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Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS – UFMG Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – FAFICH APRESENTAÇÃO DE PACIENTES: (RE)DESCOBRINDO A DIMENSÃO CLÍNICA Cristiana Miranda Ramos Ferreira Belo Horizonte 2006

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Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS – UFMG

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – FAFICH

APRESENTAÇÃO DE PACIENTES:

(RE)DESCOBRINDO A DIMENSÃO CLÍNICA

Cristiana Miranda Ramos Ferreira

Belo Horizonte

2006

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Cristiana Miranda Ramos Ferreira

APRESENTAÇÃO DE PACIENTES:

(RE)DESCOBRINDO A DIMENSÃO CLÍNICA

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Federal de Minas Gerais, como

requisito parcial à obtenção do título de Mestre em

Psicologia.

Área de Concentração: Estudos Psicanalíticos

Orientador: Prof. Antônio Márcio Ribeiro Teixeira

Belo Horizonte

2006

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Cristiana Miranda Ramos Ferreira

Apresentação de pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica.

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais.

Prof. Antônio Márcio Teixeira

Orientador

Dra. Maria Elisa Parreira Alvarenga Long

Dra. Ana Lydia Santiago

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

AGRADECIMENTOS

Não poderia deixar de começar agradecendo àqueles através de quem conheci

a apresentação de pacientes: a Antônio Beneti, Elisa Alvarenga e Wellerson Alkmim, que

com sua escuta aguda, seu manejo cuidadoso, sustentados num desejo clínico bem

colocado, me transmitiram um querer saber mais - sobre a clínica, sobre a psicose e sobre a

apresentação.

Agradeço também, aos pacientes, que aceitaram participar destas

apresentações que aconteciam no Raul Soares, e que, mesmo sem o saber, ao falarem de

sua dor, de seu sofrimento, de suas soluções, nos ajudaram a manter vivo esse desejo

clínico, que o automatismo institucional insistia em apagar.

Desejo clínico que encontrou na parceria com Aline, Anamaris e Renata, e sob a

orientação do Leo, força suficiente para sustentar, mesmo nos tempos mais inóspitos, um

projeto como a Sessão Clínica do IRS. Espaço tão rico, tão vivo, tão dinâmico, que

possibilitou que tantos outros projetos puderam florescer e frutificar.

Dentre estes projetos, a pesquisa sobre os efeitos clínicos da apresentação de

pacientes. Agradeço ao Jésus, que nos acolheu com tanto interesse e entusiasmo e com

quem, juntamente com Leo e Renata, formamos um novo grupo de trabalho.

Por fim, agradeço a todos os meus colegas e professores do mestrado, que

fizeram deste curso um período de muita alegria, de conversas preciosas e apoio mútuo.

Agradeço especialmente à Claudinha e, sobretudo, à Simone, novas parceiras de trabalho e

de afeto.

Agradeço também a Ram Mandil pela leitura cuidadosa e sua importante

contribuição na qualificação deste projeto. E também a Ana Lydia e a Elisa Alvarenga, que

cuja participação na banca, tanto contribuíram para o avanço de minhas questões.

Agradeço especialmente ao meu orientador, Antônio Teixeira, que acreditou no

meu trabalho, respeitou meu estilo e sempre me apoiou.

E agradeço também aos meus companheiros de afeto, que não participaram

com trabalho, mas que entenderam minha ausência prolongada, sem nunca se ausentarem.

A minha família: pai, Mhu, mãe , Suely, Gui, Dudu, Mariela,e Rachel.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Ao Leo, meu amor,

companheiro neste e noutros projetos.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

RESUMO

Nos últimos anos, a prática da apresentação de pacientes vem crescendo no

campo psicanalítico, e isto se deve, sem dúvida, aos incontestáveis efeitos clínicos por ela

produzidos. Mas, para que possamos reconhecer o verdadeiro alcance deste dispositivo, é

preciso partirmos para um trabalho de formalização e sistematização dessa prática.

Entretanto, apesar de toda a polêmica que há em torno da apresentação de pacientes, muito

pouco foi escrito, até agora, sobre esse tema.

Entendendo que, para se fazer uma análise crítica e avançar nas elaborações, é

preciso conhecer as bases conceituais sobre as quais um processo se deu, este trabalho

tem como objetivo esboçar um mapeamento histórico, procurando identificar as

circunstâncias de seu surgimento, transformações pelas quais passou, até seu uso no

momento atual. Uma ênfase especial é dada a Charcot, Clérambault e Lacan, pela

importante incidência que a prática de cada um exerceu sobre a forma como a apresentação

é concebida e realizada na atualidade.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

RÉSUMÉ

Depuis les dernières années, la pratique de la présentation de patients augmente

dans le métier psychanalytique dû sans doute aux effets cliniques qu’elle produit. Mais pour

qu’on puisse reconnaître la vraie portée de ce dispositif, il faut se tourner vers un travail de

formalisation et systématisation de cette pratique. Pourtant, malgré toute polémique autour

de la présentation des patients on a très peu écrit jusqu’à présent.

On comprend que pour faire une critique et avancer les élaborations, il faut connaître

les bases conceptuelles d’un processus. Cette étude a pour but esquisser une cartographie

historique, en identifiant les circonstances de l’avènement de la pratique de cette

présentation, les transformations dont elle a subi et son application aujourd’hui. On met

l’accent sur la pratique de Charcot, Clérambault et Lacan à cause de leur importante

collaboration à la façon dont ce dispositif est conçu et utilisé à nos jours.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

LISTA DE ABREVIATURAS

CID-10 – Classificação Internacional de Doenças

CNPq – Conselho Nacional de Pesquisa

CRIA - Centro de Referência da Infância e da Adolescência

DSM-IV – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual Diagnóstico

e Estatístico de Transtornos Mentais)

EBP - MG - Escola Brasileira de Psicanálise - Seção Minas

FHEMIG – Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais

IPSMMG - Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais

IRS – Instituto Raul Soares

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 10 Atualidade .................................................................................................................... 12 Diferenciação ............................................................................................................... 14 Formalização................................................................................................................ 16

1 APRESENTAÇÃO DE PACIENTES NA PSIQUIATRIA CLÍNICA................................. 20

1.1 Contexto de seu surgimento................................................................................... 21 1.2 A realidade como forma de tratamento................................................................... 24 1.3 Sobre a apresentação de pacientes ....................................................................... 34 1.4 Apresentação como prova de realidade ................................................................. 39 1.5 Sobre seu abandono .............................................................................................. 41

2 AS LIÇÕES CLÍNICAS DE CHARCOT EM SALPÊTRIÈRE ......................................... 48

2.1 Uma figura controversa .......................................................................................... 49 2.2 O percurso de Charcot ........................................................................................... 53

2.2.1 A histeria antes de Charcot ........................................................................... 53 2.2.2 Salpêtrière – esboço do trajeto: 1862-1893................................................... 54

2.3 As apresentações de Charcot: um capítulo à parte ................................................ 65 2.3.1 Seu caráter visual ......................................................................................... 65 2.3.2 Apresentação de Charcot X Interrogatório clássico....................................... 69 2.3.3 Sobre os efeitos das apresentações de Charcot ........................................... 73

3 CLÉRAMBAULT, MESTRE DE LACAN ....................................................................... 81

3.1 Anacronismo paradoxal.......................................................................................... 81 3.2 Particularidades...................................................................................................... 83

3.2.1 O olhar do artista .......................................................................................... 83 3.2.2 O olhar do psiquiatra..................................................................................... 84 3.2.3 Enfermaria Especial ...................................................................................... 87

3.3 Para além de seu tempo ........................................................................................ 89 3.4 Apresentação de pacientes .................................................................................... 94

3.4.1 Seu estilo ...................................................................................................... 94 3.4.2 Suas estratégias ........................................................................................... 97

4 APRESENTAÇÃO DE PACIENTES NA PSICANÁLISE ............................................... 108

4.1 Freud, aluno de Charcot......................................................................................... 108 4.1.1 Freud: sob o efeito das apresentações de Charcot ....................................... 111 4.1.2 As apresentações de Freud .......................................................................... 113

4.2 As apresentações de Lacan ................................................................................... 119 4.2.1 (Re)instaurando a dimensão clínica .............................................................. 122 4.2.2 Lacan, para além de Clérambault ................................................................. 128

4.3 Apresentações clínicas hoje: no rastro de Lacan.................................................... 141 4.3.1 Apresentação tradicional X Apresentação clínica.......................................... 142 4.3.2 Sobre os efeitos clínicos da apresentação de pacientes ............................... 147

CONCLUSÃO................................................................................................................... 158 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 164 ANEXO 1.......................................................................................................................... 170 ANEXO 2.......................................................................................................................... 172 ANEXO 3.......................................................................................................................... 173 ANEXO 4.......................................................................................................................... 174 ANEXO 5.......................................................................................................................... 175

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

INTRODUÇÃO

O traço de Jerry1 que chamava atenção era os seus "atos perversos": aterrorizava sua vizinhança ameaçando as crianças, matando brutalmente os gatos e cachorros da região, e também com sua figura: sempre de óculos escuros e com o corpo marcado por cortes costurados por suas próprias mãos. Tomados como "distúrbio de comportamento", seus atos sugeriam para alguns técnicos uma psicopatia e sua relação com os médicos era de desconfiança. Encaminhado ao Centro de Saúde para pegar medicação, Jerry revela à psicóloga que o acolhe, suas idéias de morte e tentativas de suicídio. Segue-se a esse encontro a tentativa de encaminhamento para o CERSAM. Sua situação provocava angústia nos profissionais de rede, Centro de Saúde e CERSAM, não apenas pelas constantes passagens ao ato, realizadas diante do olhar aterrorizado das pessoas e até mesmo dos técnicos do serviço, mas pela impotência que os colocava diante de sua adesão precária ao tratamento. Em meio a estas dificuldades, sua terapeuta conseguiu escutar uma demanda: Jerry queria ir ao Programa do Ratinho2 para pedir-lhe um rosto novo. Esclarecido da impossibilidade de levá-lo ao programa, a terapeuta oferece um outro espaço: ir a uma apresentação de paciente, proposta que aceitou com entusiasmo. Sua participação na apresentação teve um efeito fundamental sobre seu tratamento. Um primeiro aspecto foi a elucidação do diagnóstico estrutural: nos atendimentos já havia falado acerca de um estupro que sofrera na infância, mas na entrevista ele revela aspectos desse episódio que possibilitaram precisar aí as circunstâncias de seu desencadeamento. Sobre o fato trouxe ainda um detalhe importante: lembra-se que após o abuso o agressor jogou sobre ele um cachorro morto, o que, ao longo da entrevista, se revelou como um ponto de identificação ao objeto mortificado, ao resto. Outro aspecto fundamental foi sobre a direção de seu tratamento: na entrevista, em lugar de acolher o relato de seus "atos perversos", o entrevistador privilegiou suas construções feitas através da modelagem em argila, dos desenhos, trabalhos com papéis e com lixo. Ainda mais importante, podemos marcar a intervenção em sua relação com o corpo. Na entrevista a ênfase se deslocou dos cortes e costuras da pele, para um desenho que trazia consigo: tratava-se do desenho de uma bailarina. Um desenho de grande importância para ele, não apenas por ser o único de seus trabalhos que não havia destruído, mas por ser este utilizado por ele como anteparo às "visões"3. Na apresentação, ao se interessar pela bailarina, o entrevistador fez destacar a percepção de Jerry sobre a “impressionante capacidade da bailarina de ficar na ponta dos pés e não cair” (REIS, 1999) – sem dúvida uma outra forma de dar contorno a um corpo, muito diferente das costuras feitas na pele. A ocasião solene teve tamanho efeito sobre ele que, ao final da entrevista, retirou os óculos escuros, sem os quais jamais se deixava ser visto, mostrando o rosto ao público. Ato surpreendente, tanto mais quando verificamos sua função: esconder a "deformação" de seu rosto decorrente de seu "envelhecimento precoce" – doença adquirida após o abuso sexual. Tratava-se, portanto, de uma estratégia de defesa frente ao olhar insuportável do Outro. A impressão causada no público, foi que a entrevista havia tocado esse sujeito. Impressão confirmada quando, em relato posterior, sua terapeuta informou que, como efeito da apresentação pôde-se observar seu apaziguamento, com acentuada redução das passagens ao ato agressivas contra si e contra terceiros. Contudo, ainda mais importante, foi o efeito de implicação: segundo a terapeuta, logo após a entrevista, o paciente, chegou para o atendimento com uma pergunta: “Por quê que eu mato os cachorros?” Este foi o ponto de passagem para a implicação de Jerry em seu tratamento. Efeito reafirmado quando, no atendimento do dia seguinte, traz uma

1 Jerry é o nome fictício proposto pela terapeuta do paciente que aqui tomamos como referência. Todas as informações aqui apresentadas foram retiradas: 1. de sua entrevista realizada no Núcleo de Pesquisa em Psicose, IPSM-MG/IRS, em 5 de maio de 1999, pela Dra Elisa Alvarenga; 2. na discussão do caso realizada em 13 de outubro de 1999 também no Núcleo de Pesquisa em Psicose; e 3. no artigo publicado por sua terapeuta: Andréia Reis. (Conf. em: REIS., Andréa, COSTA, Ângela. Jerry. In: QUINET, Antônio. Psicanálise e psiquiatria – controvérsias e convergências. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 269-272.) 2 Programa de auditório exibido na televisão. 3 Segundo Andréa Reis (2001), o paciente relatava visões com órgãos - como coração, ou pedaços de corpo, como uma boca presa em um garfo ou um rosto se desmanchando – que lhe indicavam a morte.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

surpreendente elaboração acerca de uma alucinação. Relatou ter visto "um pombo com cara de gente dizendo-lhe que o fim estava chegando e que iria matá-lo". Ressalta que, nesta visão, o dia, a noite, o sol e o arco-íris apareciam juntos. Sobre isso, comenta: “Eu preciso fazer um trabalho para destacar o dia. Eu tenho duas personalidades: uma quer viver e a outra quer morrer e matar as pessoas... Eu quero ser uma pessoa do dia-a-dia” (REIS, 1999). Certamente, decorreu da apresentação o vislumbre de um outro caminho – não apenas para Jerry, mas também para a equipe. Podemos dizer que como efeito da escuta atenta do entrevistador, se fez evidenciar, sob a cena dos "atos perversos" de Jerry, outras formas menos nefastas, criadas por esse sujeito para ligar-se ao corpo, ao campo do Outro. Abriu-se, então, como perspectiva para a equipe, a construção e sustentação dessas saídas mais favoráveis para o paciente.

Este é apenas um dos muitos exemplos clínicos que temos podido acompanhar

nos encontros de psicanálise4, nos quais as discussões sobre a apresentação de pacientes

tem-se feito mais presente. Vemos, nitidamente, neste caso, que a entrevista pública teve

um efeito fundamental na direção do tratamento. A apresentação operou, claramente,

enquanto uma intervenção, que teve um duplo efeito: do lado do sujeito de validar, dar

sustentação às suas invenções e, do lado da equipe, de possibilitar seu reposicionamento

diante dessa cura. Podemos acrescentar, ainda, seu efeito sobre o público, para além da

surpresa e do aprendizado de um certo "modus operandi": de uma escuta que faz emergir o

sujeito e de um cálculo da clínica que toma o saber do paciente como diretriz de seu

trabalho, podendo ver, ainda, o seu desejo pela clínica colocado em questão, como

testemunha deste trabalho.

Se, por um lado, há comprovações acerca de seu efeito, por outro, este mesmo

efeito suscita inúmeras questões: que fundamentos clínicos viabilizam que uma

apresentação de pacientes produza efeitos clínicos em um sujeito psicótico? Se o paciente

já vinha sendo atendido sob orientação psicanalítica, por que foi necessário esse dispositivo

para produzir efeitos no paciente? O que diferencia a apresentação de pacientes de uma

sessão analítica? Se a diferença está na presença do público, como podemos entender sua

função? Do lado do analista, o que o autoriza ao ato em uma apresentação, e do lado do

paciente, o que o torna permeável a essa intervenção? Para qual paciente e em que

momento clínico a entrevista seria indicada? Haveria restrições quanto à sua aplicação?

Como fazer esse cálculo, uma vez que só sabemos seu efeito a posteriori?

4 Tomemos como exemplo o Primeiro Encontro América do Campo Freudiano, realizado em 2003, na cidade de Buenos Aires, Argentina, quando tivemos uma mesa sobre o tema: Conversação clínica 1: Apresentação de Enfermos. Dois anos depois, em 2005, no Segundo Encontro Americano, sobre Os resultados terapêuticos da psicanálise, também na Argentina, o assunto ganhou tal destaque que foi um dos eixos temáticos do Encontro.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Os efeitos clínicos e de transmissão que esse caso demonstra, assim como as

questões que suscita, já seriam, por si só, uma razão para justificar uma investigação acerca

desse dispositivo, mas temos, ainda, outros motivos de igual importância que apontam para

o interesse nesta investigação.

Um primeiro motivo, que é importante marcar, é que não são todas as

apresentações que produzem esse tipo de efeito; pelo contrário, podemos mesmo dizer que

esse é um encontro raro. É preciso considerar que não há garantia de que os resultados

sejam sempre positivos: pode ser que nada se produza num encontro, mas pode ser,

também, que testemunhemos efeitos desencadeantes ou de reagudização de uma crise, por

exemplo. Assim, formalizar os fundamentos clínicos que aí operam, sistematizar sua

aplicação, certamente contribuiria muito, não apenas para ampliar as possibilidades de se

produzir um bom encontro e para diminuição dos riscos, mas também para aplicar suas

conseqüências no tratamento psicanalítico da psicose, de uma forma geral.

ATUALIDADE

Seria, ainda, justificativa para essa investigação, a atualidade do tema que,

como chamou atenção o professor Ram Mandil à época da qualificação deste trabalho,

ultrapassa o campo mesmo da apresentação.

Um primeiro aspecto dessa atualidade diz respeito à psicanálise aplicada. Na

prática atual, os psicanalistas perguntam-se sobre sua inserção na cidade. No que diz

respeito à saúde mental, mais especificamente, a pergunta que se coloca é: como abrir

espaço ao sujeito da palavra em uma instituição tradicionalmente médica, que opera com

uma lógica universalizante e silenciadora? Ainda que seja uma tarefa difícil, não é sem

precedentes. Podemos buscar inspiração no trabalho de Lacan que, por cerca de 30 anos,

realizou apresentações de pacientes em hospitais psiquiátricos. Ao associar a psicanálise a

essa prática, tradicionalmente médica, Lacan não apenas proporcionou um diálogo acerca

da interseção entre psiquiatria e psicanálise, mas possibilitou, principalmente, que a fala do

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

paciente ressoasse no universo institucional. Como nos indica François Leguil, “[...] a

apresentação de Lacan é hoje a pedra angular de nossa reflexão sobre a presença do

analista no hospital” (LEGUIL, 1998, p. 99).

E, realmente, a apresentação revela uma impressionante capacidade de

viabilizar a aplicação da psicanálise na instituição. Diversas experiências com a

apresentação de paciente5 têm demonstrado que, tendo em vista os efeitos clínicos que dela

podem ser extraídos, este é um dispositivo que desperta o interesse da comunidade clínica.

Mesmo profissionais de formações diversas, que não a psicanalítica, diante de impasses da

clínica, ao se encontrarem com seus recursos esgotados, acabam por demandar esses

espaços, buscando outras soluções, que não as tradicionalmente utilizadas. Na

apresentação, a diversidade profissional, em suas diferentes especialidades e formações

teóricas, pode-se encontrar em um impasse comum: o que fazer com um determinado

paciente. E, efetivamente, como efeito de uma apresentação, é possível fazer uma

apreciação mais cuidadosa do caso. O esclarecimento do diagnóstico, a direção do

tratamento e do encaminhamento são exemplos de aspectos que podem ser esclarecidos,

ou redefinidos, a partir de elementos revelados durante a entrevista. Isto gera, com

freqüência, efeitos muito positivos na implicação da equipe, favorecendo, inclusive, que as

intervenções dos diversos profissionais envolvidos no tratamento sejam mais articuladas,

integradas, uma vez que podem ser orientadas por um cálculo feito, coletivamente, na

discussão do caso que se segue à entrevista. No que diz respeito à psicanálise, esse

dispositivo possibilita que sua lógica circule, servindo de orientador último para o trabalho de

uma equipe, mesmo que heterogênea, quanto à formação de seus profissionais. O efeito,

em extensão, no tratamento é, geralmente, constatável a posteriori.

Tal alcance prático, cujos efeitos podem ser constatáveis na clínica, vêm

destacar um outro aspecto importantíssimo da apresentação de pacientes: diante da

necessidade de darmos uma resposta às exigências contemporâneas da avaliação, que

5 Tomamos como referência, um trabalho de seis anos de apresentações de paciente no Instituto Raul Soares (IRS), hospital psiquiátrico da rede FHEMIG, no qual aconteciam, regularmente, dois espaços de discussão clínica: o Núcleo de Pesquisa em Psicose (desde 1999) - um projeto do IPSM-MG em parceria com o IRS; e a Sessão Clínica do IRS (2000 a 2005). Ambos espaços de orientação psicanalítica, sendo as entrevistas realizadas por analistas da EBP-MG.

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impõe, como excelência, a racionalidade dos resultados puramente estatísticos, a

apresentação pode ser tomada como um importante instrumento de resposta para fazer

frente a essas exigências, sem, no entanto, renunciar aos princípios éticos que regem nossa

prática.

Por fim, mas não menos importante, o dispositivo da apresentação, marcado por

seu aspecto extremo de se dar em um único encontro, talvez seja um lugar privilegiado para

se extraírem alguns elementos, para pensarmos o efeito do que se tem chamado "o

encontro com um psicanalista". Mais uma vez, retomamos a valiosa contribuição do

professor Ram Mandil:

A idéia do encontro com um analista tem sido ponto de apoio para se pensar a psicanálise no mundo contemporâneo, porque, provavelmente, os encontros com os psicanalistas poderão, futuramente, ter uma forma muito mais próxima da apresentação de paciente do que a gente imaginava. No mundo contemporâneo, talvez eles tenham a característica de serem encontros únicos. Trabalhar a partir da apresentação é interessante porque permite pensar o que seria esse "encontro com um psicanalista", numa instituição, numa clínica, num centro de tratamento. Ou seja, pensar o que poderia ser o efeito do encontro com um analista de uma forma geral.6

DIFERENCIAÇÃO

Quando fazemos tal elogio à apresentação, é indispensável esclarecer que

fazemos referência especificamente à apresentação realizada segundo a proposição de

Lacan, que transpôs para o antigo dispositivo psiquiátrico da apresentação, a escuta

psicanalítica.

Com isso, queremos marcar que a apresentação, longe de ser um dispositivo

uniforme, é marcada, como a própria psiquiatria, pela multiplicidade de enfoques.

Conseqüentemente, há variações tanto no objetivo de seu uso, quanto nas técnicas de

execução.

Assim, não nos é, de toda forma absurdo, depararmos com posições contrárias

que discriminam e, mesmo, condenam esta prática. Tomemos, como ilustração, um trecho

de um artigo de Chain Katz, intitulado "A super violência em psicanálise": “[...] ‘o que é

apresentado’ [paciente] é destituído de sua condição de sujeito humano; posto apenas na 6 Fala extraída das anotações feitas no decurso da discussão sobre essa dissertação realizada durante a Qualificação, em 09/06/2005.

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condição de objeto para uma (re)afirmação do já sabido [...]. Para o ‘enfermo em

apresentação’ nada irá se modificar” (KATZ,1992, p. 3). Ou podemos nos referenciar,

também, para marcarmos a atualidade da questão, na recente carta divulgada pelo

Conselho Federal de Psicologia, que abomina a apresentação com frases como:

Aos estudantes, conclamamos que se rebelem contra o comodismo conservador dos mestres que insistem nesta tradição decadente e oferecem apenas uma versão caricata, institucionalmente deformada, das experiências do sofrimento humano de pessoas assim reduzidas à condição de meras cobaias para uma aprendizagem acadêmica. Rebelem-se!7

Realmente, não podemos deixar de concordar que algumas práticas,

especificamente as de cunho estritamente didático, podem ser invasivas, desrespeitosas,

objetificantes. Absurdo, contudo, é a forma como tais críticas são feitas, poderíamos dizer,

de forma leviana, até mesmo irresponsável, que desconsidera a diversidade dessa prática,

colocando tudo num "saco de gatos", como se se tratasse de uma prática homogênea. E é

neste ponto que não podemos nos silenciar.

Diante de um movimento que parece visar ao fim dessa prática, torna-se

absolutamente necessária, à psicanálise, a sistematização da singularidade de sua prática.

É preciso formalizar seus efeitos no tratamento psicanalítico do sujeito psicótico, na

articulação do trabalho em equipe, na formação de profissionais, na transmissão da

psicanálise, e principalmente, evidenciar seu efeito de subversão, uma vez que esse

dispositivo é capaz de introduzir, em meio à lógica universalizante da instituição, a dimensão

singular do sujeito.8 Ou seja, é preciso caracterizá-la enquanto um dispositivo capaz de

restituir ao "doente", ao "louco", seu status de sujeito, fazendo frente às críticas, e

(re)dimensionar seu lugar de importância clínica.

7 Conf. Anexo 1. 8 Sobre o tema, conferir: ANDRADE, Renata. Discussão X construção do caso clínico; FERREIRA, Cristiana, Sessão clínica: efeitos de intervenção institucional; MENDES, Aline. Tratamento na psicose: o laço social como alternativa ao ideal institucional; e PINTO, Anamaris. A sessão clínica como princípio de articulação do diverso. Esses artigos versam sobre a experiência realizada no Instituto Raul Soares, de 1999 a 2005, e foram apresentados na revista Mental – Revista de Saúde Mental e Subjetividade da UNIPAC, ano III, n. 4, jun. 2005.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

FORMALIZAÇÃO

Tomando, então, como proposta, a formalização dessa prática psicanalítica,

encontramos inspiração em Lantéri-Laura. No prefácio à obra Fundamentos da clínica, de

Paul Bercherie, ele indica que, se quisermos esclarecer o estado atual da apresentação de

pacientes, é preciso partir de seu passado, de sua origem.

A criação da apresentação de pacientes data da época mesma do nascimento

da psiquiatria e seu exercício encontra-se intrinsecamente articulado ao saber psiquiátrico,

sendo, a um só tempo, espaço de aplicação de suas concepções e fonte de constituição

desse saber.

Contudo, ao investigar o histórico da apresentação, uma curiosidade se

evidencia – não há, ao longo de toda a evolução da psiquiatria, elaborações direcionadas

especificamente a essa prática. Entretanto, como nos disse Lantéri-Laura, ao falar do estudo

da psiquiatria, o que se aplica perfeitamente ao nosso objeto, o campo histórico é

fundamental:

Somente esse tipo de esclarecimento [histórico] pode nos ajudar a relativizar o próprio presente da psiquiatria, pois só podemos adotar uma atitude de interesse crítico frente à psiquiatria de 1980 (no nosso caso, a apresentação atual), sob a condição de ver nela o desembocar e a complicação progressiva de um conjunto de questões que começaram a ser levantadas pelo menos no final do século XVIII. Logo, esclarecer o presente pelo conhecimento de seu passado e, pelo mesmo movimento, relativizá-lo: o estudo histórico aparece, assim, como o meio para um conhecimento mais exato da psiquiatria, conhecimento que possui um valor prático incontestável e que nunca se limita a um adorno erudito. (LANTÉRI-LAURA, 1989, p. 14) (Grifos meus)

Assim, diante dessa lacuna com a qual nos deparamos, uma necessidade se faz

imperativa: precisamos, como primeiro passo desse trabalho de formalização, reconstituir o

saber exposto acerca da apresentação, reconhecer seu processo histórico e, assim, poder

constituir melhor esse nosso objeto de pesquisa.

Dessa forma, todo o interesse clínico que se coloca acerca do tema deverá ser

relegado a um segundo tempo de investigação. No presente trabalho, vemo-nos limitados a

essa etapa preliminar, a esse trabalho de base – uma investigação sobre o processo

histórico que desemboca na situação na qual nos encontramos hoje, em nossa prática.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Mas como fazer este percurso histórico se não há, nos clássicos, formulações

sobre o tema? Nos textos da época não há elaborações nem sobre sua prática, nem sobre

seus efeitos. Tampouco encontramos informações sobre o tema em trabalhos mais

recentes, produzidos por historiadores da psiquiatria. O material disponível reduz-se a

referências casuais, intuídos na entrelinha da forma como os autores costumavam expor

suas teorias e, eventualmente, em algum relato de caso, o que também não era comum na

época.

Sobre esse material escasso, temos ainda que trabalhar com cuidado, pois, mais

uma vez, seguindo uma advertência de Lantéri-Laura:

devemos, de fato, desconfiar da confusão entre a teoria que efetivamente norteia uma prática e a reflexão explícita que os praticantes em causa fizeram sobre ela; tudo o que sabemos sobre a importância da tradição oral, na iniciação, na transmissão e na reprodução do saber e da habilidade clínicos, e sobre os poucos vestígios que ela nos deixou, leva-nos a aquilatar a dificuldade de tal investigação. (LANTÉRI-LAURA, 1989, p. 19)

Mas, mesmo com todas essas dificuldades, poderemos nos dedicar, em nosso

primeiro capítulo, à história da apresentação de pacientes à época da psiquiatria clássica,

graças às preciosas investigações de Michel Foucault, apresentadas no livro El poder

psiquiátrico (2005). Poderemos, portanto, numa leitura absolutamente marcada pelo estilo

de Foucault, trabalhar aspectos do surgimento e da utilização da apresentação.

Na realidade, grande parte do material bibliográfico que faz referência ao

dispositivo da apresentação, são textos de psicanalistas que visavam a falar,

prioritariamente, sobre as apresentações de Lacan – com exceção dos textos

contemporâneos, que tratam dos efeitos clínicos, tão em foco na atualidade, e que têm se

multiplicado, nos últimos anos. Felizmente, esses textos forneceram pistas sobre a história

da apresentação, o que serviu de norte para o nosso trabalho.

Uma referência recorrente (e, nesse caso, também nos textos sobre a história da

psiquiatria), é Charcot – suas apresentações, tomadas como verdadeiros espetáculos de

abuso e desrespeito ao paciente, são apontadas como pivô da intensificação do movimento

crítico direcionado à psiquiatria. Seu estilo foi tomado como o ápice do abuso do poder

médico sobre o paciente. Entretanto, o trabalho de Charcot é tomado como objeto de

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

investigação em nosso segundo capítulo, tanto pelo interesse que desperta esse caráter

espetacular de suas apresentações e suas conseqüências, mas também por uma

particularidade de sua história muito preciosa para nós, psicanalistas – afinal, foi em suas

entrevistas que Freud, decididamente, se interessou pelas histéricas. Ainda que Freud não

se tenha utilizado do dispositivo da apresentação, ele não deixa dúvida quanto ao efeito que

estas produziram sobre ele.

No terceiro capítulo, investigaremos o trabalho de Clérambault, que, como

Charcot, nos interessa duplamente, pois Clérambault, nas palavras do próprio Lacan, foi

considerado seu único mestre em psiquiatria e, curiosamente, seu mestre era também

reconhecido por suas apresentações: um misto de precisão e violência que provocava, em

seus seguidores, tanto espanto e admiração, quanto repúdio.

Por fim, chegamos à psicanálise. No quarto capítulo falaremos, de início, da

experiência de Freud. Entretanto, as apresentações de Lacan serão nosso foco principal.

Certamente, seremos obrigados a fazer um recorte, pois, falar de suas apresentações daria,

por si só, uma dissertação completa de mestrado. Seguindo a perspectiva anterior, deter-

nos-emos nos aspectos históricos, dando ênfase às modificações que Lacan introduziu no

dispositivo tradicionalmente psiquiátrico, que resultaram, em verdade, na subversão deste.

Ao longo desse percurso, tentaremos mostrar que a grande subversão produzida

por Lacan, na apresentação de pacientes, diz respeito à subversão mesma da psicanálise.

Se a psiquiatria opera a partir do saber que detém sobre seu paciente, veremos que, na

psicanálise, o saber fundamental, que irá nortear o analista na direção da cura, está do lado

do sujeito. Em lugar de operar com um saber prévio a ser aplicado ao paciente do lugar de

mestria, tão caro à psiquiatria, a psicanálise esvazia este lugar para escutar o que o próprio

sujeito tem a dizer sobre o seu sofrimento. Assim, a psicanálise dá voz a um saber antes

ignorado, desqualificado, alienado. Um saber que, por se apresentar de forma

insuficientemente elaborada, deve ser construído com o sujeito.

Ao aplicar a escuta psicanalítica à prática da apresentação, Lacan reproduz aí,

essa subversão. Assim, também na apresentação de paciente, a ênfase se deslocará do

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

saber do médico para o saber do paciente, ou, nos termos em que iremos trabalhar, do

saber sobre o paciente ao saber do paciente.

Por fim, respeitando à delimitação imposta pelo objetivo deste trabalho,

encerraremos esse percurso, dando uma breve notícia do ponto em que nos encontramos,

hoje, em nossas elaborações. Quanto às perguntas que se colocam ainda sem respostas,

que sirvam de mote para investigações futuras.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

1 APRESENTAÇÃO DE PACIENTES NA PSIQUIATRIA CLÁSSICA

"A apresentação de pacientes é uma prática de ensino e de estudo clínico dos

distúrbios psiquiátricos contemporânea da própria constituição da psiquiatria" (QUINET,

1999, p. 14).

Sendo a psiquiatria clássica uma clínica calcada no olhar, na qual a observação

era pré-condição necessária, senão o objetivo último da intervenção, a apresentação surgiu

como um dispositivo muito apropriado para o estudo minucioso do enfermo, visto que

favorecia a apreensão dos fenômenos a partir de sua descrição, detalhada pelo próprio

paciente.

Mesmo sendo reconhecida sua importância na constituição do saber psiquiátrico

e a extensão de seu uso, tanto na psiquiatria francesa quanto na psiquiatria alemã, é

impressionante a falta de referência direta sobre as apresentações. Seu uso evidencia-se,

antes, na forma como os autores clássicos apresentavam os casos clínicos, pois,

habitualmente, o faziam dirigindo-se a um público, do que propriamente enquanto um tema

de investigação, sendo raro encontrar elaborações, seja sobre seu uso, seja sobre seus

efeitos. Para eles: "ça va sans dire".

Portanto, para pesquisar essa prática, conta-se essencialmente com os vestígios

que a tradição oral propagou.

Contudo, a falta de elaboração no período clássico contrasta com o aumento de

interesse que o tema desperta na atualidade, no meio psicanalítico. Nesses textos

contemporâneos, é comum encontrarmos a indicação de Jean-Pierre Falret1 como precursor

dessa prática, pois, sem dúvida, foi um dos psiquiatras que efetivamente mais utilizou este

dispositivo, e, como veremos adiante, um dos poucos que discorreu sobre o tema.

Entretanto, segundo Foucault, foi com Esquirol2 – em 1817! que tivemos as

primeiras práticas clínicas. Nessa data, ele abriu um curso de clínica das enfermidades

1 Jean Pierre Falret (1794-1870) Nas obras de Falret, há várias referências à apresentação de pacientes. Conf.

Maladies mentales et dês asiles d’aliéné. Leçons clinique (1864). 2 Jean Etienne Esquirol (1772-1840)

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

mentais em Salpêtrière, tendo ministrado suas aulas até 1826. Em pouco tempo, o

dispositivo passou a ser adotado como principal método de ensino. O curso teve um

sucesso alarmante, até no estrangeiro. Assim, a partir de 1826, Esquirol continuou dando o

curso em Charenton. Segundo Foucault, no período de 1830-1835, esse sistema de

apresentação clínica, já havia alcançado tal repercussão, que, na França, era exercido por

todo chefe de serviço.

Essa é uma primeira surpresa com a qual nos deparamos, pois, ao contrário do

que estamos acostumados a encontrar nos textos sobre apresentação, que habitualmente

destacam seu caráter como sendo essencialmente didático, vemos aqui que, ao contrário,

seu aspecto clínico também possuía um lugar privilegiado, pois, conforme informação de

Foucault, mesmo aqueles chefes de serviço que não estavam atrelados à prática de ensino,

realizavam apresentações. (Foucault, 2005, p. 219)

1.1 CONTEXTO DE SEU SURGIMENTO

Tomando como referência a leitura de Foucault, o nascimento da psiquiatria é

datado 1793, ano em que Pinel3 assumiu suas funções em Bicêtre. Portanto, sendo o ano

de 1817 a data indicada por ele para delimitar o início das apresentações clínicas, não há

exagero em dizer que, praticamente, iniciaram juntas.

Sobre esse período do nascimento da psiquiatria e, por conseguinte, da

apresentação, recorreremos a Foucault, em seu clássico trabalho A história da loucura

(1999). Através de um estudo arqueológico da loucura, Foucault nos possibilita situar as

condições históricas, em seus aspectos sociais, políticos e econômicos, que engendraram o

surgimento da psiquiatria.

De fato, a psiquiatria surgiu, não como o resultado de algum progresso científico

que pudesse ter lançado um novo olhar sobre as causas ou sobre o tratamento da loucura.

3 Philippe Pinel (1745-1826)

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Pelo contrário, ela nasce em conseqüência de longo processo de dominação da loucura,

cujo percurso passou antes pela ordem moral, do que pelo conhecimento médico.

Foucault explicita que a relação com o louco era ditada não por regras de

conhecimento científico, mas pela "percepção social". Em verdade, no momento que

antecede o nascimento da psiquiatria, o louco já se encontrava internado. Contudo, ele não

se encontrava sozinho – era a percepção social, que, de forma indistinta e indiferenciada,

mandava o louco para a internação, juntamente com outros tipos sociais, que, por

transgredirem as leis da razão e da moral, eram percebidos como indesejáveis, e, portanto,

recolhidos e enclausurados.

Todavia, é importante marcar que essas instituições de internação não eram de

tratamento, mas estruturas "semi-judiciárias", entre a polícia e a justiça, que tinham por

objetivo a manutenção da ordem. Foucault designará, sob o nome de "grande

enclausuramento", esse fenômeno eminentemente moral, instrumento de poder político, que

tinha a função de garantir a exclusão e a correção daqueles que se colocavam enquanto um

obstáculo à ordem social. Assim, temos que, grande parte da população do

enclausuramento, era composta por libertinos, pródigos, "feiticeiros", adúlteros, devassos,

agressivos, entre outros, e também por pobres desempregados, que, não sendo nem

produtores, nem consumidores, ficavam à margem da economia mercantilista, sendo

acusados de vadiagem. Junto com eles, os loucos.

Com o nascimento do capitalismo, parte dessa população que havia sido

excluída foi reintegrada para o trabalho. Entretanto, o louco, por ser considerado inapto para

o trabalho, um elemento negativo, sem utilidade econômica, permaneceu excluído. Dessa

forma, as casas de reclusão passaram a ser destinadas exclusivamente aos loucos, e foi

nesse momento que o controle desse tipo social excluído foi passado para as mãos do

médico.

“Isso pode parecer pouco, mas foi fundamental para determinar o destino que

ainda hoje se reserva aos loucos” (MACHADO, 1988, p. 76). Ainda que, num primeiro

momento, a loucura não tivesse uma significação patológica, a medicalização da loucura

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

implicou a noção de que a reclusão, que a internação teria, em si, uma dupla função:

atuando enquanto um lugar de eclosão da loucura e também de sua cura.

Possibilitar a eclosão da loucura significava possibilitar a expressão de sua

verdade. Tal concepção baseava-se na noção de crise – noção de grande importância para

a medicina e dominante até os fins do século XVIII:

A crise, tal como era concebida e exercida, é precisamente o momento em que a natureza profunda da doença sobe à superfície e se deixa ver. E o momento em que o processo doentio, por sua própria energia, se desfaz de seus entraves, se liberta de tudo aquilo que o impedia de completar-se e, de alguma forma, se decide a ser isto e não aquilo, decide o seu futuro - favorável ou desfavorável. [...] No pensamento e na prática médica, a crise era ao mesmo tempo momento fatal, efeito de um ritual e ocasião estratégica. (FOUCAULT, 1981, p. 114)

De fato, nesse primeiro momento em que a medicina se ocupou do louco, ela

ainda não possuía uma teoria formulada, mas podemos dizer que foi justamente a reclusão

do louco em um lugar próprio para acolher e mesmo provocar a crise, que, por possibilitar a

produção da "verdade da doença", viabilizou também, dar conta de sua especificidade, e

constituir esse campo de saber. Foi então que a loucura passou a ser observada, tomada

como objeto de conhecimento. (Foucault, 1981, p. 121) O nascimento da psiquiatria

decorreu, portanto, desse processo de medicalização da loucura, que transformou o louco

em doente mental.

Nesse momento inicial, em que a psiquiatria exercia uma terapêutica sem

medicina, o método de trabalho proposto por seu fundador, Pinel, foi a observação: “A

alienação mental exige o trabalho atento de autênticos observadores para sanar a desordem

em que se encontra” (PINEL, 1801 apud PESSOTTI, 1994, p. 145) Assim, a clínica

psiquiátrica instituída por Pinel introduziu o chamado método clínico.

Segundo Isaías Pessotti, o método clínico implicava a observação prolongada,

rigorosa e sistemática das transformações na vida biológica, nas atividades mentais e no

comportamento social do paciente. (Pessotti, 1994, p. 170) Mas é importante indicarmos

que, para Pinel, o cérebro não era atingido; a ênfase estava colocada na mente, que estaria

perturbada em seu funcionamento. Decorre dessa concepção de Pinel sua crença na ação

possível do tratamento moral e na curabilidade potencial da loucura, e, o que é mais

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importante para nós, introduz a história de vida do paciente, como recurso diagnóstico

essencial. (Bercherie, 1989, p. 43)

Segundo Franz Alexander, Esquirol, o mais eminente discípulo de Pinel, seguiu

com tanta precisão o trabalho de seu mestre, que as contribuições dos dois homens são

freqüentemente confundidas. Mas, sem dúvida, é preciso registrar os avanços do discípulo

em relação ao mestre. “Em muitos sentidos, suas descrições de síndromes clínicos são

ainda mais precisas que as de seu mestre” (ALEXANDER, 1968, p. 190).

No que diz respeito ao interesse pela história de vida do paciente, Esquirol

também aprimorou a abordagem do mestre. Para além dos acontecimentos históricos,

“Esquirol relacionou os acontecimentos psicológicos precipitantes que pareciam

significativos no colapso mental de centenas de seus pacientes na Bicêtre e na Salpêtrière”

(ALEXANDER, 1968, p. 190).

É verdade que não há formulações sobre o fato de Esquirol ter começado a

utilizar o relato dos enfermos como uma prática clínica em suas aulas, mas, essas

observações sobre seu interesse nos aspectos psicológicos do paciente, parece ser uma

chave na compreensão desse fato: para se tomar conhecimento dos aspectos históricos,

morais e psicológicos do adoecimento, certamente isto só se dará pela narração do

paciente, o que dá a seu relato um lugar de grande importância.

Entretanto, cabe ressaltar que a fala do paciente era acolhida, mas com vistas à

intervenção corretiva e de diagnóstico. Não se rejeitava a idéia delirante, pois a ela devia-se

contrapor a realidade, contudo, não havia intenção de penetrar em seu universo – não se

escutava realmente as palavras da loucura.

1.2 A REALIDADE COMO FORMA DE TRATAMENTO

Teremos, assim, que a intervenção propriamente médica, nesse período, era

bastante limitada, senão inexistente.

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Em realidade, acreditava-se que a cura derivaria do próprio funcionamento do

asilo: isolamento, rigor de normas e hierarquia sustentada em medidas

punitivas/terapêuticas, que visavam a controlar e adequar o comportamento do louco.

Nesse momento portanto, não se produziram teorias sobre a cura, nem mesmo

tentativas ou sistematização destas. O que há são apenas descrições de métodos de

intervenção: normas, planos táticos e estratégicos do funcionamento do regime asilar, dos

métodos de aplicação dos castigos e das técnicas "terapêuticas".

Felizmente, temos alguns relatos de cura, como, por exemplo, o da cura do Sr.

Dupré4, realizada por François Leuret5, e é a partir deste precioso relato que Foucault

procura sistematizar esse trabalho de cura, extraindo o mecanismo geral de ação

terapêutica da época. Seguiremos, a partir daqui, as elaborações apresentadas por

Foucault, no livro El poder psiquiátrico (2005).

Para entendermos o "tratamento", necessitamos entender, primeiramente, uma

noção comum, na época, sobre a loucura – qualquer que fosse seu conteúdo, haveria

sempre certa afirmação de onipotência. Esse era um elemento que se podia atribuir com

absoluta certeza a qualquer loucura: onipotência que se manifestava, claramente, nas idéias

delirantes de grandeza, nas idéias de perseguição, e que, mesmo quando não fosse

acessível pela via do delírio, se expressava na vontade e nos comportamentos

desempenhados pelo paciente, que dispensava qualquer argumentação lógica ou

demonstração de provas, bastando apenas a si mesmo como garantia de sua certeza

absoluta. (Foucault, 2005, p. 174) Como ponto inicial do "tratamento", tratava-se de vulnerar,

ferir essa afirmação de onipotência.

Furar essa onipotência era submeter o paciente à realidade. A intervenção

psiquiátrica era, antes, uma tentativa de subjugar, de dominar essa vontade onipotente, ou

seja, uma intervenção sustentada no poder psiquiátrico do que uma terapêutica

sistematizada, elaborada.

4 Conf. nota 9, p.30. 5 François Leuret (1797-1851). Foucault considera esse relato o exemplo mais elaborado de cura que se encontra na literatura francesa. Em sua opinião, foi Leuret quem não apenas definiu a cura clássica de maneira mais precisa, meticulosa, como também foi quem deixou a maior quantidade de documentos sobre suas curas. (Foucault, 2005, p. 170)

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Para subjugar essa onipotência, a instituição atuava, ela mesma, enquanto uma

imposição da realidade. Através de um regime de regras rígidas de funcionamento, de

trabalho obrigatório e de uma hierarquia na qual o paciente encontrava-se na escala mais

baixa, o asilo se impunha enquanto uma duplicação da realidade externa, dentro do hospital.

O médico, enquanto aquele que dirigia o funcionamento do hospital e dos indivíduos,

colocava-se no topo da escala. Como efeito, o poder psiquiátrico era validado pelo poder

exercido pelo asilo.

O poder asilar funcionava fazendo valer as realidades do mundo como realidade

também para o paciente. Assim, o tratamento consistia em manobras que pudessem

desequilibrar esse poder onipotente do paciente, confrontando-o continuadamente. A

estratégia era reduzir a onipotência da loucura mediante a manifestação de outra vontade,

mais vigorosa e dotada de poder superior – contra a onipotência do delírio, a realidade do

médico.

