Como ampliao desse debate multicultural, em Atrao do mundo: poltica de globalizao e de identidade na moderna cultura brasileira, (SANTIAGO, op., cit., p. 11- 44), confronta-se o sentido e consequncias do mal-estar do colonizado; expem-se as marcas e violncias lingusticas deixadas pelo aparelho repressor e colonial; lamenta a ausncia de uma poltica lingustica efetiva, fora do campo artstico, e como responsabilidade institucional; enfim, multiplica as interpelaes sobre as falsas noes de universalismo ainda presas dialtica da cpia versus o modelo, do particular versus o universal, entre outras, que compem essa espcie de sistema intelectual brasileiro.Com a literatura brasileira e latino-americana, entendida em seu sentido anfbio, dependente, mas universal, fora do lugar, mas no entre-lugar, apropriando-se do modelo, para tornar-se uma cpia como potncia simblica, nem nacional, nem universal, mas universal em diferena, sendo apropriada pela mdia, mas proliferando-se como sistema de comunicao alternativo, com e contra o sistema, possvel demonstrar que, em Clarice Lispector, por exemplo, (SANTIAGO, op., cit., p. 231- 240), temos um roteiro poltico para no sucumbirmos ao fetichismo da mercadoria, bem como, os elementos para uma histria do presente fundada numa esttica da existncia. Em Outubro retalhado: entre Estocolmo e Frankfurt, (SANTIAGO, op., cit., p. 74 - 90) alm de perguntar pelo sentido de no haver mais associao entre obra premiada com o Nobel, nesse caso o romancista sul-africano J. M. Coetzee, e sua responsabilidade lingustica, diferenciando-a daquela premiada pela indstria cultural, nesse caso Paulo Coelho e sua escrita de auto-ajuda, destaca, aos falantes de lngua portuguesa, o fato de, apenas pontualmente, nunca ter havido de forma ampla, e envolvendo toda sociedade brasileira, um debate sobre a queda do muro de Berlim, em 10 de novembro de 1989, e o esfacelamento posterior do bloco sovitico.Essa falha geolgica, alm de legitimar a escrita de um Paulo Coelho e fazer da retrica comunista, em seu luto stalinista, uma espcie de discurso de autoajuda, impe, ao contrrio, alm de responsabilidade poltica e lingustica, uma srie de procedimentos ao trabalho multicultural libertrio, a comear pela ao intelectual nos mais diferentes espaos culturais (da TV, mdia eletrnica, s redes sociais), passando pelo envolvimento da arte e da literatura na pesquisa e dramatizao das questes no apenas dos pobres e subalternos, mas da pequena e alta burguesia, at o desfazimento da confuso entre espetculo e simulacro (SANTIAGO, op., cit., p. 123 - 133), para que, da agressiva poltica exterior do governo Lula, grifos do autor, se pudesse aqui retomar, como um desvio, a questo marxiana por excelncia: quem que produz a riqueza, para alm da natureza e da classe trabalhadora, e a quem ela deve ser redistribuda?Reposicionado esses questionamentos levantados pelos livros Os pobres na literatura brasileira e O cosmopolitismo do pobre, atravs do ensaio Subalternidades e seus crivos culturais, de minha autoria, propomos outras questes no apenas para um dilogo com esses mestres da crtica literria e cultural, mas, para, talvez, abrirmos outros ngulos e roteiros de trabalho esttico-poltico.Entre ns do Ncleo de Estudos da Subalternidade do Departamento de Educao do Campus II/UNEB Alagoinhas, uma primeira questo que se coloca, j em 2002, ano de sua instituio (mas sem regimento, apenas como espao acadmico e nmade de agitao esttico-poltica) : se o prefixo sub (de alterno), de uma perspectiva multicultural ou materialista cultural, no implica, mais, um estar submisso a outrem ou a alguma forma de poder reativo, mas uma relao de fora que implica alternncia ou radical horizontalidade de poderes, ento a questo no mais se essa ou aquela representao literria, crtica ou historiogrfica implica mediaes ou solidariedade de classe (nesse caso, do intelectual em relao ao pobre), mas como o saber ou a epistemologia do pobre, em suas formas e modos de funcionamento cultural, seria acolhida, entre os intelectuais, na partilha da gesto, criao e recriao das instituies literrias e culturais.Para avaliar o estado da arte, implicado a esta questo inicial formulada pelo Ncleo de Estudos da Subalternidade, tivemos que repensar as belas letras de nossa formao, mapear o que se fazia, em termos do campo literrio, nas universidades estaduais da Bahia; selecionar o que havia de mais ativo em literatura comparada e crtica cultural; inserir, pela via dos estudos libertrios, marxistas contemporneos e ps-estruturalistas, a noo de comuna de paris no interior dos estudos marxistas ortodoxos, e, por fim, proceder a uma pesquisao envolvendo uma srie de coletivos (pesquisadores discentes em iniciao cientfica, fruns de cultura microrregional, ativismos de rua com interpelaes pblicas, ocupao de uma srie de espaos pblicos da microrregio de Alagoinhas com atividades filosficas e polticas, a exemplo do seminrio Karl Marx: est-ticas do trabalho; Gilles Deleuze: movimento no pensamento e socialismo libertrio; grupo de estudos Arte, cultura e anarquismo em Lnin e Trotski, entre outros), coletivos estes que participam, hoje, ativamente, das oficinas de msica, literatura e artes visuais em escolas pblicas da regio, alm de constiturem linhas de ao envolvendo os segmentos de cultura, em processos de institucionalizao na Bahia e no Brasil. Se a principal questo cultural para a revoluo sovitica, em seus primrdios, no se tratava de criao de arte proletria, mas da apropriao da riqueza da arte burguesa (TROTSKI, 2007) para, numa oficina permanente de signos (rachando a relao entre as palavras e as coisas; mapeando os dspotas que, ignorando as assembleias de communards e seus encaminhamentos, se confundiriam com a lei; reinventando as estruturas do pensamento para no se cair no logocentrismo e sua lgica excludente) oficinas estas em que se criassem os antdotos contra o aprisionamento da arte pelo estado, se misturassem surrealismo com revoluo para se reinventar a noo de materialismo histrico (BENJAMIN, 2009), se formassem novos shakespeares, aristteles, plates, combinando cultura burguesa sofisticada com as linhas de fora de uma cincia analfabeta, assim vamos, desde