arqueologia e museologia.pdf

Upload: rosyh-aquino

Post on 09-Jan-2016

140 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • Cultura material: interfaces disciplinares daArqueologia e da Museologia

    Manuelina Maria Duarte Cndido*

    ResumoEste artigo apresenta a base conceitual da Arqueologia e da

    Museologia sobre os estudos de cultura material, mapeando assemelhanas e diferenas no tratamento que as duas disciplinas do cultura material e a historicidade desses tratamentos.

    Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave: Arqueologia; Museologia; cultura material

  • Cadernos do CEOM - Ano 18, n. 21 - Museus: pesquisa, acervo, comunicao

    76

    Writing the past is not an innocent and disinterestedreading of autonomous past produced as image. Writingthe past is drawing it into the present, re-inscribing itinto the face of the present.1

    (Tilley in Hodder, 1989, p.193)

    Este artigo traz uma parte das discusses inseridas nadissertao de mestrado intitulada Arqueologia Musealizada:patrimnio cultural e preservao em Fernando de Noronha,defendida no Programa de Ps-Graduao em Arqueologia daUniversidade de So Paulo, em agosto de 2004.

    Devido formao tambm em Museologia da autora, foiinevitvel que a reflexo ganhasse os contornos de uma busca pelasinterseces entre as duas reas. Esse foi o tema de um dos captulos,que enfocou a cultura material como sendo um forte denominadorcomum, embora no o nico.

    A Arqueologia, disciplina que se caracteriza como um projetode cincia da cultura material (Funari, 1998) tem parceiros entre asreas do conhecimento que surgiram com a necessidade decompreenso do universo material que circunda o homem e quefloresceram a partir do estabelecimento de processos de coleta eclassificao de vestgios ou espcimes, como a Antropologia, aGeologia, a Zoologia, a Botnica, a Etnologia. Tais disciplinasvincularam seu desenvolvimento criao de instituies capazes deguardar estes acervos e de responsabilizarem-se pela manuteno desua materialidade e, mais recentemente, pela devoluo social doconhecimento por elas produzido: os museus.

    Pearce (1990, p.31) afirma que a Arqueologia , acima de tudo,uma disciplina ligada compreenso da cultura material2 em amplosentido no necessariamente ligada ao produto de escavaes , eque muito disto est preservado nas colees dos museus. Da mesmaforma, Francisco Alves, ento diretor do Museu Nacional deArqueologia e Etnologia de Portugal declarou que a reorganizaodas reservas que originou a exposio Das Origens poca Romana(1989 a 1994) tinha sido, at aquele momento, a maior escavaoarqueolgica portuguesa (ALVES, apud Raposo e Silva, 1996, p.165).

  • Cultura material: interfaces disciplinares da Arqueologia e da Museologia - Manuelina Maria Duarte Cndido

    77

    A responsabilidade sobre esta herana, redimensionada paraatender no somente a objetivos de salvaguarda mas tambm decomunicao patrimonial leia-se: democratizao deste patrimnioe do conhecimento produzido a partir dele para pblicos em geral,indo alm dos meios acadmicos, onde as reas do conhecimentocitadas costumam realizar sua divulgao cientfica apreocupao central de uma outra disciplina, a Museologia.

    Voltando nosso olhar para a musealizao da Arqueologia,colocamo-nos no cruzamento de dois campos que se caracterizampor serem eminentemente interdisciplinares: a Museologia, voltadaque para a comunicao do conhecimento produzido em outrasreas, e a Arqueologia, cada vez mais incluindo em suas discussesa necessidade de democratizao do saber que produz, porintermdio de processos diversos, que possuem, inclusive, umadenominao especfica na rea, a Arqueologia pblica3.

    Publicaes como Public Archaeology (desde 2000) e Journalof Material Culture (desde 1996) sobretudo aquela, dedicadaespecificamente ao tema tm discutido as questes sobre adivulgao do conhecimento cientfico produzido em Arqueologiae para quem este conhecimento produzido. Entretanto, parte dacomunidade acadmica envolvida com a Arqueologia ainda realizaa divulgao cientfica somente entre seus pares e esquece que seuexerccio profissional s se justifica pelo benefcio da sociedade. Emcontrapartida, essa mesma sociedade que no conhece e no valorizao patrimnio arqueolgico a no ser como curiosidade (Almeida,2002, p.10), tem ainda outros motivos para se desobrigar de suaproteo:

    Uma das possibilidades de explicao deste desrespeitopelo patrimnio pblico no Brasil pode estar na relaoda populao com o Estado. (...) esta relao de clientela,de tutela, , por conseguinte, de dependncia, deobrigao, de sujeio. (...) A questo vai mais alm, umavez que, ao burlar as regras estabelecidas pelo Estado, oindivduo demonstra sua insatisfao exercendo,mesmo que equivocadamente, uma atitude deresistncia (Almeida, 2002, p.17).

