arqueologia fenomenolÓgica das culturas

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1 ARQUEOLOGIA FENOMENOLÓGICA DAS CULTURAS Cristiano Roque Antunes Barreira * Marina Massimi ** A aplicação da fenomenologia como método de análise e estudo das culturas força à via regressiva que conforma uma arqueologia. A proposição de realizar uma busca das origens (arche) das manifestações culturais emprega os fundamentos fenomenológicos primeiramente elaborados por Edmund Husserl e posteriormente revisitados por Angela Ales Bello. A exemplo do método regres- sivo e subtrativo da descrição das essências, o artigo contextualiza a proposta da arqueologia fenomenológica das culturas, aponta as principais tendências que influenciaram as definições da fenomenologia, a concepção de consciência em sua dimensão noética e a importância do retorno à materialidade na análise da constituição do mundo da vida, ou seja, sua dimensão hilética. Para compreensão das culturas outras é preciso, como constata Ales Bello, haver subtração da concep- ção egocentrada de consciência que tende a visualizá-la sempre por uma perspectiva intelectual. Chega-se, então, ao primado da corporeidade para a realização de uma subjetividade que só a partir deste estrato sensório-perceptivo inicial pode se formar e se exercer. Palavras-chave: Palavras-chave: Palavras-chave: Palavras-chave: Palavras-chave: psicologia, fenomenologia, corporeidade, noética, hilética, cultura. A Arqueologia Fenomenológica das Culturas é um ramo da fenomenologia que deriva de pro- jeto de Edmund Husserl (1859-1938). Husserl previu a comparação cultural como campo de investigação que – embora não fosse objeto de seus trabalhos por não corresponder aos inte- resses mais urgentes 1 do filósofo –, sob sua inspiração, tem sido desenvolvido por Ales Bello (1998). Temas fundamentais da fenomenologia são levados em consideração para se realizar uma análise das culturas e das religiões, através de experiências vivenciais que as constituem. A análise das essências volta seu foco às vivên- cias e às suas dosagens nas ações intencio- nais, materialmente instaladas nos objetos cul- turais. Toda expressão espiritual conhecida – sendo o espiritual compreendido amplamente como aquelas ações volitivas da consciência – tem um correlato material mais ou menos efê- mero, mais ou menos resistente ao tempo. Assim, se a fala e a cultura oral penam para resistir ao tempo, a escrita e a cultura escrita deixam registros mais permanentes. No entan- to, não é apenas o sentido explicitado como linguagem verbal que interessa às investigações da arqueologia fenomenológica, mas o sentido intencional, registrado nos mais diversos pro- dutos que refletem ou invocam uma intenção humana, que a atitude fenomenológica procu- rará apreender em sua essência. O contato com um instrumento qualquer, um tambor ou um ícone, por exemplo, invoca a intenção original de seu criador, produzir sons ou representar (re- * Doutor em Psicologia, realizou entre 2003 e 2004 estágio de intercâmbio junto a Seção de Ciências Religiosas da Université de la Sorbonne (França) e junto a Faculdade de Filosofia da Università Lateranense (Itália). O presente artigo é derivado de parte constitutiva de sua tese Arqueologia da Intenção do Caminho do Karate: análise psicológica e fenomenológica, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP- USP, sob orientação de Dra. Marina Massimi, com o apoio CAPES. ** Marina Massimi é Livre Docente e trabalha junto ao Departamento de Psicologia e Educação na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Campus de Ribeirão Preto, Brasil. Especialista na área de História das Idéias Psicológicas na Cultura Luso-Brasileira. Contato: Avenida Bandeirantes, 3900 - 14040-901 - Ribeirão Preto (SP) / Brasil. E-mail: [email protected]. 1 Conforme Ales Bello, A. (1998). Culturas e religiões: uma leitura fenomenológica. (A. Angonese, Trad.). Bauru: Edusc. (Original publicado em 1997).

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ARQUEOLOGIA FENOMENOLÓGICA DAS CULTURAS

Cristiano Roque Antunes Barreira*

Marina Massimi**

A aplicação da fenomenologia como método de análise e estudo das culturas força à via regressivaque conforma uma arqueologia. A proposição de realizar uma busca das origens (arche) dasmanifestações culturais emprega os fundamentos fenomenológicos primeiramente elaborados porEdmund Husserl e posteriormente revisitados por Angela Ales Bello. A exemplo do método regres-sivo e subtrativo da descrição das essências, o artigo contextualiza a proposta da arqueologiafenomenológica das culturas, aponta as principais tendências que influenciaram as definições dafenomenologia, a concepção de consciência em sua dimensão noética e a importância do retornoà materialidade na análise da constituição do mundo da vida, ou seja, sua dimensão hilética. Paracompreensão das culturas outras é preciso, como constata Ales Bello, haver subtração da concep-ção egocentrada de consciência que tende a visualizá-la sempre por uma perspectiva intelectual.Chega-se, então, ao primado da corporeidade para a realização de uma subjetividade que só apartir deste estrato sensório-perceptivo inicial pode se formar e se exercer.

Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave: psicologia, fenomenologia, corporeidade, noética, hilética, cultura.

A Arqueologia Fenomenológica das Culturasé um ramo da fenomenologia que deriva de pro-jeto de Edmund Husserl (1859-1938). Husserlpreviu a comparação cultural como campo deinvestigação que – embora não fosse objeto deseus trabalhos por não corresponder aos inte-resses mais urgentes1 do filósofo –, sob suainspiração, tem sido desenvolvido por Ales Bello(1998).

