apresentaÇÃo h - adusp.org.br · apresentaÇÃo h á um século, um cidadão comum levava um ano...

60
APRESENT AÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma única edição de domingo dos grandes jornais brasileiros. A Internet encurta distâncias e a informação em tempo real tem mantido a economia mundial constantemente alerta. Variações na bolsa de Tóquio abalam estruturas econômicas na Europa e Estados Unidos, o mesmo acontecendo na América Latina com as variações nas bolsas do México e da Argentina. A globalização, palavra chave do mundo atual, coloca seus tentáculos em todas as áreas e tem sido usada para explicar os principais fenômenos do mundo moderno. A Revista Adusp, com o propósito de analisar esse tema, entrevistou professores da USP. O resultado indica que a globalização esconde importantes facetas. Ao mesmo tempo que ela é apresentada como sinônimo de modernidade, esta edição apresenta o raio X das condições de atendimento e ensino nos principais hospitais universitários do país. Pautada e produzida pela Agência Andes de Notícia, esta matéria mostra que a realidade nos HUs não difere do que é comumente encontrado na rede pública de saúde dos Estados e municípios. Salvo algumas exceções, a maioria dos hospitais universitários encontra-se à beira da falência, funcionando de forma precária. Em alguns casos, numa demonstração de resistência ao desestímulo imposto pelos governos federal e estaduais, professores, residentes e funcionários chegam a se cotizar para comprar luvas, esparadrapo, álcool e outros materiais básicos. Sobre a urgente necessidade de o Brasil entrar para a modernidade, o ex- presidente Itamar Franco chegou a declarar certa vez: “Como falar em modernidade no Brasil, se não conseguimos resolver os principais problemas sociais”. Aliados ao descaso com a área de saúde, outros dois graves problemas no país são a tortura e a indiferença com os direitos do cidadão. O deputado federal Hélio Bicudo (PT-SP), entrevistado desta edição, afirma que o Plano Nacional de Direitos Humanos anunciado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso não atende às reais necessidades da sociedade brasileira. Ele analisa, ainda, os casos de torturas que acontecem constantemente nas delegacias brasileiras e diz que a imprensa não é autônoma. “Ela está presa ao poder do Estado. Os grandes jornais são dúbios quando tratam da questão da democracia e da questão da atuação dos órgãos governamentais”. A Revista Adusp traz, também, artigos dos professores Francisco Miraglia (Instituto de Matemática da USP e ex-presidente da Adusp), sobre a universidade, a greve e a luta política; Osvaldo Coggiola (Departamento de História da USP), sobre o tráfico internacional de drogas, e do ex-presidente do Diap, Ruy Brito, sobre o drama da Previdência brasileira.

Upload: others

Post on 02-Nov-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

APRESENTAÇÃO

Há um século, um cidadão comum levava um ano para consumir omesmo volume de informações que atualmente é publicada emuma única edição de domingo dos grandes jornais brasileiros. AInternet encurta distâncias e a informação em tempo real tem

mantido a economia mundial constantemente alerta. Variações na bolsa deTóquio abalam estruturas econômicas na Europa e Estados Unidos, o mesmoacontecendo na América Latina com as variações nas bolsas do México e da

Argentina. A globalização, palavra chave do mundo atual, coloca seustentáculos em todas as áreas e tem sido usada para explicar os principais

fenômenos do mundo moderno. A Revista Adusp, com o propósito de analisaresse tema, entrevistou professores da USP. O resultado indica que a globalização

esconde importantes facetas. Ao mesmo tempo que ela é apresentada comosinônimo de modernidade, esta edição apresenta o raio X das condições de

atendimento e ensino nos principais hospitais universitários do país. Pautada eproduzida pela Agência Andes de Notícia, esta matéria mostra que a realidadenos HUs não difere do que é comumente encontrado na rede pública de saúde

dos Estados e municípios. Salvo algumas exceções, a maioria dos hospitaisuniversitários encontra-se à beira da falência, funcionando de forma precária.Em alguns casos, numa demonstração de resistência ao desestímulo imposto

pelos governos federal e estaduais, professores, residentes e funcionários chegama se cotizar para comprar luvas, esparadrapo, álcool e outros materiais básicos.

Sobre a urgente necessidade de o Brasil entrar para a modernidade, o ex-presidente Itamar Franco chegou a declarar certa vez: “Como falar em

modernidade no Brasil, se não conseguimos resolver os principais problemassociais”. Aliados ao descaso com a área de saúde, outros dois graves problemas

no país são a tortura e a indiferença com os direitos do cidadão. O deputadofederal Hélio Bicudo (PT-SP), entrevistado desta edição, afirma que o Plano

Nacional de Direitos Humanos anunciado pelo presidente Fernando HenriqueCardoso não atende às reais necessidades da sociedade brasileira. Ele analisa,

ainda, os casos de torturas que acontecem constantemente nas delegaciasbrasileiras e diz que a imprensa não é autônoma. “Ela está presa ao poder do

Estado. Os grandes jornais são dúbios quando tratam da questão dademocracia e da questão da atuação dos órgãos governamentais”.

A Revista Adusp traz, também, artigos dos professores Francisco Miraglia(Instituto de Matemática da USP e ex-presidente da Adusp), sobre a

universidade, a greve e a luta política; Osvaldo Coggiola (Departamento deHistória da USP), sobre o tráfico internacional de drogas, e do ex-presidente do

Diap, Ruy Brito, sobre o drama da Previdência brasileira.

Page 2: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

DIRETORIAMarco A. Brinati, Osvaldo Coggiola, Jair Borin, Heloísa D. Borsari, Valéria De Marco,

Primavera Borelli, José Nivaldo Garcia, Antonio César Fagundes,José Marcelino Rezende Pinto, Ozíride Manzolli Neto.

Comissão EditorialAdilson O. Citelli, Bernardo Kucinski, Fernando Leite Perrone,

Francisco Gorgônio da Nóbrega, Jair Borin, Khaled Goubar, Lígia M. Marcondes Machado, Nelson Achcar, Nilza Nunes da Silva,

Norberto Luiz Guarinello e Zilda M. Gricoli Iokoi.

Editor: Marcos Luiz Cripa vdEditoração eletrônica: Luís Ricardo Câmara e Maria Cristina Waligora

Capa: Doriana Madeira (Dmag)Fotos da capa: Ronaldo de Oliveira/Correio Braziliense e Daniel Ruiz Garcia

Ilustrações: MaringoniProjeto Gráfico: Dmag - Artes Gráficas

Revisão: Francisco José Mendonça CoutoSecretaria: Alexandra Moretti Carillo e Rogério Yamamoto

Distribuição: Marcelo Chaves e Walter dos AnjosFotolitos: Bureau Bandeirante

Gráfica: BandeiranteTiragem: 6.000 exemplares

Adusp - S. Sind.Av. Prof. Luciano Gualberto, trav. J, 374

Cidade Universitária - São Paulo - SPCEP 05508-900

Telefones: (011) 813-5573/818-4465/818-4466Fax: (011) 814-1715

A RReevviissttaa Adusp é uma publicação da Associação dos Docentes da Universidade de SãoPaulo - S. Sind., destinada aos associados. Os artigos assinados não refletem,necessariamente, o pensamento da diretoria da entidade e são de responsabilidade dosautores. Contribuições serão aceitas desde que os textos inéditos sejam entregues emdisquete e tenham no mínimo dez mil e no máximo vinte mil caracteres. Os artigos serãoavaliados pela Comissão Editorial, que decidirá sobre seu aproveitamento.

Page 3: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

ÍÍNNDDIICCEE6

HHOOSSPPIITTAAIISS UUNNIIVVEERRSSIITTÁÁRRIIOOSS AAGGOONNIIZZAAMM PPOORR FFAALLTTAA DDEE RREECCUURRSSOOSS

Washington Sidney e Ana Sanches

18UUNNIIVVEERRSSIIDDAADDEESS PPÚÚBBLLIICCAASS EE PPRRIIVVAADDAASS

NNOO BBRRAASSIILL EE EESSTTAADDOOSS UUNNIIDDOOSSMaria Ligia Coelho Prado

21EEDDUUCCAAÇÇÃÃOO EEMM TTEEMMPPOO DDEE RREEFFOORRMMAA

F. C. de Sá e Benevides

24UUNNIIVVEERRSSIIDDAADDEE,, GGRREEVVEE EE LLUUTTAA PPOOLLÍÍTTIICCAA

Francisco Miraglia

31EENNTTRREEVVIISSTTAA

Hélio Bicudo

38GGLLOOBBAALLIIZZAAÇÇÃÃOO EESSCCOONNDDEE RREEAALLIIDDAADDEE

Hamilton de Souza

44OO TTRRÁÁFFIICCOO IINNTTEERRNNAACCIIOONNAALL DDEE DDRROOGGAASS

EE AA IINNFFLLUUÊÊNNCCIIAA DDOO CCAAPPIITTAALLIISSMMOOOsvaldo Coggiola

52OO DDRRAAMMAA DDAA PPRREEVVIIDDÊÊNNCCIIAA::

AAJJUUSSTTAARR PPAARRAA GGAANNHHAARR TTEEMMPPOO EE PPRRIIVVAATTIIZZAARRRuy Brito

57UUMM OOUUTTRROO OOLLHHAARR SSOOBBRREE OO PPRROOÁÁLLCCOOOOLL

Fernando Ferro

60AA FFAAVVOORR DDEE MMAAIISS ÉÉDDIIPPOOSS

Marcos A. da Silva

Page 4: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

HOSPITAIS UNIVERSITÁRIOS

AGONIZAM POR FALTA DE RECURSOS

Washington Sidney (Agência Andes/DF) e Ana Sanches (SP)

6

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

Daniel Garcia

Os hospitais universitários (HUs), que além do ensino prático de medicina cumprem a importantetarefa de dar assistência gratuita à população de baixa renda, poderiam tornar-se grandes aliados da

sociedade na luta pela universalização do atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS). Poderiam,se houvesse efetiva vontade política dos governos federal e estaduais. Salvo raras e honrosas exceções, amaioria encontra-se hoje em estado quase terminal, funcionando de forma precária –em alguns casos àbeira do fechamento–, conseqüência do sucateamento da saúde pública e dos baixos investimentos no

ensino de nível superior. O diagnóstico é quase sempre o mesmo: os HUs não conseguem sobrevivercom as verbas irrisórias repassadas pelo Ministério da Educação, pelos governos estaduais e com asAutorizações de Internações Hospitalares (AIHs) pagas pelo SUS. As conseqüências são a supressão

de leitos, degradação dos equipamentos, quase sempre já obsoletos, perda de profissionais qualificadospor causa dos baixos salários e queda da qualidade do ensino.

Page 5: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

7

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

Superintendente do Hos-pital Universitário (HU)desde 1988, o professorErasmo MagalhãesCastro de Tolosa consi-dera bastante razoáveis

as instalações e as condições defuncionamento da instituição, queé um órgão complementar da Uni-versidade de São Paulo e realizaquase 40.000 consultas por mês.Professor titular de cirurgia e coor-denador do curso de cirurgia, eleexplica que o HU é um hospital demédio porte, com 308 leitos, e umadas maiores maternidades de SãoPaulo, com média de 300 partosrealizados por mês. “De maneirageral, nossos pacientes estão satis-feitos”, diz ele. “O hospital temuma discreta demanda no atendi-mento clínico e, no cirúrgico, de nomáximo 10 ou 15 dias para uma ci-rurgia sem urgência, prazo equiva-lente ao dos hospitais particulares.”

Criado há 15 anos com o propó-sito de abrigar o curso experimentalde medicina (em Pinheiros ficaria ocurso tradicional), os objetivos aque se destina o Hospital Universi-tário foram alterados, a partir de1987, uma vez que o curso experi-mental acabou sendo abolido antesde ele ficar pronto. A partir dessadata ficou estabelecido, então, queo HU deveria contemplar o ensino,a assistência médica e a pesquisa,atendendo os servidores da USP(docentes, funcionários e alunos) eoferecendo à comunidade do Bu-tantã um programa de assistênciamédica em nível secundário, excluí-do o trauma. Tolosa explica que oatendimento primário é o de pron-to socorro, o secundário o de cirur-

gias e exames mais comuns e o ter-ciário o que envolve cirurgias e pro-cedimentos mais sofisticados, comocirurgias cardíacas, neurocirurgias,exames de ressonância magnéticaetc. Quando a população do Butan-tã necessita de um atendimento dotipo terciário, o HU encaminha pa-ra os centros de referência do SUS.Se o paciente é da USP, o HU pagaos exames, a internação e as cirur-gias necessárias.

Estabeleceu-se também, nessaocasião, o que ensinar: apenas agraduação de medicina, odontolo-gia, enfermagem, saúde pública epsicologia. “Aqui, quem ensina sãoos profissionais do hospital, quetambém trabalham na assistência ena pesquisa. Achamos que um cor-po separado de profissionais, unspara ensinar, outros para trabalharno hospital, daria confusão, e que-ríamos harmonia. Também não te-mos residentes, porque isso atra-

palharia a formação dos alunos degraduação”, diz ele.

Outra medida tomada para har-monizar a prática com os objetivospropostos foi a padronização deequipamentos. “Não há laboratóriosindividualizados de professores”, dizTolosa, “mas laboratórios que aten-dem coletivamente as quatro áreas:clínica médica, cirúrgica, pediátricae obstétrica.” Além disso, o superin-tende do HU conta que houve umenxugamento do organograma e aadoção de medidas que imprimiramrapidez de fluxo dentro do hospital.“Havia inchaço, como em todos oshospitais. Eliminamos 146 funçõesgratificadas. E informatizamos ohospital, privilegiando a área médi-ca e não a administrativa”.

A partir de 1989, segundo o su-perintendente, o HU passou a fun-cionar com eficiência. “Em trêsturnos, rigorosamente controladoscom sistema eletrônico e cartão

Saguão de atendimento do Pronto-Socorro do Hospital Universitário/USP.

Daniel Garcia

Page 6: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

magnético e horas de trabalho re-gistradas”, informa ele.

Preocupado apenas com os re-cursos, cada vez mais escassos, To-losa explica que, enquanto haviainflação, o que o HU recebia doSUS representava 60% do seu cus-teio, cabendo à USP arcar com osoutros 40%. Hoje a situação é to-talmente inversa. A USP arca com86% e o SUS com apenas 14%.“Esse dinheiro vem do ICMS quea USP recebe”, diz Tolosa, “gas-tando com a saúde da população,que não seria responsabilidade de-la.” Assim, embora o hospital fun-cione com material padronizado,de alta qualidade, seus gastos eminovações não estão consolidados.“A falta de recursos compromete aexpansão, o investimento, o quefaz temer pelo futuro. Temos reno-vado só o equipamento essencial.”

O HU atende também 5 campida USP no interior do Estado. To-losa informa que há, em cada cam-pus, um ambulatório de triagem eauditoria. Outros tipos de atendi-mento são feitos pela Unimed, on-de há convênios em São Carlos eBauru, e pelas Santas Casas, em Pi-rassununga, Piracicaba e RibeirãoPreto. “O custeio disso é pago comreceita própria”, diz Tolosa. “Preci-so de 14 recebimentos do SUS parapagar um convênio em São Carlos.”

Mesmo com essas dificuldades, osuperintendente do HU diz que ossalários (mais acréscimos de plan-tão) estão todos em dia e que ohospital não tem nenhuma dívida.

Tragédia de Osasco

Além da questão dos recursos fi-nanceiros, informa Tolosa, sua ou-

tra preocupação é com profissionaisde imprensa “que publicam notíciassem verificá-las, e podem causaruma anulação de todo o esforçoque é feito aqui pelos doentes.” Elese refere ao episódio da explosãono Osasco Plaza Shopping, ocorridaem 11 de junho, ocasião em que oHU foi acusado de se recusar aatender as vítimas da tragédia. Emconseqüência da explosão morre-ram 40 pessoas, 6 tiveram membrosamputados e outras 500 sofreramalgum tipo de ferimento.

“No dia da tragédia”, conta ele,“a Defesa Civil nos telefonou, soli-citando pessoal e recursos, quemandamos para o Hospital das Da-mas, em Osasco. Sabemos que, dosatendidos na região, sobraram 60feridos graves, 45 dos quais foramabsorvidos pelos hospitais locais.Dos 15 removidos para São Paulo,

8

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

Não discutiremos aqui as questões sindicais comocondições de trabalho, salários etc, que envolvem a reito-ria da USP, a superintendência do HU e o seu corpo defuncionários. Gostaríamos de fazer algumas reflexões so-bre o HU do ponto de vista do professor, responsável pe-la aquisição, formação e transmissão do conhecimento ede usuário.

Frente à maioria dos HUs do país, o HU da USP podeser considerado aquele que apresenta infra-estrutura físi-ca, equipamentos e recursos humanos, de um modo geral,bem qualificado. Bem, mais isso é o mínimo que se pode-ria esperar de um Hospital Universitário ligado a uma dasmaiores universidades do país e que, por sua vez, localiza-se no Estado mais desenvolvido economicamente.

Mas nós queremos mais. Precisamos ir além do que éfeito atualmente. Precisamos, por exemplo, ter atuação se-melhante à desenvolvida pelo HU da UFRJ, na área detransplantes de medula óssea. Existem recursos financei-ros e humanos para tanto. O que nos falta, então? No nos-so entender, uma opção clara e concreta da reitoria e dasuperintendência no sentido de o HU ser um local privile-

giado para o ensino de graduação, especialização e pesqui-sa. Não só um prestador de assistência médica.

Sabemos que o atendimento de saúde no Brasil é pre-cário e que há uma tendência de que os HUs passem a co-brir essa deficiência, alterando as finalidades para que fo-ram criados. É urgente que se reverta essa situação, e oHU/USP pode e deve fazê-lo. Vejamos o que acontece, nomomento, quanto ao ensino, pesquisa e extensão.

O HU foi idealizado como um hospital-escola emque, justamente por não atender uma grande demanda,seria possível implantar parceladamente um serviço quecontemplaria e ligaria intimamente a extensão, o ensinoe a pesquisa. Adicionalmente, o esquema de gestão pro-posto na ocasião permitiria a integração multidisciplinardos alunos e funcionários das diversas áreas da saúde(medicina, enfermagem, farmácia, nutrição, odontologia,assistência social, psicologia), de modo a integrar os co-nhecimento, trocar experiências, respeitar as particulari-dades de cada meio de atuação. Essa filosofia a nosso vertranscendia (e transcende) a existência do curso experi-mental de medicina.

REFLEXÕES SOBRE UM HOSPITAL UNIVERSITÁRIO QUE DEVERIA SER ESCOLAPrimavera Borelli

Page 7: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

9

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

8 foram para o Hospital das Clíni-cas, 6 para o Jabaquara e apenasum veio para cá, e foi internado.Outros 6 foram atendidos e dispen-sados, pois não necessitavam inter-nação. Não houve recusa do HUem atender ou internar ninguém.”

Tolosa explica também que oHU normalmente não atende aci-dentados. “A organização de umhospital de traumas é diferente danossa”, diz ele. “Nosso alunos têmque ver doenças comuns. Só aten-demos traumas ocorridos com opessoal da USP.”

Dinizete Aparecida Xavier, di-retora do Sindicato dos Trabalha-dores da USP (Sintusp), informaque, segundo relato feito atravésde carta ao sindicato, os funcioná-rios do HU revoltaram-se com aatitude tomada pela direção dohospital no episódio do atendi-

mento às vítimas do shopping deOsasco. Segundo esse relato, aoserem informados da tragédia pelaDefesa Civil, eles se prepararam,como é de praxe nos hospitais, pa-ra atender às vítimas. Havia setesalas do centro cirúrgico desocupa-das e 14 macas disponíveis. Mas otempo passava e as vítimas nãochegavam. Nenhuma das ambulân-cias que as transportavam se dirigi-ram ao HU.

Na carta dirigida ao Sintusp osfuncionários dizem que, enquantoos hospitais particulares abriramleitos e mandaram helicópteros, asambulâncias do HU ficaram nasgaragens. Que a equipe de volun-tários do HU foi solidária por con-ta própria. E que o HU internouum único paciente, levado pela fa-mília e depois de muita insistênciadesta, apenas para parecer solidá-

rio às vítimas de Osasco.No dia 19 de julho, o promotor

de justiça Gilberto Martins Lopes,da Primeira Vara Criminal do fororegional de Pinheiros, em São Pau-lo, requisitou ao delegado da 93ªDP a instalação de inquérito poli-cial para apurar omissão de socor-ro por parte do Superintendentedo HU/USP, Erasmo Tolosa, du-rante o resgate das vítimas da ex-plosão do Osasco Plaza Shopping.Omissão de socorro é crime previs-to no Código Penal, cuja pena é deaté seis meses de detenção.

Com uma fratura exposta de tí-bia, Josué Gonçalves Pádua, vítimada explosão do shopping de Osas-co, foi levado por familiares para oHU/USP logo no começo da tardedo dia 11 de junho. Sua cunhada,Maria de Lurdes Santos, que oacompanhou durante todo o tem-

Recordo-me das visitas ao HU durante a sua constru-ção.As expectativas eram grandes frente às possibilida-des que se propunham: espaço, infra-estrutura física,quantidade de equipamentos e oportunidade de trabalhomultidisciplinar.

O que temos atualmente? Um hospital praticamente con-vencional, no qual a opção foi e continua sendo pela presta-ção de serviços. Para torná-lo mais “ágil” e “harmônico” op-tou-se por um corpo de funcionários independente da estru-tura de ensino. Assim, os alunos em nível de graduação, namaioria dos cursos afins, não passam pelo hospital. E a pes-quisa? Nas áreas em que trabalhamos é muito pouca, não éinovadora e parece ser esse o panorama geral. O que aconte-ce ao nível do ensino e da pesquisa depende praticamente dafilosofia do chefe do serviço e dos funcionários interessados.Não é uma política incentivada (embora não seja, explicita-mente, impedida) pela superintendência. Sonhamos e quere-mos um hospital escola produzindo conhecimento, desenvol-vendo novas tecnologias e procedimentos que tragam efetivodesenvolvimento e autonomia científica ao país. Isto é utopiapara o HU/USP? No nosso entender há recursos financeiros,espaço físico e profissionais interessados e dispostos a isso;basta que a reitoria e a superintendência revejam a opçãoadotada que, no momento, não nos leva a lugar algum.

Os HUs não podem e não devem ser substitutos da re-de hospitalar. Explicitamente o HU/USP não deve e nãoprecisa sê-lo. O governo de São Paulo, se quiser, tem re-cursos para investir na área de saúde. Estamos sob o riscode ter um local no qual o ensino e a pesquisa sejam sufo-cados pela necessidade do atendimento aos pacientes,que, logicamente, não devem ser relegados. O risco, aliás,já é real no HU/USP. Novamente, se formos compará-locom outros hospitais, as condições são melhores. Mas porque são melhores, se há falta de pessoal, especialmentenas áreas médicas e paramédicas? Se existem aparelhos eequipamentos sobrecarregados por serem em número re-duzido? Se existem aparelhos e equipamentos subutiliza-dos por não existirem técnicos para operá-lo? As condi-ções são melhores porque o corpo de funcionários, de to-das as categorias, se supera.

É urgente, portanto, que se repense a filosofia de en-sino, de pesquisa e de atendimento à comunidade pro-posta para o HU. Caso contrário, ele até poderá estarbem financeiramente, porém o ensino e a pesquisa nãosairão da UTI.

Professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Uni-versidade de São Paulo e diretora da Adusp.

Page 8: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

po, diz que ele foi atendido bem erapidamente no Pronto Atendi-mento, onde uma pequena cirurgiafoi feita em sua perna. E como seuferimento era grande e estava mui-to infectado, os médicos disseramque ele precisaria ser internado.

No entanto, segundo a assistentesocial que o atendeu, ele não pode-ria ser internado no HU, porquenão era morador da região. Em fun-ção disso, a assistente passou a fazercontato com hospitais do SUS quepudessem recebê-lo. Até a noite,não havia conseguido vaga. Come-çou então uma pressão da famíliade Josué para que o HU o internas-se. Sua alegação era a de que os ou-tros hospitais estavam superlotados,por causa da tragédia, o que de-mandava a solidariedade de todos.Finalmente, às 9h00 do dia seguin-te, o HU internou Josué Pádua.

“Ele ficou 8 dias e foi muitobem tratado por médicos e funcio-nários”, diz Maria de Lurdes.“Mas foi muito triste ver os médi-cos todos aguardando, ansiosos, achegada das vítimas, que atravésdo Resgate nunca chegaram. Foimuito triste ver que um hospitaltão bom e com tanta estrutura nãose dispôs a ajudar ninguém”.

Contribuinte Insatisfeito

No momento em que a reporta-gem visitava o setor de recepção etriagem do HU, o juiz de direitoRubens Rihl passava pelo corre-dor, empurrando pessoalmenteuma maca onde uma moça estavadeitada. Tratava-se da empregadadoméstica que trabalha em sua ca-sa e que havia sofrido uma queda

da escada. Rihl havia chegado aohospital cerca de uma hora antes e,nesse período, havia preenchidouma ficha com os dados da moça.Ela fora atendida por um médico,que fizera um diagnóstico rápido ea encaminhara para a ortopedia,onde fora submetida a radiografias.Aconselhado por funcionários, eleresolveu empurrar a maca com apaciente e as radiografias de voltapara o médico, pois “assim é maisrápido”. Pelo que observou nas sa-las de radiografia, nem todas emfuncionamento, Rubens Rihl con-clui que o Hospital Universitárioda USP carece de equipamentos e

de pessoal. Residente no Butantã,é a primeira vez que procura o hos-pital e, segundo sua opinião, oatendimento do HU parece supe-rior ao dos demais hospitais públi-cos. “Como contribuinte, no entan-to, não estou satisfeito, pois achoque poderia ser ainda melhor”, ésua conclusão.

