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Universidade de Brasília Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas Arlene Oliveira von Sohsten A mediação como (dilatação da) experiência estética: uma análise do Projeto Mediato Brasília 2016

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Universidade de Brasília

Instituto de Artes

Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas

Arlene Oliveira von Sohsten

A mediação como (dilatação da) experiência estética:

uma análise do Projeto Mediato

Brasília

2016

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Arlene Oliveira von Sohsten

A mediação como (dilatação da) experiência estética:

uma análise do Projeto Mediato

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Artes Cênicas do Instituto de

Artes da Universidade de Brasília como

requisito para obtenção do título de mestre em

Artes Cênicas.

Linha de Pesquisa: Culturas e Saberes em

Artes Cênicas.

Orientador: Prof. Dr. Jorge das Graças Veloso

Brasília

2016

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Ficha catalográfica elaborada automaticamente, com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

vSO682m

von Sohsten, Arlene Oliveira A mediação como (dilatação da) experiênciaestética: uma análise do Projeto Mediato / ArleneOliveira von Sohsten; orientador Jorge das Graças Veloso. -- Brasília, 2016. 185 p.

Dissertação (Mestrado - Mestrado em Artes) --Universidade de Brasília, 2016.

1. Teatro. 2. Mediação. 3. Experiência estética .4. Educação . I. Veloso, Jorge das Graças, orient.II. Título.

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AGRADECIMENTOS

Ao professor Dr. Jorge das Graças Veloso que foi como um sopro me livrando do

que havia de nebuloso na escrita e na pesquisa de forma geral, me auxiliando a compreender

o que é ser uma pesquisadora em Artes Cênicas.

À professora Dra. Roberta Matsumoto que de forma sensível percebeu as lacunas

deste trabalho, quando da qualificação, mostrando-me página à página as fragilidades da

escrita, sobretudo no que diz respeito a noção de experiência estética e alteridade. Orientação

esta que me permitiu compreender o meu recorte e focar o movimento da dilatação após o

contato com a obra. Além disso, Matsumoto contribuiu também para a concepção do

primeiro capítulo no qual busco outros projetos e pesquisas de mediação. Agradeço à rica

intervenção.

Ao professor Dr. Flávio Desgranges que prontamente aceitou o convite para compor

a banca de qualificação e engrandeceu este trabalho com observações pontuais,

principalmente sobre a necessidade de fazer cortes essenciais para redefinir o escopo da

abordagem investigativa. E juntamente à Matsumoto contribuiu para a dilatação do meu

olhar frente à pesquisa.

À professora Dra. Alice Fátima Martins por aceitar compor a banca de defesa e

contribuir para a finalização deste trabalho com sua extensa pesquisa em arte, educação e

visualidades. Sua intervenção (poética) na banca de defesa acendeu a fagulha para a

continuidade não apenas da pesquisa, mas principalmente do meu trabalho como professora

e coordenadora do Mediato. Sua presença foi um grande presente.

À Marília Panitz e a Carlos Silva, meus mestres, que confiaram no meu trabalho e

abriram as portas para que eu pudesse conhecer e aprender ao longo de sete anos o que é a

mediação.

Aos amigos e familiares que pacientemente me apoiaram. Aos meus pais, Eliene e

Daniel von Sohsten, que criaram meios para tornar o tempo dessa pesquisa mais confortável.

A toda a equipe do Projeto Mediato (2014) pelo empenho e pela dedicação ao

trabalho, que à época já sabia se tratar não apenas de um projeto, mas de um sonho que

estava sendo realizado. Agradeço por terem acreditado nele também.

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Às escolas que receberam o Projeto e principalmente aos estudantes e professores,

que se entregaram como espectadores. Agradeço a eles também a disponibilidade para

conceder as entrevistas.

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RESUMO

O presente trabalho consiste em uma possibilidade de pesquisa em Artes Cênicas que se

utiliza de práticas de mediação como instrumento. Tem como objetivo defender uma

mediação como dilatação dos sentidos e principalmente da experiência estética; bem como

inventar e apresentar caminhos para essa dilatação. Além de reconhecer – com base em

práticas pedagógicas estéticas – quais sãos os momentos de ruptura na mediação, isto é,

quando ela atua como cenas de dissenso. Por fim, objetiva apontar de que forma a mediação

se distancia dos seus propósitos impossibilitando a experiência e a dilatação. A dilatação vai

se configurar a partir de algumas possiblidades: com a produção de narrativa; a produção de

semelhança; e o estreitamento das relações entre real e ficcional, sendo a primeira a de maior

importância na pesquisa. Fazem parte do enquadramento conceitual a experiência do olhar

em Georges Didi-Huberman, a experiência de Jorge Larrosa Bondía, as noções de estética e

política em Jacques Rancière, o conceito de narrador desenvolvido por Walter Benjamin, a

ideia de mediação de Flavio Desgranges, a aisthesis de Beatriz Medeiros e a aprendizagem

inventiva de Virgínia Kastrup. Além destes, Jorge das Graças Veloso, Maria Lúcia Pupo,

Biange Cabral, Clarice Lispector, Roland Barthes, dentre outros, compõem o escopo teórico

do trabalho. Para o desenvolvimento da pesquisa duas fontes além da literatura selecionada

foram adotadas: o registro audiovisual do projeto “Mediato Formação de Espectadores”

realizado em 2014, com quatro escolas públicas de Ensino Médio do Distrito Federal; assim

como entrevistas semiestruturadas, realizadas em 2015 com estudantes e professores (as)

participantes. Tal projeto será objeto de análise neste trabalho com vistas a investigar o que

foi condizente com os propósitos da mediação e de fato contribuiu para a dilatação dos

sentidos e da experiência estética, e o que pode ser repensado para isso. Por meio da análise

do registro audiovisual do Projeto Mediato e das entrevistas, bem como do estudo dos

teóricos e principalmente a partir da trajetória da autora, foi possível delinear um

entendimento de mediação que segue os mesmo princípios da experiência estética,

distanciando-se das categorias que impossibilitam a experiência, a saber: informação,

opinião, explicação, resolução de tarefa, objetivo ético. Igualmente, este caminho permitiu

demonstrar como a mediação pode funcionar como dilatadora da experiência estética. Em

última análise, a pesquisa confirmou que o Projeto Mediato não contemplou totalmente a

ideia de mediação defendida no trabalho, todavia, as incongruências daquele se constituíram

como pontos de reflexão que permitiram o aprofundamento deste.

Palavras-chave: Mediação. Teatro. Experiência estética. Espectador. Dilatação.

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ABSTRACT

The present paper consists of a possibility of Theatre Arts research that uses mediation

practices as a tool. Its goal is to defend mediation as dilation of the senses, mainly of the

aesthetic experience, as well as to invent and present ways for said dilation and recognize -

with basis on aesthetic pedagogic experiences - in which moment the rupture of mediation

happens, that is, when it acts as scenes of dissent. Finally, the paper seeks to point out how

mediation distances itself from its purposes, making impossible the experience and dilation.

Dilation comes from a few sources: by narrative production, by similarity production, and

by making closer the relationship between real and fictional - the former having larger

emphasis in this research. Included in the conceptual focus are the experience of sight in

Georges Didi-Huberman, the experience of Jorge Larrosa Bondía, the aesthetic and political

notions of Jacques Rancière, the concept of narrator developed by Walter Benjamin, the idea

of mediation of Flavio Desranges, the aisthesis of Beatriz Medeiros, and the inventive

learning of Virginia Kastrup. Besides the afore mentioned authors, Jorge das Graças Veloso,

Maria Lúcia Pupo, Biange Cabral, Clarice Lispector, Roland Barthes, among others,

compose the theoretic state-of-the-art in the paper. Two sources beyond the literary selection

were used for the research's development: the filming of the project Mediato Formação de

Espectadores (2014) with four public high schools of the Federal District, and semi-

structured interviews of 2015 with participating students and teachers. The afore mentioned

project will be analyzed in this paper in order to investigate what was coherent with

mediation's purposes and actually contributed towards the dilation of the senses and the

aesthetic experience, and what can be reevaluated and restructured in order to be useful.

Through analysis of the records of the Mediato project and interviews, studies of the authors,

and mainly through the author's journey, it has become possible to delineate an

understanding of mediation that follows the same principles of the aesthetic experience,

distancing itself from the categories that make impossible the experience, such as:

information, opinion, explanation, obligation, and ethical objective. Similarly, this journey

has made it possible to demonstrate how mediation may serve and dilator of the aesthetic

experience. In a final analysis, the researched confirmed that the Mediato project did not

fully consider the concept of mediation defended in the paper, however, its incongruities

served as stimulators for reflection, which allowed its deepening.

Key words: Mediation. Theatre. Aesthetic experience. Spectator. Dilation.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................ 11

1 SITUANDO O OBJETO DE PESQUISA – PROJETO MEDIATO E

OUTROS CAMINHOS ..................................................................................................... 19

1.1 Projeto Mediato ..................................................................................................... 26

1.1.1 Da Janela .................................................................................................................. 38

1.1.2 Aquecimento ............................................................................................................ 41

1.1.3 Parcerias com a educação formal ............................................................................ 45

1.1.4 Caderno de mediação ............................................................................................... 53

1.2 Outros caminhos .................................................................................................... 55

1.2.1 Flávio Desgranges e o Projeto Formação de Público .............................................. 55

1.2.2 Ney Oliveira e o projeto Cuida Bem de Mim .......................................................... 58

1.2.3 Martha Moraes e SESC Arte-educação: Transformando Plateias ........................... 62

1.2.4 Glauber de Abreu e a questão do abandono ............................................................ 65

2 A MEDIAÇÃO COMO (DILATAÇÃO DA) EXPERIÊNCIA ESTÉTICA .... 73

2.1 Considerações iniciais sobre experiência, dilatação, sentido e estética ............. 74

2.2 O sujeito dilatado .................................................................................................. 80

2.3 Aproximações entre a experiência em Didi-Huberman e Lispector ................. 88

2.4 Possibilidades para a dilatação ............................................................................ 97

2.4.1 Narrativa ................................................................................................................. 97

2.4.2 Produção de Semelhança ...................................................................................... 109

2.4.3 Real e Ficcional .................................................................................................... 112

2.5 A mediação como ruptura .................................................................................. 118

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2.6 Política, na estética ou no tema: “Isso que vocês querem colocar na cabeça da

gente” ............................................................................................................................... 132

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 148

REFERÊNCIAS .................................................................................................. 153

APÊNDICE A – CRONOGRAMA DE ATIVIDADES DO PROJETO

MEDIATO

............................................................................................................................... 159

APÊNDICE B – FOTOS (OFICINA DE CARTAZES E OUTROS

MOMENTOS DA MEDIAÇÃO) ...................................................................... 162

APÊNDICE C – MODELO DE RELATÓRIO FINAL SOLICITADO À

EQUIPE ............................................................................................................... 170

APÊNDICE D – CADERNO DE MEDIAÇÃO ................................................ 172

ANEXO A – REGISTRO AUDIOVISUAL DO ESPETÁCULO

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APRESENTAÇÃO

A introdução do serviço educativo nos museus foi um importante avanço na

compreensão deste local como espaço social de trocas. Assim como o museu se tornou um

ambiente pedagógico, externo à escola, que expõe objetos estimulando suas leituras e o

estabelecimento de relações, o teatro pode ser um potencial lugar de intercâmbio de

vivências e de aprendizagem. Este espaço pode se dar com a inserção de projetos

pedagógicos que incluam processos de mediação direcionados para o atendimento de

estudantes, principalmente das regiões que tem menos contato com centros culturais.1 Com

vias não apenas de familiarizar o espectador, mas estimular os sentidos, bem como a

produção de narrativas pessoais e coletivas.

A mediação voltada às artes do corpo e do espetáculo ocupa um lugar incipiente se

comparada à longa trajetória das Artes Visuais no Brasil. Todavia, pode-se verificar um

crescente de pesquisas e projetos que propõem atividades mediadoras no Distrito Federal e

em outras regiões como São Paulo e Bahia – apenas para citar duas das quais tive

conhecimento. Portanto, refletir sobre essas atividades é uma forma de analisar a prática, de

corrigir equívocos e de amadurecer este campo de trabalho, que tem atualmente expandido

seu universo; e acredito que a academia tem papel fundamental nessa contribuição.

São objetivos desta pesquisa: argumentar sobre a possibilidade de a mediação ser

uma forma de dilatação dos sentidos e principalmente da experiência estética; e inventar e

apresentar caminhos para essa dilatação. Vale ressaltar que a dilatação da experiência é no

sentido estrito da possibilidade, não da garantia, tendo em vista que assegurar a feitura da

experiência é impossível. Além de reconhecer – com base em práticas pedagógicas estéticas

– quais sãos os momentos de ruptura na mediação, isto é, quando ela atua como cenas de

dissenso (RANCIÈRE, 2012). Por fim, apontar de que forma a mediação se distancia dos

seus propósitos impossibilitando a experiência e a dilatação.

Este trabalho constitui-se como uma possibilidade de pesquisa em Artes Cênicas que

se utiliza de práticas de mediação como instrumento. Tendo isso em vista, lançarei mão de

1 É importante esclarecer que qualquer região (no caso desta pesquisa, o Distrito Federal e suas respectivas

Regiões Administrativas) tem suas manifestações artísticas. O que se pretende apontar aqui é para a

importância do centro cultural como um espaço de aprendizagem extra escolar, que agrega teatro, galerias,

cinema (fora do circuito comercial), dentre outras atividades, geralmente gratuitas. E consequentemente

familiarizar estudantes, independentemente da idade, para que estes compreendam aquele local, também, como

espaço para os momentos de lazer com familiares e amigos; o que poderia influenciar decisivamente na vida

escolar.

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duas fontes além da literatura selecionada: o registro audiovisual do Projeto “Mediato

Formação de Espectadores”2 realizado no primeiro semestre da pesquisa, em 2014, com

quatro escolas públicas de Ensino Médio de quatro Regiões Administrativas do Distrito

Federal (Gama, São Sebastião, Brazlândia e Ceilândia); assim como entrevistas

semiestruturadas em forma de tópico guia (GASKELL, 2014), realizadas em 2015 com

estudantes e professores (as) participantes. Dessa forma, constitui-se como objetivo,

paralelamente aos já elencados, a análise do Projeto Mediato, uma vez que a revisão da

prática possibilitará a sua reformulação.

Com as entrevistas busco, explorando um método etnográfico, a escuta de uma

terceira voz: a voz do sujeito da pesquisa, além da minha e de quem já falou sobre o assunto

(a literatura selecionada). Sobre questões metodológicas, vale apontar para uma contribuição

da Etnocenologia3 que fundamenta este trabalho. Trata-se de uma trajetória que passa por:

vivência; apetência; competência; objeto; e projeto. Tal caminho, recorrente às pesquisas em

Artes, teve seu nascimento em minha trajetória escolar, acadêmica, profissional e pessoal; o

que despertou encanto e fascínio, não mero interesse, mas desejo e apetite pelo tema. Isso

gerou certa competência para transitar por esse lugar de desejo; que por sua vez,

proporcionou a identificação de uma questão e de um objeto passível de ser pesquisado,

culminando na atual escrita.

A noção que tomarei emprestada desta recente e em constante mudança disciplina,

chamada Etnocenologia, faz referência ao âmbito metodológico dos trajetos e projetos. Para

Armindo Bião (2007, p. 21) a “ideia do trajeto remete à articulação de um sujeito com seus

objetos de interesse e com outros sujeitos”. De acordo com o léxico criado pelo autor o

trajeto são “as técnicas e [os] princípios que buscam permitir o conhecimento do objeto por

parte do sujeito, bem como a história que reúne o sujeito e sua opção pelo objeto.” (BIÃO,

2009 p. 39). O objeto é o campo da pesquisa. O projeto explicita o objeto do estudo

pretendido e o trajeto que levou o sujeito a se interessar por ele. A apetência, por sua vez, é

o que justifica o interesse do sujeito pelo objeto, sem a qual não se pode construir

competência. Esta consiste no conjunto de capacidades que vai viabilizar a consecução do

projeto (BIÃO, 2009). Além dessa, outra noção que será utilizada – não mais referente às

2 O termo Projeto virá em maiúsculas quando se referir ao Projeto Mediato. 3 A Etnocenologia é uma disciplina que tem como objeto os comportamentos humanos espetaculares

organizados, tomando como pilares os conceitos de identidade e alteridade. Este recente campo de estudo busca

uma compreensão dos discursos dos diversos agrupamentos sociais sobre sua própria vida coletiva, inclusive

suas práticas corporais (BIÃO, 1999).

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questões metodológicas, mas aos sujeitos da mediação – é a de alteridade; que é

compreendida como o reconhecimento do outro, distinto de si próprio (BIÃO, 2009).

Posto isso, esboçarei brevemente o trajeto que me levou à atual pesquisa. O interesse

pelos caminhos da mediação originou-se com o trabalho desenvolvido, ao longo de sete anos,

no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) em Brasília-DF, mais especificamente com o

Programa Educativo Artes Visuais. Sob a coordenação das professoras Marília Panitz e

Renata Azambuja e do professor Carlos Silva, o programa mantinha um consistente trabalho

de arte-educação, compreendendo a galeria de arte como um espaço provocador do

público/estudante. Objetivava-se familiarizar, principalmente com produções

contemporâneas, e estimular a interpretação crítica de imagens. Tendo em vista que o trajeto

nesta instituição foi intenso, meu olhar e análise estarão constantemente permeados pela

vivência nas Artes Visuais.

Mas dentro desses sete anos, o que melhor assinalou o interesse foram os momentos

prenhes de sentido. E sentido é aqui compreendido na amplitude proposta por John Dewey

(2010, p.88), o “‘sentido’ abarca uma vasta gama de conteúdos: o sensorial, o sensacional,

o sensível, o sensato, o sentimental, junto com o sensual. [...] desde o choque físico e

emocional cru até o sentido em si – ou seja, o significado das coisas presentes na experiência

imediata”. Ora, é exatamente disso que trata a experiência estética, uma vez que tais

conteúdos revelam-se comprometidos com o regime estético, inclusive da arte.

Além desses momentos de sentido na mediação, outro acontecimento que gerava

fascínio era a possibilidade de repercussão e continuidade do que havia sido experienciado

durante a visita. Ou seja, de que forma aquela experiência estética poderia se dilatar. Por

exemplo, ocasiões em que crianças e adolescentes retornavam ao espaço cultural, não mais

com a escola, mas com pais e familiares: o estudante que foi apresentado àquele espaço de

arte por meio da escola, retorna, e sentindo-se pertencente ao espaço, apresenta-o para

outros. Este exemplo não demonstra a complexidade e a sutileza do que se entende aqui por

dilatação, mas foi escolhido pela concretude da possível continuidade.

Não era raro encontrar uma família, no fim de semana, que estivesse visitando pela

primeira vez a convite do filho que, pela via da escola, havia tomado conhecimento daquele

lugar. E ele ocupava, então, o papel do mediador. Explicitamente dispensava os meus

serviços, pois queria ele mesmo mediar o encontro dos pais e familiares com a exposição

que havia conhecido. Claro que a criança, neste exemplo, desconhecia os princípios da

mediação e possivelmente realizou uma visita guiada e não mediada. Mas neste exercício,

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de narrar a experiência, bem como contar sobre os assuntos que lembra, o estudante

concretizou mais um momento importantíssimo à aprendizagem. Pois, à medida que foi

narrando ele pôde tomar consciência da própria experiência, e ao se expressar, pela via das

palavras, abriu espaço para que outra pessoa as contra argumentasse. Além disso, fica claro

que a visita à exposição foi tão significativa para o estudante que este desejou compartilhar

com alguém.

O CCBB também foi o palco para as questões de alteridade dentro dos processos de

mediação. Contudo, foi na disciplina Fundamentos da Educação Artística, ministrada na

graduação em 2007, pelo professor Dr. Jorge das Graças Veloso, orientador da presente

pesquisa, que tais questões se constituíram como objeto de interesse. Dali surgiu uma

tentativa de compreensão do outro, sobretudo dentro dos processos educativos, o que a

prática em mediação tem dado conta de alimentar amplamente.

O desejo pela mediação em Artes Cênicas se consolidou com um trabalho de

conclusão de curso de graduação (2010), no qual pude esboçar algumas inquietações, que

repercutem na presente escrita. Entretanto, o resultado não apresentava autonomia, pois o

que houve foi uma tentativa de transposição da vivência com as práticas no âmbito das Artes

Visuais para as Artes Cênicas. Daí a necessidade de inserir, como parte integrante da

pesquisa, um exercício prático de mediação por meio da realização do Projeto Mediato, que

consistiu fundamentalmente na realização de ações educativas antes e após a apresentação

de um espetáculo.

Indo um pouco distante, a origem do interesse pelo tema encontra-se na minha

trajetória com projetos educativos enquanto estudante de Ensino Médio em escola pública

de periferia (2002-2003). Antes disso, observo que podemos compreender a distância, assim

como Georges Didi-Huberman (2010) a entende. Como uma linha que inscreve dois pontos:

o próximo e o afastado, ou seja, a polaridade em uma palavra. Essa imagem de uma linha

que inscreve a polaridade, e não de oposição, condiz com a relação de semelhança entre fatos

da minha trajetória escolar e o atual trabalho.

O Festival de Teatro na Escola4, por exemplo, constituiu-se como acontecimento

decisivo, pois proporcionou o envolvimento de jovens estudantes, de 14 a 16 anos, em um

4 O Festival de Teatro na Escola é um projeto desenvolvido pela Fundação Athos Bulcão com escolas públicas

do Distrito Federal desde 2000. Nele professor e estudantes se envolvem em um processo de montagem cênica,

estes como atores e/ou técnicos e aquele como diretor/encenador. O resultado é apresentado em um teatro

profissional, e os grupos participantes têm a oportunidade de assistir aos trabalhos produzidos por outras

escolas naquela edição.

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universo estético completamente distinto do que tínhamos acesso até então. A repercussão

se inscreve em questões muito mais amplas, contudo, para exemplificar tomemos o fato que,

de um grupo de aproximadamente doze pessoas, que participavam do Festival, quatro

decidiram ter a arte como forma de sustento. Estas se formaram e atuam profissionalmente

na área. E isso se deu também pelo completo envolvimento do professor de Artes Cênicas,

que à época manteve o grupo de teatro com estes estudantes para além do Festival. Ter

vivenciado o potencial transformador desse tipo de ação justificou a escolha de escolas

públicas de periferia para a realização do Projeto Mediato, e de forma mais abrangente,

influenciou na apetência e na escolha do tema para esta pesquisa.

Essas vivências – desde 2002 como estudante que se beneficia dos projetos de arte-

educação, passando pela monografia sobre mediação e teatro, até minha prática como

mediadora, supervisora e coordenadora em Programas Educativos – formaram o terreno

necessário para a criação do Mediato Formação de Espectadores, que será detalhado no

primeiro capítulo. Assim, estimulada com os convites para coordenar o serviço de mediação

em galerias e museus em Brasília escrevi o que seria posteriormente o Mediato. Durante sua

idealização busquei editais de financiamento público e para minha surpresa houve em 2013

uma modalidade chamada “Projeto Educativo para Teatro (formação de plateia)” na seleção

pública do Fundo de Apoio à Cultura da Secretaria de Estado de Cultura do Distrito Federal

FAC/SeCult-DF. Este edital, financiou integralmente o Mediato em 2014.

Para finalizar a trajetória que me levou a esta escrita explicito a mudança conceitual

das interrogações que me acompanharam. Uma inquietação, no início da minha caminhada

com o CCBB (2007), era se a recepção poderia ser mediada para além da informação. Minha

mediação era extremamente informativa e tendenciosa. Cheguei, certa vez, a induzir

visitantes a verem um jacaré em uma escultura, que nem figurativa era. Problema este

contornado graças a amigos sensíveis, como o artista Fábio Baroli – colega de trabalho na

ocasião – que me alertou quanto ao direcionamento do olhar. Durante a monografia em 2010,

pressupondo afirmativa a questão anterior, a pergunta mudou para como a recepção pode ser

mediada com o teatro, uma arte efêmera? Posteriormente entre a concepção do Projeto

Mediato (2013) e a atual análise (2015) passei a refletir como, quando e onde a mediação

pode acontecer para que provoque uma aproximação (implicando em alteridade) e não uma

reação contrária – no sentido de não pertencimento, desinteresse e até mesmo aversão ao que

está sendo proposto e ao próprio teatro – com vistas à apropriação crítica e sensível da obra.

Bem como de que maneira pode acontecer a dilatação dos sentidos para a experiência estética

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e posteriormente a dilatação desta para a invenção de sentidos. Esta última questão é mais

recente e vem sendo investigada nesta dissertação, que foi organizada em dois momentos.

No primeiro, apresento o objeto de investigação (Projeto Mediato) e exponho quatro

trabalhos de mediação em teatro de outros pesquisadores com vistas a situar o lugar de fala

desta pesquisa. No segundo desenvolvo uma ideia de mediação e analiso o Projeto. Vale

ressaltar que a primeira pessoa do singular será assumida durante toda dissertação. Usarei a

terceira pessoa do plural exclusivamente para falar de ações realizadas pela equipe educativa

durante Mediato, ou ainda, no CCBB. Detalho a seguir o que compõe cada momento com

seu respectivo amparo teórico.

No capítulo 1 exponho o Projeto Mediato delineando sua concepção e suas partes

constituintes: treinamento de equipe; caderno de mediação (material didático concebido para

os participantes); espetáculo; e parceria com a educação formal – momento em que analiso

a relação com a escola e com o corpo docente. Antes disso, uma breve introdução localiza o

termo mediação a partir das pesquisadoras Ana Mae Barbosa (1994; 2009) e Rejane

Coutinho (2009) nas Artes Visuais, bem como dos pesquisadores Flávio Desgranges (2002;

2008; 2010; 2011) e Maria Lúcia de Souza Barros Pupo (2011) nas Artes Cênicas.

De forma complementar aponto para outros caminhos, isto é, trabalhos em mediação,

com o intuito de situar o Mediato como possibilidade e localizar meu lugar de narrativa.

Trata-se de uma abertura do olhar para maneiras distintas de compreender e praticar a

mediação. Para este momento elenquei quatro trabalhos com seus respectivos pesquisadores:

Projeto Formação de Público em São Paulo, por Flávio Desgranges (2008; 2011); projeto

Cuida Bem de Mim na Bahia, por Ney Wendell Oliveira (2011); SESC Arte-educação:

Transformando Plateias no Distrito Federal, por Martha Moraes (2014); e Glauber de Abreu

(2015), mais como localização conceitual, com a questão da “contenção do abandono”,

abandono este que impossibilitaria a experiência estética.

No capítulo 2, analiso o Projeto Mediato paralelamente ao desenvolvimento de um

conceito de mediação. Vale ressaltar que a análise do registro audiovisual me levou à

elaboração do conceito ao mesmo tempo que este guiou a análise. Nesta apreciação a

mediação será compreendida como dilatação. Dilatação dos sentidos para a experiência

estética (antes do contato com a obra); e a dilatação da própria experiência (após). A atenção

incide sobre esta segunda tendo em vista as especificidades do Projeto e do enfoque dado

durante sua análise.

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Para desenvolver essa ideia de mediação me aproprio da experiência do olhar em

Georges Didi-Huberman (2010, p.29), na qual o “que vemos só vale – só vive – em nossos

olhos pelo que nos olha”. O autor propõe uma dialética do olhar que inscreve o duplo

movimento do que vemos e do que nos olha. Aproprio-me ainda da noção de experiência de

Jorge Larrosa Bondía (2015) sendo ela o que nos acontece, o que nos passa e não o que

passa, o que simplesmente acontece. Quanto à estética adoto a ideia presente em Jacques

Rancière (2009a; 2009b; 2012), para quem estética é uma maneira de organizar o sensível,

assim como o é a política. Trata-se de “um modo de articulação entre maneiras de fazer,

formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de pensabilidade de suas relações,

implicando uma determinada ideia de efetividade do pensamento.” (2009b, p. 13).

É a partir desses conceitos que poderemos compreender a mediação como

experiência estética, e igualmente, uma espécie de dilatação da experiência. A ideia de

dilatação surgiu a partir da análise do registro audiovisual do Projeto Mediato, associada à

leitura dos teóricos e principalmente da minha memória como mediadora em galerias de arte.

A dilatação vai se configurar a partir de algumas possiblidades, dentre as quais elenco: a

produção de narrativa; o estreitamento das relações entre real e ficcional; e a produção de

semelhança. Para discorrer sobre essas possibilidades tomo por base o conceito de narrador

desenvolvido por Walter Benjamin (1994) e a personagem G.H. de Clarice Lispector (1995);

assim como o conceito de ficção presente em Rancière (2012) e Biange Cabral (2012).

Este mesmo capítulo surgiu de um exercício de produção de semelhança entre a

mediação, a narrativa da personagem G.H. de Lispector (1995), e a experiência do olhar em

Didi-Huberman (2010). Com essa aproximação pretendo explicitar a importância da criação

de narrativas dentro dos processos de mediação, assim como aproximar a própria mediação

do conceito de narrativa presente em Benjamin (1994). Pretendo também, a partir de

semelhanças encontradas entre a personagem G.H. e os escritos de Didi-Huberman sobre a

relação entre olhante-olhado, desfiar um entendimento para o que se chama experiência

estética na arte, por meio de uma reflexão sobre a posição do sujeito na experiência. Por fim,

este lugar encontrado para o sujeito da experiência será também o lugar da mediação.

O último momento do capítulo 2 demonstra como o Projeto Mediato não contemplou

totalmente minha atual ideia de mediação. Isto é, identifiquei ao longo da análise que a noção

de mediação defendida nesta pesquisa não foi a mesma que conseguimos realizar na prática.

Pondero sobre o lugar da fala na mediação, refletindo sobre os limites de um direcionamento

ideológico, bem como aponto para certo distanciamento dos propósitos da mediação, o que

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possivelmente impossibilitou a experiência e a dilatação. Para auxiliar a análise lanço mão

de uma crítica à arte feita por Rancière (2012): quando a política está no conteúdo e não na

estética; e a transponho para as ações mediadoras. Retomo Bondía (2015) quando fala do

par informação-opinião como responsáveis pelo declínio da experiência. E tomo parte dos

escritos de Virgínia Kastrup (2004; 2005) com seu conceito de aprendizagem inventiva.

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1 SITUANDO O OBJETO DE PESQUISA – PROJETO MEDIATO E OUTROS

CAMINHOS

Conforme dito apresentarei neste capítulo o objeto de pesquisa – o Projeto Mediato

– analisando as etapas que antecederam as mediações propriamente ditas: seleção de equipe

e treinamento (que chamarei aqui de aquecimento); parceria com as escolas e encontro com

professores; concepção do caderno de mediação; e espetáculo. Para isso farei uso do registro

audiovisual do Projeto (2014) e de entrevistas realizadas em 2015 com estudantes e

professores (as) participantes das ações. Em seguida, apontarei para outros caminhos, isto é,

projetos e pesquisas em mediação, com vistas a situar a atual escrita. Elencarei distintos

trabalhos que mantêm de semelhança entre si a mediação e o teatro para apontar o Mediato

como possibilidade. Dessa forma, não se trata de um levantamento catalogal; mas de uma

abertura do olhar para outras formas de compreender e praticar a mediação.

Antes de adentrarmos no Mediato e em outros trabalhos introduzo o termo mediação

e falo brevemente de seu contexto de surgimento. Para tanto, aproprio-me da contribuição

das pesquisadoras Ana Mae Barbosa (1994; 2009) e Rejane Coutinho (2009) nas Artes

Visuais, bem como dos pesquisadores Flávio Desgranges (2002; 2008; 2010; 2011) e Maria

Lúcia de Souza Barros Pupo (2011) nas Artes Cênicas.

Segundo a principal referência de mediação em teatro no Brasil, Flávio Desgranges

(2011), as pesquisas a respeito da importância da formação de espectadores vêm tomando

corpo nos últimos anos em todo o mundo. Para o autor há dois fatores que sustentam essas

investigações e apontam para a importância das práticas pedagógicas: primeiramente “a

relevância da educação dos indivíduos tendo em vista uma sociedade espetacularizada, que

solicita um olhar atento e aguçado para enfrentar a enxurrada de signos aos quais estamos

expostos diariamente”. Em segundo lugar, mas não menos importante, “a necessária

participação do público no próprio desenvolvimento da arte teatral, já que não se pode

conceber que esta arte avance e trave um diálogo produtivo com a sociedade sem a

participação dos espectadores, integrantes fundamentais do evento teatral”

(DESGRANGES, 2011, p. 154).

A mediação consiste em ações pedagógicas (incluindo recursos pedagógicos) que

objetivam criar um ambiente fértil para as possíveis relações entre arte e público. Pretende

em médio prazo gerar o desejo pelo retorno, para que o espectador, a partir de uma

experiência com a obra, sinta-se estimulado a buscar outras experiências estéticas. E aqui só

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se pode falar de possibilidade, tendo em vista dois fatores: a não garantia de efetivar uma

experiência e sua incomensurabilidade. A mediação é comumente direcionada ao público

pouco familiarizado com o meio artístico, seja ele da Dança, das Artes Visuais, das Artes

Cênicas, dentre outros. Por isso, os estudantes (crianças, jovens e adultos) formam o público

mais frequente de projetos de mediação.

Para Desgranges (2010, p. 79) as ações mediadoras podem estimular o espectador a

criar seu percurso em diálogo com a obra formulando suas próprias perguntas a ela, tais

como: “De que problemas trata esse espetáculo? Que símbolos e signos o artista utiliza para

abordá-los? Eu já vi algo parecido? De que outras maneiras essa ideia poderia ser encenada?

Como eu faria? De que modo isso se relaciona com minha vida?”. Ou seja, ações são

desenvolvidas com vistas a estimular a autonomia do espectador no caminho ao encontro da

obra e de si próprio. Além disso, almeja-se que a complexidade dos códigos estéticos de uma

obra (sobretudo da arte contemporânea) possa gerar mais prazer e contribuir para um

mergulho sensível, autônomo e crítico, ao invés de provocar distanciamento, levando o

espectador a perder o interesse pelo que está vendo; e de forma mais trágica desejar não ter

outra “experiência” como aquela. Destaco o termo justamente por conotar neste caso uma

anti-experiência.

Ao mesmo tempo, a mediação pode desenvolver a sensibilidade para captar e

perceber as nuanças qualitativas das coisas ao nosso redor. Ou seja, sensibilizando não

apenas para ver arte, mas também para ver o mundo. Portanto, em um sentido mais amplo,

atividades pedagógicas associadas à experiência estética ambicionam favorecer o processo

de construção crítica da interpretação de imagens, que extrapolam o ambiente artístico, ao

possibilitar ferramentas e conceitos de interpretação que se ampliem para o cotidiano social

do espectador. Dessa forma, pensar em mediação é pensar em educação dos sentidos para a

vida, é instigar o educando a vislumbrar a multiplicidade dos modos de leitura das coisas do

mundo. Cabe apontar que os termos interpretação e leitura não se restringem ao desvendar

códigos pré estabelecidos, diz respeito mais ao transitar por camadas diferentes que são

inventadas e recriadas incessantemente. Conforme veremos adiante, a interpretação está

mais próxima da alegoria. Como um outro dizer, a alegoria se coloca na essencial abertura,

sempre em processo e evidenciando sua precariedade, ela nasce e renasce somente dessa

fuga perpétua de um sentido último (GAGNEBIN, 2013).

Pensar práticas pedagógicas de mediação exige também o estabelecimento de

relações horizontais durante suas investigações. Rancière (2012, p. 14), com a lógica da

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emancipação intelectual – conceito que ele recupera do pedagogo francês Joseph Jacotot

(1770-1840) – proclama a igualdade das inteligências, o que “não significa igual valor de

todas as manifestações da inteligência, mas igualdade em si da inteligência em todas as suas

manifestações”. A igualdade reside justamente na existência de inteligência. Sua

manifestação, contudo, se dá de forma múltipla. Em um outro trecho podemos compreender

melhor essa lógica quando o autor a transpõe para a relação com o espectador.

[O poder comum aos espectadores] é o poder que cada um tem de traduzir à sua

maneira o que percebe, de relacionar isso com a aventura intelectual singular que

o torna semelhante a qualquer outro, à medida que essa aventura não se assemelha

a nenhuma outra. Esse poder comum da igualdade das inteligências liga

indivíduos, faz que eles intercambiem suas aventuras intelectuais, à medida que

os mantém separados uns dos outros, igualmente capazes de utilizar o poder de

todos para traçar seu caminho próprio (RANCIÈRE, 2012, p. 20-21).

Há uma lógica que deve ser evitada na mediação: a da transmissão de um saber ou

de uma capacidade. Para Rancière (2012, p. 18) nessa lógica “o que o aluno deve aprender

é aquilo que o mestre o faz aprender. O que o espectador deve ver é aquilo que o diretor o

faz ver”. E diz ainda, “a essa identidade de causa e efeito, que está no cerne da lógica

embrutecedora, a emancipação opõe sua dissociação. É o sentido do paradoxo do mestre

ignorante: o aluno aprende do mestre algo que o mestre não sabe.” Segundo o autor, na lógica

da emancipação há sempre uma terceira coisa estranha a ambos, cujo sentido nenhum deles

possui – e não um saber, sabido pelo mestre e ignorado pelo ignorante, a ser transmitido.

Essa relação de causa e efeito baseia-se em um princípio desigualitário para o filósofo

porque está calcada “no privilégio que o mestre se outorga, no conhecimento da ‘boa’

distância e no meio de eliminá-la” (RANCIÈRE, 2012, p. 18). Mas

A distância que o ignorante precisa transpor não é o abismo entre a sua ignorância

e o saber do mestre. É simplesmente o caminho que vai daquilo que ele já sabe

àquilo que ele ainda ignora, mas pode aprender como aprendeu o resto, que pode

aprender não para ocupar a posição do intelectual, mas para praticar melhor a arte

de traduzir, de pôr suas experiências em palavras e suas palavras à prova, de

traduzir suas aventuras intelectuais para uso dos outros e de contratraduzir as

traduções que eles lhe apresentam de suas próprias aventuras (RANCIÈRE, 2012,

p. 15).

Dessa forma, a mediação não está calcada em uma lógica embrutecedora, de causa e

efeito, de algo a ser transmitido, na qual o espectador deve compreender o que supostamente

o/a artista diz. Mas em ações que pressuponham a emancipação, cuja lógica reside na

existência de uma terceira coisa estranha a mediadores e espectadores, implicando em

relações horizontais. A mediação é o ambiente favorável para que cada espectador exerça de

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forma própria um poder, que é comum por ser possível a todos, traduzindo a sua maneira o

que percebe – seja com fala, gestos, escrita, imagens.

Em última análise “é considerado procedimento de mediação toda e qualquer ação

que se interponha, situando-se no espaço existente entre o palco e a plateia, buscando

possibilitar ou qualificar a relação do espectador com a obra teatral” (DESGRANGES, 2010,

p. 65). Neste caso, para o autor a mediação envolve tanto o “acesso físico” do público às

salas de espetáculo (transporte, ingresso, etc.) quanto as atividades pedagógicas com vistas

a certa apropriação da obra por parte do espectador, isto é, o “acesso linguístico”.

Cabe aqui dois apontamentos: no caso desta pesquisa a mediação será compreendida

exclusivamente como o segundo tipo de acesso; e neste trabalho a mediação será

conceitualmente localizada como dilatação, podendo acontecer antes do contato com o

espetáculo – dilatando os sentidos para a experiência, como uma espécie de sensibilização

prévia – e após – dilatando a própria experiência estética.

Desgranges (2008, p. 76) parafraseando Roger Deldime, define mediação como

“qualquer ação que ocupe o que por alguns autores é chamado de terceiro espaço, aquele

existente entre a produção e a recepção”. Glauber de Abreu (2015, p. 62), por sua vez,

compreende esse terceiro espaço como a condição “segundo a qual a instância da mediação

não está contida nem na obra nem no público, mas contém os dois”. E acrescenta:

Se ela [a mediação] é um terceiro espaço, divide com a arte seus anseios – e

também o faz com o público. Não há necessidade; há aproximações possíveis. A

mediação não é uma necessidade; é uma possibilidade. A mediação não encerra;

ela abre. Fechá-la como necessidade é reduzir o próprio valor da arte e de sua

capacidade de gerar experiência, singular, subjetiva, reflexiva. (ABREU, 2015, p.

132)

Penso com Abreu que em mediação não falamos em “tem que haver”, mas sim, em

“pode haver”. O autor explicita o entendimento acima em decorrência de um episódio em

que foi surpreendido com o diretor de um espetáculo afirmando “minha peça não precisa de

mediação”. Tanto nas galerias de arte quanto no campo das artes da cena ainda nos

deparamos com curadores e diretores que prescindem do nosso trabalho justamente por

desconhecê-lo, compreendendo-o equivocadamente como ferramenta explicativa – o que a

aproximaria da lógica embrutecedora e não da emancipação intelectual proposta por

Rancière (2012).

Em que contexto surge a mediação?

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Rejane Coutinho (2009) afirma que na década de 1950 os grandes museus possuíam

em seus setores educativos atividades de ateliê oferecidas ao público, mas não havia

necessariamente relação com a exposição, nem com as visitas. Participava dessas ações um

público iniciado, que tinha interesse direcionado para a arte. A autora diz que o tipo de visita

(guiada) que tradicionalmente acontecia nesses espaços era pautada em um modelo que

pressupõe um discurso unilateral e legitimador que afirma o lugar da obra e do artista no

mundo da arte e “exclui desse círculo fechado o sujeito que busca se aproximar, sobretudo

o leigo, pois é um discurso pautado nos códigos instituídos do mundo da arte, em especial o

código da tradição erudita que pressupõe uma iniciação” (COUTINHO, 2009, p. 172).

Embora nos anos 1950 já houvesse iniciativas, apenas na década de 1990 o museu

passa a assumir e explicitar o seu papel educativo e a sua dimensão pública (BARBOSA;

COUTINHO, 2009). Segundo Ana Mae Barbosa (2009) a atenção dada aos setores

educativos de museus aumentou consideravelmente nos anos 90 em função de um maior

desenvolvimento da consciência social. Os museus perceberam que as escolas são o público

mais numeroso e, portanto, inflam as estatísticas, mostrando grande número de visitantes

aos patrocinadores. A autora aponta ainda, de forma crítica, que em alguns casos o setor

educativo acaba funcionando exclusivamente como animação cultural, com jogos

superficiais, que não tem o objetivo de desenvolver a percepção, mas apenas entreter. O que

ela chama de “lantejoulas das elites para o povo” (BARBOSA, 2009, p. 18).

No mesmo viés Coutinho (2009) confirma que na década 1990 os museus e centros

culturais passam a ter uma visitação maior o que demanda pensar na recepção desse grande

público (heterogêneo) que passa a frequentar esses espaços. Isso coincide com as

megaexposições e com o marketing cultural das instituições que buscam gerar número de

público tendo “como bandeira a democratização do acesso aos bens culturais”. A

pesquisadora diz ainda que “toda essa efervescência cultural produz modificações nos

espaços de circulação e recepção, assim como nos espaços de produção da arte”

(COUTINHO, 2009, p. 172-173).

A Abordagem Triangular – que consiste basicamente em conciliar o apreciar, o fazer

e o contextualizar em arte – elaborada por Ana Mae Barbosa entre 1987 e 1993 no Museu

da Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), vem também responder

às inquietações que surgiram nessa época (BARBOSA, 1994; COUTINHO, 2009). A partir

de então passa-se a pensar a educação em museus para além do ateliê e/ou das visitas

guiadas, que muitas vezes reproduziam o discurso de historiadores, curadores e críticos,

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evidenciando o museu como espaço de experiência e educação estéticas. Segundo Coutinho

(2009, p. 173) de proposta voltada exclusivamente para o desenvolvimento de habilidades

artísticas, amplia-se “para um ensino articulado em que a arte como conhecimento, como

expressão e cultura deve ser considerada em seu contexto de origem e de recepção com suas

vinculações sociais, econômicas e políticas.”

Ambas autoras concordam ainda que no Brasil a questão da mediação cultural

recentemente vem sendo alvo de experimentações e pesquisas em consonância com as

transformações contemporâneas da arte e da arte-educação. Eu estenderia essa afirmação

para as Artes Cênicas, pois é perceptível que ações mediadoras voltadas às artes do corpo e

do espetáculo vêm se difundindo e ampliando suas possibilidades e modalidades. Flávio

Desgranges em seu livro A Pedagogia do Espectador (2010, p. 45) afirma que

Desde os anos 1960 até meados de 1970, artistas e educadores, movidos pela ideia

de democratização cultural, estruturaram variadas práticas destinadas à ampliação

social e geográfica do público de teatro, quanto à difusão da experiência artística

em geral. Essas iniciativas se efetivaram com grande vitalidade em países

europeus, como França, Itália, Bélgica e Portugal; realizaram-se importantes

movimentos também em outros países, como Estados Unidos e, também, Brasil.

Adiante o autor diz que nos anos 70 e 80 já havia, de forma esporádica, práticas de

animação teatral em escolas do Brasil. O conceito de “animação teatral” nasce na França,

segundo o pesquisador, e visa a formação de crianças e jovens espectadores. Cabe diferenciar

que o termo “animação cultural” utilizado por Ana Mae Barbosa anteriormente não tem

relação com a animação cultural ou teatral francesa. A primeira se refere a uma expressão

pejorativa para designar atividades meramente de entretenimento, que tomam o lúdico como

fim; próximas a animação de festas, disfarçadas de ações pedagógicas e que muitos centros

culturais adotam como marketing. A segunda diz respeito às mais variadas ações educativas

com o intuito de mediar a relação entre as Artes Cênicas e os espectadores, sobretudo o

público infanto-juvenil.

Nos países citados acima a tendência foi de profissionalização das companhias de

teatro e subsequentemente de uma “organização duradoura de projetos de formação,

substituindo iniciativas sazonais por uma educação permanente de espectadores”

(DESGRANGES, 2010, p. 64). De forma complementar, no Brasil, houve regionalmente

grupos de teatro realizando ações permanentes – não necessariamente mediações – mas um

trabalho que foi efetivamente a condução para uma formação de plateia própria. O Galpão

Cine Horto é um exemplo. Trata-se de um centro cultural criado em 1998 pelo grupo de

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teatro Galpão em Belo Horizonte-MG e consiste em “um espaço aberto à comunidade,

comprometido com a pesquisa, a formação, o fomento e o estímulo à criação em teatro”.5 O

centro agrega em sua programação ações voltadas a artistas e ao público em geral, sobretudo

aos professores de teatro.

Pensando uma perspectiva pedagógica na relação espectador e contemporaneidade

Desgranges (2002, p. 223) diz que a arte moderna e mais explicitamente a arte

contemporânea exige do espectador uma coautoria.

Os artistas modernos promovem, assim, a pluralidade interpretativa, construindo

uma obra de arte aberta, elaborada tendo em vista a necessária participação do

espectador, instaurando uma forma artística em que o espectador se tornaria co-

autor da obra. [...] A arte contemporânea, por sua vez, [...] vai levar ao extremo

esta proposição de autoria feita ao espectador, de maneira que não só a significação

fica ao seu encargo, mas, em certo sentido, a própria ‘escritura’ artística.

Certamente os penetráveis de Hélio Oiticica da década de 60 e o Teatro Oficina com

José Celso Martinez Correa na mesma época, por exemplo, nos falam de uma outra relação

arte-espectador, e, a meu ver, encarnam certa invenção de sentidos por parte dos

espectadores, explicitando sua participação no fazer compartilhado da obra.

O que Desgranges (2002, p. 227) levanta é o caráter pedagógico do próprio teatro

contemporâneo considerando seu valor performativo. Pois ao propor ao espectador que

invente seus sentidos a partir do que lhe é proposto – nas palavras do autor como “contra-

lances inesperados” e “jogadas inventivas” – o teatro já estaria de certa forma exercendo um

papel pedagógico. Contudo, essa perspectiva – de produções modernas e contemporâneas

pensadas pela via da recepção e da pedagogia – pode versar sobre o contexto de ampliação

de ações mediadoras voltadas para as Artes Cênicas. Ou seja, é possível conceber que a

mediação tenha se intensificado em função de uma demanda dessa outra relação com a arte.

Maria Lúcia Pupo (2011) considera que projetos de ação cultural e artística em

campos que variam de casas de cultura até prisões, que abraçam iniciativas de ação no campo

do Teatro, da Dança, do Circo e da Performance, apresentam de maneira recorrente a

mediação como termo chave. E afirma, em consonância com as pesquisadoras das Artes

Visuais acima mencionadas, que o surgimento da mediação tem relação direta com o

movimento de democratização da cultural. “Embora a noção de mediação cultural ou

artística certamente apresente superposições com a preocupação educacional, o termo

5 Disponível em <http://www.grupogalpao.com.br/?page_id=23> Acesso em 02 de março de 2016. Mais

informações no site oficial < http://galpaocinehorto.com.br/>

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emerge dentro de uma outra filiação. Ele designa o modus operandi do ideário da chamada

democratização cultural” (PUPO, 2011, p. 114).

Tendo em vista que não interessa a esta pesquisa encontrar a gênese da mediação nas

Artes Cênicas nos basta aqui esta breve localização contextual a respeito do campo da

recepção, tanto no museu quanto no teatro, cujas conjunturas podem ter contribuído para o

surgimento de ações mediadoras. Assim, seja como inspiração de um modelo europeu, seja

como uma apropriação das Artes Visuais (como foi o meu caso), ou ainda, por uma legítima

necessidade de estreitar os laços entre obra cênica e espectadores, procedimentos

pedagógicos com vistas a mediar a relação espectador-obra estavam sendo criados,

apropriados, testados em distintos Estados brasileiros há algumas décadas. Por conseguinte,

hoje temos um crescente de projetos e pesquisas na área (apresentarei quatro delas adiante)

que legitimam cada vez mais a relevância dessa prática.6

1.1 Projeto Mediato7

O Projeto Mediato – materialização de um desejo que nasceu durante o trabalho

realizado no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Brasília-DF com o Programa

Educativo de Artes Visuais – foi inspirado em três modelos. Primeiramente no Programa

Educativo do CCBB Brasília idealizado e desenvolvido por Renata Azambuja e Marília

Panitz e posteriormente por esta, juntamente com Carlos Silva. Tal inspiração se deu mais

em um plano ideológico e menos no formato: os três professores/coordenadores defendiam

uma mediação provocativa, desenvolvida em sua maioria por questionamentos que

instigassem o olhar e levassem o público a um processo de reflexão e construção de sentido

sobre o que estava sendo observado.