Para concretizar sua sujeição à realidade, o regime asilar articulava-se sobre

alguns pontos fundamentais:

1. Submissão do paciente à realidade do mundo externo, através da

incorporação do mecanismo da ordem e da obediência. O paciente devia aceitar submeter-

se à lei geral, o que implicava na obediência desde as normas do asilo, até a utilização

mesma da linguagem, ou seja, da linguagem socialmente compartilhada pelos homens.

2. Reconhecimento da realidade própria, através do ordenamento e da

organização de suas necessidades básicas: alimentação, defecação, sono, vestimenta,

atividade laboral, de sustento, de utilização do dinheiro, de liberdade.

3. Isolamento – afastar o paciente do meio do qual se desenvolveu a

enfermidade.

4. Obrigação geral ao trabalho: era preciso instaurar desde dentro da loucura, o

sistema de intercâmbios a partir do qual o paciente poderia financiar sua existência de

louco, mediante o trabalho, para que a sociedade não tivesse que pagar o preço.

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5. Enunciação da verdade – era preciso que o enfermo dissesse a verdade –

não a verdade do sujeito ou de sua loucura, de sua percepção, mas a verdade coincidente

com a realidade.

Uma vez obtido sucesso, o louco não teria outra saída senão se reconhecer

enquanto louco. Deixar de estar louco era aceitar ser obediente, poder ganhar a vida,

reconhecer-se em sua identidade biográfica socialmente estabelecida. Ou seja, estar curado

era estabilizar-se num tipo social reconhecido, aprovado. Vemos aqui que a psiquiatria da

época tinha como objetivo suprimir, não a loucura, mas seus sintomas.

Verificando esses pontos, é possível perceber, efetivamente, que a prática

prescindia do saber médico. Certamente, vinha-se construindo todo um conhecimento das

noções nosográficas, as etiologias das enfermidades mentais, as investigações

anatomopatológicas sobre as possíveis correlações orgânicas da enfermidade mental.

Entretanto, este saber não servia de guia para a prática psiquiátrica, não chegava a ter

influência concreta sobre a vida asilar. O saber que um médico podia aplicar no enfermo era

bastante reduzido. Essa separação, essa desarticulação entre o que poderíamos chamar

uma teoria médica e prática concreta de "tratamento" se manifestava em muitos aspectos.

Na prática, o saber nosográfico não influenciava na distribuição dos pacientes. A

organização se fazia, antes, pela diferença de curáveis e incuráveis, capazes e incapazes

para o trabalho, calmos e agitados, obedientes e indisciplinados, etc.

Podemos ver essa separação entre saber e prática também na forma como

terapêutica e disciplina se sobrepunham – os banhos, cuja função inicial era atingir a

circulação do paciente, rapidamente foi absorvida aos métodos de coerção e castigo. Sobre

esse aspecto Foucault avalia que, quando um enfermo havia feito algo que se quisesse

reprimir, era preciso castigá-lo, mas fazendo-o crer que, se o castigava, era porque o castigo

tinha uma utilidade terapêutica. Portanto, o castigo devia atuar como um remédio. De

maneira inversa, quando lhe era aplicado um remédio, era preciso aplicá-lo sabendo que lhe

faria bem, mas induzindo-o a crer que este lhe era administrado para castigá-lo.

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Então, em que aspecto intervinha especificamente a medicina? Uma vez que a

cura do louco não era esperada do médico, mas do regime asilar, por que a figura do

médico era necessária?

A presença do médico era colocada como axioma, ou seja, como uma norma

admitida como princípio, pois sem sua presença, o asilo careceria de função terapêutica.

Entretanto, como vimos, tal terapêutica não adivinha realmente de um saber médico, tanto

que Pinel chegava a dizer que, ainda que estivesse lá para curar enfermos, Pussin6, “que foi

durante tantos e tão longos anos o porteiro, o zelador e o vigilante de Bicêtre” (PINEL apud

FOUCAULT, 2005, p. 215), sabia tanto quanto ele, e acrescentava que, para dizer a

verdade, sem dúvida havia aprendido muito, graças a haver se apoiado na experiência de

Pussin.

Para Foucault, a presença do médico era importante por seu saber – não por um

saber específico, por seu conteúdo, pois em verdade, a psiquiatria ainda não tinha um saber

constituído. O saber médico que importava era, antes, os da marca de saber que sua

profissão suportava – marcas que por designarem nele um saber, implicavam na força de

lei. Marcas do saber que atuavam como complemento de poder à realidade. Assim, as

estratégias "terapêuticas" tinham, não apenas a função de "tratamento", mas também a

função de dar sustentação ao poder médico.

Dentre as estratégias de intervenção, duas são especialmente interessantes

para nós: o deslocamento do poder onipotente do paciente para o médico e a enunciação da

verdade.

Comecemos com o deslocamento da onipotência do paciente para o poder de

realidade para o médico. Como dissemos, a estratégia era vulnerar, furar a onipotência da

loucura mediante a manifestação de uma outra vontade mais vigorosa e dotada de um

poder superior: a realidade do médico.

6 Trata-se de Jean-Baptiste Pussin, que trabalhou em Bicêtre desde 1780, onde conheceu Pinel, a quem acompanhou quando este foi, posteriormente, designado para Salpêtrière.

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Tomemos o exemplo apresentado por Foucault da indicação de Georget7. Ele

dava como conselho aos médicos que não se deveria negar a um alienado a condição que

este pretendia ter. Se o paciente dizia ser rei, pois bem, era preciso mostrar-lhe que mesmo

sendo rei, ele carecia de poder, estando, portanto, submetido ao médico e que, este sim,

podia tudo sobre seu paciente. (Foucault, 2005, p. 175)

Pinel, por exemplo, que dava grande importância aos choques emocionais,

recomendava que se devia abordar o paciente com algum aparato de temor, um aparato

imponente que pudesse atuar vigorosamente sobre a imaginação do maníaco e convencê-lo

de que toda resistência seria inútil.

Foucault vai chamar essa tática de tratamento de “princípio da vontade alheia”,

ou “princípio de Falret”, que consistia em substituir a vontade do enfermo por uma vontade

alheia, ou seja, colocá-lo obrigado a adaptar-se à vontade de um outro – o médico.

Mesmo para aqueles que, como Esquirol, acreditavam num tratamento mais

ameno, sustentado na confiança e no afeto do alienado, a posição central do médico era

essencial. Em seu tratado Des maladies mentales, dizia:

O médico deve ser, em certo modo, o princípio de vida de um hospital de alienados. Através dele tudo deve se colocar em movimento; ele dirige todas as ações, chamado que está a ser o regulador de todos os pensamentos. E a partir dele, como centro da ação deve se processar tudo que interessa aos habitantes do estabelecimento. (ESQUIROL apud FOUCAULT, 2005, p. 214)8

Vemos, portanto, que a presença física do médico era fundamental – com sua

presença, ele se impunha ao enfermo como realidade ou como elemento através do qual se

passava a realidade a que o doente teria que se submeter.

As formas de executar essa manobra certamente variavam de acordo com as

concepções pessoais. Alguns consideravam que o funcionamento asilar por si mesmo, os

muros, a vigilância, a hierarquia interna, já garantiria essa superioridade da realidade do

médico. Outros psiquiatras já investiam na figura do médico – na pessoa mesma do médico,

em seu prestígio, sua presença, sua agressividade, seu vigor polêmico, como elementos

que mostrariam sua marca. Outros ainda, investiam na violência, no temor e na ameaça.

7 Étienne Georget (1795-1828), brilhante aluno de Esquirol. 8 Tradução livre do espanhol.

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Quanto à segunda estratégia de intervenção, da enunciação da verdade,

implicava em levar o paciente por técnicas diversas, a dizer a verdade – mas como já

dissemos, não a verdade que ele poderia dizer sobre si mesmo, no plano de sua vivência,

mas a verdade da realidade compartilhada9. Mas, ainda mais importante do que essa

verdade da realidade atual, presente, era o sujeito consentir com sua realidade biográfica,

desde sua identidade – nome, filiação, estado civil, emprego, sua historia pessoal,

desenvolvimento da doença, as datas, localidades, relações familiares; à realidade de sua

doença – seus delírios, seu comportamento no asilo, sua submissão ao médico. Cabe

ressaltar que os dados aos quais o paciente devia se identificar eram justamente os dados

conhecidos pelo médico, geralmente fornecidos pela família. (Foucault, 2005, p. 189)

Isso torna compreensível o porquê, desde os anos de 1825-1840, o relato

autobiográfico se introduziu concretamente na prática psiquiátrica e chegou a ser uma peça

essencial, de usos múltiplos nos procedimentos de custódia e de disciplina. Tal verdade

biográfica deveria ser extraída do paciente como se extrai uma verdadeira confissão. A idéia

de base da confissão era que, se o enfermo reconhecesse sua loucura, poderia desfazer-se

dela.

A fim de atender a esses objetivos, um importante dispositivo foi constituído

neste período: o interrogatório.

9 A cura do Sr. Dupré foi relatada por F. Leuret em Du Traitement moral de la folie – 1840. Foucault trabalha este relato no livro El poder psiquiátrico (2005), ao longo da Clase del 9 de enero de 1974. Para entendermos o processo de cura, faço um breve relato: o sr. Dupré acreditava que, na terra, havia apenas três famílias, e que ele era o chefe de uma das mais importantes raças da família dos príncipes tártaros. Só era o sr. Dupré, ficticiamente, pois, na realidade, era nascido na Córsega, descendente de Napoleão. Relata que, vítima de uma doença crônica, foi encaminhado por seu conselheiro para seu castelo de Saint Y-Maur, na realidade Charenton. No momento desse tratamento, encontrava-se em Bicêtre, de onde, na realidade, se podia avistar Paris. Entretanto, para Dupré, tratava-se de Langres, que tem apenas semelhanças com a verdadeira Paris. Acredita-se o único homem do hospital, sendo todas os demais, mulheres. “A multiplicidade de suas idéias falsas não é menos notável que a segurança com a qual as declama” (FOUCAULT, 2005, p. 171). Com relação ao tratamento do Sr. Dupré, sigamos a descrição de Foucault: “Isto é o que Leuret faz com Dupré. Este afirmava que Paris não era Paris, o rei não era o rei, Napoleão era ele e Paris não era senão a cidade de Langres disfarçada por algumas pessoas como a capital da França. Na opinião de Leuret, só havia uma coisa a fazer: simplesmente, levar seu paciente a percorrer Paris; e, com efeito, sob a direção de um residente, organiza um passeio por toda a capital. Nela, o residente mostra a Dupré diferentes monumentos e lhe pergunta: ‘Acaso não reconhece Paris?’ ‘Não, não’, contesta o senhor Dupré, ‘estamos na cidade de Langres. Imitaram várias coisas que estão em Paris.’ O residente simula não reconhecer o caminho e pede ao paciente que o guie até a praça Vendôme. Dupré se orienta muito bem, pelo que seu acompanhante lhe diz: ‘Quer dizer que estamos em Paris, já que você soube muito bem encontrar a praça Vendôme!’ ‘Não, reconheço a Langres disfarçada de Paris.’ Levado ao hospital de Bicêtre, o enfermo se nega a admitir que havia estado em Paris e, como persiste em sua negativa, o levam ao banho e lhe derramam água fria sobre a cabeça. Então, aceita tudo que querem e que Paris, com efeito, é Paris. Mas nem bem sai do banho volta a suas idéias loucas. Obrigam-no a desvestir-se outra vez e se reitera o banho: volta a ceder e reconhece que Paris é Paris; contudo, apenas recuperadas suas roupas, afirma ser Napoleão. Um terceiro banho o corrige; cede e vai deitar-se.

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O interrogatório surgiu, justamente, como uma técnica que, operando com o

poder médico, possibilitava obter do paciente a enunciação da verdade. E era,

precisamente, no poder do médico, que ele se sustentava, pois era por sua supremacia, que

o médico conseguia influir sobre o paciente. Numa segunda via, ao coagir o louco a

enunciar a sua verdade histórica e consentir com a sua loucura, o louco se constituía

enquanto o doente, constituindo seu inquisidor, conseqüentemente, enquanto médico.

Assim, o interrogatório possibilitava, numa única intervenção, dar provas da

realização da enfermidade, e sustentar o médico tanto em seu lugar de poder, como

também em um lugar de saber: saber sobre o paciente e saber tratar. Afinal, era ele quem

aplicava tal "dispositivo terapêutico".

No interrogatório procedia-se de acordo com os seguintes objetivos:

1. busca de antecedentes, pois comprovar que a loucura se transmite é uma

forma de rastrear seu suporte orgânico;

2. busca dos prôdromos, disposição e antecedentes individuais – recordações

da infância. Acreditava-se que a loucura sempre se precedia a si mesma, mesmo nos casos

marcados por seu caráter repentino;

3. responsabilização: questionar as razões pelas quais o indivíduo se

encontrava frente ao psiquiatra a partir da confrontação: ‘há queixas sobre você’ –

transformar esses motivos de sua presença ali em sintomas;

4. confissão central: conseguir que o sujeito interrogado reconhecesse sua

loucura e a atualizasse, concretamente, no interrogatório, uma confissão ritual: “sim, escuto

vozes!”; “sim, tenho alucinações!”; “sim, creio ser Napoleão!”10

O médico deveria ir para o interrogatório munido dos registros das observações

detalhadas dos enfermos, feitas a partir da vigilância constante – assim o médico poderia

mostrar a todo o momento que sabia tudo sobre o paciente: o que ele tinha feito, suas falas

da véspera, as faltas que cometeu, os castigos recebidos. Detinha informações que

recapitulassem, tanto a história do paciente antes da internação, quanto suas ações até a

10 Referindo aqui ao Sr. Dupré, conf. nota 9, p. 30.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

véspera do interrogatório – temos aqui uma mostra de como o médico fazia uso do sistema

da organização asilar na sustentação de seu poder-saber.

Pinel dizia:

quando interrogamos a um enfermo, é preciso antes de tudo estar informado sobre ele, saber porque veio, quais são as queixas a seu respeito, sua biografia; devemos fazer previamente averiguações com sua família ou seus parentes, de tal forma que, no momento de interrogá-lo, sempre saibamos mais do que ele ou, ao menos, saibamos mais do que ele imagina e, desse modo, quando venha a dizer-nos algo que consideramos como inverídico, possamos intervir e fazer valer que sabemos dele mais do que ele e tachamos seu dizer de mentira e delírio. (PINEL apud FOUCAULT, 2005, p. 216)11

Fundamental no interrogatório era atualizar a crise. Relembrando que o

interrogatório era uma técnica para levar o paciente à enunciação da verdade, era

fundamental que, em sua execução, se produzisse uma atualização da crise, pois, como

vimos, a crise demonstrava a verdade da doença – e esta verdade não poderia ser

encontrada, demonstrada, mas deveria ser suscitada, provocada.

Como nos disse Foucault, é certo que a crise podia ocorrer sem o médico, mas,

se este quisesse intervir, se quisesse combatê-la, era preciso que esta se desse em sua

presença. Mesmo que a crise fosse um movimento em certo sentido autônomo, mas era um

momento do qual o médico podia e devia participar: “Este deve reunir em torno dela todas

as conjunções que lhe são favoráveis e prepará-la, ou seja, invocá-la e suscitá-la”

(FOUCAULT, 1981, p. 114).

Assim, era função do interrogatório produzir a crise, fazer explodir a verdade da

doença – suscitar a alucinação, provocar a crise histérica, colocando o sujeito em um ponto

extremo, no qual não pudesse escapar a seus próprios sintomas e acabasse por chegar a

um ponto de confissão: "sim, estou louco!". Ao representar efetivamente sua loucura, era

obrigado a consentir com seu estado de doente, e, com efeito, como aquele para quem se

havia constituído o hospital psiquiátrico, e para quem seria necessário que existisse o

médico, cuja principal função seria interná-lo. Em verdade, uma dupla função de fixação: do

doente, enquanto enfermo, e, portanto, do médico, enquanto aquele que sabe sobre o

11 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

paciente. O interrogatório, funcionava, pois, como forma de sustentação do poder do médico

e de verdade sobre o paciente

O interrogatório funcionava como lugar de produção da verdade da doença,

funcionando, assim, como forma de sustentação do poder do médico e realização do saber

deste sobre o paciente.

É preciso marcar a importância que tinha nesse período a produção da verdade

da doença feita, como já dissemos, através da provocação da crise. Como esclarece

Foucault, em A verdade e as formas jurídicas (2001), a verdade só pode ser obtida de duas

maneiras: pela prova de realidade e pelo inquérito.12

Uma verdade obtida pelo inquérito implica a sua demonstração racional, ou seja,

a verdade deve ser averiguada a partir do exame direto ou indireto dos fatos. Nesse caso, a

verdade é demonstrada na estabilidade de uma fórmula, cujo valor é dado pela evidência

transmissível, independente da autoridade, da força de quem a enuncia. É o que temos, por

exemplo, na química, na investigação científica, na medicina moderna.

Entretanto, a psiquiatria não conseguia estabelecer a loucura pela via da

demonstração racional; pelo contrário, o único recurso dos médicos era a prova da

realidade. Nessa forma de obter a verdade, esta é alcançada, não pela demonstração, mas

é instaurada no lugar daquele que vence um confronto, como testemunha à antiga prática

dos duelos. Nessa situação, o lugar da verdade era dado não àquele que tinha razão, mas

ao vencedor do confronto. Para entendermos melhor, tomemos outro exemplo, citado por

Foucault, dessa forma de obtenção da verdade – os jogos cerimoniais utilizados nas

sociedades medievais, como o ordálio da água, que consistia em amarrar a mão esquerda

no pé direito do acusado e jogá-lo na água. Se ele não se afogasse, perdia o processo, pois

lia-se que a própria água não o aceitava.

Pode-se dizer que, no nosso caso, em lugar de uma demonstração, o médico

vencia um confronto.

12 Partindo da noção da solidariedade fundamental entre a ciência e o modo de constituição do sujeito do direito, Foucault nos diz que o conhecimento só é possível como resultado de algum jogo de forças, o que se traduz através das relações de poder. É através de um exame das práticas jurídicas que ele extrai essas formas de aquisição da verdade.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

O grande médico de asilo – seja ele Leuret, Charcot ou Kraepelin – é ao mesmo tempo aquele que pode dizer a verdade da doença pelo saber que dela tem e aquele que pode produzir a doença em sua verdade e submetê-la, na realidade, pelo poder que sua vontade exerce sobre o próprio doente. [...] tudo isto tinha por função fazer do personagem médico o "mestre da loucura"; aquele que a faz manifestar quando ela se esconde, quando permanece soterrada e silenciosa, e, aquele que a domina, a aclama e a absorve depois de a ter sabidamente desencadeado. (FOUCAULT, 1981, p. 122) (Grifo meu)

A prática ou ritual do interrogatório e a extorsão da confissão tornou-se um dos

procedimentos mais importantes e dos mais constantes dentro da prática psiquiátrica. Por

isso, esta prática clínica se estabeleceu de forma definitiva e precoce dentro da prática

asilar.

1.3 SOBRE AS APRESENTAÇÕES DE PACIENTES

Contudo esse grande rito do interrogatório necessitava, de vez em quando, de

uma revigoração – assim como uma missa solene, Missa sollemnis, o interrogatório público

dava um caráter solene a esta prática cotidiana. Ao interrogatório do paciente, realizado na

presença dos alunos, chamamos apresentação de paciente. Um ritual no qual a escuta

atenta dos estudantes consolidava o lugar do enfermo, ao mesmo tempo em que dava peso

à palavra do mestre – uma maneira de incrementar o prestígio do médico e fazer os ditos

constitutivos de seu saber/poder mais verdadeiros.

Como já dissemos, muitas vezes Falret é citado como precursor desta prática,

pois é em seus escritos que podemos encontrar algumas das poucas elaborações sobre a

apresentação. Falret, que colocava o interrogatório no primeiro plano do exame clínico, deu-

nos indicações dos objetivos e efeitos da aplicação deste dispositivo.

Uma primeira indicação de Falret é sobre a importância do público e seu efeito

sobre o paciente. Indicava que era preciso mostrar ao paciente que, em torno dele, havia

uma grande quantidade de pessoas – pessoas que estavam ali para escutá-lo, e escutá-lo

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

com respeito. Assim, sua palavra se multiplicava: “a presença de um público numeroso e

respeitoso dá maior autoridade a sua palavra” (FALRET apud FOUCAULT, 2005, p. 220)13

Como sabemos, o médico ia para o interrogatório munido de informações sobre

o paciente, mas é certo que, através do interrogatório, era possível obter do enfermo uma

série de outras informações de que o médico não dispunha. Entretanto, era fundamental que

o paciente acreditasse que suas respostas não informavam verdadeiramente ao médico. O

interrogatório era, antes, uma forma de subtrair informações do paciente como se estas não

fossem realmente necessárias. Era necessário conduzir o interrogatório de tal forma que o

enfermo não dissesse só o que queria, mas que respondesse às perguntas. Contudo, era

preciso fazê-lo de tal modo que o paciente não percebesse que se dependia dele para obtê-

las – não deixá-lo perceber um saber de seu lado, mas ao contrário, utilizar-se da fala deste

para sustentar o saber do médico. Nessa indicação de Falret, vemos, claramente, que não

se buscava o saber do paciente sobre si, sobre seu mal, sobre as saídas ou soluções

produzidas por ele. Ao contrário, a palavra do paciente era escutada apenas para compor o

saber do médico sobre ele. Foucault avalia que, em verdade, as respostas do paciente só

adquiriam significação dentro de um campo de saber já constituído por completo na mente

do médico.

Para extrair o melhor efeito do interrogatório, algumas técnicas foram sugeridas.

Para François Leuret, a indicação era de deixar o paciente falar, fazer seu relato sem

interrompê-lo com uma série de perguntas. Para ele, o melhor interrogatório era o silêncio:

“não dizer nada ao enfermo, esperar que fale, deixá-lo dizer o que quiser, pois segundo

Leuret, essa é a única forma ou, em todo caso, a melhor maneira de chegar precisamente à

confissão focal da loucura” (FOUCAULT, 2005, p. 318)14.

Para ilustrar o interrogatório por meio do silêncio, Foucault cita uma passagem

retirada da tradução francesa do Traité, de W. Griesinger15:

Havia-se dito que ela escutava [...] dei uma centena de passos sem dizer nada, sem aparentar fixar atenção nela [...] voltei a deter-me [...] e a olhei atentamente, com a precaução de permanecer imóvel e sem deixar sequer transparecer curiosidade

13 Tradução livre do espanhol. 14 Tradução livre do espanhol. 15 Wilhelm Griesinger (1817-1868). Pai da psiquiatria alemã.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

alguma. [...] Havia cerca de meia hora que nos olhávamos um ao outro quando ela murmurou algumas palavras que não entendi, lhe dei meu caderno para que escrevesse. (GRIESINGER apud FOUCAULT, 2005, p. 318)16

Também Falret, em suas Leçons cliniques de médice mentale, aconselhava:

[...] em vez de aguçar a astúcia de um alienado para elucidar uma autoridade que lhe importuna, mostre [...] abandono; afaste de sua mente toda idéia [...] de desejo de penetrar seus pensamentos e então, como não o verá atento a controlá-lo, terá segurança de que não terá qualquer atitude desafiante, se mostrará tal como é e poderá estudá-lo mais facilmente e com maior êxito. (FALRET apud FOUCAULT, 2005, p. 319)17

Entretanto, ao contrário do silêncio, Falret acreditava numa posição mais ativa.

Dizia:

Se alguém quer conhecer as tendências, as orientações de espírito e as disposições que são a fonte de todas as manifestações, não deve reduzir seu dever de observador ao papel passivo de secretário dos enfermos, de estenógrafo de suas palavras ou narrador de suas ações [...] O primeiro princípio por seguir [...] é, por tanto, modificar seu papel passivo de observador das palavras e dos atos dos enfermos para assumir um papel ativo e buscar, com freqüência, provocar e fazer surgir manifestações que jamais apareceriam espontaneamente. (FALRET apud FOUCAULT, 2005, p. 217)18 (Grifo meu)

Às vezes é necessário levar habilmente a conversação a certos temas nos quais se supõe relações com as idéias ou sentimentos enfermos; esses diálogos calculados atuam como pedras de toque para colocar a descoberto as preocupações mórbidas. Uma grande experiência e muita arte podem ser necessários para observar e interrogar de maneira convincente a alguns alienados. (FALRET apud FOUCAULT, 2005, p. 217)19

Outro aspecto importante é que, na apresentação, não se tratava apenas de

interrogar pontualmente o enfermo, mas em fazer, diante dos estudantes uma anamnese

geral do caso, pois a apresentação permitia ao médico, mais do que apenas interrogar o

paciente, mas também, comentar suas respostas, podia mostrar tanto aos pacientes, quanto

aos alunos, que conhecia sua enfermidade, e não apenas podia falar dela, mas mesmo

fazer uma exposição teórica sobre ele, paciente, para seus alunos.

Assim, retomava-se, frente aos alunos, o conjunto da vida do enfermo. Fazia-se

com que o paciente a contasse, e, se este não quisesse fazê-lo, ela seria contada pelo

próprio médico. Os interrogatórios se aprofundavam, e o paciente via desenrolar, diante si, a

história de sua vida, isto, com ou sem sua ajuda, pois o mutismo não era impedimento para

a realização do interrogatório.

16 Tradução livre do espanhol. 17 Tradução livre do espanhol. 18 Tradução livre do espanhol. 19 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Era, portanto, um dispositivo que impunha ao paciente a realidade de sua

enfermidade, uma vez que era apresentado efetivamente como tal frente aos estudantes.

Nessa situação determinava-se definitivamente o lugar do médico, por um lado, e, por outro,

reafirmava o lugar do doente, pois ao exibir-se em conjunto com o médico, ao expor sua

enfermidade, o paciente se daria conta de estar realmente diante de um profissional.

O relato público de sua enfermidade feito pelos alienados é para o médico um auxiliar ainda mais valioso [...]; o médico deve ser muito mais poderoso nas condições completamente novas da clínica, é dizer quando o professor põe de manifesto ante o olhar do enfermo todos os fenômenos de sua enfermidade, na presença dos ouvintes mais ou menos numerosos. (FALRET apud FOUCAULT, 2005, p. 220)20

Vemos presente, nesse dispositivo, os elementos de realidade que era preciso

impor ao paciente como forma de tratamento, uma vez que a palavra do médico aparecia

com um poder maior do que o de qualquer outro; a lei da identidade pesava sobre o

paciente, pois era obrigado a reconhecer-se no que era dito sobre ele, assim como na

anamnese, os dados de sua identidade estatutária, sem espaço para qualquer realidade

delirante. “Ao responder publicamente as perguntas do médico, ao deixar-se arrancar a

confissão final de sua loucura, o enfermo reconhece, aceita a realidade desse desejo louco

que está na raiz de seu mal” (FOUCAULT, 2005, p. 221).

Dessa forma, essa prática atuava no nível disciplinário, uma vez que era uma

maneira de fixar o indivíduo na norma de sua própria identidade – quem era, nome, filiação,

episódios de loucura. Era, portanto, uma maneira de sujeitar o indivíduo à sua identidade

social, ao reconhecimento do status de louco a ele atribuído. E atuava também no nível

terapêutico, pois a confissão, o reconhecimento da loucura, era o ponto de partida para

libertar-se dela.

A apresentação ordenava-se sobre três pilares: o médico, o paciente e os

alunos.

Ainda que Foucault não tenha se detido sobre isso, para além dos efeitos

produzidos com relação ao médico e ao paciente, é preciso assinalar, também, seu efeito

em relação aos estudantes. Primeiramente, é a presença deles que fazia o diferencial

20 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

absoluto da apresentação, pois era esta que dava ao interrogatório o tom solene. Os alunos

atuavam enquanto testemunhas da relação terapêutica, reforçando, com seu olhar, o

médico e o paciente, em suas respectivas posições. Se por um lado davam ao paciente,

como nos disse Falret, “maior autoridade à sua palavra”21, o mesmo se dava do lado do

médico. Ao serem ensinados sobre o paciente e sua doença, consolidavam este saber, e

extraíam para si próprios o benefício do aprendizado.

Em relação ao paciente, poderíamos acrescentar ainda um último aspecto. Falret

marcava um interessante efeito produzido nos pacientes. Segundo ele, era possível

perceber nestas situações, o seu esforço em responder as questões, talvez como forma de

compensar o esforço, que, enfim, percebiam, da dedicação do médico:

com freqüência, o relato de sua enfermidade, feito em todas as suas vicissitudes, impressiona intensamente os alienados, que dão testemunho de sua verdade com uma satisfação visível e se comprazem em entrar em maiores detalhes para completar seu relato, assombrados e envaidecidos, de certo modo, de que se tenham ocupado deles com suficiente interesse para poder conhecer toda sua história. (FALRET apud FOUCAULT, 2005, p. 221)22

Com relação ao médico, pudemos ver, ao longo do texto, como é que através

desse rito, ele era colocado enquanto um médico de verdade. Dentre suas intervenções no

asilo, foi justamente o interrogatório que mais aproximou sua atuação de um trabalho

realmente clínico. Afinal, colocava o médico no exame direto do paciente. Quando falamos

da apresentação pública, temos então o médico em um duplo registro: de examinador do

paciente e educador mestre dos alunos, ao mesmo tempo numa função de cura e de ensino.

A apresentação de paciente acabava por atuar como um amplificador da função do médico,

visto que realizava tanto o poder quanto o saber psiquiátrico: ao fixar o louco como doente,

reafirmava a necessidade de sua própria existência, e isto feito sob a testemunha de um

seleto público – os estudantes de medicina. Assim, a técnica da confissão e o relato público

se converteram em uma obrigação institucional.

Como pudemos acompanhar, a apresentação surge intrinsecamente articulada

ao tratamento, ou seja, tinha reconhecidamente um caráter clínico.

21 Conf. p. 35. 22 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

1.4 APRESENTAÇÃO COMO PROVA DE REALIDADE

Enquanto os psiquiatras procuravam dar sustentação às marcas de seu saber,

um outro personagem médico começava a surgir – o médico cirurgião. Este personagem

médico, em lugar de ser sustentado nas marcas do saber, sustentava-se num saber

baseado num conteúdo efetivo – um saber localizado no corpo do paciente. Com o

desenvolvimento da anatomia patológica, tornava-se possível localizar uma lesão dentro do

organismo, identificando no corpo a realidade mesma da enfermidade.

Atingida por esse movimento, a psiquiatria do século XIX, também passou a

buscar seus correlatos orgânicos. A prática da autópsia, que começou a ser utilizada nos

asilos por volta de 1825, ainda que não apresentasse resultados efetivos, tinha como base a

idéia de que

se há uma verdade da loucura, com segurança não se encontra no que dizem os loucos e só pode estar em seus nervos e cérebro. [...] podemos perfeitamente te prender em sua cela e não escutar o que diz, pois a verdade de sua loucura pediremos à anatomia patológica, quando já estiver morto. (FOUCAULT, 2005, p. 295)23

Mas, à exceção da Paralisia Geral Progressiva, descoberta por Bayle24, não foi

possível à psiquiatria, constituir provas causais, como no caso da medicina geral, que se

comprovava na anatomia patológica.

À psiquiatria era atribuída a responsabilidade de dizer se havia ou não loucura,

e, para isso, não podendo se sustentar numa prova de verdade, na prova anatômica,

restava-lhes a prova de realidade. Isso implicava, portanto, um procedimento muito

específico de estabelecimento da enfermidade.

Segundo Foucault, uma prova de realidade tinha, no fundo, um duplo sentido:

por um lado, dar existência, como enfermidade, ou, eventualmente, como não enfermidade,

aos motivos alegados para uma internação psiquiátrica possível, e, por outro, com esta

prova, dar existência como saber médico, ao poder de intervenção e ao poder disciplinário

23 Tradução livre do espanhol. 24 Antoine Laurent Bayle (1799-1858). “Bayle correlacionou achados clínicos [alienação mental] e anatomo-patológicos [meningite crônica], descrevendo a Paralisia Geral e inserindo a psiquiatria no método anátomo-clínico” (BARRETO, 1999, p. 106).

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

do psiquiatra. Era preciso fazer o poder disciplinário do médico funcionar como um poder

médico: “com o que você faz e diz, proporciona-me sintomas, não para que eu saiba que

enfermo és, mas para que eu possa ser um médico frente a você” (FOUCAULT, 2005, p.

308)25

Como veio a dizer Falret:

Contrariamente à doutrina de nossos mestres, cedemos, como os demais, a essa direção anatômica da ciência que na época se considerava como a verdadeira base da medicina [...] Não tardamos em convencermos de que a anatomia patológica pode por si só dar a razão primeira dos fenômenos observados nos alienados. (FALRET apud FOUCAULT, 2005, p. 294)26

Mas, para Falret, assim como para tantos outros psiquiatras do período clássico,

“‘essas lesões, por mais importantes que fossem, não poderiam bastar para explicar

cientificamente’ os fenômenos psicológicos da loucura” (BERCHERIE, 1989, p. 93). Assim,

não podendo contar com as provas anatômicas, era a apresentação que dava corpo ao

alienado. Como o corpo enfermo faltava, a apresentação clínica, por sua vez, vinha a

constituir uma espécie de corpo institucional.

Portanto, na psiquiatria do século XIX, o interrogatório, ao dar provas da

realidade, funcionava como o equivalente psiquiátrico, da prova anatômica, na medicina

geral. Talvez pudéssemos mesmo comparar o dispositivo da apresentação de paciente, com

as aulas de anatomia27 da época. Da mesma forma que Müller28, médico, professor de

anatomia, fisiologia e patologia estava firmemente convencido de que o progresso médico

dependia de experimentação e observação; encorajava seus colegas a deixarem as

bibliotecas e irem ao laboratório para usar os novos microscópios, também na psiquiatria, a

apresentação era um dos principais dispositivos de ensino.

Não obstante, é importante lembrarmos a real importância dessa fala extraída do

paciente nesse contexto da apresentação. Como nos diz Isaias Pessotti:

Os loucos do século XIX, como eram? O que diziam? Como percebiam os tratamentos que sofriam? A resposta, honesta,é: não se sabe. É certo que Pinel e seus seguidores mais fiéis registravam falas e reações emocionais dos pacientes. Mas, quanto mais o manicômio se afastava do ideal pineliano, menos valor tinham a

25 Tradução livre do espanhol. 26 Tradução livre do espanhol. 27 As aulas de anatomia são bem mais antigas, conforme podemos ver na gravura de Rembrandt, 1632 (Anexo 2), mas, nesse período, ganharam um crescente prestígio, conforme podemos ver na gravura de Thomas Eakins, 1889 (Anexo 3). 28 Johannes Peter Müller (1801-1858).

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

opinião, as falas ou as emoções do louco. O próprio pensamento delirante, via de regra, não recebia qualquer atenção quanto ao seu conteúdo; apenas alguma atenção quanto à sua ocorrência, freqüência e duração. (PESSOTTI, 1996, p. 14)

Portanto, a fala do paciente servia para munir a observação, que continuaria a

ser a precondição necessária, senão o objetivo último do conhecimento, que permitia aos

estudiosos agrupá-los e classificá-los em função de suas analogias e diferenças. (Bercherie,

1989, p. 34)

Até mesmo em Falret, que sugeria uma escuta mais cuidadosa, é preciso notar

que esse cuidado com a escuta não é no sentido de se tentar apreender algo da

subjetividade do paciente. Segundo Paul Bercherie, quando Falret indicava a importância de

se tentar apreender o conjunto do estado patológico, não somente os fatos mais salientes,

mais manifestos e superficiais – grandes manifestações delirantes –, como também os

aspectos menores de seu estado mental e, em particular, as disposições gerais de suas

inclinações e seus sentimentos, o fundo afetivo de seus distúrbios, o que ele buscava era,

em realidade, apreender tanto os signos negativos, como os pequenos signos secundários.

(Bercherie, 1989, p. 94) Com relação ao conteúdo da fala do paciente, é importante

relembrarmos que não era a verdade da loucura, a verdade do sujeito que se procurava

alcançar, mas antes a verdade bibliográfica, estatutária.

1.5 SOBRE SEU ABANDONO

O apodrecimento em vida da psiquiatria retira da apresentação sua virtude

heurística e promove nas falhas daquilo que ela recobria com sua ambição

simbólica, essas três figuras contemporâneas da loucura, que tornam o

exercício da confrontação com o doente, pública e regrada, escandaloso

para o primeiro[anti-psiquiatria], incongruente para o segundo[psiquiatria

social], e supérfluo para o terceiro [psiquiatria biológica].LEGUIL (1998, p. 99)

Mesmo que a fala do paciente não fosse propriamente valorizada, escutada, é

preciso reconhecer que, ainda assim, a dimensão clínica estava ali implicada, pois o

dispositivo implicava o exame e o tratamento do paciente. Quanto a essa desqualificação da

fala do paciente, ela era própria da psiquiatria da época, e a apresentação, enquanto uma

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

prática intrinsecamente articulada a esse saber que a condicionava, não poderia operar de

outra forma.

Não obstante, um aspecto curioso é que, na maior parte dos textos em que

encontramos alguma referência às apresentações de paciente da época clássica, elas são

caracterizadas como tendo sido um dispositivo essencialmente didático. A pergunta que se

coloca é: por que nos estudos históricos essa dimensão clínica ficou relegada a um segundo

plano?

De fato, como nossa principal referência foi a obra de Foucault, nos vemos sem

parâmetro para avaliar se a importância do aspecto clínico é um retrato do seu uso na

época, ou se esta ênfase é favorecida pela abordagem de Foucault em função do seu tema

de investigação. Afinal, seu trabalho não nos oferece dados nem mesmo para verificarmos

qual a articulação, ou talvez, desarticulação entre suas vertentes clínica e didática.

É num artigo de François Leguil, Sobre as apresentações clínicas de Jacques

Lacan (1998), que encontraremos algumas indicações que nos levam a pensar que essa

caracterização da apresentação como um dispositivo essencialmente didático é um retrato

do uso do dispositivo no final do período clássico, em transição para a psiquiatria moderna.29

Nesse momento, de uma conjunção de fatores teria, de fato, provocado alterações no seu

uso, reduzindo-a à sua vertente de ensino.

Ao que parece, no final do século XIX, a dimensão didática da apresentação vai

se destacar em função das mudanças do ensino médico, pois como indica Gladys Swain,

até então, “a faculdade se mantinha fiel à idéia de uma medicina ‘única e indivisível’ e em

relação às especialidades não cedeu senão lentamente” (SWAIN, 1997, p. 22)30. A primeira

cátedra de enfermidades mentais só se estabeleceu em 1878. Até este momento, o ensino

se dava na forma de "Ensino Livre", no qual os médicos ensinavam a partir de seu próprio

serviço. Como pudemos acompanhar, as apresentações até então eram feitas por

29 Tomamos aqui como psiquiatria moderna, segundo referência de Paul Bercherie, o período marcado pelo psicodinamismo. 30 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

profissionais dentro do serviço, ao mesmo tempo respaldados e representantes do poder

asilar.

Essa situação começa a sofrer alterações por volta de 1860. A partir desse

período, começaram a existir movimentos direcionados à promoção de um ensinamento

clínico das doenças mentais. Curiosamente, nesse mesmo período de uma formalização, de

um enquadramento dessa prática, temos também as primeiras manifestações contrárias a

seu exercício.

Em 1873, os Annales médico-psycologiques publicavam o programa de cursos

em Salpêtrière e de Sainte-Anne. Cada domingo, um dos médicos do asilo daria uma lição.

Os Annales precisavam: “Antes de cada lição, exame direto dos doentes pelos alunos”.

Data também desse ano, 1873, a primeira manifestação contrária. “Vários jornais

recriminaram a falta de respeito inflingida aos doentes, sua exibição e o voyeurisme dos

participantes” (CAIRE, 1981, p. 134). O jornal Le Figaro informava:

Os loucos dados em espetáculo: Ontem fomos assistir, no asilo de Sainte-Anne, à cenas de uma tristeza repugnante: vamos falar das aulas de clínica sobre as doenças mentais, curso que ignorávamos nesse estabelecimento, onde não receiam dar os loucos em espetáculo em uma reunião de curiosos. Eis um resumo de ontem, aula professada pelo Dr. Dagonet; todos seus detalhes são da mais rigorosa exatidão. O sr. Dagonet tomou por sujeito a monomania. Primeiramente ele apresentou aos assistentes três alienados afetados por esse gênero de doença. O primeiro, um alsaciano de uns cinqüenta anos de idade nos deu apenas explicações confusas e defendia seu corpo: - Vejamos, vejamos, meu amigo, lhe perguntou o professor, diga-nos o que você está sentido? - Mas eu vos digo isto todos os dias. - É preciso localizá-lo perante estes senhores. - Eles não têm necessidade de saber. Respondeu com uma voz sombria e com um movimento de impaciência bem marcante. Vocês teriam feito melhor em me deixar no meu canto. [...] O último é um jovem homem com uma tez colorida, olho brilhante, mantendo a cabeça alta. Se chama Boisseau. Foi impossível ao professor fazer-lhe pronunciar a mínima palavra. Ele tenta puxar sua língua, batendo-lhe ligeiramente sobre os lábios: - Vamos, vejamos, lhe diz ele, ponha a língua para fora rápido! Mas o doente se recusa com energia, e vimos lágrimas de vergonha dar cor à sua figura. Um movimento de piedade se manifesta no auditório.(CAIRE, 1981, p. 134)31

O meio alienista se surpreendeu muito com essa reação, pois nada fazia supor

tamanha explosão da imprensa. Em decorrência desse movimento, as apresentações

chegaram a ser suspensas, pela Prefeitura de Paris, durante dois anos. Passado o intervalo,

31 Tradução livre do francês.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

retomou-se a prática de apresentação – já então, uma prática reconhecidamente articulada

ao ensino.

O outro fator que contribuiu para a mudança de perspectiva da apresentação

rumo à vertente essencialmente didática, foi o próprio estágio no qual se encontrava o saber

psiquiátrico. Por um lado, a construção de um saber mais constituído, coerente, legitimou o

poder médico, que, sob a égide do saber e da competência, resultou em um aumento

vertiginoso desse poder. Nas palavras de Foucault, podemos ter uma idéia da posição

adotada pelos médicos frente a seus pacientes: “Sabemos sobre sua doença e sua

singularidade coisas suficientes, das quais você nem sequer desconfia, para reconhecer que

se trata de uma doença; mas desta doença conhecemos o bastante para saber que você

não pode exercer sobre ela e em relação a ela, nenhum direito” (FOUCAULT, 1981, p. 127).

Para se demonstrar esse ápice do poder médico, geralmente encontramos como

referência, as apresentações de enfermos realizadas por Charcot. O grande mestre das

apresentações fazia delas verdadeiros espetáculos – a título de verificação científica e

ensino, submetia os pacientes histéricos à hipnose, utilizando-se da sugestionabilidade

destes, para fabricar os sintomas que desejava demonstrar. Esse procedimento que, muitas

vezes, chegou mesmo a se confundir com espetáculos circenses, foi tomado como marco

de abuso e objetificação.

Em resposta a esse abuso de poder, do qual Charcot é colocado como pivô,

diversos movimentos que propunham reformas na prática e pensamento psiquiátrico,

começaram a interrogar, a questionar as práticas tradicionais. Como explicita Foucault, “o

que foi questionado é a maneira pela qual o poder do médico estava implicado na verdade

daquilo que dizia, e inversamente, a maneira pela qual a verdade podia ser fabricada e

comprometida pelo seu poder” (FOUCAULT, 1981, p. 124)

Esses questionamentos atingem a psiquiatria clássica num momento em que,

por ser detentora de um saber já constituído, atravessava uma fase de estagnação.

Segundo Francisco Paes Barreto, esta já não apresentava mais progresso dos

conhecimentos semiológicos ou nosológicos, uma vez que seu método descritivo já havia

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

chegado no limite de suas possibilidades. Apesar do êxito alcançado na definição das

categorias clínicas, não conseguiu ultrapassar alguns impasses, tal como a questão dos

limites entre essas categorias, ou ainda a crítica ao paralelismo psicofísico, sem esperanças

de se provar sua correspondência. Isso sem falar na escassa pertinência de sua terapêutica.

(Barreto, 1988, p. 60)

Vemos assim que a psiquiatria, aprisionada no seu saber/poder, perde o

equilíbrio em que se encontrava – no cruzamento entre aquilo que investigava, aquilo que

encontrava e o que conseguia transmitir. Numa posição de observação pura e simples, se

acomoda em "seu saber" constituído. A apresentação, que funcionava como ponto de

aplicação e produção de saber, perde seu lugar dinâmico de invenção, ficando abandonada

ao automatismo acadêmico, restringindo-se à função de "ilustração viva", dos quadros

conhecidos. (Leguil, 1998, p. 96)

Dos movimentos que interrogam a psiquiatria clássica, destacaremos o

movimento iniciado por Babinski32. Aluno de Charcot, Babinski, rechaçando o procedimento

do mestre, em lugar de procurar demonstrar teatralmente a verdade da doença, propôs

reduzi-la à sua realidade estrita. Manteve o rigor, mas um rigor que incidirá sobre a redução

da doença estritamente a seu mínimo: aos signos necessários e suficientes para que se

possa diagnosticar e intervir para fazer desaparecer os sintomas. Encontramos essa

concepção na origem da abordagem selada hoje na lógica dos DSMs e do CID 10, e que se

manifesta, atualmente, nas práticas das neurociências, da psiquiatria biológica, da

psicofarmacologia. Segundo Laurent, temos aí uma redução do saber que se quer obter,

pois poucos pontos passaram a servir de parâmetro para atender à sua necessidade, hoje

reduzida a medicar o sintoma. (Clastres et al., 1991, p. 50)

Outro movimento importante foi a anti-psiquiatria. Este movimento fez severas

críticas à psiquiatria tradicional. Buscava destruir o valor do saber/poder médico, colocando

em questão sua função médica de produção da verdade da doença no espaço hospitalar.

Reavaliava, inclusive, o conceito de loucura, questionando também a idéia de doença

32 Joseph Babinski (1857-1933). Conf. nota 4, pág. 48; nota 16, p. 124).

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mental. De acordo com Paulo Amarante, o conceito sofre mudança significativa, sendo

tomada não mais como doença, mas antes como uma reação à violência externa, à

alienação geral que é tida como norma. Ela é, então, uma manifestação da problemática

entre os homens, e não um problema dentro do homem. Ao contrário, a loucura seria

mesmo uma reação libertária à problemática política, social, familiar. Sua segregação

resulta do incômodo que causa por contestar a ordem. (Amarante, 1995, p. 48)

Assim, contrariamente à posição de desqualificação do indivíduo como sendo

um louco, anteriormente despojado de todo poder/saber sobre sua doença, a anti-psiquiatria

tomou o louco como mestre de uma verdade explosiva, que tem o direito e a tarefa de

realizar sua loucura. Movimento que denuncia a mentira da alienação cotidiana da fala.

Em ambos os casos, a apresentação clínica perdeu a função.