Duas outras pacientes, queaguardavam ser recebidas pelosmédicos, têm opinião mais favorá-vel. Mercedez Aparecida Domin-gues, de 56 anos, residente no Bu-tantã, usa o HU há 10 anos. Diabé-tica, já fez ali a amputação de doisdedos do pé e sempre considerou o

10

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

Page 9: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

11

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

atendimento ótimo. Nesse dia,chegou ao hospital às l5h00. Preen-chera ficha, fora atendida pelo mé-dico, que pediu uma drenagem nopé, e às l6h40 estava sendo chama-da para fazer a drenagem.

Rosana Reis Bonoldi, que aacompanhava, também residentedo Butantã, diz que toda a sua fa-mília usa o hospital para consultas,exames e cirurgias e está satisfeitacom o atendimento. “Espera-se sóum pouquinho”, observa.

Walter José Fernandes, assis-tente técnico de direção da supe-rintendência do HU, admite quehá algumas vagas de recepção não

preenchidas, por não terem aindasido liberadas pela USP. E que al-guns equipamentos funcionamapenas durante o dia, pois não háfuncionários em número suficientepara monitorá-los em tempo inte-gral. Mas não considera que aquestão seja grave e afete o funcio-namento do hospital.

Opinião dos funcionários

Diretora do Sindicato dos Tra-balhadores da USP, Dinizete Apa-recida Xavier não concorda com aopinião de Walter Fernandes. Dizela: “De maio de 1995 a junho de

96, o HU demitiu cerca de 200 fun-cionários. Nesse período, houveampliação de leitos. Os funcioná-rios reclamam que não estão dandoconta do trabalho, que têm de sedividir para atender suas unidadesmais as outras que foram abertasou ampliadas”.

Segundo ela, quando um funcio-nário do HU pede demissão é logosubstituído, mas quando é demitido,a reposição demora. “Há falta defuncionários na enfermagem, na clí-nica médica, na clínica cirúrgica ena UTI de clínica médica”, garante.

E faz duas denúncias: o HUnão tem manutenção preventivaadequada nem fornece aos funcio-nários da manutenção equipamen-tos de proteção. No ano passado,por falta de manutenção, houveum incêndio na lavanderia do hos-pital. Neste, por falta de equipa-mentos de proteção, um funcioná-rio queimou um braço e o rosto aotestar uma caixa de luz. Processosrelativos aos dois acidentes estãocorrendo na Secretaria das Rela-ções do Trabalho.

Ceará

Símbolo da crise que há mais de20 anos atinge os hospitais universi-tários de todo o país, o Walter Can-tídio, no Ceará, vive há algum tem-po sob constante ameaça de fecha-mento em função de um déficit fi-nanceiro acumulado com os forne-cedores que já atingiu a casa deR$ 1,5 milhão. Vários setores deatendimento ao público foram de-sativados no início deste ano e mui-tas operações deixaram de ser pro-cedidas por falta de anestésico, lu-

Daniel Garcia

Page 10: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

vas e outros materiais básicos. Aemergência do hospital está até ho-je desativada por falta de recursos.

Com 239 leitos, 120 consultóriose 5 salas de cirurgia, o Hospital dasClínicas Walter Cantídio atendeu,somente em julho do ano passado,180 mil pacientes, muitos deles deoutros estados do Nordeste, proce-dendo a 500 internações, 1.099 ci-rurgias, 15.634 consultas médicas,29 mil atendimentos de patologiaclínica, 651 sessões de hemodiáli-se,163 de quimioterapia e 1.547 defisioterapia, além de 1.940 examesdos mais variados tipos.

Principal formador de recursoshumanos em medicina, enferma-gem, odontologia e farmácia, emnível técnico, de graduação e depós-graduação, e com atendimentoem todas as especialidades nasáreas clínica e cirúrgica, o hospitalenfrenta uma crise cíclica, segundoa médica Terezinha Braga, do Sin-dicato dos Médicos do Ceará.

“É importante ressaltar que a

crise do Walter Cantídio é uma criseantiga, que vem se arrastando há al-guns anos, com períodos de extrava-samento em que toda a comunidadeuniversitária se manifesta unitaria-mente em defesa do hospital exata-mente pela função social que elecumpre, não só do ponto de vista doaprendizado mas principalmente doatendimento à população”, afirma.

Saúde financeira

“A coisa mais grave que já acon-teceu é que, como o Ceará não ti-nha rede estatal própria, recorria-se a serviços da rede privada. Como baixo pagamento do SUS, a redeprivada, embora não tenha se des-credenciado, evita atender os pa-cientes pobres. E eles vão para oWalter Cantídio, um dos poucosque ainda conseguem funcionar,embora precariamente”, diz o pro-fessor Luiz Porto, do Departamen-to de Cirurgias do hospital.

Por causa disso, afirma, o Wal-

ter Cantídio acaba tendo de pres-tar atendimento aos casos maisgraves, mais onerosos, mais difíceise que precisam de mais assistência,o que acaba agravando ainda maisa saúde financeira da instituição.

“A hematologia consome quase30% do custo total do hospital,mas ali é o único local no Cearáem que os pacientes hematológi-cos podem ser atendidos. Então,em hipótese alguma pode-se pen-sar em desativá-lo. Pelo contrário,mereceria mais investimentos”,observa Luiz Porto.

O próprio SUS, segundo o pro-fessor, contribui para asfixiar fi-nanceiramente o Walter Cantídiocom algumas distorções. “Há pro-cedimentos implantados lá que po-deriam custar menos em termos detratamento, mas que acabam sain-do bem mais caros. É o caso, porexemplo, da colestectomia laparos-cópica (retirada de vesícula por ummétodo mais moderno), em que opaciente pode ir para casa no mes-

12

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

RECURSOS DO SUS ALIMENTAM AS FRAUDES NOS HOSPITAIS PRIVADOS(Washington Sidney-Agência Andes) Além de gastar

pouco em saúde pública –duas vezes menos que Uruguai eArgentina e cinco vezes menos que a Costa Rica–, o go-verno do presidente Fernando Henrique Cardoso aplicamuito mal os recursos destinados ao setor.

Somente no ano passado os hospitais particulares con-sumiram entre 10% e 30% dos recursos do Sistema Únicode Saúde (SUS) com as mais diferentes modalidades defraudes, como cobrança de consultas não realizadas, servi-ços superfaturados e exames complementares em excesso.

A estimativa consta de um relatório de 156 páginas pro-duzido, sob encomenda do Banco Mundial, pelos economis-tas Cláudio André Czapski e André Cezar Medici, este últi-mo na condição de consultor do banco para a área de saúde.Eles chegaram a essa conclusão a partir de um trabalho demapeamento das principais fraudes praticadas hoje no Siste-ma Único de Saúde (SUS).

No documento, intitulado Evolução e Perspectivas dosGastos Públicos com Saúde no Brasil, o diagnóstico doseconomistas é preocupante: as fraudes acontecem e se mul-tiplicam porque “falta aos responsáveis pela área de saúdeforça política para estabelecer as prioridades orçamentá-rias, que não são definidas em função dos interesses sociais,mas dos interesses de grupos particulares organizados”.

Eles afirmam, no documento, que uma aliança entreadministradores de hospitais oportunistas e uma máquinaadministrativa imobilista tem impedido que o governo fe-deral adote procedimentos que poderiam reduzir signifi-cativamente as fraudes no setor. Isso significa que as frau-des são o resultado da combinação de dois problemas: afalta de um sistema adequado de fiscalização e controle ea defasagem dos valores pagos aos prestadores do SUS.

Até hoje, segundo técnicos do Instituto de PesquisasEconômicas Aplicadas (Ipea), órgão ligado ao Ministério

Page 11: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

13

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

mo dia. Mas o SUS só paga se opaciente passar no mínimo cincodias no hospital”, afirma.

Segundo ele, o diretor da uni-dade tem dito aos médicos e fun-cionários que as despesas estãosendo equilibradas, mas a John-son & Johnson se recusa a forne-cer novos materiais mesmo no ca-so de pagamento à vista. Só reto-mará o fornecimento quando ohospital quitar a dívida que man-tém com a empresa.

“O que acontece, em funçãodesse atraso de pagamento, é queo hospital muitas vezes se vê obri-gado a comprar materiais a preçosextorsivos. Isso porque as empre-sas que estão com dinheiro por re-ceber não fornecem, e a solução écomprar no mercado pelo preçoque for oferecido”, acusa.

No fim do ano passado, estu-dantes e médicos residentes doWalter Cantídio fizeram uma grevede protesto contra o descaso dogoverno com o hospital. Tiveram

audiência com o ministro da Saú-de, Adib Jatene, durante visita queeste fez ao Ceará. Na ocasião, Ja-tene teria dito que o problema nãoera de seu ministério.

Ao ouvir dos grevistas que o hos-pital cobria um déficit de atendi-mento no setor de saúde pública doCeará e de outros estados do Nor-deste, o ministro se limitou a dizerque isso era uma coisa contingenciale que, com a regulamentação doICMS, a rede privada assumiria oatendimento dos pacientes maisgraves, desafogando o hospital.

Brasília

Um paciente chegou infartado hátrês meses na emergência do Hospi-tal Universitário de Brasília (HUB)e não conseguiu internamento porfalta de leito. Deu sorte de esbarrarcom a funcionária Lúcia de FátimaFarias, que, na ausência de uma am-bulância, transferiu-o no própriocarro para o Hospital de Base.

A sorte do paciente, na verda-de, foi bem maior. Se tivesse con-seguido o internamento no HUBpoderia ter morrido de calor e fal-ta de ar, pois as salas de reanima-ção e cirurgia são fechadas, escu-ras e sem ventilação e os respira-dores mecânicos estão quebrados.

Se desse o azar de encontraruma das duas ambulâncias disponí-veis para a transferência naquelemomento –situação pouco prová-vel diante do aumento crescentede demanda da população da re-gião do entorno do Distrito Fede-ral–, só respiraria o vento que en-trasse pelas janelas do carro. Osveículos não estão equipados comaparelhos de oxigênio.

Aliás, por causa da falta de umrespirador mecânico na emergên-cia do HUB (existem dois quebra-dos), recentemente um médico te-ve de fazer respiração boca-a-bocanum paciente que chegou passan-do mal ao hospital.

Asfixiados, na verdade, estão

do Planejamento, não foi feito nenhum levantamento ca-paz de registrar números confiáveis sobre o volume globaldas fraudes.

Mas se for considerada a estimativa dos economistas, odesperdício na saúde (investimento sem retorno) no anopassado ficaria em torno de R$ 2 a R$ 6 bilhões, dinheirosuficiente para reequipar e tirar da crise financeira os hos-pitais universitários federais. Ao todo, foram investidos nasaúde, no ano passado, R$ 20 bilhões.

Para se ter uma idéia das fraudes que se avolumam en-quanto o ministro da Saúde, Adib Jatene, empreende umavia crucis no Congresso para aprovar a Contribuição Provi-sória sobre Movimentação Financeira (CPMF), só no Riode Janeiro a Polícia Federal abriu, em abril deste ano, 267inquéritos contra hospitais conveniados, dando início àmaior investigação já realizada na gestão do SUS no estado.

Os inquéritos, abertos com base em auditoria feita pelaProcuradoria Geral da República em 290 hospitais, estãosob a responsabilidade do delegado Matheus Casado Mar-

tins. Os responsáveis pelas fraudes causaram, só no anopassado, um desvio de R$ 90 milhões nas verbas destina-das pelo Ministério da Saúde ao estado.

As fraudes na cobrança de Autorizações de InternaçãoHospitalar envolvem praticamente todos os hospitais degrande porte do Rio, entre eles o Sousa Aguiar, no Cen-tro, e o Miguel Couto, na Gávea. A Polícia Federal haviaaberto um único inquérito para apurar todas as fraudes,mas acabou por desmembrá-lo para evitar que um prová-vel envolvimento de políticos leve todo o processo para fó-runs especiais de julgamento.

No Maranhão, investigação promovida por 13 auditorestambém constatou que fraudes como superfaturamento, ex-cesso de internações, consultas e manipulações de prontuá-rios se tornaram rotina em quase todos os hospitais particu-lares conveniados ao SUS. A auditoria foi entregue ao mi-nistro Adib Jatene e ao procurador-geral da República, Ge-raldo Brindeiro. Se for instaurado, o processo administrati-vo pode resultar no descredenciamento de seis hospitais.

Page 12: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

todos: o hospital por falta de re-cursos, os pacientes pela precariza-ção do atendimento, os estudantespela queda da qualidade do ensinoprático, a Universidade de Brasília,que administra o hospital e nãotem verba nem para pagar serviçosbásicos como limpeza, e os médi-cos, enfermeiros e funcionáriostécnico-administrativos pela sádicacombinação de excesso de trabalhoe baixos salários.

Do lado de fora do hospital oquadro não é diferente. Por causada insuficiência de médicos espe-cialistas, quase sempre se podetestemunhar, no início da manhã,pacientes dormindo na fila à es-pera de atendimento. Ou então,nos casos mais graves, deitadosem macas aguardando a desocu-pação de leitos.

Em novembro do ano passadohouve um dia em que, por causada greve dos médicos em Brasília,cerca de 3 mil pessoas fizeram filana porta do hospital para a marca-ção de consultas e atendimento deemergência. Nesse mesmo dia,por não suportar mais a pressão,uma médica pediu as contas. “-Não vim aqui para ver as pessoasmorrerem por falta de atendimen-to”, teria desabafado, segundo osfuncionários.

Pronto-atendimento

O caso da médica que se demi-tiu não é isolado. Com salários bai-xíssimos –em torno de R$ 600,00–e enfrentando uma jornada de tra-balho de 18 horas semanais, queacaba sempre extrapolada por cau-sa do acúmulo de pacientes, os mé-

dicos da emergência estão deixan-do o hospital. Os funcionários cal-culam que 10% deles já saíram delá desde o início do ano.

“Isto aqui é uma verdadeira co-berta de pobre. O ambulatórionão dá vazão à demanda, o que le-va as pessoas a lotarem a emer-gência. O resultado disso é que aemergência, sem condições defuncionar como tal, está virandouma espécie de pronto-atendi-mento”, afirma a funcionária Lú-cia de Fátima Farias, o anjo-da-guarda do paciente infartadotransferido para o HBB.

Eleita recentemente para a di-reção do Sindicato dos Trabalha-dores em Saúde e Previdência So-cial do DF (Sindprev), Fátima afir-ma que a emergência do hospitalnão dispõe no momento de neuro-logista e ortopedista e há poucoscardiologistas, o que acaba causan-do falhas na escala e comprome-tendo o atendimento.

Planejado e construído paraproceder a 200 internações e 2 milconsultas por mês, o HUB setransformou, ao longo dos últimosanos, num depósito de pacientes.A demanda cresceu assustadora-mente em função da migração pro-vocada pela política de assenta-mentos do ex-governador JoaquimRoriz, e o hospital mantém a mes-ma estrutura da década de 60,quando foi fundado. Em marçodeste ano, registrou 1.050 interna-ções e 3 mil consultas.

“A verdade é que o hospitalveio assumindo novas atribuiçõescom o mesmo tamanho. Cresce-ram as internações e não houveampliação de sua capacidade ope-

racional. Os recursos humanos e afalta de definição de investimen-tos são, hoje, os maiores proble-mas. Para se ter uma idéia da gra-vidade da situação, em 1990 havia1.482 servidores trabalhando aqui,quadro reduzido hoje para 745”,afirma o diretor do HUB, EliasTavares de Araújo.

Lotados no Instituto Nacionalde Seguridade Social (INSS), essesservidores, por sinal, deverão re-presentar, em futuro próximo, maisum complicador no difícil históricodo hospital. A previsão do diretorElias Tavares é de que a maioriadeles venha a entrar na Justiça rei-vindicando direitos trabalhistas.

O mais dramático é que, doponto de vista desse pessoal, oHUB ficou na seguinte situação:ruim com eles, pior sem eles, pois oMinistério da Administração e daReforma do Estado (MARE), em-bora conhecendo a grande reduçãodo quadro de funcionários, não au-toriza contratações. “Nem adiantafazer concurso”, diz o diretor.

Tendo como única fonte de ar-recadação as Autorizações de In-ternações Hospitalares (AIHs) pa-gas pelo SUS, que correspondemem média a R$ 640 mil por mês, ohospital só consegue acumular,além de demanda de pacientes, dé-ficits financeiros.

“No ano passado tivemos umadefasagem de R$ 1,1 milhão entreo faturado e o repassado pelo Mi-nistério da Saúde. Isso aconteceuporque o atendimento ultrapassouo teto financeiro. Mas não pode-mos deixar de atender as pessoaspor causa da falta de dinheiro”,desabafa o diretor.

14

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

Page 13: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

15

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

Segundo ele, o SUS está re-passando ao hospital, atualmen-te, R$ 2,04 por consulta, R$ 3,47por ecografia de gravidez eR$ 3,40 por internação. “Comose pode manter internada umapessoa com R$ 3,40 dando seisalimentações ao dia, medicamen-tos, material médico-hospitalar eainda pagar honorários médi-cos?”, questiona.

Construído pelo antigo Institu-to de Aposentadoria e Pensão dosServidores do Estado (Ipase), noinício da década de 60, o HospitalUniversitário de Brasília (HUB)tem uma história cíclica de acu-mulação de demanda por atendi-mento e de redução do quadro deservidores. Não é à toa, portanto,que se tornou um velho depósitode pacientes.

O primeiro incremento de de-manda aconteceu pouco depoisque o hospital foi inaugurado,quando se transformou em Hospi-tal dos Servidores da União (-HSU) e, através de acordo com oDASP, se viu obrigado a prestaratendimento a todos os funcioná-rios públicos da Administração Di-reta e Indireta de Brasília.

Extinto o Ipase, em 1978, ohospital começou a ser gerido pe-lo Inamps, que passou a utilizá-lono atendimento a toda a clientelade segurados da Previdência So-cial. Foi o segundo incremento dedemanda, sem que o HUB rece-besse qualquer investimento paraampliação da estrutura física e dematerial humano.

Em 1980, o Ministério da Previ-dência Social firmou contrato decomodato com a Universidade deBrasília (UnB). Cursos como Nu-trição, Enfermagem, Educação Fí-sica e até Arquitetura e Agrono-mia passaram a ser apoiados pelohospital. Chegava-se assim ao ter-ceiro aumento de demanda, poisalém do atendimento à saúde dossegurados da Previdência o hospi-tal ainda apoiava as ações de ensi-no e pesquisa da UnB.

O fim do regime de comodatoacabou em 1990. Através de umcontrato de cessão de uso, a UnBpassou finalmente a gerir o hospi-tal. Só que sem dinheiro para tan-to. Nessa época, o HUB tinha1.482 servidores dos quadros do ex-Inamps, que mantinha ainda con-tratos de terceirização com 490prestadores de serviço.

Segundo o atual diretor doHUB, como a universidade não ti-

Pacientes na enfermaria do Hospital Universitário da UnB.

Ronaldo de Oliveira/Correio Braziliense

Page 14: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

nha recursos, rescindiu to-dos esses contratos e passoua contratar pessoas físicassem concurso público, o queacabou resultando na quedada qualidade do serviço. Porconta da saída em massa deservidores do antigo Inampsdo hospital, o Ministério daAdministração e da Refor-ma do Estado (MARE) te-ve de alocar para lá, no anopassado, 689 funcionáriosde outros órgãos.

O quarto e último au-mento de demanda aconte-ceu a partir de 1988, com oatendimento de toda aclientela do SUS associadoà explosão demográfica doDistrito Federal.

“É um quadro difícil. O gover-no tem feito promessas de investirdinheiro no hospital e ampliar oquadro de funcionários, mas de1994 para cá nenhuma se concreti-zou. O resultado disso é a constan-te evasão de quadros, o sucatea-mento dos equipamentos e o cres-cente endividamento”, afirma o di-retor do Hospital da Universidadede Brasília.

Ele admitiu que são freqüentesa formação de filas de atendimentona porta do hospital e a existênciade pessoas deitadas em maca espe-rando a desocupação de leitos. Ajustificativa é a mesma de médicose funcionários: falta de investimen-tos. “Hoje temos 280 leitos quandopoderíamos ter 400. Temos um an-dar completamente vazio porque osleitos não foram ativados. Há umprojeto para a reforma desse andar,mas infelizmente faltam recursos.”

Soluções

Salve-se quem puder. Esse é odesafio que vêm enfrentando nosúltimos tempos os hospitais uni-versitários, último baluarte do Sis-tema Único de Saúde (SUS). Parasobreviver aos déficit financeirosacumulados ao longo dos anos e àdependência de financiamento es-tatal, eles estão recorrendo a tu-do, desde os lobbies junto às ban-cadas federais de seus estados pa-ra a inclusão de emendas ao orça-mento da União até a formaçãode convênios com prefeituras eempresas privadas.

Comprimidos pelas pressõesacadêmicas por uma prática de en-sino de qualidade, pelas pressõessociais (excesso de demanda) e pe-la falta de interlocutores, os hospi-tais universitários começam a colo-car em prática duas novas estraté-gias de sobrevivência: a busca de

soluções imediatas para os proble-mas estruturais no nível regional ea formação de movimentos deconscientização para a manuten-ção da universidade pública e seusfinanciamentos.

A nova estratégia foi definidanos dias 16 e 17 de maio desteano, durante reunião dos direto-res de hospitais universitários emBrasília. O evento contou com aparticipação de dirigentes dos di-versos segmentos da área acadê-mica, dos ministérios da Saúde eda Educação e do Conselho Na-cional de Saúde.

“O hospital universitário temuma grande missão social e preci-sa ser protegido porque senão aprópria sociedade o mata por ex-cesso de demanda. E com isso ma-ta também a qualidade da assis-tência e a qualidade da formaçãode recursos humanos”, alerta omédico Carlos César Silva de Al-

16

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

Ronaldo de Oliveira/Correio Braziliense

Centenas de pessoas na fila do HU/UnB para marcar consultas.

Page 15: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

17

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

buquerque, presidente da Asso-ciação Brasileira de HospitaisUniversitários e de Ensino.

Segundo ele, duas coisas fica-ram claras no encontro: falta aosreitores uma preocupação especialcom os HUs, um dos setores quemelhor cumprem o papel da uni-versidade moderna de servir à so-ciedade, e uma definição mais cla-ra da relação dos três níveis de go-verno com o SUS.

“Não podemos mais ficar só nadependência de uma solução fede-ral. Temos de procurar o diálogolocal, pelo menos como ação ime-diata, até que se consiga definirmelhor quem é responsável peloquê dentro de um hospital nestasua inter-relação com Ministérioda Educação, Ministério da Saúde,estados, municípios e sociedade”,afirma Albuquerque.

Ele considera que a última reu-nião da associação representou umgrande avanço do ponto de vistada mudança de mentalidade dosdiretores de hospitais. Antes, afir-ma, eles só se reuniam para sequeixar da falta de financiamento,do sucateamento dos equipamen-tos, dos baixos salários e do exces-so de demanda. No último encon-tro, foram discutir soluções eidéias para reverter o quadro.

“Outra coisa que acho impor-tante é que também se discutiu osistema nacional de saúde. Já nãoé mais de um lado o SUS e de ou-tro as empresas, os municípios eos estados. E a tendência dos di-retores de hospitais é que essadiscussão não se restrinja mais aoSUS, não se limite mais ao siste-ma estatal, mas que se estenda ao

sistema nacional de saúde, o quenão quer dizer privatização”, afir-ma Albuquerque.

Ele admite que alguns hospitaisuniversitários estão recorrendo aosgrandes grupos de medicina priva-da para manter alguns setores emfuncionamento e alerta que a si-tuação dessas unidades tende a seagravar se medidas concretas nãoforem tomadas a curto prazo paratirá-los da crise financeira.

“Sem a CPMF, sem uma refor-mulação global da política de saú-

de, sem uma definição mais clarade quem é quem no sistema e comquem se negocia, a tendência doshospitais universitários é muitocomplicada. Temos de atender tu-do, desde a dor de barriga até aAids. Os outros, bem ou mal, es-tão tentando se ajeitar, mas nósnão podemos fechar porque so-mos públicos. Nem recusar pa-cientes. Talvez essas soluções lo-cais possam contemporizar umpouco enquanto se busca a luz nofim do túnel”, diz. RRA

(Washington Sidney-Agência An-des) Há oito anos sem receber qual-quer tipo de investimento e com orepasse de verba do SUS atrasadodesde dezembro, o Hospital das Clí-nicas da Universidade Federal deMinas Gerais encontrou na prefeitu-ra petista de Patrus Ananias o aliadocerto para superar as dificuldadesacumuladas há anos e ampliar suacapacidade de atendimento.