Havia um distanciamento explícito da clássica figura do guia de museu, pois este

concentra seu esforço no ato informativo, enquanto o mediador utiliza as informações como

parte de um processo educativo construído em conjunto com o público, incentivando-o a

recriar a obra. Como afirma John Dewey (2010, p. 137) para que o objeto seja compreendido

como obra de arte é necessário um ato de criação por parte do público, pois o “artista

escolheu, simplificou, esclareceu, abreviou e condensou a obra de acordo com seu interesse.

6 É importante esclarecer que aponto o contexto de surgimento da figura do mediador exclusivamente no Brasil

e de acordo com pesquisadores brasileiros. Para ampliar o entendimento sugiro o próprio Flávio Desgranges

com seus três livros e a autora Maria Lúcia de Souza Barros Pupo com os artigos “Para alimentar o desejo de

teatro” e “Mediação artística, uma tessitura em processo” (devidamente referenciados ao final deste trabalho). 7 O cronograma completo do Projeto, com detalhamento das etapas, pode ser verificado no apêndice A.

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Aquele que olha deve passar por essas operações, de acordo com seu ponto de vista e seu

interesse.” E apesar das investidas da instituição afim de um viés de animação cultural, o

Programa Educativo, sob a coordenação dos referidos professores manteve seu ideal de

mediação em harmonia com os princípios pedagógicos defendidos desde o início.

Como forma de alimentar esse perfil de mediação os coordenadores mantiveram um

treinamento precedente à mostra expositiva que contava com a leitura de textos de filósofos,

teóricos, educadores, artistas e curadores que tivessem relação com a exposição, além de um

palestrante convidado. Existia ainda, sempre que as circunstâncias permitiam, um encontro

com o(s) artista(s) e/ou curador da mostra. Vale ressaltar que a seleção da equipe de

mediadores levava em consideração a variedade em áreas de conhecimento: havia

mediadores estudantes e formados em cursos de Artes Cênicas, Artes Visuais, História,

Museologia, Antropologia, Sociologia, Moda, dentre outros. Isso proporcionava ao

treinamento um ambiente extremamente fértil em troca de conhecimentos.

O treinamento culminava na elaboração dos “percursos de mediação”, que

consistiam na escolha de algumas obras e no desenvolvimento de estratégias para visita, bem

como de uma possibilidade de oficina a ser realizada antes, durante ou ao final da mediação.

Em outras palavras, era o momento de pensar a prática: o que e como seria feito. Muitas

vezes o percurso era elaborado a partir de um tema (presente na exposição) que servia de fio

condutor, criando uma trama entre as obras selecionadas para a visita. Cabe apontar que o

formato do Programa Educativo até aqui explicitado, não é exclusividade da região ou da

referida Instituição Cultural, trata-se da construção de alguns anos de pesquisa e trabalho,

que as Artes Visuais têm realizado em museus e galerias de arte no Brasil, inclusive em

diálogo com outros países.

Além das questões ideológicas, do treinamento e dos percursos (que chamo aqui de

planos de mediação), o material educativo desenvolvido no CCBB Brasília foi mais um

objeto de admiração e apropriação. Ele deu origem ao caderno de mediação do Projeto

Mediato que manteve uma lógica e estrutura semelhantes: material impresso contendo a(s)

obra(s) de arte e provocações que levassem o leitor a refletir sobre ela(s) em relação com seu

cotidiano.

O segundo projeto inspirador, mais na forma que no plano ideológico, foi “Na trilha

dos azulejos” desenvolvido pela Tríade - Patrimônio, Turismo e Educação em parceria com

a Fundação Athos Bulcão. A ação acontece em três momentos, em dias distintos, nomeados

de aquecimento, aula passeio e oficina de criação. O primeiro e o terceiro momento

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acontecem dentro da escola, em sala de aula, enquanto o segundo se constitui como uma

trilha por algumas obras do artista Athos Bulcão integradas em espaços arquitetônicos de

Brasília. A possibilidade de dilatar o tempo da vivência em três dias – diferente do CCBB

que permitia um encontro de duas horas no máximo (desde a recepção até a despedida da

turma) – foi o objeto de interesse, do qual me apropriei.

Ao mesmo tempo, verifiquei a partir de Desgranges (2010; 2011) que o formato de

mediação antes, durante e depois do espetáculo não era algo novo, mas efetivamente

experimentado no Brasil desde a década passada com o Projeto Formação de Público (em

São Paulo), e fora do país há muito mais tempo. Durante esta pesquisa descobri, ainda, que

desde 1996 na Bahia esse formato foi utilizado, também com escolas, no projeto Cuida Bem

de Mim. Os referidos trabalhos serão detalhados ao final deste capítulo.

A terceira, porém, não a última inspiração se deu com o convite do coordenador

pedagógico Glauber Gonçalves de Abreu para participar da ação formativa do Festival de

Teatro Brasileiro (FTB) em 2012, que trouxe a cena gaúcha para o Distrito Federal.

Idealizado pelo produtor do festival Sérgio Bacelar, o projeto educativo consistia em três

momentos: pré-espetáculo, espetáculo e pós-espetáculo; e se configurou como minha

primeira incursão no universo da prática em mediação para as Artes Cênicas propriamente

ditas. Sobretudo com a almejada possibilidade de ampliar a vivência para o âmbito escolar

durante três dias.

O FTB foi decisivo na constituição do Mediato principalmente na inserção de um

momento exclusivo com o corpo docente da escola que antecedesse a mediação com os

estudantes. A necessidade do diálogo com os professores surgiu de uma observação feita

dentro das instituições escolares quanto ao envolvimento das mesmas no projeto FTB. Os

professores cediam suas aulas para uma atividade da qual não tinham conhecimento; acredito

que por falta de comunicação entre estes e a coordenação ou direção da escola (que havia

recebido o convite). Se os professores não tinham conhecimento sobre as atividades,

consequentemente os estudantes não apenas desconheciam como demonstravam

desinteresse. Alguns inclusive deixaram de ir à escola durante as atividades, o que pude

observar exclusivamente no noturno, na Educação de Jovens e Adultos (EJA).

O desconhecimento desse profissional prejudicou o andamento das atividades e

minou a possibilidade de repercussão, ou seja, de continuação após a saída dos mediadores.

O professor é uma figura chave para que a mediação aconteça. Se ele estiver comprometido

pode estimular a turma para receber o projeto; bem como dar continuidade dentro de sua

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respectiva matéria. Se a vivência no CCBB denunciava a necessidade de uma parceria com

os professores; no FTB houve a decisão de encontrá-los, apresentar-lhes a mediação e

convidá-los para caminhar em conjunto.

Assim, foi idealizado o Projeto Mediato, que estimava atender duas mil pessoas entre

estudantes e professores, de quatro escolas do Ensino Médio da Secretaria de Estado de

Educação do Distrito Federal, nas seguintes Regiões Administrativas: Ceilândia, São

Sebastião, Brazlândia e Gama. A escolha das regiões partiu dos critérios de localização, ou

melhor, distância física da capital e vulnerabilidade social de acordo com tabela

disponibilizada em 2013 pelo Fundo de Apoio à Cultura da Secretaria de Estado de Cultura

do Distrito Federal (FAC-SeCult), órgão financiador do Projeto. Cabe reiterar que o fato de

haver uma seleção pública, cujo objeto abrangia especificamente a mediação em Artes

Cênicas, é um grande avanço nas políticas públicas do DF.

O plano de trabalho compreendia: realizar nove apresentações do espetáculo Da

janela (que será descrito adiante) nas regiões escolhidas (oito no período diurno e uma no

noturno), seguidas de bate-papo com artistas; desenvolver as mediações pré e pós-espetáculo

com as turmas selecionadas; promover encontros com o corpo docente das escolas que

acolheriam o Mediato; confeccionar e distribuir para os participantes dois mil cadernos de

mediação; e manter rede social (Facebook e blog) ativa como ferramenta de divulgação e

diálogo com os participantes.

A contrapartida social (exigência para o financiamento público) consistia em realizar

oficina básica de artes cênicas, de aproximadamente doze horas, em três das quatro escolas

– o que se deu por meio de inscrição para os estudantes interessados, no contra turno escolar.

Bem como disponibilizar ingresso e transporte para levar uma turma de escola pública (não

participante da mediação) ao teatro. As atividades foram realizadas conforme planejado. Sua

eficácia, contudo, vem sendo observada por meio desta pesquisa.

Algumas perspectivas conceituais mudaram da escrita do Projeto em 2013 para sua

execução em 2014, e sobretudo durante a atual pesquisa. Inicialmente entendia por

“experiência estética” o contato dos estudantes e professores com a arte/manifestação

artística; e por “mediação”, o desenvolvimento de atividades pedagógicas e os

desdobramentos possíveis antes e a partir da experiência no intuito de explorar a relação

plateia-teatro. A fronteira que criava tal segmentação foi sendo diluída ao longo desta

pesquisa; o que será explorado no próximo capítulo. Atualmente compreendo esses dois

espaços imbricados, e a própria mediação como (dilatação da) experiência estética.

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O nome do Projeto “Mediato – Formação de Espectadores” também foi visto sob um

novo olhar. A expressão “formação de espectadores”, altamente questionável considerando

as noções que serão trabalhadas aqui, hoje é repensada e transposta à ideia de diálogo com

espectadores. A palavra “mediato”, ao contrário, sintetiza algo próprio à mediação: de ser

um intervalo necessário; de ser intermediária, que não se liga a determinada coisa senão por

intermédio de outra. Igualmente, o termo foi escolhido pela junção das palavras mediação e

ato, fazendo referência às manifestações cênicas.

Na sua idealização o Mediato se preocupou com o que Flávio Desgranges (2011, p.

159) chama de acesso físico do espectador ao teatro – “apresentações em localidades

periféricas e facilitação de transportes”, por exemplo – e o acesso linguístico que seria “o

estabelecimento de condições pedagógicas que estimulem o espectador a efetivar uma leitura

crítica, coerente e criativa da obra teatral”. Para o autor a mediação deve compreender

“atividades que despertem nos participantes o gosto pelo teatro, o desejo do gozo estético, a

vontade de conquistar o prazer da autonomia interpretativa em sua relação com o espetáculo”

(DESGRANGES, 2011, p. 159). E foi com esse entendimento de mediação que idealizei o

Projeto e concebemos (em equipe: coordenação, mediação e supervisão) as ações que seriam

realizadas pelas mediadoras dentro das escolas.

O espetáculo foi apresentado em um auditório ou mini teatro dentro das escolas em

três das quatro regiões. No Gama, exclusivamente, experimentei levar a peça para um teatro

profissional (o Teatro SESC Paulo Gracindo). Essa foi uma diferença radical por dois

motivos: primeiramente agregou qualidade ao espetáculo, com iluminação, acústica, dente

outras especificidades técnicas; e também permitiu que os estudantes conhecessem um

excelente teatro dentro da sua cidade. Para minha surpresa, escassas mãos se levantaram

quando os questionei se conheciam aquele lugar, que vale ressaltar, fica a cerca de dois

quilômetros da escola. Cabe dizer que esse formato não foi mantido nas demais regiões

porque o Projeto não previa verba para transporte e contratação de brigadistas (exigência dos

teatros). No Gama foi mobilizada uma parceria com a Administração Regional, mas pouco

antes do início das atividades, esta disse que não poderia ajudar. Logo, tendo em vista que a

ida ao teatro implicou em gasto extra, optei por concentrar todas as atividades dentro da

escola nas outras três regiões.

As mediações foram concebidas e realizadas da seguinte forma: uma aula dupla, ou

seja, dois horários de 50min, totalizando 1h40min, para as atividades pré-espetáculo; e o

mesmo tempo para o pós. A peça com duração de 50min e um bate-papo, com a atriz e o

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ator, de 30min. Dessa forma, tínhamos com uma turma cerca de 4h40min ao longo de três

dias, dentro de uma semana. Aqueles estudantes que se inscreveram na oficina oferecida em

horário contrário à aula, se envolveram por mais tempo. Em Brazlândia, contudo, a

sistemática se diferenciou porque apenas o professor de Artes Cênicas disponibilizou suas

aulas, que não eram duplas – os outros docentes se mostraram irredutíveis. Neste caso, o

Mediato se estendeu por duas semanas, proporcionando encontros menores por mais dias.

O pré-espetáculo é a dilatação dos sentidos para a experiência estética. Uma espécie

de sensibilização. Usando as palavras de Maria Beatriz de Medeiros (2005, p. 97) é um abrir

os poros, tornar mais vivo: “um sensibilizar para a aisthesis não instrui nem constrói, apenas

abre os poros comunicacionais do corpo do ser humano. Um sensibilizar para a aisthesis não

forma nem deforma, apenas torna o ser mais vivo, isto é, fluido para a contínua

transformação”. No Projeto era um momento de sensibilização, no qual as mediadoras

introduziam elementos do teatro entrando indiretamente na temática do espetáculo. Isto é,

exploravam o universo ficcional por meio de exercícios teatrais, com vistas a certa

aproximação dos estudantes à linguagem, aproveitando o espaço do jogo para margear

questões que seriam tratadas na peça.

Antes disso, as mediadoras apresentavam o Projeto e o trabalho da mediação,

dialogando com a turma para compreender o contexto no qual estavam inseridas. Por

exemplo, quando questionado sobre o que é mediação um estudante em Ceilândia-DF

respondeu: “ela tem que obrigatoriamente ser feita por uma pessoa, ou ela poderia ser feita

por uma música, por exemplo? Uma vez eu fui no teatro e não entendi nada, aí tinha uma

música, a letra. Aí eu comecei a entender a peça. Essa música poderia ser um meio de

mediação?”8 Com esta fala soubemos que aquele estudante já tinha contato com o teatro e

compreendia em parte qual seria a nossa função ali.

A resposta/pergunta do estudante denota conhecimento e interesse sobre a recepção

teatral. Ao mesmo tempo, a ideia de recepção como entendimento está presente. Entender a

peça, segundo o estudante, seria o ponto mais importante e o objetivo da mediação, neste

caso, feita por meio da música. Caberia descobrir com o estudante o que ele considera

entender um espetáculo. Mas a partir dos diálogos eu diria que o entendimento estaria

diretamente relacionado com o fato de o acontecimento ser significativo para ele. Ou seja, a

8 Os trechos de mediação foram extraídos do registro audiovisual do Projeto. Originais e transcrições parciais

disponíveis comigo.

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partir do momento que aquela obra passa a fazer sentido, encontrando um referencial interno

no espectador, ele se envolve e cria novos significados.

Cabe ainda fazer um adendo. Destaco a fala do estudante porque ela serviu como

uma mudança de paradigma nesta pesquisa. Antes desse episódio não acolhia a ideia de uma

mediação feita de outra forma que não fosse individualizada. Mas quando o estudante disse

que a letra de uma música do próprio espetáculo mediou sua percepção compreendi que as

margens do que podia ser a mediação estavam muito além do que eu poderia compreender.

Isso justifica, parcialmente, a necessidade de apresentar outros projetos que se utilizem das

ações mediadoras e pesquisas que versem sobre o tema, uma vez que o entendimento

presente nesta dissertação é um dentre tantos outros. E como veremos, um curto tempo com

a plateia antes ou após o espetáculo pode ser decisivamente potente, a depender de como é

utilizado.

O pós-espetáculo, por sua vez, consistia em: um diálogo sobre a obra a partir de

questionamentos semiestruturados, com a utilização do caderno de mediação impresso; bem

como uma produção poética realizada pelos estudantes (geralmente a partir da pergunta “o

que te incomoda?”); e por fim, um bate-papo sobre as produções. A sequência de atividades

tanto antes quanto depois do espetáculo variava, inserindo ou retirando ações, de acordo com

a turma atendida e com o objetivo das mediadoras. Essa mesma sequência foi previamente

concebida e testada durante o treinamento da equipe (o que será detalhado adiante)

culminando nos planos de mediação. Cabe dizer que as ações mediadoras não serão

detalhadas de forma sequencial, inclusive em função dessa variação; uma problemática ou

um tema será levantado dialogando com a análise das ações.

O formato da mediação em três dias distintos, não necessariamente consecutivos, é

interessante como um tempo de tomar fôlego para retomar as atividades, e como convite ao

amadurecimento das ideias. Não seria profícuo convergir, no mesmo dia, as mediações e o

espetáculo, pois se tornaria cansativo, provocando uma reação contrária à esperada. Para

muitos estudantes é o primeiro contato com o teatro; deve-se ter, portanto, o necessário

cuidado na organização das ações e no tempo dedicado a elas.

A distribuição do tempo em vários dias não garante, no entanto, a eficácia contra o

desestímulo. Na escola em que as ações duraram duas semanas, provocando em média 5

encontros por turma (contando com o espetáculo), observamos esse fôlego funcionando às

vezes de forma produtiva, às vezes como motivo de cansaço. Essa variante se dava em

função do envolvimento dos estudantes com as atividades propostas. Quando a mediação

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não se dispunha ao diálogo tomando a fala de forma exaustiva, por exemplo, ou demonstrava

desorganização e despreparo, ficava nítido o desestímulo: aqueles corpos nas cadeiras e os

celulares sacados explicitavam a indisposição inicial, ou pior, conquistada pela própria

mediação. Um projeto que promete realizar algo diverso da rotina escolar e faz, justamente

o inverso, reproduzindo os padrões, inclusive nas relações de hierarquia, não pode exigir que

os corpos estejam expostos e dispostos. Uma mediação assim se trai e trai também os

estudantes.

Um momento de nítido envolvimento, interesse e diversão foi o de prática corporal.

Motivo de surpresa, pois em determinado momento da concepção do Mediato pretendi

realizar oficinas voltadas às Artes Visuais, como produção de cartazes, por exemplo, ou à

produção literária, como poema, letra de música, etc., excluindo completamente a criação

cênica. Esse pensamento surgiu após conversa com uma integrante do Mediato a respeito

das complicações da inserção superficial e aleatória de jogos teatrais como prática de

mediação. Temi que o curto tempo, e mesmo certo despreparo, conduzisse a prática cênica

para um lugar irrefletido e ensimesmado, onde o jogo pelo jogo não fosse capaz de criar

sentido. Além disso, a produção plástica era um campo confortável, pois eu conhecia o

caminho e possíveis resultados. Temi ainda a não adesão dos estudantes a tais propostas.

Expus esses riscos no treinamento e lá optamos, como equipe, pela experimentação.

A oficina de cartazes9 inicialmente gerou resultados interessantes, estética e politicamente

falando. Mas, definitivamente, foi abandonada, pois os jogos e as construções de cena

ganharam os estudantes. E nisso investimos não apenas pelo explícito interesse do público,

mas pelo resultado que vimos surgir, revelador e de extrema sensibilidade. Do mesmo modo,

a prática cênica permitia aos estudantes a compreensão do trabalho do ator não

exclusivamente pela via do produto (o espetáculo), mas também por meio do processo, pois

os aproximava de um caminho semelhante ao percorrido pelo artista na construção de sua

obra.

Era interessante observar com a prática cênica como a disposição dos corpos no

espaço influenciava diretamente na disponibilidade (nos ânimos). Estudantes sentados em

suas cadeiras, dentro de suas salas de aula, com uma mediadora falando-lhes sobre a

importância de alguma coisa (contraditoriamente de uma abertura do olhar para o diferente,

para o outro); era completamente distinto de estudantes que eram convidados a expressar

9 Imagens da oficina de cartazes, bem como de outros momentos da mediação, podem ser vistas no apêndice

B.

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com todo o seu corpo o que lhes era proposto. Mesmo os que estavam sentados, observando

os fazedores e aguardando o momento de mostrar sua cena, transpareciam outro estado,

nitidamente diferente dos corpos-receptáculos de informações. Estes, pareciam esmorecidos,

largados nas cadeiras; e iam, à medida que o desinteresse aumentava, sacando seus celulares

e mergulhando nele o olhar, para raramente dele tirar. Inversamente, aqueles outros corpos,

os corpos-espectadores, prestavam atenção ao redor, tomavam parte; o olho e o corpo

olhavam a cena. E eram esses corpos que desejávamos para o espetáculo.

Coloco em evidência a seguir uma observação feita após a realização das atividades

nas quatro regiões. Na escola em que havia apenas aula de Artes Visuais (em Ceilândia-DF),

houve mais recepção das práticas corporais, um verdadeiro encantamento. A fala da

professora de Artes Visuais Verônica Oliveira da referida escola confirma: “[...] pelo fato de

eu não ser de cênicas fica a desejar essa parte. Então, já houve aquela aceitação maior quando

elas [as mediadoras] começaram com este tipo de atividade”. E explica: “Eles [os estudantes]

se sentiram mais livres, fizeram uma atividade diferente daquilo que eles costumam fazer

nas minhas aulas”.10

Em duas outras escolas que ofereciam aulas de teatro (em São Sebastião e

Brazlândia-DF), os estudantes se envolveram parcialmente, muitos afirmavam não gostar de

arte e/ou das aulas de teatro, alguns preferiram ficar como espectador durante os exercícios,

outros não participaram. Isso me fez pensar que as práticas anteriores fizeram com que

aqueles jovens não tivessem interesse pelos jogos.

Na instituição que oferecia aula de teatro (Gama-DF) e que realizamos a oficina de

cartazes no pós-espetáculo contamos com excelentes produções e um envolvimento

significativo (porém não completo) das turmas. A aplicação de jogos teatrais na mesma

escola também teve boa recepção. Alguns estudantes perguntaram se não haveria mais

práticas cênicas e buscaram a oficina de iniciação teatral oferecida paralelamente às

mediações no contra turno escolar.

Dessa forma, o Projeto demonstrou (embora não fosse seu objetivo) que onde não

havia uma prática pedagógica com jogos cênicos eles foram mais eficazes. Tal análise é

pautada nos registros de Ceilândia, São Sebastião e Brazlândia. Todavia, observar a recepção

e os comentários dos estudantes na escola do Gama (cujas ações não foram filmadas), bem

10 Entrevista realizada em Ceilândia-DF, maio 2015.

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como a atuação do professor de Artes Cênicas, me levou a considerar que os discentes tinham

um bom envolvimento com as práticas corporais naquela escola.

Essa observação pode ser complementada pela perspectiva que Jorge das Graças

Veloso (no prelo), também orientador desta pesquisa, traz acerca de o ensino de teatro, na

educação básica (mas não apenas nela), estar voltado quase para uma formação de atores em

detrimento da formação de espectadores.

Com a ideia de que é imprescindível o fazer, adotou-se a imposição de que a

aprendizagem nas artes do corpo e do espetáculo só se completa com a experiência

da (re)presentação, no sentido de se estar do lado simbólico de palco. Não se leva

em consideração que a experiência da espectação, tão importante quanto a do fazer

a cena, pode ser vivida plenamente sem a necessidade de se assumir o papel de

artista. Até porque, assim compreendo, assistir é também “fazer” teatro.

Talvez a obrigatoriedade do estar em cena e/ou a aplicação despropositada de jogos

teatrais ao longo da vida escolar pode ter repercutido em certo distanciamento de muitos

estudantes do desejo de qualquer prática cênica, mesmo sendo essa prática a de “espectação”.

Pude presenciar alguns participantes do Mediato dizendo que não gostavam de teatro e

suscitavam as práticas de sala de aula para exemplificar e justificar. Outros demonstravam

surpresa, pois não achavam que teatro poderia ser “tão legal”. A fala de uma mediadora em

relatório corrobora essa observação: “em vários colégios em que o Mediato esteve presente,

podemos ouvir vários alunos dizendo que ‘o teatro não era tão chato como eles pensavam’,

que tinha sido uma experiência diferente da rotina deles”. 11

O professor de Teatro do Gama-DF, Ulisses Pereira, afirmou em entrevista,

posteriormente, que o Projeto auxiliou a repensar suas aulas, sobretudo pela perspectiva da

formação de público. “Eu tenho pensando muito nesse aspecto em relação às minhas aulas,

que também foi uma influência do projeto; eu fui bastante influenciado por ele [...] No

sentido do planejamento, de rotinas. E não de formar atores; mas de formar leitores, de

formar público.” O que não significa que o professor concorde com a plenitude da espectação

sem o fazer do “lado simbólico do palco” defendida por Veloso, uma vez que, adiante ele

afirma: “não tem como você dialogar com o teatro, se você não tiver experiência de palco”.12

Ou seja, o professor continua utilizando a prática teatral em sala de aula, mas sob um novo

foco.

11 Relatório realizado ao final do Projeto (setembro de 2014) por todas as integrantes. Originais disponíveis

comigo. Os nomes das integrantes da equipe foram substituídos por outros fictícios para preservar a identidade

das profissionais. O modelo do relatório pode ser conferido no apêndice C. 12 Entrevista realizada em Gama-DF, ago. 2015.

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Quando Veloso fala sobre “a ideia de que é imprescindível o fazer”, está se referindo

à Abordagem Triangular (BARBOSA, 1994) e a sua transposição para o ensino de teatro. O

autor fala da inaplicabilidade de tal proposta para a pedagogia teatral devido à segmentação

que há entre fazer, apreciar e contextualizar e também à certa submissão a outra área de

conhecimento (“ao assumir para si algo tão próprio de outros saberes”). Ou seja as três

instâncias funcionam separadamente dentro das Artes Visuais, área para a qual a abordagem

foi criada; enquanto que nas Artes Cênicas o fazer e o apreciar são compreendidos pelo

mesmo caminho. Isto é, o espectador, ao exercer sua função, aprecia e faz teatro. “Ora, se

não existe o fazer teatral sem a presença mútua dos dois [ator e espectador], o espectador é

também um fazedor. Então, por este caminho, já não teríamos um triângulo, mas uma dupla

abordagem, a do fazer e do contextualizar” (VELOSO, no prelo).

Adiante, para imbricar ainda mais essa triangulação, o autor coloca que o contexto

de produção da obra cênica não se desconecta do momento de apreciação: “nas

configurações do pensamento contemporâneo, não seria também possível uma verdadeira

apreciação da obra artística desconectada do contexto no qual ela foi produzida. Então, em

artes cênicas, a aprendizagem se dá por outros caminhos” (VELOSO, no prelo). Assim, para

o autor, Fazer/Apreciar/Contextualizar em Artes Cênicas se dão simultaneamente.

Abrindo um parênteses caberia refletirmos especificamente sobre a contextualização

(sobretudo na Abordagem Triangular) a partir de um outro ponto de vista, para além do

contexto de produção da obra. Falo do contexto dos estudantes, que não diz respeito apenas

ao temporal, mas de uma contextualização a partir da vivência prévia desses jovens, de tudo

que eles trazem consigo de vivências e expectativas. E este é um lugar rico para a mediação.

Além disso, se considerarmos que o momento de apreciação pode se dar para além do

contexto de produção da obra – tempo e espaço físico haja visto que falamos em dilatação

da experiência – poderíamos dizer que a produção e a apreciação poderiam de alguma forma

se desconectar, tendo em vista exclusivamente os processos de mediação pós espetáculo,

sendo a apreciação mais elástica que a produção.

Sobre esse assunto cabe acrescentar ainda a perspectiva de Rejane Coutinho (2009,

p. 177) que diz ser uma aplicação generalista da Abordagem Triangular o entendimento da

contextualização unicamente da obra. A autora explica: “várias camadas de referências

contextuais se sobrepõem, relacionando-se e interferindo na ação, e devem ser levadas em

consideração no processo de mediação; são elas: as do objeto ou da obra; as dos sujeitos

envolvidos, leitores e mediadores; e as do lugar em que a ação se desenrola”. Certamente

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estas três camadas são imprescindíveis para qualquer mediação. Embora as mediações

tenham acontecido antes e após o espetáculo, ou seja, fora do momento de produção da obra,

o contexto dos estudantes, da mediadora, da peça e das escolas com suas respectivas

comunidades não foi perdido durante o Projeto.

Ocorre que mesmo com tais observações – considerando que na mediação a

apreciação é mais elástica que a produção da obra; e que a contextualização possui camadas,

nos permitindo pensa-la durante o espetáculo, mas também antes e depois dele – a teoria de

Veloso permanece de extrema pertinência para a análise do Mediato e especialmente para

pensarmos possíveis modalidades de mediação. Pois o que o autor coloca, em última

instância, é uma necessidade de revisão no âmbito dos jogos teatrais e da obrigatoriedade do

fazer, “do lado simbólico do palco”, como recurso pedagógico, sobretudo questionando o

jogo que se completa em si mesmo.

Tendo isso em vista, ao elaborar um plano de mediação é necessário observar em

qual sentido a atividade prática está sendo aplicada e se essa seria a melhor forma de

introduzir, desenvolver, ou mesmo alcançar determinados objetivos. E já que levamos nossa

atenção aqui ao contexto, é indispensável verificar se a turma/escola tem aulas de teatro e

qual a relação dos estudantes com os fazeres da cena, no intuito de verificar se carregam

consigo preconceitos e indisposição – como foi o caso de duas das quatro escolas observadas

– o que, em caso afirmativo, incidiria necessariamente em uma reformulação do plano.

Por fim, a reflexão de Veloso (no prelo) sobre a Abordagem Triangular é importante

também para explicitar uma mudança de entendimento da concepção do Mediato para a atual

análise. Quando escrevi o Projeto usei como base conceitual os princípios do fazer, apreciar

e contextualizar, sendo eles compreendidos isoladamente. Como dito antes, pensava a

experiência estética exclusivamente como o apreciar a obra no momento em que ela está

sendo realizada. Neste sentido, as duas outras pontas do triângulo se dariam com as

atividades mediadoras. Mas a efemeridade e o caráter de encontro que as Artes Cênicas nos

propõem definitivamente me impede de pensar que essas instâncias possam se dar

isoladamente. Cabe ressaltar que não são as práticas da mediação que repenso neste caso, ou

seja, não as mudaria em função deste novo entendimento. Trata-se de uma mudança de olhar,

que hoje compreende, dentro das artes do corpo e do espetáculo, que o fazer, o apreciar e o

contextualizar podem acontecer em todos os momentos: durante o espetáculo e nas

atividades mediadoras.

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Posto isso, detalho e analiso a seguir as etapas do Mediato que antecederam as

mediações: seleção de equipe e treinamento (que chamarei aqui de aquecimento), parceria

com as escolas e encontro com professores, concepção do caderno de mediação, e o

espetáculo, pelo qual inicio.

1.1.1 Da Janela

O espetáculo foi concebido para o Projeto com foco em um público de jovens

estudantes entre 14 e 18 anos. Não houve indicação de tema ou estética para a sua construção,

apenas de faixa etária. Tendo em vista esse caráter de encomenda pude acompanhar parte do

processo de criação, como forma de alimentar a pesquisa durante a concepção do

treinamento e principalmente do caderno de mediação.

Inspirada na farsa Morte acidental de um anarquista, escrita em 1970 pelo

dramaturgo italiano Dario Fo, o espetáculo, Da janela, criado pelo coletivo Calcanhar de

Aquiles buscou construir um diálogo com acontecimentos de nosso país: a Ditadura Militar

e as manifestações de junho de 2013. Estas se iniciaram com protestos contra o aumento da

tarifa do transporte público nas principais capitais, os quais tiveram inicialmente a

convocatória do Movimento Passe Livre (MPL) com a frase “Se a tarifa aumentar, São Paulo

vai parar!” 13

O texto de Dario Fo faz referência a um fato que ocorreu em 1969 na Itália, quando

uma bomba explodiu na Piazza Fontana, em Milão, provocando a morte de várias pessoas.

Nesta circunstância, um anarquista, o ferroviário Giuseppe Pinelli, foi levado à delegacia,

acusado pelo atentado, e lá supostamente cometeu suicídio, pulando pela janela. Constatou-

se que ele já estava morto antes de “pular”, mas a versão do suicídio prevaleceu.

O ator e a atriz criaram, com o mesmo humor irônico e ácido do dramaturgo italiano,

a peça Da janela. Esta se iniciava com a cena de um telejornal chamado “Sensacionalismo

Geral”, no qual apresentador e repórter discutiam, com opiniões divergentes, sobre uma

manifestação que acontecia nas ruas da capital naquele instante. Um segundo momento se

deu com a adaptação do texto de Dario Fo para dois personagens: uma delegada e um louco.

Este, em determinado momento, passou-se por juiz invertendo a situação em que ele era o

inquirido para ser o inquiridor. Com isso o louco-juiz julgou o processo de um motorista de

13 O registro audiovisual do espetáculo encontra-se no anexo A.

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transporte coletivo anarquista que supostamente ateou fogo em um ônibus e acabou tendo o

mesmo destino do ferroviário Pinelli: o “suicídio”.

Ao término os artistas propuseram um bate-papo. Este momento consistia

basicamente na revelação das especificidades do fazer teatral, em especial da peça Da janela,

e no compartilhamento de percepções sobre a obra. Segundo um estudante “foi bem

interessante o bate-papo depois do espetáculo, porque todo mundo estava curioso sobre

como é que eles tinham feito, e sobre o que tinha acontecido”. E justifica: geralmente

“acabou a peça, os atores saem, vai se trocar, a gente vai embora; e ai a gente não tem a

curiosidade de saber como é que foi a preparação deles, como é que surgiu aquela peça,

quem fez, como fez, como foi os ensaios, essas coisas assim.”14

A peça conquistou unanimemente os estudantes-espectadores, que responderam com

risos, aplausos calorosos e comentários variados ao final. Embora fosse marcado pelo

exagero, com situações absurdas, o espetáculo mantinha uma narrativa de fácil apreensão.

Havia apresentação de um conflito, desenvolvimento e fechamento com solução; além de

lugares reconhecíveis, como uma delegacia, um estúdio de televisão e uma rua (o que não

significa a existência de cenário naturalista). Apresentava ainda elementos próximos ao

cotidiano dos estudantes, o que permitiu certa empatia, pela via do reconhecimento. A

familiaridade, portanto, já estava dada; o que levou os processos de mediação a se ocuparem

com outras questões que não o preparar para o estranhamento. Essa constatação é importante

para entender a partir de onde penso a mediação proposta neste trabalho. Pois a peça, e a

relação que o público estabeleceu com ela, contribuiu para que eu concentrasse minha

atenção no pós espetáculo.

No caso de obras que apresentam narrativa não linear, caracterizadas pela

desconstrução, com cenas que funcionam isoladamente, mas que podem dialogar (ou não);

nas quais a abstração é predominante, ou que não há personagens e locais reconhecíveis;

neste caso a mediação atua de forma diferenciada. Ela deve se ocupar antecipadamente para

que o estranhamento seja proveitoso, e não motivo de distanciamento. Pode ainda provocar

posteriormente certa aproximação, muitas vezes pela via interpretativa; e também incentivar

a criação, por parte do público, como desdobramento da apropriação anterior.

Essa foi, em muitos casos, minha prática como mediadora ao longo de alguns anos

no CCBB Brasília, dentro do universo das Artes Visuais: primeiramente “contendo o

14 Trecho de entrevista realizada e São Sebastião-DF, em abril de 2015. Transcrição e original disponíveis

comigo.

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abandono”. Uso aqui uma expressão de Glauber de Abreu (2015) que considera que há

situações em que o espectador pode abandonar a possibilidade de experiência com a obra; e

a partir disso investiga tipos de abandono e cria princípios para contê-lo, colocando a

mediação como espaço favorável para tal. Dessa forma, como mediadora no referido centro

cultural, buscava provocar uma aproximação do que antes poderia parecer estranho, distante,

diferente, feio, ou desinteressante; e posteriormente dilatar uma possível experiência, por

meio de criações poéticas. Quando havia exposições de arte contemporânea o primeiro

movimento (de contenção do abandono) era frequente, pois o choque com a obra gerava um

alto índice de desistência, sobretudo com visitantes de primeira viagem.

Havia ainda outro tipo de distanciamento, além daquele do estranhamento, a ser

contornado no espaço da galeria: era o da idolatria, quando o visitante colocava a obra em

uma redoma simbólica15 chamada Obra de Arte e independentemente dos materiais, do

artista, do que conversássemos ali, e do que ele (público) sentisse, aquela obra ia continuar

sendo intocável, pois ela já havia sido nomeada por alguém (importante) e por isso estava

naquele lugar, o que provocava um imediato distanciamento, atrapalhando, muitas vezes, a

experiência estética.

No CCBB observei também que a preocupação com o estranhamento era recorrente

com determinada faixa etária. As exposições de arte contemporânea geralmente

encontravam mais resistência com jovens e adultos, do que com crianças. Estas dificilmente

apresentavam dificuldade em entender aqueles objetos como arte, ou demonstravam

expectativas com suportes tradicionais. Em contraposição muitos jovens e adultos

esperavam encontrar tinta sobre tela e/ou escultura naquele local, além de apresentar

resistência (em alguns casos indignação), sobretudo com a arte conceitual, minimalista ou

com objetos de arte que utilizavam materiais do nosso cotidiano (como linha, agulha,

talheres, etc). Nestes casos, a mediação se dedicava, antes de qualquer coisa, a familiarizar.

A abertura desse público infantil me fazia refletir sobre a perda de algo que nos era próprio:

a capacidade de se relacionar com as complexidades do abstrato e do simbólico. O que me

leva a pensar na necessidade de incentivar o contato com as artes como parte da rotina escolar

desde a educação infantil, especialmente as artes pertencentes a esse regime estético, e

inevitavelmente, penso a mediação como um caminho possível.

15 Sobre esse assunto ver Maria Beatriz de Medeiros (2005) em seu livro Aisthesis: estética, educação e

comunidades.

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Enfim, seja um distanciamento por estranhamento ou por idolatria, não me preocupei

com ele durante a execução e atual análise do Projeto Mediato porque a obra, como foi dito,

aproximou o espectador imediatamente, a meu ver, pela via do cômico e do reconhecível.

Se houve um distanciamento, foi de outra natureza, o que tratarei ao final do segundo

capítulo, acerca da empatia ou da antipatia à mensagem política atrelada ao espetáculo e à

fala da mediação.

Por isso, a análise do Projeto me levou a refletir o seguinte lugar para a mediação: o

pré-espetáculo como dilatação dos sentidos para a experiência – sem uma preocupação de

conter o abandono, justamente em função da relação do público com o espetáculo Da janela

(o que não exclui a possibilidade de conter o abandono e dilatar os sentidos

concomitantemente) – e o pós como dilatação de uma possível experiência com o espetáculo.

Para afastar uma hipótese que poderia parecer decorrer das análises anteriores afirmo que a

experiência não está posta, não é aferível, nem controlável, por isso mesmo, falo da dilatação

(e da experiência) estritamente como possibilidade. De tal modo, pressupondo, no pós, que

se houve uma experiência ela pode ser dilatada – mesmo sendo ela uma experiência de

negação, de aversão, de desprazer.

1.1.2 Aquecimento

Parte integrante e de grande relevância para o desenvolvimento do projeto, o

treinamento aconteceu durante duas semanas antes do início das atividades nas escolas, com

encontros de três ou quatro horas, totalizando 32 horas. Consistiu em um período de imersão

teórica e prática, que objetivava dar suporte e material, inclusive metodológico, à equipe

composta por 4 mediadoras e 2 supervisoras. Foi dividido, portanto, em três etapas. Na

primeira, os encontros se davam com prévia leitura dos textos selecionados e com a

apresentação de seminários pelas próprias mediadoras. Na segunda houve a apresentação do

espetáculo seguido de diálogo com o ator e a atriz. A terceira consistia em um planejamento

das estratégias de mediação, era o momento de pensar a prática; de experimentar

possibilidades de exercícios; e, por fim, elaborar os planos de mediação.

Para a primeira etapa elaborei, com o auxílio da diretora/atriz, uma apostila com

textos metodológicos sobre mediação e textos teóricos sobre temas que tinham relação direta

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com o espetáculo Da janela.16 Neste caso, tínhamos textos sobre arte e política; a respeito

da produção dramatúrgica de Dario Fo; e acerca do referido período histórico brasileiro. A

partir de então, dividimos este material em partes, para que cada integrante ficasse

responsável pela apresentação de um conjunto de textos. Cabe ressaltar que as mediadoras

tinham liberdade de apresentar outras referências (além da apostila) que tivessem relação

com o tema exposto no seminário. Havia também estímulo para que elas provocassem uma

aproximação do tema, pela via das práticas de mediação, com o possível contexto dos

estudantes que atenderíamos.

Na segunda etapa, tivemos o privilégio de ver o espetáculo (e não a filmagem do

mesmo, como era o plano inicial), e conversar a respeito do processo de construção artística.

Falamos sobre as opções para a adaptação do texto dramatúrgico; das escolhas cênicas para

cenário, figurino e encenação de forma geral. A atriz da peça foi também supervisora no

Projeto, o que aproximou ainda mais o universo da mediação ao da obra.

O treinamento culminou na elaboração dos planos de mediação. Este, idealmente,

deveria incluir os temas que seriam abordados; os questionamentos que poderiam ser feitos

aos estudantes para alimentar o diálogo sobre a obra e extrapolar a temática para o cotidiano

deles; bem como as atividades que seriam realizadas, com seus respectivos objetivos. Ao

término desta terceira etapa, tínhamos três planos diferentes que poderiam servir de base,

sendo mesclados e/ou modificados durante sua aplicação. As estratégias elencadas nessa

fase, apontavam para o que, e como, seria proposto no momento pré e pós-espetáculo.

Algumas mediadoras optaram por introduzir diretamente a temática da peça no primeiro

encontro (pré), outras preferiram trabalhar exercícios que beiravam o tema, mas sem falar

dele de forma explícita. Este foi também o momento de levantar materiais que poderiam

auxiliar a mediação: músicas, imagens, objetos, figurinos e texto dramatúrgico.

Talvez ao invés de pensar nos temas que seriam abordados, tivesse sido mais profícuo

pensar de que maneira (como) a mediação poderia estimular os sentidos, auxiliar na

produção de subjetividade e na compreensão da alteridade. Antecipando um pouco as

conclusões do próximo capítulo pergunto-me: será que nossos planos de mediação já

denunciavam o foco conteudista? Será que trabalhar um tema (o da peça) era o melhor

caminho para alcançar os sentidos, a subjetividade e a alteridade? Ou poderíamos tomar estas

16 A bibliografia selecionada para a apostila do treinamento pode ser conferida nas referências bibliográficas.

As que não foram utilizadas diretamente nesta pesquisa encontram-se em referências complementares ao final.

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três instâncias por objetivo e deixar que os temas surgissem dentro dos diálogos? Refletirei

sobre isso adiante.

Embora mantenha traços que se repetem, a mediação não pode ser sistematizável.

Não há um conjunto de procedimentos a ser seguido para se alcançar determinado resultado.

A não sistematização se deve a sua configuração. Ela acontece por meio do diálogo e da

troca entre uma obra, ou manifestação artística, e pessoas; além disso, a mediação trata de

processos individuais, o que impossibilita prever resultados e criar um conjunto de

procedimentos. Há exercícios e perguntas que se repetem, mas certamente o que é gerado a

partir disso é distinto em cada turma mediada.

Os planos de mediação foram, por fim, experimentados. Cada dupla de mediadoras

apresentou e aplicou suas atividades ao restante da equipe. Esta, por sua vez, ponderou suas

impressões sobre os exercícios e deu sugestões. Com isso pretendíamos debater as ideias

iniciais, avaliar a aplicabilidade e fechar provisoriamente algumas estratégias que serviriam

de base para o início das atividades dentro das escolas. Como era esperado, os planos se

modificaram ao longo do Projeto, sobretudo nas primeiras semanas. As duplas se

mantiveram durante todo o trabalho, pois considerei que as profissionais se sentiriam mais

seguras dessa forma.

Alguns benefícios da liberdade dada às mediadoras para elaborarem seus próprios

planos de mediação eram: a variedade de exercícios propostos; a construção de uma

mediação a partir da temática ou do elemento que elas achassem mais adequado, ou com o/a

qual tivessem mais afinidade dentro do universo trabalhado; por fim, a produção de algo que

fizesse sentido para as profissionais e não que fosse imposto pela coordenação, por mim

neste caso.

Contudo, as ações demonstraram fragilidade em vários momentos, o que será

apontado a seguir com a fala das supervisoras. A problemática central a ser levantada sobre

o treinamento é a sua real eficácia em instrumentalizar as mediadoras para a função a ser

exercida. Um desafio que desponta do Mediato hoje é como evitar que a primeira etapa caia

em um deleite intelectual, ou pior, que a apostila seja proforma: sem leitura e sem o

necessário aproveitamento. E mais urgentemente, como afinar os objetivos e as ações da

equipe para que as mediações não pretendam o informativo, a doutrinação, ou qualquer outro

fim que se oponha a ela própria.

Duas semanas de treinamento é um tempo extremamente curto para dar conta de um

conteúdo vasto; de experimentação de exercícios práticos; e das questões metodológicas.

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Isso aponta para a importância de uma etapa anterior: a seleção de pessoal. Cabe apontar que

uma dificuldade na constituição da equipe se deu em função de problemas com a adequação

do Mediato ao edital financiador. Não houve possibilidade de realizar entrevistas para a

compor o grupo de trabalho imediatamente antes de iniciar o Projeto, pois o edital exigia

que os profissionais envolvidos fossem indicados no ato da submissão da proposta, mais de

um ano antes da execução. Tendo em vista a complexidade de realizar uma entrevista com

a expectativa de contratação após um ano ou mais, caso o Projeto fosse aprovado, optei por

convidar as mediadoras.

De todo modo, penso que o convite ou a entrevista, deve levar em consideração o

conhecimento e a habilidade em mediação. Caso contrário, corre-se o risco de ter

incoerências dentro da equipe que podem minar o projeto, isso é apontado no relatório de

uma supervisora, que foi também atriz e diretora do espetáculo.

O trabalho ficou muito comprometido pela falta de bagagem teórica da equipe de mediação. Pontos

cruciais que podiam ser desenvolvidos foram negligenciados por não ter havido na seleção da equipe

algum critério que dialogasse com a temática da peça. Por exemplo: a presença de mediadores mais

familiarizados às temáticas da Luta de Classes, do Capitalismo, da Violência de Estado... Atentar a

esse ponto é fundamental, pois essa lacuna compromete todo o trabalho. Desde a mediação até o uso

do material educativo.17

Concordo com a fala acima quando diz que a falha na seleção provoca uma lacuna

que compromete o trabalho. Entretanto, ressalvo que um processo seletivo não deve ter como

critério a bagagem teórica no que diz respeito à temática da peça. Mas sim uma questão mais

ampla, de um repertório em mediação, de um conhecimento que vem pelo exercício da

habilidade. O problema, portanto, residiu na escolha de profissionais que não levou em

consideração o conhecimento e a habilidade em mediação. O conhecimento está relacionado

ao saber e a habilidade ao saber fazer, ou seja, maneiras de dar aplicabilidade ao

conhecimento, e ambas precisam caminhar juntas. Portanto, não creio que seja a falta de

conhecimento sobre violência de Estado ou luta de classes que afetou o desenvolvimento do

Projeto, até mesmo porque há situações em que a equipe pode ser selecionada antes de se ter

conhecimento sobre a temática do espetáculo. Além disso, vale pensar se o objetivo da

mediação pode se confundir com o instruir ou defender acerca de uma temática.

17 Relatório final de supervisão, set. 2014. Para diferenciar a fala dos teóricos e dos participantes do Projeto

farei uso de outra tipografia nas citações longas.

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1.1.3 Parcerias com a educação formal

A opção pelo ambiente escolar se deu primeiramente por uma apropriação dos

projetos “Na trilha dos azulejos” e a Ação Formativa do Festival de Teatro Brasileiro (FTB),

no que diz respeito ao formato, conforme dito anteriormente. E também por uma questão

estratégica: tínhamos na escola a certeza de encontrar os estudantes reunidos, sem a

necessidade de dispender verba e esforços extras. A escolha do público levou em

consideração a dificuldade que estudantes de escola pública tem de acessar espetáculos, o

que ratifico hoje na minha atuação como docente quando esbarro na problemática do

transporte e do horário dos espetáculos.

A escolha das escolas seguiu os seguintes critérios: ser de Ensino Médio; ter um

auditório para receber o espetáculo; e estar disposta a abraçar as ações. Um dos primeiros

desafios foi encontrar instituições que abrissem as portas e professores dispostos a abrir mão

de suas aulas. Houve escola que se delongou por mais de um mês na resposta e optou pela

negativa. Outra, aceitou, mas, posteriormente retirou o aceite em função de conflitos com

alguns docentes.

Em uma das instituições apenas o professor de artes cedeu seus horários, neste caso

o Mediato tomou um quarto de bimestre das aulas de artes, o que levou o professor a avaliar

formalmente, com nota, as atividades realizadas durante a mediação. Isso ia contra a

mediação, uma vez que os estudantes mostravam, em alguns casos, um franco desestímulo

em realizar as atividades e as faziam para ganhar nota. Do mesmo modo, por desconhecer

os critérios avaliativos do professor, temi que a avaliação desconsiderasse aquele estudante

que não se disponibilizou à exposição do próprio corpo para criar uma cena, mas participou

como fruidor da produção dos colegas e contribuiu com sua construção de sentido.

Além disso, houve momentos em que essa mesma escola usou a equipe de mediação

para ocupar o lugar de um professor ausente, levando ao atendimento de turmas que não

estavam dentro do programado e que não haviam assistido ao espetáculo – o que

descobrimos posteriormente. Antes que se julgue tratar de indisponibilidade da equipe para

atender uma turma, é importante dizer que a problemática central desse tipo de estratégia –

que denuncia a falta de organização por parte da escola – reflete diretamente na disposição

dos estudantes para as ações.

