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Sociologia da Comunicação ARON, Raymond, [1965] 1999, “A geração da viragem do século - Introdução” in As Etapas do Pensamento Sociológico. Lisboa: Ed. D. Quixote, pp. 301-310. Som e Imagem 2º ano, 1º semestre Design Gráfico e Multimédia, 2º ano, 1º semestre Teresa Fradique - professora responsável Este material tem fins meramente pedagógicos.

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Sociologia da Comunicação ARON, Raymond, [1965] 1999, “A geração da viragem do século - Introdução” in As Etapas do Pensamento Sociológico. Lisboa: Ed. D. Quixote, pp. 301-310.Som e Imagem 2º ano, 1º semestre Design Gráfico e Multimédia, 2º ano, 1º semestreTeresa Fradique - professora responsável

Este material tem fins meramente pedagógicos.

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Raymond Aron

AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO Montesquieu • Comte Marx • Tocqueville • Durkheim Pareto • Weber 3.• edição

Tradução de Miguel Serras Pereira

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Biblioteca Nacional - Catalogação na Publicação

Aron Raymond, 1905-1983 As Etapas do Pensamento Sociológico (Nova Enciclopédia; 12) ISBN 972-20-0922-2 CDU 316.2"17/19"

INZ"17119"

AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

Publicações Dom Quixote, Lda. Av. Cintura do Porto de Lisboa Urbanização da Marinha, Lote A, 2. o C 1900 Lisboa - Portugal

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor

© 1965, 1967, Basic Books, Inc. Titulo original: Les !tapes de Úl pmsü sociologiqtu

1. a edição: Setembro de 1991 4.� edição: Janeiro de 1999 Depósito legal n. o 130 690/98 Forocomposição: MIRASETE - Artes Gráficas, Lda.

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INTRODUÇÃO

Esta segunda parte é consagrada ao estudo das ideias mestras de três sociólo­gos: Émile Durkheim, Vilfredo Pareto e Max Weber. Para precisar o método que utilizarei nesta análise, recordarei rapidamente o modo como procedi na inter­pretação das ideias de Auguste Comte, de Marx e de Tocqueviile.

Auguste Comte, Marx e Tocqueville formaram os três o seu pensamentõ na primeira metade do século XIX. Tomaram por tema da sua meditação a situação das sociedades europeias após o drama da Revolução e do Império, e esforça­ram-se por identificar o sentido da crise que se dera e a natureza da sociedade em vias de nascimento. Mas esta sociedade moderna era definida pelos três auto­res de maneira diferente: aos olhos de Auguste Comte, a sociedade moderna era industrial; aos de Marx, era capitalista; aos de Tocqueville, deptocrática. A esco­lha do adjectivo era reveladora do ângulo a partir do qual cada um dos autores encarava a realidade do seu tempo.

Para Auguste Comte, a sociedade moderna ou industrial caracterizava-se pelo desaparecimento das estruturas feudais e teológicas. O problema maior da reforma social era o do consenso. "!talava-se de restabelecer à homogeneidade de convicções religiosas e morais, à falta da qual nenhuma sociedade pode viver estavelmente.

Para Marx, em contrapartida, o dado maior da sociedade do seu tempo era constituído pelas contradições internas da sociedade capitalista e da ordem social ligada ao capitalismo. Estas contradições eram pelo menos em número de duas: contradição entre as forças e as relações de produção; contradição entre as classes sociais, votadas à hostilidade enquanto não desaparecesse a propriedade privada dos instrumentos de produção.

Por fim, aos olhos de Tocqueville, a sociedade moderna definia-se pelo seu carácter democrático, o que para ele significava a atenuação das distinções de

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AS ETAPAS l)O PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

classe ou de estado, a tendência para a igualdade progressiva da condição social, e mesmo, a prazo, da condição económica. Mas essa sociedade democrática,

cuja vocação era igualitária, podia, segundo circunstâncias múltiplas, ser ou liberal, quer dizer, governada por instituições representativas, conservadoras das

liberdades intelectuais, ou, pelo contrário, se as causas secundárias fossem desfa­voráveis, despótica. O novo despotismo estender-se-ia sobre indivíduos vivendo de maneira análoga, mas confundidos na igualdade da impotência e da servidão.