  • Cadernos do CEOM - Ano 18, n. 21 - Museus: pesquisa, acervo, comunicao

    78

    Esta preocupao tambm permeia obras comoArchaeological curatorship, de Susan Pearce, que afirma:

    Archaeological curators have a particular responsibilityhere, because an important part of our role is to act asbridge between people in general and the professionalarchaeological community. Museums, together withinterpreted open-air sites with curators are muchinvolved, are the principal means through which anexperience of the past, and, especially, of the genuineobjects made in the past, can be mediated to people.4

    (Pearce, 1990, p.01-02).

    Dessa forma, a autora coloca o que vamos chamar,genericamente, de processos de musealizao (a compreendidosmuseus em seus vrios modelos, stios a cu aberto, etc.), comopossibilidades importantes de mediao entre a pesquisaarqueolgica e o pblico.

    As discusses que se seguem procuram entrecruzar asbibliografias provenientes da Arqueologia e da Museologia que, almde serem as disciplinas formadoras do domnio da musealizao daArqueologia (nosso interesse de pesquisa) so reas que se definempela inextricabilidade das relaes com a cultura material.Consideramos possveis e imprescindveis contribuies mtuasentre as reas mencionadas, especialmente no que diz respeito sdiscusses sobre o envolvimento entre cultura material, poder eidentidades, que permeiam obras como Historical Archaeology(Funari, Jones e Hall, 1999) e igualmente as discussescontemporneas da Museologia. A interpretao e a construo dossignificados da cultura material ou do patrimnio5 como partes deum processo social de negociao e renegociao ponto comumnas reflexes de ambas as reas (Shanks e Tilley, 1987; Pearce, 1990;Funari, 2001b, 2004; Bruno, 1995; Spencer-Wood 1999; Tamanini,2000; Funari, Oliveira e Tamanini, Archaeology to the lay public inBrazil: three experiences - manuscrito indito -, entre muitos outros).

    Os estudos de cultura material tm demonstrado inquietaescada vez mais profundas quanto validade das interpretaes de

  • Cultura material: interfaces disciplinares da Arqueologia e da Museologia - Manuelina Maria Duarte Cndido

    79

    seus significados. Para Tilley (1989), uma significativa rupturaocorreu com a publicao de Symbolic and structuralarchaeology, por Hodder, em 1982, na qual foi refutada a idia deque o significado da cultura material se exaure na anlise formaldos objetos. Passou-se a aceitar o pressuposto de que sua produoenvolve aspectos subjetivos da cultura de uma sociedade, comocrenas, valores, idias e atitudes. Alm disto, a Arqueologia Ps-Processual incluiu a discusso sobre o papel ativo desta culturamaterial, vista no somente como reflexo mas como agente social.

    Segundo Bucaille e Pesez (1989: 13), a noo e noconceituao de cultura material possivelmente surgiu na segundametade do sculo XIX, quando a exigncia de objetos materiais e defatos concretos para o estabelecimento de experimentaes, provase leis, se imps ao mundo cientfico. Para os autores, publicaescomo a de Boucher de Perthes, Antiquits celtiques etantdiluviennes, de 1847, e De lhomme antdiluvien, de 1860,provocaram uma reavaliao do objeto da Arqueologia, at entocentrada na excepcionalidade esttica das civilizaes clssicas. Asrupturas epistemolgicas da poca, ao seu ver, incluem ainda omaterialismo histrico de Marx e o surgimento da sociologia deDurkheim, espaos tericos em que a noo de cultura materialteve chances de se desenvolver.

