arlene oliveira von sohsten a mediação como (dilatação da)...
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Universidade de Brasília
Instituto de Artes
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
Arlene Oliveira von Sohsten
A mediação como (dilatação da) experiência estética:
uma análise do Projeto Mediato
Brasília
2016
Arlene Oliveira von Sohsten
A mediação como (dilatação da) experiência estética:
uma análise do Projeto Mediato
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas do Instituto de
Artes da Universidade de Brasília como
requisito para obtenção do título de mestre em
Artes Cênicas.
Linha de Pesquisa: Culturas e Saberes em
Artes Cênicas.
Orientador: Prof. Dr. Jorge das Graças Veloso
Brasília
2016
Ficha catalográfica elaborada automaticamente, com os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
vSO682m
von Sohsten, Arlene Oliveira A mediação como (dilatação da) experiênciaestética: uma análise do Projeto Mediato / ArleneOliveira von Sohsten; orientador Jorge das Graças Veloso. -- Brasília, 2016. 185 p.
Dissertação (Mestrado - Mestrado em Artes) --Universidade de Brasília, 2016.
1. Teatro. 2. Mediação. 3. Experiência estética .4. Educação . I. Veloso, Jorge das Graças, orient.II. Título.
AGRADECIMENTOS
Ao professor Dr. Jorge das Graças Veloso que foi como um sopro me livrando do
que havia de nebuloso na escrita e na pesquisa de forma geral, me auxiliando a compreender
o que é ser uma pesquisadora em Artes Cênicas.
À professora Dra. Roberta Matsumoto que de forma sensível percebeu as lacunas
deste trabalho, quando da qualificação, mostrando-me página à página as fragilidades da
escrita, sobretudo no que diz respeito a noção de experiência estética e alteridade. Orientação
esta que me permitiu compreender o meu recorte e focar o movimento da dilatação após o
contato com a obra. Além disso, Matsumoto contribuiu também para a concepção do
primeiro capítulo no qual busco outros projetos e pesquisas de mediação. Agradeço à rica
intervenção.
Ao professor Dr. Flávio Desgranges que prontamente aceitou o convite para compor
a banca de qualificação e engrandeceu este trabalho com observações pontuais,
principalmente sobre a necessidade de fazer cortes essenciais para redefinir o escopo da
abordagem investigativa. E juntamente à Matsumoto contribuiu para a dilatação do meu
olhar frente à pesquisa.
À professora Dra. Alice Fátima Martins por aceitar compor a banca de defesa e
contribuir para a finalização deste trabalho com sua extensa pesquisa em arte, educação e
visualidades. Sua intervenção (poética) na banca de defesa acendeu a fagulha para a
continuidade não apenas da pesquisa, mas principalmente do meu trabalho como professora
e coordenadora do Mediato. Sua presença foi um grande presente.
À Marília Panitz e a Carlos Silva, meus mestres, que confiaram no meu trabalho e
abriram as portas para que eu pudesse conhecer e aprender ao longo de sete anos o que é a
mediação.
Aos amigos e familiares que pacientemente me apoiaram. Aos meus pais, Eliene e
Daniel von Sohsten, que criaram meios para tornar o tempo dessa pesquisa mais confortável.
A toda a equipe do Projeto Mediato (2014) pelo empenho e pela dedicação ao
trabalho, que à época já sabia se tratar não apenas de um projeto, mas de um sonho que
estava sendo realizado. Agradeço por terem acreditado nele também.
Às escolas que receberam o Projeto e principalmente aos estudantes e professores,
que se entregaram como espectadores. Agradeço a eles também a disponibilidade para
conceder as entrevistas.
RESUMO
O presente trabalho consiste em uma possibilidade de pesquisa em Artes Cênicas que se
utiliza de práticas de mediação como instrumento. Tem como objetivo defender uma
mediação como dilatação dos sentidos e principalmente da experiência estética; bem como
inventar e apresentar caminhos para essa dilatação. Além de reconhecer – com base em
práticas pedagógicas estéticas – quais sãos os momentos de ruptura na mediação, isto é,
quando ela atua como cenas de dissenso. Por fim, objetiva apontar de que forma a mediação
se distancia dos seus propósitos impossibilitando a experiência e a dilatação. A dilatação vai
se configurar a partir de algumas possiblidades: com a produção de narrativa; a produção de
semelhança; e o estreitamento das relações entre real e ficcional, sendo a primeira a de maior
importância na pesquisa. Fazem parte do enquadramento conceitual a experiência do olhar
em Georges Didi-Huberman, a experiência de Jorge Larrosa Bondía, as noções de estética e
política em Jacques Rancière, o conceito de narrador desenvolvido por Walter Benjamin, a
ideia de mediação de Flavio Desgranges, a aisthesis de Beatriz Medeiros e a aprendizagem
inventiva de Virgínia Kastrup. Além destes, Jorge das Graças Veloso, Maria Lúcia Pupo,
Biange Cabral, Clarice Lispector, Roland Barthes, dentre outros, compõem o escopo teórico
do trabalho. Para o desenvolvimento da pesquisa duas fontes além da literatura selecionada
foram adotadas: o registro audiovisual do projeto “Mediato Formação de Espectadores”
realizado em 2014, com quatro escolas públicas de Ensino Médio do Distrito Federal; assim
como entrevistas semiestruturadas, realizadas em 2015 com estudantes e professores (as)
participantes. Tal projeto será objeto de análise neste trabalho com vistas a investigar o que
foi condizente com os propósitos da mediação e de fato contribuiu para a dilatação dos
sentidos e da experiência estética, e o que pode ser repensado para isso. Por meio da análise
do registro audiovisual do Projeto Mediato e das entrevistas, bem como do estudo dos
teóricos e principalmente a partir da trajetória da autora, foi possível delinear um
entendimento de mediação que segue os mesmo princípios da experiência estética,
distanciando-se das categorias que impossibilitam a experiência, a saber: informação,
opinião, explicação, resolução de tarefa, objetivo ético. Igualmente, este caminho permitiu
demonstrar como a mediação pode funcionar como dilatadora da experiência estética. Em
última análise, a pesquisa confirmou que o Projeto Mediato não contemplou totalmente a
ideia de mediação defendida no trabalho, todavia, as incongruências daquele se constituíram
como pontos de reflexão que permitiram o aprofundamento deste.
Palavras-chave: Mediação. Teatro. Experiência estética. Espectador. Dilatação.
ABSTRACT
The present paper consists of a possibility of Theatre Arts research that uses mediation
practices as a tool. Its goal is to defend mediation as dilation of the senses, mainly of the
aesthetic experience, as well as to invent and present ways for said dilation and recognize -
with basis on aesthetic pedagogic experiences - in which moment the rupture of mediation
happens, that is, when it acts as scenes of dissent. Finally, the paper seeks to point out how
mediation distances itself from its purposes, making impossible the experience and dilation.
Dilation comes from a few sources: by narrative production, by similarity production, and
by making closer the relationship between real and fictional - the former having larger
emphasis in this research. Included in the conceptual focus are the experience of sight in
Georges Didi-Huberman, the experience of Jorge Larrosa Bondía, the aesthetic and political
notions of Jacques Rancière, the concept of narrator developed by Walter Benjamin, the idea
of mediation of Flavio Desranges, the aisthesis of Beatriz Medeiros, and the inventive
learning of Virginia Kastrup. Besides the afore mentioned authors, Jorge das Graças Veloso,
Maria Lúcia Pupo, Biange Cabral, Clarice Lispector, Roland Barthes, among others,
compose the theoretic state-of-the-art in the paper. Two sources beyond the literary selection
were used for the research's development: the filming of the project Mediato Formação de
Espectadores (2014) with four public high schools of the Federal District, and semi-
structured interviews of 2015 with participating students and teachers. The afore mentioned
project will be analyzed in this paper in order to investigate what was coherent with
mediation's purposes and actually contributed towards the dilation of the senses and the
aesthetic experience, and what can be reevaluated and restructured in order to be useful.
Through analysis of the records of the Mediato project and interviews, studies of the authors,
and mainly through the author's journey, it has become possible to delineate an
understanding of mediation that follows the same principles of the aesthetic experience,
distancing itself from the categories that make impossible the experience, such as:
information, opinion, explanation, obligation, and ethical objective. Similarly, this journey
has made it possible to demonstrate how mediation may serve and dilator of the aesthetic
experience. In a final analysis, the researched confirmed that the Mediato project did not
fully consider the concept of mediation defended in the paper, however, its incongruities
served as stimulators for reflection, which allowed its deepening.
Key words: Mediation. Theatre. Aesthetic experience. Spectator. Dilation.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................ 11
1 SITUANDO O OBJETO DE PESQUISA – PROJETO MEDIATO E
OUTROS CAMINHOS ..................................................................................................... 19
1.1 Projeto Mediato ..................................................................................................... 26
1.1.1 Da Janela .................................................................................................................. 38
1.1.2 Aquecimento ............................................................................................................ 41
1.1.3 Parcerias com a educação formal ............................................................................ 45
1.1.4 Caderno de mediação ............................................................................................... 53
1.2 Outros caminhos .................................................................................................... 55
1.2.1 Flávio Desgranges e o Projeto Formação de Público .............................................. 55
1.2.2 Ney Oliveira e o projeto Cuida Bem de Mim .......................................................... 58
1.2.3 Martha Moraes e SESC Arte-educação: Transformando Plateias ........................... 62
1.2.4 Glauber de Abreu e a questão do abandono ............................................................ 65
2 A MEDIAÇÃO COMO (DILATAÇÃO DA) EXPERIÊNCIA ESTÉTICA .... 73
2.1 Considerações iniciais sobre experiência, dilatação, sentido e estética ............. 74
2.2 O sujeito dilatado .................................................................................................. 80
2.3 Aproximações entre a experiência em Didi-Huberman e Lispector ................. 88
2.4 Possibilidades para a dilatação ............................................................................ 97
2.4.1 Narrativa ................................................................................................................. 97
2.4.2 Produção de Semelhança ...................................................................................... 109
2.4.3 Real e Ficcional .................................................................................................... 112
2.5 A mediação como ruptura .................................................................................. 118
2.6 Política, na estética ou no tema: “Isso que vocês querem colocar na cabeça da
gente” ............................................................................................................................... 132
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 148
REFERÊNCIAS .................................................................................................. 153
APÊNDICE A – CRONOGRAMA DE ATIVIDADES DO PROJETO
MEDIATO
............................................................................................................................... 159
APÊNDICE B – FOTOS (OFICINA DE CARTAZES E OUTROS
MOMENTOS DA MEDIAÇÃO) ...................................................................... 162
APÊNDICE C – MODELO DE RELATÓRIO FINAL SOLICITADO À
EQUIPE ............................................................................................................... 170
APÊNDICE D – CADERNO DE MEDIAÇÃO ................................................ 172
ANEXO A – REGISTRO AUDIOVISUAL DO ESPETÁCULO
11
APRESENTAÇÃO
A introdução do serviço educativo nos museus foi um importante avanço na
compreensão deste local como espaço social de trocas. Assim como o museu se tornou um
ambiente pedagógico, externo à escola, que expõe objetos estimulando suas leituras e o
estabelecimento de relações, o teatro pode ser um potencial lugar de intercâmbio de
vivências e de aprendizagem. Este espaço pode se dar com a inserção de projetos
pedagógicos que incluam processos de mediação direcionados para o atendimento de
estudantes, principalmente das regiões que tem menos contato com centros culturais.1 Com
vias não apenas de familiarizar o espectador, mas estimular os sentidos, bem como a
produção de narrativas pessoais e coletivas.
A mediação voltada às artes do corpo e do espetáculo ocupa um lugar incipiente se
comparada à longa trajetória das Artes Visuais no Brasil. Todavia, pode-se verificar um
crescente de pesquisas e projetos que propõem atividades mediadoras no Distrito Federal e
em outras regiões como São Paulo e Bahia – apenas para citar duas das quais tive
conhecimento. Portanto, refletir sobre essas atividades é uma forma de analisar a prática, de
corrigir equívocos e de amadurecer este campo de trabalho, que tem atualmente expandido
seu universo; e acredito que a academia tem papel fundamental nessa contribuição.
São objetivos desta pesquisa: argumentar sobre a possibilidade de a mediação ser
uma forma de dilatação dos sentidos e principalmente da experiência estética; e inventar e
apresentar caminhos para essa dilatação. Vale ressaltar que a dilatação da experiência é no
sentido estrito da possibilidade, não da garantia, tendo em vista que assegurar a feitura da
experiência é impossível. Além de reconhecer – com base em práticas pedagógicas estéticas
– quais sãos os momentos de ruptura na mediação, isto é, quando ela atua como cenas de
dissenso (RANCIÈRE, 2012). Por fim, apontar de que forma a mediação se distancia dos
seus propósitos impossibilitando a experiência e a dilatação.
Este trabalho constitui-se como uma possibilidade de pesquisa em Artes Cênicas que
se utiliza de práticas de mediação como instrumento. Tendo isso em vista, lançarei mão de
1 É importante esclarecer que qualquer região (no caso desta pesquisa, o Distrito Federal e suas respectivas
Regiões Administrativas) tem suas manifestações artísticas. O que se pretende apontar aqui é para a
importância do centro cultural como um espaço de aprendizagem extra escolar, que agrega teatro, galerias,
cinema (fora do circuito comercial), dentre outras atividades, geralmente gratuitas. E consequentemente
familiarizar estudantes, independentemente da idade, para que estes compreendam aquele local, também, como
espaço para os momentos de lazer com familiares e amigos; o que poderia influenciar decisivamente na vida
escolar.
12
duas fontes além da literatura selecionada: o registro audiovisual do Projeto “Mediato
Formação de Espectadores”2 realizado no primeiro semestre da pesquisa, em 2014, com
quatro escolas públicas de Ensino Médio de quatro Regiões Administrativas do Distrito
Federal (Gama, São Sebastião, Brazlândia e Ceilândia); assim como entrevistas
semiestruturadas em forma de tópico guia (GASKELL, 2014), realizadas em 2015 com
estudantes e professores (as) participantes. Dessa forma, constitui-se como objetivo,
paralelamente aos já elencados, a análise do Projeto Mediato, uma vez que a revisão da
prática possibilitará a sua reformulação.
Com as entrevistas busco, explorando um método etnográfico, a escuta de uma
terceira voz: a voz do sujeito da pesquisa, além da minha e de quem já falou sobre o assunto
(a literatura selecionada). Sobre questões metodológicas, vale apontar para uma contribuição
da Etnocenologia3 que fundamenta este trabalho. Trata-se de uma trajetória que passa por:
vivência; apetência; competência; objeto; e projeto. Tal caminho, recorrente às pesquisas em
Artes, teve seu nascimento em minha trajetória escolar, acadêmica, profissional e pessoal; o
que despertou encanto e fascínio, não mero interesse, mas desejo e apetite pelo tema. Isso
gerou certa competência para transitar por esse lugar de desejo; que por sua vez,
proporcionou a identificação de uma questão e de um objeto passível de ser pesquisado,
culminando na atual escrita.
A noção que tomarei emprestada desta recente e em constante mudança disciplina,
chamada Etnocenologia, faz referência ao âmbito metodológico dos trajetos e projetos. Para
Armindo Bião (2007, p. 21) a “ideia do trajeto remete à articulação de um sujeito com seus
objetos de interesse e com outros sujeitos”. De acordo com o léxico criado pelo autor o
trajeto são “as técnicas e [os] princípios que buscam permitir o conhecimento do objeto por
parte do sujeito, bem como a história que reúne o sujeito e sua opção pelo objeto.” (BIÃO,
2009 p. 39). O objeto é o campo da pesquisa. O projeto explicita o objeto do estudo
pretendido e o trajeto que levou o sujeito a se interessar por ele. A apetência, por sua vez, é
o que justifica o interesse do sujeito pelo objeto, sem a qual não se pode construir
competência. Esta consiste no conjunto de capacidades que vai viabilizar a consecução do
projeto (BIÃO, 2009). Além dessa, outra noção que será utilizada – não mais referente às
2 O termo Projeto virá em maiúsculas quando se referir ao Projeto Mediato. 3 A Etnocenologia é uma disciplina que tem como objeto os comportamentos humanos espetaculares
organizados, tomando como pilares os conceitos de identidade e alteridade. Este recente campo de estudo busca
uma compreensão dos discursos dos diversos agrupamentos sociais sobre sua própria vida coletiva, inclusive
suas práticas corporais (BIÃO, 1999).
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questões metodológicas, mas aos sujeitos da mediação – é a de alteridade; que é
compreendida como o reconhecimento do outro, distinto de si próprio (BIÃO, 2009).
Posto isso, esboçarei brevemente o trajeto que me levou à atual pesquisa. O interesse
pelos caminhos da mediação originou-se com o trabalho desenvolvido, ao longo de sete anos,
no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) em Brasília-DF, mais especificamente com o
Programa Educativo Artes Visuais. Sob a coordenação das professoras Marília Panitz e
Renata Azambuja e do professor Carlos Silva, o programa mantinha um consistente trabalho
de arte-educação, compreendendo a galeria de arte como um espaço provocador do
público/estudante. Objetivava-se familiarizar, principalmente com produções
contemporâneas, e estimular a interpretação crítica de imagens. Tendo em vista que o trajeto
nesta instituição foi intenso, meu olhar e análise estarão constantemente permeados pela
vivência nas Artes Visuais.
Mas dentro desses sete anos, o que melhor assinalou o interesse foram os momentos
prenhes de sentido. E sentido é aqui compreendido na amplitude proposta por John Dewey
(2010, p.88), o “‘sentido’ abarca uma vasta gama de conteúdos: o sensorial, o sensacional,
o sensível, o sensato, o sentimental, junto com o sensual. [...] desde o choque físico e
emocional cru até o sentido em si – ou seja, o significado das coisas presentes na experiência
imediata”. Ora, é exatamente disso que trata a experiência estética, uma vez que tais
conteúdos revelam-se comprometidos com o regime estético, inclusive da arte.
Além desses momentos de sentido na mediação, outro acontecimento que gerava
fascínio era a possibilidade de repercussão e continuidade do que havia sido experienciado
durante a visita. Ou seja, de que forma aquela experiência estética poderia se dilatar. Por
exemplo, ocasiões em que crianças e adolescentes retornavam ao espaço cultural, não mais
com a escola, mas com pais e familiares: o estudante que foi apresentado àquele espaço de
arte por meio da escola, retorna, e sentindo-se pertencente ao espaço, apresenta-o para
outros. Este exemplo não demonstra a complexidade e a sutileza do que se entende aqui por
dilatação, mas foi escolhido pela concretude da possível continuidade.
Não era raro encontrar uma família, no fim de semana, que estivesse visitando pela
primeira vez a convite do filho que, pela via da escola, havia tomado conhecimento daquele
lugar. E ele ocupava, então, o papel do mediador. Explicitamente dispensava os meus
serviços, pois queria ele mesmo mediar o encontro dos pais e familiares com a exposição
que havia conhecido. Claro que a criança, neste exemplo, desconhecia os princípios da
mediação e possivelmente realizou uma visita guiada e não mediada. Mas neste exercício,
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de narrar a experiência, bem como contar sobre os assuntos que lembra, o estudante
concretizou mais um momento importantíssimo à aprendizagem. Pois, à medida que foi
narrando ele pôde tomar consciência da própria experiência, e ao se expressar, pela via das
palavras, abriu espaço para que outra pessoa as contra argumentasse. Além disso, fica claro
que a visita à exposição foi tão significativa para o estudante que este desejou compartilhar
com alguém.
O CCBB também foi o palco para as questões de alteridade dentro dos processos de
mediação. Contudo, foi na disciplina Fundamentos da Educação Artística, ministrada na
graduação em 2007, pelo professor Dr. Jorge das Graças Veloso, orientador da presente
pesquisa, que tais questões se constituíram como objeto de interesse. Dali surgiu uma
tentativa de compreensão do outro, sobretudo dentro dos processos educativos, o que a
prática em mediação tem dado conta de alimentar amplamente.
O desejo pela mediação em Artes Cênicas se consolidou com um trabalho de
conclusão de curso de graduação (2010), no qual pude esboçar algumas inquietações, que
repercutem na presente escrita. Entretanto, o resultado não apresentava autonomia, pois o
que houve foi uma tentativa de transposição da vivência com as práticas no âmbito das Artes
Visuais para as Artes Cênicas. Daí a necessidade de inserir, como parte integrante da
pesquisa, um exercício prático de mediação por meio da realização do Projeto Mediato, que
consistiu fundamentalmente na realização de ações educativas antes e após a apresentação
de um espetáculo.
Indo um pouco distante, a origem do interesse pelo tema encontra-se na minha
trajetória com projetos educativos enquanto estudante de Ensino Médio em escola pública
de periferia (2002-2003). Antes disso, observo que podemos compreender a distância, assim
como Georges Didi-Huberman (2010) a entende. Como uma linha que inscreve dois pontos:
o próximo e o afastado, ou seja, a polaridade em uma palavra. Essa imagem de uma linha
que inscreve a polaridade, e não de oposição, condiz com a relação de semelhança entre fatos
da minha trajetória escolar e o atual trabalho.
O Festival de Teatro na Escola4, por exemplo, constituiu-se como acontecimento
decisivo, pois proporcionou o envolvimento de jovens estudantes, de 14 a 16 anos, em um
4 O Festival de Teatro na Escola é um projeto desenvolvido pela Fundação Athos Bulcão com escolas públicas
do Distrito Federal desde 2000. Nele professor e estudantes se envolvem em um processo de montagem cênica,
estes como atores e/ou técnicos e aquele como diretor/encenador. O resultado é apresentado em um teatro
profissional, e os grupos participantes têm a oportunidade de assistir aos trabalhos produzidos por outras
escolas naquela edição.
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universo estético completamente distinto do que tínhamos acesso até então. A repercussão
se inscreve em questões muito mais amplas, contudo, para exemplificar tomemos o fato que,
de um grupo de aproximadamente doze pessoas, que participavam do Festival, quatro
decidiram ter a arte como forma de sustento. Estas se formaram e atuam profissionalmente
na área. E isso se deu também pelo completo envolvimento do professor de Artes Cênicas,
que à época manteve o grupo de teatro com estes estudantes para além do Festival. Ter
vivenciado o potencial transformador desse tipo de ação justificou a escolha de escolas
públicas de periferia para a realização do Projeto Mediato, e de forma mais abrangente,
influenciou na apetência e na escolha do tema para esta pesquisa.
Essas vivências – desde 2002 como estudante que se beneficia dos projetos de arte-
educação, passando pela monografia sobre mediação e teatro, até minha prática como
mediadora, supervisora e coordenadora em Programas Educativos – formaram o terreno
necessário para a criação do Mediato Formação de Espectadores, que será detalhado no
primeiro capítulo. Assim, estimulada com os convites para coordenar o serviço de mediação
em galerias e museus em Brasília escrevi o que seria posteriormente o Mediato. Durante sua
idealização busquei editais de financiamento público e para minha surpresa houve em 2013
uma modalidade chamada “Projeto Educativo para Teatro (formação de plateia)” na seleção
pública do Fundo de Apoio à Cultura da Secretaria de Estado de Cultura do Distrito Federal
FAC/SeCult-DF. Este edital, financiou integralmente o Mediato em 2014.
Para finalizar a trajetória que me levou a esta escrita explicito a mudança conceitual
das interrogações que me acompanharam. Uma inquietação, no início da minha caminhada
com o CCBB (2007), era se a recepção poderia ser mediada para além da informação. Minha
mediação era extremamente informativa e tendenciosa. Cheguei, certa vez, a induzir
visitantes a verem um jacaré em uma escultura, que nem figurativa era. Problema este
contornado graças a amigos sensíveis, como o artista Fábio Baroli – colega de trabalho na
ocasião – que me alertou quanto ao direcionamento do olhar. Durante a monografia em 2010,
pressupondo afirmativa a questão anterior, a pergunta mudou para como a recepção pode ser
mediada com o teatro, uma arte efêmera? Posteriormente entre a concepção do Projeto
Mediato (2013) e a atual análise (2015) passei a refletir como, quando e onde a mediação
pode acontecer para que provoque uma aproximação (implicando em alteridade) e não uma
reação contrária – no sentido de não pertencimento, desinteresse e até mesmo aversão ao que
está sendo proposto e ao próprio teatro – com vistas à apropriação crítica e sensível da obra.
Bem como de que maneira pode acontecer a dilatação dos sentidos para a experiência estética
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e posteriormente a dilatação desta para a invenção de sentidos. Esta última questão é mais
recente e vem sendo investigada nesta dissertação, que foi organizada em dois momentos.
No primeiro, apresento o objeto de investigação (Projeto Mediato) e exponho quatro
trabalhos de mediação em teatro de outros pesquisadores com vistas a situar o lugar de fala
desta pesquisa. No segundo desenvolvo uma ideia de mediação e analiso o Projeto. Vale
ressaltar que a primeira pessoa do singular será assumida durante toda dissertação. Usarei a
terceira pessoa do plural exclusivamente para falar de ações realizadas pela equipe educativa
durante Mediato, ou ainda, no CCBB. Detalho a seguir o que compõe cada momento com
seu respectivo amparo teórico.
No capítulo 1 exponho o Projeto Mediato delineando sua concepção e suas partes
constituintes: treinamento de equipe; caderno de mediação (material didático concebido para
os participantes); espetáculo; e parceria com a educação formal – momento em que analiso
a relação com a escola e com o corpo docente. Antes disso, uma breve introdução localiza o
termo mediação a partir das pesquisadoras Ana Mae Barbosa (1994; 2009) e Rejane
Coutinho (2009) nas Artes Visuais, bem como dos pesquisadores Flávio Desgranges (2002;
2008; 2010; 2011) e Maria Lúcia de Souza Barros Pupo (2011) nas Artes Cênicas.
De forma complementar aponto para outros caminhos, isto é, trabalhos em mediação,
com o intuito de situar o Mediato como possibilidade e localizar meu lugar de narrativa.
Trata-se de uma abertura do olhar para maneiras distintas de compreender e praticar a
mediação. Para este momento elenquei quatro trabalhos com seus respectivos pesquisadores:
Projeto Formação de Público em São Paulo, por Flávio Desgranges (2008; 2011); projeto
Cuida Bem de Mim na Bahia, por Ney Wendell Oliveira (2011); SESC Arte-educação:
Transformando Plateias no Distrito Federal, por Martha Moraes (2014); e Glauber de Abreu
(2015), mais como localização conceitual, com a questão da “contenção do abandono”,
abandono este que impossibilitaria a experiência estética.
No capítulo 2, analiso o Projeto Mediato paralelamente ao desenvolvimento de um
conceito de mediação. Vale ressaltar que a análise do registro audiovisual me levou à
elaboração do conceito ao mesmo tempo que este guiou a análise. Nesta apreciação a
mediação será compreendida como dilatação. Dilatação dos sentidos para a experiência
estética (antes do contato com a obra); e a dilatação da própria experiência (após). A atenção
incide sobre esta segunda tendo em vista as especificidades do Projeto e do enfoque dado
durante sua análise.
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Para desenvolver essa ideia de mediação me aproprio da experiência do olhar em
Georges Didi-Huberman (2010, p.29), na qual o “que vemos só vale – só vive – em nossos
olhos pelo que nos olha”. O autor propõe uma dialética do olhar que inscreve o duplo
movimento do que vemos e do que nos olha. Aproprio-me ainda da noção de experiência de
Jorge Larrosa Bondía (2015) sendo ela o que nos acontece, o que nos passa e não o que
passa, o que simplesmente acontece. Quanto à estética adoto a ideia presente em Jacques
Rancière (2009a; 2009b; 2012), para quem estética é uma maneira de organizar o sensível,
assim como o é a política. Trata-se de “um modo de articulação entre maneiras de fazer,
formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de pensabilidade de suas relações,
implicando uma determinada ideia de efetividade do pensamento.” (2009b, p. 13).
É a partir desses conceitos que poderemos compreender a mediação como
experiência estética, e igualmente, uma espécie de dilatação da experiência. A ideia de
dilatação surgiu a partir da análise do registro audiovisual do Projeto Mediato, associada à
leitura dos teóricos e principalmente da minha memória como mediadora em galerias de arte.
A dilatação vai se configurar a partir de algumas possiblidades, dentre as quais elenco: a
produção de narrativa; o estreitamento das relações entre real e ficcional; e a produção de
semelhança. Para discorrer sobre essas possibilidades tomo por base o conceito de narrador
desenvolvido por Walter Benjamin (1994) e a personagem G.H. de Clarice Lispector (1995);
assim como o conceito de ficção presente em Rancière (2012) e Biange Cabral (2012).
Este mesmo capítulo surgiu de um exercício de produção de semelhança entre a
mediação, a narrativa da personagem G.H. de Lispector (1995), e a experiência do olhar em
Didi-Huberman (2010). Com essa aproximação pretendo explicitar a importância da criação
de narrativas dentro dos processos de mediação, assim como aproximar a própria mediação
do conceito de narrativa presente em Benjamin (1994). Pretendo também, a partir de
semelhanças encontradas entre a personagem G.H. e os escritos de Didi-Huberman sobre a
relação entre olhante-olhado, desfiar um entendimento para o que se chama experiência
estética na arte, por meio de uma reflexão sobre a posição do sujeito na experiência. Por fim,
este lugar encontrado para o sujeito da experiência será também o lugar da mediação.
O último momento do capítulo 2 demonstra como o Projeto Mediato não contemplou
totalmente minha atual ideia de mediação. Isto é, identifiquei ao longo da análise que a noção
de mediação defendida nesta pesquisa não foi a mesma que conseguimos realizar na prática.
Pondero sobre o lugar da fala na mediação, refletindo sobre os limites de um direcionamento
ideológico, bem como aponto para certo distanciamento dos propósitos da mediação, o que
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possivelmente impossibilitou a experiência e a dilatação. Para auxiliar a análise lanço mão
de uma crítica à arte feita por Rancière (2012): quando a política está no conteúdo e não na
estética; e a transponho para as ações mediadoras. Retomo Bondía (2015) quando fala do
par informação-opinião como responsáveis pelo declínio da experiência. E tomo parte dos
escritos de Virgínia Kastrup (2004; 2005) com seu conceito de aprendizagem inventiva.
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1 SITUANDO O OBJETO DE PESQUISA – PROJETO MEDIATO E OUTROS
CAMINHOS
Conforme dito apresentarei neste capítulo o objeto de pesquisa – o Projeto Mediato
– analisando as etapas que antecederam as mediações propriamente ditas: seleção de equipe
e treinamento (que chamarei aqui de aquecimento); parceria com as escolas e encontro com
professores; concepção do caderno de mediação; e espetáculo. Para isso farei uso do registro
audiovisual do Projeto (2014) e de entrevistas realizadas em 2015 com estudantes e
professores (as) participantes das ações. Em seguida, apontarei para outros caminhos, isto é,
projetos e pesquisas em mediação, com vistas a situar a atual escrita. Elencarei distintos
trabalhos que mantêm de semelhança entre si a mediação e o teatro para apontar o Mediato
como possibilidade. Dessa forma, não se trata de um levantamento catalogal; mas de uma
abertura do olhar para outras formas de compreender e praticar a mediação.
Antes de adentrarmos no Mediato e em outros trabalhos introduzo o termo mediação
e falo brevemente de seu contexto de surgimento. Para tanto, aproprio-me da contribuição
das pesquisadoras Ana Mae Barbosa (1994; 2009) e Rejane Coutinho (2009) nas Artes
Visuais, bem como dos pesquisadores Flávio Desgranges (2002; 2008; 2010; 2011) e Maria
Lúcia de Souza Barros Pupo (2011) nas Artes Cênicas.
Segundo a principal referência de mediação em teatro no Brasil, Flávio Desgranges
(2011), as pesquisas a respeito da importância da formação de espectadores vêm tomando
corpo nos últimos anos em todo o mundo. Para o autor há dois fatores que sustentam essas
investigações e apontam para a importância das práticas pedagógicas: primeiramente “a
relevância da educação dos indivíduos tendo em vista uma sociedade espetacularizada, que
solicita um olhar atento e aguçado para enfrentar a enxurrada de signos aos quais estamos
expostos diariamente”. Em segundo lugar, mas não menos importante, “a necessária
participação do público no próprio desenvolvimento da arte teatral, já que não se pode
conceber que esta arte avance e trave um diálogo produtivo com a sociedade sem a
participação dos espectadores, integrantes fundamentais do evento teatral”
(DESGRANGES, 2011, p. 154).
A mediação consiste em ações pedagógicas (incluindo recursos pedagógicos) que
objetivam criar um ambiente fértil para as possíveis relações entre arte e público. Pretende
em médio prazo gerar o desejo pelo retorno, para que o espectador, a partir de uma
experiência com a obra, sinta-se estimulado a buscar outras experiências estéticas. E aqui só
20
se pode falar de possibilidade, tendo em vista dois fatores: a não garantia de efetivar uma
experiência e sua incomensurabilidade. A mediação é comumente direcionada ao público
pouco familiarizado com o meio artístico, seja ele da Dança, das Artes Visuais, das Artes
Cênicas, dentre outros. Por isso, os estudantes (crianças, jovens e adultos) formam o público
mais frequente de projetos de mediação.
Para Desgranges (2010, p. 79) as ações mediadoras podem estimular o espectador a
criar seu percurso em diálogo com a obra formulando suas próprias perguntas a ela, tais
como: “De que problemas trata esse espetáculo? Que símbolos e signos o artista utiliza para
abordá-los? Eu já vi algo parecido? De que outras maneiras essa ideia poderia ser encenada?
Como eu faria? De que modo isso se relaciona com minha vida?”. Ou seja, ações são
desenvolvidas com vistas a estimular a autonomia do espectador no caminho ao encontro da
obra e de si próprio. Além disso, almeja-se que a complexidade dos códigos estéticos de uma
obra (sobretudo da arte contemporânea) possa gerar mais prazer e contribuir para um
mergulho sensível, autônomo e crítico, ao invés de provocar distanciamento, levando o
espectador a perder o interesse pelo que está vendo; e de forma mais trágica desejar não ter
outra “experiência” como aquela. Destaco o termo justamente por conotar neste caso uma
anti-experiência.
Ao mesmo tempo, a mediação pode desenvolver a sensibilidade para captar e
perceber as nuanças qualitativas das coisas ao nosso redor. Ou seja, sensibilizando não
apenas para ver arte, mas também para ver o mundo. Portanto, em um sentido mais amplo,
atividades pedagógicas associadas à experiência estética ambicionam favorecer o processo
de construção crítica da interpretação de imagens, que extrapolam o ambiente artístico, ao
possibilitar ferramentas e conceitos de interpretação que se ampliem para o cotidiano social
do espectador. Dessa forma, pensar em mediação é pensar em educação dos sentidos para a
vida, é instigar o educando a vislumbrar a multiplicidade dos modos de leitura das coisas do
mundo. Cabe apontar que os termos interpretação e leitura não se restringem ao desvendar
códigos pré estabelecidos, diz respeito mais ao transitar por camadas diferentes que são
inventadas e recriadas incessantemente. Conforme veremos adiante, a interpretação está
mais próxima da alegoria. Como um outro dizer, a alegoria se coloca na essencial abertura,
sempre em processo e evidenciando sua precariedade, ela nasce e renasce somente dessa
fuga perpétua de um sentido último (GAGNEBIN, 2013).
Pensar práticas pedagógicas de mediação exige também o estabelecimento de
relações horizontais durante suas investigações. Rancière (2012, p. 14), com a lógica da
21
emancipação intelectual – conceito que ele recupera do pedagogo francês Joseph Jacotot
(1770-1840) – proclama a igualdade das inteligências, o que “não significa igual valor de
todas as manifestações da inteligência, mas igualdade em si da inteligência em todas as suas
manifestações”. A igualdade reside justamente na existência de inteligência. Sua
manifestação, contudo, se dá de forma múltipla. Em um outro trecho podemos compreender
melhor essa lógica quando o autor a transpõe para a relação com o espectador.
[O poder comum aos espectadores] é o poder que cada um tem de traduzir à sua
maneira o que percebe, de relacionar isso com a aventura intelectual singular que
o torna semelhante a qualquer outro, à medida que essa aventura não se assemelha
a nenhuma outra. Esse poder comum da igualdade das inteligências liga
indivíduos, faz que eles intercambiem suas aventuras intelectuais, à medida que
os mantém separados uns dos outros, igualmente capazes de utilizar o poder de
todos para traçar seu caminho próprio (RANCIÈRE, 2012, p. 20-21).
Há uma lógica que deve ser evitada na mediação: a da transmissão de um saber ou
de uma capacidade. Para Rancière (2012, p. 18) nessa lógica “o que o aluno deve aprender
é aquilo que o mestre o faz aprender. O que o espectador deve ver é aquilo que o diretor o
faz ver”. E diz ainda, “a essa identidade de causa e efeito, que está no cerne da lógica
embrutecedora, a emancipação opõe sua dissociação. É o sentido do paradoxo do mestre
ignorante: o aluno aprende do mestre algo que o mestre não sabe.” Segundo o autor, na lógica
da emancipação há sempre uma terceira coisa estranha a ambos, cujo sentido nenhum deles
possui – e não um saber, sabido pelo mestre e ignorado pelo ignorante, a ser transmitido.
Essa relação de causa e efeito baseia-se em um princípio desigualitário para o filósofo
porque está calcada “no privilégio que o mestre se outorga, no conhecimento da ‘boa’
distância e no meio de eliminá-la” (RANCIÈRE, 2012, p. 18). Mas
A distância que o ignorante precisa transpor não é o abismo entre a sua ignorância
e o saber do mestre. É simplesmente o caminho que vai daquilo que ele já sabe
àquilo que ele ainda ignora, mas pode aprender como aprendeu o resto, que pode
aprender não para ocupar a posição do intelectual, mas para praticar melhor a arte
de traduzir, de pôr suas experiências em palavras e suas palavras à prova, de
traduzir suas aventuras intelectuais para uso dos outros e de contratraduzir as
traduções que eles lhe apresentam de suas próprias aventuras (RANCIÈRE, 2012,
p. 15).
Dessa forma, a mediação não está calcada em uma lógica embrutecedora, de causa e
efeito, de algo a ser transmitido, na qual o espectador deve compreender o que supostamente
o/a artista diz. Mas em ações que pressuponham a emancipação, cuja lógica reside na
existência de uma terceira coisa estranha a mediadores e espectadores, implicando em
relações horizontais. A mediação é o ambiente favorável para que cada espectador exerça de
22
forma própria um poder, que é comum por ser possível a todos, traduzindo a sua maneira o
que percebe – seja com fala, gestos, escrita, imagens.
Em última análise “é considerado procedimento de mediação toda e qualquer ação
que se interponha, situando-se no espaço existente entre o palco e a plateia, buscando
possibilitar ou qualificar a relação do espectador com a obra teatral” (DESGRANGES, 2010,
p. 65). Neste caso, para o autor a mediação envolve tanto o “acesso físico” do público às
salas de espetáculo (transporte, ingresso, etc.) quanto as atividades pedagógicas com vistas
a certa apropriação da obra por parte do espectador, isto é, o “acesso linguístico”.
Cabe aqui dois apontamentos: no caso desta pesquisa a mediação será compreendida
exclusivamente como o segundo tipo de acesso; e neste trabalho a mediação será
conceitualmente localizada como dilatação, podendo acontecer antes do contato com o
espetáculo – dilatando os sentidos para a experiência, como uma espécie de sensibilização
prévia – e após – dilatando a própria experiência estética.
Desgranges (2008, p. 76) parafraseando Roger Deldime, define mediação como
“qualquer ação que ocupe o que por alguns autores é chamado de terceiro espaço, aquele
existente entre a produção e a recepção”. Glauber de Abreu (2015, p. 62), por sua vez,
compreende esse terceiro espaço como a condição “segundo a qual a instância da mediação
não está contida nem na obra nem no público, mas contém os dois”. E acrescenta:
Se ela [a mediação] é um terceiro espaço, divide com a arte seus anseios – e
também o faz com o público. Não há necessidade; há aproximações possíveis. A
mediação não é uma necessidade; é uma possibilidade. A mediação não encerra;
ela abre. Fechá-la como necessidade é reduzir o próprio valor da arte e de sua
capacidade de gerar experiência, singular, subjetiva, reflexiva. (ABREU, 2015, p.
132)
Penso com Abreu que em mediação não falamos em “tem que haver”, mas sim, em
“pode haver”. O autor explicita o entendimento acima em decorrência de um episódio em
que foi surpreendido com o diretor de um espetáculo afirmando “minha peça não precisa de
mediação”. Tanto nas galerias de arte quanto no campo das artes da cena ainda nos
deparamos com curadores e diretores que prescindem do nosso trabalho justamente por
desconhecê-lo, compreendendo-o equivocadamente como ferramenta explicativa – o que a
aproximaria da lógica embrutecedora e não da emancipação intelectual proposta por
Rancière (2012).
Em que contexto surge a mediação?
23
Rejane Coutinho (2009) afirma que na década de 1950 os grandes museus possuíam
em seus setores educativos atividades de ateliê oferecidas ao público, mas não havia
necessariamente relação com a exposição, nem com as visitas. Participava dessas ações um
público iniciado, que tinha interesse direcionado para a arte. A autora diz que o tipo de visita
(guiada) que tradicionalmente acontecia nesses espaços era pautada em um modelo que
pressupõe um discurso unilateral e legitimador que afirma o lugar da obra e do artista no
mundo da arte e “exclui desse círculo fechado o sujeito que busca se aproximar, sobretudo
o leigo, pois é um discurso pautado nos códigos instituídos do mundo da arte, em especial o
código da tradição erudita que pressupõe uma iniciação” (COUTINHO, 2009, p. 172).
Embora nos anos 1950 já houvesse iniciativas, apenas na década de 1990 o museu
passa a assumir e explicitar o seu papel educativo e a sua dimensão pública (BARBOSA;
COUTINHO, 2009). Segundo Ana Mae Barbosa (2009) a atenção dada aos setores
educativos de museus aumentou consideravelmente nos anos 90 em função de um maior
desenvolvimento da consciência social. Os museus perceberam que as escolas são o público
mais numeroso e, portanto, inflam as estatísticas, mostrando grande número de visitantes
aos patrocinadores. A autora aponta ainda, de forma crítica, que em alguns casos o setor
educativo acaba funcionando exclusivamente como animação cultural, com jogos
superficiais, que não tem o objetivo de desenvolver a percepção, mas apenas entreter. O que
ela chama de “lantejoulas das elites para o povo” (BARBOSA, 2009, p. 18).
No mesmo viés Coutinho (2009) confirma que na década 1990 os museus e centros
culturais passam a ter uma visitação maior o que demanda pensar na recepção desse grande
público (heterogêneo) que passa a frequentar esses espaços. Isso coincide com as
megaexposições e com o marketing cultural das instituições que buscam gerar número de
público tendo “como bandeira a democratização do acesso aos bens culturais”. A
pesquisadora diz ainda que “toda essa efervescência cultural produz modificações nos
espaços de circulação e recepção, assim como nos espaços de produção da arte”
(COUTINHO, 2009, p. 172-173).
A Abordagem Triangular – que consiste basicamente em conciliar o apreciar, o fazer
e o contextualizar em arte – elaborada por Ana Mae Barbosa entre 1987 e 1993 no Museu
da Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), vem também responder
às inquietações que surgiram nessa época (BARBOSA, 1994; COUTINHO, 2009). A partir
de então passa-se a pensar a educação em museus para além do ateliê e/ou das visitas
guiadas, que muitas vezes reproduziam o discurso de historiadores, curadores e críticos,
24
evidenciando o museu como espaço de experiência e educação estéticas. Segundo Coutinho
(2009, p. 173) de proposta voltada exclusivamente para o desenvolvimento de habilidades
artísticas, amplia-se “para um ensino articulado em que a arte como conhecimento, como
expressão e cultura deve ser considerada em seu contexto de origem e de recepção com suas
vinculações sociais, econômicas e políticas.”
Ambas autoras concordam ainda que no Brasil a questão da mediação cultural
recentemente vem sendo alvo de experimentações e pesquisas em consonância com as
transformações contemporâneas da arte e da arte-educação. Eu estenderia essa afirmação
para as Artes Cênicas, pois é perceptível que ações mediadoras voltadas às artes do corpo e
do espetáculo vêm se difundindo e ampliando suas possibilidades e modalidades. Flávio
Desgranges em seu livro A Pedagogia do Espectador (2010, p. 45) afirma que
Desde os anos 1960 até meados de 1970, artistas e educadores, movidos pela ideia
de democratização cultural, estruturaram variadas práticas destinadas à ampliação
social e geográfica do público de teatro, quanto à difusão da experiência artística
em geral. Essas iniciativas se efetivaram com grande vitalidade em países
europeus, como França, Itália, Bélgica e Portugal; realizaram-se importantes
movimentos também em outros países, como Estados Unidos e, também, Brasil.
Adiante o autor diz que nos anos 70 e 80 já havia, de forma esporádica, práticas de
animação teatral em escolas do Brasil. O conceito de “animação teatral” nasce na França,
segundo o pesquisador, e visa a formação de crianças e jovens espectadores. Cabe diferenciar
que o termo “animação cultural” utilizado por Ana Mae Barbosa anteriormente não tem
relação com a animação cultural ou teatral francesa. A primeira se refere a uma expressão
pejorativa para designar atividades meramente de entretenimento, que tomam o lúdico como
fim; próximas a animação de festas, disfarçadas de ações pedagógicas e que muitos centros
culturais adotam como marketing. A segunda diz respeito às mais variadas ações educativas
com o intuito de mediar a relação entre as Artes Cênicas e os espectadores, sobretudo o
público infanto-juvenil.
Nos países citados acima a tendência foi de profissionalização das companhias de
teatro e subsequentemente de uma “organização duradoura de projetos de formação,
substituindo iniciativas sazonais por uma educação permanente de espectadores”
(DESGRANGES, 2010, p. 64). De forma complementar, no Brasil, houve regionalmente
grupos de teatro realizando ações permanentes – não necessariamente mediações – mas um
trabalho que foi efetivamente a condução para uma formação de plateia própria. O Galpão
Cine Horto é um exemplo. Trata-se de um centro cultural criado em 1998 pelo grupo de
25
teatro Galpão em Belo Horizonte-MG e consiste em “um espaço aberto à comunidade,
comprometido com a pesquisa, a formação, o fomento e o estímulo à criação em teatro”.5 O
centro agrega em sua programação ações voltadas a artistas e ao público em geral, sobretudo
aos professores de teatro.
Pensando uma perspectiva pedagógica na relação espectador e contemporaneidade
Desgranges (2002, p. 223) diz que a arte moderna e mais explicitamente a arte
contemporânea exige do espectador uma coautoria.
Os artistas modernos promovem, assim, a pluralidade interpretativa, construindo
uma obra de arte aberta, elaborada tendo em vista a necessária participação do
espectador, instaurando uma forma artística em que o espectador se tornaria co-
autor da obra. [...] A arte contemporânea, por sua vez, [...] vai levar ao extremo
esta proposição de autoria feita ao espectador, de maneira que não só a significação
fica ao seu encargo, mas, em certo sentido, a própria ‘escritura’ artística.
Certamente os penetráveis de Hélio Oiticica da década de 60 e o Teatro Oficina com
José Celso Martinez Correa na mesma época, por exemplo, nos falam de uma outra relação
arte-espectador, e, a meu ver, encarnam certa invenção de sentidos por parte dos
espectadores, explicitando sua participação no fazer compartilhado da obra.
O que Desgranges (2002, p. 227) levanta é o caráter pedagógico do próprio teatro
contemporâneo considerando seu valor performativo. Pois ao propor ao espectador que
invente seus sentidos a partir do que lhe é proposto – nas palavras do autor como “contra-
lances inesperados” e “jogadas inventivas” – o teatro já estaria de certa forma exercendo um
papel pedagógico. Contudo, essa perspectiva – de produções modernas e contemporâneas
pensadas pela via da recepção e da pedagogia – pode versar sobre o contexto de ampliação
de ações mediadoras voltadas para as Artes Cênicas. Ou seja, é possível conceber que a
mediação tenha se intensificado em função de uma demanda dessa outra relação com a arte.
Maria Lúcia Pupo (2011) considera que projetos de ação cultural e artística em
campos que variam de casas de cultura até prisões, que abraçam iniciativas de ação no campo
do Teatro, da Dança, do Circo e da Performance, apresentam de maneira recorrente a
mediação como termo chave. E afirma, em consonância com as pesquisadoras das Artes
Visuais acima mencionadas, que o surgimento da mediação tem relação direta com o
movimento de democratização da cultural. “Embora a noção de mediação cultural ou
artística certamente apresente superposições com a preocupação educacional, o termo
5 Disponível em <http://www.grupogalpao.com.br/?page_id=23> Acesso em 02 de março de 2016. Mais
informações no site oficial < http://galpaocinehorto.com.br/>
26
emerge dentro de uma outra filiação. Ele designa o modus operandi do ideário da chamada
democratização cultural” (PUPO, 2011, p. 114).
Tendo em vista que não interessa a esta pesquisa encontrar a gênese da mediação nas
Artes Cênicas nos basta aqui esta breve localização contextual a respeito do campo da
recepção, tanto no museu quanto no teatro, cujas conjunturas podem ter contribuído para o
surgimento de ações mediadoras. Assim, seja como inspiração de um modelo europeu, seja
como uma apropriação das Artes Visuais (como foi o meu caso), ou ainda, por uma legítima
necessidade de estreitar os laços entre obra cênica e espectadores, procedimentos
pedagógicos com vistas a mediar a relação espectador-obra estavam sendo criados,
apropriados, testados em distintos Estados brasileiros há algumas décadas. Por conseguinte,
hoje temos um crescente de projetos e pesquisas na área (apresentarei quatro delas adiante)
que legitimam cada vez mais a relevância dessa prática.6
1.1 Projeto Mediato7
O Projeto Mediato – materialização de um desejo que nasceu durante o trabalho
realizado no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Brasília-DF com o Programa
Educativo de Artes Visuais – foi inspirado em três modelos. Primeiramente no Programa
Educativo do CCBB Brasília idealizado e desenvolvido por Renata Azambuja e Marília
Panitz e posteriormente por esta, juntamente com Carlos Silva. Tal inspiração se deu mais
em um plano ideológico e menos no formato: os três professores/coordenadores defendiam
uma mediação provocativa, desenvolvida em sua maioria por questionamentos que
instigassem o olhar e levassem o público a um processo de reflexão e construção de sentido
sobre o que estava sendo observado.