Temas fundamentais da fenomenologia sãolevados em consideração para se realizar umaanálise das culturas e das religiões, através deexperiências vivenciais que as constituem. Aanálise das essências volta seu foco às vivên-cias e às suas dosagens nas ações intencio-nais, materialmente instaladas nos objetos cul-turais. Toda expressão espiritual conhecida –

sendo o espiritual compreendido amplamentecomo aquelas ações volitivas da consciência –tem um correlato material mais ou menos efê-mero, mais ou menos resistente ao tempo.

Assim, se a fala e a cultura oral penam pararesistir ao tempo, a escrita e a cultura escritadeixam registros mais permanentes. No entan-to, não é apenas o sentido explicitado comolinguagem verbal que interessa às investigaçõesda arqueologia fenomenológica, mas o sentidointencional, registrado nos mais diversos pro-dutos que refletem ou invocam uma intençãohumana, que a atitude fenomenológica procu-rará apreender em sua essência. O contato comum instrumento qualquer, um tambor ou umícone, por exemplo, invoca a intenção originalde seu criador, produzir sons ou representar (re-

* Doutor em Psicologia, realizou entre 2003 e 2004 estágio de intercâmbio junto a Seção de Ciências Religiosasda Université de la Sorbonne (França) e junto a Faculdade de Filosofia da Università Lateranense (Itália). Opresente artigo é derivado de parte constitutiva de sua tese Arqueologia da Intenção do Caminho do Karate:análise psicológica e fenomenológica, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP, sob orientação de Dra. Marina Massimi, com o apoio CAPES.** Marina Massimi é Livre Docente e trabalha junto ao Departamento de Psicologia e Educação na Faculdade deFilosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Campus de Ribeirão Preto, Brasil. Especialista na áreade História das Idéias Psicológicas na Cultura Luso-Brasileira. Contato: Avenida Bandeirantes, 3900 - 14040-901- Ribeirão Preto (SP) / Brasil. E-mail: [email protected] Conforme Ales Bello, A. (1998). Culturas e religiões: uma leitura fenomenológica. (A. Angonese, Trad.). Bauru:Edusc. (Original publicado em 1997).

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presentificar) uma entidade ou um símbolo (esteúltimo no caso de culturas com um certo graude complexidade). O alcance da essência deum determinado objeto ou instrumento depen-derá da consideração das circunstâncias e in-fluências presentes em sua tessitura, das pre-senças ou das vivências atuantes e intermedian-tes em sua ação criadora. Assim, o som do tam-bor será situado em sua motivação de ser, mo-tivação de contatar o sagrado ou motivaçãoestritamente artística, por exemplo.

O interesse pela religião decorre do fato deque este é um fenômeno constante, em toda equalquer cultura e civilização (Van der Leeuw,1992). As religiões refletem aquela intenção deentrar em contato – venerando totens, partici-pando de ritos, reproduzindo símbolos, erguen-do templos, contando mitos – com um sentidoúltimo que pode, ou não, revelar uma potênciaintencional maior. Para Van der Leeuw, propos-tas civilizatórias atéias também refletem umaposição religiosa, uma vez que, na negação deDeus, atribuem um sentido último à realidade.

A meta da arqueologia fenomenológica dasculturas é investigá-las escavando os momen-tos constitutivos das expressões culturais, a fimde se aproximar o máximo possível de suasgêneses e revelar seus sentidos profundos. Aolongo da operação de descida pelos sedimen-tos que as constituem, busca-se considerarsuas singularidades, bem como seus traços deuniversalidade. Tal gênero de investigação pos-sibilita a comparação entre culturas tão diver-sas como são aquelas ocidentais, africanas,ameríndias ou orientais. Torna plausível o diálo-go e a avaliação interculturais, temas intensa-

mente desacreditados, sobretudo a partir davoga de leituras que afirmam a inconciliável re-latividade das diferenças, desconsiderando ofato simples de que a diferença só pode serassim qualificada quando objeto de uma com-paração que, necessariamente, referencia-senum princípio de similaridade.

Este projeto de investigação tem seu méto-do fundado na redução fenomenológica oueidética, que consiste na localização da essên-cia do fenômeno estudado. A exigência paratanto, no caso das culturas, é uma investiga-ção daquilo que é subjacente ao objeto cultu-ral. A redução da experiência cultural vale-se doauxílio daquela redução chamada transcenden-tal – isto é, da identificação daquilo que consti-tui universalmente o ser humano e que é o pon-to de partida para viver as experiências, na va-riedade em que as vive. Localizando o que é pró-prio do ser humano (mesmo que nem tudo sejaexclusivo do humano) – o seu corpo, a sua cons-ciência e os seus atos (recordação, imagina-ção, etc.) – pode-se compreender como omesmo atua, ou melhor, vivencia as especifici-dades das experiências expressas em sua pro-dução cultural. Toma-se, portanto, o fenômenocultural como objeto passível de evidenciaçãodas qualidades das experiências que lhe são nãoapenas subjacentes mas também constitutivas.Além da antropologia fenomenológica, uma ar-queologia das culturas contará com o auxílio deoutra disciplina, a fenomenologia da religião,dada a importância originária que essa dimen-são da expressão humana desempenha em to-das as civilizações.

