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Apresentação
O que v. tem em mãos representa um reforço para as aulas presenciais que
serão ministradas no transcurso desse primeiro capítulo do Curso de Direito Registral
Imobiliário da UniRegistral – Universidade Corporativa do Registro.
Estamos iniciando uma importante fase na história dos Registros Imobiliários
pátrios. Pela primeira vez, um curso de direito nasce das aspirações dos registradores e
germina no interior de uma entidade que os representa. A Arisp – Associação dos
Registradores Imobiliários do Estado de São Paulo, com o apoio do Irib – Instituto de
Registro Imobiliário do Brasil e da Anoreg-SP – Associação dos Notários e
Registradores do Estado de São Paulo, realiza o Primeiro Capítulo de um curso que se
projeta para ser um fórum permanente de discussões e debates.
Como tive ocasião de declarar, a idéia da criação e instituição da UniRegistral
– Universidade Corporativa do Registro – é fomentar e estimular o desenvolvimento de
uma comunidade de estudiosos do direito registral que vem vicejando há muito em
nosso meio. Um dos grandes inspiradores deste projeto, sempre reitera a idéia de que
devemos transmitir nossos tesouros aos novos registradores, desafiando-nos a continuar
a nossa história, a perseverar em nossa substância, certo de que as nossas tradições
devem ser legadas aos jovens que aspiram a esse nobile officium.
RICARDO DIP se lembraria de BELTRÁN DE HEREDIA, na obra que escreveu
sobre a vida e a obra de FRANCISCO DE VITORIA. Diz o eminente desembargador que “a
UniRegistral está promovendo uma relectio de Direito registrário... (...) uma relectio
acadêmica, ao modo como se proferiu, p.ex., a Relectio de Indis de Vitoria, não uma
recapitulação de matéria já tratada, mas uma dissertação em que se volta às lições já
meditadas e proferidas: é, de algum modo, uma repetição, mas uma repetição (ou
relección, em castelhano, uma relição) que estende e aprofunda, colhe os frutos
maduros que antes se haviam semeado”.
Estamos no seio do que propriamente se pode chamar de um verdadeiro Liceu
do Direito Registral Imobiliário brasileiro, cujo epicentro é a entidade que os representa
em terras bandeirantes.
Desejamos a todos os participantes um proveitoso percurso em muito boa
companhia.
São Paulo, 20 de junho de 2008.
SÉRGIO JACOMINO
Secretário da UniRegistral.
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 2
Capítulo I - Princípios UNIREGISTRAL - Universidade Corporativa do Registro www.uniregistral.com.br
CURSO DE DIREITO REGISTRAL IMOBILIÁRIO
Apresentação
Programa
1. O paradigma da independência jurídica dos Registradores e dos Notários - Ricardo Henry
Marques Dip
2. Sobre a crise contemporânea da segurança jurídica - Ricardo Henry Marques Dip
3. Sobre a função social do Registrador de Imóveis - Ricardo Henry Marques Dip
4. Sobre a qualificação no Registro de Imóveis - Ricardo Henry Marques Dip
5. Princípios do Direito Registral Imobiliário - Álvaro Melo Filho
6. Princípio da legalidade e registro de imóveis - Flauzilino Araújo dos Santos
7. Títulos judiciais e o Registro Imobiliário - Marcelo Martins Berthe
8. Sobre a qualificação de títulos judiciais no Brasil - Flauzilino Araújo dos Santos
9. Qualificação registral de títulos judiciais e crime de desobediência - Sílvia Dip
10. São taxativos os atos registráveis? - Ricardo Henry Marques Dip
11. Processo administrativo ordinário no juízo corregedor - Vicente de Abreu Amadei
12. A penhora e o procedimento de dúvida - Sérgio Jacomino
13. Averbação premonitória, publicidade registral e distribuidores: a probatio diabolica e o
santo remédio - Sérgio Jacomino
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CURSO DE DIREITO REGISTRAL IMOBILIÁRIO
PROGRAMA
Módulo 1 - Princípios de Direito Registral I
a) Princípios antenormativos.
b) Princípios supranormativos.
c) Princípios endonormativos.
d) Princípios transnormativos.
e) Princípio de segurança jurídica.
f) Princípio de legalidade – Qualificação registral.
g) Princípio de inscrição.
h) Princípio de publicidade.
Tema para discussão e debate: O Direito Registral se esgota na norma?
Professores
Des. José Renato Nalini
Dr. Flauzilino Araújo dos Santos
Des. Ricardo Dip
Dr. Vicente de Abreu Amadei
Debatedores
Dr. João Baptista Galhardo
Des. Narciso Orlandi Neto
Dr. Sérgio Jacomino
Data: 20.06.2008 das 18h às 22h e 21.06.2008 das 9h às 18h
Módulo 2 - Princípios de Direito Registral II
a) Princípio de instância.
b) Princípio de legitimação.
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c) Princípio de prioridade.
d) Princípio de continuidade.
e) Princípio de especialidade.
f) Unitariedade da matrícula.
Tema para discussão e debate: Princípios registrais e a qualificação de títulos
judiciais. Desenvolver o tema da ordem judicial em face dos princípios
do Registro Imobiliário.
Professores
Des. José Renato Nalini
Dr. Flauzilino Araújo dos Santos
Des. Ricardo Dip
Dr. Vicente de Abreu Amadei
Debatedores
Dr. Alexandre Laizo Clápis
Dr. Flaviano Galhardo
Dr. Francisco Ventura de Toledo
Data: 27.06.2008 das 18h às 22h e 28.06.2008 das 9h às 18h
Módulo 3 - O estatuto profissional do Registrador Imobiliário
a) Atividade Registral no Brasil.
b) A Constituição Federal de 1988 – Um novo paradigma.
c) Do serventuário de Justiça ao Registrador – O estatuto jurídico profissional.
d) A Lei 8.935, de 1994.
e) A EC 45 – A atração dos órgãos prestadores de serviços de Registro.
f) O ingresso na atividade – Concursos Públicos.
g) Fiscalização pelo Judiciário – Limites e parâmetros.
h) Colegiação e sindicalização de registradores.
i) Territorialidade e monopólio natural.
j) Perda da delegação.
k) Aposentadoria.
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l) Direito aos emolumentos.
Tema para discussão e debate: A sucessão nos cartórios.
Professores
Dr. Celso Fernandes Campilongo
Dr. Diego Selhane Perez
Des. Kioitsi Chicuta
Des. Ricardo Dip
Debatedores
Dr. Alexandre Augusto Arcaro
Des. José de Mello Junqueira
Dra. Patrícia Ferraz
Dr. Sérgio Jacomino
Data: 04.07.2008 das 18h às 22h e 05.07.2008 das 9h às 18h
Módulo 4 - Direito formal e material –
O que se inscreve e como se inscreve
a) No Registro de Imóveis – Que se registra?
b) Morfologia titular – Os títulos inscritíveis.
b1) Títulos administrativos
b2) Títulos notariais
b3) Títulos privados
b4) Títulos judiciais
b5) Títulos estrangeiros
b6) Teoria do título e modo.
b7) O sistema registral brasileiro
c) Taxatividade ou exemplaridade dos fatos inscritíveis?
c1) Teoria do numerus clausus dos direitos reais
c2) Tipicidade dos fatos inscritíveis
d) Destaque: títulos judiciais e o Registro de Imóveis
d1) Penhora – Inovações legislativas
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d2) Averbação premonitória (art. 615-A do CPC)
d3) Arresto, seqüestro e indisponibilidade de bens
d4) Arrolamento de bens (cautelar)
d5) Arrolamento fiscal de bens (Lei 9.532, de 1997)
d6) Caução processual e hipoteca judiciária
d7) Protesto contra alienação de bens
Tema para discussão e debate: Registro de títulos que versem sobre direitos
pessoais. Dar exemplos e justificar a opção do legislador.
Professores
Dr. Everaldo Augusto Cambler
Dr. Márcio Pires de Mesquita
Dr. Marcelo Martins Berthe
Dr. Sérgio Jacomino
Debatedores
Dr. Flauzilino Araújo dos Santos
Des. José de Mello Junqueira
Dr. Mário Pazutti Mezzari
Dra. Tânia Mara Ahualli
Data: 11.07.2008 das 18h às 22h e 12.07.2008 das 9h às 18h
Hotel Pergamon
Rua Frei Caneca, 80 - Consolação
São Paulo - Brasil - CEP 01307-000
Tel.: 55 (11) 3123.2021
Toll free 0800 551056
www.pergamon.com.br
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1.
O PARADIGMA DA INDEPENDÊNCIA JURÍDICA
DOS REGISTRADORES E DOS NOTÁRIOS
RICARDO HENRY MARQUES DIP
Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Acadêmico da Real de Jurisprudência e Legislação de Madrid.
1
Sem ter, minimamente, em cogitação, o objetivo de instituir um paradigma, e,
principalmente, não contando entre meus defeitos – que alisto, por infelicidade, em
grande número – o anelo de ser original, tenho, nada obstante, a consciência de que, a
partir de uma deslustrada palestra que perpetrei em Porto Alegre, em fins de 1990,1
tracei, para a comunidade registral-notarial brasileira, os primeiros vestígios daquilo que
hoje se tem designado por paradigma da independência jurídica dos registradores
públicos e dos notários.
Julgo ser este um momento propício para cogitar, com apoio em sua humilde
história, do papel que teve e, acaso, da função que ainda se espera ou se pode esperar
desse paradigma. Sem ilusões, de um lado, sem frustrações, de outro. Sem, para logo, a
vaidade de um inaugurador de teorias, vaidade de que todos podemos ser vítimas – a
quantas anda, com efeito, na nova teologia, a esquecida lista dos pecados capitais,
elenco em que eu lia, ao tempo da minha infância, primeirissimamente a soberba ou o
orgulho? –, mas, em todo caso, sem, depois, as lamúrias, muita vez abúlicas, típicas dos
que não encarnam a possibilidade de ser.
1 Sobre o Saber Regional, atas do I Congresso de Registros do Rio Grande do Sul,
Revista de Direito Imobiliário n. 31-32, jan.-dez. de 1993.
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Talvez seja este um dos mais relevantes e discretos dos conselhos sociais para
os nossos tempos: freqüentemente a dificuldade de realizar um modelo político ou
jurídico teórico razoável acha-se na falta de comprometimento atual para sua realidade
futura. Lembra-me aqui uma celebrada passagem de Heidegger: para uma possibilidade
chegar a ser uma atualidade é antes preciso poder vivê-la como possibilidade. Também
no ambiente político, sem o comprometimento grave com a potencialidade específica de
um dever-ser, nenhuma possibilidade chega a ser. Há assim um momento existencial
prévio em que a realidade ulterior, se se quer seriamente que venha a ser, demanda um
empolgamento, um compromisso de a extrair das causas possíveis, de fazer a realidade
possível a partir da consciência engajada na possibilidade mesma dessa realidade:
enfim, uma responsabilização pessoal pelo nosso tempo.
Exemplo vivo desse quadro pode apontar-se no fato político ou jurídico dos
autoritarismos e totalitarismos que freqüentaram este século XX. Se a esses regimes
político-jurídicos não tivessem respondido os povos com a responsabilidade de uma
potência que chegou a ser, ainda estaríamos hoje lacrimejando ao lado do muro de
Berlim. É possível que alguns embarguem o desfecho estendido desse relativo êxito
histórico lembrando não só a persistência ainda de regimes totalitários, mas, por igual
ou talvez até com maior preocupação, a novidade pós-soviética da sutileza totalitária de
regimes rubricados como democráticos.2 Outros objetarão ainda com a previsão
2 Cf. a esse respeito o excelente estudo de Miguel Ayuso, ¿Después del Leviathan?,
Madrid: Speiro, 1996, passim; cf. ainda meu pequeno estudo: Apontamentos sobre as mudanças
das leis e o direito adquirido à luz do jusnaturalismo clássico: palestra proferida no Tribunal de
Alçada Criminal de São Paulo, em 18.06.1997.
(3) Em modesta reflexão intitulada "Uma Festa do Direito", incluída na obra coletiva que
organizei com escritos de Narciso Orlandi Neto, José Renato Nalini, Kioitsi Chicuta e Vicente
de Abreu Amadei, Registros Públicos e Segurança Jurídica (Porto Alegre: Antonio Fabris,
1998), fiz concisa referência ao tema: “Não me conto entre os pessimistas que, vendo em tudo
sinais da „decadência do Ocidente‟, aguardam o final catastrófico de toda a história, mas
tampouco me conto entre os otimistas que se fiam no mito do progresso indefinido pregado pelo
iluminismo: guardo no fundo mais recôndito da alma uma virtude que também não escapou da
caixa de Pandora: a esperança. Por mais que essa virtude eu esteja a referi-la,
fundamentalmente, a uma situação extra-histórica, estou convencido de que a resistência pode
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histórico-teológica de uma catástrofe intra-histórica. Essas objeções não afetam o
núcleo da apontada lição heideggeriana: o ritmo cultural não é retilíneo, e a visão de um
cataclismo intra-histórico não interdita a esperanto que se projeta de maneira
escatológica.3 Na expressão empregada por Armando Valladares,
4 é alguma vez mesmo
contra toda a esperança que se protesta e se reage contra o erro e as injustiças, é contra
toda a esperança que se sabe que a libertação na e para a verdade só é muita vez
possível quando se faz antes um dever-ser existencial, quando se reconhece e se
compromete previamente como possibilidade de sua realização.
2
Comumente, a história de uma teoria não tem maior significado para sua
verificação e é muito possível que a pequena memória desse nosso paradigma não se
exclua inteiramente do tratado comum do histórico das teorias. Ainda assim, uma razão
política parece aqui justificar a rememoração.
constituir um katéjon, um obstáculo que retarde e reduza a inevitável catástrofe intra-histórica.
Penso que as linhas de combate estão em toda parte: de um lado, a revolução, de outro, a
contra-revolução” (p. 25).
3 Em modesta reflexão intitulada "Uma Festa do Direito", incluída na obra coletiva que
organizei com escritos de Narciso Orlandi Neto, José Renato Nalini, Kioitsi Chicuta e Vicente
de Abreu Amadei, Registros Públicos e Segurança Jurídica (Porto Alegre: Antonio Fabris,
1998), fiz concisa referência ao tema: “Não me conto entre os pessimistas que, vendo em tudo
sinais da „decadência do Ocidente‟, aguardam o final catastrófico de toda a história, mas
tampouco me conto entre os otimistas que se fiam no mito do progresso indefinido pregado pelo
iluminismo: guardo no fundo mais recôndito da alma uma virtude que também não escapou da
caixa de Pandora: a esperança. Por mais que essa virtude eu esteja a referi-la,
fundamentalmente, a uma situação extra-histórica, estou convencido de que a resistência pode
constituir um katéjon, um obstáculo que retarde e reduza a inevitável catástrofe intra-histórica.
Penso que as linhas de combate estão em toda parte: de um lado, a revolução, de outro, a
contra-revolução” (p. 25).
4 Armando Valladares, Contra Toda Esperanza, Panamá: Kosmos, 1985.
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O modelo brasileiro de independência jurídica do registrador e do notário não
surgiu historicamente para remate de uma crise científica ou construção de uma nova
ciência normal, mas como um simples critério para fomentar a sistematização de uma
doutrina registrária até então demasiado esparsa. Em rigor, não cabe sequer falar, entre
nós, numa invenção desse paradigma,5
como não se entrevê tenha ele dado ensejo à
emergência de uma crise científica. A razão de toda essa simplicidade é a de uma outra
simplicidade, a de sua história franciscana: em verdade, nós não tínhamos, até então,
uma comunidade científica. A ciência normal do registro imobiliário no Brasil, até cerca
de uma década, não é mais do que um apêndice do direito civil – o que não lhe retira,
longe disso, a importância, nem nega a seus expositores o valor que tinham e ainda têm
induvidosamente. Mas, por ausência de mínima estrutura de comunicação permanente
entre os estudiosos do direito “registral”, não se podia falar por então em comunidade
científica dos registros.
Não foi a relativa difusão do paradigma da independência jurídica dos
registradores e dos notários a causa da formação da comunidade científico-registrária
no País, nem o paradigma teve o papel de redirecionar o fio condutor dos estudos
registrais, mas sim de servir como critério catalizador de um sistema fundado em uma
reorientação registralista paralelamente já encetada. Referido modelo da independência
jurídica surgiu por ocasião dos primeiros passos de gênese da comunidade científico-
registral6 e quase, pois, como efeito de uma reorientação ainda um pouco tímida dos
5 De fato, a teoria da independência jurídica dos registradores e notários não constituía
nenhuma novidade na doutrina mundial.
Gestada, isto sim, por obra das reuniões do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e,
paralelamente, pelas reflexões dos juízes do registro (assim, por exemplo, os que se
congregaram no que se poderia chamar, em expressão do Des. Bruno Affonso de André, de
escola paulista do registro).
6 Gestada, isto sim, por obra das reuniões do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
e, paralelamente, pelas reflexões dos juízes do registro (assim, por exemplo, os que se
congregaram no que se poderia chamar, em expressão do Des. Bruno Affonso de André, de
escola paulista do registro).
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estudos registrários, que então começavam a se autonomizar – ou, como já me pareceu
preferível dizer, se ontonomizavam7 –, distinguindo-se do gênero próximo direito civil.
Ao propor-se como um modelo teórico para a atuação jurídica do registrador
(e, em paralelo, do notário), reconhecendo uma independência operativa que não se
explicitara de comum na doutrina e na jurisprudência registrárias, o novo paradigma
adquiriu – sem que eu assim precipuamente o pretendesse8 – uma função política de
aglutinação dos registradores,9
refletindo, por acréscimo, na adoção de teses anexas,
entre elas as da necessária ontonomização do direito registral.
3
No plano fundacional desse paradigma é que se acha, a meu ver, o melhor de
sua manifestação.
É preciso observar que a idéia de paradigma de uma ciência – isto é, a noção de
que em torno de uma teoria paradigmática ou concepção standard se institui ou se reúne
7 Emprego esse termo – que elenco entre os de patente fealdade estilística –, em
categoria verbal, vincando-o ao conceito objetivo de ontonomia, noção intermédia entre a
autonomia e a heteronomia. Ontonomia, diz um autor de nossos tempos, é “o reconhecimento
ou desenvolvimento das leis próprias de cada esfera do ser ou da atividade humana, com
distinção das esferas superiores ou inferiores, mas sem separação nem interferências
injustificadas” (Raimundo Paniker, Ontonomía de la Ciencia. Madrid: Gredos, 1959. p. 11).
8 Mas, a bem da verdade, eu previra o fato, e essa previsão deu motivo a que se
acautelasse a difusão do modelo.
É plausível que a percepcão da independência haja servido, numa primeira etapa, para
incrementar a consciência da responsabilidade pessoal dos registradores e dos notários, embora,
em estádios posteriores, uma certa frustração haja reduzido, em muitos casos, o papel dessa
consciência.
9 É plausível que a percepcão da independência haja servido, numa primeira etapa, para
incrementar a consciência da responsabilidade pessoal dos registradores e dos notários, embora,
em estádios posteriores, uma certa frustração haja reduzido, em muitos casos, o papel dessa
consciência.
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uma comunidade científica10
– inclui, de maneira essencial, sua verificabilidade e
refutabilidade. Significa dizer que a conclusão teórica deve ser razoável e aberta à
crítica racional; se seu objeto permite, há de ser experimentável, mas, quando não, ao
menos experiencial. A verificabilidade de uma tese paradigmática e, sem prejuízo de
sua persistente refutabilidade, a resistência racional à sua refutação dependem,
decisivamente, de seus antecedentes teóricos, das premissas que fundam seu
conseqüente.
Nesse passo, algumas das sustentações modelares da natureza jurídica das
funções registrária e notarial são movediças, escorando-se em condicionamentos
externos. Não se nega que tenham possibilidade e até conveniência política e, mais
além, certa resistência transitória (scl., enquanto persista o condicionamento externo
autorizador), mas não têm a estabilidade que se poderia obter se suas premissas, ainda
que compatíveis com os condicionamentos externos, fossem, de algum modo,
independentes destes.
Nisso, ao amparar-se o modelo em fundamentos distintos dos
condicionamentos externos, dotou-se o paradigma aqui versado de forte verificabilidade
e sólida resistência à refutação científica.
Abdicando de repousar o paradigma na regulativa de regência (primeiríssimo
dos condicionamentos externos num regime submetido ao princípio da legalidade),
tratei de lastreá-lo na teoria dos saberes jurídicos.
Vejo facilitada a compreensão dessa última teoria pelas recentes e profundas
reflexões de Francisco Elías de Tejada,11
Juan Vallet de Goytisolo,12
Martinez Doral13
e
Leopoldo Eulogio Palacios,14
estudos que complementei com a releitura da obra que
10 Cf., a propósito e por evidente, Thomas S. Khun, La estructura de las revoluciones
científicas. Trad. de Agustín Contín. México: Ed. Fondo de Cultura, 1993, passim.
11 Francisco Elías de Tejada, Tratado de Filosofía del Derecho, Sevilla: ed. Universidad
de Sevilla, 1974.
12 Juan Vallet de Goytisolo, por então, especialmente, com a leitura de sua Metodología
Jurídica. Madrid: Ed. Civitas, 1988.
13 José María Martinez Doral. La estructura del conocimiento científico. Pamplona:
Eunsa, 1963.
14 Leopoldo Eulogio Palácios, Filosofia del Saber. Madrid: Grecos, 1962.
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reputo mais decisiva para a filiação de meu pensamento jurídico – Los Fundamentos
Metafísicos del Orden Moral, de Octávio Derisi15
– e cotejei com um valioso trabalho
histórico de João Mendes Júnior.16
No fim das contas, em resumo, cheguei à conclusão de que o saber jurídico
próprio dos registradores (e também dos notários) não era comum, nem técnico, nem
filosófico, nem científico, mas um saber jurídico prudencial,17
porque “a verdade das
conclusões práticas não é, certamente, objeto de ciência senão que de prudência”.18
A compreensão de que o objeto primeiro e próprio do conhecimento jurídico
do registrador não é a norma de direito, mas uma coisa, de par com a consideração da
analogia do termo “direito” e a conseqüente hierarquização dos diversos analogados ao
prius analógico de “justo” propiciaram-me a conclusão de que era absolutamente
inviável, ao menos fora dos superados espartilhos normativistas, reputar especulável o
objeto da cognição jurídico-prudencial. Longe de ser uma essência pronta e apreensível
pelo intelecto, o objeto jurídico apresentado ao registrador é um operável particular –
algo que se projeta para por-se além das causas, algo para-existir. Sem contar o
registrador, pois, em seu saber próprio, com a possibilidade de contemplar meramente
uma essência inteligível acabada, sua tarefa de jurista (ou, como hoje se diz muito
freqüentemente, de operador jurídico) não podia mais do que ser uma decisão para um
caso particular em uma circunstância concreta.
Apresentada, efetivamente, ao registrador, uma pretensão concreta de
inscrição, não lhe é demandada uma referência científica sobre a inscritibilidade do
título mas, isto sim, uma decisão singularizada que realize a inscrição, que atualize a
15 Octávio Nicolás Derisi. Los Fundamentos Metafísicos del Orden Moral. Madrid:
Consejo Superior de Investigaciones Científicas – Instituto “Luis Vives” de Filosofía, 1969.
16 João Mendes de Almeida Júnior. Órgãos da Fé Pública. São Paulo: Saraiva, 1963.
Recentemente, essa obra foi reeditada mercê do empenho do Instituto de Registro Imobiliário do
Brasil (cf. Revista de Direito Imobiliário n. 40, jan.-abr. de 1997).
Enrique Zuleta Puceiro. Teoría del Derecho. Buenos Aires: Depalma, 1987. p. 26.
17 Para o que segue, cf. sobretudo Martinez Doral, op. cit., p. 73 et seq.
18 Enrique Zuleta Puceiro. Teoría del Derecho. Buenos Aires: Depalma, 1987. p. 26.
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inscritibilidade.19
O saber filosófico do direito diz, fundamentalmente, de sua
legitimidade; o saber científico do direito prepara, suposta a legitimidade, o material
ajustado às decisões de casos; o saber técnico do direito atua materialmente o decidido;
é o saber prudencial, contudo, o que opera a decisão: “Optar livremente por uma, entre
as várias possibilidades de ação reclamadas por uma situação particular, não é algo que
possa deduzir-se logicamente em virtude de nenhuma teorização” (Martinez Doral).
Sem embargo de apartar-me, com firme inteireza, do irracionalismo
voluntarista,20
não menos sempre me opus ao conceitualismo jurídico puro, de maneira
que, aferrado à razoabilidade das decisões, não deixando embora de humilhar-me o
risco de nelas intrometer-se o erro, afirmei, com todas as letras, que a prudência é
incompatível com a falta de liberdade e, pois, que um saber jurídico-prudencial é de
todo incompaginável com a ausência de liberdade jurídica.
Alguma vez, no exercício de minha amada e terrível atividade de juiz, quando
me ponho a refletir sobre a impotência de chegar, na solução de um caso, à certeza
absoluta, quando me ponho a pensar que, por mais me empenhe, por mais me esforce,
por mais pondere, sempre as circunstâncias do caso desbordam os limites reduzidos da
norma, não posso menos do que concluir que, para julgar de modo absoluta e
invariavelmente reto aquilo que é contingente, só há uma e definitiva possibilidade
ontológica: ser Deus!
E como o próprio do saber judiciário é exatamente o prudencial, tanto quanto o
é o saber próprio do registrador e o do notário, a similaridade de seus saberes típicos
põe em relevo a similitude das limitações e as dificuldades que dizem respeito às tarefas
judiciais, registrárias e tabelioas.
19 Cf. meu estudo, Sobre a Qualificação no Registro de Imóveis, atas do Encontro de
Registro de Imóveis de Maceió, 1991, Revista de Direito Imobiliário n. 29, jan.-jun. de 1993. p.
33 et seq.
20 “Para o voluntarismo jurídico, que podemos representar, de forma exemplar, na
doutrina kelseniana, a eleição que leva a cabo o criador do direito entre as várias possibilidades
que a norma superior lhe deixa abertas é uma decisão totalmente irracional. Não há ali nenhum
ato de conhecimento, mas somente um ato e vontade „livre‟, de opção injustificada” (Martinez
Doral, op. cit., p. 76-77).
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4
Na prudência judicial – vale dizer para o meu caso, no tipo de meu próprio
saber judiciário – dá-se a concorrência de duas espécies de conhecimento,21
a cuja
complexa congregação se atribui o nome saber prudencial. Por primeiro, põe-se nele
um conhecimento de caráter universal, que diz respeito aos princípios22
e leis, incluídas,
quanto a estas, as humanas positivas, que são condicionamentos externos e variáveis
para a ação. Depois, tem-se um conhecimento de natureza particular, que concerne às
circunstâncias do caso singularizado. Para o primeiro tipo de conhecimento intervém a
inteligência propriamente dita, ainda que na função prática, ao passo que, para o
segundo, a chamada cogitativa humana ou ratio particularis, distinguindo-se seus
correspondentes estratos de certeza.23
Compreendendo claramente a possibilidade de, por meio do saber prudencial,
atingir a verdade,24
não por isso se afirma a possibilidade de, a propósito dessa verdade,
obter uma certeza que, quanto ao caso singular, não seja a própria de uma
argumentação sobre matéria contingente: uma conclusão apenas provável.25
21 Cf., a propósito, a concisa lição de Juan Alfredo Casaubón. El Conocimiento Jurídico.
Buenos Aires: Educa, 1984. p. 19-20.
Cf. brevitatis causa, Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica. Ia.-IIae., Q. LXXIX, art.
4.°, ad tertium, e, no plano jurídico: Martinez Doral, op. cit., 85 el seq., e Carlos Ignacio
Massini. La Prudencia Jurídica. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1983, p, 147 et seq.
22 Primeiramente os sinderéticos, mas não só: também os especulativos.
23 Cf. brevitatis causa, Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica. Ia.-IIae., Q. LXXIX,
art. 4.°, ad tertium, e, no plano jurídico: Martinez Doral, op. cit., 85 el seq., e Carlos Ignacio
Massini. La Prudencia Jurídica. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1983, p, 147 et seq.
24 ) Cf. Georges Kalinowski. Le probléme de la vérité en morale el en droit. Lyon:
Emannuel Vite, 1967, passim.
25 Cf. brevitatis studio: Leonardo Van Acker. Introdução à Filosofia – Lógica. Livraria
Acadêmica e Saraiva, 1932. p. 301-302; Ioseph Frübes. Tractatus Logicae Formalis. Roma:
Pontifícia Universidade Gregoriana, 1940, p. 284 et seq.; José María de Alejandro. Gnoseología
de la Certeza. Madrid: Gredos, 1965, p. 175 et seq.
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Para logo, de um lado, o conhecimento humano sensível pode conhecer os
entes particulares, mas não pode conhecer suas essências individuais, e, de outro lado, o
conhecimento intelectual, hábil a apreender as essências, não as apreende
individualmente.26
Mais além, a retidão do saber prático acha-se em sua conformidade
não com uma obra já acabada – o que seria próprio do saber contemplativo humano –
mas com o princípio diretivo do ato da razão.27
Não fossem já essas dificuldades, calha ainda que também as normas de
conduta não se apresentam como abstrações destituídas de sentido,28
mas como
enunciações de dever ser cuja exata compreensão não pode prescindir da experiência
vital.29
A prudência, em todo seu gênero, é uma sabedoria essencialmente prática,
equivale a dizer, em palavras de um autor de nossos tempos, a ciência ou a arte de viver
retamente e como se deve,30
e, especificamente, quanto à jurisprudência, pode dizer-se
que é a sabedoria de decidir juridicamente de modo reto. Quase tanto como dizer com a
lição celebrizada por Santo Tomás: prudentia est recta ratio agibilium.31
Ainda que em certas hipóteses, seja aproximável a premissa maior a uma
realidade contemplável – é o que se pode designar por premissa quase-especulativa da
argumentação prudencial –, a verdade é que a concreção silogístico-prática diz respeito
a um caso peculiar, a uma conduta cercada de circunstâncias singulares e irrepetíveis,32
interditando, de um lado, a perspectiva racionalista, de cunho matematizante, que estaria
26 Agustin Riera Matute. La Articulación del Conocimiento Sensible. Pamplona: Eunsa,
1970. p. 149.
Luís Cencillo. Conocimiento. Madrid: Syntagma, 1968. p. 267-268.
27 Martinez Doral. Op. cit., p. 86.
28 Luís Cencillo. Conocimiento. Madrid: Syntagma, 1968. p. 267-268.
29 Isso até mesmo se pode dizer, em certo sentido, das conclusões da lei natural: cf., a
propósito, brevitatis causa, meu pequeno estudo Da Ética Geral à Ética Profissional dos
Registradores. Porto Alegre: Irib – Sérgio Antonio Fabris, 1998, cap. I.
30 Santiago Ramírez. La Prudencia. Madrid: Palabra, 1981. p. 40.
31 Santo Tomás de Aquino. Suma Teológica, IIa.-IIae., Q. XLVII, art. 8.º, respondeo.
32 Ver Massini, op. cit., p. 87.
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a aguardar das decisões prudenciais certezas quase metafísicas ou, de outro lado, a
perspectiva decisionista,33
calcada no irracionalismo gnosiológico.
5
Repousando o paradigma sobre explícitos fundamentos epistêmicos
aristotélico, tomistas, não por isso, é certo, estaria o modelo a depender exclusivamente
dessa base filosófica. Ainda que se possam extrair efetivamente dessa escora teórica
tanto a firmeza do paradigma no plano de sua verificabilidade quanto sua resistência à
refutação, não é indispensável a seu reconhecimento que se empolgue à raiz a
epistemologia de Aristóteles e de Santo Tomás.
De toda sorte, não é pouco benefício para um paradigma jurídico a admissão de
que se conforta, mais além de amoldar-se à normatividade particular e imanente, numa
razão de ser jurídica transcendente. De fato, um paradigma que, longe de reduzir-se à
mera correção formal de uma possível leitura normativa intra-sistemática, vai além da
simples consistência interna e ancora-se num sistema de filosofia, tem a seu favor, para
logo, a maior clareza do que, não raro, nos modelos teórico-jurídicos imanentistas, são
pressuposições filosóficas implícitas. Se, ademais, o lastreamento explícito dá-se por
meio de uma fundação filosófica solidificada ao largo da história,34
realista e objetiva o
bastante para permitir-se configurar-se como um sistema e um método abertos à
contribuição de novos achados, então é preciso reconhecer não só a razão da atualidade
e da robustez da verificabilidade na concepção standard mas também a justificação
maior de sua resistência à refutação.
Contra o fato da ausência de oposição teórica ao paradigma, pode ser que se
objete sua acanhada vigência política. Mas isso é só opor o ser atual ao poder ser que
pode ser e, demais desse aspecto, é exatamente confrontar o potestativismo com o
33 Cf. brevitatis causa, o verbete “decisionismo” in Dicionário de Política, de José
Pedro Galvão de Sousa, Clovis Lema Garcia e José Fraga Teixeira de Carvalho (São Paulo: T.
A. Queiróz, 1998. p. 153).
Não é por menos que se fala em philosophia perennis.
34 Não é por menos que se fala em philosophia perennis.
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cognoscitivismo, tomando por mostra de refutação do paradigma o que apenas deriva do
exercício de império: dá-se, portanto, uma refutação factual, é verdade, numa certa
ordem segmentar, sem que se vejam afetados a sustentação teórica do paradigma e um
certo e indispensável consenso doutrinário.35
A refutação de um paradigma jurídico não
se reconhece por sua vigência política mas, na esfera teórica, por seu vigor doutrinário
e, no plano factual, pelo consenso dos juscientistas.
Se, no âmbito de elaboração de regras complementares não estritamente de
natureza técnica e nomeadamente no campo do direito penal-disciplinário, dá-se acaso,
aqui e ali, uma atuação potestativa oposta do standard da independência jurídica dos
registradores e dos notários, isso se passa no plano dos fatos, na esfera da eficácia, não
repercutindo no valor lógico e na vigência doutrinal do paradigma.
O modelo da independência jurídica do registrador e do notário, como foi
antecipado, ajusta-se, entre nós, ao direito posto: notário e oficial de registro são
“profissionais do direito”, “dotados de fé pública” (art. 3.º, da Lei 8.935, de
18.11.1994), gozando “de independência no exercício de suas atribuições” (art. 28, Lei
cit.). Daí que, submetidos à legalidade, têm o dever de observar “as normas técnicas
estabelecidas” pelo Poder que o fiscaliza (inc. XIV, art. 30, da Lei cit.).36
Esse modelo, fundado em uma sólida teoria dos saberes jurídicos, corroborado
pela tradição37
e compaginado, pois, com o direito posto – incluso o constitucional –,
não se compatibiliza, é verdade, com o fato da poietização da profissão jurídica dos
notários e registradores, nem com o fato da administrativização do objeto jurídico
primeiro de sua tarefa: a autonomia de vontades contratantes, no caso dos notários, e a
propriedade privada, no dos registradores. Tampouco o paradigma da independência
jurídica de oficiais de registro e tabeliães é acomodável ao fato de comumente entender-
se que a mais rigorosa das punições administrativas a eles cominadas, a de perda de
35 Nenhuma concepção standard sobreviveria com esse título se não fosse objeto de
algum consenso da comunidade científica.
Veja-se a propósito João Mendes de Almeida Júnior, op. cit., passim.
36 Normas técnicas: por exemplo, art. 4.º da Lei 8.935, de 1994.
37 Veja-se a propósito João Mendes de Almeida Júnior, op. cit., passim.
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delegação, esteja ligada a um simplíssimo elemento normativo de tipo – a falta grave38
–, sem menção da conduta que o carregue.
Decidir que futuro haverá para as instituições do registro e das notas é escolher
já, como faz quem se adverte responsável pelo tempo que passa, se essas instituições
detém liberdade jurídica para sua atuação profissional. Sem essa liberdade, correm risco
de com ela morrerem a autonomia de vontades e a propriedade particular. Nisso há
também um risco da decisão, mas esse risco é o que valoriza a liberdade.
38 Em todo caso, não me parece que seja assim no direito posto: cf. o pequeno estudo
que consta em obra que escrevi juntamente com José Renato Nalini: Registro de Imóveis e
Notas – Responsabilidade Civil e Disciplinar. São Paulo: Ed. RT, 1997.
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2.
SOBRE A CRISE CONTEMPORÂNEA DA SEGURANÇA JURÍDICA
RICARDO HENRY MARQUES DIP
Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Acadêmico da Real de Jurisprudência e Legislação de Madrid.
Da célebre sentença de Aristóteles —―o homem é, por natureza, um animal
político‖1 — extrai-se o corolário de que o homem é naturalmente inclinado ao fim da
Sociedade política, isto é: ao bem comum político. Da politicidade não poderia dizer-se,
entretanto, que é um próprio específico2 humano, se o homem não tendesse
naturalmente ao fim ou bem comum da cidade. Por sua natureza3 inclinam-se os homens
1 Aristóteles, Política, Bkk. 1.253 a.
2 Embora o próprio seja um acidente da substância, tem com esta uma vinculação
necessária e invariável. Se é certo que, predicável acidental, o próprio não pertence à essência
das coisas, deriva, contudo, de seus princípios essenciais: ―Proprium enim non est de essentia
rei, sed ex principiis essentialibus speciei causatur‖ (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I,
q. 77, art. 1, ad 5um). Trata-se, pois, de um acidente necessário dos sujeitos. Por isso, o próprio,
sem ser essencial, é, contudo, natural a esses sujeitos. Dessa maneira, o próprio substitui
materialmente o universal lógico que lhe corresponda; assim, todo homem é animal social; todo
animal social é homem; ou, em exemplo de Van Acker, todo homem é risível; todo risível é
homem (Introdução à Filosofia – Lógica, ed. Acadêmica e Saraiva, São Paulo, 1932, p. 226).
3 O homem está inclinado à virtude por sua própria natureza: ―homo a natura habet
inclinationem ad virtutem‖ (S. Tomás de Aquino, op. cit., Ia.-IIæ., q. 85, art. 1, respondeo).
Essa inclinação diz-se natural, porque em parte provém da natureza seja específica, seja
individual dos homens: não existem hábitos humanos inteiramente naturais (v. S.Tomás de
Aquino, op. cit., Ia.-IIæ., q. 51, art. 1, respondeo, e q. 63, art. 1, respondeo).
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para tudo aquilo que os aperfeiçoa4 —o que conhecem e apetecem como seu bem
5, com
título de fim6. Não se trata só de uma propensão humana aos bens que são próprios das
pessoas singulares, mas também de uma tendência natural a bens que são comuns, entre
eles o da cidade —ao qual, até mesmo, se inclinam os homens de modo formalmente
diverso7 e superior ao de sua atração natural pelos bens particulares
8. Deve-se isso ao
fato de que os bens possuem tanto maior bondade quanto sejam o fim comum de um
maior números de entes.9 O bem comum político é um todo
10 em que se incluem,
ordenadamente11
, os muitos e vários bens ou perfeições singulares, de sorte que o bem
4 Bem é aquilo a que todos tendem (Aristóteles, Ética a Nicômaco, Bkk. 1.094 a), o
que todos apetecem —bonum est quod omnia appetunt (S. Tomás de Aquino, op. cit., I, q. 5, art.
1, respondeo)—, exatamente porque é um bem. O homem, naturalmente político, apetece o bem
comum como um bem de sua natureza social.
5 S. Tomás de Aquino: ―…id quod ad omnibus appetitur omnibus videtur bonum‖ (In
Decem Libros Ethicorum Aristotelis ad Nicomachum Expositio, Livro 10, lição 2, n. 1.975).
6 ―…res quae naturaliter sunt proportionatæ ad aliquem finem, dicuntur appetere
illum naturaliter‖ (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 16, art. 4, respondeo);
―…appetibile quod movet appetitum, est finis; ea vero quæ sunt ad finem non movent appetitum
nisi ratione finis‖ (S. Tomás de Aquino, De Potentia, q. 10, art. 7, ad 6um).
7 Cfr. S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIa.-IIæ., q. 58, art. 7, ad 2um: ―O bem
comum da cidade e o bem singular de uma pessoa não diferem apenas segundo o muito ou o
pouco, mas conforme uma diferença formal —formalem differentiam; pois uma é a razão do
Bem comum e outra a do bem singular, da mesma sorte que se distinguem o todo e a parte‖.
8 E não como efeito de uma exclusiva busca egótica do bem singular : cfr. Charles de
Koninck, De la primauté de bien commun contre les personnalistes, ed. L‘Université Laval e
Fides, Québec-Montreal, 1943, p. 129-133.
9 ―…bonum commune dicitur finis communis‖ (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica,
Ia.-IIæ., q. 90, art. 2, ad 2um). Cfr. Carlos Cardona, La Metafísica del Bien Común, ed. Rialp,
Madrid, 1966, p. 28.
10 Cfr. Jean Madiran, Le principe de totalité, ed. Nouvelles Éditions Latines, Paris,
1963, passim.
11 ―O bem particular está ordenado ao bem do todo como a seu fim…‖ (S. Tomás de
Aquino, Suma Contra os Gentios, Livro 1, n. 86); ―é manifesto que o bem da parte é para o bem
do todo‖ (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 92, art. 1, ad 3um); ―é manifesto que
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comum da cidade emerge da ordem e da disposição adequada desses bens particulares12
.
E a essa reta ordem e disposição da polis dá-se o nome de justiça13
.
A só existência de disposições naturais no homem, vocacionado, por sua
mesma natureza, pois, a ser justo e a observar a primazia do bem comum político, não
significa, todavia, a automática passagem da potência ao ato correspondente14
. Seria
isso próprio de uma natureza impecável. O crime, porém, é quase tão antigo quanto a
humanidade15
e não cessou jamais de existir na história do homem decaído16
:
―L‘histoire de l‘humanité‖ —disse Maurice Hauriou— ―est le commentaire perpétuel
du meliora proboque, deteriora sequor‖17
. Essa antinomia entre o apetite natural das
virtudes e o fato dos homens criminosos revela a essência do trágico na história
humana18
, com seu rigoroso encadeamento lógico-factual19
e seu remate catastrófico20
.
todas as partes são ordenadas à perfeição do todo‖ (S. Tomás de Aquino, Suma Contra os
Gentios, Livro 3, n. 112).
12 S. Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios, Livro 3, n. 94.
13 Aristóteles, Política, Bkk. 1.253 a.
14 A perfeição ou bem —diz Carlos Cardona— ―no viene dada en la criatura con el
ser substancial, sino que es alcanzada mediante la operación por la que pasa de la potencia al
acto‖ (op. cit., p. 15).
15 ―Le phenomène criminel est vieux comme le monde. (omissis) Depuis ls premiers
temps de l‘Histoire, la criminalité n‘a jamais cessé de se manifester dans tous les civilisations
et dans tous les lieux de la Terre‖ (Roger Merle e André Vitu, Traité de droit criminel, ed.
Cujas, Paris, 1997, n. 1).
16 Para o pensamento cristão genuíno, desde o pecado adâmico debilitou-se a natural
inclinação do homem para as virtudes: ―naturalis inclinatio ad virtutem, diminuitur per
peccatum‖ (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 85, art. 1, respondeo).
17 ―…l‘histoire des mœurs n‘est que le long martyrologe de la loi morale, l‘histoire
des défaillances et des trahisons de la volonté humaine aux prises avec la loi, celles des
désobéissances à la loi…‖ (Maurice Hauriou, Aux sources du droit –Le pouvoir, l‘ordre et la
liberté, ed. Bloud & Gay, Paris, 1933, p. 40).
18 Um trágico plenário —a um só tempo seqüência rigorosa e catastrófica no plano
natural e no sobrenatural— está grandiosamente concebido em I promessi sposi de Alessandro
Manzoni, para quem deve esperar-se justiça no mundo, como quem espera um ato do governo
de Deus: diante de uma grave situação de injustiça, Lucia Mondella sugere a Renzo Tramaglino
que espere alguma solução, porque ―qualche santo ci aiuterà‖; e Renzo, esperançoso, diz várias
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Para mais, como se vê da apontada sentença de Ovídeo, a virtude cívica da justiça não é
intelectual: o homem pode tornar-se, de fato, assim o afirmou Aristóteles, o mais ímpio
e pior de todos os animais21
: é que vê o bem e escolhe o mal. Sem a justiça não é
possível a paz na cidade, a tranqüilidade que deriva da ordem —pax omnium rerum,
tranquillitas ordinis22
—, e ordem que é a disposição adequada das coisas diferentes e
das coisas iguais23
, em uma só palavra, justiça. Foi de logo preciso na história dos
homens e ainda continua e sempre continuará preciso —ubi societas, ibi jus—, o temor
do castigo24
, temor que se exprime pela disciplina das leis25
e que tem, além disso, a
missão de ensinar ao homem o que é justo ut in pluribus.
A vocação natural dos homens para o bem comum e a justiça exige, portanto,
indispensavelmente, algum modo de objetivação do direito, algum modo pelo qual
vezes: ―a questo mondo c‘è giustizia, finalmente‖ (ed. Grandi Tascabali Economici Newton,
Roma, 1989, p. 78).
19 Termo mais adequado esse —―encadeamento lógico-factual‖— do que a expressão
―fatalidade‖ para explicar o sentido de trágico.
20 Duas distinções, uma entre, objetivamente, a discatástrofe e a eucatástrofe, e, outra,
subjetivamente, entre o desespero e a esperança, separam o trágico pagão do trágico cristão. A
angústia trágica do cristão não é desesperadora porque ele confia na misericórdia. Daí o
paradoxo de S. Ambrósio —felix ruina, quae reparatur in mellius—, a impressiva enunciação
litúrgica do Exsultet da vigília pascal —O felix culpa, quae talem ac tantum meruit habere
Redemptorem! —, e o ensinamento paulino na Carta aos Romanos, 11-32 (―Deus encerrou
todos esses homens na desobediência, para com todos usar de misericórdia‖), lição que Journet
diz constituir a chave da história universal (v. Charles Journet, ―Notes sur le tragique‖, in
Exigences chrétiennes en politique, ed. Egloff, Paris, 1945, p. 379) , solução que se reconduz ao
prototrágico cristão —p.ex., a prova de fé com o decreto da morte de Isaac ou os padecimentos
de Job.
21 Aristóteles, Política, Bkk. 1.253 a.
22 S. Agostinho, De civitate Dei, Livro 19, cap. 13, n. 1.
23 ―Ordo est parium dispariumque rerum sua cuique loca tribuens dispositio‖ (S.
Agostinho, De civitate Dei, livro 19, cap. 13, n. 1).
24 Na célebre expressão de S.ISIDORO de Sevilha: ―Factæ sunt autem leges ut eraum
metu humana coerceatur audacia, tutaque sit inter inprobos innocentia, et in ipsis inpiis
formidato supplicio refrenetur nocendi facultas‖ (Etimologias, Livro 5, n. 20).
25 S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 95, art. 1, respondeo.
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possam os homens ser ensinados acerca do objeto da justiça —i.e., do direito, que vem
antes26
da justiça: ―A justiça é algo segundo‖ — disse Josef Pieper. ―A justiça
pressupõe o direito‖27
. Saber qual é o direito, que é objeto da virtude da justiça,
demanda o concurso de leis, aqui tomado esse conceito numa acepção amplíssima, a
compreender as normas naturais e as humanas, o direito das gentes, as normas genéricas
e as estamentais, as escritas e as costumeiras, várias classes de princípios28
, as
instituições jurídicas, os decretos dos governantes, alguma vez as respostas dos
jurisprudentes, a doutrina firme dos Tribunais, limitadamente as sentenças judiciárias
singulares, como determinação conflitual do direito, e as convenções particulares, sua
determinação privatum condictum29
.
Aristóteles afirmara já, em conhecida passagem do primeiro livro da Retórica,
que ―corresponde às leis bem dispostas determinar por si, o quanto seja possível, tudo,
e deixar aos que julgam o menos possível‖30
, e, numa prudente lição de filosofia
jurídica —lição confirmada pela Escolástica hispânica31
—, já se recomendou ―deixar
26 Cfr. S. Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios, Livro 2, cap. 28.
27 Josef Pieper, Las Virtudes Fundamentales, tradução castelhana, ed. Quinto
Centenario, Bogotá, 1988, p. 89. De que segue, portanto, não ser a justiça, em rigor, um fim do
direito: ―el derecho positivo tiene por objeto determinar lo propio de cada uno en cada
circunstancia, no en vista de la justicia (omissis), sino de lo que a cada uno le corresponde de
acuerdo con las exigencias de su naturaleza, su condición en la sociedad y los imperativos del
bien común‖ (Tomas Casares, La Justicia y el Derecho, ed. Abeledo-Perrot, Buenos Aires,
1974, p. 12).
28 Assim, os princípios gerais de Direito, os ético-jurídicos, os tradicionais de cada
País, os políticos e os extraídos da natureza das coisas: cfr. Juan Vallet de Goytisolo,
Metodología de las Leyes, ed. Revista de Derecho Privado, Madrid, 1991, p. 345 et sqq.
29 S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIa.-IIæ., q. 57, art. 2, respondeo. Cfr. Juan
Vallet de Goytisolo, Metodología de la Determinación del Derecho, ed. Centro de Estudios
Ramón Areces e Consejo General del Notariado, Madrid, 1996, tomo 2, p. 1.041 et sqq.
30 Aristóteles, Retórica, Bkk. 1.354 b; cfr. ainda: Política, Bkk. 1.287.
31 Brevitatis causa, Domingo de Soto, De Iustitia et Iure, Livro 1, q. 5, art. 1;
Francisco de Vitoria, De potestate Papae et Concilii relectio, ns. 7 e 12, e Luis de León, De
Legibus, cap. 6.
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pouquíssimos assuntos ao arbítrio humano‖32
.33
A abolição do reino da lei jurídica não
leva, de fato, à lei do amor34
como aventurava um anarquismo otimista, mas ao realismo
da lei do mais forte35
. Afastada da natureza do homem, o homem―ni ange ni bête, mais
homme‖ —como disse Pascal36
—, a abolição da autoridade política37
conduz a um
resultado anti-social: ―qui veut faire l'ange fait la bête‖ 38
.
Objetividade das leis, primeiro, na sinalização daquilo que é justo em
princípio: a segurança do direito, que se obtém com o ditame prévio correspondente;
segundo: como garantia de aplicação do direito —e, quando o caso, da força39
— contra
os perigos que turbam a vida social: é a segurança pelo direito; terceiro, e por fim,
32 S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 95, art. 1, ad 1um.
33 No debe inducirse una conclusión de ptolomeismo jurídico, porque los apuntados
juicios de Aristóteles y S. Tomás se han de comprender juntamente con las ideas de soberanía
social, subsidiariedad, estabilidad legal y derecho mínimo. La llave de la prudencia legislativa y
de gobierno, como ha dicho Taparelli, está en que el Estado no debe hacer, ni dejar de hacer,
pero, sí, ayudar los particulares a hacer todo lo que pueden hacerlo por si propios. En resumen,
es en el ámbito de lo que se toca al Estado legislar y juzgar, solamente en eso, que la autoridad
política no debe dejar la materia a la discreción de los jueces.
34 ―Supprimez toute organization sociale, ce n‘est pas la ‗loi d‘amour‘ qui s‘établit,
c‘est la loi de la violence, violences des forces naturelles extra-humaines ou violence des
humains entre eux, qui ne rencontrent plus les freins matériels et moraux traditionnels édifiés
par la civilisation‖ (A. L. Galéot, Les systèmes sociaux et l‘organisation des nations modernes,
ed. Nouvelle Librairie Nationale, Paris, 1920, p. 137).
35 Assim o compendia o célebre adágio atribuído a Lacordaire: ― Entre le faible et le
fort c'est la liberté qui opprime et c'est la loi qui libère‖.
36 Blaise Pascal, Pensées, n. 140-522.
37 Galéot: ―L‘anarchie est bestiale et conduit les hommes à la misère. (omissis)
L‘ordre seul est humain‖ (op. cit., p. 393).
38 Pascal, op. cit., n. 358-678.
39 Diz Juan Vallet de Goytisolo, in Panorama del Derecho Civil (ed. Bosch,
Barcelona, 1963): ―La esfera del Derecho vive inmersa entre las del Amor y de la Fuerza ou el
Poder‖ (p. 7); ―Sin suficiente Poder para imponer lo justo coactivamente a quienes no lo
respetan, normalmente se caerá en el desorden y en la anarquía‖ (p. 8); ―El Poder será más
fácil y la subordinación más llevadera, cuanto más les acompañe el Amor, y tanto más difícil
quanto menos Derecho y más arbitrariedad predomine‖ (p. 33).
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objetividade das leis para atuar como garantia contra suas modificações arbitrárias40
.
Essa objetivação disciplinar, pois, embora cumpra o primeiríssimo papel de sinalizar a
res justa —conclusiva ou determinativamente, conforme o caso—, assim interessando à
virtude da justiça, também apresenta uma vertente gnosiológica e psicológica, o que se
chama segurança de orientação: os homens precisamos, com efeito, saber em que nos
fiar, a que nos ater, quais são as regras do jogo, as regras da vida jurídica em concreto.
Isso é indispensável para que possamos exercitar o direito de observância de nossos
deveres de justiça e de exigir que, a nosso próprio respeito, se observem também os
deveres jurídicos que correspondam. Trata-se aí de um aspecto da objetivação
disciplinar em que, por meio de uma asseguração jurídica —vale por dizer, a segurança
de uma regulação obrigatória41
—, faz-se propícia a aquisição pessoal de uma certeza do
direito. Passa-se isso secundariamente, no nível gnosiológico, porque o de que então se
cuida é de dar algo a conhecer —o que se prescreve, proíbe, permite ou impera—, sem
que, nessa estrita perspectiva de limitação noética, emerja discussão quanto à justiça do
que se comunica.
Essa distinção de planos, contudo, na objetivação das leis não implica
separação entre, de um lado, o justo, e, de outro, a segurança e a certeza do direito e
pelo direito. Não basta, com efeito, a mera objetivação normativa para instituir o direito,
pois, assim já o advertira Cícero, em conhecida passagem do De Legibus, ―Se os
mandatos dos povos, os decretos dos imperadores, as sentenças dos juízes fundassem o
direito, direito seria o roubo, o adultério, a falsificação do testamento, se em seu apoio
tivessem os votos ou aprovação da multidão‖. São de tempos mais próximos, no mesmo
sentido, a observação de Tocqueville —―A ordem sem a justiça é a barbárie‖— e as
fortes expressões de Baumann: ―Não pode existir uma ordem socialmente correta e
moralmente reprovável‖; ―uma comunidade que, para sua convivência haja fixado
40 Cfr., a propósito, Gustav Radbruch, Le but du droit, in Annuaire de l‘Institut
International de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, ed. Sirey, Paris, 1938, tomo 3,
p. 54.
41 Cfr. Arthur Fridolin Utz, Ética Social, tradução castelhana de Alejandro Ros, ed.
Herder, Barcelona, 1965, tomo 2, p. 16.
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normas com cominações penais contrárias à lei moral, não é uma comunidade jurídica,
mas uma quadrilha de ladrões‖42
.
Em contrapartida, se a segurança in-justa é inadmissível, não menos o será —e
aqui até mesmo, supõe-se, como um impossível factual— uma justiça in-segura, in-
certa, apenas conjecturável, por exemplo, em modelos utópicos de Sociedades políticas
nos quais, a pretexto de contínuas deliberações acerca da res justa, se entendesse
dispensável a autoridade correspondente à definição e à estabilidade da res judicata. De
modo que a cada ação processual se seguiria uma discussão interminável e, acaso de
fato ela se findasse, a prolação de uma sentença irrelevante, inexecutável por princípio,
renovável por definição, redundaria no caráter frustrâneo do próprio fim da deliberação,
que é decidir ou eleger. De fato, se se quer deliberar incessantemente —numa espécie
de jacobinismo jurídico43
—, o marco final é o infinito44
.
Conclui-se, pois, que a segurança jurídica é uma condição da justiça —præter
justitiam, disse Luño Peña, sed pro justitia45
—, e ela também, a exemplo da justiça,
interessa ao bem comum político46
. Não surpreende, portanto, que, reconhecida a
segurança jurídica como algo de essencial à vida política —um seu princípio47
, valor48
,
42 Jürgen Baumann, Derecho Penal, tradução ao castelhano por Conrado A. Finzi, ed.
Depalma, Buenos Aires, 1981, p. 3.
43 Cfr., brevitatis causa, a crítica de Jean Dabin, La philosophie de l‘ordre juridique
positif, ed. Sirey, Paris, 1929, p. 622.
44 Assim o disse Aristóteles, na Ética a Nicômaco, Bkk. 1.113 a.
45 ―La Seguridad no es la Justicia. Es un valor que está fuera de la Justicia, pero al
servicio de la Justicia. Es el valor adjetivo de la Justicia: ‗Præter Justitiam, sed pro Justitia‘‘‖
(Enrique Luño Peña, Derecho Natural, ed. Hormiga de Oro, Barcelona, 1954, p. 219).
46 Embora diga Georges Renard: ―C‘est que le droit a pour but, non seulement de
réaliser la Justice, mais de procurer la Sécurité…‖ (L‘institution, ed. Flammarion, Paris, 1933,
p. 53), melhor é a lição de Casares, para quem, afirmada a lição tradicional de que o objeto da
justiça é o direito, não é possível já dizer que o objeto do direito é a justiça. Ou uma coisa ou
outra: o objeto do direito é o bem comum, e só analogicamente é admissível afirmar que uma lei
é justa, na medida em que ela, isto sim e propriamente, assegura ―a los súbditos posibilidades
efectivas de plenitud personal mediante la promoción del bien común‖ (op. cit., p. 13).
47 Assim, Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ed.
Almedina, Coimbra, 1998, p. 250, enunciando-o: ―o indivíduo tem do direito poder confiar em
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ou ambas as coisas49
—, ela se formule como um direito fundamental. Essa referência à
segurança —sobretudo à seguridade pessoal, vale por dizer, uma segurança pelo
direito— já se encontra na
a) Declaração da Virgínia de 177650
, em cujo artigo 1o se lê que os homens
possuem direitos inatos, entre eles o relativo aos meios para buscar e conseguir a
felicidade e a segurança —happiness and safety; também na
b) Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, no mesmo
ano de 177651
;
c) na Declaração francesa des Droits de l‘Homme et du Citoyen, de agosto de
178952
;
d) na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de março-
maio de 194853
;
que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre seus direitos, posições ou relações
jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas se ligam os efeitos jurídicos
previstos e prescritos por essas mesmas normas‖.
48 Cfr., por muitos, Paul Roubier: ―…nous avons réconnu l‘existence d‘une primière
valeur, qui est la sécurité juridique‖ (Théorie générale de droit, ed. Sirey, Paris, 1951, p. 318).
49 Para quem o valor, rectius: um bem, não tem caráter subjetivo, de sorte que pode
constituir um fim, que é o primeiro dos princípios da ação.
50 The Virginia Declaration of Rights, 12-6-1776, art. 1.o: ―That all men are by nature
equally free and independent and have certain inherent rights, of which, when they enter into a
state of society, they cannot, by any compact, deprive or divest their posterity; namely, the
enjoyment of life and liberty, with the means of acquiring and possessing property, and pursuing
and obtaining happiness and safety‖.
51 The Declaration of Independence of The United States of America, 4-7-1776: ―…to
institute new government, laying its foundation on such principles and organizing its powers in
such form as to them shall seem most likely to effect their safety and happiness‖.
52 Déclaration des droits de l‘homme et du citoyen, 4-8-1789, art. 2.o: ―Le but de toute
association politique est la conservation des droits naturels ei imprescritibles de l‘homme. Ces
Droits sont la liberté, la propriété, la sûrété, et la résistance à l‘opression‖
53 Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre, aprovada durante a
IX Conferência Interamericana de Bogotá, realizada de 30 de março a 02.05.1948; art. 1o:
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e) na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações
Unidas, dezembro de 194854
;
f) na Convenção para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais —o Convênio Europeu de Direitos Humanos— de novembro de 195055
;
g) no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, da Organização das
Nações Unidas, em dezembro de 196656
;
h) no Pacto de São José da Costa Rica —Convenção Americana de Direitos
Humanos—, de novembro de 196957
; nas Constituições de numerosos Países, de modo
direto e explícito, p.ex., nas vigentes Constituições de Espanha58
, Bolívia59
, Chile60
,
Paraguai61
, Peru62
, Portugal63
, Uruguai64
, Brasil65
, ou de maneira indireta, v.g., nas
―Todo ser humano tiene derecho a la vida, a la libertad y a la seguridad de su persona‖. Em seu
art. 16, a mesma Declaração refere-se ao ―derecho a la seguridad social‖.
54 Declaración Universal de Derechos Humanos, 10-12-1948, art. 3.º: ―Todo
individuo tiene derecho a la vida, a la libertad y a la seguridad de su persona‖.
