arcadas (1 - 2016)

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Ano 5 Número 7 Maio de 2016. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Também Texto inédito de Plínio de Arruda Sampaio, a volta do teatro na Sanfran, o passivo deixado pela gestão passada, entrevista com Guilherme Boulos e muito mais. História André Eler escreve sobre o papel dos franciscanos na manutenção da legalidade e nos golpes desde o início da república. Pp. 8, 9 e 10. Pedaladas Rafael Bianchini analisa e explica a motivação do atual pedido de impeachment, as pedaladas fiscais do governo Dilma. Pp. 6 e 7 Golpe? Pedro Vormittag e João Falcão Dias discutem no Contraditório se o atual pedido de impeachment é golpe. P. 3 Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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7ª edição

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Page 1: Arcadas (1 - 2016)

Ano 5Número 7

Maio de 2016. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

TambémTexto inédito de Plínio de Arruda

Sampaio, a volta do teatro na Sanfran, o passivo deixado pela gestão passada, entrevista com

Guilherme Boulos e muito mais.

HistóriaAndré Eler escreve sobre o papel dos franciscanos na manutenção

da legalidade e nos golpes desde o início da república.

Pp. 8, 9 e 10.

PedaladasRafael Bianchini analisa e explica

a motivação do atual pedido de impeachment, as pedaladas fiscais

do governo Dilma.Pp. 6 e 7

Golpe?Pedro Vormittag e João Falcão

Dias discutem no Contraditório se o atual pedido de impeachment é

golpe.P. 3

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Page 2: Arcadas (1 - 2016)

2 Maio/2016

Professor Orientador: Samuel Rodrigues BarbosaEditor-Chefe: Tomás FernandesEditora-Chefe: Vitória OliveiraEditor-Chefe do portal: André BalboConselheiro: Artur Péricles Lima MonteiroEditores: André Eler, Caio Augusto Delfino Rezende, Carolina Bianchini, Gabriel Santa Rosa Cavaresi, Giovanna Dutra Valentim, Julia Molina Rodrigues, Juliana de Oliveira Serra Hortencio, Thais de Lima Dantas e Vitor Alves Cavalieri Revisores: Arthur Hussne Bernardo, Beatriz Liane e Giovanna Dutra ValentimRepórteres: Abrahan Lincoln Dorea Silva, Ana Carolina de Queiroz, André Ungaro Nogueira, Beatriz Villanova, Bruno Braga Fiaschetti, Bruno de Carvalho Silva, Carlos Galuban Neto, Felipe Jorge Ribes, Gabriel Beré Motta, Gabriel Di Franco Heitor, Igor Moreno Ferreira, Igor Tostes Fiorezzi, Isabella Bonafin Fernandes, João Vítor Pellegatti, Lucas Taulois Campos Asinelli, Marco Bardelli e Vivian Gomes de Souza Colaboradores: João Lyra Pessoa, Rafael Bianchini (nesta edição) e Steven Zakem ChinaColunistas: André Eler, Caio Henrique Dias Duarte, Fernando Quintanilha Namur, Heloisa Binquini Araújo, João Falcão Dias, Lucas de Oliveira Noleto, Luiz Renato de Oliveira Périco, Luisa Mozetic Plastino, Moyses Satoru Matsumoto, Pedro Francisco Moura VormittagDiagramadores: Luiza Fernandes Nunes Rehder do Amaral e Tomás FernandesIlustradoras: Luiza Fernandes Nunes Rehder do Amaral e Eloisa YangFotógrafos: Vinicius Caboatan dos Santos e Fabiana Jo Hyun Won

EditorialArtur Pericles*

Há cinco anos, era lançada a primeira edição de Arcadas. No começo, não éramos muitos e também não tínhamos uma

noção completa do que faríamos, mas compartilhávamos uma certeza: o Largo de São Francisco precisa de um jornal independente.Não é que antes não existissem publicações de estudantes. Elas existiam, mas oscilavam entre um compilado de artigos variados – sem compromisso editorial, nem produção jornalística –, e algo como um panfleto partidário do grupo que ocupava a diretoria do XI de Agosto – comprometido apenas com a disputa política do movimento estudantil.Para nós, o compromisso com a publicação era crucial para construir um verdadeiro espaço de discussão na Faculdade, que desse voz às mais diferentes opiniões das franciscanas e dos franciscanos. Num editorial que publicamos em 2013, Pedro Abramovay (turma 171) reinterpreta as tradições do Largo: “Qualquer grito que venha das Arcadas vai ser ouvido. Essa é a grande tradição franciscana: ter voz. E ter voz implica uma grande responsabilidade. Em uma democracia de tão poucas vozes como costuma ser a brasileira, ser ouvido e não falar é fugir à sua responsabilidade”.

Arcadas foi nossa resposta ao chamado de Abramovay.Naquela mesma edição de 2013, Cidade&Centro ouviu as críticas da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama sobre a violência da guarda municipal contra moradores de rua e questionou o então novo secretário municipal de segurança urbana a respeito. A editoria, que também discutiu as demandas por moradia dos habitantes de uma ocupação na rua Mauá (edição de 2012), representava nosso comprometimento editorial em promover a reflexão sobre o lugar em que a Faculdade se insere, um tópico muitas vezes negligenciado. Nas outras editorias, procuramos promover a pluralidade em debates que talvez não se fizessem de outra forma, a respeito, por exemplo, da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre união estável entre pessoas do mesmo sexo, em que ouvimos integrantes do Núcleo de Estudos Bíblicos (NEB) e do Grupo de Estudos sobre a Diversidade Sexual (GEDS), assim como os professores Elival da Silva Ramos e Virgílio Afonso da Silva (Política&Direito, junho de 2011).A criação do jornal também nos permitiu acompanhar de perto tópicos de interesse dos franciscanos muitas vezes esquecidos, como a reforma do prédio da biblioteca da Faculdade, que foi assunto de matérias em diversas edições. Nada disso teria sido possível sem nosso

compromisso com a independência do jornal e sem o respeito a todas as posições, com que construímos Arcadas. Só assim, também, fomos capazes de envolver nessa empreitada entidades como a Clínica de Direito Ambiental Paulo Nogueira Neto (CPANN), a Casa do Estudante, o Coletivo Dandara e Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama, que participaram de nosso Mural, e ainda reunir contribuições de gente como Antonio Magalhães Gomes Filho, Ada Pellegrini Grinover, Dalmo de Abreu Dallari, Eugenio Bucci, José Eduardo Faria, José Antonio Dias Toffoli e Sylvia Steiner – além das dezenas deprofessores, antigos alunos, funcionários e estudantes que ouvimos para nossas matérias. De tudo isso, fica a lição de que, com esforço e comprometimento, somos capazes de extrair o melhor que a comunidade franciscana tem a oferecer.Esta edição, 5 anos depois, é um capítulo novo na história desse projeto. Ver uma nova geração de estudantes com compromisso por um jornal independente no Largo realmente emociona. É a prova de que os atuais habitantes das Arcadas não fugirão à responsabilidade de que falava Pedro Abramovay.*Artur Péricles Lima Monteiro é conselheiro editoral do Arcadas e foi editor-chefe do Arcadas de 2011 a 2013.

Um capítulo novo

Tomás Silveira Fernandes*

Dificilmente existe uma frase tão batida sobre o papel da imprensa quanto aquela famosíssima de Millôr Fernandes:

“jornalismo é oposição, o resto é armazém de secos e molhados”. Porém, ela é muito repetida por uma boa razão. O aluno que já está na São Franciso há algum tempo deve entender muito bem o que Millôr queria dizer. As gestões do Centro Acadêmico XI de Agosto costumam entender que um jornal nada mais é do que um panfleto impresso em papel cinza e com mais páginas. Seu grande valor, além de servir na captação de patrocínios, é o de dar espaço para que o grupo possa dar sua opinião sobre diversos assuntos atuais - às vezes, nem isso -, sem apuração, nem sequer um fio condutor ou um projeto editorial, como se escrever em colunas tornasse, imediatamente, essa opinião qualificada e devesse ser lida pelos alunos.Arcadas surgiu em resposta a isso. Criado em 2011, depois que a gestão do finado Fórum da Esquerda acabou com o conselho editorial independente do, também extinto, Jornal do XI, a proposta era a de fazer um jornal feito

pelos alunos e para os alunos, seguindo de fato padrões jornalísticos e inspirado por jornais universitários de alta qualidade. Seu lema resume à proposta: “um jornal independente”.A equipe de hoje, claro, não é a mesma de 2011. Os membros mais antigos estão no Arcadas desde 2014, como eu mesmo. Apesar disso, mantemos a mesma promessa de fazer um jornal verdadeiramente dos alunos, composto de todo tipo de gente, independente de opinião e de pertecencer a um grupo ou outro. Um jornal crítico, sim, com a meta de manter o debate vivo nas arcadas, mas que segue padrões editorais, que tem um projeto e apura os fatos, e não um armazém de opiniões soltas. E também um jornal que traz um pouco de transparência em uma faculdade cheia de caixas pretas.A “oposição” de que falava Millôr, como lembrou esses dias o editor de Política & Direito André Eler, é oposição a tudo. Não só oposição ao governo, mas oposição à oposição, ao senso comum, ao establishment, às próprias convicções arraigadas do jornalista. Jornalismo é manter um pé atrás com tudo, até consigo mesmo. E isso só é possível com independência.Porém, isso não significa que o

Arcadas deva estar sozinho. Em 2012 e 2013 fizemos parcerias com o Centro Acadêmico XI de Agosto e com o jornal O Estado de S. Paulo para publicação da edição impressa e que nunca envolveram a produção jornalística ou a linha editorial do Arcadas, importante frisar. As parcerias serviram, na verdade, para aumentar a independência do jornal, ao tirar a necessidade de que a própria equipe fosse responsável por negociar patrocínios.É por isso que fomos atrás de um novo parceiro, quando sentimos mais uma vez que era necessário que o Arcadas voltasse ao seu meio original, o papel. Não queríamos qualquer parceiro, mas um que pudesse se usar do espaço de patrocinadores que um jornal oferece para gerar algum retorno social. E que entidade melhor para isso do que o DJ, com seu importantíssimo trabalho de assistência jurídica gratuita? Assim, concordamos em oferecer um espaço para os escritórios que ajudam o DJ a fazer o seu trabalho e mais uma página para que possam divulgar seu trabalho. Em troca, faremos o jornal independente de sempre.*Tomás Fernandes é o editor-chefe do Arcadas desde agosto de 2014.

Novo parceiro, mesma proposta

A impressão do Arcadas conta com a colaboração

do Departamento Jurídico XI de Agosto e de seus

parceiros.

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3Maio/2016

Patrocinadores do Departamento Jurídico XI de Agosto

Pedro Vormittag*

“Era impossível, até que se tornou inevitável”, assim será contada a história do

segundo impeachment do Brasil. A fa-mosa lição de Trotski sobre as revolu-ções poderia ser a epígrafe dos episódios do dia 17 de de abril, “season finale” de um drama meio House of Cards, meio Narcos. Não à toa, esses dias a Netflix anunciou que entregará a José Padilha o comando de uma nova série baseada na saga tupiniquim. Um dos poucos con-sensos da atual conjuntura é o de que a nossa crise daria um fantástico roteiro de cinema ou TV.Como em toda história, o enquadra-mento dado a cada personagem é o de-terminante das paixões que sentiremos ao longo da narrativa, e é justamente essa a batalha que se seguirá agora que já subiram os créditos do episódio de domingo. Para a arte, não existe enqua-dramento certo ou errado, e a crônica da nossa crise seria bela se fosse contada de maneira surrealista, realista, romântica, impressionista, barroca ou vanguardis-ta. Mas a nossa crise é, sobretudo, polí-tica, e a política é escrava dos fatos e dos seus contextos, dos números e da his-toriografia. Sejamos realistas, porque o PT será dadaísta.Eles problematizarão o “casting” da peça. Temer golpista. Cunha corrupto. Nisso, poderiam estar certos, não fos-sem eles os responsáveis pela alocação dos papéis, ainda na época dos testes, em 2014. Poderiam denunciar Temer como golpista, não o houvessem eleito junto com Dilma. Outros atores se ofere-ceram para o papel (Beto Albuquerque, Célia Sacramento, Aloysio Nunes, etc). Optou a direção pela trupe do PMDB de Michel Temer, Renan Calheiros, Ja-der Barbalho e, quem diria!, Eduardo Cunha, à época apenas coadjuvante.Eles lutarão para intitular o seriado como “Golpe”. Mas como afinar tal tí-tulo quando a cenografia dos vários epi-

sódios passou pelas Tribunas e pelas galerias de um Parlamento eleito, pelo mármore de uma Corte Constitucional e pelo asfalto das ruas? Só se optarmos, é claro, por assistir a um espetáculo surrealista. Eles nos acusarão de carrascos de um projeto popular de país. No melhor estilo expressionista, vão abusar de efeitos especiais, quer dizer, de conta-bilidade criativa, para provar: as peda-ladas fiscais foram feitas para garantir Bolsa-Família, Pronatec e Minha Casa, Minha Vida. Lá vamos nós, de novo - uma ideia na cabeça e um parecer do TCU na mão - provar que a pedalada foi é para a manutenção da Bolsa-Em-presário, dos créditos pai-pra-filho do BNDES, do velho e brega sistema roco-có de privilégios públicos. Em algum lugar, Spielberg está envaidecido e Edvard Munch está gritando.O que teremos na segun-da temporada? Ninguém sabe. Minha sugestão é que no primeiro episódio seja-mos levados ao passado, para alguns flashbacks. Em 1985, o PT votou con-tra Tancredo Neves. Em 1988, o PT recusou-se a homologar a Constituição Cidadã. Em 1994, lutou contra o Plano Real. Em 2002, o PT abafou a morte de Celso Daniel. Em 2005, engendrou o Mensalão e, em 2006, quebrou o si-gilo bancário do caseiro Francenildo Santos Costa.É no segundo episódio que o desafio mostra sua cara. Um novo governo, sem legitimidade eleitoral, será obri-gado a encarar mais de 10 milhões de desempregados, uma dívida pública rumo aos 70% do PIB (credores nacio-nais, dessa vez!) e 39 partidos políticos. O trailer nos mostra tempos sombrios, mas talvez a trama nos reserve a ascen-ção de um novo protagonista que, cada vez menos figurante, quebra a quarta parede e preenche o vácuo de legitimi-dade do que vem por aí: o povo.