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Fenomenologia: origens e contrastes

científicos, estruturando uma ciência rigorosae uma teoria do conhecimento (gnosiologia) aserviço desta ciência. Não é a substituição dasabordagens quantitativas pelas abordagensqualitativas que seu pensamento defende, masa atribuição do devido papel a cada qual, evi-tando que um objeto de natureza essencialmen-te qualitativa seja irrefletidamente interpretadopor via quantitativa. Portanto, é na reflexão so-bre os objetos, ou as coisas mesmas, que sebaseia o método que viria a ser chamado demétodo fenomenológico. O interesse deHusserl é acerca dos caminhos através dosquais se chega aos objetos questionados pelaciência. Antes da objetividade, Husserl consi-dera que o sujeito da atuação científica vale-sede sua subjetividade3.

Por intermédio da perspectiva de Husserl,não exclusiva de seu contexto, contudo, pelainfluência que teve, certamente determinante,acusa-se a falácia do empréstimo de métodosprovindos da física para atribuir às ciências hu-manas, como a Psicologia, um estatuto científi-co. Tais aplicações têm como conseqüência adistorção do objeto, uma vez que não se lidacom a psique, mas sim com uma parcela redu-zida e, comumente, pouco delimitada da psi-que. Em suma, o que determina a ciência não éo método (abordagem físico-matemática), maso rigor racional, ou seja a busca da verdade re-lacionada ao objeto em questão. Dá-se a relati-vidade do método, pois é o objeto que deman-dará, pela sua natureza, o método que lhe édevido. Mediando o objeto e o método, estásempre o sujeito atuante; atuante inclusive naconfiguração do objeto. Há um contraposicio-namento quanto à interpretação de que o senti-do do objeto possa ser independente do sujei-to: o objeto está em relação com o sujeito e sónesta relação é que ele pode se constituir emsentido, bem como sua demanda metodológi-ca. Tal reflexão exige a assunção do sujeito cog-

Um método fiel ao objeto: contra opositivismo

No contexto de origem da fenomenologiadesenvolvida por Edmund Husserl (1859-1938),a concepção hegemônica de ciência era aquelaproveniente da filosofia positivista de AugusteComte (1798-1857). De fato, o positivismo nor-teou hegemonicamente a ciência desde o sé-culo XIX e ainda hoje a influencia, mesmo quenão mais de forma onipresente. Comte propõeuma ciência da sociedade que dissesse respei-to às leis do funcionamento social, isto é, umaciência que correspondesse a uma Física Social.No que diz respeito ao indivíduo, a possibilida-de de investigá-lo psicologicamente foi levanta-da, constituindo o que seria a Física Mental. Umtrabalho de investigação psicológica foi inicia-do pelos positivistas, os quais procuravam es-tabelecer fórmulas matemáticas para relaçõescausais de estímulo e efeito sensorial2. Comoindica a própria nomenclatura dada a tais ciên-cias, Física Social e Física Mental, desloca-seum modelo investigativo derivado da física (es-pecificamente da física newtoniana) para inves-tigar aquelas que seriam ciências humanas.

Para Franz Brentano (1838-1917), uma abor-dagem quantitativa das reações humanas erareducionista e, assim sendo, não verdadeira-mente psicológica, mas meramente psicofísica.Brentano afirmava a necessidade de uma Psi-cologia que dissesse respeito à psique propri-amente dita, isto é, ao estudo qualitativo dosatos psíquicos. Defrontada com uma concep-ção rígida de ciência, estabelecedora de rela-ções físico-matemáticas, uma abordagem cien-tífica qualitativa não era apenas inovadora, masnecessitava de bases sólidas sobre as quaisse desenvolver. No trabalho desenvolvido aolongo de sua vida, Edmund Husserl, um dosdiscípulos de Brentano – bem como o foiSigmund Freud (1856-1939) – procurou estabe-lecer uma propedêutica a todos os domínios

2 De fato o nascimento da Psicologia experimental é datado em 1879 com a inauguração do primeiro laboratóriode Psicologia fundado pelo alemão Wilhelm Wundt (1832-1920).3 Algumas reflexões a esse respeito serão estendidas logo abaixo em A subjetividade como itinerário da objeti-vidade: por uma origem do fato.

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noscitivo também como objeto de análise, daía característica gnosiológica da fenomenologia.

O idealismo e o realismo

Interessavam a Husserl duas maneiras fun-damentais de compreender a relação sujeito-objeto. Afirmando o primado do objeto em re-lação ao sujeito, perspectiva realista, entende-se que é da realidade do objeto que o conheci-mento parte. Já os idealistas afirmam o prima-do do sujeito e, no limite, chegam a entender omundo como uma representação mental em queos corpos têm apenas uma existência ideal,negando sua existência real. No interior dessasduas amplas perspectivas, há uma vasta miríadede variações. Para os presentes propósitos nãointeressa aqui o aprofundamento de cada umadas perspectivas, mas apenas indicar o contras-te geral entre ambas e destacar a solução origi-nal de Husserl para a polêmica que acabou in-fluenciando toda a filosofia e as ciências huma-nas do século XX. Cite-se, de passagem, queanteriormente Immanuel Kant (1724-1804) pro-curou resolver o dilema, refutando cada uma dasperspectivas. Husserl, entretanto, considera queKant chega a um resultado que é idealista emúltima análise4.

O pensamento de René Descartes (1596-1650) dá origem ao racionalismo. Matemático,Descartes criticou a geometria euclidiana5, quese valia do uso de figuras e de representaçõesimaginadas de figuras. Em uma geometria car-tesiana, a imagem forma-se posteriormente àteorização matemática, isto é, têm-se coorde-nadas numéricas, por exemplo, que permitemque se delineie a imagem. Na super enfatiza-ção da teorização, critica-se a imaginação. Os

alvos dos ataques cartesianos não se limitam àimaginação, mas estendem-se à experiênciasensorial, que não é considerada confiável.