Segundo o ponto de partida escolhido por um ou outro dos três, a representa­ção da sociedade moderna difere e, ao mesmo tempo, a visão da evolução social é

igualmente diferente. Allguste Comte, partindo da noção de sociedade industrial e

acentuando a necessidade do consenso, do restabelecimento da unidade das crenças

religiosas e morais, vê no futuro a realização progressiva de um tipo social cujas premissas observa e que quer ajudar a realizar. Marx, pelo contrário, considerando essenciais as contradições do capitalismo, prevê uma revolução catastrofista e ao mesmo tempo benéfica, que será efeito necessário das contradições e terá por fun­ção superá-las. A revolução socialista, feita pela maioria em proveito da maioria,

assinalará o fim da pré-história. A filosofia histórica de Tocqueville não é nem pro­gressiva, à maneira da de Auguste Comte, nem optimista e catastrófica ao mesmo

tempo, à maneira da de Marx. É uma filosofia histórica aberta, assinalando certos traços, considerados como inevitáveis, das sociedades futuras, mas afirmando igualmente que outros traços, humanamente não menos importantes, são imprevi­síveis. O futuro, na visão de Tocqueville, não é inteiramente determinado, e deixa

subsistir uma margem de liberdade. Para usarmos o vocabulário hoje na moda, Tocqueville teria admitido que há um sentido, sendo a palavra sentido tomada na acepção de direcção, no qual a história evolui necessariamente - a história evolui no sentido das sociedades democráticas -, mas que não há sentido da história detertninado de antemão se por sentido entendermos uma direcção implicando a realização da vocação humana. As sociedades democráticas, direcção do devir, podem ser, em função de causas múltiplas, liberais ou despóticas.

Noutros termos, o método que empreguei na primeira parte consistia em identificar os temas fundamentais de cada um dos autores, em mostrar como cada um desses temas resultava de uma interpretação pessoal de uma mesma rea­

lidade social que os três se esforçavam por compreender. Essas interpretações

não eram arbitrárias, mas pessoais: o temperamento do autor, o seu sistema de valores e o seu modo de percepção exprimem-se na interpretação que ele dá de uma realidade que, sob certos aspectos, é vista por todos.

Nesta segunda parte, seguirei o mesmo método, de resto com mais facilidade, uma vez que É. Durkheim, V. Pareto e M. Weber pertencem .mais rigorosamente à mesma geração do que Auguste Comte, Karl Marx e Alexis de Tocqueville.

Pareto nasceu em 1848, Durkheim em 1858 e Max Weber em 1864. Durkheim morreu em 1917, Max Weber em 1920 e Pareio em 1923. Os três pertencem ao

A GERAÇÃO DA VIRAGEM DO SÉCULO

mesmo momento histórico, o seu pensamento, formado no (*imo terço do

século XIX, pôde aplicar-se à realidade histórica da Europa do começo deste século. Os três tinham já publicado a maior parte da sua obra • quando eclodiu a guerra de 1914.

V iveram portanto no mesmo período, retrospectivamente tido como aben­çoado, da história europeia. É verdade que a mesma fase pode ser hoje conside­rada maldita pelos asiáticos ou pelos africanos. Mas, na altura em que os três autores viviam, a Europa era relativamente pacífica. As guerras do século XIX, entre 1815 e 1914, foram curtas e limitadas; não modificaram imediatamente o curso da história europeia.

Poderíamos pensar que, por tal razão, os três autores tivessem tido uma visão optimista da história na qual participavam. Mas não foi isso de maneira

nenhuma o que se verificou. Os três, ainda que de maneira diferente, sentiam que a sociedade europeia estava em crise. Este sentimento não é original; há

poucas gerações que não tenham tido a impressão de viver uma «Crise» ou mesmo de estarem numa <<Viragem». Desde o século XVI, nada mais difícil de encontrar do que uma geração que tenha acreditado viver num período de estabi­lidade. A impressão de estabilidade é quase sempre retrospectiva. Seja como for,

os três autores considerados, a despeito da Pll.Z aparente, pensavam que as socie­dades estavam a atravessar uma fase de mutação profunda.

Penso que o tema fundamental da sua reflexão foi o das relações entre a reli­

gião e a ciência. Esta interpretação de conjUnto que aqui sugiro não é corrente,

e é até, em certo sentido, paradoxal. Só o estudo preciso de cada um dos autores

poderá justificá�la mas, quero desde já, nesta introdução geral, indicar o que entendo por isso.