Havia um distanciamento explícito da clássica figura do guia de museu, pois este
concentra seu esforço no ato informativo, enquanto o mediador utiliza as informações como
parte de um processo educativo construído em conjunto com o público, incentivando-o a
recriar a obra. Como afirma John Dewey (2010, p. 137) para que o objeto seja compreendido
como obra de arte é necessário um ato de criação por parte do público, pois o “artista
escolheu, simplificou, esclareceu, abreviou e condensou a obra de acordo com seu interesse.
6 É importante esclarecer que aponto o contexto de surgimento da figura do mediador exclusivamente no Brasil
e de acordo com pesquisadores brasileiros. Para ampliar o entendimento sugiro o próprio Flávio Desgranges
com seus três livros e a autora Maria Lúcia de Souza Barros Pupo com os artigos “Para alimentar o desejo de
teatro” e “Mediação artística, uma tessitura em processo” (devidamente referenciados ao final deste trabalho). 7 O cronograma completo do Projeto, com detalhamento das etapas, pode ser verificado no apêndice A.
27
Aquele que olha deve passar por essas operações, de acordo com seu ponto de vista e seu
interesse.” E apesar das investidas da instituição afim de um viés de animação cultural, o
Programa Educativo, sob a coordenação dos referidos professores manteve seu ideal de
mediação em harmonia com os princípios pedagógicos defendidos desde o início.
Como forma de alimentar esse perfil de mediação os coordenadores mantiveram um
treinamento precedente à mostra expositiva que contava com a leitura de textos de filósofos,
teóricos, educadores, artistas e curadores que tivessem relação com a exposição, além de um
palestrante convidado. Existia ainda, sempre que as circunstâncias permitiam, um encontro
com o(s) artista(s) e/ou curador da mostra. Vale ressaltar que a seleção da equipe de
mediadores levava em consideração a variedade em áreas de conhecimento: havia
mediadores estudantes e formados em cursos de Artes Cênicas, Artes Visuais, História,
Museologia, Antropologia, Sociologia, Moda, dentre outros. Isso proporcionava ao
treinamento um ambiente extremamente fértil em troca de conhecimentos.
O treinamento culminava na elaboração dos “percursos de mediação”, que
consistiam na escolha de algumas obras e no desenvolvimento de estratégias para visita, bem
como de uma possibilidade de oficina a ser realizada antes, durante ou ao final da mediação.
Em outras palavras, era o momento de pensar a prática: o que e como seria feito. Muitas
vezes o percurso era elaborado a partir de um tema (presente na exposição) que servia de fio
condutor, criando uma trama entre as obras selecionadas para a visita. Cabe apontar que o
formato do Programa Educativo até aqui explicitado, não é exclusividade da região ou da
referida Instituição Cultural, trata-se da construção de alguns anos de pesquisa e trabalho,
que as Artes Visuais têm realizado em museus e galerias de arte no Brasil, inclusive em
diálogo com outros países.
Além das questões ideológicas, do treinamento e dos percursos (que chamo aqui de
planos de mediação), o material educativo desenvolvido no CCBB Brasília foi mais um
objeto de admiração e apropriação. Ele deu origem ao caderno de mediação do Projeto
Mediato que manteve uma lógica e estrutura semelhantes: material impresso contendo a(s)
obra(s) de arte e provocações que levassem o leitor a refletir sobre ela(s) em relação com seu
cotidiano.
O segundo projeto inspirador, mais na forma que no plano ideológico, foi “Na trilha
dos azulejos” desenvolvido pela Tríade - Patrimônio, Turismo e Educação em parceria com
a Fundação Athos Bulcão. A ação acontece em três momentos, em dias distintos, nomeados
de aquecimento, aula passeio e oficina de criação. O primeiro e o terceiro momento
28
acontecem dentro da escola, em sala de aula, enquanto o segundo se constitui como uma
trilha por algumas obras do artista Athos Bulcão integradas em espaços arquitetônicos de
Brasília. A possibilidade de dilatar o tempo da vivência em três dias – diferente do CCBB
que permitia um encontro de duas horas no máximo (desde a recepção até a despedida da
turma) – foi o objeto de interesse, do qual me apropriei.
Ao mesmo tempo, verifiquei a partir de Desgranges (2010; 2011) que o formato de
mediação antes, durante e depois do espetáculo não era algo novo, mas efetivamente
experimentado no Brasil desde a década passada com o Projeto Formação de Público (em
São Paulo), e fora do país há muito mais tempo. Durante esta pesquisa descobri, ainda, que
desde 1996 na Bahia esse formato foi utilizado, também com escolas, no projeto Cuida Bem
de Mim. Os referidos trabalhos serão detalhados ao final deste capítulo.
A terceira, porém, não a última inspiração se deu com o convite do coordenador
pedagógico Glauber Gonçalves de Abreu para participar da ação formativa do Festival de
Teatro Brasileiro (FTB) em 2012, que trouxe a cena gaúcha para o Distrito Federal.
Idealizado pelo produtor do festival Sérgio Bacelar, o projeto educativo consistia em três
momentos: pré-espetáculo, espetáculo e pós-espetáculo; e se configurou como minha
primeira incursão no universo da prática em mediação para as Artes Cênicas propriamente
ditas. Sobretudo com a almejada possibilidade de ampliar a vivência para o âmbito escolar
durante três dias.
O FTB foi decisivo na constituição do Mediato principalmente na inserção de um
momento exclusivo com o corpo docente da escola que antecedesse a mediação com os
estudantes. A necessidade do diálogo com os professores surgiu de uma observação feita
dentro das instituições escolares quanto ao envolvimento das mesmas no projeto FTB. Os
professores cediam suas aulas para uma atividade da qual não tinham conhecimento; acredito
que por falta de comunicação entre estes e a coordenação ou direção da escola (que havia
recebido o convite). Se os professores não tinham conhecimento sobre as atividades,
consequentemente os estudantes não apenas desconheciam como demonstravam
desinteresse. Alguns inclusive deixaram de ir à escola durante as atividades, o que pude
observar exclusivamente no noturno, na Educação de Jovens e Adultos (EJA).
O desconhecimento desse profissional prejudicou o andamento das atividades e
minou a possibilidade de repercussão, ou seja, de continuação após a saída dos mediadores.
O professor é uma figura chave para que a mediação aconteça. Se ele estiver comprometido
pode estimular a turma para receber o projeto; bem como dar continuidade dentro de sua
29
respectiva matéria. Se a vivência no CCBB denunciava a necessidade de uma parceria com
os professores; no FTB houve a decisão de encontrá-los, apresentar-lhes a mediação e
convidá-los para caminhar em conjunto.
Assim, foi idealizado o Projeto Mediato, que estimava atender duas mil pessoas entre
estudantes e professores, de quatro escolas do Ensino Médio da Secretaria de Estado de
Educação do Distrito Federal, nas seguintes Regiões Administrativas: Ceilândia, São
Sebastião, Brazlândia e Gama. A escolha das regiões partiu dos critérios de localização, ou
melhor, distância física da capital e vulnerabilidade social de acordo com tabela
disponibilizada em 2013 pelo Fundo de Apoio à Cultura da Secretaria de Estado de Cultura
do Distrito Federal (FAC-SeCult), órgão financiador do Projeto. Cabe reiterar que o fato de
haver uma seleção pública, cujo objeto abrangia especificamente a mediação em Artes
Cênicas, é um grande avanço nas políticas públicas do DF.
O plano de trabalho compreendia: realizar nove apresentações do espetáculo Da
janela (que será descrito adiante) nas regiões escolhidas (oito no período diurno e uma no
noturno), seguidas de bate-papo com artistas; desenvolver as mediações pré e pós-espetáculo
com as turmas selecionadas; promover encontros com o corpo docente das escolas que
acolheriam o Mediato; confeccionar e distribuir para os participantes dois mil cadernos de
mediação; e manter rede social (Facebook e blog) ativa como ferramenta de divulgação e
diálogo com os participantes.
A contrapartida social (exigência para o financiamento público) consistia em realizar
oficina básica de artes cênicas, de aproximadamente doze horas, em três das quatro escolas
– o que se deu por meio de inscrição para os estudantes interessados, no contra turno escolar.
Bem como disponibilizar ingresso e transporte para levar uma turma de escola pública (não
participante da mediação) ao teatro. As atividades foram realizadas conforme planejado. Sua
eficácia, contudo, vem sendo observada por meio desta pesquisa.
Algumas perspectivas conceituais mudaram da escrita do Projeto em 2013 para sua
execução em 2014, e sobretudo durante a atual pesquisa. Inicialmente entendia por
“experiência estética” o contato dos estudantes e professores com a arte/manifestação
artística; e por “mediação”, o desenvolvimento de atividades pedagógicas e os
desdobramentos possíveis antes e a partir da experiência no intuito de explorar a relação
plateia-teatro. A fronteira que criava tal segmentação foi sendo diluída ao longo desta
pesquisa; o que será explorado no próximo capítulo. Atualmente compreendo esses dois
espaços imbricados, e a própria mediação como (dilatação da) experiência estética.
30
O nome do Projeto “Mediato – Formação de Espectadores” também foi visto sob um
novo olhar. A expressão “formação de espectadores”, altamente questionável considerando
as noções que serão trabalhadas aqui, hoje é repensada e transposta à ideia de diálogo com
espectadores. A palavra “mediato”, ao contrário, sintetiza algo próprio à mediação: de ser
um intervalo necessário; de ser intermediária, que não se liga a determinada coisa senão por
intermédio de outra. Igualmente, o termo foi escolhido pela junção das palavras mediação e
ato, fazendo referência às manifestações cênicas.
Na sua idealização o Mediato se preocupou com o que Flávio Desgranges (2011, p.
159) chama de acesso físico do espectador ao teatro – “apresentações em localidades
periféricas e facilitação de transportes”, por exemplo – e o acesso linguístico que seria “o
estabelecimento de condições pedagógicas que estimulem o espectador a efetivar uma leitura
crítica, coerente e criativa da obra teatral”. Para o autor a mediação deve compreender
“atividades que despertem nos participantes o gosto pelo teatro, o desejo do gozo estético, a
vontade de conquistar o prazer da autonomia interpretativa em sua relação com o espetáculo”
(DESGRANGES, 2011, p. 159). E foi com esse entendimento de mediação que idealizei o
Projeto e concebemos (em equipe: coordenação, mediação e supervisão) as ações que seriam
realizadas pelas mediadoras dentro das escolas.
O espetáculo foi apresentado em um auditório ou mini teatro dentro das escolas em
três das quatro regiões. No Gama, exclusivamente, experimentei levar a peça para um teatro
profissional (o Teatro SESC Paulo Gracindo). Essa foi uma diferença radical por dois
motivos: primeiramente agregou qualidade ao espetáculo, com iluminação, acústica, dente
outras especificidades técnicas; e também permitiu que os estudantes conhecessem um
excelente teatro dentro da sua cidade. Para minha surpresa, escassas mãos se levantaram
quando os questionei se conheciam aquele lugar, que vale ressaltar, fica a cerca de dois
quilômetros da escola. Cabe dizer que esse formato não foi mantido nas demais regiões
porque o Projeto não previa verba para transporte e contratação de brigadistas (exigência dos
teatros). No Gama foi mobilizada uma parceria com a Administração Regional, mas pouco
antes do início das atividades, esta disse que não poderia ajudar. Logo, tendo em vista que a
ida ao teatro implicou em gasto extra, optei por concentrar todas as atividades dentro da
escola nas outras três regiões.
As mediações foram concebidas e realizadas da seguinte forma: uma aula dupla, ou
seja, dois horários de 50min, totalizando 1h40min, para as atividades pré-espetáculo; e o
mesmo tempo para o pós. A peça com duração de 50min e um bate-papo, com a atriz e o
31
ator, de 30min. Dessa forma, tínhamos com uma turma cerca de 4h40min ao longo de três
dias, dentro de uma semana. Aqueles estudantes que se inscreveram na oficina oferecida em
horário contrário à aula, se envolveram por mais tempo. Em Brazlândia, contudo, a
sistemática se diferenciou porque apenas o professor de Artes Cênicas disponibilizou suas
aulas, que não eram duplas – os outros docentes se mostraram irredutíveis. Neste caso, o
Mediato se estendeu por duas semanas, proporcionando encontros menores por mais dias.
O pré-espetáculo é a dilatação dos sentidos para a experiência estética. Uma espécie
de sensibilização. Usando as palavras de Maria Beatriz de Medeiros (2005, p. 97) é um abrir
os poros, tornar mais vivo: “um sensibilizar para a aisthesis não instrui nem constrói, apenas
abre os poros comunicacionais do corpo do ser humano. Um sensibilizar para a aisthesis não
forma nem deforma, apenas torna o ser mais vivo, isto é, fluido para a contínua
transformação”. No Projeto era um momento de sensibilização, no qual as mediadoras
introduziam elementos do teatro entrando indiretamente na temática do espetáculo. Isto é,
exploravam o universo ficcional por meio de exercícios teatrais, com vistas a certa
aproximação dos estudantes à linguagem, aproveitando o espaço do jogo para margear
questões que seriam tratadas na peça.
Antes disso, as mediadoras apresentavam o Projeto e o trabalho da mediação,
dialogando com a turma para compreender o contexto no qual estavam inseridas. Por
exemplo, quando questionado sobre o que é mediação um estudante em Ceilândia-DF
respondeu: “ela tem que obrigatoriamente ser feita por uma pessoa, ou ela poderia ser feita
por uma música, por exemplo? Uma vez eu fui no teatro e não entendi nada, aí tinha uma
música, a letra. Aí eu comecei a entender a peça. Essa música poderia ser um meio de
mediação?”8 Com esta fala soubemos que aquele estudante já tinha contato com o teatro e
compreendia em parte qual seria a nossa função ali.
A resposta/pergunta do estudante denota conhecimento e interesse sobre a recepção
teatral. Ao mesmo tempo, a ideia de recepção como entendimento está presente. Entender a
peça, segundo o estudante, seria o ponto mais importante e o objetivo da mediação, neste
caso, feita por meio da música. Caberia descobrir com o estudante o que ele considera
entender um espetáculo. Mas a partir dos diálogos eu diria que o entendimento estaria
diretamente relacionado com o fato de o acontecimento ser significativo para ele. Ou seja, a
8 Os trechos de mediação foram extraídos do registro audiovisual do Projeto. Originais e transcrições parciais
disponíveis comigo.
32
partir do momento que aquela obra passa a fazer sentido, encontrando um referencial interno
no espectador, ele se envolve e cria novos significados.
Cabe ainda fazer um adendo. Destaco a fala do estudante porque ela serviu como
uma mudança de paradigma nesta pesquisa. Antes desse episódio não acolhia a ideia de uma
mediação feita de outra forma que não fosse individualizada. Mas quando o estudante disse
que a letra de uma música do próprio espetáculo mediou sua percepção compreendi que as
margens do que podia ser a mediação estavam muito além do que eu poderia compreender.
Isso justifica, parcialmente, a necessidade de apresentar outros projetos que se utilizem das
ações mediadoras e pesquisas que versem sobre o tema, uma vez que o entendimento
presente nesta dissertação é um dentre tantos outros. E como veremos, um curto tempo com
a plateia antes ou após o espetáculo pode ser decisivamente potente, a depender de como é
utilizado.
O pós-espetáculo, por sua vez, consistia em: um diálogo sobre a obra a partir de
questionamentos semiestruturados, com a utilização do caderno de mediação impresso; bem
como uma produção poética realizada pelos estudantes (geralmente a partir da pergunta “o
que te incomoda?”); e por fim, um bate-papo sobre as produções. A sequência de atividades
tanto antes quanto depois do espetáculo variava, inserindo ou retirando ações, de acordo com
a turma atendida e com o objetivo das mediadoras. Essa mesma sequência foi previamente
concebida e testada durante o treinamento da equipe (o que será detalhado adiante)
culminando nos planos de mediação. Cabe dizer que as ações mediadoras não serão
detalhadas de forma sequencial, inclusive em função dessa variação; uma problemática ou
um tema será levantado dialogando com a análise das ações.
O formato da mediação em três dias distintos, não necessariamente consecutivos, é
interessante como um tempo de tomar fôlego para retomar as atividades, e como convite ao
amadurecimento das ideias. Não seria profícuo convergir, no mesmo dia, as mediações e o
espetáculo, pois se tornaria cansativo, provocando uma reação contrária à esperada. Para
muitos estudantes é o primeiro contato com o teatro; deve-se ter, portanto, o necessário
cuidado na organização das ações e no tempo dedicado a elas.
A distribuição do tempo em vários dias não garante, no entanto, a eficácia contra o
desestímulo. Na escola em que as ações duraram duas semanas, provocando em média 5
encontros por turma (contando com o espetáculo), observamos esse fôlego funcionando às
vezes de forma produtiva, às vezes como motivo de cansaço. Essa variante se dava em
função do envolvimento dos estudantes com as atividades propostas. Quando a mediação
33
não se dispunha ao diálogo tomando a fala de forma exaustiva, por exemplo, ou demonstrava
desorganização e despreparo, ficava nítido o desestímulo: aqueles corpos nas cadeiras e os
celulares sacados explicitavam a indisposição inicial, ou pior, conquistada pela própria
mediação. Um projeto que promete realizar algo diverso da rotina escolar e faz, justamente
o inverso, reproduzindo os padrões, inclusive nas relações de hierarquia, não pode exigir que
os corpos estejam expostos e dispostos. Uma mediação assim se trai e trai também os
estudantes.
Um momento de nítido envolvimento, interesse e diversão foi o de prática corporal.
Motivo de surpresa, pois em determinado momento da concepção do Mediato pretendi
realizar oficinas voltadas às Artes Visuais, como produção de cartazes, por exemplo, ou à
produção literária, como poema, letra de música, etc., excluindo completamente a criação
cênica. Esse pensamento surgiu após conversa com uma integrante do Mediato a respeito
das complicações da inserção superficial e aleatória de jogos teatrais como prática de
mediação. Temi que o curto tempo, e mesmo certo despreparo, conduzisse a prática cênica
para um lugar irrefletido e ensimesmado, onde o jogo pelo jogo não fosse capaz de criar
sentido. Além disso, a produção plástica era um campo confortável, pois eu conhecia o
caminho e possíveis resultados. Temi ainda a não adesão dos estudantes a tais propostas.
Expus esses riscos no treinamento e lá optamos, como equipe, pela experimentação.
A oficina de cartazes9 inicialmente gerou resultados interessantes, estética e politicamente
falando. Mas, definitivamente, foi abandonada, pois os jogos e as construções de cena
ganharam os estudantes. E nisso investimos não apenas pelo explícito interesse do público,
mas pelo resultado que vimos surgir, revelador e de extrema sensibilidade. Do mesmo modo,
a prática cênica permitia aos estudantes a compreensão do trabalho do ator não
exclusivamente pela via do produto (o espetáculo), mas também por meio do processo, pois
os aproximava de um caminho semelhante ao percorrido pelo artista na construção de sua
obra.
Era interessante observar com a prática cênica como a disposição dos corpos no
espaço influenciava diretamente na disponibilidade (nos ânimos). Estudantes sentados em
suas cadeiras, dentro de suas salas de aula, com uma mediadora falando-lhes sobre a
importância de alguma coisa (contraditoriamente de uma abertura do olhar para o diferente,
para o outro); era completamente distinto de estudantes que eram convidados a expressar
9 Imagens da oficina de cartazes, bem como de outros momentos da mediação, podem ser vistas no apêndice
B.
34
com todo o seu corpo o que lhes era proposto. Mesmo os que estavam sentados, observando
os fazedores e aguardando o momento de mostrar sua cena, transpareciam outro estado,
nitidamente diferente dos corpos-receptáculos de informações. Estes, pareciam esmorecidos,
largados nas cadeiras; e iam, à medida que o desinteresse aumentava, sacando seus celulares
e mergulhando nele o olhar, para raramente dele tirar. Inversamente, aqueles outros corpos,
os corpos-espectadores, prestavam atenção ao redor, tomavam parte; o olho e o corpo
olhavam a cena. E eram esses corpos que desejávamos para o espetáculo.
Coloco em evidência a seguir uma observação feita após a realização das atividades
nas quatro regiões. Na escola em que havia apenas aula de Artes Visuais (em Ceilândia-DF),
houve mais recepção das práticas corporais, um verdadeiro encantamento. A fala da
professora de Artes Visuais Verônica Oliveira da referida escola confirma: “[...] pelo fato de
eu não ser de cênicas fica a desejar essa parte. Então, já houve aquela aceitação maior quando
elas [as mediadoras] começaram com este tipo de atividade”. E explica: “Eles [os estudantes]
se sentiram mais livres, fizeram uma atividade diferente daquilo que eles costumam fazer
nas minhas aulas”.10
Em duas outras escolas que ofereciam aulas de teatro (em São Sebastião e
Brazlândia-DF), os estudantes se envolveram parcialmente, muitos afirmavam não gostar de
arte e/ou das aulas de teatro, alguns preferiram ficar como espectador durante os exercícios,
outros não participaram. Isso me fez pensar que as práticas anteriores fizeram com que
aqueles jovens não tivessem interesse pelos jogos.
Na instituição que oferecia aula de teatro (Gama-DF) e que realizamos a oficina de
cartazes no pós-espetáculo contamos com excelentes produções e um envolvimento
significativo (porém não completo) das turmas. A aplicação de jogos teatrais na mesma
escola também teve boa recepção. Alguns estudantes perguntaram se não haveria mais
práticas cênicas e buscaram a oficina de iniciação teatral oferecida paralelamente às
mediações no contra turno escolar.
Dessa forma, o Projeto demonstrou (embora não fosse seu objetivo) que onde não
havia uma prática pedagógica com jogos cênicos eles foram mais eficazes. Tal análise é
pautada nos registros de Ceilândia, São Sebastião e Brazlândia. Todavia, observar a recepção
e os comentários dos estudantes na escola do Gama (cujas ações não foram filmadas), bem
10 Entrevista realizada em Ceilândia-DF, maio 2015.
35
como a atuação do professor de Artes Cênicas, me levou a considerar que os discentes tinham
um bom envolvimento com as práticas corporais naquela escola.
Essa observação pode ser complementada pela perspectiva que Jorge das Graças
Veloso (no prelo), também orientador desta pesquisa, traz acerca de o ensino de teatro, na
educação básica (mas não apenas nela), estar voltado quase para uma formação de atores em
detrimento da formação de espectadores.
Com a ideia de que é imprescindível o fazer, adotou-se a imposição de que a
aprendizagem nas artes do corpo e do espetáculo só se completa com a experiência
da (re)presentação, no sentido de se estar do lado simbólico de palco. Não se leva
em consideração que a experiência da espectação, tão importante quanto a do fazer
a cena, pode ser vivida plenamente sem a necessidade de se assumir o papel de
artista. Até porque, assim compreendo, assistir é também “fazer” teatro.
Talvez a obrigatoriedade do estar em cena e/ou a aplicação despropositada de jogos
teatrais ao longo da vida escolar pode ter repercutido em certo distanciamento de muitos
estudantes do desejo de qualquer prática cênica, mesmo sendo essa prática a de “espectação”.
Pude presenciar alguns participantes do Mediato dizendo que não gostavam de teatro e
suscitavam as práticas de sala de aula para exemplificar e justificar. Outros demonstravam
surpresa, pois não achavam que teatro poderia ser “tão legal”. A fala de uma mediadora em
relatório corrobora essa observação: “em vários colégios em que o Mediato esteve presente,
podemos ouvir vários alunos dizendo que ‘o teatro não era tão chato como eles pensavam’,
que tinha sido uma experiência diferente da rotina deles”. 11
O professor de Teatro do Gama-DF, Ulisses Pereira, afirmou em entrevista,
posteriormente, que o Projeto auxiliou a repensar suas aulas, sobretudo pela perspectiva da
formação de público. “Eu tenho pensando muito nesse aspecto em relação às minhas aulas,
que também foi uma influência do projeto; eu fui bastante influenciado por ele [...] No
sentido do planejamento, de rotinas. E não de formar atores; mas de formar leitores, de
formar público.” O que não significa que o professor concorde com a plenitude da espectação
sem o fazer do “lado simbólico do palco” defendida por Veloso, uma vez que, adiante ele
afirma: “não tem como você dialogar com o teatro, se você não tiver experiência de palco”.12
Ou seja, o professor continua utilizando a prática teatral em sala de aula, mas sob um novo
foco.
11 Relatório realizado ao final do Projeto (setembro de 2014) por todas as integrantes. Originais disponíveis
comigo. Os nomes das integrantes da equipe foram substituídos por outros fictícios para preservar a identidade
das profissionais. O modelo do relatório pode ser conferido no apêndice C. 12 Entrevista realizada em Gama-DF, ago. 2015.
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Quando Veloso fala sobre “a ideia de que é imprescindível o fazer”, está se referindo
à Abordagem Triangular (BARBOSA, 1994) e a sua transposição para o ensino de teatro. O
autor fala da inaplicabilidade de tal proposta para a pedagogia teatral devido à segmentação
que há entre fazer, apreciar e contextualizar e também à certa submissão a outra área de
conhecimento (“ao assumir para si algo tão próprio de outros saberes”). Ou seja as três
instâncias funcionam separadamente dentro das Artes Visuais, área para a qual a abordagem
foi criada; enquanto que nas Artes Cênicas o fazer e o apreciar são compreendidos pelo
mesmo caminho. Isto é, o espectador, ao exercer sua função, aprecia e faz teatro. “Ora, se
não existe o fazer teatral sem a presença mútua dos dois [ator e espectador], o espectador é
também um fazedor. Então, por este caminho, já não teríamos um triângulo, mas uma dupla
abordagem, a do fazer e do contextualizar” (VELOSO, no prelo).
Adiante, para imbricar ainda mais essa triangulação, o autor coloca que o contexto
de produção da obra cênica não se desconecta do momento de apreciação: “nas
configurações do pensamento contemporâneo, não seria também possível uma verdadeira
apreciação da obra artística desconectada do contexto no qual ela foi produzida. Então, em
artes cênicas, a aprendizagem se dá por outros caminhos” (VELOSO, no prelo). Assim, para
o autor, Fazer/Apreciar/Contextualizar em Artes Cênicas se dão simultaneamente.
Abrindo um parênteses caberia refletirmos especificamente sobre a contextualização
(sobretudo na Abordagem Triangular) a partir de um outro ponto de vista, para além do
contexto de produção da obra. Falo do contexto dos estudantes, que não diz respeito apenas
ao temporal, mas de uma contextualização a partir da vivência prévia desses jovens, de tudo
que eles trazem consigo de vivências e expectativas. E este é um lugar rico para a mediação.
Além disso, se considerarmos que o momento de apreciação pode se dar para além do
contexto de produção da obra – tempo e espaço físico haja visto que falamos em dilatação
da experiência – poderíamos dizer que a produção e a apreciação poderiam de alguma forma
se desconectar, tendo em vista exclusivamente os processos de mediação pós espetáculo,
sendo a apreciação mais elástica que a produção.
Sobre esse assunto cabe acrescentar ainda a perspectiva de Rejane Coutinho (2009,
p. 177) que diz ser uma aplicação generalista da Abordagem Triangular o entendimento da
contextualização unicamente da obra. A autora explica: “várias camadas de referências
contextuais se sobrepõem, relacionando-se e interferindo na ação, e devem ser levadas em
consideração no processo de mediação; são elas: as do objeto ou da obra; as dos sujeitos
envolvidos, leitores e mediadores; e as do lugar em que a ação se desenrola”. Certamente
37
estas três camadas são imprescindíveis para qualquer mediação. Embora as mediações
tenham acontecido antes e após o espetáculo, ou seja, fora do momento de produção da obra,
o contexto dos estudantes, da mediadora, da peça e das escolas com suas respectivas
comunidades não foi perdido durante o Projeto.
Ocorre que mesmo com tais observações – considerando que na mediação a
apreciação é mais elástica que a produção da obra; e que a contextualização possui camadas,
nos permitindo pensa-la durante o espetáculo, mas também antes e depois dele – a teoria de
Veloso permanece de extrema pertinência para a análise do Mediato e especialmente para
pensarmos possíveis modalidades de mediação. Pois o que o autor coloca, em última
instância, é uma necessidade de revisão no âmbito dos jogos teatrais e da obrigatoriedade do
fazer, “do lado simbólico do palco”, como recurso pedagógico, sobretudo questionando o
jogo que se completa em si mesmo.
Tendo isso em vista, ao elaborar um plano de mediação é necessário observar em
qual sentido a atividade prática está sendo aplicada e se essa seria a melhor forma de
introduzir, desenvolver, ou mesmo alcançar determinados objetivos. E já que levamos nossa
atenção aqui ao contexto, é indispensável verificar se a turma/escola tem aulas de teatro e
qual a relação dos estudantes com os fazeres da cena, no intuito de verificar se carregam
consigo preconceitos e indisposição – como foi o caso de duas das quatro escolas observadas
– o que, em caso afirmativo, incidiria necessariamente em uma reformulação do plano.
Por fim, a reflexão de Veloso (no prelo) sobre a Abordagem Triangular é importante
também para explicitar uma mudança de entendimento da concepção do Mediato para a atual
análise. Quando escrevi o Projeto usei como base conceitual os princípios do fazer, apreciar
e contextualizar, sendo eles compreendidos isoladamente. Como dito antes, pensava a
experiência estética exclusivamente como o apreciar a obra no momento em que ela está
sendo realizada. Neste sentido, as duas outras pontas do triângulo se dariam com as
atividades mediadoras. Mas a efemeridade e o caráter de encontro que as Artes Cênicas nos
propõem definitivamente me impede de pensar que essas instâncias possam se dar
isoladamente. Cabe ressaltar que não são as práticas da mediação que repenso neste caso, ou
seja, não as mudaria em função deste novo entendimento. Trata-se de uma mudança de olhar,
que hoje compreende, dentro das artes do corpo e do espetáculo, que o fazer, o apreciar e o
contextualizar podem acontecer em todos os momentos: durante o espetáculo e nas
atividades mediadoras.
38
Posto isso, detalho e analiso a seguir as etapas do Mediato que antecederam as
mediações: seleção de equipe e treinamento (que chamarei aqui de aquecimento), parceria
com as escolas e encontro com professores, concepção do caderno de mediação, e o
espetáculo, pelo qual inicio.
1.1.1 Da Janela
O espetáculo foi concebido para o Projeto com foco em um público de jovens
estudantes entre 14 e 18 anos. Não houve indicação de tema ou estética para a sua construção,
apenas de faixa etária. Tendo em vista esse caráter de encomenda pude acompanhar parte do
processo de criação, como forma de alimentar a pesquisa durante a concepção do
treinamento e principalmente do caderno de mediação.
Inspirada na farsa Morte acidental de um anarquista, escrita em 1970 pelo
dramaturgo italiano Dario Fo, o espetáculo, Da janela, criado pelo coletivo Calcanhar de
Aquiles buscou construir um diálogo com acontecimentos de nosso país: a Ditadura Militar
e as manifestações de junho de 2013. Estas se iniciaram com protestos contra o aumento da
tarifa do transporte público nas principais capitais, os quais tiveram inicialmente a
convocatória do Movimento Passe Livre (MPL) com a frase “Se a tarifa aumentar, São Paulo
vai parar!” 13
O texto de Dario Fo faz referência a um fato que ocorreu em 1969 na Itália, quando
uma bomba explodiu na Piazza Fontana, em Milão, provocando a morte de várias pessoas.
Nesta circunstância, um anarquista, o ferroviário Giuseppe Pinelli, foi levado à delegacia,
acusado pelo atentado, e lá supostamente cometeu suicídio, pulando pela janela. Constatou-
se que ele já estava morto antes de “pular”, mas a versão do suicídio prevaleceu.
O ator e a atriz criaram, com o mesmo humor irônico e ácido do dramaturgo italiano,
a peça Da janela. Esta se iniciava com a cena de um telejornal chamado “Sensacionalismo
Geral”, no qual apresentador e repórter discutiam, com opiniões divergentes, sobre uma
manifestação que acontecia nas ruas da capital naquele instante. Um segundo momento se
deu com a adaptação do texto de Dario Fo para dois personagens: uma delegada e um louco.
Este, em determinado momento, passou-se por juiz invertendo a situação em que ele era o
inquirido para ser o inquiridor. Com isso o louco-juiz julgou o processo de um motorista de
13 O registro audiovisual do espetáculo encontra-se no anexo A.
39
transporte coletivo anarquista que supostamente ateou fogo em um ônibus e acabou tendo o
mesmo destino do ferroviário Pinelli: o “suicídio”.
Ao término os artistas propuseram um bate-papo. Este momento consistia
basicamente na revelação das especificidades do fazer teatral, em especial da peça Da janela,
e no compartilhamento de percepções sobre a obra. Segundo um estudante “foi bem
interessante o bate-papo depois do espetáculo, porque todo mundo estava curioso sobre
como é que eles tinham feito, e sobre o que tinha acontecido”. E justifica: geralmente
“acabou a peça, os atores saem, vai se trocar, a gente vai embora; e ai a gente não tem a
curiosidade de saber como é que foi a preparação deles, como é que surgiu aquela peça,
quem fez, como fez, como foi os ensaios, essas coisas assim.”14
A peça conquistou unanimemente os estudantes-espectadores, que responderam com
risos, aplausos calorosos e comentários variados ao final. Embora fosse marcado pelo
exagero, com situações absurdas, o espetáculo mantinha uma narrativa de fácil apreensão.
Havia apresentação de um conflito, desenvolvimento e fechamento com solução; além de
lugares reconhecíveis, como uma delegacia, um estúdio de televisão e uma rua (o que não
significa a existência de cenário naturalista). Apresentava ainda elementos próximos ao
cotidiano dos estudantes, o que permitiu certa empatia, pela via do reconhecimento. A
familiaridade, portanto, já estava dada; o que levou os processos de mediação a se ocuparem
com outras questões que não o preparar para o estranhamento. Essa constatação é importante
para entender a partir de onde penso a mediação proposta neste trabalho. Pois a peça, e a
relação que o público estabeleceu com ela, contribuiu para que eu concentrasse minha
atenção no pós espetáculo.
No caso de obras que apresentam narrativa não linear, caracterizadas pela
desconstrução, com cenas que funcionam isoladamente, mas que podem dialogar (ou não);
nas quais a abstração é predominante, ou que não há personagens e locais reconhecíveis;
neste caso a mediação atua de forma diferenciada. Ela deve se ocupar antecipadamente para
que o estranhamento seja proveitoso, e não motivo de distanciamento. Pode ainda provocar
posteriormente certa aproximação, muitas vezes pela via interpretativa; e também incentivar
a criação, por parte do público, como desdobramento da apropriação anterior.
Essa foi, em muitos casos, minha prática como mediadora ao longo de alguns anos
no CCBB Brasília, dentro do universo das Artes Visuais: primeiramente “contendo o
14 Trecho de entrevista realizada e São Sebastião-DF, em abril de 2015. Transcrição e original disponíveis
comigo.
40
abandono”. Uso aqui uma expressão de Glauber de Abreu (2015) que considera que há
situações em que o espectador pode abandonar a possibilidade de experiência com a obra; e
a partir disso investiga tipos de abandono e cria princípios para contê-lo, colocando a
mediação como espaço favorável para tal. Dessa forma, como mediadora no referido centro
cultural, buscava provocar uma aproximação do que antes poderia parecer estranho, distante,
diferente, feio, ou desinteressante; e posteriormente dilatar uma possível experiência, por
meio de criações poéticas. Quando havia exposições de arte contemporânea o primeiro
movimento (de contenção do abandono) era frequente, pois o choque com a obra gerava um
alto índice de desistência, sobretudo com visitantes de primeira viagem.
Havia ainda outro tipo de distanciamento, além daquele do estranhamento, a ser
contornado no espaço da galeria: era o da idolatria, quando o visitante colocava a obra em
uma redoma simbólica15 chamada Obra de Arte e independentemente dos materiais, do
artista, do que conversássemos ali, e do que ele (público) sentisse, aquela obra ia continuar
sendo intocável, pois ela já havia sido nomeada por alguém (importante) e por isso estava
naquele lugar, o que provocava um imediato distanciamento, atrapalhando, muitas vezes, a
experiência estética.
No CCBB observei também que a preocupação com o estranhamento era recorrente
com determinada faixa etária. As exposições de arte contemporânea geralmente
encontravam mais resistência com jovens e adultos, do que com crianças. Estas dificilmente
apresentavam dificuldade em entender aqueles objetos como arte, ou demonstravam
expectativas com suportes tradicionais. Em contraposição muitos jovens e adultos
esperavam encontrar tinta sobre tela e/ou escultura naquele local, além de apresentar
resistência (em alguns casos indignação), sobretudo com a arte conceitual, minimalista ou
com objetos de arte que utilizavam materiais do nosso cotidiano (como linha, agulha,
talheres, etc). Nestes casos, a mediação se dedicava, antes de qualquer coisa, a familiarizar.
A abertura desse público infantil me fazia refletir sobre a perda de algo que nos era próprio:
a capacidade de se relacionar com as complexidades do abstrato e do simbólico. O que me
leva a pensar na necessidade de incentivar o contato com as artes como parte da rotina escolar
desde a educação infantil, especialmente as artes pertencentes a esse regime estético, e
inevitavelmente, penso a mediação como um caminho possível.
15 Sobre esse assunto ver Maria Beatriz de Medeiros (2005) em seu livro Aisthesis: estética, educação e
comunidades.
41
Enfim, seja um distanciamento por estranhamento ou por idolatria, não me preocupei
com ele durante a execução e atual análise do Projeto Mediato porque a obra, como foi dito,
aproximou o espectador imediatamente, a meu ver, pela via do cômico e do reconhecível.
Se houve um distanciamento, foi de outra natureza, o que tratarei ao final do segundo
capítulo, acerca da empatia ou da antipatia à mensagem política atrelada ao espetáculo e à
fala da mediação.
Por isso, a análise do Projeto me levou a refletir o seguinte lugar para a mediação: o
pré-espetáculo como dilatação dos sentidos para a experiência – sem uma preocupação de
conter o abandono, justamente em função da relação do público com o espetáculo Da janela
(o que não exclui a possibilidade de conter o abandono e dilatar os sentidos
concomitantemente) – e o pós como dilatação de uma possível experiência com o espetáculo.
Para afastar uma hipótese que poderia parecer decorrer das análises anteriores afirmo que a
experiência não está posta, não é aferível, nem controlável, por isso mesmo, falo da dilatação
(e da experiência) estritamente como possibilidade. De tal modo, pressupondo, no pós, que
se houve uma experiência ela pode ser dilatada – mesmo sendo ela uma experiência de
negação, de aversão, de desprazer.
1.1.2 Aquecimento
Parte integrante e de grande relevância para o desenvolvimento do projeto, o
treinamento aconteceu durante duas semanas antes do início das atividades nas escolas, com
encontros de três ou quatro horas, totalizando 32 horas. Consistiu em um período de imersão
teórica e prática, que objetivava dar suporte e material, inclusive metodológico, à equipe
composta por 4 mediadoras e 2 supervisoras. Foi dividido, portanto, em três etapas. Na
primeira, os encontros se davam com prévia leitura dos textos selecionados e com a
apresentação de seminários pelas próprias mediadoras. Na segunda houve a apresentação do
espetáculo seguido de diálogo com o ator e a atriz. A terceira consistia em um planejamento
das estratégias de mediação, era o momento de pensar a prática; de experimentar
possibilidades de exercícios; e, por fim, elaborar os planos de mediação.
Para a primeira etapa elaborei, com o auxílio da diretora/atriz, uma apostila com
textos metodológicos sobre mediação e textos teóricos sobre temas que tinham relação direta
42
com o espetáculo Da janela.16 Neste caso, tínhamos textos sobre arte e política; a respeito
da produção dramatúrgica de Dario Fo; e acerca do referido período histórico brasileiro. A
partir de então, dividimos este material em partes, para que cada integrante ficasse
responsável pela apresentação de um conjunto de textos. Cabe ressaltar que as mediadoras
tinham liberdade de apresentar outras referências (além da apostila) que tivessem relação
com o tema exposto no seminário. Havia também estímulo para que elas provocassem uma
aproximação do tema, pela via das práticas de mediação, com o possível contexto dos
estudantes que atenderíamos.
Na segunda etapa, tivemos o privilégio de ver o espetáculo (e não a filmagem do
mesmo, como era o plano inicial), e conversar a respeito do processo de construção artística.
Falamos sobre as opções para a adaptação do texto dramatúrgico; das escolhas cênicas para
cenário, figurino e encenação de forma geral. A atriz da peça foi também supervisora no
Projeto, o que aproximou ainda mais o universo da mediação ao da obra.
O treinamento culminou na elaboração dos planos de mediação. Este, idealmente,
deveria incluir os temas que seriam abordados; os questionamentos que poderiam ser feitos
aos estudantes para alimentar o diálogo sobre a obra e extrapolar a temática para o cotidiano
deles; bem como as atividades que seriam realizadas, com seus respectivos objetivos. Ao
término desta terceira etapa, tínhamos três planos diferentes que poderiam servir de base,
sendo mesclados e/ou modificados durante sua aplicação. As estratégias elencadas nessa
fase, apontavam para o que, e como, seria proposto no momento pré e pós-espetáculo.
Algumas mediadoras optaram por introduzir diretamente a temática da peça no primeiro
encontro (pré), outras preferiram trabalhar exercícios que beiravam o tema, mas sem falar
dele de forma explícita. Este foi também o momento de levantar materiais que poderiam
auxiliar a mediação: músicas, imagens, objetos, figurinos e texto dramatúrgico.
Talvez ao invés de pensar nos temas que seriam abordados, tivesse sido mais profícuo
pensar de que maneira (como) a mediação poderia estimular os sentidos, auxiliar na
produção de subjetividade e na compreensão da alteridade. Antecipando um pouco as
conclusões do próximo capítulo pergunto-me: será que nossos planos de mediação já
denunciavam o foco conteudista? Será que trabalhar um tema (o da peça) era o melhor
caminho para alcançar os sentidos, a subjetividade e a alteridade? Ou poderíamos tomar estas
16 A bibliografia selecionada para a apostila do treinamento pode ser conferida nas referências bibliográficas.
As que não foram utilizadas diretamente nesta pesquisa encontram-se em referências complementares ao final.
43
três instâncias por objetivo e deixar que os temas surgissem dentro dos diálogos? Refletirei
sobre isso adiante.
Embora mantenha traços que se repetem, a mediação não pode ser sistematizável.
Não há um conjunto de procedimentos a ser seguido para se alcançar determinado resultado.
A não sistematização se deve a sua configuração. Ela acontece por meio do diálogo e da
troca entre uma obra, ou manifestação artística, e pessoas; além disso, a mediação trata de
processos individuais, o que impossibilita prever resultados e criar um conjunto de
procedimentos. Há exercícios e perguntas que se repetem, mas certamente o que é gerado a
partir disso é distinto em cada turma mediada.
Os planos de mediação foram, por fim, experimentados. Cada dupla de mediadoras
apresentou e aplicou suas atividades ao restante da equipe. Esta, por sua vez, ponderou suas
impressões sobre os exercícios e deu sugestões. Com isso pretendíamos debater as ideias
iniciais, avaliar a aplicabilidade e fechar provisoriamente algumas estratégias que serviriam
de base para o início das atividades dentro das escolas. Como era esperado, os planos se
modificaram ao longo do Projeto, sobretudo nas primeiras semanas. As duplas se
mantiveram durante todo o trabalho, pois considerei que as profissionais se sentiriam mais
seguras dessa forma.
Alguns benefícios da liberdade dada às mediadoras para elaborarem seus próprios
planos de mediação eram: a variedade de exercícios propostos; a construção de uma
mediação a partir da temática ou do elemento que elas achassem mais adequado, ou com o/a
qual tivessem mais afinidade dentro do universo trabalhado; por fim, a produção de algo que
fizesse sentido para as profissionais e não que fosse imposto pela coordenação, por mim
neste caso.
Contudo, as ações demonstraram fragilidade em vários momentos, o que será
apontado a seguir com a fala das supervisoras. A problemática central a ser levantada sobre
o treinamento é a sua real eficácia em instrumentalizar as mediadoras para a função a ser
exercida. Um desafio que desponta do Mediato hoje é como evitar que a primeira etapa caia
em um deleite intelectual, ou pior, que a apostila seja proforma: sem leitura e sem o
necessário aproveitamento. E mais urgentemente, como afinar os objetivos e as ações da
equipe para que as mediações não pretendam o informativo, a doutrinação, ou qualquer outro
fim que se oponha a ela própria.
Duas semanas de treinamento é um tempo extremamente curto para dar conta de um
conteúdo vasto; de experimentação de exercícios práticos; e das questões metodológicas.
44
Isso aponta para a importância de uma etapa anterior: a seleção de pessoal. Cabe apontar que
uma dificuldade na constituição da equipe se deu em função de problemas com a adequação
do Mediato ao edital financiador. Não houve possibilidade de realizar entrevistas para a
compor o grupo de trabalho imediatamente antes de iniciar o Projeto, pois o edital exigia
que os profissionais envolvidos fossem indicados no ato da submissão da proposta, mais de
um ano antes da execução. Tendo em vista a complexidade de realizar uma entrevista com
a expectativa de contratação após um ano ou mais, caso o Projeto fosse aprovado, optei por
convidar as mediadoras.
De todo modo, penso que o convite ou a entrevista, deve levar em consideração o
conhecimento e a habilidade em mediação. Caso contrário, corre-se o risco de ter
incoerências dentro da equipe que podem minar o projeto, isso é apontado no relatório de
uma supervisora, que foi também atriz e diretora do espetáculo.
O trabalho ficou muito comprometido pela falta de bagagem teórica da equipe de mediação. Pontos
cruciais que podiam ser desenvolvidos foram negligenciados por não ter havido na seleção da equipe
algum critério que dialogasse com a temática da peça. Por exemplo: a presença de mediadores mais
familiarizados às temáticas da Luta de Classes, do Capitalismo, da Violência de Estado... Atentar a
esse ponto é fundamental, pois essa lacuna compromete todo o trabalho. Desde a mediação até o uso
do material educativo.17
Concordo com a fala acima quando diz que a falha na seleção provoca uma lacuna
que compromete o trabalho. Entretanto, ressalvo que um processo seletivo não deve ter como
critério a bagagem teórica no que diz respeito à temática da peça. Mas sim uma questão mais
ampla, de um repertório em mediação, de um conhecimento que vem pelo exercício da
habilidade. O problema, portanto, residiu na escolha de profissionais que não levou em
consideração o conhecimento e a habilidade em mediação. O conhecimento está relacionado
ao saber e a habilidade ao saber fazer, ou seja, maneiras de dar aplicabilidade ao
conhecimento, e ambas precisam caminhar juntas. Portanto, não creio que seja a falta de
conhecimento sobre violência de Estado ou luta de classes que afetou o desenvolvimento do
Projeto, até mesmo porque há situações em que a equipe pode ser selecionada antes de se ter
conhecimento sobre a temática do espetáculo. Além disso, vale pensar se o objetivo da
mediação pode se confundir com o instruir ou defender acerca de uma temática.
17 Relatório final de supervisão, set. 2014. Para diferenciar a fala dos teóricos e dos participantes do Projeto
farei uso de outra tipografia nas citações longas.
45
1.1.3 Parcerias com a educação formal
A opção pelo ambiente escolar se deu primeiramente por uma apropriação dos
projetos “Na trilha dos azulejos” e a Ação Formativa do Festival de Teatro Brasileiro (FTB),
no que diz respeito ao formato, conforme dito anteriormente. E também por uma questão
estratégica: tínhamos na escola a certeza de encontrar os estudantes reunidos, sem a
necessidade de dispender verba e esforços extras. A escolha do público levou em
consideração a dificuldade que estudantes de escola pública tem de acessar espetáculos, o
que ratifico hoje na minha atuação como docente quando esbarro na problemática do
transporte e do horário dos espetáculos.
A escolha das escolas seguiu os seguintes critérios: ser de Ensino Médio; ter um
auditório para receber o espetáculo; e estar disposta a abraçar as ações. Um dos primeiros
desafios foi encontrar instituições que abrissem as portas e professores dispostos a abrir mão
de suas aulas. Houve escola que se delongou por mais de um mês na resposta e optou pela
negativa. Outra, aceitou, mas, posteriormente retirou o aceite em função de conflitos com
alguns docentes.
Em uma das instituições apenas o professor de artes cedeu seus horários, neste caso
o Mediato tomou um quarto de bimestre das aulas de artes, o que levou o professor a avaliar
formalmente, com nota, as atividades realizadas durante a mediação. Isso ia contra a
mediação, uma vez que os estudantes mostravam, em alguns casos, um franco desestímulo
em realizar as atividades e as faziam para ganhar nota. Do mesmo modo, por desconhecer
os critérios avaliativos do professor, temi que a avaliação desconsiderasse aquele estudante
que não se disponibilizou à exposição do próprio corpo para criar uma cena, mas participou
como fruidor da produção dos colegas e contribuiu com sua construção de sentido.
