argan, g.c. - a realidade e a consciência

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Trecho do livro Arte Moderna onde Argan discorre sobre o Impressionismo e a Fotografia

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A REALIDADE EA CONSCINCIAGiulio Carlo Argan

trecho do captulo "E realidade e a conscincia", do livro Arte Moderna, de G.C. Argan (Cia das Letras)

IMPRESSIONISMO Courbet anunciara seu programa desde 1847: realismo integral, abordagem direta da realidade, independente de qualquer potica previamente constituda. Era a superao simultnea do "clssico" e do "romntico" enquanto poticas destinadas a mediar, condicionar e orientar a relao do artista com a realidade. Com isso, Courbet no nega a importncia da histria, dos grandes mestres do passado, mas afirma que deles no se herda uma concepo de mundo, um sistema de valores ou um ideal de arte, e sim apenas a experincia de enfrentar a realidade e seus problemas com os meios exclusivos da pintura. Para alm da ruptura com as poticas opostas e complementares do "clssico" e do "romntico", o problema que se colocava era o de enfrentar a realidade sem o suporte

de ambos, libertar a sensao visual de qualquer experincia ou noo adquirida e de qualquer postura previamente ordenada que pudesse prejudicar sua imediaticidade, e a operao pictrica de qualquer regra ou costume tcnico que pudesse comprometer sua representao atravs das cores. O movimento impressionista, que rompeu decididamente as pontes com o passado e abriu caminho para a pesquisa artstica moderna, formou-se em Paris entre 1860 e 1870; apresentou-se pela primeira vez ao pblico em 1874, com uma exposio de artistas "independentes" no estdio do fotgrafo Nadar. difcil dizer se era maior o interesse do fotgrafo por aqueles pintores ou o dos pintores pela fotografia; o que certo, em todo caso, que um dos mveis da reformulao pictrica foi a necessidade de redefinir sua essncia e finalidades frente ao novo instrumento de apreenso mecnica da realidade. A definio remonta ao comentrio irnico de um crtico sobre um quadro de Monet, intitulado Impression, soleil levant, mas foi adotada pelos artistas, quase por desafio, nas exposies seguintes. As figuras emergentes, do grupo so: MONET, RENOIR, DEGAS, CZANNE, PISSARRO, SISLEY. Na primeira fase da pesquisa participou tambm um amigo de Monet, J. F. BAZILLE (1841-70), morto em combate na guerra franco-prussiana. Embora considerado um precursor; MANET no fazia parte do grupo: de fato, este artista mais velho e j famoso desenvolvera a tendncia realista num sentido essencialmente visual, afastando-se, porm, do integralismo de Courbet e remetendo os pintores modernos experincia de mestres do passado muito distantes do Classicismo acadmico: Velsquez, Rubens, Frans . Hals. Recusa o embate brutal com a realidade, propondo, ao contrrio, libertar a percepo de qualquer preconceito ou convencionalismo, para manifest-la em sua plenitude de ao cognitiva. O retorno a um leque de valores, que Courbet rejeitava, sem dvida afastou-o do extremismo revolucionrio (Courbet vir a aderir impetuosamente Comuna) e aproximou-o, pelo contrrio, de literatos e poetas (foi amigo de Baudelaire e depois de Mallarm). Aps 1870, acercou-se cada vez mais do Impressionismo, eliminando o chiaroscuro e os tons intermedirios e solucionando as relaes tonais em relaes cromticas. primeira exposio no estdio do fotgrafo Nadar, seguiram-se as de 1877,1878,1880,1881,1882,1886, sempre provocando reaes escandalizadas na crtica oficial e no pblico bem pensante. Os nicos crticos que compreenderam a importncia do movimento foram Duret e Duranty, e ainda, com algumas reservas, o escritor mile Zola, amigo de Czanne. Nenhum interesse ideolgico ou poltico comum unia os Jovens "revolucionrios" da arte: Pissarro era de esquerda; Degas, conservador; outros, indiferentes. No tinham um programa preciso. Nas discusses no caf Guerbois, porm, haviam concordado sobre alguns pontos: 1) a averso pela arte acadmica dos salons oficiais; 2) a orientao realista; 3) o total desinteresse pelo objeto - a preferncia pela paisagem e a natureza-morta; 4) a recusa dos hbitos de ateli de dispor e iluminar os modelos, de comear desenhando o contorno para depois passar ao chiaroscuro e cor; 5) o trabalho en plein-air, o estudo das sombras coloridas e das relaes entre cores complementares. Quanto a este ltimo ponto, h uma referncia inegvel teoria ptica de Chevreul sobre os contrastes simultneos; a tentativa deliberada de fundar a pintura sobre as leis cientficas da viso ocorrer apenas em 1886, com o Neo- Impressionismo de