Os empiristas ingleses, por outro lado, têma sensação justamente como o ponto de apoiopara a certeza do conhecimento, evidência pelaqual se apreende a verdade. David Hume (1711-1776) chegará a afirmar que o homem é um fei-xe de sensações. Para os empiristas, a razão,além de não ser uma substância, é secundáriaà sensação.

Na impossibilidade de confiar na imaginação,bem como na sensação, Descartes lança a dú-vida sobre a realidade de todas as coisas, in-clusive sobre si próprio, para constatar que,mesmo que duvide de tudo, ainda lhe resta umacoisa indubitável: a possibilidade de duvidar. Elase identifica à possibilidade de pensar – daí ocogito ergo sum (penso, logo existo), que dávalidade ao sujeito somente enquanto sujeitopensante. Husserl retoma o cogito e o valida,assumindo-o recorrentemente como ponto departida de suas análises, que têm na consciên-cia o resíduo fenomenológico; porém, à dife-rença de Descartes, toma a consciência comopossível quando em relação com algo, isto é, aconsciência vem ao universo da mesma formaque o universo vem à consciência. A perspecti-va husserliana considera a razão e a sensaçãocomo motivos do conhecimento e empenha-secontra as propostas teoréticas, ou racionalistas,de leitura da realidade.

A subjetividade como itinerário daobjetividade: por uma origem do fato.

Um dos primeiros a utilizar a expressão fe-nomenologia depois – retomada e transforma-

4 Curiosamente os principais críticos de Husserl também o acusarão de idealismo. Contudo, tal diagnóstico deseu pensamento não só não é unânime como, na contramão da tendência hegemônica, tem sido refutado porestudos que levantam a obra de Husserl, material de arquivo não publicado do filósofo e, principalmente,debates travados na revista de filosofia da qual era o editor, para reconhecer que o idealismo não procede comoposição definitiva do autor. Veja-se Ales Bello (2003).5 Proveniente do pensamento de Euclides (330-227a.C.), matemático grego, a geometria euclidiana formulaconceitos principais, como ponto, linha e plano, além de fundamentos para a geometria, orientando critérios deonde todas as conseqüências podem ser deduzidas; são os chamados postulados. Sua geometria é um avançosobre aquela primeira teorização de Pitágoras sobre a aplicação prática da geometria egípcia, que tinha neces-sidade de fazer medidas da terra (significado original de geometria) sempre que houvesse a cheia do rio Nilo.Conforme Ales Bello, A. (2004). Fenomenologia e Ciências Humanas. Bauru: Edusc.

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da por Husserl – foi Friedrich Hegel (1770-1831),que tomava aquilo que se caracteriza por sub-jetivo como aparente ou ilusório6. Esse gênerode mentalidade está presente também na filo-sofia positivista, que considerava dignos de in-teresse apenas aqueles dados que fossemúteis, concretos, experimentais, factuais. Osinteresses das ciências positivistas eram, por-tanto, os fatos objetivos.

Husserl não nega os fatos e seu valor, fatossão existentes e concretos, porém considera-os, e à sua presumida objetividade, como nãosendo dados apriorísticos – presenças de ob-jetos definidos independentemente do homem(perspectiva realista) ou presenças mentais àsquais os objetos se acordam (perspectiva idea-lista). Considera que os fatos são constituídosno exercício consciente de objetivação, que pas-sa necessariamente pela subjetividade. Um fatoé um construto da abstração, construto esseque se dá como atuação do conhecimento. Aexistência factual tem, portanto, seu sentido. Umfato científico se dá a partir de um conhecimen-to, isto é, precisa do sujeito atuante que o des-creva e investigue fazendo uso de seus instru-mentos de consciência. No entanto, se o fatoparte do conhecimento, e se é considerada apossibilidade de um dado conhecimento partirde premissas duvidosas, constata-se a neces-sidade de que o conhecimento seja investiga-

do em si, passo a passo. Como há uma enor-midade de conhecimentos e valores que par-tem de abstrações, de especulações muitasvezes a alturas inalcançáveis, tendo, porém,inferências na atuação científica, pode-se fazerimportante uso do interesse do projeto feno-menológico de Husserl em voltar às coisasmesmas para que o conhecimento se assentesobre bases sólidas. Com isso, não será a exis-tência dos fatos o interesse de Husserl, masas essências.

O interesse do sujeito atuante por determi-nado objeto, a escolha de certa orientação àinvestigação, entre tantos outros fatores, pas-sam necessariamente por atuações subjetivasvárias, dentre as quais o desejo e os valores,sejam lá que desejo e que valores forem. Porisso, pode-se depreender que a neutralidadecientífica é certamente intenção oculta ou alie-nada, caso se insista em afirmá-la amplamenteneutra7 e caso se negue a atentar aos passossubjetivos que a levaram à objetividade. Daí,sobretudo na atualidade, dados os enormesprogressos técnicos da ciência, ser importanteir a fundo nos valores que movem o avanço e aaplicação científica, evitando perigos concretosà humanidade como o foi, na primeira metadedo século XX, o perigo eugênico, impulsionadopelas premissas do fato e da utilidade da ciên-cia positivista. Utilidade para quê? Fato, qual?8

6 Abbagnano, N. (1998). Verbete Soggettività. Dizionario di Filosofia. Torino: Ed. UTET, p.1017.7 A neutralidade científica, se é que se deva continuar usando esse termo, limita-se a cuidados técnicos de nãointerferência do investigador nos resultados obtidos através de passos metódicos adequadamente descritos. Demaneira alguma, no entanto, pode pretender incidir nos objetivos e premissas que levam à pesquisa, jamaisneutros, mas com objetividade constituída via subjetividade.8 A superioridade racial era dada como um fato, mas as premissas que levam a essa conclusão só podem tervalor ideológico. A esse respeito recomenda-se Masiero, A. e Massimi, M. (2004). Eugenia e Psicologia Racialno Brasil 1869-1940. Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Dep. De Psicologia eeducação da FFCLRP, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP. Tese que versa a respeito da relação entrepsicologia e eugenia no Brasil no período que vai do final do séc. XIX a meados do séc. XX.