55 Convention de sauvegarde des droits de l‘homme et des libertés fondamentales, 4-
11-1950, art. 5.o:―Toute personne a droit à la liberté et à la sûreté‖.
56 Pacto Internacional de Derechos Civiles e Políticos, 16-12-1966, art. 9.º: ―Todo
individuo tiene derecho a la libertad y a la seguridad personales‖.
57 Convención Americana de Derechos Humanos, 22-11-1969, art. 7.º: ―Toda persona
tiene derecho a la libertad y a la seguridad personales‖.
58 Constituição espanhola de 1978, art. 17-1: ―Toda persona tiene derecho a la libertad
y a la seguridad‖.
59 Constituição Política do Estado da Bolívia, 1995, art. 7.o: ―Toda persona tiene los
siguientes derechos fundamentales, conforme a las leyes que reglamenten su ejercicio: a) A la
vida, la salud y la seguridad‖.
60 Constituição Política da República do Chile, 1980 (reforma em 2000), art. 19: ―La
Constitución asegura a todas las personas: (…) 7- El derecho a la libertad personal y a la
seguridad individual‖
61 Constituição da República do Paraguai, 1992, art. 9.o: ―Toda persona tiene el
derecho a ser protegida en su libertad y en su seguridad‖.
62 Constituição Política do Peru, 1993, art. 2.o: ―Toda persona tiene derecho: (…) 24-
A la libertad y a la seguridad personales‖.
63 Constituição da República portuguesa de 1976, art. 27-1: ―Todos têm direito à
liberdade e à segurança‖.
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Constituições do México66
e da Argentina67
. A Declaração de Roma sobre a Seguridade
Alimentar Mundial, concluindo a reunião de Cúpula da Organização das Nações
Unidas, em novembro de 1996, afirmou que a segurança alimentar é um dos direitos
fundamentais; uma Corte Constitucional, na América do Sul, alistou entre esses direitos
a segurança social das pessoas de terceira idade.
Não se trata só, contudo —e isso releva muitíssimo—, de uma exclusiva
segurança jurídica, a abranger o econômico e social, uma segurança cifrada ao
relacionamento inter-humano. Ademais, duas outras espécies de segurança são ansiadas
pelos homens: uma, tocando sua relacionação com a natureza física, a segurança diante
64 Constituição da República Oriental do Uruguai, 1967, art. 7.o: ―Los habitantes de la
República tienen derecho a ser protegidos en el goce de su vida, honor, libertad, seguridad,
trabajo y propiedad. (…)‖.
65 Constituição Federal brasileira de 1988, art. 5o: ―Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes‖.
66 Na Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos, de 1917, com alterações
posteriores, difundem-se referências à segurança jurídica — enquanto segurança pelo direito.
Destacam-se aqui, brevitatis causa, dois artigos, o 5.o —―A ninguna persona podrá impedirse
que se dedique a la profesión, industria, comercio o trabajo que le acomode, siendo lícitos. El
ejercicio de esta libertad solo podrá vedarse por determinación judicial, cuando se ataquen los
derechos de tercero, o por resolución gubernativa, dictada en los términos que marque la ley,
cuando se ofendan los derechos de la sociedad. Nadie puede ser privado del producto de su
trabajo, sino por resolución judicial‖ — e o 25: ―Corresponde al Estado la rectoria del desarrollo
nacional para garantizar que éste sea integral y sustentable, que fortalezca la soberanía de la
Nación y su régimen democrático y que, mediante el fomento del crecimiento económico y el
empleo y una mas justa distribución del ingreso y la riqueza, permita el pleno ejercicio de la
libertad y la dignidad de los individuos, grupos y clases sociales, cuya seguridad protege esta
Constitución‖.
67 Constitución de la Nación Argentina, de 1994, arts. 14-18. Em particular, seu art.
19: ―Las acciones privadas de los hombres que de ningún modo ofendan al orden y a la moral
pública, ni perjudiquen a un tercero, están sólo reservadas a Dios, y exentas de la autoridad de
los magistrados. Ningún habitante de la Nación será obligado a hacer lo que no manda la ley, ni
privado de lo que ello no prohíbe‖.
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do cosmos; outra, escatológica, tangendo os novíssimos, o destino último do homem, a
segurança do mais além68
. O desejo de ordem, de paz e de segurança —disse Helmut
Coing— ―está profundamente enraizado na vida anímica do homem‖69
.
A despeito da universalidade antropológica dessas exigências, pareceria que,
outrora, a avistável vinculação essencial entre justiça e segurança jurídica, importando
na impossibilidade de sua separação, induzisse a doutrina dos juristas a pensar na
segurança jurídica como uma dessas realidades elementares e evidentes sobre as quais
não vale a pena despender o tempo. De modo que a idéia de uma regulação social
obrigatória, estável e conhecida como certa — o que, bem se vê, não se resume ao
cânon da lei stricto sensu — estaria incluída como nota do conceito objetivo de bem
comum político. Em outras palavras, a res justa — abstrata ou concretamente
considerada — teria sempre de ser, de algum modo, uma res certa, embora, à evidência,
não toda res certa pudesse, por si só, estimar-se coisa justa. A positividade é condição
necessária da segurança jurídica, mas não lhe é suficiente.
Talvez, em todo caso, seja bastante o atributo de promulgação das leis, objeto
de permanente reclamo da doutrina, para nisso reconhecer uma implícita referência à
segurança do direito e, potencialmente, à segurança pelo direito. De toda sorte, não
faltaram antiqüíssimas referências explícitas à segurança jurídica, p.ex., já num diálogo
platônico70
, e López de Oñate71
registrou a propósito algumas alusões do Pro Cluentio
de Cícero. Há também, nessa matéria, um conhecido acercamento pontual de S.ISIDORO
de Sevilha, pelo ângulo da certeza jurídica, ao indicar que a lei deve ser clara — não se
68 Cfr. Luis Carlos Cabral, Justicia y Seguridad, in VV.AA., Acerca de la Justicia, ed.
Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1978, p. 20.
69 Prossegue o autor: ―El último [la seguridad], sobre todo, y como ya se ha indicado
numerosas veces, va junto con el terror del hombre ante la inseguridad de su existencia, ante la
imprevisibilidad y la incertidumbre a que está sometido‖ (Helmut Coing, Fundamentos de
Filosofía del Derecho, tradução de Juan Manuel Mauri, ed. Ariel, Barcelona, 1961, p. 67).
70 Sauer, apud José Luis Mezquita del Cacho, Teoría de la Seguridad Jurídica, ed.
Bosch, Barcelona, 1989, tomo 1, p. 17, nota n. 1.
71 Flavio López de Oñate, La Certeza del Derecho, tradução ao castelhano por
Santiago Sentís Melendo e Marino Ayerra Redin, ed. EJEA, Buenos Aires, 1953, p. 80
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dê que por sua obscuridade induza a erro72
. Mais amplamente S. Tomás de Aquino, em
várias passagens, tangeu a questão: v.g., ao recomendar a necessidade das leis para
deixar pouquíssimos assuntos à decisão dos juízes73
; quando confirmou a lição de
S.Isidoro acerca das qualidades da lei positiva74
; com afirmar que a lei deve ter a
máxima estabilidade possível75
; ao ensinar que as leis não devem modificar-se à vista de
qualquer melhoria, senão que em caso de grande utilidade ou necessidade —pro magna
utilitate vel necessitate76
; ao dizer que o fim da lei humana é a tranqüilidade temporal
do Estado —temporalis tranquillitas civitatis77
. Suárez e Luis de León também
versaram o tema: o primeiro, p.ex., ao versar sobre a necessidade de uma causa justa
relativa ao bem comum para a revogação de leis justas78
, e Luis de León ao ensinar,
v.g., que as leis, salvo um interesse muito grande e evidente —evidens atque maxima
utilitas— não podem mudar-se sem prejuízo da comunidade79
. E se, depois, muitos
autores ainda incursionaram no plexo da segurança e da certeza do direito —como,
brevitatis causa, os referem largamente López de Oñate e Mezquita del Cacho—, o fato
é que a matéria, anteriormente ao século passado, não recebeu tratamento doutrinário de
vulto.
Já nos primórdios do século XX, todavia, desencadeou-se a meditação detida e
confessada sobre o tema da seguridade jurídica, em conseqüência, com palavras de
RADBRUCH, da depreciação da segurança80
. Depreciação objetiva ou factual,
depreciação subjetiva ou da certeza e depreciação afetiva ou do sentimento de
72 S. Isidoro de Sevilha, op. cit., Livro 5, n. 21: ―…manifesta quoque, ne aliquid per
obscuritatem in captionem conteineat‖.
73 O que, de resto, já se encontrava em Aristóteles, Retórica, Bkk. 1.354 a; ver S.
Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 95, art. 1, ad 2um.
74 S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 95, art. 3, respondeo.
75 ID., Suma Teológica, Ia.-IIæ.. q. 97, art. 1, ad 2um: ―…mensura debet esse
permanens quantum est possibile‖.
76 ID., Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 97, art. 2, ad 2um.
77 ID., Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 98, art. 1, respondeo.
78 Francisco de Suárez, Tractatus de Legibus ac Deo Legislatore, Livro 6, cap. 25, n.
4.
79 Luis de León, op. cit., cap. 8, n. 165.
80 Radbruch, op. cit., p. 56.
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segurança81
. Uma desvalorização, enfim, que atingiu o âmago da segurança burguesa, o
tipo de segurança a que se ordenava o ideário do século XIX. O núcleo duro da
concepção burguesa —―tudo sempre marcha de modo racional e seguro‖— tendia a
uma segurança utópica e plenária, cuja natureza não era social, nem econômica; a
despeito de expressar-se como uma proclamação de aparência mundana e temporal, o
anseio pela segurança ampla e absoluta tinha ao fundo um caráter espiritual. Não há
novidade alguma nessa afirmação, já expressamente desfiada, p.ex., numa página
admirável de Berdiaeff82
. Parece mesmo que não há modo de a política evadir alguma
ressonância religiosa: é célebre que, declarando-se Proudhon83
surpreso com esse liame
fático entre política e religião, foi sua surpresa que causou surpresa a Donoso Cortés84
:
já Tertuliano havia dito, exagero interpretativo à parte, que os homens são naturalmente
cristãos85
; Louis Salleron, que o homem é um animal religioso86
, e o mexicano Basave
81 Realidade psicológica patente, mas à qual não se há de reduzir o conceito integral de
segurança (v. a propósito, Louis Le Fur, Le but du droit : bien commun, justice, sécurité, in
Annuaire de l‘Institut International de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, ed.
Sirey, Paris, 1938, tomo 3, p. 6; v. Helmut Coing, op. cit., p. 67).
82 ―O burguesismo é um estado e uma orientação do espírito, um modo especial de
sentir a vida. Ele não é de ordem social ou econômica e é mais do que uma categoria
psicológica e ética: é uma categoria espiritual, ontológica‖ (Nicolas Berdiaeff, De l‘esprit
burgeois, tradução francesa de Elisabeth Bellençon, ed. Delachaux e Niestlé, Neuchatel-Paris,
1949, p. 41).
83 Pierre Joseph Proudhon, Les Confessions d'un Révolutionnaire, apud Juan Donoso
Cortés, Ensayo sobre el catolicismo, el liberalismo y el socialismo, Livro 1, cap. 1, in Obras
Completas, ed. BAC, Madrid, 1970, vol. 2, p. 499.
84 ―Nada hay aquí que pueda causar sorpresa, sino la sorpresa de M. Proudhon‖
(Donoso Cortés, op. cit., vol. 2, p. 499). Na Carta al Cardenal Fornari, escreveu Donoso:
―Entre los errores contemporáneos no hay ninguno que no se resuelva en una herejía‖ (op. cit.,
vol. 2, p. 744-745).
85 Tertuliano, no Apologeticus: ―O testimonium animæ naturaliter christianæ‖ (apud
Roüet de Journel, Enchiridion Patristicum, ed. Herder, Barcelona, 1967, n. 275).
86 ―L‘homme est un animal religieux‖ (Louis Salleron, …ce qu‘est le Mystère à
l‘Intelligence, ed. du Cèdre, Paris, 1977, p. 17)
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del Valle, que o homem é um ser teotrópico87
. O fato é que, questões integradas ao
conteúdo da fé, as últimas relativas à vida e ao homem foram objeto de neutralidade
asséptica no cânon do pensamento burguês88
, e ali se substituíram pela fé no visível e no
palpável: Léon Bloy disse então impressivamente que S.Tomé era o patriarca dos
positivistas89
. De onde a confiança creditada ao panjuridismo90
, aparato de manifestação
de uma incontrastável vontade91
do Estado92
. Confiou-se, em acréscimo, na fórmula
econômica do capitalismo —acolhendo-lhe, de caminho, as raízes religiosas93
que
prometiam resolver o problema da salvação escatológica ora mediante o paradoxo94
de
uma sentença arbitrária, ora por meio de uma singela letra de câmbio espiritual com que
se sacramenta a sola fides. Apoiada a concepção decimonônica fundamental numa
87 Agustín Basave Fernández del Valle, Filosofia do homem, tradução brasileira de
Hugo di Primio Paz, ed. Convívio, São Paulo, 1975, p. 168-171.
88 Cfr. Otfried Höffe, Justiça Política, tradução brasileira de Ernildo Stein, ed. Vozes,
Petrópolis, 1991, p. 28-29.
89 ―…saint Thomas est le patriarche des positivistes‖ (Léon Bloy, Exégèse des lieux
communs, ed. Gallimard, Paris, 1968, p. 71).
90 Sem que o panjuridismo equivalha, sem mais, a uma fórmula panlegística, porque a
observância da lei, nos credos protestantes, não se remete ao destino escatológico dos homens
(Francisco Elías de Tejada, Tratado de Filosofía del Derecho , ed. Universidad de Sevilha,
1977, tomo 2, p. 137).
91 Il cuore della modernità, disse Francesco D‘Agostino, é ―il suo essere radicata
nella volontà di potenza‖ (Il diritto come problema teologico, ed. G. Giappichelli, Turim, 1995,
p. 85).
92 Luigi Sturzo avistou nesse quadro um signo panteístico: cfr. ―O Panteísmo de
Estado‖, in VV.AA., Heresias do nosso tempo, tradução portuguesa do Pe. António Marques,
ed. Tavares Martins, Porto, 1960, p. 121 et sqq.
93 Obrigatoriamente, Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo,
tradução brasileira de M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e Tamás J. M. K. Szmrecsányi, ed.
Pioneira, São Paulo, 1967, maxime p. 65-109.
94 Tanto no plano teológico, quando no de sua transposição política, o voluntarismo
decisório calvinista —―…para Calvino la justicia es pura y simplemente la voluntad de Dios
cuando actúa como juez‖ (Tejada, op. cit., vol. 2, p. 137)— remata no paradoxo de que a
segurança depende do arbítrio de Deus ou do juiz humano: reduz-se o direito à consciência do
magistrado que profere a sentença, àquilo que decida intima animæ pars (ID., p. 139).
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racionalização absoluta da existência terrena95
—o homem cria o mundo todos os dias,
por sua atividade econômica96
— e no milenarismo97
de uma ordem social perfeita98
,
toda moral burguesa estava dirigida, em essência, à idéia de segurança99
. De que
seguem suas tópicas: eu lavo as mãos qual Pilatos; ser como é preciso; e é preciso ser
de seu próprio século; todas as opiniões são respeitáveis; quando se está no
comércio… negócios são negócios; é preciso morrer rico100
; certo: o dinheiro não traz
a felicidade, mas…101
etc.
Em março de 1937, na cidade de Roma, instalou-se o 3.o Congresso do
Instituto Internacional de Filosofia do Direito e de Sociologia Jurídica: nele, entre
outros grandes pensadores, proferiram conferências Louis Le Fur, Giorgio Del Vecchio,
Recasens Siches, Carlyle, Délos, Gustav Radbruch. A só enunciação do título dos temas
desse Congresso —em seu gênero, o fim do direito, e, de modo específico, o bem
95 ―É o culto de Baal que assinala o início da nascente civilização burguesa… Toca a
essa civilização destruir todo culto sagrado‖ (Berdiaeff, op. cit., p. 55-56).
96 Versando acerca da visão do mundo no cristianismo burguês, diz Marcel de Corte:
―Un tel monde n‘offre plus rien de mystérieux, d‘effrayant, d‘obscur: le bourgeois le connaît,
distinctement, puisqu‘il le crée chaque jour, à l‘entour de soi, par son activité industrielle ou
mercantile‖ (Essai sur la fin d‘une civilisation, ed. M. Th. Génin e Librairie de Médicis, Paris,
1949, p. 196). Também aí se adverte o funcionalismo com que se sobrevalora a poiesis,
menosprezando-se as ações pessoais imanentes.
97 Diz Berdiaeff: ―Tendo perdido o sentido da culpabilidade, do pecado, o burguês
orienta sua vontade para realizações ilusórias e deixa submeter-se pelo ‗mundo‘. Sua idéia
motriz é a de obter o poderio e o bem estar, sem aceitar o Gólgota. Eis aí o milenarismo
burguês‖ (op. cit., p. 54). O triunfo do espírito burguês ocorre, segundo o autor, desde que, ―na
cristandade, a cidade terrestre passa por celeste e que o cristão deixa de sentir-se peregrino sobre
a terra‖ (p. 59).
98 É ainda de Berdiaeff: ―O arquiteto da torre de Babel é um burguês‖ (op. cit., p. 53).
99 ―Toda nossa moral atual estava orientada essencialmente para a segurança‖ (Jakob
Burckhardt, apud Radbruch, op. cit., p. 56).
100 Cfr. Léon Bloy, op. cit..
101 ―L‘Argent…‖ —diz Bloy— é, para o burguês, ―le Rédempteur ou, si on veut,
l‘image du Rédempteur‖ (p. 65). O dinheiro não traz a felicidade: ―c‘est vrai, songe
profondément le Bourgeois, l‘argent ne fait pas le bonheur, surtout lorsqu‘il est absent‖ (p. 103).
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comum, a justiça e a segurança — punha à mostra que a doutrina passava a ocupar-se
de um problema que até então lhe parecera desprezível. A revolução bolchevique de
1917, a guerra mundial de 1914, a grande depressão dos anos 30, sucessiva ao crack da
Bolsa de Valores de Nova York em 1929, a ascensão de Hitler em 1933, a guerra civil
espanhola de 1936, entre outros acontecimentos —alguns dos quais menos aparatosos
mas acaso tão ou mais profundos e intensos no plano espiritual102
— influíram na perda
da cega fé burguesa: desmoronara a utopia da segurança plenária. Era hora já, senão
tardia, de meditar sobre a segurança jurídica e suas relações com a justiça e o bem
comum.
Na sessão inaugural do referido Congresso de Roma, Le Fur afirmou com todas
as letras que a justiça e a segurança jurídica não são realidades antinômicas: ao revés,
são mesmo ―les deux éléments, les deux faces du bien commun‖103
. O fim do Direito,
prosseguiu o autor, é o de criar, pela justiça, pela ordem e pela segurança, as condições
que permitam ao grupo social a realização do bem comum. Mas segurança e justiça não
se podem separar: ―Tout se tient dans la vie de l‘homme, il n‘y a bonté ni beauté, ni
vérité ni justice dans le désordre‖104
. Joseph Délos, professor da Faculdade livre de
Direito de Lille, declinou ali célebre definição de segurança jurídica105
: ―a garantia
102 Pense-se, a propósito, nos efeitos do Decreto do Santo Ofício, em dezembro de
1926, condenando expressamente o jornal Action française — e indiretamente o movimento da
Action française: cfr., a propósito, o paradigmático livro de Gustavo Corção, O Século do Nada,
ed. Record, Rio de Janeiro-São Paulo, s.d., passim.
103 Louis Le Fur, Le but du droit : bien commun, justice, sécurité, in Annuaire de
l‘Institut International de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, ed. Sirey, Paris,
1938, tomo 3, p. 3.
104 ID., op. cit., p. 7.
105 Confirma-se o acerto dessa noção de Dabin em muitas das conceituações pósteras
de segurança jurídica; v.g., ―una exigencia objetiva de regularidad estructural y funcional del
sistema jurídico a través de sus normas y instituciones‖ (Antonio-Enrique Pérez Luño, La
Seguridad Jurídica, ed. Ariel, Barcelona, 1991, p. 21); ―En términos generales, hay seguridad
jurídica cuando el sistema ha sido regularmente establecido en términos iguales para todos,
mediante leyes susceptibles de ser conocidas, que sólo se aplican a conductas posteriores —y no
previas— a su vigencia, que son claras, que tienen cierta estabilidad, y que son dictadas
adecuadamente por quien está investido de facultades para hacerlo‖ (Atilio Anibal Alterini, La
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dada ao indivíduo de que sua pessoa, seus bens e seus direitos não serão objeto de
ataques violentos ou que, se eles vierem a produzir-se, ser-lhe-ão asseguradas, pela
sociedade, proteção e reparação‖106
. Depois de registrar que ―pour le positivisme et le
volontarisme juridiques, le droit positif est du droit par son origine, et non par son but
social‖107
, averbou Délos que a segurança importa na existência de um formalismo
jurídico, que ―protege contra o arbitrário, a imprecisão e o imprevisto‖108
. Estar em
segurança, disse o autor, é ter a segurança de que a situação estável não será
modificada a não ser por meio de procedimentos societários; procedimento, de
conseguinte, regulares —conformes à regula— e legítimos —conforme a lex109
. Por seu
turno, RADBRUCH disse então, muito graficamente: ―O bem comum, a justiça e a
segurança exercem um condomínio sobre o direito…‖110
, e Recasens Siches afirmou
que ―o direito não nasceu como culto puro da justiça, mas para saciar uma sede de
segurança‖ 111
.
Inseguridad Jurídica, ed. Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1993, p. 19); ―aquel presupuesto y
resultado del orden social, por el que la persona humana, principalmente, dentro de su libertad,
y en la convivencia social, se ve garantizada en el ejercicio de sus derechos y deberes de
carácter jurídico mediante la determinación de las normas preestabelecidas y su cumplimiento,
en la delimitación que el bien común marcará al ordenamiento jurídico mismo, en pro de la
justicia‖ (Jesús Lopez Medel, Introducción al Derecho –Una concepción dinámica del derecho
natural, ed. Fragua, Madrid, 1976, p. 117-118).
106 Joseph T. Délos, Le buts du droit : bien commun, sécurité, justice, in Annuaire de
l‘Institut International de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, op. cit., p. 41: ―la
securité est la garantie donnée à l‘individu que sa personne, ses biens et ses droits ne seront pas
l‘objet d‘attaques violentes ou que, si celles-ci viennent à se produire, protection et réparation
lui seront assurées par la société‖.
107 Id., op. cit., p. 29.
108 Id., op. cit., p. 41, nota.
109 Id., op. cit., p. 41-42. Equivalência, por certo, controvertível, a não ser que, como
nós sustentamos, se recuse caráter de verdadeira lei à norma injusta.
110 Radbruch, op. cit., p. 58.
111 Luis Recasens Siches, Le but du droit, le bien commun, la justice, la sécurité, in
Annuaire de l‘Institut International de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, ed.
Sirey, Paris, 1938, tomo 3, p. 127.
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Desde aqueles anos logo anteriores à II Guerra Mundial, passando pelo drama
do Tribunal de Nuremberg, em que o direito moderno confessou a perda de sua
inocência —suposto a possuísse na origem—, o fato é que já não se deixou de interpelar
a questão da segurança, a ponto de que seja até um lugar comum profano. Hoje fala-se
de seguranças específicas, pessoal, social, cidadã, de emprego, no trabalho, dos dados,
do tráfego negocial e do tráfego viário, segurança de orientação, alimentária,
informática, médio-ambiental112
, do uso de tesouras para aparar o bigode e do cinturão
de segurança, no tráfico viário… Viu-se acaso com excessivo otimismo o conflito
possível entre justiça e segurança113
, talvez porque se confiasse —num renovo de
fideísmo— na força dos consensos internacionais. Pouco tempo bastou para revelar que
a trivialização do termo segurança indicava antes a persistência de sua falta e de seu
anseio do que sua presença em nossos dias: vê-se hoje, muito largamente, a realidade de
uma segurança da insegurança114
. Faz alguns anos, boa parte das ameaças à segurança
jurídica provinha da prática de Estados que se reconheciam por totalitários —e a essas
ameaças, que López de Oñate qualificava de teóricas, ajuntava ele a escola do direito
livre115
. Salvo agora que alguns Estados ainda exibem resíduos de totalitarismo
aparatoso, já não se ostentam tão ingênua e abertamente, como outrora, as concepções
jurídicas que, a seu tempo, cuidavam de justificar o socialismo marxista e o nacional-
socialismo. Todavia, elas ainda se acham, um tanto obscurecidas, aqui e ali —apraz-lhes
muito o nome democracia—, como também se encontram sinais da herança do direito
livre em movimentos de direito alternativo, uso alternativo do direito, livre exame das
normativas etc., tudo isso num sincretismo de prática oscilante e de uma superficial
articulação teórica, acomodando-se à vaga pós-moderna de aditividade indistinta.
112 Cfr., a propósito, Pérez Luño, op. cit., p. 8 et sqq.
113 ―No se da, pues, en rigor, el conflicto trágico entre justicia y seguridad jurídica‖
(Werner Goldschmidt, La Ciencia de la Justicia, ed. Aguilar, Madrid, 1958, p. 89).
114 Pérez Luño, op. cit., p. 20 ; a segurança continuava a ser apenas ―una de grandes
aspiraciones insatisfechas del género humano‖ (p. 13).
115 López de Oñate, op. cit., p. 108 et sqq.
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Se o problema da segurança insegura, em nossos tempos, responde ainda
diretamente116
às ameaças que López de Oñate classificou como fáticas117
—
a) perda de claridade e simplicidade das leis e
b) hipertrofia legislativa—, suporta, pois, novos e acaso mais graves riscos
como o sincretismo de articulações ideológicas ou teóricas vagamente libertárias,
difusamente democráticas etc.. Entre essas ameaças sincréticas podem alistar-se:
c) o agnosticismo jurídico,
d) o situacionismo jurídico,
e) a crise do princípio da legalidade,
f) a falta de regularidade e de eficácia dos mecanismos de aplicação do
direito118
, com o corolário da demolição da jurisprudência como doutrina firme e o
perdimento da segurança de orientação,
g) a omissão estatal em questões jurídicas relevantes, incluso relativas à
segurança física dos súditos,
h) a irrazoável redução de certos prazos prescricionais, até mesmo uma
tendência de abolir algumas hipóteses de prescrição,
i) a extensão dos elementos normativos do tipo penal e das referências a
infrações administrativas,
j) a superação excepcional de limites preclusivos,
k) investidas contra a independência jurídica dos juízes, notários e
registradores,
l) ataques à instituição registrária.
A persistente perda da clareza e da simplicidade das leis e a intensificada
hipertrofia legislativa, ameaças contra a segurança jurídica já diagnosticadas por López
de Oñate, respondem, alguma vez de modo propositado, ao que se designou por
circiterismo normativo. A ambigüidade dos enunciados regulativos e o excesso no
número das leis conduzem a um difícil, complexo, quase impossível conhecimento das
116 É que não se ignora a existência de ideologias a justificar uma e outras dessas
ameaças antes de tudo, porém, factuais, como as qualificou López de Oñate, porque não
alcançam o grau de um paradigma científico.
117 Id., op. cit., p. 93 et sqq.
118 Cfr., a propósito, Alterini, op. cit., p. 19-20.
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normas, já não se diz isso só quanto aos profanos119
, mas até mesmo no concernente aos
juristas120
. O exagero das leis deprecia as normas — é a crise do princípio da
legalidade121
; a instabilidade das normas, com o arbitrário de suas mudanças,
desvaloriza a firmeza da jurisprudência dos tribunais; tudo contribui a debilitar ou até a
abolir a segurança de orientação. Mas ao lado dessa inflação quantitativa e do abuso das
mudanças das leis, emergem ainda a falta de eficácia do direito — marcadamente com a
relaxação das penas — e a omissão legislativa a propósito de questões de grave relevo
para a vida social, nutrindo a insegurança de orientação, o descrédito da lei e o desamor
do bem comum. Quando se ouve falar da lei como um fato normativo para-
revolucionário, suscetível de ignorar direitos adquiridos e alterar, a cada passo, as
regras do jogo — que está o próprio Estado a jogar — é compreensível que os súditos
considerem esse Estado não como sua autoridade superior mas como um poder
adversário que institui leis sem outro limite que o de sua misteriosa vontade estatal e
desordena o bem comum político, muita vez como se ele equivalesse e resumisse ao
bem do caixa público. Aqui se pode lembrar a imagética de Pierre Gaxotte, insculpida
de admirável ânimo libertário, a retratar antologicamente o Estado pró-totalizador:
119 ―Autre conséquence de l‘inflation juridique, le principe ‗nul n‘est censé ignorer la
loi‘ devient de plus en plus fictif‖ (Nicolas Nitsch, L‘inflation juridique et ses conséquences, in
Archives de philosophie de droit, ed. Sirey, Paris, 1982, tomo 27 —―Sources‖ de droit—, p.
162).
120 ―Le juriste ne sait plus, ne suit plus —ne peut plus suivre— le mouvement
d‘incrimination en droit pénal‖ (Mireille Delmas-Marty, Le flou du droit, ed. Presses
Universitaires de France, Paris, 1986, p. 33).
121 Cfr. Daniel Mockle, Crise et transformation du modèle légicentrique, in VV.AA.,
L‘amour des lois, direção de Josiane Boulad-Ayoub, Bjarne Melkevik e Pierre Robert, ed. Les
Presses de l‘Université Laval e L‘Harmattan, Québec, 1996, p. 139 et sqq.; Michel van de
Kerchove, Le problème des fondements éthiques de la norme juridique et la crise du principe de
légalité, in VV.AA., La loi dans l‘éthique chrétienne, ed. Facultés universitaires Saint-Louis,
Bruxelas, 1981, p. 72 et sqq.; Wolfgang Naucke, La progresiva pérdida de contenido del
principio de legalidad penal como consecuencia de un positivismo relativista y politizado,
tradução castelhana, in VV.AA., La insostenible situación del Derecho Penal, ed. Universidad
Pompeu Fabra, Granada, 2000, p. 538 et sqq.
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―A autoridade‖ —disse ele— ―não nos aparece hoje a não ser sob a figura de
um funcionário sentado atrás de uma escrivaninha e investido dos mais amplos
direitos… Essa personagem é eterna, imutável, idêntica a si própria… Recenseia,
registra, espiona. Conhece nossos rendimentos e inventaria nossas heranças. Sabe se
possuímos um aparelho de rádio, um cachorro ou um automóvel. Instrui nossos filhos e
fixa o preço do nosso pão. Fabrica nossos fósforos e vende-nos nosso tabaco. É
industrial, armador, comerciante, corretor e médico. Tem arquivos, florestas, estradas de
ferro, hospitais, bancos e usinas. Monopoliza a caridade. Se nós pertencemos ao sexo
masculino, faz-nos comparecer à sua frente, pesa-nos, mede-nos, examina o
funcionamento de nosso coração, de nossos pulmões e de nosso baço. Não podemos dar
um passo ou fazer um gesto sem que disso se advirta e encontre um pretexto para
intervir‖122
.
Sob o título agnosticismo jurídico podem agrupar-se diversas tendências
jurídicas contemporâneas: uma, que recusa a própria verdade da ordem prática; outra,
que nega a possibilidade do conhecimento que importa ao direito, seja de caráter fático,
seja de caráter normativo; uma terceira, subjetivista: há verdade na esfera do direito e da
ética, verdade que só se valoriza, entretanto, dentro dos limites da apreensão do sujeito
gnosiológico123
. Essas vertentes confortam-se com o lugar comum contemporâneo da
falta de limites para a interpretação124
, de modo que os enunciados normativos e os fatos
nunca terminam de interpretar-se: perpetua-se a interpretação, num livre exame
contínuo, a roda de Ixión —―seule la main de Dieu‖, comenta Élissalde125
, ―arrête la
plume de l‘interprète‖; não se pode atingir nenhuma certificação, sequer moral. Se,
contudo, não há verdade, ou a verdade que há não se pode conhecer, ou, cognoscível,
não pode ser mais que subjetiva, a segurança é apenas um fato, o fato resultante do
poder: não se poderia já falar em segurança jurídica —i.e., regular, conforme ao
direito—, mas apenas numa contra-segurança da maior força. No entanto, a poesia de
122 Pierre Gaxotte, La révolution française, ed. Complexe, Bruxelas, 1988, p. 5-6.
123 Cfr. Georges Kalinowski, Le problème de la vérité en morale et en droit, ed.
Emmanuel Vite, Lyon, 1967, passim.
124 Cfr. Yvan Élissalde, Critique de l‘interprétation, ed. Vrin, Paris, 2000, passim.
125 ID., op. cit., p. 24.
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ANTONIO MACHADO diz muito bem que ―la verdad es lo que es,/y sigue siendo
verdad/aunque se piense al revés‖126
, e, noutra parte:
―El ojo que ves no es
ojo porque tú lo veas;
es ojo porque te ve‖127
.
É verdadeiro o episódio128
de um juiz que, com todas as letras —e, por sinal,
eruditas—, afirmava não ser possível uma apreensão objetiva da verdade, seja quanto à
diagnose dos fatos constitutivos, seja quanto ao próprio direito: normativo ou res justa.
Por mais argumentos lhe fossem opostos —―¿Tu verdad? No, la Verdad,/y ven conmigo
a buscarla./La tuya, guárdatela‖129
— não acabava nunca de convencer-se de que, com
símile subjetivismo, não era razoável ser juiz. Foi preciso que, com alguma
impiedade130
, lhe chegasse aos ouvidos o registro de que seu subjetivismo era um tanto
farisaico, porque nosso juiz nunca fora visto a sair das salas por meio das paredes ou a
saltar pelas janelas… As portas, enfim, também para ele, eram de uma realidade
palpável. Foi leal com a mostra: abdicou do relativismo —desta vez, novamente, com
grande erudição.
O direito de situação —situacionismo ou decisionismo— é um parente do
homônimo ético: em lugar da normativa — ou, ao menos, com a variação secundária131
de sua ―interpretação‖ — emerge um juízo concreto, hic et nunc, fundado
essencialmente no poder factual de quem decide. Isso corresponde ao que Michel Villey
designou hermeneutismo132
— uma releitura incessante, criadora, livre e subjetiva dos
126 Antonio Machado, Proverbios y Cantares, 136-30.
127 ID., 161-1; também: ―Los ojos por que suspiras,/sábelo bien,/los ojos en que te
miras/son ojos porque te ven‖ (161-40).
128 De que, pessoalmente, eu tive pequena parte, num Tribunal de São Paulo.
129 Antonio Machado, op. cit., 161-85.
130 Confiteor Deo omnipotenti etc.
131 Vale por dizer, que a ―interpretação‖ secunda o juízo casual.
132 Michel Villey, Philosophie du droit, ed. Dalloz, Paris, 1984, tomo 2, p. 170-171.
ÉLISSALDE, todavia, reivindica a primazia do neologismo herméneutisme (op. cit., p. 13).
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textos e dos fatos133
. Entre seus lugares comuns arrolam-se a peculiaridade do caso —
não se confunde isso com a eqüidade, porque essa referência ao peculiar do caso atua
como simples retórica, sem recorrer ao fundamento exceptivo in re que autorizaria o
reconhecimento da eqüidade contra legem —; o juiz não é um computador; a simbiose
entre o aplicador da lei e o caso; a insuficiência da dogmática e da lógica134
. Já se
referiu, noutra parte, a um episódio judiciário135
característico desse decisionismo: após
largo debate num tribunal, definiu-se, por maioria, uma questão puramente de direito;
proclamada a súmula, apregoou-se novo processo para julgamento, e um dos juízes, que
na questão anterior, aderira expressamente à maioria, modificou seu entendimento —
sem mínima apresentação de novos argumentos; alertado sobre a divergência com seu
próprio voto anterior, afirmou o juiz, com todas as sílabas: ―Meu entendimento é
sempre variável. Não tenho compromissos com a lógica‖. Símile gênero de
irracionalismo judicial está à raiz da realidade de uma justiça lotérica, na dicção de
Allain Peyreffite136
, e que já ensejou a BORGES reportar a origem da pena de multa à
loteria da Babilônia137
, e a uma personagem de Pitigrilli, o juiz Paul Pott, a afirmação
de que o método ―mais racional, mais sério, mais científico, mais positivo‖ para a
sabedoria —incluída a aplicação da justiça— é a desfolhação de malmequeres 138
.
133 Nesse quadro, o poder é o que conta, com um valor quase hierático.
134 Com que se poderia estar de acordo, se, de par com a insuficiência, não viesse
implícita a afirmação da desnecessidade da lógica e da dogmática.
135 Cfr. nosso, ―José Frederico Marques — e o cânon processual penal brasileiro‖, in
José Frederico Marques, Estudos de Direito Processual Penal, ed. Millennium, Campinas,
2001, p. XX.
136 Allain Peyreffite, Les chevaux du lac Ladoga, in De La France, ed. Omnibus,
Paris, 1996, p. 594.
137 Jorge Luis Borges, La lotería en Babilonia, in Ficciones (cfr. Obras Completas, ed.
Emecé, Buenos Aires, 1974, p. 456 et sqq.).
138 Pitigrilli, O Homem que Inventou o Amor – O Experimento de Pott, tradução
brasileira de Rúben Ulisséia, ed. Vecchi, Rio de Janeiro, s.d., 5a ed., p. 206.
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No que concerne aos institutos próprios do direito formal —tipo e tipificação,
coisa julgada, prescrição, decadência, preclusão, perempção, notas e registros
públicos139
—, encontram-se ameaças fáticas pontuais contra a segurança jurídica, p. ex.:
a) com injustificáveis reduções de prazos para a prescrição aquisitiva —o que
vai avantajando a titulação de anômalos fatos possessórios em curso conflitual contra as
situações jurídico-dominiais—;
b) com a adoção segmentar de casos imprescritíveis — o que, além de
retroceder a controvérsia à própria legitimidade em geral das prescrições, termina,
muitas vezes, por afetar questões relativamente menores (v.g., casos penal-
disciplinares140
);
c) com a crescente referência legística a elementos normativos, tanto na
tipificação penal, quanto na esfera dos ilícitos administrativos141
;
d) com a desconsideração propositada da preclusão temporal para, na esfera
judiciária, admitir, de fato, a reformatio in mellius, abrandando sentenças penais sem
recurso dos réus142
.
Os registros públicos — ao lado das notas143
— constituem o mais relevante
dos instrumentos jurídicos preventivos. Como todo instituto de direito formal, o registro
público ordena-se aos objetivos de clarificação e demarcação exterior 144
—em outros
139 Deixam-se à parte a lei — já antes referida — e as forças de segurança (polícia,
exército etc.).
140 É o que ocorre, no Brasil, com a Lei 8.935/1994, de 18 de novembro, que versa
sobre os notários e registradores públicos. À persecução das ali tratadas infrações disciplinares
não corresponde nenhuma referência sobre o influxo de prescrição.
141 Cfr. nosso, O Novo Direito Penal Disciplinar dos Notários e Registradores, na obra
escrita com José Renato Nalini, Registro de Imóveis e Notas – Responsabilidade Civil e
Disciplinar, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1997, p. 11 et sqq.
142 Paradoxalmente, ao vedar a reformatio in pejus indireta, os tribunais adotam uma
sentença já inexistente como título de uma preclusão de quantidade ou qualidade da pena.
143 Para cuja importância —a das notas — é paradigmático José Castán Tobeñas,
Función notarial y elaboración notarial del derecho, ed. Reus, Madrid, 1946, passim.
144 Cfr., a propósito, Paul Roubier, Théorie générale du droit, ed. Sirey, Paris, 1951, p.
91.
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termos, ao escopo de conferir, objetivamente, segurança jurídica e, subjetivamente, a
certeza que lhe corresponda, por meio de formas, prazos e procedimentos. Acrescenta-
se aos registros uma cautelaridade geral que, num certo sentido, os avantaja
socialmente até mesmo à coisa julgada, porque esta se restringe, de comum e
propriamente, às partes de um processo e atua como um póstero conflitivo, ao passo que
os registros têm, positivamente, oponibilidade universal — à margem os efeitos que se
atribuam à presunção ou, se se quiser, à ficção de seu conhecimento145
— e operam ao
tempo e com objetivo anteconflitual. Além disso, o registro de imóveis —que é o
registro público por excelência146
— exercita uma função de garantia segunda com
coordenar, conservar e publicar as situações jurídicas que têm por objeto a propriedade
predial privada, essa que, por si só, já constitui um garante efetivo e primeiro das
liberdades concretas dos indivíduos e dos corpos intermédios entre esses e o Estado.
Ainda que o registro imobiliário não se dirija exclusivamente a inscrever fatos jurídicos,
lato sensu, relativos à propriedade particular de imóveis, abrangendo os desdobramentos
do domínio, e, num plano juscomparatístico, possa até estender-se a fatos relativos a
direito pessoal147
, é certo que a relevância primeira148
do registro imobiliário está na
coordenação, conservação e publicação das situações jurídicas dominiais.
145 Brevitatis causa: Carlos Ferreira de Almeida, Publicidade e Teoria dos Registos,
ed. Almedina, Coimbra, 1966, p. 251 et sqq.; José de Oliveira Ascensão, Efeitos substantivos do
Registro predial na ordem jurídica portuguesa, in Ponencias y Comunicaciones Presentadas al
II Congreso Internacional de Derecho Registral, ed. Colegio Nacional de Registradores de la
Propiedad y Mercantiles de España – Centro de Estudios Hipotecarios, Madrid, 1975, tomo 2, p.
38 et sqq.
146 ―…la publicidad registral por antonomasia es la que atañe a los inmuebles‖
(Ricardo de Ángel Yágüez, ed. Universidad de Deusto, Bilbao, 1975, p. 85).
147 Como, p.ex., ocorre no Brasil, com a Lei 6.015/1973, de 31-12.
148 O que não exclui fins secundários, assim, p.ex., de caráter urbanístico (cfr. Manuel
Medina de Lemus, La propriedad urbana y el aprovechamiento urbanístico, ed. Colegio de
Registradores de la Propiedad y Mercantiles de España –Centro de Estudios Registrales,
Madrid, 1995, passim; Mercedes Fuertes, Urbanismo y Publicidad Registral, ed. Marcial Pons e
Centro de Estudios Registrales de Cataluña, Madrid, 1995, passim; Martín Marcos Jiménez,
Parcelaciones y Reparcelaciones Urbanísticas y el Registro de la Propiedad, ed. Montecorvo,
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Isso tudo põe à mostra o caráter institucional149
do registro de imóveis, de que
se exigem o exercício de funções relevantíssimas para a ordenação social e, muito
particularmente, o desempenho da missão de sobregarantia, ao assegurar juridicamente
a propriedade privada imobiliária e, com ela, as liberdades concretas até mesmo frente
ao Estado. Adivinha-se que motivos ideológicos se insinuem nos ataques teóricos que,
vez por outra, guerrilham contra a instituição do registro de imóveis: demolir a
sobregarantia registral é uma fórmula direta de desorganizar a propriedade imobiliária
privada, aplainando a trilha do combate ao domínio particular. Mas, ao lado de ameaças
teóricas — em geral, pouco ou nada consistentes —, o registro imobiliário sofre ataques
factuais, que o afetam, sobretudo, no plano da independência jurídica do registrador
(v.g., por meio um direito penal disciplinar atipológico ou de intervenções do Poder
Público marginadas de expressa regulação).
Ladeando aqui a persistente controvérsia doutrinária que toca com a natureza
das funções e das atividades do registro imobiliário, penso que se poderá admitir — ao
menos com recortes voltados a atender à pluralidade do direito comparatístico — que o
registro de imóveis seja, quodammodo, um serviço público150
. E se o conceito de
serviço público não equivale ao de serviço estatal por natureza — já observara Hauriou
que, historicamente, uma parte considerável do que se chama de serviços públicos é
resultante do mero fato de uma assunção estatal de serviços que os particulares antes
exercitavam por si próprios151
—, é razoável afirmar a funda conveniência, quando não a
Madrid, 1976, passim) e agrário (v. Ramón María Roca Sastre e Luis Roca-Sastre Muncunill,
Derecho Hipotecario, ed. Bosch, Barcelona, 1995, tomo 1, p. 14).
149 Cfr., brevitatis studio: José Manuel García García, Derecho Inmobiliario Registral
o Hipotecario, ed. Civitas, Madrid, 1988, tomo 1, p. 54 et sqq.; JESÚS LÓPEZ MEDEL, Modernas
Orientaciones sobre la Institución Registral, ed. Fragua, Madrid, 1975, passim; Francisco Mesa
Martín, Aproximación al institucionalismo. El Registro de Propiedad como institución jurídica,
in Ponencias y Comunicaciones Presentadas al II Congreso Internacional de Derecho
Registral, op. cit., tomo 2, p. 130 et sqq.; Ángel Cristóbal Montes, Introducción al Derecho
Inmobiliario Registral, ed. Librería General, Zaragoza, 1986, p. 144-147.
150 Cfr. Jesús López Medel, Teoría del Registro de la Propiedad como Servicio
Público, ed. Colegio de Registradores de la Propiedad y Mercantiles de España –Centro de
Estudios Registrales, Madrid, 1991, passim.
151 Maurice Hauriou, Principes de droit public, ed. Sirey, Paris, 1916, p. 572 et sqq.
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necessidade, da organização e do controle do registro de imóveis pelo Estado, na
medida mesma em que a ordenação e a conservação da propriedade imobiliária privada
interessa essencialmente ao bem comum político. Isso, porém, não significa que o
registro de imóveis deva exercitar-se diretamente pelo Estado. Não são incompatíveis
os atributos de gestão privada e de organização estatal de um serviço152
, e saber,
concretamente, se o registro imobiliário deve ou não exercitar-se de modo direto pelo
Estado é algo que demanda a consideração das circunstâncias históricas e circundantes
de cada País: no Brasil, p.ex., há uma conaturalidade histórica, por sinal que frutuosa,
entre gestão particular e registro de imóveis153
. Como quer que seja, exerça-se por
funcionários públicos ou por particulares colaboradores do Poder Público154
, o registro
de imóveis exige de seu titular o predicado da independência jurídica.
Com efeito, o registrador, ao termo de seu indeclinável procedimento de
qualificação155
, conclui por uma decisão jurídica, positiva ou negativa, de um caso
152 Cfr., brevitatis causa, Roger Bonnard, Précis de droit public, ed. Sirey, Paris, 1946,
p. 243 et sqq.; Jean Rivero, Direito Administrativo, tradução portuguesa de Rogério Ehrhardt
Soares, ed. Almedina, Coimbra, 1981, p. 192 et sqq.; Francis-Paul Bénoit, Le droit administratif
français, ed. Dalloz, Paris, 1968, p. 769 et sqq.; Celso Antônio Bandeira de Mello, Prestação de
Serviços Públicos e Administração Indireta, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1987, p. 31 et
sqq.
153 Lê-se no caput do art. 236 da Constituição brasileira de 1988: ―Os serviços
notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público‖.
154 Como se extrai do enunciado normativo do art. 236 da Constituição Federal
brasileira de 1988, os registradores de imóveis não são agentes políticos — porque, em resumo,
não se dirigem a formar a superior vontade estatal‘não são servidores públicos —porque, em
síntese, não são pagos pelos cofres públicos; mas, isto sim, particulares colaboradores do
Poder Público, a exemplo dos tradutores e intérpretes públicos, dos leiloeiros, dos reitores de
universidades privadas etc., pessoas que exercitam função pública em nome próprio, ainda que
sob a fiscalização do Poder Público.
155 Qualificação registral imobiliária —definiu-se noutra parte— é ―o juízo prudencial,
positivo ou negativo, da potência de um título em ordem a sua inscrição predial, importando no
império de seu registro ou de sua irregistração. Para logo, trata-se de um juízo, vale dizer, uma
operação formalmente intelectiva que une ou separa os conceitos, tornados em relação às coisas
mesmas que representam de modo reflexivo e abstrativo, mas de um juízo prudencial, ou seja:
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particular. Ainda que o marco dessa decisão seja, por primeiro, a res certa — cuja
relação com o justo é de caráter legisprudente —, o fato é que o registrador atua como
um juris-prudente. Vale por dizer que o tipo adequado do saber registral é, em seu
gênero, o da recta ratio agibilium, objeto da virtude da prudência156
. Já por isso, avista-
se, no nível epistemológico, a indispensabilidade do atributo da independência
jurídica157
do registrador. A esse plano, além disso, converge uma razão política, porque
o registrador, atuando como guardião jurídico da propriedade privada e, assim, como
garante mediato das liberdades concretas do povo — incluso em face do Estado—,
exerce função social essencialmente ordenada à segurança jurídica. E não se pode falar
seriamente em função social da propriedade imobiliária se não se respeitar a função
social de seu maior guardião, o registrador de imóveis.
a) juízo que é propriamente da razão prática, não da especulativa;
b) que se ordena a operações humanas singulares contingentes;
c) e que, não dispensando atenta consideração dos princípios da sindérese e das
conclusões da ciência moral, acaba, para além do conselho e do juízo dos meios achados, por
imperar uma determina atuação‖ (nosso Sobre a Qualificação no Registro de Imóveis, in Revista
de Direito Imobiliário, ed. Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e Revista dos Tribunais ,
São Paulo, janeiro-junho de 1992, n. 29, p. 40).
156 Cfr. nosso Sobre o Saber Registral (Da Prudência Registral), in Revista de Direito
Imobiliário, ed. Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e Revista dos Tribunais , São Paulo,
janeiro-dezembro de 1993, ns. 31-32, p. 7 et sqq.
157 Cfr. nosso O Paradigma da Independência Jurídica dos Registradores e dos
Notários, in Revista de Direito Imobiliário, ed. Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e
Revista dos Tribunais , São Paulo, setembro-dezembro de 1997, n. 42, p. 5 et sqq.
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3.
SOBRE A FUNÇÃO SOCIAL DO REGISTRADOR DE IMÓVEIS*
RICARDO HENRY MARQUES DIP
Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Acadêmico da Real de Jurisprudência e Legislação de Madrid.
Ao encerrar uma pequena palestra, no XVII Encontro do Comitê Latino-
Americano de Consulta Registral, um importante congresso que recentemente se
celebrou em Morélia, capital do Estado de Michoacán, no México, pareceu-me bem
afirmar que o registrador, ―actuando como guardián jurídico de la propiedad privada y,
así, como garante mediato de las libertades concretas del pueblo —inclusive frente al
Estado— ejerce una función social esencialmente ordenada a la seguridad jurídica‖1.
Não há, por certo, maior originalidade nessa afirmação. E, em particular, com
efeito, referências, ao menos implícitas, à função social do registrador sempre visitaram
a doutrina — a esse propósito, poderia ilustrar-se o tema, invocando-se aqui, por
exemplo, uma gráfica expressão de Monasterio Galli, que com ela mais diretamente, é
certo, designava os notários e não os registradores, aos quais últimos, contudo, é de todo
pertinente a extensão da referência, advertindo esse autor funções jurídico-preventivas
tamanhamente relevantes que não hesitava em agrupá-las numa instituição singular e
transpessoal: a da Magistratura da Paz Jurídica2. Não menos de relevo, ainda a título
exemplificativo, são as seguidas referências da doutrina à natureza institucional do
* Palestra proferida em Moscou, no XVII Congresso Internacional de Registro
Imobiliário.
1 In Sobre la crisis contemporánea de la seguridad jurídica, atas do XVII Encuentro
del Comité Latinoamericano de Consulta Registral, Morélia, 11.03.2003.
2 Apud José Castán Tobeñas, Función Notarial y Elaboración Notarial del Derecho,
ed. Reus, Madrid, 1946, p. 31.
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registro de imóveis —e, pois, no plano subjetivo, também à daqueles que têm a missão
de geri-lo: os registradores—, menções de que se decotam predicados de estabilização e
de continuidade social3. Também despontam em nossos dias seguidas alusões à tarefa
dos registradores de imóveis no ponto em que se ordenam a auxiliar a incumbências
urbanísticas4 e agrárias
5, bem como a subsidiar o controle dos interesses tributários e,
tendência crescente, convocar inscrições relativas a imóveis de propriedade não-
particular6 e a limitações e restrições de Direito público
7. Sem recusar o relevo da
3 Cfr. brevitatis studio, Francisco Mesa Martin, Aproximación al institucionalismo. El
Registro de Propiedad como institución jurídica, in Ponencias y Comunicaciones presentadas
al II Congreso Internacional de Derecho Registral, ed. Colegio Nacional de Registradores de la
Propiedad y Mercantiles de España –Centro de Estudios Hipotecarios, Madrid, 1975, tomo 2, p.
131 et sqq.; Jesus Lopez Medel, Filosofía de la Institución Registral y cambio social, in
Ponencias y Comunicaciones presentadas al VI Congreso Internacional de Derecho Registral,
ed. Colegio Nacional de Registradores de la Propiedad y Mercantiles de España –Centro de
Estudios Hipotecarios, Madrid, 1985, tomo 2, p. 1.691 et sqq.; ID., Teoría del Registro de la
Propiedad como Servicio Público, ed. Colegio de Registradores de la Propiedad y Mercantiles
de España –Centro de Estudios Registrales, Madrid, 3ª ed., 1991, passim; José María Chico y
Ortiz, La propiedad y el Registro de la Propiedad: Conexiones y perspectivas, in Revista
Crítica de Derecho Inmobiliario, Madrid, 1985, n. 566, p. 9 et sqq.
4 A título ilustrativo, cfr. Manuel Medina de Lemus, La propiedad urbana y el
aprovechamiento urbanístico, ed. Colegio de Registradores de la Propiedad y Mercantiles de
España –Centro de Estudios Registrales, Madrid, 1995, passim (bibliografia em p. 355 et sqq.);
Mercedes Fuentes, Urbanismo y Publicidad Registral, ed. Marcial Pons e Centro de Estudios
Registrales de Cataluña, Madrid, 1995, passim (bibliografia em p. 173 et sqq.).
5 Cfr. Francisco Corral Dueñas, La aportación registral al agrarismo, in Revista
Crítica de Derecho Inmobiliario, Madrid, 1986, n. 573, p. 333 et sqq.
6 V.g., José Lopez Medel, Publicidad registral de bienes de dominio público, in
Ponencias y Comunicaciones presentadas al VI Congreso Internacional de Derecho Registral,
cit., tomo 1, p. 231 et sqq.; Roberto Parejo Gamiz, Protección Registral y dominio público, ed.
Revista de Derecho Privado e ed. de Derecho Financiero, Madrid, 1975, passim; Etienne
Badillo Anazagasty, Registración de las limitaciones de derecho público al derecho de
propiedad y de bienes de dominio público o demaniales, in Ponencias y Comunicaciones
presentadas al VI Congreso Internacional de Derecho Registral, cit., tomo 1, p. 3 et sqq.; José
T. Bernal Quirós Casciaro, Acceso del dominio público al Registro, in Ponencias y
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inclusão dos registradores prediais no roteiro da colaboração com o Estado em matéria
de uso regular do solo — particularmente, na esfera dos parcelamentos e
reconcentrações de parcelas8 —, edificações, direito de superfície
9, cultivos, regular
pagamento de tributos etc., é preciso reconduzir a aferição desse papel social do
registrador ao núcleo da própria instituição registrária — não o restringindo à tarefa de
secundar o Estado —, se queremos compreender essencialmente em que consiste a
função social registrária. Com efeito, essas funções secundárias do registro predial que
acabamos de pontualmente alistar são atributos de caráter acidental, são predicados
adjetos que se voltam ao subsídio de incumbências próprias e primeiras de funções do
Governo político, funções essas que, remetidas, de algum modo, à colaboração registral,
são até mesmo, em alguns aspectos, discutíveis quanto a seu valor social: assim, p.ex., a
imposição de obstáculos tributários à registração do tráfico de imóveis é sabidamente
um fator de clandestinismo e, portanto, de maltrato à segurança jurídica. Diante da
contingência e da acidentalidade dessas apontadas funções de colaboração registral, a
Comunicaciones presentadas al VI Congreso Internacional de Derecho Registral, cit., tomo 1,
p. 25 et sqq.;;
7 Assim, p. ex., Alberto F. Ruiz de Erenchun, Registraciones de las limitaciones de
derecho público al derecho de propiedad, in Ponencias y Comunicaciones presentadas al VI
Congreso Internacional de Derecho Registral, cit., tomo 1, p. 345 et sqq.; José Luis Laso
Martínez, Limitaciones del derecho público al derecho de propiedad, in Ponencias y
Comunicaciones presentadas al VI Congreso Internacional de Derecho Registral, cit., tomo 1,
p. 269 et sqq.
8 Cfr. Martín Marcos Jimenez, Parcelaciones y Reparcelaciones Urbanísticas y el
Registro de la Propiedad, ed. Montecorvo, Madrid, 1976, passim; José Manuel García García,
La reparcelación y la compensación en relación con el Registro de la Propiedad, in Revista
Crítica de Derecho Inmobiliario, Madrid, 1985 (n. 567, p. 287 et sqq.) e 1986 (n. 576, p. 1.349
et sqq.).
9 Cfr. José María Cadenaba Coya e Emilio García Pumarino Ramos, El derecho de
superficie y el Registro de la Propiedad, in Ponencias y Comunicaciones presentadas al VI
Congreso Internacional de Derecho Registral, cit., tomo 1, p. 417 et sqq.; Cayetano Utrera
Ravassa, El aprovechamiento urbanístico en suelo sin aprovechamiento, in Ponencias y
Comunicaciones presentadas al VI Congreso Internacional de Derecho Registral, cit., tomo 1,
p. 733 et sqq.
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possibilidade de sua supressão, com o recobro de seu exercício pleno e direto pelo
próprio Estado, põe em evidência o inconveniente de cifrar a consideração do papel
social do registro — e do registrador — a esses vários contributos, por mais que
importantes, de toda sorte secundários. Se assim é, cabe investigar mais adequadamente
por qual razão de ser, por aquilo a que se ordena e justifica sua essência, a instituição
do registro imobiliário haverá de possuir — como, a confirmá-la, se recruta de sua
história — uma função societária substancial, é dizer: suposto de demais funções,
permanente, essencial, a cuja negação se tenha mesmo de concluir, forçosamente e em
boa lógica, abolida a própria instituição do registro de imóveis e refutada sua histórica e
contemporânea relevância para a vida regular da Sociedade política.
Fez-se alusão à história, porque não se pode perder de vista o fato de que, ao
largo do tempo, se foi desvelando a imprescindibilidade de um sistema publicitário
relativo aos bens imóveis, nada obstante a pluralidade com que se concretizaram, sob o
influxo das circunstâncias singulares de cada povo, os modos como essa publicidade se
efetivou. Assim, como é fartamente conhecido, a praxe social de publicar as situações
jurídicas imobiliárias remonta à história da Babilônia e do antigo Egito, documenta-se,
entre os hebreus, no Velho Testamento, acha-se na Grécia dos teóricos e na Roma dos
práticos, freqüenta a Cristandade medieval, sobrevive na Modernidade e, ainda que com
alguns hiatos de instabilidade, chega aos nossos dias10
, em que sua ressurreição e
robustecimento são testemunhos vivos de seu valor para a cidade. Quando se vê, de fato
e malgrado a variação de seus acidentes, que a publicidade predial se manifesta de
forma tão constante entre os povos, da Antigüidade aos nossos tempos, não se sabe já
evitar a conclusão de ser ela conatural à história mesma dos homens e indispensável
politicamente: um efeito tão geral e reiterado não pode provir de causa vária e
pontualizável, senão que remonta a natureza mesma das coisas humanas, vale por dizer,
neste caso, a politicidade natural do homem, sua vivência indispensável em
relacionação com outros homens e com o mundo das coisas. Dos homens pode dizer-se
que não vivem, con-vivem com seus semelhantes e, além disso, convivem com as coisas
do mundo. E essa última convivência — maxime no que respeita à apropriação — exige
modos de visibilidade, de conhecimento, de notícia, com que a cada um se assegure
10 Cfr., por todos, Nicola Coviello, Della Trascrizione, Nápolis, 1897, vol. 1, p. 14 et
sqq., e Salvatore Pugliatti, La Trascrizione, ed. Giuffrè, Milão, 1957, vol. 1, tomo 1, p. 33-164.
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melhor o que é seu. O conjunto desses modos — ora com seu jeito próprio babilônico,
egípcio ou grego, ora com as técnicas mais apuradas da modernidade e de nossos dias
— é um permanente histórico que, de par com seu progresso, desiderato de geração
após geração, manifesta a essencialidade dos registros públicos de imóveis para a vida
da cidade.