SEURAT e SIGNAC. Mesmo antes da exposio de 1874, as motivaes e interesses dos diversos componentes do grupo no so os mesmos. Monet, Renoir, Sisley, Pissarro realizam um estudo ao vivo direto, experimental; trabalhando de preferncia s margens do Sena, propem-se representar da maneira mais imediata, com uma tcnica rpida e sem retoques, a impresso luminosa e a transparncia da atmosfera e da gua com notas cromticas puras, independentemente de qualquer gradao de chiaroscuro, deixando de utilizar o preto para escurecer as cores na sombra. Ocupando-se exclusivamente da sensao visual, evitam a "poeticidade" do tema, a emoo e comoo romnticas. Czanne e Degas, pelo contrrio, consideram a pesquisa histrica to importante quanto a da natureza; Czanne, principalmente, dedica muito tempo a estudar as obras dos grandes mestres no Louvre, fazendo esboos e cpias interpretativas. Ele defende que, para definir a essncia da operao pictrica, preciso reexaminar sua histria; mas, como Monet e os outros tambm aspiram ao mesmo objetivo atravs da investigao das possibilidades tcnicas atuais, os dois processos convergem para um mesmo fim: demonstrar que a experincia da realidade que se realiza com a pintura uma experincia plena e legtima, que no pode ser substituda por experincias realizadas de outras maneiras. A tcnica pictrica , portanto, uma tcnica de conhecimento que no pode ser excluda do sistema cultural do mundo moderno, eminentemente cientfico. No sustentam que, numa poca cientfica, a arte deva fingir ser cientfica; indagam-se sobre o carter e a funo possveis da arte numa poca cientfica, e como deve se transformar para ser uma tcnica rigorosa, como a tcnica industrial, que depende da cincia. Neste sentido, pode-se demonstrar que a pesquisa impressionista , na pintura, o paralelo' da pesquisa estrutural dos engenheiros no campo da construo. E no s a polmica dos impressionistas contra os acadmicos semelhante dos construtores contra os arquitetosdecoradores, como tambm existem claras analogias entre o espao pictrico dos impressionistas e o espao construtivo da nova arquitetura em ferro. Em ambos os casos, no se parte de uma concepo predeterminada do espao: o espao se determina na obra pela relao entre seus elementos constitutivos.

A FOTOGRAFIA O problema da relao entre as tcnicas artsticas e as novas tcnicas industriais se concretiza, especialmente para a pintura, no problema dos diferentes significados e valores das imagens produzidas pela arte e pela fotografia. Sua inveno (1839), o I)pido progressq tcnico que reduz os tempos de exposio e permite alcanar o mximo de preciso, as tentativas de fotografia "artstic', as primeiras aplicaes da fotografia ao registro de movimentos (fotografia estroboscpica, cinematografia), mas principalmente a produo industrial das cmeras e aS grandes transformaes na psicologia da viso, deterrnjnadas pela utilizao generalizada da fotografia, tiveram, na segunda metade do scu16 passado, uma profunda influncia sobre o direcionamento da pintura e o desenvolvimento das

correntes artsticas, li2:a~as ao Impressionismo. Com a difuso da fotografia, muitos servios sociais passam do pintor para o fotgrafo (retratos, vistas de cidads e de campos, reportagens, ilustraes etc.). A crise atinge sobretudo os pintores de ofcio, mas desloca a pintura, como arte, para o nvel de uma atividade de elite. Se a obra de arte se torna um produto excepcional, h de interessar apenas a um pblico restrito, e ter um alcance social limitado; alm disso, a produo de alta qualidade na arte tambm deixa de ter funo, caso .no sirva de guia a uma produo mdia. No