Além disso, houve momentos em que essa mesma escola usou a equipe de mediação
para ocupar o lugar de um professor ausente, levando ao atendimento de turmas que não
estavam dentro do programado e que não haviam assistido ao espetáculo – o que
descobrimos posteriormente. Antes que se julgue tratar de indisponibilidade da equipe para
atender uma turma, é importante dizer que a problemática central desse tipo de estratégia –
que denuncia a falta de organização por parte da escola – reflete diretamente na disposição
dos estudantes para as ações.
A conversa com o corpo docente das escolas aconteceu aproximadamente uma
semana antes das atividades terem início e foi realizada pela coordenação (função exercida
46
por mim) e pela supervisão. O encontro abordou os seguintes aspectos: 1. Apresentação do
Projeto com as estratégias de ação; 2. A importância do contato com manifestações artísticas
como parte da rotina escolar; 3. Esclarecimento sobre a função da mediadora; 4.
Apresentação do caderno de mediação, inclusive como possibilidade de desdobramento em
sala de aula. Em um segundo momento a mesa foi aberta para perguntas e bate-papo.
Contudo, apenas em uma das quatro escolas (no Gama) houve participação efetiva dos
professores, com perguntas e comentários. Nas outras, enquanto apresentávamos, os
professores continuavam realizando as atividades que comumente eram feitas durante o
horário de coordenação.
O professor Ulisses Pereira (Teatro, Gama-DF) posteriormente ressaltou a relevância
desse encontro: “foi muito interessante o primeiro momento de bater um papo com os
professores. Porque eles se sentiram muito mais seguros diante do projeto e de, incentivar
não, mas até permitir que os alunos participassem por conta de ausência na aula”. E ainda,
“quando você veio à reunião de coordenação e expôs; isso deu uma substância. E tira aquele
estigma de que as coisas em artes são feitas a toque de caixa, e que não tem uma organização,
não tem um planejamento [...] Tem mais coisa aí, não é só levar os alunos para assistir ao
espetáculo.”
Apesar do prévio agendamento do encontro com os professores, houve uma série de
contratempos que comprometeram o desenvolvimento do que havia sido programado. Em
uma escola marcaram outra atividade no mesmo dia e horário com os docentes, o que
diminuiu consideravelmente o tempo do encontro. Em outra ocasião a falta de comunicação
levou a um quórum baixo: a coordenadora ou diretora esqueceu-se de avisar e vários
professores não compareceram, mesmo sendo horário de coordenação.
No momento de organização do encontro com a coordenação da escola, apontei para
a necessidade da conversa não se restringir aos professores de Artes, ao contrário, deveria
envolver todos, sobretudo aqueles que cederiam suas aulas para que a mediação acontecesse.
Ainda assim, a adesão ao Projeto foi frágil. Houve um professor que ameaçou tirar ponto da
média final dos estudantes que não comparecessem à aula em determinado dia, sabendo ele
que era o dia e horário marcado para o espetáculo. Consequentemente tivemos uma turma
que, salvo algumas exceções, não tinha participado de uma etapa decisiva.
Pesquisas realizadas na área das Artes Visuais têm apontado para a importância do
trabalho com o professor, sobretudo antes da visita às exposições de arte. Alguns Programas
Educativos mantém, paralelamente ao agendamento de turmas, cursos, atividades de
47
formação continuada, material de apoio e outras atividades com o objetivo de envolver esse
profissional, e garantir o desenvolvimento de um trabalho consistente com os estudantes.
Ana Mae Barbosa (2009) cita o CCBB de São Paulo, que encomendou em 2004 uma
pesquisa (a partir de uma proposta submetida pela autora) para saber como os professores
de Arte utilizavam os materiais impressos preparados para eles sobre as exposições. Nas
palavras da autora, “talvez essa tenha sido a primeira pesquisa encomendada por um Centro
Cultural no Brasil para saber em que resulta sua ação cultural e educacional.” (p.21). Tal
iniciativa denota a preocupação voltada para um importante ponto de sustentação de
qualquer projeto com ações mediadoras que envolva diretamente o universo escolar.
Há indícios de que a mediação, quando estruturada de forma a integrar os
profissionais da escola, surte efeitos que extrapolam o próprio projeto.
Comprovamos que essas expedições culturais, chamadas aqui “passeios”,
despertam também nos alunos certa motivação por outras disciplinas, e, no corpo
docente, o interesse pelos projetos interdisciplinares, contaminando positivamente
a maioria dos professores da escola. Os resultados ultrapassam as avaliações
convencionais. (SANTANA, 2009, p. 265).
A fala acima e o próprio autor são exemplos dos possíveis desdobramentos da
mediação. Pio Santana é um professor de Arte (da Secretaria de Educação do Estado de São
Paulo) que se encantou pelas ações mediadoras e se apropriou das atividades e produtos que
os centros culturais oferecem não apenas para estudantes, mas também para docentes. Em
seu artigo “A mediação no museu e os resultados em sala de aula” ele explicita a importância
das visitas aos centros culturais; do trabalho contínuo realizado com os educadores; e dos
materiais disponibilizados para estes profissionais. “As experiências vivenciadas nos
encontros para professores nas instituições e os materiais a que temos acesso são
fundamentais para a formação e a prática na sala de aula.” (SANTANA, 2009, p. 267). O
que o autor traz em ambas as citações aponta para o resultado de esforços direcionados à
relação entre o trabalho em sala de aula e as ações da mediação. Em última instância, ele
próprio é um exemplo de que tais iniciativas geram resultados profícuos.
O que Santana fala, sobre despertar nos alunos certa motivação por outras disciplinas,
pode ser verificado no Mediato por meio da fala do professor de filosofia Ricardo Pratesi de
São Sebastião-DF: “Eles vieram me procurar depois. Vários alunos vieram. Querendo saber
de anarquismo, da história, da questão política, [...] dessa relação das manifestações. [...]
48
questões que eles viram na peça”18. Podemos verificar nessa fala a dilatação acessando um
outro contexto. E o estímulo partiu não de um docente, mas dos próprios estudantes.
Observei, a partir das entrevistas posteriores ao Mediato, que alguns professores se
apropriaram de elementos trabalhados durante as mediações. A professora Verônica Oliveira
(Artes Visuais, Ceilândia-DF) adaptou alguns exercícios de sensibilização realizados no
primeiro encontro para as suas aulas: “Como nem todas as turmas foram atendidas, eu usei
algumas das atividades das meninas [mediadoras] nas minhas aulas. Fiz um recorte para as
cênicas, e usei”19. O professor Conrado Costa (Sociologia, São Sebastião-DF) adaptou ações
propostas pelo mediador às atividades de corpo que ele já realizava com seus alunos.
A gente se encontrou na oficina, eu fiquei deslumbrado com o [mediador] com aquela questão que ele
coloca dos níveis da expressão corporal, do movimento a partir de pontos. [...] Só que antes disso eu
já tinha uma relação com práticas corporais livres, eu já tinha uma relação também com a tentativa
de fazer a aula não só pra dimensão cognitiva [...]. Então, sempre tento fazer isso nas aulas com jogos
cooperativos, danças circulares e outros tipos de práticas corporais. Até respiração.
E ainda,
Eu uso muito isso em sala, com certeza. Depois daquele dia causou em mim ... [aquele dia, pré-
espetáculo,] não me trouxe a técnica, não o conhecimento, ele me trouxe a reflexão, a pergunta. Então,
a pergunta nunca mais saiu da minha cabeça. Desde então eu venho refletindo, venho orientando
minha conduta, também pensando sempre nessa pergunta: como é que eu estou orientando meu corpo
para os alunos? Como é que eu estou orientando minha fala pra eles? Minha voz...20
A mesma questão é coloca por um estudante em entrevista: “Teve um dia que o
[mediador] veio, ai ele ensinou um negócio dos movimentos, que a gente descobriu o nosso
corpo, [...] O professor ficou vidrado, e ai depois disso ele até colocou aula de movimento
na sala dele”21. O professor Ulisses (Teatro, Gama-DF) entrevistado um ano após o Projeto
revelou como foi influenciado a rever sua prática docente:
Mesmo na minha prática, essa leitura do espetáculo ela não acontecia antes do processo de mediação
de uma forma mais sistematizada. Então eu procurei olhar pra minha própria prática assim: até onde
eu estou fornecendo elementos, criando situações que os alunos realmente estejam dialogando com
o que eles veem, do teatro de rua, do artista popular, até TV, cinema? [...] Eu tive que reconstruir
algumas práticas minhas [...] Porque eu comecei a me observar um cara muito – não conteudista,
porque nunca dei muita consideração por conteúdo, pra listagem enorme de conteúdo – mas
superficial.
[...]
Eu não estava acostumado com essa abordagem, com esse olhar; até porque a escola, na dinâmica
da escola é muito assim: eu te apresento determinado conteúdo, eu te apresento um espetáculo, eu te
18 Entrevista realizada em São Sebastiao-DF, jun. 2015. 19 Entrevista realizada em Ceilândia-DF, maio 2015. 20 Entrevista realizada em São Sebastiao-DF, jun. 2015. 21 Entrevista realizada com estudante em São Sebastiao-DF, abr. 2015.
49
apresento isso aqui. Pronto! Passou! E às vezes a pessoa não retorna, não digere direito. [...] Me
senti mais estimulado a ser mais mobilizador, mais dinâmico22
Embora o único esforço realizado para promover o envolvimento dos professores
tenha sido o encontro prévio e o material impresso (caderno de mediação), houve, por parte
dos profissionais citados acima, um intencional diálogo com o Projeto. Nos dois primeiros
casos (Profa. Verônica e Prof. Conrado), pode-se perceber a apropriação de elementos da
linguagem cênica, trabalhados pelas mediadoras, e a aplicabilidade em outra área de
conhecimento, Artes Visuais e Sociologia respectivamente. No último relato, de forma mais
ampla, vemos uma mudança de perspectiva no modo como o professor Ulisses planeja e
realiza suas aulas.
É importante ressaltar que os apontamentos dos docentes Ulisses, Conrado e
Verônica não dizem respeito a uma mobilização advinda do encontro prévio com os
professores, mas da própria mediação. Foram as ações realizadas pelas mediadoras que
provocaram nos docentes uma mudança de olhar. Isso me faz compreender que o encontro
com o corpo escolar estava mais voltado para a apresentação do Projeto ao passo que um
real envolvimento e modificações pôde ser atingido com a mediação.
Um modelo de projeto que aposte na interferência direta e criativa dos professores
está no planejamento da segunda edição do Mediato, a realizar-se em 2016. Isso demandará,
certamente, um trabalho a longo prazo. O primeiro passo desse desafio será participar,
durante um período, da rotina escolar, dos momentos de coordenação dos professores, e
elaborar, em conjunto, um material. Este, fruto da parceria, unirá os possíveis diálogos
criados pelos profissionais, às aspirações do projeto de mediação, resultando em um produto,
que será utilizado por eles com as turmas, posteriormente.
Outra sugestão foi dada pelo professor Ulisses (Teatro, Gama-DF) que reforçou, em
entrevista, a importância da continuidade e esboçou um possível caminho, o que ele chamou
de “calendário de desdobramentos”, cuja execução eu poderia acompanhar posteriormente
junto às escolas.
Sem essa articulação entre o projeto e a escola, não tem desdobramentos, ou não tem nem o sucesso
do próprio projeto. É claro, o projeto não pode assumir a responsabilidade pela escola, pelo que vem
depois. Mas de alguma forma teria, sei lá, um calendário de feedbacks. É até muito interessante você
fazer essa entrevista um ano depois, porque eu pude te dar esse feedback. [...] De como foi que
aconteceu a partir do projeto, tanto com os alunos quanto comigo.
E ainda sugere,
22 Entrevista realizada em Gama-DF, ago. 2015.
50
Assim: “Olha professores, eu tenho tais motivos porque eu escolhi essa escola, mas a contrapartida
de trazer o projeto e levar os alunos ao espetáculo é a gente trabalhar junto desde já; trabalhar agora
no planejamento e de construir um calendário de desdobramentos”. [...] Realmente eu penso dessa
forma; não têm como as coisas acontecerem se não forem cíclicas, se for estanque não vai produzir
resultado.
Dedicar um tempo com estes profissionais pode tornar o processo menos vertical,
pois a mediação não entraria na escola como um pacote pronto e sim como uma parceria.
Isso pode trazer a sensação de pertencimento ao que será realizado, gerando o necessário
envolvimento e desdobramento. E também, converteria o caráter de intromissão, que era
atribuído à equipe muitas vezes, em uma relação de proposição criativa por parte dos
professores.
Em última análise o que o Mediato mostrou é que para esperar que os professores
desenvolvam, no universo pedagógico da sala de aula, desdobramentos do que foi vivido
durante a mediação, é necessário mais do que apresentar o projeto e disponibilizar um
material didático previamente elaborado. Por mais que eu tenha sugerido, tanto na fala,
quanto no material impresso, possíveis relações com outras áreas de conhecimento (como
História, Sociologia, Artes Visuais e Música, por exemplo), não é o suficiente para que a
repercussão se efetive com essa complexidade para todos os professores.
Uma última questão levantada na parceria com a educação formal, ainda sobre a
continuidade do trabalho de mediação na escola, diz respeito ao acolhimento dos estudantes
interessados em teatro. A seguir três estudantes de Ceilândia-DF contam em entrevista sobre
o desejo de montar um grupo após a saída do Mediato.
Gabriela (estudante): A gente quis até depois montar um grupo de teatro.
Mariana (estudante): Só que não deu certo.
Arlene (entrevistadora): Me conta isso. Isso me interessa.
Paula (estudante): Foi ideia da Luana. Só que ela mudou de escola. A gente estava com essa ideia
só que não deu muito certo, porque não tinha ninguém assim com experiência para treinar a gente, e
nem para a gente ter um horário que todo mundo pudesse se encontrar para fazer, ensaiar, alguma
coisa assim. Aí não deu certo por causa disso. 23
Em São Sebastião-DF um estudante disse que buscou a direção da escola, juntamente
a um grupo de colegas, na expectativa de tornar o Mediato um projeto permanente: “a gente
até tentou conversar com a Lucília, com os coordenadores da escola. ‘Ah, monta um projeto
desse aqui’ [...] estavam todos vidrados, todo mundo queria!” E ainda. “Aí nós: ‘Não, caso
qualquer a gente vem de noite, a gente vem de madrugada, uma hora a gente vem, a gente
23 Entrevista realizada em Ceilândia-DF, maio 2015. Os nomes dos estudantes foram substituídos por outros
fictícios.
51
só precisa de vocês'. E o pessoal da direção não deu muita bola” 24. O estudante explicou que
sugeriu à coordenação e à direção que o Projeto fosse implementado na Educação Integral –
uma política educacional que amplia progressivamente o tempo diário do estudante na
escola, prevista no artigo 34 da LDB (Lei de Diretrizes e Bases), envolvendo a ampliação
do currículo, a gestão democrática e a participação de estudantes, professores, família e
comunidade.
O mesmo estudante disse que no ano em que o Mediato aconteceu um professor
solicitou um trabalho que consistia, nas palavras do estudante, em “montar uma escola, como
a gente achava que tinha que ser”. E que eles (estudantes) conceberam uma escola inspirada
no Mediato:
Samuel (estudante): O pessoal que tinha participado do projeto dos Mediatos, montou as escolas
tudo em cima desse tema [...] Ah... A nossa escola podia ter mais espaço pra cultura, nossas aulas
não precisava todo mundo ir para a sala ou então onde a gente queria estudar, estudava [...] nosso
intervalo era diferente; ao invés da gente ir pra lanchar e ficar quieto conversando, não, a gente ia
pra apresentar peça ou então fazer alguma coisa que pertencesse às pessoas, [...] uma escola que não
tem esse padrão que a gente estuda hoje, uma escola diferente, uma escola aberta; que não só nós
estudamos, mas que todo mundo pudessem vim para aprender aquilo que a gente estava aprendendo.
Arlene (entrevistadora): Qualquer pessoa que quisesse aprender?
Samuel: É. Qualquer pessoa que quisesse, passou na frente da escola, viu aquela escola aberta, uma
escola diferente; entrar e vim aprender, participar com a gente.
Arlene: Você acha que isso melhoraria a aprendizagem, chamaria mais gente?
Samuel: Com certeza. A gente ia aprender muito mais, porque muitas vezes a gente se prende
tentando aprender aquilo que os professores passam no quadro, mas, só lendo e vendo eles
explicarem a gente não vai aprender; a gente tem que viver aquilo. Ai a gente falou, no nosso projeto
a gente pegava aquilo que os professores ensinavam, mas a gente vivia, invés da gente ir lá e ver o
professor ensinar e pá pá pá escrever no caderno, não; a gente tentar fazer junto com ele, para tentar
exercitar a nossa mente e a gente aprender, porque muitas vezes você pode decorar, mas você não
aprendeu.
Arlene: [...] O Projeto tem a ver com isso, de aprender vivendo?
Samuel: Eu acho que tem.
[...]
Arlene: Aprender tem a ver então com sair da rotina também?
Samuel: Com certeza. Porque muitas vezes a gente fala “Ah, eu não faço isso porque eu não sei”.
Mas não é; é porque não quer, porque está na zona de conforto e não quer sair.
Desponta dos trechos de entrevistas acima uma pergunta: a mediação deveria se
preocupar com estratégias para garantir desdobramentos dentro do espaço escolar, mesmo
após seu término? Ou ainda, seria possível manter, paralelo às mediações, um suporte aos
professores para que estes montem com seus estudantes grupos de estudo e prática teatral?
(Pensando que “prática teatral” envolve o ver teatro). Pude perceber em todas as escolas
24 Entrevista realizada em São Sebastião-DF, abril 2015.
52
participantes do Mediato que vários estudantes pareciam sedentos por oficinas, espetáculos,
ou grupos de teatro que pudessem frequentar. Faziam explicitamente convites, perguntando
se não gostaríamos de montar um grupo com eles, pedindo para ficar até o final do ano, ou
mesmo de forma permanente na escola, como foi o caso de São Sebastião e Ceilândia-DF.
Para os museus a preocupação atual é de um projeto de acolhimento dos visitantes: a
questão que se coloca hoje para essas instituições não é mais de saber como provocar a
primeira visita, mas sim encontrar os meios de provocar o retorno (GOTTESDIENER apud
JULIEN-CASANOVA, 2009). Penso que essa preocupação pode fazer parte das ações
mediadoras para as artes do espetáculo desde agora, sobretudo se compreendermos que
diferente do museu, não estamos em um lugar fixo onde os espectadores podem nos
encontrar, e provocar por eles mesmos esse retorno. Além disso, no caso do Mediato, e de
tantos outros projetos, “invadimos” o espaço escolar provocando uma mudança no cotidiano
deles.
A princípio, vejo na parceria com os professores um potencial plano de acolhimento,
principalmente quando a estudante Paula afirma a importância de alguém com conhecimento
que se habilite a acompanhar o grupo. Mas a questão que fica aqui, que é objeto de extremo
interesse, é de um desejo de continuidade que veio a partir do primeiro contato. Desejo este
que o Mediato não tinha estrutura para alimentar.
Outro ponto válido de ser levantado sobre o trecho transcrito acima é acerca de uma
possível institucionalização do Projeto. O desejo do estudante Samuel e de seus colegas – ao
conceberem uma escola inspirada no Mediato ou propor que esta implemente um projeto
semelhante de forma permanente – é tornar a mediação parte constituinte da instituição
escolar como uma espécie, a meu ver, de recuperação ou mesmo salvação de um sistema que
há muito tem demonstrado sua fragilidade, sobretudo no que diz respeito a uma relação de
prazer com a vida dos educandos.
E ironicamente a proposta colocada por Samuel vai ao encontro das perspectivas
conceituais de uma Educação Integral (ligada à vida), o que fica claro quando Samuel diz
“fazer alguma coisa que pertencesse às pessoas”, ou “a gente tem que viver aquilo”. Ou seja,
as teorias, as leis educacionais e os próprios estudantes falam da necessidade de aproximar
a escola da vida.
Todavia, não acredito que o melhor caminho para a continuidade do trabalho seja a
sua institucionalização pela via de uma inserção permanente na escola. Ao contrário, penso
que estimular e auxiliar os professores com materiais e apoio técnico seja importante, mas a
53
mediação deve se manter longe de ser mais uma disciplina na grade escolar, ou mesmo um
modo de ensinar Artes. Relembrando o que o professor Ulisses (Teatro, Gama-DF) falou “o
projeto não pode assumir a responsabilidade pela escola, pelo que vem depois”, mas
podemos, como o próprio sugeriu, pensar um calendário de desdobramentos em parceria
com os professores.
1.1.4 Caderno de mediação25
Consistiu em um material educativo concebido para estudantes, que poderia ser
utilizado como desdobramento em sala de aula. O texto foi construído mesclando
informações e perguntas. Os questionamentos, geralmente destacados, tinham o intuito de
provocar a reflexão sobre determinado assunto. Imagens do espetáculo e de outras
linguagens artísticas foram selecionadas, além de letras de músicas e filmes; de forma geral,
referências com temas semelhantes e/ou do mesmo período de produção do texto
dramatúrgico (1970) que deu origem à peça. Tal escolha se configurou como um processo
curatorial que adotou como fio condutor possíveis diálogos com o tema. O caderno de
mediação se constitui, portanto, como uma intencional produção de semelhança entre
distintas obras de arte. Com isso busquei estimular os estudantes a tomarem parte nesse
processo para produzirem, eles também, suas próprias analogias entre um espetáculo e outas
formas artísticas.
Nessa perspectiva, e tendo em vista o assunto abordado no espetáculo, elenquei
artistas que produziram durante a Ditadura Militar brasileira, como Cildo Meireles com
Inserções em circuitos ideológicos, Lygia Pape com Língua apunhalada e Artur Barrio com
Livro de Carne. De música, foram: Apesar de você de Chico Buarque de Holanda e Diário
de um detento dos Racionais MC’s. Quando possível, provoquei a atualização do tema, o
que fica explícito com uma cédula de dois reais carimbada com a frase “Cadê Amarildo”
(autoria desconhecida, 2013), que faz menção ao trabalho de Cildo Meireles, que carimbou
a frase “Quem matou Herzog?” em cédulas de cruzeiro. Uma charge de Henrique de Souza
Filho, o Enfil, compõe o repertório com o contemporâneo tema: valor da passagem do
transporte público; motivo, inclusive, para o início das manifestações de junho de 2013 no
25 Apêndice D.
54
Brasil (tema tratado na peça). Por fim, a referência fílmica apareceu como sugestão para
quem se interessasse em saber mais sobre aquele universo.
No início do caderno há alguns questionamentos que voltam o olhar para o espetáculo
e para as opções da encenação. A saber: como se pode interpretar a escolha cenográfica? Ou,
em quais momentos pode-se perceber a adaptação de um texto italiano de 1970 para o
contexto brasileiro atual? Depois, quando surgem outras referências, as reflexões giram em
torno de relações mais amplas, como sociedade, liberdade, memória e identidade. Por
exemplo, “o que memória tem a ver com identidade?” que remete ao particular, fazendo
referência à trajetória individual do sujeito; e também ao coletivo, quando se fala da história
de um país.
Pergunto-me hoje se o material não beirou o panfletário e se isso seria um problema
a ser contornado. Apesar de questões relacionadas à alteridade e a não imposição estarem
presentes no entendimento de mediação por mim defendido, fazendo uma auto crítica, creio
que acabei incorrendo em um risco: o de ser ideologizante. Talvez não apenas no caderno
de mediação, mas no Mediato de forma geral. Penso que o espetáculo trata de alguns
assuntos politicamente partidarizados, e assim o fiz com o projeto de mediação como um
todo. Outra problemática seria a quantidade de texto e de referências. Acredito que tenha
ficado extenso, o que certamente minimizou as chances de leitura na íntegra.
Uma terceira problemática seria, ainda, a própria funcionalidade do caderno, que em
ocasiões virava abano ou era descartado. A vivência com o Programa Educativo no CCBB
Brasília já havia apontado para esta questão. A coordenação pedagógica solicitava que
trabalhássemos com o material durante a visita para que este não se transformasse em um
panfleto entregue ao final. Mesmo assim observávamos estudantes defenestrando o material
educativo pela janela do ônibus, enquanto este se retirava do estacionamento de volta à
escola. A estratégia de trabalhar o material durante a mediação também foi adotada no
Mediato o que pode ter diminuído a relação de desinteresse. Contudo, ela ainda existe e
precisa ser pensada.
As questões, até aqui apresentadas, me provocam a rever a existência e a utilização
do caderno de mediação. Santana (2009), citado anteriormente, afirma a importância dos
materiais que dão apoio ao professor de artes no desdobramento da experiência estética. Mas
fica claro que este recurso só é utilizado quando há interesse e envolvimento do docente.
Talvez uma chave para a problemática aqui levantada seja estabelecer uma relação de
55
parceria com os professores (e quiçá com os próprios estudantes) na construção do material,
para que este faça mais sentido às pessoas que vão utilizá-lo.
1.2 Outros caminhos
A seguir apresento quatro trabalhos em mediação com vistas a situar meu lugar de
fala. Isto é, elencarei distintos projetos que mantêm de semelhança entre si a mediação e o
teatro para apontar o Mediato como uma possibilidade dentre tantas outras. Por isso, não é
demais relembrar que não se trata de uma contextualização histórica, muito menos de um
levantamento catalogal; mas de uma abertura do olhar para outras formas de compreender e
praticar a mediação.
Ao apontar para outros trabalhos intenciono com eles dialogar não pelas
semelhanças, mas justamente pelas diferenças; e ao mesmo tempo, explicitar minha surpresa
com a relação de proximidade, atinente ao formato e aos conceitos, que eles mantém entre
si, mesmo tratando-se de projetos realizados em épocas diferentes e em distintos Estados do
Brasil. Veremos que os trabalhos serão apresentados a partir de quatro pesquisadores – que
em alguns casos é o próprio idealizador do projeto, em outros atuou como coordenador ou
mediador – marcando assim, e valorizando, cada lugar de fala como particular. Tendo em
vista que é impraticável o aprofundamento em cada um deles farei uma descrição breve
elencando apenas o que considerei um diferencial e/ou o que pode dialogar com a presente
pesquisa.
1.2.1 Flávio Desgranges e o Projeto Formação de Público
Flávio Desgranges (2002; 2008; 2010; 2011; 2012) traz uma importante contribuição
acerca da sistematização da prática da mediação voltada às Artes Cênicas no Brasil. Apesar
da dificuldade de elencar uma prática ou questões conceituais do autor que sejam relevantes
para esta pesquisa (pois quase todas são), escolhi o Projeto Formação de Público26
desenvolvido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo entre os anos 2001 e 2004.
Desgranges (2008; 2011) descreve e analisa os procedimentos pedagógicos do último ano
26 Em nota de rodapé Desgranges (2011, p. 152) esclarece que o projeto “contou com a curadoria de Gianni
Rato, a orientação geral de Flávio Aguiar, a orientação de Maria Silvia Betti, Luiz Fernando Ramos, Silvia
Fernandes e Flávio Desgranges, além da participação de nove coordenadores pedagógicos e quarenta e sete
monitores” bem como funcionários da Secretaria de Cultura.
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de ações pedagógicas (2004) do qual participou e sobre o qual falarei a seguir. Nesta etapa
“participaram da ação um total de 305 escolas municipais, com um público estimado de
257.000 alunos. Eram 11 grupos teatrais que circulavam com seus espetáculos, apresentados
durante o ano letivo” (2008, p. 76).
De acordo com Desgranges (2011, p. 160) as três principais linhas de atuação
pedagógica adotadas por ele no projeto foram: os debates entre artistas e espectadores após
a apresentação da peça; os cursos de formação oferecido aos professores; e os “ensaios de
desmontagem, procedimentos pedagógicos de mediação teatral oferecidos nas escolas, antes
e depois dos espetáculos, aos alunos participantes, visando dinamizar a recepção da obra”.
O primeiro (debate com os artistas) objetivava “a revelação dos meandros da arte teatral e o
convite a que os espectadores formulassem concepções pessoais da cena”. O segundo “tinha
como objetivo preparar os professores das escolas para que, aprimorando seu conhecimento
sobre teatro, pudessem mediar o encontro de seus alunos com esta arte” (p. 162). O terceiro,
ensaios de desmontagem, são as mediações propriamente ditas, realizadas nas escolas antes
e após o espetáculo, chamadas respectivamente pelo autor de ensaios de preparação e
ensaios de prolongamento. Tinham em vista “tanto a sensibilização prévia para o evento,
quanto o estímulo para a efetivação de uma leitura acurada da obra assistida” (p. 166),
reforçando a coautoria, além de propor prolongamentos criativos, nos quais os espectadores
eram convidados a produzir artisticamente.
De acordo com Desgranges (2011, p. 166) os ensaios de desmontagem se utilizavam
de “exercícios teatrais semelhantes aos que os artistas realizaram no processo de construção
do espetáculo” levando “os participantes a experimentarem, ainda que por curto período,
algumas atividades que os próprios criadores da cena poderiam ter experienciado durante o
processo de concepção da montagem teatral”. Com isso objetivavam criar uma intimidade
entre o público e as possibilidades expressivas utilizadas na obra. Cabe dizer que as
mediações não pretendiam segundo o pesquisador “dar conta de todos os múltiplos e
complexos aspectos de uma encenação, mas [optavam] por selecionar ângulos de ataque,
alguns aspectos marcantes da montagem teatral em questão” (p. 170). A escolha desses
“ângulos de ataque” levavam em consideração tanto as características e especificidades da
obra cênica quanto o trabalho que já estava sendo desenvolvido com o grupo de participantes
e seu contexto.
O “curso para professores se dava em consonância com a frequentação aos
espetáculos que integravam o projeto” (DESGRANGES, 2011, p. 163). Era realizado com
57
os professores um processo semelhante à mediação feita com os estudantes, isto é, aqueles
eram estimulados com espetáculos, oficinas e análises assim como os educandos também o
seriam posteriormente. Almejando-se com isso “que os professores conquistassem a
consciência plena de um processo de ensino e aprendizagem a ser desenvolvido com os
alunos, calcado, como lhes foi proposto, na experimentação e análise de exercícios teatrais
em oficina” (p. 164). Dessa forma, primeiramente o corpo docente era inserido nos processos
de mediação para em seguida auxiliar a imersão dos estudantes.
Um último aspecto do Projeto Formação de Público que considero relevante
mencionar é a formação dos mediadores que, assim como a formação dos professores, seguiu
os mesmos princípios da mediação, ou seja, considerou os profissionais (futuros mediadores)
como educandos envolvidos nos processos de desmontagem do espetáculo. Ou seja,
Desgranges (2011), assumindo o papel de mediador, concebeu e executou os ensaios de
preparação e de prolongamento com os mediadores com vistas à prepara-los para que
posteriormente estes organizassem suas próprias oficinas para os educandos. Assim os
profissionais puderam compreender na prática como a mediação pode acontecer. Esta
formação proposta pelo autor – etapa que chamo na atual pesquisa de treinamento de equipe
– pode apontar soluções para os problemas levantados anteriormente a respeito de como
treinar/formar mediadores.
Podemos verificar que o Mediato se assemelha ao formato e a alguns conceitos acima
expostos. Conversa com artistas, encontro com professores e mediações antes e após o
espetáculo compôs a estrutura de ambos os projetos. Seus objetivos também se aproximam:
de sensibilização, produção poética por parte dos estudantes, dentre outros. Contudo, vale
ressaltar que essa compreensão do professor como um participante da mediação faltou ao
Projeto Mediato, conforme dito anteriormente, e se assemelha ao que o professor Ulisses
(Teatro, Gama-DF) apontou em entrevista: “daí existe outra sugestão, articular com mais
professores para eles também fazerem a mediação. Não! Não fazerem a mediação,
participarem do processo enquanto estudantes, enquanto alunos para aprender a ler a
linguagem do espetáculo”. De alguma forma foi isso que Desgranges (2011) fez no Projeto
Formação de Público do Estado de São Paulo com os docentes, e que possivelmente me
apropriarei para os próximos trabalhos.
Cabe dizer que no ano anterior à concepção do Mediato tive conhecimento deste
projeto realizado em São Paulo por meio do livro do pesquisador. Todavia, não dei a devida
atenção ao que Desgranges (2011) propõe nas duas etapas (treinamento de mediadores e
58
formação de professores), a saber: a compreensão de professores e mediadores como
educandos em um processo que é estético e pedagógico, unindo a forma ao conteúdo. Talvez
por um conforto com a apropriação e transposição de ações bem sucedidas realizadas no
âmbito das Artes Visuais para o Teatro, acabei repetindo o que observei por sete anos no
CCBB no que diz respeito ao treinamento de mediadores. Treinamento este, não me furto o
elogio aos mestres, amplamente fundamentado e com excelentes resultados.
1.2.2 Ney Oliveira e o projeto Cuida Bem de Mim
O segundo trabalho de mediação que elenco é o projeto Cuida Bem de Mim,
idealizado em 1996 na Bahia pelo diretor teatral, dramaturgo e educador Luiz Marfuz, cuja
proposta central consistia em atividades com o público antes, durante e depois do espetáculo.
Voltado exclusivamente para escolas públicas, sua meta era diminuir a depredação do espaço
escolar através do teatro, trabalhando o tema violência com jovens de periferia. O projeto,
inicialmente financiado pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia, era desenvolvido
a longo prazo dentro das escolas (cerca de cinco a oito meses), o que permitia aferir
resultados concretos na escola e na comunidade.
Apresentarei o projeto a partir da tese de doutorado de Ney Wendell Oliveira (2011,
p. 24) que o coordenou durante sete anos. Em sua pesquisa o autor analisa além de Cuida
Bem de Mim – “que, em doze anos (de 1996 a 2008) realizou ações de mediação teatral com
350 mil espectadores, em 850 apresentações para escolas públicas dos Estados da Bahia,
Pernambuco, Rio de Janeiro e na capital federal, Brasília” – avalia também projetos de
mediação teatral em algumas cidades do Estado do Québec-Canadá, com vistas à
comparação. “A pesquisa sobre o Québec apresenta outro foco, complementar, sobre as
políticas de mediação cultural direcionadas à população, em geral” (p. 30). Tal análise
comparativa – entre Bahia e Québec – leva o autor a afirmar o lugar da escola como campo
promissor para os processos da mediação teatral e a ratificar a importância de agir na
construção de políticas culturais para a formação de público no Brasil. 27 Essa conclusão
parte da descoberta do autor de que prática semelhante ao Cuida Bem de Mim existia no
Québec antes de 1996, mas lá atualmente são compreendidas como políticas públicas.
27 Para maior aprofundamento ver a pesquisa na íntegra. Título da tese: “A Mediação Teatral na Formação de
Público: o projeto Cuida Bem de Mim na Bahia e as experiências artístico-pedagógicas nas instituições culturais
do Québec”.
59
À época de seu desenvolvimento Cuida Bem de Mim não era chamado de mediação,
mas de ações educativas nas escolas. O termo mediação teatral vem com a tese, na qual
Oliveira (2011) explica que o eixo do processo formativo eram as atividades antes da peça
(preparação) durante a peça (apropriação) e depois da peça (reverberação).
A primeira etapa (preparação) acontecia no ambiente escolar e tinha como objetivo
“sensibilizar e mobilizar a escola para que ela participasse integralmente do projeto, além de
prepará-la para o uso potencializado dos conteúdos presentes no espetáculo” (OLIVEIRA,
2011, p. 25). Este momento envolvia, segundo o autor, as seguintes atividades: entrevista
com a direção da escola; diagnóstico do ambiente; intervenções teatrais sobre o projeto em
todas as salas como forma de divulgação e convite; performance teatral com uma cena do
espetáculo realizada no pátio em horário de intervalo; seminário com representantes
estudantis; seminário com professores e oficina dramático-pedagógica. Os seminários
“tinham como eixo a temática dos problemas e soluções da escola, utilizando-se, como base,
as frases – a ‘escola que se tem’ e a ‘escola que se quer’ –, que seriam trabalhadas junto a
cada um desses públicos” (p. 59). A última atividade, oficina dramático-pedagógica,
consistia em um momento prático do seminário no qual “os temas iam para o corpo, a voz e
os movimentos dos participantes, saindo de um diálogo mais racional e experienciando o
cotidiano da escola a partir do teatro”; e ainda era a oportunidade “para que alunos
representassem papéis de professores, diretores assumissem papéis de alunos ou de
professores e vice-versa” (p. 61).
A segunda etapa (apropriação) acontecia em um teatro. Envolvia: recepção do
público; distribuição de lanche; apresentação do projeto e regras de convivência no espaço;
questionário antes e após a apresentação com 10% dos estudantes; exibição de vídeo
documentário de 15 minutos com parte do processo de montagem da peça; apresentação do
espetáculo; e debate em torno de 20 a 40 minutos. Segundo Ney Oliveira (2011, p. 76) “nem
mesmo na escola era tão comum reunir os alunos, diretores e professores, em um mesmo
local, para dialogarem com o tema mais polêmico para todas essas pessoas juntas: a própria
escola”. E diz ainda que os problemas advindos do âmbito escolar apontados durante o
debate eram anotados para serem problematizados no pós-peça.
A terceira etapa (reverberação), novamente na escola, consistia em desdobrar a peça
“em eixos teóricos e temáticos, nas aulas e em projetos especiais [...]. Professores e alunos,
enquanto comunidade escolar, [eram] estimulados pela equipe do projeto à criação conjunta
de ações concretas” (OLIVEIRA, 2011, p. 49). Eram realizadas nesta fase: um “oficinão de
60
teatro” com duração de um turno; oficinas de iniciação teatral (por meio de inscrição) com
duração de três a quatro meses, no contra turno escolar, finalizando com uma apresentação
em um festival de teatro também realizado pelo projeto; curso de educação pela arte para
docentes; acompanhamento pedagógico; grupo de trabalho com estudantes; e relatório
devolutivo à escola. O momento pós-peça focalizava, segundo o autor, a “escola que se tem”
e a “escola que se quer”, com vistas a efetivar a mudança; e por isso era a parte mais longa
do projeto.
O projeto, bem como a peça que levava o mesmo nome, tinha um objetivo claro e
delimitado de repercutir na vida escolar, e de forma mais ampla na vida social, de estudantes,
professores e comunidade, “usando a arte como um eixo transformador” (OLIVEIRA, 2011,
p. 50). O conjunto de ações educativas apresentava a “finalidade de interferir naquela
realidade [na escola] e transformá-la, no que se refere à diminuição da violência e ao
aumento do vínculo afetivo nas relações humanas” (p. 44).
Oliveira (2011) verifica em sua tese que o projeto alcançou resultados concretos
demonstrando sua eficiência. Nos primeiros dois anos já verificaram profícuos resultados:
“Em pesquisa realizada pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia, em 1998, viu-se
que a escolas atendidas pelo projeto tinham diminuído, em 36%, os gastos com a depredação
escolar”. Durante os doze anos de atividades o autor constatou
a diminuição da depredação escolar; a criação de grupos teatrais ou de outras
linguagens artísticas; o desenvolvimento do acesso cultural das comunidades de
escolas da periferia; a formação ou ativação de grêmios; a criação de grupos de
trabalhos para a melhoria da escola; gincanas sociais; mutirões de limpeza; festivais
de arte; um incremento de atividades artísticas na metodologia dos professores;
maior rendimento escolar dos jovens participantes das atividades; a qualificação
artístico-pedagógica dos professores, entre outros resultados relacionados ao
aprimoramento das relações interpessoais e também à conservação do patrimônio
escolar. (OLIVEIRA, 2011, p. 45)
Certamente, trata-se de um projeto a longo prazo. Diferente do Mediato que ficou
entre uma e duas semanas em cada instituição, Cuida Bem de Mim residia por cerca de cinco
a oito meses nas escolas que abrigavam a proposta. Isso possibilitava o desenvolvimento de
atividades de forma contínua, bem como a verificação e a avaliação dos resultados.
Algo que me chamou a atenção neste projeto, além de sua continuidade ao longo do
ano letivo, foi o fato de o diretor Luiz Marfuz ousar, experimentando substituir atores
profissionais por jovens atores, que também exerceram a função de mediadores junto ao
público escolar. Segundo Ney Oliveira (2011, p. 45-46) “a partir de 2002 o espetáculo [...]
passou a ser feito por jovens atores, entre 15 a 21 anos, oriundos de bairros populares e
61
escolas públicas. Estes jovens eram educandos do grupo de teatro da ONG Liceu de Artes e
Ofícios da Bahia”. De acordo com o autor os futuros atores e educadores passaram por
dezoito meses de preparação artística e pedagógica para em seguida assumir não apenas o
espetáculo, mas também as ações de mediação dentro das escolas – o que se deu com
acompanhamento de educadores mais experientes e coordenadores do projeto. E diz ainda
que o passo foi essencial para a liderança dos jovens criando mais proximidade entre a escola
e as ações.
Oliveira (2011, p. 159) compreende o público como um vivenciador da obra teatral
e ao longo de sua pesquisa exemplifica com momentos do projeto em que a arte foi
legitimamente vivida por estudantes e familiares, e mais, ocasiões em que o teatro,
juntamente aos processos de mediação, repercutiu nas vidas, transformando-as. Isso justifica
o entendimento da arte como meio, presente na pesquisa do autor, que toma como base "o
teatro como experiência artística e pedagógica" e como potencial para o "desenvolvimento
da pessoa e da cidadania". Nas palavras do pesquisador: "O Cuida Bem de Mim foi um
exemplo de uma obra utilizada como produto didático dentro das escolas" (p. 161). Vale
ressaltar que esta perspectiva da arte como instrumento de transformação também estava
indiretamente presente na obra Da Janela e no Projeto Mediato, o que será problematizado
no próximo capítulo. Ambos espetáculos (Da janela e Cuida Bem de Mim) mantêm de
semelhança, a meu ver, o caráter didático, de mobilização, de desejo de transformação.
O autor coloca, portanto, a mediação teatral como uma possível metodologia a ser
utilizada no ambiente escolar e o teatro como instrumento de mudança deste lugar: “Este
projeto artístico-pedagógico [Cuida Bem de Mim] utilizava o teatro para o enfrentamento da
violência nas escolas, trazendo na prática a metodologia de mediação teatral” (p. 19). E
ainda: “chega-se à conclusão de que a mediação teatral existe como uma metodologia viável,
e efetiva uma transformação pessoal e social de públicos diversos” (p. 172).
Dessa forma, o projeto Cuida Bem de Mim, assim como a pesquisa de doutorado de
Ney Oliveira (2011, p. 9), tem seu foco no ambiente escolar como lugar de acolhida da
mediação e principalmente como cenário de transformações na vida escolar e social de
estudantes, professores, diretores e familiares. Nas palavras do autor, sua tese “afirma o lugar
da escola como campo promissor para os processos da mediação teatral”, e diz ainda, “é
nesta direção de aprimoramento da educação que se localiza a mediação teatral” (p. 143).
O entendimento da mediação como metodologia escolar ou ainda como salvaguarda
desse espaço educacional institucionalizado é uma possibilidade. É importante aclarar que
62
tal compreensão é distinta da proposta nesta pesquisa, embora seu objeto de estudo – o
Projeto Mediato – tenha apontado para questões semelhantes, pela sua inserção na escola,
sobretudo com os desejos dos estudantes de tornar o projeto permanente, como foi dito
anteriormente.
1.2.3 Martha Moraes e o SESC Arte-educação: Transformando Plateias
O terceiro trabalho é o da pesquisadora Martha Moraes (2014) que implementou em
2012 um Programa Educativo no Teatro SESC Paulo Autran, da Região Administrativa de
Taguatinga-DF, chamado “SESC Arte-educação: Transformando Plateias”, cujo foco inicial
era a formação continuada para professores, na expectativa de torna-los multiplicadores,
estimulando-os a mediar a ida de seus alunos ao teatro. A ação, segundo a autora, consistia
em um ciclo de palestras/oficinas em arte-educação para professores, que foi dividido em
nove módulos, sendo um por mês, totalizando 36h/a. Além do trabalho com os professores
havia mais dois eixos dentro do programa: a facilitação do acesso com espetáculos gratuitos
em dias e horários acessíveis ao público escolar, bem como o oferecimento de oficinas
pontuais; e o bate-papo com artistas.
Cabe ressaltar que a autora, também gestora cultural da referida instituição, propôs o
projeto em 2010, mas em função de burocracias e falta de verba só foi viabilizado mais de
um ano após. Em 2011 o programa funcionou de forma experimental com parcerias,
momento em que algumas ações foram desenvolvidas e também analisadas por ela em sua
dissertação de mestrado intitulada “Formação de espectadores jovens e adultos: A recepção
teatral no programa educativo ‘SESC Arte-educação Transformando Plateias’”, da qual me
aproprio para apresentar o projeto. As ações da fase experimental não serão aqui descritas
tendo em vista o curto espaço que dedico à apresentação dos trabalhos.
O Programa Educativo contou ao final de 2012 com a contratação de mediadores e
passou a oferecer também ações educativas antes e após o espetáculo, que geralmente
aconteciam dentro da escola. O que marcava os encontros pré e pós no SESC Arte-educação
eram respectivamente os jogos cênicos e um bate-papo abordando aspectos formais e
temáticos da obra seguido de proposições criativas/poéticas; quando possível entremeados
pela reflexão dialogal acerca do que estava sendo feito. Sistemática semelhante realizei no
Projeto Mediato.
63
De acordo com Moraes (2014, p. 109) o Programa Educativo foi reformulado ao
longo de sua experimentação e em 2013 ele se apresentava como um “guarda-chuva de ações
culturais mediadoras” tendo o Teatro SESC Paulo Autran como centro e abarcando diversas
ações culturais e parcerias que eram realizadas não necessariamente de forma concomitante.
Tais como: encontros, seminários e congressos em arte-educação e cultura; formação
continuada para professores; oficinas pontuais para estudantes; gratuidade e em alguns casos
transporte escolar por meio de parceria com a Secretaria de Educação do DF; visita guiada
aos bastidores e maquinário do teatro; e contratação de mediadores para ações antes, durante
e após o espetáculo (quando os espetáculos eram realizados pelo próprio SESC). Além da
parceria com outros projetos, festivais, escolas públicas e particulares.
Nesta fase as mediações aconteceram da seguinte forma: “o mediador contratado
planejou as mediações com uma palestra de 20 minutos antes da apresentação, bate-papo
mediado entre plateia e artistas e pós-mediação em sala de aula, de 100 minutos por turma,
em formato de oficina” (MORAES, 2014, p. 113). Contudo, a autora conclui que esse
formato pode ter sido motivo de cansaço e a justificativa para que vários estudantes saíssem
durante o bate-papo depois da peça, conforme afirma: “este dado demonstra que, talvez, a
palestra de 20 minutos antes do espetáculo somada ao espetáculo, ao preenchimento do
questionário e ao bate-papo pós, seja um pouco cansativo” (p. 118).
Os esforços da gestora cultural Martha Moraes (2014, p. 84) se voltaram, o que é
explicitado com sua pesquisa, à problemática gerada ao acessibilizar apenas a entrada física
do público sem a devida preocupação com a sua recepção. Tendo em vista que estava em
um espaço institucional que já dispunha de programação (o SESC), mas muitas vezes carecia
de público, a pesquisadora estabeleceu parcerias com a educação formal e com grupos de
teatro. Inclusive solicitou “em contrapartida [à isenção de taxa de utilização do teatro],
apresentações com entrada franca em horários escolares e/ou (dependendo do caso) oficinas
pontuais para estudantes da educação básica e/ou bate-papo entre os artistas e plateia após
os espetáculos”. Neste sentido ela foi uma articuladora, essencial à efetivação do Programa
Educativo.
Sobre a problemática exposta acima Moraes (2014, p. 17) conta que era recorrente
no SESC a prática de pedir socorro à direção da escola da mesma instituição (EDUSESC)
para que levassem seus estudantes do noturno para preencher cadeiras vazias na plateia em
função da escassez de público. Isso era feito minutos antes do espetáculo, ou seja, sem
nenhuma preparação/sensibilização. Segundo a autora isso era desastroso pois os estudantes
64
assistiam ao espetáculo à contragosto; algo que nem sabiam o que era. “Achavam que
estavam perdendo aula, não entendiam o sentido de estar ali, conversavam durante a peça,
reclamavam para a direção. Não se dispunham a uma experiência estética, a um diálogo com
a obra”.
Logo, com tal dificuldade, compreende-se que o olhar da pesquisadora se voltou para
as ações da mediação como possibilidade de minimizar, ou mesmo resolver essa apatia e
esse distanciamento provocado por uma estratégia que ao “resolver” o problema da falta de
público, gera, a meu ver, o efeito contrário, a médio e longo prazo. Dessa forma, enquanto
gestora cultural Moraes tinha um duplo problema: cadeiras vazias e cadeiras cheias de
desinteresse. O que a levou ao que Desgranges (2008, p. 77) chama de “formação de público”
e “formação de espectadores”, a primeira sendo a “viabilização do acesso físico dos
espectadores ao teatro [...]almejando, assim, a ampliação dos freqüentadores em potencial”;
enquanto a segunda “visa não apenas a facilitação do acesso físico, mas também, e
principalmente, a do acesso lingüístico”.
Cabe notar, este é um lugar (com suas respectivas preocupações) diferente do
Mediato, e distinto também se comparado aos projetos Cuida Bem de Mim e Projeto
Formação de Público (de São Paulo), pois o SESC Arte-educação Transformando Plateias
se destaca justamente por partir de um espaço institucionalizado de teatro. Espaço este com
seus respectivos impasses, pois como afirma Moraes (2014) a atuação do agente cultural é
considerado um trabalho de guerrilha.
Moraes (2014, p. 108) constatou com sua observação e análise que o Programa
Educativo alcançou seu objetivo de provocar a emancipação e a autonomia do espectador,
de sensibilizar provocando um olhar curioso à obra, sanando o problema do desinteresse.