No primeiro caso, porque não há mais interesse nos detalhes fornecidos pela

fala do paciente; a apresentação ficou reduzida a um dispositivo universitário. “Sua única

vocação é ilustrar aquilo que se professa para animar o saber, mas a apresentação já não

faz prova de verdade de uma confrontação como fazia” (LEGUIL, 1998, p. 199).

Quanto à anti-psiquiatria, por reconhecer a apresentação clínica unicamente em

sua vertente de poder e dominação, condenou a prática como uma forma de abuso e de

violência. “A loucura interpela e não tem que ser questionada, sob pena de perder seu

brilho” (LEGUIL, 1998, p. 199). Esta posição é, ainda hoje, sustentada pela luta

antimanicomial, que, em nome de um "respeito humanista", rechaça a exposição pública do

enfermo.

Poderíamos acrescentar, ainda, um terceiro movimento gerado pela concepção

das correntes institucionais que tomava a loucura como um puro efeito social. Nesse caso a

apresentação torna-se dispensável, pois é “inútil querer identificar sua causa pela

consideração isolada do sujeito, uma vez que o remédio está no estabelecimento de novas

vias de comunicação” (LEGUIL, 1998, p. 199).

Assim, a prática da apresentação perde seu lugar de destaque, de importância,

até sua (re)apropriação por Lacan.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Antes, porém, de verificarmos seu destino para além da psiquiatria clássica,

examinaremos mais detidamente as apresentações realizadas por Charcot. Afinal, sua

importância ultrapassa a dimensão histórica, uma vez que sua fama, seu caráter espetacular

e toda a polêmica que despertou ainda habitam o imaginário daqueles que se utilizam, e,

principalmente, daqueles que condenam, a prática de apresentação de pacientes.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

2 AS LIÇÕES CLÍNICAS DE CHARCOT EM SALPÊTRIÈRE

EI verdadero Charcot: ingrato momento de lo negativo, tiempo subterráneo en

que se edifican los cimientos de futuros descubrimientos. Para que se

impusiera la idea de que existen “enfermedades psíquicas” era indispensable

primero dominar las enfermedades orgánicas vecinas. Debemos nuestra

histeria “psicológica” a la autocrítica de la neurología clínica. Fueron

necesarios quince anos de trabajo contra sí-mismo para expulsar de su área

de competencia aquello que había llevado tanto tiempo comprender. Toda una

vida, un inmenso esfuerzo condenado por naturaleza a perder-se en el olvido.

La historia es dura con os que se anticipan a su época. Pero para los que

llegamos un siglo después y queremos saber de dónde venimos, es un

testimonio irremplazable de los caminos que olvidados que nos permitieron

descubrir el inconsciente.

GAUCHET (2000, p. 10)

Quando falamos sobre apresentação de pacientes, geralmente, uma primeira

referência que nos ocorre é Charcot – responsável pelas mais espetaculares apresentações,

eternizadas pelo célebre quadro de André Brouillet1, que imortalizou o encontro público de

Charcot2 e Blanche Wittmann3, diante de seu renomado público de médicos e escritores

famosos.

Entretanto, este quadro retrata antes a idéia do "espetáculo" resultante, e toda a

polêmica e mitificação à qual a posteridade tentará reduzir o grande mestre de Salpêtrière,

do que o trabalho investigativo de Charcot:

Na França, logo após a morte de Charcot, o significante da impostura e da simulação ressurgiu com vigor e não deixou lugar para o encaminhamento de outra forma de raciocínio. Na esteira do revisionismo de Babinski4, fizeram do mestre de Salpêtrière um sábio a um tempo mistificado e mistificador: charlatão, por sua crença na validade da sugestão, e impostor por ter sido "ingenuamente" embrulhado pelos falsos sintomas das simuladoras. (ROUDINESCO, 1988, p. 186)

Será que os fenômenos apresentados pelas histéricas eram apenas sintomas

fabricados em resposta ao pedido do mestre? Será que não podemos extrair outros efeitos

das apresentações de pacientes realizadas por Charcot, do que a exibição de um poder de

domínio e manipulação? Enfim, será justo reduzir o grande mestre de Salpêtrière a um

regente de teatro?

1 Une leçon clinique a la Salpêtrière (1887). Conf. Anexo 4. 2 Jean Martin Charcot (1862-1893). 3 Conf. p. 75. 4 Joseph Babinski (1857-1933) – era o aluno favorito de Charcot, mas foi o grande responsável pelo desmantelamento da histeria após a morte do mestre. Considerava a histeria como um puro produto de sugestão, relegando-a ao campo moral. Propunha o abandono do termo histeria, em favor de “pitiatismo”.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Se quisermos responder a tais questões, torna-se imprescindível que não nos

deixemos aprisionar pelo espetáculo em cena. Devemos cuidar, ainda mais, para não nos

deixar impressionar pelas críticas reducionistas. Para termos uma dimensão do que esta

cena traduz, é preciso que a localizemos em seu tempo histórico. Mais do que isso, é

preciso que acompanhemos o trabalho de seu "protagonista": investigar suas intenções,

verificar seus efeitos, analisar suas conseqüências.

2.1 UMA FIGURA CONTROVERSA

A propósito dessa polêmica em torno da figura de Charcot, é preciso recuperar a

multiplicidade e a complexidade de fatores que cercaram, tanto a produção de seu trabalho

como a construção da lenda.

Comecemos pela ambivalência presente nos comentários acerca do mestre, que

oscilam da fascinação absoluta à veemente condenação.

Gladys Swain aponta-nos que, muito dessa mitificação decorre justamente da

relação com Freud. Para termos alguma noção da impressão que Charcot causou em

Freud, tomemos um pequeno trecho de uma carta à sua futura esposa, quando de seu

encontro com o mestre, em 1885:

Acho que estou mudando muito. Vou dizer-lhe detalhadamente o que me está afetando. Charcot, que é um dos maiores médicos e um homem cujo senso comum tem um toque de gênio, está simplesmente abalando minhas metas e opiniões. Algumas vezes saio de suas aulas como se estivesse saindo de Notre Dame, com uma nova idéia de perfeição. Mas ele me exaure; quando me afasto, não tenho nenhuma vontade de trabalhar em minhas próprias bobagens; há já três dias que não faço qualquer trabalho, e não tenho nenhum sentimento de culpa. Meu cérebro está saturado, como se eu tivesse passado uma noite no teatro. Se a semente frutificará, não sei; o que sei é que ninguém jamais me afetou dessa maneira. (FREUD [1893]1976, p.19)

Ao reverenciá-lo, Freud não deixa de reconhecê-lo como precursor da

psicanálise, atribuindo a ele: “a paternidade de noções tão significativas como as de

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

‘elaboração psíquica inconsciente’, ‘complexo de idéias inconscientes ou ‘consciência

oficial’” (SWAIN, 2000, p. 14)5.

Entretanto, os comentários de Freud, como por exemplo: “Não era Charcot um

homem excessivamente reflexivo, um pensador: tinha, antes, a natureza de um artista, um

‘visuel’ um homem que vê” (FREUD [1893]1976, p. 22), ao ressaltarem o aspecto "visual" de

Charcot, ao darem ênfase ao aspecto escópico do trabalho, ajudaram a estabelecer o

grande mestre no campo da performance teatral.

Suas demonstrações de paciente, segundo Marcel Gauchet, “mais legendárias

do que reais” (GAUCHET, 2000, p. 7)6, tornaram-se célebres. Contudo, se num momento

Charcot fascinou o mundo médico com a teatralidade histérica, posteriormente foi criticado

por isso – foi acusado de haver se deixado enganar, de acreditar estar fazendo uma

apreensão objetiva da histeria, de estar isolando os sintomas histéricos, quando, todavia,

suas histéricas fabricavam os fenômenos que o mestre pedia. Na visão de seus opositores,

os acessos histéricos não eram mais que a conseqüência do adestramento de ‘suas’

histéricas pela sugestão. Ou ainda, que “as histéricas de Charcot eram excelentes atrizes e

que o mestre fabricava a doença tal como um mágico retira coelhos de sua cartola”

(ROUDINESCO, 1988, p. 39).

Enfim, podemos acusar Charcot como sendo: “o visual, incapaz de escutar, está

condenado a especularidade e as falsas aparências”7 (SWAIN, 2000, p. 14). Mas podemos,

por outro lado, dizer que, como Bichat8, que foi vítima dos cadáveres que investigava,

Charcot, o primeiro que ousou abordar a histeria, acabou vítima do mesmo descrédito que a

condenava. Para aquele que se quer parceiro da histérica, parece estar excluída a

pretensão de escapar ao ridículo.

5 Tradução livre do espanhol. 6 Tradução livre do espanhol. 7 Tradução livre do espanhol. 8 Marie François Xavier Bichat (1771-1802) – fundador da anatomia patológica. Bichat revolucionou a medicina de sua época ao convidar os médicos: "Abram alguns cadáveres". “Aos 32 anos, feriu-se durante uma dissecação e morreu em conseqüência de ‘envenenamento cadavérico’, como se dizia na época” (BARRETO,1999, p. 103).

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Tal aspecto é reforçado pelas impactantes fotografias da Iconographie de la

Salpêtrière9, assim como pelos escritos críticos de Léon Daudet10. Através de seus

personagens, Daudet fazia alusão a Charcot como um "charlatão ignóbil" e aos trabalhos

realizados em Salpêtrière como um "verdadeiro embuste"11. Tais contribuições sustentam e

animam a lenda, fixando Charcot como “o homem do fracasso exemplar de um método de

investigação exclusivamente visual e falsamente objetivo”12 (SWAIN, 2000, p. 14).

Toda essa controvérsia traduz o retrato de uma lenda: investigador brilhante que

deu um estatuto preciso à histeria, de um lado, e uma vítima de suas histéricas de outro.

Para acompanharmos a construção desse mito, é indispensável dizer que o

momento histórico em que Charcot se encontrava era um tempo de encruzilhada: a

medicina ainda recolhia as mudanças suscitadas por Bichat13. Segundo Garcia-Rosa, nessa

época, a anatomia patológica era o único meio de inclusão da medicina no campo das

ciências exatas, sendo esperado do médico que suas investigações clínicas fossem

acompanhadas por investigações anatomopatológicas que oferecessem, no nível do corpo,

a lesão referente aos distúrbios observados. (Garcia-Rosa, 1995, p. 32)

Charcot participa desse momento de corte radical na história da medicina

ocidental, do momento em que a experiência clínica transformava-se na visão

anatomopatológica. Ainda sobre um terreno arcaico, Charcot participava da modernização

da medicina:

anatomopatologia, anatomoclínica, anatomofisiologia, microbiologia, localizações cerebrais, hereditariedade – degenerescência, etc.: todas essas noções que presidiram a elaboração ou reformulação dos diferentes campos da clínica das "doenças nervosas": neurologia, psiquiatria, psicopatologia, psicologia e "psico-análise". (ROUDINESCO, 1988, p. 20)

9 Órgão de difusão especializado, organizado por Bourneville e Regnard, no qual apresentavam a descrição visual, anamnese de algumas pacientes, fotografias, resultados dos trabalhos e pesquisas entre outros dados referentes ao serviço realizado em Salpêtrière, no período entre 1875-1880. Conf. Disponível em: http://charcot.bum.jussieu.fr. Acesso em: dez. 2005? 10 Léon Daudet, (1867-1943), jornalista e escritor francês. Segundo Elizabeth Roudinesco, a obra literária de Daudet nasceu do encontro com Charcot e com o espetáculo da histeria. Daudet mantinha uma relação extremamente ambivalente com Charcot. “Durante trinta anos (de 1893 a 1923), Daudet nunca deixara de ser obcecado pelo fantasma do homem da Salpêtrière” (Conf. ROUDINESCO, 1988, p. 54-61). 11 Elisabeth Roudinesco cita, da obra de Daudet - Lês Morticoles, 1884, como exemplo do caráter crítico de sua obra, a personagem Rosalie, que retrata Blanche (Marie Wittmann, paciente retratada na obra de Brouillet): “[...] e você, como Charcot, foi acusada de inventar seus sintomas. Disseram que seu mestre era um charlatão, senil, dissoluto ou ingênuo, e disseram que você era cúmplice de suas vilanias. Ainda hoje ousam pretender que o homem da Salpêtrière ‘inventou’ a histeria manipulando você” (ROUDINESCO, 1988, p. 58). 12 Tradução livre do espanhol. 13 Bichat, que se dedicava à anatomia patológica, propunha estabelecer relações definidas entre as alterações dos tecidos e os sintomas clínicos.

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Charcot, portanto, move-se em um terreno instável, onde os antigos contornos

se desfazem, mas o novo ainda está por surgir. Charcot articula-se na transição entre dois

mundos:

É exemplar pela situação de articulação entre dois mundos, de onde deriva a necessidade de inventar novos instrumentos para orientar-se em um campo cujos contornos estão voltando a se delinear, para pensar e para atuar sobre uma matéria em plena transformação. Está lutando com a emergência de algo inédito cuja direção o compele a um esforço constante de adaptação. É assim que aprendemos sobre a grande modificação das fronteiras entre enfermidades nervosas e mentais que se opera nesse momento mais através de Charcot, condenado a re-acomodação permanente, a dúvida, a correção interminável, que através de seus sucessores, já instalados na serenidade das referências fixas e do saber estável. (SWAIN, 2000, p. 17)14

A construção de novos caminhos foi possível por ser Charcot um cientista

positivista, que sustentava suas investigações numa arguta observação clínica. Interessava-

se mais pelo que escapava às leis estabelecidas, do que pelas leis em si. Disposto a colocar

qualquer dogma em questão, não recuava diante dos fenômenos inéditos – ao contrário,

dedicava-se a investigá-los, atento a toda possibilidade de ampliar o espectro do observável

e do explicável, ainda que fosse necessário colocar à prova os conhecimentos constituídos.

Como disse Freud, Charcot era “contra as usurpações da medicina teórica”.

Tinha como princípio: "La théorie, c’est bon, mas ça n’empêche pas d’exister"15. Assim,

procurava manter-se aberto às novidades, constantemente em busca de modelos, técnicas

e argumentações que pudessem trazer alguma luz, ou responder aos pontos de impasse.

Sustentava seu trabalho na prática clínica, ou seja, na observação e

investigação das coisas.

Talvez seja justamente por esta constante disposição investigativa que Charcot

contribuiu tanto para a transição do saber. Partindo da neurologia, investigou-a em seus

limites. Depois de esgotados os recursos da neuro-anatomia ou neurofisiologia, acabou por

consentir em tomar, como foco de suas pesquisas, o campo que, apesar de resistência de

Charcot, insistia em se colocar como fonte de respostas – o psiquismo:

Ao longo de vinte e oito anos, ou seja, desde o primeiro artigo de Charcot sobre o tema em 1865, no qual a histeria é entendida como próxima à esclerose em placa, até a última aula que lhe dedica semanas antes de sua morte em 1893, quando se ocupa do sonho e do poder das representações sobre o corpo, vemos emergir

14 Tradução livre do espanhol. 15 "Teoria é bom; mas não impede as coisas de existirem" (FREUD [1893]1976, p. 23).

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paulatinamente uma nova ordem de pensamento e uma nova e enigmática cara da enfermidade. Este itinerário é prodigiosamente instrutivo. Suas etapas e seus estratos nos recordam o trabalho de despojo e acúmulo de material que foi necessário para chegar à evidência do que denominamos "psiquismo", e que identificamos pelo específico de suas perturbações. (GAUCHET, 2000, p. 9)16

2.2 O PERCURSO DE CHARCOT

Certamente, não foi de um salto que Charcot passou da histeria neurológica à

histeria psíquica. Pelo contrário. Segundo Swain, sua obra é marcada por uma constante

reformulação, fundada em modelos provisórios. Sua obra evoluiu como um “corpus

estratificados, formados por camadas de épocas diferentes, que sedimentam, se

superpõem, se recobrem sem que a mais recente apague ou exclua jamais a que lhe

precedeu” (SWAIN, 2000, p. 16)17.

Apesar do imenso interesse que esse percurso de Charcot pode despertar, para

dar conta de todas as nuances e reviravoltas de sua obra, seria necessário um estudo fino,

amplo, especialmente dedicado a isto que escapa ao alcance deste trabalho18. Ainda assim,

entendendo que seu caminho é um retrato de seu investimento, de seu entusiasmo,

dedicação e seriedade, tentaremos delinear sua trajetória, assinalando as viradas e

momentos cruciais assim como os mais polêmicos. Para tanto, acompanharemos as

investigações que Marcel Gauchet e Gladys Swain, apresentam em seu livro: El verdadeiro

Charcot.19

2.2.1 A histeria antes de Charcot

Objeto de enorme literatura e variadas teorias, desde a Antiguidade a histeria foi

16 Tradução livre do espanhol. 17 Tradução livre do espanhol. 18 Sobre o tema, conf. GAUCHET, M., SWAIN, G. El verdadeiro Charcot. Los caminos imprevistos del inconsciente. Buenos Aires: Ediciones Nueva Visión SAIC, 2000. 19 Devido à dificuldade de acesso aos textos originais, optamos por trabalhar a partir de seus leitores. Os autores fazem um interessante levantamento da trajetória de Charcot, tomando por base não apenas as Obras Completas, Leçons du Mardi, seus artigos publicados, e os relatórios anuais de sua clínica, mas também o fundo de arquivos de Salpêtrière – os arquivos de Bourneville (braço direito de Charcot em Salpêtrière de 1870 a 1880), e os arquivos pessoais de Charcot – pastas com artigos científicos, notas de leituras, publicações, documentos clínicos, anotações, esboços de aulas, enfim, seu arquivo em Salpêtrière.

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marcada por enorme preconceito. Primeiramente, foi considerada decorrente do

sufocamento do útero, que era tido como um ser autônomo; depois, passou a uma

possessão demoníaca, em seguida, à feitiçaria, por fim, a uma simulação. A histeria sempre

causou descrédito e desinteresse. Sobre essa enfermidade, um consenso: trata-se de uma

doença de mulheres. Apesar da dificuldade de atribuir-lhe uma sintomatologia própria, pois

nela pode ocorrer qualquer combinação de sintomas, geralmente foi considerada como uma

doença que reside no útero e as perturbações observadas se explicam por lesões funcionais

da inervação do órgão. Uma perturbação local que se espalha, em seguida, pelos nervos de

todo o organismo e que se traduzem por manifestações corporais. Num golpe inesperado, o

acesso histérico atinge a mulher e a priva de movimentos e sentimentos. Convulsão

generalizada, contrações, paralisias, desmaios, perturbações da linguagem, manifestações

emocionais – choro, gritos, lágrimas. O fim do acesso se dá pela diminuição progressiva dos

fenômenos, marcado pela emissão de urinas claras, e abundantes, e pela expulsão de

excreções útero-vaginais acompanhadas, por vezes, de sensações voluptuosas.

Em 1777, com a proposta de termo neurose, por Cullen20, a histeria, juntamente

com a hipocondria e com a epilepsia, vão compor o quadro das doenças funcionais, sine

materia, isto é, sem inflamação nem lesão do órgão onde aparecia a dor. Investidos em

encontrar critérios seguros, entenda-se – orgânicos, para distinguir a loucura da simulação,

os alienistas vão repelir a "grande neurose" para fora de seu campo de investigação:

certamente não se trata de uma doença mental, mas de uma afecção da ordem dos

"espasmos".

A esse desafeto dos alienistas por essa neurose, acrescenta-se o fato de que os histéricos, com suas crises, seus caprichos, seu comportamento ruidoso, perturbam a ordem dos serviços dos alienados. Busca-se afastá-los, colocá-los em outro lugar. Eles serão reunidos e lugares de cuidados separados, com uma outra categoria de sujeito igualmente bastante indesejáveis, os epilépticos. Vermos que Charcot será herdeiro desse "quartier" dos epilépticos. (TRILLAT, 1991, p. 133)

Abandonada pelos alienistas, a histeria se tornará assunto da neurologia.

2.2.2 Salpêtrière – esboço do trajeto: 1862-1893

Esses "indesejáveis", quando do sexo feminino, eram "depositados" em

20 Willian Cullen (1712-1790), médico, considerado o fundador da patologia do sistema nervoso.

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Salpêtrière. Esta instituição acolhia uma população de cerca de cinco mil mulheres, sendo a

maioria composta por anciãs com mais de 70 anos. Entre essas, era depositado o

indesejável grupo das incuráveis. Estas, apesar de serem doentes crônicas, permaneciam

internadas, pois ainda que não se esperasse pela cura, necessitavam de cuidados.

Em 1862, Charcot foi designado "médico de Salpêtrière". Não era um posto de

prestígio, mas, antes, uma passagem habitual para início de carreira, do qual os médicos se

mudavam tão logo tivessem oportunidade.

No obituário dedicado a Charcot, Freud relata que ele gostava de comentar

sobre esse início de sua trajetória. Quando ainda era médico-residente, viu seu interesse

científico despertar, ao percorrer departamentos de Salpêtrière. Diante de “toda a desolação

das paralisias, espasmos e convulsões para os quais, há quarenta anos, não havia nome

nem compreensão, ele diria ‘Faudrait y retourner et y rester’21, e manteve sua palavra”

(FREUD [1893]1976, p. 21).

Charcot compreendeu que se encontrava diante de um museu de fatos clínicos,

um observatório de excepcional interesse. Apenas em um hospital para incuráveis, como

Salpêtrière, era possível manter os pacientes sob tão longa observação, o que permitia

acompanhar a lenta evolução de suas doenças, podendo, inclusive, constatar as lesões

orgânicas que caracterizavam a enfermidade, quando esta culminasse na morte.22

Certamente soube tirar proveito dessa situação – converteu esse aglomerado de misérias

humanas em um hospital moderno, uma referência de clínica e de formação – a École de

Salpêtrière.

Importante relembrarmos que Charcot não era um alienista, mas um

neurologista. À época de seu primeiro artigo sobre a histeria (1865), encontrava-se

interessado pela questão das contraturas – entre elas, encontrava-se, também, a contratura

21 "Será necessário voltar aqui e permanecer" (FREUD [1893]1976, p. 21, nota 2). 22 Sobre esse caráter investigativo de Charcot, Freud nos relata um fato curioso: “Quando era ainda estudante, aconteceu-lhe ocupar-se de uma criada que sofria de uma tremura singular e que não podia arranjar colocação devido à sua falta de jeito. Charcot reconheceu em seu estado uma paralysie choréiforme, enfermidade já descrita por Duchenne, mas cujo fundamento era desconhecido. Charcot contratou essa interessante criada, embora ela lhe custasse, no correr dos anos, uma pequena fortuna em louças. Quando ela finalmente faleceu, ele estava em condições de demonstrar a partir desse caso que a paralysie choréiforme era a expressão clínica da esclerose cérebro-espinhal múltipla” (FREUD [1893]1976:24).

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histérica. Esta era identificada negativamente em relação aos quadros neurológicos.

Chamava a atenção que, apesar de se parecer com eles, não chegava jamais a se confundir

com os mesmos, pois sua organicidade era paradoxal – desconsiderava as regras da

anatomofisiologia. Por outro lado, tais contraturas geralmente encontravam-se

acompanhadas por sintomas positivos, de ordem ginecológica – menstruação irregular,

edema abdominal, dor ovariana, retenção urinária.

Foi por essa via que a histeria se apresentou a Charcot. O método comparativo

entre as histerias e as afecções neurológicas orgânicas foi tomado como eixo fundamental

de suas investigações. Contraturas permanentes, paralisias e convulsões: as observações

sobre a histeria estavam inscritas nas reflexões acerca da neurologia.

Mas o especialista em enfermidades crônicas não resiste à possibilidade de

investigar os fenômenos paradoxais que colocam em questão o saber estabelecido. É assim

que, em 1872, coloca os sintomas transitórios no primeiro plano de suas investigações:

“[...] antes de conduzi-los a estas questões árduas, senhores, não posso resistir ao desejo de aproveitar certo número de casos muito notáveis de histeria reunidos atualmente em nossas salas. É importante agarrá-los sem demora, pois em razão da mobilidade própria da grande neurose que acabo de nomear, os sintomas que hoje oferecem certo grau de desenvolvimento poderão estar amanhã completamente desaparecidos. (CHARCOT, t. I, p. 276 apud SWAIN, 2000, p. 45-46)23

Seu interesse pelos sintomas anômalos justifica-se pela possibilidade de, a partir

deles, elucidar algum ponto obscuro da teoria. É assim que, durante quatro aulas seguidas,

Charcot se dedicou ao caso Justine Etcheverry, abordando sua série de sintomas,

considerados sintomas maiores: anúria histérica, contratura, hemeanestesia, hiperestesia

ovárica, histero-epilepsia (convulsões), e no caso, trismus (sintoma fugaz atual).

Charcot começa a interrogar a ação do sistema nervoso. Observando os

movimentos e reações do corpo de suas pacientes, Charcot se dedicará a estabelecer o

diagnóstico diferencial entre a epilepsia verdadeira e a histero-epilepsia.24

23 Tradução livre do espanhol. 24 A histero-epilepsia é, para Charcot, a histeria desenvolvida em seu grau máximo. O nome histero-epilepsia deve-se à sua aparência, ao seu caráter epileptiforme.

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Entretanto, no período entre 1872-1877, por motivos diversos, Charcot desvia-se

de suas investigações. Ainda assim, nesse período, a cada ano, dedicava à histeria pelo

menos algumas de suas aulas do curso livre, que proferia em Salpêtrière.

Por outro lado, 1877 iria marcar uma virada quantitativa da presença da histeria

na obra de Charcot. Suas idéias sobre a histeria começam a mudar de rumo – o problema

da histeria retornará sob a luz de uma nova terapêutica, a metaloterapia.

O que conduz Charcot à metaloterapia e, posteriormente, ao hipnotismo, é, em

parte, o acaso: em 1876, chega a Salpêtrière, o doutor Burq25, um velho médico que havia

defendido, em 1852, sua tese sobre a ação dos metais, pede a Charcot um espaço para

realizar suas experiências. Charcot – que, como vimos, tinha como característica ser aberto

a experiências, novidades – interessa-se pelo aspecto terapêutico do assunto:

Quando Burq me falou da metaloterapia e disse que curava os enfermos indicando a administração interna de metais, não lhe disse nem sim, nem não, mas: é possível, veremos... Se alguém vem me dizer que sabe curar o câncer, eu lhe permitiria o acesso às salas de Salpêtrière, sem renunciar evidentemente ao meu dever de vigilância e fiscalização. Esta foi a conduta que adotei para com o senhor Burq quando me assegurou que contava com um tratamento eficaz da histero-epilepsia. (CHARCOT t. IX, p. 245 apud SWAIN, 2000 , p. 88)26

De fato, Charcot não acreditava na ação dos metais. Acolhe Burq, mas se

mantém incrédulo, até que um episódio inesperado, abala sua convicção. Relata:

Encontrando-me perto de uma histérica do meu setor, quis mostrar a meus alunos a extensão da zona anestésica. Eu a piquei fortemente, mas no lugar da insensibilidade completa, encontrei uma sensibilidade muito importante; a doente gritou e me disse: “Mas isso não é como das outras vezes, o Sr. Burq passou esta manhã” (CHARCOT t. IX, p. 221 apud TRILLAT,1991, p. 147)27

Impressionado pelo efeito da terapêutica, Charcot passa a defender a

necessidade de incrementar as investigações. Uma comissão, composta por Charcot, entre

outros, foi designada pela Société de Biologie para acompanhar os trabalhos de Burq. É um

período de intensa experimentação em Salpêtrière. Todas as manifestações histéricas –

anestesias, paralisias, contraturas, são investigadas. A experiência com metais, em pouco

tempo dá lugar às investigações com outros agentes, como os ímãs, a eletricidade, por fim,

a hipnose.

25 “Burq "[...] interessava-se desde 1848 pela ação dos metais aplicados sobre a pele nos casos de histeria, de epilepsia, de cãibras, ou de contrações. Ele foi buscar suas fontes nas crenças e nas práticas populares que atribuíam aos braceletes, aos colares, às medalhas, efeitos benéficos” (TRILLAT, 1991, p. 146). 26 Tradução livre do espanhol. 27 Tradução livre do espanhol.

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Além do efeito de recuperação de sensibilidade, as investigações colocaram em

evidência, um fenômeno inesperado: a aplicação de certos metais determinava,

efetivamente, o retorno da sensibilidade nas zonas anestésicas, mas, em realidade,

produzia um deslocamento da insensibilidade para a parte anteriormente sadia.

Esse fenômeno será denominado transferência28: “O que se ganha do lado

anestesiado se perde do lado sensível" (SWAIN, 2000, p. 107)29. Ou seja, há uma produção

artificial de sintoma. Como uma ampliação da aplicação, descobre-se que os metais podem

tornar a anestesiar as partes que haviam se tornado sensíveis.

Tais descobertas produzem alguns efeitos. Um deles foi dar mais consistência a

interpretação diatésica30 da histeria, noção à qual Charcot recorre para dar conta dos signos

da histeria. Pensa a histeria como uma enfermidade crônica - um "estado mórbido

constitucional", "tendência geral do organismo". Assim, entende que só é possível produzir

novamente os sintomas porque as enfermas não estão completamente curadas. As

manifestações podem ser atenuadas, inclusive eliminadas, mas a diátese subjacente

permanece.

Outra conseqüência da descoberta da "transferência" de sensibilidade foi a

introdução da idéia de uma produção artificial dos sintomas histéricos. A idéia surgiu no

decorrer do tratamento de Pauline (1878) – um caso típico de histeria, que apresentava

contratura do pulso esquerdo. Entretanto, tal contratura não respondia a nenhum dos

métodos terapêuticos habituais: eletroímã, corrente alternada, corrente contínua,

eletricidade estática, aço imantado.

Assim nasce a idéia de utilizar os conhecimentos adquiridos sobre a anestesia de retorno e a transferência para fazer destes a base de um procedimento terapêutico. O princípio é simples: seria suficiente inverter a ordem dos fenômenos? Até então haviam se conformado em observar a anestesia de retorno sobre membros anteriormente anestesiados. Sabe-se que quando a metade do corpo é anestesiada a outra é suscetível de sê-lo também, em virtude da transferência. Então, por que não tentar produzir o sintoma local na metade sã do corpo, onde existe em potência

28 Para Charcot que estava sempre preocupado em proteger-se contra simulação, descobrir a transferência pareceu uma garantia de se estar em presença de um fenômeno "que os enfermos não poderiam inventar nem simular", uma vez que não era um fenômeno esperado, mas que foi descoberto unicamente ao acaso. 29 Tradução livre do espanhol. 30 "Diatese - sf (gr diáthesis) Med. Condição do organismo para ser atacado por determinadas doenças ou estado mórbido geral manifestado por elas" (Michaelis, CD Rom). A concepção da histeria diatésica, constitucional, é a primeira etapa do questionamento do ovário na histeria. Charcot não acreditava na velha teoria uterina, mas acreditava na influência do ovário como um foco inicial das manifestações, como uma aura histérica.

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- inclusive tratando-se neste caso de uma contratura e não de uma anestesia, a espera de que, por um tipo de antecipação da transferência, o novo sintoma tendesse então a reduzir as manifestações do antigo sintoma na outra metade de corpo? Isto supõe evidentemente a crença de que o sintoma produzido artificialmente será por definição mais fácil de desfazer que o sintoma aparecido espontaneamente. E sucede o que parecia improvável. Em 12 de junho, por meio de um imã, se logrou provocar uma contratura no pulso direito: primeiro êxito. Em 17 de junho se verificou a flexibilização do pulso esquerdo e um começo de sensibilidade. Começam a realizar imantações e eletrizações quase cotidianamente. A contratura cede terreno no esquerdo enquanto resulta cada vez mais fácil de obter no direito (onde desaparece a discrição, sob o efeito da eletricidade). Produz-se a contratura dos dois lados, logo a suprime simultaneamente ou bem se alterna entre um lado e o outro; [...] [23 de julho] pode anunciar que a contratura e a anestesia haviam desaparecido inteiramente do lado esquerdo, ainda que a mobilidade não estivesse todavia completamente restabelecida, enquanto que no intervalo entre as experiências o membro superior direito conservasse todos seus movimentos e sua sensibilidade, estava somente um pouco débil. (GAUCHET, 2000, p. 119-120)31

A importância desse caso, o que justifica seu relato de forma detalhada, é

porque ele marca uma reviravolta na orientação do trabalho realizado em Salpêtrière.

O caso Pauline marca, portanto, o início da utilização da produção artificial dos

sintomas histéricos, o que permitirá uma intensificação nas investigações. Posteriormente,

esse procedimento retornará como fonte das críticas mais ferrenhas a Charcot.

Um aspecto que cabe ressaltar: durante os experimentos com a metaloscopia,

foram constatados fenômenos de catalepsia. Segundo Swain, há razões para supor que

este elemento servirá secretamente de guia a Charcot. Por exemplo, no caso Pauline, ainda

que sem ênfase especial, no relato do caso, há uma breve menção ao fato de a paciente

encontrar-se hipnotizada, como se este fosse um procedimento acessório. Efetivamente,

ainda que Charcot já utilizasse o hipnotismo, é apenas nos meses finais de 1878, que

anuncia, aberta e publicamente, a sua utilização.

Este capítulo é destinado a converter-se num dos mais polêmicos das

investigações realizadas em Salpêtrière. Visto que Charcot, seguindo seu princípio de que

todo fenômeno inédito, por mais complicado ou misterioso que pareça, merece ser

examinado, ele não recuou diante da hipnose e dos julgamentos críticos e preconceitos que

a cercavam32. Mesmo ciente dos riscos, decidiu seguir com sua investigação:

Apesar de seus pontos de contato com o domínio extra-científico, este estudo constitui sem dúvida um importante aspecto da história da histeria; não devemos

31 Tradução livre do espanhol. 32 Segundo Trillat, “apesar da seriedade e da riqueza das experiências acumuladas pelos primeiros hipnotizadores, cuja maioria não era médica, essa corrente ainda era demasiado suspeita de charlatanismo, demasiado dirigida para o maravilhoso, sem contar que a corporação médica via com maus olhos essa concorrência desleal” (TRILLAT, 1991, p. 126).

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esquecer que somos médicos, e que nada do que toca a medicina deve deixar-nos indiferentes” (CHARCOT, t. IX, p. 278 apud GAUCHET, 2000, p. 124)33

O peso da autoridade de Charcot deu autenticidade e credibilidade aos

fenômenos hipnóticos.

Segundo Trillat, a entrada foi pela catalepsia – estado no qual a paciente ficava

imóvel, com os olhos abertos, mas ausente – sem possibilidade de se comunicar com ela. O

interessante desse estado é que o rosto, em lugar da imobilidade, passa a exprimir

sentimentos ou emoções relacionados à atitude imposta. Por exemplo: seu braço suspenso,

com punhos fechados, os músculos do rosto respondem manifestando expressão de cólera,

se a mão é aproximada da boca, como no gesto do beijo, aflora um sorriso nos lábios. O

passo seguinte é o sonambulismo, estado no qual, apesar da aparência do sono, a

comunicação verbal é possível. Nesse estado, é possível criar artificialmente sintomas

histéricos, idênticos aos sintomas naturais. (Trillat, 1991, p. 152)

A utilização da hipnose, que marca este período, possibilita o acesso a uma

verdadeira “neurose experimental”, cujas manifestações puderam então ser estudadas à

vontade, suscetíveis à observação metódica. Mas, como nos aponta Trillat, essa tentativa de

penetrar na natureza profunda da histeria pela via da hipnose, desemboca num jogo de

espelhos, perdendo-se a clareza de onde está o objeto, onde está a imagem. (Trillat, 1991,

p. 156)

Em 1885, temos uma nova reviravolta nas investigações de Charcot, pois essa

verificação sistemática possibilitou estabelecer o diagnóstico diferencial entre as paralisias

histéricas e as paralisias orgânicas.

Charcot localiza, como ponto diferencial, a natureza específica das paralisias

histéricas – estas são provocadas por uma idéia – o traumatismo psíquico, decorrente de

uma vivência traumática. Segundo Charcot, “A contratura determinada pelo traumatismo é

com freqüência a primeira manifestação da diáteses histérica” (SWAIN, 2000, p. 85)34. A

histeria traumática ocupará, então, o centro dos interesses de Charcot.

33 Tradução livre do espanhol. 34 Tradução livre do espanhol.

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Segundo ele, a tendência de uma idéia que é acolhida no cérebro, é transformar-

se em ato. Charcot demonstra que um evento traumático pode provocar um estado mental

(cerebral), alterado, equivalente ao sonambulismo histérico, o que possibilita que uma idéia,

ou grupo de idéias, provocada pela situação traumática vivenciada, ao ser acolhida pelo

cérebro nesse estado, pode lá se estabelecer como um parasita, intervindo no mecanismo

"ideomotor", produzindo efeito de paralisia.

Segundo Freud,

Charcot teve o êxito em provar, através de uma sólida cadeia de argumentos, que essas paralisias eram o resultado das idéias que tinham dominado o cérebro do paciente em momentos de disposição especial. Desse modo, o mecanismo de um fenômeno histérico é explicado pela primeira vez. (FREUD [1893]1976:33)

Entretanto, a própria "explicação" introduz um problema mais profundo do que

aquele que resolve: as descobertas de Charcot apontam cada vez mais para o campo

psíquico. Diante desse rumo inesperado, Charcot parece mais cauteloso: faz e refaz o

mesmo caminho, não mecanicamente para acumular provas, mas “como se a surpresa não

deixasse de crescer e a curiosidade ansiosa de exercitar-se” (GAUCHET, 2000, p. 157)35.

Este é um momento muito precioso para as investigações de Charcot.

Primeiramente, porque, à interessante clientela já assistida habitualmente em Salpêtrière,

acrescentou-se uma nova clientela: foi fundada uma seção clínica na qual eram internados

para tratamento, tanto pacientes masculinos como femininos, selecionados a partir das

consultas semanais realizadas em um departamento de pacientes de ambulatório –

consultation externe. (Freud [1886]1977, p. 38)

Em segundo lugar, porque, em decorrência do desenvolvimento das estradas de

ferro e as conseqüentes colisões e descarrilamentos, um número grande de traumatizados

masculinos passa a recorrer àquele serviço. Diante dessa nova clientela, uma interessante

questão se impõe: se a paralisia traumática é uma paralisia histérica – há que se interrogar

a histeria masculina.36

A generalização da patologia histérica a ambos os sexos corrobora na

destituição do ovário enquanto fonte, intensificando, por assim dizer, uma "psiquização" da

35 Tradução livre do espanhol. 36 A histeria masculina já havia sido identificada anteriormente por Thomas Willis (1664).

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histeria37. Uma psiquização que, no espírito de Charcot, eminentemente materialista e

positivista, segue sendo uma psiquização encarnada, fundada no funcionamento cerebral.

Apesar das dificuldades, Charcot vai ser convocado a dar ainda mais alguns

passos rumo à autonomia do psiquismo. Um paciente, o sr. Le Logeais, impelirá Charcot a ir

além da inconsciência de realização fisiológica, ao reconhecimento de uma dimensão

psicológica da elaboração inconsciente.

Le Logeais, após ser atropelado por um automóvel, é levado inconsciente para o

hospital. Um tempo depois de regressar à sua casa, tem um grande ataque, entrando em

coma. Ao despertar, depois de uma semana, apresenta paralisia de ambas as pernas.

Apesar das evidências contrárias, Le Logeais está convencido de que o automóvel passou

sobre suas pernas – essa idéia persegue-lhe até nos sonhos. O que surpreende em seu

caso, é que não foi um traumatismo material, mas sim, suas elaborações e representações

do acidente que desencadearam a paralisia. Este caso se torna notável, pois permitia captar

o processo da "auto-sugestão"38 em plena realização.

A histeria se vê cada vez mais atraída em direção da esfera "mental" ou

"psíquica". Mas Charcot não se entrega de bom grado a esse traslado. Ainda

acompanhando a leitura de Gauchet, vemos que Charcot seguirá num aprofundamento

paciente, imperceptível, mas contínuo. É, sem dúvida, um trajeto difícil para Charcot, uma

vez que o coloca num trabalho de pensamento contra si mesmo, contra as bases de sua

formação neurológica.

Mesmo sendo difícil para ele, tenta descolar-se do campo neurológico. Charcot

experimenta “se adaptar às inovações conceituais que modificavam inexoravelmente a

abordagem dos fenômenos que durante anos ele contribuiu mais que ninguém para trazer à

37 O traumatismo substituirá, progressivamente, o ovário, e permitirá a generalização da patologia histérica a ambos os sexos. Entretanto, o laço entre histeria os órgãos sexuais não se desfaz jamais. Na verdade, o que se muda sob o peso da "neurologização" é o aspecto e a natureza da sexualidade implicada na histeria: teve que se pensar de outro modo – mas a histeria não deixou nunca de ser uma perturbação sexual. Segundo Freud, ainda que Charcot tenha desviado da problemática sexual, ele o fez por uma necessidade teórica, o que permitiu nova definição do conceito de neurose. Entretanto, ele “sabia da primazia das causas genitais” e "discretamente", transmitiu a coisa genital. (Conf. ROUDINESCO, 1988, p. 26,29,41,44.) Freud revela que, em uma recepção na casa de Charcot, “por acaso ouvira seu anfitrião a comentar, com seu jeito jovial, que uma jovem com sérios distúrbios devia seus problemas nervosos à impotência ou à inépcia do marido. Nesses casos, exclamou Charcot, é sempre uma coisa genital, sempre: "Mas, dans dês cas pareils", insistiu ele, "c’est toujours la chose genitale, toujours..." (GAY,1989, p. 99). 38 Segundo Gauchet, pela primeira vez, Charcot emprega o termo ”auto-sugestão".

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luz” (GAUCHET, 2000, p. 168)39. Gauchet designará Charcot de o “homem-fronteira” –

aquele que indica a fronteira, sem, no entanto, atravessá-la (GAUCHET, 2000, p. 163),

porque sua formação neurológica sempre acaba por se impor em suas elaborações,

utilizando-se de recursos como explicar o processo observado pela "ação automática dos

centros corticais".

Em 1890, a hipnose experimental parecia uma antiguidade. Vemos um Charcot,

que é quase completamente desconhecido. Seguindo as proposições acerca da

personalidade de Ribot, ele se lança ao exame e à investigação sistemáticos acerca dos

casos de desdobramentos.

Tomemos por exemplo, o caso de Marguerite Dinot. Sobre base de memórias

diferentes, constitui duas personalidades distintas: a personalidade B, que não tem qualquer

informação sobre sua vida anterior a outubro de 1889, data em que sofreu suas primeiras

crises em decorrência de uma confissão que a espantou muito; e a personalidade A que tem

perfeito conhecimento de sua vida anterior, mas ignora tudo que sucedeu desde que caiu

enferma. Em seu estado B, apresenta signos somáticos de contratura, o que não apresenta

no estado A; por outro lado, no estado A, padece de uma perturbação a marcha que

desaparece no estado B. Uma observação importante é que apresenta um esboço de

ataque convulsivo no momento em que muda de um estado para outro.

Charcot toma esta manifestação como um ataque de histeria transformado, uma

extensão da terceira fase do ataque, ou seja, da fase das atitudes passionais, na qual, por

um sonambulismo espontâneo, a personalidade se desdobra. O desdobramento se faz

assim solidamente integrado ao sistema doutrinal já constituído.

Charcot observa, ainda, que os estados A e B desconhecem-se mutuamente,

mas seguem vinculados por um transfundo comum – as aquisições da infância e

adolescência, atos automáticos e linguagem, permanecem presentes em ambos os estados.

A questão que se impõe é saber como pode estabelecer-se uma divisão em personalidades

e persistir uma unidade global?

39 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Charcot irá dizer que esta personalidade segunda não é, senão, outra face da

mesma personalidade, desta singularidade ativa e projetiva da qual não é possível escapar.

Espantado com suas próprias elaborações sobre o desdobramento de personalidade,

acerca deste e de outros casos que acompanhou, Charcot tenta amenizar, para si mesmo, o

impacto de suas comunicações:

Não se alarmem demasiado, senhores, por estes estudos que penetram em plena psicologia. Não esqueçam que a psicologia pertence em certa medida ao terreno da medicina, e que em suma não é, ao menos em sua maior parte, outra coisa que a fisiologia das partes superiores ou nobres de cérebro. (CHARCOT, t. II, p. 272 apud GAUCHET, 2000:183)40

[Charcot] Não será certamente um homem com soluções para este mundo novo que despontava mais além de seu reino neurológico. Mas do interior de seu reino e dentro de seus limites, contribuiu mais do que ninguém para fazer surgir os problemas que permitiriam identificar e delimitar um mapa daquele outro domínio. Traçou com uma agudeza sem igual as duas linhas de demarcação que separam o conhecido do desconhecido: demarcação de um domínio interior onde o mundo exterior não conta nem pesa senão através das representações que o sujeito forma dele, e no interior deste interior, demarcação de uma ordem de causalidade psíquica distinta da causalidade fisiológica, pese a que esta seja seu suporte. (GAUCHET, 2000, p. 156)41

Charcot, até o final de sua vida, tentou manter a crença na neuropatologia.

Entretanto, segundo Gauchet, em seus últimos escritos, como nos comentários acerca do

caso Emma Dutemple que vinha sendo atendido por Janet, é possível perceber a distância

percorrida e o ponto radical de mudança no qual se encontrava – indicava estar a ponto de

dar o salto do argumento neurológico ao argumento psicológico.

Charcot cumprimenta Janet pelo tratamento "puramente psíquico" que este

utilizou para restabelecer a paciente: unicamente através da sugestão, Janet reduz a

potência emotiva da cena desencadeante do quadro, restabelecendo a memória da

paciente, que padecia de uma "desagregação mental".

Também, em sua correspondência com Freud, em carta de 26 de outubro de

1888, ao referir-se sobre o tratamento da Sra. Cacilie42, Charcot lhe recomenda: “Mas, repito

o que tinha dito: é psiquicamente que se deve agir, como você bem compreendeu, e é

dessa maneira que se pode ser útil nesse caso” (CHARCOT, [s.d.], p. 20)43, o que mostra

40 Tradução livre do espanhol. 41 Tradução livre do espanhol. 42 Paciente de Freud encaminhada a Charcot. 43 Segundo Jeffrey Masson, na casa de Freud, em Maresfield Gardens, Londres, havia sete cartas não publicadas de Charcot a Freud (escritas entre 1888 a 1892) – ([s.d.], p. 20).

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que havia em Charcot algum grau de receptividade às idéias de Freud, acerca dos

componentes psíquicos da histeria.