o incio, que o lugar e o momento para isto era o trabalho comunitrio envolvendo os processos de instituio da malha cultural.Ou seja, combinando marxismo contemporneo com anarquismo, acreditvamos no ser mais preciso incendiar as instituies, bastaria, primeiro, situ-las como uma dobra do estado de exceo, em seguida, propor e ativar outra lgica e prtica de funcionamento, ainda que de modo indireto e por suas frestas.Esse mistura de conceitos, noes, prticas epistemolgicas, tradies revolucionrias, modos de abordagem, ordens jurdicas, entre outros, se deve a uma necessidade de confundir a confuso, por exemplo, contra oposies do tipo economicismo versus culturalismo. Ora, no se trata pura e simplesmente de substituir a proposio a infraestrutura econmica determina a superestrutura por h uma semi-autonomia das esferas econmica e cultural, pois se h ao menos uma cabea, a de Marx, capaz de ser indeterminada pelas foras econmicas, podemos ento dizer nem infraestrutura econmica (cotidiano, estado, economia) determinando a superestrutura, nem superestrutura (cincia, religio, arte) determinando a infraestrutura. A radicalidade confront-las, esprem-las, jogar uma contra a outra para se retirar alguma coisa vital.Entretanto, para se estabelecer essa zona autnoma, esse grau zero, esse lugar de indeterminao, preciso recuperar a potncia do signo, melhor, exercitar, em oficinas e leituras do paradoxo, outros modos no apenas de rachar a relao entre palavras e coisas, mas, de interrogar os modos de representao da realidade e as formas de pensamento a ela representao e reproduo subjacentes.Com a introduo da filosofia, poltica, antropologia, psicanlise, histria, sociologia, como campos de pensamento oxigenados por sua virada lingustica e literria, na prtica da literatura comparada e crtica cultural, nos estudos do NUES, identificamos que toda origem implica um ato de nomeao e que se a existncia precede essncia, esta, como atributo do humano, necessariamente deve ser uma construo histrico-cultural, mediada pela e com a linguagem. Assim, a existncia de uma intensa e mltipla prtica semiolgica nos cursos de Letras, sob o crivo de uma crtica da cultura, faz do campo no apenas o lugar de emergncia de uma cultura do signo, mas de uma prtica metodolgica, transversal e rizomtica, capaz de liberar as cincias humanas tanto de seu positivismo matemtico, como nico critrio cientfico, quanto de sua paixes te(le)olgicas.Uma topografia, ento, que conecta Canudos e Comuna de Paris, modernismos e oficinas do signo, barroco, antropofagia, tropicalismo e poltica cultural contempornea no Brasil Lula/Gil, processos de subjetivao em prticas marxistas, estudos lingusticos e literrios como cincia e ao direta, explorao do inconsciente em oficinas de criao em escolas pblicas, entre outros, tudo isso apontando para uma srie de acontecimentos (mirade de tribos em sociedades contra o estado, milenarismos e barricadas na cidade luz; o tempo do trabalho com a palavra artstica e tambm do refazimento do ser nas tramas do ocidente; poltica cultural como ltima prova do estado de exceo; lingustica e literatura, agora, como mquina de guerra a favor dos direitos lingusticos; escolas pblicas e festivais de cultura nos bairros como novas prticas communards), acontecimentos estes que convergem para a definio de outro estatuto da revoluo e do esprito revolucionrio: se o estado de exceo, mais atual do que nunca e principalmente nas sociedades ditas democrticas, esmera-se na suspenso do direito e no posicionamento do dspota no lugar da lei (isso vale para todos os regimentos) ento, e contra isso, nada mais atual que o esprito communard, que tambm se esmera em encarar o poder como um lugar vazio (nunca preenchvel por um dspota) e o preceito jurdico como um significado sem transcendncia, a exemplo da palavra literria. Se no h mais espao para o terror de estado, como expresso da classe trabalhadora no poder, a forma mais racional de seu funcionamento seria a da mediao entre capital e trabalho: a sociedade civil organizada em comunas cria as leis e forja, atravs desse estado mediador, a sua execuo cada vez mais a favor de quem, com a natureza, produz a riqueza material existente, at o ponto de no haver mais os detentores dos meios de produo, a alta burguesia, nem ordem jurdica que legitime o estado de exceo, i., o estado, por fora de lei, deve conter, em si, o veneno para o seu prprio perecimento. E a poltica, para alm do estado, dos partidos e dos sindicatos, estaria no combate permanente, onde quer que haja dobra do estado, do dspota que quer substituir a lei e suspender os direitos, e na afirmao e disseminao de outra institucionalidade para as instituies.Se Lnin, a exemplo de seu av Alexander Blank, desejasse levantar-se da sepultura cem anos depois para dar uma olhada em como as pessoas esto vivendo ento, por certo no estranharia a evoluo e a forma sofisticada do fetichismo da mercadoria, contra a qual produziu livros memorveis, a exemplo do Imperialismo, fase superior do capitalismo, mas, com certeza, teria um ataque cardaco quanto ao funcionamento do imaginrio poltico, em especial o do socialismo desviado pelo stalinismo.No somente a literatura e a obra de arte sofreram as mais srias restries, controle e violncia da poltica como terror do estado, mas o prprio exerccio do pensamento crtico e poltico, o prprio desenvolvimento da conscincia e cultura poltica da classe trabalhadora. Se certo, conforme Eric Hobsbawn (1995), que para Lnin, Moscou teria sido apenas o quartel general do socialismo, at que a ideologia pudesse mudar-se para sua capital permanente em Berlim (Op., cit, p. 367) para que em vez da revoluo num pas s, de fato, continuasse sua vocao internacional e permanente (TROTSKI, 2007), temos, aqui, neste trabalho, a abertura de uma srie semiolgica com inteiras condies no apenas de se recolocar a situao revolucionria (DELEUZE, 1988, p. 308) como uma ideia viva na cabea dos pobres e subalternos, a exemplo do que foi uma ideia para Lnin, mas de recolhermos o idealismo stalinista, disfarado de marxismo, como runas da histria a fim de que, pacientemente, o reciclemos, ou simplesmente o deixemos na lata do lixo do autofetichismo.