Durkheim, Pareio e Weber têm em comum a vontade de serem sábios. Na sua época, tanto ou mais do que na nossa, as ciências pareciam aos professores o modelo do pensamento rigoroso e eficaz, ou até mesmo o único modelo de pen­samento válido. Sendo os três sociólogos, os três queriam ser sábios. Mas

enquanto sociólogos, todos eles também, ainda que por vias diferentes, retoma­vam a ideia de Comte segundo a qual as sociedades não podem manter a sua

coerência a não ser através de crenças comup.s. Ora uns e outros verificavam que as crenças comuns de ordem transcendente, legadas pela tradição, tinham sido abaladas pelo desenvolvimento do pensamento científico. Nada era mais banal, no fim do século XIX, do que a ideia de uma contradição insuperável entre a fé

religiosa e a ciência; de certa maneira, os nossos três autores estavam também persuadidos da existência dessa contradição, mas, precisamente porque eram sábios e sociólogos, reconheciam a necessidade, para a estabilidade social, das

·Com a reserva de que Wirtschaft und Gese/lschaft (Economia e Sociedade) de Max Weber só foi publicado depois da sua morte.

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AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

crenças religiosas submetidas à erosão dos progressos da ciência. Enquanto sociólogos, sentiam-se tentados a crer que a religião tradicional estava em vias de esgotamento; enquanto sociólogos também, sentiam-se tentados a crer que a sociedade não podia conservar a sua estrutura e a sua coerência senão na condi­ç_ão de uma fé comum reunir os membros da colectividade.

Este problema, que considero central, encontra uma expressão diferente em cada um deles.

No caso de Durkheim, a expressão é simples, porque este pensador era um professor de filosofia francês, pertencente à tradição laica e cujo pensamento se integrava sem dificuldade no diálogo, que não me atreverei a dizer eterno mas que é por certo duradouro - uma vez que preenche vários séculos da história de França - entre a Igreja Católica e o pensamento laico. Durkheim, sociólogo, cria constatar que a religião tradicional já não correspondia às exigências

·daquilo a que ele chamava o espírito científico. Considerava, por outro lado, como bom discípulo de Auguste Comte, que uma sociedade precisa de consenso e que o consenso só pode ser estabelecido sobre crenças absolutas. Concluía daqui, com o que me parece ser uma ingenuidade de professor, que era necessá­rio instaurar uma moral inspirada pelo espírito científico. A crise da sociedade moderna parecia-lhe criada pela não-substituição das morais tradicionais assen­tes nas religiões. A sociologia devia servir para fundar e reconstruir uma moral que satisfizesse as exigências do espírito científico.

Uma contradição análoga surge na obra de Pareto. Este último está obcecado pelo desejo de ser um sábio, e chega a cansar o seu leitor pela afirmação, tantas vezes repetida, de que só as proposições obtidas com o auxHio do método lógico­-experimental são proposições científicas e que todas as outras, em particular as proposições de ordem mor'a.I, metafísica ou religiosa, não têm valor de verdade. Mas, atacando com uma ironia inesgotável a pretensa religião ou moral cientí­fica, Pareto está bem consciente de que não é a ciência que determina os homens na acção. Escreve até que, se pensasse que as suas obras seriam lidas por nume­rosos leitores, não as publicaria, porque não se pode explicar o que realmente é a ordem social, segundo o método lógico-experimental, sem se arruinarem os fundamentos dessa ordem. A sociedade, dizia ele, só se mantém por meio de sen­timentos, que não são verdadeiros mas são eficazes. Se o sociólogo revelar aos homens os bastidores do cenário ou o reverso das cartas, arrisca-se a dissipar ilu­sões indispensáveis. Há uma contradição entre os sentimentos necessários ao consenso e à ciência, que revela a não-verdade desses sentimentos. Pareto teria considerado que a moral dita científica de Durkheim em nada era mais científica do que a moral do catecismo, teria mesmo de bom grado, levando a ideia até às suas últimas consequências, dito que o era sensivelmente menos, uma vez que cometia o erro insigne de se julgar científica não o sendo, para não falarmos do erro suplementar de imaginar que os homens poderiam vir a ser um dia determi­nados a aeir oor consideracões racionais.

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A GERAÇÃO DA VIRAGEM DO SÉCULO

Há portanto para o sociólogo uma contradição entre a exigência de um rigor científico na análise da sociedade e a convicção de que as proposições científicas não bastam para unir os homens, sendo toda e qualquer sociedade mantida na sua coerência e na sua ordem por crenças ultra-, infra- ou supra-racionais.

