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ARENA CONTA ZUMBI de Boal e Guarnieri (e Edu Lobo) Iná Camargo Costa A primeira resposta teatral ao golpe militar de abril de 1964 aconteceu em dezembro do mesmo ano com o Show Opinião, em si mesmo um feito inesquecível, sobretudo se pensarmos no que tinham sido as experiências do nosso teatro épico no Arena e no CPC. Escrito, como as peças do CPC, por um coletivo de autores – primeiro dado relevante –, o espetáculo conta inúmeras histórias ao mesmo tempo, usando como recurso narrativo fundamental a música popular, ao mesmo tempo sujeito e objeto dos relatos. Não obstante as suas inúmeras qualidades, o Show Opinão registra o primeiro recuo do nosso teatro político, entre outras razões porque não incorpora, como dado essencial à sua existência e por isso a explica, o próprio golpe de 1964. Ao contrário, tudo ali se passa como se aquele desastre histórico não tivesse acontecido e ainda mais grave: o espetáculo e o novo grupo se apresentam como um passo à frente. Pior ainda: esta autoimagem já é o primeiro capítulo da autocrítica dos artistas de esquerda na qual Vianinha e seus companheiros do Grupo Opinão começam a desqualificar a experiência anterior. Foram poucos os artistas do período 1958-1964 que não renegaram suas atividades revolucionárias, dentre os quais cabe o maior destaque a Augusto Boal, que dirigiu aquele espetáculo. Com outras características, outras conquistas estéticas e os mesmos problemas agravados, Arena conta Zumbi, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, encenada em 1965, dá mais um passo (atrás). Simplificando bastante o argumento, diríamos que o passo em falso do Arena não foi de maneira alguma escolher como assunto a história de Palmares, o mais importante movimento de resistência à escravidão da nossa história. Nem muito menos foi ter confrontado os relatos lendários, produzidos por negros como João Felício dos Santos, aos documentos históricos coligidos por Edison Carneiro 1 . O passo em falso consiste em identificar uma luta de resistência armada, rica em estratégias de ataque, defesa e mesmo retaliação, que durou cerca de cem anos, a um movimento mal esboçado no pré-64 e, por assim dizer, inexistente depois do golpe. Produziu-se, por isso, uma flagrante contradição entre o entusiasmo e a identificação com que foi recebido o espetáculo e a verdade histórica, tanto a colonial como a então recente, na medida em que, pela identificação, a epopeia negra sai injustamente diminuída. Isso do ponto de vista do assunto, pois do ponto de vista da forma como se contou a história, percebe-se de maneira ainda mais clara o modo como Boal e Guarnieri estão abandonando algumas conquistas do teatro épico. O princípio geral da peça é épico, mas ela distribui os recursos disponíveis segundo um critério político-formal muito problemático: os inimigos (portugueses, autoridades, etc.) recebem sempre tratamento épico e os “precursores dos revolucionários” (os quilombolas) ora tratamento épico e ora dramático. Aqui reside o estrago, justificado subjetivamente pelos dramaturgos pela necessidade de produzir empatia entre estes últimos e o público. 1 . O livro de João Felício dos Santos chama-se Ganga Zumba e o de Edison Carneiro O Quilombo dos Palmares. Ambos foram consultados pelos dramaturgos e forneceram os mais importantes materiais da peça. Um dos feitos de Arena conta Zumbi é justamente o ser uma peça teatral com bibliografia.

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Page 1: ARENA CONTA ZUMBI de Boal e Guarnieri (e Edu Lobo) · PDF fileARENA CONTA ZUMBI de Boal e Guarnieri (e Edu Lobo) Iná Camargo Costa A primeira resposta teatral ao golpe militar de

ARENA CONTA ZUMBI

de Boal e Guarnieri (e Edu Lobo)

Iná Camargo Costa

A primeira resposta teatral ao golpe militar de abril de 1964 aconteceu em dezembro

do mesmo ano com o Show Opinião, em si mesmo um feito inesquecível, sobretudo se

pensarmos no que tinham sido as experiências do nosso teatro épico no Arena e no CPC.