Convênio assinado este ano com aprefeitura garantirá ao hospital umaverba de R$ 3 milhões, dinheiro queserá aplicado na instalação de 150 lei-tos, ampliação do CTI de sete para 25leitos e construção de cinco salas decirurgia, informou o diretor JuarezOliveira Castro.

“O Hospital das Clínicas, a exem-plo dos demais hospitais universitá-rios, passou por uma crise financeiramuito grande e esteve em vias de fe-char no ano passado. Não tinha di-nheiro sequer para comprar coisas bá-sicas, como esparadrapo e medica-mentos. Diante dessa crise, a prefeitu-ra propôs esse convênio para a aber-tura de um serviço de emergência,que até então o hospital não tinha”,afirma Fabiano Gonçalves Nery, pre-sidente da Associação Mineira dosMédicos Residentes (Amimer).

Na avaliação dele, o convênio é

uma tábua de salvação para o Hos-pital das Clínicas, diante da crise ge-neralizada dos hospitais universitá-rios. “Uns estão fechando, outrostendo de fazer campanhas de doa-ções. Essa foi uma boa alternativa,pois, além de sair da crise, o hospi-tal terá sua capacidade de atendi-mento ampliada”, comemora.

Sergipe

Com um déficit mensal em tornode R$ 15 mil –gasta R$ 100 mil comatendimento e recebe cerca de R$ 75mil do SUS– o Hospital Universitáriode Sergipe também conseguiu umbom aliado para superar o quadro dedificuldades: a bancada federal sergi-pana na Câmara.

Graças a uma emenda apresenta-da ao orçamento da União, comapoio do deputado Marcelo Déda(PT-SE), o hospital receberá R$ 1milhão este ano dinheiro que, segun-do o diretor Osman Calixto Silva, de-verá ser utilizado na construção deum centro de formações que incluibiblioteca e auditório, de um labora-tório de técnica operatória, e na Uni-dade de Terapia Intensiva. A emendaprevia R$ 3,2 milhões, mas foi reduzi-da em função dos cortes feitos pelabancada governista.

EM BH, CONVÊNIO COM A PREFEITURA

Page 16: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

Aquestão do ensino superior pago ougratuito, ao lado do papel do Estadona educação, tem suscitado debatescandentes, relacionados com os pro-blemas de modernização, de raciona-lização dos recursos e de eficiência

do funcionamento das universidades, em especialdas universidades públicas. Muitas das soluções paraesses impasses apontam o ensino pago e o crescenteafastamento do Estado de suas responsabilidades so-bre o ensino superior como a única salvação. Nesteponto das discussões, comumente, os Estados Uni-

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

18

UNIVERSIDADES PÚBLICAS E PRIVADAS

NO BRASIL E ESTADOS UNIDOS

Maria Ligia Coelho Prado

Page 17: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

dos são invocados como exemplo a ser seguido. En-fatiza-se a excelência de suas universidades, mos-trando sutilmente que tal nível deve-se, basicamen-te, a seu sistema de escolas privadas. Em torno des-ses temas criaram-se diversas falácias. Este artigo ésobre algumas delas.

Para começar, é preciso entender alguns aspectosdo funcionamento do ensino de terceiro grau nos Es-tados Unidos. De maneira geral, está diretamente re-lacionado às especificidades da sociedade americana,responde às necessidades do mercado de trabalho,oferecendo escolas com diversos graus de qualidade eexigência, desde os community colleges (escolas dedois anos de duração, em áreas pobres) até as univer-sidades mais conceituadas. O controle estatal se apre-senta radicalmente descentralizado e a competitivida-de entre as escolas é intensa. Todos os alunos pagam,cursem estabelecimentos públicos ou particulares.Entretanto, as instituições privadas não são entendi-das como empresas que visam reproduzir seu capital,e correr em busca de lucros, como qualquer negócio.

Analisemos, por exemplo, o orçamento da Uni-versidade de Stanford, uma das maiores, mais im-portantes e mais caras universidades privadas norte-americanas. O orçamento consolidado para o anoescolar de 1991/1992 foi de US$ 1 bilhão em núme-ros redondos. Os custos diretos e indiretos com pes-quisa estavam estimados em US$ 349 milhões, maisUS$ 138 milhões para sustentar o acelerador linear.Os fundos do governo federal pagavam mais de 90%desses custos, significando 43% da receita total. Asanuidades dos alunos somavam US$ 175 milhões, is-to é, aproximadamente 17% do total. Para cobrir osdemais gastos, as fontes eram doações de particula-res, rendas do patrimônio, propriedades e patentes.

A primeira conclusão a ser extraída da análisedesse orçamento é a importância central dos recur-sos federais para a pesquisa. No Brasil, existe umafalsa idéia de que, nos Estados Unidos, a pesquisa éfinanciada pelas empresas, que mantêm uma ligaçãoumbilical com as universidades. Sem dúvida, há em-presas que financiam pesquisas em determinadoscampos específicos de seu interesse, mas a pesquisabásica, em ciências e humanidades, se desenvolvenas universidades, com o apoio insubstituível do Es-

tado. No paraíso do neoliberalismo, o Estado conti-nua “intervindo”, proporcionando condições finan-ceiras para a sustentação da pesquisa acadêmica.Sem esse apoio não há pesquisa e não há universida-de séria em qualquer país do mundo.

O outro ponto interessante diz respeito ao paga-mento de anuidades; como vimos, elas não atingemnem 20% (esta é a regra geral para qualquer universi-dade paga), da receita arrecadada, portanto, uma par-te minguada do total. Com o agravante de que asanuidades de uma grande universidade –Yale, Stan-ford, Harvard, Columbia– são altíssimas, mesmo paraos padrões norte-americanos, pois estão na casa dosUS$ 20 mil. Numa universidade estadual pública, oaluno paga entre US$ 6 e 8, isto sem contar os gastoscom alojamento, alimentação e livros. Daí os progra-mas de empregos nas universidades, e as bolsas e em-préstimos, garantidos pelo governo federal, tanto aosalunos das escolas públicas, quanto das particulares.

Para se avaliar a extensão do programa america-no de bolsas, vamos a alguns dados. Em 1993, 5 mi-lhões de estudantes tinham empréstimos do governofederal, o que significava quase 40% do total de alu-nos. Os números completos a respeito dos emprésti-mos realizados são difíceis de pesquisar, mas pode-se avaliar sua importância tomando um dado recentesobre as dificuldades que os formandos vêm encon-trando para pagar suas dívidas. No ano fiscal norte-americano de 1992, ex-alunos que contrataram em-préstimos durante seus anos de estudos deixaram depagar quase US$ 3 bilhões aos cofres públicos. (NewYork Times, 7 de fevereiro de 1993.)

Brasil

Passando ao Brasil, o ensino superior possui ca-racterísticas bem diversas das norte-americanas, quepodem ser assim resumidas: controle estatal centra-lizado, padrões homogêneos na estruturação de cur-sos e reformas do ensino pensadas de maneira uni-forme para todo o território nacional. A competitivi-dade entre as escolas superiores brasileiras é bastan-te restrita, pois todo o sistema está organizado demaneira a não alimentá-la.

Outra radical diferença diz respeito às escolas de

19

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

Page 18: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

ensino privado. Com exceção dos estabelecimentosconfessionais, como as PUCs, elas se organizam co-mo empresas, com fins lucrativos imediatos. Nos Es-tados Unidos, não se negam outros interesses em jo-go, como prestígio, status ou influência política. Masnunca prevalece a visão estreita que, no Brasil, pre-tende transformar um “dono” de universidade numempresário de sucesso.

As críticas constantes às universidades públicasbrasileiras insistem na necessidade do afastamentoparcial ou completo do Estado de suas funções tra-dicionais. Porém, nos Estados Unidos, como vimos,o Estado se constitui no suporte mais sólido de sus-tentação da pesquisa e da qualidade de ensino.

Quanto à implantação do ensino pago como o “-deus ex machina” da educação superior brasileira,vale relembrar que a porcentagem das anuidades noorçamento global de uma universidade norte-ameri-cana é bastante pequena e que existe um enormeaparato de ajuda aos estudantes mais pobres atravésde empréstimos e bolsas do governo federal. NoBrasil, mesmo aqueles que advogam o ensino pagonas universidades públicas, admitem ser fundamen-tal a criação de um sistema de bolsas, o que implica-ria, obviamente, a organização de uma burocraciapara atender seu funcionamento. Para montá-lo, se-riam necessários investimentos públicos significati-vos, o que diminuiria bastante –provavelmente em10%– a receita advinda do pagamento das mensali-dades dos alunos. Em suma, toda a pretendida salva-ção através do ensino pago estaria reduzida a unsmíseros 7% do total do orçamento.

No entanto, é possível afirmar que, mesmo nãoresolvendo os problemas, esta pequena parcela aju-daria a manter o ensino público de terceiro grau. Pa-ra responder a esse argumento, é necessário pensara universidade dentro do contexto mais amplo da so-ciedade e da cultura brasileiras. O Brasil é um paíspobre e sua população vem sofrendo, nas últimas dé-cadas, um rebaixamento ainda mais forte de seu po-der aquisitivo. Em segundo lugar, o número de alu-nos em estabelecimentos pagos é já superior –60%contra 40%– ao daqueles que não pagam. Estou cer-ta de que o ensino pago transformará a universidadebrasileira, que, no presente, já se destina a uma mi-

noria da população, em uma instituição ainda maisfechada e menos democrática. No Brasil, 11,3% dapopulação entre 20 e 24 anos está matriculada emescolas de terceiro grau, enquanto na Argentina estaporcentagem sobe para 36,4%, no Uruguai para35,8%, e na Venezuela para 26,4%, para tomarmosexemplos latino-americanos, segundo dados levanta-dos por Simon Schwartzman.

Os alunos da USP são o exemplo sempre invoca-do como a “prova” mais evidente de que o ensinodeve ser pago nas universidades públicas, pois todosos estudantes teriam condições materiais para tanto.Em primeiro lugar, na USP, há alunos de todas asclasses sociais, inclusive um número elevado de estu-dantes com baixíssimo poder aquisitivo. Basta umavisita aos muitos cursos da Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas para que se comprovetal afirmativa. Além disso, não se pode reduzir o de-bate aos alunos de uma única universidade brasilei-ra. A USP não representa o Estado de São Paulo e,muito menos, o Brasil.

Para concluir, ao analisar os problemas do ensi-no superior brasileiro, é fundamental levar-se emconta a história de suas instituições e a dinâmica dasociedade da qual fazem parte. Estabelecer compa-rações exige muitos cuidados, entre eles o de nãorestringir tal exame a escolhas arbitrárias de um queoutro elemento que compõe sistemas complexos,para aplicá-lo ao Brasil. O ensino pago, nos EstadosUnidos, se enquadra dentro de um sistema muitodiferente do brasileiro, e, entre outras especificida-des, conta com mecanismos que garantem minima-mente o acesso –mantido pelos recursos do Estado–de parte significativa da população à educação su-perior. No Brasil, a adoção do ensino pago nas uni-versidades públicas ampliará as dificuldades que osjovens brasileiros encontram, já no presente, paracursar escolas de terceiro grau. A retirada do Esta-do, ainda que parcial, do campo do ensino superior,conduzirá, com toda a certeza, a um rebaixamentogeral da qualidade de ensino, à destruição da pes-quisa e à ruína de um patrimônio público tão sofri-damente construído.

Maria Ligia Coelho Prado é professora do Departamentode História da Universidade de São Paulo.

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

20

Page 19: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

21

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

Talvez nunca antes te-nham sido publica-dos tantos artigostratando da educa-ção como nos últi-mos meses, abor-

dando os mais diversos temas. Toda-via, neles não temos visto preocupa-ções com categorias estruturais. Apreferência se debruça sobre o con-juntural, que, sendo de importânciasem dúvida, não oferece perspecti-vas de soluções orgânicas. E isso se

deve à falta de visão estratégica doensino para um projeto nacional dedesenvolvimento. Por tal razão, fica-se no domínio do óbvio: sem educa-ção não temos desenvolvimento.

Estamos, passados sessenta anos,praticamente na mesma situação,ou talvez pior, que aquela expostapor Anísio Teixeira, em Educaçãopara a Democracia: “A escola queveio para solucionar problemas tor-nou-se, ela própria, um problema”.Isso nos leva a admitir, inclusive no

exame das matérias publicadas, quehá um certo pudor de se mergulharno fundamental: a análise críticados comportamentos individuais einstitucionalizados, que nos forçariaa rastrear tais comportamentos atéos recônditos do inconsciente coleti-vo e aí apreender os arquétipos cul-turais, que resistem à ligação entreo pensar (propósitos) e o agir (reali-zar), caracterizando um processo defuga ao reconhecimento de respon-sabilidades. Fuga que leva a racio-

EDUCAÇÃO EM TEMPO DE REFORMA

F. C. de Sá e Benevides

Page 20: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

nalizações dissimuladas na tendên-cia de adoção de modelos forâneos,os quais levam à sensação de parti-ciparmos de um mundo visualizadocomo sendo superior.

Tais comportamentos, que pas-sam do indivíduo para as institui-ções, têm como resultante o malaproveitamento e desperdício derecursos materiais já escassos e acorrosão dos recursos humanosdisponíveis, lesando a eficácia dosesforços desprendidos. Daí, o pa-radoxo: pensamos numa educaçãoavançando na direção do desen-volvimento com a construção dacidadania, mas, prisioneiros dosarquétipos culturais dedependência e parasitis-mo coloniais, nos deba-temos em soluções peloconvencional, que obs-taculizam aquele avan-ço. Paradoxo que desviada percepção da causa,que não está na escolaem si, como estruturaorganizacional materia-lizada, e sim na cultura, na menta-lidade conservantista, próprias deuma sociedade estamental comsuas prebendas oligárquicas.

Portanto, qualquer proposiçãoque ameace esse status quo e possasolucionar o paradoxo é ostensivaou dissimuladamente rejeitada.Neste último caso, em meio a umdiscurso erudito, a começar pelanegativa em admitir que a adminis-tração (pública ou privada) é umacategoria cultural, no que esta temde hábitos, costumes e visão socie-tária, antes de ser uma categoriatécnica, que é parte da cultura.Nisso se inclui o convencionalismo

federalista, para determinar que is-to é competência da União, issodos estados e aquilo dos municí-pios, sem o que não prospera o ca-ciquismo e o compadrio, funda-mentos das conciliações de basti-dores e das barganhas do poder,que nos amarram aos citados para-sitismo e dependência coloniais,que nos afastam do essencial: umaeducação sistêmica, capaz de darorganicidade à ação, garantindo-lhe a continuidade de execução.

Nesse cenário, sem espaço paraa educação como categoria estraté-gica, do ponto de vista geopolítico,têm-se projetado, por isso mesmo,

equívocos e inadequações de men-sagens de soluções, como as de na-tureza regionais e até municipali-zantes, que alargam a brecha dadesintegração nacional e ampliamos espaços para as forças do con-servantismo retrógrado, que con-vêm aos poderes externos, porquefacilitados ficam os processos con-dicionadores de nosso desenvolvi-mento à feição desses poderes. Is-so porque se deixa sem conclusão apolítica da unidade nacional, ini-ciada no Império, e se cavam oscanais da alienação pelos meios decomunicação de massa, instrumen-tos dos referidos poderes. Aliena-

ção estimulada, por outro lado, pe-la radicalização do individualismomais grosseiro da ética pragmática.

Coincidindo com a temática daregionalização e da municipaliza-ção (há montada verdadeira indús-tria de criação de municípios), su-gere-se “uma educação sem tute-la”. Um modelo ambíguo além deirracional, que revela desconheci-mento do que seja administraçãode tutela, necessária à formulaçãodescentralizadora, para desempe-nhar papel de intermediação entrea administração superior e a admi-nistração de linha ou executiva, afim de liberar aquelas funções de

programação, planeja-mento, normatização eanálise de resultadospara correções de des-vios, e a segunda intei-ramente voltada aoatendimento direto eimediato das clientelasexternas em relação aosobjetivos fixados. Por-tanto, a administração

de tutela ou intermediária se dedi-ca à missão de apoio às atividadesde linha em âmbito regional, demodo a manter integrada e intera-tuante a clientela interna da insti-tuição. Logo, o equívoco do co-mentarista resulta da colocação dosistema administrativo em termosideológicos de poder político doEstado em termos partidários.

Um outro especialista escreveusobre a participação dos alunosem eleições para cargo de reitorcomo sendo expressão mais altade democracia e cidadania. Assimsendo, deveria ter incluído todo opessoal administrativo. A propos-

22

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

Pensamos numa educação avançando

na direção do desenvolvimento com a

construção da cidadania, mas,

prisioneiros dos arquétipos culturais de

dependência e parasitismo coloniais.

Page 21: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

23

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

ta pode ser simpática, mas deixade considerar a qualidade comovariável independente da funçãode reitor, dado que deve ele serum administrador, que difere dotécnico, a começar pela capacida-de de assumir riscos, não exigívelneste. De outra parte, o adminis-trador deve ter visão generalista,produto da cultura, que é mais doque conhecimento ou erudição.Liautey dizia que o administradorera o técnico de idéias gerais, oque sugere sabedoria; isto é, intui-ção e capacidade de discernimen-to para ligar o particular ao uni-versal e reciprocamente. Os pen-sadores orientais, entre eles LaoTseu, faziam bem a diferença en-tre conhecer e saber.

Outro articulista levantou aquestão da competitividade comometa a ser perseguida pela universi-dade, padrão de Primeiro Mundo,mas deixou de lado o fato de que osresultados até agora não indicamque a crise da cultura lá foi supera-da. Ao contrário, se aprofundou. Is-to demonstra a inadequação de setrasladar para o ensino conceitos demercado, sobretudo na economiade computadores, como classificouo professor Doyle, de Harvard, re-ferindo-se ao jogo desenfreado docapital volátil, perfilando uma eco-nomia sem lugar para o homem navoragem do lucro e da vantagem.

Uma coisa é a escola, principal-mente a de nível superior e técnicaindustrial de grau médio, ser umaunidade de produção material e deserviços, e outra coisa é fazê-la en-trar no jogo concorrencial dispu-tando mercado, ou pondo-se a ser-viço de empresas privadas finan-ciadoras de projetos. A esse respei-to o sociólogo Wright Mill, emImaginação sociológica, referindo-se às aproximações das empresasprivadas com as universidades nor-te-americanas, para execução deprojetos específicos de interesseempresarial, deixou claro que issoresultava em ingerências suspeitas,próximas do suborno.

Foi dito em outro artigo que, le-vando-se em consideração a com-posição de nossa estrutura social eos determinantes da mobilidadesocial e da renda, a par de melho-ria do ensino de segundo grau, de-ver-se-ia facilitar o ingresso nasuniversidades. O autor propôs que89% obedecesse ao critério de exa-me vestibular e 20% ao critério deavaliação de desempenho. Isto, pa-ra que se mantivesse ascendente ofluxo de estudantes para o ensinode nível superior, certamente por-que é do consenso que sem ciênciae técnica não temos condições deacompanhar a modernidade. O au-tor condenava, aliás com razão, aênfase que se está dando ao ensino

fundamental, para minimizar a im-portância do ensino superior, sem,entretanto, atentar pra a questãoestratégica antes levantada e rela-ções de poder.

Se o que se quer é um sistemaeducacional que contemple a so-ciedade como um todo, não háque se colocar a questão em ter-mos de preferências, mas sim demaneira orgânica e totalizante emsuas seqüências possíveis, semperder de vista que o ensino supe-rior é fundamentalmente um ensi-no de formação de elites. Nãoconfundir isso com elitismo, comoestá ocorrendo. E nessa perspecti-va não se pode, com vistas à quali-dade, simplesmente tomar medi-das de facilitação de ingresso nauniversidade, sem, concomitante-mente, se possibilitar sua freqüên-cia sem preconceitos sociais, a fimde permitir ao trabalhador que es-tuda tirar os proveitos advindosdos cursos superiores.

Parece que o que ficou dito ésuficiente para se entender a neces-sidade de fazer um corte verticalno ensino, para, exibindo-lhe as en-tranhas, adequá-lo às necessidadesdo desenvolvimento nacional comobase de um projeto nacional: quedefina o que queremos ser e porque meios ser o que pretendemos.

F. C. de Sá Benevides é articulista doJornal do Commércio (RJ).

Uma coisa é a escola, principalmente a de nível superior e técnica industrial

de grau médio, ser uma unidade de produção material e de serviços,

e outra coisa é fazê-la entrar no jogo concorrencial disputando mercado,

ou pondo-se a serviço de empresas privadas financiadoras de projetos.

Page 22: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

24

UNIVERSIDADE, GREVE E LUTA POLÍTICA

Nos últimos nove anos, a USP esteve em greve em quatro ocasiões:

em 88, em 91, em 94 e em 96. A questão mais freqüente em toda

campanha salarial está relacionada à conveniência de se fazer aparalisação. O professor do Instituto de Matemática e ex-presidente da Adusp,

Francisco Miraglia, analisa, neste artigo, a questão da greve

como instrumento de luta em defesada Universidade e das condições de

vida e trabalho de professores efuncionários. Ele analisa, ainda, agreve no setor público. Segundo ele,

está claro que o movimento paredista neste setor pode ter um

papel importante em um país como o Brasil. “O essencial é travar

a luta política, pois são decisõespolíticas que determinam saláriosaviltantes e destruição dos serviços

públicos essenciais”, afirma Francisco Miraglia. Para ele, lutando

contra salários aviltantes, contra adestruição de serviços essenciais

à população, contra a sonegação de impostos e a falta de

democracia nas relações entre Estado e Sociedade, representamos

um importante pólo de luta.

Daniel Garcia

Page 23: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

Iremos discutir aqui a questão da greve comoinstrumento de luta em defesa da Universidadee das condições de vida e trabalho de professo-res e funcionários. A greve de professores efuncionários da USP, Unesp e Unicamp, reali-zada no primeiro semestre deste ano, foi mais

uma oportunidade para que fossem reiteradas tanto dú-vidas sobre a adequação desta forma de luta quanto anecessidade de busca de outras formas de luta. Tornou-se mais freqüente a opinião de que a greve é ineficiente,sempre derrotada e que, no fundo, só prejudica o corpoda Universidade. Penso justamente o contrário: a greveé o instrumento mais eficiente de luta coletiva. Por istomesmo, há razões fortes para considerar que a maioriadelas foi vitoriosa, trazendo benefícios de muitas ordenspara o corpo da Universidade.

Há anos atrás era freqüente ouvirmos a argumen-tação de que a greve no setor público era essencial-mente ineficiente pois não acarretava perdas econô-micas ao patrão ou dono. É interessante que este tipode argumentação desapareceu do cenário político domovimento de servidores públicos. Para mim conti-nua tendo certa importância, porque foi procurandosaber se o argumento era ou não válido que pude en-tender o papel da greve no setor público. A primeiraconstatação é de que o argumento reduz o poder depressão de qualquer categoria ao prejuízo monetárioque pode causar ao seu opositor. E a pressão e o pre-juízo político, não devem ser levados em conta? Nãofaz parte das nossas tarefas a defesa dos serviços pú-blicos e do exercício pleno da cidadania?

A greve no setor público significa a substituição detarefas, com os servidores passando a assumir, com de-cisão e prioritariamente, a defesa dos serviços públicosessenciais como saúde, educação e justiça. Esta defesase constrói através de atos políticos de grande escala eda denúncia do descaso dos dirigentes dos organismosdo Estado para com os interesses maiores da popula-ção. Lutando contra salários aviltantes, contra a des-truição dos serviços públicos, contra a sonegação deimpostos e a falta de democracia nas relações entre oEstado e a sociedade, representamos um polo de lutaorganizada e socialmente significativa, contra a políticade privatização dos ganhos e socialização das perdas,que continua a caracterizar o modo como o poder ins-

titucional e a classe dominante tratam as questões so-ciais no Brasil. Está claro, portanto, que a greve no se-tor público pode ter um papel importante em um paíscomo o nosso. Está claro também que de nada adian-ta apenas parar de fazer o nosso trabalho cotidiano. Oessencial é travar a luta política, pois são decisões polí-ticas que determinam salários aviltantes e a destruiçãodos serviços públicos essenciais. Quando detratores domovimento, tanto no governo quanto na mídia, usam otom de acusação para dizer que a greve “é política”,agem para tentar desqualificar justamente o que o mo-vimento tem de mais significativo e poderoso.

Os arautos do fim da história e da luta popular de-vem estar surpresos com os movimentos de greve quedespontam em toda a Europa ocidental. Estes movi-mentos lutam contra o sucateamento dos serviços pú-blicos, a desregulamentação das relações de trabalhoe a desobrigação do Estado com educação, saúde, jus-tiça, infra-estrutura e garantias individuais contra odesemprego. A enorme greve dos servidores públicosfranceses no final de 95 — com enorme apoio popu-lar — mostra bem os caminhos que são necessáriostrilhar na defesa de alguma democracia social.

Poder-se-ia concordar com a pauta de luta expres-sa acima e ao mesmo tempo perguntar se só a grevecumpriria estes objetivos. Poder-se-ia responder coma história das nossa lutas desde 1979: sem greve nun-ca conseguimos nada. A conquista da autonomia em1989, o reajuste mensal de salários, o aumento pro-gressivo da dotação das universidades estaduais de8,4% para 9,57% do ICMS líquido de São Paulo sãoalguns exemplos de vitórias importantes.