Aparece um tema análogo em Max Weber, expresso em termos e com senti­mentos diferentes. No caso de Durkheim, o sentimento que inspira a análise da oposição entre a religião e a ciência é Q desejo de criar uma moral científica. No caso de Pareto, esse sentimento é o de uma contradição insolúvel porque a ciên­cia enquanto tal, não só não é criadora de uma ordem social, mas, na medida em que for uma ciência válida, se arrisca até a destruí-la.

O sentimento de Max Weber é outro. A sociedade moderna, tal como ele a des­creve, está em vias de uma organização cada vez mais burocrática e racional. A des­crição de Max Weber, com conceitos diferentes, asse'melha-se um tanto à de Toc­queville. Quanto mais a modernidade se impõe, mais a parte de organização anónima, burocrática, racional, se alarga. Esta organização racional é a fatalidade das sociedades modernas e Max Weber aceita-a. Mas, pertencendo a uma família profundamente religiosa, embora sendo ele próprio desprovido de sensibilidde reli­giosa, conserva a nostalgia da fé que era possível no passado e contempla a trans­formação racionalizante das sociedades modernas com sentimentos mistos. Tem horror à recusa do que é necessário na sociedade em que vivemos, horror às lamen­tações contra o mundo ou a história tais como são.-Mas, ao mesmo tempo, não sente entusiasmo pelo tipo de sociedade que de desenvolve diante dos nossos olhos. Comparando a situação do homem moderno com a dos puritanos que desempe­nharam um papel importante na formação do capitalismo moderno, tem a fórmula tantas vezes citada para caracterizar a sua atitude: «Os puritanos queriam ser homens de profissão. Nós estamos condenados a sê-lo.» O homem de profissão, o que em alemão se diz Berujsmensch, está condenado a cumprir uma função social estreita no interior de conjuntos vastos e anónimos, sem essa possibilidade de um total desabrochar da personalidade ainda concebível noutras épocas.

Max Weber receava que a sociedade moderna, que é e será burocrática e racional, contribuísse para asfixiar aquilo que, aos seus olhos, tornava a existên­cia digna de ser vivida, quer dizer, a escolha pessoal, a consciência da responsa­bilidade, a acção, a fé.

O alemão não sonha com uma moral científica, como o francês; não cobre de sarcasmos os sentimentos tradicionais ou as religiões pseudo-científicas, como faz o italiano. Vive na sociedade racional e quer pensar cientificamente a natureza dessa sociedade; mas crê que o mais vital e o mais válido da existência humana se situa para lá da inserção de cada um na sua actividade profissional e se define pelo que nós chamamos hoje empenhamento.

Max Weber, com efeito, se nos atribuirmos o direito de lhe aplicar conceitos que não tinham curso ainda no seu tempo, pertencia enquanto filósofo à cor­rente existencial. E aliás, um dos mais célebres filósofos da existência, Karl Jas­pers, seu amigo e seu discípulo, ainda hoje se reclama dele como do se\1 mestre.

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Há realmente pois, nestes três autores, uma reflexão sobre as relações entre a ciência e a religião, ou entre o pensamento racional e o sentimento, em função ao mesmo tempo da exigência do pensamento científico e da exigência social de estabilidade ou de consenso.

Este tema, que penso ser ao mesmo tempo fundamental e comum aos três autores, explica certas ideias em torno das quais eles se encontram. Concebe-se assim que, na sua concepção da explicação sociológica e na sua interpretação do comportamento humano, tenham simultaneamente superado e behaviou­rismo, a psicologia do comportamento e as motivações estritamente económi­cas. A sua convicção comum de QtJ.C as sociedades se ligam por meio das cren­ças colectivas prmbe-lhe com efeito satisfazerem-se com uma explicação dos comportamentos a partir do «exterior», abstraindo do que se passa no plano da consciência.

Do mesmo modo, o reconhecimento do facto religioso como facto principal que governa a ordem de todas as colectividades contradiz aos seus olhos a expli­cação pela racionalidade egoísta que os economistas empregam quando dão conta dos actos dos sujeitos por cálculos de interesse.