Nessa linha de consideração, dizer, como se afirmou no já referido Encontro de
Morélia, que o registrador de imóveis é, pela razão primeiríssima de seu ofício —tal a
aferível da própria história da publicidade imobiliária—, um garante direto da
propriedade predial particular e, bem por isso, um garante mediato das liberdades
concretas do povo, é, de fato, reconhecer que sua missão política essencial se remete
fundamentalmente à função plenária —pessoal e social— do domínio privado. Em
outros termos, a função de garantia direta da propriedade imobiliária particular e de
garantia mediata das liberdades concretas assina ao registrador predial um específico
papel político, que é indissociável da teleologia da instituição registrária, ainda que a
secundar a função política ou social do domínio privado. Não é demais repetir aqui a
célebre lição de que, na ordem prática, o fim constitui o primeiro dos princípios, de tal
maneira que a consecução dessas garantias do domínio particular — constitutivo de um
fim excelente na polis: garantir a potencialidade e o exercício concreto das liberdades
— é o princípio fundamental da instituição registrária e, bem por isso, ordenador
primeiro de suas outras causas.
Essas referidas funções instrumentais de garantia, tendo por objeto material a
propriedade privada, devem reconduzir-se, no plano de sua justificação, ao conceito de
licitude e de função social do domínio particular, de tal modo que a função política dos
registradores esteja em garantir, juridicamente, na normalidade da vida social, o
exercício pleno da propriedade privada, tanto, de um lado, nos marcos de uma dimensão
pessoal naturalmente lícita — pois não se ordenam os homens para a polis, tal que
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fossem apenas partes da cidade11
—, quanto, de outro lado, nos lindes do uso da
propriedade retamente ordenada ao prius do bem comum político12
.
No âmbito dessa dialética tensiva de relacionação entre as dimensões pessoal e
social do domínio privado, conhecidas são as dificuldades que problematizam, já faz
tempo, a formação de um paradigma acerca da função social da propriedade particular.
Num plano de fundo mais destacadamente negativo, em que sobressai o fundamento de
uma recusa capital de aventurável direção egótica e abusiva do domínio privado —
recusa que tem conduzido, de fato, ao reconhecimento, se não ético, ao menos
juspositivo de limitações do domínio particular e à admissibilidade de restrições legais à
propriedade privada, p.ex., no âmbito dos direitos de vizinhança; no da preservação do
entorno natural e histórico; no da negativa de interdição de atividades de terceiros, em
espaço aéreo ou no subsolo correspondentes a uma porção superficial apropriada, desde
que não interfiram no exercício dominial —, parece haver menor dissenso entre diversas
correntes de pensamento que se aplicam ao tema da função social do domínio particular.
Esse acordo, adivinha-se, deve tributar-se muito a um certo quadro histórico em que
avultou a idéia de função social da propriedade como reação a conhecidos excessos
liberais. Em outras palavras, numa esfera fundacional, que preferentemente se insinua,
como se observou, de modo negativo, o acordo primeiríssimo dá-se em volta do
reconhecimento de que a propriedade particular não está isenta de limites por sua
mesma essência —ou como alguém referiu, em seu ―núcleo ontológico‖—, ao revés da
tese que, alheia à dimensão social do domínio privado, se remete à idéia da
possibilidade absoluta e irresponsável do abuso dominial13
. Seguidamente, além dessas
limitações, congregam-se várias correntes em afirmar a admissibilidade de restrições
11 “Homo non ordinatur ad communitatem politicam secundum se totum et secundum
omnia sua” (S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, Ia.-IIæ., q. 21, art. 4, ad 3um).
Paradigmático: Jean Madiran, Le principe de totalité, ed. Nouvelles Editions Latines, Paris,
1963, passim.
12 Essencial: Charles De Koninck, De la primauté du bien commun contre les
personnalistes, ed. L‘Université Laval –Fides, Québec-Montréal, 1943, passim.
13 Cfr., brevitatis causa, Carlos Mario Londoño, Libertad y Propiedad, ed. Rialp,
Madrid, 1965, maxime p. 23 et sqq.
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políticas, determinadas positivamente e relativas a circunstâncias culturais, temporais e
espaciais.
Como ficou dito, as perspectivas da função social da propriedade privada, em
nossos dias, são muito devedoras da situação histórica que pode situar-se, ao menos por
uma comodidade de expressão, no século XIX, embora desde logo caiba reconhecer
que, no campo das idéias, seja caso de retroceder o mundo decimonônico às centúrias
anteriores, como fizeram ver, entre outros, Paul Hazard — sobretudo em La crise de la
conscience européenne14
—, Gonzague de Reynold15
e Calderón Bouchet16
. Sem
desprezar, pois, a retrocessão da origem ideológica do século XIX ocidental — a cujo
propósito, por exemplo, o século XVI atuou, em palavras de Emmet Hughes, como uma
grande caldeira, na qual, já então a fervilhar, as ambições econômicas tratavam de
libertar-se da Ética17
—, pode dizer-se, a despeito de que haja nisto uma reconhecida
simplificação, serem as idéias modernas e contemporâneas sobre a função social da
propriedade particular um reflexo, em larga medida, da questão social singular que,
instaurada nos últimos anos do século XVIII, tomou corpo ao longo da centúria
seguinte. É, sobretudo, porém, no exclusivo plano da realidade econômica e social dos
fins do século XVIII e de todo o século XIX que se inspira uma parte muito
considerável das concepções atuais acerca da função política do domínio privado. Elas
nem sempre, contudo, se estatuem — eis aqui um ponto importantemente destacável—
como avessas dos fatores espirituais do burguesismo decimonônico. Já Werner Sombart
havia registrado que a exigência da vida econômica, individual e social — para todos e
cada um dos homens —, não importa na caracterização de uma natureza econômica
supostamente invariável para todos, por exemplo, igual para um antigo artesão e para
um empresário americano moderno, senão que, assim concluía o grande sociólogo
alemão, o espírito animador da vida econômica pode variar —e de fato sempre variou—
14 Paul Hazard, La crise de la conscience européenne, ed. Fayard, Paris, 1961, passim ;
ID., La pensée européenne au XVIIIème siècle, ed. Boivin, Paris, 1946, passim.
15 Gonzague de Reynold, Le XVIIe siècle, ed. de L‘Arbre, Montreal, 1944, passim.
16 Rubén Calderón Bouchet, La Ruptura del Sistema Religioso en el Siglo XVI, ed.
Dictio, Buenos Aires, 1980, passim.
17 Emmet John Hughes, Ascensão e Decadência da Burguesia, tradução ao português
por Cypriano Amoroso Costa, ed. Agir, Rio de Janeiro, 1945, p. 50 et sqq.
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indefinidamente18
. Natureza econômica do homem não é o mesmo que tipo econômico
humano. Para Sombart, no íntimo do tipo do homem econômico do século XIX
encontra-se uma alma infantil, a inspirar e dominar a vida sob o ideal de quatro valores:
a) o da grandeza corpórea e sensível; b) o da rapidez do movimento; c) o da novidade; e
d) o do sentimento de poder19
. Sombart, todavia, parece que tendeu a equivaler os
fatores espirituais do burguesismo, por assim dizer, clássico a elementos de caráter
psicológico — desse modo, tratando de explicar o conceito de ―espírito da vida
econômica‖, disse ele que essa noção se tomava no sentido de ―fatores espirituais ou
psíquicos”20
. Neste passo, mais aguda se mostrou a análise do grande pensador russo
que foi Nicolas-Alexandrovitch Berdiaeff, para quem o burguesismo constitui“um
estado e uma orientação do espírito, um modo especial de sentir a vida”, em outros
termos: uma cosmovisão —também com seu influxo na vontade e nos sentimentos— e
não uma simples prática social ou econômica, nem apenas, este é aqui o ponto
fundamental, ―uma categoria psicológica e ética‖, senão que, isto sim, “uma categoria
espiritual, ontológica”21
. Dessa maneira, ainda que se possa falar de uma sociedade
burguesa no século XIX —um fenômeno relacional tomado metaforicamente como uma
substância—, Berdiaeff viu mais profundamente que, ao lado dessa acepção exterior,
imprópria e apenas social do burguesismo decimonônico, caberia falar de um
burguesismo mais profundo e espiritual, atado, com uma espécie de fé secular, à
visibilidade do mundo corpóreo —“o burguês é escravo do palpável…”22
— e voltado a
uma tentativa de racionalização absoluta da existência humana, com o corolário de uma
“harmonia social perfeita”23
, a que se lançava o burguês ao ponto de justificar, sem
quebra de sua cosmovisão de matiz persistentemente egótico, um submetimento
18 Werner Sombart, Le bourgeois –Contribution à l’histoire morale et intellectuelle de
l’homme économique moderne, tradução francesa de S. Jankélévitch, ed. Payot, Paris, 1926, p.
10 et sqq.
19 Id., op. cit., p. 209.
20 Id., op. cit., p. 11.
21 Nicolas Berdiaeff, De l’esprit bourgeois, tradução francesa de Elisabeth Bellençon,
ed. Delachaux et Niestlé, Neuchatel-Paris, 1949, p. 41.
22 Id., op. cit., p. 48.
23 Id., op. cit., p. 53.
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plenário ao poder exterior —o burguês, disse Berdiaeff, ―não pode existir sem
autoridade exterior e é para ele, em primeiro lugar, que a autoridade se criou”24
(eis aí
como se conjugam egotismo e submissão ao poder externo). Essa potestas social tem a
missão suprema, para o burguesismo clássico, de construir tudo geometricamente,
inclusos novos homens e uma nova Sociedade política. A cosmovisão do tipo burguês
decimonônico nutria-se, assim, aqui e ali, com ou sem adequada ciência de sua fonte, da
seiva filosófica que lhe vinha das fantasiosas concepções de Thomas Hobbes e de
Rousseau — marcantemente as relativas aos mitos de estado de natureza, pese embora
seus signos opósitos nestes autores, e de contrato social — e também fortalecia-se nas
origens do pensamento moderno, indo buscar ao cartesianismo, como fez ver Régine
Pernoud, a idéia de tábua rasa inspiradora da matriz política de ―uma sociedade ideal,
geométrica, reduzida a elementos simples, na qual nada é mais fácil do que partir
novamente do zero‖25
.
Por isso, se bem a questão social dos séculos XVIII-XIX — com suas notas de
proletarização e de pauperismo resultantes da prática das concepções liberais26
— possa
explicar as razões da particular emergência da preocupação com o uso social dos bens
particulares, o que nem sempre se advertiu —e, acaso, ainda não se vê com
freqüência— foi, primeiro, que a função societária do domínio privado não é só nem
principalmente uma resposta de cariz econômico dirigida ao estrito quadro histórico
daquela referida questão social. Em segundo lugar, que a idéia singela de um aparente
antiliberalismo exterior poderia resultar, como de fato ocorreu em alguns casos, numa
simples inversão do burguesismo clássico: a esse propósito, Léon Bloy, examinando o
tópico burguês ―pobreza não é vício‖, assinalou que se tratava aí de uma antífrase,
porque, ao revés, para o burguês, ―la pauvreté (disse Bloy) est l‘unique vice, le seul
peché‖27
. Mas, ao adversar o burguesismo decimonônico, o que, algumas vezes, se
24 Id., op. cit., p. 48.
25 Régine Pernoud, As origens da burguesia, tradução portuguesa, de F.S., ed.
Publicações Europa-América, Coleção Saber, Póvoa de Varzim, 2a ed., 1973, p. 116.
26 Cfr. José Pedro Galvão de Sousa, Clovis Lema Garcia e José Fraga Teixeira de
Carvalho, Dicionário de Política, ed. T. A. Queiroz, São Paulo, 1998, p. 444, sub voce ―questão
social‖.
27 Léon Bloy, Exégèse des lieux communs, ed. Gallimard, Paris, 1968, p. 43.
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insinuou nas concepções a ele nominalmente opostas foi a idéia de um burguês posto ao
avesso, em que a pobreza passou a configurar uma grande, senão mesmo a única virtude
social —dir-se-ia então “la richesse est l’unique vice, le seul peché”. É até saliente que
essa possibilidade de inversão não constitui, na lógica interna do burguesismo, de todo
estranhável ao ideário do antigo burguês, porque, com rigor, não se poderia excluir que
o tipo de burguês clássico era um nostálgico do bon sauvage. E esse modelo da
imagética roussauniana acomoda as recorrências comuns ao miserabilismo, incluídos os
atuais, até porque se conforta vistosamente com a sedução de um igualitarismo que
parece possível — o da miséria —, e, por óbvio, sustentável. Dessa maneira, uma parte
importante das correntes que se foram formando acerca da função social do domínio
alimentaram-se dos mesmos nutrientes filosóficos que robusteceram o tipo do burguês
decimonônico28
, limitando-se a enfrentar, na linguagem de Werner Sombart, o corpo do
burguesismo liberal, mas não seu espírito, a adversar-lhe aspectos exteriores, não,
porém, a alma do liberalismo: o mundo do burguesismo clássico não se constituiu pela
situação econômica dos homens, bem o disse Berdiaeff, senão que pela regência mais
profunda do dinheiro separado do espírito29
, situação espiritual que permite avistar
existirem, ao lado de ricos burgueses, burgueses pobres30
. Virou-se ao avesso o burguês
decimonônico, mas em sua pele interna muita vez sobreviveu o espírito do burguesismo.
Já não se trata, pois, de um quadro segmentar da história, situado no século XIX: o
burguesismo persiste em todo tempo.
Postos em prática os ideais que se aninhavam no espírito do burguês
decimonônico —a saber, como os apontou Sombart, grandeza corpórea e sensível,
rapidez de movimento, gosto pela novidade e sentimento de poder —levaram eles, na
esfera dos bens imóveis, conforme diagnosticou Hedemann, ao endividamento, à
28 Cfr., a propósito, Philippe Breton, Le culte d‘Internet, in Le Monde diplomatique –
Manière de voir, maio-junho de 2002, n. 63, p. 21, primeira coluna.
29 Berdiaeff, op. cit., p. 44.
30 ―O rico espiritualmente avaro de sua riqueza e cobiçando as outras, submetido pelo
‗mundo‘, é um burguês… Mas o pobre, que cobiça suas riquezas e deseja tomar seu lugar, é,
tanto quanto ele, burguês...‖ (Berdiaeff, op. cit., p. 51).
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pulverização e ao egoísmo da terra31
. A esses efeitos históricos do liberalismo político e
econômico, sinalizando o maltrato da natureza das coisas — de que é nota gráfica a
rotineira mobilização dos imóveis para garantia do crédito —, podem opor-se, é certo, e
em muita parte elas se adotaram, medidas pontuais (p. ex., o robustecimento do instituto
do bem de família; incentivos em favor do fortalecimento da estabilidade da moradia
familiar, sobretudo no campo; fomento de cultivos e edificações), mas não se podem
adversar esses efeitos liberais, em seu espírito, sem a recuperação do conceito realista
da Sociedade política e do papel que nela desempenham o primado do bem comum e as
liberdades concretas dos indivíduos e dos corpos intermédios. Por isso, em que pese a
uma concordância inaugural de variadas correntes em torno de apontar uma função
social para a propriedade particular, mais além desse passo a questão é toda outra
quando se trata de sua conceituação positiva: o consenso que se forma quanto a ela
talvez não vá mais longe que o da mera designação. Reconhece-se até mesmo que seu
objeto é freqüentemente vago32
, genérico, lábil, tanto mais se diversificando, com
diluição do consenso, quanto mais se aventem especificar-se essa função social.
Malgrado essas divergências pontuais, é possível, de toda sorte, extrair um núcleo duro
que explique, no tocante com a função política da propriedade particular, o encontro33
mínimo de correntes tão diversas, laicas e religiosas, sempre suposto que suas
afirmações estejam a satisfazer o dever fundamental da veracidade: assim é que, ao
admitir-se a existência de uma função social da propriedade privada, a) reconhece-se
com isso, à evidência, um direito de propriedade particular e a exclusividade do titular
dominial quanto a servir-se normalmente da coisa dominada. Todavia, ao afirmar-se a
função social dessa propriedade particular, b) está-se também a dizer que ela tem
limites34
, que ela é suscetível de restringir-se, equivalendo a dizer que ela se ordena a
31 Apud Juan Vallet de Goytisolo, Estudios Sobre Derecho de Cosas, ed. Montecorvo,
Madrid, 1973, p. 333.
32 Brevitatis studio, cfr. Louis Salleron, Qu‘est-ce que la propriété?, in Six études sur la
propriété collective, ed. Portulan, Paris, 1947, p. 32.
33 Cfr. José Antonio Alvarez Caperopichi, Curso de Derechos Reales, ed. Civitas,
Madrid, 1986, tomo 1, p. 40-41.
34 Cfr. Jacques Leclercq, Leçons de Droit Naturel, ed. Wesmael-Charlier e Société
d‘Etudes Morales, Sociales et Juridiques, Namur-Louvain, 1955, tomo IV, p. 138.
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um bem superior. o bem comum político. Desse modo, proclamar a função social da
propriedade privada é, de uma parte e por primeiro, reconhecer a existência de um
direito exclusivo do titular de domínio, exercitável e oponível em face dos indivíduos,
dos corpos intermédios entre eles e o Estado e até mesmo deste mesmo Estado — de
que se segue a inclusão do tema na esfera do dever ético público35
—, e, de outra parte,
afirmar a existência de deveres do proprietário.
Compendiada assim a discussão nos extremos desse binômio tensivo direitos-
deveres dominiais, sua apreciação pode reconduzir-se, no fim e ao cabo, à relacionação
entre o bem particular e o bem comum político ou bem da cidade. Importa aqui referir
que, entre os juristas romanos, o direito de propriedade privada situou-se no âmbito do
jus gentium — um direito comum a todos os homens (i.e., a todas as gentes36
) — e,
nessa trilha, que o Digesto previa o direito de o primeiro ocupante apropriar-se das res
nullius, reportando-se ao caráter natural37
desse direito. No concernente aos imóveis, os
juristas romanos afirmaram, na mesma direção, que as terras, naturalmente comuns
embora a todos os homens, haveriam de dividir-se entre eles, também naturalmente (jus
gentium), para evitar conflitos. Símile afirmação encontrar-se-á também, séculos mais
tarde, nas Etimologias de S. Isidoro de Sevilha: são de Direito natural simpliciter, disse
ele, a união do homem e da mulher, o reconhecimento dos filhos e sua educação, a
posse comum de todas as coisas — communis omnium possessio —, a liberdade para
todos e o direito a adquirir tudo quanto o céu, a terra e o mar encerram38
. Esse Direito
natural, afirmou S. Isidoro, é comum a todos os povos ―y existe en todas partes por el
simple instinto de la naturaleza — ubique instinctu natura –, y no por ninguna
promulgación legal‖. É no campo do Direito de gentes — assim chamado por S.ISIDORO
em vista de sua vigência em quase todos os povos — que incluiu ele os imóveis,
35 Johannes Messner, Ética Social, Política y Económica a la Luz del Derecho Natural,
tradução castelhana de José Luis Barrios Sevilla, José María Rodríguez Paniagua e Juan Enríque
Díez, ed. Rialp, Madrid, 1967, p. 1.037.
36 Cfr. o paradigmático livro de Santiago Ramírez, El Derecho de Gentes, ed. Studium,
Madrid, 1955, passim.
37 “Quod enim nullius est, id ratione naturali occupanti conceditur” (Digesto, Livro
41, título 1, n. 3).
38 S. Isidoro de Sevilha, Etimologias, Livro 5, n. 4.
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litteratim: ―O direito de gentes manifesta-se na ocupação de terras, construções de
edifícios, fortificações, guerras, prisioneiros, servidões, restituições, tratados de paz,
armistícios…‖39
. Já no século XIII, ao tratar da justiça, na IIa.-IIæ. de sua Suma
Teológica, S.TOMÁS DE AQUINO dedicou a questão 66 ao tema do furto e da rapina, e,
ali, nos artigos 1o e 2
o, ocupou-se de responder a duas indagações: a) se é natural ao
homem a possessão de bens exteriores —utrum naturalis sit homini possessio
exteriorum rerum— e b) se é lícito a alguém possuir uma coisa como própria —utrum
liceat alicui rem aliquam quasi propriam possidere. No respondeo do art. 1o da
apontada questão 66, S. Tomás distinguiu nas coisas externas a natureza e o uso, para
concluir que, no tocante com o último, ―o homem tem o domínio natural das coisas
exteriores‖ — habet homo naturale dominium exteriorum rerum, afirmação a que
retornou para solver a primeira objeção prévia que ele próprio formulara, como era da
metódica da Suma: “o homem (respondeu o filósofo) tem o domínio natural dessas
coisas, quanto ao poder de usá-las”. É no art. 2o da versada questão 66 da IIa.-IIæ. da
Suma que S. Tomás expôs decisivamente a matéria de que aqui nos ocupamos. Por
primeiro, no respondeo desse artigo, disse ele que o poder de gestão e de disposição das
coisas exteriores é lícito ao homem e, além dos três motivos que elencou ali em favor
dessa licitude, razões adicionais podem ainda alinhar-se a seu pensamento, como, inter
alia,
a) o fomento da inclinação criadora dos homens no âmbito econômico,
b) a satisfação de uma expectativa de segurança familiar,
c) o favorecimento da estruturação natural da Sociedade política,
d) a repartição do poder na Sociedade e
e) a garantia das liberdades concretas 40
.
A noção mesma de que o domínio privado constitui, como acabamos de ainda
uma vez indicar, uma garantia das liberdades — põe à mostra duas condições para sua
reta configuração, ambas com matiz pessoal e social: uma no plano extensivo, a outra,
de caráter qualitativo. A primeira, porque, tanto melhor será essa garantia, quanto mais
se difunda a propriedade particular: sua fluidez — vale dizer, sua possibilidade e
acessibilidade — por meio do trabalho normal é indispensável a seu efetivo papel de
39 Id., Livro 5, n. 6.
40 Juan Vallet de Goytisolo, op. cit., p. 122-123.
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garantia. Como disse Louis Salleron, ―a propriedade privada é boa e é excelente‖, mas é
preciso “que ela seja fluida”41
. Nesse âmbito extensivo, o favorecimento do tráfico
imobiliário — rompendo-se entraves financeiros, jurídicos, fiscais, psicológicos e
sociológicos42
que dificultam ou até interditam a aquisição dominial —, além de
subsidiar a satisfação do objetivo de garantir as liberdades pessoais, impede que a
concentração de bens em mãos de alguns poucos particulares leve a um excesso de
poder no nível da soberania social suscetível de influir na soberania política. Disse
muito bem Rafael Gambra que os males da propriedade se curam com mais
propriedade43
.
A outra e segunda das referidas condições de retidão do domínio privado como
garante das liberdades está posta na estabilidade suficiente da situação dominial —
porque não se fomentam verdadeiramente aquisições de bens dos quais não se esperem
desfrute razoavelmente seguro e conservação temporal adequada. Há, pois, razões em
prol da segurança jurídica estática — asseguração de estabilidade política do domínio
— e da segurança dinâmica, fluidez social da propriedade, e é fácil advertir que essas
seguranças se hierarquizam: o primado da segurança estática advém de sua condição
indispensável a uma justificável fluidez: os possíveis adquirentes de um bem estão a
pôr-se sempre esta questão, assim observou Salleron, qual a de saber se vale a pena
adquirir o bem, e a resposta positiva supõe a segurança da posse, do gozo e da duração
no tempo44
, vale por dizer, a segurança estática. Não se justifica o trânsito dominial se
se antevê insuficiente a garantia de estabilidade do domínio.
A esta altura de nossas indagações, seria tentador considerar que o registro de
imóveis — na medida em que, como é tradicional afirmar, tem por fim a segurança
jurídica nessa dúplice apontada vertente, estática e dinâmica — nisso desvela a
derradeira importância de sua função política, qual a de conservar, primeiro, a
41 ―Or la propriété privée est bonne, et excellente. Ce qu‘il faut, c‘est qu‘elle soit
fluide‖ (Louis Salleron, Diffuser la proprieté, ed. Nouvelles Editions Latines, Paris, 1964, p.
17).
42 Id., op. cit., p. 16.
43 Rafael Gambra, La Propiedad: Sus Bases Antropológicas, in VV.AA., Propiedad,
Vida Humana y Libertad, ed. Speiro, Madrid, 1981, p. 10.
44 Salleron, op. cit., p. 15-16.
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estabilidade jurídica das situações reais imobiliárias e, seguidamente, a de garantir
juridicamente a fluidez dos direitos correspondentes. Como é fartamente sabido, de
maneira diversa do que se passa com o domínio das coisas móveis — cujas situações
estática e de tráfico, de comum, se satisfazem com a tradição e a notoriedade da posse
—, quando se trata de bens imóveis, a complexa situação da cidade, sobretudo a
moderna e contemporânea, exige um sistema juridicamente ordenado de publicação
jurídica das situações quodammodo jurídicas que lhes correspondam. Estancar neste
passo a discussão, se bem já se tenham apontado fundamentos tradicionais da função
social do registro imobiliário, frustraria, contudo, a consideração de um ponto nuclear
da primeira tarefa juspositiva referente ao domínio privado. Uma vez mais cabe recorrer
às lições de S. Tomás de Aquino ao assinalar, a propósito da atribuição pessoal de bens,
que ―la distinción de posesiones no es de derecho natural, sino más bien derivada de
convención humana, lo que pertenece al derecho positivo…‖45
. Esse texto é
fundamental — e sua importância nunca é demasiado sublinhar. Numa passagem
anterior da Suma, S. Tomás ensinara não haver razões, numa perspectiva absoluta, para
que um imóvel pertença a uma pessoa de preferência a outra, mas, remetendo a
Aristóteles46
, observou que, já numa visualização relativa, haverá motivos — p. ex., a
conveniência do cultivo ou do uso pacífico da res — para que o imóvel seja apropriado
por um ou por outro47
. Esse é o primeiro cometido juspositivo que se refere à
propriedade privada: definir o que é de um e o que é de outro, demarcar as possessões,
evitar, pela só forma e de maneira preventiva, boa parte dos conflitos sobre o domínio
predial.
Uma relacionação de submetimento das coisas aos homens — ou, noutra
perspectiva, uma relação de domínio humano sobre coisas — não pode consistir, no
ambiente da cidade, em um relacionamento apolítico, tal não estivesse o homem, por
natureza, destinado a viver em sociedade, envolvido pelas concretas exigências de uma
vida relacional inter-humana e com as coisas. Se a natureza, que impõe aos homens um
vínculo de dominação das coisas, não responde, assim se viu, a quem deva atribuir-se a
titularidade de cada um desses concretos relacionamentos entre os homens e as coisas,
45 S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, IIa.-IIæ., q. 66, art. 2o, ad 1um.
46 Cfr. Aristóteles, Política, Bkk. 1.263 a.
47 S. Tomás de Aquino, op. cit., IIa.-IIæ., q. 57, art. 3 o, respondeo.
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essa relação, atualizável por meio de atividades ordenadoras, demanda o concurso do
Direito positivo e da organização política. Se não basta a posse de alguns bens —
nomeadamente os imóveis — para, a seu respeito, acautelar a estabilidade e a fluidez
dominial, cumpre à cidade organizar um sistema que garanta a primeiríssima das
funções do domínio particular enquanto ordenado à polis —vale por dizer, a
primeiríssima das funções sociais do domínio privado: defini-lo em cada caso, demarcá-
lo, delimitar o que é de um do que é dos outros. E essa principal função política do
domínio privado imobiliário está comumente entregue ao registrador predial: é ele o
protagonista de sua execução.
Quanta vez, aventurando-nos a meditar acerca dos princípios registrais —
detendo a atenção, não raro, apenas em seus recortes técnicos —, abdicamos assim de
considerar, para além da curta visão poiética, que a determinação e a especialidade
objetivas identificam e demarcam a res certa; que a fé pública registrária, a legitimação
tabular e a especialidade subjetiva definem o que se atribui a cada um — e a isso, na
ordem normal dos acontecimentos, é o que se deve designar res justa concreta; que o
princípio da legalidade e o do trato sucessivo garantem de comum contra as fraudes, as
falsificações e os esbulhos possessórios. E é por isso, e é porque nos temos acaso
distraído dessa função do registrador que, muitas vezes, corremos o risco de já não
reparar em sua dignidade juris-prudencial e já não estimar como devido seu
indispensável papel societário. E dizer que ele define a res certa, assegura aquilo que, ut
in pluribus, certifica a res justa imobiliária e, com isso, é uma garantia das nossas
liberdades.
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4.
SOBRE A QUALIFICAÇÃO NO REGISTRO DE IMÓVEIS*
RICARDO HENRY MARQUES DIP
Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Acadêmico da Real de Jurisprudência e Legislação de Madrid.
SUMÁRIO: Introdução - Do conceito de qualificação - Do conceito específico de
qualificação registral - A qualificação, enquanto decisão prudencial - A qualificação e os
princípios registrais - Outras características da qualificação registrária - Natureza jurídica da
qualificação registral - Supostos e limites gnoseológicos da qualificação registral - Consideração
analítica do juízo qualificador - Qualificação dos títulos judiciais - Agentes, prazos e recursos da
qualificação registral – Breve anotação crítica - Nota final - Obras a que o texto remete.
“Já por diversas vezes imaginei escrever um romance sobre a aventura dum
yachtsman inglês que em virtude de cometer um ligeiro erro de cálculo na sua rota, veio a
descobrir a Inglaterra, sob a impressão de que se tratava duma nova ilha nos mares do Sul.
(...)
“O homem do iate pensou que era o primeiro a encontrar a Inglaterra, e eu pensei
que era o primeiro a encontrar a Europa. Tentei, por mim próprio, encontrar uma heresia e,
quando já lhe tinha dados os últimos retoques, descobri que se tratava de ortodoxia”
(Chesterton, Ortodoxia).
“Zolli comparava a sua conversão à experiência de alguém
que passeia na fronteira do seu país e de repente se encontra
* Contribuição aos estudos do XVIII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil
(Encontro Elvino Silva Filho), realizado em Maceió-AL, no período de 21 a 25.10.1991.
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em uma terra nova, embora a paisagem não mude”
(Tommaso Ricci, a propósito da conversão de Israel Zolli – 30 Dias, março de 1991).
“... como siempre en los momentos que suelen preceder a las épocas de creatividad,
la ciencia se vuelve sobre sí misma. Indaga en el sentido de su propia tradición...”
(Zuleta Puceiro, Teoría del Derecho).
Introdução
Ao elaborar este pequeno trabalho como contribuição aos estudos do XVIII
Congresso dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil esbarrei no volume de
informações relativas à matéria a que me dediquei – a qualificação registral. Bastaria
dizer que só um dos livros de Chico y Ortiz a respeito do tema (Calificación Jurídica,
Conceptos Básicos y Formularios Registrales) possui quase setecentas páginas; demais,
a bibliografia a que tive acesso, em boa medida graças à contribuição de Sylvio Paulo
Duarte Marques, reúne dezenas de livros e estudos autônomos; por fim, os julgados que
pude examinar, em parte por mim pesquisados e classificados ao longo de seis anos,
noutra parte admiravelmente ordenados por Jersé Rodrigues da Silva, superam o
milheiro! Que fazer com tanta documentação, com essa massa informativa tamanha, ao
lado de uns indeclináveis deveres de meu estado familiar e profissional, a cortar-me o
tempo propício à consideração detida de tudo isso?
Felizmente, não é caso nunca de um cultivo feiticista da informação – o cult of
information a que se referia Roszak: antes, é preciso considerar, explica-o Pérez Luño
(11), a “radical historicidade do fenômeno jurídico”, impondo aos estudiosos do direito
a tarefa irrenunciável de “contribuir a hacer fluida la comunicación entre la experiência
jurídica y el contexto temporal en el que ésta se produce y desenvuelve”. Este meu sábio
amigo e mestre que foi Alexandre Correia costumava recordar, com uma indisfarçável
ironia contra os idealismos, a estória de um conjecturável tratado alemão sobre os
elefantes: seus doze volumes de duas mil folhas cada, versando a geografia dos lugares
em que o elefante pode viver e a geografia dos locais em que ele não pode viver, os
alimentos que o elefante pode comer e todos os alimentos que ele não pode comer,
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 67
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concluíam-se com uma pequena anotação: “não foi possível comprovar a existência dos
elefantes”. Lembra-me aqui, ainda, que Lorca Navarrete alude a um pensador
português, Francisco Sanchez, que, em fins do século XVI, representava o mais genuíno
ceticismo filosófico: quod magis cogito, magis dubito. (De minha parte, não devo
sucumbir à tentação de que, quanto mais me documente, menos escreva.) Reconhecer,
ao contrário, que os saberes jurídicos, tributários de muitos métodos, se encontram
singularizados na história, num “perene delineamento de problemas e soluções”, como
disse López de Oñate (63), é admitir a realidade, a concretude, a singularização histórica
do direito, sem com isto fechar a mente, numa atitude historicista, à verdade dos
princípios da sindérese, universais e com conteúdo objetivo, e à de conclusões da
ciência moral. Ao reverso, abrir-se aos problemas reiteradamente propostos e a suas
soluções históricas, para neles também apreender o permanente e fundamental, é abrir a
ciência à própria tradição (Zuleta Puceiro), esse “passado que sobrevive e tem virtude
para fazer-se futuro” (Vítor Pradera). Assim, é de algum modo útil, aqui e agora,
considerar a experiência jurídica nacional da qualificação registrária, exatamente para
buscar, em seus problemas e soluções históricos, sua conformação tradicional, sua
“permanência no desenvolvimento” (Antônio Sardinha).
Inclinado a minutar estas linhas, repito, vi-me então às voltas com a massa de
informações doutrinárias e judiciais relativa à qualificação registral, como que a me
cobrar um tempo de que eu não dispunha e a me acusar de descaso com sua autoridade e
seu passado. Aprendi em Santo Tomás que as pessoas necessitadas de direção e de
conselho sabem aconselhar-se a si mesmas, desde que em estado de graça, ao menos
enquanto pedem conselho a outras pessoas, e são capazes de distinguir o bom do mau
conselho (“illi qui indigent regi consilio alieno saltem in hoc sibi ipsis consulere sciunt,
si gratiam habent, ut aliorum requirante consilia, et discemant consilia bona a malis –
Suma Teológica, IIa.-IIae., Q. 47, art. 14, ad secundum). Nada impede que este
conselho seja buscado por meios vários, entre os quais as leituras, e não encontro
melhor indicação da maneira como devo agora agir diante do vulto de documentos que
me entulham um pequeno escritório, do que com estas sábias palavras de Dínio Garcia
(87): “o volume de informações contribui para a organização dos sistemas até um certo
ponto. Ultrapassados determinados níveis a informação desorganiza, saturando os
canais e aturdindo os destinatários”. Isso se aplica ao meu sistema intelectivo, que tem
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lá seus pobres modos e parece não poder controlar e ordenar “saberes aluvionais”, como
disse Zuleta.
Por isso, dando de ombros, por ora, a parte do rico material informativo que
compulsei – mas que não cito (com Vizcaíno Casas, caberia acrescentar: con perdón) –,
aguardo que o talento e o engenho de outros complementem e suplementem as reflexões
que aqui faço a meu modo.
* * *
A filosofia jurídica deve ser uma reflexão acerca dos fundamentos do direito,
realidade e conceito especificados no gênero ético, e não uma sistematização ou do
direito posto ou de intentos dialéticos de modificação social (o que não vai além de uma
instrumentação poiética). Observa Zuleta que a nova filosofia “progride” sobre a base
de recusas da tradição; por isso, indagação que se esclerosa com a rigidez de uma
constante obsessão do novo, “reivindica para si um tipo de autoridade subtraída por
princípio à crítica”. Encontramo-nos com a “fixação obsessora do tempo que passa”, a
cronolatria epistemológica a que se referiu Maritain no paysan de la Garone.
O resultado é o relativismo, o ceticismo, a ética de situação e o direito de
situação, em suas manifestações irracionalistas que se apóiam, freqüentemente, em
politicismos totalizantes – como é o caso da corrente do direito alternativo, tão caro às
linhas liberacionistas contemporâneas que, sob rótulo teológico, estão fortemente
influídas de ideologia marxista.
O direito atual e sua filosofia são produtos de uma profundíssima crise: a
laicização do direito – que se poderia enraizar em Grotius e Hobbes – responde à mais
ampla talvez secularização de todos os tempos, em que se elabora e se procura impor,
como produto cultural massivo, uma cosmovisão “formalmente desinteressada pelos
problemas do sentido último da vida” (Zuleta). Respira-se a atmosfera despreocupada
de indagações escatológicas, mas sempre como quem vive dentro de um balão de
oxigênio, que a qualquer momento pode ser desligado: o “modelo” do homem coetâneo,
do homem “do seu tempo” é o homem uniforme, o homem mediocre a que se refere
Ingenieros, o homem médio de Ortega y Gasset, o que não ousa ter verdadeira
personalidade, o que busca a metanóia suprema do igualitarismo: pensar, agir e viver
como todos seus vizinhos pensam, agem e vivem, segundo o modelo (que lhe ensinam
ser o) do Homem ahistórico, abstrato, impecável, funcionário admirável de um
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admirável mundo novo. Seu direito é o produto arbitrário ou da vontade do legislador
(normativismo) ou da vontade do juiz (irracionalismo judiciário): ali, a lei que lhe
imponham, não importa com qual conteúdo; aqui, o resultado de uma consciência
fundante de quem julga com descaso do direito positivo, das conclusões da ética e dos
princípios sinderéticos; sempre, em todo caso, com o desprezo, ontológico ou ao menos
gnoseológico, da ordem universal imposta por Deus Criador; muitas vezes ainda,
confessando-se uma certa fé neopelagiana e virtualmente panteísta, credo que, no limite,
para nada considera a dignidade do homem concreto, como o mostra, p. ex., em nossos
dias, o número aterrador dos abortos provocados. O direito coevo, pois, corresponde a
essa cosmovisão nihilista: agnóstico do justo, seu parâmetro – critério exterior – é, no
extremo, o de uma ideologia totalizante que suplanta, ao cabo, o subjetivismo a que
radicalmente se reduziria. Mas o processo de saber amparado nessa paradigma
ideológico é um processo sociologicamente vital, de sorte que o parâmetro totalizante é
ontologicamente fluido: não há princípios entitativos a considerar (se houvesse, romper-
se-ia o agnosticismo), há somente resultados dialéticos artificialmente objetivantes
(objetivação subjetivista, exógena, como critério de leitura casuística), suscetíveis de
captação intuitiva. Daí o prestígio da ética de situação – muitas vezes empregada para a
conciliação de correntes opostas, conjugadas num minimalismo ético, à base de uma
intuição que, hic et nunc, redunde materialmente na admissão de uma verdade moral
objetiva – e do direito de situação, fundado em decisões judiciárias, às quais se
empresta um eminente caráter criador, nos limites dos casos decididos. Essa limitação
ao caso configura, ademais, a única possibilidade “científica” do modernismo: a
estendida tendência nominalista da ciência moderna não poderia mesmo deixar de
atingir a ciência e a metodologia jurídicas, porque uma concepção filosófica
manifestamente antiuniversalista não é idônea para superar os limites dos casos, que
são, no fim, suas únicas realidades mensuráveis (realidades deficientes, que não se
ligam de nenhum modo à realidade do universal), seus exclusivos fenômenos de
captação – apreendidos como única objetividade epistêmica possível. Ora, a
irrepetibilidade concreta dos casos propicia a convicção, de todo equivocada, de que as
soluções jurídicas são pautadas pela concretude da situação: não somente a que, num
certo plano, se desvela no nível fenomênico, com menoscabo das normas e do direito,
“mas também a que, em definitivo, formula o suposto 'direito': a consciência do juiz,
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consciência que ultrapassa seu caráter de imperativo fundamental da ação, para
constituir-se em imperativo fundante da ação. De modo que não há norma exterior,
como não há objeto outro de estimação que o próprio caso; assim como se poderia falar
da moral de situação, surge um direito de situação, agravado por sua identidade com
uma consciência fundante antiintelectual (pois se não há objeto universal...), ditada por
intuições perceptivas ou emotivas” (cfr. nosso Pequenas notas e Registros para a
regulamentação dos Registros e das Notas). Ib.: “Esse modernismo jurídico abdica, por
força de sua lógica interna, do conhecimento das causas e dos princípios (e dos fins,
portanto), remanescendo no âmbito de uma procura de leis supostamente objetivantes,
que se encontram nos fenômenos símiles. Daí resulta o prestígio da casuística,
sobrelevada a ponto de empalidecer a virtude da prudência, e a confiança mais ou
menos implícita em que o somatório das decisões casuais evoluirá no sentido do
progresso”.
Contra essa avalancha de equívocos – e, em todo caso, sem esperança de uma
solução segmentar, que não passe antes por questões superiores – havemos de opor uma
firme resistência jusfilosófica, que comece por restaurar o papel dos princípios
sinderéticos, da ética e – custa acreditar que isso seja uma exortação de um
jusnaturalista! – o papel do direito positivo, enquanto “a lei é essencialmente um
produto ou criação da sindérese e da prudência governativa” (Santiago Ramírez). É
preciso recuperar a sadia subordinação à realidade das coisas.
É dentro dessa linha de idéias que procuraremos situar a qualificação
registrária, juízo e processo prudenciais, que se arrimam decisivamente a essa
hierarquização sindérese – ética – direito positivo, com que se compreendem a medida
normativa e os fatos, que depois se interpretam, concretizando-se ao cabo as exigências
da segurança jurídica, dentro do reto critério de submissão à realidade. Antigamente,
dizia Chesterton, diante da esquisita euforia que alguns pareciam sentir quando se
esfolava um gato, os pensadores costumavam ou negar a existência de Deus – eram os
ateus –, ou negar a união presente entre Deus e os homens – assim os cristãos; agora, os
nossos modernos pensadores, entre os quais socioteólogos e justeólogos – ou como quer
que se chamem – descobriram outra opção para reduzir as diferenças entre os ateus e os
crentes: negam a existência do gato.
* * *
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Por meio do Decreto 1.318, de 30.01.1854, o Imperador Dom Pedro II mandou
que no Brasil se executasse a Lei 601, de 18.09.1850, segundo o Regulamento que por
esse Decreto se editava, assinado pelo Ministro Luiz Pedreira do Couto Ferraz,
Secretário de Estado dos Negócios do Império.
A Repartição Geral das Terras Públicas (criada pela Lei 601), entre outras
atribuições indicadas no Regulamento de 1854, deveria fiscalizar a distribuição das
terras devolutas e promover o registro das possuídas até a data de sua publicação (§§ 5.º
e 8.º, art. 3.º e art. 20 do Regulamento). Para a fiscalização, os Juízes Municipais
exerciam a função de conservadores (art. 87), processando os que das terras devolutas
se apossassem, lhes derrubassem os matos ou neles lançassem fogo (arts. 81 e 88), e
quanto ao registro das terras possuídas, disso se incumbiram os vigários de cada uma
das freguesias do Império (art. 97).
Muito embora esse registro se efetuasse por mero consentimento formal do
interessado (arts. 91 a 95 do Regulamento), os títulos autônomos não conferiam direito
algum aos aventados possuidores (art. 94), o que não implicava descaso com o modo
por que se havia de levar o registro: o vigário, que podia, para melhor proceder à
inscrição das posses, nomear escreventes, sob sua responsabilidade (art. 97), devia
instruir os fregueses acerca da obrigação do registro (art. 98), noticiando as instruções
durante as missas (art. 99); cabia-lhe, ademais, examinar os dois exigíveis exemplares
da declaração de posse (arts. 93 e 101), “e sendo conferidos por ele, achando-se iguais e
em regra” (art. 101), lançava em ambos uma nota, retendo uma das vias em seu poder
para posterior inscrição. Se, contudo, esses exemplares não estivessem afeiçoados às
exigências regulamentares (V. art. 100), os vigários haviam de instruir os apresentantes
do modo por que deveriam ser elaboradas as declarações (art. 102). Se os interessados,
ainda assim, insistissem no registro, não se poderia, contudo, recusá-lo.
Embora reduzidos à tarefa de um confronto de documentos copiados (art. 100)
– caso em que o óbice à recepção impedia o registro posterior – ou à de uma recusa
apenas acautelatória (art. 102), os vigários das freguesias exerciam, na forma
regulamentar, a função de exame e aprovação dos títulos que se submetiam a registro.
Não eram incumbidos de uma tarefa amanuense, de simples copista, mas de uma função
qualificadora, de apreciação e decisão acerca dos registros a que deveriam proceder,
certo que observar as restrições do âmbito dessa qualificação é já admitir sua existência.
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O Regulamento Hipotecário de 1865, que instituiu entre nós o procedimento da
dúvida registrária, igualmente previa a tarefa qualificadora do Oficial do Registro, que,
“duvidando da legalidade do título” (art. 69), quer por lhe parecer nulo, quer por lhe
parecer falso (art. 74), poderia recusar-lhe a inscrição (no mesmo sentido, confiram-se
os arts. 66 e 71 do Regulamento Hipotecário de 1890). O Decreto 18.542, de
24.12.1928, também submeteu o registro dos títulos à aferição de sua legalidade e
validade pelo Oficial (art. 207), e o Regulamento de 1939 tornou a cogitar da
qualificação registral (art. 215), insistindo na dúvida quanto à validade do título. Por
fim, a vigente Lei 6.015, de 31.12.1973, prescreve: “havendo exigência a ser satisfeita,
o oficial indicá-la-á por escrito” (art. 198), com que, adotando um critério difuso de
requisitos para a inscrição predial, subordina a matéria à qualificação, primeiro, do
registrador, depois do juízo competente para a decisão da dúvida registrária.
Consoante se verifica do exposto, é da tradição do direito brasileiro conferir ao
registrador a tarefa de apreciar e decidir, concretamente, acerca de uma inscrição que
lhe é demandada. Isso afasta o registrador de uma atuação meramente executiva e
subalterna, para engastá-lo numa dimensão jurídica e independente, enquanto no plano
decisório. Esse é o dúplice aspecto de fundo da função de qualificação registral:
a) um, que põe à mostra a natureza juris prudencial – não jurisdicional – da
atuação do registrador, que é um operador jurídico, aptificado a decidir, a emitir um
juízo sobre a inscrição, hic et nunc, de determinado título;
b) outro, que revela a independência decisória do oficial registrador, no limite
primário da apreciação e decisão acerca do registro de um título singularizado.
Diferentes causas e condições têm conduzido, entre nós, a que um e outro
desses aspectos se vejam afrontados em nossos dias:
– de uma parte, (a) o minimalismo das responsabilidades pessoais do
registrador, com a abdicação conseqüente da independência da função, o que vem,
freqüentemente,
– de par com (b) uma ciência anêmica do papel institucional reservado aos
registros e aos registradores;
– de outra, (c) o crescente administrativismo que, sob o color de resguardar o
caráter público dos serviços registrários, tende a diminuir, quando não a asfixiar, a
independência dos Oficiais dos Registros (aqui, enquanto no plano de suas decisões
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singularizadas, porque não vem ao caso examinar o tema da gestão privada dos
serviços, matéria entre nós definida na Constituição de 1988);
– demais, (d) o nominalismo prático que, de modo direto, tem substituído,
freqüentemente, o saber técnico influído por saberes superiores, e, de modo indireto,
tem frustrado a elaboração de um plano institucional estável para os registros. Vem de
molde asseverar que, em mais de uma vez, se tem insistido, a partir da adesão aos
princípios, na formulação de um programa para as instituições dos registros e das notas,
que possua objetividade seguramente apoiada na observância do binômio tensivo
serviço público – gestão privada, com coerência intra-sistemática e o amparo de um
consenso doutrinário que só pode provir de planos realistas aptos a evadir ou superar o
confronto de seus fins e meios com a ordem jurídica vigente e com a experiência
registrária. Esse projeto, sendo tais suas características e exigindo apoio amplificado,
deve preferencialmente provir da criação ou do apoio consistente de centros decisórios
autorizados. Não se podem identificar, decerto, a ciência jurídico-registral e a ação
política de algum modo representada num programa institucional, nem se está a recusar,
com a crítica ao nominalismo prático, que a ciência se forme da racionalização das
técnicas, quando a observação empírica dos conhecimentos técnicos adquire os
requisitos da certeza científica (Tejada, I, 25); tampouco se está a negar que a ciência, a
jurídica também, seja sobretudo o resultado de uma tradição de problemas: a abertura da
ciência a sua própria tradição (Zuleta Puceiro, I, 6; II, 17), reconhecendo-se a
necessidade da indução para a ciência do Direito (Vallet, I, 19), sem com isso cerceá-la
com os espartilhos da jurisprudência problemática, continuadora do formalismo
kantiano (Menezes Cordeiro, 52). Esse reconhecimento da importância do método
indutivo é muito diverso do direito de situação que se estabelece não como resultado de
uma tradição de problemas mas antes como fruto de uma ausência de tradição; sua
possível receptividade do legado cultural, em suma, esbarra na negação dos princípios,
nem sempre consciente, ou no desinteresse deles, numa perspectiva substancial:
encerra-se a objetividade da técnica e da ciência na exclusiva atuação, hic et nunc, de
um poder decisório ou de um saber, que mal escondem o voluntarismo ou ao menos a
primazia da subjetividade. Voltada à sucessão de casos isolados, essa corrente (que se
poderia dizer) de existencialismo jurídico termina por fechar-se à possibilidade
efetivamente científica (isto é, de conhecimento certo, universal e pelas causas),
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reduzindo-se a uma sistematização interna (dentro do que se conhece para o próprio
caso ou, quando muito, no limite, para uma dada sucessão de casos símiles, o que está
longe de constituir universalidade). Ficou sobredito que um programa institucional para
os registros há de assentar necessariamente não apenas na coerência da sistemática
interna (o que supõe alguma objetividade), mas, se se almeja eficaz, num consenso
doutrinário, que se forja menos pela uniformidade de vistas nas soluções casuais do que
pela vinculação radical a um conjunto de princípios solidamente estabelecidos e à
realidade das coisas. Não se trata, insiste-se, da assinação de princípios normativos por
meio de uma tarefa redutora da comunidade científica jusregistral (ora, no Brasil, em
gestação) a um ou mais centros de poder, mas sim da adoção de um balizamento
objetivo que autorize, a partir de princípios dotados de universalidade, a confiança num
plano institucional (vale dizer, de ação política) à altura das necessidades presentes.
Nesse terreno jurídico, em que técnica e ciência do direito, prudência decisória e
atuação política mais ampla, andam muito aproximadas, apenas por acidente seria
possível que do mero imperium de centros decisórios, sem o apoio de soluções técnicas
aptificadas na base da subalternação aos princípios ditados pelos saberes superiores,
emanasse a convergência necessária a um programa institucional de ação política eficaz.
O que emana do voluntarismo é a dissociação da autoridade e do poder, não
preferencialmente sob o ângulo da legitimidade política, mas sob a perspectiva de
alguma desarmonia, desproporção ou inadequação entre a prudência de comando
(enquanto poder da inteligência) e o império das soluções (enquanto poder da vontade).
Assim, sobre seu relevo científico, o tema da qualificação registral adquire
vistosa importância em nossos dias, quando se cogita da regulamentação dos registros
públicos, ante a mais recente Constituição do Brasil. Engastando, para logo, a
ubiquação institucional dos registros e dos registradores, a disciplina da qualificação
registrária responde ao reconhecimento da independência decisória dos que, em resumo,
são os guardiões da propriedade privada e, pois, das liberdades históricas e concretas do
povo. Bem se vê a relevância da matéria.
Do conceito de qualificação
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Qualificação é o ato de qualificar (Lalande, 843); qualificar provém do latim
medieval qualificare, qualificação, de qualificatio (Capitant, 92; Antônio Geraldo da
Cunha, 650; De Plácido e Silva, 1.274), com o sentido de classificação, avaliação,
aptificação ou consideração de que [algo] é apto; ou qualis facere, apreciar as
qualidades, fazer o que é bom, o que é honesto (Mena y San Millán, 7). Estar
qualificado por ou ser qualificado para alguma coisa é “possuir a capacidade ou
competência, isto é, a qualidade disposicional para efetuar uma dada tarefa ou alcançar
um dado escopo” (Abbagnano, 785), é “ter qualidade, possuir os títulos ou as
características que dão o direito, civil ou moral, de agir de uma certa maneira, que
tornam 'hábil' (em sentido jurídico) a exercitar uma faculdade” (Lalande, 844).
Qualificar-se é, pois, ter uma dada qualidade em ordem a determinado fim.
Qualificar é reconhecer num sujeito determinado (que alguns chamam de objeto
material) os predicados (ou qualidade) para atingir certos fins. Exs.: um avião se
qualifica como meio de transporte modernamente hábil, isto é, possui qualidade para
realizar os transportes de nossos tempos; reconhecer no avião essa qualidade, é
qualificá-lo para o fim proposto.
A qualidade é um acidente dos entes, categoria especial que é a “diferença da
substância” (Aristóteles, 1.020 a, 34), “aquilo em virtude do que algo se diz tal”
(Aristóteles, 8), que “aperfeiçoa ou determina a substância na sua existência ou na
operação” (Sinibaldi, 180), “que modifica ou determina a substância em si mesma”
(Van Acker, I, 261). Ex.: “o homem é um animal de uma certa qualidade, porque ele é
bípede, o cavalo tem por qualidade ser quadrúpede, o círculo é uma figura que tem por
qualidade ser sem ângulo” (Aristóteles, 1.020 a, 34, 35).
Diante da divisão essencial da qualidade em quatro pares de espécies (hábito e
disposição; figura e forma; qualidade passível e paixão; potência e impotência), releva
aqui anotar que “potência é a qualidade que dá ao sujeito a aptidão para alguma coisa”
(Sinibaldi, 181): o que não é apto para um fim, é impotente para ele, ou desqualificado à
sua obtenção. Demais disso, observa-se que a qualidade não é um acidente apenas físico
dos entes, mas igualmente de “espécie espiritual” (Hessen, 805), em que se salientam as
qualidades de valor (p. ex., éticos ou jurídicos).
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Do conceito específico de qualificação registral
Diz-se qualificação registral (imobiliária) o juízo prudencial, positivo ou
negativo, da potência de um título em ordem a sua inscrição predial, importando no
império de seu registro ou de sua irregistração.
Para logo, trata-se de um juízo, vale dizer, uma operação formalmente
intelectiva que une ou separa os conceitos, tornados em relação às coisas mesmas que
representam de modo reflexivo e abstrativo, mas de um juízo prudencial, ou seja: a)
juízo que é propriamente da razão prática, não da especulativa; b) que se ordena a
operações humanas singulares contingentes; c) e que, não dispensando atenta
consideração dos princípios da sindérese e das conclusões da ciência moral, acaba, para
além do conselho e do juízo dos meios achados, por imperar uma determina atuação.
“Juicio de valor” (Lacruz, I, 395), “juicio de valor normativo” (Sing, 580), “juicio
lógico de análisis fáctico y subsunción jurídica, que desemboca en su resolución,
término del procedimiento: la práctica, denegación o suspensión del asiento solicitado”
(Lacruz, I, 394) : a composição e a divisão de conceitos aí sempre se compreendem em
ordem ao império ou não de um registro determinado. Em resumo, não se cuida de um
juízo especulativo acerca da registrabilidade de um título, mas de uma decisão
prudencial sobre a efetiva operação de um registro determinado.
Qualificar, assim, é algo mais do que simplesmente examinar ou verificar
(Hernández Gil, 150, fala em “examinar y calificar los títulos”; Mena y San Millán, 8),
porque inclui o império que é próprio da prudência, ao passo que o simples exame ou
verificação não passa de uma fase contemplativa do juízo prudencial. Com efeito, a
qualificação registrária diz respeito ao quale (a qualidade no seu suporte substancial
singular), não à qualitas abstraída do indivíduo, e assim não como simples especulação
do sujeito, mas, passando do conselho e do julgamento dos meios para a operação: não
apenas meramente se examina ou se verifica a eventual inscritibilidade de um título
(rectius: sua potencialidade inscritiva), mas se julga e impera um registro, hic et nunc. A
verificação fica a meio caminho da imperação do operável; a qualificação abrange o ato
de verificar (componente especulativo da prudência, enquanto se considera o sujeito) e
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aplica os conselhos e juízos encontrados à operação (por todos, Santo Tomás, Suma
Teológica, IIa.-IIae., Q. 47, art. 8.º 47, respondeo).
O juízo qualificador (enquanto conclusão do procedimento prudencial) pode
ser positivo (em ordem a seu fim, que é o registro) ou negativo (desqualificação, juízo
desqualificador), de toda sorte consistindo sua mais destacada relevância a imperação de
que se registre ou de que não se registre um título. E, exatamente porque a aplicação ao
operável é o fim do intelecto prático, o ato de império, na qualificação registral, é o
mais relevante dessa complexa decisão prudencial.
A qualificação, enquanto decisão prudencial
A diversidade de efeitos das inscrições prediais – eficácias constitutiva,
declarativa e de mera notícia –, consoante a pluralidade das direitos positivos, faz variar
a amplitude e, de conseguinte, a importância da qualificação registral (Chico y Ortiz, I,
590, 591; II, 248 ss.; García Coni, I, 41; II, 226; III, 101, 116, 117, 118). Compreende-
se, pois, que, nos sistemas em que não há reconhecimento, em regra, de eficácias
convalidante ou constitutiva para o registro, a qualificação registral, na medida em que é
confirmativa de outra prévia qualificação (ut in pluribus, notarial) e de efeitos reais já
constituídos, se revista de menor aparência imperativa (assim, p. ex., os sistemas
limitadores da qualificação aos elementos formais documentários: Chico y Ortiz, I,
591). Mas a qualificação não perde, em todo caso, seu liame com um determinado
registro a perfazer-se ou a recusar-se: a maior ou menor amplitude da atuação
qualificadora, seu caráter mais ou menos analítico, a variedade de eficácias inscritivas,
nada disso infirma a natureza prática do julgamento registrário, vale dizer, seu caráter
prudencial.
A prudência é uma das quatro virtudes cardeais, que se distingue (a) das
demais virtudes do intelecto pela diversidade material de seus objetos (a sabedoria, a
ciência e a inteligência versam sobre objetos necessários; a prudência e a arte, sobre
objetos contingentes; mas a arte diz respeito ao factível, que se realiza em matéria
exterior, ao passo que a prudência concentre ao agível, ou seja: à mesma atividade do
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agente) e (b) das virtudes morais, porque a prudência reside formalmente no
entendimento, não na vontade (Santo Tomás, Suma Teológica, IIa.-IIae., Q. 47, art. 5.º,
respondeo). A prudência é o conhecimento do que devemos apetecer e do que devemos
evitar (“appetendarum et vitandarum rerum scientia” – Santo Agostinho), hábito
operativo que, tal como a justiça, tem a peculiaridade de não ser uma virtude apenas
pessoal, senão que se estende também aos demais, à comunidade, podendo falar-se em
uma prudência social, prolongamento da prudência monástica ou pessoal (Santiago
Ramírez, 10; Palácios, I, 23 ss.; Massini, I, 43 ss.).
Como ficou sobredito, a prudência reside na razão, enquanto prática, porque
seu objeto é o contingente singular, e a razão especulativa só pode ter por objeto o
necessário, o universal, aquilo que não se modifica (Santiago Ramírez, 38). Sendo
específico da prudência imperar o bem próprio de cada virtude em dadas e concretas
circunstâncias (Derisi, I, 246), ordenando-se as ações individuais e contingentes (Id.,
164, 165), o que faz essa virtude é aplicar os princípios (e conclusões) universais aos
fatos singulares (Id., 7). A atuação no operável – recta ratio agibilium – indica que a
prudência não está simplesmente no intelecto, mas transita para a vontade, enquanto lhe
pertence essa aplicação à obra: por isso, se diz que a prudência é formalmente
intelectual e materialmente moral (Massini, I, 39).
A consideração dos princípios sinderéticos e das conclusões universais da
ciência moral não exclui a tarefa prudencial de, em cada caso, ditar o que se deve fazer
e o que se deve omitir, em vista das circunstâncias concretas. “La ley moral es muy
amplia, e no hay que olvidar sus determinaciones concretas, que son ya fruto de la
prudencia, y no de la sindéresis ni de la ciencia moral, universales” (Palácios, I, 56). Por
isso, Santo Isidoro de Sevilha incluía na enumeração das condições da lei humana sua
relação com a idiossincrasia de cada país e com o lugar e o tempo: a lei humana deve
ser secundum consuetudinem patriae, loco temporique conveniens. Essas observações
são adequadas ao denominado juízo prudencial (expressão que revela uma certa
impropriedade, se se considera que o juízo é, em rigor apenas um dos três atos da
prudência: 1 – conselho; 2 – juízo; 3 – império –, sequer o mais importante deles,
porquanto o império, consistente em aplicar o conselho e o juízo à operação, se acerca
mais do fim da razão prática, revestindo-se de principalidade nos atos da prudência
(Santo Tomás, Suma Teológica, IIa.-IIae., Q. 47, art. 8.º, respondeo)).