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Arqueologia das culturas

O universo na consciência: a inten-cionalidade como ponto de partida

O universo vem à consciência da mesma for-ma que a consciência vem ao universo, isto é,simultaneamente. A consciência é sempre cons-ciência de alguma coisa – e não importa a quecoisa a consciência se dirija, esta coisa sempreé própria do universo e só se manifesta a umaconsciência. É nessa relação, definidora da cons-ciência, que o pensamento de Husserl identifi-ca a via de acesso, ou melhor, a via constitutivada realidade. A ela, Husserl nomeia intenciona-lidade, não à toa, mas porque a consciência,sendo consciência de, trava sempre uma rela-ção de intenção a9.

Antes de um aprofundamento da questão daconsciência, que abre imediatamente questõescomo a da corporeidade e do mundo circun-dante, convém citar aquilo que não é a cons-ciência, ou aquelas teses a respeito da cons-ciência que precisam ser abandonadas a fim deque se revele a sua essência. A consciência nãoé substância pensante (res cogitans) separadada matéria (res extensa) e não corresponde, comoquerem as teses naturalistas, à interioridade poroposição à exterioridade. Ao invés de tomar pordada a validade dessas posições, que se sejamais elementar, evitando que projeções de or-dem teorética (leia-se especulativa) impeçam aconstatação do imediato da consciência.

No exame da realidade, esquivar-se de pro-jeções coladas às coisas, projeções que podemser de ordens várias, como sociais, lógicas epsicológicas, por exemplo, serve para que sefaça o necessário retorno às coisas mesmas –lema da fenomenologia. Para o exame da coisa

mesma, procura-se tomar a atitude natural esepará-la da coisa, isto é, separar tudo aquiloque “contamina” a relação entre consciência ecoisa investigada; tirar de cena juízos, pressu-postos, preconceitos, crenças e teorias, porexemplo. Tal separação visa frisar, idealmente,a coisa mesma, ou melhor, a intencionalidadeinvariável da consciência a respeito da coisa emseu aspecto universal. O aspecto universal é suaessência que emerge com a subtração dos pre-dicativos em torno da coisa, dispensáveis parasua definição. Chega-se a um momento de cons-ciência da coisa purificada, consciência livre detodos aqueles fatores que a fazem não só cons-ciência da coisa, mas consciência da coisa in-vadida por pré-concepções, ou por pré-inten-cionalidades. Portanto, na epoché10 – que é aoperação que descrevemos neste parágrafo –busca-se a intencionalidade da coisa11, intencio-nalidade esta que só pode se dar na relaçãocoisa/consciência e que, em última instância,não distingue a consciência da própria coisa.

A consciência é sempre consciência de al-guma coisa, ou seja, ela não existe, ela não énada fora dessa relação com uma coisa, sejauma coisa concreta ou abstrata. Na intenciona-lidade – e daí a necessidade de purificá-la parase chegar às coisas mesmas – está a formacomo as coisas são visadas pela consciência.A forma de visar caracteriza a consciência. Caso,por exemplo, se procure saber qual consciên-cia determinada pessoa tem sobre certo tema,se está procurando saber como essa pessoavê esse tema, como ela se posiciona em rela-ção ou na relação com esse tema. Além daconstatação de que a consciência é exatamen-

9 A consciência está sempre numa relação intencional, não no sentido de ter um projeto de intencionalidade,mas no sentido de dirigir-se ao que visa e, mesmo que na mais desinteressada das percepções, tem essedirecionamento como intencionalidade. Por intencionalidade deve-se entender, assim, desde a ação elementarde direcionamento da consciência ao objeto, ação prévia àquela intenção moral que, por sua vez, na terminolo-gia de Husserl, será melhor designada por motivação, até a própria intencionalidade de tipo motivacional.10 De origem grega, epoché é o nome que Husserl deu à sua redução fenomenológica. Resumidamente, consis-te na suspensão do juízo.11 A intencionalidade da coisa é o modo típico como a coisa se apresenta à consciência e que pode ser explica-do através da comparação da coisa visada sob variações diversas: aquele aspecto que não varia, aquele modotípico da coisa é a sua essência.

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te o modo de visar, modo este que precisa deum objeto visado, deve-se esclarecer que, mes-mo que a consciência não aja por si mesmaseparadamente das coisas e dos objetos, suaessência não é idêntica a tais objetos, mas cons-titui a si e às suas qualidades nessa relação. Essarelação é também constitutiva do mundo e é cha-mada de resíduo fenomenológico, por ser aqui-lo que, segundo Husserl, não pode ser suspenso,não pode ser posto entre parênteses, permane-cendo como o resíduo daquela subtração que éa epoché: a consciência, ou subjetividade.