A conversa com o corpo docente das escolas aconteceu aproximadamente uma

semana antes das atividades terem início e foi realizada pela coordenação (função exercida

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por mim) e pela supervisão. O encontro abordou os seguintes aspectos: 1. Apresentação do

Projeto com as estratégias de ação; 2. A importância do contato com manifestações artísticas

como parte da rotina escolar; 3. Esclarecimento sobre a função da mediadora; 4.

Apresentação do caderno de mediação, inclusive como possibilidade de desdobramento em

sala de aula. Em um segundo momento a mesa foi aberta para perguntas e bate-papo.

Contudo, apenas em uma das quatro escolas (no Gama) houve participação efetiva dos

professores, com perguntas e comentários. Nas outras, enquanto apresentávamos, os

professores continuavam realizando as atividades que comumente eram feitas durante o

horário de coordenação.

O professor Ulisses Pereira (Teatro, Gama-DF) posteriormente ressaltou a relevância

desse encontro: “foi muito interessante o primeiro momento de bater um papo com os

professores. Porque eles se sentiram muito mais seguros diante do projeto e de, incentivar

não, mas até permitir que os alunos participassem por conta de ausência na aula”. E ainda,

“quando você veio à reunião de coordenação e expôs; isso deu uma substância. E tira aquele

estigma de que as coisas em artes são feitas a toque de caixa, e que não tem uma organização,

não tem um planejamento [...] Tem mais coisa aí, não é só levar os alunos para assistir ao

espetáculo.”

Apesar do prévio agendamento do encontro com os professores, houve uma série de

contratempos que comprometeram o desenvolvimento do que havia sido programado. Em

uma escola marcaram outra atividade no mesmo dia e horário com os docentes, o que

diminuiu consideravelmente o tempo do encontro. Em outra ocasião a falta de comunicação

levou a um quórum baixo: a coordenadora ou diretora esqueceu-se de avisar e vários

professores não compareceram, mesmo sendo horário de coordenação.

No momento de organização do encontro com a coordenação da escola, apontei para

a necessidade da conversa não se restringir aos professores de Artes, ao contrário, deveria

envolver todos, sobretudo aqueles que cederiam suas aulas para que a mediação acontecesse.

Ainda assim, a adesão ao Projeto foi frágil. Houve um professor que ameaçou tirar ponto da

média final dos estudantes que não comparecessem à aula em determinado dia, sabendo ele

que era o dia e horário marcado para o espetáculo. Consequentemente tivemos uma turma

que, salvo algumas exceções, não tinha participado de uma etapa decisiva.

Pesquisas realizadas na área das Artes Visuais têm apontado para a importância do

trabalho com o professor, sobretudo antes da visita às exposições de arte. Alguns Programas

Educativos mantém, paralelamente ao agendamento de turmas, cursos, atividades de

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formação continuada, material de apoio e outras atividades com o objetivo de envolver esse

profissional, e garantir o desenvolvimento de um trabalho consistente com os estudantes.

Ana Mae Barbosa (2009) cita o CCBB de São Paulo, que encomendou em 2004 uma

pesquisa (a partir de uma proposta submetida pela autora) para saber como os professores

de Arte utilizavam os materiais impressos preparados para eles sobre as exposições. Nas

palavras da autora, “talvez essa tenha sido a primeira pesquisa encomendada por um Centro

Cultural no Brasil para saber em que resulta sua ação cultural e educacional.” (p.21). Tal

iniciativa denota a preocupação voltada para um importante ponto de sustentação de

qualquer projeto com ações mediadoras que envolva diretamente o universo escolar.

Há indícios de que a mediação, quando estruturada de forma a integrar os

profissionais da escola, surte efeitos que extrapolam o próprio projeto.

Comprovamos que essas expedições culturais, chamadas aqui “passeios”,

despertam também nos alunos certa motivação por outras disciplinas, e, no corpo

docente, o interesse pelos projetos interdisciplinares, contaminando positivamente

a maioria dos professores da escola. Os resultados ultrapassam as avaliações

convencionais. (SANTANA, 2009, p. 265).

A fala acima e o próprio autor são exemplos dos possíveis desdobramentos da

mediação. Pio Santana é um professor de Arte (da Secretaria de Educação do Estado de São

Paulo) que se encantou pelas ações mediadoras e se apropriou das atividades e produtos que

os centros culturais oferecem não apenas para estudantes, mas também para docentes. Em

seu artigo “A mediação no museu e os resultados em sala de aula” ele explicita a importância

das visitas aos centros culturais; do trabalho contínuo realizado com os educadores; e dos

materiais disponibilizados para estes profissionais. “As experiências vivenciadas nos

encontros para professores nas instituições e os materiais a que temos acesso são

fundamentais para a formação e a prática na sala de aula.” (SANTANA, 2009, p. 267). O

que o autor traz em ambas as citações aponta para o resultado de esforços direcionados à

relação entre o trabalho em sala de aula e as ações da mediação. Em última instância, ele

próprio é um exemplo de que tais iniciativas geram resultados profícuos.

O que Santana fala, sobre despertar nos alunos certa motivação por outras disciplinas,

pode ser verificado no Mediato por meio da fala do professor de filosofia Ricardo Pratesi de

São Sebastião-DF: “Eles vieram me procurar depois. Vários alunos vieram. Querendo saber

de anarquismo, da história, da questão política, [...] dessa relação das manifestações. [...]

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questões que eles viram na peça”18. Podemos verificar nessa fala a dilatação acessando um

outro contexto. E o estímulo partiu não de um docente, mas dos próprios estudantes.

Observei, a partir das entrevistas posteriores ao Mediato, que alguns professores se

apropriaram de elementos trabalhados durante as mediações. A professora Verônica Oliveira

(Artes Visuais, Ceilândia-DF) adaptou alguns exercícios de sensibilização realizados no

primeiro encontro para as suas aulas: “Como nem todas as turmas foram atendidas, eu usei

algumas das atividades das meninas [mediadoras] nas minhas aulas. Fiz um recorte para as

cênicas, e usei”19. O professor Conrado Costa (Sociologia, São Sebastião-DF) adaptou ações

propostas pelo mediador às atividades de corpo que ele já realizava com seus alunos.

A gente se encontrou na oficina, eu fiquei deslumbrado com o [mediador] com aquela questão que ele

coloca dos níveis da expressão corporal, do movimento a partir de pontos. [...] Só que antes disso eu

já tinha uma relação com práticas corporais livres, eu já tinha uma relação também com a tentativa

de fazer a aula não só pra dimensão cognitiva [...]. Então, sempre tento fazer isso nas aulas com jogos

cooperativos, danças circulares e outros tipos de práticas corporais. Até respiração.

E ainda,

Eu uso muito isso em sala, com certeza. Depois daquele dia causou em mim ... [aquele dia, pré-

espetáculo,] não me trouxe a técnica, não o conhecimento, ele me trouxe a reflexão, a pergunta. Então,

a pergunta nunca mais saiu da minha cabeça. Desde então eu venho refletindo, venho orientando

minha conduta, também pensando sempre nessa pergunta: como é que eu estou orientando meu corpo

para os alunos? Como é que eu estou orientando minha fala pra eles? Minha voz...20

A mesma questão é coloca por um estudante em entrevista: “Teve um dia que o

[mediador] veio, ai ele ensinou um negócio dos movimentos, que a gente descobriu o nosso

corpo, [...] O professor ficou vidrado, e ai depois disso ele até colocou aula de movimento

na sala dele”21. O professor Ulisses (Teatro, Gama-DF) entrevistado um ano após o Projeto

revelou como foi influenciado a rever sua prática docente:

Mesmo na minha prática, essa leitura do espetáculo ela não acontecia antes do processo de mediação

de uma forma mais sistematizada. Então eu procurei olhar pra minha própria prática assim: até onde

eu estou fornecendo elementos, criando situações que os alunos realmente estejam dialogando com

o que eles veem, do teatro de rua, do artista popular, até TV, cinema? [...] Eu tive que reconstruir

algumas práticas minhas [...] Porque eu comecei a me observar um cara muito – não conteudista,

porque nunca dei muita consideração por conteúdo, pra listagem enorme de conteúdo – mas

superficial.

[...]

Eu não estava acostumado com essa abordagem, com esse olhar; até porque a escola, na dinâmica

da escola é muito assim: eu te apresento determinado conteúdo, eu te apresento um espetáculo, eu te

18 Entrevista realizada em São Sebastiao-DF, jun. 2015. 19 Entrevista realizada em Ceilândia-DF, maio 2015. 20 Entrevista realizada em São Sebastiao-DF, jun. 2015. 21 Entrevista realizada com estudante em São Sebastiao-DF, abr. 2015.

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apresento isso aqui. Pronto! Passou! E às vezes a pessoa não retorna, não digere direito. [...] Me

senti mais estimulado a ser mais mobilizador, mais dinâmico22

Embora o único esforço realizado para promover o envolvimento dos professores

tenha sido o encontro prévio e o material impresso (caderno de mediação), houve, por parte

dos profissionais citados acima, um intencional diálogo com o Projeto. Nos dois primeiros

casos (Profa. Verônica e Prof. Conrado), pode-se perceber a apropriação de elementos da

linguagem cênica, trabalhados pelas mediadoras, e a aplicabilidade em outra área de

conhecimento, Artes Visuais e Sociologia respectivamente. No último relato, de forma mais

ampla, vemos uma mudança de perspectiva no modo como o professor Ulisses planeja e

realiza suas aulas.

É importante ressaltar que os apontamentos dos docentes Ulisses, Conrado e

Verônica não dizem respeito a uma mobilização advinda do encontro prévio com os

professores, mas da própria mediação. Foram as ações realizadas pelas mediadoras que

provocaram nos docentes uma mudança de olhar. Isso me faz compreender que o encontro

com o corpo escolar estava mais voltado para a apresentação do Projeto ao passo que um

real envolvimento e modificações pôde ser atingido com a mediação.

Um modelo de projeto que aposte na interferência direta e criativa dos professores

está no planejamento da segunda edição do Mediato, a realizar-se em 2016. Isso demandará,

certamente, um trabalho a longo prazo. O primeiro passo desse desafio será participar,

durante um período, da rotina escolar, dos momentos de coordenação dos professores, e

elaborar, em conjunto, um material. Este, fruto da parceria, unirá os possíveis diálogos

criados pelos profissionais, às aspirações do projeto de mediação, resultando em um produto,

que será utilizado por eles com as turmas, posteriormente.

Outra sugestão foi dada pelo professor Ulisses (Teatro, Gama-DF) que reforçou, em

entrevista, a importância da continuidade e esboçou um possível caminho, o que ele chamou

de “calendário de desdobramentos”, cuja execução eu poderia acompanhar posteriormente

junto às escolas.

Sem essa articulação entre o projeto e a escola, não tem desdobramentos, ou não tem nem o sucesso

do próprio projeto. É claro, o projeto não pode assumir a responsabilidade pela escola, pelo que vem

depois. Mas de alguma forma teria, sei lá, um calendário de feedbacks. É até muito interessante você

fazer essa entrevista um ano depois, porque eu pude te dar esse feedback. [...] De como foi que

aconteceu a partir do projeto, tanto com os alunos quanto comigo.

E ainda sugere,

22 Entrevista realizada em Gama-DF, ago. 2015.

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Assim: “Olha professores, eu tenho tais motivos porque eu escolhi essa escola, mas a contrapartida

de trazer o projeto e levar os alunos ao espetáculo é a gente trabalhar junto desde já; trabalhar agora

no planejamento e de construir um calendário de desdobramentos”. [...] Realmente eu penso dessa

forma; não têm como as coisas acontecerem se não forem cíclicas, se for estanque não vai produzir

resultado.

Dedicar um tempo com estes profissionais pode tornar o processo menos vertical,

pois a mediação não entraria na escola como um pacote pronto e sim como uma parceria.

Isso pode trazer a sensação de pertencimento ao que será realizado, gerando o necessário

envolvimento e desdobramento. E também, converteria o caráter de intromissão, que era

atribuído à equipe muitas vezes, em uma relação de proposição criativa por parte dos

professores.

Em última análise o que o Mediato mostrou é que para esperar que os professores

desenvolvam, no universo pedagógico da sala de aula, desdobramentos do que foi vivido

durante a mediação, é necessário mais do que apresentar o projeto e disponibilizar um

material didático previamente elaborado. Por mais que eu tenha sugerido, tanto na fala,

quanto no material impresso, possíveis relações com outras áreas de conhecimento (como

História, Sociologia, Artes Visuais e Música, por exemplo), não é o suficiente para que a

repercussão se efetive com essa complexidade para todos os professores.

Uma última questão levantada na parceria com a educação formal, ainda sobre a

continuidade do trabalho de mediação na escola, diz respeito ao acolhimento dos estudantes

interessados em teatro. A seguir três estudantes de Ceilândia-DF contam em entrevista sobre

o desejo de montar um grupo após a saída do Mediato.

Gabriela (estudante): A gente quis até depois montar um grupo de teatro.

Mariana (estudante): Só que não deu certo.

Arlene (entrevistadora): Me conta isso. Isso me interessa.

Paula (estudante): Foi ideia da Luana. Só que ela mudou de escola. A gente estava com essa ideia

só que não deu muito certo, porque não tinha ninguém assim com experiência para treinar a gente, e

nem para a gente ter um horário que todo mundo pudesse se encontrar para fazer, ensaiar, alguma

coisa assim. Aí não deu certo por causa disso. 23

Em São Sebastião-DF um estudante disse que buscou a direção da escola, juntamente

a um grupo de colegas, na expectativa de tornar o Mediato um projeto permanente: “a gente

até tentou conversar com a Lucília, com os coordenadores da escola. ‘Ah, monta um projeto

desse aqui’ [...] estavam todos vidrados, todo mundo queria!” E ainda. “Aí nós: ‘Não, caso

qualquer a gente vem de noite, a gente vem de madrugada, uma hora a gente vem, a gente

23 Entrevista realizada em Ceilândia-DF, maio 2015. Os nomes dos estudantes foram substituídos por outros

fictícios.

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só precisa de vocês'. E o pessoal da direção não deu muita bola” 24. O estudante explicou que

sugeriu à coordenação e à direção que o Projeto fosse implementado na Educação Integral –

uma política educacional que amplia progressivamente o tempo diário do estudante na

escola, prevista no artigo 34 da LDB (Lei de Diretrizes e Bases), envolvendo a ampliação

do currículo, a gestão democrática e a participação de estudantes, professores, família e

comunidade.

O mesmo estudante disse que no ano em que o Mediato aconteceu um professor

solicitou um trabalho que consistia, nas palavras do estudante, em “montar uma escola, como

a gente achava que tinha que ser”. E que eles (estudantes) conceberam uma escola inspirada

no Mediato:

Samuel (estudante): O pessoal que tinha participado do projeto dos Mediatos, montou as escolas

tudo em cima desse tema [...] Ah... A nossa escola podia ter mais espaço pra cultura, nossas aulas

não precisava todo mundo ir para a sala ou então onde a gente queria estudar, estudava [...] nosso

intervalo era diferente; ao invés da gente ir pra lanchar e ficar quieto conversando, não, a gente ia

pra apresentar peça ou então fazer alguma coisa que pertencesse às pessoas, [...] uma escola que não

tem esse padrão que a gente estuda hoje, uma escola diferente, uma escola aberta; que não só nós

estudamos, mas que todo mundo pudessem vim para aprender aquilo que a gente estava aprendendo.

Arlene (entrevistadora): Qualquer pessoa que quisesse aprender?

Samuel: É. Qualquer pessoa que quisesse, passou na frente da escola, viu aquela escola aberta, uma

escola diferente; entrar e vim aprender, participar com a gente.

Arlene: Você acha que isso melhoraria a aprendizagem, chamaria mais gente?

Samuel: Com certeza. A gente ia aprender muito mais, porque muitas vezes a gente se prende

tentando aprender aquilo que os professores passam no quadro, mas, só lendo e vendo eles

explicarem a gente não vai aprender; a gente tem que viver aquilo. Ai a gente falou, no nosso projeto

a gente pegava aquilo que os professores ensinavam, mas a gente vivia, invés da gente ir lá e ver o

professor ensinar e pá pá pá escrever no caderno, não; a gente tentar fazer junto com ele, para tentar

exercitar a nossa mente e a gente aprender, porque muitas vezes você pode decorar, mas você não

aprendeu.

Arlene: [...] O Projeto tem a ver com isso, de aprender vivendo?

Samuel: Eu acho que tem.

[...]

Arlene: Aprender tem a ver então com sair da rotina também?

Samuel: Com certeza. Porque muitas vezes a gente fala “Ah, eu não faço isso porque eu não sei”.

Mas não é; é porque não quer, porque está na zona de conforto e não quer sair.

Desponta dos trechos de entrevistas acima uma pergunta: a mediação deveria se

preocupar com estratégias para garantir desdobramentos dentro do espaço escolar, mesmo

após seu término? Ou ainda, seria possível manter, paralelo às mediações, um suporte aos

professores para que estes montem com seus estudantes grupos de estudo e prática teatral?

(Pensando que “prática teatral” envolve o ver teatro). Pude perceber em todas as escolas

24 Entrevista realizada em São Sebastião-DF, abril 2015.

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participantes do Mediato que vários estudantes pareciam sedentos por oficinas, espetáculos,

ou grupos de teatro que pudessem frequentar. Faziam explicitamente convites, perguntando

se não gostaríamos de montar um grupo com eles, pedindo para ficar até o final do ano, ou

mesmo de forma permanente na escola, como foi o caso de São Sebastião e Ceilândia-DF.

Para os museus a preocupação atual é de um projeto de acolhimento dos visitantes: a

questão que se coloca hoje para essas instituições não é mais de saber como provocar a

primeira visita, mas sim encontrar os meios de provocar o retorno (GOTTESDIENER apud

JULIEN-CASANOVA, 2009). Penso que essa preocupação pode fazer parte das ações

mediadoras para as artes do espetáculo desde agora, sobretudo se compreendermos que

diferente do museu, não estamos em um lugar fixo onde os espectadores podem nos

encontrar, e provocar por eles mesmos esse retorno. Além disso, no caso do Mediato, e de

tantos outros projetos, “invadimos” o espaço escolar provocando uma mudança no cotidiano

deles.

A princípio, vejo na parceria com os professores um potencial plano de acolhimento,

principalmente quando a estudante Paula afirma a importância de alguém com conhecimento

que se habilite a acompanhar o grupo. Mas a questão que fica aqui, que é objeto de extremo

interesse, é de um desejo de continuidade que veio a partir do primeiro contato. Desejo este

que o Mediato não tinha estrutura para alimentar.

Outro ponto válido de ser levantado sobre o trecho transcrito acima é acerca de uma

possível institucionalização do Projeto. O desejo do estudante Samuel e de seus colegas – ao

conceberem uma escola inspirada no Mediato ou propor que esta implemente um projeto

semelhante de forma permanente – é tornar a mediação parte constituinte da instituição

escolar como uma espécie, a meu ver, de recuperação ou mesmo salvação de um sistema que

há muito tem demonstrado sua fragilidade, sobretudo no que diz respeito a uma relação de

prazer com a vida dos educandos.

E ironicamente a proposta colocada por Samuel vai ao encontro das perspectivas

conceituais de uma Educação Integral (ligada à vida), o que fica claro quando Samuel diz

“fazer alguma coisa que pertencesse às pessoas”, ou “a gente tem que viver aquilo”. Ou seja,

as teorias, as leis educacionais e os próprios estudantes falam da necessidade de aproximar

a escola da vida.

Todavia, não acredito que o melhor caminho para a continuidade do trabalho seja a

sua institucionalização pela via de uma inserção permanente na escola. Ao contrário, penso

que estimular e auxiliar os professores com materiais e apoio técnico seja importante, mas a

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mediação deve se manter longe de ser mais uma disciplina na grade escolar, ou mesmo um

modo de ensinar Artes. Relembrando o que o professor Ulisses (Teatro, Gama-DF) falou “o

projeto não pode assumir a responsabilidade pela escola, pelo que vem depois”, mas

podemos, como o próprio sugeriu, pensar um calendário de desdobramentos em parceria

com os professores.

1.1.4 Caderno de mediação25

Consistiu em um material educativo concebido para estudantes, que poderia ser

utilizado como desdobramento em sala de aula. O texto foi construído mesclando

informações e perguntas. Os questionamentos, geralmente destacados, tinham o intuito de

provocar a reflexão sobre determinado assunto. Imagens do espetáculo e de outras

linguagens artísticas foram selecionadas, além de letras de músicas e filmes; de forma geral,

referências com temas semelhantes e/ou do mesmo período de produção do texto

dramatúrgico (1970) que deu origem à peça. Tal escolha se configurou como um processo

curatorial que adotou como fio condutor possíveis diálogos com o tema. O caderno de

mediação se constitui, portanto, como uma intencional produção de semelhança entre

distintas obras de arte. Com isso busquei estimular os estudantes a tomarem parte nesse

processo para produzirem, eles também, suas próprias analogias entre um espetáculo e outas

formas artísticas.

Nessa perspectiva, e tendo em vista o assunto abordado no espetáculo, elenquei

artistas que produziram durante a Ditadura Militar brasileira, como Cildo Meireles com

Inserções em circuitos ideológicos, Lygia Pape com Língua apunhalada e Artur Barrio com

Livro de Carne. De música, foram: Apesar de você de Chico Buarque de Holanda e Diário

de um detento dos Racionais MC’s. Quando possível, provoquei a atualização do tema, o

que fica explícito com uma cédula de dois reais carimbada com a frase “Cadê Amarildo”

(autoria desconhecida, 2013), que faz menção ao trabalho de Cildo Meireles, que carimbou

a frase “Quem matou Herzog?” em cédulas de cruzeiro. Uma charge de Henrique de Souza

Filho, o Enfil, compõe o repertório com o contemporâneo tema: valor da passagem do

transporte público; motivo, inclusive, para o início das manifestações de junho de 2013 no

25 Apêndice D.

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Brasil (tema tratado na peça). Por fim, a referência fílmica apareceu como sugestão para

quem se interessasse em saber mais sobre aquele universo.

No início do caderno há alguns questionamentos que voltam o olhar para o espetáculo

e para as opções da encenação. A saber: como se pode interpretar a escolha cenográfica? Ou,

em quais momentos pode-se perceber a adaptação de um texto italiano de 1970 para o

contexto brasileiro atual? Depois, quando surgem outras referências, as reflexões giram em

torno de relações mais amplas, como sociedade, liberdade, memória e identidade. Por

exemplo, “o que memória tem a ver com identidade?” que remete ao particular, fazendo

referência à trajetória individual do sujeito; e também ao coletivo, quando se fala da história

de um país.

Pergunto-me hoje se o material não beirou o panfletário e se isso seria um problema

a ser contornado. Apesar de questões relacionadas à alteridade e a não imposição estarem

presentes no entendimento de mediação por mim defendido, fazendo uma auto crítica, creio

que acabei incorrendo em um risco: o de ser ideologizante. Talvez não apenas no caderno

de mediação, mas no Mediato de forma geral. Penso que o espetáculo trata de alguns

assuntos politicamente partidarizados, e assim o fiz com o projeto de mediação como um

todo. Outra problemática seria a quantidade de texto e de referências. Acredito que tenha

ficado extenso, o que certamente minimizou as chances de leitura na íntegra.

Uma terceira problemática seria, ainda, a própria funcionalidade do caderno, que em

ocasiões virava abano ou era descartado. A vivência com o Programa Educativo no CCBB

Brasília já havia apontado para esta questão. A coordenação pedagógica solicitava que

trabalhássemos com o material durante a visita para que este não se transformasse em um

panfleto entregue ao final. Mesmo assim observávamos estudantes defenestrando o material

educativo pela janela do ônibus, enquanto este se retirava do estacionamento de volta à

escola. A estratégia de trabalhar o material durante a mediação também foi adotada no

Mediato o que pode ter diminuído a relação de desinteresse. Contudo, ela ainda existe e

precisa ser pensada.

As questões, até aqui apresentadas, me provocam a rever a existência e a utilização

do caderno de mediação. Santana (2009), citado anteriormente, afirma a importância dos

materiais que dão apoio ao professor de artes no desdobramento da experiência estética. Mas

fica claro que este recurso só é utilizado quando há interesse e envolvimento do docente.

Talvez uma chave para a problemática aqui levantada seja estabelecer uma relação de

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parceria com os professores (e quiçá com os próprios estudantes) na construção do material,

para que este faça mais sentido às pessoas que vão utilizá-lo.

1.2 Outros caminhos

A seguir apresento quatro trabalhos em mediação com vistas a situar meu lugar de

fala. Isto é, elencarei distintos projetos que mantêm de semelhança entre si a mediação e o

teatro para apontar o Mediato como uma possibilidade dentre tantas outras. Por isso, não é

demais relembrar que não se trata de uma contextualização histórica, muito menos de um

levantamento catalogal; mas de uma abertura do olhar para outras formas de compreender e

praticar a mediação.

Ao apontar para outros trabalhos intenciono com eles dialogar não pelas

semelhanças, mas justamente pelas diferenças; e ao mesmo tempo, explicitar minha surpresa

com a relação de proximidade, atinente ao formato e aos conceitos, que eles mantém entre

si, mesmo tratando-se de projetos realizados em épocas diferentes e em distintos Estados do

Brasil. Veremos que os trabalhos serão apresentados a partir de quatro pesquisadores – que

em alguns casos é o próprio idealizador do projeto, em outros atuou como coordenador ou

mediador – marcando assim, e valorizando, cada lugar de fala como particular. Tendo em

vista que é impraticável o aprofundamento em cada um deles farei uma descrição breve

elencando apenas o que considerei um diferencial e/ou o que pode dialogar com a presente

pesquisa.

1.2.1 Flávio Desgranges e o Projeto Formação de Público

Flávio Desgranges (2002; 2008; 2010; 2011; 2012) traz uma importante contribuição

acerca da sistematização da prática da mediação voltada às Artes Cênicas no Brasil. Apesar

da dificuldade de elencar uma prática ou questões conceituais do autor que sejam relevantes

para esta pesquisa (pois quase todas são), escolhi o Projeto Formação de Público26

desenvolvido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo entre os anos 2001 e 2004.

Desgranges (2008; 2011) descreve e analisa os procedimentos pedagógicos do último ano

26 Em nota de rodapé Desgranges (2011, p. 152) esclarece que o projeto “contou com a curadoria de Gianni

Rato, a orientação geral de Flávio Aguiar, a orientação de Maria Silvia Betti, Luiz Fernando Ramos, Silvia

Fernandes e Flávio Desgranges, além da participação de nove coordenadores pedagógicos e quarenta e sete

monitores” bem como funcionários da Secretaria de Cultura.

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de ações pedagógicas (2004) do qual participou e sobre o qual falarei a seguir. Nesta etapa

“participaram da ação um total de 305 escolas municipais, com um público estimado de

257.000 alunos. Eram 11 grupos teatrais que circulavam com seus espetáculos, apresentados

durante o ano letivo” (2008, p. 76).

De acordo com Desgranges (2011, p. 160) as três principais linhas de atuação

pedagógica adotadas por ele no projeto foram: os debates entre artistas e espectadores após

a apresentação da peça; os cursos de formação oferecido aos professores; e os “ensaios de

desmontagem, procedimentos pedagógicos de mediação teatral oferecidos nas escolas, antes

e depois dos espetáculos, aos alunos participantes, visando dinamizar a recepção da obra”.

O primeiro (debate com os artistas) objetivava “a revelação dos meandros da arte teatral e o

convite a que os espectadores formulassem concepções pessoais da cena”. O segundo “tinha

como objetivo preparar os professores das escolas para que, aprimorando seu conhecimento

sobre teatro, pudessem mediar o encontro de seus alunos com esta arte” (p. 162). O terceiro,

ensaios de desmontagem, são as mediações propriamente ditas, realizadas nas escolas antes

e após o espetáculo, chamadas respectivamente pelo autor de ensaios de preparação e

ensaios de prolongamento. Tinham em vista “tanto a sensibilização prévia para o evento,

quanto o estímulo para a efetivação de uma leitura acurada da obra assistida” (p. 166),

reforçando a coautoria, além de propor prolongamentos criativos, nos quais os espectadores

eram convidados a produzir artisticamente.

De acordo com Desgranges (2011, p. 166) os ensaios de desmontagem se utilizavam

de “exercícios teatrais semelhantes aos que os artistas realizaram no processo de construção

do espetáculo” levando “os participantes a experimentarem, ainda que por curto período,

algumas atividades que os próprios criadores da cena poderiam ter experienciado durante o

processo de concepção da montagem teatral”. Com isso objetivavam criar uma intimidade

entre o público e as possibilidades expressivas utilizadas na obra. Cabe dizer que as

mediações não pretendiam segundo o pesquisador “dar conta de todos os múltiplos e

complexos aspectos de uma encenação, mas [optavam] por selecionar ângulos de ataque,

alguns aspectos marcantes da montagem teatral em questão” (p. 170). A escolha desses

“ângulos de ataque” levavam em consideração tanto as características e especificidades da

obra cênica quanto o trabalho que já estava sendo desenvolvido com o grupo de participantes

e seu contexto.

O “curso para professores se dava em consonância com a frequentação aos

espetáculos que integravam o projeto” (DESGRANGES, 2011, p. 163). Era realizado com

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os professores um processo semelhante à mediação feita com os estudantes, isto é, aqueles

eram estimulados com espetáculos, oficinas e análises assim como os educandos também o

seriam posteriormente. Almejando-se com isso “que os professores conquistassem a

consciência plena de um processo de ensino e aprendizagem a ser desenvolvido com os

alunos, calcado, como lhes foi proposto, na experimentação e análise de exercícios teatrais

em oficina” (p. 164). Dessa forma, primeiramente o corpo docente era inserido nos processos

de mediação para em seguida auxiliar a imersão dos estudantes.

Um último aspecto do Projeto Formação de Público que considero relevante

mencionar é a formação dos mediadores que, assim como a formação dos professores, seguiu

os mesmos princípios da mediação, ou seja, considerou os profissionais (futuros mediadores)

como educandos envolvidos nos processos de desmontagem do espetáculo. Ou seja,

Desgranges (2011), assumindo o papel de mediador, concebeu e executou os ensaios de

preparação e de prolongamento com os mediadores com vistas à prepara-los para que

posteriormente estes organizassem suas próprias oficinas para os educandos. Assim os

profissionais puderam compreender na prática como a mediação pode acontecer. Esta

formação proposta pelo autor – etapa que chamo na atual pesquisa de treinamento de equipe

– pode apontar soluções para os problemas levantados anteriormente a respeito de como

treinar/formar mediadores.

Podemos verificar que o Mediato se assemelha ao formato e a alguns conceitos acima

expostos. Conversa com artistas, encontro com professores e mediações antes e após o

espetáculo compôs a estrutura de ambos os projetos. Seus objetivos também se aproximam:

de sensibilização, produção poética por parte dos estudantes, dentre outros. Contudo, vale

ressaltar que essa compreensão do professor como um participante da mediação faltou ao

Projeto Mediato, conforme dito anteriormente, e se assemelha ao que o professor Ulisses

(Teatro, Gama-DF) apontou em entrevista: “daí existe outra sugestão, articular com mais

professores para eles também fazerem a mediação. Não! Não fazerem a mediação,

participarem do processo enquanto estudantes, enquanto alunos para aprender a ler a

linguagem do espetáculo”. De alguma forma foi isso que Desgranges (2011) fez no Projeto

Formação de Público do Estado de São Paulo com os docentes, e que possivelmente me

apropriarei para os próximos trabalhos.

Cabe dizer que no ano anterior à concepção do Mediato tive conhecimento deste

projeto realizado em São Paulo por meio do livro do pesquisador. Todavia, não dei a devida

atenção ao que Desgranges (2011) propõe nas duas etapas (treinamento de mediadores e

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formação de professores), a saber: a compreensão de professores e mediadores como

educandos em um processo que é estético e pedagógico, unindo a forma ao conteúdo. Talvez

por um conforto com a apropriação e transposição de ações bem sucedidas realizadas no

âmbito das Artes Visuais para o Teatro, acabei repetindo o que observei por sete anos no

CCBB no que diz respeito ao treinamento de mediadores. Treinamento este, não me furto o

elogio aos mestres, amplamente fundamentado e com excelentes resultados.

1.2.2 Ney Oliveira e o projeto Cuida Bem de Mim

O segundo trabalho de mediação que elenco é o projeto Cuida Bem de Mim,

idealizado em 1996 na Bahia pelo diretor teatral, dramaturgo e educador Luiz Marfuz, cuja

proposta central consistia em atividades com o público antes, durante e depois do espetáculo.

Voltado exclusivamente para escolas públicas, sua meta era diminuir a depredação do espaço

escolar através do teatro, trabalhando o tema violência com jovens de periferia. O projeto,

inicialmente financiado pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia, era desenvolvido

a longo prazo dentro das escolas (cerca de cinco a oito meses), o que permitia aferir

resultados concretos na escola e na comunidade.

Apresentarei o projeto a partir da tese de doutorado de Ney Wendell Oliveira (2011,

p. 24) que o coordenou durante sete anos. Em sua pesquisa o autor analisa além de Cuida

Bem de Mim – “que, em doze anos (de 1996 a 2008) realizou ações de mediação teatral com

350 mil espectadores, em 850 apresentações para escolas públicas dos Estados da Bahia,

Pernambuco, Rio de Janeiro e na capital federal, Brasília” – avalia também projetos de

mediação teatral em algumas cidades do Estado do Québec-Canadá, com vistas à

comparação. “A pesquisa sobre o Québec apresenta outro foco, complementar, sobre as

políticas de mediação cultural direcionadas à população, em geral” (p. 30). Tal análise

comparativa – entre Bahia e Québec – leva o autor a afirmar o lugar da escola como campo

promissor para os processos da mediação teatral e a ratificar a importância de agir na

construção de políticas culturais para a formação de público no Brasil. 27 Essa conclusão

parte da descoberta do autor de que prática semelhante ao Cuida Bem de Mim existia no

Québec antes de 1996, mas lá atualmente são compreendidas como políticas públicas.

27 Para maior aprofundamento ver a pesquisa na íntegra. Título da tese: “A Mediação Teatral na Formação de

Público: o projeto Cuida Bem de Mim na Bahia e as experiências artístico-pedagógicas nas instituições culturais

do Québec”.

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À época de seu desenvolvimento Cuida Bem de Mim não era chamado de mediação,

mas de ações educativas nas escolas. O termo mediação teatral vem com a tese, na qual

Oliveira (2011) explica que o eixo do processo formativo eram as atividades antes da peça

(preparação) durante a peça (apropriação) e depois da peça (reverberação).

A primeira etapa (preparação) acontecia no ambiente escolar e tinha como objetivo

“sensibilizar e mobilizar a escola para que ela participasse integralmente do projeto, além de

prepará-la para o uso potencializado dos conteúdos presentes no espetáculo” (OLIVEIRA,

2011, p. 25). Este momento envolvia, segundo o autor, as seguintes atividades: entrevista

com a direção da escola; diagnóstico do ambiente; intervenções teatrais sobre o projeto em

todas as salas como forma de divulgação e convite; performance teatral com uma cena do

espetáculo realizada no pátio em horário de intervalo; seminário com representantes

estudantis; seminário com professores e oficina dramático-pedagógica. Os seminários

“tinham como eixo a temática dos problemas e soluções da escola, utilizando-se, como base,

as frases – a ‘escola que se tem’ e a ‘escola que se quer’ –, que seriam trabalhadas junto a

cada um desses públicos” (p. 59). A última atividade, oficina dramático-pedagógica,

consistia em um momento prático do seminário no qual “os temas iam para o corpo, a voz e

os movimentos dos participantes, saindo de um diálogo mais racional e experienciando o

cotidiano da escola a partir do teatro”; e ainda era a oportunidade “para que alunos

representassem papéis de professores, diretores assumissem papéis de alunos ou de

professores e vice-versa” (p. 61).

A segunda etapa (apropriação) acontecia em um teatro. Envolvia: recepção do

público; distribuição de lanche; apresentação do projeto e regras de convivência no espaço;

questionário antes e após a apresentação com 10% dos estudantes; exibição de vídeo

documentário de 15 minutos com parte do processo de montagem da peça; apresentação do

espetáculo; e debate em torno de 20 a 40 minutos. Segundo Ney Oliveira (2011, p. 76) “nem

mesmo na escola era tão comum reunir os alunos, diretores e professores, em um mesmo

local, para dialogarem com o tema mais polêmico para todas essas pessoas juntas: a própria

escola”. E diz ainda que os problemas advindos do âmbito escolar apontados durante o

debate eram anotados para serem problematizados no pós-peça.

A terceira etapa (reverberação), novamente na escola, consistia em desdobrar a peça

“em eixos teóricos e temáticos, nas aulas e em projetos especiais [...]. Professores e alunos,

enquanto comunidade escolar, [eram] estimulados pela equipe do projeto à criação conjunta

de ações concretas” (OLIVEIRA, 2011, p. 49). Eram realizadas nesta fase: um “oficinão de

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teatro” com duração de um turno; oficinas de iniciação teatral (por meio de inscrição) com

duração de três a quatro meses, no contra turno escolar, finalizando com uma apresentação

em um festival de teatro também realizado pelo projeto; curso de educação pela arte para

docentes; acompanhamento pedagógico; grupo de trabalho com estudantes; e relatório

devolutivo à escola. O momento pós-peça focalizava, segundo o autor, a “escola que se tem”

e a “escola que se quer”, com vistas a efetivar a mudança; e por isso era a parte mais longa

do projeto.

O projeto, bem como a peça que levava o mesmo nome, tinha um objetivo claro e

delimitado de repercutir na vida escolar, e de forma mais ampla na vida social, de estudantes,

professores e comunidade, “usando a arte como um eixo transformador” (OLIVEIRA, 2011,

p. 50). O conjunto de ações educativas apresentava a “finalidade de interferir naquela

realidade [na escola] e transformá-la, no que se refere à diminuição da violência e ao

aumento do vínculo afetivo nas relações humanas” (p. 44).

Oliveira (2011) verifica em sua tese que o projeto alcançou resultados concretos

demonstrando sua eficiência. Nos primeiros dois anos já verificaram profícuos resultados:

“Em pesquisa realizada pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia, em 1998, viu-se

que a escolas atendidas pelo projeto tinham diminuído, em 36%, os gastos com a depredação

escolar”. Durante os doze anos de atividades o autor constatou

a diminuição da depredação escolar; a criação de grupos teatrais ou de outras

linguagens artísticas; o desenvolvimento do acesso cultural das comunidades de

escolas da periferia; a formação ou ativação de grêmios; a criação de grupos de

trabalhos para a melhoria da escola; gincanas sociais; mutirões de limpeza; festivais

de arte; um incremento de atividades artísticas na metodologia dos professores;

maior rendimento escolar dos jovens participantes das atividades; a qualificação

artístico-pedagógica dos professores, entre outros resultados relacionados ao

aprimoramento das relações interpessoais e também à conservação do patrimônio

escolar. (OLIVEIRA, 2011, p. 45)

Certamente, trata-se de um projeto a longo prazo. Diferente do Mediato que ficou

entre uma e duas semanas em cada instituição, Cuida Bem de Mim residia por cerca de cinco

a oito meses nas escolas que abrigavam a proposta. Isso possibilitava o desenvolvimento de

atividades de forma contínua, bem como a verificação e a avaliação dos resultados.

Algo que me chamou a atenção neste projeto, além de sua continuidade ao longo do

ano letivo, foi o fato de o diretor Luiz Marfuz ousar, experimentando substituir atores

profissionais por jovens atores, que também exerceram a função de mediadores junto ao

público escolar. Segundo Ney Oliveira (2011, p. 45-46) “a partir de 2002 o espetáculo [...]

passou a ser feito por jovens atores, entre 15 a 21 anos, oriundos de bairros populares e

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61

escolas públicas. Estes jovens eram educandos do grupo de teatro da ONG Liceu de Artes e

Ofícios da Bahia”. De acordo com o autor os futuros atores e educadores passaram por

dezoito meses de preparação artística e pedagógica para em seguida assumir não apenas o

espetáculo, mas também as ações de mediação dentro das escolas – o que se deu com

acompanhamento de educadores mais experientes e coordenadores do projeto. E diz ainda

que o passo foi essencial para a liderança dos jovens criando mais proximidade entre a escola

e as ações.

Oliveira (2011, p. 159) compreende o público como um vivenciador da obra teatral

e ao longo de sua pesquisa exemplifica com momentos do projeto em que a arte foi

legitimamente vivida por estudantes e familiares, e mais, ocasiões em que o teatro,

juntamente aos processos de mediação, repercutiu nas vidas, transformando-as. Isso justifica

o entendimento da arte como meio, presente na pesquisa do autor, que toma como base "o

teatro como experiência artística e pedagógica" e como potencial para o "desenvolvimento

da pessoa e da cidadania". Nas palavras do pesquisador: "O Cuida Bem de Mim foi um

exemplo de uma obra utilizada como produto didático dentro das escolas" (p. 161). Vale

ressaltar que esta perspectiva da arte como instrumento de transformação também estava

indiretamente presente na obra Da Janela e no Projeto Mediato, o que será problematizado

no próximo capítulo. Ambos espetáculos (Da janela e Cuida Bem de Mim) mantêm de

semelhança, a meu ver, o caráter didático, de mobilização, de desejo de transformação.

O autor coloca, portanto, a mediação teatral como uma possível metodologia a ser

utilizada no ambiente escolar e o teatro como instrumento de mudança deste lugar: “Este

projeto artístico-pedagógico [Cuida Bem de Mim] utilizava o teatro para o enfrentamento da

violência nas escolas, trazendo na prática a metodologia de mediação teatral” (p. 19). E

ainda: “chega-se à conclusão de que a mediação teatral existe como uma metodologia viável,

e efetiva uma transformação pessoal e social de públicos diversos” (p. 172).

Dessa forma, o projeto Cuida Bem de Mim, assim como a pesquisa de doutorado de

Ney Oliveira (2011, p. 9), tem seu foco no ambiente escolar como lugar de acolhida da

mediação e principalmente como cenário de transformações na vida escolar e social de

estudantes, professores, diretores e familiares. Nas palavras do autor, sua tese “afirma o lugar

da escola como campo promissor para os processos da mediação teatral”, e diz ainda, “é

nesta direção de aprimoramento da educação que se localiza a mediação teatral” (p. 143).

O entendimento da mediação como metodologia escolar ou ainda como salvaguarda

desse espaço educacional institucionalizado é uma possibilidade. É importante aclarar que

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62

tal compreensão é distinta da proposta nesta pesquisa, embora seu objeto de estudo – o

Projeto Mediato – tenha apontado para questões semelhantes, pela sua inserção na escola,

sobretudo com os desejos dos estudantes de tornar o projeto permanente, como foi dito

anteriormente.

1.2.3 Martha Moraes e o SESC Arte-educação: Transformando Plateias

O terceiro trabalho é o da pesquisadora Martha Moraes (2014) que implementou em

2012 um Programa Educativo no Teatro SESC Paulo Autran, da Região Administrativa de

Taguatinga-DF, chamado “SESC Arte-educação: Transformando Plateias”, cujo foco inicial

era a formação continuada para professores, na expectativa de torna-los multiplicadores,

estimulando-os a mediar a ida de seus alunos ao teatro. A ação, segundo a autora, consistia

em um ciclo de palestras/oficinas em arte-educação para professores, que foi dividido em

nove módulos, sendo um por mês, totalizando 36h/a. Além do trabalho com os professores

havia mais dois eixos dentro do programa: a facilitação do acesso com espetáculos gratuitos

em dias e horários acessíveis ao público escolar, bem como o oferecimento de oficinas

pontuais; e o bate-papo com artistas.

Cabe ressaltar que a autora, também gestora cultural da referida instituição, propôs o

projeto em 2010, mas em função de burocracias e falta de verba só foi viabilizado mais de

um ano após. Em 2011 o programa funcionou de forma experimental com parcerias,

momento em que algumas ações foram desenvolvidas e também analisadas por ela em sua

dissertação de mestrado intitulada “Formação de espectadores jovens e adultos: A recepção

teatral no programa educativo ‘SESC Arte-educação Transformando Plateias’”, da qual me

aproprio para apresentar o projeto. As ações da fase experimental não serão aqui descritas

tendo em vista o curto espaço que dedico à apresentação dos trabalhos.

O Programa Educativo contou ao final de 2012 com a contratação de mediadores e

passou a oferecer também ações educativas antes e após o espetáculo, que geralmente

aconteciam dentro da escola. O que marcava os encontros pré e pós no SESC Arte-educação

eram respectivamente os jogos cênicos e um bate-papo abordando aspectos formais e

temáticos da obra seguido de proposições criativas/poéticas; quando possível entremeados

pela reflexão dialogal acerca do que estava sendo feito. Sistemática semelhante realizei no

Projeto Mediato.

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63

De acordo com Moraes (2014, p. 109) o Programa Educativo foi reformulado ao

longo de sua experimentação e em 2013 ele se apresentava como um “guarda-chuva de ações

culturais mediadoras” tendo o Teatro SESC Paulo Autran como centro e abarcando diversas

ações culturais e parcerias que eram realizadas não necessariamente de forma concomitante.

Tais como: encontros, seminários e congressos em arte-educação e cultura; formação

continuada para professores; oficinas pontuais para estudantes; gratuidade e em alguns casos

transporte escolar por meio de parceria com a Secretaria de Educação do DF; visita guiada

aos bastidores e maquinário do teatro; e contratação de mediadores para ações antes, durante

e após o espetáculo (quando os espetáculos eram realizados pelo próprio SESC). Além da

parceria com outros projetos, festivais, escolas públicas e particulares.

Nesta fase as mediações aconteceram da seguinte forma: “o mediador contratado

planejou as mediações com uma palestra de 20 minutos antes da apresentação, bate-papo

mediado entre plateia e artistas e pós-mediação em sala de aula, de 100 minutos por turma,

em formato de oficina” (MORAES, 2014, p. 113). Contudo, a autora conclui que esse

formato pode ter sido motivo de cansaço e a justificativa para que vários estudantes saíssem

durante o bate-papo depois da peça, conforme afirma: “este dado demonstra que, talvez, a

palestra de 20 minutos antes do espetáculo somada ao espetáculo, ao preenchimento do

questionário e ao bate-papo pós, seja um pouco cansativo” (p. 118).

Os esforços da gestora cultural Martha Moraes (2014, p. 84) se voltaram, o que é

explicitado com sua pesquisa, à problemática gerada ao acessibilizar apenas a entrada física

do público sem a devida preocupação com a sua recepção. Tendo em vista que estava em

um espaço institucional que já dispunha de programação (o SESC), mas muitas vezes carecia

de público, a pesquisadora estabeleceu parcerias com a educação formal e com grupos de

teatro. Inclusive solicitou “em contrapartida [à isenção de taxa de utilização do teatro],

apresentações com entrada franca em horários escolares e/ou (dependendo do caso) oficinas

pontuais para estudantes da educação básica e/ou bate-papo entre os artistas e plateia após

os espetáculos”. Neste sentido ela foi uma articuladora, essencial à efetivação do Programa

Educativo.

Sobre a problemática exposta acima Moraes (2014, p. 17) conta que era recorrente

no SESC a prática de pedir socorro à direção da escola da mesma instituição (EDUSESC)

para que levassem seus estudantes do noturno para preencher cadeiras vazias na plateia em

função da escassez de público. Isso era feito minutos antes do espetáculo, ou seja, sem

nenhuma preparação/sensibilização. Segundo a autora isso era desastroso pois os estudantes

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64

assistiam ao espetáculo à contragosto; algo que nem sabiam o que era. “Achavam que

estavam perdendo aula, não entendiam o sentido de estar ali, conversavam durante a peça,

reclamavam para a direção. Não se dispunham a uma experiência estética, a um diálogo com

a obra”.

Logo, com tal dificuldade, compreende-se que o olhar da pesquisadora se voltou para

as ações da mediação como possibilidade de minimizar, ou mesmo resolver essa apatia e

esse distanciamento provocado por uma estratégia que ao “resolver” o problema da falta de

público, gera, a meu ver, o efeito contrário, a médio e longo prazo. Dessa forma, enquanto

gestora cultural Moraes tinha um duplo problema: cadeiras vazias e cadeiras cheias de

desinteresse. O que a levou ao que Desgranges (2008, p. 77) chama de “formação de público”

e “formação de espectadores”, a primeira sendo a “viabilização do acesso físico dos

espectadores ao teatro [...]almejando, assim, a ampliação dos freqüentadores em potencial”;

enquanto a segunda “visa não apenas a facilitação do acesso físico, mas também, e

principalmente, a do acesso lingüístico”.

Cabe notar, este é um lugar (com suas respectivas preocupações) diferente do

Mediato, e distinto também se comparado aos projetos Cuida Bem de Mim e Projeto

Formação de Público (de São Paulo), pois o SESC Arte-educação Transformando Plateias

se destaca justamente por partir de um espaço institucionalizado de teatro. Espaço este com

seus respectivos impasses, pois como afirma Moraes (2014) a atuação do agente cultural é

considerado um trabalho de guerrilha.

Moraes (2014, p. 108) constatou com sua observação e análise que o Programa

Educativo alcançou seu objetivo de provocar a emancipação e a autonomia do espectador,

de sensibilizar provocando um olhar curioso à obra, sanando o problema do desinteresse.

“Ficou evidente [...] o impacto da mediação prévia, pois tanto o interesse quanto o nível de

aprofundamento das perguntas foi bastante distinto entre as turmas que participaram da

mediação anterior e as que não.” Verificou também que a mediação (antes, durante e depois)

feita por profissionais da área, se comparado ao trabalho de formação dos docentes, surte

"resultados mais potentes em nível de acesso linguístico, pois há ainda pouca reverberação

na mudança de consciência dos professores na escola. Assim, paralelamente à formação

continuada, se faz necessária a contratação de mediadores teatrais" (p. 109). A autora conclui

ainda que as “mediações atuam em caráter imediato, dando sentido aos sentidos [...] As

demais ações culturais promovidas [...] são fundamentais para a permanência dessa

formação de espectadores a longo prazo” (p. 125).