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Essa indispensabilidade da singularização prudencial (Palácios, II, 420),
reafirme-se, não recusa sua fundação em princípios e conclusões universais, originários
da sindérese e da ciência moral (Palácios, I, 17 ss.); o contrário é a ética de situação ou
o direito de situação, a consciência não apenas fundamental, mas também fundante,
exclusivamente fundacional. A natureza da certeza varia conforme seu objeto
(Aristóteles, 1.094 b, 12 e 24) e, sendo a matéria da prudência os singulares
contingentes, sobre os quais se exercitam as operações humanas, sua certeza não exclui
toda a solicitude ou diligência (Santo Tomás, Suma Teológica, Q. 47, art. 9.º, ad
secundum), como é próprio da irrepetibilidade das situações particulares, de modo que a
verdade das conclusões nos operáveis não é suscetível de ciência (Zuleta Puceiro, II,
26).
Daí, de uma parte, a inútil sobrevalorização da casuística (Pieper, 65),
excludente da concretude da experiência pessoal de quem decide e das condições
singulares e irrepetíveis dos atos (Santo Tomás, Suma Teológica, IIa.-IIae., Q. 47, art.
3.º, respondeo), casuística que não passa de um instrumento auxiliar no elenco de
similitudes e de um roteiro gnoseológico da tradição; e, de outra parte, o risco de um
subjetivismo anômico, em que a consciência se projete como base de normatividade
sucedânea.
A qualificação e os princípios registrais
Define-se princípio, em geral, aquilo de que um ente de algum modo depende
(Jolivet,I, 295; II, 197; Sinibaldi, 188; Van Acker, II, 46; Gambra, 149, 150). Mas
aquilo de que pode um ente depender – ou princípio – é fonte do qual ou o ser, ou sua
geração ou seu conhecimento derivam (Aristóteles, 1.013 a, 20). Assim, fala-se em
princípio cronológico, espacial, lógico, metafísico, moral, científico. Os princípios, pois,
abrangem as causas, as condições, as ocasiões, os fundamentos diretivos (Lalande, 808),
os começos temporais e espaciais dos entes.
A causa é o princípio que influi no ente de modo positivo – id quod influit esse
–, com que se distingue da condição, que apenas remove obstáculo ou torna possível a
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produção do efeito, sem modificá-lo, no entanto (Sinibaldi, 188; Lahr, 691; Balmes,
107).
Das quatro modalidades de causa: material, formal, eficiente e final, desponta a
última como a causa das causas, porque sem ela nenhuma causa exercitaria sua
causalidade (Aristóteles, 983 a, 30; “Unde dicitur quod finis est causa causarum, quia
est causa causalitatis in omnibus causis” – Santo Tomás, De Principiis Naturae, n. 10;
Derisi, II, 27; Grenet, 250).
Todos os entes possuem uma razão de ser, princípio que se apóia na
inteligibilidade ou verdade do ser (Derisi, III, 229), e, enquanto se cuide da
inteligibilidade intrinseca – relativa à essência de um ente –, esse princípio corresponde
ao princípio da finalidade (Jolivet,I, 257). Equivale a afirmar que, do modo de ver
essencial, os entes são efeitos produzidos em vista de um fim, e, posto que este se
realize derradeiramente (ultimum in executionem), configura a primeira causa na ordem
da intenção (primum in intentione).
O princípio de finalidade subordina quer os entes apenas materiais, quer os
inteligentes e livres: todos os atos humanos ordenam-se a uma finalidade moral (ou bem
moral (Maritain, I, 46)), e a ordenação moral está inscrita na natureza humana (Derisi,
III, 318). Por isso, pode dizer-se que a norma constitutiva formal – imanente ou próxima
(De Yurre, 75 ss.) – da moralidade é a perfeição da natureza humana, o último fim dos
homens e dos entes (ou ainda, de modo incompleto, a mesma natureza humana,
enquanto nela se manifesta, já constituída, a ordenação final das coisas).
* * *
Numa perspectiva demasiadamente sintética, poder-se-ia falar num princípio
redutor do sistema de publicidade imobiliária, fazendo-o residir na segurança jurídica,
enquanto finalidade – ou mais agudamente, enteléquia do registro. Sem embargo da
relevância desse princípio para a configuração e a atuação dos demais outros princípios
registrais, a excessiva síntese que indica essa redução unitária, afasta, em proveito de
uma universalidade só muito complexamente advertida nos singulares, as vantagens de
uma certa divisão analítica dos princípios. O esforço de tamanha redução – sempre
criteriosamente possível diante do caráter teleológico da segurança jurídica para o
registro imobiliário – não parece justificável quando se cuida da coordenação (em todo
caso implicitada) dos princípios advertidos a partir de uma distribuição analítica. Em
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contrapartida, é certo que o excesso na repartição analítica – e as divisões sempre
respondem a critérios variáveis – inviabiliza a universalização objetiva e termina por
inutilizar a própria consideração do sujeito sob o aspecto redutor de seus princípios
(Sánchez Agesta, 53).
Em resumo, seria possível, de toda sorte com critérios razoáveis, vincular a
qualificação registral não apenas e principalmente ao princípio teleológico da segurança
jurídica – com o qual guarda “intimidade superlativa” (Sing, 588, 589) – o que sempre
de algum modo se fará, para compreendê-la e interpretar seu alcance, mas a cada um
dos princípios em que se divida, por uma razão ou por outra, o sistema registral: não
será demasia, p. ex., relacionar a qualificação ao trato sucessivo, ou ao princípio da
inscrição.
Mas, desde que se adote um critério analítico moderado, é certo que a
qualificação registrária melhor se afeiçoa ao princípio da legalidade. Ou por outra:
expressa-o, serve-lhe de instrumento de atuação.
Nessa linha de idéias, é praticamente uniforme a ubiquação doutrinária da
tarefa qualificadora no âmbito do princípio da legalidade (Afrânio de Carvalho, 249 ss.;
Hernández Gil, 149 ss.; Roca Sastre, 255 ss.; Lacruz, I, 394 ss.; Lacruz e Sancho, 353
ss.; Serrano y Serrano, 96 ss.; Cano Tello, 120 ss.; García García, 551, 552; Cristóbal
Montes, 253; García Coni, II, 217 ss.; Scotti, I, 593 ss.; Péres Lasala, 175 ss.; López de
Zavalía, 393 ss.; Cacciatori, 76, 77; Vásquez Bote, 301 ss.; Fueyo Laneri, 200).
Na verdade, a vinculação mais próxima da função qualificadora ao princípio da
legalidade responde a restrições postas pelo direito normativo. A justiça e a segurança
jurídica, longe de ser realidades e conceitos antinômicos, são aspectos distintos do bem
comum (Lefur, 3), e as exigências de segurança, na medida em que oferecem matéria e
fim ao direito positivo, constituem, ao mesmo tempo, exigências da justiça (Delos, 45);
por isso, o direito normativo contém a segurança jurídica e é sua única possibilidade de
existência (Utz, 135, 136). Daí que, não se podendo aventar uma segurança jurídica
não-positiva, seja por deficiência de certeza executiva, seja por dubiedade de seu objeto,
o direito normativo contenha (mas não institua) e especifique a segurança. É em ordem
a esses lindes que se adverte a proximidade da qualificação ao princípio da legalidade,
reflexo especializador da teleologia registral.
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Outras características da qualificação registrária
Destacadas já, por de maior relevância, a natureza prudencial da qualificação
registrária e, seguidamente, sua vinculação remota à segurança jurídica e próxima aos
limites normativos (princípio da legalidade), cumpre examinar agora outras de suas
características, em alguns passos especificando as notas anteriormente versadas.
a) Juízo concludente, procedimento ou função?
Admitida a natureza intelectiva da qualificação – por isso que prudencial –,
cabe cogitar de sua acepção própria, a saber: – se é o elemento conseqüente de uma
argumentação prática; – se, antes, é a integralidade desse procedimento lógico, porque,
em cada estádio da argumentação, se representa o juízo correspondente (premissas ou
conclusões);– se é a função executiva dessa argumentação, ou seja: a análise do iter
qualificador mostra que sua etapa mais aguda, sob o aspecto gnoseológico, não se põe
na conclusão (“registre-se”, “não se registre” – e, quando caiba, “suspenda-se o
registro”), mas em seu antecedente, de modo que, diante dessa relevância cognoscitiva,
se poderia acaso falar numa função qualificadora (Sing, 582; Hernández Gil, 150).
Sem embargo de que, de maneira analógica, seja possível referir-se a
procedimento e órgão qualificadores, função e argumentação qualificadoras, impende
observar que, em acepção própria, qualificação é o juízo conclusivo da argumentação
prudencial do registrador, na medida em que inclui o império, ato último da prudência.
Não se nega que o antecedente dessa argumentação prudencial dos
registradores seja mais valioso numa perspectiva gnoseológica do que o juízo
conseqüente. Mas isso não demonstra em favor de que a qualificação seja propriamente
coisa diversa da conclusão imperativa. É que, para logo, a prudência se reveste de uma
etapa cognoscitiva (integrando-a a memória, a razão, o entendimento, a docilidade e a
solércia), o que não a destitui de sua natureza eminentemente preceptiva ou imperativa.
Assim, no que maior relevo apresenta dentro do argumento prudencial – o juízo de
império – reside propriamente a qualificação registrária.
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Na verdade, é preciso distinguir a análise predominantemente gnoseológica da
qualificação (em que prevalece o interesse no exame das premissas) da consideração de
sua finalidade, que é a de determinar o registro ou a de recusá-lo (quando os sistemas o
permitam: o de suspendê-lo, condicioná-lo). Esse juízo imperativo (“faça-se algo”,
“omita-se algo”, “registre-se”, “não se registre”) singulariza uma exigência de
segurança jurídica, de resto, partindo de proposições normativas anteriores, que por seu
turno se apóiam, derradeiramente, em normas evidentes. [Concerne-se aqui a um tema
de muitíssima importância, que não vem de molde mais do que indicar: em uma
passagem de seu primeiro tratado filosófico – Treatise on Human Nature –, David
Hume reprova aos moralistas tradicionais a dedução normativa oriunda de juízos
teóricos – o que adiante se denominou “falácia naturalista” (naturalistic fallacy, G. E.
Moore) –, em resumo, sustentando-se a impossibilidade de deduzir um direito ou um
dever a partir de um fato (ser) e impedindo-se, mais além, a estimativa apofântica – vale
dizer, acerca da verdade ou da falsidade – das proposições normativas; Thomas Reid
(apud Kalinowski, I, 171; II, 140 ss.), no entanto, sublinhara já a circunstância de que as
deduções das normas morais segundas se apóiam em normas primeiras, evidentes de si
mesmas; Massini (II, 118; III, 263, 264) conclui que a verdadeira falácia, no caso, é a
positivista, e acena a um texto de Santo Tomás (Suma Teológica, Ia.-IIae., Q. 94), no
qual o Aquinense, cinco séculos antes de Hume, já antecipara a solução do tema,
fundando o direito natural sobre a evidência de seus primeiros princípios, sem derivá-lo
de proposições enunciativas.]
A esse juízo imperativo, conseqüente da argumentação deôntica e
singularização de normas jurídicas e éticas sucessivas, corresponde o termo
qualificação em sentido próprio.
b) Obrigatoriedade da qualificação.
Vai de si mesmo, ante a necessidade de impedir a desvalia da segurança
jurídica por meio de registros de títulos viciados (Scotti, I, 593, 594; Chico y Ortiz, III,
22; Morell, 258), com que se tomaria pouco menos que inútil a proteção jurídica dos
títulos válidos, que a qualificação registral é obrigatória e não se dispensa sob o color
de precedente qualificação de quem elaborou o título ou de outro registrador
(Hernández Gil, 150; Chico y Ortiz, III, 67, 68).
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c) Caráter personalíssimo da qualificação.
A consideração do juízo qualificador no plano de uma juris prudentia – a
prudência registral – aponta no sentido de sua irrecusável pessoalidade, embora no
plano de uma prudência social.
Ainda que se estime a atuação da atividade registrária por meio de órgãos, não
é possível desconhecer sua identidade morfológica com as pessoas que os encarnam e,
pois, sua “humanidad psicofísica” (Sing, 579). Pode dizer-se com Pieper (43) que a
sindérese e a prudência, em unidade viva, formam a consciência, último juízo da razão
prática: a sindérese, consciência dos princípios; a prudência, consciência da situação –
uma e outra conjugadas, aquela como verdadeiro princípio de contradição do saber
prudencial (“synderesis movet prudentiam, sicut intellectus principiorum scientiam” –
Santo Tomás, Suma Teológica, IIa.-IIae., Q. 47, art. 6.º, ad tertium). Tudo isso se move
num plano de realidades concretas e irrepetíveis, em que se engasta a liberdade pessoal
irredutível de afirmar a verdade e seguir o bem, ou recusá-la e seguir o mal.
Diz-se ainda personalíssima a decisão qualificadora, impedindo-se sua
delegação (até mesmo, ao cabo e em regra, enquanto decisão derradeira numa dada
instância, a escreventes, auxiliares, como quer que se denominem, prepostos dos
registradores) e a consulta de subalternação ao juízo prévio de superiores hierárquicos
(quando os haja) ou corregedores mediante coordenação (Morell, 258; Hernández Gil,
150; Chico y Ortiz, III, 67).
d) A independência da qualificação.
A sentença prudencial de qualificação, emitida em ordem ao atendimento da
segurança jurídica, reclama a independência decisória de seu agente, “la misma
independencia que tiene el Juez para dictar sus resoluciones” (Hernández Gil, 150).
Não há verdadeira prudência enquanto consciência – sem liberdade, porque a
consciência certa é a norma subjetiva do agir (o que indica, saliente-se, a existência de
uma outra norma para o agível, norma objetiva e fundante), e, impondo a lei um juízo
do registrador acerca da aptidão inscritiva de um título (Scotti, I, 593, 594), não o faz
executor subordinado a ordens singulares superiores, mas juiz, independente e
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responsável (ao menos, sempre moralmente, da registração hic et nunc de determinado
título (Morell, 258; Chico y Ortiz, III, 65, 66).
e) Caráter jurídico da qualificação
O juízo qualificador é juris-prudencial, na medida em que decide, nos limites
normativos, sobre a aptidão singular de um título para obter (ou já ter) determinados
efeitos de direito (Chico y Ortiz, III, 65).
f) Integralidade.
A qualificação deve abranger completamente a situação examinada, em todos
os aspectos relevantes para a registração ou seu indeferimento, permitindo quer a
certeza correspondente à aptidão registrária, quer a indicação integral das deficiências
para a inscrição perseguida (Scotti, II, 49).
Natureza jurídica da qualificação registral
Adversa-se freqüentemente, na doutrina, acerca da natureza jurídica da
qualificação registrária, tema que, já de si complexo ainda com abstração dos vários
direitos normativos, mais se dificulta com as leis particulares de regência. Quatro
correntes, de um modo geral, disputam o acerto da natureza jurídica da qualificação,
afirmando-lhe o caráter: a) jurisdicional; b) administrativo; c) de jurisdição voluntária;
d) singular ou especial. O exame que dessas correntes aqui se faz, suposta a brevidade
que as circunstâncias impõem, tende a limitar-se, sempre que possível, à situação
normativa brasileira e à verificação política conjuntural que lhe diz respeito mais de
perto.
a) A qualificação registrária como de caráter jurisdicional.
A natureza jurisdicional da qualificação registrária teve e ainda tem autorizados
defensores (Caperochipi, 67; Fueyo Laneri, 201; Agulló, Barrachina, Passos y García,
Romaní Calderón, Gallardo Rueda, Camy, Ventura Traveset – apud: Lacruz, II, 98, 99,
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Chico y Ortiz, III, 47, 48 e Roca Sastre, 261), incluindo-se ainda De La Rica y Arenal,
que alude ao caráter cuasi judicial da qualificação, e, num certo aspecto, López Medel,
que se refere a um ámbito jurisdiccional sui generis (I, 190) e à justicia registral (I,
225, 231 ss.)
É certo que a gênese comum da função jurisdicional e das atividades tabelioas
e registrárias (brevitatis causa: João Mendes de Almeida JR., 25 ss., 78 ss.), tanto
quanto a eficácia erga omnes da qualificação e seu procedimento de subalternação do
caso à norma jurídica, conduzem à aparência de alguma identidade entre a função dos
juízes e a dos registradores. Essa identidade parece robustecer-se quando a lei regente
admita uma requalificação judiciária.
Os argumentos, contudo, não vão além de uma aparência de identificação que
está longe de determinar a função jurisdicional como abrangente da registrária. A
comum origem histórica não prova mais que uma atividade material própria do registro
exercitada por juízes; demais, isso ainda ocorre, p. ex., na Alemanha, com os antigos
“juízes territoriais”, sem embargo de modificações restritivas de sua atuação (Pau
Pedrón, 962), ou na Áustria (López Medel, I, 190), o que não demonstra a inclusão da
função registrária entre as formalmente jurisdicionais (Chico y Ortiz, III, 47). A eficácia
do juízo qualificador e a subsunção jurídica que reflete não respondem ao suporte de
uma relação processual, que é própria da jurisdicionalidade; a extensão ampla de efeitos
não significa estabilidade incontrastável da decisão qualificadora (rectius: coisa
julgada), nem a subalternação de um dado caso à ordem normativa é apanágio dos
juízes.
No direito brasileiro vigente, sequer se pode acenar à requalificação judicial
(arts. 198 ss., Lei 6.015, de 31.12.73) sem, ao mesmo tempo, considerar a importante
restrição prevista no art. 204 da mesma Lei.
b) A qualificação com caráter administrativo.
O tema do administrativismo dos registros reclama atualíssima atenção: Chico
y Ortiz (III, 44) refere-se aos imprudentes acercamientos al campo del Derecho
Administrativo, e Leyva de Leyva (272), aludindo ao administrativista à outrance, nele
reconhece um burocrata vocacional.
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Não faltam motivos para uma crescente adesão não apenas teórica, mas
também prática e, sobretudo poética (posta na órbita do factível, não do agível), ao
caráter administrativo da qualificação registrária [apóiam-no, p. ex., González Pérez
(1.030 ss.), Ogayar Ayllón (11 ss.), Scotti (II, 40), Palomino, Aragonées, Royo
Villanova, Garrido Falla, Romaní Puindedolas, Campuzano y Horma, Mendoza Oliván
(apud: Chico y Ortiz, III, 49, e Lacruz, II, 101)].
Esses motivos de forte vocação administrativista do registro emergem, no
Brasil, em parte, de algumas tendências filosófica e ideológica de moda, e, em outra
parte, de certas inclinações conjunturais (que, como não poderia deixar de ser, refletem
implicitamente aquelas tendências e variam de maneira circunstancial). As primeiras
correspondem a uma causa genérica; as influências conjunturais, por isso que
particulares, só podem ser objeto de uma visão localizada.
Dentre os componentes filosóficos e ideológicos referidos, comportam
destaque:
– a concepção nominalista do conhecimento, com particular saliência do
agnosticismo do justo; insiste-se no que já ficou dito: limitada a ciência às realidades
mensuráveis dos casos, cuja irrepetibilidade concreta induz soluções pautadas pela
concretude da situação, a tendência nominalista, derradeiramente, tem a bitola do
subjetivismo do julgador
– quem quer que o seja, Magistrado ou Oficial dos Registros –, de modo que a
consciência de quem julga, sem dúvida sempre um imperativo fundamental para a ação,
passa a constituir o elemento fundacional do operável; advirta-se ainda o
antiintelectualismo que essa orientação alberga, à míngua de objeto universal, recaindo
em intuições perceptivas ou emocionais; em algumas correntes, há uma implícita
anomia, quando muito moderada por uma consideração subjetiva, política e artificiosa
da incidência regulamentar (p. ex., direito alternativo); noutras, não é ausente a pauta
regular de uma subsunção dos casos às normas jurídicas (freqüentemente, aferrada ao
literalismo), sob o color de busca de leis objetivantes das decisões epistemicamente
possíveis apenas nos estritos e bastantes limites casuísticos –, vale dizer: de leis de
repetição de fenômenos redutíveis ao gênero (que se induziu – ou se intuiu – a priori),
não de normas enquanto medidas ou indicativas do justo porque o justo, para essa
tendência, é em si mesmo incognoscível;
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– a vocação estatalizante, não raramente produzida até mesmo em ambientes
que se poderiam estimar a ela hostis, minguando opção para a mal suposta antinomia
liberalismo – estatalismo; a desconsideração dos princípios da totalidade e da
subsidiariedade faz sempre extremar o pêndulo ideológico entre o laissez faire, laissez
passer e o estatalismo, desestimando-se que o liberalismo [refiro-me ao político e ao
moral, deixando o econômico – batizável em alguns aspectos (v. porém as observações
de Palumbo, 105 ss.) – a salvo destas críticas], o liberalismo é das mais fecundas causas
do socialismo.
Quanto à inclinações conjunturais, no Brasil de nossos dias, elas se encontram
sobretudo:
– no debate político em torno da regulamentação do preceito do art. 236 da
CF, arrastando à estabilização expressa ou ao contra-sentido do corporativismo de
Estado, tema a que se voltará adiante;
– na ausência de uma comunidade científica que, à altura das necessidades
presentes, fundasse de modo idôneo a autonomia dos diferentes segmentos do direito
registral (em particular, o direito imobiliário registral), transitando suas conclusões, em
base objetiva, aos centros decisórios judiciais, de que emanam importantes reflexos,
incluindo os políticos. Sem embargo de esforços regionais relevantes (p. ex., no Rio
Grande do Sul), não há propriamente um pensamento científico nacional do registro
imobiliário: comunidade exige permanência, comunicação persistente e unidade estável
(com – unidade); ainda que suposta a bitola da epistemologia positivista, a
intersubjetividade é fundamental para a ciência, é sua objetividade (Zuleta Puceiro, II,
24, 25); e, numa perspectiva não-positivista (em que decididamente nos situamos),
impende verificar que, muito embora a ciência jurídica não exija o suposto de uma
comunidade de investigações, é evidentemente excepcional que pensadores isolados da
tradição de problemas e do conjunto das soluções técnicas possam atingir integral
racionalização na ciência prática (comporta distinguir-se o tema, entretanto, no plano da
ciência especulativa). O que se encontra no Brasil de nossos tempos são valiosas
individualidades, com reconhecida competência científica, abstraídas de uma via
institucionalizada, permanente, de comunicação do saber científico; reduz-se o
intercâmbio de experiências e conceitos a tratativas esporádicas, a uns poucos pareceres
e artigos avulsos ou a congressos (tais os do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil),
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de todo louváveis, mas insuficientes ao objetivo comunitário. Com isso, os
agrupamentos técnicos, de origem estatal, terminam por transitar prevalentemente seu
caráter oficial para os órgãos, funções, procedimentos e juízos registrários, demais de
que a deficiência de uma elaboração autônoma da ciência registral induza uma
“ocupação de espaço” pelo direito administrativo.
Além disso, o problema político posto (ou pretextado) com a regulamentação
do art. 236, Constituição Federal, serve de acicate ao administrativismo. Em boa
medida, a explicação pode reportar-se a um preocupante circiterismo normativo: o
preceito constitucional é anfibológico e propício a compreensões opostas. Mas são as
exagerações que infletem para a inconstitucionalidade, num sentido extremo ou noutro,
ora só reconhecendo a idéia do serviço público (administrativismo), ora só enxergando a
gestão privada. Curioso é que, ante esse binômio tensivo (serviço público – gestão
privada), não faltem, de um lado, o anacronismo de uma redução estatalista judiciária,
acentuando-se um controle hierárquico que já não se encontra no direito posto, e, de
outro, uma evasão precipitada para um controle corporativo que, com apenas
aparentemente marginar a idéia de serviço público, se inserta essencialmente no âmbito
da administração estatal (e nisso peca essa deturpação corporativista – corporativismo
de Estado –, desviando-se do formidável papel que se reserva ao corporativismo de
sociedade). É preciso atualizar as vistas: se se fala em serviço público, cogita-se de um
serviço contínuo e regular, características que se sujeitam à fiscalização correcional
oficial e permanente; se se trata de uma gestão privada desse serviço, pensa-se numa
liberdade de administração, que não pode supeditar-se a interferências administrativo-
estatais; no ponto médio, desaparecida a subordinação hierárquica, o que remanesce é a
correcionalidade coordenativa, para garantia da continuidade e da regularidade do
serviço – fim que reclama um conjunto de meios executórios (incluso disciplinares, sob
pena de manifesta ineficácia), mas um poder correcional limitado à aferição dessas
características do serviço (regularidade e continuidade), sem intervenção nos critérios e
na executividade da administração cartorária. Enquanto não se conciliam as teses
extremas, fermenta-se o caldo de cultura da estabilização simplex dos Registros
Imobiliários, como se serviço público fosse o mesmo que estatal.
c) A qualificação no âmbito da jurisdição voluntária.
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Parte considerável da doutrina registral espanhola tende a estimar a
qualificação como exercício de jurisdição voluntária: Hernández Gil, 150; Morell, 258;
Roca Sastre, 262 ss.; Jerônimo González, Sanz Fernández, De Casso, Sancho Rebullida,
González Palomino (apud Chico y Ortiz, III, 53 ss.).
Em verdade, demanda uma distinção prévia a excludência de filiação de outros
doutrinadores a esse entendimento, a saber: a jurisdição voluntária, enquanto função
incluída na administração pública do direito privado (Zanobini), é típica do Judiciário,
de sorte que remanescem atos dessa administração fora do âmbito judicial. Se se
subdistinguem, pois, a administração pública do direito privado (gênero) e a jurisdição
voluntária (espécie), recusando-se já a existência de uma jurisdição voluntária não-
judicial, é possível admitir uma natureza específica da qualificação, retraçada como
especialização distintiva de um conceito genérico, também abrangente da jurisdição
voluntária (José Frederico Marques, 120, 121; Édson Prata, 181 ss.).
Em todo caso, naqueles sistemas em que o registro se perfaça por juízes, a
questão deve repensar-se segundo a lei de regência.
d) A qualificação em sua natureza específica.
Como ficou sobredito, a contar de uma distinção no gênero "administração
pública do direito privado", é de admitir, ao lado da espécie "jurisdição voluntária", a
existência de tantas outras espécies quantas sejam as modalidades e os agentes dessa
administração. Mas essa distinção é controversa (Carnelutti, p, ex., não estima que a
jurisdição voluntária seja administrativa lato sensu), e não falta quem tome a jurisdição
voluntária por gênero próximo de partes subjetivas em que há distinção dos agentes (p.
ex., Prieto-Castro, que fala na jurisdição voluntária judicial, notarial e registrária – apud
Castanheira Sarmento, 12, 13).
A tendência da doutrina registrária moderna é a de, feita essa distinção de base,
identificar uma natureza própria, especial da qualificação registrária, que se tem como
um tertius genus entre a atividade administrativa e a judicial (contenciosa ou voluntária)
[Chico y Ortiz, 62]. Nessa direção: Lacruz, II, 108 ss.; Cano Tello, 121; Ferreira de
Almeida, 186 ss.; Coghlan, 132, 133; Leyva de Leyva, 283 ss.; Chico y Ortiz, III, 62,
631].
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Não por se incluírem no mesmo gênero próximo (Lacruz, II, 97), perdem
especificidade os atos de jurisdição voluntária e os exercitados por órgãos não judiciais
em ordem) administração pública do direito privado. A doutrina anterior, por não
distinguir as espécies, tendia à inclusão do juízo qualificador no âmbito da jurisdição
voluntária, sem com isso, por certo, afirmar a jurisdicionalidade da função registral
(afastada já pelo gênero próximo), mas abrigando uma confusão de agentes operativos.
A não se distinguirem as espécies, numa divisão tripartite da possível natureza da
qualificação, seria de admitir classificá-la como ato de jurisdição voluntária não
judicial; é, pois, uma subdistinção, expressando uma precisão conceitual, que permite
inferir um caráter singular para o juízo registrário, enquanto repousa numa atividade
pública designadamente convocada à formação de um ato jurídico privado ou ao
estabelecimento de sua plena eficácia.
Leyva de Leyva, frisando o caráter jurídico dos registros públicos,
destacadamente sua finalidade mais intensa (a segurança jurídica) – ao passo que os
registros administrativos assentam no interesse geral –, conclui, com razão, que a
atividade dos primeiros é ordenada ao direito privado. Demais, prossegue o Autor, “el
objeto de la Administración pública de Derecho privado es el Derecho privado” (285),
disso advindo que “la actividad registral de los Registros jurídicos forma parte del
Derecho privado” (ib.).
Essas referências afastam a qualificação quer do exercício jurisdicional, quer
da natureza administrativa (rectius: calcada sobretudo no interesse público): “El
Registro jurídico (Léase, el arquetipo de la Propiedad) no satisface directamente
necesidades públicas, necesidades de carácter general, ni atiende inmediatamente al
interés público” (Leyva de Leyva, 285), antes satisfazendo, ao menos
predominantemente, interesses privados (Id. 291).
Resta, porém, compatibilizar essa natureza especial com a circunstância de
que, para o direito brasileiro vigente, o registro configure um serviço público.
A consideração do registro como serviço público assenta no seu caráter social e
na sua teleologia (ou enteléquia) de segurança jurídica, que não se passa, em definitiva,
num âmbito de somatórios individuais (assim também a perspectiva jusnaturalista de
López Medel, II, 72, 73). É preciso esclarecer e destacar uns tantos pontos:
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– a segurança jurídica não é um conceito e uma realidade antinômicos da
justiça; ao reverso, uma vez ainda se diga: ambas são noções e realidades que integram
como elementos ou faces do bem comum (Le Fur); já ficou dito atrás, não se podem
compreender exigências de segurança separadas da justiça, porque, na medida em que
elas oferecem matéria e finalidade para o direito positivo, passam a configurar,
simultaneamente, exigências de justiça (ex condicto publico) [Delos];
– é um grave erro cogitar de um direito natural tão abstrato e idealizado que
dispense a lei positiva, fora de cujo plano não pode subsistir a sociedade; o direito
natural é o fundamento do direito positivo, não seu remédio subsidiário (Cathrein, 203,
204; Corts Grau, 267); antes as normas jusnaturais exigem as normas positivas
humanas: “ambos os direitos se integram, se complementam e se sustentam
mutuamente” (Luño Peña, 56), até porque não se pode pensar no direito positivo como
simples estatuição de uma antecedente previsão jusnatural (Utz, 135; Rommen, 292); a
circunstância de a lei ser apenas a medida ou a razão do justo (“lex non est ipsum ius,
proprie loquendo, sed aliqualis ratio iuris” – Santo Tomás Suma Teológica, IIa.-IIae.,
Q. 57, art. 1.º, ad secundum) não interfere com sua necessidade para o direito: Vitória
(apud Urdanoz, 188) dizia que justo é aquilo que é lícito segundo a lei, ressalvada a
corrupção da lei (que não é lei: Santo Tomás, Suma Teológica, IIa.-IIae., Q. 60, art. 5.º);
é que uma das características essenciais do direito positivo é criar a segurança jurídica
(Messner, 266; Utz, 135, 136), para (na lição de Messner, 322):
a) eliminar a ignorância e a incerteza do conhecimento dos princípios gerais do
direito natural;
b) aplicar esses princípios genéricos às circunstâncias concretas e históricas de
cada sociedade: a lei como intimação do justo (Bigotte Chorão, 1, 38);
c) decidir sobre as instituições adequadas, num dado quadro espacial e
temporal, à consecução do bem comum;
d) definir o modo de exercício coativo para a satisfação do ordenamento
jurídico; por isso, pode concluir-se que “a segurança é o que há de mais elementar e
premente como tarefa do poder” (Galvão de Sousa, I, 88);
– definido o caráter público das funções, atividades e serviços ordenados à
segurança jurídica, o que se impõe de sua mesma essencialidade para a existência
social, nem por isso se hão de julgar necessariamente estatais esses serviços, funções e
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atividades, com que se engastaria o radical equívoco de supor que direito público é o
mesmo que direito do Estado (Gil Robles, 5 ss.), ignorando-se o pluralismo jurídico, o
amplificado papel (até mesmo normativo) dos corpos intermediários e as exigências do
princípio de subsidiariedade (Galvão de Sousa, II, 87 ss., 101 ss.; Messner, 331 ss.;
Sánchez Agesta, 80 ss.; Llovera, 175 ss.; Creuzet, 77 ss.; Bigotte Chorão, II, 211 ss.).
[Já sustentávamos, em abril de 1987, conclusão equivalente, afastando os
exageros liberais sem recair no extremo da estatalização: “A essencialidade de um
sistema publicitário predial para a consecução do bem comum, conceito e realidade a
que se ligam tanto a justiça, quanto a segurança jurídica, não seria bastante para
reclamar, senão subsidiariamente, a estatalidade do serviço registral: é um erro pensar, e
de lastimáveis conseqüências, que a indispensabilidade social de um corpo
intermediário ou de uma atividade humana conduza a sua administração pelo Estado.
(...) Não se pense, contudo, que do exposto se há de inferir a conclusão de que o registro
predial deva necessária ou prevalecentemente realizar-se à margem de alguma
estatalidade” (A Constituinte e o Registro de Imóveis (1987), 28, 29). E prosseguíamos,
reportando-nos a Roca Sastre, Bielsa, Garrido Falla e Villegas Basavilbaso:
“Reconhecer, entretanto, algum caráter administrativo no sistema do registro predial,
defini-lo como „serviço público‟, não é o que basta para determinar sua direta prestação
pelo Estado”.]
Uma compreensão temperada da norma do art. 236, Constituição Federal do
Brasil, que lhe recuse os limites das conotações anfibológicas que sua literalidade
permite, mostra que o legislador constituinte esposou, com o binômio serviço público –
prestação privada, a idéia de conveniência de uma instituição social (instituição cuja
existência contínua e regular não pode ficar à mercê do talante individual) exercitada
(ou expressada) por meio de uma gestão particular (que sempre entre nós se revelou
normalmente eficaz). Desse modo, não se estorva a pluralidade de noções construtivas
em torno da instituição social do registro: de um lado, preserva-se a aferição correcional
por meio de coordenação, com a fiscalização judiciário-administrativa da prestação
contínua e regular dos serviços; de outro, fomentando-se um reto conceito corporativo,
de sorte que colégios profissionais possam dar contributo ao desenvolvimento ético,
técnico e científico das funções e atividades registrais; mais além, a primazia
jurisdicional, garantia maior dos direitos (V. Mezquita Del Cacho e López Medel, 201).
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Supostos e limites gnoseológicos da qualificação registral
Para o exame dos supostos epistêmicos e dos limites da qualificação registrária,
é preciso resignar-se a umas tantas particularizações, que se põem sobretudo em
conseqüência do papel que a ordem normativa confere à inscrição predial, porque, ut in
pluribus, a qualificação (repita-se) varia consoante as leis de regência prevejam
inscrições com preponderante caráter constitutivo, declarativo, de mera notícia,
convalidante ou não; é intuitivo, por exemplo, que, para o sistema Torrens, se reclame
uma qualificação mais especializada, à vista da fé pública registral que, de modo
mediato, pela sucessividade de aquisições, retrocede causativamente à primeira
inscrição do sistema. García Coni (II, 224) observa, de modo gráfico, que a qualificação
é de controle nos registros declarativos, de perícia, nos constitutivos, virtualmente
mecânica, nos registros abstratos. Em todo caso, esses limites postos pelos direitos
particulares são apenas tendencialmente influídos pela natureza da qualificação,
porquanto não se exclui a possibilidade de um juízo qualificador uniforme (ou quase)
para não importa quais tipos inscritivos; entre nós, a lei vigente apenas distingue e
especializa a qualificação para o registro Torrens (arts. 277 ss., Lei 6.015, de 31.12.73),
desprezando a variedade dos efeitos possíveis das demais hipóteses de publicidade
inscritiva.
Se o ponto culminante da metodologia jurídica é a determinação do justo em
cada caso concreto (Vallet, II, 393), pode concluir-se que a qualificação registrária –
enquanto juízo decisório da inscrição – é o ponto culminante da metodologia registral.
Não se trata, diretamente, de buscar o quod iustum est, muito embora, conforme já ficou
exposto, a segurança jurídica se inclua no justo legal e, de resto, a realização do justo
esteja longe de constituir um apanágio da aplicação jurídica heterônoma; mas é possível
afirmar que a qualificação registral busca o quod certum est, especificação do justo
legal.
Se se admite, como expressão do justo positivo, além de um direito ex condicto
publico, manifestações jurídicas mediante convênio privado, a ponto de poder cogitar-se
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de uma construção jurídico-notarial (Castán, 145 ss.), pode cogitar-se também de uma
elaboração registral do direito.
A determinação do quod certum est sujeita-se menos à tensão dialética em que
se localiza a determinação jurisdicional do quod justum est: supedita-se mais de perto a
qualificação registrária ao âmbito normativo (não é para menos que a qualificação está
vinculada ao princípio da legalidade). Não é demasiado ainda relembrar que a segurança
jurídica, a que se volta a elaboração registral, é decisivamente aferrada ao direito
normativo posto. É um tanto exagerada, mas em todo caso exprime razoavelmente essa
subalternação ao direito positivo, a antiga lição de Grasserie (279), para quem "o regime
registral é de direito estrito, no qual nenhum sentimento se admite, sequer o de
eqüidade". Não se pode supor que semelhante restrição importe em cortar pela raiz a
amplitude dos instrumentos epistemológicos que se oferecem ao registrador: sempre, de
um lado, resta a indispensabilidade de, compreender qual seja a sentido normativo da lei
(Larenz, 360 ss.), e, de outro, se impõe a necessidade de interpretação, vale dizer, de
mediação entre a regra e a realidade (Vallet, II, 403, 404).
A subordinação do juízo qualificador ao princípio da legalidade não lhe impõe
uma redução literalista para a compreensão do sentido normativo da lei, que descarte a
estimativa de seu contexto significativo e sistemático, a atenta consideração teleológica
e a observação mais ampla dos princípios ético-jurídicos superiores às regulações
particulares (Larenz, 366 ss.; Vallet, II, 411, 412). O que, sim, neste plano, se afasta do
âmbito da qualificação é a determinação eqüitativa do direito, equivale a dizer: a
integração registral de lacunas do direito positivo – exatamente porque o juízo
qualificador, dirigido à segurança jurídica, não pode encontrá-la fora dos limites do
direito normativo posto.
Se, nesse segmento, não se retraçam destacadamente as distinções entre a
jurisdição e a decisão registrária, elas se encontram de modo mais visível no terreno da
interpretação.
De, caminho, já ficou de alguma forma sobredito que compreensão e
interpretação são conceitos distintos: compreender o sentido normativo da lei
(esclarecer-lhe o certum, na linguagem de Vico – apud Vallet, III, 828 ss.) não é ainda
determinar o justo em concreto ou o certum registral (individuado). Falta a mediação
com a realidade, falta atingir o verum: a norma jurídica – disse Sconfeld (apud Vallet,
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II, 417) – “separada de sua aplicação e pensada unicamente em sua abstração numa
temática científica, carece de realidade”. A confusão de ambas essas noções – intelecção
do sentido normativo e mediação entre a regra e as exigências da realidade, hic et nunc
– conduz à leitura a-histórica do direito normativo (Zuleta Puceiro, I, 18 ss.), a ponto de
a preocupação com o significado abstrato da norma excluir a cogitação do significado
do justo, concreto e individuado. Rompe-se, com essa confusão, a possibilidade de
realização prudente do direito, subalternando-se o operador jurídico a esquemas
axiomáticos alheios do operável concreto (Massini, IV, 132 ss.). Restituir o caráter
prudencial à determinação do direito hic et nunc – seja enquanto justo, seja enquanto
certo e singular – é distinguir a interpretação (mediação entre a norma e a realidade),
reconhecendo a contingência dos operáveis concretos; por isso, das reações opostas
desse abstracionismo metodológico acrônico (reações entre as quais se contam remédios
acaso piores do que a enfermidade atacada – assim, o irracionalismo jurídico de nossos
tempos; designadamente sua espécie mais de moda entre nós, o direito alternativo)
sobreleva a do realismo jurídico, que não constitui um sistema, antes é um método de
atingir a verdade, de saber o direito, de alcançar o justo: um método que não dispensa os
princípios universais da sindérese (sensum naturale), não ignora as conclusões da
ciência moral, não desconhece o direito positivo, não descarta a pluralidade de meios
para o conhecimento da verdade e, particularmente, não despreza a realidade das coisas.
[É aqui interessante notar que a extraordinária perdurabilidade e a atualidade
do tomismo – sua “ação presente e sempre eficaz” (Maritain, II, 15) – se devem
exatamente à circunstância de sua subordinação ao real: o tomismo não é um sistema,
senão que “una visión reflexiva de la realidad, articulada sobre las cosas mismas, cuyo
misterio trata de develar” – Ponferrada, 8; por isso, não estranha que ao tomismo adiram
pensadores não-católicos, reformistas (Farrer, Mascall, Emmet) e até um filósofo judeu
(Mortimer Adler).]
Acima já se observou que os limites da qualificação registrária se mostram de
maneira mais vistosa no plano interpretativo, enquanto seus supostos se restringem:
1 – ao título levado a registro,
2 – ao registro existente e persistente e
3 – à relação entre o título exibido e o registro existente.
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O recorte negativo pode sintetizar-se nesta redução: quod non est in tabula et
in instrumentum non est in mundo. A qualificação registrária move-se dentro desses
lindes, inadmitindo-se sua projeção a diligências exógenas desses supostos epistêmicos
objetivos. Não cabe, em geral, a inquirição de uma realidade extratabular, nem a
oposição do conhecimento privado do registrador (Ascensão, 42), tampouco a
consideração de provas não-literais (que não integrem, originariamente ou por
supervenção, o título apresentado a registro). Outras imposições limitativas encontram-
se na inoficialidade, em geral, do juízo qualificador, e da subalternação à res iudicata
(quanto ao tema do título judicial, a seu tempo se voltará). Examinemos, brevemente,
cada um desses pontos.
a) Títulos.
No Brasil, a qualificação registral dos títulos exibidos diz respeito não apenas a
seu aspecto exterior (título em sentido formal), mas igualmente à causa de aquisição ou
de oneração (título em sentido material) [brevitatis causa: De La Rica Maritorena, 1.724
ss.; Scotti, II, 31].
Tampouco se restinge o juízo qualificador ao título ordinário (ou principal),
estendendo-se aos acessórios (ou complementares) [Chico y Ortiz e Catalino Ramírez,
193], nem se limita, sob o color da origem pública dos títulos, a apreciar os
instrumentos privados.
b) Registro.
Para o direito brasileiro vigente, a existência e a persistência de um registro,
cuja eficácia de algum modo se projeta para uma nova inscrição, também recai no
campo da qualificação registral, no limite de sua validez in se. Em outros termos, a
nulidade do registro ou sua deficiência expressiva devem sempre apreciar-se e podem
interditar uma nova inscrição, independentemente de simultânea declaração da primeira
(confira-se nosso Do Controle da Disponibilidade no Parcelamento do Solo, in Direito
Imobiliário – Coletânea – I, edição do Instituto de Ciências Aplicadas). Não se pode,
contudo, manejar a superveniente desconformidade do registro com o título em que se
amparou (arg. do art. 252, Lei 6.015, de 31.12.73) e mais amplamente com toda a
realidade extratabular; não se cuidaria já de apreciação do registro in se mas em relação
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com o título anterior. Diversamente, é de admitir a consideração do conjunto do
registro, vale dizer: não apenas do registro imediatamente anterior mas ainda das
inscrições remotas (Hedemann,130).
c) Títulos relacionados ao registro.
Também, juxta modum, tem-se admitido a estimativa de registros que, de
alguma forma, se relacionem ou com a filiação registrária considerada (registros
colaterais), ou com imóveis contíguos (o que, em outro âmbito, permite as colmatações
de medidas de contorno nas descrições imobiliárias), ou com pessoas intervenientes na
titulação (p. ex., conhece o registrador, diante de determinada inscrição, que o alienante
é pré-morto à elaboração de determinado título), ou, aqui mais uniformemente, com o
livro de Protocolo (para salvaguarda da prioridade). Mas o plano principal de
relacionação entre título exibido e registro anterior diz respeito ao controle da
disponibilidade (lato sensu, abrangendo a especulação adequada da especialidade
objetiva e a aferição do trato consecutivo). Não se admite, em princípio, o cotejo do
título com outro título em curso de registro, mas não seria irrazoável sua estimativa
conjunta em casos extremos de inautenticidade (inclusa a incapacidade não suprida: p.
ex., em outro título se verifica que o alienante é interdito).
d) Instância da qualificação.
A qualificação registrária sujeita-se ao princípio da instância, quanto ao
procedimento, que não se inaugura à mingua de rogação (ne procedat custos ex officio);
a desqualificação, enquanto resultado, impõe-se como tarefa oficial (García Coni, III,
111), porque o registrador é o guardião ou conservador da segurança jurídica
imobiliária. Em todo caso, a oficialidade da desqualificação supõe os lindes objetivos
antes apontados.
Consideração analítica do juízo qualificador
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Dentro dos estreitos limites que aqui se impõem, por exigência de brevidade,
cabe estimar analiticamente a qualificação registrária, figurada desde a perspectiva do
direito particular de regência, sem embargo do muito que influiu e ainda influencia o
direito comparado e a doutrina estrangeira, sobretudo a argentina e a espanhola. (Mais
adiante se examinarão alguns aspectos particulares da qualificação dos títulos judiciais.)
a) Exame da própria competência.
O primeiro dos temas que o registrador considera, em ordem ao juízo de
qualificação, é o de sua competência registral em razão da matéria e em razão do
território (Scotti, II, 47). Freqüentemente, desde logo se aprecia o tema dessa
competência, no ato mesmo de recepção do título, o que a doutrina chama de
qualificação abreviada, que excepciona a integralidade do juízo qualificador.
b) Análise de eventual impedimento próprio.
Prevê-se em lei o impedimento, que é matéria de passo subseqüente ao do
exame da competência própria para a qualificação (art. 18, Lei 6.015, cit.; “competência
pessoal”, no dizer de Cárcaba Fernández, 176; Costa Magalhães, 23), porque a
exigência de segurança jurídica impõe a imparcialidade do registrador (e a do notário:
Vallet, IV, 324), enquanto terceiro que dá forma (freqüentemente) a uma aquisição ou
oneração. [Refiro-me à inscrição constitutiva: ela é forma dos direitos reais imobiliários;
o titulus é mera potência que se atualiza pelo modus adquirendi; ora, próprio da forma é
atuar a potência passiva, que é a matéria, de sorte que a forma consuma a existência da
coisa e se inclui no constituído (Suárez, 922, 1.192 e 1.211).]
c) Rogação.
Não se deve, a pretexto de observar o princípio da instância, transformar a
rogação de registro num ato solene, formalismo incompatível com a dinâmica que se
reclama do sistema publicitário (particularmente se se considera a inscrição de efeitos
constitutivos), mas o fato é que apenas ut in pluribus a recepção dos títulos se confunde
com a instância de seu registro. É que o direito normativo vigente reclama, para a
averbação, requerimento do interessado, com firma reconhecida (par. ún., art. 246, Lei
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6.015, de 31.12.1973), mas, quanto ao registro stricto sensu, basta a apresentação do
título, contanto que não se excepcione a intenção registral.
Nesse passo, o direito brasileiro distingue a qualificação em ordem imediata ao
registro e a qualificação sem efeito diretamente inscritivo (títulos que são apresentados
“apenas para exame e cálculo dos respectivos emolumentos” – par. único, art. 12, Lei
6.015, cit.). Assim, impõe-se esta classificação: 1 – casos de rogação de registro; 2 –
casos em que há mero requerimento de qualificação, sem escopo de imediato registro; 3
– casos anômalos – mas lamentavelmente não de todo infreqüentes – em que títulos
“aparecem” nos Ofícios Imobiliários sem que se saiba, a seu propósito, se há ou não
instância de registro ou de mero juízo qualificador. A solução dos casos passa, muito
comumente, por regulações locais, particulares, mas, de toda sorte, ao registrador cabe
sempre apreciar, sem feiticismos formalistas – o que não implica desapego da forma –,
se se encontra diante de uma ou de outra situação. Não é demasiado observar que, além
do evidente reflexo jurídico da inscrição (p. ex., no limite pense-se em um distrato que
permaneceu exógeno ao registro, exatamente porque não se inscreveu o título
primigênio, que é um destes que repentinamente “aparecem” nos escaninhos da
recepção...), há o tema do dispêndio pecuniário com a registração.
É preciso ainda considerar a persistência da rogação. Não basta o intento
inaugural, senão que se exige sua permanência, presumida em caso de silêncio do
apresentante. A desistência, que se pode eficacizar até a ultimação do registro,
interrompe o iter registral, de sorte que, acaso já proferido o juízo qualificador, perde
ele seu efeito (Scotti, II, 107). Outrossim, admite-se a desistência parcial do
procedimento, suposto que do título decorra mais de um registro (Pau Pedrón, II, 57;
Cárcaba Fernández, 157), sempre resguardada, para a pretensão remanescente, uma
requalificação do registrador, porquanto há casos em que a desistência parcelar engasta
a desqualificação quanto ao restante (p. ex., figurem-se uma compra e venda e uma
hipoteca subseqüente disposta pelo adquirente, no mesmo instrumento notarial, em face
de uma desistência parcelar relativa ao registro da aquisição).
Tendo em linha de conta que, no Brasil, o registro pode (em princípio) ser
provocado por qualquer pessoa, com independência de fundamentação de interesse (art.
217, Lei 6.015, cit.), ainda que o apresentante seja terceiro que pelo registro perseguido
não adquira legitimidade tabular, não pode o beneficiário da inscrição pretendida
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desistir do procedimento por aquele instado. O que se ressalva é ulterior providência de
cancelamento, mas, ainda assim, cumpre ver que há casos de subsistência da
potencialidade de novo registro, desta vez, contudo, comprovado o interesse (art. 254,
Lei 6.015, cit.: não se trata, nesse preceito, apenas do credor que, com o registro, se
tornará registral; qualquer credor poderá rogar a nova inscrição, provando
documentariamente o interesse).
d) Registrabilidade do título in abstracto.
Se, quanto ao objeto, em si (imóvel ou móvel) e em sua ubiquação, e quanto à
finalidade do registro buscado (situação real ou pessoal), o exame primeiro da própria
competência supera uma análise posterior, o mesmo não se pode dizer da
irregistrabilidade in abstracto da causa. A diferença de efeitos é patente: no primeiro
caso, desqualifica-se por incompetência em razão da matéria ou em razão do território;
no segundo, desqualifica-se porque a causa é irregistrável perante o registro competente,
de que emana o juízo desqualificador. A registrabilidade depende da previsão
normativa: se a lei de regência inadmite a inscrição de posse ou de comodato, de leasing
ou de multipropriedade, de protesto contra alienação de bens ou de arrolamento
cautelar, tudo isso deve ser apreciado, no âmbito compreensivo do sentido normativo da
lei, e envolve um ato primeiro de exame da causa, com abstração de seu instrumento.
e) Formas documentais extrínsecas.
Admitidos a registro títulos públicos e particulares, aqueles, judiciais, notariais
e administrativos, verifica-se desse modo a variedade dos requisitos extrínsecos da
documentação a examinar. De maneira geral, em todo caso, se analisam nos
instrumentos, entre outros e particulares pontos:
1 – a viabilidade registrária do documento, segundo sua forma (art. 221, Lei
6.015, cit.; mas o dispositivo não relaciona em numerus clausus: Valmir Pontes, 148);
2 – a determinação (ou individualização) e a especialidade (ou qualificação:
estado civil, profissão, domicílio, nacionalidade) das partes (mas, note-se bem, nada
impede que a especialização subjetiva lacunosa no título ordinário se complete com
documentos acessórios idôneos);
3 – intervenção e outorga das partes;
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4 – exposição (pode dizer-se parte antecedente, síntese expressiva das
premissas do negócio jurídico: nessa parte descreve-se o objeto do ato, justifica-se a
disposição, descreve-se o imóvel, indica-se-lhe a situação real, determina-se-lhe o valor
– Giménez-Arnau, 630 ss.; Emérito Gonzalez, 201 ss.; Chico y Ortiz e Catalino
Ramírez, 209 ss.);
5 – estipulações ou parte dispositiva (conclusão da exposição, conseqüente das
premissas do negócio jurídico, em que “se establecen los acuerdos, pactos y
modalidades del negócio jurídico que la escritura se propone solemnizar” – Giménez-
Arnau, 643);
6 – originalidade do documento, que não pode ser exibido em cópia
reprográfica; também não se autoriza a utilização (enquanto substitutiva de títulos
ordinários ou principais) de certificados de registros conservatórios;
7 – para as escrituras tabelioas, entre outras questões particulares: competência
do notário, ausência de impedimentos notariais patentes (Pelosi, 164 ss.), observância
do procedimento (leitura, correções e entrelinhas regularmente ressalvadas), subscrição
do traslado pelo notário ou seu substituto legal (Costa Magalhães, 23);
8 – para os títulos privados: sua subordinação aos limites legais (art. 134,
Código Civil), reconhecimento dos autógrafos dos intervenientes, comparecimento de
testemunhas, datação;
9 – a apresentação de documentos acessórios.
Muito mais se poderia relacionar (p. ex., o tema de rasuras em matéria
acidental, o das abreviaturas e o das abreviações, o dos espaços em branco, o das
assinaturas a rogo, o da presença de impressão dactilar, o dos documentos estrangeiros,
o da autorização judicial, etc.), mas isso não condiz com os limites a que nos
propusemos. Bastam essas referências.
e) A expressão verbal.
Ao lado de uma compreensão do sentido normativo da lei e antes ainda da
tarefa interpretativa (mediação entre a norma e a realidade), impõe-se ao registrador a
compreensão da causa, equivalente específico da diagnosis del hecho (na linguagem de
Castán) ou do tratamiento jurídico del hecho, no dizer de Vallet. O cotejo mediador
entre a norma e a causa supõe a prévia compreensão de ambas, e seu entendimento
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 103
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passa por isto que Bernanos, por uma de suas personagens, dizia ser uma imensa
desgraça humana: a incapacidade da palavra, sua insuficiência, sua deficiência
significativa, sua menor claridade. Dínio Garcia (83) observa que a linguagem natural
adotada pelos juristas (e, mais além, se pensarmos nos títulos particulares, elaborados
por “juristas” in eventum) é fértil em problemas semânticos, “não só em razão da
multiplicidade de significados que em regra acompanha o uso vulgar, mas sobretudo
porque o Direito não recebe pura e simplesmente as palavras da linguagem comum, mas
as transforma”, e, prossegue o Autor (84), referindo-se ao ideal da univocidade da
linguagem jurídica, se ainda “a linguagem das ciências exatas não elimina a incerteza”,
embora a reduza, “como pretender que a ambigüidade seja de todo eliminada no âmbito
do Direito?”
Compreender a causa registral é desvelar sua realidade: é ir do termo ao
conceito formal, para descobrir o conceito objetivo. É este o que mais conta, não a
expressão deficiente; vale o dictum, enquanto expressão do actum; vale a substância,
não o nomen iuris: comodatos onerosos, vendas e compras gratuitas, condições que são
encargos, locações que são enfiteuses... O que se qualifica em ordem ao registro é a
causa, não sua isolada expressão verbal, contanto que aquela se desvende certamente da
intelecção do documento exibido.
f) Capacidade dos outorgantes e validade dos atos dispositivos.
Sob essa rubrica mais ampla, indicam-se não apenas a capacidade jurídica
(arts. 2.º, 4.º e 10, do Código Civil) e a capacidade de agir (arts. 5.º e 6.º, do Código cit.)
dos que intervém na instrumentação da causa, especificando-se temas como o da
representação (p. ex., arts. 17, 84, 384, V, 426, I, Código cit.) e o da assistência (arts.
384, V e 426, I, Código cit.), mas igualmente “outras circunstâncias dimanantes de seu
estado civil ou de sua condição pessoal que exerçam influxo na legitimação e no poder
de disposição necessárias para levar a cabo os atos e negócios jurídicos (p. ex.,
nacionalidade, existência de proibições legais, suficiência de um poder de representação
voluntária, aptidão do representante legal)” (Díez-Picazo, 318, 319). Pense-se na
indisponibilidade de bens, na ausência, na interdição, na emancipação, nas restrições de
aquisição de imóveis rurais por estrangeiros, nas aquisições pretendidas por espólios
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(tema que pende, entre nós, de importantíssimas distinções), massas falidas e
condomínios em edifício, etc.
A matéria deve ser particularmente examinada desde a perspectiva do direito
posto, sobretudo com a distinção entre nulidade e anulabilidade dos atos jurídicos, na
medida em que são nulos os praticados por pessoa absolutamente incapaz (n. I, art. 145,
do Código Civil) e anuláveis (n. I, art. 147, Código cit.) – bem por isso ratificáveis (arts.
148 e 149, do Código Civil) – os feridos de incapacidade relativa do agente. No
primeiro caso, cabe a desqualificação, por admitido o exame oficial (art. 146, do Código
Civil); no segundo, entretanto, certo que a anulabilidade não se pronuncia de ofício e
não tem efeito antes de julgada por sentença (art. 152, do Código cit.), inviável é seu
reconhecimento no juízo qualificador. Nesse sentido e entre nós, a doutrina, indicada já
por Afrânio de Carvalho (257), de Tito Fulgêncio (322) – que Carvalho Santos (453)
abona –, de Pontes de Miranda (279), do mesmo Afrânio de Carvalho (embora não a
prefira de lege ferenda: 257); veja-se ainda Valmir Pontes (98, 99); entre os
doutrinadores estrangeiros, confira-se Díez-Picazo (322, 323); contra: Philadelpho
Azevedo (53) e Costa Magalhães (23); distinguindo, Serpa Lopes (349), para admitir a
desqualificação por incapacidade relativa ou deficiência extrínseca do ato, recusando-a
quanto às anulabilidades derivadas de vícios volitivos. Como quer que se projete a
questão, no plano da conveniência de um sistema registral hígido (em todo caso, haveria
muitos aspectos a examinar), o fato é que, diante do direito posto, não se pode retirar
efeitos aos atos anuláveis enquanto não houver sentença que assim os julgue; calha
observar que a divisão entre atos nulos e atos anuláveis se apóia no critério da
prevalência do interesse público (para os primeiros) e do interesse individual (quanto
aos segundos), não se justificando que, à margem daquele nível de interesse, o
registrador se ponha em custódia de um interesse parcelar, rompendo a imparcialidade
de sua atribuição – sem justificativa de matiz público. Ademais, ao menos se se pensa
na publicidade declarativa, a inscrição não aumenta a eficácia documental, senão que
torna cognoscível mais facilmente um excesso de eficácia exógena (força probante
absoluta do ato público), que prejudica o tráfico jurídico (Rodrigues Adrados, 64), o que
até, pois, recomendaria a preferência de sua efetivação.
g) Problemas fiscais e urbanísticos.
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Antes da vigência do Decreto 18.542, de 24.12.1928, Tito Fulêncio (323)
ensinava que o título com deficiência meramente fiscal não comportava desqualificação,
com que, ao cabo, compreendia a norma do art. 1.137, do Código Civil, sob a óptica do
preponderante interesse do comprador (art. 677, par. único, do Código cit.). Com o
advento do Decreto citado e a legislação posterior (v.g.: Regulamento de 1939, art. 15;
Dec.-lei 58, de 1937, art. 1.º, IV; Lei 4.591, de 1964, art. 32, a e c; Lei 6.015, de 1973,
art. 289), mais não se pode entre nos sustentar o antigo entendimento do jurista mineiro,
em que pese a sua preservação de lege ferenda. Nesse sentido, a correta conclusão XIX
declarada na carta de Buenos Aires: “Los Estados deben evitar la sanción o derogar la
vigencia de normas que restrinjan, limiten o demoren la registración, sin perjuicio de
arbitrar los medios idóneos para garantizar el cumplimiento de sus disposiciones
administrativas y tributarias” (I congresso Internacional de Direito Registral, 1972).
Quanto ao reflexo registrário de temas urbanísticos fundamentais –
parcelamentos, reparcelamentos e limitações à edificação (Chico y Ortiz, IV, 481 ss.) –,
não é possível perder de vista o conflito doutrinário e ideológico que se encontra
radicalmente na questão, instalado no exercício da propriedade imobiliária privada. Não
se quer afirmar, de um lado, uma confiança extrema e feiticista na absoluta liberdade do
tráfico predial; mas, de outro, o remédio com que se diga corrigir o espontaneismo del
mercado (Martín Mateo, 1.245 ss.) somente se legitima enquanto não vise á negação do
próprio direito de propriedade, freqüentemente convertido em mera e caricaturada
função social. O direito urbanístico parece ser o desaguadouro de já frustrados ataques
ao domínio privado, com que, pretextando a ordenação social do solo urbano, não
raramente se desordena a propriedade. É interessante observar o que, ainda em nossos
dias, vem ocorrendo no âmbito das locações, principal fórmula de solução do problema
habitacional moderno (Vallet de Goytisolo, V, 546), em que sucessivas intervenções
estatalistas no mercado têm conduzido à diminuição das ofertas de imóveis; ora, os
fatores restritivos da elasticidade da oferta conduzem ao empobrecimento social: preços
políticos, preços coativos – com reajustes limitados ou obrigatórios –, preços não-
mercantis, sob o color da utopia do “preço justo” (Lamsdorff-Galagane, 75, 199),
diminuindo a quantidade de intercâmbios, impedem que a elasticidade da oferta atue
como um natural mecanismo corretor do mercado: ou seja, a pretendida correção
estatalista do mercado é o principal impedimento de sua correção. O mesmo vício de
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inelasticidade da oferta que se aponta para o capitalismo privado monopolista, por
evadir a concorrência – fundamento da elasticidade da oferta –, deve ser reconhecido (e
acaso com maior vulto) tanto no capitalismo estatal monopolista, quanto no
açambarcamento do controle de preços; não é, pois, sem razão que regimes estatalistas
se apresentem como herdeiros dos monopólios capitalistas privados, certo que o
resultado de todas essas monopolizações é o alheamento da sociedade do mútuo
enriquecimento no intercâmbio (Lamsdorff-Galagane, 75, 76).