“Ficou evidente [...] o impacto da mediação prévia, pois tanto o interesse quanto o nível de
aprofundamento das perguntas foi bastante distinto entre as turmas que participaram da
mediação anterior e as que não.” Verificou também que a mediação (antes, durante e depois)
feita por profissionais da área, se comparado ao trabalho de formação dos docentes, surte
"resultados mais potentes em nível de acesso linguístico, pois há ainda pouca reverberação
na mudança de consciência dos professores na escola. Assim, paralelamente à formação
continuada, se faz necessária a contratação de mediadores teatrais" (p. 109). A autora conclui
ainda que as “mediações atuam em caráter imediato, dando sentido aos sentidos [...] As
demais ações culturais promovidas [...] são fundamentais para a permanência dessa
formação de espectadores a longo prazo” (p. 125).
65
1.2.4 Glauber de Abreu e a questão da contenção do abandono
Intencionalmente ao final, por auxiliar a localização conceitual da presente pesquisa
pela via comparativa, apresento o quarto trabalho, do pesquisador, e também mediador,
Glauber Gonçalves de Abreu (2015) com sua dissertação de mestrado intitulada
“Experiência e Mediação em Teatro: abandonar-se para não abandonar”. O autor traz um
entendimento de mediação que, poderia dizer, está em um lugar conceitualmente anterior ao
desta pesquisa. Enquanto me debruço sobre a dilatação de uma possível experiência, Abreu
coloca seu olhar sobre a contenção do abandono. Abandono este que impossibilitaria a
experiência. Para o autor, a mediação pode propiciar um espaço onde (talvez) haja a feitura
da experiência e com isso cria princípios para a contenção do abandono. Embora a dilatação
também se aplique aos sentidos como preparação para a experiência, ou seja, como um
antecedente; e a contenção do abandono, da mesma forma, dedique-se a certa continuidade,
como contenção de um abandono posterior (ABREU, 2015), o foco das respectivas
pesquisas estão, de forma complementar, no que pode anteceder (conter o abandono) e que
pode suceder (dilatar) a experiência.
Em sua pesquisa Abreu (2015, p. 11) considera que há situações em que o espectador
pode abandonar a possibilidade de experiência com a obra. A partir disso investiga tipos de
abandono e cria princípios para contê-lo, colocando a mediação como espaço favorável para
tal. Assim, a ideia de abandono é trabalhada como “condição antagônica” à experiência. A
partir de então, o autor investiga e formula práticas artístico-pedagógicas para mediação de
espetáculos teatrais contemporâneos tendo em mente o que provoca o abandono e suas
formas de contenção. O momento que antecede o contato com a obra é por ele chamado de
“atividade para conquista da Serenidade” (fazendo referência à Heidegger) e o momento que
sucede de “atividade para desdobrar e compartilhar” (ABREU, 2015, p. 105). Podemos ver
aqui que o formato antes e depois do espetáculo se repete.
As intervenções realizadas pelo autor foram organizadas no que ele chama de
“espelho de mediação”, um avanço, a meu ver, no que diz respeito à sistematização do
trabalho do mediador, o que pode contribuir decisivamente nos treinamentos de equipe.
Segundo Abreu (2015, p. 112) “o espelho não condiciona um formato específico de
mediação; vai se realizar de maneira distinta com cada mediador, levando em consideração
66
as características e contextos de cada espetáculo, respeitando a condição da singularidade”.
Para o autor, trata-se de um olhar sobre o processo criativo do mediador.
Em sua função o “espelho” se assemelha ao que chamei de “plano de mediação”,
desenvolvido durante o treinamento do Mediato, e também ao que era chamado de
“percurso” no CCBB, pois os três têm por objetivo o planejamento prévio do que será
desenvolvido na mediação. Não como um roteiro a ser seguido e sim como uma estrutura
norteadora. Contudo é o espelho de Glauber de Abreu (2015, p. 76) que, dentro das artes
cênicas, sistematiza com maior objetividade o trabalho de um mediador. Além disso esse
instrumento não se restringe, em seu planejamento, ao momento de contato com o público,
isto é, da mediação propriamente dita; mas abrange desde os movimentos iniciais de
conhecer os artistas, compreender o contexto de ação e o público alvo, o que o autor chama
de “diagnóstico”.
Seguido ao “diagnóstico” vem a “pesquisa” e a “criação pedagógica”. Este último
movimento seria equivalente ao “plano de mediação” ou ao “percurso” (nas Artes Visuais).
Ou seja, o espelho é mais abrangente, compreendendo a sistematização do trabalho que, de
acordo com minha trajetória, sempre esteve a cargo de um coordenador pedagógico
(levantamento de material, pesquisa, etc.). E isso, vale ressaltar, torna o instrumento mais
valioso, uma vez que, em algumas ocasiões, os mediadores são convidados por grupos de
teatro e atuam de forma autônoma, sem um profissional que os orientem a respeito dos
caminhos que podem ser tomados para se chegar à ação fim: a mediação.
Além das questões conceituais e de sistematização já apontadas, o trabalho de Abreu
(2015) se destaca por suas mediações juntamente à espetáculos contemporâneos de teatro e
dança; por sua coordenação na Ação Formativa do já citado Festival de Teatro Brasileiro
(FTB) em alguns estados brasileiros; e igualmente pela sua atuação na capacitação em
mediação de espetáculos teatrais para estudantes de graduação do curso de Licenciatura em
Teatro da Universidade de Brasília, no âmbito da Universidade Aberta do Brasil
(UnB/UAB).
A seguir apresento um quadro resumo dos quatro projetos até aqui expostos,
incluindo o Mediato, para facilitar a compreensão de suas respectivas etapas. Reitero que a
ideia de apontar para outras pesquisas e/ou projetos objetiva com eles dialogar não pelas
semelhanças, mas justamente pelas diferenças, e com isso localizar a minha pesquisa, bem
como valorizar o que cada projeto tem de sui generis.
67
QUADRO RESUMO DOS PROJETOS
PROJETO Informações
iniciais
Formato/
Etapas
Mediadores
equipe
Treinamento
da equipe Duração
Público
Alvo
Diálogo com
ambiente escolar Referências
Mediato
Financiado pelo
Fundo de Apoio
à Cultura da
Secretaria de
Cultura do
Distrito Federal.
Atendeu, em
sua única
edição, cerca de
2mil pessoas
entre estudantes
e professores de
4 escolas
públicas do DF.
O espetáculo foi
criado para o
projeto tendo
em vista o
público alvo.
- Visita às
escolas e
fechamento de
cronograma;
- Treinamento da
equipe;
- Encontro com
professores;
- Produção de
material didático
(caderno de
mediação);
- Mediações
antes e após o
espetáculo;
-Apresentação
da peça seguida
de conversa com
artistas;
- Oficinas de três
dias apenas para
inscritos no
contra turno
escolar,
totalizando 12h
em cada escola.
Estudantes
graduandos ou
profissionais
formados nas
áreas de Artes
Cênicas, Artes
Visuais e Dança.
Formação da
equipe:
4 mediadoras,
2 supervisoras
(responsáveis por
acompanhar
diretamente todas
as mediações),
1 coordenadora
geral e
pedagógica
(responsável por
conceber,
acompanhar e
reformular o
projeto, bem
como treinar a
equipe) e
1 produtora.
Encontros
diários de 3 ou
4 horas
durante duas
semanas,
totalizando 32
horas com:
leitura prévia
de textos;
apresentação
de seminários;
elaboração de
oficinas;
contato com a
obra; diálogo
com artistas; e
concepção dos
planos de
mediação.
Responsável:
coordenadora
pedagógica
(Arlene von
Sohsten)
3 meses.
Nas escolas as
mediações
aconteciam
dentro de uma
ou duas
semanas. O
antes, o
durante e o
depois do
espetáculo
totalizavam
cerca de
4h40min, com
cada turma,
distribuídas ao
longo de uma
semana.
Estudantes
de Ensino
Médio de
escolas
públicas de
quatro
Regiões
Administrati
vas do
Distrito
Federal.
Jovens entre
15 e 18 anos
de idade.
Bem como
professores
das mesmas
instituições.
O projeto aconteceu
dentro das escolas.
A escolha desse
espaço deu-se
principalmente por
uma questão
estratégica de ser
este o lugar de
encontro do público
alvo. Contudo não
objetivava a
transformação direta
desse ambiente.
O encontro com os
professores visava
apresentar o projeto,
esclarecer o papel
da mediação, e
incentivar a
continuidade por
meio do caderno de
mediação.
Idealizado e
coordenado por
Arlene von
Sohsten.
Descrito e
analisado na
pesquisa de
mestrado
intitulada “A
mediação como
(dilatação da)
experiência
estética – uma
análise do
Projeto
Mediato”
(SOHSTEN,
2016).
O projeto
continua ativo
após a
pesquisa. Mais
informações:
www.projeto
mediato.com
68
PROJETO28 Informações
iniciais
Formato/
Etapas
Mediadores
equipe
Treinamento
da equipe Duração
Público
Alvo
Diálogo com
ambiente escolar Referências
Projeto
Formação de
Público *Salvo
explicitado o
contrário os
dados a seguir
dizem respeito
ao último ano de
projeto (2004)
Iniciativa da
Secretaria
Municipal de
Cultura de São
Paulo.
Em 2004
atendeu um
total de 305
escolas
municipais,
com um público
estimado de
257.000
estudantes.
Eram 11 grupos
teatrais que
circulavam com
seus
espetáculos
durante o ano
letivo nos
teatros dos
CEUs (Centros
Educacionais
Unificados).
- Logística
organizacional
de escolas,
grupos teatrais,
monitores,
agentes culturais,
empresa de
transporte e
demais parceiros.
- Formação
continuada em
teatro para
professores;
- Apresentação
do espetáculo
seguido de
debate com
artistas (cada
escola assistia a
três espetáculos
durante o ano);
- Oficinas de
preparação e de
prolongamento
respectivamente
antes e depois da
peça;
Formação da
equipe: curadoria
de Gianni Rato,
orientação geral
de Flávio Aguiar,
orientação de
Maria Silvia
Betti, Luiz
Fernando Ramos,
Silvia Fernandes
e Flávio
Desgranges; nove
coordenadores
pedagógicos e
quarenta e sete
mediadores; além
de funcionários
da Secretaria de
Cultura de SP.
* Não obtive
informações sobre a
formação
profissionais dos
mediadores.
O treinamento
consistiu em um
processo de
mediação
semelhante ao
que os estudantes
dos CEUs eram
submetidos. Isto
é, os mediadores
passaram pelos
“ensaios de
desmontagem”.
Responsável:
orientador
artístico-
pedagógico
(Flávio
Desgranges)
4 anos
(criado em
2001 e
extinto em
2005 com a
mudança
de
prefeitura).
Estudantes
jovens e
adultos do
Ensino
Médio dos
CEUs
As atividades
ocorreram, em 2004,
dentro dos Centros
Educacionais
Unificados
construídos pela
prefeitura na periferia
da cidade, contendo,
cada uma, um teatro.
Houve formação
continuada para
professores visando
motivá-los “a
assumirem-se
enquanto
espectadores plenos e
formadores
capacitados. [...]
almejava
especialmente criar
nos educadores o
gosto por teatro,
reconhecendo-o
como espaço efetivo
e prazeroso de
produção de
conhecimentos”
(DESGRANGES,
2008, p. 80).
Coordenado
(em 2004),
descrito e
analisado por
Flávio
Desgranges no
livro Pedagogia
do Espectador:
provocação e
dialogismo
(2011) e no
artigo
Mediação
Teatral:
anotações sobre
o Projeto
Formação de
Público (2008).
28 Os quadros foram compostos a partir de informações retiradas das pesquisas elencadas até o momento, bem como adquiridas com os próprios pesquisadores.
69
PROJETO Informações
iniciais
Formato/
Etapas
Mediadores
equipe
Treinamento
da equipe Duração
Público
Alvo
Diálogo com
ambiente
escolar
Referências
Cuida Bem
de Mim *Não houve
necessariamente
a presença de
todas as etapas
ao longo dos 12
anos de projeto.
Inicialmente
financiado pela
Secretaria de
Educação do
Estado da Bahia.
Atendeu cerca de
350 mil
espectadores, em
850 apresentações
(do mesmo
espetáculo) para
escolas públicas
dos Estados da
Bahia,
Pernambuco, Rio
de Janeiro e
Brasília, ao longo
dos 12 anos de
funcionamento
O espetáculo, que
leva o mesmo
nome do projeto,
foi criado
exclusivamente
para este fim com
vistas à
diminuição da
violência e
depredação
escolar.
- Antes: entrevista
com a direção da
escola;
diagnóstico do
ambiente;
intervenções
teatrais e
performance
realizadas na
escola; seminário
com
representantes
estudantis e
professores; e
oficina dramático-
pedagógica.
- Durante:
apresentação da
peça seguida de
conversa com
artistas;
- Depois: oficinas
de teatro; curso
para professores;
grupo de trabalho
com estudantes; e
relatório
devolutivo à
escola.
A partir de 2002 a
mediação, assim
como o próprio
espetáculo,
passou a ser feita
por jovens atores,
entre 15 a 21
anos, oriundos de
bairros populares
e escolas públicas.
Incialmente 15 e
nos últimos anos
35 jovens.
Formação da
equipe:
coordenação
geral,
coordenação
artística,
coordenação
pedagógica,
coordenação de
sistematização
(desenvolvimento
das pesquisas de
impactos),
coordenação de
produção e
coordenação
técnica.
Os jovens atores
foram preparados
para a prática
pedagógica da
mediação ao
longo dos 18
meses de
reelaboração do
espetáculo.
Estes foram
acompanhados
por uma equipe
pedagógica no
decorrer das
atividades de
mediação nas
escolas.
Havia
profissionais
oriundos de
teatro, pedagogia,
sociologia e
serviço social, que
passaram por uma
formação em
“Tecnologia
Educacional com
Teatro” (TET)
desenvolvida por
Luiz Marfuz.
Os encontros
eram diários com
cerca de 4h
Durou 12
anos (1996
a 2008)
Residia por
cerca de
cinco a
oito meses
em cada
escola.
* Tendo em
vista que se
tratavam de
muitas
ações não é
possível
mensurar a
duração das
mesmas.
Estudantes,
professores e
diretores de
escolas
públicas da
Bahia. O
projeto visava
também os
familiares dos
educandos.
Ou seja,
envolvia a
comunidade
escolar como
um todo. *Posteriorment
e o projeto foi
levado para
outros Estados
conforme dito.
Tanto o projeto
quanto a peça
tinham um
objetivo claro de
transformar o
ambiente escolar,
repercutindo na
vida pessoal e
social de
estudantes,
professores e
comunidade
como um todo.
Tendo como
meta diminuir a
depredação da
escola.
O trabalho com
os professores
visava a
sensibilização, a
transformação e
principalmente a
capacitação para
que estes dessem
continuidade ao
que estava sendo
realizado.
Idealizado por
Luiz Marfuz.
Descrito e
analisado na
pesquisa de
doutorado
intitulada “A
Mediação Teatral
na Formação de
Público: o projeto
Cuida Bem de
Mim na Bahia e
as experiências
artístico-
pedagógicas nas
instituições
culturais do
Québec”
(OLIVEIRA,
2011). O autor,
Ney Oliveira,
coordenou o
projeto por sete
anos (2001-
2007), sua análise
incide sobre esse
recorte temporal.
Mais informações
http://www.uesc.
br/editora/livrosdi
gitais_20141023/
cauidabemdemim
70
PROJETO Informaçõe
s iniciais
Formato/
Etapas
Mediadores
equipe
Treinamento
da equipe Duração
Público
Alvo
Diálogo com
ambiente
escolar
Referências
SESC Arte-
educação
Transforman
do Plateias *Não houve
necessariament
e a presença de
todas as etapas
ao longo dos 4
anos de projeto.
Financiado
pelo Teatro
SESC Paulo
Autran de
Taguatinga-
DF.
Apresentou
dois
momentos
distintos: o
primeiro
centrado na
formação
continuada
de
professores
(2012) e o
segundo na
mediação
teatral
(2013).
O projeto
aconteceu
com vários
espetáculos
diferentes,
não havendo
escolha dos
mesmos.
Primeiro momento
(2012) - Ciclo de
palestras/oficinas em arte-
educação para professores:
9 módulos, um por mês,
totalizando 36h/a;
- Teatro ao avesso para
grupos de estudantes
previamente agendados;
- Facilitação do acesso
físico (entrada franca e
espetáculos em horários
escolares)
Segundo momento
(2013): “guarda-chuva de
ações culturais
mediadoras”: encontros,
seminários e congressos
em arte-educação e
cultura; formação
continuada para
professores; oficinas
pontuais para estudantes;
gratuidade e em alguns
casos transporte escolar
por meio de parceria;
visita guiada aos
bastidores e maquinário
do teatro e contratação de
mediadores para ações
antes, durante e após o
espetáculo (quando estes
eram realizados pelo
próprio SESC). Além de
outras parcerias.
Ao final de
2012 houve 1
mediadora
licenciada em
Teatro. Em
2013 foram 2
com a mesma
qualificação.
Houve ainda a
gestora cultural
que concebeu,
acompanhou e
reformulou as
ações. Além dos
profissionais/téc
nicos e
estagiários de
artes cênicas do
próprio SESC e
das instituições
parceiras.
Em 2012 não
houve
treinamento, a
mediadora
conduziu o
trabalho de
forma
autônoma.
Em 2013 houve
de acordo com
Moraes (2014,
p. 113)
“planejamento
metodológico
junto ao
mediador”, com
duração de 3h,
bem como
entrega de
material
informativo e
registro
audiovisual do
espetáculo aos
mediadores.
Idealizado em
2010,
implementado
em 2012 e
reformulado
em 2013.
Suspenso
temporariame
nte de abril de
2015 até o
presente
momento.
As mediações
duravam a
temporada do
espetáculo.
* Tendo em
vista que se
tratavam de
muitas ações
pontuais não é
possível
mensurar a
duração das
mesmas.
Estudantes
e
professores
de todos os
segmentos
da
educação
Básica,
com
prioridade
às escolas
públicas.
Inicialmente ciclo
de
palestras/oficinas
em arte-educação
para professores,
visando torna-los
multiplicadores,
para que eles
mediassem a ida
ao teatro com seus
educandos.
Posteriormente
ações mediadoras
nas escolas,
sobretudo na
escola da própria
instituição
cultural
(EDUSESC).
Outras ações,
como as oficinas
pontuais, por
exemplo também
focavam o
público escolar.
Idealizado e
coordenado
pela gestora
cultural do
Teatro SESC
Paulo Autran
Martha
Moraes.
Descrito e
analisado na
pesquisa de
mestrado
intitulada
“Formação de
espectadores
jovens e
adultos: A
recepção
teatral no
programa
educativo
‘SESC Arte-
educação
Transformand
o Plateias’”
(MORAES,
2014)
Mais
informações
em:
www.sescarte
educacao@bl
ogspot.com.br
71
A partir dos trabalhos até aqui elencados faço alguns apontamento. Os cinco trabalhos
harmonizam dois lados: a prática de mediação e a pesquisa. Em todo caso, sendo esta
consequência daquela. Embora harmonizar não signifique ir na mesma direção, pois a
pesquisa enquanto análise da prática pode revelar incoerência e necessidade de revisão das
ações, como será o caso desta.
Flávio Desgranges (2011) mostra como os professores e os próprios mediadores
podem ser envolvidos nos processos de mediação como se estes fossem educandos, com
vistas a prepara-los, sensibiliza-los. Ou seja, unindo a forma ao conteúdo durante o processo
respectivamente de envolvimento e treinamento desses profissionais. Fazendo-os
compreender na prática esse processo que é estético e pedagógico.
Ney Oliveira (2011) aponta para uma correlação entre o que estava sendo
desenvolvido na Bahia e no Québec desde a década de 90 atinente ao formato do trabalho
de mediação (antes, durante e depois do espetáculo); e elenca a escola como ambiente central
dos processos de mediação, sobretudo como palco para a transformação escolar e social no
que diz respeito ao tema violência. A mediação para o autor é a própria metodologia que
deve ser aplicada nas escolas.
Diferente do Mediato, que utilizou o espaço escolar por uma questão estratégica o
Cuida Bem de Mim ao contrário objetivava a inserção e a mudança neste mesmo espaço.
Outro contraste é que a mediação teatral é colocada como metodologia dentro da escola para
dinamizar as aulas e efetivar uma transformação pessoal e social do público (OLIVEIRA,
2011); enquanto no Mediato e na atual pesquisa, como será visto adiante, não há
compreensão da mediação como metodologia escolar.
Glauber de Abreu (2015) se debruça sobre a contenção do abandono anterior ou
posterior à obra, sendo a anterior crucial para a criação de um ambiente favorável à
experiência. Além disso, sistematiza o trabalho do mediador de teatro criando um
instrumento para uma prática ainda incipiente no Brasil.
Martha Moraes (2014) assume a fala e atua a partir do lugar da gestora cultural de
um espaço institucionalizado de teatro, que é distinto do lugar de fala dos outros
pesquisadores. Ela mesma afirma que seu trabalho investiga a recepção teatral na perspectiva
do gestor cultural. No meu caso e no caso do mediador/pesquisador Glauber de Abreu
(2015), por exemplo, nos colocamos a partir do espaço do mediador e do coordenador
pedagógico. Essas particularidades valorizam cada pesquisa como singular, revelando um
72
trabalho mais voltado à articulação de ações culturais, e outro direcionado aos meandros do
mediar e da experiência estética, respectivamente.
Vimos com os trabalhos acima que ter um único espetáculo, criado exclusivamente
para o projeto, não é regra nos trabalhos de mediação. Acredito que seja mais comum a
criação de ações mediadoras para peças em circulação (DESGRANGES, 2011; MORAES,
2014; ABREU, 2015).
A formação continuada de professores é uma preocupação constante
(DESGRANGES, 2011; OLIVEIRA, 2011; MORAES, 2014; ABREU, 2015). Observando
outras pesquisas pude compreender que no Mediato o encontro com o corpo docente
realizado antes das mediações não poderia ambicionar uma formação, mas, sobretudo por
seu caráter imediato, apenas informar sobre o Projeto e articular a escola para recebe-lo. Um
único encontro não é suficiente para mobilizar os professores a provocar desdobramentos
em sala de aula. Todavia, conforme demonstrado anteriormente, a própria mediação
realizada com estudantes e observada por professores foi capaz de gerar uma modificação
sensível em alguns desses profissionais, levando-os a repensar e até reestruturar sua atuação,
como foi o caso do professor Ulisses Pereira (Teatro, Gama-DF).
Enfim, são trabalhos que se destacam por suas singularidades mas também mantém
entre si semelhanças. Por exemplo, todos corroboram a importância do formato antes,
durante e depois, e o assume como prática, ou ainda, todos concordam que a função da
mediação não é informar explicitando seu caráter crítico, criativo, sensível.
Feito este breve panorama reafirmo o meu lugar de narrativa, com a escolha do
Projeto Mediato, como objeto da atual pesquisa, o que implica em um recorte e uma
localização a partir dos quais foram tecidos os conceitos e a análise constantes no próximo
capítulo. Ou seja, há lugares de fala e o meu se situa no Mediato, com suas características
próprias.
73
2 A MEDIAÇÃO COMO (DILATAÇÃO DA) EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
Uma espécie de abismo rasgas esse texto. Ele é otimista
porque o escrevemos. Se não houvesse penumbra, nos
calaríamos.
Maria Beatriz de Medeiros
Para pensarmos a mediação alguns conceitos se mostram incontornáveis: recepção,
alteridade, interpretação, narrativa, experiência estética. Os dois últimos, contudo, serão o
foco do primeiro momento deste capítulo. Pretendo, a seguir, explicitar a importância da
criação de narrativas dentro dos processos de mediação, bem como aproximar a própria
mediação do conceito de narrativa presente em Walter Benjamin (1994). E, a partir de
semelhanças encontradas entre a personagem G.H. de Clarice Lispector (1995) e os escritos
de Georges Didi-Huberman (2010) sobre a relação entre olhante-olhado, desfiar um
entendimento para o que se chama experiência estética na arte, por meio de uma reflexão
sobre a posição do sujeito na experiência. Aproprio-me ainda da noção de experiência de
Jorge Larrosa Bondía (2015) sendo ela o que nos acontece, o que nos passa e não o que
passa, o que simplesmente acontece. Por fim, este lugar encontrado para o sujeito da
experiência será também o lugar da mediação.
Em seguida, apresento três possibilidades para o que se chama aqui de mediação
como (dilatação da) experiência estética. A narrativa, que vai se configurar como a primeira
e principal via de dilatação, estará presente nas outras duas, a saber: produção de semelhança
e aproximação entre real e ficcional. Para dialogar com a prática utilizarei, ao longo de todo
o capítulo, trechos do registro audiovisual do Projeto Mediato realizado em 2014 dentro de
instituições públicas de Ensino Médio pertencentes à Secretaria de Estado de Educação do
Distrito Federal (SEDF), assim como falas de entrevistas realizadas em 2015 com estudantes
e professores (as) participantes das ações.
Outra questão a ser tratada neste segundo capítulo – que surge como desdobramento
da ideia de mediação como dilatação da experiência estética – é a mediação como ruptura,
para a qual lanço a seguinte investigação: como a mediação pode provocar uma ruptura – ou
cenas de dissenso, como coloca Jacques Rancière (2012) – no sentido de uma mudança de
percepção por parte dos/das estudantes/espectadores (as) e se configurar como um espaço
de troca estético-político? O político será inscrito nas mesmas margens do estético, por isso,
adotarei as relações de proximidade entre essas duas esferas tecidas por Rancière (2009a;
2009b; 2012).
74
Por fim, a ideia de ruptura conduzirá a uma autocrítica quanto às relações de causa e
efeito e ao posicionamento/direcionamento ideológico do Projeto de forma geral (material
impresso, espetáculo e mediações). Neste momento demonstro como o Mediato não
contemplou totalmente a noção de mediação defendida nesta pesquisa, distanciando-se em
alguns casos dos seus propósitos e impossibilitando a experiência e a dilatação. Para tanto
lanço mão de uma apreciação sobre a arte crítica feita por Rancière (2012), mais
especificamente quando ele afirma que é um risco a política estar no conteúdo e não na
estética, o que transponho para as ações mediadoras. Retomo Bondía (2015) quando fala do
par informação-opinião como responsáveis pelo declínio da experiência e me aproprio
também de Virgínia Kastrup (2004; 2005) com seu conceito de aprendizagem inventiva.
No título deste capítulo há uma dupla proposição: a mediação como experiência
estética; e a mediação como dilatação desta. No início da pesquisa a primeira tratava-se de
uma possibilidade de ações mediadoras se configurarem como novas experiências estéticas,
o que será exemplificado adiante quando uma turma é envolvida em um novo processo de
fruição para além do espetáculo. Atualmente penso que essa primeira proposição
compreende também o fato de a mediação aqui proposta seguir os mesmos princípios da
experiência (estética) – de Bondía (2015) e Didi-Huberman (2010). O segundo e principal
entendimento do título, que traz a ideia de dilatação, diz respeito a um modo de mediação
com a qual pretendo dialogar; cujas abordagens conceitual e metodológica serão exploradas.
A mediação compreende basicamente dois movimentos: a dilatação dos sentidos para a
experiência estética – o que acontece antes do contato com a obra; e a dilatação da
experiência estética – que acontece após – cujo desenvolvimento terá mais luz neste trabalho.
Relembrando que a dilatação é no sentido estrito da possibilidade, não da garantia, posto a
impossibilidade de assegurar a experiência.
Explicito, nas próximas páginas, um entendimento para o que compreendo por
dilatação, além das noções de sentido, estética e experiência que serão tratadas aqui.
Sobretudo porque as duas últimas não estão limitadas ao espaço/tempo exclusivo do
espetáculo, ou de qualquer obra de arte.
2.1. Considerações iniciais sobre experiência, dilatação, sentido e estética.
O trabalho pedagógico da mediação não é pautado em outra coisa que no desejo de
dilatar os sentidos para a experiência e dilatar a experiência para a invenção de sentidos. De
75
forma cíclica. Conhecer os escritos de Larrosa Bondía (2015), ao longo desta pesquisa me
levou a perceber que esses dois pontos fundamentais (experiência e sentido) não são
exclusivos da mediação, pois o autor os reivindica para a educação de forma geral. Ele nos
propõe pensar a educação a partir do par “experiência/sentido” ao invés de teoria/prática ou
ciência/técnica. Ou seja, a educação não seria para o autor nem uma técnica aplicada, nem
uma práxis reflexiva, mas uma experiência dotada de sentido. Ele coloca, portanto, essas
duas instâncias como necessárias a uma educação que se pretenda emancipada e
emancipadora; que tenha relação com vida, que seja vital, que problematize as formas de
olhar, de dizer e de pensar o pedagógico.
Por isso, a noção de experiência será aqui tomada em diálogo com esse educador
espanhol, para quem a “experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.
Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas,
porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.” (BONDÍA, 2015, p. 18). A partir de
Heidegger ele toma o sujeito da experiência como um sujeito alcançado, tombado,
derrubado; e também como um sujeito sofredor, padecente, receptivo, submetido. “Não um
sujeito que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo; [...] mas um
sujeito que perde seus poderes precisamente porque aquilo de que faz experiência dele se
apodera.” (p. 28). Mas isso não significa que esse sujeito seja incapaz de ação. Ele tem sua
própria força e se expressa produtivamente, mas não dentro da lógica criticada pelo autor, a
saber: da informação, da opinião, da velocidade e do trabalho.
Como nos ensina Bondía (2015) a experiência diz respeito, portanto, a uma pessoa
(de forma subjetiva), em um tempo e espaço (um tempo que não pode ser controlado ou
planejado previamente) como forma sensível. Ela não é clara, objetiva, organizada ou
organizável. Assim como o corpo, é finita; em movimento; mutável. E por isso se diferencia
radicalmente da lógica do experimento segundo o autor. Certamente há outras possibilidades
de experiência que não seja estética, mas não é delas que vou tratar. Por isso, a noção de
experiência usada neste trabalho pressupõe a estética e se assemelha a de Bondía (2015):
como algo singular mas que produz pluralidade, único, irrepetível, sensível, que nos
acontece, que nos toca, que nos modifica.
Geralmente, a palavra dilatar vem associada a significados que carregam os
referenciais de tempo e espaço, como fazer durar e aumentar o tamanho (expandir),
respectivamente. Na escola aprendemos que a dilatação de um metal, por exemplo, refere-
76
se ao aumento das dimensões (volume) de um corpo sob a influência de uma variação de
temperatura. Tal definição é similar à pretendida aqui, pois a dilatação difere de um
crescimento natural. Ela necessita de uma influência externa para se concretizar. De tal
modo, compreende-se a dilatação da experiência estética como uma manifestação temporal
que acontece em função de interferências da mediação.
As ações mediadoras refreiam a experiência e contém o seu vigor, com vias de
prolonga-la; não meramente pelo alongar-se, mas para desenvolver as potencialidades de
suas partes constituintes. Para explorar o que há de germinal na experiência estética. Para
descobrir e inventar sentidos.
A dilatação é uma forma de explorar o movimento de aproximar-se e distanciar-se,
intrínseco à mediação. Como um olhar que, ora está sobre um prédio, ora dentro da cidade.
Em um elevado edifício experimenta-se um olhar amplo, do todo. Dentro da cidade não há
mais a visão abrangente, mas ganha-se um olhar íntimo, das partes. Este momento, imerso e
envolto, permite aprender sobre casas, prédios, (suas fachadas e seus interiores) a respeito
de ruas, carros, bicicletas, jardins, (e seus ruídos), acerca da vida urbana e seu ritmo.
Analogamente, os processos de mediação tencionam experienciar estes distintos
movimentos do olhar: o de dentro e o de fora, o próximo e o distante, os detalhes e o todo.
Há uma figura, que servirá de imagem-síntese para a mediação aqui proposta. Ela já
foi explorada por artistas, psicanalistas e outros, contudo não se desgasta enquanto potência
significativa. Trata-se da fita de Moebius. Um dentro que traz, inevitavelmente, um fora: a
pura ambivalência. O artista holandês Maurits Cornelis Escher realizou duas xilogravuras
com esta representação; na segunda, Fita de Moebius II (1963), o artista a fez com formigas
transitando sobre sua superfície. “Uma fita circular fechada tem, em geral, duas superfícies,
uma interior e uma exterior. Sobre esta fita, contudo, andam nove formigas vermelhas, uma
atrás da outra, e elas passam sobre o lado exterior e também sobe o interior. Assim, a fita só
tem uma superfície.” (ESCHER, 2010, p. 122). Opto, nessa apropriação, pela segunda
justamente porque o artista explicita, por meio das formigas, o caminhar contínuo entre o
interno e o externo; para si e para o outro; entre o íntimo e êxtimo.
Este neologismo (êxtimo) criado por Lacan (apud RIVERA, 2014) fala de uma
intimidade exterior. Logo, utilizo o termo não como oposto ao “íntimo” e sim como uma
continuidade externa do que há de mais singular dentro. Tal continuidade (interno-externo)
se dá em direção a um outro (obra de arte ou sujeito). Isso nos permite utilizar esta imagem
também para a relação de alteridade, noção fundamental à mediação. As formigas
77
evidenciam o movimento de alteridade: vai em direção ao outro e retorna para si em eterno
movimento.
A mediação é esse exercício de caminhar pela fita: pela experiência, que é o singular
dentro, e pela invenção de sentidos, que pode ir ao encontro do que há fora. O inseto
caminhando é a própria dilatação, uma ação no espaço e no tempo.
Figura 1 – Fita de Moebius II (formigas). Escher. 1963
xilogravura 45,3 x 20,5 cm.
Fonte: Catálogo de exposição O mundo mágico de Escher. (2010, p. 122)
A dilatação também se figura como espaço-tempo para a assimilação do que está se
vivenciando naquele momento. Assimilar é aqui compreendido como o processo de
transformar o que se recebe em algo que faça sentido para si próprio; é “converter em sua
própria substância”.29 E se pensarmos que tal conversão se dá, inevitavelmente, em relação
às vivências prévias, podemos entender que acontecimentos anteriores podem ser resgatados
e atualizados pela vivência em curso durante a mediação. Ou como afirma John Dewey
(2010, p. 147), “coisas retidas da experiência passada, que tenderiam a ficar batidas por
29 Trecho do verbete “assimilar” em Minidicionário Larousse da Língua Portuguesa.
78
causa da rotina ou inertes por falta de uso, transformam-se em coeficientes de novas
aventuras e se reveste de um novo significado.” Inclusive, qualquer coisa que se passa nos
sujeitos participantes, passa a partir de uma bagagem particular que os constitui.
Trata-se, assim, de um tempo necessário à assimilação. Do qual os verbos relacionar,
apropriar-se, impregnar, converter e incorporar fazem parte. Este último é compreendido
literalmente quando se atribui forma corpórea à (e na) produção de sentidos, por meio da
proposição de ações que envolvam os corpos dos próprios estudantes. Trazer para próximo
do (e colocar no) corpo é um recurso potente para a mediação voltada às artes do corpo e do
espetáculo.
Conforme dito, há na mediação aqui proposta uma dilatação que é da experiência
estética (o que se daria após o contato com a obra, compreendendo a experiência
exclusivamente enquanto possibilidade); e há a dilatação dos sentidos com vistas à abertura
necessária à feitura da experiência. Todavia, há uma confusão quando falamos em produção
de sentidos na mediação. Por vezes acha-se que ela está vinculada ao contato com a obra, no
nosso caso, com assistir ao espetáculo; por vezes ela aparece associada exclusivamente ao
ato interpretativo que é parte constituinte da mediação. Prefiro, contudo, tomar a palavra, e
o conceito, de forma ampliada e coloca-la como potencialmente presente durante todos os
momentos: da mediação ao espetáculo.
Sendo a produção de sentidos uma questão fulcral para a mediação, tomarei o
entendimento de John Dewey (2010, p. 88), para quem o “sentido abarca uma vasta gama
de conteúdos: o sensorial, o sensacional, o sensível, o sensato e o sentimental, junto com o
sensual. Inclui quase tudo, desde o choque físico e emocional cru até o sentido em si – ou
seja, o significado das coisas presentes na experiência imediata.”
Ainda segundo o autor, tanto a atividade prática quanto a intelectual, possui
qualidade estética, quando integrada e consumada. Deste modo, mesmo que a mediação
comporte atividades dessa natureza sua qualidade estética não será comprometida. Até
mesmo porque ela não é um momento exclusivamente intelectual, ou de ação. É, em sua
totalidade, um momento de produzir sentidos. E é pela via dos sentidos (ampliados pelas
ações mediadoras) que podemos pensar a dilatação da experiência na mediação. Pois se o
estético diz respeito aos sentidos; ao propor uma dilatação da experiência estética, propõe-
se também a dilatação destes.
Compreender a qualidade estética da mediação é de suma importância, pois existem
tantas “experiências” inestéticas que, inconscientemente, elas passam a ser tidas como a
79
norma (DEWEY, 2010), sobretudo no âmbito escolar. Tais anti-experiências, segundo o
autor, não se consumam, são interrompidas, e/ou não produzem sentido para o indivíduo ou
coletividade. Por isso, penso que seja interessante desenvolver atividades (e a reflexão está
inserida) que explorem os sentidos em toda sua amplitude.
Para Maria Beatriz de Medeiros (2005, p. 13) “A aisthesis, estética no sentido grego
do termo, é um estar aberto ao mundo, aberto ao sensível do/no mundo e deixar-se
contaminar”. É a percepção pelos sentidos. E lembra muito bem a autora que tratando a
estética dos sentidos, do sensível, não há de se pensar apenas no prazer, mas também no
desprazer, no horror. “Aquilo que dá prazer, ou desprazer, nos arranca do ambiente em que
estamos, projetando-nos em um mundo que se forma entre o sujeito e a obra”. E ainda a
“aisthesis funda o imaginário. É ela que abre o ser humano para a subjetividade e para a
intersubjetividade. Aisthesis e desejo de compartilhar” (MEDEIROS, 2005, p. 57-58).
A noção de estética associada ao desejo de compartilhar será retomada adiante
quando tratarei da narrativa. Por enquanto interessa-nos a perspectiva de estética associada
à necessária abertura, a certa experimentação de uma relação com o sensível e a criação de
um outro mundo, como possibilidade deste que vivemos. Assim como a arte nos possibilita
ficcionar o real, ou ver o real por meio dos olhos da ficção e na experiência o real nos aparece
em sua singularidade (BONDÍA, 2015), assim também necessitamos na mediação, pela via
da manutenção do estético, propor ações que permitam ao público continuar esse processo
de abertura para o sensível deixando-se contaminar, singularizar.
A noção de estética será aqui compreendida dentro e para além das margens do
artístico. Consequentemente, uma experiência estética não está exclusivamente relacionada
ao contato com uma obra de arte. Segundo Rancière (2009a), a arte e a política são regimes
semelhantes. Ambos são essencialmente estéticos, são formas de reconfiguração do mundo
sensível. Suas relações se dão como formas de dissenso, como reconfigurações da
experiência comum do sensível (RANCIÈRE, 2012).
Para o filósofo temos de ampliar nosso entendimento de estética, e compreende-la
como “modos de percepção e sensibilidade, a maneira pela qual os indivíduos e grupos
constroem o mundo. É um processo estético que cria o novo, ou seja, desloca os dados do
problema.” (2009a, n.p.). E ainda, como “um modo de articulação entre maneiras de fazer,
formas de visibilidade dessas maneiras de fazer e modos de pensabilidade de suas relações,
implicando uma determinada ideia de efetividade do pensamento.” (2009b, p. 13).
80
A arte, a política, a estética e a mediação (esta, justamente por lidar com as três
instâncias anteriores, o que discutirei no subcapítulo “ruptura”) estão diretamente ligadas
com uma reorganização do que é perceptível. Para Rancière (2009b) elas têm capacidade
para mexer com as hierarquias sensíveis do pensamento, desorganizar a forma como
entendemos o que nos é dado, ou melhor, o que e como é partilhado.
O conceito de “partilha do sensível” desenvolvido pelo mesmo autor será útil para a
definição de estética, bem como para certa aproximação da ideia de educação que se pretende
para o atual trabalho. Primeiramente porque a ideia da partilha abre a uma dupla questão: a
participação em algo que seja comum a outro (s); e a distribuição, repartição. Portanto, trata-
se da maneira como se dá a relação entre o comum compartilhado e a divisão das partes.
Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao
mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e
partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo, um
comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se
funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina
propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e
outros tomam parte nessa partilha. O cidadão, diz Aristóteles, é quem toma parte no
fato de governar e ser governado. Mas uma outra forma de partilha precede esse
tomar parte: aquela que determina os que tomam parte. (RANCIÈRE, 2009b, p. 15-
16).
Reorganizar a forma como pensamos essa partilha (o que e como é partilhado, e quem
define a distribuição) é um movimento do qual a arte tem se ocupado. Creio que a mediação
como forma educativa estética-política também toma parte nessa ocupação quando se propõe
a investigar e inventar meios para colocar em causa a partilha do sensível que nos é dada.
2.2 O sujeito dilatado
Compreendi que a melhor forma de iniciar um diálogo entre narrativa, experiência,
sujeito e dilatação seria justamente exteriorizando por meio desse recurso (a narração) uma
experiência. Tendo em vista as noções até aqui expostas, ousei desfiar, em tom ensaístico, a
produção de uma narrativa realizada após visita à exposição Ciclo: criar com o que temos -
2ª edição que reuniu obras de vários artistas no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de
Brasília-DF, entre fevereiro e abril de 2015. E a proponho, a partir de então, como imagem-
metáfora para adentrarmos as próximas ideias.
A porta havia se fechado às suas costas; estava agora inevitavelmente dentro. Havia
uma janela; uma claridade vinha dela. Havia um corpo, aliás, a silhueta de um corpo que se
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projetava frente à janela; o corpo olhava à claridade. Tal cena se precipitava de dentro de
uma moldura, ovoide como um olho, um enorme olho inquieto que impossibilitava que a
imagem se fixasse. A imagem, constituída por linhas em movimento, tentava se
reestabelecer, mas o grande olho a reconstruía incessantemente; tão rápido que não se podia
fixa-lo. “Um presente perene”. Pensou. “O presente, agora morto, já é memória”. Tudo o
que foi visto antes do último piscar de olhos já não é mais, mas era.
A silhueta se desmanchava e se materializava em outros lugares dentro da cena; tal
figura agora tomava proporções maiores e menos indefinidas. A janela permanecia.
Imaginava: “o que o corpo via?”. “O que tanto se via através daquela janela?”. “O que há lá
fora?”. “Por que aquela imagem não se tornava logo nítida e se permitia ser vista?”, pensou.
O que é uma janela? Uma estrutura mais ou menos geométrica de metal, de madeira, de
vidro. Ou não, janela é o que há para além dessa estrutura, o buraco, a paisagem. Se eu
pudesse deslocar minha janela, para onde a levaria?
No meio do devaneio o guardião inquieto projetou-se em sua direção e perguntou se
havia entendido o enigma. Uma palavra-chave lhe foi dada: “Espelho”. Espelho era o nome
daquele enigma. Não uma janela, mas um espelho. O fora tornou-se dentro. Tudo o que ela
via além, virou-se em sua direção, como um reflexo. Ela calou. Houve então a comunhão.
Foi-lhe permitida a entrada, mas era um caminho sem volta. Dali em diante sua única
opção era desnudar-se. E assim o fez. Havia um som que a acompanhava desde sua entrada,
e estava agora mais audível. Inquietante e paradoxalmente agradável, o barulho a
acompanhava durante toda a travessia.
Canogar, que estava a sua espera, deu-lhe a mão. Contou-lhe histórias sobre a vida e
a morte; falou sobre a guerra, o desperdício, a submissão; sobre a evolução do homem e o
uso de aparelhos eletrônicos como extensão do próprio corpo; sobre o novo e sobre o desejo;
a respeito da vida e da morte de aparelhos eletrônicos. Quanta coisa aos pedaços! Aquilo era
uma expedição arqueológica. Todos aqueles objetos foram fundamentalmente íntimos na
vida de alguém! Eram apenas restos agora. Mas restos da extensão de corpos, corpos que
ainda deviam estar vivos. Corpos vivos, objetos mortos! Corpos mortos, objetos vivos!
Na verdade, havia uma montanha de objetos (peças eletrônicas) e uma multidão de
pessoas se rastejava por baixo, entre e sobre aqueles fragmentos; pessoas se rastejando em
pedaços de memória.
O som está cada vez mais alto. Decide então ir em sua direção e despede-se de
Canogar. Enfim, descobre de onde vem o barulho: de instrumentos; quase uma banda, mas
82
sem músicos, eram, portanto, instrumentos autônomos. Sentiu aqueles objetos sonoros no
corpo e quis dançar. Mas viu a imagem intolerável. Desnudou-se demais. Os instrumentos
eram, antes, instrumentos de morte. O corpo calou gritando. Como pôde confundir? Como
pôde não ver antes todos aqueles instrumentos bélicos?
Fragilizada e descoberta por fim encontrei uma banheira onde talvez pudesse deitar
e descansar meu corpo. Mas fui cegada pelo reflexo fulgurante e cortante daquela banheira.
O vazio daquele objeto não me permitia olhá-lo apenas como banheira. Meu corpo não quis
ver, pois era desumano; mas o vazio daquela obra me olhava; olhei de volta com um olhar
de morte e meu corpo então sentiu as centenas de lâminas de barbear que constituíam aquela
banheira. Imagem limítrofe, jogou meu corpo de volta para mim.
Durante toda a exposição tencionei olhar aqueles objetos e eles me olharam de volta.
Eles me convidaram a abrir os olhos para experienciar o que eu não via, o que estava para
além da evidência do visível. Eu sabia que aqueles objetos me olhavam. Havia um ato
consciente de atribuição de poder à coisa olhada. E com esse poder me questionavam que
lugar eu ocupava ali.
Figura 2 –Espelho de Canudos Darwiniano I. Daniel Rozin (Israel) 2010.
Computador, softwere personalizado, câmera de vídeo e projetor.
Fonte: site <http://artbymeera.blogspot.com.br/2010_12_01_archive.html> Acesso em abril 2015
83
Figuras 3 e 4 – Micro Dados. Daniel Canogar (Espanha) 2014. Peças descartadas, projetor e reprodutor multimídia.
Fontes: registro pessoal e site do artista <https://www.artsy.net/artwork/daniel-canogar-asdf> Acesso em abril 2015.
Figura 5 – Desarme. Pedro Reyes (México) 2013.
Aproximadamente 6.700 armas confiscadas. Instalação com 8 instrumentos mecanizados.
Fonte: Divulgação site < http://www.achabrasilia.com/ciclo/> Acesso em abril 2015.
84
Figura 6 – Vamos dar um tempo. Tayeba Begum Lipi (Bangladesh) 2013. Lâminas e manta de aço inoxidável.
Fonte: registro próprio
Um ponto central para a mediação é o lugar que o sujeito ocupa (na
contemporaneidade). Na sua condição de espectador, e também fora dela. Contudo, essa
questão mobilizadora não é exclusiva da mediação. A arte e a psicanálise refletem sobre ela
há um tempo – talvez por isso as duas áreas venham estreitando cada vez mais suas relações.
Podemos ver artistas e críticos tratando do retorno do sujeito dentro da produção artística.
Penso com Tânia Rivera (2014, p. 20) quando diz que o “sujeito está no centro da questão
da arte. Isso poderia parecer um viés subjetivante, ou, pior, psicologizante. Mas não se trata
disso. É necessário afirmar hoje que a arte contemporânea é marcada por um verdadeiro
retorno do sujeito”.
85
A autora coloca que esse sujeito perde seu lugar para retornar como questão. Mas
que lugar seria esse? O recinto do olho soberano, o recinto da relação com uma arte dada a
um olho fixo! O sujeito desmaterializou e problematizou suas fronteiras em relação ao outro
– o eu apela ao outro: um outro sujeito, obra. Descentrado, em sua percepção, ele não
consegue mais ocupar o mesmo espaço de antes e isso pede uma mediação do olhar. O
retorno do sujeito seria, a meu ver, o que mobiliza, e em alguma medida justifica a mediação.
Antes que essas fronteiras fossem colocadas em questão perguntas como “qual o meu
lugar como sujeito na contemporaneidade?” ou “qual a minha condição como espectador?”
não tinham lugar, ou ao menos não eram evidenciadas. Entretanto, cabe apontar que
desmaterializar as fronteiras não quer dizer tornar-se o outro. É assumir uma co-
dependência, é complementar-se no outro, é colocar-se momentaneamente no (lugar do)
outro. Certa alteridade.
Claudio Cajaiba (2013) aponta em Teorias da recepção que a noção de alteridade –
imprescindível para pensarmos os processos de recepção teatral hoje – foi discutida por
teóricos (principalmente da hermenêutica filosófica) já no início do século XIX. Essas
noções permitiram encarar textos, objetos, ações, de forma interpretativa para além da
exclusiva intencionalidade do autor, ou do detentor da coisa. Este foco dado ao intérprete,
com sua dimensão individual e subjetiva, foi criticado e acusado de psicologizante segundo
Cajaiba, no entanto, não se pretendia focar exclusivamente no receptor, mas sim na relação
entre objeto e sujeito. “A relação entre o horizonte do sujeito e o do objeto é a chance para
que a voz da alteridade se faça escutar. O outro se faz escutar através do eu que o interpreta”
(CAJAIBA, 2013, p. 28).
Talvez seja disso também que nos fala Jeanne Marie Gagnebin (2013, p. 39) quando
analisa os conceitos de história e narração em Benjamin e traz a noção de alegoria como
consequência de um caminho que parte da morte da tradição para a desorientação e
melancolia, culminando na perda da totalidade. O que provocaria, por sua vez, o surgimento
da alegoria.