Durkheim, Pareto e Weber têm em comum não aceitar nem as explicações naturalistas ou materialistas exteriores nem as explicações racionalistas e econó­micas do comportamento humano. Thlcott Parsons escreveu sobre estes três autores um livro considerável: The Structure of Social Action, cujo único objec­tivo é fazer ressaltar o parentesco dos três sistemas de interpretação conceptual do comportamento humano. Parsons tenta demonstrar que com uma linguagem diferente, os três sociólogos acabaram por conceber de maneira muito seme­lhante a estrutura formal da explicação do comportamento.

A origem desta semelhança formal é, segundo penso, o problema que lhes é comum e que defini no ponto de partida. Trata-se pelo menos de uma razão, porque talvez haja outra: a de terem os três descoberto o todo ou parte do sis­tema verdadeiro de explicação do comportamento. Quando os pensadores se reú­nem na verdade, esse encontro não necessita de outra explicação. Como dizia Spinoza, é o erro que precisa de explicação, e não a descoberta da verdade.

Os três autores são europeus e o seu pensamento é naturalmente governado pela sua situação no mundo europeu. Mas os três procuram também perspecti­var o mundo europeu. Mas os três procuram perspectivar o mundo europeu, relativamente a outras civilizações. Durkheim toma como ponto de referência e de oposição as sociedades arcaicas, um pouco à maneira de Auguste Comte. Pareto tem uma cultura histórica que se refere ao mundo antigo e ao mundo moderno. As suas constantes comparações vão de Atenas a Esparta, de Roma a Cartago, de França à Alemanha, ou da Inglaterra à Alemanha. Quanto a Weber, foi ele quem acentuou, mais vigorosamente, a originalidade da civilização oci­dental e para assinalar essa originalidade, dedicou-se a um estudo comparativo das religiões e das civilizações.

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A GERAÇÃO DA VIRAGEM DO SÉCULO

Se o tema comum é a relação da ciência com a religião, ou da razão com o sentimento, não é menos verdade que as diferenças entre os três autores são sob muitos pontos de vista impressionantes.

Durkheim é, por formação, um filósofo ligado à universidade francesa. Per­tence à posteridade de Auguste Comte, e coloca no centro da sua reflexão a exi­gência do consenso social. Por outro lado, é francês, e a maneira como formulou o problema das relações entre ciência e religião foi certamente influenciado pelo clima intelectual da França dos finais do século XIX, na altura em que a escola laica andava em busca de uma moral diferente da moral religiosa; essa moral fora descoberta, antes do mais, num certo kantismo interpretado segundo o espí­rito protestante, e mais tarde, parcialmente elaborada a partir das ideias da sociologia.

Durkheim escreveu três grandes livros que sinalizam o seu itinerário intelec­tual e representam três variações sobre o tema fundamental do consenso.

No primeiro, Da Divisão do Trabalho Social, o problema é o seguinte: a sociedade moderna implica uma diferenciação extrema das funções e dos ofí­cios; que fazer para que uma sociedade dividida entre inúmeros especialistas conserve a necessária coerência intelectual e moral?

O segundo grande livro de Durkheim, O Suicídio, é a análise de um fenó­meno considerado como patológico, a fim de pôr em evidência o mal que ameaça as sociedades modernas ou industriais: a anomia.

Por fim, o terceiro, As Formas Elementares da Vida Religiosa, tem por fim investigar, nos alvores da história humana, as características essenciais da ordem religiosa, não por curiosidade do que se terá podido ter passado há milhares de anos, mas para descobrir nas sociedades mais �imples o segredo essencial das sociedades humanas, para melhor compreender o que exige a reforma das socie­dades modernas à luz do que foram as sociedades primitivas.

Pareto, italiano, tem uma formação intelectual muito diferente. De início engenheiro, elaborou uma teoria matemática da economia, e progressivamente, à

medida que pretendia captar a realidade social concreta, descobriu a insuficiên­cia do formalismo matemático e económico, e ao mesmo tempo o papel dos sen­timentos no comportamento humano.

Não é, nem pelo estilo intelectual nem pela estrutura mental, um filósofo como Durkheim. Não sofre de maneira nenhuma a influência de Auguste Comte, que antes tende a desprezar. A tradição a que se refere é a de Maquia­vel. O maquiavelismo é o esforço para pôr à luz do dia as hipocrisias da comé­dia social, para identificar os sentimentos que na realidade movem os homens, para captar os conflitos autênticos que constituem a textura do devir histórico, para apresentar uma visão sem quaisquer ilusões daquilo que realmente a socie­dade é.