    Teria sido entre 1920 e a II Guerra Mundial que essa nooganhou uso corrente nas cincias humanas, especialmente naHistria. Sua apropriao pela Arqueologia permitiu avanos aindamaiores para sua compreenso e sua explorao cientfica:

    necessidade geral de remediar as carncias das fontesescritas carncias mais ou menos clamorosas consoanteos pases e os sculos junta-se um outro facto: adocumentao clssica, escrita ou visual, pode englobaramplos sectores da cultura material, mas s d delesuma imagem reflectida, subjectiva e j interpretada,necessitando, portanto, de certa prudncia. Alm disso,quando um texto cita um objecto concreto, no se pode,na maior parte dos casos, dar dele uma imagem precisa;a arqueologia, pelo contrrio, pe-nos directamente em

  • Cadernos do CEOM - Ano 18, n. 21 - Museus: pesquisa, acervo, comunicao

    80

    contacto com o prprio material, que se pode tocar,examinar e interpretar sem o perigo de erro devido subjectividade da documentao. (BUCAILLE e PESEZ,1989, p.19)

    Para definir a noo de cultura material, os autores partemde quatro caractersticas, sendo duas ligadas ao termo cultura e asoutras ao carter material: como fenmeno cultural, a culturamaterial refere-se coletividade e a uma repetitividade que aaproxima da noo de cotidiano; o aspecto material relativo aosfenmenos infra-estruturais e ateno aos objetos concretos. Sobseu ponto de vista, a noo de cultura material por demaisimprecisa para ser conceito, e convive com os riscos da apreensoimediata dos aspectos tcnicos e funcionais, pela facilidade comque se sobrepem aos outros significados do objeto (BUCAILLE ePESEZ, 1989, p.25).

    Os significados, entretanto, so aspectos existentes para almdas caractersticas tcnico-funcionais e da materialidade dos objetos.Tambm no so definidos exclusivamente no momento daproduo, mas em todo o processo social que envolve seu posterioruso, valorizao, descarte, reaproveitamento. Estes significadosrelacionam-se com a forma como a memria construda, nopresente, e como esta contribui para a diferenciao entre os valoresmateriais, intrnsecos natureza fsica de determinados bens, e osculturais, atribudos no mbito das relaes sociais. Afinal, todoobjeto pode ser interpretado no somente como instrumento, mascomo signo (Maquet, 1995) e, enquanto tal, ele no possui umsignificado nico, mas polissmico (Tilley, 1989). Estruturas designificados so, segundo Hodder (1989), criadas e recriadas nombito das relaes de poder, assim como estas tambm soigualmente, criadas e recriadas.

    Pearce (1990, p.33) elabora esta questo considerando a prpriaArqueologia como parte da negociao social e como um projetode persuaso, e que sua presena nos museus contribui tambmpara uma negociao do passado, iniciada com a prpria formao

  • Cultura material: interfaces disciplinares da Arqueologia e da Museologia - Manuelina Maria Duarte Cndido

    81

    da coleo e reforada pelos processos de curadoria, estudo,publicao e exibio, todos permeados pelo carter seletivo dasaes. Outros autores fazem referncia a esta rearticulao dossignificados da cultura material, seja considerando que os objetospassam a ter um estatuto simblico (BAUDRILLARD, 1993, p.83);seja que o objeto passe a um nvel particular de interpretao evalor nos museus, pois l existe exatamente para significar e se tornaobjeto rei (Jeudy, 1990); ou que ele portador de sentidos esignificaes nem sempre ligados funo original, mas a umdiscurso que construdo por interpretaes do presente,marcadamente autoral (SHANKS e TILLEY, p. 07-08, 1987; FUNARI,2001a).

    Victor Buchli, discutindo o confronto cultura material versustexto, afirma que exatamente a habilidade da cultura material emsubverter e resistir ao seu valor de uso por meio da fetichizao erecontextualizao que a faz to dinmica. Pois justamente amaterialidade que garante a fcil passagem de um contexto a outro.O gerenciamento da materialidade permite o acesso aos objetos, apartir de quatro possveis estratgias de visibilidade que o autorencontra em Felipe Criado: inibir, esconder, exibir e monumentalizar(BUCHLI, 1995, p.185).Hodder ressalta o carter linear daslinguagens escrita e oral em contraponto complexidade dalinguagem dos objetos, acrescida dessa durabilidade materialmentegarantida que permite que logo estejam fora do seu contexto deproduo e com ainda mais espao para sua ambigidade.(HODDER, 1989, p.73-74).