A alegoria cava um túmulo tríplice: o do sujeito clássico que podia ainda afirmar
uma identidade coerente de si mesmo, e que, agora, vacila e se desfaz; o dos
objetos que não são mais os depositários de estabilidade, mas se decompõe em
fragmentos; enfim, o do processo mesmo de significação, pois o sentido surge da
corrosão dos laços vivos e materiais entre as coisas, transformando os seres vivos
em cadáveres ou em esqueletos, as coisas em escombros e os edifícios em ruínas.
86
A autora diz acima que o conhecimento alegórico é tomado pela vertigem: não há
mais ponto fixo, nem com relação ao objeto, nem com relação ao sujeito; não há verdade,
nem sujeito soberano. Há sim um desmoronamento das certezas, da estabilidade, da
totalidade. E a alegoria vem para expor essas ruínas. Dessa forma, o retorno do sujeito como
questão, apontado por Rivera (2014), flertaria diretamente com o surgimento da alegoria,
que cria esse novo sujeito que “vacila e se desfaz”: um sujeito dilatado.
Acredito realmente que a mediação tenha se desenvolvido e se difundido em função
de uma demanda do “retorno do sujeito” e de um “regime estético da arte” (RANCIÈRE,
2009b), pois esse deslocamento do sujeito convoca o espectador a um novo estado. Assim
como há uma nova forma de presença dos atores e dos performers, há também uma nova
presença do espectador. E a mediação quer – me apropriando das palavras de Rivera
novamente – “convocar o sujeito a uma nova forma de presença.” As ações mediadoras
buscam, portanto, caminhar juntamente aos estudantes-espectadores, auxiliando-os na busca
do seu lugar como sujeito na obra e fora dela. Mas certamente, não se trata de um lugar pré-
determinado e fixo.
Rancière (2009b) define o regime estético das artes como aquele que as desobriga de
toda e qualquer regra específica. O autor chega a propor uma substituição da noção de
modernidade pela noção de regime estético, colocando este, como a ruína do sistema de
representação. Adoto o termo para falar da produção artística que geralmente chamamos de
moderna e principalmente a produção contemporânea. Contudo, não posso dela falar com
exclusividade, uma vez que, uma obra de quatro séculos atrás pode ser espantosamente
contemporânea, se pensarmos a investida no lugar que o espectador ocupa.
Talvez o lugar do sujeito-espectador dilatado seja o já postulado por Michel Foucault
(2007) em sua análise da famosa pintura Las Meninas (1656) de Velásquez. Quiçá, o próprio
artista, no século XVII, já exigiu este lugar. No quadro há o pintor em sua função (seria um
autorretrato?), com uma grande tela à diagonal. Dela vemos apenas o verso, parcial. Ele
antecipa uma pincelada observando seu possível modelo. Velásquez olha diretamente para
fora do quadro. Com isso, ele nos exige a inevitável presença e um olhar de regresso. “O
pintor só dirige os olhos para nós na medida em que nos encontramos no lugar do seu
motivo.” (FOUCAULT, 2007, p. 5) e esse olhar aceita tantos modelos quantos espectadores
lhe apareçam. Ou seja, a obra só nos olha se a olharmos primeiro e esse processo é
infindavelmente individual. O sujeito, então, está dentro da pintura, uma vez que esse pintor-
87
observador captura quem estiver na direção do seu olhar, para representa-lo em sua tela. Que
dela, novamente, vemos apenas o avesso.
Como se não bastasse estar dentro, visível ao pintor e invisível para si, o sujeito
encontra-se novamente dentro da pintura: no espelho que há, nada mais, nada menos, que no
centro, quase geométrico, do quadro. Nele, refletem os modelos que posam, mas também
nós, que o olhamos. “Essas figuras [que o pintor olha e que olham o pintor] são, uma e outra,
igualmente inacessíveis, mas de modo diferente: a primeira por um efeito de composição
que é próprio ao quadro; a segunda, pela lei que preside à existência mesma de todo quadro
em geral.” (FOUCAULT, 2007, p. 10). Ou seja, o casal real (Filipe IV e Mariana de Áustria)
seria naturalmente o modelo daquela pintura; e ao mesmo tempo o sujeito observador,
espectador, e por que não, participante daquela cena. Cabe ainda atentar que essa segunda
perspectiva deixa claro um caráter que é intrínseco à arte: de demandar a presença do sujeito.
Stuart Hall (1997), ao falar sobre representação e discurso toma a análise feita por
Foucault e assinala que o modelo não é diretamente representado, mas sua ausência é
representada através do espelho. Um complexo jogo recíproco entre presença e ausência. E
que de alguma forma o discurso da pintura nos coloca na posição do soberano, do rei. Para
o autor, projetarmo-nos como sujeitos da pintura nos ajuda, como espectadores a ver, fazer
parte dela e criar sentido.
Por fim, o sujeito dilatado cria eco com o sujeito da experiência de Bondía (2015)
que se define não por sua atividade, mas por sua receptividade, disponibilidade e por sua
abertura; e com o sujeito descentrado de Rivera (2014). E ambos ocupariam o lugar do
modelo de Velásquez: na obra! O sujeito dilatado sou eu; é você. E nos desejos profundos
da mediação seríamos todos nós.
O sujeito dilatado é aquele que com a obra pôde e pode ter uma experiência (no
sentido da possibilidade). Porque é dilatando os sentidos para a experiência e dilatando a
experiência para a invenção de sentidos que poderemos habituar esse sujeito ao estado aberto
(aos sentidos, ao mundo) necessário à experiência com a arte. A mediação, de tanto dilatar
talvez se diluirá nesse tempo que ela mobiliza, como se cavasse a própria morte. Ou seja,
em um mundo em que todos pudessem com a arte ter uma experiência, gerar outras
experiências a partir disso e desejar novas relações com o sensível, numa cadeia sem fim –
seja essa experiência de prazer, desprazer ou negação, e não com todas as obras, é claro! –
quem sabe nesse mundo não falaríamos mais em mediação.
88
2.3 Aproximações entre a experiência em Didi-Huberman e Lispector
Larrosa Bondía (2015, p. 26), como se pôde perceber, tece alguns princípios sobre
experiência. Estes não se restringem ao âmbito artístico, mas serão aqui voltados para a
relação estética com a arte. O autor trabalha em seu conceito o sujeito da experiência
primeiramente como um território de passagem e como um espaço onde têm lugar os
acontecimentos; depois, o sujeito da experiência como um sujeito “ex-posto”, pois “é
incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não
se ‘ex-põe’”. Coloca ainda, a experiência como travessia e perigo; e também como paixão.
Sobre esta última, Bondía (2015, p. 28) esclarece:
Se a experiência é o que nos acontece, e se o sujeito da experiência é um território
de passagem, então a experiência é uma paixão. Não se pode captar a experiência a
partir de uma lógica da ação, a partir de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo
enquanto sujeito agente, a partir de uma teoria das condições de possibilidade da
ação, mas a partir de uma lógica da paixão, uma reflexão do sujeito sobre si mesmo
enquanto sujeito passional.
O autor, ao sugerir o sujeito passional, não está pressupondo a mera passividade, mas
um sujeito paciente, que assume o padecimento, que suporta, que aceita, e até mesmo que
tem sua própria força produtiva. E quanto à paixão, propriamente dita, refere-se a sua relação
intrínseca com a morte, mas uma morte desejada como verdadeira vida, como renascimento.
Refere-se, ainda, ao sujeito apaixonado não como detentor do objeto amado, mas sim
possuído por ele (BONDIA, 2015).
Veremos que a paixão será compreendida de forma semelhante em A paixão segundo
G.H. de Clarice Lispector – mesmo que não se fale explicitamente dela. As quatro dimensões
da experiência colocadas por Bondía (2015) estão presentes na narrativa de G.H. – sujeito
exposto e como território de passagem; experiência como travessia, perigo e paixão. E
deseja-se presente também na experiência estética e na produção de narrativa dentro dos
processos de mediação.
O livro de Lispector é uma espécie de exercício da linguagem como possibilidade de
tocar o intocável, falar o inefável, no qual a autora se apropria da escrita em forma de fluxo
de pensamento. A personagem G.H., (narradora no livro) passa por uma vivência de
autoconhecimento dentro de um cômodo de sua própria casa. O trajeto feito para o interior
desse lugar – o quarto de empregada, que ela não entrava há muito tempo – pode facilmente
servir de metáfora para a entrada em si própria, como uma entrada no desconhecido. G.H.
explicita isso: “o quarto desconhecido. Minha entrada nele se fizera enfim.” E ainda, “como
89
se eu fosse também o outro lado do cubo, o lado que não se vê porque se está vendo de frente
[...]. E na minha grande dilatação, eu estava no deserto.” (LISPECTOR, 1995, p. 63-64).
Ao entrar no quarto G.H. é primeiramente surpreendida com a imensa claridade vinda
da janela e com o vazio do cômodo: não havia nada além de um guarda-roupa e uma cama
com colchão. A personagem faz inclusive uma analogia do quarto com o deserto. Este,
presente em algumas passagens da narrativa cristã, pode ser interpretado como um processo
de autoconhecimento, pela via de uma experiência de provação, na qual as noções de
travessia, sujeito exposto e perigo estão claramente presentes.
Outra surpresa da personagem foi o desenho, feito em carvão, de três silhuetas na
parede branca (um homem, uma mulher e um cachorro) deixado por Janair (a empregada).
Por fim, a personagem se depara com uma barata na porta do guarda-roupa. A partir de então
se desenvolve todo um processo de epifania. Ela passa por uma experiência na qual se
conhecer é perder-se, ou seja, o que proporciona o autoconhecimento carrega também a
perspectiva da perda, – processo explicitado pela fala de Didi-Huberman (2010), como
veremos adiante – e busca então a própria identidade. A silhueta nua e inquietante desenhada
na parede, num dado momento de reflexão, torna-se a pura representação do seu vazio
interior. O vazio da silhueta revela, como reflexo, o seu insuportável vazio.
Segundo a personagem, a entrada para o quarto só tinha uma passagem, estreita: pela
barata. Se encararmos a barata como metáfora da resistência, da permanência e da
imutabilidade, pela sua própria forma de vida na Terra; e também como o objeto de medo e
ódio pela sua relação com a personagem; poderemos dizer que G.H. fez a travessia superando
a sua própria permanência pacífica, rumo ao desconhecido, ao temido, ao revelador. E nessa
travessia há inevitavelmente o perigo e a exposição.
Pressionada por G.H., a porta do guarda-roupa esmaga ao meio o inseto, partindo-o
em dois. Antes G.H. via apenas a exterioridade da coisa, mas a partir da cisão, ela vê a vida,
a essência da coisa: a massa branca da barata. Dá-se a uma dupla visão: o fora e o dentro. A
personagem passa então a experienciar o conhecimento de si mesma através do outro (a
barata). O que é a experiência estética com a arte senão um encontro com a obra e consigo
mesmo?
A cisão da barata seria então a metáfora para um processo de alteridade. E se
tomarmos Didi-Huberman (2010, p. 29), seria a cisão, também, um paradoxo da visão:
O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutavelmente
porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha. Seria
90
preciso assim partir de novo desse paradoxo em que o ato de ver só se manifesta ao
abrir-se em dois. Inelutável paradoxo.
Além da cisão, a perspectiva da perda pode ser encontrada em Lispector e Didi-
Huberman. Suas respectivas escritas se desdobram de forma semelhante quando desfiam
suas imagens ambivalentes. O autor trata da experiência estética pela via do que está entre o
que vemos e o que nos olha. Para ele, ver é perder quando algo nos olha como uma obra
visual de perda, e a ausência nos ameaça.
[...] nossa desorientação do olhar implica ao mesmo tempo ser dilacerados pelo
outro e ser dilacerados por nós mesmos, dentro de nós mesmos. Em todo caso
perdemos algo aí, em todo caso somos ameaçados pela ausência. Ora,
paradoxalmente, essa cisão aberta em nós – cisão aberta no que vemos pelo que nos
olha – começa a se manifestar quando a desorientação nasce de um limite que se
apaga ou vacila, [...]. (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 231).
Lispector (1995, p. 15-16) explicita esse processo em G.H.: “Perdi alguma coisa que
me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse
perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim
um tripé estável”. Rivera (2014, p. 42) também fala da perda, citando Lacan: “se um pássaro
pintasse, diz o psicanalista, seria deixando cair suas penas; uma árvore, sua casca e suas
folhas. O ato mesmo de se exteriorizar, o sujeito perde algo, de seu corpo caem objetos”
Além da perda, há, por consequência, uma desorientação. G.H. tenta verbalizar a
experiência, mas é uma completa perturbação do olhar. Vai compreendendo de forma
fragmentária à medida que vai narrando. Tem medo do que viveu e da instabilidade e
vulnerabilidade que isso lhe causa. Tem medo da perda, do vazio, na medida em que o vazio
a desorienta. Ela não compreende o que viu, nem mesmo sabe se viu, já que seus olhos
terminaram não se diferenciando da coisa vista. “Eu sou a barata” diz G.H. (LISPECTOR,
1995, 69).
Ora, se não é exatamente desta matéria que trata a experiência estética com arte? O
olhante e o olhado se fundem em um determinado momento. Da mesma forma que a
personagem se funde com a coisa vista, sem mais saber delimitar o que é ela e o que é o
outro, assim também o espectador se funde à obra em experiência mesmo que por um
instante quase insuportável. “O mundo só não me amedrontaria se eu passasse a ser o
mundo.” (LISPECTOR, 1995, p. 95). G.H. passa a ser a coisa, mas diferente do processo
kafkaniano em “A metamorfose”, ela a possui em carne, ela come a barata; a sua massa
branca, a sua essência.
91
Cabe relembrar que não se trata de tornar-se outro: há fusão e há alteridade.
Retomando Lacan, citado por Rivera (2014) seria uma continuidade externa do que há de
mais singular dentro. Há uma ida e uma volta, que inclusive se dá em um caminho tênue se
pensarmos na fita de Moebius novamente: as formigas evidenciam o movimento de
alteridade.
O que Lispector escreveu sobre o acontecimento epifânico da personagem com a
barata, bem poderia ter sido escrito sobre a relação do espectador com a obra de arte. Há um
processo que se assemelha: G.H entra no quarto; assim como o espectador entra no espaço
da experiência. Ela encara a barata (o outro, desconhecido); ele (espectador) trava um duelo
de sentidos com a arte. A personagem intenta contra a vida do inseto, partindo-o ao meio;
assim também o espectador provoca uma cisão no que vê, na medida em que considera não
apenas o que vê, mas também o que o olha, ou seja, se põe em abertura para a experiência.
G.H. vê a massa branca exposta da barata, se funde àquela essência, que é a matéria pura da
vida, e a come; o espectador em experiência estética ultrapassa a superficialidade, se funde
à obra, às vezes sem saber diferenciar o que é ele e o que é arte, estabelecendo assim uma
comunhão. G.H. retorna a si e cria sua narrativa a partir da experiência; o espectador
(estimulado por ações mediadoras ou não) retoma o seu lugar para pensar o que lhe
aconteceu. Ambos, G.H. e espectador, se expõem e permitem que algo os aconteça, se
permitem à vulnerabilidade; ambos assumem a travessia e o perigo.
Didi-Huberman (2010) traz em seu livro O que vemos, o que nos olha um
personagem chamado Stephen Dedalus (protagonista e anti-herói) de romances de James
Joyce, – também considerado como alterego literário do autor. Ao fazer alusão a este
personagem, Didi-Huberman evoca o que nos olha, na medida em que tudo o que ao
personagem se apresenta é olhado pela perda de sua mãe. Qualquer coisa que é olhada, por
mais neutra que pareça ser, ele vai olhá-la pela perspectiva da perda. Como se o fechar
definitivamente as pálpebras de sua mãe permitisse que agora ela o olhasse.
Mas a conclusão da passagem joyciana – “fechemos os olhos para ver” – pode
igualmente, e sem ser traída, penso, ser revirada como uma luva a fim de dar forma
ao trabalho visual que deveria ser o nosso quando pousamos os olhos sobre o mar,
sobre alguém que morre ou sobre uma obra de arte. Abramos os olhos para
experimentar o que não vemos, o que não mais veremos – ou melhor, para
experimentar que o que não vemos com toda a evidência (a evidência visível) não
obstante nos olha como uma obra (uma obra visual) de perda. (DIDI-
HUBERMAN, 2010, p.34).
Assim como a mãe do personagem não cessa de olhá-lo, algo também nos olha
quando fitamos algo. Assim como Stephen Dedalus não via unicamente o mar ao olhá-lo,
92
mas algo além – e esse além era a morte (a que foi e a que está por vir) – assim também
podemos ver além ao entrarmos em contato com a arte. O que leva o personagem a ver afora
da evidência dada ao olhar, são os olhos fechados de sua mãe, por isso a ambiguidade em
“fechemos os olhos para ver”. E abrir os olhos para experimentar o que não vemos, é permitir
a abertura necessária para que aquilo que olhamos também nos olhe, ou seja, a cisão, quando
o olhar se parte em dois.
Ao final da citação, o que o autor coloca é justamente a necessidade de um olhar para
a arte que se assemelha a este olhar de morte, de perda, (acrescentaria ainda de paixão). Não
há nada de confortável na perda. A inquietude, é, portanto, o estado desejado para o olhar.
Didi-Huberman (2010, p. 34) diz que em geral temos a impressão de ganhar algo na
experiência do ver, mas essa sensação de ter é enganosa, uma vez que “a modalidade do
visível torna-se inelutável – ou seja, votada a uma questão de ser – quando ver é sentir que
algo inelutavelmente nos escapa, isto é: quando ver é perder.” Essa perda está diretamente
relacionada com a inquietude e a desorientação na experiência do ver; presente também em
G.H. quando associa a perda de uma terceira perna, que a tira da situação de tripé e a
desestabiliza. Mas ao mesmo tempo é essa perda inquietante que gera a vida.
Bondía (2015, p. 30) também explicita essa relação entre vida e morte, apontando-a
inclusive como característica mesma da paixão. “A paixão tem uma relação intrínseca com
a morte, ela se desenvolve no horizonte da morte, mas de uma morte que é querida e desejada
como verdadeira vida, como a única coisa que vale a pena viver, e às vezes como condição
de possibilidade de todo renascimento.” Assim também é a paixão segundo G.H.
A perspectiva do objeto que olha o sujeito, em Didi-Huberman, é explicitada por
meio da imagem ambivalente do túmulo. Ambivalente porque o túmulo é colocado pelo
autor como objeto que recolhe um corpo morto, o que gera dor; e também como objeto
esvaziado pela fé, por exemplo, na tradição cristã, o que gera uma certeza alegre.
Neste segundo caso, a pessoa, por meio da fé – que é a convicção em fatos que não
se veem, ou a certeza de algo que está por vir – está convicta de que o túmulo é um invólucro
que guarda apenas outro invólucro, também material, ou seja, um corpo; que um dia foi
receptáculo de um espírito que não está mais ali. Um segundo tipo de esvaziamento, mais
literal (se é que assim posso dizer) e não mais referente a uma pessoa, diz respeito à mística
máxima do cristianismo. A despeito de alguns teóricos que postulam o roubo do corpo de
Jesus Cristo, a tradição cristã crê que houve a ressurreição, ou seja, nem o espírito, nem o
corpo se encontram mais no túmulo, porque Ele ressuscitou. Assim, pelos olhos da fé, tanto
93
o túmulo do Salvador foi esvaziado, inclusive de seu corpo físico; como túmulos de entes
queridos são também esvaziados pelos cristãos.
Em outras palavras, o túmulo carrega duas forças, em sentido conflitante, ou ao
menos diferentes, como podemos ver a seguir:
Por um lado, há aquilo que vejo do túmulo, ou seja, a evidência de um volume,
em geral uma massa de pedra mais ou menos geométrica, mais ou menos
figurativa, mais ou menos coberta de inscrições: uma massa de pedra trabalhada
seja como for, [...] Por outro lado, há aquilo, direi novamente, que me olha: e o
que me olha em tal situação não tem mais nada de evidente, uma vez que se trata
ao contrário de uma espécie de esvaziamento. (DIDI-HUBERMAN, 2010, p.
37).
Ao trazer a metáfora do túmulo (ou fábula, como o próprio autor a chama), ele apela,
em última instância, para um objeto que, inevitavelmente, lança um olhar sobre o sujeito
observador – inclusive na questão da fé. Objeto que tira a capacidade do sujeito de olhá-lo
como simples volume geométrico, de cimento, de madeira, de mármore. Objeto que mostra
ao sujeito que ele perdeu o corpo recolhido em seu interior. (DIDI-HUBERMAN, 2010).
Em G.H. também está presente o olhar do olhado para o olhante: “A barata com a
matéria branca me olhava. [...] Mas seus olhos não me viam, a existência dela me existia.”
E ainda, o “que nela é exposto é o que em mim eu escondo: de meu lado a ser exposto fiz o
meu avesso ignorado. Ela me olhava. [...] Os dois olhos eram vivos como dois ovários. Ela
fertilizava a minha fertilidade morta.” (LISPECTOR, 1995, p. 80-81).
A imagem dada ao final da citação por Lispector – de fertilizar e dar vida – traz a
ideia da paixão como renascimento presente em Bondía (2015); e traz também toda a
potência da criação do espectador em experiência com a obra. A obra fertiliza o espectador;
e o espectador permite que a obra aconteça. Esta imagem cíclica explicita a relação de mútua
alimentação e envolvimento. E se pensarmos com Lacan (apud RIVERA 2014, p. 41) que
“o que me determina fundamentalmente no visível é o olhar que está do lado de fora”,
podemos compreender o olhar da barata como radical e necessário para a existência de G.H.,
ela se vê olhada e se percebe viva.
Em contraponto à cisão necessária ao olhar, Didi-Huberman (2010, p. 39) fala do
evitamento do vazio. Trata-se de certa indiferença ao objeto, uma sensação de satisfação
diante do que é evidentemente visível, na qual se vê o que se vê e nada mais. Esta é a postura
do homem da tautologia que, segundo o autor, terá feito tudo “para recusar as latências do
objeto ao afirmar como um triunfo da identidade manifesta – minimal, tautológica – desse
objeto mesmo: ‘Esse objeto que vejo é aquilo que vejo, um ponto, nada mais’.” E ainda:
94
Ele [o homem da tautologia] pretenderá eliminar toda construção temporal fictícia,
quererá permanecer no tempo presente de sua experiência do visível. Pretenderá
eliminar toda imagem, mesmo “pura”, quererá permanecer no que vê,
absolutamente, especificamente. Pretenderá diante da tumba não rejeitar a
materialidade do espaço real que se oferece à sua visão: quererá não ver outra
coisa além do que vê presentemente. (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 49).
É preciso compreender melhor o que o autor critica no homem da tautologia para não
nos embaraçarmos com a ideia de presente lançada no trecho acima. Sabemos que é no
presente que se dá a experiência. É justamente na duração do tempo presente que ela existe.
Dessa forma, Didi-Huberman não poderia exigir um outro tempo, que não o presente, para
a experiência. Por isso, penso que o que ele chama de “permanecer no tempo presente” é
evitar o vazio, é evitar a dilatação do tempo própria da experiência com a obra, é “recusar as
latências do objeto”. Chamo atenção para os termos que ele utiliza: “permanecer”,
“absolutamente” e “especificamente” para falar desse lugar não quisto para a experiência do
olhar, uma vez que o olho tautológico se apega e permanece na superfície do visível.30
Essa atitude faz da experiência do ver um “exercício da tautologia”: uma verdade
rasa que resguarda uma verdade mais subterrânea e bem mais temível (DIDI-HUBERMAN,
2010). Contentar-se com o que vê na evidência da imagem é abrir mão do que está por vir.
Segundo o autor, não apenas a perspectiva da tautologia deve ser evitada, mas
também a da crença. Se existe o homem da tautologia existe também o seu oposto. Se no
primeiro há cinismo, no segundo há fuga. Na crença, o que me olha já está dado; o túmulo,
por exemplo, não representa o vazio, nem outra coisa além de fé e certeza que o enigma já
fio resolvido; como ele aponta a seguir:
A “arte” cristã terá assim produzido as imagens inumeráveis de túmulos
fantasmaticamente esvaziados de seus corpos – e portanto, num certo sentido,
esvaziados de sua própria capacidade esvaziante ou angustiante. [...] é esse vazio
de corpo que terá desencadeado para sempre toda a dialética da crença. (DIDI-
HUBERMAN, 2010, p. 41).
O homem da crença verá algo além do que vê. Mas essa atitude é censurada pelo
autor porque ao esvaziar os túmulos de suas carnes putrefatas, o homem da crença os
preenche de imagens que ele não criou, estas imagens lhe foram dadas, para confortar e
informar, ou usando as palavras do filósofo, para “fixar – nossas memórias, nossos temores
e nossos desejos.” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 48).
30 Cabe observar que não fiz uso do livro original em francês. Talvez um problema de tradução nos assole
quanto aos termos presente e presentemente. Ressalto ainda que estes mesmos termos não se confundem com
a ideia de presente, usadas neste trabalho, colocada por Larrosa Bondía e Benjamin quando falam de
experiência, pois nestes autores o presente é justamente a qualidade exigida para que a experiência aconteça.
95
Nenhum dos dois ousa ver. O homem da tautologia não ousa ver porque não acredita
que exista algo além da evidência do visível; o homem da crença não ousa ver porque se crê
olhado pelo divino. (DIDI-HUBERMAN, 2010). Mas a imagem necessita uma ousadia.
Prefere-se, portanto, o entre; prefere-se a dialética.
Há uma clara opção pelas palavras olho, olhar e outras derivadas, contudo não é
exclusivamente delas que se fala, ou não é necessariamente do olhar físico a que Didi-
Huberman se refere. Há uma espécie de figura de linguagem que permite a compreensão do
todo pela parte. O olho estaria, assim, sugerindo algo maior, a percepção, o sentido. Não
seria demasiado relembrar que Dewey (2010, p. 88) coloca o sentido abraçando “uma vasta
gama de conteúdos: o sensorial, o sensacional, o sensível, o sensato, o sentimental, junto
com o sensual”. Ou seja, sentir e dar sentido.
Quando o autor contrapõe os extremos, com o homem da tautologia e o homem da
crença, trata da relação com a imagem. Encarar a imagem como mera aparência, aquilo que
vejo é aquilo que vejo e nada mais (tautologia), é ignorar o que há de mais potente na
imagem; é equivocadamente simplificar a questão e ater-se à superficialidade do que é visto.
Enquanto encará-la como coisa autônoma (crença) é ignorar justamente a relação entre o que
vejo e o que me olha – o encontro, o entre. Delegar autonomia exclusiva à imagem é abrir
mão de um direito que é nosso, um direito do olhante frente ao olhado.
É necessário dialetizar nossa relação com o que vemos, pois, o binarismo impede
uma percepção complexa da imagem: não deveríamos escolher entre o que vemos
(tautologia) e o que nos olha (crença), deveríamos inquietar-nos com o entre. (DIDI-
HUBERMAN, 2010). Estar entre; ser o meio. Não é esse, justamente, o lugar da mediação?
Para a experiência estética é preciso demorar-se; é preciso ir e vir, entrar e sair.
Penetrar a obra é algo que demanda vontade, interesse. Quanto mais estamos dispostos a
entrar nela mais ela se mostra em sua complexidade, quanto mais a olhamos, mais ela nos
olha. Esse jogo de correspondência pode ser estimulado e dilatado pela mediação.
Vimos que tanto no caso da tautologia, como no caso da crença prescinde-se a
dialética, tão cara a Didi-Huberman – e a Benjamin (1994) também. Em ambos os casos
prefere-se tranquilizar o olhar ao invés de inquieta-lo. Mediações monologais são um
exemplo claro desse tranquilizar o olhar: usam apenas a linguagem falada, de forma
exaustiva e às vezes com certa autoridade, ignorando o outro (fruidor) e seu contexto. Se, de
um encontro de quarenta e cinco minutos, uma mediadora assume quarenta minutos de fala,
podemos pressupor uma morte, mas não é a morte de que nos fala Didi-Huberman, é a morte
96
dos sentidos, do interesse e do que poderia nascer do encontro, pois é uma mediação que já
nasceu morta. Outro exemplo é ter um mesmo discurso para todas as mediações: achando
que o tempo de produção e recepção da obra é estanque; ignorando o espaço onde se encontra
a obra e o público; prescindindo o próprio sujeito e seu contexto. A mediação que prescinde
de alguma dessas instâncias (tempo, espaço, ou sujeito) acaba se voltando contra a eficácia
que ela própria reivindica.
Ana Mae Barbosa (2009, p. 19) relata um acontecimento em um museu de São Paulo,
cujo educativo era badalado pelas elites. “Tive o desencanto de assistir a uma visita ditadora
de sentido” diz a autora. Na situação, ela estava acompanhada pelo educador espanhol
Fernando Hernandez, que ao final da visita foi interpelado pela mediadora perguntando o
que tinha achado da mediação, e ele respondeu: “Você deu uma aula de História da Arte
como era dada na década de 1970”.
Este problema, enfrentado por Programas Educativos em museus no Brasil, tem sido
explicitado por pesquisadores em arte-educação. Barbosa (2009) aponta a distância entre
teoria e prática criticando os museus que mantem discursos magníficos sobre arte-educação,
mas que mantem visitas como se fossem palestras. Além disso, podemos presenciar dentro
de museus e galerias de arte a mediação funcionando, muitas vezes, como uma verdadeira
aula de história da Arte, mantendo, inclusive, termos específicos do domínio artístico. As
Artes Visuais têm um longo caminho trilhado na área de mediação, se comparado às artes
do corpo e do espetáculo. Neste caso, vale observar quais são as problemáticas apontadas
por pesquisadores dessa área, para inventarmos caminhos e consolidarmos práticas mais
consistentes, com base na vivência em mediação que essas artes trazem, e que possa nos
servir.
Se o lugar desejado para a experiência e para o sujeito da experiência, como foi dito
até aqui, é um lugar de latência entre o que vemos e o que nos olha; um lugar de travessia,
perigo e paixão; um território de passagem; um lugar de expor e se expor; esse também é o
lugar desejado para a mediação e para o sujeito mediado.
A mediação como (dilatação da) experiência estética busca o olhar para o túmulo que
Didi-Huberman nos fala. Não podemos nos limitar a ver apenas o volume geométrico. É
preciso dar espaço à abertura que dentro de nós é latente e permitir que a coisa olhada nos
olhe. É um trabalho de negação da tautologia; um trabalho de memória, de troca e de
construção de narrativas. Muitas coisas na nossa vida semeiam as evidencias tautológicas,
(da TV à Escola), por isso a mediação só faz sentido se for para inquietar o ver.
97
Há uma expressão de Didi-Huberman (2010) que traz uma imagem interessante para
pensarmos o lugar da mediação: “posições entrincheiradas”. É nesse lugar que nos
colocamos, e principalmente colocamos o outro (estudante), quando assumimos uma
mediação monologal. Quando ao invés de instigar o olhar com questionamentos sensíveis e
profundos, optamos por perguntas que exigem respostas de sim ou não. Quando preferimos
informar ao perguntar, ou propor uma atividade que permita ao outro sentir e perceber no
corpo o que se fala. Quando pressupomos a radical distância entre mestre e ignorante
(RANCIÈRE, 2002). Quando não praticamos a alteridade. Quando pretendemos doutrinar.
Quando enfim, não nos colocamos no lugar próprio da mediação: na latência do entre, do
meio; no limiar entre o que vejo e o que me olha. Ou seja, quando fazemos qualquer coisa,
menos mediar.
2.4 Possibilidades para a dilatação
Para alcançar o lugar desejado para a mediação – de dilatação, pressupondo os
princípios da experiência de Larrosa Bondía (2015) e o olhar de Didi-Huberman (2010) –
sabemos que algumas posturas precisam ser contornadas, ou dosadas, por exemplo, a
informativa, mencionada acima. Sabemos também que não existe uma metodologia a ser
seguida. Por isso, ouso apontar três possibilidades compreendidas aqui como dilatadoras na
mediação: a narrativa; a produção de semelhança; e o estreitamento das relações entre real e
ficcional. Muitas ações realizadas na mediação apresentam essas três instâncias associadas;
acredito que estejam interligadas. Contudo, aparecerão separadas exclusivamente para fins
do presente estudo.
Cabe apontar que os exemplos usados para as três possibilidades de dilatação dizem
respeito ao pós-espetáculo do Projeto Mediato. Pois, conforme explicitado anteriormente, a
pesquisa se voltou mais para a dilatação da experiência estética (pós) do que para a dilatação
dos sentidos (pré).
2.4.1 Narrativa
Quando assistimos a um filme, a um espetáculo, quando vemos uma exposição,
temos o desejo (geralmente) de compartilhar a nossa experiência com alguém. Tendo em
vista que a experiência estética não se restringe ao âmbito artístico, poderíamos dizer que tal
98
desejo também acontece quando chegamos de viagem, quando presenciamos uma paisagem
natural. Mas concentremo-nos aqui na experiência com a arte. Contar o que vimos, o que
sentimos e como vimos e experienciamos para o outro, funciona, muitas vezes, como um
desdobramento da própria experiência. O prazer não está apenas no ato de experienciar a
coisa, mas também em expressar, exteriorizar o que nos aconteceu. O processo de organizar
a experiência para si, e torna-la narrável para o outro, consiste em um ato estético e também
em um processo de compreensão. Não de compreensão da manifestação artística, mas de
compreensão da própria experiência.
Assim é a personagem G.H. de Lispector: à medida que narra vai tomando
consciência da própria experiência. A narrativa é o meio que G.H. encontra de buscar uma
compreensão do que experienciou. Conforme narra, vai tornando clara sua existência e
completude. A personagem, ao mesmo tempo em que conta seu momento epifânico, busca
uma maneira de dar forma e exteriorizar o que foi vivido – por meio da construção da
narrativa.
Ação semelhante se dá com o espectador em processos de mediação. Ele é estimulado
a remoldar o material de sua experiência: pela via da fala, de uma produção plástica, ou do
corpo. A mediação abre espaço para que o estudante-espectador-narrador coloque para o
outro a sua experiência, por meio da criação de narrativas. E semelhante à G.H., a mediação
não busca a compreensão do objeto artístico, trata-se de um processo de tomada de
consciência do que foi vivenciado. Além disso, a narração é importante para o sujeito como
possibilidade de rememoração. Por meio de palavras e/ou imagens a memória é retomada
para não deixar que o esquecimento torne aquelas cada vez mais opacas, distantes.
Com Roland Barthes, Beatriz de Medeiros (2005, p. 51) diz que “para falar de um
texto de prazer, é necessário escrever outro texto de prazer, ou, ainda, para falar de arte, é
preciso fazer arte, outra arte: poesia.” Algumas pessoas criam facilmente seus textos de
prazer. Quando vão a uma exposição, teatro, etc. criam suas narrativas, criam poesia com
aquilo, sem mesmo sair do lugar, sem mesmo abrir a boca, ou pegar um lápis; criam textos
internamente. Criar narrativas (internas ou externas) é um treino para o fazer poesia com o
que se vê. E aqui entra a mediação: como estímulo para que esse prazer se concretize, além
de instigar a busca por outras experiências.
Vale ressaltar que a criação de narrativa não funciona como um evento isolado e
interno de um indivíduo. Há um dentro que aponta para fora: que vai e volta. Gagnebin
(2013) fala, ao analisar a história e a narração em Benjamin, que nossas narrativas vão
99
sempre depender de ações e narrações de outros que não nós mesmos, pois não há começo
ou fim absoluto possíveis nesta narração que fazemos de nós. Em outras palavras é
contextual: estamos sempre em relação.
A narrativa vem como possibilidade de dar (nova) forma ao que foi experienciado.
Além disso, se dá com o espectador um processo semelhante ao do artista, na medida em
que este, ao fazer sua arte, organiza o conjunto de coisas pertencentes a sua própria vivência.
Essa produção dialoga com o que Dewey (2010) chama de remoldagem do material da
experiência em um ato expressivo. A narrativa estaria, portanto, concretizando a dilatação
no espaço e no tempo, pela via da remoldagem do que foi experienciado.
Bondía (2015, p.17) diz que pensar é dar sentido ao que somos e ao que nos acontece;
que pensamos a partir de palavras; que as palavras produzem sentido e criam realidades; e,
“portanto, também tem a ver com as palavras o modo como nos colocamos diante de nós
mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos.” O autor faz um caminho:
pensamento; palavra; dar sentido ao que nos acontece. E é justamente disso que trata a
narrativa na mediação: é uma forma de inventar sentido ao que nos aconteceu, por meio do
pensamento, da palavra, e eu acrescentaria à palavra a imagem. O autor afirma ainda que a
narração é uma linguagem da experiência, o que reforça a analogia acima.
Contudo, deve-se tomar cuidado para que o que se pretende como expressão não vire
um grito irrefletido. “Descarregar é livrar-se de algo, descartá-lo; expressar é ficar com a
turbulência, levá-la adiante em seu desenvolvimento, elaborá-la até sua conclusão.”
(DEWEY, 2010, p. 148-149). Por isso, a mediação deve se preocupar com o desenrolar de
suas ações, afim de promover, e também alimentar o ato expressivo dos estudantes; para que
ele não se esvaia durante seu desenvolvimento, nem caia em um jorro emotivo, o que seria
pior. Cabe ponderar, que neste caso não se está preterindo a emoção, ao contrário, deseja-se
o equilíbrio necessário para que a emoção seja reelaborada para assegurar a expressão.
Para tanto, precisamos tomar alguns cuidados. Pensar quais atividades serão
propostas e planejá-las com antecedência; mas também estar aberto para alterá-las assim que
houver necessidade, ou seja, quando houver uma demanda da turma. Elaborar comandos
bem estruturados que permitam aos estudantes compreender o que está sendo proposto. Não
abandonar as atividades antes de suas respectivas conclusões e desenvolvê-las de modo a
explorar suas potencialidades estéticas. Organizar a quantidade de atividades que se pretende
realizar para o tempo que é disponibilizado. Dentre outras estratégias.
100
Dewey (2010, p. 168-169), faz uma analogia interessante para pensarmos como a
emoção aparece no ato expressivo. Ele diz que o material físico que constitui uma obra de
arte sofre mudanças, por exemplo, a argila e o mármore. E de forma semelhante, há
transformação de um outro tipo de material. Dos “materiais ‘internos’, das imagens,
observações, lembranças e emoções. Eles também são progressivamente remoldados; eles
também têm de ser geridos. Essa modificação é a construção de um ato verdadeiramente
expressivo.”
Por este, e outros motivos, a mediação está a todo momento reinventando seus
caminhos. Pois estamos lidando com conteúdos não fixáveis. Este material “interno”, que
pode ser entendido aqui como uma matéria bruta, passa por transformações. A modificação
gera outra qualidade, que se deseja estética. E esse processo é feito exclusivamente pelo
sujeito, no caso, os estudantes. O que a mediação faz é criar caminhos; é uma tentativa de
criar um ambiente propício.
Muitas vezes a mediação se ocupa com perguntas inférteis, como por exemplo, “o
que acharam do espetáculo?” ou ainda “vocês gostaram da peça?”. Não creio que seja um
caminho frutífero quando a primeira investida de um bate-papo na mediação se dá com
questões genéricas, que não estimulam a produção pessoal, o senso crítico, nem se quer uma
reflexão sobre o que passou nos estudantes. O tipo de investigação acima, geralmente, tem
como retorno: “interessante”, “gostei”, “legal”. Em contraposição, o trabalho com a narrativa
se mostra fértil, capaz de dilatar a experiência estética. Apropriando-me mais uma vez das
palavra de Lispector (1995, p.25), “vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é
relatável.”
A narrativa servirá aqui a uma dupla questão: uma mais específica, que é a produção
de narrativa dentro da mediação, realizada por estudantes-espectadores-narradores, a partir
de atividades propostas (tal produção não se restringe à fala; abrange a produção da escrita,
do corpo e de objetos). E outra mais ampla, pela qual começarei: a mediação compreendida
como narrativa, isto é, entendida a partir do conceito de narrativa de Benjamin (1994).
Em 1936 Benjamin (1994, p. 198) escreveu um artigo no qual afirmou que o narrador
estava em vias de extinção. É “como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos
parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.” O autor coloca como
uma das causas desse fenômeno a baixa das experiências e contextualiza com o processo de
emudecimento dos combatentes que voltavam da 1ª Guerra Mundial. Esses combatentes
101
voltaram mudos do campo de batalha, não mais ricos e sim mais pobres em experiências
comunicáveis, diz o autor.
Abramos um parênteses para compreender melhor a baixa das experiências. A
vivência da guerra foi radicalmente aterrorizante, humilhante, desmoralizante. Gagnebin
(2013, p. 63) diz que o sofrimento que a Primeira Guerra revelou não pode ser simplesmente
contado, mas que, no entanto, deveria poder ser narrado, ao menos há esse desejo. E se
pergunta: “como descrever essa atividade narradora que salvaria o passado, mas saberia
resistir à tentação de preencher suas faltas e de sufocar seus silêncios?” Ou seja, como gerar
uma narrativa que mantivesse o caráter de inacabado, respeitando a restauração e a abertura,
respeitando o que há de inefável. Aqui eu ousaria relembrar a alegoria como possibilidade!
Se a mediação preserva o inacabamento e os silêncios necessários para sua própria
sobrevivência, ela compartilha com a narrativa essa qualidade. Para Benjamin (1994, p. 206)
o que “representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do
dia” é a “lenta superposição de camadas finas e translúcidas”. A mediação também atrai para
si uma imagem semelhante: de uma lenta superposição de camadas finas e translúcidas. Pois
ela não se dá a ver por completo e de imediato, ela não se entrega. Assim como a narrativa,
ela “conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver. [...] Ela
se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas
hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até hoje suas forças
germinativas” (BENJAMIN, 1994, p. 204).
A narrativa “mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele.
Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso”
(BENJAMIN, 1994, p. 205). Igualmente a mediação mergulha sua ação na vida do
espectador, se impregnando com as particularidades de cada participante.
Além do contexto da guerra, com suas “experiências” desmoralizantes e pobres,
Benjamin (1994, p. 203) aponta também o excesso de informação como responsável pelo
declínio da narrativa. Para o filósofo as recebemos do mundo inteiro diariamente, mas
raramente isto se constitui em experiência. “A razão é que os fatos já nos chegam
acompanhados de explicações.” A narrativa “não está interessada em transmitir o ‘puro em-
si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório” (p. 205). A mediação, assim
como a narrativa, não é explicativa, imediata, nem se consome como a informação.
Os escritos de Benjamin permanecem atuais. Podemos ver que a discussão acerca da
baixa de experiências e do excesso de informação é atualizada por autores contemporâneos,
102
como o já citado Larrosa Bondía (2015, p. 18), que contrapõe o saber da experiência com o
saber da informação. “A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar
para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência.”
Assim como Benjamin (1994) e Bondía (2015) opõem, respectivamente, narrativa e
experiência à informação; propõe-se aqui, além de opô-las, colocar narrativa e experiência
no mesmo nível de importância dentro dos processos de mediação – e talvez seja isso
também que Benjamin faz ao associar a baixa de experiências à incapacidade de narrar. A
produção de narrativa é uma forma de tomada de consciência sobre a experiência, pois, à
medida que cria uma narrativa o estudante pode refletir sobre o que se passou nele. É uma
maneira de compartilhar; e também pode se constituir como uma nova experiência. Penso
com Benjamin (1994, p. 198) que é próprio do narrador “a faculdade de intercambiar
experiências”. Dessa forma, se narrar é intercambiar experiências a mediação compartilha
com a narrativa sua constituição fundamental uma vez que ela se dá também pelo
compartilhamento da experiência.
Em última análise, o que os dois autores colocam, acerca do caráter imediato da
informação, justifica a importância de a mediação não ser informativa. Vale explicitar que
este tipo de conteúdo não é abominado na mediação, não se constitui, contudo, como um
objetivo. Pois, se a própria relação com a arte não é condizente com a imediatez informativa,
porque a mediação em arte o seria? Se se pretende que a mediação seja uma dilatação da
experiência estética é um contrassenso tomar algo imediatista como princípio ou objetivo.
Portanto, faz sentido que ela se aproxime mais da ideia de narração do que de informação.
Verificaremos ao final deste capítulo alguns momentos em que a narrativa, bem como o
espaço da experiência e da dilatação, foi minada pelo predomínio do caráter informativo.
Por fim, a figura do narrador é uma imagem potente para a mediação, pois esta nos
permite pensar que todos podem ser narradores: ator/atriz, estudante, mediador(a). No
entanto, a analogia entre a mediação e o conceito de narrativa em Benjamin (1994) deve
guardar as devidas proporções, principalmente porque ao final do artigo o narrador é
colocado como o sábio, e como a figura de um justo que tem um encontro consigo mesmo.
A ideia, deste modo, não é associar qualquer participante da mediação à figura de um sábio;
mas sim que a mediação funcione com os mesmos princípios da narrativa, objetivando,
inclusive, dissocia-la de um caráter informativo que está arraigado ao senso comum.
103
Além dessa forma de compreender a relação entre narrativa e mediação (como
aproximação ao conceito bejaminiano), há um segundo entendimento que é a produção de
narrativa realizada por estudantes-espectadores-narradores a partir das ações mediadoras. A
seguir elenco dois casos de produção de narrativa feita por estudantes de Ensino Médio
(adolescentes/jovens entre 14 e 18 anos), no Projeto Mediato, em 2014. Conforme dito, os
encontros foram divididos em três etapas: 1. Sensibilização pré-espetáculo; 2. Espetáculo
Da janela; e 3. Encontro pós-espetáculo, ao qual dizem respeito os exemplos adiante:
Exemplo 1 – Após diálogo, alimentado por imagens e música, as mediadoras31
propuseram que dois grupos voluntários montassem uma cena. Para a elaboração foi
solicitado que levassem em consideração os elementos teatrais trabalhados no encontro pré-
espetáculo e que criassem a partir da seguinte motivação: “O que te incomoda?”. Uma cena
mostrou três jovens: uma garota branca e dois garotos negros; dois policiais os abordavam,
deixando a garota ir embora; os policiais faziam revista nos dois jovens, colocando droga na
roupa deles e forjando um flagrante. Ao tentar fugir são baleados; no dia seguinte a repórter
de uma mídia local anuncia na TV que dois jovens da periferia morrem por acerto de contas.
A outra cena apresentou um transporte público. À medida que ia enchendo um novo
personagem/conflito era inserido: uma mulher grávida não recebe o acento preferencial
gerando reclamações; um garoto escuta música no celular sem o fone de ouvido provocando
incômodo aos passageiros; algumas ações de gentileza; uma cena de abuso; um vendedor de
balas e doces; e um assaltante.
Quando a mediadora questionou de onde o grupo havia tirado os personagens que
apareceram na cena, uma estudante respondeu: “a gente tirou do cotidiano mesmo. Eu
mesma pego quatro ônibus por dia. Aí a gente chegou num consenso que todo mundo tem
que pegar ônibus, todo mundo sofre. E cada um deu a ideia, do que passa no ônibus.”32 Sobre
a primeira cena as estudantes disseram que o fato já havia ocorrido na região onde elas
moram e estudam – P Norte em Ceilândia-DF. A fala das envolvidas, bem como a cena,
denotam a relação entre o individual e a coletividade, pois houve uma negociação entre as
vivências de cada integrante a partir de depoimentos e uma situação que diz respeito à
sociedade: precariedade do transporte, violência, segurança pública, etc.
31 Os nomes das integrantes da equipe, quando utilizados, foram substituídos por outros fictícios. 32 As falas e os trechos de mediação utilizados neste trabalho foram retirados do registro audiovisual feito
durante o Projeto Mediato em ago.-set. 2014 e mantêm a transcrição conforme a fala. Os nomes, quando
utilizados, foram substituídos por outros fictícios. A citação acima é referente à Ceilândia-DF. Originais e
transcrição parcial disponíveis comigo.
104
Esse tipo de exercício geralmente rendia cenas sobre o convívio escolar ou problemas
sociais que afetam os/as estudantes direta ou indiretamente. Os temas, bullying, precariedade
do transporte coletivo e violência policial eram frequentes. Algumas raras vezes surgia uma
temática mais geral, ou seja, que não tem relação direta e cotidiana com a maioria dos
estudantes, como, por exemplo, aborto.
Tendo em vista que a peça tratava de violência do Estado contra a população,
repressão, liberdade e manipulação da mídia sobre as informações, penso que os estudantes
envolvidos na cena expandiram a experiência-espetáculo para uma experiência-construção-
de-narrativa. A pergunta instigadora “o que te incomoda?” garantiu a contextualização com
um tema/problema recorrente no universo dos estudantes e consequentemente revelou às
mediadoras conteúdos pertencentes ao universo deles. Susana da Silva (2009, p. 136) fala
de forma pontual sobre a importância da inserção de temas, pela via do questionamento, na
mediação:
A introdução de temas e problemáticas na forma de questões que interpelam os
indivíduos funciona simultaneamente como o estímulo para a partilha de saberes
e a entre ajuda, e como uma forma de diagnóstico que possibilite aferir
conhecimentos prévios, universos de referentes, estratégias dominantes,
expectativas e motivações.
Interessante apontar ainda para a negociação de um fato ou tema que refletisse a
inquietação da coletividade. Os estudantes, quando colocados frente ao questionamento,
prontamente elencavam o que os incomodava individualmente, às vezes, um tipo de comida
que não gostava, uma aula, ou uma matéria. Mas logo em seguida, quando reuniam em
grupo, partiam para um processo de organização do que era particular, tendo em vista o
coletivo. Chegando, assim, em questões mais amplas, que os inquietavam, e que talvez
pudessem incomodar aquela comunidade como um todo. Aqui novamente poderíamos
evocar a imagem da fita de Moebius: o eu que se evidencia não fala somente de si, mas cede
lugar a algo, a outro. Assim, a produção de narrativa não se colocou como criação
ensimesmada de um individual que não se relaciona, não se tratou da afirmação/exposição
do eu, mas de uma dimensão que é política, que acessa o coletivo. É sim um extrapolar que
apela ao outro; um nós que está fora, mas que retorna, como na fita.