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65

1.2.4 Glauber de Abreu e a questão da contenção do abandono

Intencionalmente ao final, por auxiliar a localização conceitual da presente pesquisa

pela via comparativa, apresento o quarto trabalho, do pesquisador, e também mediador,

Glauber Gonçalves de Abreu (2015) com sua dissertação de mestrado intitulada

“Experiência e Mediação em Teatro: abandonar-se para não abandonar”. O autor traz um

entendimento de mediação que, poderia dizer, está em um lugar conceitualmente anterior ao

desta pesquisa. Enquanto me debruço sobre a dilatação de uma possível experiência, Abreu

coloca seu olhar sobre a contenção do abandono. Abandono este que impossibilitaria a

experiência. Para o autor, a mediação pode propiciar um espaço onde (talvez) haja a feitura

da experiência e com isso cria princípios para a contenção do abandono. Embora a dilatação

também se aplique aos sentidos como preparação para a experiência, ou seja, como um

antecedente; e a contenção do abandono, da mesma forma, dedique-se a certa continuidade,

como contenção de um abandono posterior (ABREU, 2015), o foco das respectivas

pesquisas estão, de forma complementar, no que pode anteceder (conter o abandono) e que

pode suceder (dilatar) a experiência.

Em sua pesquisa Abreu (2015, p. 11) considera que há situações em que o espectador

pode abandonar a possibilidade de experiência com a obra. A partir disso investiga tipos de

abandono e cria princípios para contê-lo, colocando a mediação como espaço favorável para

tal. Assim, a ideia de abandono é trabalhada como “condição antagônica” à experiência. A

partir de então, o autor investiga e formula práticas artístico-pedagógicas para mediação de

espetáculos teatrais contemporâneos tendo em mente o que provoca o abandono e suas

formas de contenção. O momento que antecede o contato com a obra é por ele chamado de

“atividade para conquista da Serenidade” (fazendo referência à Heidegger) e o momento que

sucede de “atividade para desdobrar e compartilhar” (ABREU, 2015, p. 105). Podemos ver

aqui que o formato antes e depois do espetáculo se repete.

As intervenções realizadas pelo autor foram organizadas no que ele chama de

“espelho de mediação”, um avanço, a meu ver, no que diz respeito à sistematização do

trabalho do mediador, o que pode contribuir decisivamente nos treinamentos de equipe.

Segundo Abreu (2015, p. 112) “o espelho não condiciona um formato específico de

mediação; vai se realizar de maneira distinta com cada mediador, levando em consideração

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66

as características e contextos de cada espetáculo, respeitando a condição da singularidade”.

Para o autor, trata-se de um olhar sobre o processo criativo do mediador.

Em sua função o “espelho” se assemelha ao que chamei de “plano de mediação”,

desenvolvido durante o treinamento do Mediato, e também ao que era chamado de

“percurso” no CCBB, pois os três têm por objetivo o planejamento prévio do que será

desenvolvido na mediação. Não como um roteiro a ser seguido e sim como uma estrutura

norteadora. Contudo é o espelho de Glauber de Abreu (2015, p. 76) que, dentro das artes

cênicas, sistematiza com maior objetividade o trabalho de um mediador. Além disso esse

instrumento não se restringe, em seu planejamento, ao momento de contato com o público,

isto é, da mediação propriamente dita; mas abrange desde os movimentos iniciais de

conhecer os artistas, compreender o contexto de ação e o público alvo, o que o autor chama

de “diagnóstico”.

Seguido ao “diagnóstico” vem a “pesquisa” e a “criação pedagógica”. Este último

movimento seria equivalente ao “plano de mediação” ou ao “percurso” (nas Artes Visuais).

Ou seja, o espelho é mais abrangente, compreendendo a sistematização do trabalho que, de

acordo com minha trajetória, sempre esteve a cargo de um coordenador pedagógico

(levantamento de material, pesquisa, etc.). E isso, vale ressaltar, torna o instrumento mais

valioso, uma vez que, em algumas ocasiões, os mediadores são convidados por grupos de

teatro e atuam de forma autônoma, sem um profissional que os orientem a respeito dos

caminhos que podem ser tomados para se chegar à ação fim: a mediação.

Além das questões conceituais e de sistematização já apontadas, o trabalho de Abreu

(2015) se destaca por suas mediações juntamente à espetáculos contemporâneos de teatro e

dança; por sua coordenação na Ação Formativa do já citado Festival de Teatro Brasileiro

(FTB) em alguns estados brasileiros; e igualmente pela sua atuação na capacitação em

mediação de espetáculos teatrais para estudantes de graduação do curso de Licenciatura em

Teatro da Universidade de Brasília, no âmbito da Universidade Aberta do Brasil

(UnB/UAB).

A seguir apresento um quadro resumo dos quatro projetos até aqui expostos,

incluindo o Mediato, para facilitar a compreensão de suas respectivas etapas. Reitero que a

ideia de apontar para outras pesquisas e/ou projetos objetiva com eles dialogar não pelas

semelhanças, mas justamente pelas diferenças, e com isso localizar a minha pesquisa, bem

como valorizar o que cada projeto tem de sui generis.

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67

QUADRO RESUMO DOS PROJETOS

PROJETO Informações

iniciais

Formato/

Etapas

Mediadores

equipe

Treinamento

da equipe Duração

Público

Alvo

Diálogo com

ambiente escolar Referências

Mediato

Financiado pelo

Fundo de Apoio

à Cultura da

Secretaria de

Cultura do

Distrito Federal.

Atendeu, em

sua única

edição, cerca de

2mil pessoas

entre estudantes

e professores de

4 escolas

públicas do DF.

O espetáculo foi

criado para o

projeto tendo

em vista o

público alvo.

- Visita às

escolas e

fechamento de

cronograma;

- Treinamento da

equipe;

- Encontro com

professores;

- Produção de

material didático

(caderno de

mediação);

- Mediações

antes e após o

espetáculo;

-Apresentação

da peça seguida

de conversa com

artistas;

- Oficinas de três

dias apenas para

inscritos no

contra turno

escolar,

totalizando 12h

em cada escola.

Estudantes

graduandos ou

profissionais

formados nas

áreas de Artes

Cênicas, Artes

Visuais e Dança.

Formação da

equipe:

4 mediadoras,

2 supervisoras

(responsáveis por

acompanhar

diretamente todas

as mediações),

1 coordenadora

geral e

pedagógica

(responsável por

conceber,

acompanhar e

reformular o

projeto, bem

como treinar a

equipe) e

1 produtora.

Encontros

diários de 3 ou

4 horas

durante duas

semanas,

totalizando 32

horas com:

leitura prévia

de textos;

apresentação

de seminários;

elaboração de

oficinas;

contato com a

obra; diálogo

com artistas; e

concepção dos

planos de

mediação.

Responsável:

coordenadora

pedagógica

(Arlene von

Sohsten)

3 meses.

Nas escolas as

mediações

aconteciam

dentro de uma

ou duas

semanas. O

antes, o

durante e o

depois do

espetáculo

totalizavam

cerca de

4h40min, com

cada turma,

distribuídas ao

longo de uma

semana.

Estudantes

de Ensino

Médio de

escolas

públicas de

quatro

Regiões

Administrati

vas do

Distrito

Federal.

Jovens entre

15 e 18 anos

de idade.

Bem como

professores

das mesmas

instituições.

O projeto aconteceu

dentro das escolas.

A escolha desse

espaço deu-se

principalmente por

uma questão

estratégica de ser

este o lugar de

encontro do público

alvo. Contudo não

objetivava a

transformação direta

desse ambiente.

O encontro com os

professores visava

apresentar o projeto,

esclarecer o papel

da mediação, e

incentivar a

continuidade por

meio do caderno de

mediação.

Idealizado e

coordenado por

Arlene von

Sohsten.

Descrito e

analisado na

pesquisa de

mestrado

intitulada “A

mediação como

(dilatação da)

experiência

estética – uma

análise do

Projeto

Mediato”

(SOHSTEN,

2016).

O projeto

continua ativo

após a

pesquisa. Mais

informações:

www.projeto

mediato.com

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PROJETO28 Informações

iniciais

Formato/

Etapas

Mediadores

equipe

Treinamento

da equipe Duração

Público

Alvo

Diálogo com

ambiente escolar Referências

Projeto

Formação de

Público *Salvo

explicitado o

contrário os

dados a seguir

dizem respeito

ao último ano de

projeto (2004)

Iniciativa da

Secretaria

Municipal de

Cultura de São

Paulo.

Em 2004

atendeu um

total de 305

escolas

municipais,

com um público

estimado de

257.000

estudantes.

Eram 11 grupos

teatrais que

circulavam com

seus

espetáculos

durante o ano

letivo nos

teatros dos

CEUs (Centros

Educacionais

Unificados).

- Logística

organizacional

de escolas,

grupos teatrais,

monitores,

agentes culturais,

empresa de

transporte e

demais parceiros.

- Formação

continuada em

teatro para

professores;

- Apresentação

do espetáculo

seguido de

debate com

artistas (cada

escola assistia a

três espetáculos

durante o ano);

- Oficinas de

preparação e de

prolongamento

respectivamente

antes e depois da

peça;

Formação da

equipe: curadoria

de Gianni Rato,

orientação geral

de Flávio Aguiar,

orientação de

Maria Silvia

Betti, Luiz

Fernando Ramos,

Silvia Fernandes

e Flávio

Desgranges; nove

coordenadores

pedagógicos e

quarenta e sete

mediadores; além

de funcionários

da Secretaria de

Cultura de SP.

* Não obtive

informações sobre a

formação

profissionais dos

mediadores.

O treinamento

consistiu em um

processo de

mediação

semelhante ao

que os estudantes

dos CEUs eram

submetidos. Isto

é, os mediadores

passaram pelos

“ensaios de

desmontagem”.

Responsável:

orientador

artístico-

pedagógico

(Flávio

Desgranges)

4 anos

(criado em

2001 e

extinto em

2005 com a

mudança

de

prefeitura).

Estudantes

jovens e

adultos do

Ensino

Médio dos

CEUs

As atividades

ocorreram, em 2004,

dentro dos Centros

Educacionais

Unificados

construídos pela

prefeitura na periferia

da cidade, contendo,

cada uma, um teatro.

Houve formação

continuada para

professores visando

motivá-los “a

assumirem-se

enquanto

espectadores plenos e

formadores

capacitados. [...]

almejava

especialmente criar

nos educadores o

gosto por teatro,

reconhecendo-o

como espaço efetivo

e prazeroso de

produção de

conhecimentos”

(DESGRANGES,

2008, p. 80).

Coordenado

(em 2004),

descrito e

analisado por

Flávio

Desgranges no

livro Pedagogia

do Espectador:

provocação e

dialogismo

(2011) e no

artigo

Mediação

Teatral:

anotações sobre

o Projeto

Formação de

Público (2008).

28 Os quadros foram compostos a partir de informações retiradas das pesquisas elencadas até o momento, bem como adquiridas com os próprios pesquisadores.

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69

PROJETO Informações

iniciais

Formato/

Etapas

Mediadores

equipe

Treinamento

da equipe Duração

Público

Alvo

Diálogo com

ambiente

escolar

Referências

Cuida Bem

de Mim *Não houve

necessariamente

a presença de

todas as etapas

ao longo dos 12

anos de projeto.

Inicialmente

financiado pela

Secretaria de

Educação do

Estado da Bahia.

Atendeu cerca de

350 mil

espectadores, em

850 apresentações

(do mesmo

espetáculo) para

escolas públicas

dos Estados da

Bahia,

Pernambuco, Rio

de Janeiro e

Brasília, ao longo

dos 12 anos de

funcionamento

O espetáculo, que

leva o mesmo

nome do projeto,

foi criado

exclusivamente

para este fim com

vistas à

diminuição da

violência e

depredação

escolar.

- Antes: entrevista

com a direção da

escola;

diagnóstico do

ambiente;

intervenções

teatrais e

performance

realizadas na

escola; seminário

com

representantes

estudantis e

professores; e

oficina dramático-

pedagógica.

- Durante:

apresentação da

peça seguida de

conversa com

artistas;

- Depois: oficinas

de teatro; curso

para professores;

grupo de trabalho

com estudantes; e

relatório

devolutivo à

escola.

A partir de 2002 a

mediação, assim

como o próprio

espetáculo,

passou a ser feita

por jovens atores,

entre 15 a 21

anos, oriundos de

bairros populares

e escolas públicas.

Incialmente 15 e

nos últimos anos

35 jovens.

Formação da

equipe:

coordenação

geral,

coordenação

artística,

coordenação

pedagógica,

coordenação de

sistematização

(desenvolvimento

das pesquisas de

impactos),

coordenação de

produção e

coordenação

técnica.

Os jovens atores

foram preparados

para a prática

pedagógica da

mediação ao

longo dos 18

meses de

reelaboração do

espetáculo.

Estes foram

acompanhados

por uma equipe

pedagógica no

decorrer das

atividades de

mediação nas

escolas.

Havia

profissionais

oriundos de

teatro, pedagogia,

sociologia e

serviço social, que

passaram por uma

formação em

“Tecnologia

Educacional com

Teatro” (TET)

desenvolvida por

Luiz Marfuz.

Os encontros

eram diários com

cerca de 4h

Durou 12

anos (1996

a 2008)

Residia por

cerca de

cinco a

oito meses

em cada

escola.

* Tendo em

vista que se

tratavam de

muitas

ações não é

possível

mensurar a

duração das

mesmas.

Estudantes,

professores e

diretores de

escolas

públicas da

Bahia. O

projeto visava

também os

familiares dos

educandos.

Ou seja,

envolvia a

comunidade

escolar como

um todo. *Posteriorment

e o projeto foi

levado para

outros Estados

conforme dito.

Tanto o projeto

quanto a peça

tinham um

objetivo claro de

transformar o

ambiente escolar,

repercutindo na

vida pessoal e

social de

estudantes,

professores e

comunidade

como um todo.

Tendo como

meta diminuir a

depredação da

escola.

O trabalho com

os professores

visava a

sensibilização, a

transformação e

principalmente a

capacitação para

que estes dessem

continuidade ao

que estava sendo

realizado.

Idealizado por

Luiz Marfuz.

Descrito e

analisado na

pesquisa de

doutorado

intitulada “A

Mediação Teatral

na Formação de

Público: o projeto

Cuida Bem de

Mim na Bahia e

as experiências

artístico-

pedagógicas nas

instituições

culturais do

Québec”

(OLIVEIRA,

2011). O autor,

Ney Oliveira,

coordenou o

projeto por sete

anos (2001-

2007), sua análise

incide sobre esse

recorte temporal.

Mais informações

http://www.uesc.

br/editora/livrosdi

gitais_20141023/

cauidabemdemim

.pdf

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70

PROJETO Informaçõe

s iniciais

Formato/

Etapas

Mediadores

equipe

Treinamento

da equipe Duração

Público

Alvo

Diálogo com

ambiente

escolar

Referências

SESC Arte-

educação

Transforman

do Plateias *Não houve

necessariament

e a presença de

todas as etapas

ao longo dos 4

anos de projeto.

Financiado

pelo Teatro

SESC Paulo

Autran de

Taguatinga-

DF.

Apresentou

dois

momentos

distintos: o

primeiro

centrado na

formação

continuada

de

professores

(2012) e o

segundo na

mediação

teatral

(2013).

O projeto

aconteceu

com vários

espetáculos

diferentes,

não havendo

escolha dos

mesmos.

Primeiro momento

(2012) - Ciclo de

palestras/oficinas em arte-

educação para professores:

9 módulos, um por mês,

totalizando 36h/a;

- Teatro ao avesso para

grupos de estudantes

previamente agendados;

- Facilitação do acesso

físico (entrada franca e

espetáculos em horários

escolares)

Segundo momento

(2013): “guarda-chuva de

ações culturais

mediadoras”: encontros,

seminários e congressos

em arte-educação e

cultura; formação

continuada para

professores; oficinas

pontuais para estudantes;

gratuidade e em alguns

casos transporte escolar

por meio de parceria;

visita guiada aos

bastidores e maquinário

do teatro e contratação de

mediadores para ações

antes, durante e após o

espetáculo (quando estes

eram realizados pelo

próprio SESC). Além de

outras parcerias.

Ao final de

2012 houve 1

mediadora

licenciada em

Teatro. Em

2013 foram 2

com a mesma

qualificação.

Houve ainda a

gestora cultural

que concebeu,

acompanhou e

reformulou as

ações. Além dos

profissionais/téc

nicos e

estagiários de

artes cênicas do

próprio SESC e

das instituições

parceiras.

Em 2012 não

houve

treinamento, a

mediadora

conduziu o

trabalho de

forma

autônoma.

Em 2013 houve

de acordo com

Moraes (2014,

p. 113)

“planejamento

metodológico

junto ao

mediador”, com

duração de 3h,

bem como

entrega de

material

informativo e

registro

audiovisual do

espetáculo aos

mediadores.

Idealizado em

2010,

implementado

em 2012 e

reformulado

em 2013.

Suspenso

temporariame

nte de abril de

2015 até o

presente

momento.

As mediações

duravam a

temporada do

espetáculo.

* Tendo em

vista que se

tratavam de

muitas ações

pontuais não é

possível

mensurar a

duração das

mesmas.

Estudantes

e

professores

de todos os

segmentos

da

educação

Básica,

com

prioridade

às escolas

públicas.

Inicialmente ciclo

de

palestras/oficinas

em arte-educação

para professores,

visando torna-los

multiplicadores,

para que eles

mediassem a ida

ao teatro com seus

educandos.

Posteriormente

ações mediadoras

nas escolas,

sobretudo na

escola da própria

instituição

cultural

(EDUSESC).

Outras ações,

como as oficinas

pontuais, por

exemplo também

focavam o

público escolar.

Idealizado e

coordenado

pela gestora

cultural do

Teatro SESC

Paulo Autran

Martha

Moraes.

Descrito e

analisado na

pesquisa de

mestrado

intitulada

“Formação de

espectadores

jovens e

adultos: A

recepção

teatral no

programa

educativo

‘SESC Arte-

educação

Transformand

o Plateias’”

(MORAES,

2014)

Mais

informações

em:

www.sescarte

educacao@bl

ogspot.com.br

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71

A partir dos trabalhos até aqui elencados faço alguns apontamento. Os cinco trabalhos

harmonizam dois lados: a prática de mediação e a pesquisa. Em todo caso, sendo esta

consequência daquela. Embora harmonizar não signifique ir na mesma direção, pois a

pesquisa enquanto análise da prática pode revelar incoerência e necessidade de revisão das

ações, como será o caso desta.

Flávio Desgranges (2011) mostra como os professores e os próprios mediadores

podem ser envolvidos nos processos de mediação como se estes fossem educandos, com

vistas a prepara-los, sensibiliza-los. Ou seja, unindo a forma ao conteúdo durante o processo

respectivamente de envolvimento e treinamento desses profissionais. Fazendo-os

compreender na prática esse processo que é estético e pedagógico.

Ney Oliveira (2011) aponta para uma correlação entre o que estava sendo

desenvolvido na Bahia e no Québec desde a década de 90 atinente ao formato do trabalho

de mediação (antes, durante e depois do espetáculo); e elenca a escola como ambiente central

dos processos de mediação, sobretudo como palco para a transformação escolar e social no

que diz respeito ao tema violência. A mediação para o autor é a própria metodologia que

deve ser aplicada nas escolas.

Diferente do Mediato, que utilizou o espaço escolar por uma questão estratégica o

Cuida Bem de Mim ao contrário objetivava a inserção e a mudança neste mesmo espaço.

Outro contraste é que a mediação teatral é colocada como metodologia dentro da escola para

dinamizar as aulas e efetivar uma transformação pessoal e social do público (OLIVEIRA,

2011); enquanto no Mediato e na atual pesquisa, como será visto adiante, não há

compreensão da mediação como metodologia escolar.

Glauber de Abreu (2015) se debruça sobre a contenção do abandono anterior ou

posterior à obra, sendo a anterior crucial para a criação de um ambiente favorável à

experiência. Além disso, sistematiza o trabalho do mediador de teatro criando um

instrumento para uma prática ainda incipiente no Brasil.

Martha Moraes (2014) assume a fala e atua a partir do lugar da gestora cultural de

um espaço institucionalizado de teatro, que é distinto do lugar de fala dos outros

pesquisadores. Ela mesma afirma que seu trabalho investiga a recepção teatral na perspectiva

do gestor cultural. No meu caso e no caso do mediador/pesquisador Glauber de Abreu

(2015), por exemplo, nos colocamos a partir do espaço do mediador e do coordenador

pedagógico. Essas particularidades valorizam cada pesquisa como singular, revelando um

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72

trabalho mais voltado à articulação de ações culturais, e outro direcionado aos meandros do

mediar e da experiência estética, respectivamente.

Vimos com os trabalhos acima que ter um único espetáculo, criado exclusivamente

para o projeto, não é regra nos trabalhos de mediação. Acredito que seja mais comum a

criação de ações mediadoras para peças em circulação (DESGRANGES, 2011; MORAES,

2014; ABREU, 2015).

A formação continuada de professores é uma preocupação constante

(DESGRANGES, 2011; OLIVEIRA, 2011; MORAES, 2014; ABREU, 2015). Observando

outras pesquisas pude compreender que no Mediato o encontro com o corpo docente

realizado antes das mediações não poderia ambicionar uma formação, mas, sobretudo por

seu caráter imediato, apenas informar sobre o Projeto e articular a escola para recebe-lo. Um

único encontro não é suficiente para mobilizar os professores a provocar desdobramentos

em sala de aula. Todavia, conforme demonstrado anteriormente, a própria mediação

realizada com estudantes e observada por professores foi capaz de gerar uma modificação

sensível em alguns desses profissionais, levando-os a repensar e até reestruturar sua atuação,

como foi o caso do professor Ulisses Pereira (Teatro, Gama-DF).

Enfim, são trabalhos que se destacam por suas singularidades mas também mantém

entre si semelhanças. Por exemplo, todos corroboram a importância do formato antes,

durante e depois, e o assume como prática, ou ainda, todos concordam que a função da

mediação não é informar explicitando seu caráter crítico, criativo, sensível.

Feito este breve panorama reafirmo o meu lugar de narrativa, com a escolha do

Projeto Mediato, como objeto da atual pesquisa, o que implica em um recorte e uma

localização a partir dos quais foram tecidos os conceitos e a análise constantes no próximo

capítulo. Ou seja, há lugares de fala e o meu se situa no Mediato, com suas características

próprias.

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73

2 A MEDIAÇÃO COMO (DILATAÇÃO DA) EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

Uma espécie de abismo rasgas esse texto. Ele é otimista

porque o escrevemos. Se não houvesse penumbra, nos

calaríamos.

Maria Beatriz de Medeiros

Para pensarmos a mediação alguns conceitos se mostram incontornáveis: recepção,

alteridade, interpretação, narrativa, experiência estética. Os dois últimos, contudo, serão o

foco do primeiro momento deste capítulo. Pretendo, a seguir, explicitar a importância da

criação de narrativas dentro dos processos de mediação, bem como aproximar a própria

mediação do conceito de narrativa presente em Walter Benjamin (1994). E, a partir de

semelhanças encontradas entre a personagem G.H. de Clarice Lispector (1995) e os escritos

de Georges Didi-Huberman (2010) sobre a relação entre olhante-olhado, desfiar um

entendimento para o que se chama experiência estética na arte, por meio de uma reflexão

sobre a posição do sujeito na experiência. Aproprio-me ainda da noção de experiência de

Jorge Larrosa Bondía (2015) sendo ela o que nos acontece, o que nos passa e não o que

passa, o que simplesmente acontece. Por fim, este lugar encontrado para o sujeito da

experiência será também o lugar da mediação.

Em seguida, apresento três possibilidades para o que se chama aqui de mediação

como (dilatação da) experiência estética. A narrativa, que vai se configurar como a primeira

e principal via de dilatação, estará presente nas outras duas, a saber: produção de semelhança

e aproximação entre real e ficcional. Para dialogar com a prática utilizarei, ao longo de todo

o capítulo, trechos do registro audiovisual do Projeto Mediato realizado em 2014 dentro de

instituições públicas de Ensino Médio pertencentes à Secretaria de Estado de Educação do

Distrito Federal (SEDF), assim como falas de entrevistas realizadas em 2015 com estudantes

e professores (as) participantes das ações.

Outra questão a ser tratada neste segundo capítulo – que surge como desdobramento

da ideia de mediação como dilatação da experiência estética – é a mediação como ruptura,

para a qual lanço a seguinte investigação: como a mediação pode provocar uma ruptura – ou

cenas de dissenso, como coloca Jacques Rancière (2012) – no sentido de uma mudança de

percepção por parte dos/das estudantes/espectadores (as) e se configurar como um espaço

de troca estético-político? O político será inscrito nas mesmas margens do estético, por isso,

adotarei as relações de proximidade entre essas duas esferas tecidas por Rancière (2009a;

2009b; 2012).

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74

Por fim, a ideia de ruptura conduzirá a uma autocrítica quanto às relações de causa e

efeito e ao posicionamento/direcionamento ideológico do Projeto de forma geral (material

impresso, espetáculo e mediações). Neste momento demonstro como o Mediato não

contemplou totalmente a noção de mediação defendida nesta pesquisa, distanciando-se em

alguns casos dos seus propósitos e impossibilitando a experiência e a dilatação. Para tanto

lanço mão de uma apreciação sobre a arte crítica feita por Rancière (2012), mais

especificamente quando ele afirma que é um risco a política estar no conteúdo e não na

estética, o que transponho para as ações mediadoras. Retomo Bondía (2015) quando fala do

par informação-opinião como responsáveis pelo declínio da experiência e me aproprio

também de Virgínia Kastrup (2004; 2005) com seu conceito de aprendizagem inventiva.

No título deste capítulo há uma dupla proposição: a mediação como experiência

estética; e a mediação como dilatação desta. No início da pesquisa a primeira tratava-se de

uma possibilidade de ações mediadoras se configurarem como novas experiências estéticas,

o que será exemplificado adiante quando uma turma é envolvida em um novo processo de

fruição para além do espetáculo. Atualmente penso que essa primeira proposição

compreende também o fato de a mediação aqui proposta seguir os mesmos princípios da

experiência (estética) – de Bondía (2015) e Didi-Huberman (2010). O segundo e principal

entendimento do título, que traz a ideia de dilatação, diz respeito a um modo de mediação

com a qual pretendo dialogar; cujas abordagens conceitual e metodológica serão exploradas.

A mediação compreende basicamente dois movimentos: a dilatação dos sentidos para a

experiência estética – o que acontece antes do contato com a obra; e a dilatação da

experiência estética – que acontece após – cujo desenvolvimento terá mais luz neste trabalho.

Relembrando que a dilatação é no sentido estrito da possibilidade, não da garantia, posto a

impossibilidade de assegurar a experiência.

Explicito, nas próximas páginas, um entendimento para o que compreendo por

dilatação, além das noções de sentido, estética e experiência que serão tratadas aqui.

Sobretudo porque as duas últimas não estão limitadas ao espaço/tempo exclusivo do

espetáculo, ou de qualquer obra de arte.

2.1. Considerações iniciais sobre experiência, dilatação, sentido e estética.

O trabalho pedagógico da mediação não é pautado em outra coisa que no desejo de

dilatar os sentidos para a experiência e dilatar a experiência para a invenção de sentidos. De

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75

forma cíclica. Conhecer os escritos de Larrosa Bondía (2015), ao longo desta pesquisa me

levou a perceber que esses dois pontos fundamentais (experiência e sentido) não são

exclusivos da mediação, pois o autor os reivindica para a educação de forma geral. Ele nos

propõe pensar a educação a partir do par “experiência/sentido” ao invés de teoria/prática ou

ciência/técnica. Ou seja, a educação não seria para o autor nem uma técnica aplicada, nem

uma práxis reflexiva, mas uma experiência dotada de sentido. Ele coloca, portanto, essas

duas instâncias como necessárias a uma educação que se pretenda emancipada e

emancipadora; que tenha relação com vida, que seja vital, que problematize as formas de

olhar, de dizer e de pensar o pedagógico.

Por isso, a noção de experiência será aqui tomada em diálogo com esse educador

espanhol, para quem a “experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.

Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas,

porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.” (BONDÍA, 2015, p. 18). A partir de

Heidegger ele toma o sujeito da experiência como um sujeito alcançado, tombado,

derrubado; e também como um sujeito sofredor, padecente, receptivo, submetido. “Não um

sujeito que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; [...] mas um

sujeito que perde seus poderes precisamente porque aquilo de que faz experiência dele se

apodera.” (p. 28). Mas isso não significa que esse sujeito seja incapaz de ação. Ele tem sua

própria força e se expressa produtivamente, mas não dentro da lógica criticada pelo autor, a

saber: da informação, da opinião, da velocidade e do trabalho.

Como nos ensina Bondía (2015) a experiência diz respeito, portanto, a uma pessoa

(de forma subjetiva), em um tempo e espaço (um tempo que não pode ser controlado ou

planejado previamente) como forma sensível. Ela não é clara, objetiva, organizada ou

organizável. Assim como o corpo, é finita; em movimento; mutável. E por isso se diferencia

radicalmente da lógica do experimento segundo o autor. Certamente há outras possibilidades

de experiência que não seja estética, mas não é delas que vou tratar. Por isso, a noção de

experiência usada neste trabalho pressupõe a estética e se assemelha a de Bondía (2015):

como algo singular mas que produz pluralidade, único, irrepetível, sensível, que nos

acontece, que nos toca, que nos modifica.

Geralmente, a palavra dilatar vem associada a significados que carregam os

referenciais de tempo e espaço, como fazer durar e aumentar o tamanho (expandir),

respectivamente. Na escola aprendemos que a dilatação de um metal, por exemplo, refere-

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se ao aumento das dimensões (volume) de um corpo sob a influência de uma variação de

temperatura. Tal definição é similar à pretendida aqui, pois a dilatação difere de um

crescimento natural. Ela necessita de uma influência externa para se concretizar. De tal

modo, compreende-se a dilatação da experiência estética como uma manifestação temporal

que acontece em função de interferências da mediação.

As ações mediadoras refreiam a experiência e contém o seu vigor, com vias de

prolonga-la; não meramente pelo alongar-se, mas para desenvolver as potencialidades de

suas partes constituintes. Para explorar o que há de germinal na experiência estética. Para

descobrir e inventar sentidos.

A dilatação é uma forma de explorar o movimento de aproximar-se e distanciar-se,

intrínseco à mediação. Como um olhar que, ora está sobre um prédio, ora dentro da cidade.

Em um elevado edifício experimenta-se um olhar amplo, do todo. Dentro da cidade não há

mais a visão abrangente, mas ganha-se um olhar íntimo, das partes. Este momento, imerso e

envolto, permite aprender sobre casas, prédios, (suas fachadas e seus interiores) a respeito

de ruas, carros, bicicletas, jardins, (e seus ruídos), acerca da vida urbana e seu ritmo.

Analogamente, os processos de mediação tencionam experienciar estes distintos

movimentos do olhar: o de dentro e o de fora, o próximo e o distante, os detalhes e o todo.

Há uma figura, que servirá de imagem-síntese para a mediação aqui proposta. Ela já

foi explorada por artistas, psicanalistas e outros, contudo não se desgasta enquanto potência

significativa. Trata-se da fita de Moebius. Um dentro que traz, inevitavelmente, um fora: a

pura ambivalência. O artista holandês Maurits Cornelis Escher realizou duas xilogravuras

com esta representação; na segunda, Fita de Moebius II (1963), o artista a fez com formigas

transitando sobre sua superfície. “Uma fita circular fechada tem, em geral, duas superfícies,

uma interior e uma exterior. Sobre esta fita, contudo, andam nove formigas vermelhas, uma

atrás da outra, e elas passam sobre o lado exterior e também sobe o interior. Assim, a fita só

tem uma superfície.” (ESCHER, 2010, p. 122). Opto, nessa apropriação, pela segunda

justamente porque o artista explicita, por meio das formigas, o caminhar contínuo entre o

interno e o externo; para si e para o outro; entre o íntimo e êxtimo.

Este neologismo (êxtimo) criado por Lacan (apud RIVERA, 2014) fala de uma

intimidade exterior. Logo, utilizo o termo não como oposto ao “íntimo” e sim como uma

continuidade externa do que há de mais singular dentro. Tal continuidade (interno-externo)

se dá em direção a um outro (obra de arte ou sujeito). Isso nos permite utilizar esta imagem

também para a relação de alteridade, noção fundamental à mediação. As formigas

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evidenciam o movimento de alteridade: vai em direção ao outro e retorna para si em eterno

movimento.

A mediação é esse exercício de caminhar pela fita: pela experiência, que é o singular

dentro, e pela invenção de sentidos, que pode ir ao encontro do que há fora. O inseto

caminhando é a própria dilatação, uma ação no espaço e no tempo.

Figura 1 – Fita de Moebius II (formigas). Escher. 1963

xilogravura 45,3 x 20,5 cm.

Fonte: Catálogo de exposição O mundo mágico de Escher. (2010, p. 122)

A dilatação também se figura como espaço-tempo para a assimilação do que está se

vivenciando naquele momento. Assimilar é aqui compreendido como o processo de

transformar o que se recebe em algo que faça sentido para si próprio; é “converter em sua

própria substância”.29 E se pensarmos que tal conversão se dá, inevitavelmente, em relação

às vivências prévias, podemos entender que acontecimentos anteriores podem ser resgatados

e atualizados pela vivência em curso durante a mediação. Ou como afirma John Dewey

(2010, p. 147), “coisas retidas da experiência passada, que tenderiam a ficar batidas por

29 Trecho do verbete “assimilar” em Minidicionário Larousse da Língua Portuguesa.

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causa da rotina ou inertes por falta de uso, transformam-se em coeficientes de novas

aventuras e se reveste de um novo significado.” Inclusive, qualquer coisa que se passa nos

sujeitos participantes, passa a partir de uma bagagem particular que os constitui.

Trata-se, assim, de um tempo necessário à assimilação. Do qual os verbos relacionar,

apropriar-se, impregnar, converter e incorporar fazem parte. Este último é compreendido

literalmente quando se atribui forma corpórea à (e na) produção de sentidos, por meio da

proposição de ações que envolvam os corpos dos próprios estudantes. Trazer para próximo

do (e colocar no) corpo é um recurso potente para a mediação voltada às artes do corpo e do

espetáculo.

Conforme dito, há na mediação aqui proposta uma dilatação que é da experiência

estética (o que se daria após o contato com a obra, compreendendo a experiência

exclusivamente enquanto possibilidade); e há a dilatação dos sentidos com vistas à abertura

necessária à feitura da experiência. Todavia, há uma confusão quando falamos em produção

de sentidos na mediação. Por vezes acha-se que ela está vinculada ao contato com a obra, no

nosso caso, com assistir ao espetáculo; por vezes ela aparece associada exclusivamente ao

ato interpretativo que é parte constituinte da mediação. Prefiro, contudo, tomar a palavra, e

o conceito, de forma ampliada e coloca-la como potencialmente presente durante todos os

momentos: da mediação ao espetáculo.

Sendo a produção de sentidos uma questão fulcral para a mediação, tomarei o

entendimento de John Dewey (2010, p. 88), para quem o “sentido abarca uma vasta gama

de conteúdos: o sensorial, o sensacional, o sensível, o sensato e o sentimental, junto com o

sensual. Inclui quase tudo, desde o choque físico e emocional cru até o sentido em si – ou

seja, o significado das coisas presentes na experiência imediata.”

Ainda segundo o autor, tanto a atividade prática quanto a intelectual, possui

qualidade estética, quando integrada e consumada. Deste modo, mesmo que a mediação

comporte atividades dessa natureza sua qualidade estética não será comprometida. Até

mesmo porque ela não é um momento exclusivamente intelectual, ou de ação. É, em sua

totalidade, um momento de produzir sentidos. E é pela via dos sentidos (ampliados pelas

ações mediadoras) que podemos pensar a dilatação da experiência na mediação. Pois se o

estético diz respeito aos sentidos; ao propor uma dilatação da experiência estética, propõe-

se também a dilatação destes.

Compreender a qualidade estética da mediação é de suma importância, pois existem

tantas “experiências” inestéticas que, inconscientemente, elas passam a ser tidas como a

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79

norma (DEWEY, 2010), sobretudo no âmbito escolar. Tais anti-experiências, segundo o

autor, não se consumam, são interrompidas, e/ou não produzem sentido para o indivíduo ou

coletividade. Por isso, penso que seja interessante desenvolver atividades (e a reflexão está

inserida) que explorem os sentidos em toda sua amplitude.

Para Maria Beatriz de Medeiros (2005, p. 13) “A aisthesis, estética no sentido grego

do termo, é um estar aberto ao mundo, aberto ao sensível do/no mundo e deixar-se

contaminar”. É a percepção pelos sentidos. E lembra muito bem a autora que tratando a

estética dos sentidos, do sensível, não há de se pensar apenas no prazer, mas também no

desprazer, no horror. “Aquilo que dá prazer, ou desprazer, nos arranca do ambiente em que

estamos, projetando-nos em um mundo que se forma entre o sujeito e a obra”. E ainda a

“aisthesis funda o imaginário. É ela que abre o ser humano para a subjetividade e para a

intersubjetividade. Aisthesis e desejo de compartilhar” (MEDEIROS, 2005, p. 57-58).

A noção de estética associada ao desejo de compartilhar será retomada adiante

quando tratarei da narrativa. Por enquanto interessa-nos a perspectiva de estética associada

à necessária abertura, a certa experimentação de uma relação com o sensível e a criação de

um outro mundo, como possibilidade deste que vivemos. Assim como a arte nos possibilita

ficcionar o real, ou ver o real por meio dos olhos da ficção e na experiência o real nos aparece

em sua singularidade (BONDÍA, 2015), assim também necessitamos na mediação, pela via

da manutenção do estético, propor ações que permitam ao público continuar esse processo

de abertura para o sensível deixando-se contaminar, singularizar.

A noção de estética será aqui compreendida dentro e para além das margens do

artístico. Consequentemente, uma experiência estética não está exclusivamente relacionada

ao contato com uma obra de arte. Segundo Rancière (2009a), a arte e a política são regimes

semelhantes. Ambos são essencialmente estéticos, são formas de reconfiguração do mundo

sensível. Suas relações se dão como formas de dissenso, como reconfigurações da

experiência comum do sensível (RANCIÈRE, 2012).

Para o filósofo temos de ampliar nosso entendimento de estética, e compreende-la

como “modos de percepção e sensibilidade, a maneira pela qual os indivíduos e grupos

constroem o mundo. É um processo estético que cria o novo, ou seja, desloca os dados do

problema.” (2009a, n.p.). E ainda, como “um modo de articulação entre maneiras de fazer,

formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de pensabilidade de suas relações,

implicando uma determinada ideia de efetividade do pensamento.” (2009b, p. 13).

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A arte, a política, a estética e a mediação (esta, justamente por lidar com as três

instâncias anteriores, o que discutirei no subcapítulo “ruptura”) estão diretamente ligadas

com uma reorganização do que é perceptível. Para Rancière (2009b) elas têm capacidade

para mexer com as hierarquias sensíveis do pensamento, desorganizar a forma como

entendemos o que nos é dado, ou melhor, o que e como é partilhado.

O conceito de “partilha do sensível” desenvolvido pelo mesmo autor será útil para a

definição de estética, bem como para certa aproximação da ideia de educação que se pretende

para o atual trabalho. Primeiramente porque a ideia da partilha abre a uma dupla questão: a

participação em algo que seja comum a outro (s); e a distribuição, repartição. Portanto, trata-

se da maneira como se dá a relação entre o comum compartilhado e a divisão das partes.

Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao

mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e

partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um

comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se

funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina

propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e

outros tomam parte nessa partilha. O cidadão, diz Aristóteles, é quem toma parte no

fato de governar e ser governado. Mas uma outra forma de partilha precede esse

tomar parte: aquela que determina os que tomam parte. (RANCIÈRE, 2009b, p. 15-

16).

Reorganizar a forma como pensamos essa partilha (o que e como é partilhado, e quem

define a distribuição) é um movimento do qual a arte tem se ocupado. Creio que a mediação

como forma educativa estética-política também toma parte nessa ocupação quando se propõe

a investigar e inventar meios para colocar em causa a partilha do sensível que nos é dada.

2.2 O sujeito dilatado

Compreendi que a melhor forma de iniciar um diálogo entre narrativa, experiência,

sujeito e dilatação seria justamente exteriorizando por meio desse recurso (a narração) uma

experiência. Tendo em vista as noções até aqui expostas, ousei desfiar, em tom ensaístico, a

produção de uma narrativa realizada após visita à exposição Ciclo: criar com o que temos -

2ª edição que reuniu obras de vários artistas no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de

Brasília-DF, entre fevereiro e abril de 2015. E a proponho, a partir de então, como imagem-

metáfora para adentrarmos as próximas ideias.

A porta havia se fechado às suas costas; estava agora inevitavelmente dentro. Havia

uma janela; uma claridade vinha dela. Havia um corpo, aliás, a silhueta de um corpo que se

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projetava frente à janela; o corpo olhava à claridade. Tal cena se precipitava de dentro de

uma moldura, ovoide como um olho, um enorme olho inquieto que impossibilitava que a

imagem se fixasse. A imagem, constituída por linhas em movimento, tentava se

reestabelecer, mas o grande olho a reconstruía incessantemente; tão rápido que não se podia

fixa-lo. “Um presente perene”. Pensou. “O presente, agora morto, já é memória”. Tudo o

que foi visto antes do último piscar de olhos já não é mais, mas era.

A silhueta se desmanchava e se materializava em outros lugares dentro da cena; tal

figura agora tomava proporções maiores e menos indefinidas. A janela permanecia.

Imaginava: “o que o corpo via?”. “O que tanto se via através daquela janela?”. “O que há lá

fora?”. “Por que aquela imagem não se tornava logo nítida e se permitia ser vista?”, pensou.

O que é uma janela? Uma estrutura mais ou menos geométrica de metal, de madeira, de

vidro. Ou não, janela é o que há para além dessa estrutura, o buraco, a paisagem. Se eu

pudesse deslocar minha janela, para onde a levaria?

No meio do devaneio o guardião inquieto projetou-se em sua direção e perguntou se

havia entendido o enigma. Uma palavra-chave lhe foi dada: “Espelho”. Espelho era o nome

daquele enigma. Não uma janela, mas um espelho. O fora tornou-se dentro. Tudo o que ela

via além, virou-se em sua direção, como um reflexo. Ela calou. Houve então a comunhão.

Foi-lhe permitida a entrada, mas era um caminho sem volta. Dali em diante sua única

opção era desnudar-se. E assim o fez. Havia um som que a acompanhava desde sua entrada,

e estava agora mais audível. Inquietante e paradoxalmente agradável, o barulho a

acompanhava durante toda a travessia.

Canogar, que estava a sua espera, deu-lhe a mão. Contou-lhe histórias sobre a vida e

a morte; falou sobre a guerra, o desperdício, a submissão; sobre a evolução do homem e o

uso de aparelhos eletrônicos como extensão do próprio corpo; sobre o novo e sobre o desejo;

a respeito da vida e da morte de aparelhos eletrônicos. Quanta coisa aos pedaços! Aquilo era

uma expedição arqueológica. Todos aqueles objetos foram fundamentalmente íntimos na

vida de alguém! Eram apenas restos agora. Mas restos da extensão de corpos, corpos que

ainda deviam estar vivos. Corpos vivos, objetos mortos! Corpos mortos, objetos vivos!

Na verdade, havia uma montanha de objetos (peças eletrônicas) e uma multidão de

pessoas se rastejava por baixo, entre e sobre aqueles fragmentos; pessoas se rastejando em

pedaços de memória.

O som está cada vez mais alto. Decide então ir em sua direção e despede-se de

Canogar. Enfim, descobre de onde vem o barulho: de instrumentos; quase uma banda, mas

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sem músicos, eram, portanto, instrumentos autônomos. Sentiu aqueles objetos sonoros no

corpo e quis dançar. Mas viu a imagem intolerável. Desnudou-se demais. Os instrumentos

eram, antes, instrumentos de morte. O corpo calou gritando. Como pôde confundir? Como

pôde não ver antes todos aqueles instrumentos bélicos?

Fragilizada e descoberta por fim encontrei uma banheira onde talvez pudesse deitar

e descansar meu corpo. Mas fui cegada pelo reflexo fulgurante e cortante daquela banheira.

O vazio daquele objeto não me permitia olhá-lo apenas como banheira. Meu corpo não quis

ver, pois era desumano; mas o vazio daquela obra me olhava; olhei de volta com um olhar

de morte e meu corpo então sentiu as centenas de lâminas de barbear que constituíam aquela

banheira. Imagem limítrofe, jogou meu corpo de volta para mim.

Durante toda a exposição tencionei olhar aqueles objetos e eles me olharam de volta.

Eles me convidaram a abrir os olhos para experienciar o que eu não via, o que estava para

além da evidência do visível. Eu sabia que aqueles objetos me olhavam. Havia um ato

consciente de atribuição de poder à coisa olhada. E com esse poder me questionavam que

lugar eu ocupava ali.

Figura 2 –Espelho de Canudos Darwiniano I. Daniel Rozin (Israel) 2010.

Computador, softwere personalizado, câmera de vídeo e projetor.

Fonte: site <http://artbymeera.blogspot.com.br/2010_12_01_archive.html> Acesso em abril 2015

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Figuras 3 e 4 – Micro Dados. Daniel Canogar (Espanha) 2014. Peças descartadas, projetor e reprodutor multimídia.

Fontes: registro pessoal e site do artista <https://www.artsy.net/artwork/daniel-canogar-asdf> Acesso em abril 2015.

Figura 5 – Desarme. Pedro Reyes (México) 2013.

Aproximadamente 6.700 armas confiscadas. Instalação com 8 instrumentos mecanizados.

Fonte: Divulgação site < http://www.achabrasilia.com/ciclo/> Acesso em abril 2015.

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Figura 6 – Vamos dar um tempo. Tayeba Begum Lipi (Bangladesh) 2013. Lâminas e manta de aço inoxidável.

Fonte: registro próprio

Um ponto central para a mediação é o lugar que o sujeito ocupa (na

contemporaneidade). Na sua condição de espectador, e também fora dela. Contudo, essa

questão mobilizadora não é exclusiva da mediação. A arte e a psicanálise refletem sobre ela

há um tempo – talvez por isso as duas áreas venham estreitando cada vez mais suas relações.

Podemos ver artistas e críticos tratando do retorno do sujeito dentro da produção artística.

Penso com Tânia Rivera (2014, p. 20) quando diz que o “sujeito está no centro da questão

da arte. Isso poderia parecer um viés subjetivante, ou, pior, psicologizante. Mas não se trata

disso. É necessário afirmar hoje que a arte contemporânea é marcada por um verdadeiro

retorno do sujeito”.

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A autora coloca que esse sujeito perde seu lugar para retornar como questão. Mas

que lugar seria esse? O recinto do olho soberano, o recinto da relação com uma arte dada a

um olho fixo! O sujeito desmaterializou e problematizou suas fronteiras em relação ao outro

– o eu apela ao outro: um outro sujeito, obra. Descentrado, em sua percepção, ele não

consegue mais ocupar o mesmo espaço de antes e isso pede uma mediação do olhar. O

retorno do sujeito seria, a meu ver, o que mobiliza, e em alguma medida justifica a mediação.

Antes que essas fronteiras fossem colocadas em questão perguntas como “qual o meu

lugar como sujeito na contemporaneidade?” ou “qual a minha condição como espectador?”

não tinham lugar, ou ao menos não eram evidenciadas. Entretanto, cabe apontar que

desmaterializar as fronteiras não quer dizer tornar-se o outro. É assumir uma co-

dependência, é complementar-se no outro, é colocar-se momentaneamente no (lugar do)

outro. Certa alteridade.

Claudio Cajaiba (2013) aponta em Teorias da recepção que a noção de alteridade –

imprescindível para pensarmos os processos de recepção teatral hoje – foi discutida por

teóricos (principalmente da hermenêutica filosófica) já no início do século XIX. Essas

noções permitiram encarar textos, objetos, ações, de forma interpretativa para além da

exclusiva intencionalidade do autor, ou do detentor da coisa. Este foco dado ao intérprete,

com sua dimensão individual e subjetiva, foi criticado e acusado de psicologizante segundo

Cajaiba, no entanto, não se pretendia focar exclusivamente no receptor, mas sim na relação

entre objeto e sujeito. “A relação entre o horizonte do sujeito e o do objeto é a chance para

que a voz da alteridade se faça escutar. O outro se faz escutar através do eu que o interpreta”

(CAJAIBA, 2013, p. 28).

Talvez seja disso também que nos fala Jeanne Marie Gagnebin (2013, p. 39) quando

analisa os conceitos de história e narração em Benjamin e traz a noção de alegoria como

consequência de um caminho que parte da morte da tradição para a desorientação e

melancolia, culminando na perda da totalidade. O que provocaria, por sua vez, o surgimento

da alegoria.

A alegoria cava um túmulo tríplice: o do sujeito clássico que podia ainda afirmar

uma identidade coerente de si mesmo, e que, agora, vacila e se desfaz; o dos

objetos que não são mais os depositários de estabilidade, mas se decompõe em

fragmentos; enfim, o do processo mesmo de significação, pois o sentido surge da

corrosão dos laços vivos e materiais entre as coisas, transformando os seres vivos

em cadáveres ou em esqueletos, as coisas em escombros e os edifícios em ruínas.

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A autora diz acima que o conhecimento alegórico é tomado pela vertigem: não há

mais ponto fixo, nem com relação ao objeto, nem com relação ao sujeito; não há verdade,

nem sujeito soberano. Há sim um desmoronamento das certezas, da estabilidade, da

totalidade. E a alegoria vem para expor essas ruínas. Dessa forma, o retorno do sujeito como

questão, apontado por Rivera (2014), flertaria diretamente com o surgimento da alegoria,

que cria esse novo sujeito que “vacila e se desfaz”: um sujeito dilatado.