Contraditório: ImpeachmentO inevitável De novo, não

João Falcão Dias*

O futuro do Brasil está se decidin-do nos momentos em que se de-senham estas palavras. Mais do

que uma mudança de comando em Bra-sília e a readequação política até 2018, o que estamos diante é do risco de, após um breve suspiro, a história nacional voltar a ser surpreendida com a violen-ta ruptura entre a vontade popular legi-timada nas urnas e os rumos adotados pelo sistema político.Repete-se tão fielmente a tragédia gol-pista brasileira que temos em Carlos Lacerda um bom narrador. Dilma não podia ser eleita em 2014; uma vez elei-ta, não haveria de tomar posse – e en-

tão surgiram os pedidos de recontagem de votos e audi-toria das urnas. Empossada, por fim, deveria ser impedida de governar – donde germi-naram as pautas-bombas, a novela-sem-fim de operações da imoralmente partidariza-

da Polícia Federal e os vários pedidos de impeachment da presidenta.É verdade que esta farsa golpista traz elementos novos, como uma oposi-ção tão degradada moral e intelectual-mente que se permite ser magistrada por alguém como Eduardo Cunha; um superpoderoso juiz de primeiro grau que, delinquentemente, viola garantias fundamentais diante de um Judiciário acovardado; e um governo popular que acreditou ser possível pactuar com a plu-tocracia, mesmo traindo o compromisso com os milhões de homens e mulheres que o sustentavam. Seja como for, estamos diante do mesmo fenômeno: grupos de poder se organi-zam e criam atalhos para se estabelecer no comando do Estado e então reorien-tá-lo de acordo com suas estratégias po-líticas, geopolíticas e econômicas. Em outras palavras, superar esta barreira que é a democracia e a soberania popu-lar.

Enfatize-se: o impeachment de Dilma Rousseff não é outra coisa senão um cri-minoso golpe orquestrado por forças an-tinacionais, antidemocráticas e antipo-pulares que atentam contra o presente e o futuro do Brasil. Dilma não cometeu crime que justifique seu afastamento, e quaisquer equívocos de que possa ser acusada possuem natureza unicamente política – a esses, aliás, a democracia já oferece remédio: eleições diretas e pe-riódicas!Mais do que liquidar uma presidenta ungida pela população, o impeachment visa dar posse a um vice que simboliza o rosto esticado do pior fisiologismo que conhecemos. Michel Temer conspirou tão vulgarmente pelo golpe que chegou a criar um programa de governo para si, a ultraliberal “Ponte para o Futuro”, que promete levar o desmantelamento do Estado brasileiro a patamares que nem FHC ousou.Ou seja, propõe-se empossar na Presi-dência alguém rejeitado pela sociedade para que ele aplique um programa de go-verno sobre o qual a população não teve chance de refletir. Brasileiros e brasilei-ras terão de engolir à força um futuro que jamais escolheram, o qual envolve a entrega das riquezas minerais brasilei-ras, a completa privatização do sistema financeiro, a cassação de direitos traba-lhistas e sociais conquistados ao longo de uma história de lutas e o brutal corte de investimentos em gente.Caso aprovado, o impeachment deixa-rá sequelas profundas em nossa vida social. O temeroso governo de Michel e sócios como Cunha e Serra já nasce sem qualquer compromisso com o regime democrático e com as aspirações reais da população brasileira.Não há alternativa senão acreditar na democracia e respeitar seu calendário, mesmo que suas contradições muitas vezes nos angustiem tanto. São os rumos do Brasil em jogo: qual país esta geração legará à história. O nosso povo não merece ser vítima des-se golpe. De novo, não.

*Pedro Vormittag e João Falcão Dias dividem a coluna Política Nacional

no portal online do Arcadas

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Tomás Silveira FernandesFernando Namur

Guilherme Boulos (34), membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e o seu mais

famoso líder, é o tipo de pessoa que dá gosto de ouvir em uma conversa. Lem-brado por seus discursos inflamados, pelo radicalismo de quem ainda acredita que o capitalismo deve acabar, por ser a ponta de lança de ocupações e protestos por moradia social – com grandes vitó-rias junto à prefeitura -, ele é mais do que isso.

Formado em filosofia pela Universi-dade de São Paulo (USP), especializado em psicanálise, professor e militante desde quando era do movimento estu-dantil, Boulos além dos discursos incen-diários possui uma retórica impecável e consegue explicar de forma clara e lógi-ca suas ideias e as defesas do movimento do qual faz parte. Mesmo quem não con-corda um milímetro com as pautas que ele defende teria que aceitar que pelo menos há um ponto no que é dito.

O jornal Arcadas teve oportuni-dade de no fim do ano passado ver esse Guilherme Boulos fora do megafone, quando ele esteve na Sanfran para dar uma palestra sobre a conjuntura polí-tica do país a convite do Coletivo Con-traponto. Ao final do evento, ele aceitou dar uma entrevista exclusiva para este jornal. Sentado em um banco no pátio do túmulo de Julius Frank, conversou

sobre sua trajetória, a possibilidade de uma revolução surgida no meio urbano, urbanismo e direito à cidade.Arcadas - Quando e por que você entrou para o Movimento dos Tra-balhadores Sem Teto (MTST)?Guilherme Boulos - Entrei no MTST em 2002, quando o MTST começou o ciclo de ocupações na re-gião metropolitana de São Paulo. Eu já ti-nha atuado no movi-mento estudantil por um tempo e tinha um interesse grande em conhecer e atuar em movimento popular e foi ali, na chegada do MTST, com mobi-lização muito inten-sa já naquela época - em 2001 fez uma ocupação gigantesca, que virou um bairro em Guarulhos com milhares de famílias -, que eu vi um potencial importante de luta social autêntica e mobilizada e co-mecei a me aproximar do movimento nesse período. Assim, num primeiro mo-mento, o que me aproximou do MTST não foi a pauta específica do movimento, mas foi ver nele um instrumento potente de construção de poder popular. A pau-ta que propiciou o MTST se transformar nisso, com a sua capacidade mobilizató-ria, é a pauta da moradia, da reforma ur-bana, do direito à cidade, mas para mim o que estava em jogo era fundamental-

mente uma capacidade de mobilizar mi-lhares de pessoas por direitos sociais e desde baixo.Arcadas - A maior parte das revo-luções socialistas saíram do meio rural. Será que nas cidades a luta de classes é mais suscetível ao con-trole das elites?

Boulos - Nem todas foram rurais. A Re-volução Russa foi eminentemente ope-rário-urbana; é cla-ro que a maioria da população russa era camponesa, mas a revolução eclodiu nas cidades. No mundo que nós vivemos hoje não dá pra se pensar em qualquer tipo de transformação social que não seja essen-cialmente urbana: a população mundial é cada vez mais urbana

e 85% dos brasileiros vivem em cidades. A cidade é, ao mesmo tempo, um espaço de maior dominação, onde ela se concen-tra e onde se concentra o poder econômi-co do capital, também é um espaço de re-sistência. A segregação urbana agregou os trabalhadores da mesma forma que fez a indústria, com a formação das peri-ferias urbanas. Despejou milhões de tra-balhadores em regiões com condições de vida precárias, com uma opressão poli-cial violenta e, com isso, criou condições para novos processos de luta. Se a cidade

é um espaço de dominação, ela também é um espaço que abre condições para li-bertação, para a organização popular.Arcadas - David Harvey diz, como você, que a luta pode nascer do meio urbano como reação a pro-cessos de maxificação do capitalis-mo, mas você acha que a urbaniza-ção em massa pode sufocar formas alternativas ao capitalismo?Boulos - Eu acho que esse tipo de cidade como é São Paulo é inviável. É uma ci-dade que não se sustenta. Cidades com essa dimensão, com esse grau de concen-tração, são absolutamente irracionais. Agora, pensando a luta política concre-ta, pensando hoje e não só o modelo de cidade, a urbanização também cria con-dições de luta e resistência. Ela tem um aspecto de sufocar essas lutas, mas tam-bém tem o aspecto de concentrar e gerar identidades coletivas e com isso gerar embriões de saída e de ruptura. A cidade é um espaço extremamente complexo, não é uma coisa unívoca: é o espaço da opressão e da libertação, os dois.Arcadas - O urbanista Anthony Ling escreve bastante, no site Caos Planejado, sobre o papel que o Es-tado teve no processo de periferi-zação brasileiro, que se veria, por exemplo, na formação de favelas por conta do controle de aluguéis já no governo Vargas. Você acredi-ta que há uma papel direto do Es-tado nesse sentido?Boulos - Com certeza há, mas eu acho que esse tema da lei do inquilinato do Vargas é muito mais controverso. É con-

Arcadas entrevista: Guilherme Boulos

Direito e Cidade. O professor e psicanalista que incendiou São Paulo nos últimos anos com a luta por moradia conversou com o Arcadas sobre urbanismo e outras questões urbanas.

“A segregação urbana agregou os trabalhadores

da mesma forma que fez a indústria, com a

formação das periferias urbanas. Despejou

milhões de trabalhadores em regiões com condições

de vida precárias, com uma opressão policial

violenta e, com isso, criou condições para novos

processos de luta.”

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5Maio/2016

troverso por quê? Se você só congela o valor dos aluguéis, sem outras medidas, o efeito é esse [de expulsar moradores], porque o proprietário não vai mais que-rer alugar, vai deixar o apartamento va-zio ou vender, e aí você diminui a ofer-ta e gera até um aumento do preço dos aluguéis pela redução dela. Agora, essa lei do inquilinato foi depois aprimora-da e ela deve ser aprimorada. A nossa defesa de uma lei do inquilinato não é apenas o congelamento de preço de aluguel, mas também impedimento de um imóvel ficar vazio por tal período e o estabelecimento de um limite máximo do número de imóveis que um cidadão possa ter. Essas são algumas medidas complementares para uma lei do inqui-linato que funcione de uma forma que não seja mais segregadora, mas no sen-tido de combater o mecanismo perverso que é o reajuste de aluguel. Deixar um tema unicamente dependente da lei de oferta e procura é transformar a cidade em uma máquina de criar sem-teto.Arcadas - Como lidar com o déficit habitacional?Boulos - Você não resolver o problema no Brasil construindo moradia; isso é es-sencial, é o ponto de partida que a gen-te tem que ter. Basta ver o Minha Casa Minha Vida, que construiu 2 milhões de moradias, sendo que hoje o déficit habi-tacional é maior do que era antes do pro-grama. Enxugou gelo, porque essa lógica de cidade que nós temos cria sem-tetos em uma velocidade maior do que qual-quer programa habitacional constrói novas casas, pois é uma lógica excluden-te: aumenta o aluguel, expulsa, despeja, compromete a vida do cara e transforma ele em sem-teto. O problema do déficit habitacional, para ser resolvido, passa por uma reforma urbana, por uma mu-dança de lógica de cidade. Não passa apenas por conquistas pontuais de mo-radia. Não é um problema quantitativo, é de lógica social, de lógica urbana. Essa disputa é a disputa contra a especulação imobiliária, contra o setor que detêm o controle econômico e político das cida-des.Arcadas - O que você acha do mo-delo de moradia social que temos? Desde o BNH (Banco Nacional de Habitação) foram construídas mo-radias populares para mais de 1 milhão de pessoas em São Paulo, mas o déficit continua. Não seria melhor uma política de aluguel social, como existe na maior parte das grandes cidades do mundo?Boulos - A política de locação social, que é uma política consagrada, de não identificar posse com propriedade, não identificar moradia com mercadoria, que implica entender moradia como um direito social, é muito importante. La-mentavelmente a lógica se estabeleceu no Brasil com o BNH, de forma politi-camente intencional da ditadura militar: eles diziam no texto base do BNH que a meta era transformar o trabalhador em proprietário para cicatrizar as feridas da pátria (lembrando que o BNH foi for-mado logo depois do golpe, com a lógica de integrar o trabalhador ao sistema) e essa ideia prevaleceu. Para o trabalha-dor, a casa se tornou uma poupança, então não dá para dizer “esse modelo

não funciona”. Dá para falar isso aqui, mas tem que convencer os russos, falar com os maiores interessados nessa his-tória, que acabaram aderindo a essa ló-gica da casa própria porque com ele eles têm uma poupança, uma garantia para momentos de crise. Agora, do ponto de vista urbano é muito mais defensável e é uma política que deve ser defendida. O MTST já defende em sua plataforma a política de locação social subsidiada. Ela é essencial.Arcadas - Você acha que existem outras lacunas legislativas além do aluguel? E o que pode ser feito para controlar essa especulação imobiliária para que ela não tenha esse efeito perverso?Boulos - Eu acho que em parte há lacu-nas legislativas e em parte há lacunas executivas. Nós temos uma legislação, o Estatuto das Cidades, que permitiria que as coisas estivessem melhores do que estão hoje. Não que seja uma legisla-ção ideal, mas o Es-tatuto da Cidade re-gulamenta a função social quando, por exemplo, estabelece que um imóvel ocioso em área de interesse social será notificado pelo poder público, que se depois de um ano da notificação não for feito nada passa a incidir IPTU progressivo e, de-pois de cinco anos de IPTU progressivo, ainda não for feito nada, permite a de-sapropriação. Isso já é lei, só que não é executada e essa é uma parte do proble-ma. A outra parte é que mesmo essa lei é frágil. Eu acho que faz falta no Brasil uma nova Lei de Terras que estabeleça, por exemplo, uma taxação sobre a espe-culação e a valorização imobiliária.Arcadas - Outra questão criticada por Ling é que os moradores de bairros residenciais costumam ter muita voz sobre a limitação de uso na região onde moram – como se vê hoje nos Jardins -, o que leva ao espraiamento urbano e periferiza-ção. O que você acha desses meca-nismos de controle de uso e de ver-ticalização? Boulos - É inevitável que no centro das cidades você tenha uma verticalização maior, porque ali você tem uma dispo-nibilidade de serviços públicos, priva-dos, urbanos e ofertas de emprego, o que evidentemente cria a maior demanda de moradia. Que você tenha esse grau de verticalização nos centros, é razoável. Não pela lógica do mercado imobiliá-rio, porque o mercado não pensa isso do ponto de vista de cidade - ele verticaliza onde der lucro, foda-se o que tem perto e o que não tem perto. Essa lógica precisa ser combatida. Essa lógica precisa ser ta-xada, precisa ser limitada, por exemplo você reduzir o coeficiente de aprovei-tamento e cobrar uma outorga onerosa importante para verticalizar mais. De algum modo, o Plano Diretor aprovado tem aspectos importantes nisso. Agora, no caso das famosas ZER [Zonas Estri-tamente Residenciais] - um Morumbi, um Jardins, um Pacaembu da vida - que

são bairros onde a não-verticalização é utilizada para manter privilégios, aí sim devemos estimulá-la. Nós precisamos combater esses privilégios: são bairros absolutamente centralizados, em regiões centralizadas, e não podem ser usufruí-dos, já que pela ZER o lote mínimo é gi-gantesco - um bairro onde só pode haver mansão.Arcadas - Como você avalia o go-verno Haddad?Boulos - Nós precisamos ver o gover-no Haddad sob dois prismas. Do ponto de vista comparativo, com as gestões anteriores, ele representa um avanço: implicou em maior diálogo com os mo-vimentos sociais, priorizou o transporte público e é um governo que enfrentou, seja pelo Plano Diretor ou por começar a notificar áreas ociosas, a especulação imobiliária descontrolada de São Pau-lo. São pontos positivos, que merecem ser reconhecidos. Agora, a gestão Had-