É comum durante a mediação, haver um movimento entre as questões que dizem
respeito à particularidade, àquele agrupamento e à sociedade de forma geral. Isso acontece
quando, no exercício de criar narrativa, o estudante-espectador reflete sobre aspectos da sua
105
própria história articulando vivências (fatos de sua trajetória) e expectativas (como forma de
projetar-se no futuro). Como afirma Flávio Desgranges (2011, p. 32):
Ao rever os fatos de sua história, no ato de análise da obra, o espectador, além de
refletir sobre os acontecimentos da cena, formula pensamentos críticos acerca de sua
própria trajetória, detendo-se de maneira distinta, renovada ante as suas experiências
pessoais, estando em condições de produzir respostas inesperadas para as mesmas
questões, revendo e recriando possibilidades para sua existência.
O autor fala da trajetória que o sujeito-contemplador percorre metaforicamente
entrando na obra e entrando em si próprio em um ato interpretativo. Embora Desgranges fale
em análise da obra e não em produção de narrativas especificamente, faço uma apropriação,
pois há um processo que se assemelha: o movimento de entrar em si, e retomar a obra, para
então produzir a sua narrativa, sua análise, ou sua interpretação. Essa ideia de rememorar
vivências e refletir sobre os acontecimentos da cena, pode trazer prontamente a imagem da
fita de Moebius, um dentro que também tem sua continuidade fora.
Exemplo 2 – Uma estudante de 2º ano, de um Centro de Ensino Médio em
Brazlândia-DF, fez um poema e pediu para sua colega de turma lê-lo. Vale ressaltar que
nomeio tal produção de “poema” porque a estudante que realizou a leitura, a fez dessa forma.
Não obstante, podemos compreende-lo também como um RAP, uma vez que seu teor remete
à crítica social frequentemente encontrada em letras compostas pelos Mestres de Cerimônias
– MCs. Por isso, a tratarei por poema-RAP.
A sociedade quer me reprimir.
Sem nem ao menos eu ter o direito de discutir.
Querem me julgar por aparência
Pois neles falta a decência.
Não posso ser isso nem aquilo
Fico dividido, obstruído.
A sociedade impõe aparência
Por isso está em decadência
No nosso país, cidadão não tem vez
Por causa de política e sua estupidez.
E depois bandido é quem mata, rouba e trafica,
Se os políticos fazem isso, com a ajuda da justiça.
Que país é esse, onde só há fome e miséria
E ninguém faz nada, só espera.
Espera o que?
A dor, a fome e o sofrimento
Enquanto muitos morrem no tormento. Cadê a saúde, a educação e a segurança
E a sociedade ainda vem falar em esperança.
A mídia vem dizer que tudo está bem, e adora
Pra mim são filhos da puta, é foda.
Figura 7 – Registro audiovisual do Projeto.
Brazlândia-DF, agosto, 2014.
Fonte: Registro próprio
106
O espetáculo tratava de duas questões, que segundo a diretora (e também atriz), eram
centrais: violência de Estado e manipulação da mídia. Dessa forma, vemos, na mediação
pós-espetáculo, um desdobramento das questões abordadas por meio da expressão da
estudante. O que ela fez demonstra não apenas sua opinião sobre o tema que o espetáculo
abordou. Ela exteriorizou sua experiência por meio de uma narrativa (para o outro),
condensando com uma opinião particular sobre o assunto (com isso se expôs); e fez isso por
meio de uma forma artística (o poema-RAP), desenvolvendo sua criação artística. E em
última análise, a atitude da estudante pôde incentivar os colegas a exteriorizarem suas
opiniões, inclusive por meio da produção em arte. Cabe repetir, que o que a estudante faz
não é tentar conceituar ou explicar nem a obra, nem o que ela sentiu, muito menos reduzir a
arte à fala ou à escrita, mas criar um novo texto de prazer, criar uma narrativa, concretizando
o que chamo aqui de dilatação.
Antes de continuarmos analisando o trabalho acima alertemo-nos quanto à noção de
estética dada por Medeiros (2005, p. 47-48).
No momento do gozo (jouissance, fruição) não há conhecimento possível; depois,
poderemos discutir sobre o conteúdo, a técnica utilizada, a propriedade do trabalho
naquele contexto, etc. poderemos, inclusive, discutir se o objeto é arte ou não, mas
aí já não estaremos em comunhão com a “carne do mundo”, exposta pela obra.
A dilatação da experiência estética não é discussão de conteúdo, de técnica, ou sobre
a legitimidade da arte. Também não é uma tentativa de recuperar a relação exclusiva do eu
com a obra. Trata-se de um terceiro lugar. E esse momento (posterior) de dilatação é sim
estético. Quando a estudante cria o poema-RAP, e este é lido para a turma, temos uma
terceira coisa que não é tão-somente a “comunhão com a ‘carne do mundo’ exposta pela
obra”; mas também não se trata de um trabalho conceitual ou explicativo. É a dilatação da
experiência com a obra, mantendo-se nisso o caráter estético. Do mesmo modo, é a imersão
da turma em uma nova experiência que mantêm as dimensões coletiva e individual. Ou seja,
esse terceiro lugar pode ser também de gozo/fruição. Posso afirmar ainda, que quando criei
a narrativa a partir da exposição Ciclo: criar com o que temos, exposta no início do capítulo,
o que me aconteceu foi estético. A dilatação por meio da produção de narrativa não é,
portanto, a descrição da experiência, não se trata de colocá-la em palavras, exclusivamente.
É antes a feitura de uma terceira coisa, neste caso: poesia.
A maneira como a estudante tratou de questões sociais e políticas, no meu entender,
denota certo engajamento, que não é generalizado dentre os estudantes. Durante o Projeto
observei que muitos comentários se mantiveram no raso das questões, ou seja, discursos
107
rasos em informações e sem argumentos. Em geral reprodução de falas presentes na mídia
televisiva, que reforçam a superficialidade do senso comum.
Frases do tipo: “Queria matar a Dilma”, “Queria encontrar a presidente e perguntar
por que ela não faz nada?”, “O Brasil tem dinheiro, não vai pra frente porque o presidente
não quer, não quer fazer nada.”; ou ainda, dizer que a sociedade está perdida e que o mundo
não tem jeito, exemplificam o que estou chamando de se manter no raso. Tais discursos
ignoram a complexidade e distanciam o problema a ponto de torna-lo intocável. Como se,
independentemente do que se faça, a situação já está dada, e o que resta é aceita-la.
No poema-RAP, a estudante fala de um sujeito sem voz; que sofre preconceito. Que
está dividido entre o que ele é, e a aparência imposta pela sociedade. Essa divisão causa-lhe
obstrução; tem-se, portanto, um sujeito cortado, interrompido, sem voz, sem movimento.
Mas a imposição tem preço: a decadência. Quando a estudante escreve “No nosso país,
cidadão não tem vez. Por causa de política e sua estupidez” imagino um paradoxo, no qual
a política não está para a polis. Penso que (e talvez a autora compartilhou dessa ideia ao
escrever) o que chamamos de política não exerce sua função principal, ao contrário, muitas
vezes a ignora. Em seguida, ela questiona quem é o criminoso; e explicita o que, no meu
entendimento, seria um apoio viciado dos poderes (legislativo e judiciário). A estudante
insere uma pergunta que denota a urgência do quadro levantado, dizendo que a espera
provoca a dor, a fome e o sofrimento; mas a morte não espera. Aponta ainda para o básico
(saúde, educação e segurança), garantido pela Constituição, que não é atendido; e questiona
a incoerência entre retórica e atitudes. Por fim, tece uma crítica à conivência da mídia.
Esta é minha interpretação sobre o poema, certamente. Mas, em última instância, o
que pretendo com essa leitura é dizer que a produção realizada pela estudante, demonstra
um pensamento mais complexo, sobre o mesmo assunto para o qual seus colegas
manifestaram as frases explicitadas acima. Além disso, o espaço de troca, aberto pela
mediação, no qual os jovens podem colocar suas opiniões e construir suas narrativas, é
também um ambiente para a aprendizagem. Neste, os estudantes-narradores colocam suas
ideias para os colegas e escutam/veem outras diferentes das suas, podendo ampliar
entendimentos e pontos de vista. E o câmbio desses olhares é um recurso rico para a
mediação.
Vale ressaltar que não houve obrigatoriedade de participação; a produção de
narrativas foi um convite feito pelas mediadoras. Contudo, sabemos que os estudantes que
optaram por “não participar” paradoxalmente tiveram sua parcela de participação, assim
108
como os outros, uma vez que fruição também pode ser entendida como produção.
Compreender os estudantes que são apenas (o que não é pouco) observadores como
participantes do processo pedagógico, e sobretudo estimulá-los a construir sentido por meio
dos trabalhos dos colegas, é importante para incluí-los nas atividades propostas. Além disso,
contribui-se para desmistificar a imagem comum criada no âmbito escolar de que a
obrigatoriedade do fazer do lado simbólico do palco (VELOSO, no prelo) é o único caminho
para o conhecimento e para a avaliação dos educandos.
Podemos, então, perceber a mediação funcionando como (dilatação da) experiência
estética. Primeiramente em um nível particular, quando a estudante dilata a própria
experiência com o espetáculo gerando outra forma de arte. Que se dá pela via de uma
construção de narrativa, se concretizando com a produção de um poema-RAP. E depois, em
um nível coletivo, quando envolve a turma em um processo de fruição durante a leitura.
Neste último trata-se de uma nova experiência estética, não mais (ou não apenas) com o
espetáculo, é um novo ciclo de produção-fruição. E o mesmo movimento, de dilatação, em
nível particular e coletivo, pode ser percebido com a produção de cena no exemplo 1. Da
mesma forma, podemos ver em ambos exemplos a narrativa como instrumento para que o
estudante ponha em jogo a realidade e a si próprio em uma construção da ordem do
simbólico.
Enfim, a atual pesquisa é igualmente um processo de compreensão da vivência no
Projeto Mediato: a minha grande narrativa. São processos similares porque, ao compreender
o que foi feito em 2014, pela via da pesquisa e da atual escrita, corroboro para a completude
da minha vivência estética-profissional.
Não seria demasiado provocar uma aproximação entre este tipo de dilatação (a
narrativa) e os chamados Debates Performativos propostos pelo iNERTE - Instável Núcleo
de Estudos de Recepção Teatral, que consistem em “desdobramentos poéticos realizados
com espectadores que assistiram a um espetáculo teatral”.33 O grupo de pesquisa, atualmente
coordenado por Flávio Desgranges e Giuliana Simões, busca pesquisar o processo criativo
do espectador teatral, “investigar aspectos do efeito estético provocado pela cena teatral
33 Debates Performativos constitui uma linha investigativa do iNerTE – Instável Núcleo de Estudos de
Recepção Teatral criado em 2004, junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade de
São Paulo (PPGAC-USP). Disponível em: <http://www2.eca.usp.br/inerte> Acesso em: 26 de novembro de
2015.
109
recente e [...] desvendar como atua o espectador diante da profusão de significantes
oferecidos pelas diversas proposições artísticas” (SIMÕES, 2013, p. 195).
Os Debates Performativos, e outras ações do iNERTE, objetivam “colocar o
espectador em condição de perceber a si mesmo, observar seus processos internos,
mantendo-se atento ao próprio modo de recepção que engendra enquanto assiste às cenas”
(SIMÕES, 2013, p. 196). Trata-se também de um convite ao espectador para que ele possa
fazer poesia com a proposição poética que lhe foi apresentada.
Essa semelhança, não intencional, reforça a importância da compreensão de que o
espectador é também coautor e responsável pela feitura de um novo texto poético como
resposta a um primeiro texto, a obra. E que é pela via desse espaço criativo que ele pode
inventar sentidos para o que foi visto, mesclando, inevitavelmente, sua trajetória, sobretudo
outras situações estéticas, efetivando assim a dilatação. Em última instância, conhecer a
investigação acerca da recepção e dos efeitos da obra teatral no iNERTE durante o caminhar
desta pesquisa me incentivou a continuar investigando o pós-espetáculo como momento
potente na mediação.
2.4.2 Produção de semelhança
Como vimos, a narrativa foi a primeira possibilidade elencada com capacidade
dilatadora na mediação. A segunda, que pode vir dentro daquela, é a produção de
semelhança. A ideia de “semelhança” como possibilidade de dilatar a experiência surgiu de
uma prática recorrente dentro das galerias de arte. Enquanto mediadora costumava estimular
o público a estabelecer relações entre as obras de uma mesma exposição, sendo elas de um
único artista ou não. Sei que o trabalho curatorial já fez esse exercício cujo resultado estava
ali reunido a nossa volta; mas o que intencionava era justamente propor que o espectador
também fizesse o seu caminho de junção das obras, criando talvez um fio que as unisse, seja
este fio marcado pela tensão das diferenças ou pelo consenso das semelhanças; aproximando
obras de países, época ou artistas distintos. Esse exercício contribuía, inclusive, para a
compreensão de um tempo-história que podia ser abordado de outra forma que não fosse
pela sequencialidade cronológica.
Certa vez uma criança ao entrar na galeria do CCBB exclamou: “Nossa, isso parece
Lygia Clark!”. O episódio, rememorado várias vezes pela equipe, nos chamou a atenção
porque a criança conhecia as obras de Lygia Clark e também por ter criado espontaneamente
110
a relação a partir das obras de outra artista. Este exemplo, poderia dizer, se constitui como
uma produção de semelhança.
De forma escorregadia a memória me trouxe à percepção a imagem da personagem
G.H. enquanto lia O que vemos o que nos olha de Didi-Huberman para a escrita desta
dissertação. Ou seja, fui presenteada com a literatura de Lispector (e compreendamos
presenteada como regalada, mas também enquanto memória resgatada e tornada presente).
Em um processo de síntese capturei essa imagem, rememorei a paixão de G.H., e a coloquei
lado a lado com a experiência do olhar do autor. Acrescentei ainda lembranças de exposições
de arte já experienciadas. A partir disso, passei a explorar, e diria até dilatar, o que havia de
relação entre elas: me aproximando ora do que lia, ora do que rememorava, ora de ambos.
Esse exercício que é da memória, e que é intelectual, digo se tratar de uma produção de
semelhança.
Embora use a palavra “produção” o exercício não é de todo intencional e controlado.
Pois é justamente a espontaneidade do surgimento da lembrança que propicia a relação. As
semelhanças nos são dadas pela via da memória. Nossa experiência com a arte, de forma
geral, se torna possível por uma construção da memória. Esta é constituída por nossas
vivências e ao mesmo tempo é por meio dela que experienciamos as coisas, inclusive a arte.
O que é a memória senão a insistência contra o esquecimento e o apagamento? O passado
não existe a não ser enquanto imagem que nos é dada pela memória. O presente, pela sua
perenidade intrínseca, já é memória, só de pensa-lo. Se o passado, e próprio presente, que já
foi, se configuram como memória, estamos, inevitavelmente, sempre trabalhando com esta
propriedade inacabada e em eterno movimento. Igualmente, é pela via da memória que a
mediação vai trabalhar na produção de semelhanças.
Mas afinal, como provocar essa memória espontânea? Não podemos fazer a
provocação a não ser proporcionando um ambiente favorável. O que se daria a meu ver com
a própria mediação. Vejamos o trecho de uma fala ocorrida no pós-espetáculo.
Exemplo 3 – A mediadora distribuiu e apresentou o caderno de mediação, abrindo
em uma página que continham referências de obras das Artes Visuais relacionadas à temática
do espetáculo. Em um determinado momento da conversa um estudante comentou sobre uma
música dos Racionais MC’s: “Tem uma música dos Racionais que fala sobre a vida de um
cara, aí a polícia entra, mata ele dentro da casa dele. Aí aparece no outro dia: homem é
encontrado morto [...] por acerto de contas.” E ainda, “Racionais é vida véi. É porque o povo
acha que Racionais é música de bandido, mas não vê a letra.” (Informação verbal, Ceilândia-
111
DF, 2014). Mais adiante retomarei esse exemplo dentro do seu respectivo contexto. Por
enquanto, deterei a atenção nesse pequeno trecho.
Podemos observar, neste caso, a mediação como um dilatador da capacidade de
produzir semelhança entre duas formas de arte – o espetáculo assistido no dia anterior e uma
música. O estudante, ao trazer um RAP durante o diálogo sobre o que foi vivenciado no dia
anterior, afirma sua posição de interprete e construtor de sentido. Igualmente, contribui para
o desenvolvimento da conversa, incentivando os colegas no estabelecimento de novas
semelhanças entre produções artísticas. Cabe ressaltar que àquele momento o estudante não
tinha visto no caderno a referência feita a outra música dos Racionais MC’s.
Há um agenciamento entre o que está sendo visto, falado, ouvido e feito no presente,
com a memória. A lembrança de uma imagem-arte em associação com outra é também um
exercício de síntese. No caso do estudante a síntese se deu em função da temática do
espetáculo. Outros exemplos de semelhança também foram verificados no Projeto, mas
todos tinham em comum a relação com o tema, que girava em torno de violência de Estado,
manipulação midiática, repressão versus liberdade: assuntos presentes na peça.
Penso que esta é uma maneira mais simples de semelhança. Não disponho de
exemplos do Mediato, mas ouso esboçar o que seria uma forma mais complexa. Relacionar
duas obras por suas maneiras de lidar com determinado tema e não necessariamente pela
temática. Ou ainda, encontrar semelhanças no que não está explícito nas obras. Exemplifico:
a já citada obra Las meninas de Velásquez feita no século XVII mantém com as obras
contemporâneas da exposição Ciclo: criar com o que temos uma semelhança que não é da
ordem do tema, mas é da esfera do que há fora da obra, isto é, da esfera do espectador. O
que elas mantem em comum é o olhar que lançam ao sujeito que está fora mas que pode
estar dentro. Este seria um modo mais complexo de semelhança e que permitiria aos
participantes explorar seus desdobramentos.
Vejamos, a mediação é um território fértil para a produção de semelhanças, criando
ambiente para que a memória espontânea surja e seja, digamos, selecionada e explicitada
pelo estudante para seus pares durante o processo pedagógico. Depois disso, teríamos um
segundo momento em que a mediação instigaria um desdobramento juntamente aos outros
espectadores. Essa exploração enriquece o diálogo e em última instância cria ambiente para
novas semelhanças. Além disso, criar semelhanças é um exercício que faz relação com o ato
interpretativo, que é próprio da mediação. Mas cabe ressaltar que a interpretação não é em
112
nenhuma instância (dentro das margens do que é considerado mediação neste trabalho) a
busca por significados que por ventura residiriam na obra.
Neste caso, é necessário que a mediadora esteja atenta, e aberta, às semelhanças que
surgem, isto é, que são criadas durante as ações. No exemplo acima, se a mediadora não
tivesse reconhecido a referência apresentada pelo estudante como contribuição válida ao que
estava sendo proposto, haveria um choque de intenções, uma vez que ele a reconhece como
algo intrinsecamente ligado a sua existência, quando diz “Racionais é vida”. Mediadora e
estudante caminharam na mesma direção em apoio mútuo. Se aquela rejeitasse, ou ignorasse,
a semelhança colocada por este, subitamente eles passariam a caminhar em mãos opostas.
Essa contramão certamente não estimularia a turma a buscar outras semelhanças.
2.4.3 Real e Ficcional
O estreitamento das relações entre real e ficcional pode ser visto no exemplo 1,
quando os estudantes, a partir de uma provocação (o que te incomoda?), se apropriam de
questões do cotidiano deles e criam uma ficção. Biange Cabral (2012, p. 10), aponta para o
potencial dessa relação:
As fronteiras entre o real e o ficcional são ativadas e provocam mudanças de
percepção e expectativas. Estas em geral resultam da variedade (alternativas) e
qualidade de referências linguísticas e contextuais cruzadas nos encontros teatrais,
e estão associadas à transgressão ou à ressonância com o contexto real dos
participantes.
O espaço ficcional é pujante para a reflexão – neste caso sobre as questões incômodas
aos estudantes – à medida que abre espaço para construções impensáveis no espaço do real,
ou do cotidiano. Além disso, no ficcional criado pelo jogo, por exemplo, os participantes
podem se sentir mais à vontade para expor suas ideias, o que é confirmado pelo professor
Ulisses Pereira (Teatro, Gama-DF) em entrevista: “através dos jogos eles [os estudantes]
tinham essa disposição de falar mais, de dizer mais porque tem a máscara. [...] Não sou eu,
é o personagem, é a cena. A realização dos jogos é muito importante nesse processo de
mediação”.34
No plano ficcional a relação espaço-temporal é outra, diferente do dia a dia. Com
isso temos: ações e construções de vivências passadas, convivendo concomitantemente com
projeções (futuro); vivências e expectativas que podem ser colocadas em prática na cena e
34 Entrevista realizada em Gama-DF, ago. 2015.
113
podem se constituir como objeto de reflexão. E ainda, as expectativas, bem como o olhar
que se tem sobre o passado, podem ser alteradas/modificadas, com soluções diversas, dentro
do plano ficcional, ou seja, na cena. Jacques Rancière (2009b), mais radicalmente, afirma
que o real precisa ser ficcionado para ser pensado. E eu acrescentaria que ele precisa também
ser narrado para ser pensado.
Indo um pouco adiante nesse entendimento, tenciono uma subversão entre essas duas
esferas, me apropriando do que Rancière (2012, p. 74) coloca acerca de o real ser objeto de
uma ficção, pressupondo que o real é um ficcional consensual. “É a ficção dominante, a
ficção consensual, que nega seu caráter de ficção fazendo-se passar por realidade e traçando
uma linha de divisão simples entre o domínio desse real e o das representações e aparências,
opiniões e utopias.”
O fato de o real ser entendido como uma ficção (dominante) pode provocar uma
sensação de possibilidades, nas quais, ficções penetram a esfera do que é factível. Esse
pensamento, na mediação, pode estimular o senso crítico de jovens estudantes, à medida que
questiona o que lhes é dado como realidade e/ou fato. E põe em causa a parte que eles estão
tomando, na partilha do sensível. Tal conceito, a relembrar, é proposto por Rancière (2009b)
para designar a partilha de espaços, tempos e tipos de atividades; como se dá a participação
e quem determina quem toma parte.
Para melhor explorar essa potencialidade do plano ficcional, as mediadoras poderiam
ter lançado mão de técnicas de teatro desenvolvidas por Augusto Boal (2013), para criar
possibilidades de resolução dentro das próprias cenas. Assim, os estudantes-atores após
diálogo com os estudantes-espectadores e com as mediadoras, poderiam retornar à cena
provocando um desdobramento. Algumas técnicas seriam: dramaturgia simultânea, consiste
em um convite feito ao espectador para que este faça uma intervenção oral, sem que seja
necessária sua entrada física em cena; teatro-imagem na qual o espectador interfere
diretamente, moldando os corpos dos participantes em cena, ou seja, expressando sua
opinião sem usar palavras; teatro-debate, nesta há uma intervenção e modificação da ação
dramática, pela via soluções apresentadas pelos espectadores que agora podem ocupar o
lugar dos atores.
Ou ainda, poderia se desenvolver de forma diferente, com outros tipos de narrativas
e outras formas de arte, como a construção de um poema, de uma música, de uma colagem,
etc. Contudo, nos exemplos dados até então, o desdobramento das produções realizadas
114
pelos estudantes se deu apenas como conversa, em função do tempo disponibilizado com as
turmas.
Podemos também entender esse limiar entre real e ficcional intimamente ligado à
brincadeira infantil. Mas não me refiro ao que é proposto pela indústria dos brinquedos, que
os tornam, muitas vezes, estranhos às crianças, reduzindo a capacidade criativa a apertar um
botão. Compreendendo a imitação voltada à brincadeira e não ao brinquedo – pois quanto
mais os brinquedos imitam, mais distantes estão da brincadeira viva (BENJAMIN, 1994) –,
podemos propor uma aproximação entre as qualidades desse estado infantil e as propriedades
do ficcional. Uma vez que é este estado, próprio à criança, que tolera o perder-se, que permite
a entrega necessária ao jogo.
Benjamin (1994) aproxima a brincadeira infantil da capacidade mimética.35 Lispector
(1995, p. 17) explicita a habilidade infantil de se entregar e se perder: “Foi como adulto então
que eu tive medo e criei a terceira perna? Mas como adulto terei a coragem infantil de me
perder?”. Ambas qualidades (imitar e perde-se), próprias à brincadeira de criança, estão
presentes no plano ficcional.
A ideia de estreitar as relações entre real e ficcional é, em última instância, aproximar
os estudantes e suas narrativas de um estado de ficção potencialmente criado pela arte. Neste
caso, ficção não consistiria em contar histórias imaginárias. Segundo Rancière (2012, p. 64-
65):
Ficção não é criação de um mundo imaginário oposto ao mundo real. É o trabalho
que realiza dissensos, que muda os modos de apresentação sensível e as formas de
enunciação, mudando quadros, escalas ou ritmos, construindo relações novas entre
a aparência e a realidade, o singular e o comum, o visível e a sua significação. Esse
trabalho muda as coordenadas do representável; muda nossa percepção dos
acontecimentos sensíveis, nossa maneira de relacioná-los com os sujeitos, o modo
como nosso mundo é povoado de acontecimentos e figuras. [...] Mas não há
princípio de correspondência determinado entre essas micropolíticas da redescrição
da experiência e a constituição de coletivos políticos e enunciação.
Quando o autor define ficção, ele está se referindo principalmente à produção dos
artistas. Pretendo, contudo, uma ampliação do conceito para abraçar a produção ficcional
realizada dentro da mediação pelos estudantes-espectadores-narradores. Dessa forma, o que
se pretende com a produção ficcional, e de forma mais ampla com a mediação, é o
35 Didi-Huberman (2010) também fala da brincadeira infantil. Mas seu ponto de vista, diferentemente de
Benjamin, concorda com Freud quando diz que talvez só haja imagem se pensarmos para além do princípio de
imitação, pois explicar o jogo por esse princípio seria inútil. E concorda com Lacan para quem o símbolo surge
como assassinato da coisa. Portanto, o autor toma a brincadeira por uma qualidade de prazer e morte. A coisa
(uma boneca, um lençol) é assassinada para ser alterada, dando lugar a “uma imagem bem mais eficaz, bem
mais essencial” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 83). Com isso, justifico porque não utilizo a analogia com a
brincadeira infantil de Didi-Huberman, mas de Benjamin.
115
agenciamento das questões explicitadas pelo autor. A saber: de relações que produzam
dissenso e não consenso; de outras formas de apresentação sensível, de percepção dos
acontecimentos sensíveis; e por fim, outras maneiras de relacionar essas formas com os
sujeitos. Mas cabe ressaltar que a mediação não pressupõe uma relação de causa e efeito
entre o agenciamento dessas questões e a mudança de opinião ou atitude por parte dos
estudantes. É o que o filósofo explicita no último trecho, quando diz que não há princípio de
correspondência determinado entre o trabalho da ficção (“essas micropolíticas da
redescrição da experiência”) e uma tomada de consciência e de atitude (o que o autor chama
também de “constituição de coletivos políticos e enunciação”, ou ainda, de “estado de
comunidade”). Este assunto será retomando ao final do capítulo.
Para Rancière (2010, p. 53) a “arte não produz conhecimentos ou representações para
a política. Ela produz ficções ou dissensos, agenciamentos de relações de regimes
heterogêneos do sensível. Ela os produz não para a ação política, mas no seio de sua própria
política”. Assim como a arte, e a ficção produzida por ela, não estão a serviço de uma ação
política; a mediação e sua produção ficcional também não estão. Não há uma relação de
causa e efeito entre a proposição de uma atividade pela mediadora, uma consciência política,
e uma tomada de atitude por parte dos estudantes-espectadores-narradores. Para que a
mediação não se traia, deve-se suspender relações determináveis entre intenções e efeitos.36
Assim, é a partir das relações entre real e ficcional, da produção de semelhança, e da
narrativa, que podemos entender a mediação como dilatação da experiência estética. Quanto
ao lugar da mediação, prefere-se que ele se inscreva dentro das margens da narrativa, uma
vez que sua essência não é informativa ou explicativa. Que este lugar seja de travessia e
perigo, para que as ideias e o próprio corpo não se permitam estanques; e a mediação não
seja uma terceira perna estabilizadora. Deseja-se ainda o potente limiar entre o que vemos e
o que nos olha, pois não queremos apenas o que é evidentemente visível, nem o que é dado
em certeza.
Antes de passarmos à questão da ruptura na mediação gostaria de inserir, mesmo que
brevemente, a perspectiva da dilatação dos sentidos como preparação para o contato com a
36 Embora não use diretamente as noções de estética e política encontrados em Benjamin e sim em Rancière,
considero sensato apontar para uma importante diferença na construção de tais ideias por ambos os teóricos.
Pois, este rejeita a ideia de estetização da política encontrada naquele. Para Benjamin (1994), a política teria
se estetizado em um momento específico, e faz referência às formas e manifestações do Terceiro Reich. Para
Rancière (2009a; 2009b), a política sempre teve uma dimensão estética. Inclusive nas suas manifestações de
poder, ou como o próprio autor chama: nas suas formas de espetacularização do poder. Prefere-se, para as
noções de mediação, portanto, adotar o conceito deste último.
116
obra. Pois, das três instancias trabalhadas até aqui – narrativa, semelhança e tensão entre real
e ficcional – apenas esta última poderia acontecer tanto no pré quanto no pós-espetáculo
dentro da escolha conceitual aqui desenvolvida (embora os exemplos dados se limitem ao
pós). Cabe relembrar que a preferência pelos momentos e mediação que sucedem o encontro
com a arte deu-se em função das especificidades do Projeto e principalmente do espetáculo
que não nos colocaram em situações de “contenção do abandono” (ABREU, 2015). Logo as
situações de dificuldade, e que exigiam maior atenção, aconteceram no terceiro encontro
com os estudantes, no pós-espetáculo.
Tendo em vista também a dificuldade de mensurar a dilatação no pré-espetáculo
devido a impossibilidade de aferir: se houve ou não experiência com a obra, que nível de
experiência se deu, e ainda, se esta teve ou não influência das ações mediadoras, dediquei a
este momento de ampliar os sentidos para a obra pouca atenção durante a análise,
consequentemente há uma escassa investigação a qual tento exemplificar adiante. Começo
com o trecho de uma entrevista realizada um semestre após a realização do Projeto, (maio
de 2015) em Ceilândia-DF, com três estudantes.
Arlene (entrevistadora): Vocês acham que a mediação (o momento que rolou antes do espetáculo,
ou o momento que rolou depois) alterou o seu olhar para o espetáculo?
Paula (estudante): Acho que sim. Porque como a gente não conhecia, não participava muito dessas
coisas, a gente podia talvez não entender tanto o espetáculo, da forma como a gente teve que fazer
nós mesmos, o nosso espetáculo para os mediadores. E na hora lá [de assistir à peça] a gente prestou
atenção mais nos detalhes, no jeito que os atores estavam posicionados. Até nesse negócio de
posicionamento, onde eles ficavam como eles andavam pelo espaço. Tudo isso que a gente aprendeu,
a gente utilizou na hora do show.
[...]
Arlene: Seria diferente se não tivesse mediação, se só viesse o espetáculo pra dentro da escola?
Gabriela (estudante): É porque a gente ia fazer pouco caso. E aí seria como qualquer apresentação
que tem na sexta-feira, que a gente tem. O teatro ia vir, ia fazer a apresentação, a gente não ia se
importar. Ia voltar a aula normal, continuar tudo normal. [...] Como a gente veio a conhecer,
conheceu mais sobre o espetáculo, e tudo, a gente criou um certo interesse. Quando veio, a gente já
iria olhar com olhos diferentes, ia chamar mais pessoas para verem também.
Paula usou as palavras “espetáculo” e “show” para falar das cenas criadas por ela e
sua turma, durante a mediação pré-espetáculo e também durante a oficina oferecida no contra
turno escolar. Isso denota a pouca familiaridade com a linguagem cênica, o que é confirmado
quando ela diz que “não participava muito dessas coisas”. Observo também que a ideia de
recepção como entendimento está presente, ao se explicitar que sem a mediação ela “podia
talvez não entender tanto o espetáculo”.
Ao mesmo tempo, a estudante relaciona o “entender” a sua observação sobre a
ocupação do espaço cênico pelos atores. Embora use uma expressão rígida (entender) ela
fala de uma percepção, que foi ampliada pela mediação; uma vez que assinala como a prática
117
realizada antes sensibilizou o olhar para o espetáculo. Isso é explicitado com a frase: “da
forma como a gente teve que fazer nós mesmos, o nosso espetáculo para os mediadores”.
Em outras palavras, a estudante diz que o entendimento seria diferente se não houvesse o
fazer, o perceber (e o padecer) pelo corpo, com os exercícios realizados previamente. Cabe
alertar que as duas estudantes se inscreveram e participaram da oficina de iniciação teatral
oferecida uma semana antes das mediações, o que pode justificar o foco na apreensão da
linguagem cênica.
Igualmente, Paula percebe como esse aprendizado repercutiu na sua própria
produção, quando diz: “Tudo isso que a gente aprendeu, a gente utilizou na hora do show”.
E o que ela chama de “show” é justamente a concepção, a produção poética, que no caso da
turma se deu por meio da apresentação de cenas no encontro pós-espetáculo. Ou seja, além
da apropriação de um recurso da linguagem cênica (ocupação do espaço), houve também
uma consciência dessa utilização. Pois, o que fica claro em sua fala é que o fazer (“fazer nós
mesmo, o nosso espetáculo”) a levou a perceber tal recurso no trabalho dos atores, que, por
sua vez, a levou a uma apropriação e utilização em cena, ou como ela mesma diz, “na hora
do show”.
Gabriela afirma que se não houvesse a mediação seu interesse pelo espetáculo seria
diferente. E compara o Projeto aos eventos que acontecem na escola, às sextas-feiras durante
o intervalo – de música, dança, teatro, etc. Ela ainda explicita que a possibilidade de
“conhecer” sobre a linguagem teatral influenciou sua experiência com o espetáculo. Isso
reforça o que Desgranges (2010, p. 32) fala sobre a familiaridade com os códigos teatrais
influenciar o interesse e o prazer na experiência com o espetáculo: “o prazer que ele [o
espectador] experimenta em uma encenação intensifica-se com a apreensão da linguagem
teatral.”
Cabe apontar que Gabriela buscou saber quando o espetáculo seria apresentado
novamente, fora do circuito do Mediato, e convidou colegas para assistirem outra vez. Isso
ocorreu em um sábado, no Teatro SESC Paulo Autran, localizado em Taguatinga-DF: região
próxima à Ceilândia-DF onde se situa a escola. Outro desdobramento que a fala a seguir
pode mostrar é o desejo de criar um grupo de teatro. As estudantes disseram que após a
realização do Mediato tentaram reunir pessoas interessadas em atuação para criar uma
companhia, mas, até aquele momento, não havia se concretizado.
Gabriela diz: “foi no sábado. A gente fez um grupo no WhatsApp, porque a gente
estava pensando em fazer o grupo do teatro, e nisso a gente conversou e combinou para ir
118
lá. Só que muita gente não foi. Foi só eu e ela. A gente assistiu duas vezes o mesmo teatro.
Foi até que legal.” Fica claro que o prazer estético vivenciado com o Projeto estimulou
Gabriela e sua colega a buscarem mais experiências (ainda que tenha se concretizado com o
mesmo espetáculo). Isso demonstra a dilatação acontecendo, inclusive após o encerramento
das mediações.
Em última análise o que as estudantes trazem corrobora para a compreensão de que
uma experiência se concretizou para elas, sobretudo pela via das atividades mediadoras. A
mediação, quando atende aos seus princípios estético-pedagógicos, pode contribuir com a
dilatação dos sentidos, com a abertura fundamental, criando ambiente para a experiência. O
que também pode ser verificado na fala de um estudante de outra região: “tudo isso eu acho
que foi preparação pra gente chegar no espetáculo e ver ‘Oh, isso tem a ver com aquilo, tem
a ver com aquele outro’” E explica: a mediação “estava preparando nós para o espetáculo,
[para] a gente ver com outro olhar [...] Porque primeiro nós começamos a trabalhar com a
nossa parte visual, depois o corpo”.37
O professor Ulisses (Teatro, Gama-DF) reforça esse ponto de vista quando diz, em
entrevista, que percebeu diferença na postura dos estudantes frente à obra: “a gente pôde
perceber o ganho deles com o processo de mediação, de introdução-espetáculo (antes do
momento espetáculo). Porque no retorno que eles deram aos atores – de perguntas, de elogio,
de comentário ou até de crítica – eles sabiam o que enxergar ou sabiam o que tinham visto”
E reforça: “não foi simplesmente achei bonito, achei emocionante. [...] Então eles sabiam
dialogar”.38
2.5 A mediação como ruptura
Retomarei aqui uma questão colocada no início do capítulo. A relembrar: como a
mediação pode provocar uma ruptura no sentido de uma mudança de percepção por parte
dos/das estudantes/espectadores(as) e se configurar como um espaço de troca estético-
político. Acredito que toda mediação deve conter um elemento de dissenso. Assim como no
teatro há o que chamamos de conflito – e é ele quem vai alimentar o jogo mantendo a atenção
e o interesse – de forma semelhante, o que vai manter a força da mediação e garantir seu
37 Entrevista realizada em São Sebastião-DF, jun. 2015. 38 Entrevista realizada em Gama-DF, ago. 2015
119
desenvolvimento é justamente o que há de dissensual. A mediação pode se configurar como
um espaço de diálogo onde estética e política estão imbrincadas. Neste sentido, busca-se
uma ruptura pela via de cenas de dissenso.
A ideia de dissenso é colocada por Rancière (2012, p.59) como uma espécie de
perturbação na esfera sensível, uma modificação do que é visível, dizível e pensável. O
dissenso está no cerne da política; ele “não é o conflito de ideias e sentimentos. É o conflito
de vários regimes de sensorialidade.” Desta forma, se a mediação funcionar como uma
atividade dissensual, possivelmente criará uma fissura na configuração estabelecida.
Estabelecida no sentido de padrões de pensamento e comportamento que se baseiam no e/ou
reforçam o senso comum.
Quando falo em estético e político juntos, penso em um modus de percepção e
sensibilidade que seja ético, que não contribua com o modo de operação do senso comum,
mas provoque deslocamentos. Por isso, a utilização do termo não tem a ver com o que se
convencionou chamar de política. Também não se pressupõe o estético apenas no âmbito
artístico.
Segundo Rancière (2012, p. 59-60):
Política não é, em primeiro lugar, exercício de poder ou luta pelo poder. Seu
âmbito não é definido, em primeiro lugar, pelas leis e instituições. A primeira
questão política é saber que objetos e que sujeitos são visados por essas instituições
e essas leis, que formas de relação definem propriamente uma comunidade
política, que objetos essas relações visam, que sujeitos são aptos a designar esses
objetos e a discuti-los. A política é a atividade que reconfigura os âmbitos
sensíveis nos quais se definem objetos comuns. [...] Tal como Platão nos ensina a
contrario, a política começa quando há ruptura na distribuição dos espaços e das
competências – e incompetências.
A essa ruptura o autor dá o nome de dissenso, colocando como consenso também o
que usualmente chamamos de política. Assim, haveria uma “política da estética no sentido
de que as novas formas de circulação da palavra, de exposição do visível e de produção dos
afetos determinam capacidades novas, em ruptura com a antiga configuração do possível.”
(RANCIÈRE, 2012, p. 63).
Biange Cabral (2012) traz um elemento dentro de sua pesquisa em Ação Cultural e
Teatro como Pedagogia que pode contribuir com a presente discussão pela semelhança com
a ideia de ruptura. O trabalho da autora se volta para o professor, mas facilmente podemos
transpor o argumento, por ela construído, para o mediador e suas ações.
Se a ação cultural parte do princípio de que a cultura (e o teatro) como pedagogia
atinge o emocional e o racional, é possível afirmar que o engajamento contínuo do
indivíduo com atividades culturais e artísticas contribui para a quebra e mudança
120
de habitus. Assim, a qualidade e a continuidade de um trabalho artístico
significativo para o indivíduo podem mudar sua visão de mundo e perspectivas,
pois quanto maior sua significação cultural, mais significativo seu potencial social
(CABRAL, 2012, p. 6-7).
A autora argumenta sobre a possibilidade de a ação cultural, por meio do fazer teatral,
tornar-se um campo privilegiado para a quebra do habitus. O conceito de habitus é colocado
por Pierre Bourdieu (2007) em A Distinção: crítica social do julgamento e se apresenta como
um condicionamento cultural que cerceia e direciona as formas de pensar e agir. Como um
“sistema de formas adquiridas de percepção, pensamento e atitudes, que delimitam ou
governam nossas interações no campo social.” (CABRAL, 2012, p. 5).
Tendo em vista essas noções de ruptura e dissenso vejamos um exercício aplicado
pelas mediadoras do Projeto Mediato em um encontro pré-espetáculo.
Exemplo 4 (pré-espetáculo) – A turma era dividida em dois grupos: dos fazedores e
dos observadores, assim os estudantes passavam pelos pontos distintos de olhar e
experimentação, ora atuando, ora sendo espectador. O exercício consistia em elaborar uma
composição com os corpos, dentro de um curto tempo, a partir de determinada palavra.
Apenas dez segundos eram disponibilizados para a montagem da “fotografia” – momento
em que todos ficavam parados formando uma composição. Com este jogo de espontaneidade
as mediadoras pretendiam observar e trabalhar as primeiras imagens que vinham à mente
dos estudantes, e que eram por eles construídas. Isto é, imagens que já estavam fixadas, ou
que circulavam no universo daquele grupo.
Esta atividade por vezes rendia discussões profícuas a respeito de estereótipos, da
imagem que é criada sobre algo ou alguém desconhecido e também acerca da importância
de conhecer outros pontos de vista sobre um mesmo objeto ou lugar. No caso da palavra-
tema “favela”, por exemplo, estimular a busca por opiniões e imagens que viessem de dentro,
abrindo espaço para informações e ideias que extrapolassem um único olhar externo. Dessa
forma, a mediação contribuía para um olhar etnocenológico na discussão. Abaixo um trecho
da conversa durante a realização do jogo da fotografia com a palavra “favela”:39
Joana (mediadora): O que eles trouxeram pra gente nessa imagem?
Estudantes: Maconheiro, traficante, piriguete, assalto, prostituta, vítimas, drogas.
Joana (mediadora): Vocês acham que eles conseguiram representar bem a proposta “favela”?
Estudantes: Sim!
39 Mediação realizada em setembro de 2015 em Ceilândia-DF. Os nomes tanto dos estudantes quanto das
mediadoras e supervisoras foram substituídos por outros fictícios para preservar a identidade. Originais e
transcrição na íntegra encontram-se comigo.
121
Joana (mediadora): Então eu lanço outra pergunta. Olha só, dentro dessa construção de
personagens que eles trouxeram pra gente: a piriguete, o traficante, o maconheiro... Vocês
perceberam que eles não trouxeram (e na fala de vocês, vocês também não trouxeram) a parte boa
da favela?
[Alvoroço]
Joana (mediadora): Então vocês tem 5 segundos pra mudar essa cena. 5, 4, 3, 2, 1. [o grupo refaz].
E agora galera o que temos?
Junior (estudante): Uma roda de samba.
Vanessa: Dança. [...]
Ao final do encontro a mediadora retoma o assunto:
Joana (mediadora): [...] A gente está trabalhando nas escolas públicas que a gente passou, que foi
Gama São Sebastião e Brazlândia, e agora Ceilândia (minha cidade), discutindo sobre essa relação
de imagem. E como a gente lê essa imagem. Sobre essa construção é importante a gente salientar
sobre como vem essa informação pra gente e como a gente faz essa leitura de terminados lugares e
pessoas. Enfim, vamos usar os dois exemplos claros: quando a gente usa a proposta ‘favela’ [...].
Quais as mensagens que são fornecidas pra gente em virtude desse lugar?”
Sabrina (estudante): Que só tem ...
Junior (estudante): assaltos... maconheiro...
Vanessa (estudante): A gente só mostrou a parte negativa.
Rute (mediadora): E aonde vocês veem isso?
Vanessa (estudante): Em jornal.
Sabrina (estudante): Em novelas.
[...]
Joana (mediadora): Vocês acham que é um preconceito a partir da imagem?
Clara (estudante): Sim. Eu moro no Sol Nascente e a maioria do pessoal fala que lá acontece muito
assassinato. Acontecer, acontece. Mas não é toda essa mídia que dá.
Os estudantes comentavam a respeito da imagem, muitas vezes preconceituosa, que
construímos do “outro”; sobre a influência da mídia; e sobre o racismo. Geralmente, a
conversa fluía por parte dos próprios estudantes e a mediadora lançava questionamentos para
instigar os olhares acerca da cena e para alimentar o diálogo; partindo do pressuposto que as
“questões propostas pelo mediador devem procurar fazer que os intérpretes possam testar
suas hipóteses e confrontar seus pontos de vista, garantindo o espaço de expressão de suas
ideias e confirmando sua capacidade e sua autonomia interpretativa.” (COUTINHO, 2009,
p. 177).
Clara, reconhece e de certa forma se identifica com o outro a partir da imagem criada
por ela e pelos colegas em um jogo cênico, isto é, dentro do plano ficcional. Este foi o espaço
fértil para a relação de proximidade criada entre a coletividade representada pela “fotografia”
e ela própria, tendo como elo o lugar: a favela e o Sol Nascente. 40 Ou seja, o cotidiano dela
e de outros estudantes daquela turma foi posto em evidência, como objeto de reflexão, depois
que um jogo fccionou o real.
40 O Setor Habitacional Sol Nascente, localizado às margens de Ceilândia Norte, surgiu como ocupação
irregular, com o fracionamento de fazendas. Reúne cerca de 120 mil moradores que convivem com a falta de
infraestrutura e de equipamentos públicos. Disponível em: <http://nascentessite.xpg.uol.com.br/saiba.html>
Acesso em 26 jul. 2015.
122
A analogia foi concretizada, ou tornada pública com a fala da estudante, por meio do
debate ao final. Muitas ideias, informações, imagens são lançadas durante as ações
mediadoras como se fossem fios puxados, descobertos, criados, que podem ficar soltos se
não forem tecidos durante ou posteriormente. Por isso, é importante que alguns fios sejam
atados, pois é essa conexão que muitas vezes gera uma ruptura no que é tido como natural,
e com esse nó a mediação pode gerar dissenso, como se deu no caso acima.
A conversa transcrita acima também mostra como muitas vezes os próprios
estudantes reconheciam não apenas a construção unilateral mas também a origem de
imagens e informações por eles apresentadas. Resposta que aparece quando a mediadora
pergunta “aonde vocês veem isso?”. Ainda sobre o diálogo, vale ressaltar que o fato de a
segunda versão da “fotografia” apresentar momentos de dança, não significa que a mediação
explorou a complexidade e as especificidades de uma coletividade como a favela, nem falou
sobre seu cotidiano (que diverge dos personagens criados pelos estudantes), muito menos
significa que se mostrou a “parte boa da favela”. O que se fez foi desconstruir uma imagem
que nos é dada como pronta, estimulando, possivelmente, a reflexão sobre outras imagens.
E apesar do maniqueísmo presente na fala da mediadora (o que pode ser revisto), a
problematização da imagem não ficou comprometida.
A fala de uma entrevista em São Sebastião-DF explicita de que forma a ruptura se
deu para um estudante e seus colegas:
Arlene (entrevistadora): Você acha que alguma coisa mudou, por ter participado desse projeto?
Samuel (estudante): A forma de ver a cultura.
Arlene: É? Por quê?
Samuel: Porque tem muita gente que não liga pra cultura, como é a nossa cultura, pra ver as
coisas... que nem ninguém nunca tinha saído para assistir uma peça, ou então pra ir nas
comunidades pra ver como é que é, e o projeto trouxe isso pra a gente, abriu a nossa mente para
enxergar o que tem ao nosso redor.41
As questões tratadas acima, e a forma como o exercício foi conduzido, são elementos
capazes de criar fissuras na estrutura habitual, com a possibilidade de provocar mudanças no
nível da reflexão e dos discursos. Observo que não houve uma fala hierarquizada vinda da
mediadora, dizendo que é importante, por exemplo, refletirmos sobre a imagem que
construímos do outro. Houve um gesto que apontou para fora do corpo que o criou, para um
outro corpo, em outro espaço (a favela). Houve sim um deslocamento do olhar que partiu
41 Entrevista realizada em São Sebastião-DF, abr. 2015.
123
dos corpos dos próprios estudantes. E tal percepção se deu pela via do estreitamento das
relações entre real e ficcional gerado pelo jogo.
Em última instância um exercício simples realizado no pré-espetáculo pode ter
dilatado os sentidos para a experiência com a obra pela via do estímulo a um olhar atento ao
que nos é dado, bem como por meio de uma interpretação crítica de imagens, sejam elas
artísticas ou não. Alerto, contudo, que o exemplo se restringiu à questão interpretativa mas
sabemos que a ideia de dilatar sentidos não passa obrigatoriamente por aí.
Abrindo um parênteses, considero que a mediação vai muito além do que possamos
pretender com ela, no que diz respeito ao dissenso. E para justificar aponto o depoimento
sincero e espontâneo de alguns estudantes após a última mediação em Ceilândia-DF. “Acho
que essa oficina teve uma influência aqui na turma. Porque muita gente não falava com a
outra. Aí com essa oficina que teve elas meio que interagiram com o pessoal da sala, na hora
da gente fazer a foto e a peça hoje”, o estudante fez referência à oficina oferecida no contra
turno escolar e às mediações pré e pós espetáculo. Logo em seguida uma estudante
demonstra uma percepção interessante sobre a participação dos colegas, que converge com
o que é defendido nesta pesquisa, e confessa que não tinha coragem de falar em público antes
do Projeto: “acho que todo mundo teve uma outra visão. Porque esse não é o nosso cotidiano.