Muito freqüentemente, afirma-se, em nossos tempos, a função social da
propriedade, com que, se diz, esse direito há de suportar limitações e restrições em vista
de sua ordenação ao bem comum. Pode lembrar-se a propósito, ainda hoje, antiga lição
de Vareilles-Somiéres, que ao princípio do século sintetizava: “La proprieté est
seulement le droit de tirer d'une chose tous ses services sauf exceptions. (...) Sur la
chose, le propriétaire peut tout, excepté certains actes (...)” (444). Respondem essas
exceções tanto à natureza das coisas, e então se diz que o exercício do direito de
propriedade suporta limitações impostas pelo direito natural, quanto ao direito positivo,
em que, pesadas as circunstâncias concretas, melhor se ordena o exercício do domínio à
realização de sua função social, a que também, entre nós, se refere a vigente
constituição da República (art. 5.º, XXIII; art. 70, III). Então se fala em restrições de
direito normativo. O que se deve examinar é se as restrições das leis não terminam por
vulnerar, com excessos reprováveis, o direito de propriedade privada – que é necessário
à vida humana (“necessarium ad humanam vitam” – Santo Tomás, Suma Teológica, Q.
66, art. 2.º, respondeo). Se é certo que as limitações e as restrições são, em princípio,
igualmente necessárias à vida humana, bastando recordar, com Messner, que “a
primeira função social da propriedade privada é a delimitação clara entre o que é de um
e o que é de outro” (1.240, 1.241), ó que é indispensável para a paz social, não menos
correto é que as restrições (de finalidade urbanística ou não) que se imponham em nome
da função social do domínio são sempre posteriores à determinação histórica da
essência da propriedade e respeitosas dela. (Acrescente-se, de caminho, que impende
evitar o demasiado dos requisitos administrativos para a inscrição predial, exagero que
fomenta o clandestinismo imobiliário.)
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Qualificação dos títulos judiciais
Vistas uniformes, entre nós, na doutrina e no que, com López Medel, se pode
chamar (sem extrapolações quanto à natureza da função) de justiça registral, conduzem
à admissibilidade da qualificação dos títulos de origem judicial. O apoio que se possa
buscar na doutrina estrangeira [p, ex., a espanhola: Roca Sastre (271 ss.), Lacruz (I,
396), Hernández Gil (151, 152), Cossío y Corral (172, 173), Cano Tello (122, 123),
Mena y San Millán; e a argentina: García Coni (III, 124, 125), SCOTTI (II, 593 ss.)]
tem certamente a dificuldade de que as respectivas leis de regência contém prescrições
que não encontram similar no direito brasileiro vigente. Isso por si só já explica a menor
extensão com que a matéria vem cuidada em nossos doutrinadores, em que pese ao
reconhecimento da pertinência da qualificação registral dos títulos judiciais (p. ex.:
Serpa Lopes, 355; Afrânio de Carvalho, 249 ss.; Walter Ceneviva, 128). Ressalve-se,
porém, que a Lei argentina 17.801, de 28.6.1968, exige uma consideração sistemática de
dois dispositivos gerais (arts. 3.º e 8.º) para assentar os traços da qualificação dos títulos
judiciários, ao passo que o Regulamento Hipotecário da Espanha contém norma
específica; em ambos os casos, como quer que seja, há maior amplitude normativa do
que no direito brasileiro.
Se não se pode falar, propriamente, em que haja no Brasil um direito pretoriano
ordenador dessa qualificação registrária dos documentos judiciais, até porque a lei
regente autoriza quodammodo admiti-la (p. ex., arts. 221, IV, 222, 225 e 226, da Lei
6.015, de 1973), é adequado reconhecer que a especialização desse direito é de origem
Judiciária. O exame de julgados relativos à matéria conduz à impressão de que as
decisões não refletem diretamente o influxo do direito e da doutrina estrangeiros. Antes
(e o afirmo dentro de limites informativos que preciso ressalvar – sempre é bom advertir
que no Brasil há mais de duas dezenas de justiças registrárias estaduais – mas o afirmo
também com o peso de uma considerável experiência judicante nessa área), parece que a
elaboração desse complemento especializador dos requisitos e da extensão do juízo
qualificador de títulos judiciais se ensejou de modo autônomo, à luz de princípios e
regras gerais, sem excluir sequer os mais remotos (no nível do direito civil, processual
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civil, constitucional, tributário, administrativo e até penal – incluso normas de seu
processo).
A despeito dessa autonomia formativa, os resultados a que se podem sintetizar
as conclusões – acaso, com abstração dos julgados que, exceptivamente, e, no limite,
algumas vezes sob a escusa de peculiaridades vertentes, se afastam de um paradigma
redutor – não discrepam, no geral, da doutrina estrangeira invocável (sobretudo a
espanhola e a argentina; seria em todo caso interessante estudar se o descabimento de
adoção entre nós da doutrina alemã, resumida a qualificação germânica ao negócio
abstrato, sem atingir a causa, teria conduzido nossos primeiros jusregistralistas a
encaminhar-se à via autônoma indicada).
Quatro temas fundamentais podem ser retraçados (e discutidos) no plano da
qualificação de títulos judiciais:
1 – a verificação da competência judiciária;
2 – a apuração da congruência do que se ordena ao registro com o processo
respectivo;
3 – os obstáculos registrais;
4 – as formalidades documentárias. Examinar-se-ão brevemente aqui os três
primeiros pontos, já cogitado atrás o último num âmbito mais genérico.
a) Competência.
De consonância com o Regulamento Hipotecário espanhol, art. 100 (até
novembro de 1982 – com a vigência do Real Decreto 3.215 –, correspondia ao art. 99),
o primeiro tema do juízo qualificador dos títulos judiciais é o da competência da
autoridade judiciária em que se formaram (Mena y San Millán, 56; também no direito
argentino: Scotti, II, 605). Diz com razão Mena y San Millán (59) que “es indiscutible
que el Registrador tiene que establecer antes de practicar operación alguna, si lo que se
establece o manda está realmente establecido o mandado”.
A divisão da competência – e particularmente sua estimativa enquanto matéria
de objeção – deriva do direito posto (constitucional, processual civil e organizatório, da
justiça) e guarda extrema relevância para a qualificação. É certo que, ainda no direito
brasileiro, a competência da autoridade judiciária em que se forma o título inscritível
deve ser apreciada pelo registrador, que, no entanto, apenas se limita ao exame da
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competência absoluta. Isso também pode sustentar-se na Espanha, como fazem ver,
mencionando decisão da Direção Geral dos Registros e do Notariado, os anotadores da
Legislación Hipotecaria da Editorial Colex (Madri, 1988, 240): “cabe la sumisión de las
partes a un determinado Juzgado, bien expresa, bien tácitamente, en cuyo caso no puede
el Registrador apreciar incompetencia del Juez, ya que ello supondría erigir al primero
en defensor de los intereses de las partes, que éstas pueden ejercitar en la forma que
estimen más oportuna”. Na mesma direção, Scotti (II, 606), invocando o apoio de De La
Rica y Arenal e da X Reunião Nacional de Diretores de Registro da Propriedade,
realizada em Bariloche, 1973.
No processo civil brasileiro em vigor, a competência relativa, no que respeita
às partes, só pode ser argüida mediante exceção, temporalmente limitada (não se exclui,
contudo, a prioridade lógica e cronológica da objeção, sempre judicial, desde que
ausente ato decisório: a competência, matéria de ordem pública, é o primeiro dado de
aferição epistêmica no processo). Em todo caso, enquanto interesse preponderantemente
às partes, o tema da incompetência relativa não pode ser apreciado pelos registradores,
em afronta da prorrogação legal (cfr. arts. 102, 112 ss. e 304 ss., do Código de Processo
Civil).
b) Congruência.
Impende distinguir a congruência dos julgados, numa perspectiva processual, e
a congruência do título amparador do registro com o julgado que o enseja, matéria que
se situa no nível registral morfológico.
Com efeito, a questão da congruência dos julgados, em si mesmos
considerados, inserta-se no âmbito do princípio processual do dispositivo, na medida em
que as partes dominam não apenas o direito substancial que almejam deduzir em juízo,
mas igualmente os direitos processuais que pretendem exercitar, e seu possível maltrato
é matéria jurisdicional, que não pode submeter-se à aferição registrária. Certamente, não
cabe aos registradores nenhuma função rescisória dos efeitos inscritíveis dos julgados, a
pretexto de sua incongruência processual, porque semelhante atribuição usurparia a
competência jurisdicional (Scotti, I, 610 ss.). (É conhecido um caso em que, julgada
extinta a usucapião após a justificação liminar, a Superior Instância, malferindo a
congruência de alçada, declarou de logo a aquisição pretendida, em acórdão que passou
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em julgado; prevaleceu o correto entendimento de que o registrador não poderia acenar
ao vício processual, cabendo aos interessados a via rescisória ou a reivindicatória.)
Diversamente, pode cogitar-se de uma incongruência morfológica do título
(formal) em relação à sentença ou ao acórdão a que se vincule. Já não se trata de
analisar uma incongruência processual, mas de relacionar eficazmente o título à decisão
judiciária. Ali, o ângulo de exame é causativo, respeita à normalidade da decisão; aqui,
é de efeito, é de relacionação entre o título formado e o julgamento que o propiciou.
Seria possível, em todo caso, anotar, entre nós, alguns precedentes que, prima
facie, sugeririam óptica e solução diversas. Tome-se o exemplo, mais de uma vez
emergente, de processos divisórios com ordenações inscritíveis de caráter demarcatório:
a extrapetição é espécie da incongruência objetiva, de natureza manifestamente
processual, e não pode subordinar-se ao controle registrário. Para evadir a alteração
produzida com maltrato da congruência processual, não é preciso (nem possível)
fulcrar-se nela, bastando que se objete com o princípio do trato sucessivo (vale dizer,
para a hipótese, a ausência, no título, de menção de efeitos contra os confinantes da
linha demarcanda); não se cuida de estimar causativamente a incongruência subjetiva,
mas de impedir que se vulnere a consecutividade tabular.
c) Obstáculos registrais.
Não falta, entre nós, apoio normativo genérico a que o registrador considere os
óbices postos pelo registro vigente às inscrições dos títulos judiciais, particularmente
nos planos da consecutividade do trato (arts. 195 e 237, da Lei 6.015, de 1973), da
especialidade objetiva (§ 2.º, art. 225, da Lei cit.) e da prioridade (arts. 186, 189 e 190,
da Lei cit.). Observa com razão Mena y San Millán (103) que, nesse passo, “se puede
llegar a esterilizar el fondo mismo de una resolución judicial, sin que ello implique
juicio sobre su esencia determinadora”.
Parece este o ponto azado para fazer aqui uma nova recorrência, que ponha em
particular destaque a importância dos princípios registrais no âmbito da ordem jurídica.
É preciso ter presente que a manifesta insuficiência do normativismo ensejou reações
tão voluntaristas e nominalistas, ao cabo, quanto o é o positivismo legalista. À idéia de
um conjunto de leis dos fenômenos sociais que, à maneira das leis físicas, induzisse
soluções ordenadoras pouco menos que absolutas, sucedeu a comprovação de que a
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irrepetibilidade dos fatos refugia das regras objetivantes: a cada fato seria possível,
então, corresponder uma nova lei, de sorte que a acumulação fática rendia ensancha à
hipertrofia regulamentar, sujeita a uma contínua insuficiência: esse nominalismo
extremo terminaria por desembocar em variantes irracionalistas (p. ex.: propositado
circiterismo normativo, correntes de direito livre, direito alternativo) ou no método
tópico, que, na tentativa de suplantar a deficiência do normativismo, recaíram em vícios
acaso piores. [Quanto à jurisprudência tópica, poder-se-ia para logo dizer, com Flume,
que o pensamento jurídico é sempre um pensamento problemático, de modo que o
reconhecimento da existência de problemas, à raiz da ciência e das soluções jurídicas,
não importa numa novidade da tópica moderna, nem implica a negação do pensamento
sistemático; demais, não é correta a identificação simplista do pensamento sistemático
em geral com o pensamento axiomático, de sorte que “„pensamento problemático‟ e
„pensamento sistemático‟ não têm de modo algum de excluir-se um ao outro” (Larénz,
186); demais, a tópica “é impraticável na medida em que se ligue à retórica, pois o
indagar pelo justo não é nenhum problema de pura retórica, por muito que sempre se
possa alargar também esse conceito” (Canaris, 255); além disso, se se prescinde do
direito normativo, abrindo-se ensejo a que o aplicador eleja arbitrariamente o topos
adequado ao caso, há o risco de ele concorrer ao irracionalismo judiciário (Menezes
Cordeiro, 52; a menos que se aferre a princípios primeiros da razão prática e às
conclusões éticas, a exemplo dos juriconsultos romanos – Vallet, II, 158, 159 – o que
conduziria, fatalmente, a uma ética abstrata): mas, ao contrário, para alcançar decisões
corretas, o juiz (principalmente mas não só: também o registrador, o notário, em geral
todos os operadores jurídicos)) o juiz deve “proferir uma decisão que se harmonize, em
primeira linha, com as regras do Direito positivo e com os princípios de valor que lhe
subjazem”, e por isso precisa mais estendidamente “de uma ciência jurídica que não lhe
dê a conhecer só as diversas regras e proposições decisórias, mas lhe revele também as
valorações que a estas subjazem, as suas relações, graus de hierarquia, dependências e
limitações recíprocas, e o jogo combinado das proposições jurídicas fundamentais
(princípios), dos institutos jurídicos e das regulamentações” (Larenz, 185); se a
jurisprudência tópica procura reatualizar a ética, deve reordenar-se menos como artifício
retórico do que como arte a serviço da eqüidade e, em todo caso, dirigir-se ao legislador
de preferência ao julgador.]
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A apreciação metodológica dos princípios registrais deve engastar-se nessa
visualização mais ampla do saber jurídico: a circunstância de o ponto central da
metodologia registrária ser a qualificação (a solução justa, correta ou segura) não
implica o propositado desconhecimento dos limites postos pelo direito normativo, sob a
escusa de supostas previsões injustas. Ao reverso, essa inclusão do juízo qualificador na
base da metodologia do registro responde ao traço teleológico que o justifica: a
conferência da segurança jurídica, enquanto fulcrada no direito positivo. Isso deve
referir os princípios registrais, numa linha acentuada, ao direito normativo, sem,
contudo, perder a consideração: 1 – da sindérese e da ética, enquanto forneçam
indicações para a compreensão da norma; 2 - e, quanto à aplicação, da total
consideração da realidade; assim, não se trata de separar princípios a partir de uma
dedução da lei positiva, mas de, sempre conformes a essa lei, estabelecê-los
compreensivamente à luz dos princípios sinderéticos, das conclusões da ciência moral,
do relacionamento inter-sistemático e dos princípios gerais do direito. Não se recusa que
a descoberta de problemas e a evolução subjetiva dos princípios estejam em íntima
relação (Chico y Ortiz, V, 828 ss.), mas a solução justa – salvo o extremo de uma ofensa
ao direito natural ou a lacunosidade normativa – passa pelo direito positivo (Santo
Tomás, Suma Teológica, IIa.-IIae., Q. 57, art. 2.º, passim).
Nesse plano, põe-se em evidência uma tensão, ao menos aparente, entre o justo
(enquanto resultado de uma atuação jurisdicional) e a segurança jurídica assinada pelo
registro. Não se trata, por certo, de sobrepor a ordem da segurança à determinação da
justiça, mas de afiná-las, de modo que o justo se confira dentro de uma ordenação
segura, formalmente segura. Longe, pois, de sublinhar uma antinomia inexistente entre
justiça e segurança jurídica, a consideração dos obstáculos registrários (à luz de seus
princípios) para a inscrição de títulos judiciais resulta numa plena realização do bem
comum, certo que justiça e segurança jurídica não se atualizam em contraposição. Não
se está a afirmar que se deve fazer isto ou aquilo unicamente porque se deve,
unicamente porque a lei é obrigatória, mas que se deve fazer o que a lei determina
enquanto contém o justo natural ou o justo positivo (estamos longe, pois, do formalismo
kantiano, de cujo espólio o positivismo jurídico soube aproveitar-se). Mas, em
definitivo, quando se acena a um direito formal, o que se almeja é o efeito protetivo da
forma, com a preexclusão de conflitos (Roubier, 91 ss.), não porque se deve cumprir a
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lei, mas por sua referência a um aspecto material (a prescrição do justo ou do certo,
natural ou positivo; não falta razão a Javier Hervada (306) quando diz que o direito de
Kant “no es un derecho para personas, sino un derecho para esclavos”).
* * *
No que respeita ao trato sucessivo ou consecutivo, podem claramente invocar-
se os motivos últimos da segurança jurídica, a justificar o relevante papel de custódio
tabular que se impõe ao registrador no juízo de qualificação, porque não seria de admitir
que o legitimado registral tivesse vulnerada a situação jurídico-real à míngua de uma
disposição regularmente substituída pelo Judiciário (equivale a dizer que,
morfologicamente, o título há de afetar de modo expresso o titular registral, ainda que
não caiba o controle registrário de sua citação no processo). Põe-se dessa maneira uma
tutela oficiosa do interesse do terceiro hipotecário e da eficácia defensiva do registro.
Nesse âmbito é que se devem situar as freqüentes desqualificações por afronta da
consecutividade.
Note-se, para logo, que os obstáculos (melhor se diria: as garantias) postos pelo
trato sucessivo não visam apenas – nem primeiramente – à segurança dinâmica. Por
certo, dizem-lhe também respeito, mas o principal objetivo do sistema publicitário é a
proteção do legitimado tabular, é a segurança estática. Havíamos já afirmado essa
predominância (com os olhos mais certamente postos na publicidade constitutiva): “a
segurança dinâmica esperada do registro permanece, em certo aspecto, exterior à tábula,
e, de outro lado, restringida ao passado: antes da aquisição dominial ou a constituição
de direito real menor ela é simples confiança nos efeitos da segurança estática; depois
da inscrição aquisitiva, ela só ressona em relação ao pretérito (na eventualidade de
litígios sobre direitos anteriores), porque o adquirente ou credor com garantia real, uma
vez inscrito seu título, passa a gozar da proteção contemporânea decorrente do direito
posicional adquirido” (A Constituinte e o Registro de Imóveis, cit. 21-22). Não se nega
que a relevância e o mecanismo do trato consecutivo sejam históricos (Roca Sastre,
Lacruz) e não apenas derivados do derradeiro fato jurídico (até porque o objeto da
publicidade é a situação jurídica, não o fato – Ferreira de Almeida, 178 ss.), e tampouco
que isso importa na proteção do tráfico; o que se quer afirmar é a superior finalidade da
segurança estática, em que se apóia a dinâmica (Vallet, IV, 327, acentua a circunstância
de que a principal garantia do tráfico é a titularidade dominial e conclui: “La seguridad
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dinámica del tráfico se apoya así en la seguridad estática de la propiedad”). É possível
estimar um tanto exagerada a afirmação de Caperochipi, no sentido de que a
propriedade é o princípio epistemológico de todo o direito – acaso, o exagero se
corrigiria com dizer que “de todo o direito real” –, porque o confronto do socialismo
jurídico (e de outras concepções ideológicas) com o direito clássico ou tradicional
permite configurar outros e relevantes conflitos específicos: p. ex., divórcio, amor livre
contra o matrimônio monogâmico; aborto, eutanásia contra o direito à vida;
heteronomia de vontades contra sua autonomia, no plano obrigacional; estatalização da
herança contra sua transmissão; administrativização dos direitos contra sua pluralidade
elaborativa; auto-suficiência do direito positivo contra o direito natural; irracionalismo
judiciário contra o direito positivo (V. Urquieta, 63 ss.). Haverá, pois, tantos fulcros
epistêmicos quantas sejam as "zonas de combate" entre a concepção do direito clássico
(ou tradicional) e as várias concepções ideológicas modernas. É certo, no entanto, que a
questão mais relevante, na disciplina e nas situações jus-reais, é a da propriedade,
impondo-se sua presença na raiz dos direitos limitados e na da segurança dinâmica.
Ademais, cabe dizer, com Lacruz (II, 382), que o trato sucessivo não é um
suposto necessário ao exercício do atributo de disponibilidade, mas simples requisito de
inscrição, enquanto protetivo formal da titularidade dominial resultante da legitimação
tabular. Ou, nisto de Ferreira de Almeida (233): o trato consecutivo é a transposição
técnica para o registro de uma condição de validez do ato dispositivo.
Nessa perspectiva, é cômodo vincular a especialidade ao trato sucessivo,
sobretudo se aquela se considera em seu plano objetivo. É que a consecutividade
imobiliária deve necessariamente abordoar-se a um objeto (imóvel), determinado e
especializado: “Determinar essa substância corpórea indivídua é identificá-la por
algumas das categorias ou predicamentos que nos dizem qual é o modo de ser da
substância” (nosso Do controle da disponibilidade no parcelamento do solo, cit., 3).
Singularizar quantidade, figura e ubiquação dos imóveis é especializar o objeto sobre o
qual se estabelece em algum aspecto a situação publicada: a consecutividade, ao cabo,
se desenvolve nesse plano relacional que supõe necessariamente. (Avulta a importância
da especialidade objetiva, porque, na medida em que a base do sistema registrário seja o
imóvel, ele – especializado – é o critério atrativo das inscrições; sob o aspecto da
eficácia registral, a consecutividade aparece mais vultosa porque revela, sobretudo, o
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domínio, e é a via de atuação quer da fé pública, quer da legitimação – embora não
necessariamente (Peña y Bernaldo de Quirós 106).)
Tanto o trato sucessivo, quanto a legitimação registral (ou a fé pública, se o
caso) supõem a base objetiva especializada, não apenas porque prevalece o interesse
gnoseológico no âmbito jus-real (vale dizer, direito sobre res corpórea e determinada;
essencialidade da inerência), mas também porque a deficiência na publicidade é de
efeitos acaso mais graves para o tráfico do que a ausência dela. Nesse plano, põe-se a
distinção entre a situação publicitária apenas formal e a situação publicitária material:
naquela, a lacunosa enunciação tabular não permite extrair do registro sua integral
eficiência (trata-se de defeitos de determinação e especialidade, objetiva e subjetiva). A
circunstância de comumente se preservar a validez formal do assento – e, em certos
casos, admitir a seqüência matricial a partir de transcrições com vícios de especialização
imobiliária (mas não de determinação!) – é derivada de uma razão de política fundiária:
o que acrescentaria, eficazmente, a matriculação que já não tivesse efeitos na
transcrição? Diversamente, quando se trate de segregações prediais: o suposto
fortalecimento do tráfico imobiliário não se faz à custa do sacrifício da segurança
estática, nem com adrede risco de engendrar maiores dúvidas que as antes
inrregularmente assentadas (cfr. nosso Do controle da disponibilidade no parcelamento
do solo, cit., passim).
Ademais, ainda, dos obstáculos postos quanto à especialidade subjetiva (com
particular ressonância dos direitos matrimonial e sucessório), realça o óbice transitório
oposto pela prioridade. Afrânio de Carvalho (383, 384) viu muito bem essa
transitoriedade obstativa e não reconheceu eficácia persistente na prenotação: “Se, de
dois títulos sucessivamente protocolados, mas colidentes, o registrador faz a inscrição
do que foi numerado depois, a inscrição prevalece, não obstante, sobre o protocolo. É
certo que o protocolo regula a prioridade, mas o faz internamente, de sorte que,
desrespeitada pelo registrador, subsiste, apesar disso, a vantagem obtida irregularmente
pelo segundo título com a inscrição, porque é esta que regula externamente a posição
dos direitos, em face da qual terceiros os adquirem pela confiança que lhes inspira a
aparência registral”. (Como adverte Pontes de Miranda, também acentuando que a
prenotação assegura apenas internamente a prioridade para o registro, o vício da
inscrição não prescinde do contraditório e da jurisdicionalidade; entre nós,
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freqüentemente, a requalificação registrária, por isso que judicial, deixa nessa matéria
transparecer uma vocação jurisdicional.)
Agentes, prazos e recursos da qualificação registral – Breve anotação
crítica
Haveria muito o que escrever a propósito dos agentes, dos prazos e dos
recursos da qualificação registrária, mas não parece oportuno cogitar mais amplamente
desses pontos. Reduzo-me a umas poucas referências.
No que respeita aos agentes, e de consonância com nosso direito normativo, é
preciso acentuar a natureza e os lindes da requalificação judiciária. Não se passa, à
margem do dispositivo e do contraditório, de um juízo prudencial sui generis para um
ditame jurisdicional, seja quanto aos efeitos, seja quanto à matéria de discussão, sua
perspectiva e suas provas. É porque, muita vez, não se sublinha essa característica que
se vê uma insinuação jurisdicional no âmbito das requalificações registrárias. É
compreensível que os juízes deixem aflorar sua mais digna vocação, a da
jurisdicionalidade, mas (quando o que se faz é requalificar no plano registral) isso
confronta com os mais estritos limites de legalidade em que se move a qualificação
registral (ressalve-se a exceptiva da parte final do art. 198, Lei 6.015, cit.).
Quanto ao prazo para o juízo qualificador, é preciso (de lege ferenda)
distingui-lo do prazo de validade da prenotação, em cuja extensão se cuidará de
eventual saneamento dos títulos. A lei vigente não fez a distinção (art. 205, da Lei
6.015, cit.), e o trintídio previsto, abrangendo qualificação e prenotação, conduz à
deficiência (quando não ausência) de tempo para o saneamento. (Em São Paulo, José
Renato Nalini e outro dispuseram, em provimento, a divisão do prazo legal, de modo a
propiciar tempo útil para a regularização dos títulos durante a vigência de sua
protocolização, mas parece convir estabelecê-lo na lei.)
Por fim, quanto aos remédios contra a desqualificação (e sem prejuízo de
pretensões jurisdicionais e até mesmo do mandado de segurança – em todo caso, a
exigir disciplina singular e explícita), cabe anotar que, ao lado da desprocessualização
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do recurso da dúvida (para espancar a interferência jurisdicionalizante; V. Benedito
Silvério Ribeiro e outro, 18), parece convir a previsão da dúvida doutrinária.
Nota final
Trabalhei faz duas décadas com um jornalista português que, de dono do
Diário de Luanda, com a revolução marxista em Angola, veio para o Brasil com a
caneta, a liberdade e duas mudas de roupa; fomos amigos em tempos difíceis ou, como
se diz em Portugal, "de cortar a mesma côdea" – mas com fundas, firmíssimas
divergências de pensamento; ensinou-me um bocado esse Pereira da Costa, que (para
sua surpresa, justo ele que, influído do existencialismo de Sartre, era um ateu convicto),
o bom Deus já convocou a julgamento. Lembra-me dele que, certa vez, terminava de
imprimir-se o jornal, com uns tantos artigos do português, que não se dera o trabalho de
sequer olhar para os títulos impressos; sua explicação diante deste indiscreto inquisidor
veio fulminante: ele era pago para escrever, não para ler o que escrevia.
Eu, ao contrário, tenho a mania de ler o que escrevo e de implicar com o que
leio, reconhecendo-me naquele grupo de simples arrumadores de letrinhas, a que se
referiu Gustavo Corção (“Quanta letrinha acumulada! quantas baldadas tentativas de
dizer o indizível!”). Por isso, de bom grado me lançaria a reescrever todo este pequeno
estudo, se não fora para, terminada a recomposição, reestudá-lo uma e outra vez, numa
implicância sem fim: passaria a vida reescrevendo tudo – como disse alguém a
propósito de um livro que a admirável Régine Pernoud tencionava reelaborar. Contento-
me com o esboço de uma tarefa notoriamente infinda e inacabável, desde que se conte a
meu favor a submissão à realidade – ao Ser e ao Bem –, essa experiência das coisas –
experimenta de rebus –, com que é possível chegar à inteligência dos princípios
universais das ciências (Santo Tomás, Suma contra os Gentios, Livro II, cap. 83), esse
método realista que, sem desprezar futuras emendas, os esclarecimentos, os
aprofundamentos (eu me recordo da oração de todos os dias: “da mihi intelligendi
acumen, retinendi capacitatem, addiscendi modum et facilitatem, interpretandi
subtilitatem, loquendi gratiam copiosam”), se põe tão apto já para confrontar com a
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atualidade: as soluções éticas e jurídicas (esta é a perspectiva genuinamente cristã, como
faz ver Eric Voegelin) não têm que responder a valorações subjetivas, quando podem e
devem assentar numa elaboração metafísica apoiada, empírica e criticamente, na
realidade das coisas.
Assim, quando se pensa descobrir um caminho inteiramente novo, descobrem-
se o novo e o velho, o passado que se faz presente "e tem virtude para fazer-se futuro":
abre-se a ciência às próprias tradições.
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relativa à tradução iniciada por Dom Ludegero Jaspers e concluída por Dom Odilão
Moura. Para os Comentários ao Livro Quinto da Ética a Nicômaco serviu-nos a edição
argentina de 1946 (Cursos de Cultura Católica), na tradução anotada de Benito Raffo
Magnasco. Perdi a nota da referência que fiz (de segunda mão) ao opúsculo De
Principiis Naturae, escrito por Santo Tomás por volta de 1252-1253 (Hassam indica
1255: Introdución a la Filosofía de Santo Tomás de Aquino, Madri: Ed. Rialp, 1980,
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* * *
Refere-se ainda o texto à comunicação que fizemos, Benedito Silvério Ribeiro
e eu, ao XV Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, Vitória, 1988
(texto publicado na Revista de Direito Imobiliário n. 23).
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5.
PRINCÍPIOS DO DIREITO REGISTRAL IMOBILIÁRIO
ÁLVARO MELO FILHO
Professor da Faculdade de Direito da UFC.
Advogado do Banco Central do Brasil.
SUMÁRIO: Introdução – Desenvolvimento: a) Princípio da Publicidade; b) Princípio da
Fé Pública c) Princípio da Prioridade; d) Princípio da Especialidade; e) Princípio da
Disponibilidade; f) Princípio da Continuidade; g) Princípio da Legalidade; h) Outros Princípios
– Conclusão.
“Los principios registrales nos sirven de guía, economizan preceptos, y sobre todo
facilitan la comprensión de la materia y convierten la investigación jurídica en científica” –
LUIS CARRAL
Introdução
O Registro de Imóveis, quer na sua estrutura, quer no seu funcionamento,
obedece a um sistema, que não é eleito exclusivamente por uma questão de política
legislativa mas também por motivos de ordem técnica e científica.
Nessa perspectiva o domínio dos princípios gerais do registro de imóveis
permite ao legislador a criação de novos institutos e ao intérprete dar a inteligência dos
que no sistema se estruturam, o sentido e a aplicação das normas legais que os
disciplinam, propiciando, assim, a colaboração da ciência jurídica na obra incessante de
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aprimoramento do Direito Registral Imobiliário visando à sua adaptação às
circunstâncias ocorrentes e às transformações dos fenômenos sócio-econômicos.
Há, pois, indisfarçável utilidade no conhecimento dos princípios gerais que
orientam o registro de imóveis brasileiro, especialmente tendo-se presente a advertência
de Picard – “o homem não é feito para os princípios; os princípios é que são feitos para
o homem”.
“Princípio”, na linguagem comum, tem o significado de “começo”, “origem”.
Na linguagem científica o termo é adotado para expressar o elemento predominante na
constituição de um corpo orgânico, ou a essência (razão de ser do próprio ser) de uma
coisa sobre a qual assentam e da qual decorrem todas as demais.
Do ponto de vista da ciência do Direito, Clóvis Beviláqua preleciona que
“princípio é o elemento fundamental da cultura jurídica humana em nossos dias” (in
Comentários ao Código Civil, I, 108). G. Ripert define princípio como a noção primeira
que comanda um conjunto de regras. Vale dizer, os princípios jurídicos são as grandes
regras que presidem à manutenção da ordem geral. Larnaude acentua que, no plano do
Direito, os princípios representam as idéias gerais, admitidas não apenas em função de
textos propriamente ditos, constituições, leis, regulamentos administrativos, mas
também em face das decisões judiciais e da experiência ou da prática. Aliás, no dizer de
Gmur, “a segurança jurídica, objetivo superior da legislação, depende mais dos
princípios cristalizados em normas escritas do que a roupagem mais ou menos
apropriada em que se apresentam” (in Hermenêutica e Aplicação do Direito, de Carlos
Maximiliano, Forense, Rio de Janeiro, 1980, p. 124).
Por outro lado, a arte de ensinar Direito consiste, sobretudo, em discriminar e
ordenar idéias, de maneira a transmitir princípios essenciais relacionados à matéria. No
ensino jurídico, mais do que em outro qualquer, é fundamental compreender os
princípios porque o número de aplicações e de pormenores é infinito.
Roca Sastre (Derecho Hipotecario, 6.ª ed., t. 1/205, Barcelona, 1968)
reconhece o valor teórico e a eficácia prática dos princípios que, além de orientar o
julgador e economizar preceitos, “facilitan el estudio de la materia y elevan las
investigaciones a la categoria de científicas”.
Como ressalta Portalis, no seu Discurso preliminar anexo ao projeto do Código
Civil francês, há uma fórmula válida como guia para os intérpretes do Direito: “Estenda
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os princípios dos textos às hipóteses particulares, por uma aplicação prudente e
racionada; apodere-se dos interesses que a lei não satisfaz, proteja-os e, por meio de
tentativas contínuas, faça-os predominar”.
Não há outro motivo que, na análise de qualquer problema jurídico – por mais
trivial que ele seja (ou pareça ser) – o aplicador de Direito deve antes de mais nada
alçar-se ao altiplano dos princípios, a fim de verificar em que sentido eles apontam.
Nenhuma interpretação será havida por jurídica e, portanto, por boa, se ela direta ou
indiretamente desconsiderar um princípio.
O princípio possui uma função especificadora dentro do ordenamento jurídico:
ele é de grande valia para a exegese e perfeita aplicação, assim dos simples atos
normativos que dos próprios mandamentos constitucionais. O menoscabo por um
princípio importa na quebra de todo o sistema jurídico. É que o Direito forma um
sistema, é um axioma que nem sequer precisa ser demonstrado, já porque axioma (de
universal acatamento, diga-se de passagem), já pela proibição lógica do regressum ad
infinitum (da infinita reciclagem das premissas eleitas).
Foi advertindo contra a insuficiência de visão fragmentária, parcelada, dos
diferentes segmentos da ordem jurídica que o Conselheiro Ribas, na prefação de seu
Direito Administrativo Brasileiro, 1866, p. IX, pontificou: “Não há sciencia sem as
synteses fundamentaes; tiradas estas só resta informe acervo de ideas em cujo labirinto a
intelegencia não pode deixar de tranviar-se. Pelo contrário desque se possuem estas
synteses, dissipa-se o chaos, faz-se a luz e a ordem no pensamento; aparece constituída
a sciencia”.
“As sínteses, de que falava o vetusto Ribas, se constituem precisamente na
compreensão sistemática do todo, o que depende da identificação dos princípios. Só
aquecida ao lume deles pode a interpretação conduzir à inteligência do sistema
constitucional” (Criação de secretarias municipais, in RDP 15/287).
Efetivamente, deixou claro que o princípio é vetor e critério de inteligência das
normas, as quais devem ser sistematicamente compreendidas.
Convém recordar as lições sempre oportunas de Celso Antônio Bandeira de
Mello: “Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um
sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes
normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e
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inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no
que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios
que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por
nome sistema jurídico positivo.
Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A
desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento
obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou
inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa
insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia
irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.
Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a
estrutura neles esforçada.
Agustin Gordillo, o eminente administrativista argentino, doutor da maior
suposição apostila a respeito: „La norma es límite, el princípio es límite y contenido. La
norma dá a la ley facultad de interpretarla o aplicarla en más un sentido, y el acto
administrativo la facultad de interpretar la ley en más de un sentido; pero el principio
establece una dirección estimativa, un sentido axiológico, de valoración, de espíritu‟
(Introdución al Derecho Administrativo, 2.ª ed., Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1966, p.
176-177)” (Celso Antônio Bandeira de Mello, Elementos de Direito Administrativo, 1.ª
ed., 1981, p. 230).
Compreende-se, então, o que Cretella Júnior denomina de "principiologia", ou
seja, o conjunto de cânones e os postulados que garantem a autonomia de um sistema
dentro do mundo jurídico, constituindo-se no alicerce fundamental de cada disciplina
jurídica, que se mantém firme e sólida, malgrado a variação, fugacidade e profusão de
normas.
Impende ressaltar, outrossim, que um princípio é algo mais geral do que uma
norma porque serve para inspirá-la, para entendê-la, para supri-la, cumprindo essa
missão relativamente a um número indeterminado de normas. Vale dizer, os princípios
jurídicos são critérios formais aplicáveis, em geral, em qualquer circunstância de lugar e
tempo. Não aludem a nenhuma hipótese em concreto, razão pela qual têm um sentido
bastante geral e amplo, extensivo a toda disciplina. Em frase bastante expressiva Gelsi
Bidart afirma que os princípios estão na base de toda disciplina porque a inspiram
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(penetram no âmago), fundamentam (estabelecem a base) e explicam (indicam a ratio
legis) das diversas normas concretas que constituem a estrutura normativa de cada ramo
jurídico.
Por sua vez Camellutti (in Sistema di Diritto Processuale Civile. I. Funzione e
Composizione del Processo, Pádua, 1936, p. 120) salienta que “Os princípios gerais do
direito não são algo que exista fora, senão dentro do próprio direito escrito, já que
derivam das normas estabelecidas. Encontram-se dentro do direito escrito como o álcool
no vinho: são o espírito ou a essência da lei”.
Em termos sintéticos, princípio é uma regra básica, implícita ou explícita que,
pela sua generalidade, ocupa posição de preeminência nos vastos quadrantes do Direito
e, por isso mesmo, vincula, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das
normas jurídicas com que ele se conectam.
Sem olvidar a citação de Marin Pérez para quem “lo que para una ciencia son
princípios, para la filosofia son problemas”, Garcia Coni in El Contencioso Registral,
Buenos Aires, Depalma, 1978, p. 38, evidencia que os princípios do Direito Registral
lmobiliário “constituyen el presupuesto básico para el desarrollo organizativo de los
registros de la propiedad”.
Isto posto, passa-se à análise dos “princípios registrais” que são as orientações
capitais, as linhas diretivas do sistema, a série sistemática de bases fundamentais e o
resultado da sintetização ou condensação do ordenamento jurídico registral. “Princípios
são, pois, verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou de garantia de
certeza a um conjunto de juízos ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada
porção da realidade. Às vezes também se denominam princípios certas proposições que,
apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências, são assumidas como
fundantes da validez de um sistema particular de conhecimentos, como seus
pressupostos necessários” (Miguel Reale, Filosofia do Direito, 1.º v., Saraiva, 1969, p.
54).
Desenvolvimento
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Ainda que todos os especialistas sejam unânimes em afirmar a existência de
princípios do Direito Registral lmobiliário, são poucos os que se preocupam em expô-
los e estudá-los com profundidade, dando-lhes ordenação e sistematicidade.
A enumeração dos princípios registrais envolve toda uma vasta e diversificada
gama, quanto à importância, à extensão ou ao alcance do tema. Por isso há uma
variedade enorme de opiniões dos autores, sendo possível arrolar-se 12 princípios
diferentes. Aliás, a diversidade de princípios não advém do fato de que uns sejam mais
científicos do que outros, mas das circunstâncias de que seus arautos conduzem o
raciocínio por vias diferentes, e não consideram as mesmas questões da mesma forma. É
interessante notar que nenhum autor aceita mais de seis ou sete princípios, havendo
alguns que só reconhecem dois ou três. Isto demonstra que, às vezes, vários princípios
estão condensados em um só, assim como, outras vezes, um princípio desdobra-se em
muitos.
Reputando útil fazer-se este estudo, conquanto se trata de tema ainda não
abordado de maneira didática e prática, e, à falta de uma maior sedimentação ou
consolidação desse assunto, elaborou-se uma lista incorporando, refundindo e
eliminando alguns princípios propostos pelos diversos tratadistas, decorrendo daí o
seguinte elenco:
a) Princípio da Publicidade;
b) Princípio da Fé Pública;
c) Princípio da Prioridade;
d) Princípio da Especialidade;
e) Princípio da Disponibilidade;
f) Princípio da Continuidade;
g) Princípio da Legalidade;
h) Outros Princípios.
Um exame superficial destes princípios relacionados é suficiente para
demonstrar que em alguns casos trata-se de normas gerais que se desenvolvem através
de preceitos positivos concretos, outros correspondem a verdadeiras instituições
jurídicas, sendo que uns se referem a meros aspectos formais da instituição registral,
enquanto outros têm um autêntico valor e alcance substantivo.
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a) Princípio da Publicidade
Esse princípio é geral a todos os registros públicos, e, através dele, considera-
se que o registro torna público a todos o conhecimento dos atos e fatos registrados.
Para Garcia Coni “la publicidad contemporánea, como las encíclicas papales,
debe ser urbi et orbi, o sea, para la ciudad y el mundo, porque con respecto al derecho
de propiedad hay un retorno a la época del hombre nómade, que no se afinca en un solo
lugar” (in El Contencioso Registral, Buenos Aires, Depalma, 1978, p. 42).
Pelo registro é possível indicar-se aos interessados o lugar certo onde encontrar
as informações necessárias sobre o estado da propriedade imóvel, e qualquer pessoa,
invocando a publicidade de registro pode pedir as certidões que entender, sem importar
ao oficial o motivo ou interesse que possa ter.
Os registros são, dessa forma, como um sinal exterior, ou meio legal de
publicidade, em garantia dos direitos com relação aos seus titulares e à validade de seus
efeitos, relativamente a terceiros. Os registros são feitos para ficar à disposição do
público e visam a amparar o crédito em geral e prevenir fraudes, além da garantia
natural que outorgam aos negócios.
Muito embora a lei imponha ao oficial a obrigação de mostrar às partes os
livros de registros, o princípio da publicidade não deve dar margem a abusos resultantes
de injustificadas curiosidades, com perigo de dilaceração ou mesmo de alterações nos
registros, por força de manuseios freqüentes e indeterminados, daí por que esse
princípio da publicidade há de ser compreendido, em termos. Assim, a obrigação de
exibição dos livros, por parte dos serventuários, se cinge a apresentar ao interessado,
não todos os livros ou fichas para pesquisa, o que transformaria o direito da parte numa
verdadeira correição, mas o livro ou ficha onde deve figurar o imóvel por ele indicado,
quer sob a base da menção à pessoa do proprietário, quer por meio da especificação do
imóvel.
O interesse da publicidade no registro imobiliário resulta, no dizer de Serpa
Lopes, da “necessidade de se lhe dar uma feição equivalente a uma espécie de estado
civil do imóvel, assinalando todas as suas mutações e recebendo o contato de todas as
circunstâncias modificativas, quer inerente à coisa, quer ao direito de seus titulares...”
(in Tratado dos Registros Públicos, 2.ª ed., A Noite, n. 598, p. 49-50).
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A exibição dos assentamentos constitui a publicidade material do registro, e a
publicidade formal é a que emana de certificação, informes ou cópias autênticas.
Para Tabosa de Almeida (in Revista de Direito Imobiliário, n. 11, p. 56), “a
publicidade formal tem o objetivo de criar a cognoscibilidade geral, possibilitando a
verificação dos atos jurídicos que, através dos livros, se realizam no Registro
Imobiliário. A publicidade material é a fides publica, a fé pública que, no dizer de um
jurista europeu, está em íntima relação com o princípio da legitimação. Alguns autores
reúnem esses dois num só princípio, denominando-o de „princípio de exatidão
registral‟”.
Acresça-se, por oportuno, que a instituição do sistema de matrícula dos
imóveis (Lei 6.015) significou uma mudança radical na sistemática registral brasileira,
substituindo-se a publicidade pessoal ou eclética pela publicidade real ou de fólio real.
Vale dizer, apesar da já existência do Indicador Pessoal e do Indicador Real, efetiva-se o
registro dos títulos, que, não raro, condensam vários imóveis, diversamente do que
acontece agora com o sistema de matrícula através do qual cada imóvel é objeto de um
cadastramento autônomo e individualizado – a matrícula – a partir da qual se
acompanha a história das mutações e a exata situação jurídico-real de cada imóvel.
Cumpre lembrar ainda que, em decorrência do princípio da publicidade, as
pessoas têm obrigação de conhecer o estado jurídico do imóvel, e, dessa maneira,
quando alguém comprar um imóvel que está onerado com uma hipoteca, não poderá
alegar nada contra o credor hipotecário, em função da publicidade dada à hipoteca com
o seu registro.
Na lição de Afrânio de Carvalho (in Registro de Imóveis, Forense, Rio, 1982,
p. 19), o Direito Brasileiro, desde a Lei Imperial de 1864, outorga à publicidade
registral “o duplo efeito de constituir o direito real e de anunciá-lo a terceiros. Antes da
publicidade, o ato cria obrigações entre as partes, mas, uma vez efetuada, perfaz a
mutação jurídico-real, investindo a propriedade ou o direto real na pessoa do adquirente
e, ao mesmo tempo, tornando o direito oponível a terceiros”.
Assim, o princípio da publicidade justifica-se facilmente pela necessidade de
dar a conhecer à coletividade a existência dos direitos reais sobre imóveis, uma vez que
ela tem de respeitá-los. Quando duas pessoas ajustam uma relação real imobiliária, esta
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transpõe o limite dual e atinge a coletividade por exigir a observância geral (erga
omnes).
Em face do princípio da publicidade todos podem e, em alguns casos, devem
saber da situação jurídica do imóvel registrado.
b) Princípio da Fé Pública
Ensina Alfonso de Cossio (in Institucioines de Derecho Hipotecario, 2.ª ed.,
Barcelona, Bosch, p. 201) que “se conoce por „fe pública registral‟ aquel principio en
virtud del cual se substituye en el tráfico jurídico inmobiliario de buena fe la faculdad
material de disposición, por el contenido del Registro, aunque éste no corresponda a la
verdadera realidad jurídica”.
Argentino Neri (in Tratado Teórico e Práctico de Derecho Notarial, Buenos
Aires, Depalma, 1969, v. 2, p. 423) fere, com propriedade, esta temática destacando que
“el fundamento de la fe pública se halla en necessidad que tiene la sociedad, para su
estabilidad y armonía, de dotar a las relaciones jurídicas de fijeza, certeza y autoridad, a
fin de que las manifestaciones externas de estas relaciones sean garantia para la vida
social y jurídica de los ciudadanos y hagan prueba plena ante todos y contra todos,
cuando aquellas relaciones jurídicas entran en la vida del derecho en su estado normal.
Tal es, en fin de cuentas, la imponente razón que há existido para reconocer a la fe
pública como el atributo de garantía erga omnes y la necessidad de fijarla en todo
instrumento aseverado por funcionario público competente”.
O conteúdo da fé pública registral estende-se a todas as soluções jurídicas
levadas a registro, e, por isso, abrange, positivamente, a existência dos direitos reais
registrados, e, negativamente, a inexistência dos direitos reais e proibições não
registrados.
Pelo sistema brasileiro, o título, per se, não prova o domínio porque a
propriedade se adquire pelo registro, donde a parêmia: “Quem não registra não é dono”.
Mas este registro também, por si não faz prova bastante do domínio, por que não é ele
ato originário, como é o título, mas derivado desse título, que poderá portar um vício
insansável. A prova do domínio, pois, segundo o sistema brasileiro, é feita com o título
registrado, do qual decorre, quer entre as partes contratantes, quer perante terceiros de
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boa ou de má fé, uma presunção relativa de domínio, que assim prevalecerá até prova
em contrário.
Em matéria de aquisição da propriedade imóvel pelo registro, adota-se no
Brasil, entre outros, do sistema francês o princípio de registro à vista de um título, e do
sistema germânico o princípio do registro como prova de domínio que, entretanto, induz
uma presunção relativa (juris tantum), jamais absoluta (juris et de jure) de propriedade,
ficando sempre ressalvada ao verdadeiro dono a prova em contrário. Presume-se
pertencente o direito a quem registrou. O registro produz todos os efeitos legais,
enquanto não for cancelado.
A jurisprudência pátria tem-se assim manifestado sobre o assunto:
“A presunção decorrente da transcrição de ser a propriedade de quem a fez é
juris tantum, e não jure et jure, admitindo, assim, prova em contrário” (RE 9.563, São
Paulo, in RT 169/383).
“Ninguém se torna proprietário por força exclusiva de transcrição,
independentemente de título válido.
A presunção do art. 859 do CC é relativa e admite prova em contrário.
Havendo conflito de transcrições, prevalece a que se funda em título válido”
(Ac. do TJSP, na Ap. 88.040, in Revista Forense, v. 185/218).
Dessa forma, através da força probante, fundada no princípio da fé pública do
registro, há presunção juris tantum de que o direito real pertence à pessoa em cujo nome
está registrado o imóvel.
O alcance deste princípio é dado por Afrânio de Carvalho (in Registro de
Imóveis), Forense, Rio, 1982, p. 211-212), ao prelecionar que “a fé pública tem a sua
influência limitada aos negócios jurídicos, vale dizer, aos acordos de vontades ajustados
entre partes, os quais constituem a tessitura do tráfico imobiliário. Fora desse círculo
negocial, a fé pública não opera, o que equivale a dizer que não protege as aquisições de
direitos advindos de atos judiciais, que ficam assim a descoberto. Noutras palavras, é
mais segura a aquisição, onerosa por escritura pública outorgada pelo proprietário do
imóvel do que por arrematação judicial em execução que lhe for movida.”
Além de só cobrir os negócios jurídicos, a fé pública cinge-se a amparar os
direitos que eles conduzem à inscrição, não os fatos carregados simultaneamente com
eles, como a situação geográfica do imóvel, sua extensão, sua exploração econômica,
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suas construções, seu preço. A fé pública protege a inscrição dos direitos, não dos fatos
a eles ligados, de sorte que a eventual inexatidão destes não se convalida em favor do
titular inscrito por ficar fora do abrigo do princípio.
Obedecendo ao disposto no art. 252 da Lei 6.015, c/c o art. 859 do CC, o ato
registral tem plena eficácia enquanto não for cancelado, ainda que se prove que o título
foi desfeito, anulado, extinto ou rescindido. A esse respeito assinala Tabosa de Almeida
(opus. cit., p. 57): “convém enfatizar que, nos termos do art. 252 da Lei Registral
brasileira, o cancelamento do registro é conditio sine qua non para que ele deixe de
produzir seus efeitos legais, não obstante inexato, e ainda que o título causal já não
subsista, em virtude do seu desfazimento, da sua anulação, da sua extinção ou da sua
rescisão. E atente-se para um fato de extraordinária importância jurídica e histórica: o
preceito é secular entre nós, pois vigora, ininterruptamente, desde 1865. O Código Civil,
vigente a partir de 1917, contém vários dispositivos que justificam aquele preceito, o
qual, em face de sua extensão e profundidade, levou o nosso sistema a poucos passos do
sistema germânico, resguardando a fé pública registral inclusive diante da coisa julgada,
enquanto não houver o cancelamento.”
“Fé pública – Distinção entre a menção feita a documento exibido ao tabelião e
a declarações das partes.
Atos formalizados antes da Lei 6.766/79, para excluir sua incidência,
consideram-se apenas os instrumentos que tenham sido registrados em Cartório de
Registro de Títulos e Documentos, ou em que a firma de pelo menos um dos
contratantes tenha sido reconhecida, ou em que tenha havido o recolhimento antecipado
do imposto de transmissão, ou, enfim, em outros casos em que, por forma segura, esteja
comprovada a anterioridade dos contratos.
A fé pública da escritura está em que as partes pactuaram o negócio perante o
tabelião. A circunstância fática da exibição de documento ao instante da lavratura do ato
notarial, em cujo teor aquele não é mais do que referido no conteúdo das declarações
dos outorgantes, não se situa sob o manto da fé pública”. ApCiv 2.024-0 – São Paulo –
Apelante: Luiz Kanashiro – Apelado: Oficial do 9.º Cartório de Registro de Imóveis
(CSMSP) (in Revista de Direito Imobiliário, n. 14, p. 132).
c) Princípio de Prioridade
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Os romanos já alardeavam a importância da precedência cronológica da
apresentação dos títulos no Registro de Imóveis através do aforisma: “Prior tempore,
portior jure”. Esse axioma constitui-se no fundamento basilar do princípio da
prioridade que, na prática, corresponde ao princípio emanado da física segundo o qual
dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço.
Aliás, pode conceber-se a validade deste princípio pela possibilidade da
existência de dois ou mais títulos contraditórios. E esta contradição pode ser de dois
tipos:
a) Porque se trata de dois (2) direitos cuja coexistência seja impossível: por
exemplo, duas vendas de um mesmo imóvel por um só titular afigura-se como hipótese
de impenetrabilidade ou de “preclusão registral”;
b) Mesmo que se trate de direitos que podem coexistir, como duas (2)
hipotecas onerando um (1) mesmo imóvel, tal coexistência é juridicamente possível, só
que em ordem diferente denominada de grau.
Em face destes aspectos ressaltados, “no se deja para mañana el derecho real
que se puede constituir hoy”.
Assim, em decorrência da dificuldade para coexistir, no mesmo plano, os
direitos reais, quando coincidem sobre um mesmo imóvel, é necessário um critério que
sirva, por um lado, para determinar, dentre vários direitos incompatíveis (por exemplo,
várias pessoas pretendem ser o proprietário único de um mesmo imóvel), qual deve
prevalecer, e, por outro lado, entre vários que sejam conciliáveis, como hão de coexistir
e que preferência terá cada um em relação aos restantes.
Este critério é fixado no Direito Registral lmobiliário brasileiro através do
princípio da prioridade, segundo o qual, tratando-se de direitos de igual conteúdo, o
protegido é sempre o primeiro adquirente, e, na ordenação hierárquica dos direitos
diversos em coisa alheia, significa a possibilidade de se desconhecer o titular de cada
um desses direitos que se tenham constituído posteriormente ao primeiro. Em termos
mais simples, quem primeiro chega ao Registro obtém a proteção registral (desde que
reúna as condições exigidas) em relação aos que surgem depois, de modo que ninguém
que chega posteriormente pode prejudicar os direitos daqueles que já chegaram.
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A prioridade é determinada pelo momento da apresentação do título para
registro. Em outras palavras, a propriedade, no Direito Registral lmobiliário, é garantida
pela ordem cronológica na apresentação dos títulos; e, para assegurá-la, o oficial, logo
após a entrega de qualquer documento, dará ao apresentante um recibo extraído de um
livro-talão, indicando expressamente a data da apresentação e o número de ordem que
lhe foi conferido. O título, assim entregue, será examinado quanto a sua legalidade e a
sua validade, fazendo-se o registro se o mesmo estiver em conformidade com a lei.
No magistério de Afrânio de Carvalho (op. cit., p. 217): “O princípio ampara
tanto o direito de propriedade, como os direitos reais limitados ou ônus assemelhados
que tenham ingresso no registro, como o da locação com cláusula de vigência contra o
adquirente. A propriedade tem eficácia, quer entre direitos da mesma categoria, como
direitos de propriedade, quer entre direitos de categoria diversa, como direitos de
propriedade de um lado e direito de hipoteca de outro.
A prioridade desempenha o seu papel de maneira diferente, conforme os
direitos que se confrontam sejam, ou não sejam, incompatíveis entre si. Quando os
direitos que acorrem para disputar o registro são reciprocamente excludentes, a
prioridade assegura o primeiro, determinando a exclusão do outro. Quando, ao contrário
não são reciprocamente excludentes, a prioridade assegura o primeiro, concedendo
graduação inferior ao outro”.
O que importa para determinar a prioridade não é a preeminência do direito,
mas a precedência da apresentação, assim exemplificada pelo autor citado:
Se o mesmo imóvel é vendido pelo dono A, sucessivamente, a dois adquirentes
diferentes B e C, e o C apressa-se em registrar sua escritura de compra e venda antes de
B, é ele que terá a prioridade, é ele que se tornará proprietário, mesmo que sua escritura
tenha sido lavrada posteriormente à de B. Por outro lado, se depois da venda do imóvel
a B e C, e antes que estes efetivem o registro, o proprietário A ainda consegue hipotecar
esse imóvel para garantir um empréstimo tomado ao Banco D, que, mais rápido do que
os compradores B e C registra tal hipoteca antes do registro de qualquer dos adquirentes
B e C, o imóvel transferir-se-á a C (o primeiro dos compradores a registrar) onerado
com o crédito hipotecário de D. Nesse exemplo, o adquirente C ultrapassou a B, sendo,
por sua vez, ultrapassado por D, conquanto o imóvel passará para C já gravado com a
hipoteca constituída em favor de D. Em síntese, a prioridade é o prêmio ou galardão
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atribuído à rapidez em concretizar o registro, dando-se estabilidade e segurança dos
direitos e elidindo o risco da contradição.
No campo doutrinário Pontes de Miranda (in Tratado de Direito Privado, v.
11/330) afirma que “desde a data em que a promove e obtém a protocolização, o bem
imóvel é seu. O negócio jurídico do acordo investe-o de tal poder”. Assevera mais
adiante o insigne autor que “a eficácia mesma da transcrição é desde a data da
protocolização, mas depende do bom êxito do pedido-exigência. Se houver
protocolização e não se procedeu à transcrição, ou porque se retirou a provocação
(pedido-exigência), ou porque foi denegada, a eficácia é nenhuma: se foi feita a
transcrição, a eficácia é desde a data em que se protocolizou o pedido”.
Como ministra Serpa Lopes (Tratado, v. IV/316), “a importância do protocolo
se afere pela magnitude dos efeitos que produz, a partir do momento que inaugura o ato
no Registro de Imóveis.
Essa importância vem até dos dizeres da lei, que o chama de chave do registro
geral.
Se a inscrição ou a transcrição representa o fato principal, a sua eficácia será
até certo ponto dependente da prenotação no protocolo, pois a prioridade do registro
depende da indicação trazida pelo protocolo.
Exerce função precípua quanto a uma das finalidades do registro, que é,
inegavelmente ao lado da constituição de direitos o de requisitos de disponibilidade e de
publicidade, a de um modo de estabelecer a prioridade dos direitos que lhes são afetos”.
Tabosa de Almeida (op. cit., p. 50-51) assinala que: “No Direito brasileiro a
adoção do princípio da prioridade foi explicitada formalmente pelos arts. 190, 191 e 192
da Lei 6.105. No primeiro deles se declara que não serão registrados no mesmo dia os
títulos que assegurem direitos reais contraditórios sobre o mesmo imóvel. No segundo o
legislador faz referência direta ao princípio de prioridade, estabelecendo que
prevalecerão, para tal efeito, e quando apresentados no mesmo dia, os títulos prenotados
sob número de ordem mais baixo, adiando-se, pelo prazo nunca inferior a um dia útil, o
registro dos títulos apresentados posteriormente. E no art. 192 ficou claro que o disposto
nos artigos anteriores (arts. 190 e 191) não será aplicável às escrituras públicas da
mesma data apresentadas no mesmo dia quando determinarem, taxativamente, a hora da
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sua lavratura, prevalecendo, para efeito de prioridade, a que foi lavrada em primeiro
lugar.
Através desses ditames legais o Direito brasileiro acolheu expressamente o
princípio de prioridade, não cabendo entre nós, por esse motivo, aquelas dúvidas que
têm sido suscitadas na doutrina jurídica espanhola em virtude da lacuna legislativa, que
vem sendo preenchida pela jurisprudência dos tribunais”.
Numa síntese bem elaborada, Alfonso de Coscio (op. cit., p. 170) salienta que o
princípio da prioridade é o “único tenido en cuenta por los sistemas de transcripción,
que, sin garantizar la validez de los títulos inscriptos, tan sólo concedián a guien
primeiro se acogia a sus benefícios, un puesto o rango preferente al de sus adversários”.
Todas estas lições doutrinárias estão corporificadas no art. 186 da Lei 6.015,
verbis:
“Art. 186. O número de ordem determinará a prioridade do título, e esta a
preferência dos direitos reais, ainda que apresentados pela mesma pessoa mais de um
título simultaneamente”.