dad é conservadora em vários aspectos: manteve as O.S. (Or-ganizações Sociais) [organizações priva-das que gerem hos-pitais e clínicas] na saúde, não investiu forte nas periferias para ampliação de serviços públicos, perdeu a oportunida-de de rever contratos e fazer uma nova li-

citação de empresas de ônibus, de fazer uma auditoria muito mais pesada em relação às contas dessas máfias que con-trolam o transporte urbano e manteve uma parceria ruim com o setor da cons-trução no âmbito da provisão de mora-dias e do mercado imobiliário privado. É uma gestão que apresenta avanços em relação às anteriores, mas também com uma série de limites e contradições que precisam ser apontados.Arcadas - O que acha do projeto do Alckmin e do Haddad de constru-ção de moradias no Centro?Boulos - Eu acho que o projeto na sua forma final é muito ruim. É óbvio que a lógica de construir em imóveis públicos ociosos no centro é uma defesa histórica dos movimentos populares, mas o pro-blema é que estão fazendo isso via par-cerias público-privadas. Como é parceria público-privada tem que dar lucro e para dar lucro tem que ser Faixa 2, Faixa 3 [de renda, voltados à classe média baixa], que não estão atendendo o déficit habita-cional de quem mais precisa. Opa, então pode fazer moradia no centro, mas não pode ser para pobre, tem que ser para a classe média. O porcentual de Faixa 1 [de menor renda] é algo como 10%, 20%. É ridículo.Arcadas - Você acha que as opera-ções urbanas têm sido aplicadas em um processo de valorização de terras e gentrificação?Boulos - É engraçado que quando a gente fala que o Estatuto das Cidades fi-cou engavetado, na verdade não é bem assim, pois as operações urbanas, que foi a parte que interessou ao mercado imobiliário, têm sido aplicadas siste-maticamente. E nesse sentido que você colocou, no sentido de gentrificação, de

construir parcerias público-privadas. O que era a Nova Luz, por exemplo? Era uma operação perversa de gentrificação. Articulado com proprietários da região, a ideia era criar ali uma “revitalização” da Luz com o objetivo claro de valori-zação imobiliária, de criar um grande ambiente de negócios, como está sendo aplicado, em outra proporção, no Porto Maravilha do Rio de Janeiro. Essas ope-rações têm sido marcadas por uma pro-miscuidade entre público e privado - em geral elas são conduzidas por empresas, como a Odebrecht no Porto Maravilha - e também por interesses segregatórios. São associadas a remoções, despejos, expulsão, valorização imobiliária... Esse é o tom das operações urbanas que têm sido aplicadas nas cidades brasileiras.Arcadas - Por que você acha que Haddad tem uma avaliação ruim?Boulos - Aí é outro problema. Embora, claro, tenha a ver com questões do seu governo, tem a ver mais com a conjuntu-ra política e com o que São Paulo é nes-sa conjuntura política e ideológica. São Paulo, da mesma forma que foi quase que o berço do PT, hoje é o túmulo do PT. O antipetismo é muito forte aqui, vide o que estão sendo essas manifestações, e qualquer prefeito que fosse do PT, fos-se o Haddad ou qualquer outro, estaria nessa conjuntura mal avaliado em São Paulo.Arcadas - Por que São Paulo se tor-nou esse reduto antipetista?Boulos - Olha, cara, São Paulo histori-camente foi marcada por posições he-gemonicamente de direita. Onde foi a maior votação do Collor em 1989? Col-lor ganhou as eleições em São Paulo. As votações proporcionais do Lula e do PT, mesmo em 2002, naquela situação, sempre foram menores em São Paulo do que na média nacional. PSDB governa São Paulo há vinte e tantos anos. São Paulo é uma coisa complexa; dizer que é apenas isso é um erro, porque também foi o berço do PT, ocorreram grandes greves, ocorreram grandes mobiliza-ções, foi o berço de grandes movimentos sociais do país, como o próprio MTST. É uma realidade muito contraditória, mas historicamente, do ponto de vista eleitoral, tem setores médios em São Paulo que demarcaram e fortaleceram há muito tempo um posicionamento de direita e acabaram protagonizando esse antipetismo.Arcadas - Como você avalia a atua-ção do judiciário quanto ao direito à cidade?Boulos - Dos três poderes, o judiciário é o mais impermeável à influência po-pular. Não há nenhum grau de controle efetivo social sobre o judiciário brasilei-ro. No caso das reintegrações de posse, a experiência que eu tenho, acompa-nhando inúmeros processos do MTST, é que é uma coisa quase automática dar a reintegração - às vezes não precisa nem comprovar a propriedade, quanto menos a posse -, com raras e honrosas exceções. Evidentemente, o papel cumprido pelo judiciário no caso dos despejos, dos con-flitos fundiários é extremamente negati-vo. É um papel bastante seletivo no tema da propriedade. Ao direito à propriedade tudo, à função social nada. É uma leitura de classes que está posta.

“O papel cumprido pelo judiciário no

caso dos despejos, dos conflitos fundiários é

extremamente negativo. É um papel bastante seletivo no tema da

propriedade: ao direito à propriedade tudo, à função social, nada.”

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6 Maio/2016

Rafael Bianchini*infográficos por Luiza Rehder

Um dos fundamentos para o pedido de impedimen-to da presidenta da Re-pública são as chamadas “pedaladas” fiscais, expe-

dientes utilizados para inflar o resulta-do primário do setor público, facilitan-do o atingimento de metas fiscais, por meio do atraso de repasse de recursos do Tesouro Nacional (TN), basicamen-te sobre os saques de programas sociais e subsídios creditícios. O processo de impeachment está sendo feito sobre as contas de 2015, quando não houve pe-daladas fiscais, mas o seu pagamento. As pedaladas foram feitas no mandato anterior da presidenta Dilma, com mais intensidade em 2013 e 2014. O motivo parece ser o entendimento de diversos juristas de que não seria possível im-peachment sobre atos do governo an-terior – posição que eu discordo. De qualquer forma, primeiro vamos enten-der melhor como funcionam os paga-menos de programas sociais e subsídios e como foram feitas as pedaladas.

No caso de programas como o Bolsa Família, Abono Salarial e Seguro De-semprego, pagos pela Caixa Econômica Federal, é impossível saber de antemão os valores que serão sacados a cada dia, já que eles beneficiam milhões de pessoas. Por essa razão, o Tesouro Na-cional transfere para a Caixa um valor estimado de quanto seria sacado. Se as transferências forem superiores aos saques, a Caixa remunera o Tesouro pelos juros do saldo remanescente. Se as transferências forem inferiores aos saques, o Tesouro paga pelos juros in-

cidentes sobre o saldo negativo. A existência de saldos negativos

está prevista nos contratos firmados entre a União e a Caixa. Para que as contas relativas a esses programas nunca fiquem negativas, seria necessá-rio que o Tesouro depositasse valores consideravelmente superiores à mé-dia de saques, o que tornaria a gestão de caixa ineficiente. Por essa razão, o Tesouro deve cobrir eventuais saldos negativos e avaliar a necessidade de aumentar os valores depositados nos meses seguintes. Em situações nor-mais, valores negativos assemelham-se às despesas liquidadas e não pagas, o que é admitido pela Lei nº 4.320/64. Em excelente análise sobre o assunto, Sérgio Spagnuolo e Tai Nalon demons-tram que, nos 204 meses compreen-didos entre 1994 e 2010, houve saldo negativo em 8 (3,9%), com os três pre-sidentes que antecederam Dilma Rous-seff. Já no primeiro governo Dilma, os saldos negativos não apenas foram mais frequentes, mas também maio-res: entre julho de 2013 e setembro de 2014, apenas em janeiro de 2014 não houve saldo negativo. Além disso, to-dos os meses em que o saldo negativo conjunto ultrapassou a marca de R$ 0,5 bilhão estão compreendidos neste período. Entendo que essa é a questão central: saldos negativos não necessa-riamente configuram pedaladas, mas saldos negativos sistemáticos, eleva-dos e que poderiam ser previstos de antemão certamente são irregulares. A partir de um certo ponto, o que é lícito e previsto em contrato pode tornar-se uma operação de crédito entre a União e um banco por ela controlado, o que seria vedado pelo art. 34, caput, da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Por

essa razão, discordo tanto daqueles que rejeitam de antemão a qualificação de saldos negativos com operações de cré-dito, quanto de quem defende a ideia que todo saldo negativo seria uma ope-ração de crédito.

De janeiro a outubro de 2015, Sérgio Spagnuolo e Tai Nalon identificaram saldo negativo apenas em março (R$ 12,2 milhões), acarretado por insufi-ciência na conta do seguro desemprego (R$ 44,5 milhões) não compensada por saldos positivos nas contas do Bolsa Família e Abono Salarial. O saldo nega-tivo, além de relativamente baixo, não ocorreu nos meses seguintes. Ademais, no primeiro semestre de 2015 houve ex-pressivo aumento do desemprego, que superou as expectativas de mercado. Certamente isso resultou em despesas com seguro desemprego acima do es-perado.

Resumindo, no que diz respeito às pedaladas sobre programas sociais, não tenho dúvidas de que as irregulari-dades ocorreram em 2013 e 2014, mas refuto as acusações de que este tipo de pedalada teria ocorrido em 2015. Cabe ressaltar que, a partir do Decre-to 8.535/2015, em contratos firmados entre a União e instituições financeiras, estão vedadas cláusulas que permitam insuficiência financeira por mais de 5 dias úteis, o que tem efeito prático de criar um conceito objetivo para “peda-ladas”. Trata-se simultaneamente de uma confissão que as pedaladas existi-ram e uma positivação do limite a par-tir do qual saldos negativos tornam-se operações de crédito.

Quanto aos subsídios, os principais programas deste tipo são subvenções creditícias para produtores rurais fei-tas pelo Banco do Brasil, o Programa

de Sustentação ao Investimento ope-racionalizado pelo BNDES e o Minha Casa, Minha Vida, via FGTS. O cres-cimento dos subsídios creditícios foi um dos meios pelos quais se procurou estimular a economia desde a crise fi-nanceira de 2008. Neste caso, a con-cessão de crédito se dá com recursos do BB, BNDES e FGTS a taxas subsidiadas pelo Tesouro Nacional, que cobre a di-ferença entre o custo de captação dos recursos e a taxa de concessão do cré-dito. Ou seja, o Tesouro subsidia a dife-rença entre os juros cobrados por esses programas e o custo de captação rela-cionado a esses empréstimos. Como antes da crise de 2008 esses subsídios não tinham grande relevância, isso não atraía maior atenção. A divergência entre governo e Tribunal de Contas da União dizia respeito à forma de conta-bilização desses recursos e prazo para o Tesouro Nacional compensar o BB, BNDES e FGTS pelos subsídios.

No caso das operações com recursos do FGTS para o programa Minha Casa, Minha Vida, o TCU adotou o entendi-mento do Conselho Curador do FGTS, de que tais operações seriam operações de crédito e que, de acordo com o art. 3º da Lei 4.320/64, deveriam constar do orçamento. No caso do crédito sub-sidiado ofertado pelo BNDES, sucessi-vas portarias do Ministério da Fazenda adiaram o pagamento da compensação devida pelo Tesouro. O TCU entendeu que a União se utilizou do poder de ente controlador para obrigar o BNDES a aceitar a postergação do pagamento das compensações devidas e que isso violaria o disposto no art. 36 da LRF. Portanto, não se entra no mérito se tais intervenções foram boas ou ruins, mas se violaram dispositivos legais.

Pedaladas fiscais e ImpeachmentDireito e Economia. Rafael Bianchini explica como funcionaram as pedaladas fiscais feitas no primeiro governo de Dilma Roussef e analisa o pedido de impeachment.

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7Maio/2016

Quantificando as pedaladas

Embora sejam mais conhecidas, as “pedaladas” em programas sociais possuem valor significati-

vamente inferior que aquelas feitas sobre subsídios de crédito. Além de supostas ilegalidades encontradas pelo TCU, as “pedaladas” são um meio de se ocultar passivos do governo central e simular o atendimento de metas fiscais. Com rela-ção ao impacto na dívida pública, cabe mencionar que nem todo passivo do se-tor público é computado na dívida públi-ca divulgada mensalmente pelo Banco Central. Entre os passivos desconside-rados pelo banco, cabe destacar: preca-tórios vencidos e não pagos, despesas li-quidadas e não pagas e restos a pagar de exercícios anteriores. Como se observa no Gráfico 1, entre 2002 e 2010, os passi-vos referentes a programas sociais e sub-sídios não chegavam a 0,2% do PIB. A pouca relevância justificava a não inclu-são na dívida pública. O estoque cresceu continuamente de 2008 a 2014, chegan-do perto de R$ 60 bilhões e 1% do PIB, e, após regularização, o estoque ficou nulo no final de 2015. Embora seja uma prá-tica contábil reprovável, a quitação das pedaladas não explica 10% do aumento da dívida pública ocorrido em 2015, que aumentou de 57,2% do PIB em 2014 para 66,5% do PIB em 2015.

O efeito mais grave das pedaladas foi inflar os resultados primários do se-tor público, maquiando o cumprimento de metas fiscais. Além de contrariar os objetivos da LRF e da Lei 4.320/64, a imprecisão de estatísticas fiscais preju-dica a realização da política monetária, pois uma política fiscal expansiva pode ser vista como neutra ou até restritiva. Como se pode observar no Gráfico 2, até 2012 as pedaladas foram relativamente pequenas em relação ao saldo primário e, em quatro anos (2002, 2004, 2005 e 2006), o resultado primário foi maior que o divulgado. Por outro lado, em 2013 e 2014, observa-se aumento da impor-tância relativa das pedaladas no saldo primário (0,28% e 0,22% do PIB, respec-tivamente). Em 2015 ocorreu movimen-to oposto: 41% do déficit primário do ano passado se deve à quitação das pedaladas de anos anteriores.

O parecer prévio do TCU pela rejeição das contas de 2014.