Às vezes com a mesmice fica chato. [...] Mesmo os espectadores, acho que todo mundo
participou. De forma indireta, mas participou, deu opinião, falou o que tinha que melhorar
[na cena]”. E complementa, “e ainda tirou minha vergonha. [...] Eu não conseguia falar em
público não”. A informação dada pelo primeiro estudante foi verificada posteriormente, pois
coincidentemente entrevistei uma das estudantes envolvidas.
Vejamos agora um trecho de um encontro pós-espetáculo em Ceilândia-DF.
Exemplo 5:
Ester (mediadora): Já que este material também é um tipo de mediação, por que, vocês acham, que
essa questão está dentro do material sendo que a peça foi sobre o que vocês falaram? [A mediadora
fala do caderno de mediação].
Maria (estudante): Na peça falava quem matou o anarquista.
Carol (estudante): Acho que são as pessoas que são mortas injustamente por estarem expressando
sua opinião. E também, tipo, a polícia encobrir o erro deles [próprios], né? Culpando a outra pessoa.
No caso, a pessoa que se matou... no caso do Herzog, como se ele tivesse se matado.
[...]
Pedro (estudante): Tem uma música dos Racionais que fala sobre a vida de um cara, aí a polícia
entra, mata ele dentro da casa dele. Aí aparece no outro dia: homem é encontrado morto [...] por
acerto de contas. Sarah (mediadora): vocês gostam dos Racionais?
124
Pedro (estudante): Racionais é vida véi. É porque o povo acha que Racionais é música de bandido,
mas, tipo, não vê a letra, entendeu?
Ester (mediadora): No educativo tem uma música dos Racionais.
Sarah (mediadora): Na última página do educativo.
Raquel (supervisora): Galera, e porque normalmente rola isso de a gente, (a gente não, mas de uma
maneira geral) achar que RAP é música de bandido?
Jean (estudante): Pela história do RAP. Desde o início do RAP... por ele ser curtido pela classe
mais baixa. Você não vai entrar numa mansão e escutar o dono mansão escutando RAP. Mais fácil
você ir na favela e escutar o cara da favela escutando RAP.
Raquel (supervisora): E a crítica social que o RAP faz também né?
Jean (estudante): É.
Ester (mediadora): Tem muito a ver com quem são os bandidos no Brasil. Quem é a população
carcerária do Brasil? Quem está preso no Brasil?
Jean (estudante): O cara que roubou um biscoito no mercado está preso. Aí o corrupto tá solto.
Ester (mediadora): [A mediadora fala a respeito de pesquisas que apontam para o fato de uma
porcentagem considerável da população carcerária não saber porque está presa, em função de ser
alegado flagrante. E diz que o RAP é uma contestação disso também] É interessante você falar que
todo mundo fala que Racionais é música de bandido, mas às vezes é legal, além de contestar isso (de
ser música de bandido), pensar quem é bandido, né? Quem são essas pessoas que estão presas? São
pessoas. São pessoas que estão presas.
[...]
Lucas (estudante): ... A mídia meio que quer influenciar e manipular o pensamento de todos nós.
Que nem a moça [atriz] falou “vandalismo, quebra-quebra” eles enfiam isso na nossa cabeça. Um
exemplo, na manifestação o pessoal só filma quando o pessoal tá quebrando alguma coisa, nunca
filma, que nem o homem [ator] lá falou, tipo, alguém apanhando da polícia, alguma coisa assim. Só
filma esse lado. Aí a mídia meio que quer manipular a gente. Que nem o [Pedro] falou de “Um homem
na estrada” [faz referência à musica dos Racionais MC’s]. Do jeito que falaram lá, que era acerto de
contas. Todo mundo pensou que era aquilo, mas na verdade foram os policiais que mataram.
Podemos observar, na transcrição acima, a mediação como um espaço de fomento ao
debate estético e político por meio do compartilhamento de interpretações e opiniões. E
também como um dilatador da capacidade de estabelecer relações entre formas de arte e
situações cotidianas.
Ao trazer espontaneamente o RAP para o diálogo, o estudante Pedro rompe com o
senso comum que delega à mídia, especialmente a televisiva, a fonte legítima de versões de
uma história. Ele insere a voz de um outro, excluído, e questiona o estigma de o estilo
musical ser considerado “de bandido”. Em última instância incentiva os colegas no
estabelecimento de novas conexões entre obra de arte, vivências anteriores e visão de mundo.
Para Rejane Coutinho (2009, p. 176), o processo de interpretação no campo da arte
[...] tem início com o reconhecimento do objeto pelo sujeito leitor segundo
relações e analogias estabelecidas com seu conhecimento preexistente e com sua
memória. Nesse primeiro movimento, o sujeito busca atribuir significados
reconhecíveis ao objeto. Para que o processo tenha continuidade e se desdobre, é
necessário que o sujeito tenha acesso a outras informações, em especial
contextuais de diferentes áreas de conhecimento que se relacionam com o objeto.
125
Durante a mediação, alguns estímulos foram dados no intuito de garantir a
continuidade do processo, como é defendido por Coutinho – e também estimular a produção
de semelhança, como foi apontado anteriormente. Durante a conversa relatada a mediadora
distribuiu o caderno de mediação e falou do que se tratava. Em seguida, sugeriu que os
estudantes observassem duas referências que havia no material: uma obra do artista
brasileiro Cildo Meireles (consiste em uma cédula de cruzeiro carimbada com a frase “quem
matou Herzog?”, produzida em 1970, da série Inserções em circuitos ideológicos – Projeto
Cédulas) e a imagem de uma cédula de dois reais carimbada com a frase “Cadê Amarildo?”
(autoria desconhecida, 2013). A mediadora teceu então algumas perguntas e os
desdobramentos aconteceram a partir do interesse dos estudantes.
A estudante Carol acha que o fato de as pessoas serem mortas injustamente por
expressarem sua opinião, bem como a conivência da polícia, é o elo entre a obra de Cildo
Meireles, a frase “Cadê Amarildo?” e o espetáculo assistido. Ela expressa isso quando
questionada sobre a relação entre o que foi visto no caderno de mediação e o que ela e seus
colegas disseram sobre o espetáculo. Lucas estabelece uma relação entre a música dos
Racionais MC’s, inserida por Pedro, e a influência da mídia. Sua opinião sobre a
manipulação midiática aparece com referências da peça, quando faz alusão às falas dos
personagens: “a moça falou” e “o homem lá falou”.
A resposta de Jean denota conhecimento sobre o estilo musical, especialmente no
Brasil. Pois o RAP, em sua maioria, é produzido por grupos dos bairros pobres das grandes
cidades, e se configura como uma poesia-protesto, que denuncia a situação das pessoas que
vivem nessas regiões. E, sobretudo nos anos 80, quando do seu início, o estilo musical não
era considerado uma forma de arte. De forma implícita o estudante fala acerca do preconceito
que há sobre a periferia e também sobre um estilo musical vinculado desde a sua origem às
pessoas e as questões das regiões marginalizadas.
Sobre os debates cabe ponderar que a ideia de um bate-papo como uma possibilidade
de mediar deve vir consciente de que a experiência com a obra e a invenção de sentidos por
parte dos estudantes-espectadores são os elementos essenciais. Além disso, as relações
tecidas pela mediadora entre opiniões do grupo, conceitos abordados no espetáculo, imagens
etc. devem levar em consideração os próprios estudantes – sua experiência com a obra e suas
interpretações. Isso justifica construirmos a mediação pela via do questionamento.
Perguntar, ao invés de afirmar, leva o educando a refletir e encontrar formas de organizar
seu pensamento e colocá-lo para o outro. Susana da Silva (2009, p. 135-136) defende uma
126
estrutura em diálogo “partindo de um conjunto de questões alargadas e abertas a múltiplas
respostas”. E diz que é fundamental
criar momentos de discussão e resolução de problemas que envolvam os indivíduos
no seu conjunto, trazendo para a própria discussão as práticas sociais que lhe dão
forma. Se o processo interpretativo é simultaneamente pessoal e social, ele requer o
desenvolvimento de estratégias de discussão e negociação para que seja capaz de
gerar transformação efetiva, ou seja, aprendizagens efetivas. Desse modo, potencia-
se o processo de negociação de significados que permite a criação de redes
partilhadas de saberes e plataformas comuns de entendimento.
A autora traz uma noção, já introduzida anteriormente, do complexo agenciamento
das questões que dizem respeito ao que é pessoal e social, quando ressalta o valor da inserção
de questionamentos que “envolvam o indivíduo no seu conjunto”. Creio que compreender o
particular no coletivo seja altamente político. Pois, à medida que os estudantes percebem,
por exemplo, que atitudes individuais constituem o social, provoca-se um ponto de dissenso,
que contribui para um processo de construção do pensamento crítico. E o procedimento de
interpretação na mediação transita por esses dois lugares (o particular e o coletivo), assim
como a formiga caminha pela fita de Moebius na gravura de Escher. Caminha dentro e fora:
do indivíduo, da obra, da sociedade. Lembrando que os limites do que é dentro e fora se
confundem.
De acordo com Stuart Hall (1997, p. 62) as interpretações não poderão produzir uma
verdade absoluta. Ao contrário, são seguidas por outras interpretações, em uma cadeia sem
fim. Para o autor:
A produção de sentido depende da prática da interpretação [...] Mas note que,
porque os significados estão sempre mudando e escorregando, os códigos operam
mais como convenções sociais do que como leis fixas ou regras inquebráveis. [...]
E a vantagem da linguagem é que os nossos pensamentos sobre o mundo não
precisam permanecer exclusivos para nós, e em silêncio. Podemos traduzi-los em
linguagem, torná-los ‘fala’, através da utilização de sinais que representam eles -
e, portanto, falar, escrever, comunicar com eles para os outros.42
Hall fala, logo no início da citação, sobre algo que remete à noção de sentido
defendida por Dewey (2010), utilizada neste trabalho. A interpretação é um momento da
produção de sentido. Não o objetivo, mas uma parte essencial, assim como são as outras. A
ideia colocada por Hall, se aplicada ao trabalho de mediação, enriquece o diálogo, pois,
incentiva o estudante ao ato interpretativo, e este, amplia seu olhar na medida em que escuta
42 Livre tradução do trecho original: Producing meaning depends on the practice of interpretation […] But
note, that, because meanings are always changing and slipping, codes operate more like social conventions
than like fixed laws or unbreakable rules. […] And the advantage of language is that our thoughts about the
world need not remain exclusive to us, and silent. We can translate them into language, make them ‘speak’,
through the use of signs which stand for them - and thus talk, write, communicate about them to others.
127
outras interpretações distintas das suas. Surgindo, então, diversas versões para o mesmo
objeto ou manifestação artística.
Dessa forma, a busca pela intencionalidade do artista durante a leitura de uma obra
reduziria a construção dos significados à busca por uma verdade preexistente e desejada, a
qual apenas o artista supostamente detém. A pergunta “O que o artista quis dizer com isso?”,
frequentemente escutada durante minha trajetória com mediação e artes visuais em museus
e galerias de arte em Brasília-DF, me fez buscar outras perspectivas que fugissem tanto da
pergunta quanto do desejo pela resposta. Contornar este questionamento era muitas vezes o
primeiro desafio da mediação.
Aqui, o que chamo de interpretação mantem certa proximidade com o conceito de
alegoria: allo = outro, agorein = dizer (GAGNEBIN, 2013). Como outro dizer a alegoria se
coloca na essencial abertura, sempre em processo e evidenciando sua precariedade (não é à
toa que a alegoria esteja muitas vezes associada à ruína, como é o caso em autores como
Baudelaire e Benjamin). A diferenciação que Gagnebin (2013, p. 38) faz entre símbolo e
alegoria, a partir de Benjamin, pode nos ajudar a compreender melhor, sendo o primeiro
fechado e instantâneo, enquanto a segunda abre e significa.
Enquanto o símbolo, como seu nome indica, tende à unidade do ser e da palavra,
a alegoria insiste na sua não-identidade essencial, porque a linguagem sempre diz
outra coisa (allo-agorein) que aquilo que visava, porque ela nasce e renasce
somente dessa fuga perpétua de um sentido último. A linguagem alegórica extrai
sua profusão de duas fontes que se juntam num mesmo rio de imagens: da tristeza,
do luto provocado pela ausência de um referente último; da liberdade lúdica, do
jogo que tal ausência acarreta para quem ousa inventar novas leis transitórias e
novos sentidos efêmeros.
Quando a autora diz que a linguagem sempre diz outra coisa que aquilo que visava
não podemos cair na confusão achando que essa outra coisa possa existir em si, sendo objeto
de busca, como se houvesse um sentido único, um segredo guardado que deve ser desvelado.
Ao contrário, ela diz que a alegoria renasce justamente da fuga de um sentido último.
Podemos ver novamente aqui a perspectiva da perda, lançada por Didi-Huberman
(2010) anteriormente, quando o autor fala de luto; mas ao mesmo tempo uma perda/morte
que gera vida: explicitada pelo jogo, pela ludicidade, pela liberdade. Essas “duas fontes que
se juntam no mesmo rio de imagens” são respectivamente o abdicar de um sentido único, de
uma estabilidade, e até mesmo da intencionalidade dos artistas, para então ganhar com “a
invenção de novas leis transitórias e novos sentidos efêmeros”. Assim, a interpretação, se
configurando como um outro dizer, deve partilhar desses dois movimentos, aproximando-se
da alegoria.
128
Ainda sobre a interpretação, creio que as teorias que defendem o ato contemplativo
por si só, e dispensam, quando não excluem, os processos de produção de sentido, e de
significação pela via interpretativa, desconhecem ou ignoram o potencial de estímulo à
criticidade que tal ação pode ter. Os discursos que prescindem o trabalho interpretativo, não
compreendem essa potencialidade no trabalho com estudantes, principalmente se tratando
de jovens que moram e estudam em regiões periféricas. Talvez haja uma intencional vontade
de supressão de atividades que vão ao encontro de estímulo aos sentidos e de uma formação
crítica dos discursos. O argumento das teorias que defendem exclusivamente o ato
contemplativo, apontam, geralmente, para a perda do caráter estético quando se adentra o
interpretativo, mas concordo com Dewey (2010, p. 117) quando diz que “Os inimigos do
estético não são o prático nem o intelectual. São a monotonia, a desatenção[...] a submissão
às convenções na prática e no procedimento intelectual”.
Vejamos outro trecho de uma mediação pós-espetáculo em Ceilândia-DF. Exemplo
6:
Ester (mediadora): Diante disso como é que [vocês] veem essa articulação da peça com as questões
de vandalismo nas manifestações? Como a peça articulou essas questões? [...] Como é que você sai
com relação ao vandalismo e às manifestações depois de ver a peça? Mudou alguma coisa pra vocês?
Ana (estudante): Pra mim mudou o respeito pelas pessoas que fazem manifestação. Não que eu não
apoiasse, mas assim, a gente está vendo o tempo todo na televisão as pessoas falando que isso é uma
coisa errada sendo que todo mundo tem o direito de reivindicar e eles estão vivendo como se fosse
em uma ditadura maquiada. A gente vive num país onde eles falam o que a gente tem que fazer ou
não e quando a gente vai reivindicar pelos nossos direitos, eles criticam, falam que é vandalismo, que
é baderneiro.
[...]
Bruno (estudante): Têm partes boas, você não pode tirar tudo como parte negativa também. Algo
que sobrou da ditadura militar, muita gente é contra e quer a dissolução da Polícia Militar, mas eu
não sou a favor disso. É uma das coisas que ficou e acho que não deve acabar.
Ana: Eles estão machucando as pessoas, deixando com furo na cara, na perna. Como se isso fosse
normal. [A estudante critica a atuação da PM].
Respondendo ao estudante, a mediadora comenta que a PM não foi criada na
Ditadura Militar e procura entender melhor o seu pensamento. Bruno diz que no dia anterior
os atores criticaram o fato de a Polícia Militar usar armas e questiona: “Imagina se a polícia
não usasse arma? Com arma, do jeito que usa, às vezes não consegue controlar a população,
com um cassete ele ia conseguir fazer alguma coisa?”
Neste trecho podemos observar as opiniões dos estudantes Ana e Bruno. Embora
façam referência a pontos distintos (Ana = como a mídia televisiva mostra as manifestações
e seu respectivo posicionamento a partir disso; e Bruno = a importância da manutenção da
Polícia Militar armada), os discursos denotam o posicionamento ideológico dos estudantes.
129
A ideia de controlar a população como função da Polícia Militar, colocada pelo estudante,
denota a reprodução de um pensamento hegemônico no qual a instituição (PM) é a
mantenedora da ordem, e essa manutenção pressupõe eliminar as pessoas que perturbam a
ordem. Vale refletir ainda sobre o que seria essa ordem, quem a define e quais seriam os
critérios para preestabelecer quem está fora ou contra a ordem.
Se pensarmos a ordem como manutenção dos interesses e da autoridade dos que
ditam as regras, o discurso do estudante (Bruno) narrado acima estaria inserido em um
circuito ideológico dominante. Ou, segundo Michel Foucault (2013), estaria servindo a um
“regime de verdade” apoiado sobre um suporte e uma distribuição institucional exercendo
sobre os outros discursos um poder de coerção.
[...] só aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecundidade, força
doce e insidiosamente universal. E ignoramos, em contrapartida, a vontade de
verdade, como prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que, ponto
a ponto, em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade e
recoloca-la em questão contra a verdade, lá justamente onde a verdade assume a
tarefa de justificar a interdição e definir a loucura (FOUCAULT, 2013, p. 19-20).
Quando Ana fala “eles estão vivendo como se fosse em uma ditadura maquiada”,
podemos ver a utilização de uma metáfora: “maquiada” como espécie de disfarce, no intuito
de esconder algo atrás de um recurso. Essa percepção demonstra através do discurso um
ruído na estrutura dominante, na medida em que questiona algo que está sendo colocado pela
mídia, destoando do senso comum, que tende a colocar o discurso televisivo em um lugar de
poder que por si só já estaria legitimado.
Manuel Castells (1999), sociólogo espanhol, propõe em seu livro O Poder da
Identidade a distinção entre três formas de origem da construção de identidade. São elas:
Identidade legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes no intuito de legitimar
sua dominação em relação aos atores sociais; Identidade de resistência: criada por atores
sociais que se encontram em condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da
dominação, que constroem formas de resistência; Identidade de projeto: se dá quando esses
atores constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade, buscando
também recursos para a transformação social. Para este último, o autor dá como exemplo o
feminismo.
Tendo em vista que o objetivo aqui não é o enquadramento do sujeito em determinada
identidade, proponho uma apropriação da teoria de Castells com a transposição do termo
“identidade” para “discurso”. Pois, na constituição do sujeito há vários discursos, inclusive
contraditórios. E consciente das contradições, das diferenças e também dos apagamentos e
130
dos esquecimentos é que afirmo que a tentativa de categorizar não se aplica ao sujeito, mas
a um discurso proferido em um determinado espaço e tempo, por um sujeito heterogêneo
constituído por discursos também heterogêneos.
Dentro desta perspectiva, de construção de discurso, poderíamos analisar as falas dos
estudantes Bruno e Ana como constitutivas de um discurso legitimador e de um discurso de
resistência, respectivamente; como é explicitado a seguir.
Exemplo 6:
Bruno (estudante): Na favela só tem bandido.
Ana (estudante): A gente também mora na favela. Vocês estão achando que isso aqui é Lago Sul,
é?
Ana fez referência a uma região elitizada do Distrito Federal que concentra uma das
maiores rendas per capita do distrito (juntamente com o Lago Norte). O local da escola onde
os estudantes estavam é uma Região Administrativa (RA) do DF, chamada Ceilândia, mais
especificamente “P Norte”, uma parte ainda mais marginalizada da região. Ceilândia, como
a maioria das RAs, é uma periferia distante do centro (Brasília). Foi criada com o intuito de
acabar com as favelas que estavam se formando dentro do Plano Piloto (cidade idealizada
pelo arquiteto e urbanista Lúcio Costa para ser a capital do Brasil). O nome vem do projeto
CEI (Campanha de Erradicação de Invasões), iniciado no final da década de 60 e
concretizado em 1971 para transferir os moradores das favelas para as terras demarcadas. A
campanha tinha como slogan “a cidade é uma só”.43
O que a frase “na favela só tem bandido” silencia? Quando Ana pergunta se eles (os
colegas) acham que estão no Lago Sul chama a atenção para a realidade na qual eles vivem
e para o fato de que eles também são estigmatizados, muitas vezes colocados como o “outro”,
sendo alvo de preconceitos. A afirmação de Bruno traz um pensamento que, dentro do senso
comum, legitima a atuação dos Policiais Militares armados dentro de periferias das grandes
cidades. Esse pensamento foi defendido por ele em alguns momentos do diálogo,
desconsiderando que a região na qual ele vive e estuda também é periferia.
Durante o encontro explicitado nos exemplos 5 e 6 as mediadoras acolheram as
opiniões dizendo que era importante que os estudantes falassem, e que o Mediato estava na
escola também para criar um espaço de conversa sobre o que estava sendo discutido. Por
43 Adirley Queirós, cineasta, morador da Ceilândia fez um filme chamado A cidade é uma só? (Brasil, 2011)
no qual retoma algumas questões daquela época e que repercutem até hoje, a respeito da exclusão territorial e
social que grande parcela da população do Distrito Federal brasileiro sofre.
131
fim, falou da importância de exercitarem o diálogo e que eles (estudantes) poderiam fazer
isso mais vezes.
Nos exemplos dados vimos que opiniões distintas foram inseridas pelos próprios
estudantes e não por uma mediadora. Isto reforça um princípio da mediação que é construir
o pensamento a partir do que é proposto pelos estudantes, o que, em última análise, relativiza
o lugar do discurso e, consequentemente, do poder, que é próprio ao lugar. Nestes termos,
acredito que a mediação funciona como uma atividade pedagógica válida quando
proporciona aos estudantes um espaço de diálogo, sem imposição, em que eles podem
aprender uns com os outros, na troca de ideias, seja com a voz, seja com voz e corpo em
ação.
Para Foucault (2013, p. 41), “todo sistema de educação é uma maneira política de
manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles
trazem consigo.” Segundo Eni Orlandi (2007, p. 15), “o discurso torna possível tanto a
permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da
realidade em que ele vive.” O segundo movimento, em ambas as citações, parece mais
cabível ao trabalho de mediação, já que se enseja, como foi dito, que a mediação provoque
dissenso e rupturas. Essa consciência pode trazer ao trabalho da mediação o cuidado
necessário na produção dos discursos e na proposição das práticas.
Tendo em vista que o objetivo da mediação não é mudar a opinião dos estudantes,
acredito que tivemos momentos profícuos. Seria inocente (se não autoritário) desejar que a
mediação servisse de informativo e/ou esperar uma relação de causa e efeito entre projeto
educativo e mudança de opinião, por exemplo, no caso do estudante Bruno. Para a mediação
é preferível que se suspenda qualquer relação determinável entre a intenção de artistas e/ou
mediadores, manifestação artística, percepção, e tomada de atitude por parte do espectador.
Se a mediação estiver a serviço de doutrinação o espaço de diálogo será minado e provocará
o distanciamento dos estudantes que não se veem contemplados pelas ideias “ensinadas”.
A troca durante um diálogo provoca a reflexão dos estudantes, estimulando-os a
traduzir suas ideias em palavras e colocar suas palavras à prova (RANCIÈRE, 2012). O
simples fato de o estudante Bruno ter espaço para colocar suas ideias e também escutar/ver
opiniões que são diferentes das suas (através de discussões ou elaboração de cenas) gera uma
suspensão, incomum ao espaço escolar. Essa suspensão, por sua vez, pode (ou não) refletir
na disposição dos corpos, dos olhares, dos discursos, dos saberes.
132
Todavia, vejamos uma problemática: no início da pesquisa eu acreditava que o caso
“Ana e Bruno” consistia em um bom exemplo do que seria uma ruptura. Posteriormente,
analisando o Projeto de forma geral, vi que nesta, e em outras situações, não havia ruptura,
e mais, tais circunstâncias nos levaram, em alguns casos, para um lugar que reforçava
posições (no afã de problematiza-las), e de forma mais perigosa para um lugar de coerção e
exaustão. Penso, portanto, que não houve uma efetiva ruptura, pela via do dissenso, no
último exemplo. A mediação garantiu um espaço aberto para a troca de opiniões por meio
de um bate-papo, como foi dito, mas isso não foi suficiente para alcançarmos um espaço de
ruptura.
Se o objetivo era permitir que os estudantes escutassem ideias distintas das próprias,
poderíamos dizer que o encontro alcançou sua finalidade. Entretanto, me pergunto se é isso
que a mediação pretende. Pois dessa forma, poderíamos ter provocado a discussão a partir
do caderno de mediação, prescindindo a própria obra. Essa questão fica latente quando
analiso de que forma fizemos (se é que fizemos) o caminho de volta à obra, após o enfoque
no conteúdo. Em muitos momentos, de forma não intencional, colocamos o nosso foco no
conteúdo em detrimento da experiência e da invenção de sentidos: não realizamos o retorno
ao trabalho artístico e nos perdemos no caráter informativo. E é a respeito desse problema
que tratarei no próximo tópico.
2.6 Política, na estética ou no tema: “Isso que vocês querem colocar na cabeça da gente”
Estávamos lá, soberanas figuras olhando para trinta e cinco, quarenta pares de olhos.
Como se houvesse na ocupação destas figuras uma urgência em traduzir, em lançar o dizível
como ferramenta, para informar e formar. Vivos ou menos vivos os olhos não nos
influenciavam; continuávamos ruminando o conteúdo, a grande massa palavrória. A massa
enchia os buracos, as frestas, sufocando. Ansiávamos rachaduras, fissuras, mas tratamos de
tampar as asperezas.
Este parágrafo, que creio resumir este subcapítulo, foi escrito ao relembrar os
momentos mais inquietantes do Projeto Mediato, nos quais vi a mediação se distanciando
dos seus princípios. Nos quais optamos por uma visibilidade manifesta em detrimento de
uma visibilidade subterrânea.
133
A já citada Jeanne Marie Gagnebin (2013, p. 104) diz que
Nas teses “Sobre o Conceito de História”, a tarefa do historiador ‘materialista’ é
definida, essencialmente, pela produção dessas rupturas eficazes. Longe de
apresentar de início um outro sistema explicativo ou uma “contra-história” plena
e valente, oposta e simétrica à história oficial, a reflexão do historiador deve
provocar um abalo, um choque que imobiliza o desenvolvimento falsamente
natural da narrativa.
Penso que, se a mediação se ocupa de uma ruptura (histórica), não é, ou não deveria
ser, no sentido de contar uma “contra-história plena e valente, oposta e simétrica à história
oficial”, mas por meio das arestas, dos silêncios, do que escapa, buscar uma ruptura, no que,
falsamente, se desenvolve como natural e universal.
A autora diz com Benjamin que a história habitual é a “comemoração” das façanhas
dos vencedores. E diz que para ir além dessa tradição dos vencedores precisamos nos agarrar
a essas asperezas, arestas, “contra o fluxo nivelador da história oficial que, justamente, deixa
escapar esses ‘lugares nos quais a tradição/transmissão se interrompe’” (GAGNEBIN, 2013,
p. 100). Entretanto, essa intervenção na “história da história” não significa a oferta apressada
de uma narrativa substitutiva. Assim, o que Benjamin propõe não é uma outra interpretação,
“não se trata de edificar a continuidade heroica de uma contra-história ou de consolar os
humilhados de hoje pela evocação de gloriosos amanhãs, como em tantas variantes
iluministas ou marxistas da historiografia” (GAGNEBIN, 2013, p. 105). O historiador
materialista de Benjamin, portanto, não pretende produzir um outro discurso histórico tão
coerente como aquele ao qual se opõe.
Creio que tanto o espetáculo quanto a mediação se ocuparam disso que Benjamin e
Gagnebin nos falam: do que escapa, dos tropeços, dos silêncios dessa história que nos é
contada como se se desenvolvesse por si mesma. Contudo, a meu ver, o risco foi justamente
cair no que a autora comenta acima: de propor um outro discurso histórico tão exaustivo e
coerente como aquele ao qual se opõe.
A mesma questão pode ser interpretada à luz de outro texto de Gagnebin (2013, p.
105-106)
[A] idéia de interrupção [da história oficial] e, de maneira mais específica, o
conceito de cesura [que se assemelha aqui ao de ruptura] preenchem assim na
reflexão historiográfica de Benjamin uma função dupla: em primeiro lugar,
criticam a concepção trivial da relação histórica, em particular uma relação de
causalidade determinista [...] Em segundo lugar, a cesura opera uma ruptura no
desenvolvimento falsamente “épico” da narrativa; contra a ilusão tentadora que
queria ver no fluxo de nossas palavras a abundância da natureza, ela lembra que
nossa narração (em particular nossa “história”!) não segue por si mesma, que ela
é o resultado de decisões singulares, até arbitrárias, e não o fruto de um processo
universal e orgânico.
134
A autora diz ainda que esses dois perigos apontados na reflexão historiográfica de
Benjamin, o de uma causalidade banal e o de uma falsa epicidade infinita, são, igualmente,
o objeto de críticas contemporâneas ligadas à problemática da narração. Todavia, com a
afirmação acima eu chego a um paradoxo: digo que a mediação deve servir à criação de
narrativas, porém, assumo que incorremos em um erro que está, segundo a autora,
diretamente relacionado à morte da narrativa. O erro seria a criação de outra narrativa, em
oposição à oficial, como uma outra interpretação, certamente diferente da primeira, mas tão
coerente quanto ela, numa luta infindável entre duas versões divergentes – por exemplo, a
da mídia e a verdade, como ocorreu em momentos do Projeto. Apropriando-me novamente
das palavras de Gagnebin (2013, p. 107) acho que devemos “muito mais, provocar rupturas
nessa narrativa por demais convincente, designar seus furos, seus brancos, retomar o tropeço
e o ato falho para o sujeito se arriscar, no seu presente, a andar, a agir diferentemente”.
O que fizemos, em muitos momentos, foi dar uma segunda interpretação (ou uma
outra versão da história), ao invés de apontar para esses buracos e permitir que os estudantes-
espectadores se lançassem na tentativa de construção de outras narrativas. Ou seja,
colocamos uma Outra Narrativa, oposta à Primeira Narrativa, talvez minando a possibilidade
de ruptura.
Refletir sobre violência de Estado, preconceito e principalmente a respeito da posição
da mídia diante da sociedade é de suma importância, sobretudo em um momento em que o
Brasil está cada vez mais presenciando telejornais em que as posições conflitantes ficam
mais acentuadas. Pude perceber durante o Projeto, com estudantes entre 14 e 17 anos, e
também observo com mais frequência nos estudantes com faixa etária entre 11 e 12 anos
(com os quais exerço meu trabalho de docência), que há uma reprodução em massa dos
discursos proferidos pelos apresentadores desses programas. Discursos de ódio e
preconceito, imagens de cadáveres, vítimas expostas, demonstração de atos de justiça com
as próprias mãos cometidos pela sociedade, violência de forma generalizada são mostrados
ao vivo em jornais matutinos, vespertinos e noturnos. Os telejornais são, portanto,
determinantes formadores de opinião desses adolescentes e jovens.
Dessa forma, o Mediato serviu (de um modo geral) como um espaço para o
compartilhamento de opiniões contrárias aos discursos de ódio. A simples abertura para
pontos de vista distintos é necessária, pois tal prática é incomum ao ambiente escolar, além
disso, o corpo docente apresenta, muitas vezes, opiniões que se assemelham a tais discursos.
Contudo, as quatro horas e meia que estivemos em contato com esses estudantes não foram
135
(e não são) suficientes para um efetivo trabalho de diálogo sobre questões complexas como
as tratadas aqui. Do mesmo modo, a análise do Projeto trouxe à luz uma questão: será que
não provocamos o contrário ao tentar, em alguns momentos, conscientizar e mobilizar
politicamente os estudantes? O fato de a política estar no temático e não na estética nos levou
a um lugar de reafirmação das posições ao invés de ruptura?
Uma questão que permanece após o Projeto Mediato é se não caímos em um ativismo
tentando defender às causas servidas pelos atores, deixando que isso se tornasse o objetivo
maior da mediação. Por exemplo, quando uma turma não havia assistido ao espetáculo a
mediação se voltava exclusivamente para uma tentativa de descrição e explicação da obra,
pois não pretendíamos abrir mão do conteúdo. Pergunto-me ainda se de forma mais sutil e
perigosa essa confusão entre tema e estética não aconteceu de forma generalizada no
decorrer das ações. Ressalto que não questiono a validade dessas causas. Ao contrário, em
vários momentos menciono a importância de tratar as questões levantadas pelo espetáculo
em escolas públicas de periferia.
Nestes casos, quando muitos estudantes não haviam participado do segundo
encontro, o terceiro, que seria a mediação pós-espetáculo, acabava se transformando em uma
tentativa de explicar a manifestação artística que não foi vista, experienciada. Essa atitude,
reflexo de um completo despreparo nosso, desgastava a mediação; e reduzia a arte a uma
série de frases descritivas, apontando quase que exclusivamente para a sua temática
(violência de Estado, liberdade de expressão e influência da mídia). Para usar um termo de
Desgranges (2011) nosso “ângulo de ataque” voltou-se nessas ocasiões quase que
exclusivamente para o tema. Quando preferimos não abrir mão da conversa planejada sobre
determinado conteúdo nos distanciamos dos objetivos da mediação. Tal atitude naturalmente
se desvirtua do comprometimento desta com a experiência estética; e fragiliza a própria obra.
Com as referidas turmas (que não assistiram ao espetáculo) a dinâmica foi
basicamente passar as imagens e os vídeos utilizados na peça: um remix tirado do YouTube
com frases ditas por telejornais sobre os “vândalos” das manifestações de 2013 no Brasil; no
segundo, de forma antagônica, o jornalista Ricardo Boechat expõe sua opinião sobre o tema
vandalismo; as imagens eram da Ditadura Militar Brasileira e de cenas atuais, por exemplo,
a fotografia em que a dona de casa Claudia Silva aparece sendo arrastada por um carro da
Polícia Militar no Rio de Janeiro. Logo após era iniciado um bate-papo a partir do que foi
exposto. Penso, hoje, que o objetivo nestas ocasiões, não era a dilatação da experiência, mas
as informações que foram veiculadas na peça sobre vandalismo, violência e mídia. Vale
136
ressaltar, que mesmo em turmas que haviam assistido ao espetáculo preferiu-se, em alguns
casos, dar início à mediação repassando os referidos vídeos e imagens, o que reforça o
argumento acima exposto da preocupação em garantir o conteúdo.
À época eu não compreendia, ou não conseguia definir quais eram os objetivos da
mediação, consequentemente não havia uma unidade da equipe quanto à finalidade das
nossas ações. Já identificava um incômodo com a relação de causa e efeito que tomou conta
da mediação, mas ao invés de contornar esse lugar abracei a proposta e transformei o caderno
de mediação (e a própria mediação se consolidou assim em determinados momentos) em um
panfleto ideológico.
A cia de teatro Calcanhar de Aquiles (que produziu o espetáculo para o Projeto) se
auto denomina como um grupo de “teatro político”. Esse teatro político antes temido e
evitado quando da concepção do Mediato, foi por mim adotado como carro chefe do Projeto
durante sua execução. Definitivamente, o Projeto, inclusive o caderno de mediação,
direcionou as mediadoras para esse lugar informativo-opinioso em que a mediação se
encontrou em vários momentos, pois, independentemente do espetáculo, o material impresso
e nossas ações poderiam ter se instalado em um lugar diferente desse em que as colocamos.
Quando pretendo, para as ações mediadoras, que a política esteja na estética e não no
tema, faço uma apropriação do que Rancière (2010) fala ao defender uma política da arte.
Para o autor, a arte não produz a passagem de uma ignorância a um saber, ou de passividade
à atividade; ela rompe justamente com a relação de causa e efeito. O autor faz uma crítica à
“arte crítica” apontando para suas contradições. Diz que ela pode contribuir para uma
mudança de percepção e para criar novas formas de experiência do sensível, mas se equivoca
quando tenta produzir efeito ético, quando pretende “uma transmissão calculável entre
choque artístico sensível, tomada de consciência intelectual e mobilização política. Não se
passa da visão de um espetáculo à compreensão do mundo e da compreensão intelectual a
uma decisão de ação” (RANCIÈRE, 2012, p. 66).
Transponho, contudo, a crítica do autor à mediação com vistas a refletir sobre sua
finalidade. Quando a mediação pretende acessar novos estados de sensibilidade e novas
formas de organização do que pode ser visto, dito, pensado e feito, precisa observar
primeiramente que o caminho ficcional é o que mais se aproxima, pois esse é um trabalho
da ficção (cabe ponderar que o ficcional não se restringe aos jogos). Dificilmente
acessaríamos por meio da fala os estados de percepção que acessamos com as proposições
poéticas dos estudantes. Além disso, acredito que precisamos rever qual é o espaço e o limite
137
para se militar em determinadas causas. Pois, segundo Rancière (2012) há uma política da
arte (e creio que da mediação também), que precede as políticas dos artistas (e dos
mediadores).
Quando se entende que a política está no tema, na tentativa de uma tomada de
consciência de determinada realidade por parte dos estudantes, há consequentemente certo
distanciamento da noção de política aqui defendida, e colocada por Rancière (2012). A
relembrar, como atividade que reconfigura a experiência comum do sensível; que coloca em
causa a partilha do sensível que nos é dada. Portanto, o estético e o político são maneiras de
organizar o sensível; e não formas de mobilizar para um discurso ou uma ação. Provocando
uma analogia, diria que quando a mediação compreende o político no tema e não no estético,
se assemelha aos espetáculos que se pretendem pedagógicos. Penso que as produções que
tomam por tarefa o ensinar, desejando o efeito moral, se mostram muitas vezes simplistas, e
acabam se distanciando da eficácia pedagógica que reivindicam. É paradoxal desejar que a
arte funcione como uma tarefa pré-definida (a apreensão de um saber).
Nesse sentido as ações mediadoras constituem práticas que dialogam com a
perspectiva da aprendizagem inventiva de Virgínia Kastrup (2005). A mediação como
(dilatação da e para a) experiência estética compartilha com a autora a noção de
aprendizagem inventiva à medida que compreende a aprendizagem não como um processo
de solução de problemas nem como a aquisição de um conhecimento, mas como um processo
de produção de subjetividade e, eu acrescentaria, de compreensão da alteridade. A produção
poética dos estudantes manteve, em alguns momentos, um diálogo com a inventividade
proposta pela autora. Contudo, o problema não reside em uma conversa ou em um jogo, mas
no objetivo que encaminha tal ação.
Kastrup (2005) define duas formas políticas no campo da educação: a política da
recognição e a política da invenção. A primeira compreende um mundo preexistente que
oferece informações prontas para serem captadas e compreende também um sujeito
cognoscente, um “eu” centro do processo de conhecimento. A segunda exercita a
problematização, considera uma aprendizagem que tem potencialmente a invenção e a
novidade, entendendo o conhecimento como invenção de si e do mundo.
Além da aprendizagem, a autora fala da atenção necessária para que ela se efetive.
Kastrup (2004, p. 14) diz que a atenção desenvolvida em um acontecimento estético é
distinta daquela exigida para as tarefas. “A experiência com a arte em situação de
aprendizagem parece indicar um caminho para atualizações distintas do prestar atenção a
138
tarefas pré-definidas”. Uma é transversal e fluida, vagueia por diversos campos, enquanto a
outra deve se manter em um foco específico. A primeira é a atenção necessária à
aprendizagem inventiva. Esta trabalha com uma noção de cognição ampliada, e estaria
relacionada mais à invenção de problemas (problematizar), do que resolver problemas, o que
levaria a rupturas no fluxo cognitivo habitual.
A mediação, justamente por trabalhar com a arte e não por si própria (ou em defesa
de causas), é capaz de contribuir para uma aprendizagem da atenção, que segundo a autora
é necessária à cognição inventiva – o que a meu ver é explorado na produção de narrativa,
nas semelhanças e fricção entre real e ficcional. Pois a mediação pode desenvolver a atenção
transversal pela experiência estética, bem como uma aprendizagem que não seja
exclusivamente de uma habilidade, que não seja aquela de resolução de tarefa e de adaptação
ao mundo, mas de invenção de si e do mundo.
Usando as palavras de Medeiros (2005, p. 27-28) “agravar o problema interessa.
Quando a filosofia questiona, ronda, tateia, ela não busca soluções. Não há nada fixo, estável,
estático, seguro a atingir. O que de fato buscamos é não des-vendar, mas entre-ver, roçar,
para que, deixando-a velada, a arte possa continuar a intrigar.” A autora faz uma analogia da
arte com a filosofia quando descreve seus atributos, ou o que se pode buscar com elas.
Estendo igualmente à mediação, para que pensemos que a busca por tarefas pré-definidas
(algo seguro a se atingir, um efeito moral, por exemplo) dificilmente se aproximará do
estético, da experiência, dos sentidos e da dilatação.
Assim, se pensamos que uma aprendizagem inventiva é importante para a mediação,
e com ela dialoga, é igualmente importante que tenhamos por objetivo não o debate de um
tema, a apreensão de um conhecimento ou a mudança de discurso e atitude, mas a produção
de subjetividade, a compreensão da alteridade, a descoberta e a invenção de sentidos. Afinal,
se a arte não nos leva à resolução de tarefas pré-definidas, por que a mediação em arte o
faria?
Quando o par informação-opinião – tão criticado por Larrosa Bondía (2015) – não
funcionava da forma desejada, ou melhor, quando a obra e as informações lançadas não eram
suficientes para colocar o público na mesma linha de opinião pretendida, nos ocupávamos,
em muitos casos, em contra argumentar, na tentativa de garantir o efeito desejado. Um
estudante em São Sebastião chegou a dizer no pós-espetáculo, talvez cansado do debate:
“isso que vocês querem colocar na cabeça da gente”. Essa frase hoje ecoa na minha memória,
e creio, pode resumir a problemática aqui levantada, pois denuncia a imposição de uma fala
139
que se pretendia de alteridade. Dedicamos esforços à informação e à opinião em detrimento
do par experiência-sentido, colocado por Bondía (2015) como essencial ao processo
educativo.
Relembrando, o autor contrapõe o saber da experiência com o saber da informação.
Ele critica a “sociedade da informação” que muitas vezes é tida como sinônimo de
“sociedade do conhecimento” ou até mesmo “sociedade da aprendizagem”. Ao falar de
experiência Bondía pensa com Benjamin também a sua destruição; e diz que o excesso de
informação, bem como o excesso de opinião, tem impossibilitado que algo nos aconteça.
Ambas converteram-se em um imperativo: o sujeito moderno é um sujeito informado que
supostamente tem uma opinião própria e crítica sobre tudo que passa, diz Bondía. E o opinar
se resume, muitas vezes, a estar a favor ou contra (BONDÍA, 2015).
Observei ao longo da análise que nos momentos em que predominava o caráter
informativo-opinioso nos distanciávamos da possibilidade de dilatação, seja dos sentidos,
seja da experiência. Isso reforça a ideia exposta anteriormente de que para se provocar uma
dilatação é necessário criar um ambiente semelhante ao da experiência – pensando esta de
acordo com os princípios de receptividade, disponibilidade, abertura e exposição de Bondía
(2015) e da experiência do olhar de Didi-Huberman (2010).
Este foi o caso de uma turma em Ceilândia-DF que, além de se fixar exclusivamente
no par informação-opinião, manteve uma conversa carregada de violência. Os fragmentos a
seguir mostram uma estudante falando sobre um caso ocorrido em 2014, de um feirante
assassinado por um policial militar, e sua respectiva opinião acerca do fato:
Marcela (estudante): Vocês viram no vídeo? O feirante mesmo falou “bora me mata”. Ele falou,
então ele mereceu. Ele provocou.
Ester (mediadora): Ele mereceu por que ele falou?
Marcela (estudante): Ele provocou.
[...]
Bruno (estudante): Ele não morreu de graça. Ele não morreu de graça.
Marcela: Ele falava “atira”.
Raquel (supervisora): aí você vai lá e mata e tá ok?
Marcela (estudante): Se ele pediu...
Bruno (estudante): O cara tá desacreditando de mim eu não vou matar o cara? O cara tá
desacreditando meu irmão! [...] O cara tá falando “atira se tu é homem”, você acha que eu não vou
atirar? É logico que eu vou atirar, é logico!
[...]
Isadora (estudante): Não que eu concorde que o policial [tenha] matado. Mas se ele [o feirante]
tivesse dado o respeito ao policial talvez teria acontecido de uma outra forma. Porque tem gente hoje,
igual o [Bruno] estava falando, que tem que andar armado mesmo, mas se não anda tem gente que
não dá o respeito ao policial, a gente vê isso. E ele chegou e falou assim “me mata”, qual o respeito
que ele tá tendo com o policial?
[...]
140
Marcela (estudante): Tem coisas que as pessoas falam que realmente alteram as outras. Gente, acho
que ele ficou muito irritado, porque a briga já estava...
[Alvoroço. A mediadora tenta mediar]
Marcela (estudante): Eu tenho minha opinião pelo que eu vi do vídeo. Eu vi ele falando “me mata,
me mata, me mata”. E ele provocou a fúria do policial. Então, o policial ... [a estudante é
interrompida]
[Alvoroço]
Marcela (estudante): Gente eu tenho uma opinião formada sobre o vídeo. Eu vou ficar com ela até
o final! Ele provocou, ele mereceu. [A estudante fala quase gritando].
O que antecede o comentário de Marcela é uma discussão sobre a manutenção da
Polícia Militar e acerca da violência policial, motivada pela temática do espetáculo e pela
conversa com os artistas no dia anterior. Inicialmente a mediadora perguntou como a turma
via a articulação feita na peça sobre as questões de vandalismo nas manifestações e se havia
mudado algo na percepção de alguém. Um estudante (Bruno, já citado no subcapítulo “a
mediação como ruptura”) relembra que no dia da peça ele e a atriz se colocaram com
opiniões contrárias sobre a atuação da PM: ele defendendo a manutenção e ela a dissolução,
isto é, a desmilitarização.
Marcela fala várias vezes sobre o que viu no vídeo e defende a mesma opinião,
argumentando que o feirante mereceu morrer por ter provocado o policial. Neste
pensamento, há adesão de dois colegas, Isadora e Bruno, que se mantêm irredutíveis. Não
houve interesse de nenhum dos três em relativizar o discurso mesmo com a contra
argumentação da mediadora. Esta pontuou historicamente os assuntos que surgiram na
conversa, inserindo informações e dados. Por exemplo, falando sobre criminologia, reação
social, surgimento da Polícia Militar, número de pessoas mortas em favelas do Rio de
Janeiro, racismo, auto de resistência, etc. Mas nada disso fez com que Marcela mudasse de
opinião, ou compreendesse outro ponto de vista sobre aquele tema. Ao contrário, disse, já
sem paciência, que tem uma opinião formada e permanecerá com ela até o final. Isso me
leva à questão: até que ponto devemos ou podemos ir com o debate para que de fato haja
uma problematização do que está sendo posto?
Lembrei-me imediatamente do que Benjamin (1994, p. 207) diz de a nossa relação
com a morte estar diretamente relacionada ao decaimento da experiência e da narrativa: “o
rosto da morte deve ter assumido outro aspecto. Essa transformação é a mesma que reduziu
a comunicabilidade da experiência à medida que a arte de narrar se extinguia”. Gagnebin
(2013), ao ler o filósofo alemão, também diz que podemos arriscar a hipótese de que a
construção de um novo tipo de narratividade passa pelo estabelecimento de uma outra
relação (individual e social) com a morte e o morrer. Vale ressaltar que a ideia aqui não é
141
criar uma relação de causa e efeito entre a banalização da morte e o fim da narrativa e nisso
enquadrar a fala da estudante. Mas simplesmente apontar para certa semelhança entre o que
o filósofo escreve em 1936 e minha percepção quanto à incapacidade de experiência e de
narrativa de jovens estudantes. Afinal, que experiência Marcela, Bruno ou Isadora tem
quando vê a morte do feirante em um vídeo?
Mas não posso me furtar em também assumir a responsabilidade nessa incapacidade
dos estudantes. Se criticamos, em momentos do Projeto, uma incapacidade de ouvir e narrar
é porque não compreendemos que nos apegamos a uma forma que em nada mantem relação
com o ato de mediar, a saber: a forma informativa-opiniosa. Por isso a insistência em
aproximar a mediação do conceito de narrativa e consequentemente afastá-la do caráter
informativo. Pois a informação fecha enquanto a narrativa abre. Esta “não se entrega. Ela
conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver”
(BENJAMIN, 1994, p. 204). A informação não: ela se consome; é imediata. Logo não pode
ser o carro chefe da mediação.
Relembro também o que foi levantado no início do capítulo anterior, sobre a
necessidade de a mediação servir a uma lógica da emancipação e não à relação de causa e
efeito da lógica embrutecedora em que “o que o aluno deve aprender é aquilo que o mestre
o faz aprender. O que o espectador deve ver é aquilo que o diretor o faz ver” (RANCIÈRE,
2012, p. 18).
No processo de mediação não cabe ideologização. No momento em que isso
acontece, passa-se a instrumentaliza-la para determinado ponto de vista. O que se defende
aqui como recorte fundamental é uma mediação estética, que produza sentidos para os
indivíduos a partir da dilatação da experiência com a obra, conduzindo também a uma
ampliação do repertório estético. Este está certamente impregnado de repertório ético. Mas
a dilatação não implica na defesa de um lado, seja ele qual for. Penso que pelo estético chega-
se ao ético, e mais, o alargamento do repertório daquele leva à ampliação deste. E não é
demais retomar a fala de Rancière (2009a, n.p.) no início do capítulo quando diz que “é um
processo estético que cria o novo, ou seja, desloca os dados do problema.” Dessa forma, para
se provocar um deslocamento, uma ruptura, isto é, para que a mediação seja de fato
dissensual ela precisa assumir seu caráter estético. Isso nos leva novamente à experiência
estética. A mediação deve ser: uma dilatação dos sentidos para a experiência; e a dilatação
da experiência para a invenção de sentidos.