Escrito, como as peças do CPC, por um coletivo de autores – primeiro dado relevante –, o

espetáculo conta inúmeras histórias ao mesmo tempo, usando como recurso narrativo

fundamental a música popular, ao mesmo tempo sujeito e objeto dos relatos. Não obstante

as suas inúmeras qualidades, o Show Opinão registra o primeiro recuo do nosso teatro

político, entre outras razões porque não incorpora, como dado essencial à sua existência e

por isso a explica, o próprio golpe de 1964. Ao contrário, tudo ali se passa como se aquele

desastre histórico não tivesse acontecido e ainda mais grave: o espetáculo e o novo grupo se

apresentam como um passo à frente. Pior ainda: esta autoimagem já é o primeiro capítulo

da autocrítica dos artistas de esquerda na qual Vianinha e seus companheiros do Grupo

Opinão começam a desqualificar a experiência anterior. Foram poucos os artistas do

período 1958-1964 que não renegaram suas atividades revolucionárias, dentre os quais

cabe o maior destaque a Augusto Boal, que dirigiu aquele espetáculo.

Com outras características, outras conquistas estéticas e os mesmos problemas

agravados, Arena conta Zumbi, de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, encenada em

1965, dá mais um passo (atrás). Simplificando bastante o argumento, diríamos que o passo

em falso do Arena não foi de maneira alguma escolher como assunto a história de

Palmares, o mais importante movimento de resistência à escravidão da nossa história. Nem

muito menos foi ter confrontado os relatos lendários, produzidos por negros como João

Felício dos Santos, aos documentos históricos coligidos por Edison Carneiro1. O passo em

falso consiste em identificar uma luta de resistência armada, rica em estratégias de ataque,

defesa e mesmo retaliação, que durou cerca de cem anos, a um movimento mal esboçado

no pré-64 e, por assim dizer, inexistente depois do golpe. Produziu-se, por isso, uma

flagrante contradição entre o entusiasmo e a identificação com que foi recebido o

espetáculo e a verdade histórica, tanto a colonial como a então recente, na medida em que,

pela identificação, a epopeia negra sai injustamente diminuída. Isso do ponto de vista do

assunto, pois do ponto de vista da forma como se contou a história, percebe-se de maneira

ainda mais clara o modo como Boal e Guarnieri estão abandonando algumas conquistas do

teatro épico. O princípio geral da peça é épico, mas ela distribui os recursos disponíveis

segundo um critério político-formal muito problemático: os inimigos (portugueses,

autoridades, etc.) recebem sempre tratamento épico e os “precursores dos revolucionários”

(os quilombolas) ora tratamento épico e ora dramático. Aqui reside o estrago, justificado

subjetivamente pelos dramaturgos pela necessidade de produzir empatia entre estes últimos

e o público.

1. O livro de João Felício dos Santos chama-se Ganga Zumba e o de Edison Carneiro O Quilombo dos

Palmares. Ambos foram consultados pelos dramaturgos e forneceram os mais importantes materiais da peça.

Um dos feitos de Arena conta Zumbi é justamente o ser uma peça teatral com bibliografia.

Page 2: ARENA CONTA ZUMBI de Boal e Guarnieri (e Edu Lobo) · PDF fileARENA CONTA ZUMBI de Boal e Guarnieri (e Edu Lobo) Iná Camargo Costa A primeira resposta teatral ao golpe militar de

Mas como a dialética dos processos culturais obriga a registrar também os avanços

em meio aos recuos, é preciso referir o passo adiante que Arena conta Zumbi configura no

âmbito do teatro que recuou para o campo convencional: esta peça incorpora importantes

recursos do agitprop. Talvez a operação mais interessante seja a síntese entre o teatro

documentário e o teatro de pesquisa histórica. Em poucas palavras, Boal e Guarnieri

aproveitaram inúmeros materiais do noticiário (como declarações dos generais) e os

transformaram em textos dos personagens históricos. Esta operação, imediatamente

identificada pelo público da época, produzia efeitos críticos do maior interesse, pois

indicava que, do ponto de vista do Arena, certas convicções – como a de que em nosso país

o exército tem função de polícia, pois sua prioridade é combater o inimigo interno – datam

dos inícios da colonização.

Para encerrar esta nota, cabe lembrar que o avanço mais importante deste

experimento foi a realização do espetáculo musical que Boal já queria fazer com o material

do Show Opinião: a música de Edu Lobo literalmente deu o compasso para Arena conta

Zumbi e sua partitura foi rigorosamente interpretada por Boal, Guarnieri e elenco.