II

SE UM ANARQUIVISTA NUM CENRIO DE VIGILNCIA E CONTROLE

Encontrei pela primeira vez a noo de anarquivista ou arquivista anarquista num artigo intitulado Memria literria arquivada (2008), de autoria do comparatista contemporneo Reinaldo Marques. Em linhas gerais, o sentido dessa noo o de que para no sucumbirmos ao ordenamento dos arquivos, com suas solenidades de origem, cartas de princpio, protocolos de lei e naturalizao da linha reta da histria da literatura ou da civilizao ocidental, os jovens pesquisadores, sobretudo aqueles com formao e prtica ps-disciplinar, devem refazer seu roteiro de entrada nos arquivos, a comear pela descrio de sua forma e modos de prescrio institucional.Crtico contundente da estrutura e compulso arquivstica, engendrada pelas instituies literrias modernas e modernistas, a exemplo das Academias de Letras, Bibliotecas Nacionais, Centros de Documentao universitrios, entre outros, o comparatista contemporneo apresenta-nos no s um modelo diferencial de arquivo, tomando como exemplo o Arquivo de Escritores Mineiros (AEM), que alm de fundir arquivo, museu, biblioteca, oficinas de produo, prope ainda outra pedagogia da pesquisa e da leitura. Assim, possvel alm de vislumbrar a emergncia de outro tipo de pesquisador, de outro tipo de arconte, de outro tipo de obra arquivada, implementar outra prtica cientfica, cultural, esttica, em condies de tematizar o residual: aquilo que estaria excludo e fora da ordem arquivstica.Neste captulo, adotando uma perspectiva crtico-cultural, alm de se levar ao limite as noes de anarquivista, arconte e obra arquivada, prope-se, tambm, outras relaes entre esses elementos estruturantes do sistema arquivstico, com o objetivo de situar, com e contra este sistema, o lugar do testemunho (AGAMBEN, 2003) daqueles que foram despejados lingustica, cultural, territorial e ontologicamente pela ocidentalizao do mundo, e duplicar o sentido de literatura brasileira, i., nem literaturas primeiras, nem literaturas segundas (SANTIAGO, 1978), mas um tipo de linguajamento (MIGNOLO, 2003, apud CESAR; SOUZA; COSTA, 2012) e de prtica escritural que ponha em movimento a lngua que resta. Em Escritores filmando cmeras de segurana demonstramos, de outra perspectiva, como Oswald de Andrade, Jorge Luis Borges, Italo Calvino, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Giorgio Agamben e o anarco-primitivista John Zerzan, ocupam arquivos erigidos pela cultura ocidental, identificam os pontos de ruptura com a vida e com o ser humano, exercitam outras formas de (an)arquivar, e se colocam num trabalho de reconstruo de uma esttica da existncia. J em Pesquisadores rastreando os rastros, encenamos a trama do arquivo pblico que, proveniente da conquista revolucionria burguesa, em fins do sculo XVIII, e com a funo de ser um dispositivo de controle do estado por parte da sociedade civil organizada, acaba por ter sua funo invertida, na medida em que reduz cada indivduo a uma espcie de centro de documentao disponvel aos sistemas de controle e vigilncia, reduzindo, em certa medida, a pesquisa em fontes primrias a uma espcie de preenchimento de lacunas da histria linear.Em Lgica anarquivista ensinada s crianas, partimos da prescrio lingustico-literria contida nos Parmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental e Mdio, contrapondo-as ao laboratrio da lngua (AGAMBEN, 2011) e prtica de sentido que toda infncia promove, alm de retomar a histria dos brinquedos (BENJAMIN, 2002) como afirmao da experincia na infncia e dramatizao dessa ausncia de experincia na vida adulta.Em Ruas digitais e Black brocs, situamos a falha geolgica, (SANTIAGO, 2004) entre os falantes de lngua portuguesa, quanto ausncia de debates, no mbito do sistema escolar, e mesmo entre os intelectuais, sob o sentido e os efeitos da guerra fria, pensados a partir da globalizao e a chamada nova ordem mundial, para finalizar com Minorias (an)arquivadas e o crepsculo do estado, em que, sendo este uma instituio de direito pblico, criado pela sociedade civil organizada para mediar as relaes entre capital e trabalho ou como expresso poltica da classe trabalhadora, em sua luta contra a diviso de classe, sua fora consiste no na prescrio da lei, conferindo soberania e poder aos dspotas, mas no exerccio permanente de seu prprio perecimento, na medida em que se abre proliferao de uma mirade de cooperativas e associaes minoritrias (MSZROS, 2002).Se essas cooperativas e associaes minoritrias, factveis com a poltica cultural contempornea, expandirem sua emergncia a todos os municpios do Brasil, ativando o sistema literrio (pontos de leitura dos clssicos, modernos e contemporneos, oficinas de produo local, mercados alternativos, tradues de lnguas dos pases associados aos BRICS Brasil, Rssia, ndia, China, frica do Sul) e envolvendo comunidades indgenas e quilombolas, com suas experincias milenares em cultura poltica sem e/ou contra o Estado (CLASTRES, 1988; CASTROS, 1986), teremos no s a interrupo de um continuum histrico cultural e, ao mesmo tempo, a abertura de outras transmissibilidades (AGAMBEN, 2012) literrias e culturais, duplicando a lngua e a literatura, como um direito. Escritores filmando cmeras de segurana

