arendt x marx
TRANSCRIPT
-
PROMETEUS
FILOSOFIA EM REVISTAVIVA VOX - DFL UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
Ano 2 - no.4 Julho-Dezembro/ 2009 ISSN 1807-3042
HANNA ARENDT VERSUS MARX: UMA DEFESA DE MARX FRENTE CRTICA ARENDTIANA
Jlia Sebba Ramalho Mestranda pelo Programa de Ps-Graduao
da Universidade Federal de Gois.
Resumo: O presente trabalho trata das crticas de Hanna Arendt a Karl Marx especificamente na obra de Arendt A condio humana. No captulo III desta obra Arendt versa sobre a atividade do trabalho que, segundo ela, emergiu na Era Moderna como o principal foco das preocupaes humanas. Para a autora a expresso terica mais elaborada da emergncia do animal laborans a obra de Marx. Desse modo, toda a discusso do captulo III de A condio humana gira em torno das crticas de Arendt a Marx. No presente artigo trataremos de elucidar os aspectos centrais desta crtica e de mostrar os equvocos de Arendt em sua leitura da obra marxiana.
Palavras chave: trabalho, animal laborans, natureza.
Abstract: This paper deals with the criticism of Hannah Arendt to Karl Marx, specifically in the Arendt's work The human condition. In chapter III of this work, Arendt turns to the labor activity, which, according to her, emerged in the Modern Age as the main focus of human concerns. For her the most elaborate theoretical expression of the raise of laborans animal is in the works of Karl Marx. Thus, the whole discussion of Chapter III of The human condition deals with the criticism of Arendt to Marx. In this papaer we will elucidate the key aspects of this criticism, showing the misunderstandings of Arendt in her reading of the Marxian's work.
Keywords: Labor, animal laborans, nature.
1. O trabalho e o metabolismo do homem com a natureza:
O primeiro aspecto da crtica de Arendt a Karl Marx em A condio humana,
bem com o aspecto central dessa crtica, aquele em que se afirma que Marx equaciona
Prometeus Filosofia em Revista Ano 2 - no.4 Julho-Dezembro/2009 ISSN: 1807-304273
-
seu conceito de trabalho com o sentido biolgico e natural de trabalho que Arendt d a
esse termo1. Arendt nos diz:
Ao definir o trabalho como o metabolismo do homem com a natureza, em cujo processo o material da natureza adaptado, por uma mudana de forma s necessidades do homem, de sorte que o trabalho se incorpora ao sujeito, Marx deixou claro que estava falando fisiologicamente, e que o trabalho e o consumo so apenas dois estgios do eterno ciclo da vida biolgica. 2
Arendt afirma que Marx concebia o trabalho como uma relao do homem com
a natureza, na qual o homem exercia apenas seu metabolismo orgnico com o mundo
natural. Segundo ela, o trabalho, para Marx, uma condio natural que permanece
presa ao ciclo infindvel da natureza e ao processo de produo de bens de consumo
perecveis. Arendt tenta justificar seu argumento reivindicando a noo marxiana de
fora de trabalho que, segundo ela, o conceito mais claro de Marx que explicita sua
noo do trabalho como atividade meramente natural, estritamente biolgica:
Contudo, um fato ainda mais importante nesse particular, j pressentido pelos economistas clssicos e claramente descoberto por Karl Marx, que a prpria atividade do trabalho, independentemente de circunstncias histricas e de sua localizao na esfera privada ou na esfera pblica, possui realmente uma produtividade prpria, por mais fteis ou pouco durveis que sejam os seus produtos. Essa produtividade no reside em qualquer um dos produtos do trabalho, mas na fora humana, cuja intensidade no se esgota depois que ela produz os meios de sua subsistncia e sobrevivncia, mas capaz de produzir um excedente, isto , mais que o necessrio sua reproduo [...] Ao contrrio da produtividade da fabricao, que acrescenta novos objetos ao artifcio humano, a produtividade do trabalho s ocasionalmente produz objetos; sua preocupao fundamental so os meios da prpria reproduo; e, como a sua fora no se extingue quando a prpria reproduo j est assegurada, pode
1 No presente trabalho utilizaremos a traduo de Roberto Raposo de A condio humana. No entanto, esta verso da obra possui alguns notveis erros de traduo, principalmente no que tange traduo dos termos em ingls labor e work. A edio de Roberto Raposo traduz estes termos respectivamente como labor e trabalho. Estes termos em portugus, entretanto, no conseguem abranger o sentido que Hanna Arendt procura lhes significar com os termos originais. O segundo termo em portugus, trabalho no d a conotao de uma atividade que acrescenta algo de permanente no mundo das coisas, tal como Arendt sugere com o termo work. Assim, optamos por traduzir os termos em ingls respectivamente por trabalho e fabricao. O primeiro, que sem dvida o que mais nos interessa, significa fundamentalmente para Arendt uma atividade que possui conotao de dor, labuta, de obrigao e fardo e que, alm disso, uma atividade que se encontra inserida nos ciclos da natureza. A crtica da traduo de Roberto Raposo freqente na literatura arendtiana de lngua portuguesa. Ver CALVET, T. A atividade do trabalho em Hanna Arendt. 2 ARENDT, H. A Condio Humana. 10 edio. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2001. p. 110.