Conforme demonstrado nos Gráficos

1 e 2, é verdade que práticas análogas às pedaladas ocorreram antes do governo Dilma Rousseff, mas essas irregularida-des adquiriram proporções significativas em 2013 e 2014. Ao avaliar as contas do executivo de 2013, o TCU não fez reco-mendações relativas aos saldos negati-vos de programas sociais e, no que diz respeito aos créditos concedidos pelo BNDES com subsídios do Tesouro Na-cional, o TCU limitou a recomendar maior transparência, proferindo parecer pela aprovação das contas com ressalvas. Posteriormente, o Congresso Nacional aprovou as contas de 2013. Por outro lado, em decorrência das pedaladas e de outras ressalvas, o plenário do TCU re-comendou, no início de 2015, a rejeição das contas do executivo de 2014. Cabe ressaltar que as contas de 2014 ainda não foram julgadas pelo Congresso Nacional.

Não é um problema que o TCU mude sua jurisprudência ao longo do tempo – isso acontece a todo mo-mento nos tribunais brasileiros. Em um país com o histórico brasileiro de descon-trole fiscal, é salutar maior rigor das Cortes de Contas. Como se pode observar no Grá-fico 3 (e no Gráfico 2), o volume de pedala-das de 2013 foi maior que o de 2014 e mes-mo assim o TCU reco-mendou a aprovação das contas de 2013. Qual o fundamento da mudança na jurispru-dência do TCU? O se-gundo ano consecuti-

vo de pedaladas em valor elevado? Seria o fato do volume de recursos devido pelo Tesouro ultrapassar um determinado patamar? Seria o conjunto das pedaladas com outras irregularidades? O TCU não deixou isso claro. Isso não passou des-percebido por Marcelo Neves e Ricardo Lodi Ribeiro, que chamam atenção para a falta de fundamentação da mudança de jurisprudência por parte do TCU. Ambos ressaltam que a virada jurisprudencial da Corte de Contas deveria produzir efei-tos apenas a partir de 2015.

Impeachment e pedaladas

Embora eu entenda que pedala-das fiscais possam caracterizar crime de responsabilidade e que

é possível impeachment em decorrên-cia de condutas do mandato anterior, o presidente da mesa da Câmara dos Deputados acatou o pedido de impea-chment apenas com relação a supos-tas irregularidades ocorridas em 2015. Ocorre que em 2015 não só não houve pedaladas, como os passivos de anos anteriores foram quitados (Gráficos 1 e 2). Mesmo se o critério utilizado por o acúmulo de passivos ao longo do ano, o estoque máximo de passivos não pagos não chega aos picos atingidos entre 2010 e 2014 (Gráfico 3). Portanto, não proce-de a acusação de que houve pedaladas em 2015. Embora o impeachment seja um julgamento essencialmente político, a fundamentação com base nas supostas

pedaladas de 2015 é frágil. Na prática, o pedido de impeachment em discus-são no Congresso Nacional diz respeito a atos praticados no mandato anterior, mantendo a aparência de dizer respeito a atos de 2015.

A melhor saída seria que as pedaladas fundamentassem as ações no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Por meio das pedaladas, Dilma e Temer ocultaram a precariedade das contas públicas em 2014. Já em 2014 sabia-se das pedaladas e Temer não manifestou discordâncias quanto à prática. O TSE deveria decidir se isso é suficiente para impugnar as elei-ções de 2014. Evidentemente, há o risco de efeito em cascata com governadores que também pedalaram, o que envolve-ria alguma análise de proporcionalidade e modulação de efeitos. O precedente também seria positivo, sinalizando que mascarar resultados fiscais em anos de eleições pode resultar em algo inócuo.

Independentemente de disso, cabe ao TCU aplicar sanções administrativas aos administradores responsáveis pelas pedaladas.

...*Rafael Bianchini é antigo

aluno da Faculdade de Direito da USP, economista e mestre pelo Departamento de Direito Comercial. Este texto foi originalmente publicado em seu blog (bianchiniblog.wordpress.com), onde se encontra a versão original, com as devidas fontes.

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8 Maio/2016

André ElerColaboraram Bruno Fiaschetti e

Lucas Asinelli

Quando Dilma Rousseff for afastada pelo Senado por causa do processo de impeachment, um antigo aluno da Faculdade de

Direito do Largo de São Francisco assumirá a cadeira da Presidência da República pela décima quarta vez. A crise política nacional não é sem precedentes – e tampouco o protagonismo que a Faculdade de Direito assumiu nesse processo.

Quando Dilma Rousseff foi diploma-da para assumir seu segundo mandato como presidente, uma velha trovinha conhecida das Arcadas se destacou em meio a toda solenidade do ato. “Onde mora a amizade/ onde mora a alegria/ no Largo de São Francisco/ na Velha Acade-mia”, declamou o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, o mais jovem minis-tro do Supremo Tribunal Federal e aluno da turma 159 da Faculdade de Direito da USP, José Antonio Dias Toffoli. Meio de brincadeira, meio a sério, como é típico do orgulho franciscano, Toffoli disse que,

no segundo turno da eleição para pre-sidente, ele ainda não sabia quem seria eleito, mas já sabia que o vice-presidente seria franciscano. Explicava: concorriam Michel Temer na chapa de Dilma, e Aloy-sio Nunes na chapa de Aécio Neves.

O lugar de pouco destaque, decora-tivo, como definiria meses depois o pró-prio Temer, parecia não ser apropriado para a Faculdade que elegera, no início da República, o primeiro presidente pelo voto direto, Prudente de Morais. Mas há dois grandes riscos envolvendo a São Francisco e a Presidência: 1) sendo fran-ciscano, eleger-se presidente e 2) sendo presidente, ter um franciscano na linha sucessória.

No momento em que as passeatas de 2015 contra a presidente Dil-ma Rousseff, o PT, a corrupção,

a incompetência e tudo o mais nasceram de forma espontânea – ou insuflada por novos atores políticos desconhecidos –, o Largo de São Francisco se viu a reboque da história, enquanto alguns professores ainda insistiam em louvar a vanguarda da Gloriosa Faculdade no cenário política brasileiro. Havia, é fato, no MBL, grande organizador das passeatas pelo impeach-ment, uma liderança franciscana. Renan

Santos ou Renan Haas, foi da turma 176 do Largo e é um dos grandes parceiros de Kim Kataguiri e Fernando Holiday no Movimento Brasil Livre. No movimento estudantil, Renan não logrou o mesmo êxito que na Avenida Paulista – ligado ao Movimento Resgate Arcadas, foi expulso do grupo. Ele seria liberal demais para os colegas.

Enquanto as ruas se enchiam de ca-misas da seleção de futebol, o professor Miguel Reale Jr. já tinha sido acionado por seu partido para dar pareceres sobre a melhor forma de apear Dilma do Pla-nalto. Mas a São Francisco só iria mes-mo às ruas e ao centro do cenário polí-tico nacional com a ascensão meteórica de Janaína Paschoal. Indignada contra tudo o que aí está, Janaína foi às ruas, discursou apaixonadamente em carro de som na Paulista lotada. E resolveu escre-ver ela própria o pedido de impeachment com a fundamentação jurídica que seria suficiente para iniciar o processo de im-pedimento de Dilma Rousseff na Câma-ra. O texto de Janaína, focava, a princí-pio, nas pedaldas fiscais, mas floreadas com brados de amor à pátria e exclama-ções como que feitas para serem gritadas na Tribuna Livre.

Para dar mais peso ao seu pedido, Ja-

naína entrou em contato com o também franciscano Hélio Bicudo, ex-petista, que chegou a vice-prefeito de São Paulo na chapa de Luiza Erundina, e advogado defensor de direitos humanos na ditadu-ra. Também se reuniu com Reale Jr., que encampou o pedido.

As ruas já clamavam pela saída ou pela continuidade de Dilma Rousseff. Franciscanos ligados ao PSDB, ao PT, ou a partido nenhum já se organizavam para engrossar passeatas saindo do Lar-go. Mas foi o pedido dos três antigos alu-nos que finalmente teve o efeito de trazer a polarização política para o Páteo.

De um lado e de outro, atos de ju-ristas foram organizados. Janaína Pas-choal, em entrevista ao Arcadas minimi-za o efeito desses atos, lembrando que o impeachment nasce de movimentos mais plurais, mas atenta à responsabili-dade dos alunos do Largo com a defesa do Direito. “Acredito que já seja hora de nos apegarmos menos aos títulos. Senti a necessidade de pedir o impeachment, saindo da manifestação de 16 de agosto. Percebi que, dentre aqueles milhares de cidadãos, eu tinha o instrumental de que os outros não dispunham. Apenas eu po-deria concretizar o sentimento que leva-ra todos à avenida Paulista. Ser Largo de

Uma disputa franciscanaPolítica & Direito. Na briga entre golpe e impeachment há um ponto em comum: franciscanos na vanguarda dos dois lados. E não é novidade.

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

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9Maio/2016

São Francisco não significa ser melhor, ou pior, que ninguém. Apenas nos con-fere alguns instrumentos a mais para defender a cidadania e lutar pela Cons-tituição Federal, que é muito boa”.

A iniciativa da professora de Direi-to Penal teve certamente, no entanto, o mérito de tragar o Largo para o centro do cenário de caos político. Nos últimos meses, por exemplo, ela, Reale e Bicu-do participaram de encontros organi-zados por outros antigos alunos, que se reúnem periodicamente no restaurante Santo Colomba, nos Jardins, reacen-dendo aquela chama de que das Arca-das sairiam as figuras que traçariam os rumos do país. Entre os convivas está o ex-ministro do Superior Tribunal Mili-tar Flávio Bierrenbach, da turma 133, que preside a Associação de Antigos Alunos da Faculdade, os ex-ministros Almino Affonso,da turma 122, José Gre-gori, da turma 123, e José Carlos Dias, da turma 132. No cardápio do almoço, sempre está a saída de Dilma Rousseff. Todo mundo busca dar sua contribuição jurídico-política para a crise.

A história dos franciscanos pica-dos pela mosca azul é uma his-tória de tragédias, golpes, re-

núncias e revoluções. Temer é só o mais novo capítulo dela. O próprio Prudente de Morais completou seu mandato dado pelo voto, mas teve, de fato, apoio de não mais que 1,8% da população do país. Cedeu a cadeira a outro franciscano, Campos Sales, que teve a legitimidade do apoio de 2% da população. O único outro presidente franciscano eleito que não teve grandes obstáculos em encer-rar mandato foi Venceslau Brás, que go-vernou de 1914 a 1918, e teve mais cerca de 3% do apoio da população.

Depois ainda vieram Washington Luís, que quase concluiu mandato e chegou a organizar eleições que consa-graram outro franciscano, Júlio Prestes. Mas Prestes nunca tomou posse, e Luís foi deposto pela Revolução de 30, um golpe militar comandado pelo segundo colocado nas eleições daquele ano.

Foi contra esse golpe-revolução que o movimento estudantil francisca-no teve seus dias de uma glória ainda alardeada, ao apoiar a dita Revolução Constitucionalista de 1932. Nunca mais a história do movimento estudantil se afastou de alinhar-se ora a movimentos que pregavam rupturas institucionais, ora àqueles que conclamavam o apego às leis, e não raro aos dois, ao mesmo tempo.

A oposição a Getúlio Vargas levou mais dois franciscanos à presidência. O primeiro, José Linhares, assumiu com a queda de Vargas, depois de 15 anos de poder. Ele era, então, presidente do STF, indicado pelo próprio Vargas, e foi convocado pelos generais militares a as-sumir o poder e chamar eleições gerais. Não seria o primeiro franciscano no STF que serviria, primeiro, aos interesses de quem o indicou e, depois, aos que o su-plantaram.

O segundo, Nereu Ramos, se tornou presidente devido a uma tentativa de golpe, seguida por um suicídio e duas deposições. Pressionado e não queren-do renunciar pela segunda vez Vargas se

matou em 1955. O vice, Café Filho, assu-miu e chamou eleições. Com a vitória de Juscelino Kubitschek, instaurou-se uma crise política. Café Filho foi afastado por doença, e Carlos Luz assumiu, tirando poder do general Henrique Lott, que pretendia garantir a posse de JK. Lott depôs, então, Luz e conduziu o fran-ciscano Nereu Ramos, presidente do Senado, ao governo. Ramos, que tinha apoiado a Revolução de 30, mas depois foi perseguido por Vargas e acabou por virar seu vice, garantiu ainda o impea-chment de Café Filho também em 1955. Assim, pôde ele mesmo passar a faixa para JK, de quem se tornou Ministro da Justiça. O franciscano foi ao mesmo tempo um golpista (contra Café Filho) e um defensor da legalidade (visto que garantia a efetividade do resultado da eleição).

Em 61, ascendeu ao poder o último franciscano eleito, Jânio Qua-dros, que havia sido diretor do XI

de Agosto junto com Ulysses Guimarães, durante a Era Vargas. Ele não concluiu o mandato, e a cadeira ficou vaga para ou-tro antigo aluno, que tinha lutado ao lado dos paulistas em 32 e não concluiu o cur-so sob as Arcadas, Ranieri Mazzilli. Ele foi sucedido por uma tentativa de golpe militar e um golpe legislativo, que insti-tuiu o presidencialismo parlamentarista, dando poder a Tancredo Neves, o avô do adversário de Dilma.

Ranieri Mazzilli assumiu outra vez em 1964, por ocasião da deposisção de João Goulart, fazendo a transição para o regime militar comandado por Castello Branco. O franciscano serviu a dois gol-pes-revoluções, mas foi levado a reboque de ambos.

Nos anos que antecederam o golpe mais famoso, as Arcadas, dirigidas por um artífice do regime militar, Alfredo Buzaid, gestavam ou viam nascer as lide-ranças que ainda haveriam de comandar os solavancos políticos em uma ponte para o futuro. Michel Temer foi um can-didato derrotado ao XI de Agosto, em 1962, enquanto José Serra, da Escola Po-litécnica, ascendia à União Estadual dos Estudantes. O partido de Temer, o Inde-pendente, era alinhado com a esquerda, enquanto o Comando de Caça aos Comu-nistas já ensaiava seus passos pelo Páteo.

Temer conseguiu alçar seu nome a uma candidatura à presidência do Di-retório Central dos Estudantes da USP. Serra, já comandando a UNE, dominada por progressistas de vários matizes, teve de convencê-lo a retirar sua candidatura em prol da unidade da esquerda. Retri-buiria o favor em 1997, ajudando Temer a ganhar a presidência da Câmara dos Deputados.

Aloysio Nunes, o outro franciscano citado por Toffoli, militava no PCB na dé-cada de 60. Ele chegou à presidência do XI de Agosto, que Temer não alcançou, e ainda estava na São Francisco quando a esquerda elegeu José Dirceu para a UEE, já no regime militar. Nesse tempo, já fa-zia incursões na luta armada ao lado de Carlos Marighella. Nunes, que defendeu com armas uma revolução na ditadura, passaria a ser um dos principais defen-sores de uma deposição que se pretende amparada pela Constituição

No regime militar, a São Francis-co se dividia entre a defesa da legalidade de Atos Institucio-

nais, assinados por Buzaid, e a defesa da Constituição, com destaque para o movimento capitaneado pelo professor Goffredo Telles da Silva Jr. a favor do Estado de Direito. Gofredo fez uma his-tórica defesa da Constituição na Tribuna Livre, em frente à faculdade – a mesma que seria usada quase 40 anos depois por Janaína Paschoal para bradar contra a República da Cobra.