Nas chamadas democracias contemporneas, sobretudo a partir de 11 de setembro de 2001, em que Osama Bin Laden concretiza seu projeto de derrubar as Torres Gmeas, em Nova York, Estados Unidos, todo e qualquer ser humano, cidado de primeira ou de ltima classe, est sob suspeita. Mas esse gesto institucional de suspeitar do povo, escravos, subalternos e mesmo dos cidados e cidads, parece ter acompanhado o estado desde sempre.Em suas pesquisas arqueolgicas, Giorgio Agamben (2004) defende que o estado de exceo desde sempre um paradigma de governo, cuja funo principal a de conferir todo poder ao dspota ou soberano, a ponto de este se confundir com a lei, e esvaziar o direito vida como uma poiesis ou potica da amizade (AGAMBEN, 2010). E para atingir seus objetivos, o estado alm de contar, por fora de lei, com seus funcionrios distribudos em postos de comando e por toda a malha do sistema, ainda faz da violncia sua justificativa mxima tanto para a manuteno da ordem como do status quo. Nessa linha de reflexo e tratando de literatura e de escritores, artistas, crticos e historiadores de arte, filsofos do belo, em O homem sem contedo (AGAMBEN, 2012), escrito em meados dos anos setenta do sculo XX, prope um contraponto radical: se Kant, um dos funcionrios do sistema, prescreve que a contemplao da obra de arte deve ser objetiva e desinteressada, isto fundada numa esttica ou cincia do belo e a favor do homem de gosto, e Nietzsche, ao contrrio, e como um demolidor de dolos, assevere que alm de interessada, a obra de arte s deve ser julgada pelos artistas, ento, depois da dilacerao desses artistas, sobretudo os de vanguarda, e de obras como os ready mades e pop art, no h outra alternativa seno uma arqueologia dessa ruptura e trazer para a cena do debate contemporneo no s a poiesis, clssica, como defendida por Aristteles, mas de selecionar aqueles artistas e pensadores artistas que souberam eleger um momento de perigo e de escurido por que tem passado a humanidade e submet-lo a uma forma e, ao mesmo tempo, definir, e viver, roteiros de existncia possveis: empenhar seu modo de vida como um estilo.O artista agambeano ento uma espcie de terrorista (op., cit. 2012) que ameaado pelo sistema de destruio do ser cria as formas no apenas para darem a ver essa ameaa, mas cultiva de certa forma um modo de vida, que combinadas, forma de vir a ser da ameaa e a experincia, tm o poder de aterrorizar o terror. Assim, e a ttulo de exemplo, enumeraramos ao menos trs cmeras de segurana tematizadas em alguns de seus livros: a) a que est subjacente ao debate entre o jurista nazista Carl Schmitt e Walter Benjamin acerca da violncia (op., cit., 2004). Para o nazista toda violncia de estado justificvel quando se trata de manter a ordem; para o filsofo das ruinas da modernidade, a violncia s justificvel se implicar uma desordem que venha emancipar a humanidade e transvalorar os seus valores; b) no limite, e assim como o vazio e o esvazivel dos signos (DERRIDA, 2001; DELEUZE, 2006), a arqueologia da glria (AGAMBEN, 2011b) indica apenas um trono vazio; c) a obra do nazismo ao reduzir artistas e intelectuais perda da linguagem e depois cmara de gs no foi uma experincia que se esgotou com o fim da segunda guerra mundial, mas um laboratrio do presente (AGAMBEN, 2003) e em pleno movimento.Nessa linha de montagem sobre cmeras de segurana distribudas por tempos e lugares, e como dispositivos de poder, h, primeira vista, uma estranha similaridade entre o observatrio panptico denunciado por Foucault com a biblioteca inventada por Borges. A noo de sociedade disciplinar foucaultiana implica no s a vontade de soberania nos processos de subjetivao do homem moderno, ps-renascentista, e, sobretudo, depois das revolues burguesas do sculo XVIII, mas atravs da vontade de verdade estimulada por saberes como o da matemtica, biologia, filosofia e as cincias sociais positivistas. Atravs desse poder (vontade de soberania) que produz o saber (vontade de verdade) e desse saber que engendra o poder, todo o tempo e espao no s poderia ser inventado, mas tambm vigiado. Mas Borges, atravs de sua biblioteca, inverte completamente essa lgica descrita e denunciada por Foucault.Num conto intitulado O etngrafo (BORGES, 1993) relata um caso, acontecido numa universidade norte-americana, em que um estudante de doutorado preparado para estudar uma tribo indgena e l descobrir o segredo que os feiticeiros revelam ao iniciado (p. 31). Depois de dois anos e enfrentando todas as provaes e contratempos, o pesquisador no s obtm a revelao do segredo por, ento, seu mestre e no mais o feiticeiro mas deixa a tribo sem despedir-se e, j na universidade, no gabinete de estudos de seu orientador de tese, embora pudesse contar o segredo em vrias verses e de mltiplas formas, comunica sua desistncia, alegando a frivolidade do saber cientfico. Prefere continuar sua vida como bibliotecrio da Yale. Num conto-poema do mesmo livro, intitulado o Guardio dos livros, h tambm uma torre, como no dispositivo panptico, mas com a funo invertida. Ou seja: se a torre panptica tem uma vontade de saber, rastrear e controlar, a torre da biblioteca se apropria desse rastreamento, desse livro, ou conjunto de livros, falsifica sua lgica, multiplica suas verses, ficcionaliza suas verdades.Nessa linha borgeana, Italo Calvino em Se um viajante numa noite de inverno (1999) alm de mapear as cmeras de vigilncia e controle no interior do sistema literrio (editoras, processos de traduo, laboratrios do gosto e do desejo, fabricao do imaginrio e consumo de representaes), prope uma pedagogia da leitura, fundada numa dessubjetivao da figura do leitor no processo mesmo de cada leitura.Em Oswald de Andrade, John Zerzan e Gilles Deleuze, a forma da forma e seu suporte que interessa num debate sobre cultura e vida (an)arquivada. Em Poesia Pau Brasil (1924;1991), temos uma apropriao e transvalorao dos livros da colonizao brasileira em forma de poemas legando, com isso, no s uma lngua selvagem, no interior da lngua portuguesa, mas uma tecnologia da subjetivao e uma proposta de reinveno do Brasil num contexto de debates transnacionais. Em o Manifesto antropfago (1928;1990) e seus desdobramentos poticos e ensasticos traz, para a cena da vida cultural cosmopolita, a figura do brbaro tecnicizado que tanto pode ser uma resposta dos povos colonizados pela ocidentalizao do mundo (inverter a lente do colonizador para enxerga-lo sob outros focos) quanto uma arma para a dessubjetivao de corpos e culturas tecnicizadas. Pelo crivo antropfago, h resistncia matricial e selvagem, mesmo nas almas clonadas.Em o Crepsculo das mquinas/Twilight of the machines (2008), o filsofo John Zerzan s v sentido nelas quando depedradas por anarquistas e Black brocs em direo a um primitivismo anterior ao homo sapiens. Seu argumento geral o de que o homem tecnolgico no tem futuro seno se destruindo com todos os valores civilizatrios, e apenas colecionando, dessas runas, o que h de primitivo ou matricial. Em Sobre as sociedades de controle (DELEUZE, 1992), alm de uma distino entre sociedades disciplinares, tpicas do sculo XVIII II Guerra Mundial (a passagem do indivduo de um espao fechado a outro e cada um com sua lei: famlia, escola, fbrica, hospital, priso) e sociedades de controle, com emergncia depois da II Guerra Mundial e em contextos considerados democrticos (novo monstro atuando ao ar livre), compara suas lgicas e descreve o programa desta ltima. No lugar da fbrica, com seu tempo, lugar e regime, as empresas, com sua lgica modular, seus gerentes e sua cultura do marketing. Em vez do confinamento, as modulaes de controle; em lugar da assinatura e do nmero de matrcula, as cifras ou senhas; em lugar da escola, a empresa como escola: com formao permanente e controle contnuo no lugar dos exames. Enquanto programa, e tendo como principal dispositivo os computadores, as sociedades de controle apresentam, para o regime de prises, penas substitutivas e coleiras eletrnicas; para o regime das escolas, a evocao das empresas em todos os nveis de escolaridade, alm da formao, avaliao e controle permanente, e nada de pesquisa nas universidades; para o regime dos hospitais, uma medicina sem mdicos nem doentes, em que doentes potenciais e em risco so resgatados, mas sem progredir a uma individuao, e apenas como matria dividual a ser controlada. Se essa passagem de uma sociedade a outra implica, radicalmente, uma crise das instituies e seus arquivos, qual seria o papel, atual, dos sindicatos, da pesquisa universitria e da literatura?A final, quem que a cmera de segurana, seus arcontes e de que maneira se configura a sua obra? As respostas, aqui, so mltiplas e bastante radicais: em Agamben, no apenas um dispositivo que vigia e que tem como operadores uma mirade de dspotas (arcontes), mas que tem como obra ou funo o assassinato da forma do vir a ser, pela imposio de um significado fixo e do sentido de origem. Em Foucault, seria o dispositivo para o confinamento, tendo por arcontes os sujeitos de saber e de poder, cuja obra seria imprimir uma vontade de verdade e impedir a humanidade de outras escolhas, sobretudo aquelas voltadas ao cuidado de si e disseminao de uma esttica da existncia. Em Borges, a cmera tem sua funo invertida: em vez de ver e registrar o fora (os anarquivistas, por exemplo), este de tanto ser visto e perseguido (pela vontade de descrever dos arcontes) a faz perder a funo (de reter a obra registrada), ficcionalizando e falsificando seus resultados. Em Calvino, o dispositivo que procura fixar o sentido do real e do realismo, alm de impor uma profuso/inflao de imagens (os arcontes que querem fazer da literatura uma revista de modas exticas) que enfraquece a potncia de simbolizar de escritores e leitores e, que tem por obra, a vontade de paralisar a imaginao criadora de formas e expresses da existncia. Em Oswald de Andrade, seria a inviabilizao da incorporao da tcnica pelo brbaro e, ao mesmo tempo, impedir a proliferao, por meios tcnicos, das foras matriciais e selvagens da humanidade. Em John Zerzan, toda e qualquer forma de tecnologia e de simbolizao advinda com o processo civilizatrio. Os arcontes seriam todos aqueles que elogiam e operam com dispositivos tecnolgicos, cuja obra a destruio da humanidade, sob vrios aspectos: simblicos, ecolgicos, subjetivos, polticos, estticos. Em Deleuze, a cmera de segurana e controle seria a forma de paralisar o movimento da relao entre coisas e nomes, inviabilizando a identificao de quem se manifesta sob esta ou aquela proposio, esta ou aquela lgica (o conjunto dos arcontes), cuja obra seria o simulacro, promovido pelos gerentes e suas agncias de publicidade.Pesquisadores rastreando os rastros