Esta resposta não é inteiramente satisfatória, pois,se devemos ter sempre presente as lições da história,devemos também ter a perspectiva de pensar pros-pectivamente o futuro. Poderia, em princípio, existiralternativa de luta que não passasse pela greve, sendocapaz de exercer pressão de forma mais constante so-bre o poder institucional. Na realidade, existem obs-truções estruturais à alternativas. Senão vejamos.

O Brasil se caracteriza pela ausência de instru-mentos de influência continuada sobre qualquer esta-mento do poder institucional. Ou seja, não há demo-cracia social no Brasil. Paralelamente, desenvolve-ram-se em todas as esferas sociais dois modelos de

25

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

Page 24: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

procedimento, um para o exercício do poder e o ou-tro, mais recente, para pautar a conduta individual.

O modelo para o exercício do poder é uma formatipicamente autoritária e tecnocrática de exercer a he-gemonia social. Só empresários bem-sucedidos e seusrepresentantes políticos sabem, fruto de uma “escolhapelo destino”, o que é bom para todos. Aos anseios demais democracia, responde-se com o mesmo discursofeito pela velha nobreza fundiária às vésperas das re-voluções, especialmente a francesa, que conduziram aburguesia ao poder na sociedade: o que será de nós sea massa ignara puder opinar? Como para os antigosdonos do poder, nós, os meros mortais, devemos per-manecer fora da discussão de políticas e metas, sendoconsiderados apenas como mão-de-obra em potenciale jamais como cidadãos de pleno direito.

Este modelo recomenda ainda que toda base dapirâmide de poder seja submetida à humilhaçãoconstante. A população brasileira é humilhada coti-dianamente, por falta de comida, educação, saúde,transporte, emprego e dos direitos sociais mais ele-mentares. Todos sabemos qual é a atitude de gover-nos em relação aos servidores públicos. Na Universi-dade não é diferente. Em vez de prestigiar seus do-centes e funcionários, assistimos a processos de ava-liação originários de uma concepção produtivista dotrabalho intelectual, que dá pouco ou nenhum valorao ensino e à extensão de serviços à comunidade.Ninguém esqueceu a famigerada “lista de improduti-vos”, ataque vil ao corpo docente da USP, perpetra-do por Goldemberg e Cia. O objetivo desta tática éóbvio: desqualificar toda oposição, desestruturar acapacidade de reação de quem não exerce o poder.A sensação de impotência que sobrevém a muitos denós é uma conseqüência desta articulação de proce-dimentos agressivos e totalitários.

O novo mito de procedimento pessoal é um indi-vidualismo exacerbado, que nega valor a qualquerforma de articulação social que não seja com aquelesconsiderados da mesma “tribo”. Esta forma de indi-vidualismo está estreitamente associada a duas con-cepções, que são instrumentos da alienação, da do-minação e da exploração do trabalho. A primeira éque só o mercado tem significado social e histórico,não a luta pela garantia de vida digna para todos.

Transforma-se “o outro” em “o concorrente”. Nãohá responsabilidade social pela dignidade humana,apenas a incompetência ou inadequação do “outro”a “novas formas produtivas”. A segunda é a desquali-ficação da noção de solidariedade, instrumento histó-rico de construção da liberdade social, que é necessa-riamente coletiva. Pretende-se, isto sim, garantir a li-berdade de alguns à custa de todos.

Na presença desta forma de individualismo e daconseqüente falta de organização coletiva permanen-te, o padrão imperial, autoritário e arrogante de exer-cício de poder que vemos em todos os níveis dobra-sesó momentaneamente ao que foi ganho em árdua lutapor sindicatos e organizações populares. Um exemplocontundente é a Constituição de 1988. Os mais de 100artigos que envolvem direitos sociais jamais foram re-gulamentados, significando, na prática, a sua cassa-ção. Arquitetava-se o momento propício para rasgar aCarta de 88, para desmontar o projeto de construçãode cidadania para todos que poderia ser disparadopela regulamentação da Constituição de 1988.

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

26

Passeata de professores e funcionários das três estaduais

Page 25: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

Está pior que no tempo do PFL explícito!

Na realidade a truculência dos governos federal eestaduais aumentou consideravelmente com o tempo.Temos hoje perseguição de funcionários, desrespeitoao direito legítimo de greve e ameaças de todo tipo.Basta lembrar o tratamento dispensado pelo governoFHC à greve dos petroleiros, aos trabalhadores sem-terra e à greve dos servidores federais. A indisposiçãopara a negociação e o diálogo aumentaram muito. Otratamento típico é o que foi dispensado a professorese funcionários das universidades federais, indignadoscom a proposta de reajuste zero (!) na data-base: des-caso, agressão e cassação de direitos. Bem pior do quea triste memória que tínhamos do tempo de MarcoMaciel como ministro da Educação e Everardo Macielcomo secretário do Ensino Superior. Há coisas no en-tanto que permanecem as mesmas: o carinho no tratode banqueiros e da frente ruralista; o descaso com asaúde, a educação e a justiça; a conivência com a sone-gação e a evasão fiscal. Continua também a promoção

da desinformação: os servidores públicos e os aposen-tados são os responsáveis pelas mazelas do país e nãoa ditadura e o PFL; o dinheiro dado aos bancos, viaProer, é dos próprios bancos, quando na realidade édinheiro de depósito da população, guardado no Ban-co Central para segurar a taxa de juros.

Será que na Universidade é diferente?

Se há diferença entre o padrão de exercício de po-der na sociedade e na Universidade, é para pior. Oreitor da USP, por exemplo, age como imperador, fal-tando a compromissos assumidos publicamente e des-cumprindo deliberações do seu Conselho Universitá-rio. Registre-se que o Estatuto da USP não prevê a fi-gura do impeachment. O reitor da Unicamp patrocinaa perseguição e a punição de funcionários, desrespei-tando o direito de greve.

Os reitores das universidades estaduais recusam-sea publicar balancetes mensais de receitas e despesasno Diário Oficial do Estado, regra mínima de transpa-rência na gestão de entidades públicas. Por iniciativadas entidades representativas de docentes e funcioná-rios da USP, Unesp e Unicamp, em diversos anos foiapresentada emenda à Lei de Diretrizes Orçamentá-rias (LDO) no sentido de obrigá-los a esta providên-cia elementar. Nunca uma destas emendas foi aprova-da pela Assembléia Legislativa.

Está claro para quem vive o cotidiano da Univer-sidade quanto o individualismo de mercado é incen-tivado pelas administrações centrais. A luta estratégi-ca em defesa do patrimônio que é a Universidadepública fica sem importância, é tachada de ineficaz.Torna-se chique privatizar o patrimônio público. Es-tabelece-se a urgência de, utilizando o prestígio so-cial que esta instituição ainda confere, apropriar omaior pedaço possível do Produto Interno Bruto bra-sileiro para a respectiva “tribo”.

Assim, enfrentamos nas universidades estaduais osmesmos inimigos da democracia e das políticas públi-cas que na sociedade em geral. Enfrentamos a mesmaconjuntura adversa à ação coletiva em defesa de con-dições dignas de vida e trabalho. Temos as mesma difi-culdades para conseguir manter nossas conquistas.Portanto, a análise geral feita acima é adequada para

27

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

paulistas na Unicamp, durante a campanha salarial de 96.

Daniel Garcia

Page 26: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

dar conta dos instrumentos de luta que temos à nossadisposição na Universidade. Um exemplo concretopoderá ilustrar o caso geral.

Uma análise da greve de 94

Já presenciei muitas avaliações negativas da grevedas universidades estaduais de 1994. Em particularsão comuns declarações no sentido de que não ganha-mos nada de concreto com aquele movimento. Lem-brando que aquela foi uma campanha de data-base,seria importante entender por que esta é a impressãode muitos, já que uma análise fria dos fatos mostraganhos claros, tanto políticos quanto salariais.

Em meio àquela campanha foi realizado debate naFolha de S. Paulo, entre o Fórum das Seis e as reitorias.Os reitores, embora no auditório, foram representadospor membros da administração universitária, considera-dos por eles como técnicos em assunto de ICMS e salá-rios. Só aí já se caracteriza a tentativa de tratar umaquestão política como se fosse técnica. Além disso, osreitores tentavam preservar a sua imagem pública: sa-bem que não podem discutir estes assuntos em pé deigualdade com as entidades representativas. Assim, sealguma bobagem aparecer do lado das reitorias, podemsempre responsabilizar os seus representantes. O deba-te caracterizou-se pela insistência das entidades de queas reitorias não podiam aceitar estimativas grosseira-mente erradas da Secretaria da Fazenda para a evolu-ção do ICMS, comprometendo o funcionamento dasUniversidades e os salários de professores e funcioná-rios. As entidades declararam publicamente qual suaestimativa para o mês de ju-nho/94, cerca de 25% maior quea defendida pelas reitorias. Osfatos comprovaram que estáva-mos certos. A diferença foi pagaa todos os professores e funcio-nários da USP, Unesp e Uni-camp no mês de julho/94, comoabono de 18% sobre o salário dejunho do mesmo ano.

Os reitores aprenderam coma experiência: durante um anonão houve reunião do Cruesp

com o Fórum das Seis. Jamais responderam a insis-tentes pedidos de reunião, nem à proposta do Fórumpara resolver o impasse sobre a maneira de calcular osalário real na passagem para o real (lembram-se dapolêmica sobre 6,95% ou 30,75% em junho/94?).

Paralelamente, professores e funcionários tive-ram, no período de maio/94 até maio/95, particular-mente a partir novembro/94, o maior salário real dosúltimos tempos. Além disso, mesmo depois do PlanoReal, continuávamos com reajustes freqüentes, muitoembora não fossem mais mensais como antes. A ta-bela abaixo fornece exemplos de reajustes e salárioreal de um professor doutor (MS3) neste período,medido pelo ICV-Dieese.

Para manter este ganho e não perder a possibilidadede reajustes periódicos, o Fórum das Seis convocou do-centes e funcionários para a campanha de data-base demaio/95, ponderando que a falta de mobilização iriapermitir aos reitores voltar atrás na política de reajustesperiódicos e promover o arrocho salarial. Não houvemobilização massiva e todos sabemos o que aconteceu:um ano sem reajuste e a proposta irrisória de 7,63% emmaio/96. No rastro da nossa desmobilização, os reitorescancelaram, sem satisfações e de forma arbitrária, oreajuste mensal conquistado em 88. Em dezembro/94,as reitorias foram tão longe quanto mudar o método deconfecção das planilhas sobre as quais discutíamos, pas-sando a utilizar o critério de “fluxo de caixa”, no lugardo de “regime de competência”, que eram usuais. Comeste truque, sumiram da receita de 94 cerca de 13 mi-lhões de reais, correspondentes a dinheiro que deveriaser pago em 94, mas que as universidades receberam

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

28

Page 27: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

em janeiro/95. Só assim, ou seja, mudando as regras nomeio do jogo, o Cruesp conseguiu “mostrar” que tinhagasto 85% da sua receita fiscal acumulada com saláriosem 94. Na realidade foi menos, e estavam nos devendo,por compromisso público veiculado inclusive em jornaisde grande circulação, cerca de 14% de reajuste salarialem dezembro/94. O Fórum das Seis insistiu, cobrou,mandou ofício. Sem mobilização de massa, os reitoresse permitiram ouvidos de mercador e faltaram com pa-lavra empenhada publicamente.

A luta pela democracia é essencial!

Fica evidente que não podemos continuar com diri-gentes que são, na melhor das hipóteses, representantesdo governo na Universidade. É imperioso que os diri-

gentes universitários tenham compromisso com a defe-sa das condições de vida e trabalho do corpo da Univer-sidade. Não é mais possível a continuidade desta atitu-de imperial, que desrespeita a todos e a ninguém devesatisfação. É necessário democratizar o exercício do po-der na Universidade, para evitar aberrações como asque temos assistido nos últimos anos. Pelo menos acor-dos e palavra públicos precisam ser respeitados. As en-tidades vêm há muito lutando pela democratização daestrutura de poder na Universidade. Nunca esta luta foitão atual. Na USP o problema é particularmente grave,já que seu Estatuto é consideravelmente mais autoritá-rio e retrógrado que o das outras estaduais. Sem demo-cracia, a autonomia da Universidade é simplesmente aautonomia da administração de plantão de fazer o quebem entende. Não lutamos anos a fio para que oligar-

29

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

Após passeata, manifestantes ocupam o Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera, em defesa da escola pública.

Page 28: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

quias controlem aUniversidade públi-ca ao seu bel-prazer,nem vamos sustentareste tipo de autorita-rismo e irresponsabi-lidade. Na campa-nha de data-base de96 tivemos que assis-tir a mais um episó-dio de falta com apalavra do Cruesp.Durante toda a gre-ve diziam que con-versariam após a vo-tação da LDO naAssembléia Legisla-tiva, propondo o dia10 de julho/96 comodata adequada paraa negociação salarial. O Fórum dirigiu-se à sede doCruesp, na Secretaria de Ciência e Tecnologia, no dia ehora combinados. Não havia lá reitor algum, apenas osegundo escalão da administração das três universida-des, sem proposta alguma, sem nenhuma autoridadepara negociação salarial. Seria ótimo se cada docente efuncionário da USP, Unesp e Unicamp considerasse es-tas atitudes como uma afronta!

Numa sociedade como a nossa é essencial valorizaros espaços públicos de discussão e deliberação políti-ca. Sempre considerei a atividade sindical central emmeus afazeres, pois era um dos poucos — senão o úni-co — espaços democráticos de debate das questõesgerais e específicas da Universidade. Nunca considereia ação institucional como superior àquela construídafora do aparelho burocrático, pois a arquitetura do sis-tema institucional brasileiro tem as características au-toritárias analisadas acima. Ao priorizar o institucio-nal sobre a ação do movimento social organizado, es-taria cometendo o equívoco de castrar a minha contri-buição para onde está, de fato, a energia transforma-dora na nossa sociedade. É inegável que seria impor-tante termos capacidade e organização para sustentarpressão permanente sobre o poder institucional. Aparticipação ativa na vida política e sindical seria um

passo importante nesta direção. Se, por exemplo, ti-véssemos assembléias gerais massivas com regularida-de, poderíamos evitar que nos fossem tomados salárioe condições dignas de trabalho, ganhos na luta de do-centes e funcionários. Um pouco de envolvimento decada um no trabalho político cotidiano pode significarmuito para evitar que direitos sejam perdidos e paragarantir que prospere a construção da democracia so-cial no Brasil. Além disso, se travássemos a luta deforma organizada e constante no tempo, talvez não ti-véssemos que recorrer a greves tão longas, quandonão fosse necessário. Embora reconhecendo a impor-tância de criar mecanismos estáveis de pressão e rei-vindicação, é forçoso reconhecer também que a nossaatmosfera social dificulta enormemente a construçãodestes instrumentos. Mesmo com estas dificuldades,não podemos jamais desistir de aumentar a nossa ca-pacidade instalada de mobilização, de trabalhar paravê-la crescer. Enquanto esta capacidade não se tornafato político, a greve, fruto de indignação socialmentelegítima, permanece o único instrumento efetivo deluta coletiva, tanto em defesa das nossas condições devida e trabalho quanto dos serviços públicos essen-ciais, sem os quais não há possibilidade de exercício dacidadania para a maioria dos brasileiros. RRA

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

30

Daniel Garcia

Page 29: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

31

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

Entrev is ta

Hélio Bicudopor Jair Borin

DIREITOS HUMANOS

Aos 74 anos, o deputado federal Hélio Bicudo (PT/SP) demonstra, na Câmara Federal,a mesma vitalidade na defesa dos direitos humanos que tinha na década de 70,

quando, como promotor de justiça, denunciava o Esquadrão da Morte. Para ele, oPlano Nacional de Direitos Humanos (PNHD), anunciado pelo governo Fernando

Henrique, não atende às reais necessidades da sociedade brasileira. “O Plano é positivo,mas precisa de medidas concretas e adequadas à nossa realidade”, diz o deputado.

Nesta entrevista, Hélio Bicudo analisa os casos de tortura que acontecemconstantemente nas delegacias brasileiras, defende a não legalização do aborto

e critica a imprensa pelo seu papel meramente mercantilista.

Fotos: Ronaldo Entler

Page 30: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

Adusp - Recentemente, foramdescobertas no Araguaia algumasossadas de guerrilheiros que estãosendo identificadas. O exame des-ses despojos revela a prática detortura pelos militares que comba-teram a guerrilha. O senhor, quesempre se destacou no combate àtortura no país como promotor ecomo deputado federal, acreditaque a prática da tortura é uma coi-sa do passado, no Brasil, ou aindaexiste hoje nas delegacias em rela-ção ao preso comum?

Hélio Bicudo - Acho que a prá-tica de tortura contra o preso co-mum não é de hoje, é de muitosanos. Dentro da rotina policial, se-ja da Polícia Militar ou da Civil, atortura ocupa um espaço muitogrande. Tanto para se obter infor-mações quanto para a incrimina-ção dos acusados ela é usada emníveis elevados. Eu me lembroque, quando era promotor público,em 1956/57, fui designado para tra-balhar num inquérito policial emSão Paulo, a propósito de um de-linqüente que se notabilizava pelaviolência com que praticava seusassaltos. Na minha presença, e nado delegado de polícia, em umadas delegacias do Deic, o prisionei-ro assumiu a responsabilidade porvários delitos e parecia que o esta-va fazendo espontaneamente. Nomomento em que o delegado saiuda sala, o acusado disse para mim:“O sr. quer ver as minhas costas?”,e tirou a camisa. Tinha marcas re-centes de inúmeras queimadurasfeitas com ponta de cigarro, o queindicava a prática bárbara de tor-tura. Tomei providências imediatascomo o pedido de exame de corpo

de delito, invalidando todas as de-clarações que ele havia prestadoperante a autoridade policial, queestava querendo obter uma confis-são e não fornecer provas e as cir-cunstâncias dos delitos. Agora, ve-

ja bem, isto foi na década de 50.Hoje, decorridos quase quarentaanos, esta é, ainda, uma prática ro-tineira por parte da polícia. Essaquestão da tortura começou a vir àtona quando nós, da classe média,começamos a sentir na nossa pelea violência dessa prática. Istoaconteceu durante a repressão po-lítica, promovida pela ditadura mi-litar. A partir daí, nós descobrimosque havia tortura. Quando eu falonós, quero dizer a sociedade emgeral. A tortura se multiplicou e seestendeu com muita força durantea repressão pela complacência dasociedade. Em decorrência dessasituação, que o regime militartrouxe a lume, nós aprendemosque existe tortura no Brasil e queela não foi só utilizada para a re-pressão política, mas ainda é em-pregada na apuração de crimes co-muns. Condenar esta prática é

uma atitude nova da sociedade, eacho que ela preenche uma dasmetas dos direitos humanos noque diz respeito à dignidade daspessoas, ainda que delinqüentes.

Adusp - O senhor acha que es-ta tortura também é praticada pe-la Polícia Militar?

Hélio Bicudo - Sim. Eu me lem-bro que, na ocasião em que fize-mos as investigações do esquadrãoda morte, eram apontados inúme-ros casos praticados primeiro pelaPolícia Civil e depois pela própriaPolícia Militar. Eram torturas quemuitas vezes estravazavam para aeliminação de pessoas que a polí-cia julgava que tinham responsabi-lidade criminal.

Adusp - Com a mudança da le-gislação, remetendo para a justiçacomum o julgamento de delitospraticados por integrantes da Po-lícia Militar, o senhor acha que es-tas práticas poderão ser inibidas?

Hélio Bicudo - Acho que pode-rão ser inibidas à medida que nósdeslocarmos esta competência doprocesso e do julgamento para ajustiça comum, porque, na verda-de, há uma tendência em camuflaresta substituição de competênciapara que ela seja tão ou quase inó-cua como a manutenção da com-petência da Justiça Militar e dasPMs para o processo de julgamen-to nesses casos. Se olharmos comatenção os projetos que se apre-sentaram e a maneira pela qual oSenado apreciou o texto original,verificamos que, muito mais doque se fazer alguma coisa nestesentido, prevaleceu a intenção de

32

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

Essa questão da torturacomeçou a vir à tonaquando nós, da classemédia, começamos asentir na nossa pele a

violência dessa prática.Isto aconteceu durante

a repressão política,promovida pela

ditadura militar. A partirdaí, nós descobrimos

que havia tortura.

Page 31: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

33

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

se camuflar uma idéia. Isto paraque pareça à sociedade que se estáfazendo algo, enquanto, na verda-de, não se está fazendo nada. Damaneira pela qual este projeto veiodo Senado, é muito difícil revertê-lo para a idéia originária, que era oenquadramento na Justiça Comumde todos os crimes praticados pelaPM. Nas suas atividades de policia-mento, eles vão permanecer quasetodos. De maneira que se aprovouum projeto tecnicamente malfeito,mas que pode ter algum alcance,embora limitado.

Adusp - Gostaria de retornar àquestão do projeto que ficou des-caracterizado entre a proposta ori-ginal, que acabou sendo arquivadano Senado, e aquela que está sen-

do aprovada agora. Osenhor acredita que,para recuperar a dis-posição anterior, derealmente enquadrar aPM na Justiça Co-mum, só seria possívelcom um novo projeto?

Hélio Bicudo - Semdúvida nenhuma. O Se-nado deu um nó regi-mental, de forma quenão pudemos recuperaro projeto aprovado pelaCâmara em janeiro des-te ano. Não há possibi-lidade porque com essamanobra regimentalaquele projeto acabousendo arquivado. Ago-ra, só nos resta aprovaro projeto Genebaldo(do deputado Genebal-do Correa), que não é

satisfatório, tem falhas grandes doponto de vista técnico e legislativo,mas pelo menos permite que o jul-gamento dos casos do Carandiru,de Corumbiara, de Eldorado dosCarajás e outros passem para a jus-tiça comum. Quer dizer, é um passopequeno, mas no momento é o quese pode fazer. Para o futuro, temosque ter o compromisso do governoem apoiar um projeto mais eficaz,para que não fiquem de fora o es-pancamento, lesões corporais, pri-são ilegal, tortura, extorsão e estu-pro praticados por PMs, pois ficamtodos ainda sob a responsabilidadeda Justiça Militar. E, mais ainda, ti-rar da Justiça Militar a investigaçãodestes casos, porque é uma justiçacorporativa. Como é a investigaçãoque dá o tom ao processo, se eles

prosseguirem com as investigações,evidentemente que não vamos che-gar a nada.

Adusp - E as denúncias de prá-ticas de arbitrariedades pratica-das pela segurança do CongressoNacional? Elas serão apuradas?

Hélio Bicudo - Esta idéia come-çou a aflorar numa denúncia feitapelo deputado Ivan Valente. Elenos mandou um dossiê e, evidente-mente, vamos ouvir as pessoas, masnão temos poder decisório. Nós po-demos ouvir, tirar as nossas conclu-sões e encaminhá-las ao presidenteda Câmara e à própria Polícia Fe-deral. Com um fato desta naturezadentro da Câmara, acho que o pre-sidente da Casa será o primeiro atomar uma posição muito clara, nosentido de penalizar os responsá-veis. Do ponto de vista administra-tivo ele não pode fazer mais do queisso. Depois, deve encaminhar es-tas questões para o Ministério Pú-blico, para que o processo penal te-nha início. Nós não temos ainda ti-pificado o crime de tortura, pois oprojeto com este objetivo já passoupela Câmara dos Deputados, masprecisa ser aprovado no Senado pa-ra seguir à sanção presidencial. Sóa partir daí teremos tipificado umcrime de tortura. Antes disso, sópodemos punir alguém, administra-tivamente, conhecendo que houveuma prática de infração funcionale, também, punir os resultados des-sa infração, como lesões corporaisleves ou graves. Hoje, entretanto,não temos os instrumentos que va-mos ter daqui a alguns dias para apunição do crime típico de tortura(torturar alguém).

Page 32: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

Adusp - Insistindo um poucomais na questão da tortura. Nadadaquilo que foi praticado até ago-ra poderá ser enquadrado na novalei. Casos como o de Corumbiara,em que ficou bem tipificada a tor-tura tanto da PM como de jagun-ços, que bateram em mulheres, es-pancaram crianças, obrigaramum dos acampados a comer osmiolos de outro assassinado, fica-rão impunes?

Hélio Bicudo - Não, eu não acre-dito que eles continuem im-punes, mas haverá umagrande dificuldade para apunição, porque estas inves-tigações começaram a serfeitas pela própria PM. Eume lembro das dificuldadesque os próprios legistas indi-cados pelo Ministério daJustiça tiveram para chegara algumas conclusões im-portantes na aferição da res-ponsabilidade da PM. Ago-ra, com relação ao crime detortura, evidentemente queeles não poderão ser incriminadospor este crime típico, porque existeo princípio da irretroatividade dalei penal; de maneira que só depoisde sancionada a lei que qualifica edescreve o crime de tortura é quepoderemos começar a punir os tor-turadores. Tem uma coisa que euacho importante frisar: o governofederal parece que está abandonan-do este ponto de vista, tanto queenviou a respeito um projeto deemenda constitucional. É a possibi-lidade de você federalizar determi-nados crimes contra a humanidade.Existe um órgão que funciona den-tro do Ministério da Justiça, que é o

Conselho Nacional dos Direitos daPessoa Humana, e as suas funções eatribuições estão sendo remodela-das num projeto que está sendo dis-cutido agora na Comissão de Cons-tituição e Justiça. Pretende-se queesse Conselho seja o foro para oqual o Ministério Público ou a Or-dem dos Advogados possam recor-rer para a federalização de determi-nados crimes que então começarãoa ser investigados e julgados pelaprópria Justiça Federal.