Prometeus Filosofia em Revista Ano 2 - no.4 Julho-Dezembro/2009 ISSN: 1807-304274
-
ser utilizada para a reproduo de mais de um processo vital, mas nunca produz outra coisa seno vida (Arendt, 2001, p. 99).
Arendt afirma que o conceito de Marx da fora humana de trabalho o pice da
conceitualizao da atividade do animal laborans na Era Moderna. Segundo ela, a fora
de trabalho em Marx a caracterizao da fora do animal laborans, uma vez que tal
fora insere-se no ciclo repetitivo da natureza e que produz apenas bens de consumo
perecveis. O conceito de Arendt acerca da atividade do trabalho, como uma atividade
que se imiscui com a natureza e exige apenas a fora fsica para a manuteno do
organismo vital do homem, atribudo por ela Marx quando ela afirma que Marx fala
da fora de trabalho e do processo de trabalho em termos estritamente fisiolgicos.
Vejamos at que ponto esta afirmao de Arendt pertinente.
Para Marx o processo de trabalho no um processo no qual o homem se
mistura com a natureza e com os seus processos cclicos. Isto s concebvel se se
pressupe, como Arendt, que natureza e mundo humano se contrapem. Somente com
esta pressuposio dualista podemos conceber que aquele que trabalha diretamente a
natureza est desvinculado da realidade humana, no transcende o mundo natural a fim
de se humanizar e se confunde desse modo com os organismos vivos dos processos
naturais, tal como Arendt afirma em sua caracterizao do animal laborans.
Em Marx no h esta dicotomia que existe na filosofia de Hanna Arendt entre
mundo humano e natureza. Mas isso no significa que a natureza e a realidade social
dos homens coincidam. Pelo contrrio, para Marx o mundo natural parte integrante da
realidade humana, est inscrito nela, mas incorporado e superado (aufhebung) por esta
realidade. Assim, h em Marx uma relao recproca dialtica entre a natureza e a
realidade humana, na qual a realidade social incorpora a natureza ao neg-la. O
processo de trabalho no , portanto, em Marx um processo estritamente natural, mas
um processo social que pressupe a natureza como sua condio indispensvel. Os
aspectos naturais envolvidos no processo de trabalho, desse modo, atendem s
necessidades e intenes humanas e no subsistem como processos cclicos alheios
realidade humana, como ocorre para Arendt. O homem, ao trabalhar, modifica a
natureza e transforma-a para si, de modo a constituir uma realidade social totalizante
que engloba a natureza como sua condio indispensvel, mas modificada. Vejamos as
citaes.
Prometeus Filosofia em Revista Ano 2 - no.4 Julho-Dezembro/2009 ISSN: 1807-304275
-
O Marx de O Capital diz:
Antes de tudo, o trabalho um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano com sua prpria ao, impulsiona, regula e controla seu intercmbio material com a natureza [...] Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, o homem ao mesmo tempo modifica sua prpria natureza. Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e submete ao seu domnio o jogo das foras naturais. No se trata aqui de formas instintivas, naturais de trabalho.3
O jovem Marx:
A construo prtica de um mundo objetivo, a manipulao da natureza inorgnica, a confirmao do homem como ser genrico consciente, isto , ser que considera a espcie seu prprio ser ou se tem a si como ser genrico. Sem dvida, o animal tambm produz. Faz um ninho, uma habitao, como as abelhas, os castores, as formigas, etc. Mas s produz o que estritamente necessrio para si ou para as suas crias; produz apenas numa s direo, ao passo que o homem produz universalmente; o animal produz unicamente sob a dominao da necessidade fsica imediata, enquanto o homem produz quando se encontra livre da necessidade fsica e s produz verdadeiramente na liberdade de tal necessidade; o animal apenas produz a si, ao passo que o homem reproduz toda a natureza; o produto do animal pertence imediatamente ao seu corpo, enquanto o homem livre perante o seu produto. O animal constri apenas segundo o padro e a necessidade da espcie a que pertence, ao passo que o homem sabe como produzir de acordo com o padro de cada espcie e sabe como aplicar o padro apropriado ao objeto; deste modo o homem constri tambm em conformidade com as leis da beleza. Tal produo a sua vida genrica ativa. Atravs dela a natureza surge como a sua obra e a sua realidade. 4
A natureza para Marx, ou os ciclos dos processos naturais, como diz Arendt, no
permanece, para o ser humano, tal como . Ela incorporada pelo homem, uma vez que
este, ao produzir, regula, controla e submete ao seu domnio o jogo das foras
naturais. O homem que trabalha no permanece, como Arendt afirma a respeito de
Marx, preso aos processos naturais, ao contrrio, reproduz toda a natureza, ou seja,
cria um mundo novo no-natural, antes inexistente. O prprio homem, alm disso, no
um animal laborans ao trabalhar, muito diferente, ele, atuando assim sobre a natureza
externa e modificando-a, modifica sua prpria natureza, uma vez que o homem s
3 Marx, K. O Capital. Crtica da Economia Poltica. Volume I. 6 edio. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1980. p. 202 grifos nossos. 4 Marx, K. Manuscritos Econmico-Filosficos e outros textos escolhidos. Lisboa: Edies 70, 1975. p. 165 grifos nossos.