O homem se encontra j sempre no dia do Juzo, o dia do Juzo a sua condio histrica normal, e somente o temor de enfrent-la o impele a ter a iluso de que ele esteja ainda por vir. Kafka substitui, portanto, a ideia da histria desenrolando-se ao infinito ao longo de um tempo linear vazio (que aquela que constrange o Angelus Novus sua corrida irrefrevel), pela imagem paradoxal de um estado da histria no qual o evento fundamental da evoluo humana est perpetuamente em curso e o continuum do tempo linear se despedaa sem, todavia, abrir passagem para alm de si mesmo. A meta inacessvel no porque est distante no futuro, mas porque est presente aqui diante de ns: mas essa sua presena constitutiva da historicidade do homem, do seu perene demorar-se ao longo de uma trilha inexistente e da sua incapacidade de se apropriar da prpria situao histrica. (AGAMBEN, 2012: 181 182).Um gesto de filosofia da histria bem surpreendente, e talvez libertrio, aquele de Benjamin, em escritos por volta de 1928, ao inserir o surrealismo no cerne do materialismo histrico e dialtico, com o objetivo tanto de salvaguard-lo da noo descrio exata do real levada ao limite pelo stalinismo, ento emergente, como para utiliz-lo, de outra forma, na construo de uma filosofia material do sculo XIX, em que a realidade dos homens, que comeam a se perder no tempo linear, passa a ter a forma de um sonho, com seus incalculveis pesadelos.Uma imagem que evocaramos, aqui, estimulada por esse gesto benjamineano, seria aquela do estado, em final do sculo XVIII, construindo o seu arquivo pblico (VENNCIO, 2013; MATOS, 2013; FLEXOR, 2013) por fora das demandas e exigncias de uma sociedade civil emergente e em contexto das revolues democrtico-burguesas (TROTSKI, 2007). A constituio de um arquivo pblico, atravs de documentos da vida burocrtica, com sua mirade de processos, em todas as instncias (sade, educao, transportes, comrcio, cultura, segurana, entre outros) seria um dispositivo poltico-administrativo atravs do qual a sociedade controlaria o estado, e no o contrrio: no interior deste, alm de processos serem interrompidos, engavetados, desviados no interior da mquina, formatados, para consulta pblica, apenas os que fetichizariam os trs dolos da histria (o poltico, o individual e o cronolgico) (BURKE, 1997), teramos, ainda, uma sistemtica seleo, apagamento ou interdio da memria de pobres e subalternos.Assim, a criao de centros de documentao sobre os mais variados temas da vida social, bem como a incorporao de arquivos privados, isto da vida e obra de homens e mulheres pblicos, por parte do estado, que se responsabilizaria, ento, pela implantao, gesto, manuteno e disponibilizao para visitao, consulta e pesquisa, antes de ser um bem e um servio pblico, implica uma forma sistemtica de controle, cuja virtualidade (dessa forma de controle) teria por paradigma o Big data e o GPS: sistema de localizao espao-temporal, explorao de informaes para o mercado de capitais, prospeces acerca da vida subjetiva, entre outros, manipulados tanto atravs de satlites quanto pela imposio de um gosto, com suas regras de contemplao. Nessa linha de controle da vida pelo estado, que comea com o registro de nascimento, carteiras de identidade, nmeros de matrcula, senhas de acesso, paradoxalmente, cada pessoa annima, aparentemente apagada do sistema arquivstico, como se fosse um centro de documentao, cujos dados envolveriam desde batimentos cardacos intrauterinos em exames de ultrassom, nome, data e local de nascimento, trajetria de estudos e de trabalho, fotos tiradas por cmeras de segurana, postagens e formas de navegao na internet, personas virtuais assumidas, entre outros dados pessoais arquivveis.Essa vontade de arquivar a sociedade civil, com seu tempo e espao, no apenas est configurado naquilo que Michel Foucault pesquisou e denunciou como confinamento, mas, tambm, naquilo que Borges tematizou como memorioso ou excesso de memria. O estado moderno, controlado pelo capital, ao mesmo tempo em que apaga ou inviabiliza o direito memria dos despejados lingustica, territorial, cultural e ontologicamente, impe uma memria do linear, com seus fantasmas e mecanismos de paralisao do tempo presente, como coexistncia de temporalidades e potica da existncia.Se a prpria cincia, antes da obra de Marx, Nietzsche e Freud (FOUCAULT, s/d) com suas ferramentas de problematizao e distanciamento crtico, funcionava como reproduo dos valores de uma classe dominante, controle da vida por uma racionalidade instrumental, condenao dos sujeitos sem direito a defesa, como propor e fazer funcionar outra cincia que, alm de descrever as anomalias de um aparato cientfico, suas distores, sua vontade de verdade, crie condies de emergncia de outro tipo de pesquisador?Em O que marxismo ortodoxo?(2003), Georg Luckcs argumenta que sem uma cincia fundada a partir do materialismo histrico e dialtico, no seria possvel, classe trabalhadora e seus intrpretes, identificar os arquivos da cincia burguesa como um conjunto de falsificaes da realidade, nem reconstruir seus prprios arquivos em prol de uma sociedade revolucionria que levasse em conta as situaes em que se ao mesmo tempo objeto e sujeito dessa revoluo. Assim, se o capital, e suas formas de metabolismo e reificao, lana seus tentculos onde quer que existam trabalhadores e gente explorada, ento, a mesmo, nesse multilocalidade de explorao, devem tomar forma os arquivos que constituem tanto a configurao de coletivos e seus modos de se descreverem como objeto, quanto suas prospeces enquanto sujeito de transformao social e subjetiva.Essa ao da classe trabalhadora, ainda que aleatria e sem unidade, parece combater no s dois grandes peritos da pesquisa burguesa, aquele funcionrio das grandes empresas, preocupado apenas com o avano da cincia pela cincia e sua garantia absoluta de mais valia, aquele outro, como agente de segurana e pesquisador dos sinais de ameaa ao sistema, mas, e para nossa surpresa, o prprio pesquisador de fontes primrias, cuja preocupao principal encontrar, atravs da pesquisa, dados e argumentos para preencher uma lacuna da histria linear.Uma questo, ento, aqui se impe: no seria a pesquisa em arquivos pblico e privado, se despolitizada, uma forma de perpetuar o continuum da histria e seus mecanismos de fetichizao do saber hegemnico? A luta aleatria, e sem unidade, a que nos referimos acima, no exigiria dos anarquivistas outra noo de tempo, outro sistema de coleta de informaes para se produzir outro tipo de conhecimento como cincia e ao direta?Se pesquisadores filiados a empresas e sistemas de segurana pblica, bem como certos pesquisadores de fontes primrias, em arquivos pblicos e privados, movem-se, em suas pesquisas, a partir de uma vontade de rastreamento dos rastros (ondas do desejo e do sonho para se implantar nichos mercadolgicos; focos de conspirao possveis e modos de antecip-los e control-los; recorte temporal com seus dados possveis, conferindo pesquisa seu carter cientfico, etc.,), como reinventar o olhar cientfico para alm do dilema estatuto cientfico frgil para chegar a resultados relevantes ou assumir um estatuto cientfico forte para chegar a resultados de pouca importncia (GUINSBURG, 1990:178)?Em Sinais: razes de um paradigma indicirio, o historiador italiano Carlo Guinsburg, defendendo a construo de um paradigma a partir de sinais e traos aleatrios, apagados ou desprezados pela epistemologia dominante, fundada, quase sempre, no quantitativismo matemtico, esclarece que apenas a lingustica, ou o campo lingustico-literrio, durante o sculo XX, superou o dilema acima mencionado, bem como ofereceu s outras disciplinas essa condio. Sendo assim, como levar adiante o projeto de Kafka, em epgrafe?A imploso do continuum da histria, assim, deve se dar primeiro no cerne do materialismo histrico e sua vontade de crtica exata do real, e, atravs de um laboratrio do signo ou das formas de posicionalidade de cada grupo de trabalhadores oprimidos onde quer que haja explorao e imposio de realidade falsificada e confundida por seus simulacros dar a ver, como possibilidade, a passagem entre objeto de explorao e possibilidade de ser sujeito de sua prpria histria.Os arquivos, nessa equao complexa, estariam sempre em movimento e comeariam, por exemplo, com uma palavra geradora, prevista ou assumida num mtodo de trabalho cientfico de um Paulo Freire, capaz de mobilizar quantos arquivos (pblicos, privados, pessoais, ecolgicos, entre outros) forem necessrios e de acordo com as demandas libertrias da mirade de grupos e/ou categorias da imensa classe trabalhadora.O estado da histria, nessas condies poiticas, conferiria organicidade, substncia e consistncia aos agoras e s historicidades aleatrias (JAMESON, 1996), bem como seria incapturvel pelos dispositivos dos rastreadores. A noo de arquivo, aqui, conteria o sentido de arquivamento dos arquivos como dispositivo do estado, em suas vinculaes com o capital, para, a exemplo de Borges, faz-lo devir livro: aberto s multiplicidades de verses.