O fundamento do pensamento de Pareto é o reconhecimento da contradição entre a racionalidade das teorias económicas e a irracionalidade dos comporta-

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AS ETAPAS DO PENSAMENTO SOCIOLÓGICO

mentos humanos, a verificação alternadamente tristonha ou triunfante de que esses comportamentos, irracionais para a ciência, podem ser socialmente efica­zes e úteis.

Pareto é filho de um patriota italiano, da geração do Risorgimento, que já pusera em dúvida as ideias liberais e humanitárias. Convenceu-se de que essas ideias são muitas vezes perigosas para as minorias privilegiadas que a elas ade­rem com demasiada sinceridade; ao mesmo tempo, a ciência ensinou-lhe que a fé na democracia ou no socialismo, e as crenças humanitárias não valem mais, aos olhos do pensamento lógico-experimental, do que a crença em Deus, no diabo ou nos feiticeiros.

Aos olhos de Pareto, um humanitarista não é menos do que um cristão joguete dos seus sentimentos. Thria dito de bom grado que a religião democrática de Durkheim não era nem uma onça mais científica do que a moral tradicional.

Com um pouco de boa vontade e de psicanálise, podemos dar-nos conta em Pareto de uma revolta contra as ideias humanitárias da sua época, ou ainda de uma imensa justificação das decepções amargas que a observação da realidade lhe reservou.

Max Weber não é por formação nem filósofo nem engenheiro, mas jurista e historiador. A sua formação universitária foi essencialmente jurídica e chegou a encetar uma carreira na administração. A sua erudição histórica era excepcional. Era igualmente um nostálgico da política. Nunca chegou a ser um homem polí­tico activo. Depois de ter pensado em apresentar-se como candidato nas eleições após a derrota alemã de 1918, acabou por se recusar a fazê-lo; mas conservou a mágoa por não ter sido um homem de acção. Pertence à fanu1ia dos sociólogos que são políticos falhados (depois, como Thcídides, ou durante, como Maquia­vel, de uma carreira politica).

A metodologia de Max Weber explica-se, em larga medida, a partir da rela­ção entre a ciência e a acção, ou a sociologia e a política. Quer uma ciência neu­tra, porque não quer que o professor, na sua cátedra, utilize o seu prestígio a fim de impor ideias. Mas quer que a ciência neutra seja ao mesmo tempo útil ao homem de acção e à política. Daí a antítese entre juiz de valor e relação com os valores, e a distinção entre causalidade e compreensão.

Além disso, a visão histórica de Max Weber não é nem a visão progressista de Durkheim nem a visão cíclica de Pareto. Assemelhar-se-ia antes à de Tocque­ville: há nas sociedades modernas certas características intrínsecas de tais socie­dades que são fatais e inevitáveis e devem ser aceites, mas a burocracia e a racio­nalização não determinam a totalidade da ordem social e deixam em aberto a dupla possibilidade do respeito pela pessoa e pelas liberdades ou do despotismo.

A aproximação destes três autores não é pois arbitrária. E é natural proceder­mos a uma comparação histórica tendo por função pôr em evidência o que é semelhante neles e o que neles é diferente. O que é semelhante são os elementos comuns da situação europeia que os três autores observam e reconhecem. O que

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é diferente é o contexto nacional e intelectual em que cada um deles está colo­

cado e que influencia o seu modo de expressão intelectual. E é também a expres­

são das personalidades. Um é de religião judaica, outro católico, o terceiro pro­

testante, pelo menos de origem. Um é um optimista severo, o outro um

pessimista irónico e o terceiro um observador amargo. Estes estilos devem ser

conservados na interpretação histórica para que as doutrinas sociológicas surjam

tais como foram, quer dizer, não só esforços de compreensão científica, mas

também expressões de três homens, ou ainda diálogos entre homens e uma situa­

ção histórica. Tentarei portanto destacar nestas doutrinas o que elas contêm de

compreensão científica do comportamento humano e das sociedades modernas,

sem esquecer o elemento pessoal que dá a sua coloração própria a cada uma

delas. Por fim, se possível, tentarei recriar o diálogo que os três autores não tra­

varam, porque mal se conheceram, mas que teriam podido e devido ter e que nós

podemos reconstituir ou, mais modestamente, imaginar.