142
O tão almejado desenvolvimento da criticidade pode vir por meio de uma mediação
que se pretenda estética, pois como afirma Beatriz de Medeiros (2005) a educação estética
permite o desenvolvimento da capacidade crítica através da experimentação de uma relação
com o sensível. Embora a autora compreenda, a seguir, o estético exclusivamente dentro da
arte, podemos nos apropriar do caminho por ela apontado como saída para a mediação.
Aquilo que dá prazer, ou desprazer nos arranca do ambiente em que estamos,
projetando-nos em um mundo que se forma entre o sujeito e a obra. Quando há arte,
esse mundo é sempre novo, pois é uma possibilidade do mundo, uma visão ímpar,
uma conjunção, até aquele momento, inimaginável. A aisthesis funda o imaginário.
É ela que abre o ser humano para a subjetividade e para a intersubjetividade.
Aisthesis e desejo de compartilhar. (MEDEIROS, 2005, p. 57-58).
Voltando ao episódio exposto acima, o encontro pós-espetáculo consistiu em um
debate informativo-opinioso com claras posições contrárias. A questão que fica é: a
discussão proporcionou a reflexão sobre os temas ou reforçou posições? Além disso, a
exposição dos estudantes a imagens de (e ao tema) violência contribuiu para uma ruptura?
E ainda, não seria a experiência estética um meio eficaz para deslocar os dados do problema
pela via da sensibilização?
Não posso fixar respostas, pois talvez Marcela ou Bruno tenha mudado de opinião
ou se sensibilizado de alguma forma após aquele dia, gerando dissenso para um participante,
ou mesmo para a turma. Contudo, pautada no registro audiovisual do Projeto, penso que não
houve problematização, mas reforço das opiniões, o que me faz pensar que o caminho da
experiência estética e dos sentidos é mais eficaz que o da informação para se alcançar alguma
ruptura. E, por isso, as possibilidades de dilatação serviriam melhor a tal objetivo. Como diz
Medeiros (2005, p. 109) “trata-se de permitir a formação de sensibilidade e de capacidade
crítica através da experimentação de uma relação com o sensível”.
Talvez o objetivo ético e o foco conteudista tenham nos colocado, em certos
momentos, em um lugar difícil, com discursos extremistas, como o exposto acima com a
fala de Marcela. Igualmente, outra questão que fica dessa observação é se a forma do Projeto,
além de seu conteúdo, também levou as turmas ao tema “violência”. Expomos os estudantes
a imagens de violência no espetáculo, na mediação e no caderno educativo. Não se trata
agora de uma análise moralista. É apenas uma constatação. Pergunto-me, a partir disso, se
não beiramos a banalização pretendendo a sensibilização. Será que o “choque de realidade”
é possível? A conscientização desejada pelos artistas foi atingida? Os noticiários nos
bombardeiam diariamente com essas imagens intoleráveis, mas elas verdadeiramente nos
sensibilizam, nos mobilizam?
143
Sobre essa questão, busco apoio ainda na referência que Rancière (2012, p. 95) traz
em seu livro O Espectador Emancipado de um o artista chileno chamado Alfredo Jaar cujo
trabalho foi baseado no genocídio de Ruanda em 1994. Uma instalação intitulada Real
Pictures composta por caixas pretas; cada uma delas continha uma imagem de um tutsi
assassinado, mas a caixa era lacrada e a imagem não era dada ao visível. Só se podia ver o
texto que de alguma forma descrevia o conteúdo da caixa. “Essas caixas fechadas mas
cobertas de palavras, dão um nome e uma história pessoal àqueles cujo massacre foi tolerado
não por excesso ou falta de imagens, mas porque atingia seres sem nome, sem história
individual”. Rancière diz ainda que as palavras tomam o lugar das fotografias porque estas
continuariam sendo fotografias de vítimas anônimas de violência em massa. Creio que não
se tratavam de palavras intoleráveis, mas havia algo de intolerável nas palavras, que era
justamente saber por meio delas que tipo de imagem residia ali. Bastou insinuar para fazer
aparecer aos olhos do espectador aquilo que por ser invisível irradia-se.
A omissão da imagem não provoca sua inexistência, ao contrário, lhe atribui força,
faz com que ela verdadeiramente exista. Penso que essa seria uma narrativa segundo
Benjamin (1994), pois não abrevia, não fecha, ela abre e conserva suas forças porque não se
entrega ou se consome. A partir da obra de Alfredo Jaar poderíamos também compreender
porque a enxurrada de livros sobre a 2ª Guerra Mundial em nada mantinha relação com
experiência ou com narrativa, pois eram apenas informações (BENJAMIN, 1994). Não é
demasiado relembrar que para o filósofo alemão a narrativa é “uma lenta superposição de
camadas finas e translúcidas” – que vai na contramão da imadiatez informativa –
conservando suas forças para ser capaz de se desenvolver muito tempo depois (BENJAMIN,
1994, p. 206).
Não houve, no exemplo acima e em outros momentos de mediação, criação narrativa,
produção de semelhança, nem aproximação do real por meio do espaço ficcional. Ou seja,
não houve nenhuma das três instâncias que hoje considero com potencial de dilatação –
essencial ao nosso trabalho. Dessa forma, diria também que o caráter estético da mediação
ficou comprometido e as ações não funcionaram como atividade dissensual, pois não
perturbaram a esfera sensível modificando o que pode ser visto, dito ou percebido. Como
dito anteriormente, dissenso não é o conflito de ideias ou sentimentos (RANCIÈRE, 2012).
É fato que o espaço aberto ao compartilhamento de concepções distintas sobre um tema,
incomum ao espaço escolar, pode abrir espaço para o dissenso. Porém, não consegue por si
só garantir que a atividade seja de fato dissensual.
144
Sobre minha descrença na utilização da arte estritamente com vias de mobilização
política, e a auto crítica quanto ao uso dos vídeos do espetáculo de maneira informativa na
mediação, encontro amparo também em Rancière (2012, p. 100) quando diz que:
O ceticismo atual é resultado de um excesso de fé. Nasceu da crença desenganada
numa linha reta entre percepção, emoção, compreensão e ação. [...] As imagens da
arte não fornecem armas de combate. Contribuem para desenhar configurações
novas do visível, do dizível e do pensável e, por isso mesmo, uma paisagem nova
do possível. Mas o fazem com a condição de não antecipar seu sentido e seu efeito.
Ao colocar os estudantes em contato com imagens ou conteúdo de violência, traímos,
talvez, a eficácia que reivindicávamos de sensibilização. E como já foi dito anteriormente,
não fizemos, em muitos casos, o retorno à obra, o retorno ao teatro. Isto é, entramos no pós-
espetáculo com uma tarefa informativa-mobilizadora pré-definida, usando a peça como
pretexto de um engajamento. Com isso nos distanciamos das noções aqui desenvolvidas de
estética, experiência, sentido e dilatação.
A seguir elenco um trecho da conversa logo após a apresentação do espetáculo em
Ceilândia-DF na qual podemos verificar o conflito de ideias entre artistas e estudantes. Dois
jovens explicitam seus pontos de vista acerca do conteúdo tratado, e mais especificamente
sobre informações/opiniões colocadas pela atriz:
Bruno (estudante): Entendi seu pensamento, que a mídia tenta passar pra população de uma
maneira distorcida, vamos dizer assim, eles querem focar em uma parte, naquilo que eles acreditam
[...]. Mas se coloca no lugar de uma pessoa que fez um investimento pesado em uma loja na Avenida
Paulista, tudo na vida dela está naquela loja, aí as pessoas vão lá e quebram?
[...]
Carlos (estudante): [...] você é um empresário riquíssimo, tem várias lojas na Avenida Paulista, aí
você saqueia minha loja, eu também devo o banco, também faço parte do sistema capitalista, devo ao
banco mais que você, e você vai lá e saqueia minha loja, dá um prejuízo lascado. Você está querendo
manifestar, mas dessa maneira não. A questão, eu acho, [é que] no caso da mídia, ela ofusca [...], é
mais interessante para a mídia mostrar aquela pessoa que está roubando do que a que está
apanhando da polícia, acho que é isso.
Eles explicitam suas interpretações sobre a peça, bem como opiniões sobre o tema
tratado. É importante ressaltar que havia mais de cem estudantes no auditório naquele
momento, deste modo, Bruno e Carlos, ao exporem seus pontos de vista, também se
expuseram para os colegas estudantes, para os professores ali presentes e para os artistas.
Estes não acolheram a opinião divergente da pretendida no espetáculo da mesma forma que
a mediação o poderia ter feito. O encontro se converteu em um debate no qual estudantes e
artistas contra argumentavam e defendiam seus pontos de vista, gerando posições
antagônicas unicamente. Não que isso não seja importante, mas naquele momento era mais
interessante que se fosse tratado como uma mediação e não como um conflito de opiniões.
145
Isso me leva a repensar a necessidade de uma mediação também no momento de conversa
entre artistas e estudantes – o que é discutido por Glauber de Abreu (2015) em sua
dissertação de mestrado.
Uma opinião contrária à do artista ao invés de ser vista como algo a ser combatido
poderia ser encarado como um aspecto de densidade dado ao debate estético. Se a mediação
defende que a obra acontece no encontro com os espectadores e que a experiência e a
interpretação destes a constitui, seria um contrassenso ignorar e/ou combater as opiniões que
são divergentes. Considero que dentro de um processo pedagógico de mediação a conversa
com os artistas após a apresentação é de extrema relevância e enriquecedora. Deve-se,
contudo, estar atento aos riscos, pois os estudantes podem se prender à busca pela
intencionalidade dos autores, bem como os autores podem intencionar a imposição de uma
interpretação.
Certa vez, conversando com uma amiga acerca dos processos de mediação, ela narrou
um episódio sobre recepção teatral que a desestimulou bastante. Após a apresentação de um
espetáculo de dança contemporânea, ela incentivou os/as adolescentes, que foram a convite
dela ao teatro, a conversar com uma das dançarinas. Esta perguntou a um deles o que tinha
achado do espetáculo e o que havia compreendido; o adolescente não quis responder, mas
depois de alguma insistência deu sua interpretação. Em seguida a dançarina disse que na
verdade ela queria mostrar outra coisa, e deu, então, a sua versão do espetáculo, na melhor
das intenções, como a interpretação correta. O adolescente virou-se para minha amiga e disse
que desde o início não queria ter ido ao teatro e que já havia falado que não entendia nada
daquilo. Vale dizer ainda que as pessoas por ela convidadas eram adolescentes em situação
de rua, que têm um histórico de baixa autoestima e dificilmente acessam os lugares
institucionalizados da arte. O que esse caso demonstra, de forma extrema, é um possível
risco da conversa entre artistas e público sem a intervenção da mediação.
De acordo com Biange Cabral (2009, p. 45) “Assim como o autor seleciona partes
da realidade para incorporar no texto, o leitor seleciona partes do texto para priorizar na sua
interpretação”. A presença de uma mediadora na conversa seria importante para relativizar
os discursos, abrindo espaço para diversos pontos de vista, esclarecendo que o espectador,
assim como o leitor de Cabral, elege partes da peça e da temática para priorizar em sua
interpretação. Todavia, conforme demonstrado neste último subcapítulo, a própria mediação
não deixou espaço para que a obra fosse problematizada pelos estudantes, sobretudo no que
diz respeito à temática.
146
Barthes (2015, p. 28-29) diferencia um texto de prazer de um texto de fruição dizendo
que o primeiro é dizível enquanto o segundo não o é. “A fruição é in-dizível, inter-dita.
Remeto a Lacan: ‘O que é preciso considerar é que a fruição está interdita a quem fala, como
tal, ou ainda que ela só pode ser dita entre as linhas [...]’”. Trata-se, na fruição, de fazer um
texto, ou melhor, uma narrativa, insustentável, impossível. O texto de fruição só pode ser
atingido (acessado) por outro texto de fruição: que não pode falar sobre ele, mas “em” ele, à
sua maneira, “só se pode entrar num plágio desvairado” (BARTHES, 2015, p. 29).
O autor diz que os textos de fruição são perversos por estarem fora de qualquer
finalidade que possa ser imaginada; que é absolutamente intransitivo; deslocado, vazio
(como eterna possibilidade de ser ocupado), móvel, imprevisível. Ou seja, não há finalidade,
não há relação de causa e efeito; o texto de fruição, ou seja, a obra não quer ensinar, não
quer a resolução de um problema.
Talvez acreditamos em alguns momentos do Mediato que tudo poderia (ou pior,
deveria) ser dito; muitas vezes ao abraçarmos a causa dos artistas buscamos apagar as
entrelinhas, para que não restasse dúvidas quanto ao tema, quanto à “mensagem” do
espetáculo. Ao invés de provocar a feitura de um (ou outro) texto de fruição, nos
empenhamos na solidificação de conteúdos. Mas pensando com Medeiros (2005, p. 82) “a
imagem artística não é mensagem. Ela fala ‘sem conceito’: linguagem da ordem do grito”.
Ou, como diz Maurice Meleau-Ponty (2013, p. 115) a arte “não se consome para fazer
aparecer as próprias coisas”. O poder está no que se diz, mas também no que não se diz, no
que se vê, mas também no que não se vê. Se quase tudo me é entregue, que prazer tenho de
invenção? A obra precisa continuar pulsando. Se a arte, de forma geral, aponta para o que
há de inefável no mundo, a mediação deveria manter esse indizível, sobretudo como força
mobilizadora de suas ações. As coisas omitidas também dizem.
Meleau-Ponty (2013, p. 113) afirma:
O que não é substituível na obra de arte, o que a torna muito mais do que um meio
de prazer [...] é ela conter, mais do que ideias, matrizes de ideias, é nos fornecer
emblemas cujo sentido nunca terminamos de desenvolver, é, justamente porque se
instala e nos instala num mundo cuja chave não temos, ensina-nos a ver e
finalmente fazer-nos pensar como nenhuma obra analítica consegue fazê-lo,
porque a análise encontra no objeto apenas o que nele pusemos.
Será que nos permitimos (eu, mediadoras, supervisoras e artistas) instalar nesse
mundo permeado por sentidos, sempre em desenvolvimento? Apegamo-nos erroneamente
ao analítico encontrando no objeto (arte) apenas o que nele pusemos? A arte, diz o filósofo,
é capaz de nos fazer pensar como nenhuma obra analítica conseguiria fazer. Vários autores
147
falam dessa propriedade das obras artísticas, e bastaria lembrarmo-nos de nossas
experiências estéticas para confirmar isso. Contudo, o que verifico no Projeto (não em todos
os momentos, mas em todas as etapas) é uma contradição: o apego ao conteúdo. A mediação
se transformou, em muitos momentos, em um trabalho analítico, o que possivelmente nos
distanciou da abertura de sentidos, dos princípios aqui desenvolvidos para a mediação, quiçá
da própria experiência estética.
Por fim, Rancière (2010) afirma que a arte não produz a passagem de uma ignorância
a um saber; Kastrup postula uma aprendizagem inventiva – sobretudo a partir dos estudos
da produção da subjetividade de Deleuze e Guattari – com Barthes (2015) vimos que no
texto de fruição não há finalidade. Se nessa perspectiva falamos de uma arte e de uma
educação da contemporaneidade que se distanciam da relação de causa e efeito e da
resolução de problemas, igualmente a mediação como proposta de arte-educação segue os
mesmo princípios. Por isso, é um exercício constante para a mediação encontrar formas de
trabalhar com o espectador que não caiam na recognição, nem no informativo-opinioso, mas
que sejam inventivas. Que explorem esse estado de produção da subjetividade e
compreensão da alteridade, e não que desejem um efeito pré-definido. E isso, a meu ver, é
potencialmente explorado com as possibilidades de dilatação.
148
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise do registro audiovisual do Projeto Mediato, bem como das
entrevistas realizadas posteriormente com estudantes e professores apresentei possibilidades
para o que chamei aqui de dilatação da experiência estética, a saber: a produção de narrativa
sendo a principal, a produção de semelhança e a aproximação entre as esferas do real e do
ficcional. Expus também momentos de dissenso dentro das ações mediadoras buscando
refletir acerca da relação entre política e estética e principalmente sobre quais os limites para
o engajamento ideológico. Paralelamente busquei desenvolver uma noção de mediação que
refletisse não apenas o Mediato, mas principalmente minha trajetória como mediadora,
supervisora e coordenadora em galerias de arte, e para isso fiz uso de filósofos, pedagogos,
romancista e variadas obras de arte que cruzaram o meu caminho ao longo dessa vivência.
Para justificar meu lugar de fala e situar o Mediato como possibilidade apontei inicialmente
para outras ações a partir de distintos pesquisadores. Este exercício, vale notar, me levou a
revisitar o Projeto e repensar sua estrutura e finalidade.
Sobre o Mediato ratifico que houve momentos em que a dilatação se efetivou,
conforme exemplificado ao longo desta pesquisa. Todavia houve ocasiões em que não se
deu a dilatação, nem mesmo a possibilidade de uma experiência. Isso aconteceu, a meu ver,
quando colocamos o foco no par informação-opinião inimiga da experiência segundo Bondía
(2015). Para Benjamin (1994) além da experiência o excesso de informação compromete
também a narrativa, principal forma de dilatação de acordo com este trabalho. Dessa forma,
se minha trajetória em mediação já havia apontado para o equívoco informativo e
explicativo, o Mediato me trouxe a certeza da dificuldade, e com ela a importância, de
contornar esse lugar.
A defesa de uma mediação que seja estética antecede qualquer posicionamento
ideológico da minha parte. Por isso não estou questionando a validade das causas dos
estudantes, da mediação ou do próprio espetáculo, mas chamando a atenção para qual seria
o objetivo das ações mediadoras (ao menos das defendidas aqui). A mediação não pretende
a mudança de um discurso ético. Isso não quer dizer que a mudança não possa acontecer. O
problema se instaura quando essa se torna a finalidade. O objetivo do nosso trabalho
necessita ser estético (que traz o ético imbrincado), ao passo que um objetivo ético
encaminharia para o conflito de opiniões e posições antagônicas. A arte, bem como a
experiência estética, não reside na segurança dos conceitos, das definições, dos conteúdos.
149
A mediação também não. Ela reside no entre, na abertura de sentidos, no vão entre as
palavras, entre as imagens, entre eu e o outro, como já dito com Didi-Huberman (2010) entre
o que vemos e o que nos olha.
Sobre a pesquisa é necessário dizer que não houve um caminho cronológico com
levantamento de questionamentos e desenvolvimento de respostas. O início do trabalho se
deu com a execução (e o registro audiovisual) do Projeto, momento em que as perguntas
norteadoras da dissertação não estavam bem delineadas. Por isso, foram as dificuldades
encontradas na prática que suscitaram os questionamentos para esta escrita. Iniciei a
caminhada com uma inquietação gerada pelas contradições advindas do Projeto e à medida
que fui me aproximando do objeto de pesquisa e tornando-o mais claro percebi que a minha
compreensão do que seja a mediação não foi a mesma que realizei no Mediato. Logo, é
preciso admitir que o Mediato não corresponde totalmente a minha ideia de mediação apesar
de ter dele tirado momentos que exemplificam a dilatação da experiência estética.
Igualmente, foram os pontos de incongruências do Projeto, que, não atingindo objetivos
harmônicos, se constituíram como pontos de reflexão que me permitiram aprofundar a
pesquisa.
Não buscava, inicialmente, tecer um conceito de mediação, mas analisar o Mediato.
Contudo, só pude compreender as inconsistências do Projeto à medida que desenvolvi,
baseada na minha trajetória e com o auxílio dos teóricos aqui elencados, um entendimento
de mediação; delineando seus princípios e objetivos, e finalmente verificando que ela (a
mediação) está próxima à experiência estética, distanciando-se das categorias que
impossibilitam a experiência: informação, opinião, explicação, resolução de tarefa, objetivo
ético, dentre outros. Dessa forma, uma dificuldade encontrada na pesquisa foi compreender
que não era necessário vincular o conceito de mediação ao Projeto, mas que a memória de
minha trajetória poderia se estabelecer como campo seguro para desfiar os princípios dessa
prática.
Da mesma forma, pude compreender qual era o meu lugar de narrativa nesta
dissertação na medida em que busquei outros projetos de mediação em teatro a partir de
distintos pesquisadores. Pela via comparativa, pude identificar cada espaço de fala como
particular, reafirmando o recorte deste trabalho e expandindo o olhar para outras formas de
falar sobre e praticar a mediação.
Embora seja de meu interesse tratar da mediação com obras que pertencem ao regime
estético da arte (RANCIÈRE, 2009b) – obras que não seguem regras específicas, que muitas
150
vezes apresentam narrativa não linear, caracterizadas pela desconstrução, com cenas que
funcionam isoladamente, mas que podem dialogar (ou não); nas quais a abstração é
predominante – a atual pesquisa não se debruçou sobre esta especificidade em função do
recorte dado pelo objeto de pesquisa. Em outras palavras, o espetáculo que fez parte do
objeto direcionou as margens da dissertação para um lugar que não era o da preparação para
o estranhamento. E optei pelo recorte aqui apresentado apesar da minha trajetória reafirmar
este mesmo estranhamento como campo fértil para a mediação.
Com o capítulo 1 concluí que as margens do que possa ser mediação são mais
flexíveis do que eu pensava no início da pesquisa. E que o formato antes e depois do
espetáculo é algo comum na mediação em Artes Cênicas, tendo gerado profícuos resultados
em diversos Estados do Brasil. Igualmente pude observar que das pesquisas levantadas esta
é a única que apresenta certa fricção entre a escrita e a prática, ou seja, entre o conceito de
mediação e o que foi realizado nas ações mediadoras. Além disso, a pesquisa me possibilitou
repensar todas as etapas do Mediato, desde a seleção da equipe até as mediações
propriamente ditas.
No capítulo 2 pude concluir que a mediação consiste em criar um espaço de dilatação.
Dilatação dos sentidos para a experiência (esta sendo compreendida estritamente no âmbito
da possibilidade) e dilatação da experiência para a invenção de sentidos (sentir e dar sentido),
de forma cíclica. Avalio ainda que as três possibilidades de dilatação elencadas neste
trabalho não visam ser metodologia para a mediação, mas caminhos, cujo desenrolar pode
ser criado e reinventado a cada espetáculo, a cada novo grupo de espectadores.
Já era sabido antes de iniciar esta pesquisa que mediação não é explicação, nem
facilitação de interpretações, ou pior, de conteúdos, nem pretexto para discurso ético. Essa
certeza veio com a prática em galerias de arte. Contudo, conforme dito, o que esta pesquisa
revelou foi a dificuldade, e com ela a importância, de contornar na prática (cênica) este lugar
reducionista. E a saída encontrada foi pelo caminho estético: com a proposição de uma
mediação estética; compreendendo com Jacques Rancière (2012) que política e estética
pertencem ao mesmo regime, sendo elas formas de organizar e/ou modificar o sensível; o
que é dizível, visível, pensável.
Esta pesquisa, unida a minha trajetória, também me levou a refletir sobre a mediação
enquanto campo de trabalho que necessita de profissionalização. A existência de uma
especialização, por exemplo, poderia contribuir para o surgimentos de novas pesquisas e
151
principalmente para a formação de profissionais, o que possivelmente levaria ao
reconhecimento, à solidificação e à ampliação desse campo de trabalho.
Certa vez, quando contratada para realizar o Programa Educativo de uma mostra de
Artes Visuais em Brasília, a contratante questionou se eu não poderia apenas “arrumar” uns
jovens bonitos para colocar dentro da exposição e baixar o valor cobrado. Este é um exemplo
extremo de desconhecimento e desvalorização do mediador como profissional. O formato
freelance é o mais comum no Distrito Federal, se caracterizando por certa fragilidade nas
relações trabalhistas e sobretudo no que diz respeito à continuidade. Ou seja, o caráter
esporádico dos projetos (além da já citada falta de especialização) prejudica a formação dos
mediadores a longo prazo e contribui também para um baixo comprometimento dos mesmos.
Penso que a união de profissionais e pesquisadores da área em uma rede seja
igualmente importante para adquirir visibilidade e conquistar mais espaço na luta em
benefício de uma base sólida e de coordenação de esforços, bem como por melhores
condições de trabalho. Assim como existe a Rede de Educadores de Museus (REM) e a Rede
de Educadores em Museus e Instituições Culturais do Distrito Federal (REMIC-DF), poderia
existir a Rede de Mediadores das Artes Cênicas (ReMAC). Uma rede pode auxiliar inclusive
na construção de uma ponte entre escolas e grupos de teatro, ou mesmo instituições culturais.
Pode também contribuir para o necessário intercâmbio entre pesquisas e projetos realizados
nos Estados brasileiros.
Por fim, ainda sobre o Mediato, a pesquisa me encaminhou para uma reflexão sobre
o lugar que os jogos cênicos, bem como os momentos de conversa devem ocupar dentro da
mediação. Pois, durante o Projeto alguns encontros pré-espetáculo se fecharam na apreensão
de códigos de linguagem com a aplicação de jogos teatrais; e o pós em uma espécie de
palestra sobre a temática do espetáculo, conforme dito, o que contribuiu para o não retorno
à obra. Da mesma forma, a pesquisa provocou a revisão do treinamento de mediadores e do
trabalho feito com os professores. Reivindicando para estas etapas um processo que se
assemelhe a própria mediação, unindo a forma ao conteúdo, em um processo que é
pedagógico e estético.
Deste modo, o desafio agora será empreender, na segunda edição do Mediato (2016),
um projeto que reflita os questionamentos aqui apontados, ou seja, que proponha uma
mediação estética, de dilatação dos sentidos e de dilatação da experiência, reivindicando o
inquietante lugar do entre, entre o que vemos e o que nos olha. Infelizmente a pesquisa não
terá fôlego para analisar a próxima edição, mas fica a perspectiva do desenvolvimento e da
152
avaliação, independentemente desta escrita. Afinal este trabalho suscitou novos
questionamentos abrindo um campo para pesquisas futuras, sobretudo a partir de uma
segunda versão do Mediato.
153
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159
APÊNDICE A – CRONOGRAMA DE ATIVIDADES DO PROJETO MEDIATO
ATIVIDADE
GERAL DESCRIÇÃO LOCAL INÍCIO TÉRMINO DURAÇÃO
Coordenação
Pedagógica
Cabe à coordenação: conceber o Programa
Educativo; coordenar e acompanhar a execução
dos serviços de mediação e supervisão durante a
execução do projeto; realizar evento para
professores; realizar treinamento com a equipe
educativa; e produzir relatório final para prestação
de contas.
Responsável: coordenadora (Arlene von-Sohsten)
Ceilândia, São
Sebastião,
Brazlândia e
Gama
Julho semana 1 Outubro semana 3 16 semanas
Elaboração
das apostilas
Pesquisa/levantamento de bibliografia e
montagem de apostila para treinamento dos
mediadores. Material de estudo histórico e
pedagógico. Busca abranger as abordagens
possíveis do espetáculo, sob diferentes
perspectivas, articulando informações de caráter
formal, sócio histórico, estético e semiológico.
Responsável: coordenadora (Arlene)
Gama Julho semana 1 Julho semana 3
3 semanas
Concepção do
caderno de
mediação
Concepção e elaboração do caderno de mediação
(material didático para estudantes e professores):
revistinha com aproximadamente 16 páginas.
Responsável: coordenadora (Arlene)
Gama Julho semana 1 Julho semana 3
Contratação
do espetáculo
Acompanhamento dos ensaios do espetáculo Da
Janela para elaboração do caderno de mediação e
do treinamento.
Responsável: coordenadora (Arlene)
julho semana 1 Agosto semana 3 7 semanas
Programação
Visual
Arte gráfica do caderno de mediação e da camisa
(uniforme).
Responsável: terceirizado
Julho semana 4 Julho semana 4 1 semana
160
Contratação
de equipe
Contratação de:
- 1 produtor executivo;
- 2 supervisoras. (Cabe às supervisoras firmar
termo de compromisso com as escolas; organizar
cronograma das atividades mediadas adaptado à
disponibilidade das escolas e organizar e executar
evento para professores juntamente à coordenação
pedagógica; fazer registro fotográfico das turmas
atendidas; enviar semanalmente registro com o
quantitativo de público; acompanhar diretamente
o trabalho de mediação, dando feedback às
mediadoras);
- 6 mediadoras. (Cabe à equipe de mediação
participar do treinamento; realizar atividade
mediada nas escolas antes e após as apresentações
do espetáculo, bem como acompanhar as
apresentações).
Responsável: coordenadora (Arlene)
Gama Agosto semana 1 Setembro semana 4 contrato de
2 meses
Blog Concepção de blog do programa educativo.
Responsável: terceirizado Agosto semana 1 Agosto semana 1
Banner Confecção de banner para divulgação nas escolas.
Responsável: terceirizado Agosto semana 1 Agosto semana 1
Apresentação
do projeto nas
escolas
Seleção das escolas; primeira visita para
apresentação do projeto; parceria com o professor
de artes; organização da agenda para realização
das atividades; e divulgação do projeto dentro da
escola.
Responsáveis: supervisoras e coordenadora
Ceilândia, São
Sebastião,
Brazlândia e
Gama
Agosto semana 1 Agosto semana 2
2 semanas
Treinamento Realização de treinamento/formação para
mediadoras e supervisoras. Asa Norte Agosto semana 1 Agosto semana 2
161
Responsáveis: Coordenadora do Projeto e
Diretora do espetáculo
Encontro com
professores
Realização de evento para professores nas escolas
selecionadas. Um encontro por escola em horário
contrário às atividades mediadas com os alunos,
preferencialmente em horário de coordenação
geral, momento em que professores de várias
áreas de conhecimento estão reunidos.
Responsáveis: supervisoras e coordenadora
Ceilândia, São
Sebastião,
Brazlândia e
Gama
Agosto semana 3 Setembro semana 1 3 semanas
Espetáculo
9 apresentações do espetáculo dentro das escolas.
*No Teatro SESC Paulo Gracindo
excepcionalmente no Gama.
Responsável: Cia Calcanhar de Aquiles
Ceilândia, São
Sebastião,
Brazlândia e
Gama
Agosto semana 3 Setembro semana 2 5 semanas
Atividades
mediadas com
alunos
Realização das atividades mediadas: pré e pós-
espetáculo, com o apoio das supervisoras.
Responsáveis: mediadoras
Ceilândia, São
Sebastião,
Brazlândia e
Gama
Agosto semana 3 Setembro semana 4 5 semanas
Oficinas no
contra turno
escolar
Realização de oficinas de 12h com grupos de 30
estudantes. Via inscrição.
Responsáveis: mediadoras
Ceilândia, São
Sebastião e
Gama
Agosto semana 3 Setembro semana 4 5 semanas
Relatórios e
finalização
Elaboração de relatórios de mediação e de
supervisão.
Realização de reunião final.
Asa Sul Outubro semana 1 Outubro semana 1 1 dia
Confecção de relatório quantitativo e qualitativo
para prestação de contas.
Responsável: produtora e coordenadora
Outubro Semana 2 Outubro Semana 3 2 semanas
162
APÊNDICE B – FOTOS (OFICINA DE CARTAZES E OUTROS MOMENTOS DA
MEDIAÇÃO)
163
164
165
166
167
168
169
170
APÊNDICE C – MODELO DE RELATÓRIO FINAL SOLICITADO À EQUIPE
RELATÓRIO FINAL (Mediação)
Discorra sobre sua vivência a partir dos questionamentos a seguir e fique à vontade
para tecer, ao final, outras reflexões que não são contempladas pelas perguntas. Faça como
preferir: em forma de texto ou respondendo às questões.
1. Pensando nos princípios da mediação, e o que conversamos durante o treinamento,
quais seriam os pontos positivos desta experiência de mediação em teatro para
escolas públicas do DF?
2. Quais foram os melhores momentos da sua experiência dentro da mediação? (Análise
sua enquanto profissional – pessoal)
3. Quais foram as dificuldades encontradas durante as mediações? (Considere na sua
análise: a profissional/mediadora, as turmas mediadas, a escola, o projeto)
4. Analise a recepção do projeto, por parte dos estudantes, em cada escola:
a. Gama;1
b. São Sebastião;
c. Brazlândia;
d. Ceilândia.
5. O que você acha que poderia melhorar/mudar?
a. Na seleção de equipe;
b. No treinamento;
c. No material educativo;
d. Na escolha das escolas;
e. No formato da mediação de três encontros;
f. Na função de supervisão;
g. Na função de coordenação;
h. Outros.
Nome:
1 Os nomes das escolas, bem como das mediadoras, foram retirados do modelo de relatório para preservar a
identidade das mesmas.
171
RELATÓRIO FINAL (Supervisão)
Discorra sobre sua vivência (observação) a partir dos questionamentos a seguir e
fique à vontade para tecer, ao final, outras reflexões que não são contempladas pelas
perguntas. Faça como preferir: em forma de texto ou respondendo às questões.
1. Pensando nos princípios da mediação, e o que conversamos durante o treinamento,
quais seriam os pontos positivos desta experiência de mediação em teatro para
escolas públicas do DF?
2. Quais foram as dificuldades encontradas durante o projeto?
3. Analise a recepção da mediação e do espetáculo, por parte dos estudantes, em cada
escola:
a. Gama;
b. São Sebastião;
c. Brazlândia;
d. Ceilândia.
4. O que você acha que poderia melhorar/mudar? (Se houver comentário)
a. Na seleção de equipe;
b. No treinamento;
c. No material educativo;
d. Na escolha das escolas;
e. No formato da mediação de três encontros;
f. Na função de supervisão;
g. Na função de coordenação;
h. Na função de mediação;
i. Outros.
5. Faça uma breve análise de cada mediadora. (Pode elencar pontos fortes e fracos)
a. Mediadora 1
b. Mediadora 2
c. Mediadora 3
d. Mediadora 4
Nome:
MEDIATOFormação
de
Espectadoresapresenta o ESPETÁCULO
D A J A N E L A
Programa Educativo
NÃO PENSE RÁPIDO!
Vamos pensar no nome do espetáculo. . . Quando eu fa lo a palavra “ janela”, que ima-gem vem à sua cabeça? Qual fo i a pr imeir a coisa que você v isual izou: o objeto ou o que há para a lém dele, ou seja, a paisagem? E em sua casa. . . o que você geralmente obser va
atr avés da janela? Como são as janelas da escola? Você prefere uma janela com ou sem grades? Aber ta ou fechada? Se você pudesse deslocar a janela do seu quar to para ou-tr a paisagem, qual lugar você escolher ia para obser var to-das as manhãs ao acordar?
Se você pudesse ajudar na criação do espetáculo,
quais elementos você acrescentaria
ou tiraria?
Você percebeu, através das falas dos atores, que a peça foi adaptada para o nosso contexto atual?
Em quais momentos do espetáculo podemos perceber essa atualização? Interessante observar como alguns assuntos, que a princípio pertencem ao passado, podem ser tão contemporâneos.
Se você pudesse ajudar na criação do espetáculo, quais elementos você acrescentaria ou tiraria?
Um espetáculo, quando apresenta-do para o público, é o resultado de uma série de escolhas. Escolhe-se
o figurino, que ajuda na caracterização dos personagens (ou pode ser usado apenas para dar neutralidade). Escolhe--se o cenário, geralmente para criar um ambiente. Escolhe-se a iluminação e a sonoplastia. Esta pode ser feita através de músicas ou sons feitos pelos próprios
atores. Tudo é escolhido, nada é aleató-rio. No espetáculo Da janela, vimos livros pendurados compondo o cenário. Como você interpreta essa escolha? Por que estavam suspensos? Por que escolheram o objeto “livro”? E a cor? Não existe uma resposta certa para essas perguntas. Trata-se de interpreta-ção e cada indivíduo pode ter a sua com base na obra e na própria experiência.
Mas será que também podemos fazer teatro sem figurino, sem cenário, sem iluminação, sem
sonoplastia, sem maquiagem? Sim, podemos! Alguns teóricos
dizem que só precisamos de três elementos: o ator (ou atriz), a plateia e o texto. E esse texto não precisa ser verbal, pois a mímica ou a dança, por exemplo, poderiam ser esse “texto”.
Sim, podemos!
O e s p e t á c u l o
Da janela
é livremente inspi-rado no texto Morte acidental de um anarquista, escrito em 1970 pelo dramaturgo italia-no Dario Fo. O texto faz refe-rência a um fato que ocorreu um ano antes (1969) na Itá-lia: uma bomba havia explo-dido em uma praça chama-da Piazza Fontana, em Milão, provocando a morte de várias pessoas; três dias depois, um anarquista, o ferroviário Giu-seppe Pinelli, foi levado à dele-gacia, acusado pelo atentado, e lá supostamente cometeu suicídio, pulando pela janela. Constatou-se que ele já estava morto antes de “pular”, mas a versão do suicídio prevaleceu.
DRAMATURGO é um artista que trabalha escrevendo textos de teatro.
Veja como esta imagem nos dá a impressão de movimento.
Se fosse para fazer uma pergunta para a obra,
QUAL SERIA?
A palavra ANARQUIA vem do grego e significa
“sem governo”, isto é, um estado de um
povo sem autoridade constituída. Daí nasce o
anarquismo, doutrina política que vê o Estado
(centralizado) como nocivo e desnecessário,
negando qualquer forma de organização hierar-
quizada.
O HUMOR PODE SER UMA ARMA POLÍTICA?Pelo título da obra, “Morte acidental de um anarquista”, já pode-mos perceber a ironia de Dario Fo. O autor usou o humor para fazer sua crí-tica. Escolheu um estilo de obra teatral chamado “farsa”, que se caracte-riza normalmente pelo
cômico pouco refinado, com situações absur-das, às vezes ridículas e com personagens carica-tos. A farsa tem também um caráter subversivo contra os poderes mo-rais ou políticos, tabus sexuais, dentre outros.
CURIOSIDADE: Dario Fo recebeu o Prêmio Nobel de Literatura de 1997.
VOCÊ SABIA?A palavra defenestração, que é usada na peça, significa lançar pela janela.
Você sabia que episódios como o do anarquista
Pinelli, que Dario Fo usou para a criação de sua farsa, eram recorrentes em vá-rios países, inclusive no Brasil? Na mesma década, nossa demo-cracia foi interrom-pida com o Golpe de 1964 organizado por militares de alguns
estados brasileiros e apoiado pelos Esta-dos Unidos da Amé-rica. A Ditadura Mi-litar, que durou 21 anos, torturou, ma-tou e fez desaparecer um grande número de pessoas. Não po-díamos mais escolher nossos governantes e perdemos vários di-reitos como cidadãos.
Vinte e um anos dá tempo para muita coisa, não é mes-
mo? O que você faria em 21 anos? Dentro desse tempo, o
que estará acontecendo no sistema político do nosso país?
Foto: Evandro Teixeira. “A Passeata dos 100 Mil”. 26 de junho de 1968.
CONTEXTO – DITADURA MILITAR NO BRASIL
VOCÊ SABIA? Em 31 de março de 2014, comple-tamos 50 anos do Golpe Militar.
Você sabe o que é ANISTIA? A palavra anistia significa esque-cimento. É o ato do poder público que anula uma punição. A chamada Lei de Anistia Ampla, Geral e Irrestrita anulou as pu-nições de crimes tanto dos cidadãos quanto dos torturado-res. Ela foi decretada quatro anos após a morte de Herzog.
CONTEXTO – DITADURA MILITAR NO BRASIL
V ocê já ouviu falar em Vladimir Her-zog? Herzog foi um
jornalista, também pro-fessor, que atuou politica-mente no movimento de resistência contra a dita-dura e que teve um fim se-melhante ao do anarquis-ta da peça de Dario Fo. Em outubro de 1975, Vladimir se dirigiu às dependências do Exército e não retornou para casa. No dia seguinte,
o governo militar comuni-cou aos jornais que ele ha-via cometido suicídio e co-locaram uma foto. Mas era impossível de acreditar naquela foto! A população ficou revoltada e seu veló-rio foi um grande ato con-tra a ditadura. Apenas em 2013 a família do jorna-lista recebeu um atestado de óbito constando a ver-dadeira causa da morte: “lesões e maus tratos”.
Como será que os artistas produ-ziam suas obras de arte na épo-ca da ditadura? A repressão não
permitia críticas ao governo. Havia uma censura proibindo qualquer tentativa de denúncia contra as atrocidades co-metidas. Então, como dizer o que não podia ser dito? A metáfora era a ferramenta mais utilizada. Falava-se aquilo que queria sem dizer diretamen-
te. Assim como Dario Fo se utilizou da farsa para criar sua peça de teatro na Itália, outros artistas estavam produ-zindo sobre as mesmas questões aqui no Brasil. Vamos conhecer alguns? Observe as obras a seguir. Quais relações podemos estabele-cer entre as imagens e a situ-ação política e social vivida na época? Observe o nome das obras.
Observe os materiais utilizados em Língua apunhalada e Livro de carne.
FAZER ARTE TAMBÉM PODE SER UMA FORMA
DE FAZER UM DISCURSO POLÍTICO?
Você já tinha visto alguma obra de arte que usasse o corpo da própria artista?
E a l g u m a o b r a que seja feita com material perecível?
Lygia Pape. Língua Apunhalada (1968) Técnica backlight
Artur Barrio. Livro de Carne (1978-1979)
Você já ouviu falar em Henfil? Henrique de Souza Filho, mais co-
nhecido como Henfil, foi um escritor e cartunista que atuou em movimentos sociais e políticos durante a ditadura. Publicou seus trabalhos em jornais e re-
vistas, criticando não ape-nas o regime, mas também o coronelismo no interior nordestino. Falava da seca, do racismo, dentre outras questões, sempre com hu-mor. Vejamos a imagem ao lado. Esse quadrinho nos fala sobre o quê? Qual a sua opinião sobre este as-sunto? Henfil produziu este trabalho na época da dita-dura, mas será que o tema é uma problemática atual?
Observe como o artista constrói as figuras com traços rápidos e sim-ples, sem muitos detalhes, manten-do a expressividade e o movimento.
E O HUMOR?
Lembrou-se da história do jornalista Vladimir Herzog?
Como será que as pesso-as reagiram ao receber um troco e ver esta frase
estampada? Nos dias de hoje, se tentássemos fazer o nosso
projeto de inserções em circui-tos ideológicos, qual mensa-gem colocaríamos na cédula? E qual outro suporte poderí-amos usar além do dinheiro?
A IMAGINAÇÃO NO PODER!
Um ar tista brasileiro chamado Cildo Meireles encontrou uma forma de produção ar tística que podia cri-
ticar aber tamente o regime militar sem que as pessoas soubessem de quem era a autoria. Chama-se: Inserções em
circuitos ideológicos. Uma série de tra-balhos em que imprimia mensagens subversivas em cédulas de dinheiro e garrafas de vidro de Coca-Cola e as de-volvia para circulação. Veja a imagem a seguir. O que há de estranho nela?
Você já tinha pensado que objetos cotidianos e simples poderiam virar arte? Ou que a arte não precisa estar apenas dentro de espaços institucionalizados como galerias e teatros?
Cildo Meireles. “Inserções em circuitos ideológicos – Projeto cédulas” (1970)
Autor desconhecido. Cédula de dois reais com carimbo. 2013
RELEITURAVocê conhe-
ce a história do Ama-
rildo? Na imagem ao lado, temos uma releitura do trabalho de Cildo Meireles 40 anos depois. Alguém carimbou cédulas de Real e as devolveu à circulação quando houve o desapare-cimento do Amarildo em uma favela do Rio de Janeiro em 2013. Falamos bastante so-bre a Ditadura Militar
até agora. Mas será que este foi um período que fi-cou no passa-do? Quais são os resquícios hoje?
Será que o Es-tado Democráti-co é para todos?Há quem diga que a di-tadura na favela nunca terminou. Infelizmente existem lugares no Brasil onde morrem e desaparecem mais pessoas do que em época de ditadura. E assustadoramente não falamos sobre o assunto. Mas, afinal, por que não ouvimos falar disso? Qual o papel da mídia nesses
assuntos? O que os esquecimentos e os silêncios da história podem nos revelar so-bre dominação?
O que memória tem a ver com identidade?
Na família, por exemplo, so-mos parte e resultado de uma memória, dos
nossos avós, dos nossospais, do que permaneceatravés do registro e da oralidade... e isso cria anossa identidade. Da mesma forma, a memória está na base da construção da identidade de um país.A memória do nosso país é o que fica do passado e o que fazemos com isso.
SEJAMOS REALISTAS, EXIJAMOS O IMPOSSÍVEL!
Hoje você é quem manda
Falou, tá faladoNão tem discussão
A minha gente hoje anda
Falando de ladoE olhando pro
chão, viuVocê que inventou
esse estadoE inventou de
inventarToda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventarO perdão
Apesar de vocêAmanhã há de ser
Outro dia(...)
E . na música, você lembra alguma le-tra que expresse
crítica, seja ao regime mi-litar, seja a questões atu-
ais? Já ouviu Apesar de você, do Chico Buarque?
Quem é o “VOCÊ” da canção? Quando Chico Buarque de Holanda escreveu esta canção em 1970, os militares não a censuraram, pois não viam nenhuma crítica na letra, acreditando talvez na fictícia briga entre namorados que a história sugere.
Mas, meses depois, quando a música era um sucesso, o governo compreendeu a men-sagem e imediatamente proibiu a música, além de recolher e destruir os discos. Num in-terrogatório quiseram saber de Chico quem era o “você”. E ele ironicamente respondeu: “É uma mulher muito mandona, muito autoritária”. O censor que deixou a letra passar foi punido e Chico Buarque ficou marcado. Todas as suas letras passaram a ser vetadas! Por isso Chico começou a se disfarçar sob os pseudônimos de Julinho da Adelaide e Leonel Paiva para que fossem aprovadas algumas de suas composições, dentre elas Acorda amor, que mostra uma crítica mais explícita à ditadura, mas os censores não conseguiram enxergar!
Outro som: “Brasil com P”, do GOG, rapper do Distrito Federal.
(...)Era a brecha que o sistema
queria.Avise o IML, chegou o grande
dia.Depende do sim ou não de um
só homem.Que prefere ser neutro pelo
telefone.Ratatatá, caviar e champanhe.
(...)Cachorros assassinos, gás
lacrimogêneo...quem mata mais ladrão ganha
medalha de prêmio!O ser humano é descartável no
Brasil.Como modess usado ou
bombril.Cadeia? Claro que o sistema
não quis.
Esconde o que a novela não diz.
Ratatatá! sangue jorra como água.
Do ouvido, da boca e nariz.O Senhor é meu pastor...
perdoe o que seu filho fez.Morreu de bruços no salmo 23,
sem padre, sem repórter.sem arma, sem socorro.Vai pegar HIV na boca do
cachorro.Cadáveres no poço, no pátio
interno.Adolf Hitler sorri no inferno! O Robocop do governo é frio,
não sente pena.Só ódio e ri como a hiena.
Ratatatá, Fleury e sua gangue vão nadar numa piscina de
sangue.Mas quem vai acreditar no meu
depoimento?Dia 3 de outubro, diário de um
detento.
CURTE ESSE
SOM!
“Diário de um detento”. Composição: Mano Brown (Jocenir). Álbum: Sobrevivendo no Inferno.
Imagem ao fundo: Regina Silveira. “Mundus Admirabilis” (2007). Instalação, vinil adesivo.
Neste rap, Mano Brown, o composi-tor, fala sobre o mas-
sacre da Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, que aconteceu em 1992, anos após o término da ditadura, onde 111 pre-sos foram assassinados por policiais. O rapper também faz referência a outro fato: quando ele
fala “Fleury e sua gangue”, está se referindo a Sérgio Fleury, um policial, talvez o maior torturador da épo-ca da ditadura. Mas por que Mano Brown traz essas duas referências juntas, uma da época da ditadura e outra de um massacre que acon-teceu décadas depois na nossa democracia?
O que era um preso político na ditadura? O que é um preso hoje?
O que era considerando contra a lei nas décadas de 1970 e 1980?
E o que é considerado contra a lei hoje? FICA A DICA
O dia que du-rou 21 anos. Dirigido por Camilo Galli Tavares (Mé-xico, 1971)
Juízo. Dirigido por Maria Augusta Ramos (Brasil, 2008)
A cidade é uma só? Dirigido por Adirley Quei-rós (Brasil, 2011)
Selecionamos alguns filmes caso você tenha curiosidade de conhe-cer mais sobre o assunto. Você pode encontrá-los na internet:
Imagem ao fundo: Regina Silveira. “Intro” (2005). Vinil adesivo.
Coordenação Geral e Pedagógica Arlene von Sohsten
SupervisãoBárbara FigueiraDanielle Dumoulin
MediaçãoAnahi Nogueira Jailson Rolim Lidi Leão Natália Vinhal Nina Ferreira Pryscilla Dantas
Produção ExecutivaMariana Baeta
Espetáculo
Atuação e direçãoBárbara FigueiraMarcos Davi
Concepção do Material DidáticoArlene von Sohsten
Projeto GráficoAndré Fernandes
Fotos Espetáculo Karla Gamba
RevisãoFelipe Miranda
Visite o nosso blog:formacaodeespectadores.blogspot.comCurta a nossa página: / Mediato - Formação de Espectadores
Período: Agosto e Setembro de 2014Regiões: Gama, São Sebastião, Ceilândia e Brazlândia.
Apoio
Teatro SESC Paulo Gracindo – Gama
Apresentação
Fundo de Apoio à Cultura (FAC) da Secretaria de Estado de Cultura do
Distrito Federal
FICHA TÉCNICA
fundo diverso
fundo escuro
versão em preto
versão em cores