O princípio da prioridade sofre restrições impostas por regras de Direito
Tributário que dão ao Estado uma posição privilegiada e assecuratória dos créditos
fiscais e parafiscais, estabelecendo, desse modo, exceções à prioridade dos direitos reais
de garantia. Nesse tocante, o código Tributário Nacional, ao tratar das garantias e
privilégios do crédito tributário, assim dispõe no seu art. 186: “O crédito tributário
prefere a qualquer outro, seja qual for a natureza e o tempo de constituição deste,
ressalvados os créditos decorrentes da legislação do trabalho”.
A jurisprudência brasileira também já consagrou a aplicação do princípio da
prioridade, como se verifica das ementas a seguir arroladas:
“A entrada do título no cartório assegura-lhe a prioridade em relação a outro,
entrado posteriormente” (Ac. 273.618, do TJSP, in Registro de Imóveis, Saraiva, 1982,
p. 60).
“Registro de Imóveis – Títulos contraditórios – Apresentação no mesmo dia –
prioridade. O critério da Lei 6.015/73, tirado do art. 833 do CC, é o primeiro e único
que o oficial e o Magistrado devem considerar. Repete-se para que não paire dúvida: o
único elemento que permite, entre dois títulos contraditórios, estabelecer o que tem
prioridade é o número que ambos tomaram no protocolo. Se dois títulos de conteúdo
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contraditório foram apresentados no mesmo dia, prioridade tem aquele que recebeu
número menor no protocolo. Não se pode comparar o conteúdo de ambos para tirar,
desse exame comparativo, critério não previsto na lei que rege os Registros Públicos”
(CSMSP – Ac. unân. publ. no DO de 12.07.1983 – ApCív. 1970-0 – Fernandópolis –
rel. Des. Bruno Affonso de André – Orlando Luca de Ceni vs. José Jacob de Menezes)
(in Adcoas, Boletim de Jurisprudência, verbete 94.128).
“Somente a prenotação do título, isto é, a documentação de sua apresentação
no Livro Protocolo (Livro 1), assegura a prioridade prevista no art. 186 da Lei de
Registros Públicos. Não tem esse efeito o lançamento feito no livro auxiliar de
protocolo permitido pelo par. único do art. 12 da mesma Lei” (Ac. 280.482, São Paulo,
29.06.1979, Des. Andrade Junqueira) (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1982, p. 293).
“Ao Oficial cumpre indagar do interessado, desde logo, se se trata de exibição
para prenotação (art. 12, caput, 182 e 183) ou para simples exame e cálculo de
emolumentos, independente desse lançamento (art. 12, parágrafo único), esclarecendo e
advertindo que a segunda hipótese, conquanto formalizada a apresentação num livro
auxiliar da Serventia, não importa concessão de prioridade alguma” (Ac. 280.482, São
Paulo, 29.06.1979, Des. Andrade Junqueira) in Registro de Imóveis, Saraiva, 1982, p.
294).
“É desprovida de eficácia para fins de prioridade a apresentação de título ao
Registro lmobiliário sem que fique esta documentada no Livro Protocolo, na forma de
prenotação” (Ac. 280.482, São Paulo, 29.06.1979, Des. Andrade Junqueira, in Registro
de Imóveis, Saraiva, 1982, p. 294).
“Posto se verse de dispositivo incondizente com o regime de prioridades, o
certo é que o art. 12, par. único, da Lei 6.015/73, enxertado pela Lei 6.216/75, autoriza,
para o só fim de exame e cálculo de emolumentos, apresentação à que não se segue
lançamento do título, no Protocolo, que, em caso de procedência, asseguraria a
prioridade de direitos” (Ac. 280.482, São Paulo, 29.06.1979, Des. Andrade Junqueira,
in Registro de Imóveis, Saraiva, 1982, p. 294).
“Prioridade – Conflito de títulos com a mesma origem – Composição pela
prioridade do registro imobiliário.
Feita a promessa de cessão relativa à aquisição de cotas de um mesmo terreno a
duas pessoas, prevalece o título da que o registrou em primeiro lugar no Registro de
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Imóveis” (Ap Cív 3.429 – Rio de Janeiro – Apelantes: Sebastião de Mendonça Barreto e
Delphim Salum de Oliveira e s/m. – Apelados: os mesmos – TJRJ) (in Revista de
Direito Imobiliário, n. 3, p. 92).
“Prioridade – Antecedência na apresentação e prenotação de títulos
objetivando o mesmo imóvel negociado duas vezes – Critério subsidiário – Prevalência
do conteúdo intrínseco de ambos os títulos – Registro do segundo, se o anterior não
reúne os requisitos necessários.
A impossibilidade do registro simultâneo de títulos objetivando o mesmo
imóvel se resolve com o exame dos mesmos, para verificar se algum deles se impõe à
prioridade, pelo seu conteúdo intrínseco, dado que o critério de antecedência na
apresentação é subsidiário” (Ap Cív 257.341 – São Paulo – Apelante: Laurentina dos
Anjos – Apelados: Augusto César Salles Vanni e Oficial do 2.º Cartório de Registro de
Imóveis) (in Revista de Direito Imobiliário, n. 2, p. 97).
“Prioridade – Título apresentado para simples exame e cálculo de emolumentos
– Inocorrência de prenotação no Protocolo – Conseqüências – Inteligência do art. 12,
caput, e seu par. único, da Lei 6.015/73.
O art. 12, par. único, da Lei 6.015/73 autoriza, para o só fim de exame e
cálculo de emolumentos, apresentação a que não se segue lançamento do título no
Protocolo, que, em caso de precedência, asseguraria prioridade de direitos. Aquela
forma de apresentação, embora deva ser lançada em livro auxiliar, de nenhum modo
equivale à prenotação para os efeitos previstos no art. 186 da mesma lei” (ApCív
280.482 – São Paulo – Apelantes: Miguel Roberto Cicgitosi e s/m. – Apelado: Oficial
do 3.º Cartório de Registro de Imóveis – (CSMSP) (in Revista de Direito Imobiliário, n.
5, p. 67).
“Prenotação – Efeitos – Título devolvido com exigências – Reapresentação –
Data que deve ser considerada para aquele fim – Inteligência do art. 534 do CC.
O art. 186 da Lei 6.015/73 gera maiores conseqüências que a mera prioridade
para efeitos de cotejo com outro título na batalha da precedência em busca do direito
real. O registro, superado o crivo cartorário, faz retroagir todos os efeitos, para todos os
fins, até a data da prenotação, como se o ato tivesse sido lavrado nessa oportunidade. Aí
a importância do Protocolo, chave de todo o sistema, e que tantos cuidados está a
merecer do legislador.
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Devolvido o título com exigência e conformando-se o apresentante, a data de
sua reapresentação deve ser o marco para efeito de análise de perfectibilização do ato,
inclusive de sua publicidade” (ApCív 26.249 – Porto Alegre – Apelante: João Carlos
Menda Poyastro – Apelado: Banco Mercantil de São Paulo S/A – TARS) (in Revista de
Direito Imobiliário, vol., 10, p. 71).
“Princípio da prioridade do registro – Distinção inexistente entre a transmissão
inter vivos e a mortis causa – Prevalelência do registro anterior até que venha a ser
desfeito ou cancelado.
Embora pelo instituto da saisina ocorra a investidura legal e instantânea dos
herdeiros e legatários nos direitos do de cujus, sendo o domínio adquirido pela sucessão,
e não pela partilha, que é mero ato declarativo da propriedade, esta só vale entre os
herdeiros e só prevalece perante terceiros depois de registrada. Havendo título
anteriormente registrado, com outra origem, prevalece por força do princípio da
prioridade, até que venha a ser desfeito ou cancelado” (ApCív 17.298 – Rio de Janeiro –
Apelantes: Espólios de Justina de Souza Liberalli e/o. – Apelados: Walter Lopes e s/m.
e/o. – TJRJ) (in Revista de Direito Imobiliário, n. 14, p. 116).
d) Princípio da Especialidade
Denominado também “princípio de determinación” ele apresenta um duplo
aspecto nas palavras de Alfonso de Cossio (op. cit., p. 47): “en primer término, el de
que cada derecho real puede recaer sobre una determinada finca, y junca sobre todo el
patrimonio, ni sobre un número indefinido de inmuebles, y en segundo lugar, que ha de
indicarse numéricamente y en moneda nacional la cuantía del gravamen que se
impone”.
Como preleciona Garcia Coni (op. cit., p. 79): “el princípio de determinación o
especialidad, como también se le llama, se relaciona con el contenido de la registración
en cuanto a la descripción de la cosa, la especie del derecho, la identificación del sujeto
y el monto y plazo del negocio jurídico.
Del mayor o menor grado de determinación dependerá el grado de precisión a
que llegue el Registro, que debe verificar cuidadosamente la integridad y exactitud de
sus asientos em relación a la realidad jurídica extrarregistral”.
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Para Afrânio de Carvalho (op. cit., p. 247) : “o requisito registral da
especialização do imóvel, vertido no fraseado clássico do direito, significa a sua
descrição como corpo certo, a sua representação escrita como individualidade
autônoma, com o seu modo de ser físico, que o torna inconfundível e, portanto,
heterogêneo em relação a qualquer outro. O corpo certo imobiliário ocupa um lugar
determinado no espaço, que é o abrangido por seu contorno, dentro do qual se pode
encontrar maior ou menor área, contanto que não sejam ultrapassadas as raias
definidoras da entidade territorial”.
Aduza-se, a propósito, que a venda de imóveis ad corpus e ad mensuram,
prevista no art. 1.136 do CC, colide com o princípio da especialidade e com a
sistemática registral, ao admitir que o imóvel seja alienado sem ser “como coisa certa e
discriminada”, além de possibilitar que “tenha sido apenas enunciativa a referência às
suas dimensões”.
Convém não olvidar a lembrança de Tabosa de Almeida (op. cit., p. 53) que,
embasado na legislação vigente, destaca que: “O princípio de especialidade é aquele que
exige a identificação do imóvel rural mediante a especificação de suas características,
confrontações, localização, área e denominação. Tratando-se de imóvel urbano, a
identificação consistirá na declaração do logradouro em que fica situado, do número de
imóvel e de sua designação cadastral, assim como – seja rural ou urbano – do número
da matrícula, se houver, e do número do registro anterior. Estes conceitos decorrem do
art. 176, § 1.º, II, n. 3, da Lei 6.015, que deve ser aplicado em consonância com o art.
225, mencionando-se os nomes dos confrontantes, sempre que se trate de imóvel rural,
ou apenas designando os imóveis confinantes, se se tratar de imóvel urbano. Se se
cogitar de lote ou de terreno urbano é necessário esclarecer, além do mais, se fica
situado do lado par ou ímpar do logradouro, em que quadra e a que distância métrica da
edificação ou da esquina mais próxima.
Nossa lei registral preencheu os espaços por acaso existentes no nosso CC no
tocante ao princípio da especialidade, a que se reportou genericamente nos n. IV do art.
761 e III do art. 846, embora esses dispositivos se refiram às especificações, situação,
denominação e características do imóvel”.
Infere-se, então, do magistério dos doutrinadores que o princípio da
especialidade visa a resguardar o Registro lmobiliário de equívocos que possam
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confundir as propriedades, causando embaraço à rápida consulta dos títulos. Desse
modo, não havendo possibilidade de confundir-se um imóvel com outro, está atendido o
princípio da especialidade.
É preciso distinguir o princípio da especialidade, aqui estudado, da
especialização das hipotecas legais a que se refere o art. 828 do CC. A especialização
dessas hipotecas, necessárias ao registro no Cartório competente, será requerida pelo
próprio responsável, que declarará o valor da sua responsabilidade e indicará os imóveis
sobre que incidirá o ônus, mediante petição à autoridade judiciária, instruída com a
prova do domínio, livre de ônus, dos imóveis oferecidos em garantia (CPC, art. 1.205).
Iniciado por essa forma o processo de especialização, seguirá o rito processual
estabelecido nos arts. 1.206 e seguintes, do CPC, até a expedição do mandado para o
registro, no Cartório de Imóveis, da hipoteca especializada, com todas as indicações e
requisitos que decorrem do princípio da especialidade para a matrícula e o registro.
Em face das mutações jurídico-reais concernentes ao imóvel, a necessidade de
especialização surge sempre que há uma divisão ou fusão. Na divisão substitui-se a
especialização única do imóvel pela especialização plural dos imóveis que dela
resultam, dando-se individualidade a quantos forem os imóveis. Essa divisão ocorre não
só quando os co-herdeiros ou os co-proprietários concretizam, fisicamente, suas partes
ideais, como também quando se verificam as operações resultantes de loteamentos e
desmembramentos, que importam em desdobramento e abertura de novas matrículas,
uma para cada imóvel, quando ocorrer a transferência a terceiros das respectivas
unidades imobiliárias autônomas e individualizadas.
A fusão, a que se referem os arts. 233, III, e 234 da Lei 6.015/73, é de
matrículas; enquanto a unificação (art. 235) é apenas de registro, embora possa implicar
o cancelamento da matrícula anterior (art. 235, II). A fusão pressupõe não só o mesmo
proprietário, mas também a contigüidade física de dois ou mais imóveis, cuja reunião
possa dar margem à formação de uma só unidade imobiliária, com autonomia para
justificar a existência de uma só matrícula.
A unificação ocorre na hipótese de pluralidade de registros anteriores relativos
a atos de aquisição de domínio imobiliário, sendo injustificável tal providência
relativamente aos atos constitutivos de direitos reais de garantia. E tanto na fusão (de
matrículas), quanto na unificação (de registros), faz-se presente o princípio da
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especialidade, porquanto a área se torna maior e o perímetro diferente, concretizando-se,
assim, a união física de dois ou mais imóveis, que, além de confinantes, pertencem ao
mesmo proprietário.
Com essas considerações, veja-se o que a jurisprudência pátria tem decidido
com amparo no princípio da especialidade:
“Não merece registro o formal de partilha que não apresenta as características e
confrontações dos prédios atribuídos. A identificação deve ser precisa e minudente
porque pressuposto o elemento necessário das matrículas” (Ac. 274.627, Brotas,
09.11.1978, Des. Andrade Junqueira) (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1982, p. 93).
“Princípio da especialização – Imóvel indevidamente caracterizado e descrito
no título – Documentos que o integrariam, não autenticados por uma das partes –
Inadmissibilidade.
Qualquer retificação de inexatidão ou erro em documento particular ou público
só pelas mesmas partes, não por uma delas isoladamente, poderá ser feita.
A natureza jurídica do título prevalece sobre o nome que lhe tenham dado as
partes contratantes.
Como decorrência do princípio da especialização, o imóvel deve ser
perfeitamente caracterizado e individualizado no título. A descrição do bem, ou está
contida no ato, ou depende da anuência de todos, para, produzida posteriormente, vir a
integrá-lo” (ApCív 259. 251 – Itapecerica da Serra – Apelantes: Fariz F. Elias e/o. –
Apelado: Oficial do Registro de Imóveis – (CSMSP) (in Revista de Direito Imobiliário,
n. 1, p. 83).
“Princípio da especialidade – Descrição do terreno – Incorporação registrada –
Desnecessidade daquela.
O registro da incorporação é requisito prévio do registro das transmissões das
unidade autônomas e das frações do terreno vinculadas às futuras unidades (arts. 29 e
par. Único, e 32 da Lei 4.591/64).
Desde que haja o registro da incorporação, é dispensável a descrição do
terreno, bastando a alusão à sua situação para satisfazer ao princípio da especialidade”
(ApCív 1.919-0 – Campinas – Apelante: Comissão de Representantes do Edifício
Vanessa – Apelado: Oficial do 1.o Cartório de Registro de Imóveis – (CSMSP) (in
Revista de Direito Imobiliário, n. 12, p. 87).
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“Não há obstáculo para o registro de formal de partilha se dele constam a
identificação do imóvel rural, com área, benfeitorias e confrontações, a transcrição
existente e o cadastramento no Incra, ainda mais que não se argúi qualquer divergência
na descrição do bem, presumindo-se ajustar-se àquela transcrição”. (Ac. 516-0,
Guaratinguetá, 25.11.1981, Des. Affonso de André) (in Registro de Imóveis, Saraiva,
1984, p. 59).
“O título que não identifica adequadamente o imóvel, com suas características
e confrontações, não pode ser registrado. Pouco importa que se trate de título judicial”,
(Ac. 1.558-0, Palmital, 03.11.1982, Des. Affonso de André) (in Registro de Imóveis,
Saraiva, 1984, p. 251).
“Se o título não descreve o imóvel tal como se acha descrito na transcrição
antiga, feita na vigência da legislação anterior, mas lhe dá identificação nova,
desconhecida do registro, ainda que resultante de levantamento topográfico e planta,
não merece registro” (Ac. 643-0 - Itapecirica da Serra, 11.11.1981, Des. Affonso de
André) (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1984, p. 44).
“Princípio da especialidade – Obriga a identificação do objeto do contrato –
Referência às transcrições aquisitivas anteriores não supre a falta.
Transcrições aquisitivas anteriores – Referência - Visa apenas resguardar o
princípio da continuidade.
O princípio da especialidade obriga à identificação do objeto do contrato. A
simples referencia às transcrições aquisitivas anteriores não supre a falta, porque sua
menção objetiva, tão-só, resguardar o princípio da continuidade.
É da tradição de nosso direito a exigência da identificação do imóvel objeto do
negócio, mediante referencia à circunscrição em que está situado, à sua denominação, se
for rural, ou à rua e número se for urbano, além da expressa menção aos seus
característicos e confrontações” (Agravo de Petição 252.288, de Itanhaém, j. em
27.08.1976 – rel. Des. Acácio Rebouças – DJ de 02.09.1976).
“O princípio da especialidade exige que cada unidade imobiliária seja completa
e corretamente caracterizada no Registro de Imóveis. A alteração na descrição das
divisas só pode ser feita após procedimento adequado, com a citação dos confinantes e
alienantes” (ApCív 2.363-0 – Lençóis Paulista – Apelante: Omi-Zillo Lorenzetti S/A –
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Indústria Têxtil – Apelado: Oficial do Cartório de Registro de Imóveis – (CSMSP) (in
Revista de Direito Imobiliário, n. 13 p. 104).
“Registro de imóveis – Pedido de providências sobre irregularidades praticadas
pelo Cartório. Constatação de várias falhas formais. Falta de observância rigorosa dos
princípios da continuidade e especialidade. Desmembramento de parte de gleba
efetuado com nova descrição de rumos, marcos e característicos, anteriormente
existentes nos assentamentos. Referência, ademais, a ruas e quadras não constantes do
registro. Configuração, porém, de verdadeira regularização de loteamento clandestino
admitida pelo próprio Oficial. Inviabilidade de apreciação de matéria no âmbito
administrativo, sobretudo pela produção de efeitos em relação a terceiros interessados.
Adequação da via jurisdicional. Desacolhimento da representação com recomendação
para que seja evitada a repetição do incorreto proceder” (in Decisões Administrativas da
Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo – 1983/84, Proc. 24/84, Ed. RT,
1984, p. 118).
“Mandato em causa própria – Condições para o registro – Observância dos
princípios da especialização e da continuidade – Aplicação dos arts. 176, § 1.º, III, n. 2,
e 237 da Lei 6.015/73.
Não há que distinguir o mandato em causa própria de negócio de compra e
venda, porquanto aquele implica verdadeira transferência de direitos. O título além de
conter os requisitos relativos à localização do imóvel, deve conter todos aqueles
necessários à sua perfeita individuação. Ou, ainda, devem esses elementos existir no
registro anterior, se houver, sendo inadmissível que os característicos componentes da
individuação sejam supridos por documento estranho ao título apresentado” (ApCív
3.620-0 – Araraquara – Apelante: Haydée Mannelli da Silva – Apelado: Oficial do
Cartório de Registro de Imóveis – (CSMSP) (in Revista de Direito Imobiliário, n. 15, p.
95).
“Arrematação – Registro – Imóvel que não mais figura em nome do executado
– Inadmissibilidade daquele.
Registro de Imóveis – Formalismo das decisões que lhe dizem respeito –
Necessidade de proteção da segurança do sistema, principalmente quanto aos princípios
da continuidade e da especialidade.
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Ainda que a fraude à execução se apresente clara e vistosa, há de ser declarada
pela autoridade jurisdicional competente, a quem caberá, igualmente, determinar o
cancelamento do registro que impeça o cumprimento de sua decisão.
Se o executado já não consta do Registro de Imóveis como proprietário do
imóvel não há como registrar o título em que ele, substituído pelo Poder Público,
transfere ao arrematante o direito de propriedade de que já se despojou.
A segurança que o sistema registrário brasileiro ainda tem apóia-se exatamente
na forma. À medida que se permitirem arranhões aos princípios da continuidade e da
especialidade, principalmente, estar-se-á debilitando aquela segurança” (ApCív 3.547-0
- São José do Rio Preto – Apelante: Flora Bascope Campbell – Apelado: Oficial do 1.º
Cartório de Registro de Imóveis – (CSMSP) (in Revista de Direito Imobiliário, n. 15, p.
70).
e) Princípio da Disponibilidade
Esse princípio da disponibilidade vincula-se ao princípio de que ninguém pode
transferir mais direito do que tem ou, no dizer dos latinos. nemo dar quot non habet.
Em decorrência deste princípio é imperioso verificar-se se o imóvel está
disponível, vale dizer, se está em condição de ser alienado ou onerado, tanto do ponto
de vista físico, como do prisma jurídico.
Do ponto de vista físico, exemplifica-se tal hipótese: se alguém é proprietário
de um terreno urbano com 5.000m2
e já alienou 3.500m2, não tem disponibilidade para
concretizar o registro de uma escritura de venda de uma área de 2.800m2 do mesmo
imóvel. A jurisprudência já analisou este aspecto consoante se verifica do acórdão
abaixo:
“Disponibilidade – Imóvel de 421 alqueires, segundo a transcrição anterior, à
margem da qual está inscrito um compromisso de 210,5 alqueires – Impossibilidade do
ingresso de uma outra escritura que expressa a venda de 235,33 alqueires – Irrelevância
do excesso decorrer de retificação acordada com o proprietário ou de ter sido a venda
realizada ad corpus ou ad mensuram.
Fracionamento – Área remanescente – Título que descreve minuciosamente o
imóvel seu objeto, tornando prescindível a descrição da parte remanescente – A
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descrição da área remanescente não constitui exigência legal embora constante do
Provimento do Juízo” (ApCív 262.486 – Itaporanga – 15.08.1977 - rel. Acácio
Rebouças – V.u., in Registros Públicos, Ed. RT, p. 88).
Sob o prisma jurídico, a disponibilidade ocorre se, por exemplo, alguém
adquire um imóvel por doação, com a cláusula de inalienabilidade, não poderá dispor
dele para a venda a qualquer outra pessoa, e, se o fizer, o título não poderá ser
registrado.
Valmir Pontes (in Registro de Imóveis, Saraiva, São Paulo, 1982, p. 30-31), ao
tratar do registro e disponibilidade, preleciona que não poderá ser aceito para registro
ato de alienação ou oneração fundado em divisão ou partilha, sem que estes estejam
registrados. Observa e ressalta neste tocante quatro hipóteses que merecem transcrição:
“1.º) nos casos em que, na divisão ou partilha, um ou mais herdeiros ou
condôminos sejam aquinhoados em excesso, ou a mais do que lhes caiba na distribuição
equitativa dos bens, mediante reposição ou compensação ou mesmo a título gratuito, tal
excesso deverá ser havido como oneroso ou gratuitamente alienado, perdendo o ato, em
relação a esses pontos, o seu caráter declaratório para assumir a feição de ato atributivo
de propriedade; em tais hipóteses, o registro não será o previsto para efeito de mera
disponibilidade, mas para operar a transferência do domínio;
2.º) mesmo quando ainda indivisa a propriedade – desde que não se trate de
sucessão por morte – pode qualquer condômino, independentemente de divisão, ou do
registro desta, alienar ou onerar a sua parte ideal no imóvel (CC, art. 623, III), salvo, na
hipótese de imóvel indivisível, o direito de preferência dos demais condôminos (CC, art.
1.139); com esse direito de preferência, porém, nada tem a ver o oficial do registro, que
não poderá recusar o registro, no caso a que aqui nos referimos, sob o pretexto de falta
de consentimento dos demais condôminos; .
3.º) independentemente de divisão, ou do registro desta – a não ser no caso de
sucessão hereditária – pode o condômino alienar ou gravar individualmente a sua parte
do imóvel, ou uma porção dela, se os demais condôminos, no próprio ato, ou em
instrumento à parte (CC, art. 132), consentirem nessa individuação; o ato assim
praticado, equivalerá a uma divisão parcial, seja para excluir do condomínio o
condômino que onerou ou alienou a sua parte, seja para reduzir a sua participação no
condomínio;
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4.º) em se tratando de sucessão por morte, admissível não é a oneração dos
direitos do sucessor, ainda que este seja tido como condômino do acervo hereditário,
dada a impossibilidade da individuação dos quinhões antes da partilha; a herança,
embora seja um condomínio, tem a natureza peculiar de universalidade de direitos e
obrigações, insuscetível de divisão, ainda que puramente ideal, entre os herdeiros e
demais interessados nela, só pela partilha podendo individuar-se a participação de cada
um; pode o sucessor, porém, fazer cessão gratuita ou onerosa dos seus direitos, mas esse
ato de alienação de direitos hereditários não é suscetível de inscrição ou transcrição.”
Não se pode olvidar, nesta oportunidade, que o Decreto 18.542, de 24.12.1928,
continha a fórmula inicial do princípio da disponibilidade no seu art. 232, verbis: “Serão
sujeitos à transcrição no livro 3 e em qualquer tempo, simplesmente para permitirem a
disponibilidade dos imóveis, ou julgados pelos sursis, nas ações de decisão, demarcação
e partilha, se puser termo à indivisão (Cód. Civil, arts. 532, 533 e 1.572)” (g. n.).
Ainda no que se refere à disponibilidade jurídica há um problema prático que
não pode passar in albis. Trata-se de possibilidade jurídica de um terceiro adquirir um
imóvel sobre o qual exista penhora registrada. A esse respeito o Conselho Superior da
Magistratura de São Paulo, apoiado na melhor doutrina e jurisprudência (Serpa Lopes,
Tratado dos Registros Públicos, v. 11/417 e seguintes, 5.ª ed., n. 401; Revista de
Jurisprudência do TJSP, 15/502, 21/579 e 30/470; RT 430/136, 451/128, 494/ 85),
entende que a existência da penhora, ainda que registrada, não impede a alienação do
imóvel e, conseqüentemente, o registro do título respectivo, uma vez que a constrição
processual não tira ao executado a titularidade do domínio, nem a disponibilidade do
bem penhorado.
Por todos os aspectos reportados, infere-se quão importante é o controle
imediato da disponibilidade da área do imóvel, cujo conhecimento se impõe tão
frequentemente ao registro, como se vê da jurisprudência pertinente:
“Se, do imóvel com testada de 60,50m, foram desmembradas parcelas que
atingem 50,30m de frente, restando uma disponibilidade de 10,20m, não pode ser
registrado título em que o imóvel tem 13,00m de frente. O título está em desacordo com
o disponível no registro” (Ac. 748-0, Itapetininga, 11.11.1981, Des. Affonso de André)
(in Registro de Imóveis, Saraiva, 1984, p. 44).
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“O Oficial do Registro de Imóveis não é mero registrador de títulos. Incumbe-
lhe o exame dos títulos à luz dos princípios norteadores do sistema registrário, inclusive
no que respeita à disponibilidade da área. Mesmo os títulos judiciais estão sujeitos a
esse exame e podem ser objeto de procedimento de dúvida” (Ac. 980-0, São Paulo,
28.12.1981, Des. Affonso de André (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1984, p. 76).
“O cartório não se pode escudar no pretexto de que não dispõe de elementos
para verificar se há disponibilidade de área ou não; para não realizar o registro ele há de
afirmar, com elementos positivos, que a área primitiva não comporta disponibilidade
para fazer o registro pretendido” (Ac. 1.052, São Paulo, 19.05.1982, Des. Andrade
Junqueira, maioria de votos) (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1984, p. 181).
“Não pode ser registrada a venda, por desmembramento, se já não há
disponibilidade em virtude dos desmembramentos registrados anteriormente, pouco
importando que o adquirente tivesse compromisso registrado sobre o mesmo imóvel
objeto de escritura definitiva” (Ac. 1.412-0, São Carlos, 02.12.1982, Des. Affonso de
André) (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1984, p. 271).
f) Princípio da Continuidade
Dentre as regras basilares do Direito Imobiliário, há de apontar-se o princípio
da continuidade, em função do qual nenhum registro pode ser efetuado sem a prévia
menção ao título anterior, constituindo, assim, a eficácia normal do registro.
Cada assento registral deve apoiar-se no anterior, formando um encadeamento
histórico ininterrupto das titularidades jurídicas de cada imóvel, numa concatenação
causal sucessiva na transmissão dos direitos imobiliários.
O Decreto 18.542, de 24.12.1928, já consagrava este princípio de forma
insofismável, determinando que, em qualquer caso, não se poderá fazer o registro sem
que seja registrado o título anterior, de modo a assegurar a continuidade do registro de
cada imóvel, estabelecendo, de modo expresso, no art. 206, que: “Se o imóvel estiver
lançado em nome do outorgante, o oficial exigirá a transcrição do título anterior,
qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro”.
A Lei 6.015 /73, vigente a partir de 01.01.1976, manteve o mesmo princípio no
seu art. 195, ao dispor que: “Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome
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do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior,
qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro” (g.n.).
É comum ocorrer que B compra um imóvel que pertencia a A, e, logo em
seguida, o vende a C. Nestas hipóteses as partes interessadas, por questão de economia
quanto ao pagamento dos impostos e taxas imobiliárias e despesas cartorárias, tendem a
registrar apenas a última operação, ou seja, a transmissão da propriedade de B para C,
sem qualquer intervenção de A em nome do qual se acha registrado o imóvel. Verifica-
se, no entanto, que, pelo princípio da continuidade, nenhum registro pode ser efetuado
sem o prévio registro do título anterior, obrigando-se às partes interessadas, in casu, A,
B e C, a registrarem as respectivas transferências.
Para o abalizado doutrinador Serpa Lopes (in Tratado de Registros Públicos, v.
IV, 3.ª ed., n. 742), a palavra continuidade quer dizer “ligação não interrompida das
partes de um todo” e, em boa lógica, não é admissível a exigência de ligação das partes
de um todo, quando este ainda não existe, de vez que nem sequer teve início.
“O interesse da continuidade torna-se patente, intuitivo. Não transcrever o
título anterior, implicaria na ilegal quebra de um dos elos da corrente da sucessividade,
imposta pela lei”.
“Tal situação não surge quando do Registro não consta nenhum lançamento a
respeito do imóvel. O domínio do imóvel, se não decorre do Registro lmobiliário, pelo
menos com ele não entra em conflito” (op. e loc. cits).
Como um dos princípios fundamentais do registro imobiliário, o da
continuidade, determina o imprescindível encadeamento entre assentos pertinentes a um
dado imóvel e às partes nele interessadas (in Lei dos Registros Públicos comentada,
Walter Ceneviva, Saraiva, 1979, p. 411). Segundo Afrânio de Carvalho (op. cit., p. 304-
305) “o princípio de continuidade, que se apóia no de especialidade, quer dizer que, em
relação a cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia de
titularidades à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante dele
aparecer no registro como seu titular. Assim, as sucessivas transmissões, que derivam
umas das outras, asseguram sempre a preexistência do imóvel no patrimônio do
transferente.
O encadeamento de titulares, em que se apóia a confiança do público, recebe o
nome de princípio de continuidade. Esse nome, contudo, tem variantes na linguagem,
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conforme a expressão legal usada em cada país para traduzir o princípio, sendo
intitulado no Direito Alemão de inscrição prévia do prejudicado em seu direito, no
Direito Francês, inspirado tardiamente no antecedente, de efeito relativo da publicidade,
designação manifestante imprópria, ao passo que no Direito Brasileiro foi desde o
começo conhecido como registro do título anterior.”
No magistério atualizado de Tabosa de Almeida (op. cit., p. 53-54), “na Lei
6.015 o princípio foi acolhido enfaticamente em numerosos dispositivos, tais como os
arts. 176, § 1.º, II, n. 5, 195, 222, 223, 225, § 2.º, in fine, 227, 228 e 237, os quais
preencheram todas as lacunas porventura ainda existentes na legislação. E, com a
adoção do fólio real, ou seja, do sistema de matrícula do imóvel (arts. 176, 195, 196,
197, 225, § 2.º, 227, 228, 231 e 236), já não há lugar para a mínima dúvida quanto à
plena eficiência do princípio no Direito Registral Imobiliário Brasileiro.
No Direito Espanhol o princípio da continuidade é também denominado de
tracto sucesivo, ou de previa inscripción, e é tido como conseqüência natural do
princípio de publicidade e da presunção de exatidão do registro imobiliário. É a historia
do imóvel, constituída por uma cadeia sem solução de continuidade, de tal maneira que
o adquirente num registro terá de ser forçosamente o transmitente no seguinte. Eis a
admirável síntese de Carmelo Diaz González (op. e vol. cits., p. 253): “El fundamento
de este principio no es otro que el conocido aforismo de Derecho de que „nemo dat quod
non habet‟. Nadie puede transmitir el dominio de uma cosa si no es dueño de ella y,
para conseguir el cumplimiento de esta norma esencial de Direito Privado, en relación
con los bienes inmuebles, se han estabelecido los Registros de la Propiedad Inmobiliaria
en los pueblos civilizados."
Na lição de Orlando Gomes (in Rev. do Direito Imobiliário, n. 1, 1978, p. 12),
“no sistema registral do País, o chamado princípio da continuidade do registro, já
inferido, pela doutrina, dos artigos do Código Civil concernentes ao registro imobiliário
que o exigiram para manter a corrente da titularidade”.
No dizer de Roca Sastre, o objetivo basilar do princípio da continuidade é que
“no se interrumpa la cadena de inscripciones y que el registro nos cuente la historia
completa (sin saltos) de la finca”.
Ainda no campo doutrinário, é Garcia Coni (op. cit., p. 95) que fornece,
sinteticamente, a relevância do princípio da continuidade ao prelecionar que: “Si entre
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uno titular inscrito pudieran intercalarse otros negociales, el Registro no podría
combatir el clandestinismo transmisivo ni tomar conocibles todas las enajenaciones.
Dicho de otra manera, no podría cumplir su cometido cautelar, y casi ya no tendría
razón de ser”.
No plano jurisprudencial o princípio da continuidade registral tem sido objeto
de inúmeras demandas judiciárias como se vê dos acórdãos abaixo:
“Registro de Imóveis – Anterioridade ao Código Civil – Princípio da
continuidade. É sabido que nem todo registro é constitutivo. Há os declaratórios, os
acautelatórios e também aqueles destinados exclusivamente à observância do princípio
da continuidade. São desta espécie os registros das transmissões causa mortis, porque a
transcrição é modo de aquisição do domínio apenas nos atos vivos – art. 531 do CC. O
Registro do título anterior ao Código Civil nada tem, e nem poderia ter, de constitutivo.
Visa exclusivamente ao resguardo da continuidade, que é uma das garantias do sistema.
Não se trata de inovação trazida pela Lei 6.015/73, que só fez repetir preceitos que
apareceram, pela primeira vez, no Regulamento de 1928 – Dec. 18.542/28, art. 206. O
art. 244 do Regulamento de 1939 – Dec. 4.857 – era explícito: „em qualquer caso, não
se poderá fazer a transcrição ou inscrição sem prévio registro do título anterior, salvo se
este não estivesse obrigado a registro, segundo o Direito então vigente...‟ A Lei
6.015/73 repete a norma, mas sem a ressalva, no art. 195: „Se o imóvel não estiver
matriculado ou registrado em nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e
o registro do título anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a
continuidade do registro‟. Não se controverte a absoluta necessidade, hoje, da abertura
de matrícula e do registro do título anterior, qualquer que seja a natureza e ainda que,
por operar os efeitos jurídicos a que é vocacionado, não estivera sujeito a registro
segundo o direito vigente à data de sua celebração” (CSMSP – Ac. unân. publ. no DJ de
30.03.1983 – Ap. 1.778-0 – Santos – rel. Des. Bruno Affonso de André – Indalécio de
Aguiar Bueno vs. Oficial do 1.º Cartório do Registro de Imóveis – Adv. Augusto Parola
Ramos) (in Adcoas, verbete 90.435).
“Registro de Imóveis – Anterioridade ao Código Civil – Princípio da
continuidade. Não é correta a exigência de registro do título anterior, à vigência do
Código Civil. À época os registros públicos eram regidos pelo Dec. 390/1890, este,
como é sabido, não estabelecia obrigatoriedade da transcrição para a aquisição do
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domínio, quer por ato inter vivos, quer causa mortis. O Código Civil não incluiu no art.
532 a obrigatoriedade de transcrição das partilhas em inventário, embora alguns
entendessem que o inc. I do mesmo artigo abrangesse tais atos. A transcrição das
partilhas em inventário foi tornada obrigatória, de forma expressa, somente no
Regulamento de 1928 – Dec. 18.527/28 – não como forma de transmissão do domínio,
mas para tornar efetivamente eficaz o princípio da continuidade” (CSMSP – Ac. unân.
publ. no DJ de 31.03.1983 – Ap 1.762 – Jacupiranga – rel. Des. Bruno Affonso de
André – Bráulio Madeira Simões vs. Oficial do Cartório de Registro de Imóveis) (in
Adcoas, verbete 90.436).
“Ao lado de impor um dever de observância aos particulares, o princípio da
continuidade assegura-lhes também um direito. Se a descrição do imóvel constante do
registro é observada, não há como recusar os atos a ele relativos, ainda que disso saia
arranhado o princípio da especialidade. As falhas encontradas nas descrições antigas são
um peso que o Registro Imobiliário carregará por muito tempo. Não há como impor aos
particulares um dever de correção dessas falhas” (Sentença em processo de dúvida
julgado pelo Juiz Auxiliar da 1.ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, transitada em
julgado) (in Revista de Direito Imobiliário, n. 10, p. 138).
“Sociedade de fato – Imóvel registrado em seu nome – Inadmissibilidade de
atribuição a herdeiro de sócio falecido, no inventário deste, sem prévia dissolução da
sociedade – Observância do princípio da continuidade.
Não cabe ao oficial reconhecer a existência de sociedade de fato, nem lhe
compete decidir se o sócio daquela pode, em nome próprio, dispor do patrimônio social.
Se o imóvel está registrado em nome de pessoa jurídica, a aparência que resulta do
registro é suficiente para que o oficial só admita as disposições em seu nome feitas”.
(ApCív 2.949-0 – São Paulo – Apelante: Marilisa V. Tavares da Motta – Apelado:
Oficial do 9.º Cartório de Registro de Imóveis – CSMSP) (in Revista de Direito
Imobiliário, n. 13, p. 73).
“Mesmo autorizada por alvará judicial, a viúva meeira não pode transmitir, em
nome próprio, imóvel registrado em nome de seu falecido marido. Antes da partilha,
quem pode transmitir a propriedade é apenas o espólio, pouco importando que a viúva
seja, também, a única herdeira, sob pena de ofensa ao princípio da continuidade.”
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(Sentença em processo de dúvida do Juiz de Direito da 1.ª Vara de Registros Públicos
de São Paulo, transitada em julgado) (in Revista de Direito Imobiliário, n. II, p. 156).
“Se do título apresentado a registro constam nomes que não coincidem com os
constantes do registro anterior, faz-se necessária a prévia retificação deste, para que
violado não seja o princípio da continuidade.
Essa retificação de nomes no registro pode ser feita a requerimento de apenas
um dos proprietários, com fundamento no art. 246, par. único, da Lei 6.015/73,
mediante prova, inclusive justificação” (Ac. 474-0, Laranjal Paulista, (06.02.1981 - Des.
Adriano Marrey) (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1982, p. 384).
“Se a vendedora condicionou a venda à aceitação e respeito aos compromissos
particulares assumidos com terceiros, com maior razão se reputa condicionado o
respeito ao direito decorrente da coisa julgada e da subseqüente arrematação, em praça,
dos lotes vendidos. O registro da carta de arrematação, nessa hipótese, não fere o
princípio da continuidade. Faz-se necessária, entretanto, a prévia averbação da
existência da ação e da execução contra a antecessora do atual proprietário, além da
existência da obrigação de outorga de escrituras dos lotes (o que se determinou de
ofício)”. (Ac. 116-0, Atibaia, 29.01.1981, Des. Adriano Marrey), (in Registro de
Imóveis, Saraiva, 1982, p. 381).
“Viola o princípio da continuidade dos registros o registro de alienação feita
como casado por quem adquira como solteiro” (Ac. 279.610, São Paulo, 29-6-79, Des.
Andrade Junqueira), (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1982, p. 328).
“Imóvel registrado em nome de terceiro – Registro inadmissível – Observância
do princípio da continuidade.
A ação de adjudicação compulsória não cria nem transfere domínio. Atém-se à
pretensão de suprir declaração de vontade negocial, cuja eficiência jurídica assume.
Logo, conseqüente carta de adjudicação não pode mais do que o poderia o instrumento
do negócio recusado” (ApCív 1.371-0 – Atibaia – Apelantes: José Vicente Mendes e/o.
– Apelado: Oficial do Cartório de Registro de Imóveis – CSMSP) (in Revista de Direito
Imobiliário, n. 12, p. 109).
“Se o registro anterior está contaminado de erro, cumpre que se o retifique para
que se mantenha incólume o princípio da continuidade. Tal erro impede o registro de
título em que o imóvel está descrito de forma diversa, ainda que correta” (Ac. 274.627,
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Brotas, 09.11.1978, Des. Andrade Junqueira) (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1982, p.
94).
“A correspondência literal entre o título e o registro anterior nem sempre é
possível e é exigência despropositada. O que se exige é a presença de elementos
minudentes de identificação da coisa. ´Se, no descrevê-la com observância dos
requisitos legais (arts. 176, § 1.º, II, n. 3, e 225 da Lei 6.015/73), ainda que despontem
discrepâncias secundárias, se guardou precisa individuação da coisa, bastante para a
compatibilidade com o registro a que se vincula a certeza do domínio, estão, quantum
sufficit, configurados os pressupostos da continuidade dos registros públicos´” (Ac.
268.792 - Santa Cruz do Rio Pardo, 15.05.1978, Des. Andrade Junqueira (in Registro de
Imóveis, Saraiva, 1962, p. 200).
“Se o imóvel, integrante de loteamento, não passou a integrar o domínio
público, não pode a Prefeitura, desafetando-o, aliená-lo. O registro dessa alienação
violaria o princípio da continuidade dos registros” (Ac. 530-0, Viradouro, 17.02.1982,
Des. Affonso de André) (in Registro de Imóveis, Saraiva, 1984, p. 111).
“Se a transcrição a que se filia o título não abrange o imóvel a que este refere,
não há como registrá-lo sem a prévia retificação da transcrição ou do título” (Ac. 632-0,
Santo André, 17.02.1982, Des. Affonso de André) (in Registro de Imóveis, Saraiva,
1984, p. 112).
“Não merece registro o título se o imóvel não está registrado em nome dos
transmitentes. Pouco importa que se trate de carta de adjudicação e que o interessado
esteja de boa fé” (Ac. 1.206-0, São Paulo, 23.08.1982, Des. Affonso de André) (in
Registro de Imóveis, Saraiva, 1984, p. 221).
“Registro de Imóveis – Matrícula.
Omissão da designação cadastral do imóvel. Requisito essencial (art. 176, par.
único, II, 3, da Lei dos Registros Públicos). Menção errônea do transmitente, como
sendo os herdeiros do de cujus e não o seu Espólio. Violação do princípio da
continuidade. Recurso parcialmente provido, para determinar à correção de tais falhas
através de averbação e não do refazimento da matrícula” (in Decisões da CGJ-SP,
1981/82, Ed. RT, São Paulo, p. 63).
“Cancelamento – Registro de Imóveis. Duplicidade de registros de um mesmo
imóvel. Nulidade de pleno direito caracterizada. Segundo registro cancelado. Violação
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 161
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do princípio da continuidade. Decretação em processo meramente administrativo. Art.
214, da Lei dos Registros Públicos. Decisão mantida” (in Decisões Adm. da CGJ-SP,
198/82, Ed. RT, São Paulo, p. 70).
“Registro de Imóveis – Registro de penhora, decorrente de mandado judicial.
Imóvel, porém, registrado em nome de terceiro e não do executado. Recusa oposta pelo
Oficial. Conduta irrepreensível e conforme à sedimentada orientação normativa
superior, pautada pelo respeito ao princípio da continuidade. Regular exercício do dever
de examinar a validade e a legalidade dos títulos, ainda que judiciais. Inocorrência de
qualquer falta disciplinar. Hipótese, contudo, de alienação do bem penhorado em fraude
de execução, assim de plano declarada pelo Juízo Cível competente. Admissibilidade,
no caso, do registro da penhora. Pronunciamento do E. Conselho Superior da
Magistratura” (in Decisões Adm. da CGJ-SP, 1983/84, São Paulo, Ed. RT, p. 82).
“Registro de Imóveis – Confisco de bens de sociedade. Ofício da autoridade
administrativa competente, autorizando o levantamento da medida e o concomitante
registro da transferência dos imóveis liberados diretamente a ex-diretores. Inviabilidade.
Admissão apenas da providência liberatória, já que a pretendida transmissão de domínio
ofenderia aos princípios da legalidade e continuidade. Decisão de indeferimento
mantida” (in Decisões Adm. do CGJ-SP, 1983/84, São Paulo, Ed. RT, p. 101).
“Registro de Imóveis – Pretendida retificação de matrícula, para nela enxertar
nova descrição, referente, porém, a outro imóvel. Descabimento. Caracterização de
alteração do próprio objeto da matrícula, sem que, para o imóvel alvitrado, existisse
origem conhecida. Violação do princípio da continuidade configurada. Indeferimento do
pedido e conseqüente cancelamento, de ofício, da matrícula. Decisão mantida” (in
Decisões Adm. da CGJ-SP, 1983/84, São Paulo, Ed. RT, p. 103).
“Cancelamento – Registro de Imóveis. Duplicidade de matrículas e registros de
um mesmo imóvel. Nulidade de pleno direito caracterizada. Vulneração do princípio da
continuidade. Art. 214, da Lei dos Registros Públicos. Determinação de cancelamento
dos atos praticados em segundo lugar. Observância da ordem de precedência. Decisão
mantida” (in Decisões Adm. da CGJ-SP, 1983/84, São Paulo, Ed. RT, p. 105).
g) Princípio de Legalidade
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Este princípio impede o ingresso no Cartório de Registro de Imóveis de títulos
inválidos ou imperfeitos, contribuindo, desse modo, para a concordância do mundo real
com o mundo registral.
A verificação da legalidade e da validade do título e a efetivação de seu
registro, se o mesmo estiver em conformidade com a lei, é uma regra implícita e
subtendida no art. 198 da Lei 6.015.
Vale dizer, o exame prévio da legalidade dos títulos objetiva estabelecer a
correspondência constante entre a situação jurídica e a situação registral, de modo que o
público possa confiar plenamente no registro. Aliás, Hernandez Gil (in Introducción al
Derecho Hipotecário, Madri, 1970, p. 149), após acentuar que esse exame deve ser “de
fondo y de forma”, estendendo-se a todos os aspectos que possam impedir o registro,
aduz, incisivamente, que “los asientos sólo servirian para engañar al publico, favorecer
el tráfico ilícito y provocar nuevos litígios”.
É regra jurídica implícita em todo o sistema registral o exame da legalidade
que, do ponto de vista prático, impõe, no magistério de Valmir Pontes (in Registro de
Imóveis, Saraiva, São Paulo, 1982, p. 98), a análise dos seguintes aspectos: “Começará
o oficial, naturalmente, por ter em vista a forma dos papéis apresentados, verificando se
se trata de instrumentos ou escrituras públicas ou particulares e se, na elaboração desses
instrumentos ou escrituras, foi preterida alguma solenidade essencial ou omitida alguma
declaração indispensável. Examinará, depois, se foram satisfeitas pelos interessados as
imposições da legislação fiscal, como o pagamento do imposto de transmissão de
propriedade nas transmissões de imóveis inter vivos ou mortis causa e a transcrição, nos
atos públicos, das certidões de quitação dos imóveis para com o fisco. Verificará em
seguida se foram obtidos regularmente os alvarás ou autorizações, judiciais ou
administrativos, necessários à realização dos atos, como no caso de venda de bens de
menores ou de bens sujeitos às cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade ou
impenhorabilidade. Verá se, no caso de alienação de bens de interditos ou de menores
sob tutela, o ato se efetivou pela forma prescrita em lei; se as alienações ou onerações
de imóveis foram devidamente representadas, para o que terá que ver, nos instrumentos
particulares ou no contexto dos instrumentos públicos, quando as leis de organização
judiciária exigirem a respectiva transcrição, o teor das procurações a eles referentes; se
não ocorre, enfim, qualquer nulidade ou irregularidade nos atos, cujo registro lhe seja
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requerido, inclusive sob o ponto de vista da sua autenticidade ou da veracidade das
assinaturas nele apostas.
Nesse trabalho preliminar de verificação, entretanto – trabalho que requer, da
parte do oficial, um mínimo de conhecimentos jurídicos que só os formados pelas
escolas de direito, presumivelmente, devem possuir – o oficial não poderá ir ou não
deverá ir além de certos limites, impostos pela natureza da sua função pública e pela
necessidade dos interesses comuns e das chamadas normas de ordem pública. Casos
haverá em que ao oficial será defeso aprofundar o exame a que é obrigado, como, por
exemplo, no caso de falta de pagamento de foros e laudêmios devidos a senhorios
diretos, e, em geral, nos casos de simples anulabilidade dos títulos por vícios de
consentimento e outros em que não se apresente interesse público ou norma de ordem
pública a resguardar. Não é o oficial do Registro de Imóveis tutor ou curador de direitos
ou interesses privados, nem lhe cabem funções de julgamento que só ao Poder
Judiciário são conferidos pela ordem jurídica, sobretudo em matérias reservadas por lei
à iniciativa dos interessados e nas quais só a requerimento das próprias partes o Poder
Judiciário pode interferir.”
De uma outra perspectiva, Tabosa de Almeida (op. cit., p. 52-53) lembra que:
“o exame da legalidade em nosso Direito, a primeira coisa a analisar, como já foi dito, é
uma espécie de preliminar, relativa à competência do cartório ao qual o documento é
apresentado. Assim é que, principalmente quando se tratar de averbação, o cartório há
de observar, antes de tudo, se se trata de matéria da sua competência. Nos casos de
registro propriamente dito, fácil é verificar se o imóvel a registrar fica situado na sua
circunstância territorial. Mas, na hipótese de averbação, quando se pretender fazê-la no
cartório novo, a certidão do cartório antigo deverá declarar se o imóvel em apreço nele
se acha matriculado; e, em caso contrário, se ainda dispõe de espaço à margem do
registro para o lançamento da averbação. Se não houver espaço, caberá ao novo cartório
fazer a matrícula e logo a seguir a averbação. Entretanto, se houver espaço (arts. 292 –
renumerado pelo art. 2.º da Lei 6.941, de 14.09.1981, passando a designar-se art. 295 - e
169, I), ou se o imóvel já estiver matriculado, caberá ao cartório antigo proceder à
averbação, na conformidade do disposto no art. 169, I, da Lei Registral vigente. Se esses
dispositivos legais forem desatendidos, o ato será nulo de pleno direito, à vista dos arts.
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82, 130 e 145, III, do CC, em virtude de o ato registral não se ter revestido da forma
prescrita em lei”.
Impende ressaltar aqui o esboço de questionário-roteiro elaborado por Afrânio
de Carvalho (op. cit., pp. 351-356) para facilitar e operacionalizar o exame da
legalidade pelos serventuários.
Apenas para ter-se uma idéia da pluralidade de requisitos formais que devem
ser verificados e policiados pelo Oficial de Registro de Imóveis evitando a ofensa ao
princípio da legalidade. Um exemplo bem atual é a indisponibilidade de bens de
administradores de instituição financeira. Na forma do disposto no art. 36 da Lei federal
6.024/74, “os administradores das instituições financeiras em intervenção, em
liquidação extrajudicial ou em falência, ficarão com todos os seus bens indisponíveis,
não podendo, por qualquer forma, direta ou indireta, aliená-los ou onerá-los, até
apuração e liquidação final de suas responsabilidades”. Assim, com a comunicação do
fato ao Registro de Imóveis, ficam proibidos os registros, ou averbações, envolvendo
tais bens (art. 38, par. único). É esta uma vedação ou óbice legal que se agrega aos
incontáveis preceitos e exigências contidos não só na legislação dos registros públicos,
mas também na legislação tributária, civil, comercial ou de outra natureza, pertinentes e
aplicáveis por força do princípio da legalidade.
São estes os aspectos mais expressivos deste princípio da legalidade
exaustivamente estudado por Afrânio (op. cit., pp. 269-303).
h) Outros Princípios
Em aditamento aos princípios já analisados que, numa ótica puramente pessoal,
constituem os mais importantes em matéria de Direito Registral Imobiliário, é possível
mencionar-se outros princípios registrais reconhecidos e estudados por especialistas
deste ramo jurídico:
– Princípio da Rogação ou da Instância (v. Tabosa de Almeida, op. cit., p. 47-
50, e Afrânio de Carvalho, op. cit., p. 326-356);
– Princípio da Inscrição (v. Afrânio de Carvalho, op. cit., p. 163-192);
– Princípio da Presunção (v. Afrânio de Carvalho, op. cit., p. 193-210);
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– Princípio da Legitimação (v. Tabosa de Almeida, op. cit., p. 56-57, e Garcia
Coni, op. cit., p. 103-105).
Conclusão
“Los princípios de derecho registral son las orientaciones fundamentales que
informan esta disciplina y dan las pautas en la solución de los problemas jurídicos
planteados en el derecho positivo.”
Esta declaração firmada por ocasião do I Congresso Internacional de Direito
Registral realizado em Buenos Aires, em 1972, demonstra, inquestionavelmente, o
“valor teórico y la utilidad práctica de estos princípios” da legislação registral,
formulados diretamente nela ou obtidos por indução ou ainda por abstração de seus
preceitos que dão a conhecer as linhas essenciais do nosso sistema jurídico registral
imobiliário.
Dentro de uma lei que, em si, já é geral em cada uma de suas normas, buscam-
se os Princípios como as regras mais gerais que as dominam, daí a sua utilidade na lição
de Fernando López de Zavalia (in Curso Introductorio al Derecho Registral, Ed.,
Buenos Aires, 1983, p. 292), verbis:
“1. Sirven para comprender al orden jurídico que se examina, como un sistema
que sigue una determinada orientación.
2. Permiten dar una descripción sintética de un determinado orden jurídico que
facilita la comparación con otros órdenes jurídicos en las variantes fundamentales que
los órdenes comparados puedan presentar”.
Quanto à enumeração dos princípios registrais, há que se por em relevo que a
sua determinação não responde a um critério rigorosamente científico, mas a uma mera
valoração mais quantitativa que qualitativa de importância dos preceitos de direito
positivo.
Sanz Fernández (in Instituciones de Derecho Hipotecario, tomo I, p. 230-231)
faz uma enumeração – não definitiva – de princípios registrais com base nos seguintes
critérios :
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“a) Princípios que regulan la esfera de actuación del derecho inmobiliario:
principio de la inscripción, dentro del cual, y como precedente necesario, debe
recogerse la teoria del titulo y del modo.
b) Principios que gobiernan los requisitos previos o presupuestos de la
inscripción: titulación auténtica, princípio de rogación, princípio de tracto sucesivo y
principio de legalidad.
c) Principios que gobiernan los efectos de la inscripción: principio de prioridad,
principio de ligitimación y principio de la fe pública.
d) Principios que gobiernan la organización del registro y fijación de los
derechos reales: principio de especialidad.”
Em adendo às dimensões legais, doutrinárias e jurisprudenciais já evidenciadas
à saciedade no tocante a cada um dos princípios registrais imobiliários analisados,
elaborou-se, nesta conclusão, uma síntese com objetivos estritamente didáticos:
a) Princípio da Publicidade – Segundo Zavalia (op. cit., p. 56-57), “publicidad
registral es la cognoscibilidad permanente y general de hechos jurídicos en base a la
declaración señalativa de un órgano competente, puesta a disposición del público por
los medios previstos por la ley”.
b) Princípio da Fé Pública – A proteção que decorre do princípio da fé pública
consiste em proporcionar ao proprietário do imóvel uma posição inatacável, firme e
segura sempre que haja obtido a titularidade com satisfação de todos os requisitos
legais.
c) Princípio da Prioridade - É aquele em virtude do qual os direitos reais
concorrentes sobre um mesmo imóvel guardam entre si uma ordem de preferência em
função da antigüidade de suas datas de registro.
d) Princípio da Especialidade – Chamado por alguns juristas de princípio da
individualização, corresponde à necessidade de determinar o imóvel como unidade
registral do sistema em suas circunstâncias físicas e com os dados exigíveis para
distingui-lo de qualquer outro.
e) Princípio da Disponibilidade – No sistema registrário brasileiro incumbe ao
Oficial examinar a disponibilidade de área, ou seja, se o imóvel alienado comporta-se
física e corporeamente na área disponível e suficiente a permitir o registro do título
apresentado.
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f) Princípio da continuidade – Tem a finalidade de manter um rigoroso enlace
ou conexão entre os diferentes negócios de modificação jurídica da titularidade através
de uma ordem registral que não permite a interrupção ou salto, de modo que o Registro
reflita um histórico completo do imóvel, relativamente à cadeia de titulares.
g) Princípio da Legalidade – Para Rocha Sastre (in Derecho Hipotecario, tomo
II, p. 255), “el principio de la legalidad impone que los títulos que pretendan su
inscripción en el registro de la propiedad sean sometidos a un previo examen,
verificación o calificación, a fin de que en los libros hipotecarios solamente tengan
acceso los títulos válidos o perfectos”.
Aduz-se, ainda, que, em face da inexauribilidade imanente a toda pesquisa, este
trabalho é ponto de partida e não de chegada. É inconcluso, ou melhor, é uma “obra
aberta” ou “textura aberta” na medida em que nem cerra nem encerra o tema, pois os
princípios registrais analisados não estão enquadrados dentro de uma moldura hermética
e exaustiva.
É evidente que outros princípios podem surgir e ser incorporados ao elenco
explicitado, seja em razão do próprio dinamismo do Direito Registral Imobiliário, seja
como decorrência de observações, críticas e sugestões de quem se aprofunde no seu
estudo ou discorde de suas assertivas.
Em síntese, este trabalho aqui se detém – não porque chegou ao fim do
caminho – mas porque as perspectivas que se abrem são muitas e intermináveis. E este
fim – como todos os fins humanos – decorre da relatividade das circunstâncias e das
limitações de quem sucumbiu à tentação de concluir. Espera-se apenas que esta seja
uma pausa para retomar o fôlego e para prosseguir pelas veredas que se abrem no
horizonte.
Os princípios aqui analisados não representam um repertório acabado de
soluções nem também um conjunto determinado de diretivas. São postulados fecundos,
de grande riqueza potencial pelo variado número de aplicações possíveis, daí porque
este ensaio servirá de bússola para uma segura orientação no cipoal de normas jurídicas
do Direito Registral Imobiliário. E os princípios registrais, como idéias matrizes que
cimentam e iluminam a compreensão dessa matéria, são apresentados mais como
hipóteses de trabalho do que como soluções definitivas, ou seja, dentro de uma postura
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metodológica que os coloca como substância e não rótulo, que aspira a ser semente e
não fruto.
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6.
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E REGISTRO DE IMÓVEIS
FLAUZILINO ARAÚJO DOS SANTOS
1.º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo-SP
SUMARIO: 1. Considerações iniciais - 2. Introdução - 3. Princípios registrais - 4.
Princípio da legalidade - 5. Natureza da função registral de qualificação - 6. Os limites da
qualificação registral - 7. Conclusão.
1. Considerações iniciais
O direito registral imobiliário brasileiro tem levado consigo notória fama de ser
obtuso e de difícil compreensão, tanto pela clausura de seus operadores, quanto por
preconceitos movidos por razões subjacentes. Isso torna o Brasil – tão pródigo no
desenvolvimento de outras áreas do direito – carente de uma doutrina nacional acerca
do Registro de Imóveis1, que seja capaz de se impor no mundo jurídico com grandeza
tal que espanque aquela idéia errônea, anacrônica e carcomida de que o nosso sistema
registral não passa de mais um canal de burocracia et cetera.