Adusp - Com relação a crimescometidos pelo Exército durante aguerrilha do Araguaia. Pelo queconsta, ali foram praticados vá-rios atos contra a pessoa humana,sejam contra guerrilheiros, sejamcontra camponeses e civis. Emuma das ossadas descobertas ago-ra, há sinais evidentes de tortura?

Hélio Bicudo - Evidentementeque houve tortura. Entretanto, co-mo a tipificação do crime de torturadepende do projeto de lei que estásendo discutido agora no Senado,como já expliquei, os possíveis auto-res desses atos não poderão ser pu-nidos por esse crime. Mas se eles fo-

rem identificados, poderão ser puni-dos, não mais pelos crimes de lesõescorporais, que estão prescritos, mes-mo porque a prescrição só ocorre apartir da hipótese de que você sabeque houve um crime e sabe quemfoi o seu autor. Então, nestas condi-ções, se você descobrir a autoriadessas lesões e deste homicídio, vo-cê pode incriminar os seus autores.Aí, no caso, não há anistia.

Adusp - O senhor discute mui-to a questão do crime co-nexo, argumento utilizadopelos militares para anis-tiar os torturadores. Háconexão entre a guerrilhae a tortura?

Hélio Bicudo - É lógicoque não há. A conexidadesão crimes da mesma espé-cie e praticados pelas mes-mas pessoas. Não se podebotar pessoas que são ad-versárias no mesmo barco.Um crime não elimina ooutro. São coisas diferentes.

Não existe esta conexidade. A co-nexidade existe quando você prati-ca uma lesão corporal e em segui-da elimina esta mesma vítima.Mas, se há pessoas diferentes nãoexiste conexidade.

Adusp - Em relação ao governoFHC, como o senhor vê as propos-tas que estão sendo encaminha-das na área da questão dos direi-tos humanos?

Hélio Bicudo - Veja bem, euacho que as reformas constitucio-nais pretendidas pelo presidenteda República são absolutamentedispensáveis. A nossa Constituição

34

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

Acho que as reformasconstitucionais pretendidas pelo

presidente da República sãoabsolutamente dispensáveis. Anossa Constituição é realmente

democrática. Ela pode seraperfeiçoada num ponto ou emoutro, mas tomar as reformas

constitucionais como dogma para areforma da sociedade e do Estado

penso que não tem o menor sentido.

Page 33: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

35

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

é realmente democrática. Ela podeser aperfeiçoada num ponto ou emoutro, mas tomar as reformasconstitucionais como dogma paraa reforma da sociedade e do Esta-do penso que não tem o menorsentido. E o fato de que não tem omenor sentido é que até hoje nósnão naufragamos, como se dizia seessas reformas não fossem feitas.Acho que uma remodelação dasfunções do Estado, não para oatendimento dos grupos financei-ros, como está acontecendo agora,mas para o atendimento da socie-dade como um todo, é prioritário.Sobre este aspecto, o governoFHC não disse a que veio e baixouum Plano Nacional de DireitosHumanos que eu acho positivo,mas que precisa de medidas con-cretas e adequadas à nossa reali-dade. Elas, entretanto, não vão serencontradas nas reformas constitu-cionais que o governo está pro-pondo. Muito pelo contrário,quando se fala na reforma admi-nistrativa, na reforma da previdên-cia, você está atemorizando as ca-madas mais pobres da população,em benefício da elites brasileiraspura e simplesmente.

Adusp - Qual o papel dos par-tidos de oposição no Congresso?

Hélio Bicudo - Quando se ini-ciou a atual legislatura, eu disse,após um exame até superficial dasforças existentes hoje no Congres-so, que esta seria a legislatura maistranqüila, porque a oposição iriaser acuada de uma maneira tal,que muito pouco do que ela pre-tendesse poderia ser feito. A opo-sição ao atual governo soma não

mais do que 110 deputados numhorizonte de 514. É praticamentenada e assim mesmo o governobusca novos instrumentos, comopor exemplo a supressão dos DVS–destaques para votação em sepa-rado–, que é um instrumento deatuação das oposições. O governoconseguiu minimizar este instru-

mento, tirando das oposições aoportunidade de se oporem. De-mocracia não é apenas o governoda maioria, então, se torna ditadu-ra da maioria. Não se trata de umregime democrático, se trata deum regime de imposição daquiloque a maioria entende que é ver-dade, e nem sempre a verdade estácom a maioria. Qualquer sistemademocrático precisa praticar den-tro do Congresso o diálogo entre aoposição e a situação. Este diálogoestá cada vez mais minimizado, in-clusive através desta reforma re-cente do regimento interno, quenão permite que as oposições seexpressem enquanto oposições.

Adusp - Entre a oposição já sefala da inutilidade de se estar ho-je no Congresso. O senhor parti-cipa dessa idéia?

Hélio Bicudo - Não chegaria aeste extremo porque uma migalhaou outra a gente consegue. Mas, naverdade, levando ao extremo, aoposição praticamente inexiste,porque ela não é sequer respeitadapela situação. E esta última questãofoi realmente um desrespeito muitomais à Nação e à democracia doque às oposições. O governo nãoquer o diálogo, ele quer a imposi-ção. E isto não podemos concebernum regime democrático. O gover-no impõe a sua vontade através dasmedidas provisórias, muitas delasinconstitucionais, com a conivênciado Supremo Tribunal Federal. Éatravés desse rolo compressor queo governo impõe o que quer.

Adusp - O senhor vê algumadiferença entre o governo federal

Democracia não éapenas o governo da

maioria, então, se tornaditadura da maioria.(...) Qualquer sistemademocrático precisapraticar dentro do

Congresso o diálogoentre a oposição e a

situação. Este diálogoestá cada vez mais

minimizado, inclusiveatravés desta reformarecente do regimento

interno, que nãopermite que as

oposições se expressemenquanto oposições.

Page 34: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

e o chamado Centrão, na época doministro Roberto Cardoso Alves,que praticava o conhecido “é dan-do que se recebe”?

Hélio Bicudo - Não, eu não vejomuitas diferenças. Penso que o go-verno não deveria adotar esta polí-tica porque quanto mais se dá, me-nos se recebe. O governo podia en-carar uma participação das oposi-ções, porque muitas vezes aconteceque você tem uma participação dedeputados da oposição, mas nãoenquanto oposição. Por exemplo,neste projeto sobre a tipificação docrime de tortura. É muito mais umprojeto das oposições do que do go-verno. Na hora da votação desteprojeto, a direita, que faz parte dabase parlamentar do governo, se re-belou porque não queria aprová-lo.

Adusp - No inquérito do massa-cre de Eldorado dos Carajás estãosendo enquadrados 150 PM’s demaneira bem genérica, sem tipifi-car autores e disparos. O corpora-tivismo e a conivência entre osmandantes da chacina e os autoresdos crimes estão cada vez mais cla-ros na investigação do caso. Nem oo governador nem o secretário deSegurança foram indiciados. Estecaso pode acabar em “pizza”?

Hélio Bicudo - Acho, assim co-mo o Carandiru e Corumbiara. Es-ses crimes são hediondos, mas nãoexiste vontade política para apurá-los. Denunciar 154 réus sem a tipi-ficação do que cada um cometeu,num embróglio só, é a mesma coi-sa que não denunciar ninguém.Depois, estão excluindo os respon-sáveis, ainda que por omissão. Elestinham conhecimento de que

aqueles eventos poderiam aconte-cer e deixaram pura e simplesmen-te que acontecessem.

Adusp - Mudando de assunto,gostaria de falar sobre a questãodo aborto. O senhor tem um pon-to de vista muito particular, en-quanto o movimento feminista eoutras correntes da sociedade de-fendem uma posição bastanteoposta à sua. Num caso de estu-pro, por exemplo, não seria lógicoa mulher poder abortar, caso ve-nha a ficar grávida?

Hélio Bicudo - Partir de umaquestão excepcional para se resol-ver um problema geral, acho quenão é muito realista. Na questãodo estupro, se você estabelece, co-mo consta na Constituição brasilei-ra, que a vida é um direito a partirda concepção, mesmo que tenhasido gerada a partir de um ato deviolência, não deixa de ser uma vi-da. Então, se você corta este pro-cesso em qualquer momento, vocêcomete um crime contra a vida. Oser que foi gerado não é responsá-vel pela violência que o gerou.Nós, então, estamos punindo umser que não tem defesas contrauma violência que ele não prati-cou. O mais razoável e racional se-rá dar a estas pessoas que foramviolentadas um tratamento psico-lógico adequado, para que elasaceitem a gestação e depois resol-vam o que querem fazer com oproduto da gestação, se querem ounão ficar com ele. O Estado é o co-responsável, evidentemente, numaviolação, porque se a violação exis-te é porque o Estado por omissãoou por ação permitiu que ela ocor-

resse. O Estado deve ser responsá-vel por esta criança, colocando-anum lar substituto ou tratando de-la enquanto Estado. Você vai dizerque isto no Brasil é uma bagunça.Você não pode, com base na de-sorganização do Estado, resolverum problema de vida. Nestes casospode acontecer que a mulher pra-tique o aborto, embora ele seja in-criminado por uma lei. Às vezes éporque o marido não queria fi-lhos, o que iria onerar a vida do ca-sal, embora o filho possa ser dele.A pressão que a mulher sofre podelevá-la ao aborto. Eu acho que sedeve dar ao juiz o arbítrio paraque, examinando cada caso, decidase deve punir ou não a mulher.Nos casos extremos, por exemplo,o juiz poderá não punir. Ele vai di-zer: “Cometeste um crime, mas euposso, diante da lei, tirar a respon-sabilidade deste crime da tua pes-soa”. Mas o crime existe.

Adusp - Supondo que o juizadote esta prática, ponderando nofinal que a ele, juiz, cabe decidir enão punir a mulher, embora elatransgrida uma lei, isto não esti-mularia a prática de abortos clan-destinos e toda esta indústria queexiste hoje no Brasil, desde curio-sos até médicos ?

Hélio Bicudo - Acho que é aocontrário.Você pode instituir oaborto, legalizar o aborto, e oaborto clandestino vai continuarexistindo, exatamente porque namaioria das vezes as mulheres nãoquerem que isto transpareça, por-que se elas forem a um médico au-torizado, num hospital, para fazero aborto, elas estão admitindo que

36

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

Page 35: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

37

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

cometeram uma relação sexual quepode até não ter sido violenta. Masse ela se apresentar em uma dele-gacia de polícia e disser que foi es-tuprada e requerer a atuação domédico do Estado, então acho quese você vai pelo menos continuarcom o mesmo número de abortosclandestinos. É como o jogo do bi-cho. Se você legalizar, vai conti-nuar existindo o ilegal e todo mun-do vai jogar o ilegal, porque nãopaga imposto. Da mesma maneira,se legalizar o aborto, vai existir oilegal. Muitas pessoas não queremque a sociedade tenha conheci-mento desse fato, inclusive a pró-pria mulher. Zamiti Mamana, mé-dico cientista, que estudou a ques-tão do aborto, relata o caso deuma mulher cujo marido viajou.Durante sua ausência ela teve umarelação extramatrimonial e apro-veitou a viagem do marido para fa-zer o aborto. Acontece que o mari-do antecipou o seu retorno e a en-controu no hospital. Então, ela

contou com a conivência do médi-co para encobrir o fato, alegandoque estava sendo tratada de umacoisa qualquer. Não é legalizandoque nós vamos diminuir o mal. Aocontrário, se você legalizar, vocêabre as portas. Essa questão doaborto também tem que ser exami-nada do ponto de vista do que cha-mamos de bioética populacional.Ela enfoca a necessidade de se fa-zer um planejamento familiar paraque os casais possam ter os filhossegundo suas condições de propor-cionar-lhes condições mínimas deconforto. Nesse sentido, hoje sepropõem três coisas: o uso de anti-conceptivos, o uso de esterilizaçãoe do aborto. Nas populações doTerceiro Mundo, onde não há umacultura nesse sentido, você não vaiconseguir que as mulheres não en-gravidem, seja por métodos natu-rais, químicos ou mecânicos. En-tão, o que passar daí vai para oaborto e o que passar daí vai paraa esterilização. Isto não é uma po-

lítica para nós, isto é uma políticaque vem dos Estados Unidos, e elaadvém ainda da ideologia da segu-rança nacional dos países ricos.Por isso, outro dia falei que os paí-ses ricos é que estão interessadosnessa questão da anticoncepção,do aborto e da esterilização. Paro-diando um velho refrão: trabalha-dores de todo o mundo uni-vos, ericos de todo o mundo uni-voscontra os povos.

Adusp - Para encerrar, como osr. vê hoje a imprensa brasileira?

Hélio Bicudo - É uma imprensaempresarial. Você se lembra que oEstadão, submetido à censura,substituiu artigos censurados porpoesias de Camões ou por receitasculinárias. Ele, porém, não estavadefendendo o regime democrático;estava defendendo a sua própriarazão de ser. Ele apoiou o regimede força, mas apenas quando esteregime tocou a imprensa é que elereagiu desta maneira. Nós não te-mos no Brasil uma imprensa autô-noma. Ela está presa ao poder doEstado. Os grandes jornais são dú-bios quando tratam da questão dademocracia e da questão da atua-ção dos órgãos governamentais.Eles são muito mais do lado de ládo que do lado de cá. Outro dia,por exemplo, eu vi um editorial naFolha de S. Paulo que é um despau-tério, dizendo que a reforma agrá-ria deveria ser feita através da co-brança do Imposto Territorial Ru-ral (ITR). Isto é pura piada. Ou vo-cê faz reforma agrária atendendoàs necessidades reais da populaçãoque está aí solta no espaço, ou vocênão faz e engana com o ITR. RRA

Nós não temos no Brasil umaimprensa autônoma. Ela estápresa ao poder do Estado. Os

grandes jornais são dúbiosquando tratam da questão dademocracia e da questão da

atuação dos órgãosgovernamentais.

Page 36: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

38

GLOBALIZAÇÃO

ESCONDE REALIDADETexto: Hamilton de Souza

Ilustração: Maringoni

Page 37: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

Exaltado, glorificado e até mesmo trans-formado na última panacéia da vida na-cional, o processo de globalização – daeconomia, das comunicações e da cul-tura – comporta os mais variados en-tendimentos, desde a sua negação co-

mo algo novo na face da terra até sua afirmação comoalgo inédito, irreversível e incontrolável.

A análise sobre o que está acontecendo despertainterpretações polarizadas, enfocadas sob prismasdiferentes e, muitas vezes, recheadas de aspectospolêmicos. Mas é exatamente no clima do debateque essa questão começa a ser estudada e aprofun-dada, muito além dos discursos oficiais e da superfi-cialidade da mídia.

Na última reunião da SBPC, em julho, naPUC/SP, duas mesas-redondas sobre o tema bateramrecordes de público, especialmente estudantes. Acuriosidade pelo conhecimento está no ar. Afinal, achamada globalização tem sido associada à aberturadas fronteiras comerciais, à privatização do Estado,aos investimentos estrangeiros, à elevação dos pa-drões de qualidade e eficiência, ao competitivismo,ao consumo ampliado de bens e serviços, ao acessotecnológico e até ao cenário de uma nova era naeducação e na cultura.

Da mesma forma, estão sendo associadas à globa-lização a quebra de bancos, o aumento das concorda-tas e falências, a desestruturação e a desnacionaliza-ção de setores produtivos, o crescente desemprego, obombardeio aos direitos trabalhistas e sociais, a mi-gração da mão-de-obra, o refluxo sindical, a devasta-ção cultural e o aumento das disparidades sociais.

O relatório da ONU sobre o Índice de Desenvol-vimento Humano (IDH), divulgado dia 15 de julho,constata que as disparidades econômicas entre ospaíses industrializados e o mundo em desenvolvi-mento se acentuaram ainda mais nos últimos l5 anos,período em que se verifica a intensificação da globa-lização. Classificado em 58º lugar no IDH, o Brasilapresenta um desempenho inferior à média mundial,mesmo porque continua sendo o campeão de con-centração da renda.

Além de analisar aspectos econômicos e sociais de174 países, e de apontar inúmeros desvios no desen-

volvimento humano, o relatório da ONU trata tam-bém do “crescimento desenraizado”, alertando para ofato de que, no atual processo de globalização, muitasdas 10 milhões de culturas existentes no mundo cor-rem o risco de marginalização ou desaparecimento.

Realidade

Professor de Filosofia Contemporânea na USP,Paulo Arantes diz que a primeira coisa a ser feita, aotratar desse assunto, “é parar de falar em globalizaçãoe modificar a conceituação sobre o que está ocorren-do atualmente”. Para ele, “globalização é um conceitomuito ambíguo, ideológico, apologético e fala de umacoisa que não existe”.

Globalização, segundo Arantes, significa uma socie-dade sem fronteiras, interdependência, paridade, fluxoem todos os sentidos, um conjunto de oportunidades eriscos para todos. “Isso é um mito”, diz ele, “não existe,é uma brincadeira, é um discurso, e as pessoas que es-tão falando em globalização estão sonhando”.

Depois de lembrar que a denominação surgiu nosanos 70, quando alguns professores universitáriosnorte-americanos passaram a falar em global tradepara orientar as políticas internacionais de suas em-presas, Arantes afirma que a insistência em se dizer,hoje, que “nós estamos entrando numa nova era,porque a sociedade é global, o mercado é mundial,esconde alguma coisa”.

Para ele, uma expressão mais adequada é mun-dialização do capital. E, neste caso, o fenômeno nãoé novo, pois “o capital é mundial desde que existe,desde o século XIV”. Se é para falar em termos deabertura econômica, das empresas e dos mercados,diz Arantes, “a economia mundial já foi mais abertado que é hoje, no apogeu da hegemonia inglesa, en-tre 1870 e 1914”.

Outra coisa que descaracteriza a globalização é ofato de que pouquíssimas empresas são transnacio-nais. Segundo o professor Arantes, “a maior partedessas empresas ditas globais são, na verdade, corpo-rações multinacionais baseadas nacionalmente”. Ouseja, todas elas preservam uma base nacional, umamatriz, um centro de controle cuja localização geo-gráfica não é acidental.

39

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

Page 38: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

Com relação ao fluxo do capital financeiro e dosinvestimentos diretos, que seria outro componentenum processo de globalização, diz Arantes, ele acon-tece no interior da tríade Estados Unidos-Europa-Ja-pão (sudeste asiático), onde estão baseadas 80% dascorporações mundiais. “Portanto, o fluxo se dá lá emcima, com algumas adjacências periféricas, mas o res-to está fora, o Brasil está fora”. O que está “globali-zado”, segundo ele, é o capital especulativo, estima-do em 1 trilhão de dólares, que gira o mundo em 24horas, opera nas bolsas de vários países e que tam-bém está concentrado nasmãos de poucos investido-res internacionais.

Paulo Arantes atribui àcrise de hegemonia do ca-pital norte-americano “es-sas alterações de padrõescostumeiros”. Segundoele, “o fato é que os Esta-dos Unidos são o maiormercado, a maior potên-cia militar do mundo, asmaiores corporações es-tão lá, mas a economianorte-americana não cres-ce há 25 anos, e uma po-tência só é hegemônica setem condições de organi-zar e gerir, capacidadeque os Estados Unidos perderam”.

Então, o que acontece “é um interregno entre apassagem da hegemonia norte-americana e uma ou-tra hegemonia que nós não sabemos ainda qual é, tal-vez seja a do sudeste asiático”. Para ele, nesse perío-do de crise de hegemonia ocorre o deslocamento docapital financeiro, que torna possível algumas coisas,entre elas a estabilização monetária em países perifé-ricos. “Sem esse capital”, diz, “não há estabilizaçãomonetária no Brasil nunca.”

Ao entrar em crise, a hegemonia norte-america-na – que durante anos fortaleceu movimentos naperiferia – obrigou a classe dominante brasileira abuscar saídas para o seu modelo desenvolvimentis-ta. A saída encontrada, segundo Arantes, “foi inter-

nacionalizar de outra maneira a mesma coalizão declasse”. Ele conclui que essa alteração é simples-mente de padrão desenvolvimentista, já que “o mes-mo pacto de dominação, a mesma coalizão de classeque vem dos anos 30, continua sem rachadura, semqualquer alteração”.

Arantes diz que o Estado brasileiro, que “nuncafoi público nem popular, mas privado”, sempre atuoue continua atuando para, “através de uma políticamonetária de subsídios, de financiamentos e até depilhagem pura e simples, remunerar, igualmente, os

setores produtivos e im-produtivos, os mais dinâ-micos e os mais atrasados,pois eles querem exata-mente a mesma coisa”.

Para o professor, a bri-ga da classe dominantepor financiamento, a suai n t e r n a c i o n a l i z a ç ã o ,acrescenta “nada” para amaioria da sociedade bra-sileira. Ele considera ilu-são do presidente Fernan-do Henrique Cardosoachar que, no final do seugoverno, possa contar 20milhões de pessoas viven-do em padrões do chama-do primeiro mundo. Ao

contrário, a tendência é de aumentar a “relegação so-cial” e de ampliar a “dessolidarização da classe domi-nante”, que terá o eixo dos seus negócios no exterior.

Controle

Embalado no discurso modernizante da globaliza-ção, o sociólogo e presidente Fernando Henrique ad-mite, no texto incluído no relatório da ONU, que “assoluções para os problemas sociais não são apenas na-cionais”, pois “a globalização limita as ações do Esta-do e tem conseqüências ambivalentes para o desen-volvimento da sociedade”.

Mais adiante, no mesmo texto, ele diz: “Na décadade 60, os países do Terceiro Mundo buscaram uma no-

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

40

O fato é que os Estados Unidos são

o maior mercado, a maior potência

militar do mundo, as maiores

corporações estão lá, mas a

economia norte-americana não

cresce há 25 anos, e uma potência

só é hegemônica se tem condições de

organizar e gerir, capacidade que os

Estados Unidos perderam.

Paulo Arantes

Page 39: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

va ordem econômica internacional para corrigir as raí-zes da desigualdade internacional com sucesso limita-do. Hoje em dia, as negociações globais Norte-Sul per-deram a sua força exatamente no momento em que aeconomia está sendo globalizada, e está surgindo umasuperestrutura homogeneizante mais preocupada coma liberdade de fluxos do que com a diminuição das de-sigualdades”.

Se essa análise é para valer, o presidente reforça nãoapenas o caráter incontrolável do processo de globaliza-ção, inclusive para a formulação de políticas próprias dedesenvolvimento, comotambém revela um ambien-te de capitulação frente aocrescimento das desigual-dades sociais, interno e ex-terno. Ou seja, segue a car-tilha oficial ditada pelos in-teresses da internacionali-zação do capital, apesar doscustos constatados.

Em artigo publicado noEstado de S. Paulo (6/7/96),o sociólogo Herbert deSouza, o Betinho, chamoua atenção exatamente paraessa onda de que “tudoacontece por causa da glo-balização e tudo se resolvepor meio da globalização”.Para ele, a “globalização não é somente o novo dogmados economistas, mas é principalmente a nova racio-nalidade das instituições internacionais e multilateraise dos Estados nacionais; tudo acontece ou deve acon-tecer de uma determinada forma em função e comoconseqüência inexorável da globalização”.

Para a professora de História da América LatinaContemporânea (USP), Zilda Iokoi, o problema deuma globalização ampla é justamente estabelecercontroles no planejamento e na execução. Ela consi-dera que o mercado e os recursos financeiros estejamem processo de globalização, mas “o resto não”. Oque está acontecendo, diz ela, é que “o centro do ca-pitalismo está tentando estabelecer gerenciamentossupranacionais, mas aí existe um descompasso entre o

planejamento centralizado e a execução”.Iokoi lembra que, historicamente “o Brasil é mar-

cado pelo individualismo do modo de produção, her-dado do colonialismo”, e que essa fragmentação“acaba sendo fator de resistência à globalização”.Existe, segundo ela, todo um processo que “faz opaís se concentrar em torno do poder local; e omaior exemplo disso é o coronelismo no nordeste,onde o coronel tem o poder da territorialidade (seapropria da terra) e exerce esse poder com a práticada violência e o paternalismo”.

Outro exemplo de re-sistência aos controlesmodernizantes são as co-munidades remanescentesdos quilombos, estimadasem mais de mil espalha-das pelo país, que se apos-saram de terras para fugirda escravidão e que atéhoje vivem isoladas, comnenhum ou pouco contatocom novas tecnologias esem nenhum vínculo coma globalização.

Iokoi enfatiza tambéma capacidade de transfor-mação das populações in-terioranas para revertersituações, se adaptar, al-

terar modo de vida, sem perder o rumo de sua traje-tória cultural. É o caso das comunidades rurais ex-pulsas das terras para a construção de barragens deusinas hidrelétricas, chamadas de “afogados”, que seorganizaram no Movimento Sem-Terra e lutaram du-rante anos – no caso da Encruzilhada do Natalino,Rio Grande do Sul – até conseguirem constituir umanova comunidade agropecuária.