Longe do Planalto, a São Francisco passou a disputar as ruas. Em 1984, a calçada do Largo em frente à Faculda-de, chamada Território Livre, se torna ponto de concentração para a marcha das Diretas Já. Então, era presidente do XI de Agosto Eugênio Bucci, marido de Maria Paula Dallari Bucci. Ele seria su-cedido por Fernando Haddad. Marcelo Semer é um dos estudantes que se enga-ja nas Diretas Já. Alguns desses nomes voltariam à cena política no Largo em 2016. Maria Paula e Semer seriam dois dos mais destacados defensores do go-verno no Salão Nobre, no Ato de Juristas pela Legalidade.

Em 1992, o XI de Agosto encampa um novo movimento das ruas, pedindo a destituição de Fernando Collor de Mel-lo, o primeiro presidente eleito por voto direto no Brasil desde Jânio Quadros. Nessa época, o movimento estudantil da USP e a UNE tinham uma hoje ini-maginável aliança entre PCdoB e PSDB. Quem presidia o XI de agosto era Marco Aurélio Martorelli. Uma das diretoras era Janaína Paschoal. Os alunos da São Francisco foram às ruas, ao lado dos co-munistas Lindbergh Farias e Orlando Silva, para derrubar Collor. Martorelli e Janaína voltariam a se reunir no Largo mais de vinte anos depois para lutar por um impeachment.

No dia 17 de março, os apoiadores de Dilma Rousseff conseguem marcar território no Largo. Eles

organizaram o Ato de Juristas pela Le-galidade e pela Democracia, com toda a pompa de um Salão Nobre lotado e com apoio de movimentos sociais. Iniciativa do coletivo Desenredo, o evento contou com o peso do professor Fábio Konder Comparato. Ele carregou no tom dramá-tico dos eventos por que estamos pas-sando. “Eu acho que o ato é importante porque abre as consciências para o peri-go que nós estamos em vias de enfrentar, que é justamente um retorno à situação que já vivemos no passado, e que condu-ziu à crimes contra a humanidade. Nós precisamos abrir os olhos, e eu acho que justamente partindo aqui da Faculdade de Direito, essa advertência terá boas consequências”, disse.

A gestão do XI de Agosto também apoiou timidamente o ato. Embora não tenha tomado frente no evento, o Centro Acadêmico se posicionou oficialmente contra o impeachment. Além de Compa-rato, Marcelo Semer, Maria Paula Dalla-ri Bucci, Pierpaollo Cruz Bottini, Gilber-to Bercovici, Sérgio Salomão Shecaira, Ana Elisa Bechara, Ari Marcelo Solon e Jorge Luiz Souto Maior estiveram pre-sentes ao ato.

A briga entre governistas e oposicio-

nistas, debaixo das Arcadas, passou a ser por quem tinha legitimidade para falar em nome do Direito. “Aqui é a Casa do Direito. Um ato que defende o Direito a gente não pode perder. Este é o nosso bastião, esta é a nossa casa, esta é a nossa causa”, defendeu Maria Paula.

Comparato quis mostrar que estar do lado de Dilma é estar do lado da manu-tenção das liberdades. “É preciso ter o mínimo de organização para lutar con-tra o golpe. As forças sociais e que lutam pela manutenção das liberdades, e pela preservação da dignidade humana, têm que se unir, independentemente do que fizeram no passado, e isto aqui é algo que se não for feito já, será tarde demais den-tro de pouco tempo”, disse, apontando para um cenário com uma dimensão his-tórica tão grande quanto outros momen-tos do passado. Marcelo Semer lembrou esse passado de luta pelas Diretas, para alfinetar o outro lado: “A gente vestia ca-miseta amarela para confrontar os mili-tares, não para tirar selfie com eles”.

No dia 4 de abril, centenas de pes-soas participaram do Ato dos Juristas em Defesa das Institui-

ções e pelo Impeachment. Sem a pompa do Salão Nobre. E até isso virou questão de disputa entre governistas e oposicio-nistas: “este movimento foi realizado no parlatório, que é o lugar apropriado e adequado para qualquer movimento popular como o nosso. Movimentos po-lítico partidários não podem ocorrer no salão nobre da faculdade”, disse a profes-sora Ada Pellegrini no ato.

Alunos independentes e ligados ao PSDB tomaram frente na organização do ato pró-impeachment, para se contra-porem aos defensores de Dilma. Camila Mesquita Lobo representou os alunos da graduação no parlatório. “Não fugire-mos da responsabilidade de escancarar a realidade, nunca houve e nunca have-rá nesse Território Livre uma voz que se imponha a discursar por todos nós”. Retomou, portanto, o valor histórico do Largo como Território Livre e do parla-tório como Tribuna Livre, para deslegi-timar o ato anterior como representante da Faculdade de Direito. E comprou a disputa pelo lado certo da história: “Hoje falamos: os estudantes não se omitirão sobre os graves crimes cometidos contra essa república, estaremos do lado certo da história – impeachment já!”, bradou.

Regidos pelo hino nacional, reprodu-zido ao início e ao fim do evento, e en-toando gritos de ordem contra o atual governo e a favor do impeachment da presidente Dilma, os presentes foram animados pela trinca de cavaleiros do impeachment, que assinaram o pedido levado à frente pela Câmara. Bicudo re-comendou “não se deixar intimidar pelos inimigos da democracia”.

Janaína fez o discurso mais apaixo-nado, que tomou o Brasil inteiro, sendo ridicularizado pelos gestos e gritos nem um pouco econômicos. “Nós não vamos deixar essa cobra continuar dominando as nossas mentes, as almas dos nossos jovens! Nós queremos libertar o nosso país do cativeiro de almas e mentes, não vamos abaixar a cabeça para essa gente que se acostumou com um discurso úni-co. Acabou a república da cobra!”.

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10 Maio/2016

Reale Júnior pediu honra aos depu-tados que analisariam o processo. “Hon-rem o seu mandato, não se vendam, e defendam o povo afastando a quadrilha que tomou conta do Brasil”, disse, an-tes de saber que os deputados teriam a alegria de dizer sim ao impeachment, 367 vezes, pela minha mulher, pelo meu neto, por Roraima, pelos maçons do Brasil, pela República de Curitiba, por Deus, pela família Quadrangular, mas nenhum deles pelo Largo de São Fran-cisco.

Na contagem de nomes, ao menos, o ato pelas instituições barrou o pela lega-lidade (se é que é possível ter um e não ter o outro). Os ex-ministros Eros Grau, Celso Lafer, os juristas Modesto Carva-lhosa, Haroldo Malheiros Duclerc Ver-çosa, Maurício Conti, Maria Sylvia di Pietro, Eunice de Jesus Prudente, Pau-lo Borba Casella, entre muitos outros, apoiaram o evento.

Nenhum franciscano teve, no entanto, a projeção estelar de Janaína Paschoal. A jovem pro-

fessora de Direito Penal nunca tinha aparecido tanto na TV. Nas marchas na Paulista, foi o discurso mais apaixo-nado. Não é incomum ver Hélio Bicudo sorridente ao seu lado, como se ouvir os brados de Janaína pelo impeachment e o fim do PT no poder lhe fosse um sopro de vivacidade. O fim da República da Co-bra se tornou o objetivo maior daqueles que louvam sua coragem em denunciar a presidente Dilma.

Janaína reforça o sentimento de que um franciscano é, antes de tudo, um guardião do país. “Quando o Brasil cor-re risco, alguém da Faculdade ressurge para defendê-lo. Foi isso que fizeram os antigos alunos Hélio, Miguel e Janaina. Levantamos em defesa da nossa nação”, disse em entrevista ao Arcadas.

Acredita que Michel Temer também pode estar ciente dessa sua obrigação. “Penso que, neste momento, ter um constitucionalista, ciente dos esforços de três antigos alunos do Largo será fun-damental. O Brasil precisa de união. Não temos que olhar para o que está ocorren-do com ufanismo, mas com senso de res-ponsabilidade”, diz a professora.

O Largo de São Francisco tem tudo para voltar à presidência nos próximos dias, depois de disputar protagonismo em meio à crise. Alguns nomes já são co-tados para o ministério. Como José Ser-ra, aquele que se aproximou de Temer na década de 60 para pedir que ele de-sistisse do DCE, em prol da unidade da esquerda. Ou Alexandre de Moraes, pro-fessor de Direito Constitucional, aven-tado para AGU. Substituiria o principal defensor de Dilma no impeachment, o pucano José Eduardo Cardozo, que riva-liza com os franciscanos Janaína, Bicu-do e Reale Jr., até agora. Mas a disputa por quem usa melhor o nome da São Francisco não se encerrará com a chega-da de Temer à presidência. Ela segue na história, para colocar uns do lado de Al-fredo Buzaid, outros de Goffredo Telles. Os dois lados, no entanto, possivelmente tentarão vender a ideia de que a histó-ria do Brasil é a história do Largo. A São Francisco quer ser vanguarda mesmo quando anda a reboque.

“Menina se pega para provocar”

Lesbofobia. O “território livre” do Largo São Francisco não é tão livre para mulheres lésbicas e bissexuais, como se vê em uma série de relatos enviados por mulheres ao Arcadas

Vitória OliveraSofia Saad Gonçalves

Ilustração por Eloisa Yang

Numa cervejada do come-ço do ano passado, Ca-rolina* foi avisada por um amigo que ela estava parecendo “atração de

circo”. Enquanto uma amiga e ela se beijavam, um grupo de homens havia se formado em volta delas; em rodinha, esses homens tiravam fotos, faziam co-mentários e as encaravam. “Tive vonta-de de desistir de ficar com ela e, desde então, parei de frequentar esses espa-ços”, contou Carolina ao Arcadas.

Não se trata de história incomum. O caso não é raro e tampouco exceção. Apesar de considerada ambiente nota-damente progressista, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco é frequentemente cenário de deploráveis abusos, desrespeitos e exposição da intimidade de mulheres lésbicas e bis-sexuais. Por essa razão, Arcadas pediu para que algumas mulheres contassem situações pelas quais passaram.

Carolina disse nunca ter sofrido tan-ta opressão quanto na Peruada do ano retrasado, ambiente já notoriamente conhecido por machismo e opressão contra todas as mulheres. Ainda no iní-cio do percurso da festa, quando estava ficando com uma garota, um homem as agarrou pela cintura e colocou a língua entre elas, “querendo fazer parte”. Ain-da na Peruada, Carolina e outra meni-na foram alvo de discurso machista e lesbofóbico de outro homem. “Ele dizia que o que estávamos fazendo era erra-do e nojento, o homem dizia que tinha que participar, se insinuando, fazendo gracinhas em volta de nós duas”, conta.

Já um dos casos que mais marcou Nathália ocorreu em uma cervejada de 2013. Ela e Beatriz, sua ex-namorada, estavam se beijando normalmente, perto das bandeiras, quando um sujei-to apareceu e tentou agarrar as duas. Elas se afastaram, mas perceberam que o estranho tinha três amigos, que falaram que um deles já havia tentado algo com Nathália e que eles tiraram fotos dela. “Um deles pegou o celular e começou a mostrar uma foto pra nós, provocando. Dois amigos meus foram falar com os caras, que falaram que não iam apagar a foto e que nem adiantava,

porque já tinham colocado em um gru-po da internet”.

Um caso mais recente é contado por Gabriela. Aconteceu numa festa do Po-rão da Faculdade - aclamado “território livre”. Lá, ela estava com a garota com quem saía e mais alguns amigos, numa rodinha, quando um homem começou a encará-las. Os olhares não foram o suficiente, e o sujeito se aproximou, as-sediando o casal física e verbalmente, chegando a dizer que faltava um ho-mem entre elas. Após várias tentativas de se esquivarem e inúmeros pedidos por respeito, as duas foram ao banhei-ro, mas o homem as seguiu, buscando agredi-las. “Eu estava paralisada de medo de sair do banheiro. Morrendo de vontade de pegar um táxi e simples-mente sumir de lá, sabe?, mas sem sa-ber se ele estava lá fora na rua e o que ia acontecer”.

O choque foi grande. Gabriela acre-ditava que na Sanfran estaria em um espaço seguro com pessoas compreen-sivas. Contudo a pior parte ainda es-tava por vir, quando foi culpabilizada e silenciada por seus colegas: “Mas, pera, você estava dançando muito per-to dela?”, “Vocês estavam se pegando provocativamente?”, “O que vocês fi-zeram, vocês ficaram olhando o cara?”, “Ah, isso acontece, é normal. Tem mui-

ta menina que se pega pra provocar; não tinha muito o que esperar”. Ainda que o agressor não fosse aluno da Fa-culdade, os autores dos comentários eram e fizeram uma agressão tão vio-lenta quanto.

Nathália também chama atenção para a existência de agressões vindas de pessoas próximas: “Já sofremos as-sédio verbal inclusive de caras que se diziam amigos e não lesbofóbicos”. Ela diz que, mesmo sabendo que Beatriz e ela estavam em um relacionamento monogâmico, esses homens insistiam para ficar com as duas, as quais, ao som de risos, eram chamadas de chatas por não cederem. “Tem um livro enorme de situações”, diz. Nathália e a ex-na-morada ainda foram alvo de agressões físicas nos Jogos Jurídicos do ano pas-sado, ocasião na qual Beatriz teve que ser levada ao hospital com diversos he-matomas e lesões musculares causadas por um estudante do Mackenzie.

Não somente pelo conteúdo ofen-sivo, relatos como esse chocam muito mais em razão de sua frequência e pelo fato de ainda serem recentes. “Acho que, às vezes, as pessoas na Sanfran relevam muito machismo e lesbofobia pela desculpa de que todo mundo é su-per liberal. Como se, só porque é fácil pros caras gays e bis, só porque é um ambiente muito positivo pra eles, fosse super fácil pras meninas lésbicas e bis. Concordo que há lugares muito piores, mas acho que parece que só porque é suave pra quem é gay, não tem mais homofobia”, reflete Gabriela. Muitas vezes, os estudantes – até os envolvi-dos em movimentos progressistas – não percebem o quanto a pauta lésbica tem a avançar na Faculdade.

...*todos os nomes nesta matéria são ficcionais, criados para preservar a identidade das mulheres que mandaram seus relatos ao Arcadas no ano passado.