Prometeus Filosofia em Revista Ano 2 - no.4 Julho-Dezembro/2009 ISSN: 1807-304276
-
produz quando se encontra livre da necessidade fsica e ainda s produz
verdadeiramente na liberdade de tal necessidade. O processo de trabalho para Marx,
longe de se misturar com os processos naturais e longe de enquadrar o homem como
mais uma das espcies vivas, como afirma Arendt a respeito do animal laborans, um
processo eminentemente humano, no se trata aqui de formas instintivas, naturais de
trabalho.
Entretanto, no se pode descartar a natureza, pois ela pressuposto necessrio
do processo de trabalho. A natureza considerada por Marx como condio
indispensvel da atividade de trabalhar. Ela fornece primitivamente os materiais
necessrios para a atividade produtiva. Assim, todas as coisas que o homem apenas
separa de sua conexo imediata com seu meio natural constituem objetos de trabalho
fornecidos pela natureza (Marx, 1980, p. 203). No entanto, apenas primitivamente a
natureza serve ao homem passivamente, e o que ocorre, segundo Marx, a
transformao operada pelo homem do material fornecido pela natureza, o que constitui
a matria-prima. A natureza, desse modo, serve de condio ao processo de trabalho,
mas ela modificada, ou seja, no existe uma coincidncia, como Arendt o afirma, entre
o processo natural e a operao do trabalho humano. Pelo contrrio, esta ltima
subsume os processos naturais para si. Alm do material a que se aplica o trabalho,
necessrio para o processo de trabalho o instrumental com o qual se opera o processo.
Do mesmo modo, este instrumental pode ser recolhido pelo homem na natureza, como
por exemplo, a pedra que o selvagem utiliza para lanar em um animal para comer, no
entanto, este instrumental trabalhado pelo homem e, desse modo, no fornecido
passivamente pela natureza.
Para sustentar seu argumento de que Marx estava falando fisiologicamente, ou
seja, que Marx concebia o processo de trabalho como um processo biolgico, inserido
no quadro da natureza, Hanna Arendt afirma ainda que a fora de trabalho humana, tal
como Marx a conceitua, uma fora meramente natural e, assim, est inscrita na
circularidade da sustentao do processo vital da natureza e no produz outra coisa
seno vida. Vejamos antes de tudo o que Marx entende por fora de trabalho: Por
fora de trabalho ou capacidade de trabalho compreendemos o conjunto das faculdades
fsicas e mentais, existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano, as
Prometeus Filosofia em Revista Ano 2 - no.4 Julho-Dezembro/2009 ISSN: 1807-304277
-
quais ele pe em ao toda a vez que produz valores-de-uso de qualquer espcie
(Marx, 1980, p. 187 grifos nossos).
Desse modo, (1) a fora de trabalho no uma fora meramente natural, mas
inclui todas as potencialidades humanas gastas no processo de trabalho, inclusive as
espirituais e (2) a fora humana de trabalho no somente produz vida, mas produz
objetos de variadas espcies, desde alimentos at objetos elaborados como construes
arquitetnicas ou obras de arte, pois qualquer objeto desses fruto do esforo da
capacidade humana de trabalho.