    O muselogo holands Peter Van Mensch (a nota, 2001)distingue trs contextos bsicos para a cultura material: contextoprimrio (P), contexto arqueolgico6 (A) e contexto museolgico(M), sendo o homem responsvel pelas informaes que sobrevivem passagem dos artefatos entre um e outro contexto e determinamseu potencial informativo para os museus. Quanto mais intermediada a passagem do contexto primrio para o museolgico, maior onmero de processos de interpretao e seleo pelo qual o objetopassou. Assim, o resultado da passagem de P diretamente para M

  • Cadernos do CEOM - Ano 18, n. 21 - Museus: pesquisa, acervo, comunicao

    82

    muito diferente da passagem P-A-M. Ainda mais se pensarmos quecada vez mais arquelogos se interessam por tudo o que possa serencontrado no stio, mesmo em microescala, e que os museus nopodem absorver tudo que resulta das pesquisas arqueolgicas7.Mensch fala, especialmente, de instituies de pesquisa que muitasvezes no querem se responsabilizar pela preservao de materialarqueolgico aps seu estudo, e que pretendem transferi-los paramuseus. Esses, por sua vez, no desejam receber grandesquantidades de material das quais usaro somente 1% nas exposies o que gera uma necessidade de seleo e descarte, prejudicandopossveis retomadas das anlises. Desse conflito entre museus einstituies de pesquisa surgiu, segundo ele, nos EUA, o conceitode CRM Cultural Resource Management que inclui mesmo apreservao dos stios arqueolgicos sem escavao. Assim, atransformao do contexto arqueolgico para o museolgico (A-M), mais conceitual que fsica e a interpretao dos significadosocorre por uma viso ainda mais ampla.

    As pesquisas arqueolgicas geram, no raro, uma quantidadeinfindvel de material coletado, proveniente de escavaes. Mesmocom a atual tendncia utilizao de mtodos no-destrutivos pelaArqueologia (LIMA, 2000), h uma gigantesca parcela do patrimnioarqueolgico fora dos seus locais de origem, sob a guarda dos maisdiversos modelos institucionais mas, particularmente, nos museus.Recentemente, alguns pesquisadores brasileiros tm defendido aadoo de uma tica eminentemente preservacionista, atravs dogerenciamento dos bens culturais e de aes sociais (LIMA, 2000;CALDARELLI, 2000; MARTINS, 2000). necessrio refletir sobre ofato de que o patrimnio cultural no renovvel e que as geraesfuturas tm o direito de conhec-lo.

    Entretanto, as pesquisas arqueolgicas tm tradicionalmentese firmado numa tendncia divulgao de seus resultados nosmeios acadmicos por meio de congressos e publicaes cientficas,de forma que os arquelogos, no raramente, restringem acomunicao dos resultados dos trabalhos aos seus pares.Felizmente, a preocupao com a necessidade de divulgao das

  • Cultura material: interfaces disciplinares da Arqueologia e da Museologia - Manuelina Maria Duarte Cndido

    83

    pesquisas arqueolgicas para o pblico leigo em geral tem comeadoa fazer parte de discusses na Arqueologia (FUNARI, 2001a; LIMA,2000). Da mesma forma, o interesse pela idia de desenvolvimentosustentvel e a afirmao do uso como estratgia de preservao dopatrimnio, presentes no referido texto, so aproximaes dasquestes que permeiam os debates contemporneos da Arqueologiae Museologia, como exemplo, a Carta de Santa Cruz, oriunda do IIEncontro Internacional de Ecomuseus Comunidade, Patrimnioe Desenvolvimento Sustentvel (2000).

    Contemporaneamente, a dilatao do conceito de patrimnio(DESVALLES, 1989; GUARNIERI, 1990) possibilitou a atribuiode valor a objetos antes excludos da esfera da salvaguarda e tambmos relacionados a parcelas da sociedade com noes diferenciadasdo que seja importante preservar e do como preservar. So os casosde objetos de culto ainda em uso, dos objetos ligados a gruposindgenas que tm no fazer, refazer e utilizar o sentido mximo deconstruo e preservao da sua cultura. Por outro lado, osurgimento de modelos institucionais e experimentosmuseolgicos ligados chamada nova museologia trouxeram parao primeiro plano novos temas e demandas, como a possibilidade depreservao do patrimnio ainda em poder da comunidade,desvinculando a problemtica da salvaguarda museolgica da recolhae tesourizao de acervos. No que diz respeito ao patrimnioarqueolgico, os modelos preservacionistas tm tambm se ampliadoe passado a incluir perspectivas ligadas musealizao in situ e aouso da arqueologia experimental esta ltima, como uma atividadeeducativa entre outros. O debate a esse respeito tende a crescerdevido tendncia para queda de barreiras entre as diversasformataes das instituies culturais e procura por atrativostursticos qualificados tanto nos aspectos culturais como deentretenimento.