“Eu estava paralisada

de medo de sair do

banheiro. Morrendo de

vontade de pegar um táxi

e simplesmente sumir de

lá, sabe?, mas sem saber

se ele estava lá fora na

rua e o que ia acontecer”

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11Maio/2016

Abraham Lincoln Dorea Silva

Se todos os atores, atrizes, direto-res, cenógrafos e dramaturgos de teatro que passaram pela Facul-

dade de Direito do Largo de São Fran-cisco, nos seus 189 anos de história, fossem elencados, essa matéria seria apenas uma longuíssima lista. Apenas dentre os mais conhecidos hoje, que passaram pelas Arcadas encontram-se nomes como José Celso Martinez Cor-rêa, Marcos Caruso, Caio Blat, Paulo Autran, Renato Borgui e Vida Amélia Guedes Alves.

Seria de se esperar, portanto, que houvesse na Faculdade um grupo de teatro tão antigo quanto a Academia de Letras, o Departamento Jurídico, o Cen-tro Acadêmico XI de Agosto, a Atlética ou mesmo o Coral. Mas não é o caso. A história dos grupos de teatro da Sanfran é êfemera e se perde nas brumas da sua vida centenária, como tantas outras coi-sas.

No ano passado, por exemplo, o Tea-tro do Largo – que ficou famoso com suas intervenções para “chocar” os alu-nos, no melhor estilo “happening” – foi extinto e, logo, depois, já havia um gru-po de alunos interessados em criar um novo grupo de teatro. O projeto, porém,

não conseguiu grande adesão, devido à ausência de acordo em relação às pro-postas artísticas.

E neste ano, mais uma tentativa. O atual grupo – conhecido como “Teatro da San Fran”, por enquanto - procurou evitar cometer os mesmos erros, ino-vando com algumas dinâmicas através de poesias e apresentações em cada en-contro. A ideia, segundo Sinuhe Cruz, membro do grupo, é de levar um poe-ma e declamar no encontro pra iniciar um tipo de integração artística. Segun-do ele, a declamação ajuda a quebrar o gelo e a timidez entre os membros, algo importante para a estruturação de qual-quer grupo de teatro.

A proposta é que os integrantes dis-cutam no primeiro semestre o projeto e sua finalidade artística. “A gente entende que um grupo de teatro precisa primeiro se consolidar enquanto grupo e estudar técnicas e experimentações artísticas em conjunto antes de solidificar um projeto como uma peça teatral”, explica Fernan-do Namur, um dos membros. Também não tiraram nenhum modelo de inter-venções artísticas: “Mas todos são autô-nomos e livres para proporem e realiza-rem intervenções a qualquer momento”, conta. Não há desacordo com as práticas artísticas do antigo grupo, mas a inten-

ção é a de afirmar sua identidade e deci-dir posteriormente como atuar.

Por enquanto o grupo não tem um CNPJ ou um professor que o tutele. Os integrantes começaram os encontros no Centro Cultural São Paulo, no entanto agora já conseguiram uma sala do Curso de Artes Cênicas da USP para usar en-quanto não recebem autorização e uma sala para atuar na Faculdade. Apesar de o Fundo do XI garantir uma parcela para o grupo de teatro dos alunos, eles ainda não sabem se irão recorrer ao repasse. “Ainda não contatamos o XI, mas buscar patrocínios não é algo que estamos prio-rizando agora” declara Namur.

Perdido pela internet, é possível encontrar um manifesto de lan-çamento da Árcadia Companhia,

de 2005, que diz: “O Arcádia Companhia de Teatro é o mais recente grupo teatral de uma sucessão de muitos outros que nos remetem à fundação da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo (...). Nos-sa existência se deve à continuidade de uma tradição de valorização do espírito humano por meio da arte, pelos muitos estudantes da Velha Academia que nos precederam”.

A continuidade, porém, não durou

muito. Em 2008, o drama na Faculdade já era tocado pelo Teatro do Largo, que receberia já naquele ano uma parcela de 0,4% dos repasses do Fundo do XI (entre 1000 e 1500 reais, consideran-do a média do Fundo) para sustentar suas atividades. O grupo ficou conhe-cido principalmente pelas intervenções artísticas na faculdade, no melhor es-tilo “happening”. Pode até ser que “o dinheiro compre até amor verdadeiro”, como dizia Nelson Rodrigues, mas apa-rentemente não compra estabilidade.

Gabriela Sikansi, ex-aluna da São Francisco e membro do Teatro do Largo entre 2013 e 2015, explica que o começo do fim começou com um desentendi-mento com um dos diretores, quando um estudante da ECA assumiu o papel. “Tentamos levar o grupo e parecia que ia dar certo: ele era estudante, mas mui-to bom diretor e trabalhava de maneira horizontal. Só que teve que se afastar por problemas pessoais”, conta. Com esta saída, tentou-se dar continuidade às atividades do grupo, mesmo sem um diretor, mas não durou muito tempo. “Tentamos levar o grupo por nós mes-mos, propondo novos projetos e exercí-cios, mas estávamos desgastados e não conseguimos engrenar, então desisti-mos”.

Teatro da Sanfran RenasceTeatro nas Arcadas. Nasce um novo grupo de teatro na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco

Júlia Molina

No final do ano passado, pou-co antes da troca da guarda no Centro Acadêmico XI de

Agosto, o Coletivo Canto Geral pu-blicou um relatório detalhado das finanças do XI durante sua gestão. Em um raro ato de transparência nas gestões do Centro Acadêmico, o do-cumento demonstrava que o grupo havia deixado para o próximo grupo R$ 160 mil reais de novas dívidas em um orçamento de pouco mais de R$ 500 mil. Na época a gestão alegou que o motivo de deixarem um pas-sivo tão grande era a situação finan-ceira estrutural do XI, assim como as escolhas políticas do grupo com o pagamento de funcionários como prioridade.

Porém, esses números rapida-mente subiram. A gestão financeira no segundo semestre foi bastante ne-bulosa, como admitem tanto a gestão atual, do Movimento Resgate Arca-das, quanto a do Canto Geral, já que a empresa de contabilidade rescindiu seu contrato e o XI só conseguiu con-

tratar outra em meados de outubro. Assim, uma nova dívida tributária estimada em R$ 59 mil se mostrou, meses depois, ser na verdade de mais de R$ 100 mil, por conta de juros e mora, segundo o que foi possível apu-rar até o momento.

Já a Peruada, que prometia ser o carro-chefe da gestão passada - pela proposta de zerar o seu déficit - , gerou um prejuízo também maior do que o anunciado. Na época, a empresa que organizou a festa havia se comprome-tido a cobrir parte dos prejuízos, des-de que o XI pagasse o resto. A gestão, porém, gastou uma reserva de R$ 20 mil para diminuir a dívida com a Casa dos Estudantes e a empresa deixou de cobrir com a sua parte, aumentando uma dívida de R$ 20 mil para R$ 34 mil. Ainda assim, o valor foi menor do que o costuma ser gasto na Peruada e o próprio Resgate considera que a mudança de empresa foi positiva.

“Durante nossa gestão sempre houve prioridade para o pagamento de salário dos funcionários do XI e do Centro de Idiomas”, explicou Ana Lídia Cavalli, ex-diretora do XI. Os te-soureiros Carlos Herculano e Beatriz

Rodrigues, do Resgate, confirmaram a informação e explicaram que essa tem sido uma prática rotineira das últimas gestões e inclusive é seguida hoje pela atual, mas que levam a um “caos fiscal”.

Os tesoureiros entendem que es-sas dívidas acabam ficando “escon-didas”, já que elas não são cobradas com urgência, incidindo juros e mora enquanto isso. Ou seja, são dívidas que não são cobradas no dia-a-dia pe-los próprios alunos e se somam a um montante que já ultrapassa R$ 1 mi-lhão, no caso dos tributos. Por outro lado, levam aos processos de execu-ção de que sofre o Centro Acadêmico periodicamente.

Segundo Ana Lídia, as outras des-pesas eram quitadas segundo alguns critérios: prioridade em seguida para as entidades que tinham funcionários em suas folhas de pagamento e a casa dos estudantes, que segundo explica-do pelos dois partidos, teve sua dívida de repasse diminuída em quase R$20 mil somente naquele ano.

Alana Ramos, também diretora na gestão passada, explica que é es-sencial considerar em primeiro lugar

que é difícil analisar cada gestão do XI isolada, isso porque as dividas finan-ceiras do XI são praticamente todas históricas. Elas vêm de uma soma de ações negligentes e irresponsáveis de diversas gestões passadas.

O maior exemplo disso é que ao longo dos anos a relação entre recei-tas e gastos mensais do XI entrou em completo desequilíbrio, sendo que hoje o Centro Acadêmico é ordinaria-mente deficitário. Isso quer dizer que mensalmente entram menos receitas do que a quantidade que ele possui em gastos, o que gera um acumulo “natural” de dívidas que, a longo pra-zo, formam um passivo gigante. Esse “efeito dominó” é responsável pelas dividas repassadas em transições se-rem cada vez maiores

Por outro lado, como mostrou Ar-cadas no ano passado, a gestão Canto Geral conseguiu valores irrisórios em receitas extraordinárias, pela “opção política” de não fazer festas no Largo e pela dificuldade de seus membros em conseguir patrocínios de escritó-rios. A dívida tributária deixada pelo coletivo representa quase 10% de um montante construído em décadas.

O passivo obscuro

O Estado do XI de AgostoO que acontece no Centro Acadêmico, pelos editores do Arcadas

Gestão Canto Geral deixou dezenas de milhares de reais em dividas com impostos no ano passado, que já aumentaram

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12 Maio/2016

Lucas Noleto*ilustração por Luiza Rehder

A África, e todas as identidades que de-rivam dela, tem uma maneira muito uniforme de se apresentar no imagi-nário popular do Ocidente – isto é, quando não apenas relegada ao es-

quecimento. Seus problemas sociais de inegável gra-vidade tornaram-se um buraco negro retórico que impede qualquer representação alternativa do ser africano de ganhar a devida projeção. Deste modo, cria-se um senso comum em que é natural associar África com um passado trágico, um presente doloro-so e um futuro incerto. O povo negro demanda um melhor panorama no tempo.

Podemos entender o porquê dessas representa-ções obcecadamente negativas se analisarmos quem as produz. Na verdade, quando recebemos relatos de segunda mão que reforçam a mortandade e a violên-cia entre corpos negros de qualquer parte do mundo, é a perspectiva do emissor que fica em destaque e não a situação de quem ele pretendia veicular. Talvez um dos exemplos mais icônicos de como o viés subje-tivo se mescla à mensagem e compromete a informa-ção seja o caso do fotógrafo africâner Kevin Carter. Ganhador do prêmio Pulitzer em 1994, Carter foi, ao mesmo tempo, amplamente criticado e aclamado pelo retrato que lhe trouxe notoriedade global. A foto da criança moribunda sendo rondada por um abutre que aguarda pacientemente sua morte tornou-se, se-gundo o New York Times, “o símbolo da fome e do horror na África.” Mas até que ponto não podemos dizer que um homem que, em face de uma cena tão avassaladora, se dispõe a ajustar suas lentes para captar o melhor ângulo do padecimento alheio não se comporta também ele como um abutre? É verda-de que a função do fotojornalista é servir como meio para o grande público, porém, como diria McLuhan, o meio é a própria mensagem. A insensibilidade do artífice foi incorporada à foto, que comoveu uma audiência mais impressionada pelos seus aspectos formais do que pela circunstância atroz em que ela foi tirada. Carter foi beneficiário direto da estetiza-ção do sofrimento negro e não suportou. Suicidou-se naquele mesmo ano.

Em linhas gerais, essa manutenção de concep-ções estáticas sobre alteridades étnicas cumpre um papel político na ideologia ocidental. O teórico pales-tino Edward Said cunha o termo Orientalismo para caracterizar esse olhar onipresente na literatura do Ocidente que traz consigo uma carga imaginativa que objetifica o “Outro” – no caso, o “oriental” – para desumanizá-lo, consumi-lo e aliená-lo. Histo-ricamente, estereótipos de misticismo, sensualidade, agressividade e primitivismo – sejam sobre asiáticos, mas também sobre africanos e ameríndios – ajuda-ram a ilustrar doutrinas etnocêntricas a serviço de um projeto de poder das potências coloniais. Como resultado, entre as fogueiras da Inquisição e a antro-pofagia aimoré existe um abismo narrativo que nos convence que um é mais exótico que o outro, nos impedindo de reconhecer o caráter espantosamente humano de ambos os eventos. No intuito de obter ga-nhos materiais em terras estrangeiras, as metrópoles afogaram a identidade e a história dos povos coloni-zados em contos assombrados de atraso e salvação, recheados com caricaturas negativas de si mesmos, deixando apenas tais referências ao saírem. Nesse

cenário, o movimento pós-colonialista na África em meados do século passado teve o papel de produzir conhecimento endógeno nas comunidades recém-li-bertas para resgatar sua memória e sua autoestima. A intenção não era buscar a solução para problemas sociais numa ancestralidade etérea, mas combater a estética paralisante que havia transformado a África no continente escuro, ao traçar um itinerário históri-co que o imperialismo europeu havia deslocado sem apagar por completo.

“Os colonialistas costumam dizer que foram eles que nos trouxeram para a história; hoje nós mostramos que não é assim. Fizeram-nos deixar a nossa história para os seguir, pre-cisamente atrás, seguir o ‘progresso’ da história. Hoje, [...] nós queremos regressar para a nossa história com os nossos próprios pés, pelos nossos próprios meios e através dos nossos sacrifícios”, afirmou Amílcar Cabral, o mais proeminente opositor do im-pério português em Guiné-Bissau du-rante as lutas pela independência.

Mas se os acadêmicos pós-colo-nialistas se preocuparam em recon-tar o passado para mudar o presente, alguns artistas contemporâneos vis-lumbraram um futuro diferente com a mesma finalidade. Rompendo para-digmas derrogatórios e buscando uma nova linguagem para um discurso de resistência já existente, o Afrofutu-rismo surgiu como uma corrente ar-tística que se apropria de signos afro da cultura pop e os projeta num plano futurístico onde as identidades africa-nas são livres das amarras coloniais e raciais. Jazz, pirâmides, Metropolis, cores extravagantes, discos (de Funk) voadores, faraós alienígenas... Tudo se funde nesse movimento que privilegia uma ótica afrocêntrica na construção de um imaginário futurístico. Não se deixe enganar, no entanto, pelos looks brilhosos e chamativos, pois não se trata de uma nova roupagem para a velha exotização da gente negra. De fato, essa tendência reflete a neces-sidade de artistas negros extravasa-rem sua liberdade criativa através de uma estética que remeta à sua origem africana, colocando corpos negros do jeito que quiserem onde bem enten-derem – até na Lua, mas não apenas em filmes glamourizados sobre escra-vidão feitos por Hollywood.