Acredito realmente que a mediação tenha se desenvolvido e se difundido em função

de uma demanda do “retorno do sujeito” e de um “regime estético da arte” (RANCIÈRE,

2009b), pois esse deslocamento do sujeito convoca o espectador a um novo estado. Assim

como há uma nova forma de presença dos atores e dos performers, há também uma nova

presença do espectador. E a mediação quer – me apropriando das palavras de Rivera

novamente – “convocar o sujeito a uma nova forma de presença.” As ações mediadoras

buscam, portanto, caminhar juntamente aos estudantes-espectadores, auxiliando-os na busca

do seu lugar como sujeito na obra e fora dela. Mas certamente, não se trata de um lugar pré-

determinado e fixo.

Rancière (2009b) define o regime estético das artes como aquele que as desobriga de

toda e qualquer regra específica. O autor chega a propor uma substituição da noção de

modernidade pela noção de regime estético, colocando este, como a ruína do sistema de

representação. Adoto o termo para falar da produção artística que geralmente chamamos de

moderna e principalmente a produção contemporânea. Contudo, não posso dela falar com

exclusividade, uma vez que, uma obra de quatro séculos atrás pode ser espantosamente

contemporânea, se pensarmos a investida no lugar que o espectador ocupa.

Talvez o lugar do sujeito-espectador dilatado seja o já postulado por Michel Foucault

(2007) em sua análise da famosa pintura Las Meninas (1656) de Velásquez. Quiçá, o próprio

artista, no século XVII, já exigiu este lugar. No quadro há o pintor em sua função (seria um

autorretrato?), com uma grande tela à diagonal. Dela vemos apenas o verso, parcial. Ele

antecipa uma pincelada observando seu possível modelo. Velásquez olha diretamente para

fora do quadro. Com isso, ele nos exige a inevitável presença e um olhar de regresso. “O

pintor só dirige os olhos para nós na medida em que nos encontramos no lugar do seu

motivo.” (FOUCAULT, 2007, p. 5) e esse olhar aceita tantos modelos quantos espectadores

lhe apareçam. Ou seja, a obra só nos olha se a olharmos primeiro e esse processo é

infindavelmente individual. O sujeito, então, está dentro da pintura, uma vez que esse pintor-

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observador captura quem estiver na direção do seu olhar, para representa-lo em sua tela. Que

dela, novamente, vemos apenas o avesso.

Como se não bastasse estar dentro, visível ao pintor e invisível para si, o sujeito

encontra-se novamente dentro da pintura: no espelho que há, nada mais, nada menos, que no

centro, quase geométrico, do quadro. Nele, refletem os modelos que posam, mas também

nós, que o olhamos. “Essas figuras [que o pintor olha e que olham o pintor] são, uma e outra,

igualmente inacessíveis, mas de modo diferente: a primeira por um efeito de composição

que é próprio ao quadro; a segunda, pela lei que preside à existência mesma de todo quadro

em geral.” (FOUCAULT, 2007, p. 10). Ou seja, o casal real (Filipe IV e Mariana de Áustria)

seria naturalmente o modelo daquela pintura; e ao mesmo tempo o sujeito observador,

espectador, e por que não, participante daquela cena. Cabe ainda atentar que essa segunda

perspectiva deixa claro um caráter que é intrínseco à arte: de demandar a presença do sujeito.

Stuart Hall (1997), ao falar sobre representação e discurso toma a análise feita por

Foucault e assinala que o modelo não é diretamente representado, mas sua ausência é

representada através do espelho. Um complexo jogo recíproco entre presença e ausência. E

que de alguma forma o discurso da pintura nos coloca na posição do soberano, do rei. Para

o autor, projetarmo-nos como sujeitos da pintura nos ajuda, como espectadores a ver, fazer

parte dela e criar sentido.

Por fim, o sujeito dilatado cria eco com o sujeito da experiência de Bondía (2015)

que se define não por sua atividade, mas por sua receptividade, disponibilidade e por sua

abertura; e com o sujeito descentrado de Rivera (2014). E ambos ocupariam o lugar do

modelo de Velásquez: na obra! O sujeito dilatado sou eu; é você. E nos desejos profundos

da mediação seríamos todos nós.

O sujeito dilatado é aquele que com a obra pôde e pode ter uma experiência (no

sentido da possibilidade). Porque é dilatando os sentidos para a experiência e dilatando a

experiência para a invenção de sentidos que poderemos habituar esse sujeito ao estado aberto

(aos sentidos, ao mundo) necessário à experiência com a arte. A mediação, de tanto dilatar

talvez se diluirá nesse tempo que ela mobiliza, como se cavasse a própria morte. Ou seja,

em um mundo em que todos pudessem com a arte ter uma experiência, gerar outras

experiências a partir disso e desejar novas relações com o sensível, numa cadeia sem fim –

seja essa experiência de prazer, desprazer ou negação, e não com todas as obras, é claro! –

quem sabe nesse mundo não falaríamos mais em mediação.

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2.3 Aproximações entre a experiência em Didi-Huberman e Lispector

Larrosa Bondía (2015, p. 26), como se pôde perceber, tece alguns princípios sobre

experiência. Estes não se restringem ao âmbito artístico, mas serão aqui voltados para a

relação estética com a arte. O autor trabalha em seu conceito o sujeito da experiência

primeiramente como um território de passagem e como um espaço onde têm lugar os

acontecimentos; depois, o sujeito da experiência como um sujeito “ex-posto”, pois “é

incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não

se ‘ex-põe’”. Coloca ainda, a experiência como travessia e perigo; e também como paixão.

Sobre esta última, Bondía (2015, p. 28) esclarece:

Se a experiência é o que nos acontece, e se o sujeito da experiência é um território

de passagem, então a experiência é uma paixão. Não se pode captar a experiência a

partir de uma lógica da ação, a partir de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo

enquanto sujeito agente, a partir de uma teoria das condições de possibilidade da

ação, mas a partir de uma lógica da paixão, uma reflexão do sujeito sobre si mesmo

enquanto sujeito passional.

O autor, ao sugerir o sujeito passional, não está pressupondo a mera passividade, mas

um sujeito paciente, que assume o padecimento, que suporta, que aceita, e até mesmo que

tem sua própria força produtiva. E quanto à paixão, propriamente dita, refere-se a sua relação

intrínseca com a morte, mas uma morte desejada como verdadeira vida, como renascimento.

Refere-se, ainda, ao sujeito apaixonado não como detentor do objeto amado, mas sim

possuído por ele (BONDIA, 2015).

Veremos que a paixão será compreendida de forma semelhante em A paixão segundo

G.H. de Clarice Lispector – mesmo que não se fale explicitamente dela. As quatro dimensões

da experiência colocadas por Bondía (2015) estão presentes na narrativa de G.H. – sujeito

exposto e como território de passagem; experiência como travessia, perigo e paixão. E

deseja-se presente também na experiência estética e na produção de narrativa dentro dos

processos de mediação.

O livro de Lispector é uma espécie de exercício da linguagem como possibilidade de

tocar o intocável, falar o inefável, no qual a autora se apropria da escrita em forma de fluxo

de pensamento. A personagem G.H., (narradora no livro) passa por uma vivência de

autoconhecimento dentro de um cômodo de sua própria casa. O trajeto feito para o interior

desse lugar – o quarto de empregada, que ela não entrava há muito tempo – pode facilmente

servir de metáfora para a entrada em si própria, como uma entrada no desconhecido. G.H.

explicita isso: “o quarto desconhecido. Minha entrada nele se fizera enfim.” E ainda, “como

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se eu fosse também o outro lado do cubo, o lado que não se vê porque se está vendo de frente

[...]. E na minha grande dilatação, eu estava no deserto.” (LISPECTOR, 1995, p. 63-64).

Ao entrar no quarto G.H. é primeiramente surpreendida com a imensa claridade vinda

da janela e com o vazio do cômodo: não havia nada além de um guarda-roupa e uma cama

com colchão. A personagem faz inclusive uma analogia do quarto com o deserto. Este,

presente em algumas passagens da narrativa cristã, pode ser interpretado como um processo

de autoconhecimento, pela via de uma experiência de provação, na qual as noções de

travessia, sujeito exposto e perigo estão claramente presentes.

Outra surpresa da personagem foi o desenho, feito em carvão, de três silhuetas na

parede branca (um homem, uma mulher e um cachorro) deixado por Janair (a empregada).

Por fim, a personagem se depara com uma barata na porta do guarda-roupa. A partir de então

se desenvolve todo um processo de epifania. Ela passa por uma experiência na qual se

conhecer é perder-se, ou seja, o que proporciona o autoconhecimento carrega também a

perspectiva da perda, – processo explicitado pela fala de Didi-Huberman (2010), como

veremos adiante – e busca então a própria identidade. A silhueta nua e inquietante desenhada

na parede, num dado momento de reflexão, torna-se a pura representação do seu vazio

interior. O vazio da silhueta revela, como reflexo, o seu insuportável vazio.

Segundo a personagem, a entrada para o quarto só tinha uma passagem, estreita: pela

barata. Se encararmos a barata como metáfora da resistência, da permanência e da

imutabilidade, pela sua própria forma de vida na Terra; e também como o objeto de medo e

ódio pela sua relação com a personagem; poderemos dizer que G.H. fez a travessia superando

a sua própria permanência pacífica, rumo ao desconhecido, ao temido, ao revelador. E nessa

travessia há inevitavelmente o perigo e a exposição.

Pressionada por G.H., a porta do guarda-roupa esmaga ao meio o inseto, partindo-o

em dois. Antes G.H. via apenas a exterioridade da coisa, mas a partir da cisão, ela vê a vida,

a essência da coisa: a massa branca da barata. Dá-se a uma dupla visão: o fora e o dentro. A

personagem passa então a experienciar o conhecimento de si mesma através do outro (a

barata). O que é a experiência estética com a arte senão um encontro com a obra e consigo

mesmo?

A cisão da barata seria então a metáfora para um processo de alteridade. E se

tomarmos Didi-Huberman (2010, p. 29), seria a cisão, também, um paradoxo da visão:

O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutavelmente

porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria

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preciso assim partir de novo desse paradoxo em que o ato de ver só se manifesta ao

abrir-se em dois. Inelutável paradoxo.

Além da cisão, a perspectiva da perda pode ser encontrada em Lispector e Didi-

Huberman. Suas respectivas escritas se desdobram de forma semelhante quando desfiam

suas imagens ambivalentes. O autor trata da experiência estética pela via do que está entre o

que vemos e o que nos olha. Para ele, ver é perder quando algo nos olha como uma obra

visual de perda, e a ausência nos ameaça.

[...] nossa desorientação do olhar implica ao mesmo tempo ser dilacerados pelo

outro e ser dilacerados por nós mesmos, dentro de nós mesmos. Em todo caso

perdemos algo aí, em todo caso somos ameaçados pela ausência. Ora,

paradoxalmente, essa cisão aberta em nós – cisão aberta no que vemos pelo que nos

olha – começa a se manifestar quando a desorientação nasce de um limite que se

apaga ou vacila, [...]. (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 231).

Lispector (1995, p. 15-16) explicita esse processo em G.H.: “Perdi alguma coisa que

me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse

perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim

um tripé estável”. Rivera (2014, p. 42) também fala da perda, citando Lacan: “se um pássaro

pintasse, diz o psicanalista, seria deixando cair suas penas; uma árvore, sua casca e suas

folhas. O ato mesmo de se exteriorizar, o sujeito perde algo, de seu corpo caem objetos”

Além da perda, há, por consequência, uma desorientação. G.H. tenta verbalizar a

experiência, mas é uma completa perturbação do olhar. Vai compreendendo de forma

fragmentária à medida que vai narrando. Tem medo do que viveu e da instabilidade e

vulnerabilidade que isso lhe causa. Tem medo da perda, do vazio, na medida em que o vazio

a desorienta. Ela não compreende o que viu, nem mesmo sabe se viu, já que seus olhos

terminaram não se diferenciando da coisa vista. “Eu sou a barata” diz G.H. (LISPECTOR,

1995, 69).

Ora, se não é exatamente desta matéria que trata a experiência estética com arte? O

olhante e o olhado se fundem em um determinado momento. Da mesma forma que a

personagem se funde com a coisa vista, sem mais saber delimitar o que é ela e o que é o

outro, assim também o espectador se funde à obra em experiência mesmo que por um

instante quase insuportável. “O mundo só não me amedrontaria se eu passasse a ser o

mundo.” (LISPECTOR, 1995, p. 95). G.H. passa a ser a coisa, mas diferente do processo

kafkaniano em “A metamorfose”, ela a possui em carne, ela come a barata; a sua massa

branca, a sua essência.

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Cabe relembrar que não se trata de tornar-se outro: há fusão e há alteridade.

Retomando Lacan, citado por Rivera (2014) seria uma continuidade externa do que há de

mais singular dentro. Há uma ida e uma volta, que inclusive se dá em um caminho tênue se

pensarmos na fita de Moebius novamente: as formigas evidenciam o movimento de

alteridade.

O que Lispector escreveu sobre o acontecimento epifânico da personagem com a

barata, bem poderia ter sido escrito sobre a relação do espectador com a obra de arte. Há um

processo que se assemelha: G.H entra no quarto; assim como o espectador entra no espaço

da experiência. Ela encara a barata (o outro, desconhecido); ele (espectador) trava um duelo

de sentidos com a arte. A personagem intenta contra a vida do inseto, partindo-o ao meio;

assim também o espectador provoca uma cisão no que vê, na medida em que considera não

apenas o que vê, mas também o que o olha, ou seja, se põe em abertura para a experiência.

G.H. vê a massa branca exposta da barata, se funde àquela essência, que é a matéria pura da

vida, e a come; o espectador em experiência estética ultrapassa a superficialidade, se funde

à obra, às vezes sem saber diferenciar o que é ele e o que é arte, estabelecendo assim uma

comunhão. G.H. retorna a si e cria sua narrativa a partir da experiência; o espectador

(estimulado por ações mediadoras ou não) retoma o seu lugar para pensar o que lhe

aconteceu. Ambos, G.H. e espectador, se expõem e permitem que algo os aconteça, se

permitem à vulnerabilidade; ambos assumem a travessia e o perigo.

Didi-Huberman (2010) traz em seu livro O que vemos, o que nos olha um

personagem chamado Stephen Dedalus (protagonista e anti-herói) de romances de James

Joyce, – também considerado como alterego literário do autor. Ao fazer alusão a este

personagem, Didi-Huberman evoca o que nos olha, na medida em que tudo o que ao

personagem se apresenta é olhado pela perda de sua mãe. Qualquer coisa que é olhada, por

mais neutra que pareça ser, ele vai olhá-la pela perspectiva da perda. Como se o fechar

definitivamente as pálpebras de sua mãe permitisse que agora ela o olhasse.

Mas a conclusão da passagem joyciana – “fechemos os olhos para ver” – pode

igualmente, e sem ser traída, penso, ser revirada como uma luva a fim de dar forma

ao trabalho visual que deveria ser o nosso quando pousamos os olhos sobre o mar,

sobre alguém que morre ou sobre uma obra de arte. Abramos os olhos para

experimentar o que não vemos, o que não mais veremos – ou melhor, para

experimentar que o que não vemos com toda a evidência (a evidência visível) não

obstante nos olha como uma obra (uma obra visual) de perda. (DIDI-

HUBERMAN, 2010, p.34).

Assim como a mãe do personagem não cessa de olhá-lo, algo também nos olha

quando fitamos algo. Assim como Stephen Dedalus não via unicamente o mar ao olhá-lo,

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mas algo além – e esse além era a morte (a que foi e a que está por vir) – assim também

podemos ver além ao entrarmos em contato com a arte. O que leva o personagem a ver afora

da evidência dada ao olhar, são os olhos fechados de sua mãe, por isso a ambiguidade em

“fechemos os olhos para ver”. E abrir os olhos para experimentar o que não vemos, é permitir

a abertura necessária para que aquilo que olhamos também nos olhe, ou seja, a cisão, quando

o olhar se parte em dois.

Ao final da citação, o que o autor coloca é justamente a necessidade de um olhar para

a arte que se assemelha a este olhar de morte, de perda, (acrescentaria ainda de paixão). Não

há nada de confortável na perda. A inquietude, é, portanto, o estado desejado para o olhar.

Didi-Huberman (2010, p. 34) diz que em geral temos a impressão de ganhar algo na

experiência do ver, mas essa sensação de ter é enganosa, uma vez que “a modalidade do

visível torna-se inelutável – ou seja, votada a uma questão de ser – quando ver é sentir que

algo inelutavelmente nos escapa, isto é: quando ver é perder.” Essa perda está diretamente

relacionada com a inquietude e a desorientação na experiência do ver; presente também em

G.H. quando associa a perda de uma terceira perna, que a tira da situação de tripé e a

desestabiliza. Mas ao mesmo tempo é essa perda inquietante que gera a vida.

Bondía (2015, p. 30) também explicita essa relação entre vida e morte, apontando-a

inclusive como característica mesma da paixão. “A paixão tem uma relação intrínseca com

a morte, ela se desenvolve no horizonte da morte, mas de uma morte que é querida e desejada

como verdadeira vida, como a única coisa que vale a pena viver, e às vezes como condição

de possibilidade de todo renascimento.” Assim também é a paixão segundo G.H.

A perspectiva do objeto que olha o sujeito, em Didi-Huberman, é explicitada por

meio da imagem ambivalente do túmulo. Ambivalente porque o túmulo é colocado pelo

autor como objeto que recolhe um corpo morto, o que gera dor; e também como objeto

esvaziado pela fé, por exemplo, na tradição cristã, o que gera uma certeza alegre.

Neste segundo caso, a pessoa, por meio da fé – que é a convicção em fatos que não

se veem, ou a certeza de algo que está por vir – está convicta de que o túmulo é um invólucro

que guarda apenas outro invólucro, também material, ou seja, um corpo; que um dia foi

receptáculo de um espírito que não está mais ali. Um segundo tipo de esvaziamento, mais

literal (se é que assim posso dizer) e não mais referente a uma pessoa, diz respeito à mística

máxima do cristianismo. A despeito de alguns teóricos que postulam o roubo do corpo de

Jesus Cristo, a tradição cristã crê que houve a ressurreição, ou seja, nem o espírito, nem o

corpo se encontram mais no túmulo, porque Ele ressuscitou. Assim, pelos olhos da fé, tanto

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o túmulo do Salvador foi esvaziado, inclusive de seu corpo físico; como túmulos de entes

queridos são também esvaziados pelos cristãos.

Em outras palavras, o túmulo carrega duas forças, em sentido conflitante, ou ao

menos diferentes, como podemos ver a seguir:

Por um lado, há aquilo que vejo do túmulo, ou seja, a evidência de um volume,

em geral uma massa de pedra mais ou menos geométrica, mais ou menos

figurativa, mais ou menos coberta de inscrições: uma massa de pedra trabalhada

seja como for, [...] Por outro lado, há aquilo, direi novamente, que me olha: e o

que me olha em tal situação não tem mais nada de evidente, uma vez que se trata

ao contrário de uma espécie de esvaziamento. (DIDI-HUBERMAN, 2010, p.

37).

Ao trazer a metáfora do túmulo (ou fábula, como o próprio autor a chama), ele apela,

em última instância, para um objeto que, inevitavelmente, lança um olhar sobre o sujeito

observador – inclusive na questão da fé. Objeto que tira a capacidade do sujeito de olhá-lo

como simples volume geométrico, de cimento, de madeira, de mármore. Objeto que mostra

ao sujeito que ele perdeu o corpo recolhido em seu interior. (DIDI-HUBERMAN, 2010).

Em G.H. também está presente o olhar do olhado para o olhante: “A barata com a

matéria branca me olhava. [...] Mas seus olhos não me viam, a existência dela me existia.”

E ainda, o “que nela é exposto é o que em mim eu escondo: de meu lado a ser exposto fiz o

meu avesso ignorado. Ela me olhava. [...] Os dois olhos eram vivos como dois ovários. Ela

fertilizava a minha fertilidade morta.” (LISPECTOR, 1995, p. 80-81).

A imagem dada ao final da citação por Lispector – de fertilizar e dar vida – traz a

ideia da paixão como renascimento presente em Bondía (2015); e traz também toda a

potência da criação do espectador em experiência com a obra. A obra fertiliza o espectador;

e o espectador permite que a obra aconteça. Esta imagem cíclica explicita a relação de mútua

alimentação e envolvimento. E se pensarmos com Lacan (apud RIVERA 2014, p. 41) que

“o que me determina fundamentalmente no visível é o olhar que está do lado de fora”,

podemos compreender o olhar da barata como radical e necessário para a existência de G.H.,

ela se vê olhada e se percebe viva.

Em contraponto à cisão necessária ao olhar, Didi-Huberman (2010, p. 39) fala do

evitamento do vazio. Trata-se de certa indiferença ao objeto, uma sensação de satisfação

diante do que é evidentemente visível, na qual se vê o que se vê e nada mais. Esta é a postura

do homem da tautologia que, segundo o autor, terá feito tudo “para recusar as latências do

objeto ao afirmar como um triunfo da identidade manifesta – minimal, tautológica – desse

objeto mesmo: ‘Esse objeto que vejo é aquilo que vejo, um ponto, nada mais’.” E ainda:

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Ele [o homem da tautologia] pretenderá eliminar toda construção temporal fictícia,

quererá permanecer no tempo presente de sua experiência do visível. Pretenderá

eliminar toda imagem, mesmo “pura”, quererá permanecer no que vê,

absolutamente, especificamente. Pretenderá diante da tumba não rejeitar a

materialidade do espaço real que se oferece à sua visão: quererá não ver outra

coisa além do que vê presentemente. (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 49).

É preciso compreender melhor o que o autor critica no homem da tautologia para não

nos embaraçarmos com a ideia de presente lançada no trecho acima. Sabemos que é no

presente que se dá a experiência. É justamente na duração do tempo presente que ela existe.

Dessa forma, Didi-Huberman não poderia exigir um outro tempo, que não o presente, para

a experiência. Por isso, penso que o que ele chama de “permanecer no tempo presente” é

evitar o vazio, é evitar a dilatação do tempo própria da experiência com a obra, é “recusar as

latências do objeto”. Chamo atenção para os termos que ele utiliza: “permanecer”,

“absolutamente” e “especificamente” para falar desse lugar não quisto para a experiência do

olhar, uma vez que o olho tautológico se apega e permanece na superfície do visível.30

Essa atitude faz da experiência do ver um “exercício da tautologia”: uma verdade

rasa que resguarda uma verdade mais subterrânea e bem mais temível (DIDI-HUBERMAN,

2010). Contentar-se com o que vê na evidência da imagem é abrir mão do que está por vir.

Segundo o autor, não apenas a perspectiva da tautologia deve ser evitada, mas

também a da crença. Se existe o homem da tautologia existe também o seu oposto. Se no

primeiro há cinismo, no segundo há fuga. Na crença, o que me olha já está dado; o túmulo,

por exemplo, não representa o vazio, nem outra coisa além de fé e certeza que o enigma já

fio resolvido; como ele aponta a seguir:

A “arte” cristã terá assim produzido as imagens inumeráveis de túmulos

fantasmaticamente esvaziados de seus corpos – e portanto, num certo sentido,

esvaziados de sua própria capacidade esvaziante ou angustiante. [...] é esse vazio

de corpo que terá desencadeado para sempre toda a dialética da crença. (DIDI-

HUBERMAN, 2010, p. 41).

O homem da crença verá algo além do que vê. Mas essa atitude é censurada pelo

autor porque ao esvaziar os túmulos de suas carnes putrefatas, o homem da crença os

preenche de imagens que ele não criou, estas imagens lhe foram dadas, para confortar e

informar, ou usando as palavras do filósofo, para “fixar – nossas memórias, nossos temores

e nossos desejos.” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 48).

30 Cabe observar que não fiz uso do livro original em francês. Talvez um problema de tradução nos assole

quanto aos termos presente e presentemente. Ressalto ainda que estes mesmos termos não se confundem com

a ideia de presente, usadas neste trabalho, colocada por Larrosa Bondía e Benjamin quando falam de

experiência, pois nestes autores o presente é justamente a qualidade exigida para que a experiência aconteça.

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Nenhum dos dois ousa ver. O homem da tautologia não ousa ver porque não acredita

que exista algo além da evidência do visível; o homem da crença não ousa ver porque se crê

olhado pelo divino. (DIDI-HUBERMAN, 2010). Mas a imagem necessita uma ousadia.

Prefere-se, portanto, o entre; prefere-se a dialética.

Há uma clara opção pelas palavras olho, olhar e outras derivadas, contudo não é

exclusivamente delas que se fala, ou não é necessariamente do olhar físico a que Didi-

Huberman se refere. Há uma espécie de figura de linguagem que permite a compreensão do

todo pela parte. O olho estaria, assim, sugerindo algo maior, a percepção, o sentido. Não

seria demasiado relembrar que Dewey (2010, p. 88) coloca o sentido abraçando “uma vasta

gama de conteúdos: o sensorial, o sensacional, o sensível, o sensato, o sentimental, junto

com o sensual”. Ou seja, sentir e dar sentido.

Quando o autor contrapõe os extremos, com o homem da tautologia e o homem da

crença, trata da relação com a imagem. Encarar a imagem como mera aparência, aquilo que

vejo é aquilo que vejo e nada mais (tautologia), é ignorar o que há de mais potente na

imagem; é equivocadamente simplificar a questão e ater-se à superficialidade do que é visto.

Enquanto encará-la como coisa autônoma (crença) é ignorar justamente a relação entre o que

vejo e o que me olha – o encontro, o entre. Delegar autonomia exclusiva à imagem é abrir

mão de um direito que é nosso, um direito do olhante frente ao olhado.

É necessário dialetizar nossa relação com o que vemos, pois, o binarismo impede

uma percepção complexa da imagem: não deveríamos escolher entre o que vemos

(tautologia) e o que nos olha (crença), deveríamos inquietar-nos com o entre. (DIDI-

HUBERMAN, 2010). Estar entre; ser o meio. Não é esse, justamente, o lugar da mediação?

Para a experiência estética é preciso demorar-se; é preciso ir e vir, entrar e sair.

Penetrar a obra é algo que demanda vontade, interesse. Quanto mais estamos dispostos a

entrar nela mais ela se mostra em sua complexidade, quanto mais a olhamos, mais ela nos

olha. Esse jogo de correspondência pode ser estimulado e dilatado pela mediação.

Vimos que tanto no caso da tautologia, como no caso da crença prescinde-se a

dialética, tão cara a Didi-Huberman – e a Benjamin (1994) também. Em ambos os casos

prefere-se tranquilizar o olhar ao invés de inquieta-lo. Mediações monologais são um

exemplo claro desse tranquilizar o olhar: usam apenas a linguagem falada, de forma

exaustiva e às vezes com certa autoridade, ignorando o outro (fruidor) e seu contexto. Se, de

um encontro de quarenta e cinco minutos, uma mediadora assume quarenta minutos de fala,

podemos pressupor uma morte, mas não é a morte de que nos fala Didi-Huberman, é a morte

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dos sentidos, do interesse e do que poderia nascer do encontro, pois é uma mediação que já

nasceu morta. Outro exemplo é ter um mesmo discurso para todas as mediações: achando

que o tempo de produção e recepção da obra é estanque; ignorando o espaço onde se encontra

a obra e o público; prescindindo o próprio sujeito e seu contexto. A mediação que prescinde

de alguma dessas instâncias (tempo, espaço, ou sujeito) acaba se voltando contra a eficácia

que ela própria reivindica.

Ana Mae Barbosa (2009, p. 19) relata um acontecimento em um museu de São Paulo,

cujo educativo era badalado pelas elites. “Tive o desencanto de assistir a uma visita ditadora

de sentido” diz a autora. Na situação, ela estava acompanhada pelo educador espanhol

Fernando Hernandez, que ao final da visita foi interpelado pela mediadora perguntando o

que tinha achado da mediação, e ele respondeu: “Você deu uma aula de História da Arte

como era dada na década de 1970”.

Este problema, enfrentado por Programas Educativos em museus no Brasil, tem sido

explicitado por pesquisadores em arte-educação. Barbosa (2009) aponta a distância entre

teoria e prática criticando os museus que mantem discursos magníficos sobre arte-educação,

mas que mantem visitas como se fossem palestras. Além disso, podemos presenciar dentro

de museus e galerias de arte a mediação funcionando, muitas vezes, como uma verdadeira

aula de história da Arte, mantendo, inclusive, termos específicos do domínio artístico. As

Artes Visuais têm um longo caminho trilhado na área de mediação, se comparado às artes

do corpo e do espetáculo. Neste caso, vale observar quais são as problemáticas apontadas

por pesquisadores dessa área, para inventarmos caminhos e consolidarmos práticas mais

consistentes, com base na vivência em mediação que essas artes trazem, e que possa nos

servir.

Se o lugar desejado para a experiência e para o sujeito da experiência, como foi dito

até aqui, é um lugar de latência entre o que vemos e o que nos olha; um lugar de travessia,

perigo e paixão; um território de passagem; um lugar de expor e se expor; esse também é o

lugar desejado para a mediação e para o sujeito mediado.

A mediação como (dilatação da) experiência estética busca o olhar para o túmulo que

Didi-Huberman nos fala. Não podemos nos limitar a ver apenas o volume geométrico. É

preciso dar espaço à abertura que dentro de nós é latente e permitir que a coisa olhada nos

olhe. É um trabalho de negação da tautologia; um trabalho de memória, de troca e de

construção de narrativas. Muitas coisas na nossa vida semeiam as evidencias tautológicas,

(da TV à Escola), por isso a mediação só faz sentido se for para inquietar o ver.

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Há uma expressão de Didi-Huberman (2010) que traz uma imagem interessante para

pensarmos o lugar da mediação: “posições entrincheiradas”. É nesse lugar que nos

colocamos, e principalmente colocamos o outro (estudante), quando assumimos uma

mediação monologal. Quando ao invés de instigar o olhar com questionamentos sensíveis e

profundos, optamos por perguntas que exigem respostas de sim ou não. Quando preferimos

informar ao perguntar, ou propor uma atividade que permita ao outro sentir e perceber no

corpo o que se fala. Quando pressupomos a radical distância entre mestre e ignorante

(RANCIÈRE, 2002). Quando não praticamos a alteridade. Quando pretendemos doutrinar.

Quando enfim, não nos colocamos no lugar próprio da mediação: na latência do entre, do

meio; no limiar entre o que vejo e o que me olha. Ou seja, quando fazemos qualquer coisa,

menos mediar.

2.4 Possibilidades para a dilatação

Para alcançar o lugar desejado para a mediação – de dilatação, pressupondo os

princípios da experiência de Larrosa Bondía (2015) e o olhar de Didi-Huberman (2010) –

sabemos que algumas posturas precisam ser contornadas, ou dosadas, por exemplo, a

informativa, mencionada acima. Sabemos também que não existe uma metodologia a ser

seguida. Por isso, ouso apontar três possibilidades compreendidas aqui como dilatadoras na

mediação: a narrativa; a produção de semelhança; e o estreitamento das relações entre real e

ficcional. Muitas ações realizadas na mediação apresentam essas três instâncias associadas;

acredito que estejam interligadas. Contudo, aparecerão separadas exclusivamente para fins

do presente estudo.

Cabe apontar que os exemplos usados para as três possibilidades de dilatação dizem

respeito ao pós-espetáculo do Projeto Mediato. Pois, conforme explicitado anteriormente, a

pesquisa se voltou mais para a dilatação da experiência estética (pós) do que para a dilatação

dos sentidos (pré).

2.4.1 Narrativa

Quando assistimos a um filme, a um espetáculo, quando vemos uma exposição,

temos o desejo (geralmente) de compartilhar a nossa experiência com alguém. Tendo em

vista que a experiência estética não se restringe ao âmbito artístico, poderíamos dizer que tal

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desejo também acontece quando chegamos de viagem, quando presenciamos uma paisagem

natural. Mas concentremo-nos aqui na experiência com a arte. Contar o que vimos, o que

sentimos e como vimos e experienciamos para o outro, funciona, muitas vezes, como um

desdobramento da própria experiência. O prazer não está apenas no ato de experienciar a

coisa, mas também em expressar, exteriorizar o que nos aconteceu. O processo de organizar

a experiência para si, e torna-la narrável para o outro, consiste em um ato estético e também

em um processo de compreensão. Não de compreensão da manifestação artística, mas de

compreensão da própria experiência.

Assim é a personagem G.H. de Lispector: à medida que narra vai tomando

consciência da própria experiência. A narrativa é o meio que G.H. encontra de buscar uma

compreensão do que experienciou. Conforme narra, vai tornando clara sua existência e

completude. A personagem, ao mesmo tempo em que conta seu momento epifânico, busca

uma maneira de dar forma e exteriorizar o que foi vivido – por meio da construção da

narrativa.

Ação semelhante se dá com o espectador em processos de mediação. Ele é estimulado

a remoldar o material de sua experiência: pela via da fala, de uma produção plástica, ou do

corpo. A mediação abre espaço para que o estudante-espectador-narrador coloque para o

outro a sua experiência, por meio da criação de narrativas. E semelhante à G.H., a mediação

não busca a compreensão do objeto artístico, trata-se de um processo de tomada de

consciência do que foi vivenciado. Além disso, a narração é importante para o sujeito como

possibilidade de rememoração. Por meio de palavras e/ou imagens a memória é retomada

para não deixar que o esquecimento torne aquelas cada vez mais opacas, distantes.

Com Roland Barthes, Beatriz de Medeiros (2005, p. 51) diz que “para falar de um

texto de prazer, é necessário escrever outro texto de prazer, ou, ainda, para falar de arte, é

preciso fazer arte, outra arte: poesia.” Algumas pessoas criam facilmente seus textos de

prazer. Quando vão a uma exposição, teatro, etc. criam suas narrativas, criam poesia com

aquilo, sem mesmo sair do lugar, sem mesmo abrir a boca, ou pegar um lápis; criam textos

internamente. Criar narrativas (internas ou externas) é um treino para o fazer poesia com o

que se vê. E aqui entra a mediação: como estímulo para que esse prazer se concretize, além

de instigar a busca por outras experiências.

Vale ressaltar que a criação de narrativa não funciona como um evento isolado e

interno de um indivíduo. Há um dentro que aponta para fora: que vai e volta. Gagnebin

(2013) fala, ao analisar a história e a narração em Benjamin, que nossas narrativas vão

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sempre depender de ações e narrações de outros que não nós mesmos, pois não há começo

ou fim absoluto possíveis nesta narração que fazemos de nós. Em outras palavras é

contextual: estamos sempre em relação.

A narrativa vem como possibilidade de dar (nova) forma ao que foi experienciado.

Além disso, se dá com o espectador um processo semelhante ao do artista, na medida em

que este, ao fazer sua arte, organiza o conjunto de coisas pertencentes a sua própria vivência.

Essa produção dialoga com o que Dewey (2010) chama de remoldagem do material da

experiência em um ato expressivo. A narrativa estaria, portanto, concretizando a dilatação

no espaço e no tempo, pela via da remoldagem do que foi experienciado.

Bondía (2015, p.17) diz que pensar é dar sentido ao que somos e ao que nos acontece;

que pensamos a partir de palavras; que as palavras produzem sentido e criam realidades; e,

“portanto, também tem a ver com as palavras o modo como nos colocamos diante de nós

mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos.” O autor faz um caminho:

pensamento; palavra; dar sentido ao que nos acontece. E é justamente disso que trata a

narrativa na mediação: é uma forma de inventar sentido ao que nos aconteceu, por meio do

pensamento, da palavra, e eu acrescentaria à palavra a imagem. O autor afirma ainda que a

narração é uma linguagem da experiência, o que reforça a analogia acima.

Contudo, deve-se tomar cuidado para que o que se pretende como expressão não vire

um grito irrefletido. “Descarregar é livrar-se de algo, descartá-lo; expressar é ficar com a

turbulência, levá-la adiante em seu desenvolvimento, elaborá-la até sua conclusão.”

(DEWEY, 2010, p. 148-149). Por isso, a mediação deve se preocupar com o desenrolar de

suas ações, afim de promover, e também alimentar o ato expressivo dos estudantes; para que

ele não se esvaia durante seu desenvolvimento, nem caia em um jorro emotivo, o que seria

pior. Cabe ponderar, que neste caso não se está preterindo a emoção, ao contrário, deseja-se

o equilíbrio necessário para que a emoção seja reelaborada para assegurar a expressão.

Para tanto, precisamos tomar alguns cuidados. Pensar quais atividades serão

propostas e planejá-las com antecedência; mas também estar aberto para alterá-las assim que

houver necessidade, ou seja, quando houver uma demanda da turma. Elaborar comandos

bem estruturados que permitam aos estudantes compreender o que está sendo proposto. Não

abandonar as atividades antes de suas respectivas conclusões e desenvolvê-las de modo a

explorar suas potencialidades estéticas. Organizar a quantidade de atividades que se pretende

realizar para o tempo que é disponibilizado. Dentre outras estratégias.

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Dewey (2010, p. 168-169), faz uma analogia interessante para pensarmos como a

emoção aparece no ato expressivo. Ele diz que o material físico que constitui uma obra de

arte sofre mudanças, por exemplo, a argila e o mármore. E de forma semelhante, há

transformação de um outro tipo de material. Dos “materiais ‘internos’, das imagens,

observações, lembranças e emoções. Eles também são progressivamente remoldados; eles

também têm de ser geridos. Essa modificação é a construção de um ato verdadeiramente

expressivo.”

Por este, e outros motivos, a mediação está a todo momento reinventando seus

caminhos. Pois estamos lidando com conteúdos não fixáveis. Este material “interno”, que

pode ser entendido aqui como uma matéria bruta, passa por transformações. A modificação

gera outra qualidade, que se deseja estética. E esse processo é feito exclusivamente pelo

sujeito, no caso, os estudantes. O que a mediação faz é criar caminhos; é uma tentativa de

criar um ambiente propício.

Muitas vezes a mediação se ocupa com perguntas inférteis, como por exemplo, “o

que acharam do espetáculo?” ou ainda “vocês gostaram da peça?”. Não creio que seja um

caminho frutífero quando a primeira investida de um bate-papo na mediação se dá com

questões genéricas, que não estimulam a produção pessoal, o senso crítico, nem se quer uma

reflexão sobre o que passou nos estudantes. O tipo de investigação acima, geralmente, tem

como retorno: “interessante”, “gostei”, “legal”. Em contraposição, o trabalho com a narrativa

se mostra fértil, capaz de dilatar a experiência estética. Apropriando-me mais uma vez das

palavra de Lispector (1995, p.25), “vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é

relatável.”

A narrativa servirá aqui a uma dupla questão: uma mais específica, que é a produção

de narrativa dentro da mediação, realizada por estudantes-espectadores-narradores, a partir

de atividades propostas (tal produção não se restringe à fala; abrange a produção da escrita,

do corpo e de objetos). E outra mais ampla, pela qual começarei: a mediação compreendida

como narrativa, isto é, entendida a partir do conceito de narrativa de Benjamin (1994).

Em 1936 Benjamin (1994, p. 198) escreveu um artigo no qual afirmou que o narrador

estava em vias de extinção. É “como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos

parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.” O autor coloca como

uma das causas desse fenômeno a baixa das experiências e contextualiza com o processo de

emudecimento dos combatentes que voltavam da 1ª Guerra Mundial. Esses combatentes

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voltaram mudos do campo de batalha, não mais ricos e sim mais pobres em experiências

comunicáveis, diz o autor.

Abramos um parênteses para compreender melhor a baixa das experiências. A

vivência da guerra foi radicalmente aterrorizante, humilhante, desmoralizante. Gagnebin

(2013, p. 63) diz que o sofrimento que a Primeira Guerra revelou não pode ser simplesmente

contado, mas que, no entanto, deveria poder ser narrado, ao menos há esse desejo. E se

pergunta: “como descrever essa atividade narradora que salvaria o passado, mas saberia

resistir à tentação de preencher suas faltas e de sufocar seus silêncios?” Ou seja, como gerar

uma narrativa que mantivesse o caráter de inacabado, respeitando a restauração e a abertura,

respeitando o que há de inefável. Aqui eu ousaria relembrar a alegoria como possibilidade!

Se a mediação preserva o inacabamento e os silêncios necessários para sua própria

sobrevivência, ela compartilha com a narrativa essa qualidade. Para Benjamin (1994, p. 206)

o que “representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do

dia” é a “lenta superposição de camadas finas e translúcidas”. A mediação também atrai para

si uma imagem semelhante: de uma lenta superposição de camadas finas e translúcidas. Pois

ela não se dá a ver por completo e de imediato, ela não se entrega. Assim como a narrativa,

ela “conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver. [...] Ela

se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas

hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças

germinativas” (BENJAMIN, 1994, p. 204).

A narrativa “mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele.

Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”

(BENJAMIN, 1994, p. 205). Igualmente a mediação mergulha sua ação na vida do

espectador, se impregnando com as particularidades de cada participante.

Além do contexto da guerra, com suas “experiências” desmoralizantes e pobres,

Benjamin (1994, p. 203) aponta também o excesso de informação como responsável pelo

declínio da narrativa. Para o filósofo as recebemos do mundo inteiro diariamente, mas

raramente isto se constitui em experiência. “A razão é que os fatos já nos chegam

acompanhados de explicações.” A narrativa “não está interessada em transmitir o ‘puro em-

si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório” (p. 205). A mediação, assim

como a narrativa, não é explicativa, imediata, nem se consome como a informação.

Os escritos de Benjamin permanecem atuais. Podemos ver que a discussão acerca da

baixa de experiências e do excesso de informação é atualizada por autores contemporâneos,

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como o já citado Larrosa Bondía (2015, p. 18), que contrapõe o saber da experiência com o

saber da informação. “A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar

para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência.”

Assim como Benjamin (1994) e Bondía (2015) opõem, respectivamente, narrativa e

experiência à informação; propõe-se aqui, além de opô-las, colocar narrativa e experiência

no mesmo nível de importância dentro dos processos de mediação – e talvez seja isso

também que Benjamin faz ao associar a baixa de experiências à incapacidade de narrar. A

produção de narrativa é uma forma de tomada de consciência sobre a experiência, pois, à

medida que cria uma narrativa o estudante pode refletir sobre o que se passou nele. É uma

maneira de compartilhar; e também pode se constituir como uma nova experiência. Penso

com Benjamin (1994, p. 198) que é próprio do narrador “a faculdade de intercambiar

experiências”. Dessa forma, se narrar é intercambiar experiências a mediação compartilha

com a narrativa sua constituição fundamental uma vez que ela se dá também pelo

compartilhamento da experiência.

Em última análise, o que os dois autores colocam, acerca do caráter imediato da

informação, justifica a importância de a mediação não ser informativa. Vale explicitar que

este tipo de conteúdo não é abominado na mediação, não se constitui, contudo, como um

objetivo. Pois, se a própria relação com a arte não é condizente com a imediatez informativa,

porque a mediação em arte o seria? Se se pretende que a mediação seja uma dilatação da

experiência estética é um contrassenso tomar algo imediatista como princípio ou objetivo.

Portanto, faz sentido que ela se aproxime mais da ideia de narração do que de informação.

Verificaremos ao final deste capítulo alguns momentos em que a narrativa, bem como o

espaço da experiência e da dilatação, foi minada pelo predomínio do caráter informativo.

Por fim, a figura do narrador é uma imagem potente para a mediação, pois esta nos

permite pensar que todos podem ser narradores: ator/atriz, estudante, mediador(a). No

entanto, a analogia entre a mediação e o conceito de narrativa em Benjamin (1994) deve

guardar as devidas proporções, principalmente porque ao final do artigo o narrador é

colocado como o sábio, e como a figura de um justo que tem um encontro consigo mesmo.

A ideia, deste modo, não é associar qualquer participante da mediação à figura de um sábio;

mas sim que a mediação funcione com os mesmos princípios da narrativa, objetivando,

inclusive, dissocia-la de um caráter informativo que está arraigado ao senso comum.

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Além dessa forma de compreender a relação entre narrativa e mediação (como

aproximação ao conceito bejaminiano), há um segundo entendimento que é a produção de

narrativa realizada por estudantes-espectadores-narradores a partir das ações mediadoras. A

seguir elenco dois casos de produção de narrativa feita por estudantes de Ensino Médio

(adolescentes/jovens entre 14 e 18 anos), no Projeto Mediato, em 2014. Conforme dito, os

encontros foram divididos em três etapas: 1. Sensibilização pré-espetáculo; 2. Espetáculo

Da janela; e 3. Encontro pós-espetáculo, ao qual dizem respeito os exemplos adiante:

Exemplo 1 – Após diálogo, alimentado por imagens e música, as mediadoras31

propuseram que dois grupos voluntários montassem uma cena. Para a elaboração foi

solicitado que levassem em consideração os elementos teatrais trabalhados no encontro pré-

espetáculo e que criassem a partir da seguinte motivação: “O que te incomoda?”. Uma cena

mostrou três jovens: uma garota branca e dois garotos negros; dois policiais os abordavam,

deixando a garota ir embora; os policiais faziam revista nos dois jovens, colocando droga na

roupa deles e forjando um flagrante. Ao tentar fugir são baleados; no dia seguinte a repórter

de uma mídia local anuncia na TV que dois jovens da periferia morrem por acerto de contas.

A outra cena apresentou um transporte público. À medida que ia enchendo um novo

personagem/conflito era inserido: uma mulher grávida não recebe o acento preferencial

gerando reclamações; um garoto escuta música no celular sem o fone de ouvido provocando

incômodo aos passageiros; algumas ações de gentileza; uma cena de abuso; um vendedor de

balas e doces; e um assaltante.

Quando a mediadora questionou de onde o grupo havia tirado os personagens que

apareceram na cena, uma estudante respondeu: “a gente tirou do cotidiano mesmo. Eu

mesma pego quatro ônibus por dia. Aí a gente chegou num consenso que todo mundo tem

que pegar ônibus, todo mundo sofre. E cada um deu a ideia, do que passa no ônibus.”32 Sobre

a primeira cena as estudantes disseram que o fato já havia ocorrido na região onde elas

moram e estudam – P Norte em Ceilândia-DF. A fala das envolvidas, bem como a cena,

denotam a relação entre o individual e a coletividade, pois houve uma negociação entre as

vivências de cada integrante a partir de depoimentos e uma situação que diz respeito à

sociedade: precariedade do transporte, violência, segurança pública, etc.

31 Os nomes das integrantes da equipe, quando utilizados, foram substituídos por outros fictícios. 32 As falas e os trechos de mediação utilizados neste trabalho foram retirados do registro audiovisual feito

durante o Projeto Mediato em ago.-set. 2014 e mantêm a transcrição conforme a fala. Os nomes, quando

utilizados, foram substituídos por outros fictícios. A citação acima é referente à Ceilândia-DF. Originais e

transcrição parcial disponíveis comigo.

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Esse tipo de exercício geralmente rendia cenas sobre o convívio escolar ou problemas

sociais que afetam os/as estudantes direta ou indiretamente. Os temas, bullying, precariedade

do transporte coletivo e violência policial eram frequentes. Algumas raras vezes surgia uma

temática mais geral, ou seja, que não tem relação direta e cotidiana com a maioria dos

estudantes, como, por exemplo, aborto.

Tendo em vista que a peça tratava de violência do Estado contra a população,

repressão, liberdade e manipulação da mídia sobre as informações, penso que os estudantes

envolvidos na cena expandiram a experiência-espetáculo para uma experiência-construção-

de-narrativa. A pergunta instigadora “o que te incomoda?” garantiu a contextualização com

um tema/problema recorrente no universo dos estudantes e consequentemente revelou às

mediadoras conteúdos pertencentes ao universo deles. Susana da Silva (2009, p. 136) fala

de forma pontual sobre a importância da inserção de temas, pela via do questionamento, na

mediação:

A introdução de temas e problemáticas na forma de questões que interpelam os

indivíduos funciona simultaneamente como o estímulo para a partilha de saberes

e a entre ajuda, e como uma forma de diagnóstico que possibilite aferir

conhecimentos prévios, universos de referentes, estratégias dominantes,

expectativas e motivações.

Interessante apontar ainda para a negociação de um fato ou tema que refletisse a

inquietação da coletividade. Os estudantes, quando colocados frente ao questionamento,

prontamente elencavam o que os incomodava individualmente, às vezes, um tipo de comida

que não gostava, uma aula, ou uma matéria. Mas logo em seguida, quando reuniam em

grupo, partiam para um processo de organização do que era particular, tendo em vista o

coletivo. Chegando, assim, em questões mais amplas, que os inquietavam, e que talvez

pudessem incomodar aquela comunidade como um todo. Aqui novamente poderíamos

evocar a imagem da fita de Moebius: o eu que se evidencia não fala somente de si, mas cede

lugar a algo, a outro. Assim, a produção de narrativa não se colocou como criação

ensimesmada de um individual que não se relaciona, não se tratou da afirmação/exposição

do eu, mas de uma dimensão que é política, que acessa o coletivo. É sim um extrapolar que

apela ao outro; um nós que está fora, mas que retorna, como na fita.

É comum durante a mediação, haver um movimento entre as questões que dizem

respeito à particularidade, àquele agrupamento e à sociedade de forma geral. Isso acontece

quando, no exercício de criar narrativa, o estudante-espectador reflete sobre aspectos da sua

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própria história articulando vivências (fatos de sua trajetória) e expectativas (como forma de

projetar-se no futuro). Como afirma Flávio Desgranges (2011, p. 32):

Ao rever os fatos de sua história, no ato de análise da obra, o espectador, além de

refletir sobre os acontecimentos da cena, formula pensamentos críticos acerca de sua

própria trajetória, detendo-se de maneira distinta, renovada ante as suas experiências

pessoais, estando em condições de produzir respostas inesperadas para as mesmas

questões, revendo e recriando possibilidades para sua existência.

O autor fala da trajetória que o sujeito-contemplador percorre metaforicamente

entrando na obra e entrando em si próprio em um ato interpretativo. Embora Desgranges fale

em análise da obra e não em produção de narrativas especificamente, faço uma apropriação,

pois há um processo que se assemelha: o movimento de entrar em si, e retomar a obra, para

então produzir a sua narrativa, sua análise, ou sua interpretação. Essa ideia de rememorar

vivências e refletir sobre os acontecimentos da cena, pode trazer prontamente a imagem da

fita de Moebius, um dentro que também tem sua continuidade fora.