    A cultura material, cerne do fazer arqueolgico, temsignificados somente compreensveis em um contexto. Portanto,pode ser levada a participar de discursos inteiramente diversos(autorais e datados), de acordo com as relaes de poder a

  • Cadernos do CEOM - Ano 18, n. 21 - Museus: pesquisa, acervo, comunicao

    84

    envolvidas, o que nos remete ao mundo dos museus, poderosos eperigosos lugares de construo de significados, de memrias e deidentidades, responsveis que so pela salvaguarda e pelacomunicao da herana patrimonial passada de uma gerao aoutra. O gerenciamento da memria representada em especial porparcelas materiais da realidade justamente um dos problemasbsicos da Museologia, cujos principais desafios foramsistematizados por Bruno (1995) da seguinte forma:

    1) identificar e analisar o comportamento individual e/oucoletivo do homem frente ao seu patrimnio; 2) desenvolverprocessos tcnicos e cientficos para que, a partir dessa relao, opatrimnio seja transformado em herana e contribua para aconstruo das identidades.

    A necessidade de transitar entre a exibio e a inibio, entrea seleo e o descarte constante no mundo dos museus. aconscincia desta problemtica que pde levar superao de ummodelo de cincia baseado no discurso da neutralidade nas reasvoltadas para o estudo e tratamento do patrimnio, passando-se aperceb-lo como instrumento ideolgico da construo dasidentidades e de fomento de aes polticas:

    Deveramos, entretanto, procurar encarar estes artefactoscomo socialmente construdos e contestados, em termosculturais, antes que como portadores de significadosinerentes e ahistricos, inspiradores, pois, de reflexes,mais do que de admirao (Potter s.d.). Uma abordagemantropolgica do prprio patrimnio cultural ajuda adesmascarar a manipulao do passado (Haas 1996). Aexperincia brasileira, a esse respeito, muito clara: amanipulao oficial do passado, incluindo-se ogerenciamento do patrimnio, , de forma constante,reinterpretada pelo povo. (Funari, 2001a, p. 24)

    Funari (2001b) relaciona, ainda, os problemas brasileiros noque dizem respeito conservao de seu patrimnio problemticaeducacional, visto que a importncia do passado e da culturamaterial ainda no amplamente difundida e aceita. Para ele, alm

  • Cultura material: interfaces disciplinares da Arqueologia e da Museologia - Manuelina Maria Duarte Cndido

    85

    do ensino formal, escolar, o museu o principal locus de aoeducativa sobre os bens arqueolgicos (FUNARI, 1993, p.22), noque se coloca em acordo com Shanks e Tilley (1987) que afirmamque o museu a principal instituio a realizar a conexo entrearqueologia e sociedade.

    As preocupaes das duas reas do conhecimento,arqueologia e museologia, convergem no seu entendimento de ques a conscincia sobre o patrimnio e sua apropriao na realidadecotidiana das comunidades podero preserv-lo (FUNARI, 2000;BRUNO, 1995 e 1996; TAMANINI, 1998). No que diz respeitoespecificamente ao patrimnio arqueolgico, podemos dizer que aquesto fundamental deste debate seria o que fazer com os objetosretirados dos stios arqueolgicos (MARTINS, 2000, p.04) e a atitudemais provvel, segundo a anlise mencionada, resultaria em umverdadeiro jogo de empurra sobre quem deve recair asresponsabilidades da preservao destes vestgios (p.04).

    Iniciativas interdisciplinares na arqueologia tm geradoexcelentes resultados em experincias que aliam pesquisascientficas, preservao patrimonial e desenvolvimento comunitrio,como exemplo a Vila-Museu e Campo Arqueolgico de Mrtola,em Portugal (BRUNO, 1995, p.89). Particularmente, consideramosque propostas ligadas musealizao da arqueologia geram debatese resultados oportunos por aliarem a devoluo do conhecimentoao pblico leigo com a institucionalizao de acervos que permitemgarantias para sua salvaguarda e para sua contnua retomada emnovas pesquisas cientficas.