1 Ver DIP, Ricardo. Registro de Imóveis (vários estudos). Porto Alegre: IRIB/Sérgio Antonio
Fabris Editor, 2005. p. 182 que fala da “ausência de uma comunidade científica que, à altura das
necessidades presentes, fundasse de modo idôneo a autonomia dos diferentes segmentos do
direito registral (em particular, o direito registral imobiliário), transitando suas conclusões, em
base objetiva, aos centros decisórios judiciais, de que emanam importantes reflexos, incluindo
os políticos”. Afirma, ainda, que “não há propriamente um pensamento científico do registro
imobiliário: comunidade exige permanência, comunicação persistente e unidade estável
(comunidade)”.
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Há que se considerar ser essa uma idéia isolada2, pois sustentada por alguns
poucos prisioneiros de seus próprios conceitos, afastados da realidade e que viajam na
contramão da nossa história socioeconômica, negando-se a ver o Brasil como um país
capaz de estar na vanguarda mundial, apto a disputar e liderar mercados nos quatro
cantos do mundo e atrair investimentos e divisas dentro do novo modelo de crescimento
econômico global, cujo comportamento já nos garante um lugar de eleição no mapa do
futuro.
Há um abafado clamor pelo desenvolvimento de uma teoria registral apta a
convencer os aplicadores da lei da exata dimensão desse instituto, que, subestimada,
culmina na penalização da comunidade produtiva para a qual o registro imobiliário
dirige seus raios de blindagem da segurança jurídica do tráfico imobiliário, em
proporção direta à preocupação manifestada pela sociedade civil, no que se relaciona à
credibilidade interna e externa do país e ao seu bem-estar econômico e social.3
Num passado ainda recente, viveu-se um período em que as principais
reformas estiveram ausentes e a resolução dos grandes problemas nacionais era
sucessivamente adiada. Grandes mudanças já ocorreram. O Estado tem, forçosamente,
reduzido o seu peso na economia. Obviamente, todos nós pugnamos por um Estado
forte, capaz, moderno, eficiente, mas que não seja tutelar.
Eis a razão por que os serviços públicos estão sofrendo um processo de
desburocratização, tornando-se mais eficazes. Há unanimidade quanto à necessidade de
se acabar com a administração pública lenta, pesada, intervencionista e sobre-
2 Os atores envolvidos na construção de uma conjuntura favorável para o desenvolvimento do
país rejeitam a velha lamechice ideologicamente estatizante. Como asseverou o saudoso Miguel
Reale, na Exposição de Motivos do Anteprojeto do Código Civil: “Muito embora sejamos
partícipes de uma 'sociedade em mudança', já fizemos, no Brasil, a nossa opção pelo sistema e o
estilo de vida mais condizentes com as nossas aspirações e os valores de nossa formação
histórica. Se reconhecemos os imperativos de uma Democracia Social, repudiamos todas as
formas de coletivismo ou estatalismo absorventes e totalitários. Essa firme diretriz não só nos
oferece condições adequadas à colocação dos problemas básicos de nossa vida civil, como nos
impõe o dever de assegurar, nesse sentido, a linha de nosso desenvolvimento”. Diário do
Congresso Nacional – Seção I, 13.06.1975. 3 O Instituto de Registro de Imóveis do Brasil – IRIB – tem sido fator catalisador para que essa
mudança aconteça, principalmente por meio do diálogo que mantém com importantes setores
governamentais, jurídicos, da cadeia produtiva do país e com organismos internacionais, além
da vasta produção bibliográfica especializada. Acrescente-se, ainda, como elemento coadjuvante
para o êxito na busca desse ideal, o provimento dos cargos de Registrador de Imóveis via
concurso público, de provas e títulos, na medida em que oxigena o sistema com a outorga de
delegações de registros para profissionais oriundos de outras carreiras jurídicas.
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regulamentada. Existe uma palavra muito importante para serviços públicos concedidos:
regulação.4 Regulação é mais do que um vocábulo corrente entre fornecedores e
consumidores de serviços públicos e de chamamento à responsabilidade institucional. É
uma via de mão única na qual trafegam os interesses de administrados, concedentes e
concessionários de serviços públicos. Não há mais caminho para retorno ao modelo da
administração pública ortodoxa, porque os cidadãos, agora não apenas cidadãos, mas
também clientes, pois são usuários dos serviços públicos, não toleram mais a
ineficiência ou a inércia administrativa. Essa circunstância reclama regeneração e
contextualização dos serviços prestados pelos Registros de Imóveis no país. Temos que
responder uma pergunta: o que podemos fazer para melhorar o Registro de Imóveis no
Brasil?5
A autonomia de gestão administrativa e financeira do notário e do registrador,
bem como sua condição de profissional de direito, foram afirmadas pela Lei 8.935 de
18.11.19946 como elementos de sinalização da evolução pela qual o Direito
Administrativo passou nos últimos anos. Nesse contexto, ganhou relevo o estudo das
Agências Reguladoras como novo instrumento para a regulação das atividades
econômicas e de mercados, sobretudo a questão relativa à extensão do poder normativo
do órgão regulador.7
4 O ato de regular visa estimular os investimentos necessários ao desenvolvimento da atividade
concedida, promovendo o bem-estar dos usuários de serviços públicos e propiciando a
eficiência econômica. 5 A emergência da sociedade do conhecimento condicionada e induzida pela Internet reclama,
para a eficácia da publicidade registral, a absorção pelo Sistema de Registro Imobiliário das
Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (NTICs) e a construção de uma infra-
estrutura institucional para interconexão em rede de todos os Registros de Imóveis do país. Essa
expectativa da sociedade está consubstancia na Portaria 149, de 05.07.2007, da Ex-Presidente
do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Ministra Ellen Gracie, que instituiu grupo de trabalho,
do qual o autor participa como representante da Associação dos Registradores de Imóveis de
São Paulo (ARISP), com o objetivo de desenvolver funcionalidades tecnológicas voltadas à
integração das bases de dados das serventias extrajudiciais com os órgãos do Poder Judiciário.
(Publicado no DJ de 10.07.2007, seção 1, p. 24). 6 Dispõe o art. 21 da Lei 8.935/94 que “o gerenciamento administrativo e financeiro dos
Serviços Notariais e de Registro é de responsabilidade exclusiva do respectivo titular, inclusive
no que diz respeito às despesas de custeio, investimento e pessoal, cabendo-lhe estabelecer
normas, condições e obrigações relativas à atribuição de funções e de remuneração de seus
prepostos de modo a obter a melhor qualidade na prestação dos Serviços”. 7 O Registro Civil das Pessoas Naturais do Estado de São Paulo, por meio da Associação dos
Registradores de Pessoas Naturais de São Paulo – Arpen-SP, dá excelente e pioneiro exemplo
de alto impacto, ao fazer visitas de inspeção do funcionamento das serventias que recebem
ressarcimento dos atos gratuitos de registro civil ou que recebem subvenções (caso das
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2. Introdução
Embora o presente estudo tenha por finalidade e limite abordar o princípio da
legalidade no Sistema de Registro de Imóveis, vamos adentrar no tema através de uma
preliminar visão panorâmica.
De forma geral, o Registro de Imóveis se apresenta no universo jurídico
nacional com uma estrutura de inatacável lógica interna, regida pelos chamados
“princípios registrais”, os quais, não obstante tenham como gênese os “princípios gerais
de direito”, se distinguem da generalidade desses, em virtude da sua aplicabilidade in
concreto, como resposta direta da legislação, ou por esta induzida, para problemas
práticos.
O que são princípios de direito?
Vejamos primeiramente a lição de Miguel Reale, ao ensinar que princípios são
“certos enunciados lógicos admitidos como condição ou base de validade das demais
asserções que compõem dado campo do saber”.8
Princípio é definido também como “proposição posta no início de uma
dedução, não sendo deduzida de nenhuma outra do sistema considerado e, por
conseguinte, colocada até nova ordem fora de discussão”.9
Segundo o dicionarista De Plácido e Silva, “os princípios revelam o conjunto
de regras ou preceitos, que se fixam para servir de norma a toda espécie de ação
jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica”.10
Denso é o comentário tecido por Celso Antonio Bandeira de Mello acerca dos
princípios em geral. Diz ele: “princípio é, por definição, mandamento nuclear de um
serventias deficitárias). Essas visitas têm por objetivo auditar o tipo de atendimento que essas
serventias prestam. Como o IRIB mantém uma digníssima Comissão de Ética, composta pelos
respeitadíssimos oficiais Ademar Fioranelli (SP), Ercília Maria Moraes Soares (TO) e Paulo de
Siqueira Campos (PE), não restam dúvidas de que já podemos acionar o Conselho de Ética para
apreciar pontuadas situações relativas aos deveres de casa, para casos em que a “lição de casa”
não é feita, ou é mal feita. Essa é uma proposta que tenho sustentado publicamente, desde o
XXXI Encontro do IRIB (2004). 8 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 300. 9 LALANDE, André. Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia. São Paulo: Martins Fontes,
1999. p. 861. 10 SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 639.
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sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes
normas, compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e
inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no
que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios
que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por
nome sistema jurídico positivo”.11
Augustin A. Gordillo garante que um princípio é muito mais importante do que
uma lei. Segundo o autor, “el principio establece una dirección estimativa, un sentido
axiológico, de valoración, de espíritu. El principio exige que tanto la ley como el acto
administrativo respeten sus límites y además tengan su mismo contenido, sigan su
misma dirección, realicen su mismo espíritu”.12
Antes disso, Gmur já afirmara que “a segurança jurídica, objetivo superior da
legislação, depende mais dos princípios cristalizados em normas escritas do que da
roupagem mais ou menos apropriada em que se apresentam”.13
No Brasil, assim como na maioria dos países que adotam sistemas jurídicos de
origem romanística, os princípios são considerados como fonte subsidiária do direito.
Por isso, no art. 4.º da LICC, no art. 8.º da CLT e no art. 126 do CPC, os princípios
aparecem como uma das formas de suprimento de lacunas.
Mais do que isso, dispõe a Constituição da República que “os direitos e
garantias nela expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados...” (§ 1.º do art. 5.º).
Resta, assim, revelada a gigantesca importância de um princípio no sistema
jurídico, já que os princípios não são meros acessórios interpretativos, senão os pontos
fundamentais que servem de base para a inspiração, elaboração, interpretação e
aplicação do direito e, estejam implícita ou explicitamente no direito, aplicam-se
cogentemente a todos os casos concretos.14
11 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo:
RT, 1981. p. 230. 12 GORDILLO, Augustín. Tratado de derecho administrativo. tomo 1, vol. 12. 4 ed. Buenos
Aires (Argentina): Ediciones Macchi, 1984. 13 Apud MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 11 ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1991. p. 124. 14 Conforme Amauri Mascaro Nascimento, uma concepção positivista leva à identificação dos
princípios com as normas previstas nos ordenamentos jurídicos, nas quais aqueles se encontram,
expressam-se e têm os seus meios de exteriorização, em alguns sistemas caracterizados como
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Os princípios podem ser classificados como universais ou onivalentes,
regionais ou plurivalentes, monovalentes e setoriais.
Onivalentes são os princípios lógicos, razão de ser do próprio pensamento
humano, quando aplicáveis a todas as ciências. Por exemplo: princípio da identidade –
não é possível uma coisa ser e não ser ao mesmo tempo.
São princípios plurivalentes aqueles comuns aplicáveis a algumas ciências que
guardam semelhança entre si, como o princípio da causalidade, das ciências naturais: à
causa corresponde dado efeito.
Já os princípios monovalentes são os que servem de fundamento apenas a uma
ciência; como por exemplo, o princípio da legalidade, que informa toda a ciência do
Direito: a lei submete a todos.
Por fim, há os princípios setoriais, que são os princípios de um ramo de
ciência, podendo-se usar a expressão, também, para designar os princípios próprios de
um setor.15
No campo do Direito, cada ramo autônomo, público ou privado, ao receber
autonomia, é informado por um conjunto de princípios – os princípios setoriais, que
garantem as características do novo ramo.16
Embora o Direito Registral Imobiliário não seja concebido como disciplina
jurídica independente, senão como parte integrante do Direito Civil, dentro deste, em
razão de suas características especiais, de seus princípios substantivos próprios e dos
técnica de integração de lacunas; uma posição jusnaturalista leva às concepções dos princípios
como valores transcendentes ao direito positivo, acima deste e com funções retificadoras de suas
injustiças. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito Processual do Trabalho. São
Paulo: Saraiva, 1998. p. 96. Carnelutti, todavia, já salientava que “os princípios gerais do direito
não são algo que exista fora, senão dentro do próprio direito escrito, já que derivam das normas
estabelecidas. Encontram-se dentro do direito escrito como o álcool no vinho: são o espírito ou a
essência da lei”. CARNELLUTTI, Francesco. I sistema di Diritto Processuale Civile; I.
Funzione e Composizione Del Processo. Pádua, 1936. p. 120. 15 Essa é a classificação oferecida por José Cretella Júnior, ao aludir sobre a principiologia
administrativa, ou canônica, como o conjunto de postulados básicos que garantem a autonomia
de um sistema dentro do universo jurídico, mantendo-se firme e sólida, a despeito da variação
de normas (CRETELLA JR., José. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense,
1995. p. 6) e por Amauri Mascaro Nascimento (NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de
Direito Processual do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 96). 16 CRETELLA JR., op. cit., p. 6.
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fins peculiares que busca, tem sido configurado como um setor jurídico com relativa
autonomia.17
Angel Cristóbal Montes refere-se a autores que já vêem o Direito Registral
Imobiliário como um ramo independente do Direito, dotado de genuína e própria
substantividade, os quais consideram que sua autonomia constitui simplesmente uma
nova manifestação do processo de desintegração que o Direito civil acusa há tempo e
preconiza que:
“Não se deve esquecer que o vigoroso impulso que se está dando para a
sistematização e tratamento unitário do fenômeno publicitário (fazendo-se rebaixar à
esfera estritamente patrimonial a que por tradição vem sendo reduzido) permite prever
que em um futuro, talvez não muito longínquo, haja necessidade de formar um novo
ramo jurídico, de aspecto marcadamente público e dotado de independência, que se
ocupe do agrupamento e regulamentação unitária do fenômeno publicitário em suas
diversas manifestações e campos de atuação, parte da qual deveria ser, necessariamente,
o Direito imobiliário registral”.18
3. Princípios registrais
Entende-se por princípios registrais regras, critérios e idéias fundamentais que
servem de base ao Sistema de Registro Imobiliário de um país, tecnicamente
desenvolvidos a partir de seu arcabouço jurídico, para consecução das finalidades da
instituição registral, qual seja, a segurança máxima do tráfego imobiliário, que traz em
seu bojo o desenvolvimento e a segurança econômica.19
17 MONTES, Angel Cristóbal. Direito imobiliário registral. Trad. Francisco Tost. Porto Alegre:
IRIB/Sergio Antonio Fabris Editor, 2005. p. 147. 18 Idem. 19 O XIII Congresso Internacional de Direito Registral – patrocinado pelo Cinder (Centro
Internacional de Direito Registral), celebrado em 2001 em Punta del Este, República do Uruguai
– aprovou a seguinte conclusão: “A segurança jurídica incorpora sempre segurança econômica,
mas a inversa não é verdadeira, visto que é impossível, por definição, a segurança econômica
incorporar a jurídica, pois o adquirente desapossado recebe uma compensação mas perde o bem.
Isto confirma-se empiricamente por duas vias: por um lado, ao observar que os seguros de
títulos não cobrem o valor do bem, mas, sim, e tão só, uma parte ou todo o preço da compra.
Assim, o seguro do proprietário não costuma cobrir as mais-valias, o seguro do credor só cobre
a importância do crédito hipotecário, tanto que as apólices costumam incluir exceções tão
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Pela ótica do Direito Comparado, pode-se afirmar que os princípios registrais,
na qualidade de diretrizes gerais, não são um produto lidimamente nacional. São, ao
contrário, resultado de técnica que transcende as fronteiras de cada país, válidos para
todas as nações que perseguem um bom sistema de tráfico imobiliário. Tendo como
suporte o registro de segurança jurídica, cujos princípios emigram para o universo
jurídico de cada nação mediante o fenômeno da recepção, de conformidade com o seu
ordenamento positivo, ainda que por indução, porque não explicitamente enunciados em
preceitos legais.20
Sobre essa característica dos princípios ensina Norberto Bobbio que:
“Ao lado dos princípios gerais há os não expressos, ou seja, aqueles que se
podem tirar por abstração de normas específicas ou pelo menos não muito gerais: são
princípios, ou normas generalíssimas, formuladas pelo intérprete, que busca colher,
comparando normas aparentemente diversas entre si, aquilo a que comumente se chama
o espírito do sistema”.21
A Carta de Buenos Aires, produzida no I Congresso Internacional de Direito
Registral, patrocinado pelo Cinder (Centro Internacional de Direito Registral),
celebrado naquela cidade em 1972, proclamou que “los princípios del Derecho Registral
son las orientaciones fundamentales, que informan esta disciplina y dan la pauta em la
solución de los problemas jurídicos planteados em el Derecho positivo”.
Com efeito, embora não se possa afirmar peremptoriamente que os princípios
registrais sempre precedem as normas positivas, pois, salvo exceções, são essas que os
consagram, sua fluência orienta a atividade legiferante como explicação doutrinária ou
jurisprudencial e, em um segundo momento, após a edição da norma positiva, os
princípios explicarão a verdadeira dimensão da publicidade legalmente acolhida pela via
legislativa.
complexas, chegando a dizer que estas asseguram apenas que foi feito pela companhia
seguradora um exame cuidadoso do título e elencados todos seus defeitos. Por outro lado, os
mecanismos de segurança econômica desenvolvem-se numa relação inversa aos da segurança
jurídica proporcionados pelos diversos sistemas”. Disponível em:
<http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel312a.asp> Acesso em: 12 maio 2006. 20 PÉREZ LASALA, José Luís. Derecho Inmobiliario Registral: su desarrollo en los países
latinoamericanos. Buenos Aires: Depalma, 1965. p. 103. 21 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad. Maria Celeste C. J. Santos. 10
ed. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 1999. p. 159.
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Como indica José Luis Pérez Lasala, face ao domínio do império da lei sobre
os princípios registrais, não se pode falar em princípios em geral aplicáveis a todas as
legislações, senão que cada princípio deve ser cientificamente aferido dentro das
particularidades do sistema jurídico do país.22
Antonio R. Coghlan adverte que “la diversidad de regímenes registrales
existente es elocuentemente indicativa de la diferencia en cuanto a los principios que los
informan. Es más, ni siquiera los sistemas que recogen los mismos principios
necesariamente les otorgan el mismo vuelo, isto es, igual tratamiento por la ley”.23
Deve ser considerado que o valor teórico e a eficácia prática dos princípios
registrais ultrapassam um simples exercício acadêmico, pois orientam tanto o intérprete
– como, por exemplo, no exame de caso concreto para decretação de nulidade
independentemente de ação direta na forma do art. 214 da Lei de Registros Públicos –,
quanto o legislador em sua atividade típica.24
Aliás, quanto ao valor teórico e à utilidade prática dos princípios registrários,
indica Roca Sastre, baseado em Jerónimo González, que eles “orientan al juzgador,
economizan preceptos, facilitan el estudio de la materia y elevan las investigaciones a la
categoria de científicas”, ou servem, pelo menos, “para facilitar la investigación de las
radicales orientaciones del sistema”.25
Ainda que todos os estudiosos do Direito Registral Imobiliário brasileiro sejam
unânimes em ordinariamente pontuar princípios registrais e classificá-los como vigas
mestras do edifício registral, a determinação do número desses princípios, embora se
mantenha nos limites de nosso ordenamento jurídico, não se apresenta sistematizada e
metodicamente catalogada, até porque envolve vasta e diversificada gama acerca da
importância, extensão e alcance do tema.
22 PÉREZ LASALA, op. cit., p. 104. 23 COGHLAN, Antonio R. Teoria General de Derecho Inmobiliario Registral. Buenos Aires
(Argentina): Abeledo-Perrot, 1995. p. 13. 24
Maria Helena Leonel Gandolfo, ao aludir sobre a importância prática dos princípios gerais no
Direito Registral Imobiliário brasileiro – em palestra proferida no curso realizado durante o
XXVII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, em Vitória, ES (07.08.2000) –,
asseverou que “é a falta de observância dos princípios gerais que muitas vezes impossibilita o
registro dos títulos, ocasionando devoluções inevitáveis, quase sempre recebidas com desagrado
e inconformidade pelos interessados”. 25 ROCA SASTRE, Ramón Maria. Derecho Hipotecário. tomo I. 7 ed. Barcelona (Espanha):
Bosch, 1979. p. 184.
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Dessa forma, a enumeração dos princípios registrais apresenta variações
relativas à determinação, ou à denominação; algumas delas resultam da agregação de
princípios, outras, verdadeiros subprincípios.
Acertadamente, reconheceu Álvaro Melo Filho que “a diversidade de
princípios não advém do fato de que uns sejam mais científicos do que outros, mas das
circunstâncias de que seus arautos conduzem o raciocínio por vias diferentes, e não
consideram as mesmas questões da mesma forma”.26
Desprendido de ânimo sistematizante27
, apresento três listas de princípios que
informam o sistema de registro de imóveis, elaboradas de acordo com uma classificação
que leva em conta a interconectividade de atributos encontrados em um ato de registro,
os quais, embora se apresentem distintos, são pragmaticamente relacionados. Dizem
respeito aos princípios que informam os requisitos do registro, aos princípios que
informam os efeitos do registro e aos princípios administrativos do registro.
A) Princípios que informam os requisitos do registro
a) Princípio da rogação ou instância
b) Princípio da disponibilidade
c) Princípio da continuidade
d) Princípio da legalidade
e) Princípio da especialidade
f) Princípio da unitariedade
B) Princípios que informam os efeitos do registro
a) Princípio da publicidade
b) Princípio da prioridade
c) Princípio da inscrição
d) Princípio da presunção
e) Princípio de usucapião secundum tabulas
26 MELO FILHO, Álvaro. Princípios do direito registral imobiliário. Revista de Direito
Imobiliário, São Paulo:RT/IRIB, n. 17/18, jan-dez. 1986. p. 28. 27 Por favor, não vejam nessa confissão nem pseudo-humildade, nem tampouco desapreço aos
méritos da sistematização dos princípios registrários, já empreendido por alguns estudiosos do
tema, mas uma tentativa de contribuição e disposição para suportar opiniões contrárias. Como
autocrítica.
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C) Princípios administrativos do registro
a) Princípio de autotutela
b) Princípio da moralidade
c) Princípio da igualdade
d) Princípio da eficiência
e) Princípio da motivação
f) Princípio da razoabilidade
4. Princípio da legalidade
A noção do princípio da legalidade, no Registro de Imóveis, diz respeito ao
comportamento do Registrador, ao permitir o acesso ao álbum registral apenas para os
títulos juridicamente válidos para esse fim e que reúnam os requisitos legais para sua
registrabilidade e a conseqüente interdição provisória daqueles que carecem de
aditamentos ou retificações e definitiva, daqueles que possuem defeitos insanáveis.28
Essa subordinação a pautas legais previamente fixadas para manifestação de
condutas que criem, modifiquem ou extingam situações juridicamente postas não é
exclusiva da temática registral, mas resulta da própria aspiração humana por
estabilidade, confiança, paz e certeza de que todo o comportamento para obtenção de
um resultado regulamentado para a hipótese terá a legalidade como filtro, vetor e limite.
Em matéria registral, na medida em que essa confrontação é praticada pelo
Registrador, exsurge daí um juízo de aprovação ou de desqualificação do negócio
28 A distinção se faz importante para o efeito de se conceder ou não a prorrogação dos efeitos da
prenotação. Como afirmei em Algumas linhas sobre a prenotação, “prorrogar a vigência dos
efeitos da prenotação, vencido o trintídio, é a parte nevrálgica da questão. De pronto atente-se
que a prorrogação do prazo dos efeitos da prenotação deverá ser por mais trinta dias ou pelo
prazo que for fixado. Uma prorrogação indefinida sine die, ou muito prolongada, pode se
constituir em burla aos princípios registrais. A prorrogação do prazo dos efeitos da prenotação
ou a repristinação desses efeitos, sob a alegação da ocorrência de força maior ou de fato
inevitável, imprevisível ou estranho à vontade do interessado, que o impossibilitou de cumprir
as exigências legais dentro do prazo do artigo 205 da LRP, deverá ser apurada em procedimento
próprio, visto que pelas repercussões jurídicas que produz não permite que venha basear-se em
vagas lembranças pessoais do oficial e em outros elementos desse tipo. Mas é de rigor a devida
formalização, legitimando assim seus resultados, e ainda porque serão analisados aspectos
intrínsecos que determinarão se houve omissão ou negligência por parte do interessado”.
Revista de Direito Imobiliário n. 43, São Paulo: RT/IRIB, jan/abr. 1988.
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jurídico que trafega com destino ao álbum registral em perseguição da publicidade erga
omnes, decorrente de sua inscrição.
Esse controle de legalidade exercido pelo Registrador é realizado pelo
procedimento da qualificação registral e implica na efetiva constatação se determinada
situação jurígena reúne ou não as qualidades necessárias para gerar o direito que
pretende, pronunciando sua legalidade mediante a admissibilidade do título ou, se for o
caso, a ausência circunstancial ou definitiva desse atributo, por meio da respectiva Nota
de Exigência ou de Devolução.
Sobre a qualificação registral imobiliária, diz Ricardo Dip que ela é o juízo
prudencial, positivo ou negativo, da potência de um título em ordem à sua inscrição
predial, importando no império de seu registro ou de sua irregistração.29
José Luis Pérez Lasala pondera que, segundo Jerónimo González, se não
existisse a função qualificadora, os assentos do registro somente serviriam para enganar
o público, favorecendo o tráfico ilícito e provocando novos litígios.30
Por sua posição na estrutura jurídica nacional como fiador da autenticidade,
segurança e eficácia dos atos jurídicos que lhe são acometidos pela legislação (cf. art. 1º
da Lei 6.015/73), em sede registral, a qualificação empreendida pelo Registrador se
constitui, concretamente, em uma apreciação técnica imparcial, que transcende aos
interesses privados ocasionalmente em jogo, visto que da publicidade registral emerge,
claramente, o interesse público de obter a satisfação de certos fins comunitários com a
máxima dose de credibilidade, além do que, se lançar um ato indevido, fica sujeito à
responsabilização civil, penal e administrativa.
Reafirmo que é aptidão do Registro Imobiliário ser um instrumento de
segurança e não deve macular o seu prestígio tornando-se um outdoor de fantasias e
fraudes, mediante o abrigo em seus livros ou arquivos de títulos ou documentos que
instrumentem ilegalidades ou arbitrariedades; assim como não deve permitir que se
defraude a confiança haurida, metas que são atingidas através da depuração jurídica dos
29 DIP, op. cit., p. 186. 30 PÉREZ LASALA, op. cit., p. 167.
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atos com vocação registral via minuciosa qualificação, a fim de que somente acessem o
sistema aqueles que se mostrarem idôneos.31
Roca Sastre comenta que:
“si en un buen sistema de Registro la nulidad de un título inscrito es inoperante
en cuanto pueda perjudicar a un tercero adquirente de buena fe, es evidente la necesidad
de evitar, en cuanto sea posible, que los títulos nulos puedan llegar a ser inscritos, No
ocurre así en los sistemas de transcripción, en los cuales en ningún caso la registración
de un título nulo puede impedir que su nulidad afecte a tercero, pues el Registro se
desentiende de los vicios Del documento registrado, y éste vale por lo que valiere. Por
tal motivo en estos sistemas el Registrador está reducido al papel de un simple autómata
o mero archivero”.32
Afrânio Carvalho, ao aludir sobre a presunção registral33
, lembra que o registro
“não tem a virtude de limpar o título que lhe dá origem, sanando os vícios jurídico-
materiais que o inquinam, nem a de suprir faculdade de disposição. A inscrição não
passa uma esponja no passado, não torna líquido o domínio ou qualquer outro direito
real”.
Ao afirmar que o exame prévio da legalidade faz com que o público confie
plenamente no registro, diz o autor:
“diante dessa contingência, cumpre interpor entre o título e a inscrição um
mecanismo que assegure, tanto quanto possível, a correspondência entre a titularidade
presuntiva e a titularidade verdadeira, entre a situação registral e a situação jurídica, a
bem da estabilidade dos negócios imobiliários. Esse mecanismo há de funcionar como
um filtro que, à entrada do registro, impeça a passagem de títulos que rompam a malha
31 SANTOS, Flauzilino Araújo dos. Os problemas mais comuns encontrados nos contratos-
padrão dos loteamentos urbanos. Disponível em: <www.primeirosp.com.br> Acesso em:
18.10.2006 e na Revista de Direito Imobiliário n. 47: São Paulo, RT/IRIB, julho/dez 1999. 32 ROCA SASTRE, op. cit., p. 255. 33
O princípio da presunção que tem como efeito inversão do ônus da prova, desde o art. 859 do
Código Civil de 1916, o qual dispunha, in verbis, “presume-se pertencer o direito real à pessoa,
em cujo nome se inscreveu, ou transcreveu”, é mantido com maior ênfase no atual Código Civil
ante o enunciado do § 2º do art. 1.245, segundo o qual “enquanto não se promover, por meio de
ação própria, a decretação de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente
continua a ser havido como dono do imóvel”, podendo evoluir para a usucapião “secundun
tabulas”, desde que presentes o lapso temporal e a boa-fé, nos termos do § 5º do art. 214 da Lei
6.015/73, introduzido pela Lei n. 10.931 de 02.08.2004.
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da lei, quer porque o disponente careça da faculdade de dispor, quer porque a disposição
esteja carregada de vícios ostensivos”.34
Essa inescusável obrigação, no entanto, não decorre somente da função
registrária de oferecer segurança jurídica à sociedade, o que seria suficiente por si só,
mas também de expressas disposições legais às quais o Registrador encontra-se
vinculado preceptivamente, cujo vetor é o princípio constitucional de segurança
jurídica. A regra vem implícita no art. 1.496 do CC e no art. 198 da Lei 6.015/73,
subentendendo-se o exame da legalidade como dever do Registrador efetuar o estudo
prévio dos documentos que pretendam acessar o registro.35
O Regulamento de 1939 (Decreto 4.857), que precedeu a atual Lei de Registros
Públicos, foi mais claro quando normatizou o assunto, dispondo no art. 215 que
“tomada a nota de apresentação e conferido o número de ordem, em conformidade com
o art. 200, o oficial verificará a legalidade e a validade do título, procedendo ao seu
registro, se o mesmo estiver em conformidade com a lei”, tendo naquela época fixado
no § 1º o prazo improrrogável de cinco dias para efetivação dessa verificação.
5. Natureza da função registral de qualificação
A determinação da natureza jurídica da função qualificadora do Registrador
tem sido objeto de teses díspares. Ricardo Dip, que melhor se ocupou do tema, aponta
quatro correntes que, de um modo geral, disputam o acerto, filiando-se à última: a)
jurisdicional; b) administrativo; c) de jurisdição voluntária; d) singular ou especial.36
Com efeito, quando o Registrador examina um título e o declara conforme a lei
e lhe dá abrigo no arquivo registral imobiliário ou o desqualifica, a exemplo da
34 CARVALHO, Afrânio de. Registro de Imóveis. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 226. 35 MONTES, op. cit., p. 281. O autor reproduz a expressão de Gómez Pavón, para quem “a
qualificação não é um privilégio nem um direito do Oficial de Registro. É um dever que a Lei
lhe confiou: a alma de seus deveres e a razão mesma de sua existência”. 36 DIP, op. cit., p. 179-188. O autor conclui: “Desse modo, não se estorva a pluralidade de
noções construtivas em torno da instituição social do registro: de um lado, preserva-se a aferição
correcional por meio de coordenação, com a fiscalização judiciário-administrativa da prestação
contínua e regular dos serviços; de outro, fomentando-se um reto conceito corporativo, de sorte
que colégios profissionais possam dar contributo ao desenvolvimento ético, técnico e científico
das funções e atividades registrais; mais além, a primazia jurisdicional, garantia maior dos
direitos”.
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atividade judicial saneadora do processo, pratica ato típico de jurisdição voluntária,
imparcial, com independência e soberania.
Por outro ângulo, ao considerar-se que o Registrador está adstrito ao
ordenamento jurídico positivo e aos princípios por ele adotados, mesmo que por
indução, não lhe sendo facultado, em razão do estreito limite da qualificação, valer-se
de elementos subsidiários para construção de seu juízo fora do direito normativo (como
por exemplo, do direito costumeiro, do direito comparado, da determinação eqüitativa
do direito etc.), tem comportamento típico da prática de ato administrativo, sujeitando-
se, inclusive, aos princípios informativos do Direito Administrativo. O que muito bem
salienta Adriano Damásio, “o administrador público somente poderá fazer o que estiver
expressamente autorizado em lei e nas demais espécies normativas, inexistindo, pois,
incidência de sua vontade subjetiva”.37
A tendência da moderna doutrina registral é configurar a função qualificadora
como um tertius genus, uma função híbrida, com características próprias, as quais,
somadas a outras assemelhadas de institutos típicos, conferem à qualificação uma
natureza jurídica sui generis, singular ou especial.38
Pelo caráter que representa, a atividade qualificadora do Oficial de Registro
expressa o princípio da legalidade em sua plenitude, inclusive no que tange a sua
influência na atividade legiferante, como explicação doutrinária ou jurisprudencial para
edição de normas que disciplinarão a atividade registral futura. Então, podem ser
afirmados os seguintes aspectos:
a) A qualificação registral tem uma função criativa. A qualificação
efetivada pelo Registrador dá azo à função criativa do Registro Imobiliário, voltada para
o desenvolvimento da ciência jurídica no campo dos negócios imobiliários, onde atua de
forma específica ao apontar, de modo concreto, atos da vida real que ainda não contam
com o expresso respaldo do direito positivo. Nesse mister detecta, com precisão, as
carências do sistema jurídico de instrumentos legais necessários para o fomento das
atividades econômicas imobiliárias. Assim, orienta, com apuro técnico e fundamento
37 DAMÁSIO, Adriano. Limite das medidas provisórias. In: MOTA DE SOUZA, Carlos
Aurélio (coord.). Medidas Provisórias e segurança jurídica. São Paulo: Editora Juarez de
Oliveira, 2003. p. 68. 38 CHICO Y ORTIZ, José María. Estudios sobre derecho hipotecario. 4 ed. tomo I. Madrid:
Marcial Pons, p. 536-537.
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nas práticas de mercado, a necessária regulamentação legal das atividades que têm
imóveis por objeto, via processo legislativo, a fim de possibilitar o acesso de novos
negócios imobiliários ao Registro de Imóveis, dotando-os de segurança. Com efeito, os
Serviços de Registros de Imóveis funcionam como um laboratório de experimentos
jurídicos. Na medida em que seus operadores manuseiam o direito vivo, e novos
negócios e requerimentos sociais que aportam em busca da proteção registral, são
capazes de detectar situações ligadas ao tráfego imobiliário que reclamam suporte legal
compatível com a estrutura econômica e jurídica do país e até com o Direito
Comparado. Os encarregados dos Registros de Imóveis são juristas especializados na
matéria e, por se concentrarem em oferecer as garantias e a segurança do Registro, de
acordo com o princípio da legalidade, gozam naturalmente de capacidade construtiva de
orientação para a edição de novos procedimentos, tipos e figuras jurídicas e o
aperfeiçoamento dos existentes.
b) É uma função unipessoal. Mesmo que o título tenha sido qualificado por
outro Registrador, ao proceder o ato registral, toda responsabilidade vai se concentrar na
pessoa do Registrador autor ou que autorizou a confecção do ato. Releva-se ser de
fundamental importância, no caso de assunção de uma nova serventia registral, com
relação aos títulos que foram qualificados pelo Registrador antecessor, mas que ainda
estão em fase de processamento, que o novel Registrador proceda a nova qualificação
desses títulos.
c) É uma atuação com responsabilidade pessoal. Mesmo havendo
autorização qualificadora do título para substitutos ou escreventes na forma do art. 20 da
Lei n. 8.935/94, a responsabilidade civil, penal e administrativa permanece concentrada
na pessoa do Registrador (art. 22), o qual não pode invocar como excludente, eventual
possibilidade dos atos registrais terem sido praticados em discrepância com sua
opinião.39
Deve, outrossim, abster-se de qualificar qualquer documento em que haja
interesse pessoal, interesse de seu cônjuge ou de parentes, na linha reta, ou na colateral,
consangüíneos ou afins, até o terceiro grau (Lei 8.935/94, art. 27). Nessa hipótese, a
39 De conformidade com o art. 24 da Lei n. 8.935/94, a responsabilidade criminal será
individualizada, aplicando-se, no que couber, a legislação relativa aos crimes contra a
administração pública.
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qualificação deverá ser feita pelo substituto designado para responder pelo respectivo
serviço nas ausências e impedimentos do Registrador (art. 20, § 5º) ou, na falta ou
impedimento deste, por Oficial ad hoc.
d) É uma função inescusável. Sendo a qualificação um ato necessário, o
Registrador não pode alegar dificuldades em razão da profundidade ou novidade da
matéria, obscuridade legislativa, existência de lacunas na lei, dificuldades de pesquisas,
divergência doutrinária ou jurisprudencial, da consulta a órgãos de assessoria, entidades
de classe ou ao Poder Fiscalizador. Parece-nos que não há como o Registrador se
recusar a proclamar sua decisão, motivado por eventual estado de perplexidade, por
semelhante problema não ter ainda aportado em sua serventia ou não constar na
literatura jurídica ou não ter sido enfrentado pelos tribunais. Ao caracterizar o
comportamento do Registrador ante a qualificação registral, José María Chico y Ortiz
diz que “Álvaro D‟Ors habla de „imperplejidad‟ o postura que sabe resolver las
cuestiones, llegar al fondo del problema y darle solución através de una deción „reglada‟
que se ajusta a la norma”.40
e) É uma função independente.41
Embora o Registrador esteja sujeito à
fiscalização permanente do Poder Judiciário e mantenha vínculos com entidades de
classe (Anoreg, Arisp, IRIB etc.) e relacionamento profissional com outros registradores
e operadores do direito, ao exercer a qualificação, converte-se em autoridade única que
decide por si mesma se o ato pode ou não ser registrado ou averbado. Essa
independência se manifesta no conteúdo de sua decisão, já que não está vinculado nem
mesmo ao que decidiu em caso anterior e semelhante, até porque deve ter em mente que
“erros pretéritos, não justificam erros futuros”. O Registrador também não pode ficar
impressionado com qualificação diversa de outro Registrador (como, por exemplo, no
caso de um título que envolva imóveis de circunscrições diversas e já tenha sido julgado
apto por outro Registrador), com orientação de instituições de classe ou com decisões
administrativas ou jurisdicionais para casos análogos, salvante quando há caráter
40 CHICO Y ORTIZ, op. cit., p. 539. 41 Ricardo Dip baseia-se em Hernández Gil, para quem “a sentença prudencial de qualificação,
emitida em ordem ao atendimento da segurança jurídica, reclama a independência decisória de
seu agente, a mesma independência que tem o Juiz para proferir suas decisões”. DIP, op. cit., p.
178.
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normativo decretado pelo Juízo competente. Em caso de coação para que o Registrador
pratique qualquer assento em agressão a sua convicção jurídica, sem instauração do
devido processo legal de dúvida, o Oficial poderá se socorrer de mandado de segurança
para ver cessado o constrangimento. Quando o Registrador, interpretando
razoavelmente a lei, toma determinada decisão, fundamentando-a, seguramente, está no
exercício de sua independência jurídica como profissional do direito que é. Qualquer
aluno de primeiro ano do curso de Direito, já nas aulas iniciais de Teoria Geral do
Direito, aprende que “o contraste de opiniões no direito é fundamental para o próprio
crescimento do direito”. Podemos, nessa hipótese, falar em reparação de eventuais
danos causados por sua decisão, jamais em falta administrativa a ser punida pelo órgão
censor. Por óbvio, salvo se agiu dolosamente (ou com imprudência ou negligência,
quem sabe até em certas hipóteses caracterizadas por imperícia).
f) É função indelegável. Somente pode ser exercida pelo Registrador
encarregado da serventia como titular ou designado. Não há como o Oficial de Registro
se elidir da qualificação, transladando a competência e a responsabilidade para o Juiz
Corregedor à guisa de “consulta”. Essa é uma prática juridicamente reprovável e
representa uma demonstração de pouca capacidade do Registrador, além de violação
dos deveres de Registrador.42
Conforme a Lei de Registros Públicos, o Juiz somente tem
poder de qualificação registral mediante a instauração do competente Procedimento
Administrativo da Dúvida. Não há como o Registrador se exonerar concretamente da
responsabilidade de qualificação que lhe é atribuída, nem mesmo pela via transversa da
“consulta” a órgãos superiores.
g) A qualificação registral deve ostentar o signo de integralidade. É dever
do Registrador de Imóveis proceder ao exame exaustivo do título exibido, quer seja uma
escritura notarial, um título judicial, um contrato particular com ou sem força de
escritura pública, um requerimento etc., sob pena de incorrer em responsabilidade. A
qualificação deve abranger completamente a situação examinada, em todos os seus
aspectos relevantes para a registração ou seu indeferimento, permitindo quer a certeza
42 Destaca-se no rol de deveres do Registrador, proceder de forma a dignificar a função
exercida, previsto no inciso V do art. 5º da Lei 8.935/94. Aqui, sim, pelo descumprimento desse
dever, temos uma infração disciplinar caracterizada (Art. 31, V).
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correspondente à aptidão registrária, quer a indicação integral das deficiências para a
inscrição perseguida.43
É certo que nem sempre a qualificação registral empreendida pelo Oficial é
compreendida em seu verdadeiro sentido e alcance, tal como prevista no ordenamento
legal vigente, principalmente por notários e por magistrados. Tanto que não poucos
registradores colecionam histórias de insatisfações manifestas por colegas notários ou já
passaram pelo constrangimento de serem intimados de decisões judiciais por despachos
como “cumpra-se imediatamente sob pena de desobediência (ou de pena de prisão)”.
Simplesmente porque, ao examinarem um determinado título judicial, o consideraram
inapto para a prática do ato de registro ou de averbação determinado pelo Juiz ou
mesmo emitiram uma nota com exigência de retificação ou aditamento do título para o
efeito de afastar óbice que impedia a prática do ato determinado.44
Parece-nos que vários fatores, embora distintos, se completam e corroboram
essa situação, para que se instale e leve certos grupos a pugnarem pela limitação do
controle de legalidade exercido pelo Oficial via qualificação, notadamente em relação
aos títulos judiciais e as escrituras públicas. Citarei apenas dois deles.
a) Qualificações homeopáticas (em pequenas doses, a conta gotas): Quando
for o caso de formulação de exigências, essas devem ser formuladas de uma única vez,
articuladamente, de forma clara e objetiva, com indicação dos suportes normativos em
que se apoiou o Oficial no momento da qualificação do título, visto que o Registrador
está adstrito aos limites fixados pela legislação – princípio da legalidade –, sob pena de
incorrer em responsabilidade. São reprovadas as exigências em doses homeopáticas sem
fundamentação legal ou baseadas em hipóteses. Além de causar insegurança, levam ao
descrédito a atividade registrária e maculam a qualidade do serviço público prestado em
delegação. A ressalva que se faz é apenas na especialíssima hipótese de, cumpridas as
43
DIP, op. cit., p. 178. 44 A desqualificação de título judicial, que viole os princípios registrários básicos e torne
insegura e descontrolada a escrituração do fólio real, não caracteriza a figura do crime de
desobediência previsto no art. 330 do Código Penal, porquanto, esse tipo pressupõe a oposição
dolosa e injustificada a uma ordem legal e tal conjunto de elementos não restará integrado
quando rejeitado o título, em decorrência de óbice registrário. (cf. parecer do Juiz Marcelo
Fortes Barbosa Filho no Processo n. 9002/2000 da Comarca de Americana, publicado no DOJ
de 11.4.2000, p. 3).
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exigências, surgirem novos elementos, obrigando o Registrador a formular outras
exigências.
b) Notas de exigências inexpressivas: Existe uma infeliz prática registral de
devolução do título ou emissão da Nota de Exigência de forma resumida (p.e.,
apresentar certidão de casamento dos executados), por vezes até em papeletas
grampeadas no título, sem a imprescindível exposição das razões e dos fundamentos
que justificam a tomada de decisão do Oficial Registrador na edição do ato de negação
de acesso do título judicial ao caderno registral.
O Oficial deve considerar que, em virtude de sua condição de delegado do
serviço público, operando em nome do poder que o credenciou para o exercício de uma
atividade essencial, os atos que pratica em razão de seu ofício são atos administrativos.
Esses atos, para regular ingresso no mundo jurídico, devem ser estruturados nos
princípios que norteiam, informam e fundamentam o Direito Administrativo, impondo-
se, portanto, que no seu pronunciamento, consubstanciado em eventual Nota de
Devolução do Título Judicial, fiquem estampadas de maneira precisa e clara as razões
de fato e de direito que o levaram a proceder daquele modo.
Faz-se oportuno lembrar que o uso na justificativa da devolução do título de
expressões genéricas como “para os devidos fins”, “para fins de direito”, e outras
assemelhadas, não servem para motivar o ato de interdição do título pelo oficial
registrador, configurando mera logomaquia.45
A Constituição Federal, no seu art. 37, preceitua que a Administração Pública
obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência. Na mesma direção, a Constituição Paulista, em seu art. 111, amplia esse rol
acrescentando, de forma explícita, os princípios da razoabilidade, finalidade, motivação
e interesse público, como de observância obrigatória pela Administração Pública direta,
indireta e fundacional, incluídos nessa categoria de entes públicos, por conseqüente
lógico, os serviços delegados de notas e de registro.
Ensina Celso Antônio que:
45 CRETELLA JÚNIOR, José. Dos atos administrativos. n. 140. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
p. 270.
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“Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer.
A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento
obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou
inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa
insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia
irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão a sua estrutura mestra”.46
Urge, então, que o Registrador de Imóveis estruture a Nota de Exigência nos
termos estabelecidos pela Lei de Registros Públicos, por outras normas jurídicas
pertinentes e pelos princípios de direito registral e de direito administrativo, sob pena de
ficar o ato inquinado de vício de legalidade e adentrar de forma precária no mundo
jurídico, com sua validade comprometida, podendo até ser por esse abortado, já que não
se tolera a inércia ou o relaxo administrativo.
6. Os limites da qualificação registral
A extensão e determinação dos limites da qualificação registral estabelece certa
polêmica entre os operadores e constitui-se tema agitado perante as Corregedorias em
casos concretos, por meio de representações e suscitações de dúvidas.
Esse rigoroso controle de legalidade preconizado deve ser levado a efeito em
condições psicologicamente favoráveis ao acesso do título ao registro, obviamente sem
menosprezo às condições normativas aplicáveis, todavia, com o máximo de boa
vontade, como instrui Serpa Lopes.
“Um princípio devem todos ter em vista, quer Oficial de Registro, quer o
próprio Juiz: em matéria de Registro de Imóveis toda a interpretação deve tender para
facilitar e não para dificultar o acesso dos títulos ao Registro, de modo que toda
propriedade imobiliária, e todos os direitos sobre ela recaídos fiquem sob o amparo do
regime do Registro Imobiliário e participem dos seus benefícios”.47
46 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. São Paulo:
Malheiros, 2000, p. 748.
47 SERPA LOPES, Miguel Maria. Tratado dos registros públicos. vol. II. 3 ed. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1955. p. 346.
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Capítulo I - Princípios UNIREGISTRAL - Universidade Corporativa do Registro www.uniregistral.com.br
Por ser a tarefa qualificadora eminentemente profissional, por conseqüência,
seu conteúdo e alcance deve ser essencialmente jurídico. Não há espaço para
improvisações, conjecturas e suposições, inclusive pseudos pruridos de consciência que
possam levar o Oficial de Registro a formalizar exigências que nem a lei, nem as
normas técnicas prevêem. Muito pelo contrário, ao Registrador deve interessar que as
partes, dentro do que o Ordenamento prevê, consigam inscrever todos os fatos e
publicar todos os direitos que quiseram constituir.
Como delegado do serviço público, e pela natureza jurídica do ato qualificador,
emergem conceitos de Direito Administrativo que devem ser venerados pelo Oficial de
Registro, entre os quais é relevante mencionar os princípios da impessoalidade, da
moralidade, da finalidade, eficiência, motivação e da razoabilidade. Importa afirmar que
a inobservância de quaisquer dessas condutas se caracteriza como um comportamento
ilegal, que deve ser corrigido pelo Poder Fiscalizador ou na via jurisdicional.
Existem correntes doutrinárias que defendem menor rigidez funcional na
qualificação, restringindo-a ao controle das formas extrínsecas do título. Parece-nos,
todavia, que a perspectiva jurídica de nosso Ordenamento é marcadamente mais ampla,
abarcando na apreciação da viabilidade de um registro, além da legitimidade dos
interessados e da regularidade formal dos títulos, também e especialmente a validade
dos atos neles contidos, mediante subordinação a preceitos de ordem pública, como, por
exemplo, o Código de Defesa do Consumidor e a outras leis federais, estaduais e
municipais que disciplinam matérias periféricas.48
a) Legitimidade dos interessados
Sem solicitação da parte ou autoridade, o Oficial não pratica atos registrais,
salvante, os de ofício. Em conformidade com o art. 13 da Lei 6.015/73, os atos de
registro serão praticados por requerimento verbal ou escrito dos interessados, ou por
ordem judicial, ou a requerimento do Ministério Público.
48 Embora seja de competência privativa da União legislar sobre registros públicos, é certo que
os estados, os municípios e o Distrito Federal também legislam, dentro da competência
constitucional, sobre temas que devem ser observados na qualificação registral. A propósito,
não cabe ao Registrador apreciar inconstitucionalidade de norma legal, campo reservado ao
Poder Judiciário.
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Interessado, na dicção da Lei de Registros Públicos, não se confunde com
apresentante ou portador. Estes podem ser quaisquer pessoas que estejam de posse do
título, enquanto interessado é aquele que, direta ou indiretamente, tenha legítimo
interesse no movimento ou mutação do registro, que deverá ser cabalmente
demonstrado.
Walter Ceneviva explica que diretamente interessado é aquele em cujo nome
será feito o registro; indiretamente interessado é quem seja atingível em seu direito se
ocorrer o registro.49
Em linhas gerais, além da legitimidade da ordem judicial e do requerimento do
Ministério Público, estão aptos para formular requerimentos registrais na condição de
interessado:
a) o titular ou o transmitente do direito inscrito;
b) o que o adquire;
c) o que tenha representação legal de qualquer deles50
;
d) o que tenha interesse jurídico no direito objeto do requerimento.
A importância prática dessa distinção pode ser verificada no caso de
impugnação de dúvida suscitada, reservada ao interessado, não podendo ser oposta pelo
mero apresentante, nos termos do art. 199 da Lei 6.015/73, embora possa este requerê-
la perante o Oficial.
b) Controle da forma extrínseca dos títulos
O primeiro ponto a ser considerado na qualificação do título é quanto a sua
origem. De forma geral, os títulos que são admitidos a Registro podem ser (A) público
ou (B) particular.
A planilha que segue apresenta alguns itens gerais que podem auxiliar o
trabalho do Registrador ou se preposto no desenvolvimento da qualificação registral,
todavia, não o fazemos de maneira exaustiva, visto que cada caso deve ser
concretamente analisado.
49 CENEVIVA, Walter. Lei dos registros públicos comentada. n. 508. 6 ed. São Paulo: Saraiva,
1988. p. 435. 50 Por representação legal, considero os casos de representação por procuração, representação
legal (pais, tutores e curadores), representação por contrato social e os agentes políticos.
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A. Público
A.1 Escrituras notariais
- O título foi apresentado no original?
- Há higidez no texto? Emendas, rasuras e entrelinhas? Foram ressalvadas?
- Consta a data, livro e folhas da escritura?
- O título está devidamente assinado, com suas folhas numeradas e rubricadas
pelo notário?
- A assinatura do tabelião confere com a do cartão de autógrafos depositado no
cartório? (Em caso negativo, solicitar reconhecimento de firma em tabelião local).
Sendo o tabelião desconhecido, consultar a regularidade da delegação notarial no
Cadastro Nacional de Serventias Públicas e Privadas do Brasil do Ministério da Justiça
pela Internet, no endereço http://www.mj.gov.br.
- No caso de retificação, ratificação ou aditamento, está acompanhado do título
retificado, ratificado ou aditado?
- É o caso de verificação de papel de segurança ou de selo notarial?
- Está entre títulos admissíveis no registro (LRP, arts. 221 e 291, § 1º)?
A.2 Títulos Judiciais
- O título foi apresentado no original?
- A autoridade Judiciária era competente?
- Em Formais de Partilha e Cartas de Sentença, verificar se constam termos de
abertura e encerramento e se estão assinados pelo Juiz de Direito e pelo funcionário
judicial encarregado; verificar as folhas, se seguem numeração seqüencial ordinária até
a folha de encerramento e se estão devidamente numeradas e rubricadas pelo escrevente
judicial. No Estado de São Paulo, face preceito expresso nas Normas de Serviços,
verificar se a assinatura do Juiz foi devidamente reconhecida pelo Escrivão Diretor do
feito. De qualquer forma, caso entenda, exigir o reconhecimento de firma da assinatura
do Juiz de Direito. Igual atenção deverá ser dispensada para o Mandado Judicial.
- Está entre títulos admissíveis no registro (LRP, arts. 221 e 291, § 1º)?
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A.3 Títulos Administrativos
- Foi apresentado no original ou por certidão?
- Há higidez no texto? Emendas, rasuras e entrelinhas? Foram ressalvadas?
- Era a hipótese de expedição de título administrativo?
- Está devidamente assinado pelo funcionário competente ou autoridade?
- Há comprovante da nomeação?
- Está devidamente legalizado?
B. Instrumentos Particulares
- Foi apresentado no original?
- Há higidez no texto? Emendas, rasuras e entrelinhas? Foram ressalvadas?
- No caso de negócios que versem sobre direito real, o instrumento foi lavrado
dentro dos limites legais? Visto que, para os negócios imobiliários com valores
superiores a 30 vezes o maior salário mínimo vigente no país, é essencial para o ato
escritura pública (CC, art. 108).
- Consta do título local e data?
- Todas as pessoas que figuram no preâmbulo do título constam do rol de
assinaturas?
- Constam testemunhas instrumentárias (se for o caso)?
- Todas as assinaturas (signatários e testemunhas) estão devidamente
reconhecidas por tabelião que tenha cartão de autógrafos na serventia (Lei 6.015/73, art.
221, II e art. 246, parágrafo único)?
- Eventuais documentos estrangeiros anexados estão devidamente traduzidos
para o português e registrados com seu original na forma do art. 148 da LRP?
- Quantas vias foram apresentadas (Lei 6.015/73, art. 194)?
- Há regularidade nas representações por procurações, alvarás, contratos ou
estatutos etc.?
- O título está elencado entre instrumentos admissíveis no Registro de Imóveis
(LRP, arts. 221 e 291, § 1º)?
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B.1. Instrumentos particulares com força de escritura pública
- Além das indagações do item anterior, o negócio enquadra-se nas hipóteses
legais em que o instrumento particular tem força de escritura pública ou é caso de
dispensa da escritura pública em razão do valor do contrato?
c) Verificação das condições intrínsecas do título
A. Públicos
A.1 Escrituras Notariais
- As partes contratantes e os intervenientes estão perfeitamente qualificados (art.
176, LRP)?
- Se o outorgante é casado sob regime de bens que o exija, há outorga uxória ou
anuência marital?
- Todas as pessoas que figuram no preâmbulo do título constam do rol de
assinaturas?
- Se menor ou interdito, há regular representação? É caso de exigir Alvará
Judicial?
- Se espólio, houve autorização por Alvará Judicial (CPC, art. 992, I)? A
certidão do óbito foi anexada? Consta o estado civil do de cujus por ocasião do
falecimento?
- Em caso de mandato, a certidão da procuração foi expedida a menos de 90
dias? A procuração é pública?
- O transmitente ou devedor é o adquirente da transcrição ou registro anterior?
- Os dados qualificativos dos alienantes ou devedores e outros elementos de
identificação afirmados pelo notário sob a fé pública permitem segura identificação e
conseqüente afastamento de homonímia?
- O estado e a capacidade civil do transmitente ou devedor estão atualizados?
- O transmitente está com seus bens disponíveis?
- O transmitente é condômino? Transmite apenas parte ideal ou porção certa?
- Há coincidência na descrição do imóvel?51
51 O § 13, acrescentado ao art. 213 da Lei 6.015/73 pela Lei 10.931, de 02.08.2004, permite que,
“não havendo dúvida quanto à identificação do imóvel, o título anterior à retificação poderá ser
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 195
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- Em caso de registro de loteamento, o loteador é proprietário singular? Se não,
o loteamento é promovido pelo conjunto de co-proprietários?
- Em caso de registro de incorporação, o incorporador do edifício tem qualidade
para legitimar-se como tal (Lei 4.591/64, art. 31)?
- O memorial de loteamento está instruído com a documentação legalmente
exigida (Lei 6.766/79, art. 18)? O contrato-padrão cumpre as regras protetivas do
consumidor?52
- O memorial de incorporação está instruído com a documentação legalmente
exigida (Lei 4.591/64, art. 32)? O incorporador optou por depositar contrato-padrão?
Cumpre as regras protetivas do consumidor?
- Consta o valor atribuído pelas partes ao negócio jurídico? O valor venal é
maior que o valor do negócio (para efeito de cobrança dos emolumentos e menção no
texto do registro)?
- Foram pagos os impostos?
- Apresentou as certidões negativas fiscais ou declaração que permita a
dispensa?
- Consta do título apresentação ou dispensa das certidões elencadas na Lei
7.433/85, regulamentada pelo Decreto 93.240/86?
- Foi emitida a DOI para a Secretaria da Receita Federal?
- Existe algum pacto adjeto de hipoteca ou contrato de alienação fiduciária?
- Em caso de doação é feito para o donatário e seu cônjuge ou de forma
individual? Houve imposição de cláusulas restritivas? Em caso positivo há menção que
o imóvel sai da parte disponível do doador ou justa causa para imposição das cláusulas?
São elas vitalícias ou temporárias? Há reserva de usufruto ou o doador possui outros
bens que garantem sua subsistência? Se a doação foi feita a mais de uma pessoa existe
cláusula de acréscimo?
levado a registro desde que requerido pelo adquirente, promovendo-se o registro em
conformidade com a nova descrição”. 52 Sugiro como leitura complementar o trabalho de minha autoria denominado Os problemas
mais comuns encontrados nos contratos-padrão de parcelamentos urbanos, publicado na
Revista de Direito Imobiliário n. 47. São Paulo: RT/IRIB, julho/dez 1999 e disponível em
http://www.primeirosp.com.br. Acesso em 12 maio 2006.
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 196
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A.2 Títulos Judiciais
- Trata-se de Título Judicial ou de Ordem Judicial?53
- O procedimento permitia a expedição da Ordem Judicial? Não seria lógico que
em ação diversa fosse expedido Mandado relativo à situação registral que não foi objeto
de apreciação.
- Existe congruência da ordem constante do Mandado Judicial com os autos e a
sentença?
- Há informação quanto ao trânsito em julgado da decisão judicial?
- Foram recolhidos os impostos?
- O estado civil do proprietário é o mesmo constante do título?
- A descrição do imóvel coincide com a constante da matrícula?
- O bem se encontrava disponível ou houve a expressa apreciação judicial da
hipótese?
- Em caso de penhora/arresto/seqüestro de bem de sócio ou de pessoa estranha à
execução houve a expressa decisão judicial de desconsideração da personalidade
jurídica da empresa, fraude à execução ou responsabilização patrimonial na ação em
relação ao titular de domínio?
- Todos os titulares de direitos reais foram regularmente intimados/notificados
da existência ação?
- Era caso de intimação do cônjuge
- Era caso de intimação de credor hipotecário?
Por ser sucessão testamentária a partilha obedeceu às cláusulas testamentárias ou
houve a expressa e inequívoca apreciação judicial para o efeito de modificação das
disposições de última vontade?
B. Instrumentos particulares com ou sem força de escritura pública
- Além das indagações do item anterior, o negócio enquadra-se nas hipóteses
legais em que o instrumento particular tem força de escritura pública ou é caso de
dispensa da escritura pública em razão do valor do contrato?
53 Sugiro como leitura complementar o trabalho de minha autoria denominado Sobre a
qualificação de títulos judiciais no Brasil, publicado na Revista de Direito Imobiliário n. 56.
São Paulo: RT/IRIB, jan/jun. 2004.
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 197
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- Em caso de mandato, a certidão da procuração foi expedida a menos de 90
dias? - A procuração é pública? - Os poderes são expressos e o ato está dentro dos
limites dos poderes concedidos? - A assinatura do tabelião foi conferida? - É o caso de
verificação da autenticidade do papel do traslado e de selos? - Foram verificados os
comunicados da Corregedoria Geral da Justiça sobre procurações falsificadas?