Não houve tempo para esse salto. Do ponto onde ficou, podemos dizer, no meio

do caminho, Charcot deu origem a uma descendência dupla e oposta – aquela que, com

Babinski e a neurologia desmembraria sua concepção da histeria, representada hoje pelo

CID-10 e DSM-IV, e no outro pólo, Freud e Janet, numa posição absolutamente contrária,

instaurariam a psicologia que reafirmaria a histeria em uma vertente absolutamente

psíquica. (ROUDINESCO, 1988, p. 228)

2.3 APRESENTAÇÕES DE CHARCOT: UM CAPÍTULO À PARTE

"Poder reproduzir um estado patológico é a perfeição, porque parece

que se segura a teoria quando se tem nas mãos o meio de reproduzir

os fenômenos mórbidos" (CHARCOT apud ALLOUCH, 1995, p. 46).

2.3.1 Seu caráter visual

Mas, e quanto às famosas apresentações de Charcot?

Bem, fazer esse percurso por sua obra nos dá, num primeiro momento, a

compreensão de que seu trabalho se estendeu muito além da prática da apresentação, à

qual sua fama parece tender a reduzi-lo.

Ao contrário, a apresentação era, para Charcot, mais uma das técnicas e

estratégias que faziam parte de seu arsenal clínico e de ensino.

Entretanto, certamente, a fama de suas apresentações não se deu sem motivo.

Como veremos, há algumas razões para tamanho destaque. Podemos apontar, como uma

primeira causa, o estilo pessoal do mestre.

Como disse Freud, um "visuel":

Podia-se ouvi-lo dizer que a maior satisfação humana era ver alguma coisa nova – isto é, reconhecê-la como nova; insistia sobre a dificuldade e importância dessa espécie de "visão". Poderia indagar por que na medicina as pessoas enxergam apenas o que tinham aprendido a ver? (FREUD [1893]1976, p. 22)

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Vemos que, para Charcot, a visão não era uma função qualquer. Pelo contrário,

era a porta da compreensão. Segundo Freud, Charcot explicava que, para compreender as

coisas, ele as olhava, dia após dia, de forma que, pela repetição, conseguia aprofundar sua

impressão, até que, subitamente, a compreensão raiava nele. (Freud [1893]1976, p. 22)

Segundo Trillat, essa característica visual já era presente em sua infância. Por

sua sensibilidade artística, poderia ter sido pintor ou arquiteto, mas como ele manifestava

igual gosto pela leitura, seu pai o encaminhou à medicina. Entretanto, Charcot levava

consigo esse gosto pelo desenho e saberá explorá-lo mais tarde. (Trillat, 1991, p. 137)

Seja nas suas pesquisas clínicas, seja nas formas de transmissão, Charcot

sempre procurou transformar o saber em algo que se pudesse ver. Segundo Elisabeth

Roudinesco, ele foi um dos primeiros a adotar aparelhos de projeção durante suas

conferências, além de documentar seus estudos através de esboços e fotografias.

“Sustentava a existência de uma tipologia da percepção humana, baseada numa

classificação que opunha os auditivos aos visuais”. Ele mesmo era muito silencioso,

preferindo o olhar à fala. (ROUDINESCO, 1988, p. 31)

Sempre na ordem do visual, também seus exames e investigações clínicas eram

sustentados no olhar meticuloso – fazia, assim, a descrição detalhada e a observação

comparativa dos fenômenos.

E esta é uma das razões pelas quais as aulas de Charcot vão se tornar célebres.

Marcadas por seu estilo pessoal, ele se preocupava em cativar o olhar do público, dando às

suas aulas um aspecto cênico, para extrair delas o melhor efeito. Podemos dizer que, ainda

que a teatralidade seja uma marca da histeria, esta era também uma característica própria

de Charcot, tanto que – para causar sua audiência, usava frases de efeito, estratégias para

colocar em suspense, surpreender e implicar a assistência, permitindo a participação do

público e implicando-o enquanto testemunha. Isso sem falar no extremo cuidado com que

preparava suas aulas.

Gladys Swain, a partir de seus achados nos arquivos pessoais de Charcot,

revela que cada aula era elaborada a partir de um acúmulo de observações, do

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levantamento das últimas publicações disponíveis, sendo as mesmas cuidadosamente

analisadas, chegando, por fim, à sua redação. Cada aula podia ser redigida até três vezes:

começando, habitualmente, por um plano simples, seguido por um texto desenvolvido e,

finalmente, um novo texto corrigido e modificado. (Swain, 2000, p. 17) Como ilustração, um,

dois ou mais pacientes, para demonstrar os fenômenos, marcar as diferenças, apresentar as

similaridades: “O paroxismo dessa forma de apresentação foi o episódio dos ‘pacientes com

tremores, que foram paramentados com plumas, cujas oscilações acentuavam as diversas

variedades dos movimentos parksonianos’” (BRAUD apud QUINET, 2000, p. 85).

Como exaltou Freud, “Cada uma de suas aulas era uma pequena obra de arte

na construção e na composição; era formalmente perfeita e tão marcante, que pelo resto do

dia não conseguíamos expulsar de nossos ouvidos o som de suas palavras, nem de nossas

mentes a idéia que ele demonstrara” (FREUD [1893]1976, p. 28)

Os primeiros relatos de aulas de Charcot datam de 1866, ou seja, num período

em que se dedicava estritamente à neurologia. Mesmo nesse período, Charcot já esmerava

em suas aulas. Segundo Antônio Quinet, como inovação, Charcot deslocou para o seu

consultório a habitual corrida de leitos. Era lá, e posteriormente no anfiteatro, que Charcot,

diante dos assistentes, examinava os pacientes44. (Quinet, 2005, p. 11)

Entretanto, se o caráter visual de suas aulas sempre foi marcante, seu aspecto

teatral, pelo qual foi posteriormente condenado, só começou a tomar essa forma a partir de

1877, com o início das investigações com a metaloscopia, quando passou de uma atitude de

observação e descrição, para uma experimentação ativa.

Colaborava para isso, o fato de que as experimentações exigiam, cada vez mais,

a presença das pacientes histéricas. Acrescentamos a isso o uso declarado da hipnose

(1978). Aí, sim, temos uma verdadeira "subversão teatral" – a novidade dos fenômenos, a

necessidade de dar provas da veracidade da histeria, o uso de práticas polêmicas, a entrada

num campo desconhecido. Todos esses aspectos levavam Charcot a uma postura cada vez

mais rigorosa, cuidadosa e meticulosa. Tanto que um dos momentos mais marcados por

44 Para entendermos essa inovação, é preciso nos lembrarmos de que Charcot não era psiquiatra, portanto, não havia sido formado na lógica da prova de realidade, produzida sob a forma do interrogatório.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

essa teatralidade foi, justamente, 1885, momento em que Charcot investigava o mecanismo

psíquico do traumatismo presente na histeria masculina.

Vemos, assim, que um motivo que faz de suas apresentações pequenos

espetáculos, foi o efeito do próprio produto de suas investigações. Afinal, com o avanço em

sua apreensão da histeria, ele conseguia tanto produzir quanto eliminar uma variedade de

fenômenos, em si, bastante incomuns.

Entretanto, os resultados obtidos causariam polêmica e oposição: os ingleses45

criticavam as condições das experimentações, alegando que as enfermas viam e ouviam –

viam o que se lhes aplicava e escutavam o que era dito, produzindo assim, os fenômenos

esperados. Bernheim46, da escola de Nancy, interrogava a existência mesma da histeria,

acusando Charcot de tê-la inventado. Reduz os sintomas histéricos a produtos da sugestão,

e acusa suas histéricas de simulação. (Trillat, 1991, p. 179)

Não que Charcot fosse ingênuo quanto ao risco da simulação. Pelo contrário,

desde seus primeiros encontros com a histeria (1870-1872) já se mostrava atento ao

problema:

A simulação? A encontramos a cada passo na história da histeria, e às vezes nos surpreendemos admirando a astúcia, a sagacidade e a tenacidade inauditas que as mulheres afetadas pela grande neurose empregam para enganar... sobretudo quando a vítima da impostura é um médico. (CHARCOT apud SWAIN, 2000, p. 48)47

Assim, sempre procurou tomar todas as precauções, a fim de tornar os dados

inquestionáveis, como, por exemplo, truques técnicos (ímãs falsos, eletrodos sem

alimentação de corrente elétrica), para confundir eventuais simuladoras.

Em 1905, Blanche Wittmann48, em uma entrevista, confirma a veracidade dos

fenômenos. Interrogada sobre a questão da simulação, respondeu:

“Se dormíamos, ou tínhamos crises era porque não podíamos fazer de outra forma. Aliás, não era nada agradável. Simulação! Você acha que era fácil enganar M. Charcot? Sim, havia as farsantes que tentavam: ele lhes lançava um olhar e dizia: "fique tranqüila". (SIGNORET,1983, p. 693)49

45 Para os autores ingleses, como Hugues Bennet e Hack Tuke, o efeito da desaparição dos sintomas, provocados pela metaloscopia, não seria decorrente da ação física, mas da ação psicológica – uma espécie de auto-sugestão, que eles denominaram expectant attention (TRILLAT, 1991, p. 150). 46 Hyppolite Bernheim (1837-1919), da Escola de Nancy – feroz opositor de Charcot. Afirma que todas as produções da histeria são produto da sugestão. 47 Tradução livre do espanhol. 48 Conf. p. 75. 49 Tradução livre do francês.

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Entretanto, podemos dizer que a maior batalha que Charcot enfrentava não era

com seus opositores, mas consigo mesmo. Afinal, os resultados insistiam em apontar para

um rumo inesperado, talvez melhor, indesejado, do psiquismo. Podemos ver, através do

cuidado que se põe em detalhar os casos que apresenta, onde parece buscar uma forma de

assegurar-se, fazendo e refazendo as investigações, colocando à prova para si mesmo.

2.3.2 Apresentação de Charcot X Interrogatório clássico

Um ponto importante que devemos marcar é a diferença da função da

apresentação de Charcot para a apresentação – interrogatório – realizada pela psiquiatria.

Como vimos, na tradição psiquiátrica, as apresentações eram um importante

recurso didático, mas também uma forma de dar, através das respostas verbais do paciente,

provas de realidade a uma doença que não se prestava ao diagnóstico diferencial, ao

diagnóstico localizado no corpo.

Entretanto, segundo Foucault, na neurologia, a prova de realidade não era

necessária. Em lugar da fala do paciente, o diagnóstico diferencial era feito como na

medicina orgânica – não no sentido anatomopatológico, mas através das respostas do corpo

do paciente. Assim, Charcot neurologista não irá se utilizar do interrogatório, como na

psiquiatria clássica. Ao contrário, seu pedido à histérica é que se cale: “Obedeça minhas

ordens, cale-se e seu corpo responderá” (FOUCAULT, 2005, p. 349). Uma resposta do

corpo do sujeito, decifrável, clinicamente, e, portanto, passível de ser submetida ao exame

diferencial.

Tomemos um fragmento de uma apresentação, o que nos permitirá perceber

como se davam suas apresentações50:

Charcot: Aqui está uma paralisia artificial do braço absolutamente semelhante a urna paralisia natural. Esta mulher não sabe de jeito nenhum onde está o braço.(Dirigindo-se à doente, que é apresentada em estado de estado de hipnose): Feche os olhos e tente segurar o braço paralisado. A doente: Não sei onde ele está, isso me irrita. Charcot: Ela não sente nada: eu poderia torcer, até quebrar seu braço antes de lhe despertar a sensibilidade. Mas, como vêem, esses sujeitos não são obedientes.

50 Como uma referência interessante das apresentações de Charcot, é a cena retratada no filme Freud além da alma. Apesar de dar uma boa noção de como se davam as apresentações, é preciso notar que se trata de uma cena fictícia, que condensa num mesmo encontro, a presença de Freud (que esteve em Salpetrière em 1885) na cena do quadro de André Brouillet, no qual se vê Blanche desmaiada no colo do Dr. Babinski (1887).

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A doente: Oh, não. Charcot: Eles são difíceis de manejar, mas, no entanto, são bastante cordatos. Assim, perda do sentido muscular, perda completa da sensibilidade. Aí está a linha circular que separa a parte sensível da parte insensível. (À doente): Vamos, mexa os dedos. (A doente se entrega a manifestações de mau humor). Charcot: Ora, vamos, não mostre seu mau gênio A doente: Essa não! Espetam a gente e ainda se tem que ficar contente. Charcot: (Ao chefe da clínica) - Pode acordá-la O chefe da clínica: Pronto, ela está acordada Charcot: Quando nos acostumamos com esses sujeitos, sabemos utilizá-los. Elas têm uma história natural, essas histéricas. (CHARCOT apud ALLOUCH,1995, p. 37)

Assim, as apresentações de Charcot não foram marcadas pela fala histérica,

mas por sua movimentação, por sua atuação, que podia ser vista, que podia ser

comprovada pelo olhar – campo ao qual, como vimos, Charcot dava ênfase absoluta.

Outro aspecto diferencial do trabalho de Charcot é o que diz respeito à extração

da verdade. Retomando a referência de Foucault sobre as formas de produção de

conhecimento51, vemos que todo o trabalho de Charcot era de investigar a histeria

experimentando, demonstrando, estabelecendo leis, regularidades. Acreditava, portanto,

que, nas palavras de Foucault, procedia ao inquérito como forma de demonstração da

verdade. Todavia, o que vemos é que Charcot parece ficar no meio do caminho – entre o

inquérito e a prova de realidade, pois se demonstravam as leis e regularidade do quadro,

não obstante, fazia-o a partir da provocação da crise. Ou seja, Charcot demonstrava a

verdade da doença, mas a partir do artifício que produzia. Demonstrava, portanto, a partir de

um resultado obtido numa etapa precedente, esta totalmente calcada na provocação.

Estes são aspectos que fazem da apresentação de Charcot um capítulo único na

história das apresentações. E a eles podemos acrescentar dois outros aspectos, que

parecem, inclusive, articulados: a hipnose e a histeria. Mas não vamos nos deter nesse

ponto, afinal, foi sobre esse aspecto que nos debruçamos até aqui.

Em meio a tantas diferenças, temos, entretanto, um ponto de base que é comum

– na divisão dos saberes, todo saber está do lado do médico. É ele quem sabe sobre a

doença e é ele quem sabe sobre a paciente. Se a apresentação de Charcot diferencia-se do

interrogatório na sua forma final, com sua formatação de experimento científico, o fato é que

ambos se estabelecem sobre a mesma base – a apresentação era palco do confronto entre

51 Sobre o tema, conferir p. 33.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

médico e paciente, no qual o médico, vencedor, concretizava seu poder/saber sobre o

paciente.

Talvez em Charcot essa posição tenha sido ainda mais acentuada – haja vista

ser recorrente o uso de sua figura como sendo paradigmática do ponto crítico, do ápice do

abuso do poder do médico sobre o paciente.

Mas passemos ao aspecto formal das apresentações.

Em 1882, com o fim do ensino livre, Charcot introduziu algumas novidades

importantes em sua forma de transmissão. Passou a proferir duas categorias bem distintas

de aula: as aulas dedicadas ao ensino clínico magistral – aulas da sexta-feira, e as

conferências improvisadas, as famosas Leçons du Mardi.

Ambas as classes contavam com a apresentação de pacientes. Entretanto, a

primeira era feita no estilo tradicional: mantinha um caráter de rigor, na qual os pacientes

apresentados já eram conhecidos, cujos casos já haviam sido previamente estudados, tendo

por objetivo o ensino formal. Aos pacientes, cabia ilustrar, dar provas como um quadro vivo

da disciplina lecionada. Este encontro era aberto aos ouvintes, médicos e leigos

(estudantes, escritores e artistas), interessados em acompanhar as novas descobertas e em

se manter em dia com os novos estudos e questões.

Em contrapartida, as aulas da terça-feira foram, certamente, efeito da ousadia e

do espírito investigador de Charcot. Eram dedicadas, exclusivamente, aos médicos do

serviço, mas não se tratava de um ensino formal, exaustivamente preparado. Ao contrário,

tinha um caráter de espontaneidade, pois não seguia nenhuma preparação prévia – os

pacientes apresentados eram desconhecidos para Charcot – seus assistentes os escolhiam

dentre os pacientes do ambulatório de consultation externe, por se tratarem de casos típicos

ou difíceis. Assim, em vez do ensino dogmático, tinha-se um espaço aberto ao encontro com

o inusitado, com o inesperado da clínica. Nesses encontros, Charcot se colocava como

exemplo, demonstrando na prática como realizar um diagnóstico, um prognóstico e a

terapêutica.

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Freud, no prefácio à tradução alemã das Leçons du Mardi, vai ressaltar o

"encanto peculiar" dessas conferências: era a oportunidade de acompanhar Charcot nos

caminhos de seu raciocínio, pois ele se conduzia diante de seu auditório “tal como

habitualmente só o faz em sua clínica particular, exceto quanto ao detalhe de que ele pensa

em voz alta e permite que os ouvintes participem do rumo de suas conjecturas e

investigações” (FREUD [1892]1977, p. 192)

Mas ainda mais! Nestes encontros, produzia um espaço aberto ao ‘não saber’,

no qual apresentava suas dúvidas e hesitações, além de incitar a participação de seus

alunos. Freud descreve:

“Lá ele levava casos que lhe eram completamente desconhecidos; expunha-se a todas as casualidades de um exame, a todos os erros de uma primeira investigação; nessa ocasião, poria de lado sua autoridade e admitiria – em um caso, que não podia chegar a qualquer diagnóstico e, em outro, que havia sido enganado pelas aparências.” (FREUD [1893]1976, p. 29)

Um aspecto que me parece extremamente interessante, nessas lições de

Charcot, é o da transmissão. Para além da teoria, há a preocupação de transmitir um certo

jeito de se fazer, de operar com a clínica. É uma característica de tal forma marcante, que,

segundo Freud, Babinski teria dito, a respeito da publicação destes encontros, que isto se

justificaria apenas quanto à possibilidade de ampliar o círculo de discípulos e ouvintes,

porque, com relação ao conteúdo, a transcrição seria uma forma imperfeita de divulgação,

incapaz de substituir o efeito que esse ensino oral alcançava52.

Podemos, ainda, marcar que, para além do objetivo prático, essas aulas tinham

como efeito, “manter a abertura heurística do espírito de investigação” (SWAIN, 2000, p.

70)53.

Mas é importante lembrarmos que, em ambas as classes de apresentação, era o

corpo da histérica que estava em questão. Era ele que deveria dar provas da doença.

Absolutamente distante da idéia do interrogatório, a história de vida era levantada apenas

para verificar indícios de situações onde poderia ter ocorrido o trauma, ou seja, apenas para

compor o saber do médico sobre o paciente.

52 Sabe-se que, pelo menos as lições de 1887-1888, foram transcritas e publicadas na França e na Alemanha. 53 Tradução livre do espanhol.

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2.3.3 Sobre os efeitos das apresentações de Charcot

Talvez agora possamos voltar às questões inicias sobre os efeitos das

apresentações de paciente realizadas por Charcot.

Após esse percurso, fica claro por que razão suas apresentações eram referidas

para indicar o ápice do poderio médico sobre seus enfermos. Entretanto, muito se produziu

a partir dessa uma cena "visual".

Não nos cabe decidir sobre a veracidade dos fenômenos apresentados por suas

histéricas, mas por outro lado, não há dúvidas de que, longe de um exibicionismo vazio, de

uma exibição de um poder de domínio e manipulação, o trabalho de Charcot, ainda que

talvez equivocado, se sustentava em uma pesquisa séria, meticulosa e cujo legado teve

enorme importância para o conhecimento da histeria.

Como pudemos acompanhar, houve aí, uma importante produção de Charcot,

afinal, pela primeira vez, alguém imprimiu ordem e clareza a um terreno até então

totalmente obscuro e confuso. Inicialmente, ele delineou a configuração típica da "grande

histeria", após o que conseguiu localizar sobre a histeria uma série de sintomas que, até

então, não eram compreendidos nem classificados. Ao realizar uma descrição completa de

seus fenômenos, conseguiu atribuir-lhe uma sintomatologia que, embora extremamente

multiforme, permitia reconhecer os sintomas que possibilitassem um diagnóstico. Tornou

patente que ali imperava uma ordem própria e definida, demonstrou que tinha suas próprias

leis e regularidades, e ainda mais, possibilitando pensar seus mecanismos, como no caso

histeria por traumatismo. Ao reduzir a conexão entre a neurose e o sistema genital,

possibilitou a generalização da histeria para ambos os sexos, e ainda abriu as perspectivas

da subjetivação. Como nos disse Freud: "A histeria foi retirada do caos das neuroses!"

(FREUD [1886]1977, p. 43).

Podemos dizer, também, que o trabalho de Charcot transbordou ecos na cultura

– é o que podemos ver, por exemplo, na produção literária de Léon Daudet54, Guy de

54 Conf. nota 10, p. 51.

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Maupassant55, na pintura de André Brouillet, e mesmo a obra de Freud, que sempre

reconheceu, no encontro com Charcot, o ponto de partida de seu trabalho.

Entretanto, o que podemos dizer em relação aos pacientes?

Infelizmente, a respeito das apresentações de Charcot, nos deparamos com a

mesma dificuldade encontrada em relação ao uso da apresentação na psiquiatria clássica:

não há estudos, elaborações ou mesmo observações acerca do efeito produzido no

paciente em decorrência da apresentação propriamente dita.

Todavia, uma coisa podemos supor – pelo menos no que diz respeito aos

pacientes do consultation externe – ao se endereçarem à Salpêtrière, eles iam justamente

em busca do mestre. Ao contrário da mitologia que circula, Swain e Gauchet vão nos dizer,

várias vezes, das preocupações clínicas e terapêuticas de Charcot, como uma das diretrizes

de seu trabalho. Responsável por um hospital destinado a pacientes considerados

incuráveis, Charcot haveria tomado como orientação de trabalho, que se não se pode

esperar a cura, pode-se minimamente procurar meios de aliviar seus sofrimentos. Sua fama,

que alcançava desde os nobres ao público geral, certamente não era unicamente por seus

méritos científicos, mas antes, por seu discernimento clínico e por sua infatigável busca de

meios de viabilizar algum tratamento.

Assim, mesmo que não haja relatos sobre o efeito das apresentações, podemos

supor que algum beneficio estes pacientes retiravam, pois, além do desejado encontro com

Charcot, seu caso era submetido a um exame minucioso, cuidadoso, podemos mesmo

dizer, exemplar, com um investimento e dedicação que dificilmente poderiam receber em

uma outra situação.

Com relação às pacientes crônicas, o que temos são alguns fatos curiosos.

Justine Etcheverry, por exemplo. Ela ficou tanto tempo em Salpêtrière, que

serviu de ilustração para Charcot, em mais de uma fase de seus estudos. Apresentada pela

primeira vez em 1870, ilustrava as descobertas sobre a contratura histérica, como uma entre

55 Guy de Maupassant, (1850-1893) autor de La Horla, segundo Elisabeth Roudinesco, “um dos mais belos relatos jamais escritos sobre a vivência íntima da loucura”. Roudinesco nos revela ainda que há uma primeira versão menos conhecida do Horla, que é, na realidade, o relato de uma apresentação de paciente, inspirado nas experiências em Salpêtrière. (ROUDINESCO, 1988, p. 73-78)

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

outros tipos de contraturas – uma investigação absolutamente neurológica. Em 1872, volta à

cena – agora para ilustrar, em três aulas, os principais sintomas da histeria: anúria histérica,

hemianestesia e histero-epilepsia. Além das apresentações, Justine era constantemente

vigiada, dia e noite – tal procedimento era uma forma de se precaver contra a simulação.

Mais curiosa é a última aula ilustrada por Justine, em 1875, quando vai exemplificar a cura

súbita. Podemos dizer que Justine não apenas sobreviveu aos métodos de Charcot, como

se curou e ainda mais: após sua cura, permaneceu em Salpêtrière como enfermeira.

Blanche Wittmann – chegou em Salpêtrière maio de 1877. Provavelmente, a

mais conhecida das histéricas de Salpêtrière, Blanche foi modelo para vários desenhos de

Paul Richer, é a musa do quadro de Brouillet, e referenciada na obra de Daudet. Foi

considerada a rainha das histéricas. Além de sua natureza facilmente hipnotizável –

prestava-se a demonstrações dos três estágios da hipnose, ela possibilitou a investigação

de outros inúmeros fenômenos histéricos – ataques de histero-epilepsia pela compressão

das zonas histerógenas, todos os estágios da grande crise, e ainda foi submetida a diversas

terapêuticas. Há ainda há suposição de que apresentasse o fenômeno de dupla

personalidade: citada ora como Blanche, ora Marie, W, ou Wittmann – Marie e/ou Blanche

Wittmann. Tal equívoco foi decorrente de um prenome duplo, ou teria Blanche, dupla

personalidade?

Como Justine, Blanche também se curou subitamente, retornando a Salpêtrière

como funcionária do laboratório de radiologia, vindo a falecer de câncer.

Outro caso, este, mal sucedido, é de Augustine. Os primeiros ataques de

Augustine ocorreram semanas após ter sido violentada pelo patrão, aos 13 anos e meio de

idade. Chega em Salpêtrière em 1875. Durante as lições clínicas de Charcot, era levada a

repetir a cena da violação, na qual se contorcia, representando os papéis da vítima e do

agressor. Segundo relato de Didi-Huberman56, numa determinada apresentação, Charcot

produziu uma contratura na língua e na laringe de Augustine. Entretanto, a contratura da

56 Extraído do livro de Maud Mannoni, que faz referência ao livro Invention de l’hysterie, de Didi-Huberman. Esta obra é freqüentemente citada nos trabalhos sobre Charcot. Segundo Elisabeth Roudinesco, este livro veicula uma imagem simplista de um Charcot "manipulador". (ROUDINESCO, 1988, p. 448)

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laringe permaneceu por dias, mesmo após a aplicação das diversas terapêuticas

conhecidas. Em outra apresentação, ela reconheceu seu violador na assistência – resultado:

154 crises num único dia. “Esgotada, Augustine recupera a fala e lança estas palavras ao

médico: ‘Você me disse que me curaria, me disse que faria de mim outra pessoa. Você

queria que eu fracassasse". Dirá, ainda, mais tarde: "Você faz de mim o que bem entende...

Não adianta dizer sim, eu digo não.” Depois desse episódio, o interesse por ela desaparece.

Um dia, rasga sua camisa de força e foge de Salpêtrière disfarçada de homem. (MANNONI,

1989, p. 15).

Mais um caso catastrófico, citado por Foucault, foi Habil, que “em dezembro de

1885, teve duas séries de acessos: o primeiro, que durou 13 dias e no qual se contaram

4.506 acessos, e o segundo que se prolongou 14 dias com um total de 17.083 acessos”

(CHARCOT apud FOUCAULT, 2005, p. 361)57.

Não há dúvida de que, por mais que a histeria possa ter tirado proveito do

encontro com Charcot, suas histéricas sentiram o peso da objetificação à qual foram

submetidas.

Segundo leitura de Maud Mannoni, as “curas” na época de Charcot, pareciam

resultar de um excesso da demanda do médico, que acabava por levar o paciente à recusa

de encarnar por mais tempo o papel de ator e mártir de seus sintomas.

Realmente, é uma pena que os efeitos da apresentação não tenham sido

investigados, pois o número de pacientes levados a público é bastante significativo.

Segundo Charcot, nos anos de 1770-1772, teriam, internadas em seu serviço, apenas cinco

pacientes histéricas. Entretanto, segundo Swain, fazendo uma revisão de seus trabalhos,

nesse mesmo período, ele evoca 12 ou 13 casos. Em 1877, seu trabalho repousa sobre

cerca de 30 ou 34. E, a partir de 1881, com a abertura do ambulatório, este número sobe

para cerca de 200 novos casos.

Esses pacientes eram levados à apresentação por motivos diversos,

dependendo do contexto da aula. Assim, quando Charcot queria comprovar a generalidade

57 Tradução livre do espanhol.

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de um quadro, levava tantos pacientes quanto possível, a exemplo do estudo sobre a

influência do ovário em uma forma de histeria, ele fez passar diante de seu público, cinco

enfermas acometidas do mesmo mal. Também, em uma de suas mais famosas aulas em

1885, quando em uma única aula, apresentou seis casos de histeria masculina, todos

acometidos de traumatismo histérico. Poderíamos ter também o inverso – uma mesma

paciente ser protagonista de diversas aulas. Este foi o caso de Greuzard, uma paciente

nova na instituição, que, em função dos estudos sobre a paralisia histérica, participou de um

ciclo de dez aulas, e também o caso de Pinaud, um jovem histérico que, segundo Freud, foi

tema dos cursos de Charcot por cerca de três meses. Ou ainda casos, como Pauline, que,

após ser submetida por meses a experimentações, participa de uma única apresentação, na

qual é posta a coroar uma descoberta – a produção de contraturas artificiais. Devemos nos

lembrar também, de pacientes como Blanche, que era constantemente convocada, pela

facilidade com que produzia os sintomas a serem demonstrados.

Com o objetivo de legitimar suas descobertas, Charcot utilizava as mais variadas

estratégias. Além do famoso episódio das plumas, já citado, vamos encontrar recursos

inéditos: ao apresentar um paciente com aspectos físicos de uma coxalgia orgânica, após

demonstrar cuidadosamente tais características, convida a participar da cena um modelo;

um “indivíduo sadio, habituado a posar para pintores”. Charcot pede ao modelo que observe

e imite o paciente. “O olhar dos assistentes vai assim poder captar que a deformação das

pregas das nádegas, idêntica no doente e no modelo, liga-se unicamente a posição anormal

da bacia” (ALLOUCH, 1995, p. 53). Charcot segue o exame, mostrando em seguida os

sinais de hemianestesia e hiprexitabilidade, comprovando o diagnóstico de histeria.

Enfim, quando Charcot é criticado por expor seus pacientes como objetos de

verificação científica, não há como negar. Efetivamente, quem entrava na cena, era antes o

sintoma, não sendo o paciente, mais do que aquele que o (su)portava. Da sua fala e de sua

história, só interessavam os dados necessários para a explicação do quadro. Quanto à sua

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subjetividade, estava completamente excluída58. Entretanto, talvez seja mais justo dizer que

este era um aspecto da ideologia científica, ideologia da qual Charcot era adepto, mas não o

criador.

Então, quando é acusado de objetificar seus pacientes, de colocá-los em

exposição, de atentar contra sua dignidade, ou de promover o progresso da ciência às

custas do sofrimento de seus pacientes, cabe interrogar se essas críticas não seriam mais

bem endereçadas, se direcionadas, não a Charcot, mas ao método científico.

Contudo, há críticas que realmente interpelam aspectos próprios ao trabalho de

Charcot, como, por exemplo, o abuso de poder. Tomando como referência a apresentação

realizada pela psiquiatria clássica, poderíamos supor que a posição de Charcot seguia a

mesma lógica. Entretanto, é preciso ressaltar uma diferença: a figura do médico clássico

era, em si, uma estratégia de tratamento, seu exercício de poder era uma intervenção

clínica. Já em Charcot, o peso de sua presença durante a apresentação, não tinha essa

função de tratamento.

Também foi dirigida a ele a acusação de ter inventado a histeria. Crença

reforçada pela denúncia da estranha desaparição desta, desde a morte do mestre.

Certamente, não precisamos provar aqui, que Charcot não inventou a histeria –

sua existência, desde a Antiguidade, é claramente reconhecida59, o que ele fez foi se

dedicar a apreender seus sintomas.

Por outro lado, fica a questão – por que os quadros descritos por ele

desapareceram?

58 É certo que, nas brechas, a histérica trazia os aspectos subjetivos. Nos "delírios" e movimentos precipitava sua vida sexual. Entretanto, Charcot, que era sempre tão atento a tudo, a cada detalhe de expressão, de movimento, nesse caso, preferia não, ver, não comentar. Como ilustração, tomemos uma descrição de Bourneville, extraída por Foucault, da Iconographie Photographique de la Salpêtrière: “O sr. Charcot atende Geneviève, afetada de uma contratura histérica. A mulher está sobre uma maca; os residentes e os chefes de clínica a haviam hipnotizado previamente. Faz sua grande crise histérica. Charcot, segundo sua técnica, mostra que a hipnose pode, não só provocar, induzir fenômenos histéricos, mas também detê-los; toma seu bastão, apóia-o sobre o ventre da enferma, exatamente sobre o ovário, e a crise, de acordo com a tradição do argumento, é suspensa. Charcot retira o bastão; a crise recomeça; período tônico, período clônico delírio e, em meio a este, Geneviève exclama: "Camille! Camille! Beije-me! Dá-me seu rabo!" O professor despacha a mulher, cujo delírio prossegue” (CHARCOT apud FOUCAULT, 2005, p. 379). (Tradução livre do espanhol) Sobre esta questão, conferir também nota 37, p. 72. 59 Com a intenção de comprovar que a histeria não foi criada pela ciência, mas que sempre existiu em todos os lugares e épocas, publicou com P. Richer um livro intitulado Lês démoniaques dan l’art (1887), ilustrado com gravuras de extáticos e epilépticos. Paul Richer era médico, desenhista e escultor. Colaborador íntimo de Charcot, registrava suas aulas e achados em croquis.

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Afim de responder tal questão, poderíamos retornar ao momento mesmo em que

Charcot se encontra com as histéricas. Estas estavam, não apenas nosologicamente, mas

literalmente, misturadas com a epilepsia. Como diria Pierre Marie60, ambas encontrava-se

em total promiscuidade. Na descrição de Elisabeth Roudinesco, “colocadas com os

epilépticos, as histéricas cuidavam de suas companheiras, simulando maravilhosamente as

doenças delas” (ROUDINESCO, 1988, p. 17).

Se esta forma, de histero-epilepsia não se apresenta mais, não seria antes o

êxito do trabalho de Charcot de diferenciá-las, separá-las, não cabendo mais à histérica este

tipo de imitação? Bem, quanto a Janet61, ele diria que não encontramos mais a paralisia, não

porque não exista, mas porque não a buscamos mais. Posição que encaixa com a visão

crítica de Daudet62, que anuncia que bastaríamos que buscássemos estes fenômenos para

que aparecessem (Roudinesco, 1988, p. 206).

Mas, talvez pudéssemos pensar uma outra hipótese. Quando Charcot se

aventurou a olhar para a histeria, fê-lo em uma época na qual, segundo Trillat, a mulher

encontrava-se mergulhada na inexistência, na inferioridade, no anonimato no qual o período

napoleônico a havia colocado. Havia pouco, a ciência e a filosofia começaram a se

interrogar pela natureza da mulher, por seu papel na sexualidade, seu direito à satisfação,

ao orgasmo (Trillat, 1991, p. 108), numa época na qual a mulher não tinha voz, não tinha

expressão.

Charcot deu voz ao corpo da histérica, deu um lugar para ela se manifestar. E

esta, como uma "boa histérica", respondeu: “Pois bem, se você quer que meu corpo fale,

meu corpo falará! E lhe prometo que nas respostas que der, haverá muito mais verdade do

que você pode imaginar” (FOUCAULT, 2005, p. 349).

Sem ter a intenção, ele revelou a importância do público no sintoma histérico.

Como nos diz Antônio Quinet, “A histeria não existe sem a mostração, o dar-a-ver em

espetáculo, a publicação da intimidade” Quando Charcot a “colocou no palco da ciência

60 Pierre Marie (1853-1940), discípulo de Charcot, teve a honra de ser escolhido como secretário particular do mestre. 61 Pierre Janet (1859-1947), filósofo, psicólogo. Aluno de Charcot, permanecerá fiel à hipnose e à histeria, mesmo após a morte de Charcot. 62 Conf. nota 11, p. 51.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

uma manifestação subjetiva coreografada no corpo que até então estava encoberta pelo

preconceito” (QUINET, 2005, p. 10), Charcot deu à histeria a oportunidade de se mostrar.

Acusam Charcot de não ter visto o que estava diante de seus olhos. Acredito

que de fato ele viu. Era um sujeito “visual’ e viu para além da maioria. Mas não soube

escutar. Contudo, não o acusemos por isso – essa foi a função de Freud – nessa cena

visual, Freud soube escutar o que apontava para a "Outra Cena".

Freud ultrapassou os ensinamentos de Charcot, mas ao contrário de muitos,

reconheceu seu legado. Como ele mesmo disse, referindo-se mestre:

É inevitável que o avanço da ciência, na medida em que aumenta nosso conhecimento, deva ao mesmo tempo minimizar o valor de inúmeras coisas que Charcot nos ensinou; mas nem os tempos mutáveis nem as concepções mutáveis podem diminuir a reputação do homem que na França e em toda parte – estamos pranteando hoje. (FREUD [1893]1976, p. 34)

Esta situação a encontramos também com Lacan, que soube reconhecer o

legado do mestre na base daquilo que ele mesmo pode ir além. O mestre de Lacan, a quem

nos referimos, é Clérambault – o "último dos grandes psiquiatras clássicos".

Clérambault nos interessa, pois possui curiosas coincidências com Charcot.

Ambos, Charcot e Clérambault, não apenas foram os primeiros mestres dos dois maiores

nomes da psicanálise, Freud e Lacan, respectivamente, mas, também, dois grandes

mestres da apresentação.

Dois sujeitos reconhecidos por sua ênfase no olhar. O primeiro, ‘un visuel’, o

segundo, "olhos de águia". Ambos artistas a aplicaram sua habilidade em sua prática:

Charcot no caráter teatral, espetacular, que encantou seus discípulos, mas o condenou pelo

excesso. Clérambault, pelo contrário, com seu olhar agudo, penetrante, buscava o traço

mínimo, a precisão, que o aproximou da "manipulação".

Apesar de polêmicos e controversos, tanto Charcot quanto Clérambault

utilizaram-se do olhar para levar, um à neurologia, o outro à psiquiatria, ao seu limite. Limite

que Freud e Lacan souberam ultrapassar. Do outro lado da divisa – a psicanálise.

Antes, porém, de investigarmos a apresentação na psicanálise, faremos um

percurso pela trabalho de Clérambault – o “único mestre de Lacan em psiquiatria, e também

na arte da apresentação".

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

3 CLÉRAMBAULT, MESTRE DE LACAN

Durante os quatorze anos de seu reinado no Service de l’Infirmerie

Spéciale, Clérambault fascinou os que o cercavam pela elaboração de

uma obra inacabada e por uma prática clínica em que o culto do olhar

era levado a seu paroxismo. (ROUDINESCO, 1988, p. 123)

3.1 ANACRONISMO PARADOXAL

Clérambault1 é considerado o "último dos grandes clássicos", pois é

contemporâneo de um período de virada na história: a psiquiatria clássica que se iniciou

com Pinel, começava a se transformar na psiquiatria moderna. O que caracteriza esta época

é que, tanto na França quanto na Alemanha, as concepções clássicas, começavam a sofrer

influência das terias psíquicas de Freud e fenomenológicas de Jaspers. E foi nesse

momento em que se consolidavam os questionamentos ao constitucionalismo, antes

dominante, que Clérambault iniciava sua obra, sustentada nessa concepção decadente da

organogênese da psicose.

Em função dessa posição constitucionalista, Clérambault foi freqüentemente

taxado de anacrônico. Mas o que é surpreendente, é que se trata de um anacronismo

absolutamente paradoxal, pois, se está fora de seu tempo – obsoleto, antiquado,

ultrapassado no que diz respeito à organogênese – por outro lado, todos os argumentos de

que se utiliza para sustentar essa posição, antecipam para uma grande virada na

abordagem da psicose.

Nas palavras de Elisabeth Roudinesco:

Pensador anacrônico e marginal, Clérambault está simultaneamente atrasado em relação a seu tempo, já que privilegia um constitucionalismo estreito, em detrimento do dinamismo, e avançado em relação a seus contemporâneos, pois apreende a pertinência das teses estruturais a uma nova organização do saber. (ROUDINESCO, 1988, p. 123)

1 Gaëtan Gatian de Clérambault (1872-1934)

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De fato, até aquele momento, os psiquiatras davam ênfase aos fenômenos mais

exuberantes, mais aparentes, como as alucinações e os delírios: interessavam-se pelos

seus temas, tons afetivos e grau de sistematização. Clérambault rompeu com essa

perspectiva de objetivação dos comportamentos ou dos afetos. Como nos diz Viganò, a

modernidade de Clérambault consistia em demonstrar que, o que define uma entidade

clínica, não é o conteúdo, mas sim, a estrutura geral. (VIGANÒ, 1997, p. 39) Assim, ele

deslocou a questão do conteúdo do delírio para seu mecanismo de formação. Através da

descrição dos fenômenos, buscava perceber o estado mais próximo de seu nascimento, em

sua forma mais pura. Ou seja, investigava, antes, os sintomas iniciais, sutis, do que a trama

delirante que considerava secundária.

Mas há ainda um outro aspecto que faz de Clérambault essa figura polêmica e

anacrônica. Numa época em que a preocupação com o tratamento passava para o primeiro

plano, Clérambault pertenceu a uma categoria de psiquiatras que acreditava que a missão

da psiquiatria era o encarceramento, recusando qualquer reforma em matéria de

assistência.

Para pensarmos sobre essa intrigante posição de Clérambault, a um só tempo

defasado e adiantado em relação ao seu tempo, podemos recorrer a algumas

particularidades tanto de seu estilo pessoal, quanto de seu trabalho.

Com relação ao primeiro aspecto, Clérambault era um artista, reconhecido por

seu olhar agudo, observador, interessado nas imagens e formas. Com relação ao trabalho,

ele era chefe da Enfermaria Especial da Prefeitura de Polícia2. Na verdade, em função do

posto que ocupava, realmente seu trabalho se aproximava muito mais da manutenção da

ordem social do que do tratamento. Seu trabalho consistia em decidir o encaminhamento, e

não em tratar. Assim, como nos diz Girard, "quase uma caricatura", Clérambault

desempenhou o arquétipo do psiquiatra garantidor e guardião da ordem estabelecida, cuja

função era assinalar e internar os loucos perigosos. (GIRARD, 1993, p. 14).

2 "Enfermaria Especial" - Serviço de Psiquiatria ligado à Prefeitura de Polícia de Paris, fundado em 1872, no qual Clérambault trabalhou desde 1920 até o ano de sua morte, 1934.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Ambas as particularidades tiveram uma importante incidência sobre a produção

de Clérambault. Como veremos a seguir, ter como observatório um espaço como a

Enfermaria Especial possibilitou-lhe o acesso a estados da psicose bastante incomuns.

Aspecto que, aliado à liberdade de poder investigar sem se ocupar do tratamento, e também

ao seu estilo observador, minucioso e detalhista, permitiu a Clérambault dar valiosas

contribuições à psiquiatria. Segundo Lacan, Clérambault foi o verdadeiro renovador do saber

psiquiátrico de sua época. (Roudinesco, 1994, p. 117).

É uma obra que, independentemente de suas visadas teóricas, tem um valor clínico concreto - é considerável o número das síndromes clínicas que foram assinaladas por Clérambault de maneira completamente original e que desde então se acham integradas ao patrimônio da experiência psiquiátrica. Ele trouxe coisas preciosas nunca vistas antes dele e jamais retomadas depois, falo de seus estudos das psicoses determinadas pelos tóxicos. (Lacan [1955-1956] 1992, p. 14)

3.2 PARTICULARIDADES

3.2.1 O olhar do artista

Durante a sua vida militar, Clérambault foi enviado para Marrocos. Ele, que,

desde a infância, era apaixonado pelas artes3 e pelas letras, encantou-se pela cultura árabe,

especialmente, pela vestimenta de suas mulheres.

Registrou sua paixão em inúmeras fotografias.4 Mas seu olhar agudo e original

não se limitou à imagem. Clérambault se interessou pela arte mesma do drapeado,

dedicando-se à investigação das múltiplas modalidades e técnicas de atar os tecidos e de

fazê-los deslizar pelo corpo. Passou, assim, os anos da Grande Guerra, fabricando

figurinhas de cera vestidas com tecido.

Através da imagem que registrava fotograficamente e produzia com seus

manequins, seu olhar penetrava, atravessava, transpassava a imagem, buscando extrair o

3 Na juventude estudou, por dois anos, na École des art Décoratifs. 4 Acredita-se que produziu mais de mil fotografias, das quais cerca de 400 foram encontradas em 1891 e hoje fazem parte do Museu do Homem em Paris. (Conf. Anexo 4)

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esquema de construção do drapeado: tomando por base o ponto de apoio principal e o

movimento do tecido que parte desse ponto5, Clérambault classificava-o em sua estrutura.

Esse rigor do olhar deixa a mostra que não há nenhuma oposição entre as duas

facetas do seu trabalho – o artista e o clínico mostram a mesma preocupação: a busca pelo

fenômeno mínimo da "estrutura" do seu mecanismo de formação.

3.2.2 O olhar do psiquiatra

Segundo Martine Girard, o olhar clínico de Clérambault era qualificado como

"olhar de águia": um olhar agudo de observador. Interessava-se, não apenas pela biografia

do paciente – acontecimentos, condições materiais, relações afetivas, personalidade

anterior ao desencadeamento, mas também por sua apresentação: vestimenta, postura,

expressões. Ao falar sobre um paciente, geralmente iniciava por uma descrição tão

minuciosa, tão detalhada, que era como se desenhasse o enfermo. Vejamos um exemplo:

Por outra parte, o excessivo descuido com sua vestimenta colocava a desconfiança em alerta. Estas mulheres trajavam vestidos imundos, negros em outros tempos mas onde os lugares limpos pareciam manchas, semi-abertos nas costuras, com partes rasgadas, prensas com alfinetes e fechados com alfinetes de gancho em vez de botões. Uma levava um chapéu de feltro cinza, de forma ultra-simples mas de um diâmetro excessivo; as outras duas, chapeuzinhos de gaza deformados, achatados, impregnados de poeira e mal apoiados sobre os cabelos em desbordem. Suas caras tinham uma expressão assustada e inquieta, como se tivessem acabado de percorrer léguas para escapar de um grande perigo. Postas uma junto à outra, formavam um trio estranho. Quando as interrogava, o tom cortês de suas respostas, certa consciência de seu ridículo e a franqueza de suas explicações, sobretudo os temas, salvo um, as tornava simpáticas. (CLÉRAMBAULT apud GIRARD, 1993, p. 16)6

Este jeito de "desenhar" o que via, aplicava-se também com relação aos

fenômenos. Para além da imagem aparente, Clérambault concedia suma importância às

imagens mentais e às imagens verbais do paciente, originando uma "reprodução exata" dos

sintomas que observava nos pacientes.

Dessa forma, Clérambault se interessava pelas imagens "vistas" pelos enfermos

alucinados. Os interrogava incessantemente sobre tais imagens, permanecendo durante até

duas horas com eles, e, muitas vezes, fingindo, inclusive, ver suas visões, a fim de estimular

5 Clérambault chegou a lecionar curso sobre Drapeamento Antigo na École des Beaux Arts de Paris, no período entre 1922 e 1924. 6 Tradução livre do espanhol.