O mais importante que temos a notar referente a este tema que no h em Marx
uma separao entre a minha fora fsica de trabalho e a minha fora mental. Mesmo
quando produzo, como Hanna Arendt diz, somente vida, ou seja, alimentos, tenho que
usar minhas potencialidades mentais, pois sou um ser humano uno e no dividido, como
o sugere Arendt, em animal laborans e homo faber. Ao trabalhar a terra, por exemplo, e
desgastar sua fora fsica de trabalho, o homem utiliza e desgasta tambm suas
operaes mentais, ele prev, observa, supe, calcula o terreno, etc. Da mesma maneira,
o homem, ao gastar sua capacidade e suas potencialidades espirituais de trabalho, por
exemplo, pintando um quadro, no s imagina, concebe, lembra etc., mas tambm
precisa de destreza nas mos, fora nos punhos, equilbrio no corpo para ficar em p,
etc. A fora humana de trabalho para Marx o conjunto das faculdades fsicas e
mentais. Desse modo, ela no est destinada a ser utilizada para a reproduo de mais
de um processo vital e a reproduzir apenas vida. Muito pelo contrrio, para Marx o
desgaste da fora humana de trabalho um desgaste que pressupe algo mais que a
mera naturalidade do homem, pressupe toda a elaborao complexa da humanidade do
homem, pressupe a diviso do trabalho, o nvel do desenvolvimento das foras
produtivas, a configurao das relaes sociais de produo vigentes e que o trabalhador
possa controlar as ocorrncias dos processos naturais, uma vez que sua fora de trabalho
est inscrita no desenvolvimento histrico do trabalho humano.
Assim, facilmente se percebe que a utilizao da fora de trabalho na efetivao
do processo de trabalho para Marx (1) no est imbuda na circularidade cega dos
processos naturais, pois possui claramente uma finalidade consciente; (2) tampouco
produz apenas objetos necessrios para a reproduo da vida humana e (3) no desgasta
apenas os rgos vitais, mas tambm qualidades genuinamente humanas como a
Prometeus Filosofia em Revista Ano 2 - no.4 Julho-Dezembro/2009 ISSN: 1807-304278
-
ateno, a inteno e a conscincia. Como podemos confirmar por meio de um clebre
texto de Marx:
Pressupomos o trabalho sob forma especificamente humana. Uma aranha executa operaes semelhantes s do tecelo, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha que ele figura na mente sua construo antes de transform-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que j existia antes idealmente na imaginao do trabalhador. Ele no transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante de seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinao no um ato fortuito. Alm do esforo dos rgos que trabalham, mister a vontade adequada que se manifesta atravs da ateno durante todo o curso do trabalho (Marx, 1980, p. 202 grifos nossos).
Longe de descrever a atividade do trabalho como um processo natural, Marx a
qualifica explicitamente como um processo no qual caractersticas eminentemente
humanas so exigidas.
2. A definio do homem como animal laborans
Alm de afirmar que Marx concebe o processo de trabalho como um processo
natural, e que o homem, ao desgastar sua fora de trabalho insere-se apenas como um
organismo vivo nos ciclos repetitivos da natureza, Arendt afirma categoricamente que
Marx concebe o ser humano como animal laborans, segundo o sentido que ela d a esta
expresso.
O prprio motivo da promoo do trabalho na era moderna foi a sua produtividade; e a noo aparentemente blasfema de Marx de que o trabalho (e no Deus) criou o homem, ou de que o trabalho (e no a razo) distingue o homem dos outros animais, era apenas a formulao mais radical e coerente de algo com que toda a era moderna concordava [...] A criao do homem atravs do trabalho foi uma das mais persistentes idias de Marx desde sua juventude. Fica claro no contexto que Marx apenas pretendia substituir a tradicional definio do homem como animal rationale chamando-o de animal laborans (Arendt, 2001, p. 97) .
E ainda:
Prometeus Filosofia em Revista Ano 2 - no.4 Julho-Dezembro/2009 ISSN: 1807-304279
-
Toda a teoria de Marx gira em torno do velho conhecimento de que o trabalhador, antes de mais nada, reproduz sua prpria vida ao produzir os meios de subsistncia. Em seus primeiros escritos, Marx achava que os homens comeam a distinguir-se dos animais quando comeam a produzir seus meios de subsistncia. este o prprio contedo da definio do homem como animal laborans (Arendt, 2001, p. 111).
Por trs desta crtica de Arendt est sua noo de que o trabalho no
humaniza o homem, mas apenas o iguala aos demais animais. Para Arendt, o trabalho
uma condio natural de qualquer espcie e produz apenas meios necessrios para
manter a espcie viva. O homem, como animal laborans, que produz apenas meios para
subsistir, segundo Arendt, no se insere no mundo, ou seja, longe est de pertencer
realidade humana permeada de coisas e artifcios dotados de significados. Ele mais um
entre os animais domsticos. Para ser humano, segundo Arendt, no basta trabalhar,
pois esta atividade instintiva e natural, mas, preciso dotar os homens das outras
atividades que integram o conjunto de suas condies humanas, como a fabricao e a
ao. O homem deve no somente produzir os seus meios de subsistncia, mas tambm
fabricar o mundo e agir politicamente. com base nesta caracterizao do homem que
Arendt critica a noo de homem como animal laborans que ela atribui a Marx. Mas,
como vimos, para Marx o trabalho no tem a mesma conotao que tem para Arendt, e,
desse modo, o que ele entende pela diferena especfica do homem em termos
aristotlicos, no equivale ao contedo da definio de animal laborans arendtiana.