Lgica anarquivista ensinada s crianasTal como los nios custodian en los juegos y en las fbulas el mundo mtico liberado de su sometimiento al ritual, transformando as la prctica adivinatoria en un juego de azar, el instrumento augural en un trompo, el rito de fecundidade en una ronda, del mismo modo la filologa [como mitologia crtica] transforma los nombres mticos en palavras y al mismo tiempo redime a la historia de la cronologa y del mecanicismo. (AGAMBEN, 2011: 205).

Essa dificuldade [leitura e escrita] expressa-se com clareza nos dois gargalos em que se concentra a maior parte da repetncia: no fim da primeira srie (ou mesmo das duas primeiras) e na quinta srie. No primeiro, por dificuldade em alfabetizar; no segundo, por no conseguir garantir o uso eficaz da linguagem, condio para que os alunos possam continuar a progredir at, pelo menos, o fim da oitava srie. (PCN, Lngua Portuguesa: 1 4 srie, p. 14).

Nesse processo construtivo original, o texto literrio est livre para romper os limites fonolgicos, lexicais, sintticos e semnticos traados pela lngua: esta se torna matria-prima (mais que instrumento de comunicao e expresso) de outro plano semitico - na explorao da sonoridade e do ritmo, na criao e recomposio das palavras, na reinveno e descoberta de estruturas sintticas singulares, na abertura intencional a mltiplas leituras pela ambiguidade, pela indeterminao e pelo jogo de imagens e figuras. Tudo pode tornar-se fonte virtual de sentidos, mesmo o espao grfico e signos no-verbais, como em algumas manifestaes da poesia contempornea. (PCN, Lngua Portuguesa: 5 8 sries, p. 27)

O gostar ou no de determinada obra de arte ou de um autor exige antes um preparo para o aprender a gostar. Conhecer e analisar as perspectivas autorizadas seria um comeo para a construo das escolhas individuais. (PCN, Ensino Mdio, p. 9)

O estudo da gramtica passa a ser uma estratgia para compreenso/interpretao/produo de textos e a literatura integra-se rea de leitura. (PCN, Ensino Mdio, p. 18)

O homem visto como um texto que constri textos (PCN, Ensino Mdio, p. 18)

Ela [a lngua] um cdigo ao mesmo tempo comunicativo e legislativo. (PCN, Ensino Mdio, p. 11).

Desmontando e refazendo leis de diretrizes e bases para a educao no Brasil, em fins do sculo XX e em contextos ditos democrticos, um conjunto de educadores, em todas as reas do conhecimento, alm de promover um debate de longo alcance envolvendo a sociedade brasileira, se apropria de arquivos da rea educacional, sobretudo aqueles construdos em tempos de regime militar (1964 a 1985), para se pensar, construir e praticar outra noo de educao entre ns.Focando, aqui, aspectos dos parmetros curriculares nacionais para a lngua portuguesa, relativos ao ensino fundamental, a nfase recai sobre os filhos do analfabetismo que precisam ser acolhidos em sua diversidade lingustica, progredir, quanto s habilidades de ler e escrever, como uma condio para o acesso aos estudos de quinta oitava sries. Embora seja factvel, nos estudos prescritos para o Fundamental 2 (5 8/9), o acesso especificidade do texto literrio, em suas transgresses ao fascismo da lngua, no nvel mdio, o aluno, alm de ser considerado um texto que constri textos, torna-se, paradoxalmente, uma espcie de sujeito que seria iniciado no embate comunicativo, mas sem direito fala ou apenas a uma fala policiada, que seria iniciado ao bom gosto, mas desprovido do sentido de si, como um artista da leitura, pois, conforme tais parmetros curriculares nacionais, alm de cdigo comunicativo, a lngua tambm um cdigo legislativo e que O gostar ou no de determinada obra de arte ou de um autor exige antes um preparo para o aprender a gostar.A prescrio, ento, assume seu grau mximo, quando desse processo educativo deve resultar um pensamento crtico com flexibilidade, em um mundo novo que se apresenta, no qual o carter da Lngua Portuguesa deve ser basicamente comunicar (p. 17). No haveria, aqui, uma aporia? De que forma as crianas, de 4 a 14 anos, consideradas filhos do analfabetismo, entram num sistema educacional que encena acolh-los, com o crivo da diversidade lingustica, mas que, alm de cercear seu espao de expresso como despejadas lingustico, cultural, territorial e ontolgico, ainda prescreve as regras do bom gosto? Um sistema educacional, com tais dispositivos, no estaria incluindo para perpetuar a excluso?Deslocando o eixo de uma interpretao do mundo e da histria do ocidente, fundada por uma perspectiva matemtica, quantitativista, com seus movimentos circulares e suas linhas retas, pontilhadas de instantes, Giorgio Agamben, em Infancia e Historia (2011) alm de demonstrar que o homem ocidental est perdido nesse continuum histrico, prope como tarefa para a filosofia contempornea la redefinicin del concepto de lo transcendental en funcin de su relatin con el lenguage (p.211). Ao longo do livro argumenta e defende que somente as crianas, atravs de sua entrada na lngua, e por seus discursos e atos de fala, inscrevem a diferena do humano em relao aos outros animais, alm de vivenciar e praticar historicidades, experincias que os adultos, por seu apego ao linear e seus fantasmas, teriam perdido.Assim, ironicamente, o que ensinar s crianas como el deber infantil de la humanidad que viene? Benjamin, em sua resenha Histria cultural do brinquedo (1986), alm de tematizar formas e funes dos brinquedos, como inveno das crianas, numa diversidade de tempos e lugares, implicada numa reencenao das atividades dos adultos, repetio, outra vez, daquilo que nunca deveria acabar, utilizao dos mais diferentes materiais, prope, em tempos de cultura e barbrie, uma outra pergunta: se o contedo ideacional do brinquedo no estaria determinando a brincadeira da criana.Ento, se a criana quer puxar alguma coisa e se transforma em cavalo, quer brincar com areia e se transforma em pedreiro, quer se esconder e se transforma em bandido ou policial (p. 247), temos, aqui, no s um ponto de partida para uma pedagogia do jogo e da brincadeira, mas para uma problematizao do brinquedo como objeto de confrontao do adulto em relao criana.Talvez essa pedagogia do jogo e da brincadeira, atualizando a problemtica posta em movimento por Benjamin, esteja sendo ativada em muitas escolas no Brasil, mas devemos situar, aqui, a ponta de uma srie aberta pela oficina Marx, ensinado s crianas promovida, entre outras atividades, pelo Ncleo de Estudos da Subalternidade, Campus II/UNEB, em 2008, em homenagem aos 190 anos de nascimento do filsofo (5 de maio de 1818 5 de maio de 2008) que em vez do marxismo, como pressuposto para a organizao do evento, recorremos ao anarquismo com a funo de revolver o esplio Marx dos arquivos de partidos, sindicatos e estados, considerados marxistas (FOUCAULT, 2010) e produzir outra imagem da revoluo, agora envolvendo professores de escola pblica e seus alunos.Imaginvamos, ento, se em vez do pacto que a classe mdia brasileira havia feito com os militares do golpe de 1964, envolvendo a oferta de universidade pblica de alto nvel para os egressos de escolas particulares; e faculdades particulares de baixo nvel para os filhos de trabalhadores que viriam de uma escola bsica pblica sucateada e da pior qualidade, tivesse ocorrido, como estava em curso, uma suspenso do sistema educacional vigente, para oferecer, com justia, outro sistema educacional para aqueles despejados lingustica, cultural, territorial e ontologicamente, h quase 500 anos, pela suposta modernidade ocidental, teramos, ainda assim, que reinventar outra noo de tempo para o materialismo histrico, perdido que est(va) no tempo linear e mecanicista, derivado do materialismo vulgar ou stalinismo tardio (DEUTSCHER, 2006).Se h em Marx uma teoria da histria que supe a existncia do homem, como um animal capaz de gnero (AGAMBEN, 2011, 2012), isto , pela prxis, e contra o fetichismo, ser capaz de historicizar-se, por outro lado, no chegou a formular uma teoria do tempo que, em vez do cronolgico, fosse possvel a experincia em tempo cairolgico. Assim, supor uma revoluo, a partir da escola, e com esses filhos do analfabetismo, envolveria ao menos a suspenso de alguns elementos estruturantes da lgica do continuum: a) como cada professor, em combate ao tempo linear e vazio e sem experincia cairolgica, descreveria a partir de sua memria - sua entrada na lngua e mapearia seus discursos e atos de fala durante sua experincia infantil (7 aos 14 anos); b) como cada estudante, dos 4 aos 14 anos, organizariam os seus brinquedos num espao como se fosse um grande museu, com seus manuais, guias, prescries de bom gosto e divertimento. Uma lgica anarquivista, em pleno movimento nas escolas, comea por celebrar a presena no apenas das crianas que habitam cada professor, que se transmutaria num professor artista (GALLO, 2011) capaz de descrever as formas lingusticas de sua constituio como sujeito histrico, bem como um mediador, um facilitador, que desmontaria, permanentemente, a lgica do bom gosto (AGAMBEN, 2012) disseminada pelo capital, a organizao mundial do comrcio e sua relao com o sistema de educao, a lgica comunicativa subjacente ao ensino de lngua, como um dispositivo ou propaganda desse capital e dessa organizao mundial do comrcio que estruturante dos brinquedos e das brincadeiras.Se entre ns no h mais ou no existe ainda uma cidade da cincia que, em tempo real, e como animao cientfica, oferea s crianas, e s crianas que habitam os adultos, caixas de ferramentas para desmontagens da lgica do fetichismo das mercadorias, mas, ao mesmo tempo, e sem resolvermos esse primeiro problema, ainda somos desafiados a enfrentar a cidade de deus, com crianas com revlver na mo assombrando a nossa assombrao, ento, no temos outra sada seno reinventarmos a cidade dos brinquedos, tendo como pressuposto a filologia como uma mitologia crtica, a linguagem (teatro singular perlaborativo e performativo) como um lugar da transcendncia, a literatura como plano semitico que imprima na lngua um alm da comunicao e da expresso e a descrio dos brinquedos e das brincadeiras, como o lugar da experincia e da historicidade.Os anarquivistas, aqui, seriam os professores artistas de si e estudantes como artistas da leitura; os arcontes, os detentores da lgica do tempo linear e suas indstrias do bom gosto; a obra, os arquivos nmades da subjetivao envolvendo professores e estudantes e a multiplicidade indeterminada dos textos possveis. E a lgica anarquivista: uma paralogia (DELEUZE, 1988) embrionria, como recriadora de destinos.