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suas confidências. Como assinala Tisseron, Clérambault considerava não só a significação

imediata das imagens que se impunham ao enfermo (como anões ou inimigos fantásticos),

mas se dedicava igualmente, a precisar o tamanho dessas alucinações, seu caráter estático

ou mórbido, sua cor, seus contornos (confusos, claros ou vacilantes), sua textura, seu

relevo, os ruídos ou odores eventuais que as acompanham; em suma, valorizava todo o

conjunto de seu cortejo sensorial. (Tisseron, 1993, p. 117)

É por essa precisão, por essa minúcia, que Clérambault pôde brindar a

psiquiatria com um estudo comparado entre os delírios alucinatórios decorrentes das

diferentes substâncias tóxicas: cloral, cocaína, álcool, éter, etc., demonstrando que a ação

de cada produto apresenta diferentes especificidades nos níveis tímico, intelectual, afetivo

e, sobretudo, perceptivo.

As alucinações resultam extremamente específicas do tóxico em questão, já que se trata seja dos sentidos envolvidos (visão, audição, tato) ou das modalidades concretas (para a visão: tamanho, movimento, tom e luz, aparência geral; como por exemplo as alucinações clorálicas decorativas, caleidoscópicas, de tamanho pequeno, pálidas, salpicadas de manchas e de linhas brilhantes com uma afinidade para as disposições em rede ou rosácea. (BERCHERIE, 2004, p. 19)7

Nas palavras de Paul Guiraud, “um verdadeiro tratado de todas as ebriedades”

(GUIRAUD, 1987, Prefácio).

Esta mesma precisão pode ser encontrada em seu estudo sobre os delírios

comiciais mnésicos, presentes nos epilépticos, nos quais Clérambault vai descrever

particularidades surpreendentes: transtornos do humor, com freqüência, de "inspiração

bizarra", tendência a estereotipias afetivas, idéicas e verbais, ausência de crise convulsiva e

recordação parcial do episódio. (Bercherie, 2004, p. 19)8

Como vimos, Clérambault era minucioso, detalhista quanto à forma visual do que

descrevia, mas sua "reprodução exata" do sintoma ia além da imagem. O que interessava a

ele era o estatuto originário das imagens, o momento em que elas surgem da sensação.

Assim, segundo Tyszler, ainda que ele não tenha feito uma elaboração

especificamente sobre esse tema, o que se pode perceber é que Clérambault tomava as

imagens como intermediárias entre a sensação e o pensamento verbal. Ele buscava

7 Tradução livre do espanhol. 8 Tradução livre do espanhol.

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detectar o limite do sentimento de realidade e do sentimento de irrealidade, investigando o

sentimento, muito particular, de que há algo prestes a surgir, fazendo irrupção no real.

(Tyszler, 2004, p. 123)

É a busca desse ponto que dá um amplo espaço para a imagem em sua obra

psiquiátrica. “É justamente de sua observação cada vez mais precisa que parece poder

surgir a compreensão dos fenômenos mentais” (TISSERON, 1993, p. 116). Este é o caso,

por exemplo, de suas investigações sobre as paixões eróticas, em particular pelas telas.

Clérambault incitava as mulheres para que falassem de suas vivências mais íntimas. E,

com esse fim, interrogou-as sobre suas sensações físicas, e também sobre suas imagens

mentais: as imagens que podiam acompanhar seu gozo ou precedê-lo, assim como as

fantasias que podiam ter fora desses momentos, particularmente no concernente às

qualidades sensoriais das telas. (Tisseron, 1993, p. 119)

Partindo dessa investigação, Clérambault separou as psicoses alucinatórias dos

delírios passionais e classificou, entre estes, essa loucura do amor casto: a Erotomania, cuja

característica principal é a construção delirante em torno de um postulado: "tal sujeito me

ama”. A partir daí, derivam-se os outros temas: o objeto não pode ser feliz sem o seu

amado; o objeto é livre, seu casamento não é válido; o objeto precisa ser vigiado e

protegido; esta novela é de interesse geral; o objeto tem uma conduta paradoxal, e assim

por diante. O delírio compreende três estágios possíveis (mas não necessários): o estágio

de esperança (em que idéias de perseguição procuram explicar a separação em relação ao

objeto), estágio de despeito e estágio de rancor (em que o sujeito, impaciente e humilhado,

torna-se reivindicador).

Em outro trabalho importante sobre os Delírios coletivos, Clérambault vai

diferenciar a psicose de seus sintomas, afirmando que os delírios se transmitem, mas as

psicoses não. Por delírios se entendem as convicções ou crenças, enquanto a psicose é o

mecanismo genético formador do delírio.

O que impressiona em Clérambault é que, da mesma forma que, sob a imagem

da vestimenta árabe, Clérambault destacava o esquema de funcionamento do drapeado,

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também na psiquiatria, ele foi atrás da estrutura – através da "imagem" alucinatória, ele foi

até o núcleo de sua formação. Mais precisamente, o que orientava o olhar clínico de

Clérambault era a investigação dos mecanismos geradores da psicose. Procurava

estabelecer a distinção entre a psicose e os fenômenos psicóticos. Ele era absolutamente

minucioso na tentativa de precisar essa distinção.

A fim de alcançar esse objetivo, Clérambault vai se interessar especialmente

pelo desencadeamento das psicoses. A partir de seus fenômenos sutis e de seu processo

de início, ele buscou determinar as leis gerais da formação da psicose. Colocava em

questão não o conteúdo do delírio, mas seu mecanismo de formação. Ou seja, investigava,

antes, os sintomas iniciais, sutis, do que a trama delirante, que considerava secundária.

3.2.3 Enfermaria Especial

"Libre de toda preocupación terapéutica, logra así desarrollar hasta

el fin la lógica de la clínica psiquiátrica cuya pericia constituyó

siempre su matriz estructural" (BERCHERIE, 2004, p. 19).

Se essa percepção dos fenômenos sutis se dava em função da agudez clínica

de seu olhar, por outro lado, é preciso reconhecer, também, a implicação aí, da

particularidade de seu trabalho, pois, a Enfermaria Especial, dava a Clérambault a

oportunidade de entrevistar muitos pacientes, cuja psicose não havia se desencadeado.

Como dissemos, essa especificidade de sua clínica deve-se ao fato de que

Clérambault não trabalhava em um manicômio, mas em um serviço de urgências

psiquiátricas, com caráter médico-legal, ou seja, não trabalhava em um órgão de

assistência, mas num serviço atrelado à ordem pública – a Enfermaria Especial da

Prefeitura de Polícia.

A Enfermaria Especial era um "posto de observação" absolutamente único –

tanto pelo polimorfismo psicopatológico de sua clientela, como pelo intenso ritmo de

circulação dos pacientes.

Este era um lugar inédito, pois acolhia a demanda policial – recebia para

diagnóstico e encaminhamento, sujeitos detidos pela polícia, mas com suspeita de ter

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cometido ato delituoso em decorrência de algum problema psiquiátrico. Assim,

diferentemente do manicômio que acolhia a loucura deflagrada, a Enfermaria Especial

ocupava-se dos casos sem diagnóstico claro, casos que exigiam sensibilidade clínica e

perícia para desmascarar uma simulação ou reconhecer uma psicose não desencadeada.

Como já dissemos, não se tratava de um órgão de assistência – a Enfermaria

não tinha, de forma alguma, função terapêutica. A marca do serviço era a obrigação de

decidir com rapidez. A enfermaria contava com 11 celas para homens e sete para mulheres.

Sendo um serviço de urgência, recebia pacientes durante as 24h do dia. O número de

enfermos presentes superava os 20, cifra que contrastava com o fluxo anual de quase dois

mil enfermos – quantidade que condicionava estritamente a prática: uma vez definido o

diagnóstico, em no máximo quatro dias, o paciente devia ser encaminhado para uma

internação administrativa, ao serviço psiquiátrico livre, a um serviço de enfermos agudos de

um hospital geral ou a um hospício. (Bercherie, 2004, p. 19)9

Tendo em vista que Clérambault trabalhou na Enfermaria de 1921 a 193410, isso

nos dá uma dimensão da quantidade de casos observados. Calcula-se que investigou

milhares de pacientes, sempre dessa forma minuciosa que marcou seu estilo. Forma que,

como dissemos, decorria tanto de um estilo próprio, como da exigência de seu serviço, que

priorizava o aspecto diagnóstico, marcado pela obrigação de decidir o encaminhamento, em

detrimento das preocupações terapêuticas.

O efeito dessa perspectiva clínica era que, não tendo que se preocupar com a

conseqüência de suas intervenções, Clérambault podia ir às últimas instâncias em suas

investigações, não apenas explorando minuciosamente seus fenômenos e examinando

detalhadamente suas sensações, mas utilizando, por vezes, de métodos questionáveis para

arrancar de seus pacientes aquilo que necessitava saber.

9 Tradução livre do espanhol. 10 Clérambault, que não tinha consultório particular, passou sua vida na Enfermaria Especial, onde galgou todos os escalões da hierarquia, permanecendo como chefe do serviço até sua morte. Segundo Bercherie, seguindo a tradição familiar e para agradar a seu pai, Clérambault primeiro cursou direito, só depois fez medicina: “Não há dúvida de que uma profunda afinidade o atraía até esse lugar particular, na metade do caminho entre o judicial e o psiquiátrico, sem nenhuma função terapêutica, unicamente concernido pela observação e diagnóstico” (BERCHERIE, 2004, p. 11). (Tradução livre do espanhol)

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Dessa maneira, Clérambault não cessará de aperfeiçoar seu olhar clínico, de

aprimorar sua "arte" de extrair confissões. "Conservador e tirânico, procura primeiro

desalojar o sintoma ou provar a coerência de sua doutrina, antes de cuidar da pessoa do

doente" (ROUDINESCO, 1988, p. 123).

3.3 PARA ALÉM DE SEU TEMPO

"Numa palavra, na ordem das psicoses Clérambault continua

absolutamente indispensável" (Lacan [1955-1956]1992, p. 14).

Como dissemos, grande parte das contribuições e desenvolvimento que

Clérambault trouxe para a psiquiatria, tiveram uma íntima conexão com seu trabalho na

Enfermaria Especial. É dessa experiência, pela particularidade dos pacientes ali atendidos,

que ele pode afirmar que certos fenômenos podiam subsistir, durante muitos anos, sem que

se desenvolvesse uma psicose.

Na grande maioria dos casos, quando uma pessoa era encaminhada para uma

instituição de tratamento, era devido ao adiantado estado de evolução do quadro. Assim,

muitas vezes não havia oportunidade de recolher, de maneira precisa e de primeira mão, os

fenômenos iniciais. Geralmente, os psiquiatras só podiam ter uma certa idéia de como era a

vida do paciente antes da psicose, através dos relatos do paciente, feitos muitos anos

depois, aliás, a partir de uma interpretação retrospectiva, habitualmente, uma reconstrução

feita a partir da posição delirante, de dentro mesmo do processo psicótico. (Mazzuca, 2003,

p. 212)

Essa diferença na posição de Clérambault permitiu que seu interesse, ao

contrário de seus contemporâneos, recaísse sobre os sintomas iniciais menos evidentes.

Ele considerava que, estes sim, eram o núcleo da psicose. Seu interesse estava centrado

no ponto de passagem do psíquico puro, do pensamento abstrato, ao verbal e à

sensorialidade das vozes.

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Considerava que esses fenômenos, como o eco de pensamento, jogos verbais,

detenção de pensamento, entre outros, precediam as formações temáticas, objetivadas.

Entretanto, eles passavam desapercebidos, primeiramente, por serem sutis, mas também,

porque, no estado avançado da psicose, o doente negligenciava-os em favor dos outros

mais inquietantes.

A esses fenômenos sutis, iniciais, abstratos, que, muitas vezes, passam

desapercebido, Clérambault chamou Automatismo Mental.

Por automatismo mental entendo os fenômenos clássicos: pensamento antecipado, enunciação dos atos, impulsões verbais, tendência aos fenômenos psicomotores, e freqüentemente menciono-os especialmente. [...].Eu oponho esses fenômenos às Alucinações Auditivas, isto é, às vozes que são ao mesmo tempo objetivadas, individualizadas e temáticas, oponho também esses fenômenos às Alucinações Psico-motoras CARACTERIZADAS; de fato esses dois tipos de vozes, as auditivas e motoras, são tardias em relação aos fenômenos descritos acima. (CLÉRAMBAULT, 1987, p. 492)11

A descoberta de Clérambault é que os fenômenos mais exuberantes, como as

alucinações objetivas e as idéias delirantes, são em realidade, secundárias.

Chama a atenção de Clérambault, que este fenômeno inicial, nuclear, de

natureza mórbida, pode ser percebido através de uma diversidade de fenômenos mentais,

motores e sensitivos, que tem como traço comum, sua falta de objetividade, de significação.

Dessa forma, Clérambault caracterizou o Automatismo Mental como neutro, anidéico e não

sensorial.

1. Neutro – os fenômenos carecem de tonalidade afetiva; apresentam, no

máximo, um estado levemente eufórico.

2. Anidéico – (não temático) - fenômenos ideoverbais, como, por exemplo, os

jogos silábicos, eco de pensamento.

3. Não sensorial – por definição do próprio Clérambault, é

o pensamento que se torna estrangeiro o faz na forma ordinária do pensamento, isto é, numa forma indiferenciada, e não numa forma sensorial definida: a forma indiferenciada é constituída de uma mistura de abstrações e tendências ora sem elementos sensoriais, ora com elementos plurisensoriais, ao mesmo tempo vagos e fragmentados. (CLÉRAMBAULT,1987, p. 493)12

11 Tradução livre do francês. 12 Tradução livre do francês.

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A importância desse caráter abstrato do Automatismo, é que Clérambault

tomava-o como evidência da origem orgânica da psicose. De fato, para ele, a psicose

derivava de “um processo histológico irritativo de progressão em certo modo serpeginosa”

(GIRARD, 1993, p. 55-56)13.

Seu argumento se sustentava na independência do Automatismo Mental, da

intencionalidade do sujeito – a ausência total de organização temática dos fenômenos

iniciais de Automatismo Mental eram uma prova de que o automatismo ocorre fora da

consciência, ou seja, se são fenômenos extraconscientes14, isto implica que têm uma origem

orgânica.

Mostraremos que tomados em bloco ou examinados em detalhe, têm uma origem mecânica e um desenvolvimento mecânico, que se apresentam à consciência como elementos espontâneos, autônomos e parasitários [...]. Esta ordem de fenômenos não é construída pela reflexão do sujeito, senão que se elabora mecanicamente no subconsciente, revelando-se a consciência em seus resultados já dispostos e organizados, sendo com freqüência imprevisto em sua natureza e inoportunos em sua qualidade. [...]. Na ordem mental o teor inicial neutro é a regra; o desenvolvimento de idéias hipocondríacas, místicas, de perseguição, etc., é posterior, secundário... (CLÉRAMBAULT apud MAZZUCA, 2003, p. 211)15

A evidência era a maneira pela qual as perturbações se impunham ao sujeito de

maneira intrusiva, externa e brutal: como um "automatismo". (Roudinesco, 1994, p. 39)

É a partir desse caráter mecânico, com o qual caracterizava o Automatismo, que

Clérambault sustentava sua concepção constitucionalista que lhe rendeu a fama de ser

retrógrado. Mas é justamente na descrição do Automatismo que encontraremos o grande

avanço do mestre: quando Clérambault nomeia por automatismo ou síndrome de

passividade, seu objetivo é o de destacar, como traço essencial, o fato de o sujeito não ser

agente de tais fenômenos. Ao contrário – trata-se de algo que lhe ocorre, algo estranho ao

sujeito, que lhe acomete de forma intrusiva.

Isso é algo totalmente congruente com o ensino de Lacan sobre as alucinações

verbais como paradigma da psicose e com o valor contingente da sensorialidade das vozes,

nas quais, o essencial não é que sejam auditivas, mas sim que sejam verbais, isto é, que

13 Tradução livre do espanhol. 14 De acordo com Roberto Mazzuca, nas noções com que se move um psiquiatra clássico, tudo aquilo que não responde a uma ideação produzida na forma consciente pelo sujeito não tem outra maneira de ser explicada a não ser como resultado de um processo orgânico. Para alguém que não dispõe das noções psicanalíticas, tudo o que não é consciente ou controlado conscientemente, fica do lado do orgânico (MAZZUCA, 2003, p. 212). 15 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

respondam à estrutura do significante. Deste modo, o caráter com o qual Clérambault define

o Automatismo Mental coincide justamente, com o do significante; e, sobretudo, sua

insistência em destacar o traço anidéico; como se houvesse adiantado o ensino de Lacan,

propondo que há algo na ordem do significante que, até certo ponto, é independente da

produção de significado. (Mazzuca, 2004, p. 238)

O mecanicismo de De Clérambault torna-se com Lacan o "mecanismo" da linguagem da qual o sujeito depende. Como afirma Francesconi na introdução [às Obras de Clérambault, em sua versão italiana] "a importância do automatismo mental é... também aquela de trazer à luz a relação pouco instrumental do sujeito com a linguagem... esta relação é de dependência e não de domínio" (idéias que não me pertencem me provocam...cólera, vontades, alegrias me provocam... e se vão antes que tenha tido o tempo de compreender). (VIGANÒ, 1997, p. 43)

Podemos reencontrar o caráter autônomo, parasitário do Automatismo Mental,

na definição que Lacan dá à psicose16, enquanto uma intrusão da estrutura do significante.

Mais do que antecipar seu tempo, Clérambault foi absolutamente original. Afinal,

segundo Viganò, “no fundo, sofrer uma dependência da linguagem é o tema que faltou à

psiquiatria desde o tempo de Esquirol e dos iluministas” (VIGANÒ, 1997, p. 43).

É por isso que Lacan, que sempre reafirmou “a imperiosa necessidade de um

abandono definitivo de todo organicismo em matéria de psiquiatria”, em função da aceitação

de uma concepção exclusivamente psicogenética da personalidade humana, e que colocava

a causalidade psíquica como a causa única da loucura humana, não hesitou em reconhecer

a influência de Clérambault na sua construção teórica. (ROUDINESCO, 1994, p. 187)

Por certo que Lacan sustenta que devemos prescindir, totalmente, da hipótese

etiológica de Clérambault, mas o que está para além dela, as descrições feitas com o

objetivo de sustentar essa posição, estas sim, estas seguiam tendo valor. Tanto que Lacan

reconheceu, a posteriori, que era a esse grande representante do constitucionalismo, que

devia a concepção estrutural e psicogenética da loucura, concepção que, em Clérambault,

era mascarada pela adesão constantemente proclamada à doutrina das constituições.

(Roudinesco, 1994, p. 187)

Para os que entre vocês só têm de sua obra um conhecimento aproximativo, ou por ouvir dizer - deve haver aí um certo número nesse caso -, o Sr. de Clérambault passa como tendo sido o selvagem defensor de uma concepção organicista extrema. Aí estava certamente o desígnio explícito de muitas de suas exposições

16 O Seminário, Livro 3 – As psicoses.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

teóricas. Entretanto, não creio que seja a partir daí que possa ser estabelecida uma perspectiva justa, não somente sobre a influência que efetivamente puderam ter sua pessoa e seu ensino, como também sobre o verdadeiro alcance de suas descobertas. (LACAN [1955-1956] 1992, p. 14)

De fato, o próprio organicismo de Clérambault já apontava para uma ruptura com

a metodologia médica. Clérambault não provocará a crise nem fará autópsias. Para ele, a

causa da psicose era uma "histologia suposta", que podia ser apreendida no discurso.

Para Clérambault se trata de uma histologia suposta, imaginária e inferida da clínica, e não de uma descrição anatomopatológica nem da determinação de uma correspondência entre a visibilidade das lesões anatomopatológicas e o desenvolvimento dos quadros clínicos. Com efeito, se Bayle, como bem assinalou Foucault, se situa em um mundo de constante visibilidade pela qual ele guia nosso olhar, para de Clérambault a visibilidade se detém no sintoma, e o que ele descreve e desdobra como um corte histológico é o discurso dos pacientes e não as lesões da matéria cerebral que determinariam supostamente suas distorções. (GIRARD, 1993, p. 37)17 (Grifo meu)

Clérambault afasta, assim, tanto do modelo psiquiátrico da prova de realidade,

quando do modelo médico da prova anatômica. Desta forma, ele “prepara a filigrana, ou a

topologia daquilo que Lacan apontará como sujeito, o testemunho de uma falta estrutural na

malha dos significantes” (VIGANÒ, 1997, p. 43).

Como nos indica Bercherie:

Seguro de seu talento, Clérambault pensava que com seus trabalhos, "as psicoses alucinatórias passam a formar parte, pois, da Neurologia e a psiquiatria alcançava agora o ponto do qual deveria ter partido". Vemos aqui a importância que atribuía a sua obra, já que a via em suma como o pivô de uma nova era. (BERCHERIE, 2004, p. 22)18

Todavia, esse futuro não estaria do lado da dignidade do suporte neurológico,

como ele supunha, mas num percurso absolutamente oposto. O progresso com o qual sua

teoria viria a se encontrar foi a psicanálise.

Como nos diz Francisco Paes Barreto: “Clérambault fica como o último grande

clássico da psiquiatria francesa. Talvez não seja por acaso que um de seus discípulos,

Jacques Lacan, seja o expoente de uma nova modalidade clínica que se apresenta e que

conquistará um espaço cada vez maior” (BARRETO, 1988, p. 55).

17 Tradução livre do espanhol. 18 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

3.4 APRESENTAÇÃO DE PACIENTES

3.4.1 Seu estilo

Clérambault foi um grande clínico e, se em alguns aspectos, sua contribuição é

incontestável, por outro lado, sua forma de investigação, a mesma que o levou a alcançar os

limites da psiquiatria, foi motivo de crítica e contestação.

Um primeiro ponto decorre, justamente, de sua concepção constitucionalista.

Acreditava que o problema mental era incurável, noção que tinha importantes implicações

no seu trabalho e na forma de abordagem dos enfermos. Não tendo que se preocupar com

o tratamento, sua preocupação clínica restringia-se ao diagnóstico, o que, de certa forma,

era coerente com a função a ele designada, tendo em vista as necessidades da Enfermaria

Especial.

Contudo, com o objetivo de verificar a periculosidade do caso, de fazer um

cálculo do risco, Clérambault utilizava-se de estratégias um tanto polêmicas, provocativas,

podemos mesmo dizer, abusivas.

Um estilo criticado, não só no que diz respeito à forma de tratar os pacientes,

mas que, em realidade, se mostrava presente de uma forma muito mais geral em sua vida.

Na verdade, não foi apenas por suas concepções que Clérambault foi contestado, criticado,

mas também em relação ao seu estilo pessoal, pois era arrogante, tirânico e muito certo de

sua superioridade. Como nos diz Bercherie, “com sua arrogância e seu gosto marcado pela

provocação, Clérambault desencadeia naturalmente uma reação violenta de rechaço no

meio psiquiátrico francês” (BERCHERIE, 2004, p. 22).19 De seus adeptos e alunos exigia

não menos que adoração, submissão e fidelidade absoluta.

Este mesmo caráter, arrogante, tirânico, provocativo, mas também, agudo,

penetrante e preciso, o encontraremos em suas apresentações de paciente. Como efeito

dessa conjunção de suas características, Clérambault conseguia penetrar, atravessar o

fenômeno psicótico e colocar ao alcance de seu público, mais do que a confissão do

paciente, mas o próprio funcionamento mecânico destes fenômenos. Como ressalta 19 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Bercherie, Clérambault "elevou a prática da apresentação de pacientes à perfeição".

BERCHERIE, 2004, p. 11)20

Entretanto, como Clérambault não tinha uma preocupação clínica, estando livre

da dimensão terapêutica, ele ficava à vontade para usar os tão polêmicos recursos de

manipulação, sem se preocupar com seus efeitos sobre o paciente, sobre o tratamento.

Com o objetivo de extrair a confissão do paciente, seja para confirmar um diagnóstico, seja

para provar ou desenvolver os aspectos teóricos em questão, Clérambault utilizava

estratégias um tanto controversas. Como diz Carlo Viganò, suas estratégias muitas vezes

eram “alicerçada(s) em ciladas preparadas pelo mestre com fim de superar a ‘reticência

natural’ do erotomaníaco”. Sobre estas manobras, um primeiro ponto importante para

lembrarmos é que era o elemento da periculosidade que norteava suas investigações.

Preocupava-se em prever um prognóstico de risco, o que em termos de hoje poderíamos

dizer, de risco de passagem ao ato. E realmente suas deduções possibilitavam, como efeito,

um grande acerto na definição diagnóstica, o que certamente evitou muitas internações –

mas nem isso impediu que sua equipe contestasse suas estratégias de relação com o

paciente. (VIGANÒ, 1997, p. 44) Alias, este foi um ponto de importantes atritos também com

seus jovens discípulos, como Henry Ey e Lacan.

Mesmo polêmicas, suas apresentações eram muito requisitadas. Segundo

informação de Girard, ele as realizava, semanalmente, em dois espaços diferentes: às

segundas-feiras, na Reunião da Sociedade Clínica de Medicina Mental21, realizada no

Anfiteatro do Serviço de Admissões de Sainte-Anne, e de 1920 a 1934, toda sexta-feira à

tarde, na Enfermaria Especial.

A Reunião na Sociedade Clínica era uma reunião médica de ordem

exclusivamente clínica, cuja regra de funcionamento era a apresentação de enfermo, depois

um debate sobre o caso – toda exposição doutrinária, bibliográfica e a controvérsia estavam

excluídas.

20 Tradução livre do espanhol. 21 Sociedade científica fundada em 1908, reputada por ser um lugar de pesquisa e de ensino clínico muito importante na época e que foi presidida por Clérambault em 1928.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Na Enfermaria Especial, Clérambault apresentava suas lições clínicas, de acordo

com a “grande tradição de apresentações de enfermos”. Entretanto, o público era restrito a

estudantes de Medicina e de Direito, tendo em vista o caráter médico-legal do serviço

(GIRARD, 1993, p. 12)22.

Outro aspecto importante de suas apresentações foi a importância que tiveram

em sua obra, pois seu ensino foi essencialmente oral, tendo sido transmitido principalmente

nas apresentações, cujo material servia de base para seus artigos e intervenções nas

sociedades médicas. Esses artigos e publicações foram colecionados por seus "alunos", e

publicados, em um compêndio póstumo: a OEuvre Psychiatriques, publicada em 1942.

Com relação aos artigos, desde 1909, prevalecem as apresentações de

paciente. Segundo Viganò, “o esquema é constante: uma parte teórica inicial que apresenta

toda vez uma contribuição original, depois um primeiro caso: certificado, observação,

apresentação com diálogo, comentários; segue-se em geral um segundo caso (ao todo

cerca de 30 páginas)” (VIGANÒ, 1997, p. 36).

As apresentações, nesses artigos, servem para ilustrar desenvolvimentos

teóricos. Às vezes, ao contrário, os aspectos inusitados de um caso, servem como

parâmetro para repensar a teoria, para colocá-la em questão. Assim, em meio às descrições

e elaborações, encontramos, diferentemente dos outros autores da psiquiatria clássica,

várias referências sobre seu trabalho de apresentação. Infelizmente, como com seus

precursores, também não há elaborações sobre os efeitos da apresentação sobre o

paciente, mas há diversas referências sobre estratégias, e, ainda, interessantes fragmentos

de diálogos.

Suas concepções e seu estilo sucinto e preciso estão registrados, também, nos

seus famosos Certificados. Os certificados eram pequenos pareceres, laudos, que

acompanhavam a entrada de cada paciente, com o objetivo de transmitir informações

acerca do mesmo. Clérambault se tornou um mestre na confecção desses relatórios: de

uma forma sintética e extremamente concisa, ele colocava suas observações clínicas,

22 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

extraídas de entrevistas minuciosas (dedicava de uma a duas horas por paciente), de uma

maneira “singularmente precisa e detalhada, tanto do ponto de vista da biografia e dos

acontecimentos da vida do paciente como da descrição da semiologia” (GIRARD, 1993, p.

12).

Como disse Paul Guiraud, no prefácio à OEuvre Psychiatriques (1942):

Ela (esta obra) deixa ainda inédito uma contribuição capital à clínica, material com o qual, escolhendo uns cinqüenta exemplos, poderíamos fazer um compendium de psiquiatria muito sedutor. Quero falar dos laudos [certificados] que Clérambault redigia a cada dia por dezenas na lnfirmerie. Foi na Escola da lnfirmerie Spéciale que nós todos aprendemos a estabelecer nossos laudos. Se um soneto sem defeito vale por um longo poema, um laudo bem feito vale por também uma observação; mas é quase tão difícil fazer um bom laudo quanto um soneto impecável. (GUIRAUD, Prefácio, 1987, p. IX)

3.4.2 Suas estratégias

Mas afinal, quais eram essas estratégias de Clérambault que provocavam tanta

crítica ao mestre?

Antes de investigarmos as estratégias, é interessante precisarmos melhor a que

elas visavam.

De fato, como seus colegas clássicos, Clérambault buscava a confissão do

paciente. Contudo, essa confissão era de uma ordem radicalmente diferente.

Na psiquiatria clássica, o interrogatório era um instrumento para provocar a crise.

Esta, enquanto prova de realidade da doença e do poder/saber do médico, possibilitava o

reconhecimento do doente no seu ponto comum com os demais – de estar alheio à

realidade. Assim, podemos dizer que, com o interrogatório clássico, buscava-se a verdade

referida aos fatos da realidade. Ou seja, que o paciente descriminasse a diferença de seus

dizeres "mentirosos" em contraposição com a realidade externa, compartilhada23, que ele se

reconhecesse louco, se reconhecesse doente – (“sim, tenho alucinações!”, “sim, creio ser

Napoleão! E isto é minha doença”).

No caso de Clérambault, o processo era diferente. O que podemos verificar é

que, se Clérambault trabalhava sob o princípio da provocação da verdade, não lhe

interessava a provocação da crise. Ele não buscava produzir fenômenos ou fazer uma

23 Conf. p.31.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

confrontação com a realidade. Não lhe interessava o ponto comum da alienação. A intenção

de Clérambault era revelar a verdade da posição, da crença delirante. A ele interessava a

confissão da posição do doente de dentro mesmo de sua loucura, de seu delírio. “Para De

Clérambault interessava somente demonstrar quando esta certeza está funcionando: ‘Não

devemos procurar os fatos (que o paciente pode negar sempre), sim os pontos de vista do

paciente que estão em fórmulas específicas’” (VIGANÒ, 1997, p. 43). Assim, da dama que

acredita ser objeto de amor do Rei da Inglaterra, ele esperava arrancar-lhe, não o

reconhecimento do engano, mas os indícios de sua esperança: “Sim, tenho esperanças com

Rei da Inglaterra!”

Como nos diz Tyszler, é impressionante como o enfoque dado por Clérambault

destacava, em cada entrevista, o que fazia o traço do caso. (Tyszler, 2004, p. 120) Este é

um ponto, que, como Tyszler chama a atenção, “seu anacrônico organicismo, não deve

mascarar os espantosos primeiros passos de uma leitura estrutural, de uma leitura traço a

traço” (TYSZLER, 2004, p. 118).24

Este elemento que Clérambault busca revelar será justamente o que se

destacará nas apresentações de Lacan – um aspecto da subjetividade.

Assim, a arte de Clérambault ia além do "olhar de águia", que conseguia

discernir o mecanismo da psicose. Ele sabia também extrair do paciente as falas que lhe

interessavam. Para tanto, dizia: "não basta interrogar o doente, precisa manipulá-lo". Para

termos maior clareza do tipo de manobra de manipulação que ele fazia, nada melhor do que

acompanharmos, nas palavras do próprio Clérambault. Para tanto, vejamos mais

detidamente o caso da dama enamorada.25

Tratava-se de uma dama francesa que se julgava amada por Jorge V, Rei da

Inglaterra. Acreditava ter-se encontrado milhares de vezes com o Rei, ou com emissários

deste. Entretanto, como ele estava sempre disfarçado – de marinheiro, turista, etc., ocorreu

que, todas as vezes, ela o reconheceu apenas tardiamente. Assim, se não respondeu aos

24 Tradução livre do espanhol. 25 Caso apresentado no artigo de Clérambault: Coexistência de dois delírios: perseguição e erotomania, 1920.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

galanteios do Rei, foi por não tê-los compreendido a tempo. A culpa foi de sua ignorância;

entretanto, o Rei não a perdoou.

A fim de facilitar os galanteios do Rei, a dama fez numerosas viagens à

Inglaterra. Certa vez, passando em frente ao palácio de Buckingham, viu que uma cortina se

movia – isto significou, para ela, que o Rei a vigiava.

Entretanto, aos "desencontros" sucederam repetidas abstenções do rei, atitudes

de despeito e até mesmo atos em aparência hostis: em Londres, impediu-a de encontrar

lugar nos hotéis, já extraviou sua bagagem na qual levava dinheiro e muitos retratos do Rei,

entre outros atos. O Rei divertia-se desprezando-a, ou fazendo-a ser desprezada pelos

transeuntes. A dama compreendeu que talvez a odiasse. Estava claro que essas

perseguições eram decorrentes da ofensa causada por sua aparente indiferença ao Rei.

Não que tivesse sido indiferente, só não tinha compreendido.

Compreendi (mas já era tarde demais) que eu não havia sabido responder aos favores do Rei de Inglaterra. Já faz um ano que multipliquei as viagens à Inglaterra porque o Soberano teve a bondade e me deu a graça de querer me perdoar e que do fundo do coração me senti atraída por ele. O tenho amado esperando ser agra-dável. Tenho querido viver sob seu mesmo céu e no meio dos seus. Por pura distração não respondi quando ele quis perdoar-me e voltei a ofendê-lo, tenho sofrido em meu coração e nos hábitos de pobreza que contraí por força e em conseqüência da guerra. (CLÉRAMBAULT, 2004, p. 29)26

Certa vez, ao regressar de Londres, descontente com o resultado de sua

viagem, viu-se rodeada e ridicularizada pelas pessoas. No embaraço da situação,

aproximou-se de dois policiais e os acusou de não servirem para nada – por esbofeteá-los,

foi levada para a Enfermaria Especial.

Na Enfermaria, ela expôs com relativa facilidade, a paixão da qual era objeto,

seu empenho, seu desgosto, sua história. Pensava, inclusive, que o Rei poderia ser o

responsável por esta internação.

Entretanto, na apresentação pública realizada na Sociedade Clínica, a dama

mostrou-se reticente sobre os temas da perseguição, assim como sobre os temas

erotomaníacos, dando uma outra versão: disse que gostaria de viver na Inglaterra porque

26 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

gostava das leis do país, e se alguém espiava detrás da cortina do Palácio, certamente não

era o Rei. Negou o interesse do Rei por ela, ou que ele a tivesse atormentado.

Vejamos, no relato de Clérambault, a estratégia utilizada com a dama

enamorada:

A ponto de liberá-la, ocorreu-nos colocar em jogo certos subterfúgios que sempre nos deram resultado com este tipo de enfermo. Sugerimos-lhe que talvez sua internação obedecesse a causas que se lhe escapavam, que teria que se perguntar por que hoje estava convocada ante uma espécie de comitê, que esse comitê composto por gente eminente, haveria de ter também um crédito especial fora de França, que se então ela quisesse apresentar algum pedido, este era o momento de fazê-lo oralmente, ou melhor ainda, por escrito. Que caso contrário, ela poderia deixar passar uma oportunidade excepcional de fazer-se escutar e que antes do fim da sessão era preciso que nos entregue um bilhete que transmitiríamos ao personagem que ela sabe. Neste ponto, fica radiante ainda que quisesse aparentar incredulidade. Discute acerca da necessidade de escrever ao muito elevado personagem a quem não nomeia; diante de nossa censura por haver abusado da arte de fazer esperar a um homem enamorado, como linda chapeleira parisiense que é, responde com veemência que ela nunca zombou do alto personagem em questão, esse personagem se equivoca se crê nisso e nós também; seu único erro foi o de não compreender. Lhe fizemos vislumbrar a possibilidade que tínhamos de organizar lhe uma entrevista; mas, lhe dissemos, que dois temores nos detinham. A partir desse momento, o diálogo é o seguinte: D.- Para começar, temo que na presença do alto personagem, você não domine seu rancor e o arranhe. R.- Jamais. Eu colocarei minhas mãos assim, nas costas, e você poderá colocar-se atrás de mim para contê-las. D.- Também temo o contrário, que você não saia de seu retraimento, de um modo que convenha, se ele a perdoar. R.- Pois não. Eu me regularei por ele. D.- Temo que você lhe salte ao pescoço. R.- Ainda sim você pode me deter. D.- Mas o que diriam as Princesas? R.- O lugar delas não é esse. D.- Você me disse que se interessavam por este assunto. R.- Este assunto só concerne à nó dois, a ele e a mim. D.-Nunca mais você irá vagar ao redor de Buckingham? R.- Fui apenas discretamente. Eu também tive meus méritos. Sai prometendo entregar-nos dentro de um quarto de hora uma carta destinada ao Rei, carta cujo texto transcrevemos: À Sua Majestade o Rei Jorge V, Rei da Inglaterra. Majestade: venho solicitar lhe muito humildemente minha graça e para assegurá-lo de toda minha devoção. A fim de assegurá-lo eu mesma de todo meu afeto e dos sentimentos muito profundos que existem no fundo do meu coração, eu queria pedir a Vossa Majestade uma entrevista que o senhor mesmo marcaria e que me encheria de felicidade. Eu peço do fundo do coração que vossa Majestade me perdoe e me deixe vir à Inglaterra, onde asseguro a Vossa Majestade de toda minha devoção. L. Ana B., en el hospital Sainte-Anne. Paris, 20 de dezembro de 1920’. (CLÉRAMBAULT [1920] 2004, p. 31-32)27 (Grifo meu)

Como vimos, Clérambault levava a sério a recomendação de Jean Pierre Falret

de "não reduzir seu dever de observador ao papel de secretário dos enfermos"28. Como

Falret, Clérambault também acreditava ser necessário conduzir, muito habilmente, a

27 Tradução livre do espanhol. 28 Conf. p. 36.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

conversação, para conseguir tocar os pontos mórbidos. Assim, não acreditava nem no

silêncio, nem nos questionários formais, por vezes utilizados por seus predecessores:

Não se interroga a um delirante como se interroga ao candidato a um diploma, porque o método das perguntas e respostas tem como efeito o fornecimento de respostas racionais e faz o sujeito pressentir as respostas a evitar. Muitos sujeitos não se entregam no interrogatório porque, limitados, por assim dizer, por nós, não encontram a liberdade necessária para derivar. (CLÉRAMBAULT, 2004, p. 70)29

Ao contrário, Clérambault sabia que, para tocar os pontos mórbidos, era preciso

manipular o paciente – manobrá-lo de tal forma a comovê-lo, emocioná-lo. Para ele, a

melhor forma de fazê-lo era comovendo-o – suas manobras iam no sentido de ativar a

emoção de forma que esta escapasse às tentativas do enfermo de ocultar-se. Quando

faltava o reconhecimento explícito, Clérambault buscava o reconhecimento implícito através

dos signos desse ponto inconfessável. Um sorriso, uma expressão, um olhar – nada lhe

escapava. “A esperança brilha também na credulidade destes enfermos, credulidade que é

preciso saber explorar nos assentimentos tácitos, na animação repentina ante uma ou outra

evocação, e por fim, nos efeitos mímicos, sempre marcados de hipertonicidade”

(CLÉRAMBAULT, 2004, p. 57)30.

Suas manobras variavam de acordo com cada caso, o que não poderia ser de

outra maneira, pois ele mesmo reconhecia que os casos são “por essência individuais”

(CLÉRAMBAULT, 2004, p. 33)31. Às vezes, tal manobra se restringia à forma mesma de

realizar o interrogatório:

Com um diálogo em aparência difuso mas constelado de centros de atração para as idéias, temos de induzir no sujeito um estado de espírito que o leve a monologar e a discutir; a partir daí nossa tática consistirá em calar-nos ou em contradizer apenas o suficiente para parecermos incapazes de compreendê-lo completamente. Então o sujeito se permitirá expressões que não havia previsto e deixará escapar fórmulas das quais pensa que não prevemos as conseqüências. (CLÉRAMBAULT, 2004, p. 70)32 (Grifo meu).

Mas, às vezes, a resistência do paciente exigia manobras mais drásticas,

manobras que implicavam em enganar o paciente, em jogar com sua confiança. Segundo

Elisabeth Roudinesco, e de fato, os relatos de entrevista comprovam, Clérambault não tinha

a menor preocupação pelo sofrimento do paciente. Relacionava-se com o paciente “sem

29 Tradução livre do espanhol. 30 Tradução livre do espanhol. 31 Tradução livre do espanhol. 32 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

julgá-lo, nem lamentá-lo, mas com uma vontade feroz de extorquir-lhe confissões”

(ROUDINESCO, 1994, p. 39).

Vimos, no caso da "dama enamorada", como Clérambault a manipula – finge

compartilhar de seu delírio e vence sua resistência, prometendo intermediar seu contato

com o Rei. Acionando sua esperança, faz com que esta transborde e apareça sob sua

negação – temos, na carta endereçada à Sua Majestade, a comprovação palpável do

sucesso de sua estratégia.

Já no caso de C.C.33, o recurso utilizado é a confrontação. Vejamos: C.C. havia

recorrido ao Dr. N, médico especialista, com a queixa de dores pélvicas, sobretudo após a

micção. Entretanto, pouco tempo após o exame, C.C. adquiriu firme convicção de que o Dr

N havia, deliberadamente, infectado-lhe com sífilis – durante o toque retal, o médico teria lhe

dado um algodão, usado por outro paciente, para limpar-se. Lembra-se, então, que, naquele

momento, o médico teria dito baixinho: “Dei-lhe algodão de outro, não tinha motivos para

tratar-se, isto lhe dará um” (CLÉRAMBAULT, 2004, p. 80).34 Quando compreendeu o que

havia se passado em seu encontro com o médico, ficou indignado. Escreveu cartas ao Dr. N

censurando-o e pedindo explicações. Voltou a procurá-lo e este, temendo chantagens,

expulsou-o do consultório. C.C. acreditava que todo mundo sabia que era sifilítico, pois

escutava as pessoas murmurando a respeito. Temia contagiar as pessoas, e sentia pela

desonra em que cairia sua família. Por tudo isso, sentia-se no direito a uma indenização.

Além da denúncia com acusações e difamações feita à polícia, estava decidido a processar

o Dr. N. Neste caso, a intervenção utilizada por Clérambault, na apresentação de paciente,

foi o encontro de C.C. com seu "perseguidor". O paciente e o Dr. N foram colocados em

confronto e incitados a debaterem sobre o tema.

A manipulação do paciente, através dessas estratégias, podemos dizer,

abusivas, enganadoras e constrangedoras, não são estranhas apenas para nós,

psicanalistas lacanianos, que operamos com a apresentação de pacientes na atualidade.

Elas eram condenadas também por seus contemporâneos.

33 Caso apresentado no artigo Condiciones de aparición, desarrollo y duración de los estados pasionales (1923). 34 Tradução livre do espanhol.

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Contudo, apesar de estranhas para nós, quando detemos nossa atenção sobre

suas manobras, podemos detectar, na base de algumas estratégias freqüentemente

utilizadas por ele, elementos constantes também, em nossas apresentações.

Ao que parece, para Clérambault, a participação na entrevista não era

obrigatória – ele não apenas convidava o paciente, como contava com sua aceitação. Nos

seus relatos, é comum encontrarmos referências como esta: “Inteirado de que seria

apresentado diante de um grupo de médicos caso desejasse, responde: ‘Eu incomodo todo

mundo’. Todavia, mostra satisfação ao ser apresentado diante dos médicos”

(CLÉRAMBAULT, 2004, p. 82)35. (Grifo meu)

Esse aspecto é bastante atual. Nas elaborações mais recentes sobre o tema, a

referência à importância do "consentimento" do sujeito com sua participação na entrevista é

recorrente. O consentimento que tem uma dimensão dupla: por um lado, de respeito pelo

paciente, e, por outro, uma dimensão clínica – pois é sua disponibilidade para o encontro

que abre a possibilidade de que alguma coisa se produza ali.

Não obstante, é preciso marcar que o argumento que se usa hoje e que o que

Clérambault usava são de uma ordem absolutamente diferente. Poderíamos dizer de uma

maneira simplificada, correndo mesmo o risco de fazer uma redução grosseira, que quando

o paciente é convidado a ir a uma apresentação, o que lhe é ofertado é a possibilidade de

escuta – ele é convidado a falar para pessoas que poderiam ajudar a equipe responsável

por seu caso, a fazer uma reavaliação da direção de seu tratamento e encaminhamento.

No caso de Clérambault, o paciente era induzido a aceitar o convite, uma vez

que era levado a acreditar que o grupo para o qual falaria poderia interceder a seu favor.

Importante marcar que essa promessa era de uma intervenção, não a favor do sujeito, mas

a favor de suas reivindicações delirantes.

Seguindo a tradição clássica, Clérambault apoiava-se amplamente numa

posição de poder/saber. Talvez não mais aquele poder clássico, garantido pela estrutura

asilar, mas um poder pessoal de influir na vida do paciente. Todavia, longe das ameaças

35 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

ostensivas utilizadas por seus predecessores, Clérambault utilizava-se de argumentos que

enredassem o paciente em um estado de confiança. Utilizava-se dessa estratégia, tanto

para levar o paciente à entrevista, como também, já no interrogatório, para induzir o

paciente a confessar aquilo que Clérambault desejava fazer revelar.

Seu artifício, para ganhar confiança, era investir de poder o grupo que

participava do interrogatório. Para tanto, atribuía-lhe tal importância, que o tornava, perante

o paciente, capaz de interceder de alguma forma a seu favor: “Apresentado aos Auditores

do Curso se mostra satisfeito; reafirma sua confiança em nós e em nossa ajuda”

(CLÉRAMBAULT, 2004, p. 76)36.

Essa estratégia de produzir um estado de confiança, colocando-se numa posição

de intermediação da questão delirante é freqüente nos relatos de Clérambault. Isso fica

muito evidente no caso da "dama enamorada", pois o grupo lhe foi apresentado como um

"comitê composto por gente eminente", que haveria de ter "crédito especial fora da França".

Um comitê que, se não colocou o Rei em sua presença, foi pelo temor de que ela não se

portasse adequadamente, mas que poderia ainda assim, intermediar seu contato com ele,

sendo portadores de uma carta dela para Sua Majestade. (CLÉRAMBAULT [1920] 2004, p.