    Agradecimentos

    Ao orientador do mestrado, Prof. Dr. Pedro Paulo Funari, sprofessoras Dra. Cristina Bruno, Dra. Adriana Mortara Almeida,Dra. Marisa Coutinho Afonso. Aos professores e colegas dedisciplinas, a todos de Fernando de Noronha que colaboraram coma pesquisa, Capes pela bolsa de pesquisa.

  • Cadernos do CEOM - Ano 18, n. 21 - Museus: pesquisa, acervo, comunicao

    86

    Notas

    * Manuelina Maria Duarte Cndido historiadora, especialista em Museologia e mestreem Arqueologia (concludo em 2004, na USP). Atua como consultora para instituiesmuseolgicas. Coordena o Ncleo de Ao Educativa do Centro Cultural So Paulo.1Traduo: Escrever o passado no uma inocente e nem uma desinteressada leiturado passado autnomo apresentado como imagem. Escrever o passado desenh-lo nopresente, reinscrevendo-o a partir de um olhar do presente.2 O homem o seu objeto, mas a materialidade sua fonte de pesquisa.3 Traduo: Curadores de Arqueologia tm uma responsabilidade especial aqui, porqueuma importante parte do nosso papel de atuar como ponte entre as pessoas em gerale a comunidade arqueolgica profissional. Museus, assim como stios interpretados acu aberto cujos curadores esto envolvidos, so os principais meios aos quais umaexperincia do passado e especialmente de objetos genunos feitos no passado, podemservir mediadores para as pessoas.4A Museologia, como veremos adiante, tem se caracterizado por uma abertura conceitualque engloba na idia de patrimnio novas facetas que no somente a material, mastambm o intangvel. A preservao, em qualquer caso, entretanto, depende de umaseleo de referncias patrimoniais que sero mantidas tambm em sua integridadefsica.5Refere-se especialmente a material proveniente de escavaes e coletas em stiosarqueolgicos.6Problema ainda mais potencializado pela expressividade das pesquisas de Arqueologiade contrato (ou salvamento arqueolgico) realizadas atualmente.

    Referncias Bibliogrficas

    ALMEIDA, Mrcia Bezerra. O australopiteco corcundaO australopiteco corcundaO australopiteco corcundaO australopiteco corcundaO australopiteco corcunda: as crianase a arqueologia em um projeto de arqueologia pblica na escola.Tese (Doutorado) FFLCH/USP. So Paulo, 2002.

    ANDRADE LIMA, Tania. A tica que temos e a tica que queremos:(ou como falar de princpios neste conturbado fim de milnio). In:MENDONA DE SOUZA, S. M. F. (org.) Anais do IX CongressoAnais do IX CongressoAnais do IX CongressoAnais do IX CongressoAnais do IX Congressode Arqueologia Brasileira de Arqueologia Brasileira de Arqueologia Brasileira de Arqueologia Brasileira de Arqueologia Brasileira [CD ROM], [Rio de Janeiro], SAB,agosto/2000.

    BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetosO sistema dos objetosO sistema dos objetosO sistema dos objetosO sistema dos objetos. So Paulo:Perspectiva, 1993.

    BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Musealizao da arqueologiaMusealizao da arqueologiaMusealizao da arqueologiaMusealizao da arqueologiaMusealizao da arqueologia: umestudo de modelos para o projeto paranapanema. Tese de(Doutorado), FFLCH/USP. So Paulo, p.1995. .

  • Cultura material: interfaces disciplinares da Arqueologia e da Museologia - Manuelina Maria Duarte Cndido

    87

    BUCAILLE, Richard; PESEZ, Jean-Marie. Cultura material. Homo-Homo-Homo-Homo-Homo-domesticao/ cultura materialdomesticao/ cultura materialdomesticao/ cultura materialdomesticao/ cultura materialdomesticao/ cultura material. Lisboa: Imprensa Nacional/Casada Moeda, 1982. p. 11-47. (Enciclopdia Einaudi, 16.)

    BUCHLI, Victor A. Interpreting material culture. In: HODDER, Ianet alli (eds.) Interpreting Archaeology:Interpreting Archaeology:Interpreting Archaeology:Interpreting Archaeology:Interpreting Archaeology: fiding meanings in the past.London and New York: Routledge, 1995. p. 181-193.