A noética e a hilética: traços geraisde um método de comparaçãocultural

A corrente das experiências vivenciais é tidacomo a unidade da consciência e sua análisepermite a distinção entre duas dimensões deexperiências: como conteúdo primário e comoconteúdo intencional. Chama-se a primeira hilé-tica, referência ampla às sensações, impres-sões sensoriais e impulsos. A segunda, noéti-ca12, referência aos “atos de compreensão daconsciência que visam apreender o objeto,como o perceber, o recordar, o imaginar, etc.”13.A distinção entre essas duas dimensões é im-portante para o trabalho de comparação cultu-ral fenomenologicamente comprometido coma busca do sentido originário dos produtos cul-turais investigados, evitando-se interpretá-loscom um sentido externo que verse a partir deuma perspectiva auto-centrada, dita tambémetnocêntrica e, mais delimitadamente, eurocên-trica. Isso não significa que haja o abandonoda perspectiva cultural de onde se parte, ape-nas a sua suspensão momentânea14, a fim de

apreender as experiências vivenciais de umacultura outra.

O conteúdo primário, ou dados hiléticos,corresponde à matéria prima para a formaçãodo conteúdo intencional. O conteúdo intencio-nal se caracteriza por dar sentido, também en-tendido como forma (no grego morphè), exata-mente como aqueles atos que dão forma àmaterialidade e são estudados por uma morfo-logia. No entanto, o significado de forma tam-bém deve ser entendido como o próprio senti-do, ou a própria intencionalidade (a intencionali-dade tem sentido em si); Husserl escolheu otermo grego noese, com essas denotações,para tratar dessa categoria15. A noética diz res-peito, portanto, aos atos como recordação,imaginação e outros, à ação intelectiva entendi-da de forma ampla16. Para Husserl, o aspectosignificativo, isto é, o aspecto que dá sentidoapreendendo a realidade com uma forma, apre-endendo-a compreensivamente, é o mais ricoentre as duas dimensões e a tal aspecto se di-rigem suas análises17.

O trabalho de Angela Ales Bello, todavia, vemequalizando a valorização das duas dimensões,em análises de cunho antropológico, e trans-formando a tendência de reduzir o enfoque daanálise à noética e de preterir a dimensão hiléti-ca. Tal equalização visa aprimorar a instrumen-tação conceitual da análise fenomenológica dasculturas. Como já ressaltado18, no limite dasreduções fenomenológicas, isto é, naquilo queresta depois que a existência de todas as coi-sas é colocada entre parênteses, para seremtratadas depois, o resíduo final é a subjetivida-de, a consciência. Ales Bello, entretanto, pro-

12 Cf. Ales Bello, A. (1998), op. cit. Ver p. 86.13 Abbagnano, N. ( ( ( ( (1998). Verbete Noetica . Dizionario di Filosofia. Torino: Ed. UTET, p.760.14 A époche, ação de colocar entre parênteses.15 Conforme Ales Bello, A. 2004, op. cit.16 O objeto formado pela dimensão noética é chamado noema, termo que se refere à apreensão de um objeto,isto é, não é uma referência ao objeto em si, um som, por exemplo, mas à forma com que ele é apreendido ea todas as características dessa apreensão específica. O noema é o objeto como compreendido pela consciên-cia, sendo assim, é o aspecto objetivo da experiência vivencial, o objeto mentalmente representado, portanto, oproduto da noética (ação intelectiva ampla).17 Ales Bello, A. (1998), op. cit.. Referido a argumento desenvolvido na pg. 86.18 Ver O universo na consciência: a intencionalidade como ponto de partida.

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põe uma radicalização da perspectiva fenome-nológica, que submeta à crítica inclusive o pólosubjetivo, ou seja, o resíduo final da reduçãofenomenológica19. Esse momento revelará oimpacto determinante da esfera hilética, nãoapenas para a análise intercultural, mas também,e sobretudo, já que justifica seu impacto para aanálise cultural, na constituição do mundo davida ou, mais precisamente, na constituiçãoestrutural do homem e de seu mundo.

Se o impacto hilético não fora antes seria-mente considerado como objeto significativopara a análise cultural, tal fato se dá por contade que o desenvolvimento abundante das for-mações significadoras complexas da culturaocidental (doutrinas, teorias, filosofias) faz comque o contato com a realidade esteja quasesempre mediado intelectualmente. Do fato dese partir exatamente do interesse intelectual ede sua mediação para se indagar a esse res-peito, deriva a questão: seria possível deixar amediação intelectual? Segundo o argumento deAles Bello, não se trata de abdicar do intermé-dio intelectual, sem o qual não pode haver se-quer a categoria de análise de que ora se vale,mas de fazer uso desse intermédio com umaradicalização que permita “suspendê-lo” – o queé um exercício objetivo e progressivo realizadocoletivamente – para observar o impacto darealidade na corporeidade em um momento pré-categorial. A compreensão almejada é inquesti-onavelmente intelectual e analítica. Entretanto, setiver a pretensão de adequar o hábito intelectualde culturas outras ao tipicamente ocidental, acres-cente-se com maior clareza, se tiver a pretensãode compreender a cultura investigada unicamen-te através de sua esfera intelectual, tendo comocritério de referência a ação analítica que caracte-riza o próprio hábito mental de onde se parte, estehábito intelectual de uma cultura outra estará des-tinado a ser avaliado como sendo próprio de umafase pré-analítica. Esta será concebida como umafase intelectual menos evoluída e portadora deuma lógica inferior, uma lógica ainda não-contra-ditória, por exemplo. De modo simplificado, talfoi o enfoque da antropologia cultural sobre as

culturas e povos sintomaticamente chamadosprimitivos. Incorre-se no equívoco valorativo departir do pensamento, ao invés de partir da expe-riência de estar no mundo.