Exemplo 2 – Uma estudante de 2º ano, de um Centro de Ensino Médio em

Brazlândia-DF, fez um poema e pediu para sua colega de turma lê-lo. Vale ressaltar que

nomeio tal produção de “poema” porque a estudante que realizou a leitura, a fez dessa forma.

Não obstante, podemos compreende-lo também como um RAP, uma vez que seu teor remete

à crítica social frequentemente encontrada em letras compostas pelos Mestres de Cerimônias

– MCs. Por isso, a tratarei por poema-RAP.

A sociedade quer me reprimir.

Sem nem ao menos eu ter o direito de discutir.

Querem me julgar por aparência

Pois neles falta a decência.

Não posso ser isso nem aquilo

Fico dividido, obstruído.

A sociedade impõe aparência

Por isso está em decadência

No nosso país, cidadão não tem vez

Por causa de política e sua estupidez.

E depois bandido é quem mata, rouba e trafica,

Se os políticos fazem isso, com a ajuda da justiça.

Que país é esse, onde só há fome e miséria

E ninguém faz nada, só espera.

Espera o que?

A dor, a fome e o sofrimento

Enquanto muitos morrem no tormento. Cadê a saúde, a educação e a segurança

E a sociedade ainda vem falar em esperança.

A mídia vem dizer que tudo está bem, e adora

Pra mim são filhos da puta, é foda.

Figura 7 – Registro audiovisual do Projeto.

Brazlândia-DF, agosto, 2014.

Fonte: Registro próprio

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O espetáculo tratava de duas questões, que segundo a diretora (e também atriz), eram

centrais: violência de Estado e manipulação da mídia. Dessa forma, vemos, na mediação

pós-espetáculo, um desdobramento das questões abordadas por meio da expressão da

estudante. O que ela fez demonstra não apenas sua opinião sobre o tema que o espetáculo

abordou. Ela exteriorizou sua experiência por meio de uma narrativa (para o outro),

condensando com uma opinião particular sobre o assunto (com isso se expôs); e fez isso por

meio de uma forma artística (o poema-RAP), desenvolvendo sua criação artística. E em

última análise, a atitude da estudante pôde incentivar os colegas a exteriorizarem suas

opiniões, inclusive por meio da produção em arte. Cabe repetir, que o que a estudante faz

não é tentar conceituar ou explicar nem a obra, nem o que ela sentiu, muito menos reduzir a

arte à fala ou à escrita, mas criar um novo texto de prazer, criar uma narrativa, concretizando

o que chamo aqui de dilatação.

Antes de continuarmos analisando o trabalho acima alertemo-nos quanto à noção de

estética dada por Medeiros (2005, p. 47-48).

No momento do gozo (jouissance, fruição) não há conhecimento possível; depois,

poderemos discutir sobre o conteúdo, a técnica utilizada, a propriedade do trabalho

naquele contexto, etc. poderemos, inclusive, discutir se o objeto é arte ou não, mas

aí já não estaremos em comunhão com a “carne do mundo”, exposta pela obra.

A dilatação da experiência estética não é discussão de conteúdo, de técnica, ou sobre

a legitimidade da arte. Também não é uma tentativa de recuperar a relação exclusiva do eu

com a obra. Trata-se de um terceiro lugar. E esse momento (posterior) de dilatação é sim

estético. Quando a estudante cria o poema-RAP, e este é lido para a turma, temos uma

terceira coisa que não é tão-somente a “comunhão com a ‘carne do mundo’ exposta pela

obra”; mas também não se trata de um trabalho conceitual ou explicativo. É a dilatação da

experiência com a obra, mantendo-se nisso o caráter estético. Do mesmo modo, é a imersão

da turma em uma nova experiência que mantêm as dimensões coletiva e individual. Ou seja,

esse terceiro lugar pode ser também de gozo/fruição. Posso afirmar ainda, que quando criei

a narrativa a partir da exposição Ciclo: criar com o que temos, exposta no início do capítulo,

o que me aconteceu foi estético. A dilatação por meio da produção de narrativa não é,

portanto, a descrição da experiência, não se trata de colocá-la em palavras, exclusivamente.

É antes a feitura de uma terceira coisa, neste caso: poesia.

A maneira como a estudante tratou de questões sociais e políticas, no meu entender,

denota certo engajamento, que não é generalizado dentre os estudantes. Durante o Projeto

observei que muitos comentários se mantiveram no raso das questões, ou seja, discursos

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rasos em informações e sem argumentos. Em geral reprodução de falas presentes na mídia

televisiva, que reforçam a superficialidade do senso comum.

Frases do tipo: “Queria matar a Dilma”, “Queria encontrar a presidente e perguntar

por que ela não faz nada?”, “O Brasil tem dinheiro, não vai pra frente porque o presidente

não quer, não quer fazer nada.”; ou ainda, dizer que a sociedade está perdida e que o mundo

não tem jeito, exemplificam o que estou chamando de se manter no raso. Tais discursos

ignoram a complexidade e distanciam o problema a ponto de torna-lo intocável. Como se,

independentemente do que se faça, a situação já está dada, e o que resta é aceita-la.

No poema-RAP, a estudante fala de um sujeito sem voz; que sofre preconceito. Que

está dividido entre o que ele é, e a aparência imposta pela sociedade. Essa divisão causa-lhe

obstrução; tem-se, portanto, um sujeito cortado, interrompido, sem voz, sem movimento.

Mas a imposição tem preço: a decadência. Quando a estudante escreve “No nosso país,

cidadão não tem vez. Por causa de política e sua estupidez” imagino um paradoxo, no qual

a política não está para a polis. Penso que (e talvez a autora compartilhou dessa ideia ao

escrever) o que chamamos de política não exerce sua função principal, ao contrário, muitas

vezes a ignora. Em seguida, ela questiona quem é o criminoso; e explicita o que, no meu

entendimento, seria um apoio viciado dos poderes (legislativo e judiciário). A estudante

insere uma pergunta que denota a urgência do quadro levantado, dizendo que a espera

provoca a dor, a fome e o sofrimento; mas a morte não espera. Aponta ainda para o básico

(saúde, educação e segurança), garantido pela Constituição, que não é atendido; e questiona

a incoerência entre retórica e atitudes. Por fim, tece uma crítica à conivência da mídia.

Esta é minha interpretação sobre o poema, certamente. Mas, em última instância, o

que pretendo com essa leitura é dizer que a produção realizada pela estudante, demonstra

um pensamento mais complexo, sobre o mesmo assunto para o qual seus colegas

manifestaram as frases explicitadas acima. Além disso, o espaço de troca, aberto pela

mediação, no qual os jovens podem colocar suas opiniões e construir suas narrativas, é

também um ambiente para a aprendizagem. Neste, os estudantes-narradores colocam suas

ideias para os colegas e escutam/veem outras diferentes das suas, podendo ampliar

entendimentos e pontos de vista. E o câmbio desses olhares é um recurso rico para a

mediação.

Vale ressaltar que não houve obrigatoriedade de participação; a produção de

narrativas foi um convite feito pelas mediadoras. Contudo, sabemos que os estudantes que

optaram por “não participar” paradoxalmente tiveram sua parcela de participação, assim

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como os outros, uma vez que fruição também pode ser entendida como produção.

Compreender os estudantes que são apenas (o que não é pouco) observadores como

participantes do processo pedagógico, e sobretudo estimulá-los a construir sentido por meio

dos trabalhos dos colegas, é importante para incluí-los nas atividades propostas. Além disso,

contribui-se para desmistificar a imagem comum criada no âmbito escolar de que a

obrigatoriedade do fazer do lado simbólico do palco (VELOSO, no prelo) é o único caminho

para o conhecimento e para a avaliação dos educandos.

Podemos, então, perceber a mediação funcionando como (dilatação da) experiência

estética. Primeiramente em um nível particular, quando a estudante dilata a própria

experiência com o espetáculo gerando outra forma de arte. Que se dá pela via de uma

construção de narrativa, se concretizando com a produção de um poema-RAP. E depois, em

um nível coletivo, quando envolve a turma em um processo de fruição durante a leitura.

Neste último trata-se de uma nova experiência estética, não mais (ou não apenas) com o

espetáculo, é um novo ciclo de produção-fruição. E o mesmo movimento, de dilatação, em

nível particular e coletivo, pode ser percebido com a produção de cena no exemplo 1. Da

mesma forma, podemos ver em ambos exemplos a narrativa como instrumento para que o

estudante ponha em jogo a realidade e a si próprio em uma construção da ordem do

simbólico.

Enfim, a atual pesquisa é igualmente um processo de compreensão da vivência no

Projeto Mediato: a minha grande narrativa. São processos similares porque, ao compreender

o que foi feito em 2014, pela via da pesquisa e da atual escrita, corroboro para a completude

da minha vivência estética-profissional.

Não seria demasiado provocar uma aproximação entre este tipo de dilatação (a

narrativa) e os chamados Debates Performativos propostos pelo iNERTE - Instável Núcleo

de Estudos de Recepção Teatral, que consistem em “desdobramentos poéticos realizados

com espectadores que assistiram a um espetáculo teatral”.33 O grupo de pesquisa, atualmente

coordenado por Flávio Desgranges e Giuliana Simões, busca pesquisar o processo criativo

do espectador teatral, “investigar aspectos do efeito estético provocado pela cena teatral

33 Debates Performativos constitui uma linha investigativa do iNerTE – Instável Núcleo de Estudos de

Recepção Teatral criado em 2004, junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade de

São Paulo (PPGAC-USP). Disponível em: <http://www2.eca.usp.br/inerte> Acesso em: 26 de novembro de

2015.

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recente e [...] desvendar como atua o espectador diante da profusão de significantes

oferecidos pelas diversas proposições artísticas” (SIMÕES, 2013, p. 195).

Os Debates Performativos, e outras ações do iNERTE, objetivam “colocar o

espectador em condição de perceber a si mesmo, observar seus processos internos,

mantendo-se atento ao próprio modo de recepção que engendra enquanto assiste às cenas”

(SIMÕES, 2013, p. 196). Trata-se também de um convite ao espectador para que ele possa

fazer poesia com a proposição poética que lhe foi apresentada.

Essa semelhança, não intencional, reforça a importância da compreensão de que o

espectador é também coautor e responsável pela feitura de um novo texto poético como

resposta a um primeiro texto, a obra. E que é pela via desse espaço criativo que ele pode

inventar sentidos para o que foi visto, mesclando, inevitavelmente, sua trajetória, sobretudo

outras situações estéticas, efetivando assim a dilatação. Em última instância, conhecer a

investigação acerca da recepção e dos efeitos da obra teatral no iNERTE durante o caminhar

desta pesquisa me incentivou a continuar investigando o pós-espetáculo como momento

potente na mediação.

2.4.2 Produção de semelhança

Como vimos, a narrativa foi a primeira possibilidade elencada com capacidade

dilatadora na mediação. A segunda, que pode vir dentro daquela, é a produção de

semelhança. A ideia de “semelhança” como possibilidade de dilatar a experiência surgiu de

uma prática recorrente dentro das galerias de arte. Enquanto mediadora costumava estimular

o público a estabelecer relações entre as obras de uma mesma exposição, sendo elas de um

único artista ou não. Sei que o trabalho curatorial já fez esse exercício cujo resultado estava

ali reunido a nossa volta; mas o que intencionava era justamente propor que o espectador

também fizesse o seu caminho de junção das obras, criando talvez um fio que as unisse, seja

este fio marcado pela tensão das diferenças ou pelo consenso das semelhanças; aproximando

obras de países, época ou artistas distintos. Esse exercício contribuía, inclusive, para a

compreensão de um tempo-história que podia ser abordado de outra forma que não fosse

pela sequencialidade cronológica.

Certa vez uma criança ao entrar na galeria do CCBB exclamou: “Nossa, isso parece

Lygia Clark!”. O episódio, rememorado várias vezes pela equipe, nos chamou a atenção

porque a criança conhecia as obras de Lygia Clark e também por ter criado espontaneamente

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a relação a partir das obras de outra artista. Este exemplo, poderia dizer, se constitui como

uma produção de semelhança.

De forma escorregadia a memória me trouxe à percepção a imagem da personagem

G.H. enquanto lia O que vemos o que nos olha de Didi-Huberman para a escrita desta

dissertação. Ou seja, fui presenteada com a literatura de Lispector (e compreendamos

presenteada como regalada, mas também enquanto memória resgatada e tornada presente).

Em um processo de síntese capturei essa imagem, rememorei a paixão de G.H., e a coloquei

lado a lado com a experiência do olhar do autor. Acrescentei ainda lembranças de exposições

de arte já experienciadas. A partir disso, passei a explorar, e diria até dilatar, o que havia de

relação entre elas: me aproximando ora do que lia, ora do que rememorava, ora de ambos.

Esse exercício que é da memória, e que é intelectual, digo se tratar de uma produção de

semelhança.

Embora use a palavra “produção” o exercício não é de todo intencional e controlado.

Pois é justamente a espontaneidade do surgimento da lembrança que propicia a relação. As

semelhanças nos são dadas pela via da memória. Nossa experiência com a arte, de forma

geral, se torna possível por uma construção da memória. Esta é constituída por nossas

vivências e ao mesmo tempo é por meio dela que experienciamos as coisas, inclusive a arte.

O que é a memória senão a insistência contra o esquecimento e o apagamento? O passado

não existe a não ser enquanto imagem que nos é dada pela memória. O presente, pela sua

perenidade intrínseca, já é memória, só de pensa-lo. Se o passado, e próprio presente, que já

foi, se configuram como memória, estamos, inevitavelmente, sempre trabalhando com esta

propriedade inacabada e em eterno movimento. Igualmente, é pela via da memória que a

mediação vai trabalhar na produção de semelhanças.

Mas afinal, como provocar essa memória espontânea? Não podemos fazer a

provocação a não ser proporcionando um ambiente favorável. O que se daria a meu ver com

a própria mediação. Vejamos o trecho de uma fala ocorrida no pós-espetáculo.

Exemplo 3 – A mediadora distribuiu e apresentou o caderno de mediação, abrindo

em uma página que continham referências de obras das Artes Visuais relacionadas à temática

do espetáculo. Em um determinado momento da conversa um estudante comentou sobre uma

música dos Racionais MC’s: “Tem uma música dos Racionais que fala sobre a vida de um

cara, aí a polícia entra, mata ele dentro da casa dele. Aí aparece no outro dia: homem é

encontrado morto [...] por acerto de contas.” E ainda, “Racionais é vida véi. É porque o povo

acha que Racionais é música de bandido, mas não vê a letra.” (Informação verbal, Ceilândia-

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DF, 2014). Mais adiante retomarei esse exemplo dentro do seu respectivo contexto. Por

enquanto, deterei a atenção nesse pequeno trecho.

Podemos observar, neste caso, a mediação como um dilatador da capacidade de

produzir semelhança entre duas formas de arte – o espetáculo assistido no dia anterior e uma

música. O estudante, ao trazer um RAP durante o diálogo sobre o que foi vivenciado no dia

anterior, afirma sua posição de interprete e construtor de sentido. Igualmente, contribui para

o desenvolvimento da conversa, incentivando os colegas no estabelecimento de novas

semelhanças entre produções artísticas. Cabe ressaltar que àquele momento o estudante não

tinha visto no caderno a referência feita a outra música dos Racionais MC’s.

Há um agenciamento entre o que está sendo visto, falado, ouvido e feito no presente,

com a memória. A lembrança de uma imagem-arte em associação com outra é também um

exercício de síntese. No caso do estudante a síntese se deu em função da temática do

espetáculo. Outros exemplos de semelhança também foram verificados no Projeto, mas

todos tinham em comum a relação com o tema, que girava em torno de violência de Estado,

manipulação midiática, repressão versus liberdade: assuntos presentes na peça.

Penso que esta é uma maneira mais simples de semelhança. Não disponho de

exemplos do Mediato, mas ouso esboçar o que seria uma forma mais complexa. Relacionar

duas obras por suas maneiras de lidar com determinado tema e não necessariamente pela

temática. Ou ainda, encontrar semelhanças no que não está explícito nas obras. Exemplifico:

a já citada obra Las meninas de Velásquez feita no século XVII mantém com as obras

contemporâneas da exposição Ciclo: criar com o que temos uma semelhança que não é da

ordem do tema, mas é da esfera do que há fora da obra, isto é, da esfera do espectador. O

que elas mantem em comum é o olhar que lançam ao sujeito que está fora mas que pode

estar dentro. Este seria um modo mais complexo de semelhança e que permitiria aos

participantes explorar seus desdobramentos.

Vejamos, a mediação é um território fértil para a produção de semelhanças, criando

ambiente para que a memória espontânea surja e seja, digamos, selecionada e explicitada

pelo estudante para seus pares durante o processo pedagógico. Depois disso, teríamos um

segundo momento em que a mediação instigaria um desdobramento juntamente aos outros

espectadores. Essa exploração enriquece o diálogo e em última instância cria ambiente para

novas semelhanças. Além disso, criar semelhanças é um exercício que faz relação com o ato

interpretativo, que é próprio da mediação. Mas cabe ressaltar que a interpretação não é em

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nenhuma instância (dentro das margens do que é considerado mediação neste trabalho) a

busca por significados que por ventura residiriam na obra.

Neste caso, é necessário que a mediadora esteja atenta, e aberta, às semelhanças que

surgem, isto é, que são criadas durante as ações. No exemplo acima, se a mediadora não

tivesse reconhecido a referência apresentada pelo estudante como contribuição válida ao que

estava sendo proposto, haveria um choque de intenções, uma vez que ele a reconhece como

algo intrinsecamente ligado a sua existência, quando diz “Racionais é vida”. Mediadora e

estudante caminharam na mesma direção em apoio mútuo. Se aquela rejeitasse, ou ignorasse,

a semelhança colocada por este, subitamente eles passariam a caminhar em mãos opostas.

Essa contramão certamente não estimularia a turma a buscar outras semelhanças.

2.4.3 Real e Ficcional

O estreitamento das relações entre real e ficcional pode ser visto no exemplo 1,

quando os estudantes, a partir de uma provocação (o que te incomoda?), se apropriam de

questões do cotidiano deles e criam uma ficção. Biange Cabral (2012, p. 10), aponta para o

potencial dessa relação:

As fronteiras entre o real e o ficcional são ativadas e provocam mudanças de

percepção e expectativas. Estas em geral resultam da variedade (alternativas) e

qualidade de referências linguísticas e contextuais cruzadas nos encontros teatrais,

e estão associadas à transgressão ou à ressonância com o contexto real dos

participantes.

O espaço ficcional é pujante para a reflexão – neste caso sobre as questões incômodas

aos estudantes – à medida que abre espaço para construções impensáveis no espaço do real,

ou do cotidiano. Além disso, no ficcional criado pelo jogo, por exemplo, os participantes

podem se sentir mais à vontade para expor suas ideias, o que é confirmado pelo professor

Ulisses Pereira (Teatro, Gama-DF) em entrevista: “através dos jogos eles [os estudantes]

tinham essa disposição de falar mais, de dizer mais porque tem a máscara. [...] Não sou eu,

é o personagem, é a cena. A realização dos jogos é muito importante nesse processo de

mediação”.34

No plano ficcional a relação espaço-temporal é outra, diferente do dia a dia. Com

isso temos: ações e construções de vivências passadas, convivendo concomitantemente com

projeções (futuro); vivências e expectativas que podem ser colocadas em prática na cena e

34 Entrevista realizada em Gama-DF, ago. 2015.

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podem se constituir como objeto de reflexão. E ainda, as expectativas, bem como o olhar

que se tem sobre o passado, podem ser alteradas/modificadas, com soluções diversas, dentro

do plano ficcional, ou seja, na cena. Jacques Rancière (2009b), mais radicalmente, afirma

que o real precisa ser ficcionado para ser pensado. E eu acrescentaria que ele precisa também

ser narrado para ser pensado.

Indo um pouco adiante nesse entendimento, tenciono uma subversão entre essas duas

esferas, me apropriando do que Rancière (2012, p. 74) coloca acerca de o real ser objeto de

uma ficção, pressupondo que o real é um ficcional consensual. “É a ficção dominante, a

ficção consensual, que nega seu caráter de ficção fazendo-se passar por realidade e traçando

uma linha de divisão simples entre o domínio desse real e o das representações e aparências,

opiniões e utopias.”

O fato de o real ser entendido como uma ficção (dominante) pode provocar uma

sensação de possibilidades, nas quais, ficções penetram a esfera do que é factível. Esse

pensamento, na mediação, pode estimular o senso crítico de jovens estudantes, à medida que

questiona o que lhes é dado como realidade e/ou fato. E põe em causa a parte que eles estão

tomando, na partilha do sensível. Tal conceito, a relembrar, é proposto por Rancière (2009b)

para designar a partilha de espaços, tempos e tipos de atividades; como se dá a participação

e quem determina quem toma parte.

Para melhor explorar essa potencialidade do plano ficcional, as mediadoras poderiam

ter lançado mão de técnicas de teatro desenvolvidas por Augusto Boal (2013), para criar

possibilidades de resolução dentro das próprias cenas. Assim, os estudantes-atores após

diálogo com os estudantes-espectadores e com as mediadoras, poderiam retornar à cena

provocando um desdobramento. Algumas técnicas seriam: dramaturgia simultânea, consiste

em um convite feito ao espectador para que este faça uma intervenção oral, sem que seja

necessária sua entrada física em cena; teatro-imagem na qual o espectador interfere

diretamente, moldando os corpos dos participantes em cena, ou seja, expressando sua

opinião sem usar palavras; teatro-debate, nesta há uma intervenção e modificação da ação

dramática, pela via soluções apresentadas pelos espectadores que agora podem ocupar o

lugar dos atores.

Ou ainda, poderia se desenvolver de forma diferente, com outros tipos de narrativas

e outras formas de arte, como a construção de um poema, de uma música, de uma colagem,

etc. Contudo, nos exemplos dados até então, o desdobramento das produções realizadas

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pelos estudantes se deu apenas como conversa, em função do tempo disponibilizado com as

turmas.

Podemos também entender esse limiar entre real e ficcional intimamente ligado à

brincadeira infantil. Mas não me refiro ao que é proposto pela indústria dos brinquedos, que

os tornam, muitas vezes, estranhos às crianças, reduzindo a capacidade criativa a apertar um

botão. Compreendendo a imitação voltada à brincadeira e não ao brinquedo – pois quanto

mais os brinquedos imitam, mais distantes estão da brincadeira viva (BENJAMIN, 1994) –,

podemos propor uma aproximação entre as qualidades desse estado infantil e as propriedades

do ficcional. Uma vez que é este estado, próprio à criança, que tolera o perder-se, que permite

a entrega necessária ao jogo.

Benjamin (1994) aproxima a brincadeira infantil da capacidade mimética.35 Lispector

(1995, p. 17) explicita a habilidade infantil de se entregar e se perder: “Foi como adulto então

que eu tive medo e criei a terceira perna? Mas como adulto terei a coragem infantil de me

perder?”. Ambas qualidades (imitar e perde-se), próprias à brincadeira de criança, estão

presentes no plano ficcional.

A ideia de estreitar as relações entre real e ficcional é, em última instância, aproximar

os estudantes e suas narrativas de um estado de ficção potencialmente criado pela arte. Neste

caso, ficção não consistiria em contar histórias imaginárias. Segundo Rancière (2012, p. 64-

65):

Ficção não é criação de um mundo imaginário oposto ao mundo real. É o trabalho

que realiza dissensos, que muda os modos de apresentação sensível e as formas de

enunciação, mudando quadros, escalas ou ritmos, construindo relações novas entre

a aparência e a realidade, o singular e o comum, o visível e a sua significação. Esse

trabalho muda as coordenadas do representável; muda nossa percepção dos

acontecimentos sensíveis, nossa maneira de relacioná-los com os sujeitos, o modo

como nosso mundo é povoado de acontecimentos e figuras. [...] Mas não há

princípio de correspondência determinado entre essas micropolíticas da redescrição

da experiência e a constituição de coletivos políticos e enunciação.

Quando o autor define ficção, ele está se referindo principalmente à produção dos

artistas. Pretendo, contudo, uma ampliação do conceito para abraçar a produção ficcional

realizada dentro da mediação pelos estudantes-espectadores-narradores. Dessa forma, o que

se pretende com a produção ficcional, e de forma mais ampla com a mediação, é o

35 Didi-Huberman (2010) também fala da brincadeira infantil. Mas seu ponto de vista, diferentemente de

Benjamin, concorda com Freud quando diz que talvez só haja imagem se pensarmos para além do princípio de

imitação, pois explicar o jogo por esse princípio seria inútil. E concorda com Lacan para quem o símbolo surge

como assassinato da coisa. Portanto, o autor toma a brincadeira por uma qualidade de prazer e morte. A coisa

(uma boneca, um lençol) é assassinada para ser alterada, dando lugar a “uma imagem bem mais eficaz, bem

mais essencial” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 83). Com isso, justifico porque não utilizo a analogia com a

brincadeira infantil de Didi-Huberman, mas de Benjamin.

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agenciamento das questões explicitadas pelo autor. A saber: de relações que produzam

dissenso e não consenso; de outras formas de apresentação sensível, de percepção dos

acontecimentos sensíveis; e por fim, outras maneiras de relacionar essas formas com os

sujeitos. Mas cabe ressaltar que a mediação não pressupõe uma relação de causa e efeito

entre o agenciamento dessas questões e a mudança de opinião ou atitude por parte dos

estudantes. É o que o filósofo explicita no último trecho, quando diz que não há princípio de

correspondência determinado entre o trabalho da ficção (“essas micropolíticas da

redescrição da experiência”) e uma tomada de consciência e de atitude (o que o autor chama

também de “constituição de coletivos políticos e enunciação”, ou ainda, de “estado de

comunidade”). Este assunto será retomando ao final do capítulo.

Para Rancière (2010, p. 53) a “arte não produz conhecimentos ou representações para

a política. Ela produz ficções ou dissensos, agenciamentos de relações de regimes

heterogêneos do sensível. Ela os produz não para a ação política, mas no seio de sua própria

política”. Assim como a arte, e a ficção produzida por ela, não estão a serviço de uma ação

política; a mediação e sua produção ficcional também não estão. Não há uma relação de

causa e efeito entre a proposição de uma atividade pela mediadora, uma consciência política,

e uma tomada de atitude por parte dos estudantes-espectadores-narradores. Para que a

mediação não se traia, deve-se suspender relações determináveis entre intenções e efeitos.36

Assim, é a partir das relações entre real e ficcional, da produção de semelhança, e da

narrativa, que podemos entender a mediação como dilatação da experiência estética. Quanto

ao lugar da mediação, prefere-se que ele se inscreva dentro das margens da narrativa, uma

vez que sua essência não é informativa ou explicativa. Que este lugar seja de travessia e

perigo, para que as ideias e o próprio corpo não se permitam estanques; e a mediação não

seja uma terceira perna estabilizadora. Deseja-se ainda o potente limiar entre o que vemos e

o que nos olha, pois não queremos apenas o que é evidentemente visível, nem o que é dado

em certeza.

Antes de passarmos à questão da ruptura na mediação gostaria de inserir, mesmo que

brevemente, a perspectiva da dilatação dos sentidos como preparação para o contato com a

36 Embora não use diretamente as noções de estética e política encontrados em Benjamin e sim em Rancière,

considero sensato apontar para uma importante diferença na construção de tais ideias por ambos os teóricos.

Pois, este rejeita a ideia de estetização da política encontrada naquele. Para Benjamin (1994), a política teria

se estetizado em um momento específico, e faz referência às formas e manifestações do Terceiro Reich. Para

Rancière (2009a; 2009b), a política sempre teve uma dimensão estética. Inclusive nas suas manifestações de

poder, ou como o próprio autor chama: nas suas formas de espetacularização do poder. Prefere-se, para as

noções de mediação, portanto, adotar o conceito deste último.

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obra. Pois, das três instancias trabalhadas até aqui – narrativa, semelhança e tensão entre real

e ficcional – apenas esta última poderia acontecer tanto no pré quanto no pós-espetáculo

dentro da escolha conceitual aqui desenvolvida (embora os exemplos dados se limitem ao

pós). Cabe relembrar que a preferência pelos momentos e mediação que sucedem o encontro

com a arte deu-se em função das especificidades do Projeto e principalmente do espetáculo

que não nos colocaram em situações de “contenção do abandono” (ABREU, 2015). Logo as

situações de dificuldade, e que exigiam maior atenção, aconteceram no terceiro encontro

com os estudantes, no pós-espetáculo.

Tendo em vista também a dificuldade de mensurar a dilatação no pré-espetáculo

devido a impossibilidade de aferir: se houve ou não experiência com a obra, que nível de

experiência se deu, e ainda, se esta teve ou não influência das ações mediadoras, dediquei a

este momento de ampliar os sentidos para a obra pouca atenção durante a análise,

consequentemente há uma escassa investigação a qual tento exemplificar adiante. Começo

com o trecho de uma entrevista realizada um semestre após a realização do Projeto, (maio

de 2015) em Ceilândia-DF, com três estudantes.

Arlene (entrevistadora): Vocês acham que a mediação (o momento que rolou antes do espetáculo,

ou o momento que rolou depois) alterou o seu olhar para o espetáculo?

Paula (estudante): Acho que sim. Porque como a gente não conhecia, não participava muito dessas

coisas, a gente podia talvez não entender tanto o espetáculo, da forma como a gente teve que fazer

nós mesmos, o nosso espetáculo para os mediadores. E na hora lá [de assistir à peça] a gente prestou

atenção mais nos detalhes, no jeito que os atores estavam posicionados. Até nesse negócio de

posicionamento, onde eles ficavam como eles andavam pelo espaço. Tudo isso que a gente aprendeu,

a gente utilizou na hora do show.

[...]

Arlene: Seria diferente se não tivesse mediação, se só viesse o espetáculo pra dentro da escola?

Gabriela (estudante): É porque a gente ia fazer pouco caso. E aí seria como qualquer apresentação

que tem na sexta-feira, que a gente tem. O teatro ia vir, ia fazer a apresentação, a gente não ia se

importar. Ia voltar a aula normal, continuar tudo normal. [...] Como a gente veio a conhecer,

conheceu mais sobre o espetáculo, e tudo, a gente criou um certo interesse. Quando veio, a gente já

iria olhar com olhos diferentes, ia chamar mais pessoas para verem também.

Paula usou as palavras “espetáculo” e “show” para falar das cenas criadas por ela e

sua turma, durante a mediação pré-espetáculo e também durante a oficina oferecida no contra

turno escolar. Isso denota a pouca familiaridade com a linguagem cênica, o que é confirmado

quando ela diz que “não participava muito dessas coisas”. Observo também que a ideia de

recepção como entendimento está presente, ao se explicitar que sem a mediação ela “podia

talvez não entender tanto o espetáculo”.

Ao mesmo tempo, a estudante relaciona o “entender” a sua observação sobre a

ocupação do espaço cênico pelos atores. Embora use uma expressão rígida (entender) ela

fala de uma percepção, que foi ampliada pela mediação; uma vez que assinala como a prática

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realizada antes sensibilizou o olhar para o espetáculo. Isso é explicitado com a frase: “da

forma como a gente teve que fazer nós mesmos, o nosso espetáculo para os mediadores”.

Em outras palavras, a estudante diz que o entendimento seria diferente se não houvesse o

fazer, o perceber (e o padecer) pelo corpo, com os exercícios realizados previamente. Cabe

alertar que as duas estudantes se inscreveram e participaram da oficina de iniciação teatral

oferecida uma semana antes das mediações, o que pode justificar o foco na apreensão da

linguagem cênica.

Igualmente, Paula percebe como esse aprendizado repercutiu na sua própria

produção, quando diz: “Tudo isso que a gente aprendeu, a gente utilizou na hora do show”.

E o que ela chama de “show” é justamente a concepção, a produção poética, que no caso da

turma se deu por meio da apresentação de cenas no encontro pós-espetáculo. Ou seja, além

da apropriação de um recurso da linguagem cênica (ocupação do espaço), houve também

uma consciência dessa utilização. Pois, o que fica claro em sua fala é que o fazer (“fazer nós

mesmo, o nosso espetáculo”) a levou a perceber tal recurso no trabalho dos atores, que, por

sua vez, a levou a uma apropriação e utilização em cena, ou como ela mesma diz, “na hora

do show”.

Gabriela afirma que se não houvesse a mediação seu interesse pelo espetáculo seria

diferente. E compara o Projeto aos eventos que acontecem na escola, às sextas-feiras durante

o intervalo – de música, dança, teatro, etc. Ela ainda explicita que a possibilidade de

“conhecer” sobre a linguagem teatral influenciou sua experiência com o espetáculo. Isso

reforça o que Desgranges (2010, p. 32) fala sobre a familiaridade com os códigos teatrais

influenciar o interesse e o prazer na experiência com o espetáculo: “o prazer que ele [o

espectador] experimenta em uma encenação intensifica-se com a apreensão da linguagem

teatral.”

Cabe apontar que Gabriela buscou saber quando o espetáculo seria apresentado

novamente, fora do circuito do Mediato, e convidou colegas para assistirem outra vez. Isso

ocorreu em um sábado, no Teatro SESC Paulo Autran, localizado em Taguatinga-DF: região

próxima à Ceilândia-DF onde se situa a escola. Outro desdobramento que a fala a seguir

pode mostrar é o desejo de criar um grupo de teatro. As estudantes disseram que após a

realização do Mediato tentaram reunir pessoas interessadas em atuação para criar uma

companhia, mas, até aquele momento, não havia se concretizado.

Gabriela diz: “foi no sábado. A gente fez um grupo no WhatsApp, porque a gente

estava pensando em fazer o grupo do teatro, e nisso a gente conversou e combinou para ir

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lá. Só que muita gente não foi. Foi só eu e ela. A gente assistiu duas vezes o mesmo teatro.

Foi até que legal.” Fica claro que o prazer estético vivenciado com o Projeto estimulou

Gabriela e sua colega a buscarem mais experiências (ainda que tenha se concretizado com o

mesmo espetáculo). Isso demonstra a dilatação acontecendo, inclusive após o encerramento

das mediações.

Em última análise o que as estudantes trazem corrobora para a compreensão de que

uma experiência se concretizou para elas, sobretudo pela via das atividades mediadoras. A

mediação, quando atende aos seus princípios estético-pedagógicos, pode contribuir com a

dilatação dos sentidos, com a abertura fundamental, criando ambiente para a experiência. O

que também pode ser verificado na fala de um estudante de outra região: “tudo isso eu acho

que foi preparação pra gente chegar no espetáculo e ver ‘Oh, isso tem a ver com aquilo, tem

a ver com aquele outro’” E explica: a mediação “estava preparando nós para o espetáculo,

[para] a gente ver com outro olhar [...] Porque primeiro nós começamos a trabalhar com a

nossa parte visual, depois o corpo”.37

O professor Ulisses (Teatro, Gama-DF) reforça esse ponto de vista quando diz, em

entrevista, que percebeu diferença na postura dos estudantes frente à obra: “a gente pôde

perceber o ganho deles com o processo de mediação, de introdução-espetáculo (antes do

momento espetáculo). Porque no retorno que eles deram aos atores – de perguntas, de elogio,

de comentário ou até de crítica – eles sabiam o que enxergar ou sabiam o que tinham visto”

E reforça: “não foi simplesmente achei bonito, achei emocionante. [...] Então eles sabiam

dialogar”.38

2.5 A mediação como ruptura

Retomarei aqui uma questão colocada no início do capítulo. A relembrar: como a

mediação pode provocar uma ruptura no sentido de uma mudança de percepção por parte

dos/das estudantes/espectadores(as) e se configurar como um espaço de troca estético-

político. Acredito que toda mediação deve conter um elemento de dissenso. Assim como no

teatro há o que chamamos de conflito – e é ele quem vai alimentar o jogo mantendo a atenção

e o interesse – de forma semelhante, o que vai manter a força da mediação e garantir seu

37 Entrevista realizada em São Sebastião-DF, jun. 2015. 38 Entrevista realizada em Gama-DF, ago. 2015

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desenvolvimento é justamente o que há de dissensual. A mediação pode se configurar como

um espaço de diálogo onde estética e política estão imbrincadas. Neste sentido, busca-se

uma ruptura pela via de cenas de dissenso.

A ideia de dissenso é colocada por Rancière (2012, p.59) como uma espécie de

perturbação na esfera sensível, uma modificação do que é visível, dizível e pensável. O

dissenso está no cerne da política; ele “não é o conflito de ideias e sentimentos. É o conflito

de vários regimes de sensorialidade.” Desta forma, se a mediação funcionar como uma

atividade dissensual, possivelmente criará uma fissura na configuração estabelecida.

Estabelecida no sentido de padrões de pensamento e comportamento que se baseiam no e/ou

reforçam o senso comum.

Quando falo em estético e político juntos, penso em um modus de percepção e

sensibilidade que seja ético, que não contribua com o modo de operação do senso comum,

mas provoque deslocamentos. Por isso, a utilização do termo não tem a ver com o que se

convencionou chamar de política. Também não se pressupõe o estético apenas no âmbito

artístico.

Segundo Rancière (2012, p. 59-60):

Política não é, em primeiro lugar, exercício de poder ou luta pelo poder. Seu

âmbito não é definido, em primeiro lugar, pelas leis e instituições. A primeira

questão política é saber que objetos e que sujeitos são visados por essas instituições

e essas leis, que formas de relação definem propriamente uma comunidade

política, que objetos essas relações visam, que sujeitos são aptos a designar esses

objetos e a discuti-los. A política é a atividade que reconfigura os âmbitos

sensíveis nos quais se definem objetos comuns. [...] Tal como Platão nos ensina a

contrario, a política começa quando há ruptura na distribuição dos espaços e das

competências – e incompetências.

A essa ruptura o autor dá o nome de dissenso, colocando como consenso também o

que usualmente chamamos de política. Assim, haveria uma “política da estética no sentido

de que as novas formas de circulação da palavra, de exposição do visível e de produção dos

afetos determinam capacidades novas, em ruptura com a antiga configuração do possível.”

(RANCIÈRE, 2012, p. 63).

Biange Cabral (2012) traz um elemento dentro de sua pesquisa em Ação Cultural e

Teatro como Pedagogia que pode contribuir com a presente discussão pela semelhança com

a ideia de ruptura. O trabalho da autora se volta para o professor, mas facilmente podemos

transpor o argumento, por ela construído, para o mediador e suas ações.

Se a ação cultural parte do princípio de que a cultura (e o teatro) como pedagogia

atinge o emocional e o racional, é possível afirmar que o engajamento contínuo do

indivíduo com atividades culturais e artísticas contribui para a quebra e mudança

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de habitus. Assim, a qualidade e a continuidade de um trabalho artístico

significativo para o indivíduo podem mudar sua visão de mundo e perspectivas,

pois quanto maior sua significação cultural, mais significativo seu potencial social

(CABRAL, 2012, p. 6-7).

A autora argumenta sobre a possibilidade de a ação cultural, por meio do fazer teatral,

tornar-se um campo privilegiado para a quebra do habitus. O conceito de habitus é colocado

por Pierre Bourdieu (2007) em A Distinção: crítica social do julgamento e se apresenta como

um condicionamento cultural que cerceia e direciona as formas de pensar e agir. Como um

“sistema de formas adquiridas de percepção, pensamento e atitudes, que delimitam ou

governam nossas interações no campo social.” (CABRAL, 2012, p. 5).

Tendo em vista essas noções de ruptura e dissenso vejamos um exercício aplicado

pelas mediadoras do Projeto Mediato em um encontro pré-espetáculo.

Exemplo 4 (pré-espetáculo) – A turma era dividida em dois grupos: dos fazedores e

dos observadores, assim os estudantes passavam pelos pontos distintos de olhar e

experimentação, ora atuando, ora sendo espectador. O exercício consistia em elaborar uma

composição com os corpos, dentro de um curto tempo, a partir de determinada palavra.

Apenas dez segundos eram disponibilizados para a montagem da “fotografia” – momento

em que todos ficavam parados formando uma composição. Com este jogo de espontaneidade

as mediadoras pretendiam observar e trabalhar as primeiras imagens que vinham à mente

dos estudantes, e que eram por eles construídas. Isto é, imagens que já estavam fixadas, ou

que circulavam no universo daquele grupo.

Esta atividade por vezes rendia discussões profícuas a respeito de estereótipos, da

imagem que é criada sobre algo ou alguém desconhecido e também acerca da importância

de conhecer outros pontos de vista sobre um mesmo objeto ou lugar. No caso da palavra-

tema “favela”, por exemplo, estimular a busca por opiniões e imagens que viessem de dentro,

abrindo espaço para informações e ideias que extrapolassem um único olhar externo. Dessa

forma, a mediação contribuía para um olhar etnocenológico na discussão. Abaixo um trecho

da conversa durante a realização do jogo da fotografia com a palavra “favela”:39

Joana (mediadora): O que eles trouxeram pra gente nessa imagem?

Estudantes: Maconheiro, traficante, piriguete, assalto, prostituta, vítimas, drogas.

Joana (mediadora): Vocês acham que eles conseguiram representar bem a proposta “favela”?

Estudantes: Sim!

39 Mediação realizada em setembro de 2015 em Ceilândia-DF. Os nomes tanto dos estudantes quanto das

mediadoras e supervisoras foram substituídos por outros fictícios para preservar a identidade. Originais e

transcrição na íntegra encontram-se comigo.

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Joana (mediadora): Então eu lanço outra pergunta. Olha só, dentro dessa construção de

personagens que eles trouxeram pra gente: a piriguete, o traficante, o maconheiro... Vocês

perceberam que eles não trouxeram (e na fala de vocês, vocês também não trouxeram) a parte boa

da favela?

[Alvoroço]

Joana (mediadora): Então vocês tem 5 segundos pra mudar essa cena. 5, 4, 3, 2, 1. [o grupo refaz].

E agora galera o que temos?

Junior (estudante): Uma roda de samba.

Vanessa: Dança. [...]

Ao final do encontro a mediadora retoma o assunto:

Joana (mediadora): [...] A gente está trabalhando nas escolas públicas que a gente passou, que foi

Gama São Sebastião e Brazlândia, e agora Ceilândia (minha cidade), discutindo sobre essa relação

de imagem. E como a gente lê essa imagem. Sobre essa construção é importante a gente salientar

sobre como vem essa informação pra gente e como a gente faz essa leitura de terminados lugares e

pessoas. Enfim, vamos usar os dois exemplos claros: quando a gente usa a proposta ‘favela’ [...].

Quais as mensagens que são fornecidas pra gente em virtude desse lugar?”

Sabrina (estudante): Que só tem ...

Junior (estudante): assaltos... maconheiro...

Vanessa (estudante): A gente só mostrou a parte negativa.

Rute (mediadora): E aonde vocês veem isso?

Vanessa (estudante): Em jornal.

Sabrina (estudante): Em novelas.

[...]

Joana (mediadora): Vocês acham que é um preconceito a partir da imagem?

Clara (estudante): Sim. Eu moro no Sol Nascente e a maioria do pessoal fala que lá acontece muito

assassinato. Acontecer, acontece. Mas não é toda essa mídia que dá.

Os estudantes comentavam a respeito da imagem, muitas vezes preconceituosa, que

construímos do “outro”; sobre a influência da mídia; e sobre o racismo. Geralmente, a

conversa fluía por parte dos próprios estudantes e a mediadora lançava questionamentos para

instigar os olhares acerca da cena e para alimentar o diálogo; partindo do pressuposto que as

“questões propostas pelo mediador devem procurar fazer que os intérpretes possam testar

suas hipóteses e confrontar seus pontos de vista, garantindo o espaço de expressão de suas

ideias e confirmando sua capacidade e sua autonomia interpretativa.” (COUTINHO, 2009,

p. 177).

Clara, reconhece e de certa forma se identifica com o outro a partir da imagem criada

por ela e pelos colegas em um jogo cênico, isto é, dentro do plano ficcional. Este foi o espaço

fértil para a relação de proximidade criada entre a coletividade representada pela “fotografia”

e ela própria, tendo como elo o lugar: a favela e o Sol Nascente. 40 Ou seja, o cotidiano dela

e de outros estudantes daquela turma foi posto em evidência, como objeto de reflexão, depois

que um jogo fccionou o real.

40 O Setor Habitacional Sol Nascente, localizado às margens de Ceilândia Norte, surgiu como ocupação

irregular, com o fracionamento de fazendas. Reúne cerca de 120 mil moradores que convivem com a falta de

infraestrutura e de equipamentos públicos. Disponível em: <http://nascentessite.xpg.uol.com.br/saiba.html>

Acesso em 26 jul. 2015.

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A analogia foi concretizada, ou tornada pública com a fala da estudante, por meio do

debate ao final. Muitas ideias, informações, imagens são lançadas durante as ações

mediadoras como se fossem fios puxados, descobertos, criados, que podem ficar soltos se

não forem tecidos durante ou posteriormente. Por isso, é importante que alguns fios sejam

atados, pois é essa conexão que muitas vezes gera uma ruptura no que é tido como natural,

e com esse nó a mediação pode gerar dissenso, como se deu no caso acima.

A conversa transcrita acima também mostra como muitas vezes os próprios

estudantes reconheciam não apenas a construção unilateral mas também a origem de

imagens e informações por eles apresentadas. Resposta que aparece quando a mediadora

pergunta “aonde vocês veem isso?”. Ainda sobre o diálogo, vale ressaltar que o fato de a

segunda versão da “fotografia” apresentar momentos de dança, não significa que a mediação

explorou a complexidade e as especificidades de uma coletividade como a favela, nem falou

sobre seu cotidiano (que diverge dos personagens criados pelos estudantes), muito menos

significa que se mostrou a “parte boa da favela”. O que se fez foi desconstruir uma imagem

que nos é dada como pronta, estimulando, possivelmente, a reflexão sobre outras imagens.

E apesar do maniqueísmo presente na fala da mediadora (o que pode ser revisto), a

problematização da imagem não ficou comprometida.

A fala de uma entrevista em São Sebastião-DF explicita de que forma a ruptura se

deu para um estudante e seus colegas:

Arlene (entrevistadora): Você acha que alguma coisa mudou, por ter participado desse projeto?

Samuel (estudante): A forma de ver a cultura.

Arlene: É? Por quê?

Samuel: Porque tem muita gente que não liga pra cultura, como é a nossa cultura, pra ver as

coisas... que nem ninguém nunca tinha saído para assistir uma peça, ou então pra ir nas

comunidades pra ver como é que é, e o projeto trouxe isso pra a gente, abriu a nossa mente para

enxergar o que tem ao nosso redor.41

As questões tratadas acima, e a forma como o exercício foi conduzido, são elementos

capazes de criar fissuras na estrutura habitual, com a possibilidade de provocar mudanças no

nível da reflexão e dos discursos. Observo que não houve uma fala hierarquizada vinda da

mediadora, dizendo que é importante, por exemplo, refletirmos sobre a imagem que

construímos do outro. Houve um gesto que apontou para fora do corpo que o criou, para um

outro corpo, em outro espaço (a favela). Houve sim um deslocamento do olhar que partiu

41 Entrevista realizada em São Sebastião-DF, abr. 2015.

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dos corpos dos próprios estudantes. E tal percepção se deu pela via do estreitamento das

relações entre real e ficcional gerado pelo jogo.

Em última instância um exercício simples realizado no pré-espetáculo pode ter

dilatado os sentidos para a experiência com a obra pela via do estímulo a um olhar atento ao

que nos é dado, bem como por meio de uma interpretação crítica de imagens, sejam elas

artísticas ou não. Alerto, contudo, que o exemplo se restringiu à questão interpretativa mas

sabemos que a ideia de dilatar sentidos não passa obrigatoriamente por aí.

Abrindo um parênteses, considero que a mediação vai muito além do que possamos

pretender com ela, no que diz respeito ao dissenso. E para justificar aponto o depoimento

sincero e espontâneo de alguns estudantes após a última mediação em Ceilândia-DF. “Acho

que essa oficina teve uma influência aqui na turma. Porque muita gente não falava com a

outra. Aí com essa oficina que teve elas meio que interagiram com o pessoal da sala, na hora

da gente fazer a foto e a peça hoje”, o estudante fez referência à oficina oferecida no contra

turno escolar e às mediações pré e pós espetáculo. Logo em seguida uma estudante

demonstra uma percepção interessante sobre a participação dos colegas, que converge com

o que é defendido nesta pesquisa, e confessa que não tinha coragem de falar em público antes

do Projeto: “acho que todo mundo teve uma outra visão. Porque esse não é o nosso cotidiano.

Às vezes com a mesmice fica chato. [...] Mesmo os espectadores, acho que todo mundo

participou. De forma indireta, mas participou, deu opinião, falou o que tinha que melhorar

[na cena]”. E complementa, “e ainda tirou minha vergonha. [...] Eu não conseguia falar em

público não”. A informação dada pelo primeiro estudante foi verificada posteriormente, pois

coincidentemente entrevistei uma das estudantes envolvidas.

Vejamos agora um trecho de um encontro pós-espetáculo em Ceilândia-DF.

Exemplo 5:

Ester (mediadora): Já que este material também é um tipo de mediação, por que, vocês acham, que

essa questão está dentro do material sendo que a peça foi sobre o que vocês falaram? [A mediadora

fala do caderno de mediação].

Maria (estudante): Na peça falava quem matou o anarquista.

Carol (estudante): Acho que são as pessoas que são mortas injustamente por estarem expressando

sua opinião. E também, tipo, a polícia encobrir o erro deles [próprios], né? Culpando a outra pessoa.

No caso, a pessoa que se matou... no caso do Herzog, como se ele tivesse se matado.

[...]

Pedro (estudante): Tem uma música dos Racionais que fala sobre a vida de um cara, aí a polícia

entra, mata ele dentro da casa dele. Aí aparece no outro dia: homem é encontrado morto [...] por

acerto de contas. Sarah (mediadora): vocês gostam dos Racionais?

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Pedro (estudante): Racionais é vida véi. É porque o povo acha que Racionais é música de bandido,

mas, tipo, não vê a letra, entendeu?

Ester (mediadora): No educativo tem uma música dos Racionais.