Vejamos em que consiste para Marx esta diferena especfica do homem e quais so os
equvocos de Arendt ao identific-la com sua definio de animal laborans5. Vamos
afirmao de Marx:
Podemos distinguir os homens dos animais pela conscincia, pela religio, por tudo o que se quiser. Mas eles comeam a distinguir-se dos animais assim que comeam a produzir os seus meios de vida, passo este que condicionado pela sua organizao fsica. Ao
5 Antes de tudo necessrio salientar que Marx no define aqui a natureza do homem, ou sua essncia, tal como o faz a tradio da filosofia. Mas ele procura caracterizar um aspecto da humanidade que a distingue dos animais e que a constitui de tal maneira que pode ser observado em sua especificidade nas mais diversas pocas histricas. Assim, a despeito de Marx conceituar a diferena especfica do humano, sua preocupao fundamental , antes de tudo, analisar o desdobramento desta especificidade ao longo da histria, no desenvolvimento dos diversos modos de produo. O homem distingue-se dos animais pelo trabalho, mas este trabalho modifica-se e se desenvolve de determinada maneira em cada modo de produo especfico.
Prometeus Filosofia em Revista Ano 2 - no.4 Julho-Dezembro/2009 ISSN: 1807-304280
-
produzirem os seus meios de vida, os homens produzem indiretamente a sua prpria vida material. 6
Hanna Arendt cita esta passagem de A Ideologia Alem apenas at esta
parte. At aqui podemos extrair, diferentemente do que ela faz, que os homens
comeam a distinguir-se dos animais pelo trabalho, mas no que eles apenas
distinguem-se por esta atividade. Marx no exclui de modo algum outros tipos de
atividades especificamente humanas, como a conscincia (o pensar) e a religio, por
exemplo. Para ele, o primeiro passo de distino dos homens a reproduo e a
produo material da prpria vida. E isso Marx atribui frgil condio fsica dos
indivduos, ou seja, se estes fossem dotados de fora ou agilidade ou outras
caractersticas fisiolgicas como so os demais animais, os homens no precisariam
praticar a agricultura, a pecuria, o cultivo do solo etc., bastaria que eles caassem,
colhessem, etc. Mas, para a sua prpria sobrevivncia, ao contrrio de todos os outros
animais, os homens devem produzir os seus meios de vida. Isto sem sombra de dvida
os distingue. No entanto, esta distino no pode ser vista apenas sob o ponto de vista
da sobrevivncia da espcie, pois os homens, seres sociais, ao produzirem seus meios de
vida para subsistirem, produzem, outrossim, uma realidade social, uma estrutura
econmico-social e poltica dotada de significado humano. Vejamos a continuao da
citao pela qual Arendt passa indiferente:
O modo como os homens produzem os seus meios de vida depende, em primeiro lugar, da natureza dos prprios meios de vida encontrados e a reproduzir. Este modo da produo no deve ser considerado no seu mero aspecto da existncia fsica dos indivduos. Trata-se j, isso sim, de uma forma determinada da atividade destes indivduos, de uma forma determinada de exprimirem a sua vida, de um determinado modo de vida dos mesmos. Como exprimem a sua vida, assim os indivduos so. Aquilo que eles so coincide, portanto, com a sua produo, com o que produzem e tambm com o como produzem. Aquilo que os indivduos so depende, portanto, das condies materiais da sua produo (Marx, 2002, p. 15) .
O que distingue os homens dos animais para Marx, portanto, no to
somente a produo dos meios de vida para a subsistncia, tal como Arendt afirma, mas
o trabalho em geral na medida em que produz a realidade humana, na medida em que,