Para a professora da USP, muitas dessas comunida-des “modificaram enormemente o seu modo de produ-ção”, foram influenciadas pela tecnologia e pelo mer-cado, mas “mantêm o sentido da propriedade indivi-dual e familiar”. Outro exemplo de adaptação é o dospovos da floresta, que passaram a valorizar a extraçãoe as lavouras comerciais, inclusive para exportação,

41

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

Exemplo de resistência aos controles

modernizantes são as comunidades

remanescentes dos quilombos,

estimadas em mais de mil, que se

apossaram de terras para fugir da

escravidão e que até hoje vivem

isoladas, com nenhum ou pouco

contato com novas tecnologias e sem

qualquer vínculo com a globalização.

Zilda Iokoi

Page 40: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

mas “com forte sentido de preservação da floresta”.“O que acontece”, diz ela, “é que muitos povos se

apropriam de tecnologias difundidas na globalizaçãoe as adaptam conforme seus interesses, mantendoseus vínculos culturais.” A parte mais importante,nessas situações todas, “é do saber fazer”, na medidaem que essas populações têm sob o seu controle o seumodo de produção e seu modo de vida.

No Brasil urbano, no entanto, onde, segundo Io-koi, as populações perderam boa parte de suas tradi-ções, o processo acelerado de globalização econômi-ca provoca alterações significativas no modo de vida,especialmente em função das relações de trabalho.Ela lembra que, nos últimos anos, esse processo ma-tou 60% da possibilidade de empregos na área indus-trial, no ABC paulista. “Setores inteiros estão se es-vaziando, se desintegrando, com o fechamento demuitos postos de trabalho.”

“Com isso”, afirma, “a alteração cultural é enorme”,na medida em que muitos trabalhadores são obrigados aentrar num processo de terceirização ou viver de subem-prego, trabalhando como camelôs, submetidos à instabi-lidade e à desestruturação familiar e social. “Em váriossetores”, diz ela, “o conjunto da força de trabalho retor-na à situação do século XIX, na questão dos direitos tra-balhistas e sociais.” O desdobramento imediato disso éa grande “dessindicalização existente, em função do de-semprego, que atinge a região do ABC, onde está o sin-dicalismo mais organizado e mais combativo do país”.

Segundo Iokoi, “o processo de globalização excluia maior parte da população, cria novas massas de mi-seráveis”, que acabam buscando novas formas de in-serção social e cultural. Para ela, “essa volta da religio-sidade, que avança em muitos lugares, é um apego aoque existe lá atrás”, uma tentativa de “reconstruir elosda experiência cultural, na lógica da re-humanização”.

Ela acredita, no entanto, que “a onda neoliberalvai se esgotar em pouco tempo e surgirá uma necessi-dade de afirmação nacional, baseada na retomadados padrões de desenvolvimento regionais, com acriação de novas formas de gestão e de produção”.Segundo Iokoi, “a questão, no momento, é saber co-mo abrir caminho na mídia, já que o discurso domi-nante corre solto, tratando como se fosse natural en-trar no mundo globalizado”.

Contradição

Professor de Política Cultural na ECA-USP, JoséTeixeira Coelho Neto afirma que “a globalizaçãocultural é um processo complexo, fragmentário,contraditório e dinâmico”, sobre o qual “não dá pa-ra dizer que é uma coisa só e produz um único tipode efeito”. Segundo ele, “não é um fenômeno embloco, maciço, mas tem múltiplos aspectos com efei-tos contraditórios.”

Teixeira Coelho diz que é possível notar “via co-municação de massa uma tendência de pasteurizar,que seria o movimento de uniformização; mas hátambém o movimento contrário de localismo, que sãofontes, grupos, que cultivam certos impulsos locais efazem questão de cultivar esses impulsos.” Então sãodois fenômenos que existem ao mesmo tempo.

No sentido mais amplo da globalização cultural,relacionado ao comportamento e ao modo de vida,existe – para ele – uma uniformização maior. “É ocaso do uso do tênis pelo jovem norte-americano,pelo brasileiro, pelo japonês ou pelo cubano, quetambém quer usar.”

Ele lembra, no entanto, que os estudos sobre loca-lismo estão aparecendo justamente neste momentoem que se fala tanto de globalização. São estudosque tratam daquilo que está mais próximo, mais ime-diato: “Seria o provincial em contraposição ao nacio-nal, ou, em muitos casos, o nacional é o localismo emrelação ao internacional”.

No localismo, o que se observa, diz o professor, é aocorrência de “esforços até violentos para se manterdeterminados padrões culturais”. Na segunda metadedos anos 80, por exemplo, “o sentimento regional fi-cou muito exarcebado aqui no Brasil, quando se vianos carros o adesivo ‘o sul é o meu país’; e isso nãoera da boca para fora, pois esse sentimento separatis-ta sempre existiu e continua latente na região sul.”

Teixeira Coelho diz que, no estudo da cultura, exis-te “uma certa tendência a valorar negativamente aglobalização, que é tratada como uma avalancha quevai passar por cima de tudo”. É freqüente encontrar,segundo ele, em estudos passados, registros de previ-sões catastróficas sobre determinadas situações cultu-rais, mas que não se realizaram.

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

42

Page 41: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

Além do mais, afirma, “muitos movimentos utópi-cos como o marxismo e a religião católica sempre fo-ram uniformizantes, globalizantes, e sempre apostarammuito na transformação da humanidade numa enormefraternidade”. O que acontece é que “a humanidadesempre perseguiu, de certa forma, uma meta unifica-dora, mas quando essa meta está chegando perto ela vêque tem problemas”. Assim, diz ele, “a humanidadesempre fica numa encruzilhada entre o pensamentounitário, que pode ser totalitário, e o pensamento di-vergente, que é responsável por todas essas diferenças,incluindo o racismo, o ceticismo, a luta, a agressão.”

Para Teixeira Coelho, éinegável que “o Brasil estámais exposto a essa açãoniveladora, homogeneiza-dora, porque os nossos va-lores nunca se firmaram enós não temos uma políticacultural de afirmação des-ses valores”. Ele aponta co-mo exemplo inverso a si-tuação da França, que alémde ter uma sólida históriacultural, “tem política cul-tural para defender seusvalores e para preservarsua identidade tradicional.”

Essa ação globalizantena cultura, segundo ele,“está entrando muito fortepelos meios de comunicação, pelo cinema e princi-palmente pelo comportamento das pessoas”. E Tei-xeira Coelho não considera isso negativo, ao contrá-rio: “Acho que a inundação de informação que estáacontecendo hoje em dia faz com que as pessoaspensem duas vezes”. Ele lembra, como exemplo ne-gativo, a atitude do governo do Irã, que mandou ar-rancar todas as antenas parabólicas das casas paraque ninguém veja os canais de televisão de outrospaíses. “Lá, o movimento religioso fundamentalistatem uma política declarada contra a modernidade.”

Em pesquisa recente, relatada no livro Globaliza-ção e identidade cultural na América Latina, a profes-sora Maria Nazareth Ferreira, da ECA/USP, registra

inúmeras observações sobre os danos – econômicos,sociais e culturais – provocados pelo crescente pro-cesso de globalização.

Segundo ela, “os países do Terceiro Mundo, espe-cificamente suas classes subalternas, obrigadas a se-guir as determinações do processo econômico globalpara garantir sua sobrevivência, estão alterando ostraços mais significativos de sua identidade; e muitosdos problemas relacionados com esta transformaçãoestão ligados ao ritmo intenso das mudanças, que im-pede uma assimilação das novas reservas simbólicas edo novo modo de vida”.

Nazareth Ferreira observaque “esse processo de moder-nização tem por objeto a in-serção formal destas popula-ções no mercado de consumode bens materiais e simbóli-cos”, e que “não é de interes-se das elites que comandam aglobalização a participaçãoefetiva das classes despossuí-das na tomada de decisão so-bre o rumo que esta situaçãovenha a seguir, nem as suasconseqüências”.

Ainda de acordo com aprofessora, “as mudanças emandamento na globalização,propostas pela nova fase deacumulação monopolista do

capital internacional, trouxeram conseqüências gravespara a questão cultural, na medida em que esta sofreum processo de transnacionalização sem precedentesna história da humanidade: a expansão das indústriasculturais, a concentração e privatização dos media, aexpansão e homogeneização das redes de informação,o debilitamento do Estado e do sentido do que é pú-blico e privado, são as condições necessárias para ga-rantir a eficiência e racionalidade dos mercados”.

Assim, a questão da globalização, mitificada ounão, panacéia ou não, sugere um amplo caminho deestudos e debates, e, especialmente, muita polêmica –não apenas nos seus aspectos econômicos e sociais,mas também nos seus aspectos culturais. RRA

43

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

Existe uma certa tendência a

valorar negativamente a

globalização, que é tratada como

uma avalancha que vai passar

por cima de tudo. É freqüente

encontrar em estudos passados

registros de previsões

catastróficas sobre determinadas

situações culturais, mas que não

se realizaram.

Teixeira Coelho

Page 42: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

44

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

O TRÁFICO INTERNACIONAL DE DROGAS

E A INFLUÊNCIA DO CAPITALISMO

A partir dos anos 80, o mundo passou a acompanhar o boom do tráficointernacional de drogas e o conseqüente consumo. Esse crescimento está

intimamente relacionado à crise econômica mundial, e o narcotráfico chega adeterminar padrões econômicos nos países produtores de coca, cujos principais

produtos de exportação têm sofrido sucessivas quedas em seus preços. Professor doDepartamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

USP, Osvaldo Coggiola mostra que o tráfico internacional movimenta uma cifraanual superior a US$ 500 bilhões, valor superior ao que gira em torno do comércio

de petróleo. O montante de dinheiro envolvido com o narcotráfico é superadoapenas pelo tráfico de armamento no mundo, segundo dados do professor da USP.

Moreira Mariz/Abril Imagens

Page 43: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

45

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

Otráfico internacio-nal de drogas cres-ceu espetacular-mente durante osanos 80, até atin-gir, atualmente,

uma cifra anual superior a US$ 500bilhões. Esta cifra supera os pro-ventos do comércio internacionalde petróleo; o narcotráfico é o se-gundo item do comércio mundial,só sendo superado pelo tráfico dearmamento. Estes são índices obje-tivos da decomposição das relaçõesde produção imperantes: o merca-do mundial, expressão mais elevadada produção capitalista, está domi-nado, primeiro, por um comércioda destruição e, segundo, por umtráfico declaradamente ilegal.

Na base do fenômeno encontra-se a explosão do consumo e a po-pularização da droga, especialmen-te nos países capitalistas desenvol-vidos, que é outro sintoma da de-composição. O tráfico de drogasfoi sempre um negócio capitalista,por ser organizado como uma em-presa estimulada pelo lucro. Namedida em que a sua mercadoria éa autodestruição da pessoa, o con-sumo expressa a desmoralizaçãode setores inteiros da sociedade.Os setores mais afetados são preci-samente os mais golpeados pelafalta de perspectivas: a juventudecondenada ao desemprego crônicoe à falta de esperanças e, no outroexemplo, os filhos das classes abas-tadas que sentem a decomposiçãosocial e moral. O primeiro episó-dio de consumo maciço de drogasaconteceu durante a mais impopu-lar das guerras protagonizada pela“sociedade opulenta”: a Guerra do

Vietnã. Durante o período dosconflitos, 40% dos soldados norte-americanos consumiam heroína e80% maconha. Apenas 8% delescontinuaram a consumir drogasuma vez de volta “em casa”.

Para se ter uma idéia da pres-são que o narcotráfico exerce so-bre as economias dos países atra-sados, um exemplo basta. A 28 desetembro de 1989, foi feita em LosAngeles a maior apreensão de co-caína já realizada: 21,4 toneladas,cujo preço de venda ao públicoatingiria US$ 6 bilhões, uma cifrasuperior ao PNB de 100 (cem) Es-tados soberanos. A grande trans-formação das economias mono-produtoras em narcoprodutoras (eo grande salto do consumo nosEUA e na Europa) se produziu du-rante os anos 80, quando os preçosdas matérias-primas despencaramno mercado mundial: açúcar (64%),café (-30%), algodão (-32%), trigo(-17%). A crise econômica mun-dial exerceu uma pressão formidá-vel em favor da narco-reciclagemdas economias agrárias, o que re-dundou num aumento excepcionalda oferta de narcóticos nos paísesindustriais e no mundo todo. Ape-nas nos últimos anos o tráficomundial cresceu 400%. As apreen-sões de carregamentos se multipli-caram por noventa nos últimosquinze anos, ainda assim afetandoapenas entre 10 e 20% do comér-cio mundial.

Histórico

O tráfico internacional de dro-gas, em alta escala, começou a de-senvolver-se a partir de meados da

década de 70, tendo tido o seuboom na década de 80. Esse desen-volvimento está estreitamente liga-do à crise econômica mundial. Onarcotráfico determina as econo-mias dos países produtores de co-ca, cujos principais produtos de ex-portação têm sofrido sucessivasquedas em seus preços (ainda quea maior parte dos lucros não fiquenesses países) e, ao mesmo tempo,favorece principalmente o sistemafinanceiro mundial. “O dinheiro dadroga corresponde muito bem à ló-gica do sistema financeiro, que éeminentemente especulativo. A fi-nança está cada vez mais desvincu-lada da economia, em nenhumpaís corresponde ao desenvolvi-mento econômico real nem tãopouco à produção (...) O sistemafinanceiro necessita cada vez maisde capital fresco para girar, e osnarcodólares são como um capitalmágico que se acumula muito rápi-do e se move velozmente”.

Atualmente, o narcotráfico éum dos negócios mais lucrativos domundo. Sua rentabilidade se apro-xima dos 3.000%. Os custos deprodução somam 0,5% e os detransporte gastos com a distribui-ção (incluindo subornos) 3% emrelação ao preço final de venda.De acordo com dados recentes, oquilo de cocaína custa US$ 2.000na Colômbia, US$ 25.000 nosEUA e US$ 40.000 na Europa.

A América Latina participa donarcotráfico na qualidade de maiorprodutora mundial de cocaína, eum de seus países, a Colômbia, de-tém o controle da maior parte dotráfico internacional (a pequenaparte restante é dividida entre a

Page 44: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

Máfia siciliana e a Yakuzá japone-sa). A cocaína gera “dependência”não apenas em indivíduos, mastambém em grupos econômicos eaté mesmo nas economias de al-guns países, como por exemplo nosbancos da Flórida, em algumasilhas do Caribe ou nos principaispaíses produtores –Peru, Bolívia eColômbia, para citar apenas os ca-sos de maior destaque. Com rela-ção aos três últimos, os dados sãoimpressionantes. Na Bolívia, os lu-cros com o narcotráfico chegam aUS$ 1,5 bilhão contra US$ 2,5 bi-lhões das exportações legais. NaColômbia, o narcotráfico gera deUS$ 2 a 4 bilhões, enquanto as ex-portações oficiais geram US$ 5,25bilhões. Nesses países, a corrupçãoé generalizada. Os narcotraficantescontrolam o governo, as forças ar-madas, o corpo diplomático e atéas unidades encarregadas do com-bate ao tráfico. Não há setor da so-ciedade que não tenha ligaçõescom os traficantes, e até mesmo aIgreja recebe contribuições destes.

No Peru e na Bolívia, parte daprodução de coca é legal e desti-na-se ao consumo tradicional(mastigação das folhas para com-bater os efeitos da altitude), à in-dústria (chás e medicamentos) e àexportação (o Peru exporta 700 to-neladas de folhas de coca por anopara a Coca-Cola).

O Peru é o maior produtormundial de coca. Segundo a Orga-nização Mundial da Saúde, 100 milcamponeses peruanos cultivam 300mil hectares de coca. Apenas 5%dessa produção é utilizada parafins legais. Com o resto, o tráficoabastece 60% do mercado mun-

dial. Esses camponeses são massa-crados, alternadamente, pela guer-rilha, pela máfia e pelas tropas derepressão ao tráfico.

Dependência econômica

Na Bolívia, a dependência emrelação ao narcotráfico chega aoextremo. Os traficantes detêm ocontrole das principais empresas, acorrupção atinge níveis inacreditá-veis e, de acordo com a CEPAL, apopulação desempregada passoude 19% da população ativa em1985 para 35% no ano seguinte.De cada três bolivianos, um lucracom os derivados do narcotráfico.Há estimativas, que coincidemcom os dados da CEPAL, segundoas quais 65% da economia do paíspertencem ao setor informal.

A Colômbia especializou-se emtransformar a pasta-base produzidapor Peru e Bolívia em cocaína e ex-portá-la para o resto do mundo.Dois grandes cartéis (Cali e Medel-lín) controlam a maior parte do nar-cotráfico no país. Entretanto, exis-tem centenas de pequenos trafican-tes, muitos dos quais roubam a dro-ga dos grandes cartéis. O país estápor completo nas mãos dos narco-traficantes. O Congresso e a polícianacionais disputam o primeiro lugarem grau de corrupção, a até mesmoas campanhas presidenciais são pa-trocinadas com dinheiro da droga.Cada novo governo colombiano seesforça para repatriar os lucros obti-dos com o trafico internacional decocaína. Dos cerca de US$ 16 bi-lhões anuais obtidos pelos narcotra-ficantes, apenas entre US$ 2 e 4 bi-lhões voltam ao país.

A expansão dessa atividade naAmérica Latina significou a degra-dação de países inteiros ao simplespapel de apêndices do narcotráfico.A coca já representa 75% do PIBboliviano, e 23% de outras nações.Semelhantes porcentagens tornamridícula a denominação “economiainformal”. Os grupos principais dasburguesias nacionais realizaram suareconversão pela “economia do cri-me”, dominando os recursos dosEstados e monopolizando um acú-mulo de riquezas que permitiu aosmafiosos colombianos situarem-seno ranking dos multimilionários domundo. A transformação do minei-ro boliviano em cultivador de coca ea substituição das melhores áreasagrícolas por cultivos do insumo bá-sico da droga são determinantes dopavoroso estancamento da econo-mia desse país, que alguns experts deHarvard elogiam cinicamente porsua “estabilidade monetária”. Que acoca represente a única saída de so-brevivência para os peruanos de-sempregados das cidades ou mi-grantes da desertificação rural é ou-tra evidência do mesmo processo deregressão econômica. Em meio aosassassinatos cotidianos, a Colômbiaé uma vitrina por onde se vê o es-banjamento de um grupo de cartéisque, seguindo a tradição das oligar-quias latino-americanas, gastam emimportações suntuosas um volumede dinheiro que permitiria saldar adívida externa deste país. Comoocorreu no passado com a borracha,o guano e o açúcar, a monoexporta-ção de coca é mais um episódio dadevastação agrária, do empobreci-mento campesino e do desperdíciorentístico da região.

46

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

Page 45: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

47

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

A “narcoeconomia” não é umâmbito delituoso socialmente ho-mogêneo como apresenta a destor-cida propaganda policial-imperia-lista. O grosso dos camponeses eoperários “pisadores” que se vêemforçados a cultivar e processar a co-ca não só mantêm sua condição desuperexplorados como sofrem a re-novada pressão do aparato do Es-tado e dos cartéis, associados em“esquadrões da morte” e em ban-dos de pistoleiros do latifúndio. Osmesmos beneficiários do tráficocriaram o fantasma do “narcoterro-rismo” e da narcoguerrilha” paraencobrir sua ação criminal.

Mercado consumidor

Já foi largamente demonstradoque a oferta de coca latino-ameri-

cana é simplesmente a resposta àdemanda dos 40 milhões de consu-midores das drogas legais. Se sesoma a esta cifra os diversos tiposde psicofármacos aceitos, emborasejam igualmente danosos para asaúde, salta à vista que a “narcoe-conomia” satisfaz um mercado in-comensuravelmente maior que oalcoolismo e o tabagismo tradicio-nal. A América Latina se degradaao ver-se obrigada a integrar-se co-mo abastecedora da importantepopulação dos países desenvolvi-dos que recorre aos excitantes ecalmantes artificiais para evadir-seda alienação laboral, da falta dehorizontes sociais, ou da destrutivacompetição hiperindividualista im-posta pelo mercado. O consumode drogas, que o capitalismo uni-versalizou e massificou em cada

época em grupos sociais e nacio-nais diferentes, esteve, na décadade 80, diretamente associado à ex-tensão da marginalidade, da po-breza e da desocupação. O capita-lismo só pode oferecer crack, co-caína e heroína aos jovens que nãoemprega, aos emigrantes que ex-pulsa, às minorias que discriminaou aos trabalhadores que destrói.

Na América Latina só reingres-sam entre 2 e 4% dos US$ 100 bi-lhões que produzem anualmente asvendas de cocaína nos Estados Uni-dos. A parte mais lucrativa do ne-gócio é incorporada pelos bancoslavadores e, em menor medida, pe-los próprios cartéis, que internacio-nalizaram a distribuição de seus lu-cros, seguindo o padrão de fuga decapitais que desenvolveram as bur-guesias latino-americanas na última

Jorge Rosenberg/Abril Imagens

Page 46: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

década. O preço dacoca na plantaçãoboliviana é 250 vezesmenor que nosEUA. A mesmamercadoria no portocolombiano é cotada40 vezes menos quenas cidades norte-americanas. Essaimpressionante dife-rença é uma mani-festação típica do in-tercâmbio desigualque governa os pre-ços de todas as matérias-primas la-tino-americanas.

Combate americano

Para o principal país consumi-dor, os EUA, o narcotráfico é, àprimeira vista, um grande proble-ma. Bilhões de dólares têm sidogastos na guerra aos traficantes, eigual quantia tem sido perdida emconseqüência do vício dos cidadãosnorte-americanos (gastos com rea-bilitação, perdas na produção, au-mento da criminalidade etc).

Por outro lado, o narcotráfico éde grande utilidade para os EUA,chegando a gerar lucros: “A econo-mia norte-americana vende parteimportante dos componentes quí-micos, recebe cerca de US$ 240 bi-lhões, uma parte dos quais se desti-na a repor capital no mesmo ramode produção da droga e outra é in-vestida em outros setores da econo-mia ou vai para os bancos”. Os ban-cos da Flórida são especializadosem “lavar” o dinheiro dos narcotra-ficantes e neles circula mais dinhei-ro efetivamente do que nos bancos

de todos os demais estados juntos.Os EUA recorrem ao protecio-

nismo para resguardar seus “narco-produtores” da competição externa.Utiliza desfolhantes contra o culti-vo de marijuana no México, parafavorecer seu desenvolvimento naCalifórnia; destrói laboratórios dedrogas proibidas no Peru e na Bolí-via para reforçar o envenenamentolegalizado que realizam os mono-pólios farmacêuticos com estupefa-cientes substitutivos; luta contra asdrogas naturais e processadas emdefesa das sintéticas, patenteadas ecomercializadas pelos grandes labo-ratórios; guerreia contra os cultiva-dores latino-americanos auxiliandoseus velhos sócios do sudeste asiáti-co. A repressão extra-econômica aotráfico é a forma de regular os pre-ços de um mercado potencialmenteestável pelo caráter viciante do pro-duto. Com a “guerra ao narcotráfi-co”, os EUA tratam de salvaguar-dar suas companhias químicas pro-vedoras de insumos para o proces-samento, propiciando, em geral,uma “substituição de importações”no grande negócio de destruir a

saúde e a integri-dade de uma parteda população.

A “narcoeco-nomia” está afeta-da pelos mesmosciclos de super-produção quequalquer outrosetor e, por isso, oimperialismo ape-la aos instrumen-tos clássicos deguerra comercial,buscando bara-

tear a produção local e encarecer acompetição latino-americana. Éevidente que a militarização recen-te, com o pretexto de “lutar contrao flagelo da droga”, é um aspectoda recolonização comercial e dachantagem financeira sobre aAmérica Latina. A nova leva detropas da marinha enviada à regiãoestá muito mais relacionada com aIniciativa das Américas e o PlanoBrady do que com o narcotráfico.É inaceitável supor que a invasãodo Panamá, o bloqueio naval à Co-lômbia, a instalação de bases naBolívia e no Peru, a militarizaçãoda fronteira mexicana, a introdu-ção de uma jurisprudência avassa-ladora da legislação latino-ameri-cana estejam motivadas na erradi-cação do narcotráfico. Busca-se asubstituição da “ameaça do comu-nismo” por um perigo equivalente.

O domínio do comércio de nar-cóticos foi, desde o século passado,um campo de rivalidades interim-perialistas e, por isso, a atitude dosgovernos estadunidense frente aoproblema nunca se baseou em con-siderações sanitárias, mas nas al-

48

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

Gildo Lima/Abril Imagens

Plantação de maconha na Bahia.

Page 47: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

49

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

ternantes necessidades políticas.Isso explica o oscilante predomíniode períodos de tolerância e repres-são, permissividade e perseguição,e o tratamento do consumidor co-mo delinqüente ou enfermo.

Na prática, os EUA aumentamsua intervenção na América Latinaem defesa de um clã contra outro,ou para arbitrar as sangrentas lutasentre eles. A “narcoeconomia”,longe de ser um submundo alheioà norma capitalista, está rigorosa-mente organizado de acordo comos parâmetros da “economia demercado”. Os objetivos das máfias–captura de mercados, monopóliode preços e domínio sobre os seg-mentos mais lucrativos– são metastipicamente capitalistas. As econo-mias “subterrâneas” e legalizadasmantêm infinitos vínculos entre si,e a existência de crise num setor setransmite ao outro.