Há bastante controvérsia quanto à origem exata do Afrofuturismo. Apesar de o termo ter sido cunha-do apenas em 1994 por Mark Dery no seu artigo “Black to the Future”, a sua existência como conceito filosófico já é sensível em obras do início do século XX, em especial nos Estados Unidos. Um conto li-terário recém-descoberto do escritor afro-americano W.E.B. Du Bois, “A princesa aço” de 1908, retrata a jornada de um sociólogo negro através do tempo-es-paço onde ele encontra uma princesa africana feita de aço que havia sido sequestrada e separada de sua mãe, uma metáfora para a colonização e diáspora.

Acompanhando o boom da ficção científica no período pós-guerra, autores como Jewelle Gomez e Samuel Delany ajudaram a expandir o universo afrofuturista na literatura, também impulsionados pela cultura Beatnik dos anos 60 que flertava com elementos da cultura negra norte-americana. Contu-do, foi na música popular que o movimento ganhou sua mais notória expressão e, nesse ramo, não houve artista mais amplamente reconhecido como pionei-

ro do Afrofuturismo do que o músico de jazz, cienasta, poeta e “entidade cósmica” Sun Ra. Imerso na mitolo-gia egípcia e no zeitgeist espacial da Guerra Fria, Sun Ra concebeu sua persona artística como um elo entre a antiguidade mística e a modernidade tecnológica, assumindo a vanguarda do jazz experimental e da iconografia afrofuturista. Seu disco mais famoso, Space is the place de 1973, virou uma referência monumental para músicos de outros naipes que exploravam a tendência inovadora, como o conjunto Parliament Funkadelic. O P-Funk, sob o comando de George Clinton, seguiu as abstrações intergalácticas de Sun Ra e as levaram a um ápice perfor-mático coroando seus concertos com a descida de uma nave espacial. Em Mothership Connection de 1975, Clin-ton e seu grupo responderam ao canto do movimento dos direitos civis, “We Shall Overcome” (“Nós Prevalecere-mos”, em português), com um enfá-tico “You have overcome/ For I am here” (“Vocês prevaleceram, porque aqui estou eu”, em português).

Todo esse caldo cultural nutre hoje uma nova geração de desbravadores do vasto campo da arte negra avant--garde, inclusive aqui no Brasil. A can-tora brasiliense Ellen Oléria lançou no ano passado seu álbum de inéditas Afrofuturista e conta como é explorar esse gênero sob uma perspectiva bra-sileira. “ (...) a performance musicada de Itamar Assunção e a alquimia es-pacial de Jorge Ben Jor. ou mesmo a nossa versão brasileira bem contem-porânea de afro-futuro mais conheci-da como os registros de Chico Science e a Nação Zumbi, Alceu Valença, ou as lendas amazônicas de encontros com extra-terrenos ou os espaço-acústicos super complexos de algumas faixas do Clube da Esquina remontam pra mim e creio que pra toda a minha geração

novas possibilidades discursivas em canção”, diz Ellen.

Enquanto o exercício da liberdade for um ato de resistência, a negritude ainda vai reivindicar o direi-to de utilizar sua própria imagem e identidade para fluir no tempo. Agora também por trás das câmeras, escrevendo, compondo e produzindo cultura. Não mais como objetos da história, mas como autores de seu futuro.

...*Lucas Noleto é colunista do portal online

do Arcadas, onde escreve uma vez por mês.

Memória e Imaginação: Repensando a estética negra no tempo

Na Raça. Miséria, fome, doenças, segregação, guerra, sofrimento, escravidão e atraso. É realmente só isso que se tem a dizer sobre a África e sua diáspora?

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13Maio/2016

Luiz Renato de Oliveira Périco*

Não faz muito tempo, eu passeava pelo Páteo das Arcadas meio à toa quando notei um grupo de (presu-mo) estudantes reunidos debaixo da escada esquerda. Entre eles, havia um homem um pouco mais

velho, com a barba longa e crespa, já grisalha, de óculos, o único de pé do grupo, com um livro gros-so de capa preta na mão esquerda e gestos tensos e expressivos na direira, a feição ora exortativa como um profeta hebraico, ora carregada de esperança como um anjo anunciador. Falava sobre um tem-po em que todos seriam iguais sobre a terra, sem divisão alguma entre os viventes. Cada um seria livre para se desenvolver plenamente, a terra ma-naria leite e mel, a sociedade atingiria a plenitude, sem fome, sem crimes, sem guerras: o paraíso na terra. Pude ouvir alguns do grupo balbuciarem um “amém”. Uma aura mística tomava o lugar.

Antes dessa era de ouro, entretanto, era neces-sário superar essa nossa época decaída, em que o mal está permeado em tudo o que fazemos, subme-tendo tudo à sua lógica diabólica; o espírito liber-tador (ele usou a palavra “espectro”, salvo enga-no), entretanto, já está rondando por toda a terra, despertando as almas escolhidas, fazendo-as ver as artimanhas com que o mal as tem mantido presas, revelando-lhes a visão real das coisas. “E conhece-reis a Verdade, e a Verdade vos libertára!”.

“A batalha final está, próxima, irmãos! Prepa-rem-se para o Armagedon!”, bradou o venerando profeta, ao que o grupo jubilou em aleluias. Talvez o profeta tenha dito “camaradas” ao invés de “ir-mãos”.

Aproximei-me do grupo para saber mais sobre aquela nova seita exótica, mas era apenas um gru-po de marxistas. Decepcionei-me. Não era dessa vez que tinha achado a redenção da minha alma. Das culpas que carrego, a burguesa é a única com a qual lido bem, sem desespero de expurgo.

Saí de lá pensando nesse negócio louco, a reli-gião secular.

[Essa primeira parte do texto é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coin-cidência.]

...

O escritor G. K. Chesterton já dizia que, quando as pessoas deixam de acreditar em Deus, elas não passam a não acreditar

em nada, mas a acreditar em qualquer coisa. Da minha parte, acho que todos devem ser livres para acreditar em qualquer coisa. Mas que é um negócio meio maluco, é.

E, sejamos justos, o marxismo é um caso extre-

mo, como Raymond Aron notou, mas não o único, de religião secular. Há muitos credos por aí, para todos os gostos: há os que acreditam na sacralida-de da propriedade, da tradição; na santidade in-trínseca dos oprimidos (versão laica e brega do so-frimento cristão); no mal encarnado no Estado, na burguesia, no outro opressor; no apocalipse ecoló-gico; nas sagradas e metafísicas leis econômicas ou dialéticas; na singularidade tecnólogica; em outros dogmas modernos desse tipo. Em qualquer coisa.

David Koyzis, doutor em Filosofia por Notre Dame e professor de Ciência Política na Redeemer University College (Ontário, Canadá), faz uma in-teressantíssima aproximação entre ideologia e re-ligião em seu livro “Visões e ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias contemporâ-neas”. O autor vê as ideologias “como tipos moder-nos do fenômeno perene da idolatria, trazendo em seu bojo suas próprias teorias sobre o pecado e a redenção”. Essa idolatria consiste “no ato de iso-lar um elemento da totalidade criada, elevando-o acima do resto da criação e fazendo com que esta orbite em torno desse elemento e o sirva”. Assim, “desejam impor às complexidades da realidade social sua própria concepção simplista de uma or-dem social monolítica”.

É partir dessa definição, sob o prisma desse conceito de ideologia, que Koysis analisa cinco ideologias contemporâneas, liberalismo, conserva-dorismo, nacionalismo, democracia e socialismo, buscando demonstrar o caráter idolátrico delas.

Partindo de ideias do economista holandês Bob Goudwzaard, Koyzis entende as idolatrias políticas como tendo cinco características, sendo a primeira o seu já citado caráter religioso, sua origem de um “comprometimento religioso”, sua deificação de algum elemento do mundo criado. A segunda, con-sequência da primeira, é que as ideologias dão ca-ráter salvífico, redentor a esse elemento deificado do mundo, da “criação”, tornando-o o Bem supre-mo, fonte de todo bem, elevado de todo o resto da criação. Assim, o liberalismo divinifica a liberdade individual; o nacionalismo, a nação; o conservado-rismo, a tradição; a democracia, o povo; o socia-lismo, a propriedade comunal, coletiva. Suas sote-

riologias se apoiam nesses elementos, seus deuses.Em terceiro lugar, e contrapondo-se ao segun-

do, as ideologias identificam o Mal supremo, fonte de todo mal, em algum outro elemento do mun-do criado, antagônico àquele Bem, seus diabos. Criam, com isso, sua própria dialética metafísica Bem-Mal. Assim, por antítese ao dito acima, o Mal liberal é a autoridade, encarnada no Estado, limi-tador da liberdade; o do socialismo, a propriedade privada; o da democracia, a concentração de po-der, encarnada de modo privilegiado no Monarca; o do nacionalismo, o inimigo da nação; o do con-servadorismo, a mudança.

O autor nota que essa dialética entre a segunda e a terceira características, localizando o Mal em uma característica intrínseca e estrutural do mun-do criado e o Bem na superação desse Mal intrín-seco pelo Bem, dá as ideologias feições gnósticas.

A quarta característica é que as ideologias dis-torcem a visão de mundo, de governo e política, uma vez precisam fazer com que essas se encaixem em sua narrativa de Bem e Mal, queda e redenção. Essas são as “ilusões políticas” do título.

Por último, “nas ideologias modernas os objeti-vos suplantam os princípios, do utilitarismo liberal à moral trotskysta. Essa característica dá o caráter sacrificial dessas ideologias, submetendo a integri-dade de tudo em nome de um Bem maior”.

Não é necessário compartilhar da fé de Koyzis para perceber a utilidade e acuidade (e a elegância e coerência, que eu talvez tenha nublado) da sua análise (desmonte) das ideologias; por outro lado, o caráter assumidamente religioso da crítica revela uma faceta que os analistas seculares muitas vezes ignoram, deixam passar. Talvez porque suas ideo-logias não lhes permitam ver.

...

*Luiz Périco estuda as leis dos homens e a Lei de Deus. Toma pau nas duas. Escreve um Dia do Senhor por mês sobre Religião, Direito e Política no portal online do Arcadas.

Ele acredita que o chão é duroQue todos os homens estão presos

Que há limites para a poesiaQue não há sorriso nas crianças

Nem amor nas mulheresQue só de pão vive o homemQue não há um outro mundo.

O utopista, de Murilo Mendes.

Ideologias e idolatrias

Direito e Religião. Como as ideologias contemporâneas - nacionalismo, liberalismo, conversadorismo, socialismo e democracia - se aproximam da idolatria.

Page 14: Arcadas (1 - 2016)

14 Maio/2016

Luisa Plastino*Fotos por Fabiana Won

Ainda são onze e meia da manhã e o plano é almoçar um PF no balcão do Ita, restaurante de donos portugueses que

existe desde 1953. Quem nos recebe é o Seu João, um dos donos do lugar. “Tenho 83 anos de idade e 60 de trabalho aqui. Eu já devia estar na cova”, ele repetiria essas palavras mais tarde a outros clientes do restaurante.

A placa azul na entrada anuncia a especialidade da casa: comida caseira. E não são poucas as opções: macarrão, prato feito, feijoada, sopa ou bacalhau (este último, somente às sextas – feiras). É bem fácil ficar indeciso ou perdido pelo cardápio. Para chegarmos na rua do Boticário, eu e a fotógrafa caminhamos por cerca de quinze minutos partindo do Largo São Francisco. O balcão estava bastante vazio quando chegamos, e pudemos escolher com muita folga onde sentar, mas é caso raro – na maior parte do dia ele fica lotado.

Antes de qualquer atendimento, em um movimento rápido, surgem dois pãezinhos com azeite na nossa frente. O pão é uma cortesia para abrir o apetite. Pedimos, enquanto beliscamos, um suco de limão, um macarrão com almôndegas e um Paissandu. Mistura perfeita de bife, ovo frito, arroz com feijão e farofa, o Paissandu remete ao largo vizinho ao restaurante e é, segundo o Seu João, o predileto dos fregueses desde sempre.

Comida boa ali é tradição. Tudo remete a um tempo diferente, como se pouco tivesse mudado desde 1953. O cardápio fica grudado nas paredes, os bancos são de madeira, o balcão é de mármore, o dinheiro fica guardado numa caixa registadora antiga, e vários dos funcionários são os mesmos há anos. Muitos anos mesmo. No caso de João e Luís, os irmãos que administram o dia–a–dia do negócio, tudo começou há 61 anos.

“Eu era empregado. Já ganhei salário mínimo aqui, eu e meu irmão”, começa a contar João sobre o início da sua vida no restaurante, onde teve que trabalhar duro por muito tempo. Um dia, diz ele, passando um pano no balcão, um dos antigos donos, já de mais idade, ficou doente. E, por conta disso, vendeu a primeira metade do negócio. O dinheiro para comprar tudo, Seu João não tinha. Assim, a segunda parte só foi adquirida depois da morte do senhor Tomé, o dono na época. Seu João explica que foi

a viúva do falecido dono quem realizou as negociações finais. E completa: “Ele não queria vender, mas foi indo e acabou cedendo, sem briga, sem nada”. O barulho do liquidificador atrapalha a conversa.

Aproveito a pausa e pergunto pelo significado do nome do restaurante. “Ah, Ita é por causa de três portugueses”, afirma. “Não foi com esses que eu trabalhei, mas eram três irmãos que vieram da cidade de Itanhandu no sul de Minas”. Fico confusa e pergunto se não é Itanhaém, ao que ele reitera: “É Itanhandu”. Antes que continue o raciocínio, uma nova interrupção: “Oi, bom dia, eu queria um lombinho. Pode ser?” Então, como alguém que consegue conduzir várias conversas ao mesmo tempo, João avisa à cozinha: “Vai um lombinho”.

O prato que pedi já estava esfriando, e decido aproveitar a deixa para começar a comer. Faço isso mais rápido do que deveria, por conta da fome, e me sinto feliz por ter um prato que transborda. O único defeito é o bife, bem passado

para o meu gosto. Fabi, nossa fotógrafa, aprovou: as almôndegas - com a bordinha queimada e o meio macio - são o destaque do prato. Em pouco tempo terminamos de comer tudo, bastante satisfeitas.

“E agora? A sobremesa?”, pergunta João enquanto recolhe os pratos. Pergunto se o pudim de leite é o melhor doce da vitrine, desejando que a resposta seja afirmativa. E ele garante que sim. Dividimos, entusiasmadas, um pedaço. Sem dúvida foi a melhor parte do meu

dia. A sobremesa estava macia, cheia de calda e de furinhos. Poderia ter comido facilmente vários pedaços sozinha.

A refeição termina, e só resta pedir a conta. O preço é calculado mentalmente ou, de vez em quando, com lápis sobre o balcão de mármore. Tudo bastante informal e familiar, como prometido na placa azul da entrada: “Comida Caseira desde 1953”.

...