6 MARX. K. A Ideologia Alem. So Paulo: Editora Centauro, 2002, p. 15.
Prometeus Filosofia em Revista Ano 2 - no.4 Julho-Dezembro/2009 ISSN: 1807-304281
-
ao trabalharem, os homens adquirem um determinado modo de vida social e organizam
toda a estrutura de suas vidas. Arendt afirma que os homens comeam a distinguir-se
dos animais assim que comeam a produzir os seus meios de vida, mas desconsidera
que esta produo e reproduo da vida seja acompanhada pela produo de toda a
estrutura social. A estrutura social para Marx compreende tanto as relaes econmicas,
quanto as relaes polticas, jurdicas, as formas da conscincia, da ideologia, etc. No
entanto, para Marx, as relaes polticas, a linguagem, a conscincia e as demais so
frutos da atividade produtiva dos homens que trabalham. Vejamos melhor:
A produo das idias, representaes, da conscincia est a princpio diretamente entrelaada com a atividade material e o intercmbio material dos homens, linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercmbio espiritual dos homens aparece aqui ainda como efluxo direto do seu comportamento material. O mesmo se aplica produo espiritual como ela se aplica na linguagem da poltica, das leis, da moral, da religio, da metafsica etc. de um povo. Os homens so os produtores das suas representaes, idias, etc., mas os homens reais, os homens que realizam, tais como se encontram condicionados por um determinado desenvolvimento de suas foras produtivas e do intercmbio que a estas corresponde at s suas formaes mais avanadas (Marx, 2002, p. 22).
Marx, como podemos notar, no exclui de modo algum as caractersticas
especificamente humanas do quadro de sua caracterizao geral do humano, pelo
contrrio, ele afirma muito claramente que os homens comeam a distinguir-se dos
animais ao produzirem seus meios de vida e isto significa que eles diferenciam-se
tambm em outros atributos, tais como a conscincia, a poltica, a religio, a linguagem.
Ser que este ser social, tal como Marx o concebe, produtor dos seus meios de
vida, mas tambm, concomitantemente, de toda a realidade material, social e espiritual,
o mesmo que o animal laborans que insere-se apenas no ciclo repetitivo e infindvel
da natureza e excludo do mundo humano?
3. A indistino entre trabalho e obra
A ltima crtica de Arendt a Marx de que iremos tratar no presente trabalho a
acusao de Arendt de que Marx no opera a distino no interior de sua obra entre
Prometeus Filosofia em Revista Ano 2 - no.4 Julho-Dezembro/2009 ISSN: 1807-304282
-
trabalho e fabricao e que, desse modo, Marx faz uma confuso e descreve o trabalho
em termos muitos mais adequados ao homo faber.
A era moderna em geral e Karl Marx em particular, fascinados, por assim dizer, pela produtividade real e sem precedentes da humanidade ocidental, tendiam quase irresistivelmente a encarar todo o trabalho como fabricao e a falar do animal laborans em termos muito mais adequados ao homo faber, como a esperar que restasse apenas um passo para eliminar totalmente o trabalho e a necessidade (Arendt, 2001, p. 98).
Arendt atribui a causa desta indistino operada por Marx ao espanto com a
produtividade real e sem precedentes que ocorre na era moderna. Segundo ela, a
ascendncia do animal laborans para a esfera do comum conferiu atributos atividade
do trabalho que pertencem fundamentalmente atividade do homo faber, como por
exemplo, o uso de tcnicas e instrumentos e a diviso do trabalho. Assim, a emergncia
da sociedade, que configura a fuso do espao privado (destinado atividades privadas)
e do espao pblico (destinado atividades pblicas), constitui uma realidade tal que a
atividade de trabalhar e a atividade de fabricar passam a se misturar consideravelmente.
justamente esta configurao do espao humano de convivncia que acarreta uma
exacerbao da produtividade da atividade do trabalho:
A promoo do trabalho estatura de coisa pblica, longe de eliminar seu carter de processo [...] liberou, ao contrrio, esse processo de sua recorrncia circular e montona e transformou-o em rpida evoluo, cujos resultados, em poucos sculos, alteraram inteiramente o mundo humano. (Arendt, 2001, p. 56)
Arendt chama esta evoluo de crescimento artificial, por assim dizer, do
natural (Arendt, 2001, p. 57). E este artificial crescimento do natural que visto
geralmente como o aumento constante acelerado da produtividade do trabalho (Arendt,
2001, p. 57). Ora, esta produtividade que fascina Marx e toda a era moderna
caracterizada por Arendt como a incorporao, pelo animal laborans, de atributos do
homo faber, e por isso, segundo ela, que os tericos modernos confundem tanto estas
duas atividades.