31-32)

Tomemos um outro exemplo. Trata-se de Clementina37: apesar da frieza que o

vigário demonstrava, Clementina acreditava que ele lhe depositava dinheiro, lhe pagava um

apartamento que ela não usava, e alimentação. Sabia isso por sugestão. O vigário também

lhe falava à distância, sugestionava e influenciava. Ela fez repetidas cenas de escândalo na

igreja, pois o vigário, andava rodeado de mulheres pouco recomendáveis, e ela se irritou ao

vê-lo, a um só tempo, conversando com as mulheres e, ao mesmo tempo fazendo com que

todas olhassem para ela. Assim, com injúrias e agitação, xingava o padre de ladrão e as

devotas de putas. Sobre sua relação com o vigário, afirmava desprezo – afinal ele que já

quisera casar-se com ela, agora não lhe dava mais dinheiro, podia até deixá-la morrer de

fome. De sua parte, nega que tivesse tido qualquer intenção de se casar com o padre:

36 Tradução livre do espanhol. 37 Caso apresentado no artigo Erotomanía pura, erotomanía asociada, 1921.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Protesta ruidosamente contra seu aprisionamento e ameaça sem cessar em retirar-se, mas permanece, encantada, no fundo por falar do sacerdote. Cada vez que nossos propósitos tocam suas esperanças secretas, seja para animá-las, seja para atacá-las, a expressão de sua fisionomia é característica: em ambos os casos sorri profundamente, mas no primeiro caso, de deleite, e no segundo, de desdém. (CLÉRAMBAULT, 2004, p. 54)38.

Diante de suas queixas contra a internação, Clérambault lhe apresenta a

seguinte proposta: “Por que, lhe dissemos, não protestar diretamente para uma Comissão

de Médicos que justamente, está reunida? Consente em apresentar-se ante essa Comissão

sob a condição de que fôssemos seu porta-voz e que ela não tivesse mais que autorizar-

nos” (CLÉRAMBAULT, 2004, p. 54).

Na entrevista, Clérambault a provoca, perguntando se não reconhecia, dentre os

presentes, o sacerdote ou algum representante dele. Diante de sua negativa, Clérambault

faz outra investida:

“D.- Não nos reunimos sem motivos. Talvez eu seja seu representante [do sacerdote]. Diga-nos exatamente o que você pensa. R.- Que ele não precisa de representantes. D.-Por que?.. Ele fala por sugestão? R- Porque pode falar por si mesmo. D.- Mas ele quer proceder em ordem. Suponha que ele tenha me dado plenos poderes: Você quer a guerra ou a paz? R - A guerra. [...] D.- Bom. Você me dá plenos poderes? R.- Como quiser. D.- Então, posso intermediar este assunto? R.- Como quiser. D.- Está bem. O que vamos exigir dele? R.- Você saberá. D.- O faremos vir aqui. R.- Sim. D – E depois? R.- Lhe fará tirar a batina. D – E você se encarregará das calças? É evidente que traduzimos seu pensamento; está radiante. Vai deixando-nos livres para negociar por ela e demonstrando-nos que tem total confiança em nosso bom êxito. (CLÉRAMBAULT, 2004, p. 56) 39 (Grifos meus)

Nessa operação de dar lugar de confiança e poder ao entrevistador e demais

participantes, podemos ver em Clérambault a adesão a alguns dos princípios básicos do

interrogatório clássico.

Como na tradição, Clérambault ia para entrevista sabendo os detalhes do caso

do paciente. Afinal, como já dissemos, ele dedicava horas em estar com seus pacientes.

38 Tradução livre do espanhol. 39 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Assim, Clérambault não apenas podia fazer uso desse saber, falando, ele mesmo, sobre o

paciente e sua doença ao público, afirmado seu lugar de poder/saber médico, como também

utilizava esse conhecimento prévio para manipular o paciente levando-o a revelar os pontos

que ele queria exibir. Ele dava a palavra ao paciente. Entretanto, jamais o escutava.

Clérambault, como os que o antecederam, acreditava que o saber estava do seu lado – sua

operação consistia em fazer surgir na fala, na postura ou na mímica do enfermo, aquilo que

ele, Clérambault, já sabia.

Nesse ponto, ele era mais didático que seus antecessores. Se estes usavam de

seu poder como estratégia terapêutica, Clérambault, ao contrário, usava seu poder e

artimanhas para extrair as confissões que tinham como fim, quando não o diagnóstico,

apenas a comprovação teórica de seus achados.

Valendo-se tanto de seu poliglotismo (fala alemão, inglês, espanhol, árabe) quanto de uma surpreendente prática da língua popular ("langue verte" ou "argot"), encurralando o enfermo, antecipando o que ele pressente de seu delírio (de onde insistiu em definir a "fórmula de cada entidade"), sem duvidar em pressioná-lo, aproveitando seu silêncio, a espera, fazendo comentários à queima-roupa, Clérambault obtém sem lutar a confissão buscada, ao mesmo tempo em que faz a seu público comentários dogmáticos, digressões eruditas e críticas mordazes de seus adversários científicos. (BERCHERIE, 2004, p. 11)40

Uma curiosidade – por sua abordagem, dá a impressão de que suas entrevistas

eram individuais, dedicadas a um paciente apenas. Entretanto, uma pequena passagem nos

indica que, como Charcot, Clérambault também utilizava o método de comparação entre

pacientes: “Suas respostas são rápidas e claras; sorri, escuta com muita atenção e aceita

com confiança todas as apreciações de seu caso, se deixa comparar a outras duas

enfermas presentes, reconhece as analogias e se mostra otimista no que lhe concerne”

(CLÉRAMBAULT, 2004, p. 139)41 (Grifo meu). Por certo, não sabemos qual a freqüência, se

isto era a regra ou exceção, mas não deixa de ser mais uma comprovação do caráter

didático de suas entrevistas.

De qualquer forma, o didático de Clérambault não era marcado pelo

automatismo que caracterizou as apresentações realizadas em sua época, até seu declínio.

40 Tradução livre do espanhol. 41 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Ainda que a psiquiatria clássica estivesse em decadência42, Clérambault, em seu

anacronismo paradoxal, produziu saber. Saber que era aplicado, posto à prova e recriado na

apresentação. Assim, as apresentações do último dos grandes clássicos foram marcadas

pela vivacidade e dinamismo, como as apresentações dos primeiros tempos.

Para finalizar, fica uma questão: que efeito essas estratégias produziam nos

pacientes? Não há dúvidas de que eram estratégias extremamente favoráveis, tanto ao

ensino, quanto à definição de diagnóstico e prognóstico. Mas qual o efeito para o sujeito?

Isso tinha alguma repercussão em sua posição? Criava expectativas? Apaziguava?

Infelizmente, como na tradição psiquiátrica, também em Clérambault, nada foi dito sobre

isso.

De fato, esse aspecto, essa preocupação com o efeito, nós o encontraremos na

atualidade. É na prática psicanalítica que essa questão vem se colocando. Mas como essa

prática se desenvolveu na psicanálise? O que fizeram Freud e Lacan da experiência que

tiveram com seus mestres? Sobre isso, trataremos a seguir.

42 Conf. p. 44.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

4 APRESENTAÇÃO DE PACIENTES NA PSICANÁLISE

Até aqui, trabalhamos a apresentação de pacientes realizada segundo o

discurso médico. Entretanto, não nos passou desapercebido que dois dos grandes

mestres da apresentação, Charcot e Clérambault, foram justamente reconhecidos

como tendo sido os mestres dos dois maiores psicanalistas: Freud, seu inventor, e

Lacan, aquele que recolocou em pauta a radicalidade da descoberta freudiana.

Assim, não pudemos deixar de interrogar que relação eles tiveram com este

dispositivo da apresentação, tão caro a seus mestres.

Pergunta que se estende também a nós, à nossa prática atual. Afinal, qual

seria o sentido de todo esse percurso, senão o de colocar-nos em uma posição menos

ingênua, possibilitar-nos uma visão mais crítica, para podermos pensar em que ponto

nos encontramos, nos dias de hoje, em relação a essa prática?

4.1 FREUD, ALUNO DE CHARCOT

"Não se preocupe; a histeria está progredindo e, um dia, chegará

a ocupar, gloriosamente e em plena luz do sol, o lugar de

importância que lhe é devido" (Charcot)1.

“Freud ficou deslumbrado com Jean Martin Charcot”. É assim que Peter

Gay introduz a narrativa sobre o encontro de Freud com Charcot. (GAY, 1989, p. 60)

Certamente, não há aí exagero algum. Ao referir-se a Charcot, Freud demonstra

respeito e admiração, tanto por seu encanto pessoal, como por seu estilo científico.

Nas palavras de Freud, Charcot era “sempre estimulante, instrutivo e

brilhante”, “[um homem] de cuja pessoa e cujos textos ninguém jamais se aproximou

sem que aprendesse alguma coisa”. Chega mesmo a confessar: “Charcot, que é um 1 Carta de Charcot a Freud, em 23 de janeiro de 1888. Segundo Masson ([s.d.], p. 20), na casa de Freud, em Maresfield Gardens, Londres, havia sete cartas não publicadas de Charcot a Freud, escritas entre 1888 a 1892.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

dos maiores médicos e um homem cujo senso comum tem um toque de gênio, está

simplesmente desarraigando minhas metas e opiniões. [...]; o que sei é que ninguém

jamais me afetou dessa maneira...” (FREUD [1893]1976, p. 19-21).

Mas não nos esqueçamos: foi enquanto neurologista que Freud se dirigiu a

Salpêtrière. Certamente que Freud deve ter aprendido muito de neurologia, mas como

nos diz Jones, “a impressão que ficou foi a dos pronunciamentos de Charcot sobre o

tema da histeria, [...]” (JONES, 1989, p. 218). Sobre o mestre, mais especificamente

sobre a reprodução artificial da histeria, Freud reconhece: “Esse foi o passo que

também lhe assegurou para sempre a fama de ter sido o primeiro a explicar a histeria”

(FREUD [1893]1976, p. 33). E foi esse aspecto da investigação da histeria que marcou

o fim do período neurológico de Freud. Seu encontro com Charcot ficou conhecido

como o tempo de sua passagem da neuropatologia à psicopatologia.

Como propõe Jean Allouch, poderíamos supor que a principal contribuição

que Freud extraiu de Charcot foi a "autorização" para investigação do tema. Afinal, até

então, a histeria era considerada uma simulação, portanto, nenhum médico perdia

tempo com ela – era considerada um assunto mais para os moralistas do que para os

médicos sérios. Entretanto, Charcot investigava e elaborava concepções

revolucionárias sobre a histeria. Não há dúvida de que Charcot deu um enorme

estímulo ao tema da histeria. Ao diagnosticá-la como uma verdadeira enfermidade,

tornou-a uma doença respeitável, uma doença do sistema nervoso. De fato, era

surpreendente que um neurologista tão ilustre se ocupasse tão seriamente desse

assunto!

[...] O grande Mestre da neurologia mundial pondo em jogo toda a sua autoridade no interesse que dedicou, a partir de 1870, à histeria, deu seu título de nobreza a esta doença, tornando assim viável, daí por diante, sua abordagem científica. [...] por ter se beneficiado do selo de um Charcot autor (já que autoridade e como tal reconhecido), essa histeria assim autorizada teria sido, segundo os historiadores, o ponto de partida daquilo a que se autorizou Freud com a histérica. (ALLOUCH, 1995, p. 40)

Se Charcot "autoriza" Freud a investir na histeria, não obstante, a trilha que

este seguirá será uma outra, diferente da do mestre. A partir da cena "visual"

produzida por Charcot, na qual a histérica ocupava o lugar central, Freud, para além

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

das grandes manifestações, pode captar uma "outra cena". Como avalia Elisabeth

Roudinesco, “Freud foi levado a conceber a possibilidade de um pensamento

desvinculado da consciência: este produziria efeitos somáticos à revelia dos

indivíduos, já que a histérica era ‘possuída’ por seus sintomas” (ROUDINESCO, 1988,

p. 34).

Nesse sentido podemos pensar que o fascínio de Freud por Charcot tenha

sido tanto mais pelo homem: grande neurologista, renomado, cuja fama dava

notoriedade até mesmo aos seus alunos – do que por seus ensinamentos específicos.

Afinal, mesmo sem o saber, Freud, ciente do trabalho de Breuer com Anna O.2, estava

um passo adiante do que Charcot jamais conseguiria vir elaborar acerca do

funcionamento histérico.3 Enquanto Charcot sustentava a lesão funcional, Freud já

tinha tomado conhecimento da operação de significação.

Como vimos, para Charcot, a noção de trauma justificava a paralisia como

resultado das idéias que tinham dominado o cérebro do paciente no momento do

incidente, o que produziria uma disposição especial, um estado similar ao estado

produzido por ele, com o uso da hipnose. Já para Freud, o trauma é constituído pela

ligação da idéia suscitada pelo momento do choque traumático, com uma outra idéia

com a qual ela se viu anteriormente ligada.

Freud chegou, inclusive, a relatar o caso de Anna O. a Charcot, que não

demonstrou muito entusiasmo pelo fato. Parece consenso entre os historiadores de

Freud, que o desinteresse de Charcot tenha influenciado na obstrução temporária do

interesse do próprio Freud, antes tão entusiasmado com a descoberta. Sob a

admiração e a influência do mestre, Freud passa a dar ênfase ao fator traumático,

2 Nome dado a Bertha Pappenheim, paciente de Breuer, no período de 1880 a 1882, a quem foi atribuída a invenção da psicanálise, cujo método de tratamento era feito pela fala – quando em estado hipnótico, Anna O. falava de seus sentimentos hostis contra o pai, tendo como efeito, o desaparecimento dos sintomas. 3 Em 1895, Breuer e Freud publicaram Estudos sobre histeria, no qual defendiam a tese de que os pacientes histéricos reprimiam memórias traumáticas. Segundo Freud: “Supunha-se que o sintoma histérico tinha origem quando a energia de um processo psíquico não podia chegar à elaboração consciente e era dirigida para a inervação corporal (conversão) [...]. A cura era obtida pela libertação do afeto desviado, e a sua descarga por vias normais (ab-reação)” (LAPLANCHE, 1985, p. 95).

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

retomando, somente algum tempo depois, a noção “[...] da relação 'simbólica' entre a

causa determinante e o sintoma histérico” (FREUD [1893]1976, p. 46).

“Mesmo depois que passou a questionar alguns aspectos do ensinamento

de Charcot, Freud continuou a render-lhe todas as homenagens ao seu alcance: além

de traduzir para o alemão as conferências de Charcot, continuou a difundir suas idéias

e citá-lo como autoridade nas ocasiões apropriadas” (GAY, 1989, p. 64). Afinal, como

lembra Jones, Freud reconhecia que “Muito do que Charcot demonstrou não pode ser

posto de lado e constituiu um incremento permanente para o conhecimento”. Como já

vimos, a obra de Charcot tornou mais definido o diagnóstico da histeria, mostrou que

várias afecções atribuídas a outras causas eram realmente de natureza histérica,

enfatizou a existência da histeria no sexo masculino, qualquer que fosse a base

neurológica da histeria, os sintomas podiam ser tanto tratados quanto abolidos apenas

por idéias. (JONES, 1989, p. 234-235)

Nessa perspectiva, Freud traduziu para o alemão dois volumes de Charcot:

Leçons sur les maladies du système nerveux, no qual acrescentou um prefácio; e as

Leçons du Mardi de la Salpêtrière, sobre as lições pronunciadas no período de 1887-

1888. Além da tradução, organizou, escreveu um prefácio, e acrescentou 62 notas de

pé de página com suas opiniões pessoais – algumas vezes fazendo crítica aberta a

Charcot. Algumas dessas notas têm grande interesse, por pronunciarem as idéias

iniciais de Freud sobre psicopatologia4. (JONES, 1989, p. 235-236)

4.1.1 Freud: sob o efeito das apresentações de Charcot

Charcot ensinava apresentando. Assim, não é exagero dizer que, muito da

fascinação de Freud, foi constituída justamente sob o impacto das apresentações. Haja

vista a descrição que Freud faz dessas apresentações:

Como professor, Charcot era positivamente fascinante. Cada uma de suas aulas era uma pequena obra de arte na construção e na composição; era formalmente perfeita e tão marcante, que pelo resto do dia não conseguíamos

4 Segundo Jones, “Charcot ficara aborrecido com o que considerou um comportamento arbitrário de seu tradutor, já que este não havia pedido qualquer permissão [para inserir seus comentários]” (JONES, 1989, p. 236).

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

expulsar de nossos ouvidos o som de suas palavras nem de nossas mente a idéia que ele demonstrara. (FREUD [1893]1976, p. 22)

Neste caso, Freud referia-se à apresentação tradicional, pois, como

dissemos no capítulo anterior, durante longo tempo, Charcot realizava dois tipos de

apresentações por semana: essa “exposição formal, em que tudo estava preparado e

todas as coisas deviam ter o seu lugar, Charcot de fato seguia tradição profundamente

enraizada” (FREUD [1893]1976, p. 22), e as apresentações conhecidas como Leçons

du Mardi, mais livres, espontâneas, sujeitas ao inesperado. Sobre estas, Freud

demonstra um encantamento ainda maior. No obituário dedicado ao mestre, viria a

dizer ser este o momento em que ele parecia mais grandioso para seus ouvintes, pois

apresentava detalhadamente seu raciocínio com a maior franqueza sobre suas dúvidas

e hesitações, esforçando-se em reduzir a distância entre professor e aluno. (Freud

[1893]1976, p. 29)

Sobre as Leçons du Mardi, vale a pena conferir a cuidadosa descrição que

Freud fez dessa prática no prefácio introduzido na tradução alemã feita por ele. Segue

aqui um pequeno trecho indicativo do seu efeito sobre Freud:

Era nessas ocasiões que, fascinados tanto pelo talento artístico do narrador como pela inteligência penetrante do observador, ouvíamos atentamente as pequenas histórias que mostravam como uma experiência clínica tinha levado a uma nova descoberta; era então que, em companhia de nosso mestre, éramos conduzidos da consideração de um quadro clínico, relativo a uma doença nervosa, para o debate de algum problema fundamental da doença em geral; era também nessas ocasiões que todos víamos, a um só tempo, o mestre e o médico dando lugar ao sábio, cuja mente aberta absorveu o grande e variado panorama das realizações do mundo e que nos proporciona um vislumbre de como as doenças nervosas não devem ser consideradas uma extravagância da patologia, mas sim um componente necessário de todo o conjunto. (FREUD [1892]1977, p. 194) (Grifo meu)

Se ainda fica alguma dúvida sobre a incidência dessas apresentações sobre

o Freud, temos ainda mais um argumento: Freud não apenas adquiriu uma reprodução

do quadro de André Brouillet, Une leçon clinique a la Salpêtrière, como o pendurou

orgulhosamente em seu consultório. (Gay, 1989, p. 64) Sobre a gravura, Jones nos

conta um pitoresco relato da filha mais velha de Freud:

Em minha infância, tinha para mim uma estranha atração e com freqüência perguntei ao meu pai o que estava errado com a paciente. A resposta que sempre obtive era a de que ela estava "com a roupa muito apertada", como uma lição sobre a tolice de se fazer isso. O olhar que ele dirigia a gravura fez-me sentir então, mesmo sendo uma criança ainda pequena, que ele evocava

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

para ele lembranças felizes ou importantes, sendo-lhe cara ao coração. (JONES, 1989, p. 218)

4.1.2 As apresentações de Freud

Apesar do fascínio que as apresentações de Charcot produziram, este não

foi um dispositivo muito utilizado por Freud.

Temos, em verdade, alguns poucos relatos de sua aplicação, realizados

estritamente de acordo com a prática médica do ensino reinante na época, ocorridos

antes mesmo de sua ida à França.

Jones relata tal experiência de Freud, no início de 1884. Freud, que já

trabalhava no Hospital Geral, nesse período passou a trabalhar no setor do Dr. Franz

Schol, que graças à sua "indolência senil", tinha a vantagem de dar ampla liberdade

aos médicos a ele subordinados, o que possibilitou a Freud dedicar-se a estudos mais

ou menos extra-oficiais. Dedicou-se ao estudo das lesões da medula oblonga,

dominando de tal forma o tema, que seus diagnósticos com confirmação post-mortem

ganharam fama, propiciando um afluxo de médicos americanos, para os quais Freud

chegou a fazer conferências. Como dispositivo, usou então a apresentação de

pacientes. Sobre uma apresentação realizada nessa época, Jones cita o seguinte

comentário de Freud:

[nessa época] Eu não sabia nada sobre as neuroses. Certa ocasião, apresentei à minha platéia um neurótico que sofria de persistente dor de cabeça como sendo um caso de meningite crônica localizada; todos de imediato se revoltaram contra mim, de modo que minhas prematuras atividades como professor tiveram fim. (JONES,1989, p. 209)

Outro relato de apresentação de pacientes feito por Freud, desta vez, nos

moldes de Charcot, foi em 1886. Essa apresentação decorreu de um desafio de

Meynert. No intuito de relatar suas experiências no exterior, em 15 de outubro de 1886,

Freud apresentou diante da Gesellschatt der Ärzte (Sociedade de Médicos), um artigo:

Sobre a histeria masculina. Freud foi criticado por diversas autoridades presentes, e

Meynert o desafiou a provar suas palavras, apresentando um caso de histeria

masculina com os sintomas típicos de Charcot.

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Em 26 de novembro do mesmo ano, Freud apresentou o caso perante a

Sociedade Médica: Observação sobre um caso grave de hemianestesia em um homem

histérico (Freud [1886]1977, p. 59-67).

Trata-se de uma apresentação realizada nos moldes tradicionais da

medicina5. Freud inicia anunciando o diagnóstico: “apresento perante os senhores um

homem histérico que mostra o sintoma de hemianestesia, num grau que se poderia

descrever como o mais elevado”. Não se trata, portanto, de uma investigação

diagnóstica, pois ele já sabe do que sofre o enfermo. A participação do paciente é,

antes, como uma ilustração viva dos pressupostos teóricos a serem demonstrados. O

objetivo de sua presença é servir de prova das “indicações somáticas da histeria –os

‘estigmas histéricos’, pelos quais Charcot caracteriza essa neurose” (FREUD

[1886]1977, p. 59).

A palavra é de Freud. É ele quem faz um breve relato da história pessoal do

rapaz, August P., gravador, de 29 anos. Esclarece seus antecedentes familiares, dados

do desenvolvimento infantil, descrição dos sintomas apresentados durante sua vida e,

finalmente, o início e a evolução do quadro atual. Freud relata assim, os fatores

desencadeantes, a evolução das manifestações sintomáticas e seus efeitos na vida do

paciente. O sujeito não se pronuncia. Afinal, não há qualquer interesse nos aspectos

subjetivos do caso. Assim, Freud pode falar por ele, situando o público sobre os

aspectos factuais do caso.

Em seguida, o exame clínico, no qual são avaliados sua sensibilidade e

reflexos. Métodos como alfinetadas, introdução de rolinhos de papel no canal auditivo,

entre outros, são utilizados para demonstrar a extensão e a veracidade dos

fenômenos. Afinal, tratando-se de histeria, era de fundamental importância excluir a

possibilidade de simulação.6

5 Importante lembrarmos que Freud encontrava-se no campo da neurologia, e não da psiquiatria, portanto, sua referência não era o interrogatório usado pelos psiquiatras clássicos, como vimos no capítulo 1. 6 Talvez, por isso mesmo, Freud tenha feito uma curiosa observação no início da apresentação: “um fato que fala muito a favor de seu caráter” (FREUD [1886]1977, p. 60).

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Por fim, além dos aspectos concordantes, Freud indica, também, os desvios

que este caso apresenta em relação ao caso típico.

Como já vimos, nessa situação, Charcot não hesitava em usar mais de um

paciente. Quanto a Freud, nunca saberemos se se tratou de uma opção ou justamente

de uma falta de opção: Freud relata a dificuldade de conseguir um paciente para esta

apresentação – não porque a histeria masculina fosse rara, mas, antes, pela

resistência dos médicos mais antigos do Hospital Geral, que se recusavam a permitir-

lhe o "uso do material" de que dispunham.

"Uso do material" – sim, essa é a expressão usada por Freud – mas

insistimos: não o acusemos se observamos, aqui, indícios da tão "inescrupulosa

objetificação", da qual a apresentação de pacientes é acusada7. É preciso lembrar ser

esta a forma como a ciência, e não apenas o dispositivo da apresentação, aborda o

seu objeto, forma que, aliás, o próprio Freud viria, posteriormente, a subverter.

Inclusive, se observarmos a última frase de Freud: “É na instabilidade do distúrbio da

sensibilidade que baseio minha esperança de ser capaz de restaurar a sensibilidade

normal do paciente, dentro de pouco tempo” (FREUD [1886]1977, p. 67), podemos

perceber (como vimos também em Charcot) que tal abordagem da histeria não se

reduzia a uma investigação narcísica de demonstração e exposição de saber e de

poder. Freud explicita, claramente, a vocação terapêutica aí investida.

Infelizmente, não vamos encontrar qualquer relato sobre o efeito da

apresentação sobre o paciente, o que faz sentido, já que não era ele, sujeito, quem

estava em questão, mas a demonstração de seus sintomas, de sua doença. O que é

uma pena, nesse caso, pois, logo no início da apresentação de Freud, encontramos

uma frase que talvez possamos considerar um pequeno gérmen do estilo freudiano:

“um homem inteligente, que de pronto se ofereceu para ser examinado por mim, na

esperança de conseguir uma rápida recuperação” (FREUD [1886]1977, p. 59) (Grifo

meu). Tanto a aceitação do rapaz, quanto sua expectativa de que, ali, algum efeito se

7 Referimo-nos à carta do Conselho Federal de Psicologia. (Conf. Anexo 1)

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

produzisse, são indícios do consentimento e da transferência, aspectos que, hoje,

supomos fundamentais para a apresentação de paciente enquanto uma operação

clínica.

Como pudemos acompanhar, a apresentação em si, não parece ter trazido

inovações – não há relato de hipnose ou exibições espetaculares. Entretanto, Freud

sentiu forte resistência do público, o que, certamente, não se deveu ao dispositivo

utilizado, mas ao seu conteúdo. Relatou: “Dessa vez fui aplaudido, mas não adquiriram

mais interesse por mim. A impressão de que as altas autoridades haviam rejeitado

minhas inovações permaneceu inabalável; [...]” (FREUD [1925(1924)]1976, p. 27).

Confessa que, deste encontro, ficou o desapontamento quanto à possibilidade de

transmitir novas idéias aos colegas médicos mais velhos e conservadores.

Para finalizar, é importante lembrarmos que estamos aqui num momento

anterior à subversão freudiana. Nessa apresentação, Freud está respaldado pelo

discurso médico. Posteriormente, estabeleceu um outro discurso e, como método de

transmissão, elegeu, não mais a apresentação de enfermos, mas a comunicação do

caso clínico.

Segundo Elisabeth Roudinesco, entre outros motivos, Freud preferiu os

casos clínicos em função de sua separação progressiva “da clínica dominada pela

função do olhar, pelo culto do quadro e pelo da aula; instaurou uma nova prática,

fundamentada na primazia da escuta e do relato” (ROUDINESCO, 1988, p. 34).

Charcot, ainda que tenha inovado no objeto (histeria) e na forma de sua

investigação (hipnose), toda a sua prática foi assentada no discurso médico. Como nos

diz Jean Clavreul, um discurso sustentado pela produção de saber classificatório, no

qual se possa enquadrar o paciente. Assim, a fala do paciente é transformada em

signos, em sinais médicos, sendo reduzida àquilo que dela possa ser inscrito num

saber constituído. (Clavreul, 1983, p. 18-19)

O médico, como vemos claramente nas apresentações de Charcot, toma o

paciente como objeto ao qual aplica um saber prévio – seja para contestá-lo, seja para

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

confirmá-lo ou demonstrá-lo. A subjetividade não é, de forma alguma, considerada – o

saber está do lado do médico e cabe a ele dizer sobre isso.

Freud subverte essa perspectiva médica justamente ao deslocar o lugar do

saber – do médico para o paciente. Assim, Freud instituiu uma clínica que supera essa

perspectiva médica, estabelecendo um verdadeiro corte discursivo – o sujeito, até

então alienado no saber médico, toma a palavra – é ele quem tem algo a dizer. Não se

trata de classificá-lo, de dar-lhe respostas, mas, antes, de dar-lhe condições para que

produza, ele mesmo, um saber sobre seu sofrimento.

E é em seus casos clínicos que podemos testemunhar esse método, pois é

a partir dos casos escritos, que Freud irá nos apresentar sua teoria. Tendo como base

a construção do caso clínico, ou história clínica, como ele costumava chamar, Freud

tentava compreender os tropeços práticos, os pontos onde o tratamento emperrava.

Articulando teoria e prática, ele foi construindo as noções fundamentais da psicanálise.

Ao construir o caso do paciente, construía a teoria analítica, que, por sua vez,

possibilitava, concomitantemente, o trabalho de construção do caso.

Nas notas preliminares ao caso Dora, encontraremos suas elaborações

acerca do porquê se utilizar das "histórias clínicas", assim como sobre as dificuldades

e riscos de publicar este tipo de trabalho. Esclarece que sua intenção é de

“fundamentar aquêles conceitos apresentando um relato pormenorizado de história de

um caso clínico e seu tratamento” (FREUD [1905]1972, p. 5). Mas, para além de uma

ilustração teórica, como nos sugere Nasio (2001, p. 12), encontraremos em Freud, a

situação clínica tomada mesmo como um mote para a construção da teoria.

Tomemos como exemplo deste trabalho em Freud, os célebres casos Dora,

Pequeno Hans, O Homem dos Ratos, O Homem dos Lobos, A Jovem Homossexual –

pacientes atendidos por Freud, cuja construção do caso se deu quando da descrição

de seu tratamento analítico. Outro exemplo importante é o caso do Presidente

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Schreber, cujo objeto de análise não foi exatamente o sujeito, mas sim, seu escrito

autobiográfico.8

Retomando esses casos, podemos perceber claramente essa imbricação

que há entre clínica e a teoria. Mario Pujó (1994, p. 15), citando Mannoni9, aponta-nos

como é possível perceber essa estreita vinculação entre o estudo de cada um dos

casos de Freud e uma pergunta teórica, uma questão polêmica, que fora trabalhada em

outro texto.

Assim, o caso Dora – "Sonhos e histeria" – continua a investigação iniciada na ‘Interpretação dos sonhos’, mostrando a utilidade do emprego da análise dos sonhos na clínica. O homem dos ratos permite ver desnudo o discurso inconsciente irrompendo na forma de representações verbais, constituindo um colocar em prática da ‘Psicopatologia da vida cotidiana’. O caso Hans, intimamente ligado à comprovação da sexualidade infantil, encarna por sua vez uma espécie de "prova" concreta das afirmações sustentadas em "Uma teoria sexual". Do mesmo modo, o comentário das "Memórias de um doente dos nervos" de Daniel Paul Schreber que constitui francamente um curioso "historial", requer uma reformulação da dinâmica libidinal e de suas fixações que conduz necessariamente à "Introdução ao narcisismo". O homem dos lobos é fruto do ríspido debate que Freud manteve com Jung e Adler acerca da libido e da sexualidade infantil, controversia que afeta a condução do tratamento e incide em seus resultados, dando lugar à promoção teórica da cena primitiva. O caso da jovem homossexual abre perguntas indicativas ao Édipo e à sexualidade feminina, que textos posteriores como "Algumas conseqüências..." e "A feminilidade" tentarão responder. (PUJÓ, 1994, p. 15)10

O que vemos, em cada caso, não se limita ao factual. Ao contrário, em cada

um dos casos que Freud nos apresentou, podemos ver como ele se detém em sua

singularidade. Assim, nos casos escritos por Freud, a subversão clínica produzida por

ele revela na importância que a própria palavra do paciente é implicada em sua cura.

Freud buscava obter do paciente, não uma simples reconstrução de sua história, mas,

mais precisamente, a interpretação que fazia dela, a partir de sua vivência atual,

buscando estabelecer, assim, a lógica do sujeito.

A comunicação do caso clínico tornou-se uma prática comum entre os

psicanalistas. Não sabemos como teriam sido as apresentações de Freud se ele

tivesse aplicado a elas o seu método discursivo. Esse é um passo que será dado por

8 SCHREBER, Daniel Paul. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. 9 MANNONI, Octave, El Hombre de las ratas. La outra escena – claves de lo imaginario. Buenos Aires: Amorrortu, [s.d.], p.10. 10 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Lacan e, como veremos em seguida, uma modificação que transformará radicalmente

os objetivos e os efeitos desse dispositivo.

4.2 AS APRESENTAÇÕES DE LACAN

Podemos tentar uma hipótese: a análise, que não tem realmente lugar

no divã de Loewenstein, desenrola-se, para Lacan, num outro espaço.

Ao lado de uma mulher, Aimée, a criminosa, Aimée, a paranóica,

desempenha um papel fundamental no itinerário de Lacan. Ela lhe

oferece sua fala, sua história, sua escrita e sua loucura, permitindo-lhe

tomar-se o artífice de uma nova introdução - do freudismo na França.

Com Clérambault, Lacan aprende a observar os loucos. Com Aimée,

renuncia a tomar-se Clérambault. No Sainte-Anne, ele se põe a

escrever, transforma-se e adquire uma identidade de teorizador e de

psicanalista. Se Clérambault é para Lacan o que Charcot fora para

Freud, Aimée é, para o mesmo Lacan, o que Fliess foi para Freud.

(ROUDINESCO,1988, p. 137)

Jamais - ah! como quisera esse ‘jamais’ fosse exatamente verdadeiro, e que a rotina não tivesse assolado meu coração - jamais fui ao Henri Rousselle assistir à apresentação de doentes de Lacan sem temer o que iria acontecer por lá. Desculpem-me por dizê-lo de um modo muito simples: um homem, o paciente, um desafortunado, lá encontra sem saber uma figura de seu destino; por uma, duas horas, será escutado, sondado, questionado, manejado, avaliado enfim, e os poucos termos que sairão da boca de Lacan pesarão bastante, todos sentem, na balança de sua sorte, já que, evidentemente, é mais freqüente que a Lacan seja submetido o chamado caso difícil. (MILLER,1996, p. 138) (Grifos meus)

É assim que J.A. Miller descreve as apresentações de Lacan, em seu artigo

sobre o tema: Lições sobre a apresentação de doentes. Nessa pequena abertura, ele

já nos dá a perceber que essas apresentações se sustentavam em outras bases, muito

diferente das bases dos antigos interrogatórios. Tratava-se, antes, de um encontro: um

analista, que escuta, com um sujeito que fala. E se este fala, é porque tem algo a dizer

– um saber, mesmo que não sabido, sobre as interpretações que faz de suas

experiências, de seu sofrimento, sobre sua história.

Há, na apresentação de Lacan, algo inédito – em lugar do saber/poder do

médico, o que ordena o encontro é o saber do paciente. Uma inovação surpreendente

e que produziu efeitos. Talvez seja essa a chave para entendermos porque,

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

diferentemente de seus antecessores, no caso de Lacan, há vários textos, vários

artigos, com elaborações acerca de suas apresentações.

Na verdade, Lacan não fez, ele mesmo, nenhuma formalização sobre o

tema, ainda que reconhecesse sua importância:

Pode-se lamentar que o que foi escutado, recolhido ao longo dos anos não tenha sido objeto de um trabalho sistemático. Num certo momento Lemoine tomava notas sobre tudo o que se relatava nestas apresentações. Eu sugiro isso, dou testemunho daquilo como de uma experiência que não será impossível de sistematizar, ainda que não seja eu quem deva ser o ponto pivô. (LACAN [1970]2004, p. 14)11

Sobre suas apresentações, encontramos, através do próprio Lacan, alguns

fragmentos citados em momentos muito precisos de seus seminários e escritos, como

veremos adiante. Todavia, tocados pela experiência, muitos daqueles que participaram

de suas entrevistas, retrataram seu caráter surpreendente e inovador e trabalharam

suas conseqüências12. Entre outros, podemos citar: Éric Laurent, François Leguil,

François Sauvagnat, Jacques-Allain Miller, Colette Soler. Temos, inclusive, algumas

entrevistas que foram transcritas na íntegra, como os casos Mademoiselle B. e Gérard

Primeau13. Serão alguns desses trabalhos que tomaremos como referência para

nossas elaborações.

De fato, Lacan praticou apresentação de pacientes, mesmo antes de se

formar psicanalista. Ele mesmo afirmou que foi pouco antes de ter Aimée como

paciente, cujo caso foi objeto de sua tese de doutorado em medicina,14 que ele

começou esse tipo de prática:

Em suma, e para lhe prestar homenagem, foi em torno dessa paciente, Aimée, que fui aspirado para a psicanálise. Não foi só ela, é claro, alguns outros antes e muitos depois para quem dei a palavra, eis em que consistem minhas apresentações de pacientes. (LACAN, 1972, CR Rom)15

11 Tradução livre do espanhol. 12 É importante acentuar que foram trabalhadas suas conseqüências teóricas e de transmissão. Infelizmente, também em Lacan, como com seus antecessores, não temos relatos dos efeitos produzidos pela apresentação. Como veremos adiante, a preocupação com os efeitos produzidos, seja diretamente sobre o paciente, seja sobre o seu tratamento de uma forma mais ampla, parece ser uma preocupação mais própria da nossa época. 13 Conf. 1) Documento. O caso de Mademoiselle B., entrevista realizada em 1976, e publicada no Brasil, em Psicose. Associação Psicanalítica de Porto Alegre; 2) Apresentação de Gérard Primeau, publicada sob o título Uma psicose lacaniana: Entrevista conduzida por Jacques Lacan. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 26-27, abr. 2002. 14 LACAN, Jacques. Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987. 15 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Segundo informação de Antônio Quinet, o “encontro com Marguerite Anzieu

ou Aimée ocorreu no dia 3 de junho de 1931 no hospital psiquiátrico Sainte-Anne [...]

Essas apresentações prosseguiram ao longo de todo seu ensino até junho de 1960,

data verificada com Dr. Jean Aymé, Médecin des hôpitaux (Braud,1998)” (BRAUD apud

QUINET, 2001, p. 85). De fato, essa data indicada por Braud, na citação de Quinet

(2001, p. 87), é controversa, pois, efetivamente, há referências que sua prática tenha

ido além desse período. Segundo Éric Laurent, Lacan realizou entrevistas até 1980

(Laurent, 1989, p. 149), o que parece mais provável, visto que, por exemplo, a

apresentação de Mademoiselle B., citada acima, foi realizada em 1976, por Lacan, no

hospital Henri Rousselle. De qualquer maneira, foram no mínimo 30 anos realizando

apresentações.

Mas, antes de falarmos das apresentações de Lacan, é interessante

localizar o momento histórico em que ele inicia essa prática, pois é recorrente

encontrarmos a indicação de que Lacan a resgatou do risco de esquecimento. De fato,

Lacan adere à prática desse exercício num período em que o descrédito atingia o

saber psiquiátrico e, conseqüentemente, o dispositivo da apresentação de pacientes.

Na realidade, no momento em que Lacan começa suas apresentações, elas

eram uma prática comum nos hospitais. Todavia, como dissemos, uma prática marcada

pelo automatismo, pelo empobrecimento do caráter puramente didático, e pelos

ataques de seus opositores. Por isso tudo, pode-se dizer que a prática da

apresentação estava ameaçada de desaparecimento, de cair no esquecimento.

Como vimos anteriormente, a psiquiatria clássica via esgotado seu método

descritivo, sem ter, entretanto, alcançado êxito terapêutico. Havia, portanto, atingido

seus limites – encontrava-se agora acomodada em seu saber constituído, descolada do

terreno da investigação e da pesquisa, tendo caído no automatismo, inerte, repetitivo.

A apresentação, antes lugar privilegiado de aplicação e produção de saber, perdeu seu

lugar dinâmico de invenção, ficando abandonada ao automatismo acadêmico,

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

restringindo-se à função de "ilustração viva", dos quadros conhecidos. (Leguil, 1998, p.

96)

Curiosamente, em lugar de aderir às interrogações colocadas à

apresentação, seja pela anti-psiquiatria, psiquiatria institucional ou, ainda, pela

psicofarmacologia, Lacan, mesmo diante desses três obstáculos, encontra interesse

nessa psiquiatria agonizante, e sustenta a sua importância.

Por que Lacan seguiu praticando esse exercício tão criticado?

Como nos indica François Leguil, “se Jacques Lacan, indo contra o senso

comum, preservou essa prática, não seria pelo fato de considerar que se devia ainda

procurar nela e nela encontrar uma relação específica e insubstituível com a verdade

que está em causa na clínica?” (LEGUIL, 1998, p. 97).

4.2.1 (Re)instaurando a dimensão clínica

De fato, ao retomar a apresentação de pacientes em sua prática, Lacan

traz, ao mesmo tempo, uma continuidade, por não deixar cair no esquecimento este

dispositivo marcado por seu caráter público, mas também uma ruptura com a forma

como esta era conduzida.

Sobre essas outras práticas contemporâneas a Lacan, em lugar do aspecto

clínico, de intervenção e produção de saber médico, que a caracterizaram em sua

origem – sob a forma dos interrogatórios, agora, como efeito desse automatismo

didático, estas estavam reduzidas à exibição de saber. Os pacientes eram expostos

aos estudantes de psiquiatria como ilustração de pontos específicos da teoria, de

quadros clínicos e de fenômenos psicopatológicos. A apresentação de pacientes era,

portanto, um espaço de demonstração, tanto dos fenômenos apresentados pelo

paciente, quanto do saber do mestre, do professor, que fazia a entrevista.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Ou ainda pior. A psiquiatria que, desde Babinski16, desenvolvia uma

abordagem reducionista, que limitava a doença aos signos mínimos, aos signos

suficientes para diagnosticar, ganhara força com a influência das idéias americanas

sustentadas no desenvolvimento da psicofarmacologia. Essa concepção, representada

hoje pelos parâmetros precisos das classificações dos DSM-IV e CID-10, favoreceu

uma "clínica da medicação". Em lugar de se interessar pela apreensão dos

mecanismos em jogo, pela discussão da causa e da articulação entre os diversos

sintomas e sua evolução, a apresentação de pacientes passa a ser realizada para

atender às poucas necessidades dessa psiquiatria empobrecida. Ou seja, a

apresentação daquela época ficou reduzida à discussão diagnóstica em articulação

com uma função de ensino.

Esse período, marcado pela objetividade do positivismo científico, teve

ainda outras influências sobre o dispositivo da apresentação. A ciência positivista

advogava a tese de que as ciências humanas só poderiam se desenvolver como

verdadeiras disciplinas científicas, na medida em que adotassem a metodologia das

ciências naturais. Com o objetivo de responder às exigências positivistas, o uso das

salas protegidas por vidros espelhados permitia que entrevistador e paciente

pudessem ser observados sem que a presença do público pudesse ser percebida. Uma

tentativa de anular a influência do observador, minimizando ao máximo a interferência

sobre o objeto investigado.

Entretanto, Lacan, não cai nesse engodo positivista. Afinal, ele operava não

com os fenômenos comportamentais, mas com os fenômenos da linguagem – e a

linguagem, em sua estrutura significante, comporta uma objetividade que não se

modifica com a presença do observador17. Assim, nas apresentações de Lacan, a

presença do público era mais do que exposta, mais do que evidente.

16 Joseph Babinski era um eminente neurologista, aluno de Charcot, que, após a morte do mestre, precipitou um desmembramento da histeria. Segundo ele, a histeria não pertencia ao campo da neurologia, visto que seus fenômenos eram da mesma essência dos fenômenos hipnóticos, reduzindo-a a um produto da sugestão. (Trillat, 1991, p. 208) 17 “A linguagem é um fenômeno social. Entre os fenômenos sociais, é ela que apresenta mais claramente os dois caracteres fundamentais que propiciam um estudo científico. Primeiramente, quase todas as condutas

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Além do mais, Lacan conduzia a entrevista de uma maneira tal, que ele e

paciente ficavam como que separados do público. Como descreve J.A. Miller:

Não há nenhuma barreira física na sala e, entretanto, poderíamos igualmente estar atrás de um espelho sem aço ou, muito mais, é como se uma cápsula transparente isolasse Lacan e seu doente envolvido, sustentado por uma atenção invariável, evidenciada pela imobilidade quase completa daquele que questiona. (MILLER, 1996, p. 139).

De fato, havia também apresentações realizadas por outros analistas. Não

obstante serem psicanalistas, como nos diz Éric Laurent (1989, p. 152), estas eram

muito diferentes da entrevista de Lacan. Os psicanalistas faziam como se estivessem

em uma sessão de análise – longos silêncios, manifestando-se muito pouco.

Éric Laurent não fala que efeito produziam essas outras apresentações que

aconteciam no mesmo período em Sainte-Anne. Contudo, sobre as apresentações de

Lacan, ele afirma que estas eram muito diferentes das outras, tanto daquelas

realizadas por psiquiatras quanto pelos psicanalistas.

Segundo Éric Laurent, o que se podia ver era a surpresa dos psiquiatras

diante do trabalho de Lacan. Afinal, o que presenciavam ali não era em nada parecido

com o que tinham conhecido em sua própria formação – em lugar da exibição de um

doente, podiam testemunhar o encontro de um psicanalista com um sujeito. Como nos

diz Claude Léger: “duas pessoas conversando normalmente diante de um auditório

atento a este colóquio singular” (LÉGER, 1998, [s.p.]).

Ainda que as apresentações fossem extremamente ricas, desde o ponto

semiológico, o interesse não se limitava a isto. E Lacan, longe de uma demonstração

de fenômenos, procurava localizar a posição subjetiva do paciente, ou seja, ele

procurava, ele ia atrás dos indícios da posição de gozo do sujeito em relação ao Outro.

lingüísticas situam-se no nível do pensamento inconsciente. Falando, não temos consciência das leis sintáticas e morfológicas da língua. Além disto, não temos um conhecimento consciente dos fonemas que utilizamos para diferenciar o sentido de nossas palavras; somos ainda menos conscientes – supondo-se que pudéssemos sê-lo às vezes – das oposições fonológicas que permitem analisar cada fonema em elementos diferenciais. Enfim, a falta de apreensão intuitiva persiste, mesmo quando formulamos as regras gramaticais ou fonológicas de nossa língua. Essa formulação emerge, unicamente, no plano do pensamento científico, ao passo que a língua vive e se desenvolve como uma elaboração coletiva. Mesmo o sábio não consegue jamais confundir completamente seus conhecimentos teóricos e sua experiência de sujeito falante. Sua maneira de falar modifica-se muito pouco sob o efeito de interpretações que ele possa dar disto, e que provêm de outro nível. Na lingüística, pode-se, pois, afirmar que a influência do observador sobre o objeto da observação é desprezível: não basta que o observador tome consciência do fenômeno para que este seja modificado” (LÉVI-STRAUSS, [s.d.], p. 72-73).

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Como nos disse o próprio Lacan, seus marcos eram: “o paciente, eu, que o

interrogo de certa maneira, a forma que o paciente responde, e o que faz em suma o

interesse da apresentação em questão” (LACAN [1970]2004, p. 12)18 Para ele, o que

tinha um caráter sempre brilhante nas apresentações, era especificamente o último

termo, ou seja, aquilo que fazia com que o caso fosse levado a ele.

Vemos, portanto, que o realce dado por Lacan era diferente do que era

dado pela psiquiatria. A palavra, nas apresentações, não era dele, mas de seus

entrevistados, pois seu interesse não era a doença, o quadro clínico. Ele deu a palavra

aos pacientes, pois se interessava pelo caso, pelo relato de vida.