Nadar: Sarah Bernhardt (1859); fotografia mais se qualifica como um bem de consumo normal, e sim como arte malograda; tende, portanto, a desaparecer. Em um nvel mais elevado, as solues que se apresentam so duas: 1) evita-se o problema sustentando que a, arte atividade espiritual que no pode ser substituda por um meio mecnico ( a tese de Baudelaire e, posteriormente, dos simbolistas e correntes afins); 2) reconhece-se que o problema existe e um problema de viso, que s pode ser resolvido definindo-se claramente a distino entre os tipos e as funes da imagem pictrica e d imagem fotogrfica ( a tese dos realistas e dos impressionistas). No primeiro caso, a pintura tende a se colocar como poesia ou literatura figurada; no segundo, a pintura, liberada da tarefa tradicional de "representar o verdadeiro", tende a se colocar como pura pintura, isto , mostrar como se obtm, com procedimentos pictricos rigorosos, valores de outra manei-

ra irrealizveis. A hiptese de que a fotografia reproduz a realidade como ela e a pintura a reproduz como se a v insustentvel: a objetiva fotogrfica reproduz, pelo menos na primeira fase de seu desenvolvimento tcnico, o funcionamento do olho humano .. Tambm insustentvel que a objetiva seja um o11io imparcial, e o olho humano um olho influenciado pelos sentimentos ou gostos da pessoa; o fotografo tambm manifesta suas inclinaes estticas e psicolgicas na escolha dos temas, na disposio e iluminao dos objetos, nos enquadramentos, no enfoque. Desde meados do sculo XIX, existem personalidades fotogrficas {por exemplo, Nadar) da mesma forma que existem personalidades artsticas. No h sentido em perguntar se "fazem arte" ou no; no h qualquer dificuldade em admitir que os procedimentos fotogrficos pertencem ordem esttica. Por outro lado, um erro supor que, enquanto tais, substituam procedimentos da pintura; os pintores "de viso", de Courbet a ToulouseLautrec, esto prontos a Admitir que a fotografia, assim como a grfica ou a escultura, pode ser uma arte distinta da pintura. Portanto, no interessa o problema terico, e sim a realidaDE. de histrica das relaes recprocas. Outro aspecto importante da relao consiste no enorme crescimento do patrimnio de imagens: a fotografia permite ver um grande nmero de coisas que escapam no s percepo, mas tambm ateno visual. O Impressionismo, estreitamente ligado divulgao social da fotografia, tende a competir com ela, seja na compreenso da tomada, seja em sua instantaneidade, seja com a. vantagem da cor. Os simbolistas, pelo contrrio, recusam qualquer relao, reconhecendo implicitamente que, quanto apreenso e representao do verdadeiro, a pintura superada pela fotografia. Afirma-se frequentemente que a fotografia deu aos pintores a experincia de uma imagem destituda de traos lineares, formada apenas por manchas claras e escuras; a fotografia, portanto, estaria na origem da pintura "de manchas", isto , de toda a pintura de orientao realista do sculo XIX. Evidentemente, David e Ingres, mesmo mantendo o culto do desenho a trao, nunca sustentaram que a linha se encontra na natureza: sustentavam que nenhuma representao da realidade poderia ser satisfatria se no viesse amparada pela noo intelectual do real que se realiza no desenho. A fotografia fornecia uma representao satisfatria sem um delineamento preciso nos contornos; mas a histria da pintura, dos venezianos a Rembrandt e Frans Hals, tambm conta com inmeras representaes sem um suporte visvel do desenho. Pode-se, portanto, dizer que a fotografia ajudou os pintores "de viso' a conhecer sua verdadeira tradio; mais precisamente, apresentando-se puro fato de viso , ajudou-os a separar, nas obras desses mestres, os puros fatos de viso de outros componentes culturais que, at ento, haviam impedido avaliar essas obras do ponto de vista da pesquisa sobre a viso. Courbet foi o primeiro a captar o ncleo do problema: realista por princpio, nunca acreditou que o olho humano visse mais e melhor do que a objetiva: pelo contrrio, no hesitou em transpor para a pintura imagens extradas de fotografias. Para ele, o que no podia ser substitudo por um meio mecnico no era a viso, mas a manufatura do quadro, o trabalho do pintor. isto que faz da imagem no mais a aparncia de uma coisa, e sim uma coisa diferente, igualmente concreta. Proudhoniano e mesmo marxista avant la lettre,