Ruas digitais e black brocs

That Day [4 de junho de 1989/Praa da Paz Celestial Pequim]was a diseasepassed down from the ancestors firstincestuous act through the geneslurked in the Emperors spermas destiny.Our endless history dependson the tombs of the emperors to demonstrate glory

But June Fourtha tomb without epitapha carved-into-the-nation-and-history disgraceof a tombAll roadways are blockedAll tears are under surveillanceAll fresh flowers are shadowedAll memories are purgedAll tombstones are still blankThe fears of the executionersMust be appeased through terror

Liu Xiaobo, June Fourth elegies, 2012 (poems: That Day, June Fourth, a Tomb)

Qual ou o que teria sido a falha geolgica (SANTIAGO, op. cit.) no identificada pela pesquisa esttico-poltica anterior ou contempornea aos fenmenos implicados queda do Muro de Berlim, em 1989, e ao advento da chamada nova ordem mundial? Qual teria sido o erro de leitura tanto do ps-modernismo quanto do marxismo? Por que Silviano Santiago, em final do sculo XX, e circunscrevendo uma problemtica para o novo milnio no Brasil, recorta o final dos anos setenta (SANTIAGO, op. cit.) e no o dos anos oitenta?Um ponto problemtico que tem atravessado os ltimos trinta anos, mas que aparece apenas lateralmente em nossos ensaios e erros interpretativos, talvez seja: o que levou a URSS, e sua rea de influncia, a perder a guerra fria? Se no foi a perda de credibilidade num tipo de revoluo, exportada na ponta da baioneta, e o p atrs de artistas, intelectuais e trabalhadores, quanto ao cerceamento de suas formas de expresso (isso sem falar nos crimes do regime stalinista, denunciados em 1954), teria sido, por outro lado, o investimento, por parte dos EUA, e sua rea de influncia, em alta tecnologia e como laboratrio nazifascista com capacidade para sondar documentos e planos estratgicos de naes aliadas e no aliadas, implementar guerras como se fosse em fico cientfica, alm de controlar as pessoas, em suas prprias casas, atravs da televiso, telefone, computadores, jogos eletrnicos, entre outros dispositivos?Se de um ponto vista biopoltico (AGAMBEN, 2010b), a vida poltica das pessoas h muito tempo desqualificada ou anulada tornou-se, como no fragmento do poema em epgrafe, a disease (XIAOBO, op., cit.), uma doena, passed down from the ancestors first, passada pelos primeiros ancestrais, e que seria derivada de uma relao incestuosa cujos genes estariam escondidos no esperma do imperador, como um destino, o seu antdoto, ou o combate a essa epidemia, deve ter seu ponto de partida no s a partir da implementao de outros usos desse arsenal de guerra que temos em nossas prprias casas, mas, a exemplo dos Black brocs, selecionar alguns arquivos, espalhados pelas cidades, que tanto expem os signos do fetichismo da mercadoria (MARX, 1999, 1997; LUCKCS, op. cit.; BALIBAR, 1995) quanto escondem os traos para um mapa aproximado daquela falha geolgica. Assim, o massacre dos estudantes, em junho de 1989, na Praa da Paz Celestial, em Pequim, acompanhado daquela imagem do ativista annimo que, sozinho, encarou, performaticamente, os tanques de guerra dos executores, deveria ser tomado como um lugar terico, cujo problema deveria ser: que fenmeno teria sido impedido de se transmitir do incio ao fim do processo da guerra fria e que estava aqum ou alm tanto de certo ps-modernismo quanto de certo marxismo? E os rascunhos para uma resposta possvel no poderiam deixar de elencar duas foras que foram sistematicamente anuladas tanto pela cultura de massa, a saber, as cidades subjetivas (GUATTARI, 1992) e os usos revolucionrios, possveis, de certos objetos de consumo domstico, quanto pela cultura revolucionria desenvolvida do outro lado da cortina de ferro, a saber, uma prtica poltica communard, que identificando o despotismo na forma da soberania e da lei torna o poder uma forma vazia e a experincia revolucionria como um exerccio do direito a favor da vida e do retorno do espao pblico como arena poltica. E o que aconteceria com o mundo dominado pela cultura de massas, reforado, agora, com o advento da nova ordem mundial, se as cidades subjetivas fossem repovoadas com os personagens conceituais da cultura revolucionria, reprimidas l nos pases ditos socialistas, e transmitidas no em lnguas de dominao ocidental, mas em chins, russo, snscrito ou mesmo em lnguas ocidentais de periferia, institudas, como segunda lngua, na educao fundamental e bsica? Ou ainda, o que aconteceria com o mundo dominado pelo stalinismo tardio, com o advento da nova ordem mundial, se os coletivos, reprimidos por praticarem uma poltica communard (SANTOS, 2012), tivessem suas cidades subjetivas povoadas por objetos de consumo com funo tambm revolucionria?Assim, as placas da falha geolgica tornam-se visveis e nos permitem outra leitura tanto dessa multido perdida pelas ruas digitais - sem condies razoveis para identificar e politizar suas feridas, muito menos para cartografar os dspotas na torre de comando do grande espetculo - quanto desses coletivos annimos que, munidos de mscaras negras, pedras, objetos encontrados no lixo e ao longo das manifestaes de rua, se pem a depredar os grandes arquivos luminosos do fetichismo da mercadoria e da vida humana: bancos, lojas de griffe, entre outros.A condio para uma leitura adequada da falha geolgica, e seus rebentos, seria separar as linhas gerais de um ps-modernismo que apareceu no dia seguinte nova ordem mundial, decretando o fim da histria, confundindo realidade com fico, entre outras flutuaes, daquela outra atividade epistemolgica que considerava a expresso do despejado lingustico, cultural, territorial e ontolgico, pela modernidade ocidental (em suas verses histrica, filosfica e esttica), como um lugar de pensamento e ao poltica capaz de reeducar o ocidente, bem como separar as linhas gerais de um marxismo mecanicista que parou de pesquisar (SARTRE, 2002) para vegetar com suas palavras de ordem, daquela outra atividade epistemolgica, que solidria aos despejados, no deixou perecer a pergunta marxiana, por excelncia, sobre quem produz a riqueza alm da natureza e da classe trabalhadora e, a quem, desfeito o imbrglio fetichista, tal riqueza deveria retornar na forma de uma apropriao da matria prima, das mquinas e das fbricas.Feita essa separao, marxismo contemporneo no seria confundido com stalinismo tardio, crtica cultural no seria filiada ao ps-modernismo, superestrutura no seria determinada por infraestrutura, e a legio de adolescentes, solitria em seus quartos ou aficionada por lan houses como lugares de ficcionalizao da identidade e autoexposio em redes sociais, se ainda perdida e abandonada pelas ruas digitais, no se pode negar que h nesse gesto um trabalho ou oficina de si, sem dvida mais relevante que a perda da individualidade em nome de um coletivo mecanicista.A legio de anonymous, que comea sua atividade poltica por apagar o ip de suas mquinas, para no serem identificados e criminalizados, propor e praticar formas de rackeamentos de sites e arquivos de bancos, empresas, prefeituras, museus, centros de informaes da polcia, alm de combinar, com outras colegas, sem nome nem rosto, atos pblicos de combate aos fruns econmicos mundiais, reunies de representantes dos 8 pases mais ricos, s reunies da organizao mundial do comrcio, entre outras atividades, essa legio de anonymous se assemelha legio de poetas, a comear pelas mscaras, anonimato e multiplicao dos eus, passando pela ausncia de liderana, espontaneidade dos atos polticos e pblicos, at o esvaziamento de qualquer forma e contedo vinculados ou assinados por esse ou aquele ativista. No h grupo, mas apenas uma ideia, cujo lema : ns somos anonymous; ns somos uma legions no perdoamos; ns no esquecemos. Contra as ruas, reais, bloqueadas e contra aqueles soldados do sistema que colocam sob vigilncia at mesmo as lgrimas dos manifestantes, os Black brocs orientam em seu manual de ao direta (com ou sem violncia) como se reunir num ato, como cuidar de si e do outro, quais as funes de comisses de segurana e de observadores, bem como o que deve conter na mochila para se protegerem do spray de pimenta, bombas de gs lacrimognio, entre outras violncias cometidas pela polcia. A ao direta, enfim, como uma obra de arte: expondo o poder como um espao vazio e a partir de formas indeterminadas (a depender se a polcia utiliza ces, cavalos, tanques, ou flores) como acontecimento.Os anarquivistas, nesse movimento epistemolgico, seriam os usurios de objetos de consumo com funo revolucionria (panelas em agitao de rua, livros da biblioteca pessoal em trabalhos comunitrios, computadores para o trabalho de si e forma de mobilizao annimas para atos pblicos, celulares como mdia independente), bem como, artistas, intelectuais, estudantes, trabalhadores que tiveram suas vidas ceifadas pelos regimes de exceo; os arcontes, empresrios, banqueiros, comerciantes, intelectuais ps-modernos e marxistas como funcionrios de aparelhos e sistemas; e a obra, a ser anarquivada: os sons e ruidos de objetos de consumo, deslocados de sua funo naturalizada, bem como uma nova rede de conceitos, como uma cano para a vida de ativistas sociais e culturais.