Sarah (mediadora): Na última página do educativo.

Raquel (supervisora): Galera, e porque normalmente rola isso de a gente, (a gente não, mas de uma

maneira geral) achar que RAP é música de bandido?

Jean (estudante): Pela história do RAP. Desde o início do RAP... por ele ser curtido pela classe

mais baixa. Você não vai entrar numa mansão e escutar o dono mansão escutando RAP. Mais fácil

você ir na favela e escutar o cara da favela escutando RAP.

Raquel (supervisora): E a crítica social que o RAP faz também né?

Jean (estudante): É.

Ester (mediadora): Tem muito a ver com quem são os bandidos no Brasil. Quem é a população

carcerária do Brasil? Quem está preso no Brasil?

Jean (estudante): O cara que roubou um biscoito no mercado está preso. Aí o corrupto tá solto.

Ester (mediadora): [A mediadora fala a respeito de pesquisas que apontam para o fato de uma

porcentagem considerável da população carcerária não saber porque está presa, em função de ser

alegado flagrante. E diz que o RAP é uma contestação disso também] É interessante você falar que

todo mundo fala que Racionais é música de bandido, mas às vezes é legal, além de contestar isso (de

ser música de bandido), pensar quem é bandido, né? Quem são essas pessoas que estão presas? São

pessoas. São pessoas que estão presas.

[...]

Lucas (estudante): ... A mídia meio que quer influenciar e manipular o pensamento de todos nós.

Que nem a moça [atriz] falou “vandalismo, quebra-quebra” eles enfiam isso na nossa cabeça. Um

exemplo, na manifestação o pessoal só filma quando o pessoal tá quebrando alguma coisa, nunca

filma, que nem o homem [ator] lá falou, tipo, alguém apanhando da polícia, alguma coisa assim. Só

filma esse lado. Aí a mídia meio que quer manipular a gente. Que nem o [Pedro] falou de “Um homem

na estrada” [faz referência à musica dos Racionais MC’s]. Do jeito que falaram lá, que era acerto de

contas. Todo mundo pensou que era aquilo, mas na verdade foram os policiais que mataram.

Podemos observar, na transcrição acima, a mediação como um espaço de fomento ao

debate estético e político por meio do compartilhamento de interpretações e opiniões. E

também como um dilatador da capacidade de estabelecer relações entre formas de arte e

situações cotidianas.

Ao trazer espontaneamente o RAP para o diálogo, o estudante Pedro rompe com o

senso comum que delega à mídia, especialmente a televisiva, a fonte legítima de versões de

uma história. Ele insere a voz de um outro, excluído, e questiona o estigma de o estilo

musical ser considerado “de bandido”. Em última instância incentiva os colegas no

estabelecimento de novas conexões entre obra de arte, vivências anteriores e visão de mundo.

Para Rejane Coutinho (2009, p. 176), o processo de interpretação no campo da arte

[...] tem início com o reconhecimento do objeto pelo sujeito leitor segundo

relações e analogias estabelecidas com seu conhecimento preexistente e com sua

memória. Nesse primeiro movimento, o sujeito busca atribuir significados

reconhecíveis ao objeto. Para que o processo tenha continuidade e se desdobre, é

necessário que o sujeito tenha acesso a outras informações, em especial

contextuais de diferentes áreas de conhecimento que se relacionam com o objeto.

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Durante a mediação, alguns estímulos foram dados no intuito de garantir a

continuidade do processo, como é defendido por Coutinho – e também estimular a produção

de semelhança, como foi apontado anteriormente. Durante a conversa relatada a mediadora

distribuiu o caderno de mediação e falou do que se tratava. Em seguida, sugeriu que os

estudantes observassem duas referências que havia no material: uma obra do artista

brasileiro Cildo Meireles (consiste em uma cédula de cruzeiro carimbada com a frase “quem

matou Herzog?”, produzida em 1970, da série Inserções em circuitos ideológicos – Projeto

Cédulas) e a imagem de uma cédula de dois reais carimbada com a frase “Cadê Amarildo?”

(autoria desconhecida, 2013). A mediadora teceu então algumas perguntas e os

desdobramentos aconteceram a partir do interesse dos estudantes.

A estudante Carol acha que o fato de as pessoas serem mortas injustamente por

expressarem sua opinião, bem como a conivência da polícia, é o elo entre a obra de Cildo

Meireles, a frase “Cadê Amarildo?” e o espetáculo assistido. Ela expressa isso quando

questionada sobre a relação entre o que foi visto no caderno de mediação e o que ela e seus

colegas disseram sobre o espetáculo. Lucas estabelece uma relação entre a música dos

Racionais MC’s, inserida por Pedro, e a influência da mídia. Sua opinião sobre a

manipulação midiática aparece com referências da peça, quando faz alusão às falas dos

personagens: “a moça falou” e “o homem lá falou”.

A resposta de Jean denota conhecimento sobre o estilo musical, especialmente no

Brasil. Pois o RAP, em sua maioria, é produzido por grupos dos bairros pobres das grandes

cidades, e se configura como uma poesia-protesto, que denuncia a situação das pessoas que

vivem nessas regiões. E, sobretudo nos anos 80, quando do seu início, o estilo musical não

era considerado uma forma de arte. De forma implícita o estudante fala acerca do preconceito

que há sobre a periferia e também sobre um estilo musical vinculado desde a sua origem às

pessoas e as questões das regiões marginalizadas.

Sobre os debates cabe ponderar que a ideia de um bate-papo como uma possibilidade

de mediar deve vir consciente de que a experiência com a obra e a invenção de sentidos por

parte dos estudantes-espectadores são os elementos essenciais. Além disso, as relações

tecidas pela mediadora entre opiniões do grupo, conceitos abordados no espetáculo, imagens

etc. devem levar em consideração os próprios estudantes – sua experiência com a obra e suas

interpretações. Isso justifica construirmos a mediação pela via do questionamento.

Perguntar, ao invés de afirmar, leva o educando a refletir e encontrar formas de organizar

seu pensamento e colocá-lo para o outro. Susana da Silva (2009, p. 135-136) defende uma

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estrutura em diálogo “partindo de um conjunto de questões alargadas e abertas a múltiplas

respostas”. E diz que é fundamental

criar momentos de discussão e resolução de problemas que envolvam os indivíduos

no seu conjunto, trazendo para a própria discussão as práticas sociais que lhe dão

forma. Se o processo interpretativo é simultaneamente pessoal e social, ele requer o

desenvolvimento de estratégias de discussão e negociação para que seja capaz de

gerar transformação efetiva, ou seja, aprendizagens efetivas. Desse modo, potencia-

se o processo de negociação de significados que permite a criação de redes

partilhadas de saberes e plataformas comuns de entendimento.

A autora traz uma noção, já introduzida anteriormente, do complexo agenciamento

das questões que dizem respeito ao que é pessoal e social, quando ressalta o valor da inserção

de questionamentos que “envolvam o indivíduo no seu conjunto”. Creio que compreender o

particular no coletivo seja altamente político. Pois, à medida que os estudantes percebem,

por exemplo, que atitudes individuais constituem o social, provoca-se um ponto de dissenso,

que contribui para um processo de construção do pensamento crítico. E o procedimento de

interpretação na mediação transita por esses dois lugares (o particular e o coletivo), assim

como a formiga caminha pela fita de Moebius na gravura de Escher. Caminha dentro e fora:

do indivíduo, da obra, da sociedade. Lembrando que os limites do que é dentro e fora se

confundem.

De acordo com Stuart Hall (1997, p. 62) as interpretações não poderão produzir uma

verdade absoluta. Ao contrário, são seguidas por outras interpretações, em uma cadeia sem

fim. Para o autor:

A produção de sentido depende da prática da interpretação [...] Mas note que,

porque os significados estão sempre mudando e escorregando, os códigos operam

mais como convenções sociais do que como leis fixas ou regras inquebráveis. [...]

E a vantagem da linguagem é que os nossos pensamentos sobre o mundo não

precisam permanecer exclusivos para nós, e em silêncio. Podemos traduzi-los em

linguagem, torná-los ‘fala’, através da utilização de sinais que representam eles -

e, portanto, falar, escrever, comunicar com eles para os outros.42

Hall fala, logo no início da citação, sobre algo que remete à noção de sentido

defendida por Dewey (2010), utilizada neste trabalho. A interpretação é um momento da

produção de sentido. Não o objetivo, mas uma parte essencial, assim como são as outras. A

ideia colocada por Hall, se aplicada ao trabalho de mediação, enriquece o diálogo, pois,

incentiva o estudante ao ato interpretativo, e este, amplia seu olhar na medida em que escuta

42 Livre tradução do trecho original: Producing meaning depends on the practice of interpretation […] But

note, that, because meanings are always changing and slipping, codes operate more like social conventions

than like fixed laws or unbreakable rules. […] And the advantage of language is that our thoughts about the

world need not remain exclusive to us, and silent. We can translate them into language, make them ‘speak’,

through the use of signs which stand for them - and thus talk, write, communicate about them to others.

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outras interpretações distintas das suas. Surgindo, então, diversas versões para o mesmo

objeto ou manifestação artística.

Dessa forma, a busca pela intencionalidade do artista durante a leitura de uma obra

reduziria a construção dos significados à busca por uma verdade preexistente e desejada, a

qual apenas o artista supostamente detém. A pergunta “O que o artista quis dizer com isso?”,

frequentemente escutada durante minha trajetória com mediação e artes visuais em museus

e galerias de arte em Brasília-DF, me fez buscar outras perspectivas que fugissem tanto da

pergunta quanto do desejo pela resposta. Contornar este questionamento era muitas vezes o

primeiro desafio da mediação.

Aqui, o que chamo de interpretação mantem certa proximidade com o conceito de

alegoria: allo = outro, agorein = dizer (GAGNEBIN, 2013). Como outro dizer a alegoria se

coloca na essencial abertura, sempre em processo e evidenciando sua precariedade (não é à

toa que a alegoria esteja muitas vezes associada à ruína, como é o caso em autores como

Baudelaire e Benjamin). A diferenciação que Gagnebin (2013, p. 38) faz entre símbolo e

alegoria, a partir de Benjamin, pode nos ajudar a compreender melhor, sendo o primeiro

fechado e instantâneo, enquanto a segunda abre e significa.

Enquanto o símbolo, como seu nome indica, tende à unidade do ser e da palavra,

a alegoria insiste na sua não-identidade essencial, porque a linguagem sempre diz

outra coisa (allo-agorein) que aquilo que visava, porque ela nasce e renasce

somente dessa fuga perpétua de um sentido último. A linguagem alegórica extrai

sua profusão de duas fontes que se juntam num mesmo rio de imagens: da tristeza,

do luto provocado pela ausência de um referente último; da liberdade lúdica, do

jogo que tal ausência acarreta para quem ousa inventar novas leis transitórias e

novos sentidos efêmeros.

Quando a autora diz que a linguagem sempre diz outra coisa que aquilo que visava

não podemos cair na confusão achando que essa outra coisa possa existir em si, sendo objeto

de busca, como se houvesse um sentido único, um segredo guardado que deve ser desvelado.

Ao contrário, ela diz que a alegoria renasce justamente da fuga de um sentido último.

Podemos ver novamente aqui a perspectiva da perda, lançada por Didi-Huberman

(2010) anteriormente, quando o autor fala de luto; mas ao mesmo tempo uma perda/morte

que gera vida: explicitada pelo jogo, pela ludicidade, pela liberdade. Essas “duas fontes que

se juntam no mesmo rio de imagens” são respectivamente o abdicar de um sentido único, de

uma estabilidade, e até mesmo da intencionalidade dos artistas, para então ganhar com “a

invenção de novas leis transitórias e novos sentidos efêmeros”. Assim, a interpretação, se

configurando como um outro dizer, deve partilhar desses dois movimentos, aproximando-se

da alegoria.

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Ainda sobre a interpretação, creio que as teorias que defendem o ato contemplativo

por si só, e dispensam, quando não excluem, os processos de produção de sentido, e de

significação pela via interpretativa, desconhecem ou ignoram o potencial de estímulo à

criticidade que tal ação pode ter. Os discursos que prescindem o trabalho interpretativo, não

compreendem essa potencialidade no trabalho com estudantes, principalmente se tratando

de jovens que moram e estudam em regiões periféricas. Talvez haja uma intencional vontade

de supressão de atividades que vão ao encontro de estímulo aos sentidos e de uma formação

crítica dos discursos. O argumento das teorias que defendem exclusivamente o ato

contemplativo, apontam, geralmente, para a perda do caráter estético quando se adentra o

interpretativo, mas concordo com Dewey (2010, p. 117) quando diz que “Os inimigos do

estético não são o prático nem o intelectual. São a monotonia, a desatenção[...] a submissão

às convenções na prática e no procedimento intelectual”.

Vejamos outro trecho de uma mediação pós-espetáculo em Ceilândia-DF. Exemplo

6:

Ester (mediadora): Diante disso como é que [vocês] veem essa articulação da peça com as questões

de vandalismo nas manifestações? Como a peça articulou essas questões? [...] Como é que você sai

com relação ao vandalismo e às manifestações depois de ver a peça? Mudou alguma coisa pra vocês?

Ana (estudante): Pra mim mudou o respeito pelas pessoas que fazem manifestação. Não que eu não

apoiasse, mas assim, a gente está vendo o tempo todo na televisão as pessoas falando que isso é uma

coisa errada sendo que todo mundo tem o direito de reivindicar e eles estão vivendo como se fosse

em uma ditadura maquiada. A gente vive num país onde eles falam o que a gente tem que fazer ou

não e quando a gente vai reivindicar pelos nossos direitos, eles criticam, falam que é vandalismo, que

é baderneiro.

[...]

Bruno (estudante): Têm partes boas, você não pode tirar tudo como parte negativa também. Algo

que sobrou da ditadura militar, muita gente é contra e quer a dissolução da Polícia Militar, mas eu

não sou a favor disso. É uma das coisas que ficou e acho que não deve acabar.

Ana: Eles estão machucando as pessoas, deixando com furo na cara, na perna. Como se isso fosse

normal. [A estudante critica a atuação da PM].

Respondendo ao estudante, a mediadora comenta que a PM não foi criada na

Ditadura Militar e procura entender melhor o seu pensamento. Bruno diz que no dia anterior

os atores criticaram o fato de a Polícia Militar usar armas e questiona: “Imagina se a polícia

não usasse arma? Com arma, do jeito que usa, às vezes não consegue controlar a população,

com um cassete ele ia conseguir fazer alguma coisa?”

Neste trecho podemos observar as opiniões dos estudantes Ana e Bruno. Embora

façam referência a pontos distintos (Ana = como a mídia televisiva mostra as manifestações

e seu respectivo posicionamento a partir disso; e Bruno = a importância da manutenção da

Polícia Militar armada), os discursos denotam o posicionamento ideológico dos estudantes.

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A ideia de controlar a população como função da Polícia Militar, colocada pelo estudante,

denota a reprodução de um pensamento hegemônico no qual a instituição (PM) é a

mantenedora da ordem, e essa manutenção pressupõe eliminar as pessoas que perturbam a

ordem. Vale refletir ainda sobre o que seria essa ordem, quem a define e quais seriam os

critérios para preestabelecer quem está fora ou contra a ordem.

Se pensarmos a ordem como manutenção dos interesses e da autoridade dos que

ditam as regras, o discurso do estudante (Bruno) narrado acima estaria inserido em um

circuito ideológico dominante. Ou, segundo Michel Foucault (2013), estaria servindo a um

“regime de verdade” apoiado sobre um suporte e uma distribuição institucional exercendo

sobre os outros discursos um poder de coerção.

[...] só aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecundidade, força

doce e insidiosamente universal. E ignoramos, em contrapartida, a vontade de

verdade, como prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que, ponto

a ponto, em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade e

recoloca-la em questão contra a verdade, lá justamente onde a verdade assume a

tarefa de justificar a interdição e definir a loucura (FOUCAULT, 2013, p. 19-20).

Quando Ana fala “eles estão vivendo como se fosse em uma ditadura maquiada”,

podemos ver a utilização de uma metáfora: “maquiada” como espécie de disfarce, no intuito

de esconder algo atrás de um recurso. Essa percepção demonstra através do discurso um

ruído na estrutura dominante, na medida em que questiona algo que está sendo colocado pela

mídia, destoando do senso comum, que tende a colocar o discurso televisivo em um lugar de

poder que por si só já estaria legitimado.

Manuel Castells (1999), sociólogo espanhol, propõe em seu livro O Poder da

Identidade a distinção entre três formas de origem da construção de identidade. São elas:

Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes no intuito de legitimar

sua dominação em relação aos atores sociais; Identidade de resistência: criada por atores

sociais que se encontram em condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da

dominação, que constroem formas de resistência; Identidade de projeto: se dá quando esses

atores constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade, buscando

também recursos para a transformação social. Para este último, o autor dá como exemplo o

feminismo.

Tendo em vista que o objetivo aqui não é o enquadramento do sujeito em determinada

identidade, proponho uma apropriação da teoria de Castells com a transposição do termo

“identidade” para “discurso”. Pois, na constituição do sujeito há vários discursos, inclusive

contraditórios. E consciente das contradições, das diferenças e também dos apagamentos e

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dos esquecimentos é que afirmo que a tentativa de categorizar não se aplica ao sujeito, mas

a um discurso proferido em um determinado espaço e tempo, por um sujeito heterogêneo

constituído por discursos também heterogêneos.

Dentro desta perspectiva, de construção de discurso, poderíamos analisar as falas dos

estudantes Bruno e Ana como constitutivas de um discurso legitimador e de um discurso de

resistência, respectivamente; como é explicitado a seguir.

Exemplo 6:

Bruno (estudante): Na favela só tem bandido.

Ana (estudante): A gente também mora na favela. Vocês estão achando que isso aqui é Lago Sul,

é?

Ana fez referência a uma região elitizada do Distrito Federal que concentra uma das

maiores rendas per capita do distrito (juntamente com o Lago Norte). O local da escola onde

os estudantes estavam é uma Região Administrativa (RA) do DF, chamada Ceilândia, mais

especificamente “P Norte”, uma parte ainda mais marginalizada da região. Ceilândia, como

a maioria das RAs, é uma periferia distante do centro (Brasília). Foi criada com o intuito de

acabar com as favelas que estavam se formando dentro do Plano Piloto (cidade idealizada

pelo arquiteto e urbanista Lúcio Costa para ser a capital do Brasil). O nome vem do projeto

CEI (Campanha de Erradicação de Invasões), iniciado no final da década de 60 e

concretizado em 1971 para transferir os moradores das favelas para as terras demarcadas. A

campanha tinha como slogan “a cidade é uma só”.43

O que a frase “na favela só tem bandido” silencia? Quando Ana pergunta se eles (os

colegas) acham que estão no Lago Sul chama a atenção para a realidade na qual eles vivem

e para o fato de que eles também são estigmatizados, muitas vezes colocados como o “outro”,

sendo alvo de preconceitos. A afirmação de Bruno traz um pensamento que, dentro do senso

comum, legitima a atuação dos Policiais Militares armados dentro de periferias das grandes

cidades. Esse pensamento foi defendido por ele em alguns momentos do diálogo,

desconsiderando que a região na qual ele vive e estuda também é periferia.

Durante o encontro explicitado nos exemplos 5 e 6 as mediadoras acolheram as

opiniões dizendo que era importante que os estudantes falassem, e que o Mediato estava na

escola também para criar um espaço de conversa sobre o que estava sendo discutido. Por

43 Adirley Queirós, cineasta, morador da Ceilândia fez um filme chamado A cidade é uma só? (Brasil, 2011)

no qual retoma algumas questões daquela época e que repercutem até hoje, a respeito da exclusão territorial e

social que grande parcela da população do Distrito Federal brasileiro sofre.

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fim, falou da importância de exercitarem o diálogo e que eles (estudantes) poderiam fazer

isso mais vezes.

Nos exemplos dados vimos que opiniões distintas foram inseridas pelos próprios

estudantes e não por uma mediadora. Isto reforça um princípio da mediação que é construir

o pensamento a partir do que é proposto pelos estudantes, o que, em última análise, relativiza

o lugar do discurso e, consequentemente, do poder, que é próprio ao lugar. Nestes termos,

acredito que a mediação funciona como uma atividade pedagógica válida quando

proporciona aos estudantes um espaço de diálogo, sem imposição, em que eles podem

aprender uns com os outros, na troca de ideias, seja com a voz, seja com voz e corpo em

ação.

Para Foucault (2013, p. 41), “todo sistema de educação é uma maneira política de

manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles

trazem consigo.” Segundo Eni Orlandi (2007, p. 15), “o discurso torna possível tanto a

permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da

realidade em que ele vive.” O segundo movimento, em ambas as citações, parece mais

cabível ao trabalho de mediação, já que se enseja, como foi dito, que a mediação provoque

dissenso e rupturas. Essa consciência pode trazer ao trabalho da mediação o cuidado

necessário na produção dos discursos e na proposição das práticas.

Tendo em vista que o objetivo da mediação não é mudar a opinião dos estudantes,

acredito que tivemos momentos profícuos. Seria inocente (se não autoritário) desejar que a

mediação servisse de informativo e/ou esperar uma relação de causa e efeito entre projeto

educativo e mudança de opinião, por exemplo, no caso do estudante Bruno. Para a mediação

é preferível que se suspenda qualquer relação determinável entre a intenção de artistas e/ou

mediadores, manifestação artística, percepção, e tomada de atitude por parte do espectador.

Se a mediação estiver a serviço de doutrinação o espaço de diálogo será minado e provocará

o distanciamento dos estudantes que não se veem contemplados pelas ideias “ensinadas”.

A troca durante um diálogo provoca a reflexão dos estudantes, estimulando-os a

traduzir suas ideias em palavras e colocar suas palavras à prova (RANCIÈRE, 2012). O

simples fato de o estudante Bruno ter espaço para colocar suas ideias e também escutar/ver

opiniões que são diferentes das suas (através de discussões ou elaboração de cenas) gera uma

suspensão, incomum ao espaço escolar. Essa suspensão, por sua vez, pode (ou não) refletir

na disposição dos corpos, dos olhares, dos discursos, dos saberes.

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Todavia, vejamos uma problemática: no início da pesquisa eu acreditava que o caso

“Ana e Bruno” consistia em um bom exemplo do que seria uma ruptura. Posteriormente,

analisando o Projeto de forma geral, vi que nesta, e em outras situações, não havia ruptura,

e mais, tais circunstâncias nos levaram, em alguns casos, para um lugar que reforçava

posições (no afã de problematiza-las), e de forma mais perigosa para um lugar de coerção e

exaustão. Penso, portanto, que não houve uma efetiva ruptura, pela via do dissenso, no

último exemplo. A mediação garantiu um espaço aberto para a troca de opiniões por meio

de um bate-papo, como foi dito, mas isso não foi suficiente para alcançarmos um espaço de

ruptura.

Se o objetivo era permitir que os estudantes escutassem ideias distintas das próprias,

poderíamos dizer que o encontro alcançou sua finalidade. Entretanto, me pergunto se é isso

que a mediação pretende. Pois dessa forma, poderíamos ter provocado a discussão a partir

do caderno de mediação, prescindindo a própria obra. Essa questão fica latente quando

analiso de que forma fizemos (se é que fizemos) o caminho de volta à obra, após o enfoque

no conteúdo. Em muitos momentos, de forma não intencional, colocamos o nosso foco no

conteúdo em detrimento da experiência e da invenção de sentidos: não realizamos o retorno

ao trabalho artístico e nos perdemos no caráter informativo. E é a respeito desse problema

que tratarei no próximo tópico.

2.6 Política, na estética ou no tema: “Isso que vocês querem colocar na cabeça da gente”

Estávamos lá, soberanas figuras olhando para trinta e cinco, quarenta pares de olhos.

Como se houvesse na ocupação destas figuras uma urgência em traduzir, em lançar o dizível

como ferramenta, para informar e formar. Vivos ou menos vivos os olhos não nos

influenciavam; continuávamos ruminando o conteúdo, a grande massa palavrória. A massa

enchia os buracos, as frestas, sufocando. Ansiávamos rachaduras, fissuras, mas tratamos de

tampar as asperezas.

Este parágrafo, que creio resumir este subcapítulo, foi escrito ao relembrar os

momentos mais inquietantes do Projeto Mediato, nos quais vi a mediação se distanciando

dos seus princípios. Nos quais optamos por uma visibilidade manifesta em detrimento de

uma visibilidade subterrânea.

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A já citada Jeanne Marie Gagnebin (2013, p. 104) diz que

Nas teses “Sobre o Conceito de História”, a tarefa do historiador ‘materialista’ é

definida, essencialmente, pela produção dessas rupturas eficazes. Longe de

apresentar de início um outro sistema explicativo ou uma “contra-história” plena

e valente, oposta e simétrica à história oficial, a reflexão do historiador deve

provocar um abalo, um choque que imobiliza o desenvolvimento falsamente

natural da narrativa.

Penso que, se a mediação se ocupa de uma ruptura (histórica), não é, ou não deveria

ser, no sentido de contar uma “contra-história plena e valente, oposta e simétrica à história

oficial”, mas por meio das arestas, dos silêncios, do que escapa, buscar uma ruptura, no que,

falsamente, se desenvolve como natural e universal.

A autora diz com Benjamin que a história habitual é a “comemoração” das façanhas

dos vencedores. E diz que para ir além dessa tradição dos vencedores precisamos nos agarrar

a essas asperezas, arestas, “contra o fluxo nivelador da história oficial que, justamente, deixa

escapar esses ‘lugares nos quais a tradição/transmissão se interrompe’” (GAGNEBIN, 2013,

p. 100). Entretanto, essa intervenção na “história da história” não significa a oferta apressada

de uma narrativa substitutiva. Assim, o que Benjamin propõe não é uma outra interpretação,

“não se trata de edificar a continuidade heroica de uma contra-história ou de consolar os

humilhados de hoje pela evocação de gloriosos amanhãs, como em tantas variantes

iluministas ou marxistas da historiografia” (GAGNEBIN, 2013, p. 105). O historiador

materialista de Benjamin, portanto, não pretende produzir um outro discurso histórico tão

coerente como aquele ao qual se opõe.

Creio que tanto o espetáculo quanto a mediação se ocuparam disso que Benjamin e

Gagnebin nos falam: do que escapa, dos tropeços, dos silêncios dessa história que nos é

contada como se se desenvolvesse por si mesma. Contudo, a meu ver, o risco foi justamente

cair no que a autora comenta acima: de propor um outro discurso histórico tão exaustivo e

coerente como aquele ao qual se opõe.

A mesma questão pode ser interpretada à luz de outro texto de Gagnebin (2013, p.

105-106)

[A] idéia de interrupção [da história oficial] e, de maneira mais específica, o

conceito de cesura [que se assemelha aqui ao de ruptura] preenchem assim na

reflexão historiográfica de Benjamin uma função dupla: em primeiro lugar,

criticam a concepção trivial da relação histórica, em particular uma relação de

causalidade determinista [...] Em segundo lugar, a cesura opera uma ruptura no

desenvolvimento falsamente “épico” da narrativa; contra a ilusão tentadora que

queria ver no fluxo de nossas palavras a abundância da natureza, ela lembra que

nossa narração (em particular nossa “história”!) não segue por si mesma, que ela

é o resultado de decisões singulares, até arbitrárias, e não o fruto de um processo

universal e orgânico.

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A autora diz ainda que esses dois perigos apontados na reflexão historiográfica de

Benjamin, o de uma causalidade banal e o de uma falsa epicidade infinita, são, igualmente,

o objeto de críticas contemporâneas ligadas à problemática da narração. Todavia, com a

afirmação acima eu chego a um paradoxo: digo que a mediação deve servir à criação de

narrativas, porém, assumo que incorremos em um erro que está, segundo a autora,

diretamente relacionado à morte da narrativa. O erro seria a criação de outra narrativa, em

oposição à oficial, como uma outra interpretação, certamente diferente da primeira, mas tão

coerente quanto ela, numa luta infindável entre duas versões divergentes – por exemplo, a

da mídia e a verdade, como ocorreu em momentos do Projeto. Apropriando-me novamente

das palavras de Gagnebin (2013, p. 107) acho que devemos “muito mais, provocar rupturas

nessa narrativa por demais convincente, designar seus furos, seus brancos, retomar o tropeço

e o ato falho para o sujeito se arriscar, no seu presente, a andar, a agir diferentemente”.

O que fizemos, em muitos momentos, foi dar uma segunda interpretação (ou uma

outra versão da história), ao invés de apontar para esses buracos e permitir que os estudantes-

espectadores se lançassem na tentativa de construção de outras narrativas. Ou seja,

colocamos uma Outra Narrativa, oposta à Primeira Narrativa, talvez minando a possibilidade

de ruptura.

Refletir sobre violência de Estado, preconceito e principalmente a respeito da posição

da mídia diante da sociedade é de suma importância, sobretudo em um momento em que o

Brasil está cada vez mais presenciando telejornais em que as posições conflitantes ficam

mais acentuadas. Pude perceber durante o Projeto, com estudantes entre 14 e 17 anos, e

também observo com mais frequência nos estudantes com faixa etária entre 11 e 12 anos

(com os quais exerço meu trabalho de docência), que há uma reprodução em massa dos

discursos proferidos pelos apresentadores desses programas. Discursos de ódio e

preconceito, imagens de cadáveres, vítimas expostas, demonstração de atos de justiça com

as próprias mãos cometidos pela sociedade, violência de forma generalizada são mostrados

ao vivo em jornais matutinos, vespertinos e noturnos. Os telejornais são, portanto,

determinantes formadores de opinião desses adolescentes e jovens.

Dessa forma, o Mediato serviu (de um modo geral) como um espaço para o

compartilhamento de opiniões contrárias aos discursos de ódio. A simples abertura para

pontos de vista distintos é necessária, pois tal prática é incomum ao ambiente escolar, além

disso, o corpo docente apresenta, muitas vezes, opiniões que se assemelham a tais discursos.

Contudo, as quatro horas e meia que estivemos em contato com esses estudantes não foram

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(e não são) suficientes para um efetivo trabalho de diálogo sobre questões complexas como

as tratadas aqui. Do mesmo modo, a análise do Projeto trouxe à luz uma questão: será que

não provocamos o contrário ao tentar, em alguns momentos, conscientizar e mobilizar

politicamente os estudantes? O fato de a política estar no temático e não na estética nos levou

a um lugar de reafirmação das posições ao invés de ruptura?

Uma questão que permanece após o Projeto Mediato é se não caímos em um ativismo

tentando defender às causas servidas pelos atores, deixando que isso se tornasse o objetivo

maior da mediação. Por exemplo, quando uma turma não havia assistido ao espetáculo a

mediação se voltava exclusivamente para uma tentativa de descrição e explicação da obra,

pois não pretendíamos abrir mão do conteúdo. Pergunto-me ainda se de forma mais sutil e

perigosa essa confusão entre tema e estética não aconteceu de forma generalizada no

decorrer das ações. Ressalto que não questiono a validade dessas causas. Ao contrário, em

vários momentos menciono a importância de tratar as questões levantadas pelo espetáculo

em escolas públicas de periferia.

Nestes casos, quando muitos estudantes não haviam participado do segundo

encontro, o terceiro, que seria a mediação pós-espetáculo, acabava se transformando em uma

tentativa de explicar a manifestação artística que não foi vista, experienciada. Essa atitude,

reflexo de um completo despreparo nosso, desgastava a mediação; e reduzia a arte a uma

série de frases descritivas, apontando quase que exclusivamente para a sua temática

(violência de Estado, liberdade de expressão e influência da mídia). Para usar um termo de

Desgranges (2011) nosso “ângulo de ataque” voltou-se nessas ocasiões quase que

exclusivamente para o tema. Quando preferimos não abrir mão da conversa planejada sobre

determinado conteúdo nos distanciamos dos objetivos da mediação. Tal atitude naturalmente

se desvirtua do comprometimento desta com a experiência estética; e fragiliza a própria obra.

Com as referidas turmas (que não assistiram ao espetáculo) a dinâmica foi

basicamente passar as imagens e os vídeos utilizados na peça: um remix tirado do YouTube

com frases ditas por telejornais sobre os “vândalos” das manifestações de 2013 no Brasil; no

segundo, de forma antagônica, o jornalista Ricardo Boechat expõe sua opinião sobre o tema

vandalismo; as imagens eram da Ditadura Militar Brasileira e de cenas atuais, por exemplo,

a fotografia em que a dona de casa Claudia Silva aparece sendo arrastada por um carro da

Polícia Militar no Rio de Janeiro. Logo após era iniciado um bate-papo a partir do que foi

exposto. Penso, hoje, que o objetivo nestas ocasiões, não era a dilatação da experiência, mas

as informações que foram veiculadas na peça sobre vandalismo, violência e mídia. Vale

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ressaltar, que mesmo em turmas que haviam assistido ao espetáculo preferiu-se, em alguns

casos, dar início à mediação repassando os referidos vídeos e imagens, o que reforça o

argumento acima exposto da preocupação em garantir o conteúdo.

À época eu não compreendia, ou não conseguia definir quais eram os objetivos da

mediação, consequentemente não havia uma unidade da equipe quanto à finalidade das

nossas ações. Já identificava um incômodo com a relação de causa e efeito que tomou conta

da mediação, mas ao invés de contornar esse lugar abracei a proposta e transformei o caderno

de mediação (e a própria mediação se consolidou assim em determinados momentos) em um

panfleto ideológico.

A cia de teatro Calcanhar de Aquiles (que produziu o espetáculo para o Projeto) se

auto denomina como um grupo de “teatro político”. Esse teatro político antes temido e

evitado quando da concepção do Mediato, foi por mim adotado como carro chefe do Projeto

durante sua execução. Definitivamente, o Projeto, inclusive o caderno de mediação,

direcionou as mediadoras para esse lugar informativo-opinioso em que a mediação se

encontrou em vários momentos, pois, independentemente do espetáculo, o material impresso

e nossas ações poderiam ter se instalado em um lugar diferente desse em que as colocamos.

Quando pretendo, para as ações mediadoras, que a política esteja na estética e não no

tema, faço uma apropriação do que Rancière (2010) fala ao defender uma política da arte.

Para o autor, a arte não produz a passagem de uma ignorância a um saber, ou de passividade

à atividade; ela rompe justamente com a relação de causa e efeito. O autor faz uma crítica à

“arte crítica” apontando para suas contradições. Diz que ela pode contribuir para uma

mudança de percepção e para criar novas formas de experiência do sensível, mas se equivoca

quando tenta produzir efeito ético, quando pretende “uma transmissão calculável entre

choque artístico sensível, tomada de consciência intelectual e mobilização política. Não se

passa da visão de um espetáculo à compreensão do mundo e da compreensão intelectual a

uma decisão de ação” (RANCIÈRE, 2012, p. 66).

Transponho, contudo, a crítica do autor à mediação com vistas a refletir sobre sua

finalidade. Quando a mediação pretende acessar novos estados de sensibilidade e novas

formas de organização do que pode ser visto, dito, pensado e feito, precisa observar

primeiramente que o caminho ficcional é o que mais se aproxima, pois esse é um trabalho

da ficção (cabe ponderar que o ficcional não se restringe aos jogos). Dificilmente

acessaríamos por meio da fala os estados de percepção que acessamos com as proposições

poéticas dos estudantes. Além disso, acredito que precisamos rever qual é o espaço e o limite

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para se militar em determinadas causas. Pois, segundo Rancière (2012) há uma política da

arte (e creio que da mediação também), que precede as políticas dos artistas (e dos

mediadores).

Quando se entende que a política está no tema, na tentativa de uma tomada de

consciência de determinada realidade por parte dos estudantes, há consequentemente certo

distanciamento da noção de política aqui defendida, e colocada por Rancière (2012). A

relembrar, como atividade que reconfigura a experiência comum do sensível; que coloca em

causa a partilha do sensível que nos é dada. Portanto, o estético e o político são maneiras de

organizar o sensível; e não formas de mobilizar para um discurso ou uma ação. Provocando

uma analogia, diria que quando a mediação compreende o político no tema e não no estético,

se assemelha aos espetáculos que se pretendem pedagógicos. Penso que as produções que

tomam por tarefa o ensinar, desejando o efeito moral, se mostram muitas vezes simplistas, e

acabam se distanciando da eficácia pedagógica que reivindicam. É paradoxal desejar que a

arte funcione como uma tarefa pré-definida (a apreensão de um saber).

Nesse sentido as ações mediadoras constituem práticas que dialogam com a

perspectiva da aprendizagem inventiva de Virgínia Kastrup (2005). A mediação como

(dilatação da e para a) experiência estética compartilha com a autora a noção de

aprendizagem inventiva à medida que compreende a aprendizagem não como um processo

de solução de problemas nem como a aquisição de um conhecimento, mas como um processo

de produção de subjetividade e, eu acrescentaria, de compreensão da alteridade. A produção

poética dos estudantes manteve, em alguns momentos, um diálogo com a inventividade

proposta pela autora. Contudo, o problema não reside em uma conversa ou em um jogo, mas

no objetivo que encaminha tal ação.

Kastrup (2005) define duas formas políticas no campo da educação: a política da

recognição e a política da invenção. A primeira compreende um mundo preexistente que

oferece informações prontas para serem captadas e compreende também um sujeito

cognoscente, um “eu” centro do processo de conhecimento. A segunda exercita a

problematização, considera uma aprendizagem que tem potencialmente a invenção e a

novidade, entendendo o conhecimento como invenção de si e do mundo.

Além da aprendizagem, a autora fala da atenção necessária para que ela se efetive.

Kastrup (2004, p. 14) diz que a atenção desenvolvida em um acontecimento estético é

distinta daquela exigida para as tarefas. “A experiência com a arte em situação de

aprendizagem parece indicar um caminho para atualizações distintas do prestar atenção a

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tarefas pré-definidas”. Uma é transversal e fluida, vagueia por diversos campos, enquanto a

outra deve se manter em um foco específico. A primeira é a atenção necessária à

aprendizagem inventiva. Esta trabalha com uma noção de cognição ampliada, e estaria

relacionada mais à invenção de problemas (problematizar), do que resolver problemas, o que

levaria a rupturas no fluxo cognitivo habitual.

A mediação, justamente por trabalhar com a arte e não por si própria (ou em defesa

de causas), é capaz de contribuir para uma aprendizagem da atenção, que segundo a autora

é necessária à cognição inventiva – o que a meu ver é explorado na produção de narrativa,

nas semelhanças e fricção entre real e ficcional. Pois a mediação pode desenvolver a atenção

transversal pela experiência estética, bem como uma aprendizagem que não seja

exclusivamente de uma habilidade, que não seja aquela de resolução de tarefa e de adaptação

ao mundo, mas de invenção de si e do mundo.

Usando as palavras de Medeiros (2005, p. 27-28) “agravar o problema interessa.

Quando a filosofia questiona, ronda, tateia, ela não busca soluções. Não há nada fixo, estável,

estático, seguro a atingir. O que de fato buscamos é não des-vendar, mas entre-ver, roçar,

para que, deixando-a velada, a arte possa continuar a intrigar.” A autora faz uma analogia da

arte com a filosofia quando descreve seus atributos, ou o que se pode buscar com elas.

Estendo igualmente à mediação, para que pensemos que a busca por tarefas pré-definidas

(algo seguro a se atingir, um efeito moral, por exemplo) dificilmente se aproximará do

estético, da experiência, dos sentidos e da dilatação.

Assim, se pensamos que uma aprendizagem inventiva é importante para a mediação,

e com ela dialoga, é igualmente importante que tenhamos por objetivo não o debate de um

tema, a apreensão de um conhecimento ou a mudança de discurso e atitude, mas a produção

de subjetividade, a compreensão da alteridade, a descoberta e a invenção de sentidos. Afinal,

se a arte não nos leva à resolução de tarefas pré-definidas, por que a mediação em arte o

faria?

Quando o par informação-opinião – tão criticado por Larrosa Bondía (2015) – não

funcionava da forma desejada, ou melhor, quando a obra e as informações lançadas não eram

suficientes para colocar o público na mesma linha de opinião pretendida, nos ocupávamos,

em muitos casos, em contra argumentar, na tentativa de garantir o efeito desejado. Um

estudante em São Sebastião chegou a dizer no pós-espetáculo, talvez cansado do debate:

“isso que vocês querem colocar na cabeça da gente”. Essa frase hoje ecoa na minha memória,

e creio, pode resumir a problemática aqui levantada, pois denuncia a imposição de uma fala

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que se pretendia de alteridade. Dedicamos esforços à informação e à opinião em detrimento

do par experiência-sentido, colocado por Bondía (2015) como essencial ao processo

educativo.

Relembrando, o autor contrapõe o saber da experiência com o saber da informação.

Ele critica a “sociedade da informação” que muitas vezes é tida como sinônimo de

“sociedade do conhecimento” ou até mesmo “sociedade da aprendizagem”. Ao falar de

experiência Bondía pensa com Benjamin também a sua destruição; e diz que o excesso de

informação, bem como o excesso de opinião, tem impossibilitado que algo nos aconteça.

Ambas converteram-se em um imperativo: o sujeito moderno é um sujeito informado que

supostamente tem uma opinião própria e crítica sobre tudo que passa, diz Bondía. E o opinar

se resume, muitas vezes, a estar a favor ou contra (BONDÍA, 2015).

Observei ao longo da análise que nos momentos em que predominava o caráter

informativo-opinioso nos distanciávamos da possibilidade de dilatação, seja dos sentidos,

seja da experiência. Isso reforça a ideia exposta anteriormente de que para se provocar uma

dilatação é necessário criar um ambiente semelhante ao da experiência – pensando esta de

acordo com os princípios de receptividade, disponibilidade, abertura e exposição de Bondía

(2015) e da experiência do olhar de Didi-Huberman (2010).

Este foi o caso de uma turma em Ceilândia-DF que, além de se fixar exclusivamente

no par informação-opinião, manteve uma conversa carregada de violência. Os fragmentos a

seguir mostram uma estudante falando sobre um caso ocorrido em 2014, de um feirante

assassinado por um policial militar, e sua respectiva opinião acerca do fato:

Marcela (estudante): Vocês viram no vídeo? O feirante mesmo falou “bora me mata”. Ele falou,

então ele mereceu. Ele provocou.

Ester (mediadora): Ele mereceu por que ele falou?

Marcela (estudante): Ele provocou.

[...]

Bruno (estudante): Ele não morreu de graça. Ele não morreu de graça.

Marcela: Ele falava “atira”.

Raquel (supervisora): aí você vai lá e mata e tá ok?

Marcela (estudante): Se ele pediu...

Bruno (estudante): O cara tá desacreditando de mim eu não vou matar o cara? O cara tá

desacreditando meu irmão! [...] O cara tá falando “atira se tu é homem”, você acha que eu não vou

atirar? É logico que eu vou atirar, é logico!

[...]

Isadora (estudante): Não que eu concorde que o policial [tenha] matado. Mas se ele [o feirante]

tivesse dado o respeito ao policial talvez teria acontecido de uma outra forma. Porque tem gente hoje,

igual o [Bruno] estava falando, que tem que andar armado mesmo, mas se não anda tem gente que

não dá o respeito ao policial, a gente vê isso. E ele chegou e falou assim “me mata”, qual o respeito

que ele tá tendo com o policial?

[...]

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Marcela (estudante): Tem coisas que as pessoas falam que realmente alteram as outras. Gente, acho

que ele ficou muito irritado, porque a briga já estava...

[Alvoroço. A mediadora tenta mediar]

Marcela (estudante): Eu tenho minha opinião pelo que eu vi do vídeo. Eu vi ele falando “me mata,

me mata, me mata”. E ele provocou a fúria do policial. Então, o policial ... [a estudante é

interrompida]

[Alvoroço]

Marcela (estudante): Gente eu tenho uma opinião formada sobre o vídeo. Eu vou ficar com ela até

o final! Ele provocou, ele mereceu. [A estudante fala quase gritando].

O que antecede o comentário de Marcela é uma discussão sobre a manutenção da

Polícia Militar e acerca da violência policial, motivada pela temática do espetáculo e pela

conversa com os artistas no dia anterior. Inicialmente a mediadora perguntou como a turma

via a articulação feita na peça sobre as questões de vandalismo nas manifestações e se havia

mudado algo na percepção de alguém. Um estudante (Bruno, já citado no subcapítulo “a

mediação como ruptura”) relembra que no dia da peça ele e a atriz se colocaram com

opiniões contrárias sobre a atuação da PM: ele defendendo a manutenção e ela a dissolução,

isto é, a desmilitarização.

Marcela fala várias vezes sobre o que viu no vídeo e defende a mesma opinião,

argumentando que o feirante mereceu morrer por ter provocado o policial. Neste

pensamento, há adesão de dois colegas, Isadora e Bruno, que se mantêm irredutíveis. Não

houve interesse de nenhum dos três em relativizar o discurso mesmo com a contra

argumentação da mediadora. Esta pontuou historicamente os assuntos que surgiram na

conversa, inserindo informações e dados. Por exemplo, falando sobre criminologia, reação

social, surgimento da Polícia Militar, número de pessoas mortas em favelas do Rio de

Janeiro, racismo, auto de resistência, etc. Mas nada disso fez com que Marcela mudasse de

opinião, ou compreendesse outro ponto de vista sobre aquele tema. Ao contrário, disse, já

sem paciência, que tem uma opinião formada e permanecerá com ela até o final. Isso me

leva à questão: até que ponto devemos ou podemos ir com o debate para que de fato haja

uma problematização do que está sendo posto?

Lembrei-me imediatamente do que Benjamin (1994, p. 207) diz de a nossa relação

com a morte estar diretamente relacionada ao decaimento da experiência e da narrativa: “o

rosto da morte deve ter assumido outro aspecto. Essa transformação é a mesma que reduziu

a comunicabilidade da experiência à medida que a arte de narrar se extinguia”. Gagnebin

(2013), ao ler o filósofo alemão, também diz que podemos arriscar a hipótese de que a

construção de um novo tipo de narratividade passa pelo estabelecimento de uma outra

relação (individual e social) com a morte e o morrer. Vale ressaltar que a ideia aqui não é

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criar uma relação de causa e efeito entre a banalização da morte e o fim da narrativa e nisso

enquadrar a fala da estudante. Mas simplesmente apontar para certa semelhança entre o que

o filósofo escreve em 1936 e minha percepção quanto à incapacidade de experiência e de

narrativa de jovens estudantes. Afinal, que experiência Marcela, Bruno ou Isadora tem

quando vê a morte do feirante em um vídeo?

Mas não posso me furtar em também assumir a responsabilidade nessa incapacidade

dos estudantes. Se criticamos, em momentos do Projeto, uma incapacidade de ouvir e narrar

é porque não compreendemos que nos apegamos a uma forma que em nada mantem relação

com o ato de mediar, a saber: a forma informativa-opiniosa. Por isso a insistência em

aproximar a mediação do conceito de narrativa e consequentemente afastá-la do caráter

informativo. Pois a informação fecha enquanto a narrativa abre. Esta “não se entrega. Ela

conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver”

(BENJAMIN, 1994, p. 204). A informação não: ela se consome; é imediata. Logo não pode

ser o carro chefe da mediação.

Relembro também o que foi levantado no início do capítulo anterior, sobre a

necessidade de a mediação servir a uma lógica da emancipação e não à relação de causa e

efeito da lógica embrutecedora em que “o que o aluno deve aprender é aquilo que o mestre

o faz aprender. O que o espectador deve ver é aquilo que o diretor o faz ver” (RANCIÈRE,

2012, p. 18).

No processo de mediação não cabe ideologização. No momento em que isso

acontece, passa-se a instrumentaliza-la para determinado ponto de vista. O que se defende

aqui como recorte fundamental é uma mediação estética, que produza sentidos para os

indivíduos a partir da dilatação da experiência com a obra, conduzindo também a uma

ampliação do repertório estético. Este está certamente impregnado de repertório ético. Mas

a dilatação não implica na defesa de um lado, seja ele qual for. Penso que pelo estético chega-

se ao ético, e mais, o alargamento do repertório daquele leva à ampliação deste. E não é

demais retomar a fala de Rancière (2009a, n.p.) no início do capítulo quando diz que “é um

processo estético que cria o novo, ou seja, desloca os dados do problema.” Dessa forma, para

se provocar um deslocamento, uma ruptura, isto é, para que a mediação seja de fato

dissensual ela precisa assumir seu caráter estético. Isso nos leva novamente à experiência

estética. A mediação deve ser: uma dilatação dos sentidos para a experiência; e a dilatação

da experiência para a invenção de sentidos.

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O tão almejado desenvolvimento da criticidade pode vir por meio de uma mediação

que se pretenda estética, pois como afirma Beatriz de Medeiros (2005) a educação estética

permite o desenvolvimento da capacidade crítica através da experimentação de uma relação

com o sensível. Embora a autora compreenda, a seguir, o estético exclusivamente dentro da

arte, podemos nos apropriar do caminho por ela apontado como saída para a mediação.

Aquilo que dá prazer, ou desprazer nos arranca do ambiente em que estamos,

projetando-nos em um mundo que se forma entre o sujeito e a obra. Quando há arte,

esse mundo é sempre novo, pois é uma possibilidade do mundo, uma visão ímpar,

uma conjunção, até aquele momento, inimaginável. A aisthesis funda o imaginário.

É ela que abre o ser humano para a subjetividade e para a intersubjetividade.

Aisthesis e desejo de compartilhar. (MEDEIROS, 2005, p. 57-58).

Voltando ao episódio exposto acima, o encontro pós-espetáculo consistiu em um

debate informativo-opinioso com claras posições contrárias. A questão que fica é: a

discussão proporcionou a reflexão sobre os temas ou reforçou posições? Além disso, a

exposição dos estudantes a imagens de (e ao tema) violência contribuiu para uma ruptura?

E ainda, não seria a experiência estética um meio eficaz para deslocar os dados do problema

pela via da sensibilização?