*Luisa Plastino é colunista do portal online do Arcadas, onde escreve À Bolonhesa mensalmente.

OndeR. do Boticário, 31

HoráriosSegunda a Sexta das 11h às 20h

Sábados das 11h às 18hO que comemos? Pãozinho (cortesia)

Suco de limão grande (R$ 9)macarrão com almondegas (R$

14,50)Paissandu (R$ 15)

Pudim (R$ 5)Quanto deu

R$ 43,5 /2 = R$ 21, 75 Aceita

Dinheiro, cartão de débito e vale refeição

Por que vale a pena? PFs bem servidos a preços justos.

Uma dicaO bacalhau na sexta-feira (vá com

amigos para dividir!)

“Comida caseira desde 1953”À Bolonhesa. Fundado na década de 1950, o Ita serve bons PFs nos arredores do Largo do Paissandu.

Page 15: Arcadas (1 - 2016)

15Maio/2016

André Balbo

Fui aprender com um marinheiro que a meditação e a água estão ligadas para sempre. Coincidên-

cia ou não, alguns anos atrás, reclina-do numa cadeira de praia, enquanto mirava o mar, recordei-me de um epi-sódio da Odisseia que tem tudo a ver com água. A narrativa é bem conhecida. Ulisses, em seu regresso a Ítaca, é ad-vertido pela deusa Circe sobre o “canto das sereias”, uma espécie de magia uti-lizada por ninfas marinhas para seduzir os homens e arredá-los de suas empre-sas, levando-os à perdição.

Ulisses então ordena a seus mari-nheiros que obstruam os próprios ou-vidos com cera e o amarrem ao mas-tro com possantes calabres, e que, sob nenhuma condição, viessem a soltá-lo, ainda que ele assim o exigisse, até que transpusessem o caminho das sereias. É esse compromisso de Ulisses que me-rece consideração. Ciente de que não resistiria ao canto das ninfas, o herói estabeleceu um pré-compromisso ir-

retorquível. Pois bem, de forma seme-lhante, as Constituições democráticas são como as cordas de Ulisses. A metá-fora não é minha. Há décadas é utiliza-da por diversos jusfilósofos, e fazer crer o contrário seria censurável. No entan-to, passamos por um momento em que revisitá-la pode ser bastante frutuoso. E, de todo modo, não é uma metáfora saturada; longe disso, deve por muitos ser desconhecida. Afinal, raríssimas ex-ceções, direito e literatura não têm por hábito se encontrarem nos manuais ju-rídicos ou nas salas aula da São Fran-cisco.

Hoje, como no regresso de Ulisses, vivemos tempos sombrios, tempos de incertezas, embora haja tantas certe-zas. Vivemos tempos em que o direito é assombrado pela política, pelas ideo-logias e, principalmente, pela vontade dos juízes ― esses cantos sirênicos con-temporâneos. Após séculos de desen-volvimento de mecanismos que limitam o exercício do poder, vemos o direito, e por conseguinte a democracia, serem predados por uma perigosa ideia, que, nas últimas décadas, foi ganhando acei-

tação por parcela significativa da dog-mática jurídica brasileira, qual seja: a ideia de que é necessário recorrer a “bons” ativismos judiciais para solucio-nar questões complexas da sociedade e que os meios políticos de decisão tradi-cionais são incapazes de acompanhar.

Nesses tempos de transformação de juízes em legisladores, é importante lembrar da existência da Constituição, que, como as cordas que prendem Ulis-ses, constitui-se em panaceia contra as paixões transitórias do futuro, ain-da que sejam paixões de uma maioria. Sem dúvida, é papel do Judiciário in-tervir quando estiverem em jogo ques-tões de princípio. Contudo, não cabe a ele decidir conforme preferências pes-soais de seus membros ou em atenção à “voz das ruas”. Os pré-compromissos constitucionais só podem ser “relaxa-dos” pelo poder constituinte derivado, e não pela vontade de juízes, por mais “bem intencionados” que estejam. E se não é o papel do Judiciário alterar a Constituição, muito menos o é do Mi-nistério Público, razão pela qual é de um extremo desserviço à democracia

o “pacote anticorrupção” apresentado pelo MPF em fevereiro deste ano.

O ativismo judicial acentua a con-fusão histórica entre os ambientes pú-blico e privado, geral e particular, que existe em nosso país, diagnóstico que Sérgio Buarque de Holanda fez em “Raízes do Brasil” a partir da tragédia “Antígona”, de Sófocles, e que se pre-serva depois de 80 anos. A vida em co-munidade, sob o império da lei, pressu-põe a transgressão da ordem particular. Hoje, infelizmente, estamos fazendo o reverso. Estamos substituindo o impé-rio do direito pelo império dos juízes, e também dos promotores! Com isso, fragilizamos a autonomia e a produção democrática do direito. É como se afir-mássemos, tacitamente, que o direito, produzido pela comunidade, pode ser “corrigido” pela moral e/ou pela polí-tica de alguns poucos indivíduos. Per-gunto, parafraseando Lenio Streck: se a moral e a política corrigirem o direito, quem vai corrigi-las? Como Ulisses, es-tejamos mais cientes de nossos papéis. Viver numa democracia tem seus cus-tos.

Direito e Literatura. Nesses tempos sombrios, política, moral e ideologia desnaturam o direito através da busca pelo “bom” ativismo judicial

Ulisses, Antígona e a Constituição

E. Cunha Jr.*

Áries (21/3 - 20/4)Se for cochilar nas arcadas, pode ser que o Tucci te acorde no meio do sono. Aproveite para dizer para aquele coletivo mala que quer te captar contra sua vontade que você tem coisas melhores para fazer.

Touro (21/4 - 21/5)Um professor de matéria

obrigatória que você não escolheu vai te passar um fichamento estúpido. Como o monitor mal vai corrigir, leia só alguns parágrafos do texto e vomite no fichamento.

Aproveite o tempo para estudar algo que você acredita que pode lhe ser útil.

Gêmeos (22/5 - 21/6)Verifique se o naquela matéria optativa vespertina que você pegou mesmo estagiando no horário está havendo chamada: você pode se surpreender! Pegar um livro na biblioteca circulante pode animar sua vida acadêmica, a não ser que você tenha problemas de mobilidade e não possa subir

escadas.

Câncer (21/6 - 23/7)Bom dia para reatar amizades e entrar em contato com gente querida que não via há tempos. Não deixe que a aula de direito financeiro atrapalhe isso. Coloque o papo com os amigos em dia! Sair da rotina e até marcar um encontro com amigos pode ajudar a animar a sua vida amorosa.

Leão (24/7 - 23/8)Pretende matar aula para ir treinar

sua modalidade? Tome cuidado: seu professor coxa pode dar um exercício surpresa só para mostrar autoridade. Caso tenha um imprevisto

e não consiga chegar à aula no horário, volte para casa, senão seu professor do DCV pode fazer um escândalo.

Virgem (24/8 - 23/9)Seu lado inquieto vai se tornar mais forte. Não deixe que isso te leve a perder tempo brigando na 189. Use o tempo que gastaria brigando tentando estudar. Só não escolha uma matéria que tenha

sofrido mudanças recentemente ou vai ter de lidar com livros desatualizados na biblioteca.

Libra (24/9 - 23/10)O desejo de viver coisas novas e se livrar do que incomoda deve crescer. Traga a mudança ao seu trabalho e à sua casa, mas não à São Francisco, senão você só vai passar raiva. Tente manter a calma se descobrir que o evento do ano da sala dos estudantes vai ser no horário da sua obrigatória com chamada.

Escorpião (24/10 - 22/11)Hoje, os relacionamentos estão em alta e você fará o possível para

ficar próximo de quem é importante em sua vida. Fique longe de professores. Vá visitar sua família.

Sagitário (23/11 - 21/12)Seu professor pode faltar sem avisar. Aproveite e vá resolver suas pendências na sessão de alunos. Tome um chá de camomila e visite um psicólogo antes. O autocontrole te leva mais longe que a violência.

Capricórnio (22/12 - 20/1)O que parece ser ruim pode se tornar uma grata surpresa. Se seu professor mandou um sócio dar aula no lugar dele, pode ser que o sócio seja muito mais didático e suportável que ele. Não que isso garanta que a aula vá ser boa.

Aquário (21/1 - 19/2)Aproveite o dia para conhecer todo o espaço físico da faculdade: você nunca sabe qual é o próximo lugar que o Tucci pode fechar. Se precisar faltar ao estágio para isso, diga ao seu chefe que contraiu H1N1.

Peixes (20/2 - 20/3)É possível que o professor daquela aula que coincide com seu grupo de pesquisa ou extensão resolva cobrar presença. Atrapalhe a aula fazendo perguntas estúpidas e desconte sua raiva em ofícios

para a CG...

* E. Cunha Jr. foi aluno de Oscar Quiroga, João Bidu e Olavo de Carvalho. Hoje, faz consultas de mapa astral no Largo da Pólvora.

Horóscopo

Page 16: Arcadas (1 - 2016)

16 Maio/2016

Plínio de Arruda Sampaio

Na época em que estudei na Faculdade de Direito, há mais de cinquenta anos, o trote era

algo selvagem, primitivo mesmo.Integrante da JUC (Juventude

Universitária Católica), tomei parte em vários protestos contra aquele tipo de trote.

A única coisa que se salvava daquela barbárie era a Peruada – um desfile da calourada, toda pintada, pelas ruas centrais da cidade.

A Peruada terminava com uma representação teatral em que calouros e veteranos atuavam.

Naquele tempo, o trânsito de São Paulo era menos intenso do que hoje, de modo que o transtorno causado pela Peruada era pequeno e a população não se incomodava.

Não aconselho os alunos de hoje a repetir esse desfile, mas a representação, sim.

Felizmente, o trote abusivo foi abolido e substituído por palestras. Eu mesmo já fiz palestras para calouros, a convite de Centros Acadêmicos.

Na esperança de ser-lhes útil, costumo dizer o seguinte: não se aprende apenas na sala de aula ou na biblioteca, lendo os livros recomendados pelos professores. Uma parte muito importante do aprendizado é feito no Páteo e na Sala do Estudante.

As discussões que aí se travam são

essenciais para o conhecimento do Direito.

No meu tempo, o pátio fervilhava.Tenho a impressão de que essa

realidade mudou.Há tempos atrás, organizei um

protesto contra o massacre de jovens negros que - a pretexto de combater um grupo de pessoas que estava matando policiais - a Polícia de São Paulo estava fazendo.

Escolhi o pátio da Faculdade como local do evento e convidei o Professor Gofredo da Silva Telles para presidi-lo.

Notei, para minha surpresa, que apenas pessoas de fora da Faculdade participavam do protesto. Os alunos passavam, olhavam e seguiam para suas classes.

Não me contive, peguei o microfone e dei-lhes uma chamada em regra. Serviu apenas para levar um balde de água na cabeça, jogado lá do andar superior.

Esta conduta precisa ser mudada.Os alunos que não frequentam

o Páteo não sabem o que estão perdendo. A discussão livre com os colegas sobre os fatos importantes que estão acontecendo no país é de suma importância para que possam assimilar bem os ensinamentos que recebem na classe e na leitura de livros.

O Direito não se exerce à margem da sociedade. O que está acontecendo nesta é determinante para a configuração concreta do que é Direito e o que é infração ao mesmo.

Júlia Molina

Vestido de maneira simples e andando num passo tranquilo. É assim que os alunos da

Faculdade lembram da imagem de Plínio Soares de Arruda Sampaio em suas últimas visitas ao Departamento Jurídico XI de Agosto.

Apesar da extensa e notória carreira política, que inclui entre muitos outros feitos, o engajamento na luta pela Reforma Agrária, a perseguição pela Ditadura Militar, o auxílio na elaboração da Constituição de 1988 e a candidatura à Presidência do Brasil pelo PSOL em 2010, Plínio sempre teve muito carinho pela Faculdade de Direito e por seu peso simbólico e de

mobilização.Em 2012 ele apareceu

repetentinamente no DJ, entidade da qual chegou inclusive a ser presidente em sua época, saudou seus calouros de décadas e conversou com eles sobre como tudo estava tão diferente no xx andar do Edifício Jurídico. Sua ideia era ajudar como advogado nos casos do Departamento, fazendo petições, indo a audiências, o que fosse necessário. Mas a Diretoria não encontrou um trabalho para alguém como Plínio de Arruda Sampaio, que já tinha seus 81 anos.

No ano seguinte, Plínio apareceu de novo. Ele trouxe um assistido e pediu ao DJ por uma das baias onde os estagiários atendem o público. Sentou-se, ouviu e deu orientações, como fazia

cinquenta anos antes. “A passagem pelo Jurídico foi

absolutamente decisiva nas minhas escolhas pessoais e profissionais. Primeiro, pela responsabilidade assumida em um grande Departamento, ainda muito jovem, com 22 anos. Segundo, por ter tido ali o primeiro contato com a pobreza de fato. Carreguei essa experiência e fui, digamos, ampliá-la quando me tornei promotor público”, disse Plínio em depoimento ao livro “Escola de Justiça: História e Memória do Departamento Jurídico XI de Agosto”.

Plínio de Arruda Sampaio morreu em 2014 aos 83 anos, deixando um histórico de lutas que começou desde o atendimento às injustiças do dia-a-dia até as grandes pautas sociais do Brasil.

Trote e Vida AcadêmicaMemória. Em 2013, Arcadas convidou Plínio de Arruda Sampaio para escrever aos calouros da Turma 186, mas seu texto não chegou a tempo do fechamento. Dois anos depois de sua morte, publicamos suas palavras, inéditas

Perfil

Plínio Soares de Arruda Sampaio (1930-2014) estudou na Faculdade

de Direito, na Turma 122. Pertenceu à Juventude Universitária Cristã quando jovem e foi secretário de Negócios Jurídicos do governo

Carvalho Pinto. Em 1962 se elegeu deputado, mas dois anos depois teve o mandato cassado pelo Ato

Institucional nº 1. Exilou-se no Chile e, na volta, ajudou a fundar o Partido

dos Trabalhadores. Em 1988 foi o segundo deputado constituinte mais

votado do partido, depois de Luiz Inácio Lula da Silva. Se desligou do PT em 2005 e entrou para o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pelo qual foi candidato a presidente em 2010. Plínio morreu aos 83 anos em São Paulo por conta de uma

pneumonia.

As últimas visitas de Plínio ao DJDJ. Pouco antes de morrer Plínio visitou a entidade da qual foi presidente

Plínio em Fotos. De cima para baixo: quando estudava na

Faculdade de Direito; na época em que ainda

era ligado ao PT, junto de Ivan Valente,

Eduardo Suplicy e José Genoíno; recebendo de

volta o o mandato de deputado, caçado em

1964; em homenagem à constituinte de 1988