A fenomenologia husserliana desenvolve umprisma original, a partir do qual o enfoque deixade ser exclusivamente o sentido dado, paravoltar-se à própria formação constitutiva dosentido. O conceito que caracteriza este pris-ma é o de experiência vivencial. Já que a sus-pensão do juízo e o enfoque sobre as experiên-cias vivenciais modificam o olhar investigativo– a ação objetivante do intelecto com suas ca-tegorias não é mais pressuposta como o obje-to principal –, o prisma fenomenológico permi-te perguntar: entre os elementos estruturais(consciência, psique, corpo) do ser humano eseus atos (intelectivos, impulsivos, sensitivos),quais aqueles que determinam as experiênciasvivenciais e seus conseqüentes produtos cultu-rais? E como o fazem? Até agora, os estudosvêm explorando estritamente o sentido dasações e, mesmo que procurem um sentido in-terno, abordam o produto final das vivências,que é o pensamento expresso, como se ele porsi só justificasse as ações. Assim, responder-se-ia que o elemento estrutural predominante ecentral em um suposto “homem de todos ostempos” é a consciência em sua ação intelecti-va. Como se verá no parágrafo seguinte, a ex-ploração exclusiva do pensamento, a explora-ção centrada em um tipo de mundo das idéias,é a aplicação historicamente não auto-crítica,mas auto-criteriosa (enquanto se define comocritério), de uma suposta verdade caracteristi-camente ocidental. Esta, todavia, não é propri-amente uma verdade imediata, mas um fato his-toricamente constituído que por sua força eimpacto passou a ser aplicado extra-territorial-mente, isto é, a verdade racionalmente condu-zida prestou-se quase invariavelmente a pôr emdescrédito expressões que não se valessem ounão se adequassem a seus critérios. Assim, apartir daqui, em cada investigação será impres-cindível que se anote como se dão as váriasexperiências vivenciais e quais seus produtos.

19 Cf. Ales Bello, A. (1998), op. cit.. Veja-se pg. 89.

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Por via regressiva chega-se à conclusão de quenão é o pensamento que justifica a existênciadas ações, mas que são as ações que determi-nam a existência do pensamento.

A cultura ocidental é herdeira de conclusõesfilosóficas que atribuem ao pensamento o pri-mado e o mais alto valor humano. Para que nãohaja uma extensão no assunto de maneira des-propositada, pensa-se aqui em duas concep-ções axiais da filosofia nascidas no pensamen-to de Platão (428/427-347 a.C.) e de René Des-cartes. Ainda que o segundo tenha sido influen-ciado pelo primeiro, ele não foi menosdeterminante, dada a chama que co-delineouluzes e sombras da modernidade. O hiperurânioplatônico é o mundo das idéias, as formas(eidos) perfeitas almejadas pelos homens que,ao longo da vida, devem se esforçar para seafastar do mundo sensível próprio do corpo ese reaproximar daquele mundo de onde, contao mito, o homem teria um dia caído. A influên-cia platônica atinge praticamente toda a filoso-fia ocidental. É o pensamento que aproxima ohomem do hiperurânio, em prejuízo do corpopejorativamente tratado. A res cogitans (subs-tância pensante) de Descartes iria, aproximada-mente dois milênios depois de Platão, aplicardefinitivamente o valor do pensamento – paraos cartesianos, a única fonte verdadeiramenteconfiável a que o homem pode se agarrar – àciência moderna (domínio que caracteriza operíodo por seus consideráveis desenvolvimen-tos técnicos) e ao cotidiano das pessoas, ten-do-o radicalizado no formato racionalista.

O exercício husserliano de retorno às coisasmesmas ajuda, como visto, a reconsiderar, semqualquer desmerecimento, esses valores histo-ricamente herdados, trazendo à luz outras evi-dências, as evidências imediatas20. É proveito-so fazer uso das análises e descrições decunhos antropológico, psicológico, filosófico e

mesmo teológico, que digam respeito a isso21.Chega-se a essa manifestação pré-categorialque não proporá um resíduo fenomenológicopara além da consciência, mas que tirará danoética a centralidade de aparência universal-mente hegemônica, para revelar a centralidadematerial como primado da constituição da sub-jetividade. Conta-se com as investigações reali-zadas a partir de perspectivas diferentes da fe-nomenológica (a antropologia cultural, porexemplo) que trazem o mérito de exporem eta-pas importantes da comparação cultural paraque, finalmente, se avance, até a localização deum princípio comum entre os homens e suasdiferentes culturas.

Ainda que o termo hilética seja adjetivo dehyles, termo oriundo da palavra grega hyloziosti(matéria-animal-vivente), ele foi usado porHusserl com outro sentido. Por hilética, Husserlentende a ampla dimensão da sensibilidade,evitando os limites que seriam trazidos peloemprego do próprio termo sensibilidade, nor-malmente atribuído restritamente aos cinco sen-tidos – tato, olfato, visão, audição e gustação.Os dados hiléticos são ditos por Husserl da-dos materiais e se referem às sensações (cin-co sentidos), voltadas ao mundo exterior, àsimpressões sensoriais (cinestesia, cenestesia,prazer, dor, etc.), voltadas ao mundo interior(egológico), e também aos impulsos (instinto,emoções, vontade). São os materiais da corre-lação interno-externo (por exemplo, prazer as-sociado à cor branca) que servem para a for-mação de sentidos intencionais, isto é, para anoética22. Na relação interno-externo revela-sea dupla constituição do corpo, responsável pelavivência, no ato de tocar algo, de duas experi-ências contemporâneas ocorrendo: uma somá-tica (impressões sensíveis que revelam a mim aexistência de meu corpo) e outra física (perce-be-se a exterioridade física e característica – fria,

20 Por evidências imediatas entendem-se aquelas que se dão à intencionalidade sem a atuação do filtro intenci-onal que julga e avalia de acordo com os hábitos empenhados na subjetividade, ou seja, as evidências como sedão em “carne e osso”.21 Por exemplo, daquelas descrições sobre as sensações e a materialidade em ações e expressões culturaisvárias, como os ritos em sociedades arcaicas.22 Conforme Ales Bello, A. (2004), op. cit.