Não posso fixar respostas, pois talvez Marcela ou Bruno tenha mudado de opinião

ou se sensibilizado de alguma forma após aquele dia, gerando dissenso para um participante,

ou mesmo para a turma. Contudo, pautada no registro audiovisual do Projeto, penso que não

houve problematização, mas reforço das opiniões, o que me faz pensar que o caminho da

experiência estética e dos sentidos é mais eficaz que o da informação para se alcançar alguma

ruptura. E, por isso, as possibilidades de dilatação serviriam melhor a tal objetivo. Como diz

Medeiros (2005, p. 109) “trata-se de permitir a formação de sensibilidade e de capacidade

crítica através da experimentação de uma relação com o sensível”.

Talvez o objetivo ético e o foco conteudista tenham nos colocado, em certos

momentos, em um lugar difícil, com discursos extremistas, como o exposto acima com a

fala de Marcela. Igualmente, outra questão que fica dessa observação é se a forma do Projeto,

além de seu conteúdo, também levou as turmas ao tema “violência”. Expomos os estudantes

a imagens de violência no espetáculo, na mediação e no caderno educativo. Não se trata

agora de uma análise moralista. É apenas uma constatação. Pergunto-me, a partir disso, se

não beiramos a banalização pretendendo a sensibilização. Será que o “choque de realidade”

é possível? A conscientização desejada pelos artistas foi atingida? Os noticiários nos

bombardeiam diariamente com essas imagens intoleráveis, mas elas verdadeiramente nos

sensibilizam, nos mobilizam?

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Sobre essa questão, busco apoio ainda na referência que Rancière (2012, p. 95) traz

em seu livro O Espectador Emancipado de um o artista chileno chamado Alfredo Jaar cujo

trabalho foi baseado no genocídio de Ruanda em 1994. Uma instalação intitulada Real

Pictures composta por caixas pretas; cada uma delas continha uma imagem de um tutsi

assassinado, mas a caixa era lacrada e a imagem não era dada ao visível. Só se podia ver o

texto que de alguma forma descrevia o conteúdo da caixa. “Essas caixas fechadas mas

cobertas de palavras, dão um nome e uma história pessoal àqueles cujo massacre foi tolerado

não por excesso ou falta de imagens, mas porque atingia seres sem nome, sem história

individual”. Rancière diz ainda que as palavras tomam o lugar das fotografias porque estas

continuariam sendo fotografias de vítimas anônimas de violência em massa. Creio que não

se tratavam de palavras intoleráveis, mas havia algo de intolerável nas palavras, que era

justamente saber por meio delas que tipo de imagem residia ali. Bastou insinuar para fazer

aparecer aos olhos do espectador aquilo que por ser invisível irradia-se.

A omissão da imagem não provoca sua inexistência, ao contrário, lhe atribui força,

faz com que ela verdadeiramente exista. Penso que essa seria uma narrativa segundo

Benjamin (1994), pois não abrevia, não fecha, ela abre e conserva suas forças porque não se

entrega ou se consome. A partir da obra de Alfredo Jaar poderíamos também compreender

porque a enxurrada de livros sobre a 2ª Guerra Mundial em nada mantinha relação com

experiência ou com narrativa, pois eram apenas informações (BENJAMIN, 1994). Não é

demasiado relembrar que para o filósofo alemão a narrativa é “uma lenta superposição de

camadas finas e translúcidas” – que vai na contramão da imadiatez informativa –

conservando suas forças para ser capaz de se desenvolver muito tempo depois (BENJAMIN,

1994, p. 206).

Não houve, no exemplo acima e em outros momentos de mediação, criação narrativa,

produção de semelhança, nem aproximação do real por meio do espaço ficcional. Ou seja,

não houve nenhuma das três instâncias que hoje considero com potencial de dilatação –

essencial ao nosso trabalho. Dessa forma, diria também que o caráter estético da mediação

ficou comprometido e as ações não funcionaram como atividade dissensual, pois não

perturbaram a esfera sensível modificando o que pode ser visto, dito ou percebido. Como

dito anteriormente, dissenso não é o conflito de ideias ou sentimentos (RANCIÈRE, 2012).

É fato que o espaço aberto ao compartilhamento de concepções distintas sobre um tema,

incomum ao espaço escolar, pode abrir espaço para o dissenso. Porém, não consegue por si

só garantir que a atividade seja de fato dissensual.

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Sobre minha descrença na utilização da arte estritamente com vias de mobilização

política, e a auto crítica quanto ao uso dos vídeos do espetáculo de maneira informativa na

mediação, encontro amparo também em Rancière (2012, p. 100) quando diz que:

O ceticismo atual é resultado de um excesso de fé. Nasceu da crença desenganada

numa linha reta entre percepção, emoção, compreensão e ação. [...] As imagens da

arte não fornecem armas de combate. Contribuem para desenhar configurações

novas do visível, do dizível e do pensável e, por isso mesmo, uma paisagem nova

do possível. Mas o fazem com a condição de não antecipar seu sentido e seu efeito.

Ao colocar os estudantes em contato com imagens ou conteúdo de violência, traímos,

talvez, a eficácia que reivindicávamos de sensibilização. E como já foi dito anteriormente,

não fizemos, em muitos casos, o retorno à obra, o retorno ao teatro. Isto é, entramos no pós-

espetáculo com uma tarefa informativa-mobilizadora pré-definida, usando a peça como

pretexto de um engajamento. Com isso nos distanciamos das noções aqui desenvolvidas de

estética, experiência, sentido e dilatação.

A seguir elenco um trecho da conversa logo após a apresentação do espetáculo em

Ceilândia-DF na qual podemos verificar o conflito de ideias entre artistas e estudantes. Dois

jovens explicitam seus pontos de vista acerca do conteúdo tratado, e mais especificamente

sobre informações/opiniões colocadas pela atriz:

Bruno (estudante): Entendi seu pensamento, que a mídia tenta passar pra população de uma

maneira distorcida, vamos dizer assim, eles querem focar em uma parte, naquilo que eles acreditam

[...]. Mas se coloca no lugar de uma pessoa que fez um investimento pesado em uma loja na Avenida

Paulista, tudo na vida dela está naquela loja, aí as pessoas vão lá e quebram?

[...]

Carlos (estudante): [...] você é um empresário riquíssimo, tem várias lojas na Avenida Paulista, aí

você saqueia minha loja, eu também devo o banco, também faço parte do sistema capitalista, devo ao

banco mais que você, e você vai lá e saqueia minha loja, dá um prejuízo lascado. Você está querendo

manifestar, mas dessa maneira não. A questão, eu acho, [é que] no caso da mídia, ela ofusca [...], é

mais interessante para a mídia mostrar aquela pessoa que está roubando do que a que está

apanhando da polícia, acho que é isso.

Eles explicitam suas interpretações sobre a peça, bem como opiniões sobre o tema

tratado. É importante ressaltar que havia mais de cem estudantes no auditório naquele

momento, deste modo, Bruno e Carlos, ao exporem seus pontos de vista, também se

expuseram para os colegas estudantes, para os professores ali presentes e para os artistas.

Estes não acolheram a opinião divergente da pretendida no espetáculo da mesma forma que

a mediação o poderia ter feito. O encontro se converteu em um debate no qual estudantes e

artistas contra argumentavam e defendiam seus pontos de vista, gerando posições

antagônicas unicamente. Não que isso não seja importante, mas naquele momento era mais

interessante que se fosse tratado como uma mediação e não como um conflito de opiniões.

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Isso me leva a repensar a necessidade de uma mediação também no momento de conversa

entre artistas e estudantes – o que é discutido por Glauber de Abreu (2015) em sua

dissertação de mestrado.

Uma opinião contrária à do artista ao invés de ser vista como algo a ser combatido

poderia ser encarado como um aspecto de densidade dado ao debate estético. Se a mediação

defende que a obra acontece no encontro com os espectadores e que a experiência e a

interpretação destes a constitui, seria um contrassenso ignorar e/ou combater as opiniões que

são divergentes. Considero que dentro de um processo pedagógico de mediação a conversa

com os artistas após a apresentação é de extrema relevância e enriquecedora. Deve-se,

contudo, estar atento aos riscos, pois os estudantes podem se prender à busca pela

intencionalidade dos autores, bem como os autores podem intencionar a imposição de uma

interpretação.

Certa vez, conversando com uma amiga acerca dos processos de mediação, ela narrou

um episódio sobre recepção teatral que a desestimulou bastante. Após a apresentação de um

espetáculo de dança contemporânea, ela incentivou os/as adolescentes, que foram a convite

dela ao teatro, a conversar com uma das dançarinas. Esta perguntou a um deles o que tinha

achado do espetáculo e o que havia compreendido; o adolescente não quis responder, mas

depois de alguma insistência deu sua interpretação. Em seguida a dançarina disse que na

verdade ela queria mostrar outra coisa, e deu, então, a sua versão do espetáculo, na melhor

das intenções, como a interpretação correta. O adolescente virou-se para minha amiga e disse

que desde o início não queria ter ido ao teatro e que já havia falado que não entendia nada

daquilo. Vale dizer ainda que as pessoas por ela convidadas eram adolescentes em situação

de rua, que têm um histórico de baixa autoestima e dificilmente acessam os lugares

institucionalizados da arte. O que esse caso demonstra, de forma extrema, é um possível

risco da conversa entre artistas e público sem a intervenção da mediação.

De acordo com Biange Cabral (2009, p. 45) “Assim como o autor seleciona partes

da realidade para incorporar no texto, o leitor seleciona partes do texto para priorizar na sua

interpretação”. A presença de uma mediadora na conversa seria importante para relativizar

os discursos, abrindo espaço para diversos pontos de vista, esclarecendo que o espectador,

assim como o leitor de Cabral, elege partes da peça e da temática para priorizar em sua

interpretação. Todavia, conforme demonstrado neste último subcapítulo, a própria mediação

não deixou espaço para que a obra fosse problematizada pelos estudantes, sobretudo no que

diz respeito à temática.

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Barthes (2015, p. 28-29) diferencia um texto de prazer de um texto de fruição dizendo

que o primeiro é dizível enquanto o segundo não o é. “A fruição é in-dizível, inter-dita.

Remeto a Lacan: ‘O que é preciso considerar é que a fruição está interdita a quem fala, como

tal, ou ainda que ela só pode ser dita entre as linhas [...]’”. Trata-se, na fruição, de fazer um

texto, ou melhor, uma narrativa, insustentável, impossível. O texto de fruição só pode ser

atingido (acessado) por outro texto de fruição: que não pode falar sobre ele, mas “em” ele, à

sua maneira, “só se pode entrar num plágio desvairado” (BARTHES, 2015, p. 29).

O autor diz que os textos de fruição são perversos por estarem fora de qualquer

finalidade que possa ser imaginada; que é absolutamente intransitivo; deslocado, vazio

(como eterna possibilidade de ser ocupado), móvel, imprevisível. Ou seja, não há finalidade,

não há relação de causa e efeito; o texto de fruição, ou seja, a obra não quer ensinar, não

quer a resolução de um problema.

Talvez acreditamos em alguns momentos do Mediato que tudo poderia (ou pior,

deveria) ser dito; muitas vezes ao abraçarmos a causa dos artistas buscamos apagar as

entrelinhas, para que não restasse dúvidas quanto ao tema, quanto à “mensagem” do

espetáculo. Ao invés de provocar a feitura de um (ou outro) texto de fruição, nos

empenhamos na solidificação de conteúdos. Mas pensando com Medeiros (2005, p. 82) “a

imagem artística não é mensagem. Ela fala ‘sem conceito’: linguagem da ordem do grito”.

Ou, como diz Maurice Meleau-Ponty (2013, p. 115) a arte “não se consome para fazer

aparecer as próprias coisas”. O poder está no que se diz, mas também no que não se diz, no

que se vê, mas também no que não se vê. Se quase tudo me é entregue, que prazer tenho de

invenção? A obra precisa continuar pulsando. Se a arte, de forma geral, aponta para o que

há de inefável no mundo, a mediação deveria manter esse indizível, sobretudo como força

mobilizadora de suas ações. As coisas omitidas também dizem.

Meleau-Ponty (2013, p. 113) afirma:

O que não é substituível na obra de arte, o que a torna muito mais do que um meio

de prazer [...] é ela conter, mais do que ideias, matrizes de ideias, é nos fornecer

emblemas cujo sentido nunca terminamos de desenvolver, é, justamente porque se

instala e nos instala num mundo cuja chave não temos, ensina-nos a ver e

finalmente fazer-nos pensar como nenhuma obra analítica consegue fazê-lo,

porque a análise encontra no objeto apenas o que nele pusemos.

Será que nos permitimos (eu, mediadoras, supervisoras e artistas) instalar nesse

mundo permeado por sentidos, sempre em desenvolvimento? Apegamo-nos erroneamente

ao analítico encontrando no objeto (arte) apenas o que nele pusemos? A arte, diz o filósofo,

é capaz de nos fazer pensar como nenhuma obra analítica conseguiria fazer. Vários autores

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falam dessa propriedade das obras artísticas, e bastaria lembrarmo-nos de nossas

experiências estéticas para confirmar isso. Contudo, o que verifico no Projeto (não em todos

os momentos, mas em todas as etapas) é uma contradição: o apego ao conteúdo. A mediação

se transformou, em muitos momentos, em um trabalho analítico, o que possivelmente nos

distanciou da abertura de sentidos, dos princípios aqui desenvolvidos para a mediação, quiçá

da própria experiência estética.

Por fim, Rancière (2010) afirma que a arte não produz a passagem de uma ignorância

a um saber; Kastrup postula uma aprendizagem inventiva – sobretudo a partir dos estudos

da produção da subjetividade de Deleuze e Guattari – com Barthes (2015) vimos que no

texto de fruição não há finalidade. Se nessa perspectiva falamos de uma arte e de uma

educação da contemporaneidade que se distanciam da relação de causa e efeito e da

resolução de problemas, igualmente a mediação como proposta de arte-educação segue os

mesmo princípios. Por isso, é um exercício constante para a mediação encontrar formas de

trabalhar com o espectador que não caiam na recognição, nem no informativo-opinioso, mas

que sejam inventivas. Que explorem esse estado de produção da subjetividade e

compreensão da alteridade, e não que desejem um efeito pré-definido. E isso, a meu ver, é

potencialmente explorado com as possibilidades de dilatação.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise do registro audiovisual do Projeto Mediato, bem como das

entrevistas realizadas posteriormente com estudantes e professores apresentei possibilidades

para o que chamei aqui de dilatação da experiência estética, a saber: a produção de narrativa

sendo a principal, a produção de semelhança e a aproximação entre as esferas do real e do

ficcional. Expus também momentos de dissenso dentro das ações mediadoras buscando

refletir acerca da relação entre política e estética e principalmente sobre quais os limites para

o engajamento ideológico. Paralelamente busquei desenvolver uma noção de mediação que

refletisse não apenas o Mediato, mas principalmente minha trajetória como mediadora,

supervisora e coordenadora em galerias de arte, e para isso fiz uso de filósofos, pedagogos,

romancista e variadas obras de arte que cruzaram o meu caminho ao longo dessa vivência.

Para justificar meu lugar de fala e situar o Mediato como possibilidade apontei inicialmente

para outras ações a partir de distintos pesquisadores. Este exercício, vale notar, me levou a

revisitar o Projeto e repensar sua estrutura e finalidade.

Sobre o Mediato ratifico que houve momentos em que a dilatação se efetivou,

conforme exemplificado ao longo desta pesquisa. Todavia houve ocasiões em que não se

deu a dilatação, nem mesmo a possibilidade de uma experiência. Isso aconteceu, a meu ver,

quando colocamos o foco no par informação-opinião inimiga da experiência segundo Bondía

(2015). Para Benjamin (1994) além da experiência o excesso de informação compromete

também a narrativa, principal forma de dilatação de acordo com este trabalho. Dessa forma,

se minha trajetória em mediação já havia apontado para o equívoco informativo e

explicativo, o Mediato me trouxe a certeza da dificuldade, e com ela a importância, de

contornar esse lugar.

A defesa de uma mediação que seja estética antecede qualquer posicionamento

ideológico da minha parte. Por isso não estou questionando a validade das causas dos

estudantes, da mediação ou do próprio espetáculo, mas chamando a atenção para qual seria

o objetivo das ações mediadoras (ao menos das defendidas aqui). A mediação não pretende

a mudança de um discurso ético. Isso não quer dizer que a mudança não possa acontecer. O

problema se instaura quando essa se torna a finalidade. O objetivo do nosso trabalho

necessita ser estético (que traz o ético imbrincado), ao passo que um objetivo ético

encaminharia para o conflito de opiniões e posições antagônicas. A arte, bem como a

experiência estética, não reside na segurança dos conceitos, das definições, dos conteúdos.

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A mediação também não. Ela reside no entre, na abertura de sentidos, no vão entre as

palavras, entre as imagens, entre eu e o outro, como já dito com Didi-Huberman (2010) entre

o que vemos e o que nos olha.

Sobre a pesquisa é necessário dizer que não houve um caminho cronológico com

levantamento de questionamentos e desenvolvimento de respostas. O início do trabalho se

deu com a execução (e o registro audiovisual) do Projeto, momento em que as perguntas

norteadoras da dissertação não estavam bem delineadas. Por isso, foram as dificuldades

encontradas na prática que suscitaram os questionamentos para esta escrita. Iniciei a

caminhada com uma inquietação gerada pelas contradições advindas do Projeto e à medida

que fui me aproximando do objeto de pesquisa e tornando-o mais claro percebi que a minha

compreensão do que seja a mediação não foi a mesma que realizei no Mediato. Logo, é

preciso admitir que o Mediato não corresponde totalmente a minha ideia de mediação apesar

de ter dele tirado momentos que exemplificam a dilatação da experiência estética.

Igualmente, foram os pontos de incongruências do Projeto, que, não atingindo objetivos

harmônicos, se constituíram como pontos de reflexão que me permitiram aprofundar a

pesquisa.

Não buscava, inicialmente, tecer um conceito de mediação, mas analisar o Mediato.

Contudo, só pude compreender as inconsistências do Projeto à medida que desenvolvi,

baseada na minha trajetória e com o auxílio dos teóricos aqui elencados, um entendimento

de mediação; delineando seus princípios e objetivos, e finalmente verificando que ela (a

mediação) está próxima à experiência estética, distanciando-se das categorias que

impossibilitam a experiência: informação, opinião, explicação, resolução de tarefa, objetivo

ético, dentre outros. Dessa forma, uma dificuldade encontrada na pesquisa foi compreender

que não era necessário vincular o conceito de mediação ao Projeto, mas que a memória de

minha trajetória poderia se estabelecer como campo seguro para desfiar os princípios dessa

prática.

Da mesma forma, pude compreender qual era o meu lugar de narrativa nesta

dissertação na medida em que busquei outros projetos de mediação em teatro a partir de

distintos pesquisadores. Pela via comparativa, pude identificar cada espaço de fala como

particular, reafirmando o recorte deste trabalho e expandindo o olhar para outras formas de

falar sobre e praticar a mediação.

Embora seja de meu interesse tratar da mediação com obras que pertencem ao regime

estético da arte (RANCIÈRE, 2009b) – obras que não seguem regras específicas, que muitas

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vezes apresentam narrativa não linear, caracterizadas pela desconstrução, com cenas que

funcionam isoladamente, mas que podem dialogar (ou não); nas quais a abstração é

predominante – a atual pesquisa não se debruçou sobre esta especificidade em função do

recorte dado pelo objeto de pesquisa. Em outras palavras, o espetáculo que fez parte do

objeto direcionou as margens da dissertação para um lugar que não era o da preparação para

o estranhamento. E optei pelo recorte aqui apresentado apesar da minha trajetória reafirmar

este mesmo estranhamento como campo fértil para a mediação.

Com o capítulo 1 concluí que as margens do que possa ser mediação são mais

flexíveis do que eu pensava no início da pesquisa. E que o formato antes e depois do

espetáculo é algo comum na mediação em Artes Cênicas, tendo gerado profícuos resultados

em diversos Estados do Brasil. Igualmente pude observar que das pesquisas levantadas esta

é a única que apresenta certa fricção entre a escrita e a prática, ou seja, entre o conceito de

mediação e o que foi realizado nas ações mediadoras. Além disso, a pesquisa me possibilitou

repensar todas as etapas do Mediato, desde a seleção da equipe até as mediações

propriamente ditas.

No capítulo 2 pude concluir que a mediação consiste em criar um espaço de dilatação.

Dilatação dos sentidos para a experiência (esta sendo compreendida estritamente no âmbito

da possibilidade) e dilatação da experiência para a invenção de sentidos (sentir e dar sentido),

de forma cíclica. Avalio ainda que as três possibilidades de dilatação elencadas neste

trabalho não visam ser metodologia para a mediação, mas caminhos, cujo desenrolar pode

ser criado e reinventado a cada espetáculo, a cada novo grupo de espectadores.

Já era sabido antes de iniciar esta pesquisa que mediação não é explicação, nem

facilitação de interpretações, ou pior, de conteúdos, nem pretexto para discurso ético. Essa

certeza veio com a prática em galerias de arte. Contudo, conforme dito, o que esta pesquisa

revelou foi a dificuldade, e com ela a importância, de contornar na prática (cênica) este lugar

reducionista. E a saída encontrada foi pelo caminho estético: com a proposição de uma

mediação estética; compreendendo com Jacques Rancière (2012) que política e estética

pertencem ao mesmo regime, sendo elas formas de organizar e/ou modificar o sensível; o

que é dizível, visível, pensável.

Esta pesquisa, unida a minha trajetória, também me levou a refletir sobre a mediação

enquanto campo de trabalho que necessita de profissionalização. A existência de uma

especialização, por exemplo, poderia contribuir para o surgimentos de novas pesquisas e

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principalmente para a formação de profissionais, o que possivelmente levaria ao

reconhecimento, à solidificação e à ampliação desse campo de trabalho.

Certa vez, quando contratada para realizar o Programa Educativo de uma mostra de

Artes Visuais em Brasília, a contratante questionou se eu não poderia apenas “arrumar” uns

jovens bonitos para colocar dentro da exposição e baixar o valor cobrado. Este é um exemplo

extremo de desconhecimento e desvalorização do mediador como profissional. O formato

freelance é o mais comum no Distrito Federal, se caracterizando por certa fragilidade nas

relações trabalhistas e sobretudo no que diz respeito à continuidade. Ou seja, o caráter

esporádico dos projetos (além da já citada falta de especialização) prejudica a formação dos

mediadores a longo prazo e contribui também para um baixo comprometimento dos mesmos.

Penso que a união de profissionais e pesquisadores da área em uma rede seja

igualmente importante para adquirir visibilidade e conquistar mais espaço na luta em

benefício de uma base sólida e de coordenação de esforços, bem como por melhores

condições de trabalho. Assim como existe a Rede de Educadores de Museus (REM) e a Rede

de Educadores em Museus e Instituições Culturais do Distrito Federal (REMIC-DF), poderia

existir a Rede de Mediadores das Artes Cênicas (ReMAC). Uma rede pode auxiliar inclusive

na construção de uma ponte entre escolas e grupos de teatro, ou mesmo instituições culturais.

Pode também contribuir para o necessário intercâmbio entre pesquisas e projetos realizados

nos Estados brasileiros.

Por fim, ainda sobre o Mediato, a pesquisa me encaminhou para uma reflexão sobre

o lugar que os jogos cênicos, bem como os momentos de conversa devem ocupar dentro da

mediação. Pois, durante o Projeto alguns encontros pré-espetáculo se fecharam na apreensão

de códigos de linguagem com a aplicação de jogos teatrais; e o pós em uma espécie de

palestra sobre a temática do espetáculo, conforme dito, o que contribuiu para o não retorno

à obra. Da mesma forma, a pesquisa provocou a revisão do treinamento de mediadores e do

trabalho feito com os professores. Reivindicando para estas etapas um processo que se

assemelhe a própria mediação, unindo a forma ao conteúdo, em um processo que é

pedagógico e estético.

Deste modo, o desafio agora será empreender, na segunda edição do Mediato (2016),

um projeto que reflita os questionamentos aqui apontados, ou seja, que proponha uma

mediação estética, de dilatação dos sentidos e de dilatação da experiência, reivindicando o

inquietante lugar do entre, entre o que vemos e o que nos olha. Infelizmente a pesquisa não

terá fôlego para analisar a próxima edição, mas fica a perspectiva do desenvolvimento e da

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avaliação, independentemente desta escrita. Afinal este trabalho suscitou novos

questionamentos abrindo um campo para pesquisas futuras, sobretudo a partir de uma

segunda versão do Mediato.

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157

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MARTINS, Raimundo. Educar com Imagens: múltiplos tempos e interpretação. Sala de

Leitura. Dez. 2012. Disponível em: <http://artenaescola.org.br/sala-de-

leitura/artigos/artigo.php?id=69370&> Acesso em: 28 jun. 2014.

MECHI, Patrícia Sposito. Contra a revolução, a barbárie. Revista História. Dossiê

Guerrilheiros. nº 90, p. 28-30, mar. 2013.

NAPOLITANO, Marcos. A ditadura entre a memória e a história. In: __________. 1964:

História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2014.

PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros. Para alimentar o desejo de teatro. Revista Sala Preta.

PPGAC, ECA-USP, São Paulo, v. 9 (2009), p. 269-278, 2010.

SAFATLE, Vladimir. A verdade enjaulada. Revista Carta Capital. Especial 50 anos do

golpe. Ed. 793, p. 46-49, abr. 2014.

_________________ Do uso da violência contra o Estado ilegal. In: SAFATLE, Vladimir;

TELES, Edson. (Org.) O Que Resta da Ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010.

SILVA, Juremir Machado. Jornalismo Golpista. Revista Carta Capital. Especial 50 anos

do golpe. Ed. 793, p. 42-45, abr. 2014.

TELES, Edson. Enquanto isso no Brasil. Revista ContraPELO – caderno de estudos

sobre arte e política. nº 1, p. 67-75, 2013?

____________ Entre justiça e violência: estado de exceção nas democracias no Brasil e na

África do Sul. In: SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson (Org.) O Que Resta da Ditadura.

São Paulo: Boitempo, 2010.

TELES, Janaína de Almeida. Os familiares de mortos e desaparecidos políticos e a luta por

“verdade e justiça” no Brasil. In: SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson. (Org.) O Que Resta

da Ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010.

TIBURI, Márcia. Aprender a pensar é descobrir o olhar. Sala de Leitura. Dez. 2012.

Disponível em: <http://artenaescola.org.br/sala-de-leitura/artigos/artigo.php?id=6933 2&>

Acesso em: 28 jun. 2014.

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158

TOLEDO, Edilene. Sonhar também muda o mundo. Revista História. Dossiê Anarquismo.

nº 95, p. 17-22, ago. 2013.

VENEZIANO, Neide. Vôos arriscados. In: __________. A Cena de Dario Fo – o exercício

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APÊNDICE A – CRONOGRAMA DE ATIVIDADES DO PROJETO MEDIATO

ATIVIDADE

GERAL DESCRIÇÃO LOCAL INÍCIO TÉRMINO DURAÇÃO

Coordenação

Pedagógica

Cabe à coordenação: conceber o Programa

Educativo; coordenar e acompanhar a execução

dos serviços de mediação e supervisão durante a

execução do projeto; realizar evento para

professores; realizar treinamento com a equipe

educativa; e produzir relatório final para prestação

de contas.

Responsável: coordenadora (Arlene von-Sohsten)

Ceilândia, São

Sebastião,

Brazlândia e

Gama

Julho semana 1 Outubro semana 3 16 semanas

Elaboração

das apostilas

Pesquisa/levantamento de bibliografia e

montagem de apostila para treinamento dos

mediadores. Material de estudo histórico e

pedagógico. Busca abranger as abordagens

possíveis do espetáculo, sob diferentes

perspectivas, articulando informações de caráter

formal, sócio histórico, estético e semiológico.

Responsável: coordenadora (Arlene)

Gama Julho semana 1 Julho semana 3

3 semanas

Concepção do

caderno de

mediação

Concepção e elaboração do caderno de mediação

(material didático para estudantes e professores):

revistinha com aproximadamente 16 páginas.

Responsável: coordenadora (Arlene)

Gama Julho semana 1 Julho semana 3

Contratação

do espetáculo

Acompanhamento dos ensaios do espetáculo Da

Janela para elaboração do caderno de mediação e

do treinamento.

Responsável: coordenadora (Arlene)

julho semana 1 Agosto semana 3 7 semanas

Programação

Visual

Arte gráfica do caderno de mediação e da camisa

(uniforme).

Responsável: terceirizado

Julho semana 4 Julho semana 4 1 semana

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Contratação

de equipe

Contratação de:

- 1 produtor executivo;

- 2 supervisoras. (Cabe às supervisoras firmar

termo de compromisso com as escolas; organizar

cronograma das atividades mediadas adaptado à

disponibilidade das escolas e organizar e executar

evento para professores juntamente à coordenação

pedagógica; fazer registro fotográfico das turmas

atendidas; enviar semanalmente registro com o

quantitativo de público; acompanhar diretamente

o trabalho de mediação, dando feedback às

mediadoras);

- 6 mediadoras. (Cabe à equipe de mediação

participar do treinamento; realizar atividade

mediada nas escolas antes e após as apresentações

do espetáculo, bem como acompanhar as

apresentações).

Responsável: coordenadora (Arlene)

Gama Agosto semana 1 Setembro semana 4 contrato de

2 meses

Blog Concepção de blog do programa educativo.

Responsável: terceirizado Agosto semana 1 Agosto semana 1

Banner Confecção de banner para divulgação nas escolas.

Responsável: terceirizado Agosto semana 1 Agosto semana 1

Apresentação

do projeto nas

escolas

Seleção das escolas; primeira visita para

apresentação do projeto; parceria com o professor

de artes; organização da agenda para realização

das atividades; e divulgação do projeto dentro da

escola.

Responsáveis: supervisoras e coordenadora

Ceilândia, São

Sebastião,

Brazlândia e

Gama

Agosto semana 1 Agosto semana 2

2 semanas

Treinamento Realização de treinamento/formação para

mediadoras e supervisoras. Asa Norte Agosto semana 1 Agosto semana 2

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Responsáveis: Coordenadora do Projeto e

Diretora do espetáculo

Encontro com

professores

Realização de evento para professores nas escolas

selecionadas. Um encontro por escola em horário

contrário às atividades mediadas com os alunos,

preferencialmente em horário de coordenação

geral, momento em que professores de várias

áreas de conhecimento estão reunidos.

Responsáveis: supervisoras e coordenadora

Ceilândia, São

Sebastião,

Brazlândia e

Gama

Agosto semana 3 Setembro semana 1 3 semanas

Espetáculo

9 apresentações do espetáculo dentro das escolas.

*No Teatro SESC Paulo Gracindo

excepcionalmente no Gama.

Responsável: Cia Calcanhar de Aquiles

Ceilândia, São

Sebastião,

Brazlândia e

Gama

Agosto semana 3 Setembro semana 2 5 semanas

Atividades

mediadas com

alunos

Realização das atividades mediadas: pré e pós-

espetáculo, com o apoio das supervisoras.

Responsáveis: mediadoras

Ceilândia, São

Sebastião,

Brazlândia e

Gama

Agosto semana 3 Setembro semana 4 5 semanas

Oficinas no

contra turno

escolar

Realização de oficinas de 12h com grupos de 30

estudantes. Via inscrição.

Responsáveis: mediadoras

Ceilândia, São

Sebastião e

Gama

Agosto semana 3 Setembro semana 4 5 semanas

Relatórios e

finalização

Elaboração de relatórios de mediação e de

supervisão.

Realização de reunião final.

Asa Sul Outubro semana 1 Outubro semana 1 1 dia

Confecção de relatório quantitativo e qualitativo

para prestação de contas.

Responsável: produtora e coordenadora

Outubro Semana 2 Outubro Semana 3 2 semanas

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APÊNDICE B – FOTOS (OFICINA DE CARTAZES E OUTROS MOMENTOS DA

MEDIAÇÃO)

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APÊNDICE C – MODELO DE RELATÓRIO FINAL SOLICITADO À EQUIPE

RELATÓRIO FINAL (Mediação)

Discorra sobre sua vivência a partir dos questionamentos a seguir e fique à vontade

para tecer, ao final, outras reflexões que não são contempladas pelas perguntas. Faça como

preferir: em forma de texto ou respondendo às questões.

1. Pensando nos princípios da mediação, e o que conversamos durante o treinamento,

quais seriam os pontos positivos desta experiência de mediação em teatro para

escolas públicas do DF?

2. Quais foram os melhores momentos da sua experiência dentro da mediação? (Análise

sua enquanto profissional – pessoal)

3. Quais foram as dificuldades encontradas durante as mediações? (Considere na sua

análise: a profissional/mediadora, as turmas mediadas, a escola, o projeto)

4. Analise a recepção do projeto, por parte dos estudantes, em cada escola:

a. Gama;1

b. São Sebastião;

c. Brazlândia;

d. Ceilândia.

5. O que você acha que poderia melhorar/mudar?

a. Na seleção de equipe;

b. No treinamento;

c. No material educativo;

d. Na escolha das escolas;

e. No formato da mediação de três encontros;

f. Na função de supervisão;

g. Na função de coordenação;

h. Outros.

Nome:

1 Os nomes das escolas, bem como das mediadoras, foram retirados do modelo de relatório para preservar a

identidade das mesmas.

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RELATÓRIO FINAL (Supervisão)

Discorra sobre sua vivência (observação) a partir dos questionamentos a seguir e

fique à vontade para tecer, ao final, outras reflexões que não são contempladas pelas

perguntas. Faça como preferir: em forma de texto ou respondendo às questões.

1. Pensando nos princípios da mediação, e o que conversamos durante o treinamento,

quais seriam os pontos positivos desta experiência de mediação em teatro para

escolas públicas do DF?

2. Quais foram as dificuldades encontradas durante o projeto?

3. Analise a recepção da mediação e do espetáculo, por parte dos estudantes, em cada

escola:

a. Gama;

b. São Sebastião;

c. Brazlândia;

d. Ceilândia.

4. O que você acha que poderia melhorar/mudar? (Se houver comentário)

a. Na seleção de equipe;

b. No treinamento;

c. No material educativo;

d. Na escolha das escolas;

e. No formato da mediação de três encontros;

f. Na função de supervisão;

g. Na função de coordenação;

h. Na função de mediação;

i. Outros.

5. Faça uma breve análise de cada mediadora. (Pode elencar pontos fortes e fracos)

a. Mediadora 1

b. Mediadora 2

c. Mediadora 3

d. Mediadora 4

Nome:

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MEDIATOFormação

de

Espectadoresapresenta o ESPETÁCULO

D A J A N E L A

Programa Educativo

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NÃO PENSE RÁPIDO!

Vamos pensar no nome do espetáculo. . . Quando eu fa lo a palavra “ janela”, que ima-gem vem à sua cabeça? Qual fo i a pr imeir a coisa que você v isual izou: o objeto ou o que há para a lém dele, ou seja, a paisagem? E em sua casa. . . o que você geralmente obser va

atr avés da janela? Como são as janelas da escola? Você prefere uma janela com ou sem grades? Aber ta ou fechada? Se você pudesse deslocar a janela do seu quar to para ou-tr a paisagem, qual lugar você escolher ia para obser var to-das as manhãs ao acordar?

Se você pudesse ajudar na criação do espetáculo,

quais elementos você acrescentaria

ou tiraria?

Você percebeu, através das falas dos atores, que a peça foi adaptada para o nosso contexto atual?

Em quais momentos do espetáculo podemos perceber essa atualização? Interessante observar como alguns assuntos, que a princípio pertencem ao passado, podem ser tão contemporâneos.

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Se você pudesse ajudar na criação do espetáculo, quais elementos você acrescentaria ou tiraria?

Um espetáculo, quando apresenta-do para o público, é o resultado de uma série de escolhas. Escolhe-se

o figurino, que ajuda na caracterização dos personagens (ou pode ser usado apenas para dar neutralidade). Escolhe--se o cenário, geralmente para criar um ambiente. Escolhe-se a iluminação e a sonoplastia. Esta pode ser feita através de músicas ou sons feitos pelos próprios

atores. Tudo é escolhido, nada é aleató-rio. No espetáculo Da janela, vimos livros pendurados compondo o cenário. Como você interpreta essa escolha? Por que estavam suspensos? Por que escolheram o objeto “livro”? E a cor? Não existe uma resposta certa para essas perguntas. Trata-se de interpreta-ção e cada indivíduo pode ter a sua com base na obra e na própria experiência.

Mas será que também podemos fazer teatro sem figurino, sem cenário, sem iluminação, sem

sonoplastia, sem maquiagem? Sim, podemos! Alguns teóricos

dizem que só precisamos de três elementos: o ator (ou atriz), a plateia e o texto. E esse texto não precisa ser verbal, pois a mímica ou a dança, por exemplo, poderiam ser esse “texto”.

Sim, podemos!

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O e s p e t á c u l o

Da janela

é livremente inspi-rado no texto Morte acidental de um anarquista, escrito em 1970 pelo dramaturgo italia-no Dario Fo. O texto faz refe-rência a um fato que ocorreu um ano antes (1969) na Itá-lia: uma bomba havia explo-dido em uma praça chama-da Piazza Fontana, em Milão, provocando a morte de várias pessoas; três dias depois, um anarquista, o ferroviário Giu-seppe Pinelli, foi levado à dele-gacia, acusado pelo atentado, e lá supostamente cometeu suicídio, pulando pela janela. Constatou-se que ele já estava morto antes de “pular”, mas a versão do suicídio prevaleceu.

DRAMATURGO é um artista que trabalha escrevendo textos de teatro.

Veja como esta imagem nos dá a impressão de movimento.

Se fosse para fazer uma pergunta para a obra,

QUAL SERIA?

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A palavra ANARQUIA vem do grego e significa

“sem governo”, isto é, um estado de um

povo sem autoridade constituída. Daí nasce o

anarquismo, doutrina política que vê o Estado

(centralizado) como nocivo e desnecessário,

negando qualquer forma de organização hierar-

quizada.

O HUMOR PODE SER UMA ARMA POLÍTICA?Pelo título da obra, “Morte acidental de um anarquista”, já pode-mos perceber a ironia de Dario Fo. O autor usou o humor para fazer sua crí-tica. Escolheu um estilo de obra teatral chamado “farsa”, que se caracte-riza normalmente pelo

cômico pouco refinado, com situações absur-das, às vezes ridículas e com personagens carica-tos. A farsa tem também um caráter subversivo contra os poderes mo-rais ou políticos, tabus sexuais, dentre outros.

CURIOSIDADE: Dario Fo recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1997.

VOCÊ SABIA?A palavra defenestração, que é usada na peça, significa lançar pela janela.

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Você sabia que episódios como o do anarquista

Pinelli, que Dario Fo usou para a criação de sua farsa, eram recorrentes em vá-rios países, inclusive no Brasil? Na mesma década, nossa demo-cracia foi interrom-pida com o Golpe de 1964 organizado por militares de alguns

estados brasileiros e apoiado pelos Esta-dos Unidos da Amé-rica. A Ditadura Mi-litar, que durou 21 anos, torturou, ma-tou e fez desaparecer um grande número de pessoas. Não po-díamos mais escolher nossos governantes e perdemos vários di-reitos como cidadãos.

Vinte e um anos dá tempo para muita coisa, não é mes-

mo? O que você faria em 21 anos? Dentro desse tempo, o

que estará acontecendo no sistema político do nosso país?

Foto: Evandro Teixeira. “A Passeata dos 100 Mil”. 26 de junho de 1968.

CONTEXTO – DITADURA MILITAR NO BRASIL

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VOCÊ SABIA? Em 31 de março de 2014, comple-tamos 50 anos do Golpe Militar.

Você sabe o que é ANISTIA? A palavra anistia significa esque-cimento. É o ato do poder público que anula uma punição. A chamada Lei de Anistia Ampla, Geral e Irrestrita anulou as pu-nições de crimes tanto dos cidadãos quanto dos torturado-res. Ela foi decretada quatro anos após a morte de Herzog.

CONTEXTO – DITADURA MILITAR NO BRASIL

V ocê já ouviu falar em Vladimir Her-zog? Herzog foi um

jornalista, também pro-fessor, que atuou politica-mente no movimento de resistência contra a dita-dura e que teve um fim se-melhante ao do anarquis-ta da peça de Dario Fo. Em outubro de 1975, Vladimir se dirigiu às dependências do Exército e não retornou para casa. No dia seguinte,

o governo militar comuni-cou aos jornais que ele ha-via cometido suicídio e co-locaram uma foto. Mas era impossível de acreditar naquela foto! A população ficou revoltada e seu veló-rio foi um grande ato con-tra a ditadura. Apenas em 2013 a família do jorna-lista recebeu um atestado de óbito constando a ver-dadeira causa da morte: “lesões e maus tratos”.

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Como será que os artistas produ-ziam suas obras de arte na épo-ca da ditadura? A repressão não

permitia críticas ao governo. Havia uma censura proibindo qualquer tentativa de denúncia contra as atrocidades co-metidas. Então, como dizer o que não podia ser dito? A metáfora era a ferramenta mais utilizada. Falava-se aquilo que queria sem dizer diretamen-

te. Assim como Dario Fo se utilizou da farsa para criar sua peça de teatro na Itália, outros artistas estavam produ-zindo sobre as mesmas questões aqui no Brasil. Vamos conhecer alguns? Observe as obras a seguir. Quais relações podemos estabele-cer entre as imagens e a situ-ação política e social vivida na época? Observe o nome das obras.

Observe os materiais utilizados em Língua apunhalada e Livro de carne.

FAZER ARTE TAMBÉM PODE SER UMA FORMA

DE FAZER UM DISCURSO POLÍTICO?

Você já tinha visto alguma obra de arte que usasse o corpo da própria artista?

E a l g u m a o b r a que seja feita com material perecível?

Lygia Pape. Língua Apunhalada (1968) Técnica backlight

Artur Barrio. Livro de Carne (1978-1979)

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Você já ouviu falar em Henfil? Henrique de Souza Filho, mais co-

nhecido como Henfil, foi um escritor e cartunista que atuou em movimentos sociais e políticos durante a ditadura. Publicou seus trabalhos em jornais e re-

vistas, criticando não ape-nas o regime, mas também o coronelismo no interior nordestino. Falava da seca, do racismo, dentre outras questões, sempre com hu-mor. Vejamos a imagem ao lado. Esse quadrinho nos fala sobre o quê? Qual a sua opinião sobre este as-sunto? Henfil produziu este trabalho na época da dita-dura, mas será que o tema é uma problemática atual?

Observe como o artista constrói as figuras com traços rápidos e sim-ples, sem muitos detalhes, manten-do a expressividade e o movimento.

E O HUMOR?

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Lembrou-se da história do jornalista Vladimir Herzog?

Como será que as pesso-as reagiram ao receber um troco e ver esta frase

estampada? Nos dias de hoje, se tentássemos fazer o nosso

projeto de inserções em circui-tos ideológicos, qual mensa-gem colocaríamos na cédula? E qual outro suporte poderí-amos usar além do dinheiro?

A IMAGINAÇÃO NO PODER!

Um ar tista brasileiro chamado Cildo Meireles encontrou uma forma de produção ar tística que podia cri-

ticar aber tamente o regime militar sem que as pessoas soubessem de quem era a autoria. Chama-se: Inserções em

circuitos ideológicos. Uma série de tra-balhos em que imprimia mensagens subversivas em cédulas de dinheiro e garrafas de vidro de Coca-Cola e as de-volvia para circulação. Veja a imagem a seguir. O que há de estranho nela?

Você já tinha pensado que objetos cotidianos e simples poderiam virar arte? Ou que a arte não precisa estar apenas dentro de espaços institucionalizados como galerias e teatros?

Cildo Meireles. “Inserções em circuitos ideológicos – Projeto cédulas” (1970)

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Autor desconhecido. Cédula de dois reais com carimbo. 2013

RELEITURAVocê conhe-

ce a história do Ama-

rildo? Na imagem ao lado, temos uma releitura do trabalho de Cildo Meireles 40 anos depois. Alguém carimbou cédulas de Real e as devolveu à circulação quando houve o desapare-cimento do Amarildo em uma favela do Rio de Janeiro em 2013. Falamos bastante so-bre a Ditadura Militar

até agora. Mas será que este foi um período que fi-cou no passa-do? Quais são os resquícios hoje?

Será que o Es-tado Democráti-co é para todos?Há quem diga que a di-tadura na favela nunca terminou. Infelizmente existem lugares no Brasil onde morrem e desaparecem mais pessoas do que em época de ditadura. E assustadoramente não falamos sobre o assunto. Mas, afinal, por que não ouvimos falar disso? Qual o papel da mídia nesses

assuntos? O que os esquecimentos e os silêncios da história podem nos revelar so-bre dominação?

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O que memória tem a ver com identidade?

Na família, por exemplo, so-mos parte e resultado de uma memória, dos

nossos avós, dos nossospais, do que permaneceatravés do registro e da oralidade... e isso cria anossa identidade. Da mesma forma, a memória está na base da construção da identidade de um país.A memória do nosso país é o que fica do passado e o que fazemos com isso.

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SEJAMOS REALISTAS, EXIJAMOS O IMPOSSÍVEL!

Hoje você é quem manda

Falou, tá faladoNão tem discussão

A minha gente hoje anda

Falando de ladoE olhando pro

chão, viuVocê que inventou

esse estadoE inventou de

inventarToda a escuridão

Você que inventou o pecado

Esqueceu-se de inventarO perdão

Apesar de vocêAmanhã há de ser

Outro dia(...)

E . na música, você lembra alguma le-tra que expresse

crítica, seja ao regime mi-litar, seja a questões atu-

ais? Já ouviu Apesar de você, do Chico Buarque?

Quem é o “VOCÊ” da canção? Quando Chico Buarque de Holanda escreveu esta canção em 1970, os militares não a censuraram, pois não viam nenhuma crítica na letra, acreditando talvez na fictícia briga entre namorados que a história sugere.

Mas, meses depois, quando a música era um sucesso, o governo compreendeu a men-sagem e imediatamente proibiu a música, além de recolher e destruir os discos. Num in-terrogatório quiseram saber de Chico quem era o “você”. E ele ironicamente respondeu: “É uma mulher muito mandona, muito autoritária”. O censor que deixou a letra passar foi punido e Chico Buarque ficou marcado. Todas as suas letras passaram a ser vetadas! Por isso Chico começou a se disfarçar sob os pseudônimos de Julinho da Adelaide e Leonel Paiva para que fossem aprovadas algumas de suas composições, dentre elas Acorda amor, que mostra uma crítica mais explícita à ditadura, mas os censores não conseguiram enxergar!

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Outro som: “Brasil com P”, do GOG, rapper do Distrito Federal.

(...)Era a brecha que o sistema

queria.Avise o IML, chegou o grande

dia.Depende do sim ou não de um

só homem.Que prefere ser neutro pelo

telefone.Ratatatá, caviar e champanhe.

(...)Cachorros assassinos, gás

lacrimogêneo...quem mata mais ladrão ganha

medalha de prêmio!O ser humano é descartável no

Brasil.Como modess usado ou

bombril.Cadeia? Claro que o sistema

não quis.

Esconde o que a novela não diz.

Ratatatá! sangue jorra como água.

Do ouvido, da boca e nariz.O Senhor é meu pastor...

perdoe o que seu filho fez.Morreu de bruços no salmo 23,

sem padre, sem repórter.sem arma, sem socorro.Vai pegar HIV na boca do

cachorro.Cadáveres no poço, no pátio

interno.Adolf Hitler sorri no inferno! O Robocop do governo é frio,

não sente pena.Só ódio e ri como a hiena.

Ratatatá, Fleury e sua gangue vão nadar numa piscina de

sangue.Mas quem vai acreditar no meu

depoimento?Dia 3 de outubro, diário de um

detento.

CURTE ESSE

SOM!

“Diário de um detento”. Composição: Mano Brown (Jocenir). Álbum: Sobrevivendo no Inferno.

Imagem ao fundo: Regina Silveira. “Mundus Admirabilis” (2007). Instalação, vinil adesivo.

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Neste rap, Mano Brown, o composi-tor, fala sobre o mas-

sacre da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, que aconteceu em 1992, anos após o término da ditadura, onde 111 pre-sos foram assassinados por policiais. O rapper também faz referência a outro fato: quando ele

fala “Fleury e sua gangue”, está se referindo a Sérgio Fleury, um policial, talvez o maior torturador da épo-ca da ditadura. Mas por que Mano Brown traz essas duas referências juntas, uma da época da ditadura e outra de um massacre que acon-teceu décadas depois na nossa democracia?

O que era um preso político na ditadura? O que é um preso hoje?

O que era considerando contra a lei nas décadas de 1970 e 1980?

E o que é considerado contra a lei hoje? FICA A DICA

O dia que du-rou 21 anos. Dirigido por Camilo Galli Tavares (Mé-xico, 1971)

Juízo. Dirigido por Maria Augusta Ramos (Brasil, 2008)

A cidade é uma só? Dirigido por Adirley Quei-rós (Brasil, 2011)

Selecionamos alguns filmes caso você tenha curiosidade de conhe-cer mais sobre o assunto. Você pode encontrá-los na internet:

Imagem ao fundo: Regina Silveira. “Intro” (2005). Vinil adesivo.

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Coordenação Geral e Pedagógica Arlene von Sohsten

SupervisãoBárbara FigueiraDanielle Dumoulin

MediaçãoAnahi Nogueira Jailson Rolim Lidi Leão Natália Vinhal Nina Ferreira Pryscilla Dantas

Produção ExecutivaMariana Baeta

Espetáculo

Atuação e direçãoBárbara FigueiraMarcos Davi

Concepção do Material DidáticoArlene von Sohsten

Projeto GráficoAndré Fernandes

Fotos Espetáculo Karla Gamba

RevisãoFelipe Miranda

Visite o nosso blog:formacaodeespectadores.blogspot.comCurta a nossa página: / Mediato - Formação de Espectadores

Período: Agosto e Setembro de 2014Regiões: Gama, São Sebastião, Ceilândia e Brazlândia.

Apoio

Teatro SESC Paulo Gracindo – Gama

Apresentação

Fundo de Apoio à Cultura (FAC) da Secretaria de Estado de Cultura do

Distrito Federal

FICHA TÉCNICA

fundo diverso

fundo escuro

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versão em cores