Z ningum como performer

Em A democratizao no Brasil (1978 1981): cultura versus arte, publicado em final do sculo XX, e dedicado a uma problematizao da virada cultural da arte, entre ns, Silviano Santiago, no barco de Helosa Buarque de Holanda, elege, como valor e paradigma, um procedimento metodolgico colquios e entrevistas com poetas e artistas marginais, feitas por um vis antropolgico com fora tanto para desbancar o poema e sua tradio interpretativa, fundada na literariedade, quanto para eleger a cultura como modo de vida, e no mais como superestrutura, determinada economicamente conforme a sociologia clssica e marxista.Os anarquivistas, ento, e da perspectiva deste tpico de trabalho, seriam os jovens antroplogos e pesquisadores de novos programas de Ps-Graduao na rea de Letras que, alm de transformarem em arcontes os tericos, crticos e historiadores de literatura, em sua verso belles lettres ou produto do alto modernismo exaurido, selecionariam ainda, como obra, a vida dos artistas, poetas e pessoas de comunidades populares. Assim, e em tempo de emergncia do Partido dos Trabalhadores, com sua atuao, alm de sindical, em bairros, favelas, reas rurais, a arte abandonava o palco privilegiado do livro para se dar no cotidiano da Vida (p. 137).Trinta anos depois e avaliando o valor posto em movimento por Silviano Santiago e Helosa Buarque, refazemos a pergunta: o texto da entrevista a qualquer pessoa da comunidade popular, atualmente e do ponto de vista do sistema cientfico brasileiro, tem o mesmo valor epistemolgico que um texto ou entrevista feita a quaisquer daqueles arcontes (tericos, crticos, historiadores de arte e/ou de qualquer domnio das cincias humanas) ou aquela entrevista, bem como a pessoa da comunidade popular entrevistada, s interessa como objeto de pesquisa?Mesmo reconhecendo os avanos da cidadania cultural, com a poltica cultural do Partido dos Trabalhadores, no poder h mais de dez anos, voltada para a institucionalizao da malha cultural no Brasil, que tem como foco a cultura como um bem simblico, uma forma de acesso no apenas a obras universais, mas tambm aos modos de produo alternativos, e perspectiva de gerao de renda e implantao de outro mercado para as trocas simblicas, as pessoas pobres e das comunidades populares espalhadas por esse Brasil, no s continuam sendo objeto de programas de assistncia e distribuio de migalhas, mas carecendo de outros mediadores, oriundos do sistema cientfico brasileiro, que recoloquem o problema no em termos multiculturais, mas em termos polticos. Assim, como facultar s diversas instituies populares o acesso a leis, resolues, portarias, decretos, produzidos em instncias locais, estaduais e federais, no apenas para tom-los como prescries da ordem estatal, mas para se apoderarem da vida poltica e do espao pblico? Sem essa reativao do espao pblico como espcie de atividade comunal, as comunidades pobres e subalternas no s continuaro despejadas de sua lngua (de expresso poltica), de sua cultura (de participao e inveno de sociabilidades), de seu territrio (sua casa e o direito de ir vir como cidado do mundo) e de seu ser (acesso forma de representar o sentido de sua vida, bem como do artesanato de si), mas continuaro a serem matadas (simblicas e fisicamente) sem que ningum seja punido por isso (AGAMBEN, ...).A mediao cientfica e cultural, portanto, no seria falar pelo pobre, dar-lhe conscincia. Foucault j demonstrou que as pessoas e comunidades confinadas conhecem mais a sua realidade do que qualquer intelectual com sua objetividade cientfica; Spivak j demonstrou que o subalterno no fala se a perspectiva da ao discursiva pressupor uma cultura internacional do trabalho e a politizao de espaos e instncias de deciso; Carolina de Jesus j demonstrou que possvel catar lixo na rua, como forma de sobrevivncia, e paralelamente, escrever dirios e livros, invertendo e multiplicando a performance do pobre: de objeto de pesquisa para intelectuais, ser tambm arconte, em diferena (por que proprietria de um arquivo de si e das marcas e traos de todos os despejados), bem como ser uma anarquivista, quando bota fogo no grande livro do ocidente. Com um programa de disciplina no curso de Letras com Habilitao em Lngua Portuguesa e Literaturas, do Campus II da UNEB, em Alagoinhas, intitulado Literatura para analfabetos, em 2005.1, 30 estudantes, distribudos