Envolvimento dos bancos

O papel central da “narcoeco-nomia” no capitalismo contempo-râneo se detecta no peso alcançadopela “lavagem do dinheiro” no sis-tema financeiro. Todos os bancosde envergadura, desde o Bostonaté o Crédit Suisse, participam nes-ta operação. Pelas somas envolvi-das, a “lavagem” seria impossívelsem a cumplicidade dos banqueirosque intermediam a legalização dodinheiro sujo e a sua conversão emativos, empresas ou imóveis. Nosúltimos anos os bancos criaram pa-raísos fiscais nos quais se lava, dia-riamente e à vista de todos, entreUS$ 160 e 400 milhões. Essa asso-ciação entre mafiosos e banqueiros

se apóia, em última instância, no si-gilo bancário –um princípio intocá-vel para o capitalismo– por ser umpilar da propriedade privada, naconfidencialidade dos negócios ena livre disponibilidade do capital.

As denúncias de lavagem, acampanha antidroga e as controvér-sias sobre a legalização de certosnarcóticos expressam a enorme ri-validade interbancária que existe nonegócio da “lavagem”, especial-mente entre o tradicional centrosuíço e seus competidores do Cari-be, Panamá e Uruguai.

Os lucros produzidos pelo nar-cotráfico de maneira nenhuma en-riquecem os países produtores. NosEUA, calcula-se em 20 milhões onúmero de consumidores regularesde drogas, que em 1988 gastaramUS$ 150 bilhões. Desse total, entreUS$ 5 e US$ 10 bilhões foram oslucros dos cartéis produtores naColômbia. Mas apenas US$ 1 bi-lhão foi investido na economia ofi-cial do país. E o restante? Calcula-se que 90% dos lucros do narcotrá-fico sejam recebidos pelos grandesbancos, por depósitos dos produto-res e dos intermediários, e por co-missões pela “lavagem” do dinhei-ro. As medidas tomadas pelas auto-ridades dos EUA contra as opera-ções bancárias de cumplicidadecom os traficantes são risíveis: en-tre os bancos que sofreram sançõespor não terem declarado transa-ções figura o First National Bankof Boston, que expediu para o exte-rior US$ 1,2 bilhão em notas pe-quenas. A comissão de 3% pagapelos traficantes (US$ 36 milhões)torna irrisória a multa de US$ 500mil imposta ao banco. O que se

multa, no caso, é a ilegalidade daoperação, não a origem criminosado dinheiro protegido pelo sacros-santo “sigilo bancário”.

Eis porque a política dos EUA,que ataca apenas os traficantes di-retos, não consegue impedir o cres-cimento do narcotráfico e dos seuslucros. Ao reduzir parcialmente aoferta, deixando intocado o aparatofinanceiro, só se consegue “um au-mento dos lucros, recapitalizandoconstantemente as redes de produ-ção e distribuição, a ampliação geo-gráfica da produção e a fixação deum piso mínimo para a cocaína”. Arepressão da oferta só conseguiuelevar o preço da cocaína pura nosEUA, e pôr em circulação um pro-duto superdegradado para consu-mo “popular”: o mortal crack.

O capital financeiro internacio-nal fica com a parte do leão, o quenão impede que os grandes pro-dutores se tornem um fator decisi-vo na economia de seus países. NaColômbia, as exportações de co-caína atingem US$ 50 bilhões,três vezes o PNB. Os narcoempre-sários investem 45% em proprie-dades urbanas e rurais, 20% emgado, 15% em comércio e 10% naconstrução e no lazer. Mas não seconformaram com a riqueza, qui-seram também poder. Em 1989foram reveladas as negociaçõesentre representantes do governo eo Cartel de Medellín. A semilega-lidade concedida aos narcotrafi-cantes, a sua aliança com a bur-guesia e o governo, visam os obje-tivos mais reacionários: “Os nar-cotraficantes colombianos alia-ram-se aos fazendeiros e às forçasde segurança de modo a proteger

Page 48: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

seus interesses comuns contra osgrupos guerrilheiros e contra ascrescentes demandas de reformapolítica e econômica dos setoresmais carentes”. O resultado dessaaliança foi a complementação daação da polícia com a dos “esqua-drões da morte”, que, em númerode 140, submetem a uma verda-deira tutela terrorista a vida polí-tica e social do país.

Na Colômbia, os traficantes es-tão entrelaçados com a oligarquiatradicional, mediante a compra deterras ou a substituição das cultu-ras agrícolas, o que deu uma saídaaos proprietários arruinados pelabaixa do preço internacional docafé. A desintegração do capitalis-mo colombiano, golpeado pelacrise mundial, faz os traficantesflorescerem.

Na Bolívia, a reciclagem narcó-tica da economia foi diretamenteimpulsionada pelo Estado militarimposto a partir do final de 1971.O velho narcotráfico boliviano,marginal até então, à diferença dopassado, quando seu crescimentodependia da sua capacidade de ge-rar excedentes, desenvolveu-segraças a dois novos fatores: gene-rosos créditos da banca estatal eprivada (milhões de dólares), sub-sídios e impunidade pelo seu en-trosamento com os organismos derepressão ou pelo apadrinhamentooficial. Em 1976, Kissinger viajousecretamente à Bolívia, oferecendocréditos de US$ 45 milhões paraimpedir o progresso da cultura decoca. Mas os lucros do tráfico fala-ram mais alto: os “narcos” chega-ram a tomar o poder através do ge-neral García Meza.

Guerra do Ópio

O comércio de drogas estevevinculado à expansão internacionaldo capitalismo e também à sua ex-pansão colonial-militar, como tes-temunha a Guerra do Ópio (1840-1860), resultante da postura da In-glaterra como promotora do tráfi-co de ópio na China do séculoXIX, bem como das plantaçõesdesse mesmo narcótico em territó-rio indiano. A Inglaterra, como ésabido, mas pouco divulgado, aufe-ria lucros exorbitantes da ordemde £ 11 milhões com o tráfico deópio para a cidade chinesa de Lin-tim. Ao passo que o volume de co-mércio de outros produtos não ul-trapassava a cifra de £ 6 milhões.Em Cantão, o comércio estrangei-ro oficial não chegava a US$ 7 mi-lhões, mas o comércio paralelo emLintim atingia a quantia de US$ 17milhões. Com este comércio ilegal,empresas inglesas, como foi o casoda Jardine & Matheson, contribuí-ram para proporcionar uma balan-ça comercial superavitária para aInglaterra, mesmo que, para tal,fosse necessário o uso de naviosarmados a fim de manter o contra-bando litorâneo. Tudo isso aconte-cia com a aprovação declarada, edocumentalmente registrada, doParlamento inglês, que por inúme-ras vezes manifestou os inconve-nientes da interrupção de um ne-gócio tão rentável.

A extraordinária difusão doconsumo do ópio na Inglaterra doséculo XIX, ilustrada literariamen-te na popular figura do detetivecocainômano Sherlock Holmes, foium sintoma da crise do colonialis-

mo inglês. Nas palavras de KarlMarx (O capital) a idiotice opiáceade boa parte da população inglesaera uma vingança da Índia contrao colonizador inglês. Foi o que le-vou a própria Inglaterra a promo-ver, em 1909, uma conferência in-ternacional, em Xangai, com a par-ticipação de treze países (a OpiumCommission). O resultado foi aConvenção Internacional do Ópio,assinada em Haia em 1912, visan-do o controle da produção de dro-gas narcóticas. Em 1914, os EUAadotaram o Harrison Narcotic Act,proibindo o uso da cocaína e he-roína fora de controle médico. Se-veras penas contra o consumo fo-ram adotadas em convenções in-ternacionais das décadas de 20 e30. Desde o início, a repressão pri-vilegiou o consumidor.

Com a nova explosão de consu-mo, uma nova mudança se opera,e, em abril de 1986, o presidenteReagan assina uma Diretiva de Se-gurança Nacional, definindo onarcotráfico como “ameaça para asegurança nacional”, autorizandoas forças armadas dos EUA a par-ticiparem da “guerra contra asdrogas”. Em 1989, o presidenteBush, numa nova diretiva, amplioua anterior, com “novas regras departicipação” que autorizavam asforças especiais a “acompanhar asforças locais de países hospedeirosno patrulhamento antinarcóticos”.No mesmo ano, cursos “para com-bater guerrilheiros e narcotrafi-cantes” tiveram início na Escoladas Américas de Fort Benning, an-tigamente sediada no Panamá,vestibular de todos os ditadores la-tino-americanos.

50

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

Page 49: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

51

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

Articulação americana

O aspecto mais importante, emenos comentado, da articulaçãoEUA/governos constitucionais lati-no-americanos versus tráfico dedrogas, é a criação de uma inéditajurisprudência avassaladora da so-berania nacional da América Lati-na. O tratado de extradição com aColômbia se enquadra nessa cate-goria, assim como a decisão de fe-vereiro de 1990, da Suprema Cortedos EUA (perseguição e capturade estrangeiros pelas forçasdos EUA, dentro e fora dopaís, não estão sujeitas àQuarta Emenda da Consti-tuição dos EUA), que abriuas portas a intervenções ili-mitadas, como a da políciaantidroga dos EUA (DEA),seqüestrando o presumidotraficante Álvarez Ma-chain, no México, ou oexército capturando Norie-ga, no Panamá. Os EUA es-tabeleceram unilateralmente nadamenos do que a sua superioridadejurídica perante os países latino-americanos e do mundo inteiro.

Que esta jurisprudência nadamais é do que a ante-sala da inter-venção militar direta fica provadopelos exemplos anteriormente cita-dos e também pela crescente milita-rização da fronteira dos EUA com oMéxico. A droga é o pretexto paraesse objetivo: “Se os EUA tivessemvontade política de combater o nar-cotráfico poderiam exercer um seve-ro controle das exportações de pro-dutos químicos para fabricação daPBC (Pasta de Base da Cocaína),que provém da Shell e da Mobil Oil,

como constatou a própria DEA(The Miami Herald, edição de 8 defevereiro de 1990); agir contra osbancos norte-americanos que lavamos narcodólares; e estender um cor-dão de radares e barcos para impe-dir a entrada da droga, em vez de fa-zer isso nos países da América doSul”. Ou, como se perguntam doisexperts norte-americanos: “Por quenão se faz a guerra também contraos países produtores de ópio e heroí-na, que consomem nos EUA 50%dos gastos totais em drogas? Por que

não fazê-la contra os produtores ca-lifornianos de maconha, que, depoisde substituir a Colômbia no primei-ro lugar do fornecimento dessa dro-ga, colocaram os EUA entre os trêsprimeiros produtores mundiais? Es-tatísticas oficiais mostram que a pro-dução de maconha nos EUA dobrounos últimos dois anos, expandindo-se 38% só em 1988”.

O enfoque apontado tambémprevalece nos documentos oficiaisdos EUA no que diz respeito aosproblemas internos: “A lei dos EUAtem que ser reforçada, reduzindo osbenefícios para os traficantes e au-mentando os riscos para os consu-midores. Os EUA podem criar um

modelo tanto para a redução da de-manda quanto para o reforço do sis-tema judicial”. Mas o enfoque ba-seado na repressão do consumo eda oferta é inútil por definição: ospaíses latino-americanos produzi-ram entre 162 mil e 211,4 mil tone-ladas de cocaína em 1987. Isso é cin-co vezes o necessário para abastecero mercado dos EUA, que só conse-guiu apreender entre 10 e 15% dacocaína enviada. Esse enfoque serveapenas para reforçar o controle dapopulação pelo Estado, e para ma-

nipulações com objetivos polí-ticos reacionários, cujo alcan-ce a remoção do prefeito ne-gro de Washington, MarionBarry, só exemplificou.

Estamos, portanto, dian-te de uma vasta operaçãopolítica que visa, sob pre-texto de repressão ao tráfi-co de drogas, acabar com aindependência nacional dospaíses atrasados e reforçara direitização do Estado ca-

pitalista nos EUA.Incapaz de cortar a “oferta”, o

que exigiria atacar a fundo o direitode propriedade (sigilo bancário), ocapitalismo em decomposição émais impotente ainda para enfrentara demanda, já que é absolutamenteincapaz de abrir uma via progressivapara o desenvolvimento social.

O fim da droga é insolúveldiante do capitalismo. Somente aexpropriação do capital, a liquida-ção do Estado burguês e a abertu-ra de perspectivas libertadoras eprogressistas para a humanidade,vale dizer, somente com a revolu-ção socialista, o flagelo da drogapoderá ser extirpado pela raiz. RRA

Estamos diante de uma vasta

operação política que visa, sob

pretexto de repressão ao tráfico de

drogas, acabar com a

independência nacional dos países

atrasados e reforçar a direitização

do Estado capitalista nos EUA.

Page 50: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

Aproposta governamental com o alega-do propósito de reformar o RegimeGeral de Previdência Social (RGPS) eos Regimes Especiais dos servidorespúblicos, civis e militares, persegue,na realidade, apenas dois objetivos

–um deles não assumido oficialmente: é como “oamor que não ousa confessar seu nome”.

O primeiro consiste em um ajuste fiscal com duasfaces. Em uma, o aumento das taxas de contribuição ea imposição de novos tributos. Na outra, a extinção dealguns e a restrição a outros benefícios pelos quais, noRGPS, os aposentados e os segurados ativos já paga-ram, estão pagando e vão continuar a pagar. Seus efei-tos para o equilíbrio da previdência serão de curta du-ração, a exemplo dos ajustes anteriores. Como refor-ma, será mais um fracasso, previsto com antecedência.

O segundo, não assumido, antes negado, é o decriar as condições políticas, favorecidas pelo fracassodo primeiro, para a privatização de todos os Regimes,transformando-os em um negócio lucrativo como pre-tendem, há muitos anos, bancos, seguradoras e em-presas que exploram a previdência complementar eos planos de saúde. Entre as medidas com essa finali-dade (de privatizar), as mais evidentes são:

- a permanência do regime de repartição na previ-dência pública, mantendo-a instável financeiramente,portanto, incapaz de conservar estáveis as taxas decontribuição impostas aos segurados e de contribuirpara a formação da poupança interna, o que só é pos-sível no regime de capitalização, preservado apenasna previdência complementar, onde se pretende privi-legiar os fundos mantidos por empresas privadas e osadministrados comercialmente pelas empresas insta-

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

52

O DRAMA DA PREVIDÊNCIAAJUSTAR PARA GANHAR TEMPO E PRIVATIZAR

Ruy Brito

Page 51: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

ladas na previdência. Sob o enfoque da gestão finan-ceira (salvo motivação política não confessada) nãohá nenhuma justificativa que explique a adoção de re-gimes tão diferentes para a previdência básica públicae para a complementar privada, pois, a longo prazo,os encargos de ambas são idênticos: uma é comple-mentar da outra;

- as restrições unilaterais impostas aos fundos depensões dos entes estatais, como se os mantidos porempresas privadas, muito mais generosos, não fos-sem financiados pelos contribuintes, através do Te-souro Nacional;

- a supressão do § 7º do artigo 201 da Constituição,que autoriza a previdência pública a instituir segurocoletivo, de caráter complementar e facultativo; e

- o envio recente ao Congresso do projeto que ins-titui o Fundo de Aposentadoria Programada Indivi-dual (FAPI) e o Plano de Incentivo a AposentadoriaProgramada Individual, como investimento de risco,administrado por bancos e seguradoras, cópia incom-pleta do modelo mercantilista do Chile. Fato que con-firma revelações feitas a empresários por autoridadesda área econômica. Uma do ministro da Fazenda, Pe-dro Malan, em Santiago do Chile: “O governo brasi-leiro tem a intenção de privatizar o sistema elétrico, aindústria petroquímica, a previdência....” (in: Gazetado Povo, de Curitiba, 11.05.95); a outra, do ex-minis-tro do Planejamento, José Serra, no seminário “Brasil2000” , promovido em São Paulo pela Revista Exame,considerando “necessário existir uma possibilidadeconstitucional de privatizar a Previdência e que o pro-jeto de reforma enviado pelo governo ao Congressoprevia isso”. (in: Gazeta do Povo, de 31.05.96.)

Apenas isso. Não é reforma. É um engodo.De outro lado, o substitutivo aprovado em primei-

ra discussão na Câmara Federal, além de ser inope-rante como solução porque acolhe, sem mudançassubstantivas, a concepção e os objetivos da propostagovernamental, ainda devolve às seguradoras priva-das o seguro de acidentes do trabalho, como se igno-rasse que a incorporação desse seguro à previdência,nos anos 60, não fosse o resultado das fraudes e irre-gularidades cometidas costumeiramente pelas segura-doras. As quais, à época, em vez de serem punidasexemplarmente, foram recompensadas com a criação

do seguro obrigatório de danos pessoais causados poracidentes de trânsito.

Com essa concepção, não solucionará nenhum dosgraves problemas daqueles Regimes, especialmenteos dos servidores públicos, cuja situação é dramática.

Regime Geral

É consensual a constatação de que o desequilíbriocrescente entre a receita e os encargos do RGPS se si-tua em especial a) no não recolhimento das contribui-ções devidas pela União, Estados, municípios e poruma minoria empresarial (que não recolhe suas con-tribuições, e se apropria das descontadas de seus em-pregados); b) na demagógica criação de benefíciossem cobertura financeira; c) na dilapidação das reser-vas técnicas formadas na vigência do regime financei-ro de capitalização; d) na sonegação, que reduz emmais de 40% a receita contributiva; e) no “arrocho sa-larial” da redução deliberada dos salários reais quereduziu, na mesma proporção, a receita contributiva;f) nas costumeiras anistias aos empresários faltosos,estimulando a inadimplência e a prática dos crimes desonegação e de apropriação indébita; e g) na aplica-ção indevida e no desvio de fabulosas quantias da re-ceita contributiva para pagamento dos encargos pre-videnciários da União-EPU.

No mesmo passo, a progressiva inviabilização doRGPS tem como causas bastante conhecidas 1) agestão estatal, caracterizada pela descontinuidadeadministrativa, pela incompetência gerencial, peloautoritarismo, pela centralização incompatível coma descentralização do Estado federativo; pela cor-rupção generalizada, pelo empreguismo, pelo tráfi-co de influência, pela manipulação político-partidá-ria e pela submissão aos grupos privados infiltradosno aparelho do Estado, em uma relação promíscuaentre a administração da res publica e a promoçãodos interesses empresariais que exploram, sem ris-cos, com fins lucrativos, planos de previdência com-plementar; e 2) a desastrosa unificação dos IAP’s (oerro intencional do século) que criou um órgão gi-gantesco, incontrolável e inadministrável, vulnerá-vel, por isso mesmo, a todas as formas conhecidas eimagináveis de fraudes.

53

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

Page 52: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

Na raiz da crise generalizada está a desestrutura-ção da administração pública ocasionada pela utiliza-ção do Poder Público para aumentar a fatia de rendados grupos dominantes, incapacitando o Estado parao cumprimento de suas funções de atendimento dasnecessidades básicas dos demais segmentos sociaisnas áreas de seguridade, educação, saneamento, segu-rança etc. Nesse contexto, parcelas elevadas dos limi-tados recursos públicos disponíveis são aplicadas soba forma de subsídios e incentivos fiscais às empresas,inclusive às estatais estrangeiras; pagamento dos ser-viços das dívidas interna (ciranda financeira) e exter-na, de composição nebulosa e suspeita; e de transfe-rência para o tesouro nacional dos gastos patronaiscom os planos de previdência complementar, de assis-tência médico-hospitalar e de seguros, que benefi-ciam também dirigentes empresariais (vide Lei9.249/95), agravando o que já é a mais iníqua concen-tração de renda do mundo.

Como se vê, não fracassou o Plano de Benefícios,fracassou a gestão financeira e a gestão estatal centra-lizada e autoritária; prostituiu-se, como era previsível,o deformado sistema que tem, em uma ponta, o Esta-do arrecadando contribuições e, na outra, grupos pri-vados mercantis como destinatários privilegiados dosrecursos compulsoriamente arrecadados.

Mas, em vez de medidas para arrecadar a receitaprevista no plano de custeio, o aumento das taxas decontribuição e a criação de novos tributos; em vez dedemocratizar e descentralizar a gestão, a supressão ea restrição de benefícios; em vez de uma reforma sa-neadora, uma manobra sub-reptícia para privatizar,mercantilizando a previdência pública.

Dessa forma, pode-se mudar tudo o que se quisermudar e todos os sacrifícios serão em vão. A previ-dência pública estará inviabilizada em pouco tempo.

Regimes especiais

Constitucionalmente não integram a PrevidênciaSocial. Situam-se no Título da Organização do Esta-do, nos Capítulos da Administração Pública, do Judi-ciário e do Ministério Público. Diferem, ainda, doRGPS, em relação aos planos de benefícios.

Na União existem dois regimes especiais: o dos

servidores civis, com dispositivos especiais para osmembros do Judiciário e do Ministério Público; e odos servidores militares. Nos Estados e municípios, osregimes especiais são definidos nas respectivas Cons-tituições e disciplinados por leis diferentes, com basenos diferentes regimes jurídicos e planos de carreira,do que resultam diferentes formas de contribuições eplanos de benefícios.

Seus segurados só passaram a contribuir para obenefício da aposentadoria a partir da Constituiçãode 1988, sendo que em alguns Estados ainda nãocontribuem.

Para os servidores federais a contribuição foi fixadaentre 9 e 12%, sem teto, mas o governo pretende lhesimpor um teto para o valor dos benefícios, o que éuma contradição. Pois, se não há teto para a contribui-ção, não pode haver teto para o valor dos benefícios.

A crise de tais regimes, dependentes financeira-mente do erário, está relacionada com a desestrutura-ção da administração pública e a situação pré-fali-mentar das finanças estaduais e municipais. Só pode-rá ser solucionada (sem violação da Constituição edas leis) no longo prazo, quando cessarem os efeitosdo descompasso entre receita e despesa, desde que asdistorções sejam corrigidas de imediato.

Em uma reforma, a unificação das diferentes legis-lações (da União, Estados e municípios) seria pré-condição insubstituível para a sua posterior unifica-ção com o RGPS e a instituição de um regime únicode Previdência para o setor público e o privado, comuma só legislação de Previdência complementar, pos-to que “reforma não pode significar apenas a supres-são dos direitos de alguns e a preservação dos privilé-gios de outros”.

Sem essas medidas não haverá reforma (comonão há). E a promessa de unificar para acabar comos privilégios não passará de uma falácia, como aproposta governamental, que não unifica, pois man-tém o RGPS e os regimes especiais, com diferentesplanos de benefícios, enquanto o governo desloca pa-ra a legislação do imposto de renda das pessoas jurí-dicas (Lei 9.249, sancionada em 26.12.95) os privilé-gios da Previdência complementar dos grandes em-presários para que não sejam questionados nos deba-tes da Previdência.

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

54

Page 53: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

Reforma sem base técnica

Pela primeira vez na história da Previdência umprojeto de sua reforma chegou ao Congresso sem ne-nhum estudo técnico de viabilidade das propostasapresentadas. O que, se não é uma farsa, é a ingênuapretensão de reformar o desconhecido. Ouça-se, apropósito, a explicação do ministro da Previdência: “-Não sei qual é o impacto das medidas. Só sei que dojeito que está não pode ficar. Confio na minha intui-ção”. (in: Veja, de 21.2.96.)

Só em virtude de pedido de informações da Subco-missão Especial para Assuntos de Previdência Social,da Câmara dos Deputados, o MPAS encomendou es-tudos de projeções financeiro-atuariais (o que é insufi-ciente), apenas para o RGPS, conforme revela a intro-dução do respectivo rela-tório: “O Ministério daPrevidência e AssistênciaSocial – MPAS, tendo emvista a necessidade desubsidiar o processo dediscussão sobre a propos-ta de reforma já enviadaao Congresso, realizouprojeções financeiroatuariais...” “O sistemaprevidenciário brasileiroabrange diferentes regi-mes de Previdência tais como o dos servidores públi-cos federais, estaduais e municipais, dos magistrados,dos parlamentares, etc., além do Regime Geral dePrevidência Social (RGPS), administrado pelo Institu-to Nacional do Seguro Social (INSS). A presente pes-quisa abrange apenas as projeções financeiro-atuariaisreferentes a este último”. Suas projeções “devem serentendidas como prováveis cenários e não como previ-sões de comportamento futuro da situação econômi-co-financeira do Regime Geral de Previdência Social”.

Leia-se a seguinte revelação da revista Veja, ed. cit.“Uma explicação para a falta de dados está num

documento reservado do Ministério da Previdência aque Veja teve acesso. A Previdência não sabe quemsão os seus segurados, não sabe quem são os seus be-neficiários, não sabe quem são os seus contribuintes,

não sabe se o que recebeu deveria de fato receber,não sabe se o que entrou no caixa é o que foi pagoefetivamente pelos contribuintes, não sabe se o quepagou é o que deveria de fato ter pago”.

Cobiça pelos bilhões

Nos países capitalistas civilizados, o seguro socialbásico é público, coordenado e fiscalizado pelo Es-tado, mas administrado de forma descentralizadapor entidades representativas dos beneficiários. Arazão de ser assim é ética. Fundamenta-se no princí-pio de que a cobertura dos riscos sociais (que afe-tam mais os mais pobres) não deve ser exploradacom fins lucrativos, e por ser de natureza contributi-va deve ser administrada pelos que pagam.