Courbet se interessa apenas pelo que poderia chamar de fora de trabalho que fabrica o quadro: apresentando ambos as mesmas imagens, por exemplo um cabrito montes na neve), no quadro h uma fora de trabalho que no existe na fotografia.Jules Marey: Experimentos cronofotogrdficos (1887).

Nem se pode afirmar que a pintura capte da realidade significados ocultos ou transcendentes que escapam fotografia: a fora de trabalho utilizada simplesmente para construir a imagem, para lhe dar uma concretude e um peso que fazem dela uma coisa real - com a evidente finalidade de demonstrar que no se pode mais considerar a imagem artstica como algo superficial, ilusrio, mais lbil e menos srio do que a realidade. Assim estabelece uma distino entre a imagem pesada e a pintura (menos realista e menos verdadeira). Aps este estabelecimento, compreende-se como os impressionistas puderam

utilizar, sem problema algum, materiais de imagens fornecidas pela fotografia, A fotografia torna visves inmeras coisas que o olho humano, mais lento e menos preciso, no consegue captar; passando a fazer parte do visvel, todas essas coisas (por exemplo, o movimento de pernas de uma bailarina ou um cavalo a galope), como tambm os universos do infinitamente pequeno e infinitamente grande, revelados pelo microscpio e pelo telescpio, passam a fazer parte da experincia visual, e, portanto, da "competncia" do pintor. Degas e Toulouse-Lautrec utilizaram largamente materiais fotogrficos, e portanto no precisaram enfrentar qualquer problema terico. Neste sentido, correto afirmar que a fotografia contribuiu para aumentar o interesse dos pintores pelo espetculo social. Os fotgrafos, por sua vez, mesmo se deixando guiar de bom grado pelo gosto dos pintores na escolha e preparao dos objetos, jamais pretenderam concorrer com a pesquisa pictrica. Nadar foi amigo dos impressionistas, tendo acolhido a primeira exposio deles em seu prprio estdio (1874); mas nunca tentou fazer fotografias impressionistas. Ele percebia que a estrutura de sua tcnica era profundamente diferente da que prpria da pintura, e, se dessa sua tcnica podia nascer um resultado esttico, no haveria de ser um valor tomado de emprstimo pintura. As fotografias "artsticas', to em voga no final do sculo XIX e no incio do sculo XX, so semelhantes s estruturas perfeitas em ferro ou em cimento que os arquitetos "estruturais" revestiam com um medocre aparato ornamental para dissimular sua funcionalidade: e assim como s surgir uma grande arquitetura estruturalista quando os arquitetos se liberarem da vergonha pelo suposto carter no artstico de sua tcnica, s surgir uma fotografia de alto nvel esttico quando os fotgrafos, deixando de se envergonhar por serem fotgrafos e no pintores, cessarem de pedir pintura que torne a fotografia artstica e buscarem a fonte do valor esttico na estruturalidade intrnseca sua prpria tcnica