De fato, Lacan aplicou a escuta psicanalítica a essa prática originalmente

psiquiátrica, e dessa forma ele a renovou, melhor dizendo, ele a subverteu. Mantém-se

a forma de uma entrevista pública, em lugar da função didática, de demonstração

teórica, mas ao associar a psicanálise à apresentação, Lacan lhe imprime um caráter

fundamentalmente clínico. Como nos diz François Leguil, Lacan trabalha no ponto de

interseção entre a ambição universitária e as justas crenças que impulsionam a prática

psicanalítica. É a partir da crença na "virtude" da palavra para mudar a clínica de um

caso, que ele vai operar este dispositivo. Assim, o aspecto didático deixa de ser o eixo

do trabalho, eixo este que se desloca para a dimensão clínica. (Leguil [1993]2004, p.

44)

Talvez, por isso, suas apresentações fossem tão requisitadas. Durante

muitos anos, Lacan realizou, semanalmente, apresentações de pacientes no hospital

Sainte-Anne. Èric Laurent, que teve a oportunidade de participar dessas

apresentações, ao relatar sobre sua experiência (Laurent, 1989), nos diz um pouco

acerca de seu funcionamento. Segundo ele, essas apresentações se davam em

reuniões que contavam com um número entre 60 e 80 participantes19. Além dos

psiquiatras e residentes do serviço, essas apresentações de paciente eram

18 Tradução livre do espanhol. 19 Em 1970, num comentário sobre suas apresentações, Lacan nos diz que seu público, que assistia às suas apresentações, chegou a cerca de 120 pessoas. (Lacan, 1970, p. 12) (Tradução livre do espanhol)

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

freqüentadas por pessoas em formação psicanalítica, inclusive analisandos do próprio

Lacan, e também por um pequeno número de psicanalistas da Escola Freudiana.

Essa diversidade de público encontrava respaldo na abordagem de Lacan

que, se se interessava pela preocupação psicanalítica de buscar ouvir o saber do

sujeito, não o fazia desarticulado das preocupações do serviço psiquiátrico, como

diagnóstico e pesquisa. E, sem jamais se restringir ao exercício acadêmico, não

deixava de remeter seu público ao conhecimento da psiquiatria clássica. Na verdade, é

Lacan quem vai retomar o interesse pela psiquiatria clássica enquanto uma

contribuição importante para a clínica. Afinal, como já dissemos, esta se encontrava

em processo de esquecimento.

Se, por um lado, podia-se interrogar a clínica psiquiátrica enquanto uma

clínica do olhar, que não se interessa pelo saber do paciente, por outro, podia-se

utilizar as importantes contribuições de suas classificações tradicionais, com suas

descrições nosológicas e prognósticos.

Mais do que evocar esse saber clássico, Lacan interrogava o abandono

desse caráter investigativo, e colocava em questão o alcance da psiquiatria atual. Por

volta dos anos 60, como nos lembra François Leguil, Lacan costumava dizer aos

jovens psiquiatras:

É chocante que, de trinta anos para cá, não tenha havido nenhuma descoberta no campo psiquiátrico! Nenhuma modificação, por mínima que fosse, no campo da clínica, nem a menor contribuição... Agora, se vocês forem procurar até o ponto mais extremo, lá longe, bem minúsculo, irão encontrar um último retoque: minha tese, a paranóia de autopunição. Eu acrescentei um ponto na cava Kraepelin-Clérambault’. Daí em diante, na psiquiatria "inteiramente mergulhada no dinamismo farmacêutico [..] produzem-se coisas novas: obnubila-se, tempera-se, interfere-se, modifica-se" mas de um ponto de vista clínico, não se inventa mais nada que forneça uma orientação melhor sobre "o sentido dos fenômenos”. (LACAN apud LEGUIL, 1998, p. 95)

Segundo Leguil, o que se podia ver no trabalho de Lacan era a sua

preocupação de que um desejo clínico se passasse. Tanto François Leguil quanto Éric

Laurent chamam a nossa atenção pelo interesse que Lacan demonstrava pelos jovens

residentes e médicos, a gentileza e extrema atenção com que os acolhia.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Leguil acrescenta, ainda, que Lacan mantinha vivo o “questionamento

ininterrupto dos saberes constituídos” (Leguil, 1998, p. 97). Nas suas apresentações,

no seu encontro com os pacientes, ele transmitia a paixão pela descoberta.

Ele demonstrava, no próprio lugar em que a clínica nascera, tornando-se ‘um momento essencial à coerência científica’ (O nascimento da clínica pág. 70 da edição francesa), que ser psicanalista é hoje ser clínico, já que, hoje, ser clínico é não ser mais verdadeiramente psiquiatra. (LEGUIL, 1998, p.97)

Operava, assim, na fronteira, ou seja, no ponto de ruptura, mas também de

contato, de encontro, entre psiquiatria e psicanálise, fazendo um recorte e demarcando

o lugar de cada uma. Dessa forma, suas apresentações se tornaram um interessante

dispositivo de formação, pois segundo Éric Laurent, se constituíram em um espaço

privilegiado para se interrogar a interseção psiquiatria/psicanálise.

Assim, continuando com Leguil, “Lacan ia ao hospital para aceitar o desafio

recusado pelos psiquiatras e o desafio lançado à obra de Freud pela psicose”. Mesmo

entendendo que o tratamento não poderia se desenrolar no asilo, ele ia ao hospital,

pois:

Lacan queria que essa questão continuasse a agir, lá onde estavam, sobre aqueles que, como dizia sem qualquer preocupação de estilo, tinham o quinhão de estar "interessados pelo louco". Jacques Lacan os advertia de que a verdade do encontro deles com a psicose passava quase inevitavelmente pela angústia. O dever da psicanálise era, segundo ele; tornar possível responder de outro modo que não pela angústia à questão do objeto a que faz do psicótico um "homem livre", sem que demande isso o outro. Era isso o que Lacan queria. E quem assistia a suas lições não só sentia isso, como via que ele o conseguia. (LEGUIL, 1998, p. 99)

Podemos dizer que sua dimensão terapêutica foi ainda mais acentuada

devido ao tratamento que alguns psicanalistas davam às apresentações de Lacan. Um

pequeno grupo da Escola Freudiana, entre os quais podemos citar Jacques-Alain Miller

e Éric Laurent, começou, em 1974, a se reunir, após algumas das apresentações, para

“trabalhá-las”. Nas palavras de Éric Laurent, eles se reuniam para

discutir, tentar compreender como o dr. Lacan procedia, o que ele mesmo buscava, sobre o que tinha posto ênfase, o que tentava nos ensinar quando aí se punha de uma certa maneira, quando comentava de uma determinada forma. Tentávamos compreender a maneira como interrogava, e, efetivamente, o modelo; o que fazia o dr. Lacan. (LAURENT, 1989, p. 151)

E foi esse tipo de discussão que Lacan possibilitava, que, como dissemos,

acabou por acentuar o caráter clínico desse trabalho – em lugar da restrição a seu

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

objetivo de ensino, de diagnóstico, nas reuniões discutia-se a dimensão mesma do

tratamento, mais precisamente, de sua direção.

4.2.2 Lacan, para além de Clérambault

“Meu único mestre em psiquiatria” – era assim que Lacan se referia a

Clérambault. Lacan reconhecia a importância deste em sua formação. E, como vimos,

chegava mesmo a admitir que era a Clérambault que devia sua concepção estrutural e

psicogênica.

Mas, ainda mais – reconhece que Clérambault foi também seu “único

mestre na observação dos pacientes”. Se Lacan se coloca como aquele que deu

continuidade à obra de Clérambault, vemos que isso não se deu apenas no que diz

respeito à teoria, mas também, no que diz respeito à apresentação. E não há dúvidas –

Lacan soube desenvolver a acuidade clínica do mestre. Assim como Clérambault,

Lacan perpetuou o interesse agudo e penetrante dele, que buscava para além dos

fenômenos, a posição do doente. Todavia, ao fazê-lo, Lacan imprime seu estilo – ao

aplicar a escuta analítica à apresentação, ele a subverte. Lacan deixa de lado a

brutalidade com que as apresentações do mestre eram praticadas, estabelecendo

outra relação com seus pacientes, introduzindo ali, e em primeiro plano, a preocupação

terapêutica inexistente nas apresentações do mesmo.

E, como nos indica Antônio Quinet, sobre o estilo inaugurado por Lacan,

“toda a relevância é dada à singularidade de cada fala, tanto no nível do enunciado

quanto no da enunciação. Assim, Lacan reinventa a apresentação, que adquire então

um novo significado por ser de um estilo outro: ela deixa de ser mostração para ser

entrevista, encontro, tykhe” (QUINET, 1997, p. 156). E, uma vez operando na

dimensão do encontro, certamente que o interesse de Lacan não se limitou ao

diagnóstico. Idéia que pode ser confirmada pela impressão de François Sauvagnat.

Segundo ele, “as apresentações de J. Lacan que pudemos assistir nos pareceram

muito mais orientadas por esta inquietude terapêutica que por uma preocupação

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

puramente diagnóstica” (SAUVAGNAT. Disponível em: http://w.w.w.etiem.com.ar/

trabajo3.html. Acesso em: 15 jul. 2006)20.

Sobre a condução da entrevista, tanto Clérambault, quanto Lacan seguiram

a indicação de Falret, de adotar uma posição mais ativa. Seu conselho era aplicar

mecanismos que permitissem um certo deslocamento de perspectiva, tornando

observáveis problemas ocultos. Contudo, é necessário estarmos atentos para o

objetivo; o que se buscava alcançar era diferente para cada um deles. O interesse de

Falret era fazer eclodir as manifestações que não surgiam espontaneamente. Afinal,

como vimos, Falret pautava-se na lógica da provocação da crise como prova de

realidade.21 Ou seja, sua atividade era no sentido de provocar a explosão da crise – a

manifestação dos fenômenos. O objetivo final era que o paciente reconhecesse sua

loucura em oposição à realidade compartilhada.

Já Clérambault, como vimos, em lugar da crise, dos fenômenos, ele levava

o paciente a confirmar, a revelar sua posição de dentro mesmo do delírio: “Sim, tenho

esperanças com Rei da Inglaterra!”22. E quanto a Lacan?

Assim, como Clérambault a intenção de Lacan “era ir ao nó central do caso,

o problema que o inquietava” (LAURENT, 1989, p. 165), não obstante esse nó central

tivesse conotações diferentes para ambos.

Para Clérambault, seu interesse era tocar os pontos mórbidos: um certo tipo

de interrogatório, um certo tipo de relação com o enfermo podia especificar a posição

delirante do paciente. Manipulava-o de forma a comovê-lo. Sua intenção era ativar a

emoção de forma que esta escapasse às tentativas do enfermo de ocultar-se, pela

racionalização, revelando, a partir de sua posição delirante, os componentes mórbidos

em seu pensamento e em seu afeto, suas expectativas e reivindicações delirantes.

Quanto a Lacan, o que ele buscava eram os indícios da posição do sujeito, mas, num

ponto além do conteúdo de seu delírio, mas antes, a sua posição na relação com o

20 Tradução livre do espanhol. 21 Sobre o tema, conf. p. 33. 22 Conf. Clérambault, p. 98.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Outro, com a linguagem.

Como exemplo, podemos extrair, no próprio texto de Lacan, O Seminário –

livro 3, As psicoses, que, para dizer dessa articulação com o Outro na psicose, ele cita

um fragmento, retirado de uma entrevista:

A anamnese ultrapassou largamente a hora média antes que ficasse evidente que, no limite dessa linguagem de que não havia meio de fazê-la sair, havia uma outra. É a linguagem, de sabor particular e freqüentem ente extraordinário, do delirante. E uma linguagem onde certas palavras ganham um destaque especial, uma densidade que se manifesta algumas vezes na própria forma do significante, dando-lhe esse caráter indiscutivelmente neológico tão surpreendente nas produções da paranóia. Na boca de nossa doente daquele dia, surgiu então finalmente a palavra galopiner, que nós deu a assinatura de tudo o que nos tinha sido dito até ali. (LACAN, 1992, p. 42) (Grifo meu)

A palavra galopiner era, para Lacan, suficiente para indicar a posição do

sujeito que, antes, era tomado como uma pessoa de caráter difícil, em conflito com o

seu meio. Bem diferente de uma vítima de frustração com seu dia-a-dia, o

neologismo galopiner evidenciava que “ela estava evidentemente em um outro

mundo, num mundo cujos pontos de referência essenciais são constituídos por este

termo galopiner, e sem dúvida muitos outros que ela nos escondeu” (LACAN, 1998,

p. 42). Como nos diz Lacan,

É precisamente na medida em que pus naquele dia uma hora e meia para fazê-la sair com o seu galopiner, em que durante todo o tempo ela me deixou em dificuldades e se mostrou sã de espírito, que ela se manteve no limite do que pode ser percebido clinicamente como um delírio. (LACAN, 1992, p. 49)

Como podemos ver, assim como Clérambault, Lacan também se interessava

pelos fenômenos elementares23, e, em suas apresentações, buscava “a possibilidade

de isolar sintomas que fossem patognomônicos, mesmo que sejam eventualmente

bastante discretos, a manifestação de sintomas mínimos que de um certo modo

resumem o conjunto da problemática delirante ulterior” (SAUVAGNAT. Disponível em:

http://w.w.w.etiem.com.ar/ trabajo3.html. Acesso em: 15 jul. 2006).

23 De fato, Clérambault não fazia uso desse termo, que foi proposto por Lacan, fazendo referência ao que, no mestre, encontraremos como automatismo mental. O fenômeno elementar é central na teoria de Lacan e na clínica diferencial das neuroses e psicoses, chegando mesmo a ser definido como a estrutura mesmo do significante. Segundo Mazzuca, o termo deixou de ser usado, visto que esta noção chegou a assumir um lugar tão importante e prevalente no ensino de Lacan, que se dissolve no conceito de estrutura (MAZZUCA, 2003, p. 239).

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Entretanto, se para Clérambault esse se reduzia à comprovação da

morbidade, para Lacan, como nos esclareceu François Sauvagnat, “estes sintomas

mínimos seriam igualmente capazes de dar indicações concernentes aos modos de

estabilização considerados para um paciente dado”. Afinal, num passo além de

Clérambault, para além da dimensão diagnóstica, como ressalta Sauvagnat,

“insistiremos sobre a importância desta problemática em nosso campo, uma vez que é

fundadora da concepção lacaniana do tratamento da psicose” (SAUVAGNAT.

Disponível em: http://w.w.w.etiem.com.ar/trabajo3.html. Acesso em 15. jul. 2006)24.

Ora, como vimos, chegar a esse ponto nodal não se faz sem dificuldades.

Uma estratégia interessante de Clérambault e que vamos aprender com Lacan é a

idéia de que não devemos compreender. Como sugeria Clérambault: era preciso

“parecer incapazes de compreendê-lo completamente” (CLÉRAMBAULT, 2004, p.

70)25. Mas há, também aqui, uma diferença fundamental.

Retomemos o dito de Clérambault: era preciso “parecer incapazes de

compreendê-lo completamente”. Chamamos a atenção, aqui, para o "parecer" – afinal,

ele acreditava que realmente era possível saber "tudo" sobre o paciente, sobre sua

doença. Aliás, acreditava que era possível saber até mais que o paciente, e era

sustentado nesse saber a mais, que ele operava suas manobras de manipulação.

(CLÉRAMBAULT, 2004, p. 70)

Com Lacan, aprendemos, ao contrário, que, para saber da posição de um

sujeito, tal descoberta só pode se dar às custas de uma “submissão completa, ainda

que advertida, às posições propriamente subjetivas do doente” (LACAN, 1998, p. 540)

(Grifo meu).

Como vimos no caso citado, Lacan confessa que levou cerca de uma hora e

meia para conseguir acesso ao outro nível de linguagem no qual operava a paciente, e

que possibilitou a produção da palavra galopiner. Entretanto, diferentemente de

Clérambault, Lacan não manipula o paciente. Sua estratégia para dispor a paciente à

24 Tradução livre do espanhol. 25 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

fala, é outra. Tomemos como referência um outro fragmento de apresentação

trabalhado por Lacan.

Tratava-se de uma moça que vivia com a mãe numa folie a deux: “duas

mulheres isoladas, que permaneceram estreitamente ligadas na existência, que não

puderam se separar quando do casamento da mais nova” (LACAN, 1992, p. 61). Sobre

o casamento, Lacan nos esclarece que este fora reprovado pela mãe, e havia chegado

a um rompimento súbito a partir da convicção adquirida pela moça, de que “aqueles

camponeses não se propunham nada menos, para acabar com aquela imprestável

moça da cidade, do que picá-la em pedacinhos” (LACAN, 1998, p. 540-541).

Se mãe e filha, organizadas em uma relação dual, em algum momento

permitiram certa intimidade com uma vizinha, a posteriori, como nos diz Lacan, elas se

sentiram impelidas a instaurar, em relação a esta mesma vizinha, o sentimento de

intrusão: A moça relata que tal vizinha “vinha sempre bater quando elas estavam se

arrumando, ou no momento em que elas começavam alguma coisa, quando estavam

jantando, ou lendo. Tratava-se, antes de mais nada, de afastar essa pessoa

essencialmente dada à intrusão” (LACAN, 1992, p. 61).

Não apenas a mulher, mas também seu amante, as importunavam com seus

assédios. Como prova disso, a filha, durante a apresentação, faz referências às injúrias

a que ambas, mãe e filha, estavam sujeitas: “Foi a filha que, durante nosso exame,

produziu para nós, como prova das injúrias a que ambas estavam sujeitas por parte de

seus vizinhos, um fato concernente ao amante da vizinha que supostamente as

importunava com seus assédio [...]” (LACAN, 1998, p. 540).

Para saber dos problemas que a moça enfrentava com o amante da vizinha,

Lacan reconhece as dificuldades que enfrentou. Um primeiro problema que ele localiza

é a falta de disposição da paciente em função do próprio dispositivo:

Não me foi muito fácil de avaliar a filha, nem tampouco a mãe. Tive todas as razões para pensar que ela havia sido examinada e apresentada antes que eu me ocupasse dela, e visto a função que os doentes desempenham num serviço de ensino, uma boa dezena de vezes. Por mais que se seja delirante, rapidamente fica-se sem poder agüentar mais com esses tipos de exercícios, e ela não estava particularmente bem-disposta. (LACAN, 1992, p. 59)

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Outra dificuldade foi quanto ao manejo necessário para dispor a paciente a

tocar no ponto central da questão:

Em suma, após ter tido todas as dificuldades do mundo para abordar o sujeito, eu me aproximei do centro do que ali estava manifestamente presente. É claro, sua preocupação fundamental era me provar que não havia nenhum elemento sujeito a reticência, embora não dando ensejo à má interpretação de que ela estava assegurada de antemão por parte do médico. Ela assim mesmo me confiou que um dia, no corredor, no momento em que saía da sua casa, tinha tido de se haver com uma espécie de mal-educado, com o qual ela não tinha por que ficar espantada, já que era esse desprezível homem casado que era o amante regular de uma de suas vizinhas de hábitos levianos. Quando se cruzaram, esse homem - ela não podia me dissimular isso, tinha a coisa ainda engasgada - lhe tinha dito um palavrão, um palavrão que ela não estava disposta a me repetir, porque, como ela se exprimia, isso a depreciava. Contudo, uma certa doçura que eu tinha posto na aproximação com ela, tinha feito com que estivéssemos, após cinco minutos de entrevista, num bom entendimento, e assim ela me confessa, com um riso de concessão, que não era naquele ponto completamente inocente, pois ela própria tinha dito alguma coisa ao passar. (LACAN, 1992, p. 59) (Grifos meus)

A importância desse fragmento é que nos revela certas diferenças entre o

manejo de Lacan e de seu mestre Clérambault. Como esclarece Éric Laurent,

no momento em que nos dirigimos a um sujeito psicótico, ele nos dá uma volta, não tem necessariamente vontade de nos falar daquilo que lhe interessa. É preciso dispô-lo a isso. Se ele não estiver disposto, não se conseguirá nada. Não se conseguirá nada de essencial, ou seja, ele se manterá na fala comum. (LAURENT, 1995, p. 122)

Como vimos anteriormente, Clérambault, para sair dessa fala comum,

provocava a emoção, pois acreditava que ela levava o sujeito a se revelar, a revelar

sua posição delirante. Nesse fragmento, vemos como Lacan reconhece que era

justamente por encontrar-se ainda tocada pela situação, que a paciente não podia

dissimular. A diferença é que se Clérambault não media esforços, mesmo os mais

condenáveis, para produzir a emoção, o que Lacan faz é tirar proveito desta, na

medida em que ela se faz presente.

O que podemos ver é que Lacan visava não a emoção, mas o sujeito. O

que Lacan faz é que ele acolhe o sujeito, e, se o faz, é por supor que haja ali algo a

ser dito. Não é por ter um saber a mais, mas ao contrário, é por reconhecer que algo

lhe escapa e sobre isso, só o sujeito pode dizer, e ele, Lacan, escuta.

Assim, Lacan se interessa por essa "alguma coisa" que a moça havia dito

ao amante da vizinha. Como nos diz Lacan, ela confessa mais facilmente isso que ela

mesma disse ao passar, do que a injúria escutada, feita pelo amante da vizinha.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Lacan reproduz a fala da moça: “Eu disse: - eu venho do salsicheiro, e então, ela se

solta, que foi que ele disse? Ele disse – Porca” (LACAN, 1992, p. 60).

Ele não apenas não manipula, não provoca ostensivamente, violentamente

a emoção, como faria seu mestre, mas, como ele mesmo vai dizer, se extrai algo

fundamental nessa entrevista é porque não compreende. Diferentemente de

Clérambault, que propunha uma aparente não compreensão, para Lacan tratava-se

realmente de não compreender. Como ele mesmo nos diz: “o importante não é

compreender, é atingir o verdadeiro. Mas se vocês o atingem por acaso, mesmo se

vocês compreendem, vocês não compreendem” (LACAN, 1992, p. 60). Segundo ele,

compreender é justamente o que não se deve fazer.

Como nos diz J.A. Miller sobre essa consideração de Lacan: “Para

compreendê-lo, para se comunicar com ele, o psicótico tem suas vozes, o que lhe

basta. Lacan, por sua vez, já o disse, não compreende nada” (MILLER, 1996, p.

142). Sigamos com Lacan:

Aquilo por que é preciso se interessar é em tal situação saber por que ela queria justamente que o outro compreenda isso, e por que ela não lhe dizia claramente, mas por alusão. Se compreendo, eu passo, não me detenho nisso, visto que já compreendi. Eis o que manifesta para vocês o que é entrar no jogo do paciente - é colaborar com a sua resistência. [...]. A resistência do paciente é sempre a de vocês, e quando uma resistência é bem-sucedida, é porque vocês estão dentro até o pescoço, porque vocês estão compreendendo. Vocês compreendem, vocês não têm razão'. O que se trata precisamente de compreender é porque há alguma coisa que é dada para ser compreendida. Por que ela disse Eu venho do salsicheiro, e não Porco? (LACAN, 1992, p. 60)

Segundo François Leguil,

com a compreensão, estamos falhando nisso que o paciente queria que compreendêssemos, e nos impedimos analisar corretamente, nessa demanda de ser compreendido, o refúgio oferecido à estrutura alusiva do chamado ao grande Outro, cuja carência é, em si mesma, a causa do aparecimento do fenômeno alucinatório. (LEGUIL [1993]2004, p. 48)26

O que podemos perceber é como Lacan não se perde no engodo da

compreensão27. Lacan não se coloca em posição de entender, nem de procurar

26 Tradução livre do espanhol. 27 Quando dizemos aqui que Lacan não caía no "engodo da compreensão", podemos nos referir tanto à forma da compreensão de Clérambault, que acreditava que ao saber sobre o paciente poderia manipulá-lo, manobrá-lo, escapando, assim, às tentativas do paciente de enganar o outro; como também a compreensão na vertente da fenomenologia jasperiana, sustentada na idéia da intersubjetividade, ou seja, na possibilidade da interlocução, na

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

responder, mas ao contrário, ele vai atrás do sujeito. Afinal, ele não supõe em si um

saber sobre a paciente, mas busca, no sujeito, o saber deste, ainda que não sabido. E,

como efeito dessa extração de saber, Lacan relata que, nesse caso, a doente

reconheceu que a frase era alusiva.

Para nosso objetivo atual, basta a doente haver reconhecido que a frase era alusiva, sem que no entanto pudesse mostrar nada além de perplexidade quanto a apreender a quem dos co-presentes ou do ausente se referia a alusão, pois assim se evidencia que o [Eu], como sujeito da frase em estilo direto, deixara em suspenso, de conformidade com sua chamada função de shifter na lingüística, a designação do sujeito falante, durante todo o tempo em que a alusão, em sua intenção decerto conjuratória, mantivera-se, por sua vez, oscilante. (LACAN, 1998, p. 541)

Eis aqui que o grande achado de Lacan não é a confissão de que ela

alucina, como interessaria aos clássicos. Nem tampouco de sua posição delirante – de

que ela e a mãe se sentem perseguidas, observadas, injuriadas, como interessaria a

Clérambault. O achado de Lacan é mais interessante – o que ele encontra é a relação

do sujeito com a linguagem.

Como esclarece François Leguil:

A alusão é o procedimento que tenta situar o que sucede ao sujeito por um chamado ao Outro. O procedimento alusivo de uma convocação clandestina do Outro fracassa e a perplexidade é o momento de incerteza, seguido imediatamente pela alucinação, que testemunha o rechaço do sujeito à cadeia significante e que lhe significa ademais a impossibilidade de fazer se representar no Outro. (LEGUIL [1993]2004, p. 48)28

Com efeito, a radicalidade da subversão produzida por Lacan pode ser vista

neste ponto, pois, efetivamente, não se trata se produzir uma verdade, mas, antes, um

saber. Com Lacan, não há mais produção de crise, nem manipulação de emoção. Não

se trata de desmascarar o paciente e deflagrar sua doença, sua loucura. A idéia é

outra – é antes fazer emergir o sujeito enquanto tal.

Para entendermos essa diferença, nada melhor que um exemplo extraído de

sua prática. Para tanto, tomaremos alguns fragmentos das entrevistas realizadas por

Lacan e que foram transcritas e publicadas. Vejamos como ele fazia:

G. Primeau29 - Quando a conheci, tinha uma espécie de beleza. Ela era muito marcada pela medicação que estava tomando. Sua face estava muito inchada.

intercomunicação entre duas consciências. Para Lacan, a empatia – este se colocar no lugar do outro – favorece, antes, a operação imaginária, no eixo a-a’. 28 Tradução livre do espanhol. 29 Este caso foi citado por Lacan, no seminário O sintoma, na lição de 17/02/1976.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Mais tarde, continuei a vê-la, depois que deixou a clínica; ela perdeu peso, tinha uma beleza luminosa. Sempre me senti atraído por essas belezas. Estou procurando por uma personalidade aqui no quarto. Talvez esta senhora de olhos azuis, que está usando lenço no pescoço. É uma pena que esteja usando maquiagem. Dr. Lacan - Ela parece com aquela moça? G. Primeau - Sim, ela se parece um pouco. Só que Claude não usava maquiagem. Esta senhora pôs maquiagem. Dr. Lacan - Você algum dia já se maquiou? G. Primeau - Sim, aconteceu de eu ter me maquiado. Aconteceu comigo, sim (ele sorri). Aconteceu quando tinha dezenove anos, porque tinha a impressão [...]. Tinha uma porção de complexos sexuais [...], pois a natureza me dotou de um falo muito pequeno. Dr. Lacan - Fale-me um pouco sobre isto. G. Primeau - Tinha a impressão de que meu sexo havia encolhido e que parecia que me tomaria uma mulher. Dr. Lacan - Sim. G. Primeau - Tinha a impressão de que me tomaria um transexual. Dr. Lacan - Um transexual? G. Primeau - Digo: um mutante sexual. Dr. Lacan - O que quer dizer com isto? Você tinha o sentimento de que se tomaria uma mulher. G. Primeau - Sim, tinha certos hábitos; costumava usar maquiagem; tinha impressão de que o sexo encolhia e, ao mesmo tempo, desejava saber como era uma mulher, tentava entrar no mundo de uma mulher, na psicologia de uma mulher, na formulação psicológica e intelectual de uma mulher. (LACAN, 2000, p. 11)

Como vimos nesse fragmento, Lacan, longe de produzir uma crise, de

buscar grandes fenômenos, ele busca a posição do sujeito. Um manejo cuidadoso,

uma escuta fina e eis que do tema da maquiagem, Lacan faz revelar o empuxo à

mulher30.

Temos, assim, um procedimento radicalmente diferente do praticado

anteriormente. Em lugar de operar com um saber sobre o paciente para, a partir

deste, fazer emergir a verdade, neste caso, o que se produz é um saber – um saber,

ainda que não sabido, que o sujeito tem sobre sua posição na relação com o Outro,

sobre o seu modo de gozo. Um saber que, de fato, precisa ser construído com o

sujeito e que Lacan se coloca ali como quem autoriza o sujeito nesse trabalho:

Dr. Lacan - Você é "agressivo". O que isto significa? G. Primeau - Eu já expliquei. Dr. Lacan - Você não parece agressivo. G. Primeau - Quando tenho um contato emocional, fico agressivo internamente. Não posso dizer mais nada. Dr. Lacan - Você conseguirá, ao contar-me como acontece. G. Primeau - Tendo a compensar. Sou agressivo, não física, mas internamente. Tendo a compensar com sentenças impostas. Estou me expressando mal. Vai ficar mais claro agora: tendo a me recobrar com sentenças impostas; tendo a achar todo mundo simpático ou bonito [...] enquanto, outras vezes, tenho sentenças impostas, agressivas.

30 Por não ter acesso ao significante, o que lhe permitiria situar-se como homem, na repartição dos sexos, e por dever ser o falo, o psicótico é levado a situar-se do lado da mulher. Isto é o que Lacan caracterizou como o "efeito empuxo à mulher" da psicose. Sobre o tema, conf. LACAN, Jacques. O aturdito. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Dr. Lacan - Use seu tempo, use o tempo de que precisar, para descobrir onde está. (LACAN, 2000, p. 6) (Grifo meu)

Quando dizemos que Lacan buscava o saber do sujeito, não quer dizer que

ele não soubesse nada sobre o paciente. Ao contrário. François Leguil nos diz que,

antes de entrar para a entrevista, ele queria saber o essencial sobre o caso, sobre

pontos precisos, que pudessem servir de orientadores. E se Lacan usa o que sabe,

não é para dominar o paciente, mas ao contrário, é para fazê-lo falar.

A entrevista com Mademoiselle B. é exemplar para ilustrar esse ponto. Logo

de início Lacan diz à paciente:

Mlle. B. - Por que eu estou aqui? Porque eu tenho sempre problemas com meus empregadores, eu não aceito que um empregador tenha ordens a me dar quando há um trabalho a ser feito, que me imponham horários, gosto de fazer o que me agrada. Dr. Lacan - De qual [empregador] se trata? Porque eu ouvi falar um pouquinho de você, deram-me algumas linhas, assim, do que se passou com você. Diga-me de qual empregador se trata. (LACAN, [s.d.], p. 7) (Grifo meu)

Essa situação repete-se algumas vezes durante a entrevista:

Dr. Lacan - Falemos um pouco do seu lugar de início. Mlle. B. - De início, quer dizer? Dr. Lacan - De seu lugar. Mlle. B. - Por que você diz "de inicio"? No tempo de meus pais? Eu tenho um lugar importante neste sentido. Dr. Lacan - Você tinha um lugar importante, você era a primogênita. Mlle. B. - Você sabe tudo isto? Dr. Lacan - Isto me disseram. Me falaram um pouco de você. Você era a primogênita... Mlle. B. – Eu era a mais velha de uma família...(LACAN, [s.d.], p. 11) (Grifo meu)

O manejo de Lacan, muito diferente do de seus antecessores, não é o de

confrontar com o que se sabe da realidade biográfica, mas é, antes, possibilitar que

emerja aí o sujeito. Esta é uma estratégia que produz efeitos. Vejamos:

Dr. Lacan - Então, esta Tochon era a pessoa.... Mlle. B. - Que passa o “torchon” (pano - NdT.) eu pensei uma vez em “Tochon” e uma vez em “Cochon”, depois, tudo bem. Eu não vou lhe falar mais disto pois você já sabe. Dr. Lacan - O que você quer dizer dizendo que eu já sei? Mlle. B. - Não vale a pena que eu lhe conte minha história. você viu meu dossiê, eu tenho um dossiê grande assim. Dr. Lacan - Com efeito, mas é porque me contaram. Mlle. B. - Alguém lhe contou minha história? O quê? Dr. Lacan - Sim. é alguma coisa que flutua, assim... Mlle. B. - Eu, eu gostaria mais de viver suspensa. Dr. Lacan - Você gostaria de viver suspensa? Explique-me. Mlle. B. - Você pensa talvez em um vestido suspenso, um vestido suspenso (...) eu gostaria de viver suspensa como uma roupa, se eu fosse anônima. eu poderia escolher a roupa na qual estou pensando. eu vestiria as pessoas a meu modo. eu sou um pouco um teatro de marionetes, qual... eu gostaria muito de puxar os fios, mas eu creio que eu achei mais forte do que eu. (LACAN, [s.d.], p. 22)

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

A resposta extraída por Lacan é tanto mais importante quando vemos, no

seu comentário final, após a entrevista, como este ponto é fundamental, no que diz

respeito à posição desse sujeito.

Dr. Lacan - Ela não tem a menor idéia do corpo que ela tem para colocar dentro deste vestido. Não há ninguém para habitar a vestimenta. Ela é este pano. Ela ilustra o que eu chamo de semblante. Ela é isto. Há uma vestimenta e ninguém para se colocar ali dentro. Ela não tem relações existentes, a idéia de relações entre um certo número de pessoas, apenas com vestimentas, é tudo o que existe para ela. (LACAN, [s.d.], p. 30)

Como vimos, o uso que Lacan fazia de seu saber sobre o paciente era muito

diferente do uso que faziam seus antecessores da época clássica, que se pautavam

nos detalhes da vida e do comportamento do paciente, para que, de posse desse

saber, pudessem sustentar sua posição de dominação. Lacan, ao contrário, recusava a

posição de superioridade que os pacientes tentavam lhe imprimir. Em lugar do poder,

direcionava essa transferência na vertente do trabalho:

G. Primeau - Eu disse "antes". Tenho complexos com relação às amizades. Como o Senhor é uma personalidade muito conhecida, fiquei ansioso. Dr. Lacan - Como você sabe que sou uma personalidade muito conhecida? G. Primeau - Tentei ler seus livros. Dr. Lacan - Ah, sim. Você tentou? (G. Primeau sorriu). Você os leu. Estão ao alcance de qualquer um. G. Primeau - Não lembro mais. Li quando era bem jovem, quando tinha dezoito anos. Dr. Lacan - Quando você tinha dezoito anos, leu algumas coisas que eu tinha produzido. G. Primeau - Sim. Dr. Lacan - Em que ano isto nos coloca? G. Primeau - Em 1966. Dr. Lacan - Havia acabado de ser publicado. (LACAN, 2000, p. 10)

Como vemos, ele operava trivializando a transferência, utilizando-se da

informação para recolocar o sujeito a trabalho. Lacan continua:

Dr. Lacan - Naquela época, você estava [...]. G. Primeau - Na clínica C., para estudantes. Vi na livraria. Devia ter vinte anos. Dr. Lacan - O que o moveu a abrir este livro? G. Primeau - Estava sob a influência de um amigo, que me falou [...]. Eu o folheei. Havia muitos termos que era muito [...]. Dr. Lacan - Muito o quê? G. Primeau - Muito complexos e não pude continuar a ler o livro. Dr. Lacan - Sim, isto se deve ao fato de o livro ter ficado rodando por aí ultimamente. Isto o impressiona? G. Primeau - Agrada-me. Não li todo ele, simplesmente o li rapidamente. Dr. Lacan - Bom. Vamos, tentemos voltar atrás. "Sujo assassinato político". Qual a razão desses assassinatos? (LACAN, 2000, p. 10)

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

O fato de Lacan não fazer uso do saber sobre o paciente como forma de

dominação, não implica que ele não reconhecesse que era preciso saber sobre o caso.

Ao contrário, Lacan realmente esperava que uma construção do caso já tivesse sido

feita por aqueles que conduziam o tratamento. Como nos esclarece Leguil, "para

Lacan, esta construção de um caso é uma condição prévia ao exercício mesmo, é o

fruto do trabalho daqueles e daquelas que, no serviço hospitalar, têm o paciente a seu

cargo" (LEGUIL [1993] 2004, p. 44).

A propósito deste ponto da construção do caso prévio à apresentação, gostaria que me permitissem evocar uma recordação de uma sala de plantão, do hospital Sainte-Anne, em 1977: alguém que assistia regularmente às apresentações do doutor Lacan zombava da gente propagando que os jovens médicos que lhe "preparavam" os enfermos (!) lhe eram a tal ponto acólitos que tentavam que não houvesse nada mais para descobrir quando Lacan chegasse! Essa censura era surpreendente porque, ainda que antes da apresentação propriamente dita falávamos do caso com Lacan, constatávamos que quanto mais cuidadosamente havíamos preparado o que lhe antecipávamos, mais satisfeito se mostrava; seu descontentamento, ao contrário, se não havíamos trabalhado o suficiente, ou se não mostrávamos um mínimo de convicção, nos fazia saber que tanto os elogios como as críticas não eram pronunciadas nem para agradar nos nem para exaltar nos mas para que um desejo clínico se passe. (LEGUIL, [1993]2004, p. 46)31

Assim, o que estava em jogo, para Lacan, era que um "querer saber" sobre

o caso estivesse colocado, ou seja, longe da vertente do saber/poder, base para a

dominação e controle, o que interessava a Lacan, era o desejo clínico.

De fato, trabalhar a partir da singularidade é colocar ênfase no saber do

próprio sujeito, uma vez que não tem como inferir que interpretação o sujeito dá à sua

história, ou seja, que não é possível operar com um saber a priori, com um saber sobre

o paciente.

Vemos aqui a radicalidade da diferença do saber em jogo nas

apresentações de Lacan em relação às apresentações que o antecederam – do saber

do médico que controla, domina, que se impõe sobre o paciente, ao saber do sujeito.

Lacan tomou, de tal forma a sério, essa possibilidade de aprender com os

psicóticos, que, no final de seu ensino, fez uma verdadeira inversão, passando a

psicose a ser o ponto de partida para se pensar a neurose. J.A. Miller, chega mesmo a

dizer: “O ensino dos doentes na apresentação de Lacan, é assim que é preciso dizer”.

31 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

É nesse sentido que no seminário O Sintoma, veremos Lacan se deter novamente

sobre uma apresentação de paciente, do Sr. Primeau, destacando o que chamou de

um caso muito puro de automatismo mental com o termo de “psicose lacaniana”, para

dizer do que é possível aprender com a psicose. Trata-se de um caso de loucura que,

como esclarece Lacan, começou pelo sintoma de palavras impostas. Como relata J.A.

Miller: “ele era a sede do que ele mesmo chamava de ‘palavras impostas’, ou ainda

‘emergentes’, que se intrometiam na esfera de sua cogitação privada e das quais ele

não pode se reconhecer como o enunciador, mesmo quando freqüentemente o

designavam como o sujeito do enunciado delas” (MILLER, 1996, p. 146).

A questão que Lacan coloca é:

É assim que o próprio paciente articula algo que me parece tudo o que há de mais sensato na ordem de uma articulação que posso dizer que é lacaniana. Como é que nós todos não sentimos que umas palavras das quais dependemos nos são de alguma forma impostas? É precisamente nisso que o que chamaram um enfermo chega algumas vezes mais longe do que o que chamamos um homem normal. A questão é antes saber por que é que um homem normal, chamado normal, não se dá conta de que a palavra é uma parasita, que a palavra é uma placa, que a palavra é a forma de câncer da qual o ser humano sofre. Como é que há aqueles que chegam a senti-lo? (LACAN, 1976, CD Rom)32

O que esse paciente revela é que ele assistia, de algum modo, ao

surgimento do discurso do Outro, mas sob uma forma direta, sem esse apaziguante

desconhecimento da inversão que nos faz crer que falamos, quando somos falados.

Levar a sério o rigor do ensino psicótico conduziu Lacan a uma inversão de seu

próprio ensino. Como nos diz Alfredo Zenoni, se Lacan aplica a psicanálise à

psicose, ele passa, ao contrário, a aplicar a psicose à psicanálise – uma reviravolta

que tem efeitos tanto conceituais quanto práticos. (Zenoni, 1999, p. 19) Efeitos que

podem ser colhidos ainda hoje não apenas nas formulações teóricas que precipitou,

mas diretamente na nossa prática, sendo a apresentação um lugar privilegiado de

encontro com a psicose.

Todavia, mesmo tendo feito esse percurso pelas apresentações de

Lacan, ainda nos fica uma questão: mas o que Lacan pretendia com essas

apresentações?

32 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Como nos indica Éric Laurent, de certo que Lacan tomava a

apresentação como um dispositivo que tinha incidência sobre o tratamento. Segundo

Laurent,

o ponto central, o objetivo desta apresentação é de saber como prever com antecedência o que é possível prever [...]. Há que saber se saber quais são os significantes sobre os quais se deve estar atento, e saber que há um certo número de coisas em um sujeito, sobre as quais deve ser prudente. Saber qual é a zona mais mortífera para um sujeito. Saber que quando ele avança sobre um certo caminho, é realmente perigoso pra ele e devemos estar vigilantes e tênar desviá-lo daí. Isto faz parte das responsabilidades daquele que dirige o tratamento [...]. (LAURENT, 1989, p. 169)

Outro efeito da apresentação que Lacan reconhecia era seu alcance de

transmissão, seja para os psiquiatras que podiam se encontrar ali com a “maneira de

um psicanalista interrogar” (LAURENT, 1989, p. 152) e, principalmente, para os

psicanalistas, de quem ele podia recolher, em seu divã, o impacto causado pela

apresentação, cuja mudança na relação com a clínica podia ser vista nas análises.

Mas e sobre o sujeito? Será que Lacan percebia o efeito direto sobre o

sujeito entrevistado? Será que Lacan percebeu que este dispositivo, para além da

função de transmissão, de orientação do tratamento, poderia ser tomado como um

instrumento de intervenção no sujeito?

De fato, não há relato sobre os efeitos das apresentações sobre aqueles

que foram entrevistados. Se Lacan percebia bem, não o sabemos. Ele não

sistematizou o trabalho, mas recomendou que o fizéssemos.

Passemos, então, a investigar como temos, hoje, nos utilizado desse

dispositivo.

4.3 APRESENTAÇÕES CLÍNICAS HOJE: NO RASTRO DE LACAN

De fato, demos continuidade à prática de Lacan. Pelo menos, no Campo

Freudiano, as apresentações têm se tornado freqüentes, não apenas enquanto prática

realizada em instituições de tratamento, mas também nos encontros e conversações,

onde seu seus efeitos clínicos e institucionais têm sido tema de discussão.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Experiências que, como disse J. A. Miller no Conciliabule d’Anger, por

estarem acontecendo em escala maior, já nos permitem algumas elaborações.

Experiências que vêm sendo realizadas não apenas com adultos, mas também com

crianças, inclusive crianças autistas.

É certo que as apresentações que fazemos hoje não são idênticas às

apresentações de Lacan. Nem poderiam sê-lo. Afinal, como vimos, a apresentação é

uma aplicação tanto das concepções quanto do estilo de cada entrevistador. Pudemos

vê-lo em Falret, em Charcot, em Clérambault, e em Lacan não seria diferente. Seu

estilo, este não tem há como repeti-lo. Lacan, que como diz Miller, tinha “afeição pelo

zen”, marcou assim seu trabalho. “O que o doente dizia era enigma para nós e

esperávamos que fosse decifrado. E eis que o deciframento é, por sua vez, enigma e

exige ser decifrado” (MILLER, 1996, p. 139).

Decerto que seguimos os mesmos princípios, aqueles apreendidos em sua

transmissão: que o ensino, este é feito pelo paciente, pois é de seu lado que está o

saber que nos interessa.

4.3.1 Apresentação tradicional X Apresentação clínica

É preciso esclarecer que as apresentações são prática comum na

atualidade – não apenas para os psicanalistas, mas também os psiquiatras

permanecem fazendo uso desse dispositivo. Podemos pensar que as apresentações

que fazemos hoje, por seguirem as proposições de Lacan, são muito diferentes das

apresentações realizadas pelos psiquiatras. Afinal, Lacan introduz modificações de tal

forma fundamentais na sua forma de fazer a apresentação, que, tomadas em

contraposição às outras apresentações, teremos alterados, tanto seu objetivo, como as

coordenadas que estabelecem o tipo de relação estabelecida entre paciente, público e

apresentador. Sendo assim, a título de facilitar a contraposição, nos permitiremos

dividir em dois, os tipos de apresentação de enfermos: temos, por um lado, a

apresentação, que chamaremos de tradicional, realizada pelos psiquiatras

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

contemporâneos de Lacan, herdeiros da posição de poder/saber, própria da psiquiatria

clássica, entretanto, marcados agora, pelo automatismo e empobrecimento da clínica.

E por outro lado, a apresentação de pacientes conforme a proposição de Lacan,

marcada pela escuta analítica e que chamaremos então de apresentação clínica.

O que podemos verificar, claramente, é que, nos dois casos, a articulação

dos elementos que a constituem, paciente, público e entrevistador, se faz de forma

completamente diferente.

Com relação ao público, podemos dizer que, na apresentação tradicional, o

apresentador se endereçava essencialmente à platéia. A interlocução se dava

exclusivamente entre o mestre e o público, ficando o paciente no lugar de terceiro, de

objeto a ser exibido. Com Lacan, há uma inversão – o encontro se passava entre

entrevistador e paciente, e o é público quem ocupa este lugar de terceiro, é ele quem

fica de fora. Como nos diz J.A. Miller, “tolos por função, voyeurs, ouvintes, que estão

como excedentes” afinal, como esclarece o mesmo autor, “Lacan não professa ensino

nesse lugar”, assim, “o que se aprende, capta-se por roubo” (MILLER, 1996, p. 138). O

ensino da psicanálise não se dá por um saber extraído da teoria e comprovado na

prática da entrevista; pelo contrário o que o espectador pode aprender é sobre o

singular de cada sujeito.

Isso porque o analista não está ali para demonstrar um saber constituído,

como na apresentação tradicional. Pelo contrário, na apresentação clínica, o

apresentador coloca-se num lugar de não saber, e tenta, a partir desse lugar,

interrogar o sujeito para aprender algo do que lhe ocorre, ficando numa posição de ser

ensinado pelo paciente, pois é do lado deste que se produz o saber que ensina. Esta

posição de esvaziamento do saber prévio é que pode possibilitar que algo efetivamente

novo apareça: uma palavra, uma significação, um acontecimento.