    CALDARELLI, Solange B. A arqueologia como profisso. In:MENDONA DE SOUZA, S. M. F. (org.) Anais do IX CongressoAnais do IX CongressoAnais do IX CongressoAnais do IX CongressoAnais do IX Congressode Arqueologia Brasileira de Arqueologia Brasileira de Arqueologia Brasileira de Arqueologia Brasileira de Arqueologia Brasileira [CD ROM], [Rio de Janeiro], SAB,agosto/2000.

    CNDIDO, Manuelina Maria Duarte; FORTUNA, CarlosAlexandre; POZZI, Henrique Alexandre. A arqueologia na ticapatrimonial: uma proposta para ser discutida pelos arquelogosbrasileiros. Canind Canind Canind Canind Canind Revista do Museu de Arqueologia de Xingo,no 1. Aracaju: Universidade Federal de Sergipe, Dez/2001. p. 129-156.

    CARTA de Santa Cruz. II Encontro Internacional de Ecomuseus:comunidade, patrimnio e desenvolvimento sustentvel, 2000.

    DESVALLES, Andr. A Museologia e os museus: mudanas deconceitos. Cadernos MuseolgicosCadernos MuseolgicosCadernos MuseolgicosCadernos MuseolgicosCadernos Museolgicos. Rio de Janeiro: Ministrio daCultura/SPHAN?Pr-Memria, 1989.

    FUNARI, Pedro Paulo A. Reassessing archaeological significance:heritage of value and archaeological of renown in Brazil. In:MERRIMAN (org.). Public Archaeology in BrazilPublic Archaeology in BrazilPublic Archaeology in BrazilPublic Archaeology in BrazilPublic Archaeology in Brazil. Routledge:Londres, 2004.

    ______. Os desafios da destruio e conservao do patrimniocultural no Brasil. Trabalhos de Antropologia e EtnologiaTrabalhos de Antropologia e EtnologiaTrabalhos de Antropologia e EtnologiaTrabalhos de Antropologia e EtnologiaTrabalhos de Antropologia e Etnologia. V. 41Porto: Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, 2001a.p. 23-32.

    ______. Destruction and conservation of cultural property in Brazil:academic and practical challenges. Destruction and ConservationDestruction and ConservationDestruction and ConservationDestruction and ConservationDestruction and Conservationof Cultural Propertyof Cultural Propertyof Cultural Propertyof Cultural Propertyof Cultural Property. Edited by R. Layton, P.G. Stone and J. Thomas.London and New York: Routledge, 2001b. p. 93-101.

  • Cadernos do CEOM - Ano 18, n. 21 - Museus: pesquisa, acervo, comunicao

    88

    ______. Archaeology and education in BrazilArchaeology and education in BrazilArchaeology and education in BrazilArchaeology and education in BrazilArchaeology and education in Brazil. American Antiquity,74, 283. Washington: The Society, 2000. p. 182-185.

    ______. Memria histrica e cultura material. Revista Brasileira deRevista Brasileira deRevista Brasileira deRevista Brasileira deRevista Brasileira deHistria.Histria.Histria.Histria.Histria. V. 13, no 25-26. p. 17-31. So Paulo: ANPUH, Ed. MarcoZero, SCT- CNPq -FINEP, set. 92/ ago. 93.

    ______. ArqueologiaArqueologiaArqueologiaArqueologiaArqueologia. So Paulo: tica, 1988.

    FUNARI, Pedro Paulo A.; OLIVEIRA, Nanci Vieira; TAMANINI,Elizabete. Archaeology to the lay public in BrazilArchaeology to the lay public in BrazilArchaeology to the lay public in BrazilArchaeology to the lay public in BrazilArchaeology to the lay public in Brazil: threeexperiences. Manuscrito indito.

    FUNARI, Pedro Paulo A.; JONES, S; HALL, M. Introduction:Archaeology in History. In: Historical ArchaeologyHistorical ArchaeologyHistorical ArchaeologyHistorical ArchaeologyHistorical Archaeology: back from theedge. FUNARI, P. P. A.; Hall, M.; JONES, S. Londres e Nova Iorque:1999. p. 284-307.