Nada mais importante para Marx, entretanto, do que precisamente a
configurao da realidade do trabalho na sociedade capitalista, a qual Arendt se refere
ao falar de sociedade. Assim, longe de estar confuso quanto caracterizao da
Prometeus Filosofia em Revista Ano 2 - no.4 Julho-Dezembro/2009 ISSN: 1807-304283
-
produtividade alcanada pelo modo de produo capitalista, por confundir trabalho e
fabricao, tal como Arendt o acusa, Marx desenvolve um complexo quadro conceitual
para analisar no somente as engrenagens da produo do capital, mas tambm, anlises
relativas motivao histrica desta realidade produtiva. Mostraremos em linhas gerais
o que Marx entende por trabalho na sociedade capitalista a fim de mostrar que, para ele,
longe de ter ocorrido uma incorporao por parte do animal laborans dos atributos do
homo faber, o que ocorreu foi um desenvolvimento complexo da organizao dos
processos de trabalho no interior da oposio trabalho capital acompanhado de um
desenvolvimento agudo das foras produtivas na histria, que ocasionou o trabalho
abstrato em geral nos moldes da sociedade capitalista. Vejamos.
Marx entende o trabalho em geral, mas mais especificamente da maneira como
configurado na sociedade capitalista, como criao de valor. Todo trabalho humano
dispndio de fora humana de trabalho e, nesse sentido, acrescenta algo ao material
sobre o qual opera, criando ento valor antes inexistente. Um valor-de-uso ou um bem
s possui, portanto, valor, porque nele est corporificado, materializado, trabalho
humano abstrato (Marx, 1980, p. 45). O produto do trabalho, para Marx, mais
especificamente a mercadoria, possui um duplo aspecto: tanto valor-de-uso, quanto
valor-de-troca. Isso significa que o produto final do trabalho, a mercadoria, serve tanto
para ser utilizada, quanto para ser trocada. Na sociedade capitalista, como em nenhuma
outra sociedade anterior a ela, o que ocorre massivamente a produo de mercadorias.
Assim, os produtos do trabalho so fundamentalmente destinados a serem trocados,
vendidos.
Do mesmo modo que a mercadoria possui esse duplo aspecto, o trabalho, criador
de valor, tambm o possui. O trabalho pode ser considerado tanto simplesmente como
trabalho til, quanto como trabalho em geral, trabalho abstrato. O primeiro aquele que
diz respeito produo de um objeto especfico, possui qualidades especficas que
produzem um determinado valor-de-uso. O segundo aspecto do trabalho o trabalho tal
como constitudo na sociedade capitalista. Nesta, no importa o que se produz, o que
importa que se produz. Na sociedade capitalista, a diviso do trabalho alcanou um
nvel to complexo de desenvolvimento que todo dispndio de fora de trabalho
considerado no em sua qualidade especfica de produtor de valor-de-uso, mas em sua
qualidade social, como dispndio de fora humana, como fora simples de trabalho.
Prometeus Filosofia em Revista Ano 2 - no.4 Julho-Dezembro/2009 ISSN: 1807-304284
-
H estgios sociais em que a mesma pessoa, alternativamente, costura e tece, em que esses dois tipos diferentes de trabalho so apenas modalidades do trabalho do mesmo indivduo e no ofcios especiais, fixos, de indivduos diversos, do mesmo modo que o casaco feito, hoje, por nosso alfaiate, e as calas, que far amanh, no passam de variaes do mesmo trabalho individual. Verifica-se, a uma simples inspeo, que, em nossa sociedade capitalista, se fornece uma poro dada de trabalho humano, ora sob a forma do ofcio do alfaiate, ora sob a forma do ofcio do tecelo, conforme as flutuaes da procura de trabalho. possvel que esta variao na forma do trabalho no se realize sem atritos, mas tem de efetivar-se. Pondo-se de lado o desgnio da atividade produtiva e, em conseqncia, o carter til do trabalho, resta-lhe apenas ser um dispndio de fora humana de trabalho. O trabalho do alfaiate e do tecelo, embora atividades produtivas qualitativamente diferentes, so ambos dispndio humano produtivo de crebro, msculos, nervos, mos, etc., e, desse modo, so ambos trabalho humano. So apenas duas formas diversas de despender foras de trabalho. Sem dvida, a prpria fora humana de trabalho tem de atingir certo desenvolvimento, para ser empregada em mltiplas formas. O valor da mercadoria, porm, representa trabalho humano simplesmente, dispndio de trabalho humano em geral (Marx, 1980, p. 51).
Para Marx, portanto, na sociedade capitalista o trabalho no considerado
em sua forma especfica e no interessa, desse modo, o que se produz, qual a qualidade
do produto. No modo de produo capitalista, que tem como princpio mximo de
organizao produtiva a produo do capital, toda a produo se efetua em vista da
fabricao de valores-de-troca, assim o trabalho humano no mais considerado em seu
aspecto til de produo de valores-de-uso, mas sim em seu aspecto abstrato, como
dispndio social mdio de fora de trabalho.