A experiência brasilei-ra confirma esse funda-mento ético. Veja-se oque aconteceu com os só-cios do Montepio Nacio-nal dos Bancários e doMontepio da Família Mi-litar, após a falência des-sas instituições; veja-se oque vem acontecendo,após o desmanche da as-sistência médico-hospita-lar pública, com a assis-

tência médica das empresas de medicina privada, quefazem o que querem, desde a propaganda enganosaao reajuste arbitrário das mensalidades, passando poruma assistência não raro como a da Clínica Santa Ge-noveva, do Rio de Janeiro, e a da Clínica de Hemo-diálise de Caruaru, ambas com fins lucrativos; veja-seo apodrecimento da Previdência administrada de for-ma autoritária, sem a participação dos segurados con-tribuintes. Como sempre, deve haver exceções queconfirmem a regra.

Apesar de tão notória experiência, a conivente fal-ta de memória histórica dos governantes facilita aação dos poderosos interessados em transformar aprevidência em um balcão de negócios.

O interesse das seguradoras pela aprovação daproposta governamental foi revelado em artigo de co-

55

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

Pela primeira vez na história da

Previdência um projeto de sua reforma

chegou ao Congresso sem nenhum

estudo técnico de viabilidade das

propostas apresentadas. O que, se não

é uma farsa, é a ingênua pretensão de

reformar o desconhecido.

Page 54: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

nhecido consultor de seguros e diretor do Centro deComércio do Estado de São Paulo (in: O Estado de S.Paulo, de 27.3.95. Ei-lo:

“Com o recente envio pelo Governo Federal de suaproposta de reforma da Previdência Social para o Con-gresso, iniciou-se o processo responsável pela criaçãoda maior fonte de financiamento de longo prazo já vistano Brasil. A reforma da Previdência pode significar pa-ra a atividade seguradora nacional e para a nação comoum todo, já que seguradoras eficientes e capitalizadassão uma das ferramentas mais efetivas que existem paraa distribuição de renda e geração de emprego. Projetoscomo a quebra do monopólio do resseguro do Institutode Resseguros do Brasil, a implantação de controles dasmargens de solvência das seguradoras e a abertura domercado segurador brasileiro para as companhias es-trangeiras não podem ser interrompidos e precisam es-tar perfeitamente definidos antes que o Congresso Na-cional aprove as mudanças que criarão poupanças com-pulsórias destinadas a injetar algo próximo de US$ 30bilhões para financiar as atividades produtivas do país”.

Leia-se, a propósito, esta notícia publicada no Es-tado de S. Paulo, de 27.11.94:

“Grupo liderado pelo Banco Icatu, incluindo o Bra-desco e o Bamerindus, do senador José Eduardo An-drade Vieira, encaminhou a Cardoso a proposta queadota o modelo chileno e deixa as aposentadorias comas seguradoras privadas, sem interferência do poder pú-blico. O lobby em torno da previdência explica-se pelovalor das cifras envolvidas. Se bem administrado, o ne-gócio pode render milhões às instituições financeiras.

Origem da proposta governamental

O deputado federal Reinhold Stephanes, atual ti-tular do MPAS, apresentou, na legislatura passada,quando da primeira tentativa de revisão constitucio-nal, os projetos nºs PRE 1979-1, 1974-2, 8690-9, 1976-0, 1977-3, 1988-1, 8929-2 e 11412-8, restringindo di-reitos constitucionais de natureza previdenciária, ex-tinguindo a preferência das entidades filantrópicas edas sem fins lucrativos na participação complementardo sistema único de saúde e suprimindo a proibiçãode subvenção do Poder Público a entidades de saúdeprivada com fins lucrativos.

Pois bem. A proposta governamental é origináriadaqueles projetos, à época não aprovados. Da qual,além de algumas modificações formais, foram retira-dos os dispositivos que pretendiam mais ostensiva-mente beneficiar as empresas de saúde.

Mais: são conhecidas as ligações do ministro daPrevidência com os grupos privados que operam pla-nos de saúde com fins lucrativos. Ao prestar conta dosfinanciamentos recebidos em sua campanha de reelei-ção à Câmara dos Deputados, S. Exa. possibilitou aidentificação de alguns de seus patrocinadores, dentreos quais bancos e empresas que operam planos de me-dicina privada. Ei-los: Paraná Banco; Real Banco S/A;Cia. Real de Investimento; SL S/A Assistência Médi-co-Hospitalar; Seisa Serviços Integrados de SaúdeLtda; São Camilo Assistência Médica S/A; SAMP -Assistência Médica S/A; Oswaldo Cruz AssistênciaMédica; Interclínica Assistência Médica; Banco ItaúS/A; Intermédica Assistência de Saúde Ltda; Clini-hauer Ltda.; e Banco Araucária S/A.

Essa origem esclarece por que a fonte de inspira-ção da proposta governamental é de natureza fiscal,exclusivamente econômica e de promoção dos inte-resses empresariais; por que não considera em pri-meiro lugar os superiores interesses dos segurados eda sociedade; por que condiciona o bem-estar doscontribuintes ao lucro dos bancos, seguradoras e em-presas de medicina privada.

O que é de extrema gravidade em um país como oBrasil, onde o Estado está privatizado e não criou ins-tituições independentes contra os abusos do podereconômico; a sociedade não está suficientemente or-ganizada e a consciência dos direitos de cidadanianão está amadurecida.

Tais são os motivos que nos levam a reafirmar oque temos dito em outras oportunidades. Como está,a proposta governamental deve ser firmemente com-batida pelos trabalhadores por ser nociva ao interesseda sociedade. Como está, ela não serve ao Brasil dehoje nem ao de amanhã e, se aprovada, levará a Pre-vidência Social a um impasse de conseqüências im-previsíveis em um futuro não muito distante.

Ruy Brito foi presidente do Departamento Intersindicalde Assessoria Parlamentar e é membro do Comitê Con-federal da CMT.

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

56

Page 55: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

57

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

UM OUTRO OLHAR SOBRE O PROÁLCOOL

Fernando Ferro

Cláudio Rossi/Abril Imagens

Page 56: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

OPrograma Nacio-nal do Álcool,Proálcool, um in-vestimento queconsumiu R$ 11bilhões, bem que

poderia ser incluído na lista das “-obras inacabadas” deste país. Ocerto é que esta iniciativa apresen-ta um quadro de difícil sustentação–nos moldes como se mantém hojeo Proálcool é indefensável.

Implantado em 1975, o Proál-cool nunca chegou a ser um projetoeconômico. Não é de estra-nhar que tenha acumuladouma dívida de R$ 9 bilhões.O Programa deve R$ 4 bi-lhões ao setor financeiro eR$ 5 bilhões à Petrobrás(Conta Álcool).

Esta atividade indus-trial é responsável atual-mente pela geração de 1milhão de empregos nocorte da cana e nas instala-ções das usinas. A produ-ção anual –12 bilhões de li-tros de álcool– não atende,porém, a demanda interna do país;ainda temos que importar 2 bi-lhões de litros/ano de álcool e me-tanol. O álcool movimenta hojeuma frota de 4,5 milhões de veícu-los. O combustível tem uma pode-rosa virtude ambiental: é menospoluente que a gasolina.

Todos esses fatores –o conjuntode virtudes e defeitos do Progra-ma– exigem uma reflexão criterio-sa e responsável sobre sua conti-nuidade ou não.

No debate sobre o Programageralmente são relegados os traba-lhadores do setor sucro-alcooleiro.

Exclusão injustificável uma vezque são eles os responsáveis pelosprocessos de produção que geramo lucro das empresas.

Além disso, os mais tristes evergonhosos indicadores sociais dopaís se encontram entre os traba-lhadores das usinas e destilarias. Ataxa de analfabetismo é de 74,8%para os homens e 77,6% para asmulheres; a taxa de mortalidadeinfantil é de 124 por mil nascidosvivos; expectativa de vida é dasmais baixas do país.

O quadro é nacional, mas é noNordeste que ele se torna mais de-gradante. A família média do tra-balhador da cana-de-açúcar é com-posta de até sete pessoas, a rendamédia familiar é de R$ 165,00. Emdiversas propriedades ainda vigo-ram relações feudais entre empre-sário e trabalhador: não se assinacarteira de trabalho; não se respei-tam leis trabalhistas; permanecefirme o “barracão” da usina, quesecretamente aprisiona o trabalha-dor, responsável pela permuta doseu salário miserável por dívidasque nunca se pagam.

Trabalho infantil

Além dessa violência ocorreuma outra, um genocídio: criançassão condenadas ao trabalho nas la-vouras de cana. São crianças semfuturo, porque vivem nos cana-viais, cortando cana, sem possibili-dade de melhores dias. Ali elasperdem a graça, os sonhos e a vida.

No estado de São Paulo, con-forme o IBGE, eram 57 mil crian-ças em 1990 trabalhando na ativi-dade considerada pelos médicos

como a mais penosa daspraticadas na lavoura. Deacordo com a Federaçãodos Trabalhadores da Agri-cultura de Alagoas (Fetag-AL), 50 mil crianças, entre6 e 13 anos, trabalham nocorte de cana no estado.

Segundo pesquisa recen-te realizada pelo Centro Jo-sué de Castro, do Recife,26% da mão-de-obra traba-lhadora de cana na zona damata são crianças e adoles-centes. Nas escolas deste

país deveria ser dito: criança, nãoverás país como este, onde se humi-lham e se trucidam jovens para fa-zer o açúcar do brigadeiro, do bolode chocolate, dos refrigerantes, dasfestas que estes nunca conhecerão.

A maior parte das crianças éencaminhada para esse moinho degente pequena pelos próprios pais.Estes usam-nas para complemen-tar os miseráveis salários que rece-bem da usina e destilaria. Do totalde crianças em atividade, cerca de40% trabalham sem remuneração,pois “ajudam” pais ou parentes;59% não têm acesso à escola em

58

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

Crianças são condenadas ao

trabalho nas lavouras de cana.

São crianças sem futuro, porque

vivem nos canaviais, cortando

cana, sem possibilidade de

melhores dias. Ali elas perdem a

graça, os sonhos e a vida.

Page 57: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

59

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

virtude da jornada de trabalho. Asque conseguem chegar à sala deaula apresentam grande dificulda-de de aprendizagem resultante docansaço e má alimentação.

Debater o Proálcool significa,principalmente, buscar transformaresta realidade. Paralelamente, nãoser conivente com as políticas de sa-ques aos cofres públicos que secular-mente têm sustentado usineiros ina-dimplentes, um bando de esperta-lhões que entendem as finanças pú-blicas como uma extensão dos cofresparticulares. É importantealertar para o discurso opor-tunista, hipócrita e cínicodessas elites, que chanta-geiam a sociedade usando oquadro social e a ameaça deuma explosão popular paraconseguir mais recursos doTesouro. Não lhes basta oque já conseguiram no pas-sado. Para cobrir seus débi-tos junto aos bancos, nãotêm vergonha de utilizar asvítimas de sua ganância–usando em benefício pró-prio aqueles que sempre foram ex-plorados como trabalhadores.

Renda mínima

Ao reconhecer a importância es-tratégica e ambiental do Proálcool ecrer na sua viabilidade social, atravésde Projeto de Lei, estamos propon-do a criação de um programa quegaranta a renda mínima para o tra-balhador da cana-de-açúcar. Podere-mos construir uma fonte de financia-mento para o projeto a partir dochamado imposto ou taxa ambiental,cobrado do preço da gasolina, desde

que adotemos, concomitantementecom esta iniciativa, um Programa deRenda Mínima (PRM). Este seriadirecionado para complementar arenda familiar do trabalhador do se-tor. Para ter direito ao salário previs-to no PRM ele teria que matriculare manter seus filhos na escola. OPrograma seria custeado por contri-buições do imposto ambiental comos recursos arrecadados do Progra-ma de Assistência Social (PAS), pre-visto pela Lei 4.870/65, artigos 36 e37, para atender o trabalhador da

cana-de-açúcar. Ainda com estasfontes seria criado um fundo público,desvinculado da Petrobrás e dos usi-neiros, para subsidiar a pesquisa deenergias alternativas e novas fontes.

A lei estabelece que os produto-res são obrigados a depositar noPAS, em benefício dos trabalhadoresindustriais e agrícolas das usinas,destilarias e fornecedores, 1% sobreo saco de açúcar, 1% sobre a tonela-da de cana, 2% sobre o litro de ál-cool. O fundo criado com esses re-cursos deve ser aplicado em assistên-cia médica, hospitalar, farmacêuticae social. Levantamento feito pela

Associação das Indústrias de Açúcare do Álcool de São Paulo (IAA) re-vela que só no período 1992/96 oBrasil produziu 912,1 milhões de to-neladas de cana; no mesmo períodoproduziu 48,4 milhões de metros cú-bicos de álcool. Isto mostra que sócom açúcar e álcool o PAS deve tercapitalizado mais de R$ 4,6 bilhões–aproximadamente o que o governodeu para salvar o Banco Nacional.Quanto rende por ano o PAS? Sóem 1995 o PAS deve ter recebido, daprodução de álcool e cana, R$ 890,4

milhões.Além dessa iniciativa,

propomos que parte dasterras dos usineiros que semostram inadequadas parao cultivo da cana sejamdestinadas à ReformaAgrária. Igualmente, com omesmo fim, propomos umanegociação das dívidas dosusineiros e proprietários deterras com as instituiçõesfinanceiras do governo.

Fora destas bases não hácomo defender um progra-

ma para o álcool brasileiro. Se tec-nologicamente o Proálcool constituireferência internacional, fazendocom que nações do Primeiro Mundoestejam nos procurando para conhe-cer nossa experiência, é preciso,também, que sejamos modelo naquestão trabalhista. Ou adotamosmudanças radicais nesse programa,eliminando a vergonhosa situaçãode moinho de crianças, ou não temsentido mantê-lo, exibindo esse pas-sado tão sujo quanto o vinhoto quealgumas usinas ainda jogam nos rios.

Fernando Ferro é Deputado Federalpelo PT de Pernambuco.

Se tecnologicamente o Proálcool se

constitui referência internacional,

fazendo com que Nações do Primeiro

Mundo estejam nos procurando para

conhecer nossa experiência, é

preciso, também, que sejamos

modelo na questão trabalhista.

Page 58: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

Aapresentação simultânea de dois Édipo-Rei em São Paulo, em diferentes salasdo Centro Cultural Vergueiro, entre ja-neiro e abril de 1996, foi boa oportuni-dade para se pensar pluralmente sobreo grande texto de Sófocles e algumas

de suas possíveis leituras cênicas contemporâneas.Aparentemente, as montagens seguiram caminhos

díspares: Paulo de Moraes e a Armazém Companhiade Teatro assumiram os signos mais visíveis de umaencenação de tragédia clássica, dos figurinos à inclu-são de canto em grego, sem esquecer a preservaçãodo título mais conhecido no Ocidente –que perde ooriginal tirano; Renato Borghi e o Grupo de TeatroPromíscuo anunciaram muito claramente a liberdadena montagem de seu Édipo de Tabas, que chegou a su-gerir total separação do ponto de partida grego ao en-

fatizar mais que explícitas articulações com referen-ciais brasileiros de hoje –índios desculturados, cor-rupção, miséria, figuras da política e da cultura demassas, como Collor de Melo, pastores e fiéis da Igre-ja Universal do Reino de Deus etc.

Comentar as duas montagens é reafirmar a legitimi-dade desses e de outros caminhos: nada mais danosopara uma encenação de texto clássico que a submissãofantasmagórica à “autoridade original”, auto-aniquila-mento da leitura atual. Os clássicos sobrevivem atravésde interpretações –e a tradução, com inevitáveis mu-danças de ritmos, rimas e outras sonoridades e signifi-cações, não é a menor delas. Dos romanos aos elisabe-tanos, passando pelos franceses do século XVIII e pe-los diferentes modernos do século XX, evocar o trági-co é também pensar sobre o hoje de cada intérprete,sem renunciar à força inicial de seus inventores.

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

60

A FAVOR DE MAIS ÉDIPOS

Marcos A. da Silva

Page 59: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

As oposições entre escolhas de direção de Borghie Moraes foram menos absolutas que o anunciado.Muito visivelmente, suas montagens já se aproxima-ram através de articulações com a leitura da tragédiapor Sêneca, incluindo coincidentes interpretações doautor romano como representativo de suposto “natu-ralismo” em suas descrições de peste ou no desfechoda narrativa.

Por que essa busca do “naturalista”? Uma respostapode estar na onipresença de entranhas descarnadase membros decepados nos engraçadíssimos filmes deficção científica, horror e policiais recentes, mescladaà força da propaganda televisiva ou em out-doors,com seus detalhes fotográficos, mais um pouco deboutiques pornô e sua parafernália material de filmes,revistas e objetos –pense-se no furor uterino da Jocas-ta dirigida por Moraes e interpretada pela talentosaPatrícia Selonk, expresso em contorções pélvicas, es-gares da máscara facial e gemidos. Outra explicaçãopara o fenômeno pode residir na pretensão de esca-par do mito antigo através da “verdade das coisas”,esse outro mito cientificista muito moderno e forte,ao menos desde o século XIX.

Qualquer que seja o motivo, é preciso reafirmar odireito e a inevitabilidade da interpretação no ato decolocar um clássico em cena.

A montagem de Moraes se apoiou em tradução deMaurício A. Mendonça, a partir de versões para váriaslínguas (português, espanhol, francês e italiano). O re-sultado geral soa interessante, embora não fique clarasua superioridade em relação a outras traduções dispo-níveis em português. Borghi assume o caráter híbridodo texto (traduzido por Christiane Esteves) que lhe ser-viu de base. Muito claramente, extensos trechos da tra-dução de Geir Campos para a escrita de Sófocles foramutilizados por Esteves, sem citação dessa fonte.

Moraes optou por um espetáculo em palco italia-no, com cenário parcialmente móvel –grande estrutu-ra com rodas, que se desloca na profundidade do pal-co para, no desfecho, mudando de eixo, se transfor-mar num labirinto por onde Édipo e Jocasta desfilamseu sofrer. O encontro entre mitos (Édipo, labirinto)é uma bonita idéia, pouco explorada no conjunto damontagem, ficando aquém da igualmente bela refe-rência ao grupo de Lacoonte no duelo verbal entre

Édipo e Tirésias. O interessante painel que serviu defundo para o cenário foi pouco realçado, apesar desua capacidade sugestiva quanto a sangue e útero.

Já Borghi desenvolveu intensa homenagem aoTeatro Oficina, onde atuou por muitos anos, e a JoséCelso Martinez Corrêa, diretor e sustentáculo daque-le grupo. Édipo de Tabas faz referências explícitas a ORei da Vela (bandeira do Brasil em trajes e adereços,paródia) e a Gracias, Señor (perambulação com o pú-blico, clima ritualístico –apesar do naturalismo procu-rado em Sêneca), além do mais recente Hamlet (o en-trelaçamento clássico/atualidade brasileira, sob o sig-no da paródia –Collor também servira de referênciapara essa montagem da Uzyna Uzona, atual designa-ção do Oficina), incluindo o trabalho com os elemen-tos água, fogo, terra. Certamente, a capacidade deCorrêa para construir climas poéticos muito fortes emmeio àquelas tensões não foi continuada por Borghi,o que é lamentável enquanto perda de sutilezas e ca-minhos.

Nessa perspectiva, Édipo de Tabas trabalhou commúltiplos espaços cênicos, donde ser difícil falar num“cenário” em sentido convencional: há referências aetapas narrativas do texto –escadaria e aposentos dopalácio real–, ao mesmo tempo em que se explorava oimediato (corredores do Centro Cultural Vergueiro,trânsito da Avenida 23 de Maio, feira e camelódro-mo). Através do cortejo inicial, a peça adotou o co-mover em sentido literal –mover-se junto.

Anunciou-se, reiteradamente, a intenção interativada montagem, com insistência sobre a possibilidadedo público interferir em seu desfecho, parodiando-se,ao mesmo tempo, chavões da indústria cultural.Oportunidades de interação, todavia, foram perdidasou mal-aproveitadas pelo grupo: na perambulaçãoque serve de prólogo à montagem, Borghi começou acantar Não tenho lágrimas, de Max Bulhões e MíltonOliveira, e conseguiu boa adesão dos presentes, inter-rompendo a canção para que a etapa seguinte do tra-balho fosse cumprida; o convite à participação de es-pectadores em cenas, como na invocação dos deuses,findou reduzido a constrangedor aspecto de retóricafiguração televisiva (Gugu Liberato, Faustão, Jô Soa-res), sem verdadeira ação dos que receberam a perso-na de uma ou outra divindade.

61

Agosto 1996RReevviissttaa Adusp

Page 60: APRESENTAÇÃO H - adusp.org.br · APRESENTAÇÃO H á um século, um cidadão comum levava um ano para consumir o mesmo volume de informações que atualmente é publicada em uma

As imagens do Brasil, sob o signo de paródia, enfa-tizaram excessivamente certos chavões: São Jorge,Nossa Senhora Aparecida, batucada, índios, capacetede Fórmula 1, bola de futebol... Sem pretender dimi-nuir o peso dessas referências, vale lembrar outros bra-sis menos visíveis, que capacetes de trabalhadores ecalçados baratos introduziram no Édipo de Tabas.

Os diferentes caminhos de montagem implicaram,naturalmente, estilos de interpretação diversificados.

Moraes investiu especialmente no desempenho e nacaracterização dos dois protagonistas, o que se observadesde o visual (o saiote de Édipo bem articulado a umacamisa sem mangas, que realça realeza e virilidade; odecote de Jocasta, permitindo a visão dos madurosseios), passando pelo ensaio de uma poética dos péspelo ator Marcos Martins, que incluiu significativostropeços e giros sobre o próprio corpo, e pela intensa(talvez excessiva) presença em cena de Selonk - no últi-mo caso, falas do coro foram desviadas para Jocasta,com resultados duvidosos, como se observa no debatecom Tirésias, quando a rainha, incoerentemente, pare-ce vitoriosa! Acrescente-se a isso a maior eficácia dotrabalho vocal de Selonk quando feito em surdina: osrepetidos urros da atriz diminuíam a dramaticidade,descambando mesmo para gargarejos banais.

Uma contrapartida desse trabalho interpretativocom os protagonistas foi reservar para o restante doelenco quase exclusivamente tarefas de canto e dan-ça. No caso dos coros cantados, a afinação das vozesesteve excelente, com especial destaque para Simo-ne Mazzer. É uma pena que os bons resultados tex-tuais alcançados no primeiro coro (jogo de palavrascom Marte/Amor/ Morte) não tenham sido preser-vados nos demais, que tenderam a descrições pala-vrosas. As coreografias também evidenciam bomacabamento, embora fossem menos criativas que osmomentos vocais.

Os limites dessa exclusividade em canto e dança serevelaram quando os membros do coro assumirampapéis individuais, cuja dimensão menor, se compara-da a Édipo e Jocasta, não pode ser entendida comodesimportância narrativa. Paulo Augusto Neto, comoCreonte, Simone Vianna, representando o Mensagei-ro, e Ivana Debértolis, na pele do Pastor, permanece-ram muito inexpressivos oral e gestualmente, estra-

nhamente inertes em momentos cruciais, como a dis-cussão entre Édipo e Tirésias, sugerindo desleixo dedireção e comprometendo o conjunto do trabalho.Como Arauto, a boa cantora Mazzer conseguiu, aomenos, desempenho correto.

O trabalho de Borghi obteve efeitos simetricamen-te inversos a esses: as cenas de coro foram eficazes,seus membros convenceram como Mensageiro e ou-tras figuras individuais, Ary França construiu um ex-celente Creonte e o próprio Borghi esteve muito bemcomo Tirésias; Élcio Nogueira e Cida Moreno, nospapéis principais, foram menos satisfatórios, malgra-do boa caracterização física de ambos e alguns mo-mentos de conjunto (a primeira entrada de Jocasta, asfalas finais de Édipo) apreciáveis.

Nogueira manteve uma curiosa imagem malan-dra de Édipo, contrapartida política à freqüente vi-timização quase cristã do seu correspondente porMartins –cartaz e programa da montagem de Mo-raes usaram um Cristo de Bosch como ilustração.Numa comparação entre os dois atores - guardadasas proporções entre projetos diferenciados–, obser-vou-se uma tendência monocórdica de Nogueira,especialmente no plano da fala, enquanto Martinsalcançou muito maior diversidade de nuances emseu personagem, tanto vocal como corporalmente.Inseridos em suas respectivas montagens, a monoto-nia oral de Nogueira foi diluída no trabalho grupal,enquanto Martins entrou freqüentemente em cho-que com a inexpressividade cênica de muitos deseus companheiros.

Os desequilíbrios presentes nas duas montagenssão comuns a qualquer encenação e jamais anulam aousadia de ambas ao oferecerem para o público bra-sileiro a oportunidade de uma reflexão conjunta so-bre Sófocles e o amplo espectro de sua leitura. Ape-sar de ocasionais referências psicologistas ainda ron-darem essas duas interpretações –o velho Freud pa-rece menos morto do que se imagina...–, fica claro,em cada uma delas, que o universo de referências pa-ra rever Édipo continua infinito, em aberto paraquantos aceitarem desafiar esse enigma de enigmas.Que venham outros Édipos!

Marcos A. da Silva é Professor do Departamento de His-tória da FFLCH/USP.

Agosto 1996 RReevviissttaa Adusp

62