    GUARNIERI, Waldisa Russio Camargo. Conceito de cultura e suainter-relao com o patrimnio cultural e a preservao. CadernosCadernosCadernosCadernosCadernosMuseolgicosMuseolgicosMuseolgicosMuseolgicosMuseolgicos, 3. Rio de Janeiro: IBPC, 1990.

    HODDER, IAN. Post-modernism, post-structuralism and post-processual archaeology. In: HODDER, Ian. The meaning of things The meaning of things The meaning of things The meaning of things The meaning of things:material culture and symbolic expression. Boston: Unwin Human,1989. p. 64-78.

    JEUDY, Henri-Pierre. Memrias do socialMemrias do socialMemrias do socialMemrias do socialMemrias do social. Rio de Janeiro: ForenseUniversitria, 1990.

    MAQUET, Jacques. Objects as instruments, objects as signs. In:Lubar. S & W. D. KINGERY (eds), History from thingsHistory from thingsHistory from thingsHistory from thingsHistory from things: essays onmaterial culture. Smithsonian Inst. Presss, 1995. p. 30-40.

    MARTINS, Luciana Conrado. Arqueologia de salvamento e osArqueologia de salvamento e osArqueologia de salvamento e osArqueologia de salvamento e osArqueologia de salvamento e osdesafios dos processos de musealizaodesafios dos processos de musealizaodesafios dos processos de musealizaodesafios dos processos de musealizaodesafios dos processos de musealizao. Monografia (Curso deEspecializao em Museologia). MAE/USP, So Paulo, 2000.

    PEARCE, Susan. Archaeological curatorship.Archaeological curatorship.Archaeological curatorship.Archaeological curatorship.Archaeological curatorship. Leicester: LeicesterUniversity Press, 1990. (Leicester Museum Series)

  • Cultura material: interfaces disciplinares da Arqueologia e da Museologia - Manuelina Maria Duarte Cndido

    89

    RAPOSO, Lus; SILVA, Antnio Carlos. A linguagem das coisasA linguagem das coisasA linguagem das coisasA linguagem das coisasA linguagem das coisas:ensaios e crnicas de arqueologia. Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, 1996.

    RUSSIO, Waldisa. Museu?Museu?Museu?Museu?Museu? aspecto das organizaes culturais numpas em desenvolvimento. Dissertao (Mestrado) FESP, SoPaulo,1977.

    SHANKS, Michael; TILLEY, Christopher. Re-constructingRe-constructingRe-constructingRe-constructingRe-constructingarchaeologyarchaeologyarchaeologyarchaeologyarchaeology. Theory and practice. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 1987.

    SPENCER-WOOD, Suzanne. The formation of ethnic-Americanidentities: Jewish communities in Boston. In: HistoricalHistoricalHistoricalHistoricalHistoricalArchaeology: Archaeology: Archaeology: Archaeology: Archaeology: back from the edge. FUNARI, P. P. A.; Hall, M.;JONES, S.. Londres e Nova Iorque: 1999. p. 284-307.

    TAMANINI, Elizabete. Vidas transplantadasVidas transplantadasVidas transplantadasVidas transplantadasVidas transplantadas: museu, educao ea cultura material na (re)construo do passado. Tese (Doutorado)Unicamp/ Faculdade de Educao, Campinas, 2000.

    ______. O museu, a Arqueologia e o pblico: um olhar necessrio.In: FUNARI, P. P. A.. (org.) Cultura material e arqueologia histrica.Cultura material e arqueologia histrica.Cultura material e arqueologia histrica.Cultura material e arqueologia histrica.Cultura material e arqueologia histrica.Campinas: IFCH-Unicamp, 1999. p. 179-220.

    TILLEY, Christopher. Interpreting Material Culture. In: HODDER,Ian. The meaning of thingsThe meaning of thingsThe meaning of thingsThe meaning of thingsThe meaning of things: material culture and symbolicexpression. Boston: Unwin Human, 1989. p. 185-194.

  • Cadernos do CEOM - Ano 18, n. 21 - Museus: pesquisa, acervo, comunicao

    90

    Abstract

    This article introduces base concepts of Archeology andMuseology related to the studies of material culture making a mapof the similarities and the differences in the treatment that thesetwo disciplines give to the material culture and the historicity ofthese treatments.

    Keywords:Keywords:Keywords:Keywords:Keywords: Archeology; Museology; material culture