Alm disso, o processo de trabalho para Marx, independentemente do que se
produz, um processo que envolve, a despeito de este trabalho estar inserido no
contexto das comunidades eslavas, por exemplo, ou no contexto do modo de produo
feudal: (1) a atividade adequada a um fim, isto , o prprio trabalho, (2) a matria a que
se aplica o trabalho, o objeto de trabalho e (3) os meios de trabalho, o instrumental de
trabalho. (Cf. Marx, 1980, p. 202). Estes trs critrios so caractersticos de todo e
qualquer processo produtivo. A produo de alimentos, ou de vida, tal como fala
Hanna Arendt, no prescinde de modo algum de uma matria sobre a qual se aplica o
trabalho e tambm do instrumental de trabalho para oper-lo. E a afirmao de Arendt
de que os instrumentais de trabalho so frutos da atividade do homo faber (Cf. Arendt,
Prometeus Filosofia em Revista Ano 2 - no.4 Julho-Dezembro/2009 ISSN: 1807-304285
-
2001, p. 134), no contexto da obra marxiana equvoca, uma vez que para Marx os
diferentes produtos so frutos da diviso do trabalho no interior da sociedade, mesmo
que esta diviso seja simples como nas sociedades antigas e toda e qualquer atividade
produtiva opera com um instrumental adequado.
Por outro lado, o fato de na sociedade moderna o trabalho estar munido de uma
grande quantidade de foras produtivas no , para Marx, devido incorporao da
instrumentalidade do homo faber pelo animal laborans. O nvel de produtividade da
sociedade capitalista, nunca antes atingido, deve-se ao modo como se configuram as
relaes sociais de produo do capital. Nenhuma relao de explorao de quaisquer
modos de produo anterior ao capitalista induziu tanto a produo para a confeco de
valores-de-troca, influenciando desse modo a incorporao extremada de foras
produtivas e a explorao intensa da fora de trabalho de modo a gerar excedentes.
A acusao de Arendt de que Marx confunde os conceitos de trabalho e de
fabricao e de que define o homem como animal laborans e todo o processo de
trabalho como um processo eminentemente natural , como pudemos ver, uma acusao
errnea, que no considera importantes quesitos da obra marxiana inseridos no contexto
do propsito de Marx. Em nosso entender o que ocorre que Arendt, partindo de seus
pressupostos conceituais, confere interpretaes externas obra de Marx. A obra
marxiana, muito longe de estar envolvida com as discusses prprias a Arendt,
concentra-se em problemas, propsitos e mtodos de anlise radicalmente diferentes da
obra arendtiana. No foi nosso intuito aqui defender a veracidade do contedo das obras
de Marx ou de Arendt, mas to somente mostrar e esclarecer as crticas de Arendt, que
consideramos externas discusso prpria de Marx.
Referncias Bibliogrficas:
ARENDT, H. A Condio Humana. 10 edio. Rio de Janeiro: Forense Universitria,
2001.
____. Entre o Passado e o Futuro. 2 edio. So Paulo: Editora Perspectiva, 1979.
CALVET.T. A Atividade do trabalho em Hanna Arendt. Disponvel em <
http://www.eticaefilosofia.ufjf.br/9_1_theresa.pdf>. Acesso em 25\ 04\2008.
Prometeus Filosofia em Revista Ano 2 - no.4 Julho-Dezembro/2009 ISSN: 1807-304286
-
DUARTE. A. O Pensamento Sombra da Ruptura. Poltica e Filosofia em Hanna
Arendt. So Paulo: Paz e Terra, 2000.
POIZAT. J-C. Hanna Arendt, Une Introduction. Dpartemente dUnivers Poche\ La
Dcouverte, 2003.
MARX. K. A Ideologia Alem. So Paulo: Editora Centauro, 2002.
____. Formaes Econmicas Pr-Capitalistas. 6 edio. So Paulo: Paz e Terra,
1991.
____. Manifesto Comunista. 7 edio. So Paulo: Global Editora, 1988.
____. Manuscritos Econmico-Filosficos e outros textos escolhidos. Lisboa: Edies
70, 1975.
____. Marx e Engels. Lisboa: Edies Avante!, 1982.
____. Misria da Filosofia: Resposta Filosofia da Misria de Pierre Joseph
Proudhon. So Paulo: Grijalbo, 1976.
____. O Capital. Crtica da Economia Poltica. Volume I. 6 edio. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 1980.
____. Os Pensadores. 2 edio. So Paulo: Abril Cultural, 1983.
WAGNER, E. S. Hanna Arendt e Karl Marx o mundo do trabalho. 2 edio. So
Paulo: Ateli Cultural, 2002.
Prometeus Filosofia em Revista Ano 2 - no.4 Julho-Dezembro/2009 ISSN: 1807-304287