Trabalhar tomando por base o saber do paciente é uma proposta

radicalmente diferente das anteriores. É preciso reconhecer que o saber não está todo

do nosso lado, mas sim, que o saber mais importante, que é fundamental para a

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

construção do caso, este saber está do lado do paciente. O profissional desocupa o

lugar de mestria, ficando um vazio de saber. Ocupa, então, uma posição de querer

saber do que, de singular, um sujeito pode apresentar. Trabalhar a partir desse saber é

operar com a singularidade, com a subjetividade. O paciente sai do lugar de objeto,

para tornar-se sujeito de seu tratamento, pois só ele sabe que significação dá à sua

história, à interpretação que faz dos acontecimentos.

Esse novo pode possibilitar importantes efeitos no tratamento: o

esclarecimento diagnóstico, indicações de premissas de uma transferência,

perspectivas de estabilização, são exemplos de aspectos que podem ser esclarecidos,

ou redefinidos, a partir de elementos surgidos durante uma entrevista.

Esses efeitos são acentuados na medida em que o público está dividido em

dois – os alunos, que desejam saber seja da psicose, seja da psicanálise, e um outro

grupo composto pela equipe que acompanha o caso, que, além da aprendizagem, tem

uma demanda essencialmente clínica. Geralmente, a equipe solicita a apresentação

por encontrar-se com algum tipo de questão em relação a algum caso muito difícil, com

dúvida diagnóstica, no manejo da transferência, ou na direção do tratamento.

Quanto ao apresentador, se na apresentação tradicional sua posição era

bem definida – de mestre, possuidor de um saber a ser ensinado, exibido. Já na

apresentação clínica, a situação é bem mais complexa - cabe encontrar sua posição

entre o público e o paciente, buscando um delicado equilíbrio entre a posição do

mestre e a do analista. Isso coloca o apresentador em uma posição dupla: de mestre33,

em relação aos alunos, e de psicanalista, em relação ao paciente e à equipe, pois há

um endereçamento transferencial – uma questão lhe é colocada. Uma situação que

revela o ponto em que o analista se encontra em sua relação com a clínica, com a

33 Posição de mestre porque, de fato, a vertente didática da apresentação se mantém. Estando o interesse da psiquiatria do nosso tempo deslocado, podemos mesmo dizer reduzido à quantificação dos sintomas, (BARRETO,1999, p. 161-172), a psicanálise procura re-introduzir o desejo de saber, adormecido na psiquiatria atual, resgatando da psiquiatria clássica a capacidade de identificar e isolar os fenômenos e os indicadores diagnósticos, tomando os quadros nosológicos clássicos como referência. Mas é importante ressaltar que esse aspecto didático é apenas secundário, tendo, antes, a função de enriquecer as discussões, do que de ensino formal. Este aspecto didático não deve ser o eixo do trabalho, ao contrário, sendo um lugar de transmissão, o discurso privilegiado é o do analista e não o universitário.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

psicanálise, com seu saber fazer. Pois, como diz Bernardo Nominé, “Para que o

dispositivo funcione é preciso, pois, que o mestre não ofusque o analista” (NOMINÉ,

1997, p. 99), acrescentando que este é um trabalho que exige tato, perícia. Este é o

ponto de transmissão da clínica.

Lacan mostrava: a clínica analítica e, no hospital, a apresentação de pacientes, que é uma rara modalidade transmissível, valem apenas pela capacidade do clínico de escapar ao que se lhe oferece na entrevista como captação imaginária. Quem se presta a isso em público engaja-se em um teste de capacidade que revela para os outros e de imediato - a verdade do lugar onde está e dos meios que se serve a fim de que sua atitude conjugue a momentânea suspensão de um saber consistente com a pesquisa do que, no outro, funciona como verdade; a fim de que suas maneiras de falar associem a uma não-mestria de fachada uma certeza em uma direção paradoxal, dado que ela é igualmente submissão, docilidade às posições subjetivas do outro. (LEGUIL, 1998, p. 98)

E Lacan chama a atenção para o fato de não ser somente o paciente, mas

também ele, enquanto entrevistador, que estava sob a observação atenta de seu

público: “com a presença, de certa forma, de um personagem terceiro que está ali, que

escuta justamente na medida em que parece mais especialmente o que está ligado à

pessoa que interroga” (LACAN, [1970]2004, p. 13)34.

Para o apresentador, é um desafio operar nessa complexidade. Esse é um

outro sentido que podemos dar à frase de J.A. Miller: “O ensino dos doentes na

apresentação de Lacan...” (MILLER, 1996, p. 146), tomando Lacan como aquele que

era apresentado, uma vez que, neste caso, é o savoir faire do analista que é posto à

prova. Segundo Laurent, a apresentação de Lacan parecia trazer “sua habilidade de

fazer surgir, no interior do exercício clássico da psiquiatria, o peculiar do analista”

(LAURENT, 1989, p. 151). E este é o desafio de cada analista-apresentador, para que

o dispositivo funcione.

A intenção é que, nesse único encontro, o apresentador consiga algum tipo

de efeito sobre o paciente, seja sua implicação subjetiva, seja um reforço dos laços

transferenciais, seja um ponto nunca dito anteriormente. Sendo um encontro pontual,

não possibilita correção ou retratação:

Saber favorecer a emergência de uma fala neste contexto particular, com toda prudência que isto requer, pois as palavras que o analista procura para assentar seu diagnóstico são também, com freqüência, palavras que fazem

34 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

mal, e mesmo palavras que desencadeiam catástrofes. É preciso saber escutar essas palavras e saber imediatamente controlar sua incidência. (NOMINÉ, 1997, p. 97)

Quanto ao paciente, em lugar de objeto, de matéria viva para ilustração de

fenômenos e quadros mórbidos, o paciente é tomado enquanto sujeito, sujeito que tem

algo a dizer. Portanto, não está ali para presentificar um fenômeno psicopatológico que

possa ser tomado como objeto de estudo, mas sim como um sujeito que testemunha

um real do qual padece. Em lugar de uma entrevista com um doente, podiam

testemunhar o encontro de um psicanalista com um sujeito, pois, como nos diz Éric

Laurent, “Lacan tentava tocar o sujeito no doente” (LAURENT, 1989, p. 152).

Para vermos a diferença, tomemos um exemplo quase hilário, apresentado

em um artigo sobre os efeitos da apresentação.

Uma apresentação de paciente em um serviço psiquiátrico de uma importante faculdade de medicina, bem ilustra as características destas apresentações. O professor catedrático de psiquiatria, depois de um esforço de fazer uma anamnese com um sujeito em mutismo, exposto a uma platéia de estudantes de medicina, passa a segurar o braço do paciente em distintas posições e, ao vê-lo inerte e paralisado, brada: trata-se de um catatônico típico! ...vejam a flexibilidade cérea, sua postura robótica...sua atitude autista. Ato contínuo, autoriza o auxiliar de enfermagem a levá-lo para a enfermaria. O paciente obedece calmamente, vai se retirando e, ao chegar à porta de saída, vira-se bruscamente, olha atentamente o professor e, fazendo um gesto obsceno, diz: aqui ó! Catatônico é sua mãe. Este incidente, malgrado o inusitado do ocorrido, é exemplar para caracterizar uma entrevista psiquiátrica: o paciente, na posição de objeto, como exemplo de uma patologia previamente descrita e classificada, que visa a história da doença, o diagnóstico diferencial e a comprovação de um saber construído sobre a doença. (GURGEL, 2005, CD Rom) (Grifos meus)

Como contraponto, tomemos agora uma apresentação realizada segundo a

perspectiva lacaniana, que coloca o saber que interessa do lado do paciente:

Desde que entra se mostra agressiva e inquieta. O analista lhe diz que quer conhecê-la melhor e a convida para conversar. No início Lorena falou de forma desconexa, com olhar desconfiado, querendo sair da sala mas regressa, descobre o quadro, e com um giz faz uns riscos nele, depois volta a porta e a abre. O analista reitera seu desejo de conversar com ela e responde: ‘Vou dar lhes uma aula. Eu sou uma professora. Para dar lhes uma aula esta sala deve estar em ordem e vocês são meus alunos. Devem escutar me calados, e com atenção.E vão se sentar como eu vou dizer.’” Ato seguido, nos organiza no espaço. Dispõe cada um dos presentes como na escola primária, se dirige ao quadro. Enquanto escreve, vai dizendo os nomes que a identificam: nome, sobre nome, nome dos pais. Ao final, conclui: “ Já dei minha aula, e quem não me entendeu terá que fazer sua tarefa. Aí está”. “Foi o convite ao diálogo que fez o psicanalista, o que permitiu emergir o sujeito na medida que fala e pode ser escutado”. “Nessa sala que agora é sua escola, Lorena encarna o Saber e pode sentir-se segura para oferecer-se ao gozo do Outro-Público que a escuta. A escolinha permite mostrar o chamado do sujeito a organizar-se”. (GARRONI et al., 2005, CD Rom)35

35 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Nesses dois exemplos, temos a radical diferença do ponto de saber. Se no

primeiro caso o psiquiatra ensina a partir do fenômeno, no segundo é o sujeito quem

toma a palavra. E, como sabemos, tomar a palavra não é sem efeito, e nesse sentido,

como relatam os autores, no caso de Lorena, “A escolinha permite mostrar o chamado

do sujeito a organizar-se”.

Se as apresentações tradicionais foram acusadas de não terem qualquer

efeito sobre o paciente, de não o favorecerem de forma alguma, o que vemos, já nesse

primeiro fragmento de uma entrevista realizada sob a perspectiva psicanalítica, é que,

quando falamos desse dispositivo analítico, não há como ignorar seus efeitos.

4.3.2 Sobre os efeitos clínicos da apresentação de pacientes

E realmente o que vemos é que, freqüentemente, a apresentação favorece

que algo novo surja com o paciente, seja um ponto que jamais tenha sido dito

anteriormente, seja na forma de se escutar o que vinha sendo dito até então. Esse

novo pode possibilitar, à equipe, o esclarecimento do diagnóstico, o estabelecimento

de intervenções mais adequadas, reavaliar o prognóstico, enfim, redefinir a direção do

tratamento; como também, orientar o próprio sujeito na direção de uma saída possível,

implicando-o no seu tratamento.

Podemos supor que os efeitos clínicos que podem ser produzidos decorrem,

não apenas do enfoque do apresentador, interessado na subjetividade do paciente,

mas também, pelo consentimento do paciente com essa intervenção.

Em verdade, o consentimento do paciente em participar da apresentação é

uma condição fundamental para a realização da entrevista. Como vimos, Clérambault

também já contava com isso. Entretanto, se Clérambault, que não tinha qualquer

preocupação terapêutica, extraía o consentimento a partir da manipulação. No nosso

caso, geralmente esse consentimento advém da percepção que o paciente tem de que

o terapeuta, a equipe, tem esperança de que isso vai apontar- lhe algo no que

concerne ao seu tratamento.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Sobre os efeitos extraídos das apresentações, poderíamos dividi-los, de

modo simplificado, em duas dimensões: os efeitos imediatos sobre o próprio paciente e

os efeitos produzidos sobre a equipe, que, por sua vez, retornam sobre o paciente,

visto que incidem sobre o tratamento.

A - Efeitos no sujeito

Comecemos pelos efeitos produzidos diretamente sobre o sujeito

entrevistado.

Segundo Liliana Cazenave, a apresentação favorece que emerja um sujeito

e que este possa “subjetivar seus signos de gozo”, (CAZENAVE, 2002, p. 77),

chegando a uma “elaboração de saber que tenha efeitos de cura”. (CAZENAVE, 2002,

p. 80).

Recordo por exemplo um adolescente, que se caracterizava por ser muito agitado, jogava a bola o tempo todo na sessão e a partir da apresentação que participou sem jogar, sentado e conversando, passou a situar que ele já estava no momento de deixar de jogar para passar a falar. Foi a conclusão que ele extraiu da entrevista mesma para seu tratamento: uma mudança de posição com relação à palavra. Este é um saldo que o sujeito testemunhou. (CAZENAVE, 2002, p. 80)36

Segundo Liliana Cazenave, no caso deste adolescente, o que se produziu

ali foi uma nova posição em relação à palavra. Para ela, tal efeito seria porque ali, no

momento da entrevista se localizou e se surpreendeu ao sujeito em sua posição com

respeito a atuação, o que pode permitir uma virada no que diz respeito à essa posição.

“Se ao localizar uma posição subjetiva este faz ato, então se inaugura algo novo”

(CAZENAVE, 2002, p. 81)37.

Podemos encontrar um efeito semelhante no caso A construção de um

aparelho vocal em um adolescente psicótico, apresentado por Ana Lydia Santiago e

Ana Maria Lopes, durante o II Encontro Americano do Campo Freudiano (2005).

Reproduziremos aqui, de uma maneira bastante sucinta, o relato do caso. O tratamento

era de Fausto, mas era sua mãe quem, durante seus atendimentos, falava

36 Tradução livre do espanhol. 37 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

incessantemente. Em resposta aos convites do terapeuta para que falasse, ele

respondia com mucitações, pára-respostas, ou pela repetição monótona de palavras ou

frases faladas pela mãe: “Tô”, “Não sei”, “Não sei de nada”, “Seu burro”, “Seu nada”.

Com o transcorrer do tratamento, Fausto começa a tentar comunicar-se por meio da

reprodução das vozes de homens eminentes da vida política e dos programas de

televisão, sem encontrar, porém, um receptor. Entretanto, sua permanência decidida

nesse estado e a dificuldade com a transferência, visto que o analista passara a

encarnar o outro perseguidor, levaram à proposição da apresentação de pacientes

como um recurso na busca da emergência do sujeito em Fausto. Ele aceita, com

entusiasmo, participar dessa atividade, em que seria entrevistado por um analista vindo

de outra instituição exclusivamente para encontrá-lo. Não se opõe à presença de um

público nessa ocasião. Ao contrário, aguarda ansioso por esse dia.

A ENTREVISTA Você pode dizer seu nome completo? Fausto Alberon da Silva (Fala pouco compreensível.) Você poderia dizer-nos por que veio tratar-se, aqui, no CRIA38? Eu? (Batendo os dedos no próprio peito.) É. Você. Eu? É. Você. Estamos querendo saber o que lhe acontece. Eu? Segue-se a reprodução da entonação da voz do Presidente da República, até ser interrompido, depois de alguns minutos, por outra pergunta. - Você sempre responde às perguntas que lhe são feitas com a voz do Presidente? - Eu? -É. Você. -Eu? A essa segunda pergunta, segue-se a reprodução da entonação da voz de um conhecido apresentador de programas de auditório para a televisão, que se estende até Fausto ser interrompido por uma terceira pergunta. Durante toda a atividade da Apresentação de Pacientes, Fausto responde às perguntas do entrevistador sempre da mesma maneira: primeiro, certificando-se de que se queria saber algo sobre ele mesmo - com a interrogação Eu? - e, em seguida, evocando vozes de pessoas de destaque social ou político. Não dizia palavras nem frases com sentido, apenas reproduzia a entonação das vozes dessas pessoas. A entrevista dura pouco tempo e, ao sair, ele agradece sinceramente ao público presente, como se como se tivesse sido aclamado. (SANTIGO & LOPES, 2005, p. 4-5)

Segundo o relato, num primeiro momento, pensa-se que a atividade tinha

sido malograda ou que seu objetivo não tinha sido alcançado em função do distúrbio de

linguagem do paciente. Entretanto: “na sessão seguinte, entrando com sua mãe, como

38 Centro de Referência da Infância e da Adolescência, da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

de costume, logo que esta começa a falar, ele a interrompe dizendo: ‘Alto lá. Agora, eu

tenho a minha voz’. Desse dia em diante, o sujeito aparece e começa a falar,

aparelhado de voz própria” (SANTIGO & LOPES,2005, p. 5).

Em ambos os casos, o que podemos perceber é que “dar ao sujeito o

acesso à palavra” possibilita uma mudança na sua posição na relação com a esta. Isto

é correlativo a devolver ao psicótico seu estatuto de sujeito. Se nesses casos, nos

quais o sujeito parece privado da palavra, tivemos esse efeito, de dar a eles o seu

acesso, vemos que aqueles que já fazem uso dela, também podem se beneficiar.

Isto é o que pudemos ver como efeito da entrevista de Jerry39, para quem o

significante não era suficiente para evocar a imagem do corpo. “‘Tenho um riso

amarelo’, dizia tirando um pedacinho de espelho quebrado do bolso, ‘para se lembrar

de seu rosto’”. Da mesma forma, sua palavra não lhe parecia investida de valor: “Uma

vez tinha matado um cachorro e levado seu olho para o médico que o tratava, para

fazer valer sua palavra”. Por pensar que sua palavra não valia grande coisa, na relação

dual com o outro, médico ou psicóloga, é que ele faz apelo ao público, que como

terceiro, testemunha sua palavra, permitindo-lhe revelar aspectos fundamentais de sua

história que não teriam sido ditos de outra maneira. (Alvarenga, 2000)

Outro resultado interessante foi constatado na entrevista feita com Gal, uma

paciente psicótica, cujas “experiências alucinatórias vêm acompanhadas de grande

sofrimento porque são vistas com enorme ‘incompreensão’ pelas pessoas, levando-as

a chamá-la de louca” (PINTO, 2005, p. 66).

Se, por um lado, se recusa a tratar-se por não aceitar a rotulação de louca,

por outro, sofre, vítima da incompreensão. É assim que, como relata Anamaris Pinto

acerca dos efeitos da apresentação de pacientes,40 para Gal:

o que vinha sendo trabalhado em suas sessões individuais ganha peso após uma intervenção do entrevistador [...] Gal interpela o entrevistador, verifica a Instituição e constrói, a partir daí, seu ponto de ancoragem no tratamento. Ela pergunta a ele se é louca, ao que Wellerson responde ‘não’, para em seguida dizer, servindo-se das palavras da própria paciente, que ela era incompreendida. Sem deixar de acrescentar, (e esse é, para nós, o ponto

39 Conf. apresentação do caso na introdução deste trabalho. 40 Sessão Clínica do Instituto Raul Soares (IRS) – entrevista realizada em 21 de junho de 2001, pelo Dr. Wellerson Alkmim.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

essencial) que havia, também, uma incompreensão naquilo que ela mesma vivia, o que a remete a um processo até então inédito de elaboração de suas vivências. (PINTO, 2005, p. 67)

No que tange ao tratamento desta paciente, a apresentação “teve uma

função organizadora fundamental ao fazer uma marca que mudou o ‘destino’ de Gal.

Se, para a paciente, a suspensão das significações [louca] ofereceu um lugar vazio em

que ela pudesse estabelecer suas próprias soluções [...]” (PINTO, 2005, p. 68).

Esses fragmentos não deixam dúvida quanto à possibilidade de se

produzirem efeitos de intervenção nos pacientes apresentados, no ato mesmo da

entrevista. Decerto, escolhemos casos paradigmáticos, que indicam que alcance uma

apresentação pode ter, mas que não são a regra.

De qualquer maneira, efeitos, mesmo que não tão contundentes, quase

sempre podem ser notados. Numa pesquisa que investiga os efeitos da apresentação

de pacientes no tratamento psicanalítico do sujeito psicótico41, alguns funcionários do

Instituto Raul Soares foram interrogados quanto às modificações que percebiam nos

pacientes após a entrevista.

Os profissionais de nível superior indicaram que habitualmente, após a

entrevista, era possível perceber alguma modificação do paciente em relação ao

tratamento ou à equipe, como, por exemplo, sua implicação no tratamento, uma

posição de maior confiança na equipe, às vezes uma organização do delírio, ou uma

retomada pelo próprio paciente de pontos de sua história que apareceram na

entrevista. Às vezes, esse efeito era um apaziguamento. E mesmo quando não se

percebia um efeito direto, as mudanças produzidas na equipe geralmente repercutiam

sobre paciente. Como disse um dos entrevistados: “Se a equipe muda de posição com

o paciente, logicamente ele sente isso. Ele percebe esta mudança. Logicamente ele

41 Tomo como referência aqui, dados levantados pela pesquisa: Sobre a eficácia clínica da apresentação de pacientes: investigações sobre o emprego da apresentação de pacientes no tratamento psicanalítico do sujeito psicótico. Trata-se de uma pesquisa que investiga os efeitos clínicos e institucionais produzidos pela Sessão Clínica do IRS – espaço aberto à comunidade clínica do hospital, para trabalhar "casos difíceis", sob a perspectiva psicanalítica da construção do caso, realizada, geralmente, a partir da entrevista com o paciente. Esta sessão clínica foi realizada no período de 1999 a 2004, no IRS – FHEMIG, sob a orientação do psicanalista e, na época diretor do hospital, Dr. Wellerson Durães de Alkmim. Posteriormente, seus efeitos passaram a ser trabalhados a partir de uma parceria com a UFMG, num projeto de pesquisa coordenado pelo Dr. Jésus Santiago, financiada pelo CNPq, da qual faço parte na qualidade de pesquisador.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

melhora. Ele está vendo um investimento, uma nova forma de lidar”.

Já os profissionais de nível médio – auxiliares de enfermagem – percebiam

muito as modificações mais imediatas. Segundo os relatos, havia aqueles pacientes

que voltavam mais calmos, silenciosos, outros voltavam mais falantes, mais

comunicativos, animados, até mesmo, mais cooperativos na enfermaria:

Eu notei que quando o paciente vai para a entrevista, e ele fica muito no quarto, fechado, depois ele vai para a entrevista e volta mais participativo, mais comunicativo, ele sente a necessidade de buscar mais, ele procura ouvir e falar mais dele. Eu percebi esta mudança, paciente fica mais colaborativo, procura conversar mais, conta mais sobre a vida dele. O paciente na entrevista se abre mais. (Transcrição de entrevistas, 2006)

Assim sendo, pode ocorrer que, para um paciente, a entrevista tenha peso

de um acontecimento, que adquira certa importância, e para outro não, isto varia em

cada caso. Temos mesmo que considerar que esses efeitos nem sempre são positivos,

pois há casos em que a apresentação pode produzir efeitos devastadores num sujeito,

desencadeantes de crise ou reagudização do quadro, por exemplo.

Há também o risco de que nada se produza. Do lado do público que não

tenha nenhum efeito instrutivo; e do lado do enfermo, que o encontro não favoreça de

forma alguma, surgimento de algo novo, nem para o próprio paciente, nem para a

equipe.

De fato, como nos diz François Leguil, “A apresentação de enfermos não é

uma prática que se tem do encontro mas uma prática submetida ao encontro”, (LEGUIL

[1993]2004, p. 44), ou seja, enquanto encontro, é uma prática marcada pela

contingência. Trata-se de um encontro entre analista e sujeito, um encontro singular,

cujos efeitos não podem ser previstos, não podem ser planejados ou controlados.

Se, por um lado, não há garantias quanto ao efeito sobre o sujeito, por

outro, mesmo que a apresentação não incida diretamente sobre o paciente, ainda

assim seus benefícios podem ser recolhidos do efeito que a entrevista produz sobre a

equipe.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

B - Efeitos sobre o tratamento

Apesar de não haver garantias, com freqüência os efeitos são muito

positivos, pois, geralmente, daí resulta uma apreciação mais cuidadosa do caso,

decorrente do que foi revelado pela apresentação e pela discussão que se segue à

apresentação.

Dizemos isso porque, habitualmente, essa prática vem se dando sob a

forma de reuniões, nas quais, após a apresentação, os pontos de impasse e

dificuldades de um determinado caso, podem ser examinados, discutidos com as

equipes que atendem o paciente, tomando por base suas particularidades e o que de

singular o sujeito apresenta. Mais do que um lugar de discussão, esses encontros

clínicos são um momento de pontuação que produz efeitos, seja sobre o sujeito, seja

sobre a equipe, e mesmo sobre a instituição.

A construção repercute na equipe, promovendo, freqüentemente, maior

implicação desta, pois favorece, inclusive, que as intervenções dos diversos

profissionais envolvidos no tratamento sejam mais articuladas, integradas, uma vez

que podem ser orientadas por um cálculo feito, coletivamente, na discussão do caso

que se segue à entrevista.

De toda forma, para além das elaborações teóricas, nossa experiência com

apresentação42 têm demonstrado que esse dispositivo desperta o interesse da

comunidade clínica, inclusive dos profissionais de formações outras que não a

psicanalítica. Diante de impasses da clínica, ao se encontrarem com seus recursos

esgotados, acabam por demandar esses espaços, buscando outras soluções, que não

as tradicionalmente utilizadas. E, efetivamente, como efeito de uma apresentação, o

esclarecimento do diagnóstico, a direção do tratamento e do encaminhamento gera,

com freqüência, efeitos na orientação da equipe. De fato, o que vemos é que esse

dispositivo possibilita que a lógica psicanalítica circule, servindo de orientador último

42 Tomamos como referência, o trabalho realizado no IRS – FHEMIG. (Conf. nota 5, p. 13)

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

para o trabalho de uma equipe, mesmo que heterogênea quanto à formação de seus

profissionais.

O interessante dessa perspectiva , como nos diz Antônio Beneti, é que “a

prática da apresentação de enfermos realizada pelo psicanalista no âmbito das

instituições de saúde mental possibilitam uma mudança radical na clínica desenvolvida

nas mesmas” (BENETI, 1994, p. 94), pois seu caráter de transmissão, possibilita uma

reorientação da clínica – seja no lugar dado à palavra, ao saber do paciente, seja no

manejo que exemplifica. Afinal, como nos diz François Leguil, o ensino na

apresentação, se dá pela exemplaridade de uma vivência e não por um ensino formal,

racional.

Este foi um outro aspecto que as entrevistas semi-estruturadas realizadas

na pesquisa acerca dos efeitos da apresentação43 puderam testemunhar. As

entrevistas foram realizadas dois anos após o encerramento das atividades da Sessão

Clínica. Ainda assim, passado esse tempo, tanto profissionais de nível superior, quanto

de nível médio, puderam dizer o que extraíram dessa prática.

A fim de registrar o alcance dessa experiência, tomaremos alguns

fragmentos do depoimento dos auxiliares de enfermagem:

Pergunta: A partir da experiência que você teve com as entrevistas, você acha que foi possível aprender algo que fosse possível aplicar com outros pacientes?

Resposta 1: Sim, até mesmo como tratar o paciente, a gente aprende a lidar melhor com ele,a partir do momento que a gente conhece a história dele. Fica mais fácil de todas as formas, dar medicação, dar comida, encaminhar para um banho. Tem paciente que não aceita um não, tem paciente que você tem que ser dura, e tem outros que você já não pode ser muito dura com eles. Então nestas entrevistas a gente aprende que com esse a gente que ser mais rígido com ele, ter mais autoridade, você tem que mandar mesmo. Outros, você já tem que levar mais na conversa. Isso a gente aprende muito com estas entrevistas. A partir do momento que você aprende você aplica para o resto da sua vida.

É uma coisa muita positiva para o trabalho da gente estas entrevistas no sentido de tratar mesmo o paciente, de saber conversar com o paciente,as queixas dele você já sabe como vai responder. (...) Então eu aprendi que com esta paciente, agressividade não dá, na medida que você vai gritando, ela também vai gritando e piora a situação. Com ela a gente tem que levar mais na conversa, tentar um diálogo com ela.

Resposta 2: Eu comecei a interessar mais pela vida dele, para saber o motivo dele estar assim.

43 Conf. nota 41, p.151.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Reposta 3: Com certeza com os casos clínicos. Aprendi muita coisa da psiquiatria, que nem sempre a gente está pegando os livros.A gente estuda aquela doença ali, CID-10.Na sessão clínica, você vê, eles explicam melhor, você aprende melhor. Dá para aplicar. Às vezes eu pego um paciente que é F-20,aí depois vem o psicótico, é diferente. No dia a dia você vê a diferença. Dá para usar no contato verbal. (...) Tudo que eu aprendi na sessão clínica eu pude usar com paciente da minha enfermaria, o jeito de lidar, conversar. Eu modifiquei a forma de conversar com paciente, com certeza.

Resposta 4: A gente passou a conversar mais com ele. Às vezes o paciente agita e você consegue controlar ele só verbalmente, sem precisar conter, através do diálogo. Se ele agita você tem que saber porque ele está agitando, às vezes tem uma coisa que dá para contornar a situação. Às vezes a gente tem medo da reação do paciente porque a gente não conhece, e com o tempo a gente vai conhecendo, sabendo lidar com isso. A entrevista ajuda muito a observar mais ele, conversar, procurar ele se ele está muito calado para ver o que está acontecendo. (Transcrição de entrevistas, 2006)

De uma maneira geral, o que encontramos nas respostas dos técnicos do

serviço, tanto de nível médio quanto de nível superior, foi o ponto da transmissão da

psicanálise: um ponto de ruptura no discurso universalisante, fazendo surgir a

percepção da dimensão da singularidade.

E a partir da sessão clínica, a gente viu que você não pode tratar todo mundo igual que cada caso é um caso. Cada caso tem a sua peculiaridade que vai te fazer lidar de uma maneira diferente. Então, quando a gente volta da sessão clínica, a gente volta com outro olhar e com outra maneira de pensar e de lidar com aquele sujeito que foi para a sessão clínica. (Transcrição de entrevistas, 2006)

Mas, mesmo que possamos dar testemunho dos efeitos da apresentação de

pacientes, o que podemos verificar é que ainda há um grande desconhecimento acerca

do alcance desta prática. No próprio Campo Freudiano, há cerca de três anos atrás, o I

Encontro Americano do Campo Freudiano (2003), que tinha como tema Os usos da

Psicanálise, propôs uma mesa de discussão sobre apresentação de pacientes, com a

seguinte chamada: “A apresentação de enfermos que se reduz a uma entrevista

pública mostra, em muitas oportunidades, interrogações a respeito do diagnóstico do

sujeito” (Grifo meu). Ora, se dentro do próprio Campo Freudiano, ainda encontramos

esse tipo de "redução" do que vem a ser uma apresentação, é preciso reconhecermos

que ainda há um grande desconhecimento sobre seus efeitos e alcances.

Desconhecimento que certamente favorece as críticas contundentes, ainda que

equivocadas, que desde o tempo de Lacan, e ainda hoje, interpelam os analistas e

buscam acabar com essa prática.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Como nos diz Claude Léger, tais acusações, que vão desde o arcaísmo à

de distorção ao segredo profissional, e mesmo ao ataque dos direitos humanos. J.A.

Miller, citando Maud Mannoni, nos dá um belo exemplo das críticas feitas a Lacan.

Sobre estas, Mannoni se exprime nos seguintes termos:

Sobre a prática de suas apresentações de doentes em Sainte-Anne, um dos lugares de destaque da psiquiatria francesa, Lacan não se sentiu obrigado a se interrogar. Da maneira mais clássica, ele encontra aí exemplos próprios para justificar sua interpretação de casos e para mostrar aos estudantes, ao mesmo tempo, uma forma pertinente de entrevista com o doente da qual, certamente, o estudante tirava o maior proveito, mas forçosamente sempre no quadro fornecido pela psiquiatria reinante. Assim, Lacan fornecia, à sua revelia, sua caução a uma prática psiquiátrica tradicional em que o paciente serve de matéria primeira ao discurso, em que o que lhe é pedido é que acaba por ilustrar um ponto da teoria sem que esta ilustração sirva o mínimo para seus interesses. (MANNONI apud MILLER, 1996, p. 141)

Ora, sobre isso há comprovações clínicas suficientes para sustentarmos o

contrário. Geralmente, o paciente é beneficiado pela apresentação – efeito que,

inclusive, pode ser constatado a posteriori.

Há aspectos que podem ser cuidados para evitar cair nesse automatismo

didático que condenou as apresentações da psiquiatria clássica e que ainda hoje

fazem a fama das apresentações, principalmente aquelas realizadas pelos professores

no intuito de ensinar psicopatologia aos acadêmicos, seja de medicina, enfermagem ou

psicologia.

Um primeiro aspecto que devemos cuidar, e que é fundamental, é que a

apresentação se situe nos marcos institucionais, mantendo-se, portanto, atrelada à

clínica.

Mas, mesmo atrelada à instituição, ainda há o perigo de se perder de vista a

sua dimensão clínica. Quem nos alerta para esse problema é Célio Garcia. No artigo

Da apresentação de pacientes aos inclassificáveis (2005), ele nos chama a atenção

para não cairmos no risco de a sessão clínica ser tomada como uma supervisão.

Segundo ele, o jovem analista toma este espaço como uma segunda etapa, posterior a

uma preparação prévia em supervisão individual. Assim, com o caso já encaminhado,

“as perguntas formuladas pelos participantes se limitam a pedir detalhes como se fosse

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

possível completar o relato preenchendo os buracos de um discurso que

necessariamente chega aos frangalhos” (GARCIA, 2005, p.2)

De fato,

não se trata de ajudar nem o paciente nem ao jovem analista, ou psiquiatra! No grupo formado para tal fim onde o paciente comparece, a psicanálise se sente implicada, convocada; quanto ao paciente, ele descompleta o saber psicanalítico, o saber psiquiátrico. O resto é adaptação em função de nossas carências. (GARCIA, 2005, p. 2)

É preciso nos mantermos abertos, permitindo que efetivamente o saber do

paciente compareça interrogando não apenas o saber sobre o paciente, enquanto

saber psiquiátrico estabelecido, mas também o saber psicanalítico, possibilitando que

este se mantenha vivo, dinâmico.

Nas palavras de Colette Soler: "resumindo, diria que os benefícios são

instruir, colocar à prova nossa técnica de entrevista e experimentar os limites e as

condições de entrada do discurso analítico" (SOLER, 1988, p. 17)44.

Se ainda hoje sustentamos esse dispositivo, se ele se justifica, decerto que

não é porque atende às demandas das equipes de tratamento ou dos analistas em

formação. Se mantemos esse dispositivo, é porque encontramos nele a possibilidade

de manter vivo o desejo pela clínica.

Ou seja, é por acreditar que o paciente, com sua presença, faz com que

psiquiatria e psicanálise possam ser interrogadas em seus limites, colocando em

cheque o saber estabelecido e convidando aqueles que se sentem interrogados, a irem

além.

Afinal acreditamos, como Lacan, que, “na medida em que entra em jogo o

significante, um exame clínico, uma apresentação de paciente não pode absolutamente

ser a mesma no tempo da psicanálise e no tempo que a precedeu” (LACAN, 1965, CD

Rom)45 (Grifo meu).

44 Tradução livre do espanhol. 45 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

CONCLUSÃO

Como vimos, a apresentação de paciente, esse dispositivo tão criticado por seu

caráter didático, acusado de ser uma prática objetificante, que não traz nenhum benefício

para aquele que a ela é submetido, em verdade nasceu dentro de uma perspectiva clínica.

Decerto que sofreu transformações ao longo da história. Afinal, a apresentação

sempre esteve condicionada pelos princípios teóricos daqueles que a conduziam. Se a

apresentação empobreceu, vimos que não foi apenas ela, mas toda uma linha da psiquiatria

à qual ela passou a servir.

Não é sem razão que a psicanálise, ao resgatar a dimensão clínica, deixada de

lado pela psiquiatria, recupera essa vertente clínica também na apresentação. Afinal, como

nos disse François Leguil: “ser psicanalista é hoje ser clínico, já que, hoje, ser clínico é não

ser mais verdadeiramente psiquiatra” (LEGUIL, 1989, p. 97).

Como pudemos verificar, ao longo do último capítulo, não há dúvidas quanto às

possibilidades clínicas da entrevista realizada sob a perspectiva lacaniana: como vimos,

seus efeitos incidem tanto nos sujeitos entrevistados, quanto sobre aqueles que conduzem

seu tratamento. Efeitos que podem se estender inclusive, sobre a instituição, no que diz

respeito à possibilidade de circulação do discurso analítico e da interlocução entre os

diversos saberes que compõem o campo do atendimento ao paciente com sofrimento

mental. Por fim, efeitos que implicam na intersecção das dimensões terapêutica e de

transmissão da prática psicanalítica.

De fato, resgatamos a dimensão clínica da apresentação, mas ao que parece,

ainda não sabemos, verdadeiramente, o alcance de suas possibilidades. Sem dúvida, há um

campo fértil de investigação, e, por certo, muitas questões para responder: Que

fundamentos clínicos viabilizam que se produzam efeitos clínicos em um sujeito psicótico,

durante uma apresentação de pacientes? Do lado do analista, o que o autoriza ao ato em

uma apresentação, e do lado do paciente, o que o torna susceptível a essa intervenção? Em

que se sustenta o efeito que aí se produz? Como se articula aí a transferência?

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Mais do que respostas, o que se tem são suposições, indicações, elaborações

iniciais, mas que já possibilitam estabelecer algumas coordenadas para uma investigação

mais sistemática, que ainda, e cada vez mais, se faz necessária.

Mesmo que essas elaborações ainda não se apresentem de forma coordenada,

sistematizada, vale a pena nos determos um pouco sobre elas, haja vista que, além de

apresentarem certa consistência, representam bem o ponto em que nos encontramos hoje,

em nossas investigações.

Comecemos pela questão da transferência. Como nos lembra Liliana Cazenave,

“A transferência é fundamental porque se se trata de um dispositivo analítico, um dispositivo

pensado a partir do discurso analítico, este não é sem transferência” (CAZENAVE, 2002, p.

82)1. Ou seja, se como nos diz Lacan, “Como vocês vêem, é complexo, porque não é o

psicanalista do paciente quem examina, mas o psicanalista de um terceiro que está ali para

registrar o resultado do exame”. (LACAN [1970]2004, p. 14), assim de imediato uma questão

se coloca: o que podemos dizer da transferência em uma apresentação de pacientes, visto

que esta se dá em um único encontro?

Uma indicação sobre a qual parece haver consenso, pois pode ser encontrada

em diversos artigos, seria a de que um dos pontos que favorece que a apresentação tenha

efeitos clínicos, é justamente por haver uma demanda da equipe ao analista, mais

precisamente, por sua transferência àquele que fará a entrevista, ou à psicanálise. Isto

porque o efeito da transferência dos técnicos, no meio onde circula o paciente, produz

efeitos no paciente – o lugar na transferência, que o paciente reserva ao apresentador

durante a condução da entrevista é, de início, importado da relação deste com a equipe e,

conseqüentemente, da posição desta como apresentador, e também com o próprio

dispositivo.

Outro ponto que é de fundamental importância é quanto à função do Outro na

psicose. Responder essa questão abre as possibilidades para se pensar a função tão

importante do público nesse dispositivo.

1 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

Como nos diz Liliana Cazenave, “Tratando-se da psicose onde esse lugar do

Outro não está localizado porque o Outro é absoluto, se encontra submetido ao pequeno

outro, localizar no dispositivo este terceiro é fundamental para possibilitar que o que se

encontre ali se inscreva” (CAZENAVE. 2002, p. 81)2. Assim, ela toma a apresentação como

um, entre outros dispositivos institucionais que podem localizar esse lugar terceiro, ou seja,

algo da ordem do Outro, da ordem da inscrição, pela função da palavra, da mensagem do

sujeito. O público pensado, portanto, enquanto Outro, testemunha, silencioso, que está ali

como mero espectador.

Trata-se, como propôs Ram Mandil3, de uma “assistência que corporifica a doxa,

a opinião pública, o senso comum, a cidade”. Essa corporificação do Outro presentifica uma

expectativa que interfere no dispositivo, seja na vertente de uma aprovação, de um

acolhimento social do que está sendo dito, e que isso não é sem importância.

De fato, o que vemos é que muitos pacientes chegam mesmo a ter interesse em

ser apresentados. Sabendo que encontrarão um auditório atento a seus problemas, em

ocasião um tanto solene, bem diferente da entrevista cotidiana, individual, os pacientes

tomam a apresentação com um terreno fértil para compartilhar seja seu drama, seja suas

inquietudes. (Clastres et al.,1991, p. 40)

É assim que pudemos ver a paciente, que dois anos após uma primeira

apresentação, foi convidada novamente a participar do dispositivo. Não apenas aceitou

prontamente, como também, mesmo em crise, pudemos recebê-la, arrumada, com os

cabelos escovados, unhas feitas, roupa nova, numa produção que traduzia a importância

atribuída ao evento4.

Encontraremos outros exemplos dessa importância que a apresentação tem

para os pacientes nos comentários de Claude Léger sobre o paciente que proporá voltar

para fazer uma conferência, porque ele não estava suficientemente preparado, ou outro que

2 Tradução livre do espanhol. 3 Fala extraída das anotações feitas no decurso da discussão sobre esta dissertação, realizada durante a Qualificação, em 09/06/2005. 4 A paciente, que chamaremos aqui de Luiza, participou de uma primeira apresentação em 2002, no Núcleo de Psicose, tendo sido entrevistado pelo Dr. Antônio Beneti, e novamente em 2004, na Sessão Clínica do IRS, quando foi entrevistada pelo Dr. Wellerson Alkmim. Sobre o Núcleo de Psicose e Sessão clínica, conf. nota 5, p.13.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

proporá ao interlocutor uma série de entrevistas para que ele compreenda melhor seus

neologismos. "Porque é um pouco complexo" (LÉGER, 1998, [s.p.]).

Uma outra paciente, a caminho da apresentação, pergunta a seu analista se a

audiência que a aguardava era formada por estudantes. Ele lhe responde que se tratava de

“um grupo de profissionais que estariam lá para aprender”, acrescentando que a

apresentação seria importante para o seu tratamento. “Então”, diz a paciente, “se for bom

para mim, eu irei surpreender; falarei de coisas que nunca disse a ninguém”. E realmente o

fez, revelando aspectos de sua sexualidade jamais mencionados anteriormente.

(CARVALHO, 2005, CD Rom)

O que podemos perceber é que, se o paciente consente em ir, ele o faz porque

tem algo a dizer.

Outro aspecto que parece favorecer que uma apresentação produza efeitos, é o

momento clínico em que se encontra o paciente, quando este é convidado a ir à entrevista.

Habitualmente, convida-se esse paciente que se encontra em um momento

crítico, no qual as coordenadas do gozo já não operam mais e este encontra-se invadido,

como nos diz Leguil, no “limite, no qual o impossível de suportar só pode propagar-se ou

resolver-se na dimensão de uma clínica cujos pontos de perspectiva são, primeiramente, os

da passagem ao ato ou do desmoronamento subjetivo” (LEGUIL [1993]2004, p. 45)5. E a

apresentação pode ter efeito, pois, justo neste momento em que o paciente encontra-se

“perplexo ou intrigado, oferecemos-lhe repentinamente uma possibilidade de se explicar”

Para Claude Léger, a entrevista serve para colocar em ordem os elos dos seus enunciados.

O interlocutor é apresentado ao paciente como aquele que vai lhe permitir chegar a uma

conclusão e o entrevistador deve incitar o paciente a fazer este ordenamento. Claude Léger

coloca assim, a apresentação como um "empuxo à definição" (LÉGER, 1998, [s.p.])6.

Opinião que vemos compartilhada por François Leguil. Segundo ele,

A apresentação possibilita àquele em quem uma causa se há reduzido ao silêncio catastrófico das patologias irreparáveis, começar a circunscrever o que lhe sucede para afastar-se um pouco e assim encontrar no distanciamento do horror há possibilidade de dar uma pequena oportunidade à palavra. (LEGUIL [1993]2004,

5 Tradução livre do espanhol. 6 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

p.45)7 Leguil ainda acrescenta que, freqüentemente, a apresentação ensina que

circunscrever os fenômenos, quer dizer, aproximar-se da causa, é permitir a um sujeito

afastar-se do impossível de suportar para poder começar a falar. (Leguil, [1993]2004, p.

45)8.

Para Liliana Cazenave, é também em torno desse ponto de causa que se produz

o efeito da apresentação. Segundo Cazenave, trata-se de surpreender o traumatismo – “é

dizer: surpreender o ponto no qual o sujeito porta uma marca que o posiciona”. Para tanto, é

preciso que o apresentador vá de “maneira ativa ao encontro da posição do sujeito, de

localização na relação ao Outro” (CAZENAVE, 2002, p. 80)9.

Entretanto, um aspecto fundamental, assinalado por Cazenave, é que esse

encontro é contingente. Contudo, se por um lado não há garantias de que algo se produza,

por outro lado, de qualquer forma, a própria estrutura da apresentação parece favorecer

esse encontro. Como propõe Geneviève Morel:

Nas apresentações de pacientes a vida de um sujeito pode ser repassada de uma ponta a outra, num tempo bastante curto, em um único encontro entre paciente e psicanalista. Temos, numa apresentação de pacientes, um efeito de precipitação, de condensação, muito relevante, que favorece, segundo minha experiência, uma certa formalização espontânea do discurso. Quero dizer com isso, que temos sempre a impressão de que, em uma hora, por exemplo, vemos algo se esboçar de uma maneira muito clara. Às vezes nas entrevistas com um paciente que acompanhamos normalmente, temos muito mais dificuldade em construir o caso, pois não temos, justamente, este efeito de precipitação - o paciente sabe que vai nos rever, nós também sabemos que vamos revê-lo, ou ao menos acreditamos. Isso faz com seja preciso muito mais tempo. (MOREL, 1999, p. 22)

A título de conclusão, como tentativa de ordenar essas elaborações, ocorre-nos

pensar que o efeito da entrevista de paciente decorre da particularidade dessa situação: sua

limitação a uma única entrevista coloca, tanto o paciente quanto o entrevistador,

tensionados pelo tempo – tanto um quanto o outro sabem que não irão retornar a essa

situação, o que parece resultar num efeito de condensação do que é preciso ser dito.

Tal situação pede ao apresentador uma posição mais ativa: ao fazer emergir

e/ou dar lugar privilegiado às soluções criadas pelo sujeito para lidar, seja com seu corpo,

7 Tradução livre do espanhol. 8 Tradução livre do espanhol. 9 Tradução livre do espanhol.

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

seja com o social, o analista não apenas valida sua construção, colocando-se como Outro

parceiro, mas ainda possibilita que, sob o testemunho dos ouvintes, sua palavra seja

acolhida no âmbito público.

Nossa suposição é que o efeito da apresentação de paciente se sustenta na

articulação do manejo da transferência pelo analista, no consentimento do paciente em ir à

apresentação dar seu testemunho e na presença do público, que funcionaria como

representante do Outro social, acolhendo e legitimando suas invenções, dando lastro à sua

palavra – tudo isso, sob o tensionamento de ser um único encontro.

Sem dúvida temos ainda muito trabalho pela frente, não apenas no sentido de

sistematizar essa prática, mas também, e principalmente, de mantê-la viva. Afinal,

acreditamos, como Leguil que, “se Jacques Lacan, indo contra o senso comum, preservou

essa prática, não seria pelo fato de considerar que se devia ainda procurar nela e nela

encontrar uma relação específica e insubstituível com a verdade que está em causa na

clínica?” (LEGUIL, 1989, p. 97).

Ferreira, Cristiana. Apresentação de Pacientes: (re)descobrindo a dimensão clínica. UFMG, 2006

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