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quente, dura, etc. – da coisa tocada)23.

Ales Bello caracteriza a hilética como uma in-tencionalidade passiva (tensão a), isto é, ao con-trário da propriedade da intencionalidade noéti-ca, a hilética é não volitiva. Nesse sentido, a hiléti-ca atua nas culturas outras como elemento cen-tral da percepção, ou seja, prenhe de sentidosainda que não carregados intelectualmente, masplenos de afeição: atrativos ou, pelo contrário,retrativos, sobre o que se constituirão, por exem-plo, os sentidos do sagrado e do profano coleti-vamente vivenciados na dimensão noética. Já aintencionalidade da noética na cultura ocidental ésubjetivo-intencional e, centrada na subjetividade,é uma intencionalidade pessoal egocentrada.

Era como subjetividade egocentrada queHusserl definia o resíduo fenomenológico. AlesBello revê tal posição afirmando haver um as-pecto não egocentrado que registra a consci-ência. Fazendo parte da própria estrutura huma-na, é a esse aspecto que se deve dirigir a esca-vação regressiva da arqueologia das culturas,para que se apreenda com autenticidade asexperiências vivenciais de culturas outras.

A intencionalidade da hilética é de caráter sen-sual e atua como conseqüência imediata ao im-pacto do objeto, ou seja, como coordenaçãoimediata (ou ricochete) da corporeidade na re-lação entre corpo e objeto (ainda vividos comoindiferenciados). Nessa condição, a consciên-cia permanece como mera espectadora. É, por-tanto, uma intencionalidade pessoal, enquantopassa pelo corpo individual, mas eventualmen-te em culturas outras é vivenciada como expres-são coletiva, prescindindo daquele caráter po-tencialmente autoral que define a intencionali-dade da noética24.

Para finalizar, o momento hilético tomado iso-ladamente é aquele que atua a corporeidade,

estando passiva a consciência volitiva. O cor-po re-age ao mundo para o qual se direciona ese projeta. Ao fazer referência à corporeidade,ainda sem considerar a intencionalidade volitivada consciência, faz-se referência a ações pré-lógicas e pré-categoriais, a um estado originá-rio sobre o qual, sucessivamente, serão desen-volvidas as capacidades (pode-se dizer também,as técnicas) cognoscitivas da consciência. Esteestado originário, presente na hilética e acessí-vel pelo método regressivo, é de uma intencio-nalidade passiva e latente que age de acordocom as solicitações do mundo.

Husserl dava ao corpo o estatuto de pontozero de referência, o que não tem significadode ponto nulo. Pelo contrário, é sobre o zeroque tudo pode acontecer e em referência a eleo mundo consciente sempre estará. Na sua re-lação com o mundo, o corpo não se distanciadas coisas a que está exposto, mas está emunidade com elas; o corpo está nas coisas quetoca, ouve, gusta, cheira, vê. Desta primeiraexposição, que tem uma intencionalidade natu-ral, podem decorrer as posteriores formaçõesintencionais volitivas. A ação objetivante possí-vel na esfera noética é aquela que transformaráessa relação do corpo inerente ao mundo e domundo inerente ao corpo em relação cindidasujeito-objeto na qual objeto, do étimo latinoobjectus, é o que sofre “a ação de pôr adiante,interposição, obstáculo, barreira”25, ação reali-zada pela diferenciação feita pela subjetivida-de, isto é, no fundo, o que se interpõe entresujeito e objeto é a ação do primeiro, o pensa-mento. A dupla constituição do corpo encontrano sistemático desenvolvimento da ação nomundo, e de seu correlato cognitivo, as capaci-dades de ordenar, denominar, relacionar, inter-pretar o mundo num gradual afastamento doimediato corpóreo constituinte da abstração.

23 Veja-se Levine, É. e Touboul, P. (2002). L’expérience du corps propre: Husserl La doublé constitution du corpspropre (pp. 82-86). Em Levine, É. e Touboul, P. (2002). Le corps. Paris: Flammarion.24 Sobre a hilética conforme o pensamento de Ales Bello tem-se o auxílio e se recomenda o esclarecedor artigode Nicoletta Ghigi (2003) A hilética na fenomenologia: a propósito de alguns escritos de Angela Ales Bello.Memorandum, 4, 48-60. Retirado em 02/12/03, do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigo04/ghigi01.htm.25 Cf. Houaiss e Vilar (2002), op. cit., p. 2042.

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Referências Bibliográficas

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_________. Fenomenologia e Ciências Humanas. Bauru: Edusc, 2004.

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Ghigi, N., (2003). A hilética fenomenológica: a propósito de alguns escritos de Angela Ales Bello.Memorandum, 4, 48-60. Disponível em www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos4/ghigi01.htm.Acesso em 11/06/2003.

Houaiss, A.; Villar, M. de S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

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Masiero, A.; Massimi, M. Eugenia e Psicologia Racial no Brasil 1869-1940. Tese de Doutorado,Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Dep. de Psicologia e Educação da FFCLRP, Univer-sidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP (2004).