Sendo o tabelião desconhecido, consultar a regularidade da delegação notarial
no Cadastro Nacional de Serventias Públicas e Privadas do Brasil do Ministério da
Justiça pela Internet no endereço http://www.mj.gov.br. Conforme a hipótese, é
aconselhável verificação diretamente junto ao cartório onde constar ter sido lavrado o
instrumento da autenticidade da procuração, por via telefônica (o número deve ser
colhido em pesquisa telefônica efetivada em repositório oficial, desprezado o número
constante do instrumento, já que registra-se casos de falsidade) e conferir, com
acuidade, a absoluta coincidência dos dados de identificação dos outorgantes em relação
aos da transcrição, ou registro anterior.
7. Conclusão
Este trabalho é apenas um ligeiro ensaio sobre o tema, visto do ângulo prático
de um Oficial Registrador de Imóveis, que acredita que as “crises” da instituição
registral com a opinião pública são induzidas por razões subjacentes e podem ser
debeladas por meio da democratização do conhecimento da atividade e da boa prestação
de serviços aos utentes dos Registros Imobiliários.
Na verdade, o tema – princípio da legalidade - abre intermináveis perspectivas
de abordagens, todavia, limitações pessoais e circunstanciais recomendam um ponto
final, que deve ser tido apenas como uma vírgula, porque outros estudiosos poderão
melhorar este trabalho mediante indicações críticas das devidas correções, as quais
serão bem recebidas pelo autor, bem como ampliá-lo mediante aprofundamento do
estudo do conteúdo do princípio da legalidade no Direito Registral imobiliário.
Se estas linhas motivarem mais alguém neste País a refletir sobre o futuro da
atividade delegada do serviço público, exemplarmente exercida pelos Registradores
Imobiliários brasileiros, sem as amarras da burocratização operacional própria da
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 198
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máquina estatal, os quais, com seu labor, cercam a sociedade civil de segurança jurídica
em suas relações pessoais e patrimoniais, o objetivo deste estudo já terá sido alcançado.
Muito obrigado a todos!
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 199
Capítulo I - Princípios UNIREGISTRAL - Universidade Corporativa do Registro www.uniregistral.com.br
7.
TÍTULOS JUDICIAIS E O REGISTRO IMOBILIÁRIO*
MARCELO MARTINS BERTHE
Juiz Titular da 1.ª Vara de Registros Públicos de São Paulo.
1. Conceito de qualificação registral
A qualificação registral, atividade que consiste no exame da registrabilidade
dos títulos apresentados perante o serviço de registros públicos, está incluída entre as
atribuições confiadas aos delegados desses serviços.
Cuida-se de atividade intelectual por excelência. Embora a análise do título
deva obedecer regras técnicas objetivas, o desempenho dessa função típica e
indelegável, atribuída ao registrador, deve ser exercida com independência, exigindo do
qualificador largo conhecimento jurídico, sobretudo diante da diversidade de aspectos
que devem ser considerados quando se cogitar da pretensão de registrar, como a
juridicidade, a adequação e, ainda, a apreciação da registrabilidade em face do
preenchimento de requisitos extra-registrários, ou não registrários propriamente ditos.
Isso se tornará mais evidente na medida em que se tiver em conta que não
bastará, para que o título tenha acesso ao registro predial, que esteja revestido da forma
jurídica própria, ou mesmo que seja adequado ao fim a que se destina.
A questão da qualificação, que envolve a registrabilidade, extrapola o simples
exame formal do título, e desborda, na maior parte das vezes, para o exame do
preenchimento de outros requisitos de caráter extraordinário, que não estão
* I Encontro de Direito Registral de Franca.
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 200
Capítulo I - Princípios UNIREGISTRAL - Universidade Corporativa do Registro www.uniregistral.com.br
propriamente ligados ao instrumento que consubstancia a vontade das partes figurantes
no título, mas têm fundamento e motivação de caráter não registral.
É que cada vez mais se transfere para o registrador a responsabilidade de
controlar, por ocasião da qualificação registral, a verificação de outras ocorrências que
visam ao atendimento de interesses que têm as mais diversas origens.
Neste panorama, não raro avulta o interesse público. Este ora estará voltado à
preservação do meio ambiente, incluindo a proteção dos bens de valor estético, artístico,
paisagístico e histórico, ou ainda relacionado com o controle de impactos ambientais,
decorrentes da degradação da flora e da fauna, ou mesmo do tema, da água e do ar.1
Afigura-se comum, portanto, cometer ao registrador esse mister, consistente no
controle preventivo sobre os atos que ponham em risco a preservação de áreas verdes,
ou de mananciais, por exemplo, entre outros bens.
De outro lado, porém, o reconhecimento de que havia matérias do peculiar
interesse municipal, o que no Brasil ocorreu com ênfase a partir da Constituição Federal
de 1946, como resultado dos significativos esforços nascidos da interpretação
jurisprudencial encampada na década de trinta, iniciou-se segura caminhada rumo à
institucionalização da autonomia municipal e, com ela, tem-se que progressivamente
sobreveio a preocupação com o urbanismo, matéria reconhecidamente do peculiar
interesse dos Municípios.2
Assim, em outras oportunidades, o interesse público cuja salvaguarda passou a
ser confiada ao registrador, que dele deve conhecer por ocasião da qualificação, estará
voltado para a questão urbana e visa, precipuamente, a ordenação das cidades, para o
estabelecimento de regras que permitam um crescimento direcionado e planejado, não
sobrecarregando nem deixando ociosos os equipamentos públicos disponíveis, ou a
infra-estrutura em geral, como, por exemplo, o sistema viário ou de transportes
coletivos já implantados, entre outros tantos que, todos os dias, com o constante
desenvolvimento tecnológico, ganham relevância e interesse.
1 MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança. 13. ed., p. 122.
2 BASTOS, Celso. Estudos e pareceres de direito público. São Paulo : Ed. RT, 1993,
p.180-181.
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 201
Capítulo I - Princípios UNIREGISTRAL - Universidade Corporativa do Registro www.uniregistral.com.br
Também neste campo, portanto, a qualificação registral tem merecido a
incumbência de exercer esse importante controle coadjuvante, que tem em mira alcançar
um parcelamento regrado do solo urbano.3
Com o objetivo apenas de ilustrar, ainda é possível lembrar outros controles
que têm sido exercidos por meio da qualificação registrária, como, v.g., aqueles
relacionados com os imóveis rurais adquiridos por estrangeiros; ou relativamente às
propriedades de pessoas ligadas às instituições financeiras.
No primeiro caso há legislação própria que incumbe o registrador de controlar
a aquisição de terras rurais por estrangeiros, com a nítida intenção de limitar o acesso à
propriedade rural somente aos estrangeiros residentes no país e, mesmo assim, em
quantidade de área previamente estabelecida. O espírito dessa legislação é de caráter
claramente político, e envolve, especialmente, a questão agrária.4
Quanto à segunda hipótese acima formulada, relacionada com os bens de
propriedade de pessoas ligadas às instituições financeiras, tem-se que foi a preocupação
em resguardar a economia popular o móvel que levou o legislador a prever a
indisponibilidade desses bens imóveis, nos casos de liquidação extrajudicial de
instituição financeira.5
Mas atualmente há ainda outras hipóteses de indisponibilidade de bens, como
aquela prevista na Constituição Federal de 1988 para os bens de propriedade de
servidores públicos, nos casos de improbidade administrativa.6
Na própria Lei de Registros Públicos também há dispositivo que induz o
registrador à fiscalização do efetivo recolhimento dos impostos devidos em razão dos
atos que tome conhecimento por motivo de seu ofício.7
Relativamente à matéria, cumpre ressaltar apenas que, recentemente,
interpretando essa referida norma, o Colendo Conselho Superior da Magistratura
3 ) MEIRELLES, Hely Lopes. Estudos e pareceres de direito público. São Paulo : Ed.
RT, 1981. v. V, p. 11-25.
4 Arts. 10 e 11 da Lei Federal 5.709 de 7.10.1971 e arts. 15 e 16 do Dec. Federal 74.965
de 26.11.1974.
5 Lei Federal 6.024/74.
6 Art. 37, § 4.°, da Constituição Federal de 1988.
7 Art. 289 da Lei de Registros Públicos.
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decidiu que não cabe ao registrador questionar, o quantum debeatur, cumprindo que
neste ponto sua atividade fique cingida à verificação do recolhimento do imposto. Ficou
entendido que o procedimento de dúvida não é o meio hábil para que essa matéria,
relativa ao valor do tributo, seja discutida.8
Nessa ordem de idéias constata-se que, indiretamente, a qualificação registral
está cada vez mais envolvida com o controle preventivo de variados interesses públicos,
de índoles diversas, como o são aqueles de caráter ambiental, urbanístico, econômico,
fiscal e até mesmo político. Resulta que a atividade do registrador, especialmente no
que diz com a qualificação registraria, torna-se cada vez mais complexa. E a tarefa fica
ainda mais árdua, ganha contornos mais sensíveis, quando o objeto da qualificação for
um título judicial, máxime quando ele se relacione com aqueles altos interesses
mencionados.
2. Títulos judiciais e requisitos formais - Princípios registrários
A Lei de Registros Públicos vigente trata dos títulos registráveis, em geral, nos
arts. 167 e 221. Estes preceitos legais, como é sabido, fundam-se no princípio da
legalidade.
Assim a subsunção dos títulos à legalidade estrita é de rigor.
Nesse sentido, os títulos em geral podem ser considerados sob dois diferentes
aspectos, isto é: no sentido próprio e no impróprio.9
O art. 167 da Lei de Registros Públicos versa acerca dos títulos propriamente
considerados, porque o dispositivo cuida das causas ou fundamentos de um direito ou
obrigação.
De outro lado, a idoneidade registral dos títulos considerados em sentido
impróprio está regulada no art. 221 da Lei de Registros Públicos. Esse dispositivo de
Lei trata do instrumento que exterioriza aquela referida causa ou fundamento do direito
8 ApCiv. 22.679-0/9, da Capital.
9 Parecer 136/85 da E. Corregedoria Geral da Justiça, in Decisões Administrativas,
1986, verbete 65.
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registrável, ou, melhor dizendo, esse preceito cuida de regrar os instrumentos que
traduzem os títulos em sentido próprio (elencados no art.167 da Lei de Registros
Públicos).
Embora o art. 221 afirme que somente são admitidos a registro aqueles títulos
(instrumentos ou títulos em sentido impróprio) que estiverem alinhados nos incisos
daquele mencionado dispositivo de Lei, o que se verifica é que também outros têm sido
admitidos a registro, como, por exemplo, as Cartas de Arrematação ou de Adjudicação,
ou ainda as Cédulas de Crédito Rural e Industrial.
Afigura-se importante fazer esta distinção, para que seja possível atingir uma
melhor compreensão do que sejam os chamados títulos judiciais, que são o objeto de
interesse neste momento.
Passando agora à especial consideração desses denominados títulos judiciais,
desde logo se verifica que a referência relaciona-se com os chamados títulos em sentido
impróprio, regulados no art. 221 da Lei de Registros Públicos.
Isso porque sé é possível diferenciá-los dos demais se considerado o
instrumento e não a sua causa. O fundamento, ou o título em sentido próprio, quer se
trate de título judicial, ou não, sempre haverá de existir. Do contrário, de título não se
cuidará.
Em relação aos títulos judiciais, portanto, é ainda possível traçar um
importante divisor, para classificá-los em dois grupos: a) de um lado estão as
denominadas Cartas de Sentença (aí incluídas aquelas de Arrematação e de
Adjudicação referidas), os Formais de Partilha e as Certidões extraídos de autos de
processo; b) de outro lado ficam os mandados.
Nessa ordem de idéias, enquanto os incluídos na alínea a acima, além de títulos
judiciais em sentido impróprio, sempre terão uma causa que pode ser reconhecida como
sendo também um título judicial em sentido próprio, porque voltados à transmissão ou
à constituição de direitos reais, o mesmo não ocorrerá com os mandados.
Quanto a estes nem sempre será assim.
Em razão de sua origem, evidentemente, os mandados são instrumentos
judiciais e, como tais, poderão ser também considerados, em alguns casos, títulos
judiciais em sentido impróprio (instrumento voltado à transmissão ou à constituição de
direitos mais) tal como previsto no art. 221, IV da Lei de Registros Públicos.
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Mas isso só ocorrerá quando seu objeto, ou sua causa, ou seu fundamento,
configurar também aquele chamado título em sentido próprio, como regulado nos
incisos do art. 167 do mesmo diploma legal citado.
Do contrario, o mandado não traduzirá um título judicial como aqui tratado,
mas será mero instrumento judicial que veicula uma ordem de caráter jurisdicional.
Eventualmente poderá ser expedido para que seja cumprido no registro predial, mas
nem por isso será destinado à constituição ou à transmissão de direitos reais.
Nesta distinção, nem sempre fácil, residem as questões que, não raro, causam
grande perplexidade por ocasião da qualificação registral.
É que suscita matéria do maior interesse, relacionada com os limites do
registrador frente à qualificação de um título judicial, especialmente de um mandado.
Eis o ponto que adiante será retomado.
De qualquer sorte - é bom deixar assentado desde logo - tem-se entendido que
os títulos judiciais em geral, sem qualquer distinção, não escapam ao rigor da
qualificação registral.
Nesse sentido é pacífica a orientação que emana do Colendo Conselho
Superior da Magistratura, estabelecendo que títulos judiciais devem ser qualificados
como os demais, ficando submetidos aos princípios gerais que inspiram e orientam o
direito registrário como um todo.10
Segue que uma Carta de Sentença ou um Formal de Partilha, que pretendam
dar causa à transmissão da propriedade imóvel, deverão respeito, v.g., dos princípios da
legalidade, especialidade, continuidade, ou disponibilidade, entre outros, como todos os
demais títulos, ou seja, os títulos não judiciais, se é que assim podem ser chamados.
É de ser lembrado que uma Carta de Sentença, expedida de um processo que
teve por objeto uma ação de Adjudicação Compulsória, não será registrada se o réu não
for o proprietário tabular do bem imóvel, porque haveria ofensa ao principio da
continuidade.
No mesmo caso, ela não seria igualmente registrada se o imóvel descrito
violasse a especialidade registrária, ou mesmo, ainda, se implicasse no parcelamento do
10 Entre muitas outras, ApCiv 15.029-0/7, da Praia Grande, julgada pelo Colendo
Conselho Superior da Magistratura. RDI 31/112.
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solo urbano sem a prévia aprovação da Municipalidade para o desmembramento.
Cumpriria também ao apresentante da Carta de Sentença comprovar o pagamento do
imposto devido em razão da transmissão do bem imóvel.
Matérias como essas foram debatidas em dúvida julgada na Primeira Vara de
Registros Públicos, ora em grau de apelação.11
É pacífico, portanto, que o título judicial, no caso consubstanciado na Carta de
Sentença, se sujeita às mesmas regras a que estaria submetido outro instrumento, como,
por exemplo, a escritura notarial.
De outro lado, também o Formal de Partilha ou a Carta de Adjudicação não
escapariam ao rigor dos princípios que regem o direito registral.
Se por exemplo o imóvel inventariado não pudesse ser situado no interior de
uma área maior registrada, da qual ele seria originário, porque em razão de desfalque
anterior se apresentasse indispensável a prévia apuração da área remanescente, para
ensejar o controle da disponibilidade geodésica e assim o conhecimento seguro da base
imobiliária do imóvel partilhado, imperativo que o registro do título judicial, no caso,
ficasse subordinado à prévia retificação do registro-suporte indicado no título.
A propósito do tema manifestou-se recentemente o Colendo Conselho Superior
da Magistratura, quando julgou recurso da Comarca de Mogi das Cruzes, reiterando o
firme entendimento que tem prevalecido até aqui.12
Possível ainda formular hipótese em que teria cabimento recusar mandado de
usucapião.
Isso ocorreria, e seria perfeitamente possível, se a descrição perimetral do
imóvel usucapido, que constasse do mandado, fosse deficiente e, bem por isso, não
encerrasse o perímetro do imóvel possuído, impedindo o descerramento da matrícula.
Em tese, também admissível a recusa de um mandado que determinasse o
registro de citação, em ação real ou reipersecutória, se o imóvel disputado na ação, e
descrito no mandado, não estivesse suficientemente especializado.
Recentemente o Colendo Conselho Superior da Magistratura deu provimento
a um recurso de São José dos Campos, apenas porque considerou que o imóvel descrito
11 ApCiv 27.848-0/7, da Capital. RDI 38/198.
12 ApCiv 25.333-0/1, de Mogi das Cruzes.
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no mandado estava suficientemente especializado, já que havia sido indicado o número
de sua matrícula, e se tratava de imóvel urbano, o que foi tido como bastante para
permitir sua individuação e afastar incertezas acerca de seu corpo.13
Recusável, de outro lado, mandado que determinasse o registro de penhora,
quando esta fosse recair sobre o imóvel remanescente, não passível de especialização
secundum tabulas, exigindo-se a prévia retificação do registro para ficar atendido o
princípio da especialidade.
Nesse sentido o julgado do Colendo Conselho Superior da Magistratura da
Comarca de Atibaia.14
Por tudo isso é preciso ficar claro que os títulos judiciais em geral, aí incluídos
os mandados, não estão a salvo, nem refogem ao rigor de sua subsunção aos princípios
registrários que regem todo o sistema, que não admite exceção, pena de ficar subvertido.
Estes últimos, os mandados, apenas farão surgir na qualificação registral um
dado novo, na verdade um complicador, consistente em saber quais serão os limites
dessa atividade, se tomados em consideração alguns casos especiais, como adiante se
verá.
3. Exame formal do título judicial-Limites à atuação do registrador
Passa-se agora ao exame da matéria que concerne ao exame formal dos títulos
judiciais.
Ao registrador encarregado da qualificação registral, depois de assegurar-se
sobre sua competência territorial para recepcionar o título judicial, incumbirá, em
primeiro lugar, atentar para seus aspectos formais, perquirindo acerca da legalidade.
Trata-se, na verdade, de um exame do instrumento em si mesmo considerado
(título em sentido impróprio).
Nesta oportunidade deverá o registrador verificar se o número de pegas
indicado no título está correto, se atendem aos requisitos da espécie, ou ainda se o título
13 ApCiv 25.543-0/0, de São José dos Campos.
14 ApCiv 23.532-0/6, de Atibaia.
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(instrumento) está entre aqueles que merecem acesso ao registro predial, conforme a
previsão legal.
Ultrapassado esse exame preliminar, e verificado o preenchimento dos
requisitos de ordem formal, num segundo passo deverá o registrador tomar em
consideração a adequação do título judicial, tendo em conta o seu conteúdo, isto é,
cumprirá cogitar de sua causa ou fundamento jurídico, questionando a registrabilidade
do direito retratado no instrumento, ou, melhor dizendo, caberá avaliar o título em
sentido próprio, para constatar se ele se incluí no rol do art. 167 da Lei de Registros
Públicos.
Finalmente, o título ainda deverá submeter-se aos demais aspectos de
legalidade extrínsecos, como antes já enfocados, os quais são resultantes daqueles
outros vários interesses, que, embora não essencialmente registrários, também são
preventivamente protegidos e controlados no registro predial e, portanto, devem ser
objeto da qualificação registral.
Neste momento deverá ser considerada toda a legislação extravagante, que
impõe ao registrador a responsabilidade pelo exame do preenchimento desses outros
requisitos legais, relacionados com aqueles vários interesses a que já se fez alusão, de
índole fiscal, tributária, urbanística, ambiental, econômica ou política, todos
relacionados com o pretendido registro.
E, mesmo em se tratando de um título judicial, não haverá como mitigar o rigor
de sua sujeição às mesmas regras que a todos dizem respeito, como antes já visto.
O registrador, entretanto, no exercício da função de qualificar os títulos
judiciais, terá sua atuação limitada pelo respeito que será devido à coisa julgada; ou
mesmo à matéria preclusa, já decidida no curso do processo do qual o título judicial foi
extraído.
Estes limites, que decorrem do dever de respeito às decisões judiciais, ou à
coisa julgada, estão balizados na Constituição Federal e visam a garantir estabilidade
jurídica e eficácia às decisões judiciais.
Mas os limites não param por aí.
Há casos em que um mandado poderá ter por objeto uma ordem judicial e não
traduzir, como seria de se esperar, a transmissão ou a constituição de direitos reais,
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como previsto no art. 167 da Lei de Registros Públicos, o que causará dificuldade para o
qualificador.
Na verdade, embora mandado, e, portanto, em princípio título judicial em
sentido impróprio, este não refletirá um título em sentido próprio, porque não tem por
causa ou fundamento, quaisquer daquelas que constam do elenco legal (art. 167 da Lei
de Registros Públicos).
Os mandados que servem de instrumento para ordens judiciais endereçadas ao
registro predial são extraídos, via de regra, de processos que têm por objeto ações
cautelares.
Nos casos mais comuns, ao ser deferida uma medida liminar em processo
cautelar, especialmente as chamadas cautelares inominadas, muitas vezes se determina a
indisponibilidade, ou o “bloqueio” de bens imóveis, expedindo-se mandado para que a
medida se efetive no registro predial.
Ao receber e qualificar esses mandados, recepcionando-os como um título
judicial, o registrador depara-se com o fato de que aquela indisponibilidade determinada
não encontra amparo legal e, assim, entende de recusar o título.
O Colendo Conselho Superior da Magistratura e a E. Corregedoria Geral da
Justiça, frente a essa questão, mostram-se firmes no sentido de que esses mandados não
podem ter acesso à tábua registral, quer porque tornariam o bem indisponível sem
amparo legal, quer porque poderiam, potencialmente, atingir direitos de terceiros
estranhos ao feito de onde partiu a ordem.
Este entendimento administrativo, no entanto, tem sido objeto de
questionamento no âmbito dos Tribunais.
Na verdade a questão não é tão simples.
O Superior Tribunal de Justiça, ao conhecer de recurso ordinário interposto
contra o venerando Acórdão proferido em mandado de segurança, pela 7.a Câm. Civ. do
E. TJSP, cuja ordem fora impetrada contra a respeitável decisão administrativa
proferida pelo Juízo da 1.a Vara de Registros Públicos, na esteira da pacífica
jurisprudência do Colendo Conselho Superior da Magistratura, cuja decisão, por sua
vez, cancelara averbação de indisponibilidade feita em obediência a mandado judicial
expedido em ação cautelar inominada, deu provimento ao recurso para determinar o
cumprimento do mandado judicial e a conseqüente averbação da indisponibilidade do
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bem imóvel de que tratava, ainda que tenha reconhecido que “à primeira vista tudo está
a indicar que a decisão do MM. Juiz de Direito da 3. a Vara Cível não se afeiçoou ao
bom direito, haja vista que não deveria aquele r. Juízo, através de cautelar inominada,
ter determinado a indisponibilidade dos bens, com a respectiva averbação no álbum
imobiliário”.15
Nessa mesma oportunidade prevaleceu o entendimento de que a “autoridade
judicial em função administrativa não pode modificar decisão jurisdicional, que
somente pode ser desconstituída pelas vias adequadas”.
Na verdade, é no voto do eminente Min. Athos Carneiro que se encontra o
argumento mais contundente, quando S. Exa. aduz que “não cabe aqui perquirir se a
decisão tomada em sede jurisdicional contenciosa tem, ou não, amparo em Lei”.
Com esse julgado rejeitou-se o entendimento que predominava até então no
Estado de São Paulo, especialmente ante o que resultava dos julgados administrativos,
estabelecendo-se novo limite à função exercida pelo registrador por ocasião da
qualificação registral, ou mesmo para a função judicial-administrativa, à qual incumbe,
como decorre da atividade correcional, a requalificação integral do título, quando a sua
registrabilidade for discutida em Juízo (registrabilidade aqui quer dizer registro ou de
averbação ).
Mas este é um tema que ainda deverá ser objeto de muita atenção e estudo, até
que se possa delimitar com segurança a função do registrador frente a um mandado
judicial, quando este trouxer ordem de caráter jurisdicional e não, ao contrário, se
prestar como instrumento para refletir um título em sentido próprio, daqueles que
constam do rol do art. 167 da Lei de Registros Públicos.
Cumpre anotar, para finalizar, que entre os mandados expedidos em ações
cautelares, os que mais polêmica têm suscitado, e também maior preocupação, são
aqueles que determinam a averbação, para fim de publicidade, da existência de protesto
contra alienação de bem requerido contra o titular do domínio.
Essa medida traz maior preocupação porque, em sendo averbada, tenderá à
perpetuação.
15 RMS 193-0 de São Paulo, 4.a T. do STJ.
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Cumprida a medida, como é sabido, os autos do processo da ação cautelar de
protesto contra alienação de bens devem ser entregues ao requerente,
independentemente de traslado, o que dificultará providências do titular do domínio
visando a remoção do obstáculo que, na prática, se colocou para a disponibilidade do
bem imóvel envolvido na medida.
A propósito, é de ser salientado que a publicidade buscada com a averbação
dessa espécie de medida cautelar não se afina com aquela prevista no Código de
Processo Civil, para feitos dessa natureza.
Com a averbação dá-se publicidade registral ao protesto contra a alienação de
bens, que é de caráter diverso da que decorre da publicação dos editais previstos em Lei,
porque aquela envolve a chamada fé pública registral, bem como a segurança dos
registros; enquanto esta é mera publicidade processual.
O Colendo Conselho Superior da Magistratura tem firme orientação no
sentido de tornar defesa a averbação do protesto contra alienação de bens, conforme
inúmeros julgados.16
4. Devolução de títulos judiciais com exigências
A devolução dos títulos judiciais com exigências, depois do que já foi dito, não
está a reclamar ainda muitos comentários.
É certo que, na maioria das vezes, os títulos são apresentados pelas partes
interessadas nos respectivos registros e, como já ressaltado, em não se atendendo aos
requisitos legais, ou em se ofendendo quaisquer dos princípios registrários, como já
referido e exemplificado, cumprirá que o título seja devolvido normalmente.
A dificuldade estará sempre na devolução de mandado que não reflita
propriamente um título judicial, mas uma ordem de caráter jurisdicional.
Entretanto, como já foi mencionado, esta é matéria aberta, porque ainda muito
deve ser aprofundada.
16 Apelações Cíveis 2.361-0 e 1.828-0, ambas de São Vicente; ApCiv 13.455-0/6, da
Comarca de Nuporanga, entre muitas outras.
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5. Suscitação de dúvida em títulos judiciais
Por derradeiro, relativamente à suscitação de dúvida, quando a recusa voltar-se
contra um anulo judicial, também pouco há para falar, além do que já foi dito.
Como já demonstrado, é pacífico o entendimento do Colendo Conselho
Superior da Magistratura no sentido de que ela pode e deve ser suscitada.
Não se conformando o apresentante do título com a recusa, poderá requerer a
suscitação de dúvida regularmente.
Apenas anota-se, para encerrar, e a título de curiosidade, que houve caso em
que o título, consistente de mandado de penhora, expedido pela Justiça do Trabalho, foi
apresentado pelo próprio Juízo que expediu o mandado, e, em face da recusa oposta
pelo registrador, que denegou o acesso do mandado no registro predial, a suscitação de
dúvida foi requerida pelo próprio Juízo que emitiu a ordem, ficando admitido pelo
Colendo Conselho Superior da Magistratura o interesse do Juízo, prolator da decisão
que deu origem à expedição do mandado recusado.17
17 ApCiv 16.923-0/4, de Cubatão.
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8.
SOBRE A QUALIFICAÇÃO DE TÍTULOS JUDICIAIS NO BRASIL*
FLAUZILINO ARAÚJO DOS SANTOS
1.º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo-SP
SUMÁRIO: 1. Antecedentes registrais e o direito brasileiro – 2. Os títulos judiciais – 3.
Títulos judiciais e ordens judiciais – 4. A qualificação registral de títulos e ordens judiciais – 5.
A função qualificadora do registrador – 6. A suscitação de dúvida como reexame da
qualificação feita pelo registrador – 7. Considerações finais.
1. Antecedentes registrais e o direito brasileiro
Quando o Brasil foi descoberto, em 1500, o Rei de Portugal, na qualidade de
descobridor, adquiriu sobre o território o título originário da posse. Investido desse
senhorio, a Coroa de Portugal, por meio de doações, feitas em cartas de sesmaria,
começou a destacar do domínio público as parcelas de terras que viriam a constituir o
domínio privado. Esse regime prevaleceu até a Independência do Brasil, em 1822. Com
o advento da Independência, o nascente Império do Brasil arrecadou da Coroa
Portuguesa o domínio das terras e de todos os bens do acervo lusitano situados no
Brasil. Porém, daquela data até 1850, desenvolveu-se progressiva ocupação do solo,
sem qualquer título, mediante a simples tomada de posse.
Ainda ao tempo do Império, pela Lei 601, de 18.09.1850, regulamentada pelo
Dec. 1.318, de 30.01.1854, foi instituído o registro paroquial, também conhecido como
* Contribuição ao II Encuentro Iberoamericano sobre Registro de la Propiedad y
Tribunales de Justicia em Cartagena de Indias, Colombia, de 1.º a 03.03.2004.
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“registro do vigário”, separando assim do domínio público todas as posses que fossem
levadas ao livro da Paróquia Católica Romana.
A titulação de terras consistia então em documentos expedidos pelo governo,
dos registros das posses manifestadas perante o vigário e dos contratos de transmissão
com apoio em uns e outros documentos originais, bem como nos que se lhes seguiram
por atos inter vivos e causa mortis.
A situação imobiliária se apresentava, então, extremamente insegura,
mormente por ficar dispersa por meio de títulos em mãos de titulares, já que a tradição,
que era o meio de transmissão da propriedade imóvel, foi sendo reduzida à cláusula
constituti em virtude da qual o comprador adquire a posse sem qualquer reflexo externo,
o que dava origem a sucessivas alienações e onerações clandestinas.
Era essa a situação imobiliária, quando pela Lei Orçamentária 317, de
21.10.1843, regulamentada pelo Dec. 482, de 1846, foi criado o Registro de Hipotecas,
voltado para proteção do crédito, posteriormente transformado pela Lei 1.237, de
24.09.1864, em registro geral, substituindo a tradição pela transcrição como meio de
transferência. Seguem-se os Decretos 169-A, de 19.01.1890, e 370, de 02.05.1890,
baixados pelo governo republicano provisório e que tornaram obrigatória a inscrição e
especialização de todo direito real de garantia incidente sobre bem imóvel, inclusive
quando se tratasse de hipoteca judiciária.
O sistema era voltado para os direitos reais de garantia, especialmente para a
hipoteca. A transcrição não ostentava sequer valor juris tantum de prova de domínio,
produzindo apenas uma publicidade formal, da qual, inclusive, expressamente eram
deixados de lado as transmissões causa mortis e os atos judiciais, pois, com respeito aos
últimos, tal como o previsto pelo art. 237 do referido Dec. 370, bastava a publicidade
oriunda do processo, preceito que perdurou até o advento do Código Civil de 1916.
O Código Civil, que entrou em vigor em 1917, aperfeiçoou a Lei Registral,
adotando os princípios básicos inerentes ao sistema e determinou que todas as
transmissões fossem transcritas no registro de imóveis e que todas as hipotecas fossem
especializadas. Todavia, deixou espaço para divergências que foram posteriormente
superadas pelas edições dos Decretos 4.827, de 07.02.1924, 4.857, de 09.11.1939, e da
vigente Lei dos Registros Públicos – Lei 6.015, de 31.12.1973.
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No sistema jurídico brasileiro é pacífica a necessidade de um ato inscritivo
(registro ou averbação) na constituição, transmissão, modificação e extinção de direitos
reais imobiliários e nos fatos modificativos das situações a eles correspondentes, que
tenham como pressuposto título ou documento extrajudicial ou judicial, cumprindo,
assim, os objetivos da publicidade registral.
Dito isto, é estreme de dúvida que determinados atos ou títulos judiciais devem
acessar o caderno registral, quer seja no interesse direto das partes interessadas, quer
seja para o efeito de publicidade registral que vise, principalmente, direitos e eventuais
interesses de terceiros, e, em globo, interesses de ordem pública, visto que o registro
imobiliário se constitui em uma âncora da estabilidade econômica e jurídica do País, à
medida que oferece um conjunto de ferramentas eficazes que garantem o funcionamento
e a credibilidade da economia de mercado no âmbito interno e externo.
2. Os títulos judiciais
A Lei dos Registros Públicos estabelece no art. 221 que serão admitidos a
registro entre outros títulos, os títulos judiciais formalizados por cartas de sentença,
formais de partilha, certidões e mandados extraídos de processo.
Os títulos judiciais são expedidos por organismos jurisdicionais, no
desempenho de suas funções decorrentes de processos de jurisdição voluntária e
contenciosa. O Código de Processo Civil brasileiro relaciona e conceitua, em seu art.
162, três categorias de pronunciamentos do juiz no processo, quais sejam: sentenças,
decisões interlocutórias e despachos.
Sentença é o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o
mérito da causa (§ 1.º).
Decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve
questão incidente (§ 2.º).
São despachos, todos, os demais atos do juiz praticados no processo, de ofício
ou a requerimento das partes, a cujo respeito a lei não estabelece outra forma (§ 3.º).
A decisão final em processo proferida pelos tribunais recebe o nome de
acórdão (CPC, art. 163).
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Em princípio, não cabe ao registrador perquirir de que pronunciamento do juiz
decorreu a formalização do título judicial, uma vez que, embora a maioria dos títulos
derive de sentenças, que podem ser declaratórias, constitutivas, condenatórias e
homologatórias, podem originar-se, também, de decisões interlocutórias (por exemplo,
decretação de ineficácia de alienação em caso de fraude à execução) e de simples
despachos (por exemplo deferimentos de petições em procedimentos cautelares
específicos).
Por óbvio que qualquer título judicial deve conter os requisitos exigidos para
sua formalização. Assim, a carta de sentença deve conter os requisitos do art. 590; o
formal de partilha, os do art. 1.027; a certidão de ato processual, o do art. 36 etc.
A Lei de Registros Públicos inclui entre os títulos judiciais que acessam o
registro imobiliário as sentenças proferidas por juízes estrangeiros, quando tenham por
objeto imóveis situados no Brasil, após regular homologação pelo STF (art. 221, III).1
Por oportuno salientar que em se tratando, porém, de sucessão causa mortis
envolvendo imóveis situados no território nacional, ainda que o autor da herança seja
estrangeiro e tenha residido fora do País, a competência para proceder ao inventário e
partilhar os bens é da autoridade judiciária brasileira (CPC, art. 89).
3. Títulos judiciais e ordens judiciais
O veículo por meio do qual as decisões judiciais emigram dos autos para o
álbum registral constitui o que de forma genérica se convencionou, impropriamente,
denominar de título judicial, que pode ser formalizado pela forma tradicional, que é o
papel, ou por meio de documento eletrônico.2
1 “Note-se que para efeitos de registro o título hábil não é a sentença estrangeira, mas,
sim, a carta de sentença expedida pelo E. STF”, conforme registrou Ademar Fioranelli no
excelente Direito Registral Imobiliário, Porto Alegre: Safe/Irib, 2001, p. 127.
2 O emprego de documento eletrônico no País é largamente utilizado pela
Administração Pública federal, além de bancos e empresas e está disciplinado na MedProv
2.200-2, de 24.08.2001, que instituiu a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-
Brasil e em resoluções de seu Comitê Gestor, vinculado à Casa Civil da Presidência da
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Distinção importante tem sido construída pela doutrina a partir da análise do
conteúdo desses documentos judiciais em relação ao seu objeto, ou sua causa, ou seu
fundamento, para o efeito de segregar títulos judiciais de ordens judiciais e fixar a
conduta qualificadora do registrador em função do que a natureza desses títulos exige.3
Neste prisma, impende, em primeiro, observar que o art. 167 da Lei dos
Registros Públicos versa quer sobre títulos em sentido próprio (rectius: causa ou
fundamento de um direito ou de uma obrigação), quer em acepção imprópria, figurada
(ou seja: instrumento documental que exterioriza a causa, ou título em sentido próprio).
O preceito que, especificamente, se vincula à idoneidade registrária dos títulos
em sentido impróprio é o art. 221 da Lei Registrária, e, não obstante seu caráter
indicativo de interpretação restritiva (ver advérbio “somente” com que se inaugura o
caput), cumpre observar que, por interpretação sistemática, viabiliza-se o ingresso de
cartas de arrematação e adjudicação em hasta pública (art. 167, I, n. 26, da Lei dos
Registros Públicos, arts. 703 e 715 do CPC), de cédulas de crédito industrial e rural (art.
167, I, 13 e 14, da Lei dos Registros Públicos), de memoriais e outros documentos
relativos à incorporação imobiliária (Lei 4.591/1964, art. 32) e o loteamento de imóveis
rurais e urbanos (Dec.-lei 58/1937, arts. 1.º e 4.º; Lei 6.766/1979, art. 18).
Como assinala Marcelo Martins Berthe, “afigura-se importante fazer esta
distinção para que seja possível atingir uma melhor compreensão do que sejam os
República (Disponível em: <http://www.icpbrasil.gov.br>, acesso em: 26 fev. 2004). Desde
27.12.2002 a Associação dos Notários e Registradores do Brasil – Anoreg-BR encontra-se,
oficialmente, credenciada pela ICP-Brasil para atuar como Autoridade de Registro (AR)
vinculada à Autoridade Certificadora (AC), o Serviço Federal de Processamento de Dados –
Serpro (Disponível em: <http://www.anoregbr.org.br/? action=certificadora#>, acesso em: 26
fev. 2004).
3 Parecer 138/85 do Juiz Ricardo Henry Marques Dip p/ Equipe de Correições da E.
Corregedoria-Geral da Justiça de São Paulo, “Decisões administrativas”, RT 65/130, 1986;
Marcelo Martins Berthe. “Títulos judiciais e o registro imobiliário”, Revista de Direito
Imobiliário 41/56, São Paulo: RT, 1997; Marcelo Fortes Barbosa Filho, “O registro de imóveis,
os títulos judiciais e as ordens judiciais”, in: Sérgio Jacomino (Org.), Thesaurus registral,
notarial e imobiliário, São Paulo: Irib/Anoreg-SP, 2003, vol. 2, versão 2.0.
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 217
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chamados títulos judiciais, que são o objeto de interesse neste momento”.4 De fato, o
veículo para materialização da causa ou fundamento registrável, advinda de um
pronunciamento do Estado-juiz relativa a uma situação de direito material, será sempre
um título judicial em sentido impróprio.
“Tais títulos, à semelhança do que ocorre com os chamados títulos não-
judiciais ou extrajudiciais, hão de ser levados ao conhecimento do registrador, pois só a
consecução do ato de registro poderá, entre particulares, dotar de plena eficácia a
decisão judicial antecedente, derivada da declaração da presença de um título
legitimário posicionando um dado sujeito de direito diante de um bem imóvel”.5
Por seu turno, as ordens judiciais, embora tenham como instrumental o título
judicial denominado “mandado”, raramente trazem em seu conteúdo como lastro de
origem a própria causa do ato registrário, senão que resulta de garantia da tutela
jurisdicional que o Estado realiza em processo de conhecimento, executivo ou cautelar,
na forma e extensão que a jurisdição pode oferecer, “como resposta, especialmente, a
situações de urgência e que, dotadas de provisoriedade, demandam certa elasticidade na
conformação da decisão judicial”.6
No direito brasileiro, a regulamentação contida sobre o assunto é extensa,
contínua e genérica, uma vez que admitidas estão providências cautelares específicas e
inominadas, outorgáveis sempre que condições específicas assim o exigirem. Todavia,
por preceito constitucional, o poder geral de cautela do juiz não é ilimitado a ponto de
impedir o exercício de um direito previsto no ordenamento jurídico.
Como o juiz não intervém, de regra, na formação de um negócio jurídico, para
criar direitos, extingui-los ou modificá-los, a não ser em caráter excepcional,7 por essa
razão, normalmente, “os atos praticados com suporte em ordens judiciais não são aptos
a criar novas situações jurídicas, isto é, a estabelecer novas posições para novos sujeitos
4 BERTHE, Marcelo Martins. Op. cit., p. 58.
5 BARBOSA FILHO, Marcelo Fortes. Op. et loc. cits.
6 Idem, ibidem.
7 Cf.: FREDERICO MARQUES, José. Manual de direito processual civil. São Paulo:
Saraiva, 1981. vol. I, p. 159, “A formação, mudança ou desfazimento de uma relação jurídica
pelas vias jurisdicionais é excepcional. Com a jurisdição, o Estado compõe a lide para restaurar
o direito violado, ou para declarar existente, ou não, uma relação de direito”.
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de direito. Diante das ordens, isso sim, ocorrem alterações, em geral limitadoras, de
situações jurídicas já existentes”.8
Em face da diversidade de pressupostos na origem, a distinção entre títulos
judiciais e ordens judiciais é de conseqüência prática e deve plasmar o comportamento
do registrador na formação de seu juízo lógico e crítico de admissibilidade, ou não, da
respectiva inscrição registral.
4. A qualificação registral de títulos e ordens judiciais
A gênese da publicidade registral se dá por ato de registro ou averbação
mediante a indispensável apresentação de um título hábil que, ademais, cumpre o
princípio da instância.
Embora toda a organização registral esteja assentada no princípio da
legalidade, razão de ser do álbum imobiliário, entre as formalidades desenvolvidas pelo
registrador, distingue-se a função qualificadora dos títulos e documentos apresentados
para registro, como o ponto culminante da dinâmica da publicidade registral.
É por isso que não obstante a origem jurisdicional do título, é de rigor sua
qualificação registral, uma vez que se o ato judicial se mostra apto para inscrição no
fólio real, vai desencadear, por força de sua admissibilidade e conseqüente inscrição, o
fenômeno registral erga omnes, retro operante à data da apresentação do título no
registro de imóveis.
De forma geral, o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo tem
reiteradamente decidido que o fato de ser apresentado título de origem judicial para
registro não isenta exame qualificativo dos requisitos registrários, cabendo ao
registrador apontar e analisar a existência de eventuais obstáculos registrários.
“A circunstância de exibir-se a inscrição título de origem judicial não implica
isenção dos requisitos registrários, incumbindo ao registrador: a) verificar a
competência (absoluta) da autoridade judiciária; b) aferir a congruência do que se
ordena ao registro com o processo respectivo; c) apurar a presença das formalidades
8 BARBOSA FILHO, Marcelo Fortes. Op. et loc. cits.
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documentais; d) examinar se o título esbarra em obstáculos propriamente registrários
(por exemplo: legalidade, prioridade, especialidade, consecutividade). Não se torna
ineficaz ou inválida uma sentença judicial pelo fato de lhe ser vedado o registro, porque
essa vedação não interfere com a validade e com a eficácia próprias da decisão
judiciária, senão apenas verifica se o título quadra com as exigências do registro
imobiliário” (a jurisprudência do E. Conselho Superior da Magistratura de São Paulo é
firme no sentido de que a adjudicação não pode ser inscrita se o demandado, na via
judicial, não é proprietário secundum tabulas, v.g. Apelações 279635, 1371, 2156,
2196, 3030, 4686 e 5741-0, DOJ 30.07.1992)”.9
Por seu turno, em face dos pressupostos de fato e de direito evidentemente
encontrados pelo juiz para concessão da tutela, a ordem judicial, normalmente
instrumentalizada por meio de “mandado”, restringe a qualificação desenvolvida pelo
registrador, que deverá concentrar-se em aspectos meramente formais, salvo simples
indagação quanto às circunstâncias inerentes, tais como a competência e o poder da
autoridade judiciária, já que as regras são fixadas por lei, sendo despiciendo perquirir se
a decisão tomada sob o império de sede jurisdicional tem ou não amparo em lei.
Parece-nos iniludível que emitida a ordem judicial, bem ou mal, o foi sob o
império de decisão proferida em feito jurisdicionalizado, o que privilegia sua
juridicidade e encarna as garantias que a ordem jurídica confere ao Poder Judiciário
para o expedito e resguardado desempenho de sua missão. Tanto é assim que o STJ tem
reiteradamente decidido não ser lícito à Administração proceder qualquer atividade que
afronte o comando judicial, sob pena de cometimento do delito de desobediência,
hodiernamente consagrado e explicitado no art. 14, VI, e par. ún., do CPC, mesmo
quando concedida antecipação de tutela.
É o que se lê na ementa do Ac do REsp 45362-RS do seguinte teor: “É vedado
à Administração agir com desconsideração ao provimento liminar e com desprezo pelo
Poder Judiciário sob o argumento de que a decisão liminar não corresponde ao trânsito
em julgado da decisão final, porquanto esse argumento sofismático implica negar
eficácia à antecipação da tutela que é auto-executável e mandamental”.
9 ApCív 92.906-0/3 da Comarca de Barretos, rel. Des. Luís Tâmbara, DOJ 20.08.2002,
p. 8.
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No julgamento do RMS 193-0-SP, em que se discutia a legalidade de
cancelamento de averbação de indisponibilidade de imóvel, por falta de previsão legal,
determinada por juiz correcional, no exercício de sua função administrativa, a 4.ª T. do
E. STJ deu provimento ao recurso para fins de cancelamento do cancelamento, com
ênfase que “decisão jurisdicional somente pode ser desconstituída pelas vias próprias,
sob pena de vulnerar-se o devido processo legal”.10
Com relação ao comportamento do registrador no exame de legalidade para o
cumprimento de ordens judiciais, Afrânio de Carvalho já advertia que, “quando tiver
por objeto atos judiciais, será muito mais limitado, cingindo-se à conexão dos
respectivos dados com o registro e à formalização instrumental. Não compete ao
registrador averiguar senão esses aspectos externos dos atos judiciais, nem entrar no
mérito do assunto neles envolvido, pois, do contrário, sobreporia a sua autoridade à do
juiz”.11
Segundo Marcelo Fortes Barbosa Filho, diante de uma ordem judicial, “só
poderá o registrador se recusar a dar cumprimento ao comando recepcionado, quando
restar caracterizada hipótese de absoluta impossibilidade, como quando determinada a
indisponibilidade de bens daquele que não é titular, de acordo com a tábua, de direito
real algum, ou antinomia interna, quando, por exemplo, há contradição intrínseca e o
documento instrumentalizador da ordem não corresponda ao seu teor”.12
Em vez de resistir ao cumprimento da ordem emanada do Estado-juiz à guisa
da estabilidade de situações patrimoniais inscritas e de seu dever com a segurança
jurídica, o registrador deve ter presente, salvante a hipótese de flagrante ilegalidade da
ordem, em primeiro lugar, que a prestação jurisdicional é desenvolvida nos termos
constitucionais com possibilidade de revisão por instância superior a fim de modificar
ou corrigir a sentença ou decisão erroneamente proferida ou, mesmo, sua imediata
suspensão quando presentes os requisitos do fummus boni iuris e do periculum in mora.
10 (Disponível em: <http://www.stj.gov.br/webstj/>, acesso em: 26 fev. 2004).
Colecionam-se vários precedentes dessa C. Corte como CC 21413-SP e CC 32641-PR, entre
outros.
11 CARVALHO, Afrânio de. Registro de imóveis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977.
p. 281.
12 BARBOSA FILHO, Marcelo Fortes. Op. et loc. cits.
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É uma questão inteligente de definição institucional de papéis e responsabilidades com a
qual será afastado o fenômeno de dessincronia na atividade estatal prestada pelo Estado-
juiz e pelo registro imobiliário.
Em segundo lugar, o registrador deve ponderar que a responsabilização civil
relativa ao ato registral conseqüente, para o efeito de eventual ressarcimento de
prejuízos indevidos, aponta para o próprio Estado, sem direito de regresso contra o
registrador, quando esse cumpre mandado judicial regularmente emitido, à exceção de
dolo ou culpa, como já sustentamos em outra oportunidade.13
Parece oportuno referir-se à manifestação do STF que colocou fim na
discussão sobre a responsabilidade civil pelos atos praticados pelo notário e o
registrador, ao adotar a teoria objetiva em virtude da natureza estatal das atividades
exercidas em caráter privado por delegação do Estado, o qual detém o monopólio dos
serviços registrais e responde diretamente pelos danos que seus delegados venham a
causar a terceiros, permanecendo os últimos na esfera da responsabilidade subjetiva.14
Ademais, aquele que sofrer um dano injusto em virtude de um erro judiciário,
de sorte a provocar a denegação da Justiça, pode promover ação em face do Estado com
vistas ao ressarcimento do prejuízo patrimonial e não patrimonial experimentado, como
de resto se pratica em todo Estado Democrático de Direito, que não mais tem a
preocupação em saber se o ato provém do ius imperii ou do ius gestionis.
Ao aludir sobre a responsabilidade estatal relativamente à prestação
jurisdicional eivada de imperfeição, Vera Lúcia R. S. Jukovsky afirma que
“doutrinariamente, tem sido interpretado como existente tal quadro quando o
magistrado atua com dolo, recusa ou omite soluções a dano das partes; quando o juiz
13 Em “Sobre a responsabilidade civil dos notários e registradores”. Revista de Direito
Imobiliário 49/11, jul.-dez. 2000, afirmamos que o registrador não responde pelos prejuízos
causados a terceiros, nem mesmo via regresso, ao cumprir ordem judicial emanada da
autoridade competente, cuja responsabilidade é do Estado-juiz e deve ser resolvida dentro da
doutrina constitucional contemporânea baseada na teoria do risco social absoluto.
14 RE 209354 AgR-PR, rel. Min. Carlos Velloso (Disponível em: http://www.stf.gov.br,
acesso em: 26 fev. 2004).
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desconhece ou conhece mal o direito incidente na demanda, de modo a recusar ou
omitir o que deve ser dado de direito (...)”.15
De tudo que foi dito, porém, deve ser ressaltado que por submissão ao direito,
entre um mandado legal e um mandado judicial, deve-se privilegiar o mandado legal,
visto que é fundamental a licitude da ordem. Afinal, tem ou não o cidadão a garantia
constitucional de que o Estado não interferirá em seus direitos patrimoniais, salvante as
exceções contidas na própria lei?
5. A função qualificadora do registrador
A observância dos aspectos relativos ao fundo e a forma do título judicial é
necessária e indispensável para compor a massa de segurança das relações jurídicas
gerada pela qualificação, razão de ser do próprio serviço registral, consoante sonoras
palavras do art. 1.º da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973):
“Art. 1.º Os serviços concernentes aos registros públicos, estabelecidos pela
legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, ficam
sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei”.
É sutil a diferença entre forma e fundo, embora se oponham por ser aquela
extrínseca, uma vez que simplesmente afeta a exteriorização do ato, enquanto o fundo é
intrínseco, porque toca de perto a essência ou o conteúdo do ato como condição de sua
própria existência ou valia. O fundo é requisito essencial porque o que não satisfaz as
exigências ou condições de fundo não possui vida nem conduz valimento legal para
produzir a eficácia que o Direito assinala. Por exemplo: embora seja questão de fundo, o
registrador avaliará se o procedimento permitia a expedição da ordem judicial. Não
seria lógico que em ação diversa fosse expedido mandado relativo à situação registral
que não foi objeto de apreciação.
Esta inescusável obrigação, no entanto, não decorre somente da função
registrária de oferecer segurança jurídica à sociedade, o que seria suficiente por si só,
15 JUCOVSKY, Vera Lúcia Rocha Soares. Responsabilidade civil do Estado pela
demora na prestação jurisdicional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999. p. 69.
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mas também de expressas disposições legais às quais o registrador encontra-se
vinculado preceptivamente, cujo vetor é o princípio constitucional de segurança
jurídica. A Lei dos Registros Públicos (6.015/1973), em seu art. 239, traz requisitos a
serem observados nos títulos judiciais que pretendem ingresso no registro de imóveis
para fins de registro de constrições judiciais, determinando in verbis:
“Art. 239. As penhoras, arrestos e seqüestros de imóveis serão registrados
depois de pagas as custas do registro pela parte interessada, em cumprimento de
mandado ou à vista de certidão do escrivão, de que constem, além dos requisitos
exigidos para o registro, os nomes do juiz, do depositário, das partes e a natureza do
processo.
Parágrafo único. A certidão será lavrada pelo escrivão do feito, com a
declaração do fim especial a que se destina, após a entrega, em cartório, do mandado
devidamente cumprido”.
Também o art. 198 da mesma lei sanciona a função qualificadora do
registrador ao dizer que “havendo exigência a ser satisfeita, o oficial indicá-la-á por
escrito”.
Significa o preceito que o registrador, depois de prenotar o título, deverá, antes
de proceder aos atos inscritivos, examiná-lo à luz das exigências legais a ele pertinentes,
contidas na própria Lei dos Registros Públicos, na legislação tributária, na legislação
civil, comercial ou de outra natureza, que lhe sejam aplicáveis, inclusive, das esferas
estadual e municipal, além de estrita observância às normas técnicas e decisões
normativas editadas pelo Poder Judiciário, que por disposição constitucional é o órgão
fiscalizador dos registradores de imóveis.
É, pois, dever do registrador proceder ao exame exaustivo do título exibido,
mesmo quando de origem judicial, sob pena de incorrer em responsabilidade, todavia
nem sempre a qualificação registral empreendida pelo oficial é compreendida em seu
verdadeiro sentido e alcance, tal como prevista no ordenamento legal vigente, tanto que
não poucos registradores já passaram pelo constrangimento de serem intimados de
decisões judiciais por despachos do seguinte jaez: “Cumpra-se imediatamente sob pena
de desobediência (ou de pena de prisão)”. Isso simplesmente porque, ao examinar um
determinado título judicial, considerou-o inapto para a prática do ato de registro ou de
averbação determinado pelo juiz ou mesmo emitiu uma nota com exigência de
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retificação ou aditamento do título para o efeito de afastar óbice que impedia a prática
do ato determinado.16
Parece que vários fatores, embora distintos, completam-se e corroboram para
que essa situação se instale e leve certos grupos a pugnarem pela limitação do controle
de legalidade exercido pelo oficial registrador via qualificação.
Primeiro, porque existe uma infeliz prática registral de devolução do título ou
emissão da nota de exigência de forma resumida (por exemplo, apresentar certidão de
casamento dos executados), por vezes até em papeletas grampeadas no título, sem a
imprescindível exposição das razões e dos fundamentos que justificam a tomada de
decisão do oficial registrador na edição do ato de negação de acesso do título judicial ao
caderno registral.
O oficial deve considerar que, em virtude de sua condição de delegado do
serviço público, operando em nome do Poder que o credenciou para o exercício de uma
atividade essencial, os atos que pratica em razão de seu ofício são atos administrativos.
Esses atos, para regular ingresso no mundo jurídico devem ser estruturados nos
princípios que norteiam, informam e fundamentam o direito administrativo, impondo-
se, portanto, que no seu pronunciamento consubstanciado em eventual nota de
devolução do título judicial, fiquem estampadas de maneira precisa e clara as razões de
fato e de direito que o levaram a proceder daquele modo.
Quando o registrador examina um título e o declara conforme a lei e lhe dá
abrigo no arquivo registral imobiliário ou o desqualifica, a exemplo da atividade judicial
saneadora do processo, pratica ato típico de jurisdição voluntária, imparcial, com
independência e soberania; todavia, a nosso aviso e com o máximo respeito por fortes
opiniões em contrário, a natureza jurídica qualificadora do registrador consiste em
autêntica função administrativa, visto que está adstrito ao ordenamento jurídico
16 A desqualificação de título judicial que viole os princípios registrários básicos e torne
insegura e descontrolada a escrituração do fólio real não caracteriza a figura do crime de
desobediência previsto no art. 330 do CP, porquanto esse tipo pressupõe a oposição dolosa e
injustificada a uma ordem legal e tal conjunto de elementos não restará integrado quando
rejeitado o título, em decorrência de óbice registrário (cf. parecer do Juiz Marcelo Fortes
Barbosa Filho no Processo 9002/2000 da Comarca de Americana, publicado no DOJ
11.04.2000, p. 3).
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 225
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positivo, não lhe sendo facultado, em razão do estreito limite da qualificação, valer-se
de elementos subsidiários para construção de seu juízo fora do direito normativo, como,
por exemplo, do direito costumeiro, do direito comparado, da determinação eqüitativa
do direito etc. Como muito bem salienta Adriano Damásio, “o administrador público
somente poderá fazer o que estiver expressamente autorizado em lei e nas demais
espécies normativas, inexistindo, pois, incidência de sua vontade subjetiva”.17
Tratando da legalidade para o administrador público, Elcio Trujillo aponta que
“a legalidade na Administração não se resume à ausência de oposição à lei, mas
pressupõe autorização dela, como condição de sua ação”.18
Por oportuno lembrar que o uso na justificativa da devolução do título de
expressões genéricas como “para os devidos fins”, “para fins de direito”, e outras
assemelhadas, não servem para motivar o ato de interdição do título pelo oficial
registrador, configurando mera logomaquia.19
A Constituição Federal, no seu art. 37, preceitua que a Administração Pública
obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência. Na mesma direção a Constituição Paulista em seu art. 111 amplia esse rol,
acrescentando, de forma explícita, os princípios da razoabilidade, finalidade, motivação
e interesse público, como de observância obrigatória pela Administração Pública direta,
indireta e fundacional, incluídos nessa categoria de entes públicos, por conseqüente
lógico, os serviços delegados de notas e de registro.
Ensina Celso Antônio que “violar um princípio é muito mais grave que
transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não a um específico
mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de
ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque
17 DAMÁSIO, Adriano. Limite das medidas provisórias. In: MOTA DE SOUZA,
Carlos Aurélio (Coord.). São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003. p. 68.
18 TRUJILLO, Élcio. Responsabilidade do Estado por ato lícito. São Paulo: LED, 1996.
p. 90.
19 CRETELLA JÚNIOR, José. Dos atos administrativos. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
p. 270, n. 140.
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representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais,
contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”.20
Urge, então, que o registrador de imóveis estruture a nota de exigência nos
termos estabelecidos pela Lei de Registros Públicos, por outras normas jurídicas
pertinentes e pelos princípios de direito registral e de direito administrativo, sob pena de
ficar o ato inquinado de vício de legalidade e adentrar de forma precária ao mundo
jurídico, com sua validade comprometida, podendo, até, ser por este abortado, já que
não se tolera a inércia ou o relaxo administrativo.
Em segundo, poder-se-á apontar a especialização excessiva em determinados
ramos do direito, com desconhecimento da matéria registral. Isso ocorre a partir dos
bancos acadêmicos, uma vez que pouquíssimas faculdades de direito no País oferecem a
seus alunos cadeiras de direito notarial e registral. Será essa a causa por que mentes
privilegiadas, com relativa freqüência, movem-se no âmbito do direito registral
imobiliário até mesmo contra legis?
Parece que esse débito pode ainda ser contabilizado à conta de corporativismo
mal entendido e outras causas subjacentes que levam certos grupos a pugnar pelo limite
do controle registral da legalidade.
Enfim, por que não dizer mais que a função de qualificação registral não é
suficientemente explicitada em nossos livros de direito, até mesmo na literatura jurídica
especializada?
Mesmo tratadistas de escol não têm enfrentado os temas nevrálgicos do sistema
registral imobiliário com a energia e o esgotamento que a matéria exige.
É nesse ritmo que surge uma coleção de proposições composta de frases mais
ou menos assim:
– a função de qualificação registral é restrita ou limitada;
– o registrador imobiliário não pode desobedecer ou desvirtuar uma decisão
judicial, devendo limitar-se a cumprir a ordem. Os terceiros interessados ou aqueles
atingidos pelo ato praticado podem impugná-lo perante os tribunais competentes;
– a função jurisdicional deve ser respeitada;
– os documentos judiciais gozam de presunção de legalidade.
20 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Revista de Direito Público 15/284.
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Obviamente essas frases não são frívolas nem inconseqüentes; pelo contrário,
são absolutamente verdadeiras. Não podem, todavia, ser isoladamente consideradas,
senão devem ser entendidas na unidade do sistema jurídico vigente, pena de tornar letra
morta toda a legislação paulatinamente desenvolvida e retornar aos albores da legislação
criadora do Registro Geral de Imóveis, com anterioridade a 1863, numa evidente falta
de “memória histórica” e de conhecimentos suficientes das razões por que se implantou
em nosso País a publicidade registral e as normas de segurança do tráfico imobiliário,
seguindo, fundamentalmente, o modelo germânico, que tem como pressuposto a
legalidade dos atos e negócios e a presunção de exatidão dos assentos registrais, e, por
isso, exige, dados os fortíssimos efeitos que se atribui àqueles, por razões de segurança
jurídica imobiliária, um amplo controle de legalidade por parte do registrador e dos
órgãos de reexame em graus administrativos superiores.
A propósito, é de ser consignado desde logo que a qualificação registral não é
só do registrador de imóveis, senão que a qualificação registral se integra por um
conjunto de órgãos imparciais e especialistas em matéria de direito imobiliário registral,
que são: o registrador de imóveis, o Juiz dos Registros Públicos e o Conselho Superior
da Magistratura do Estado.21
Embora o procedimento de dúvida esteja enquadrado na
modalidade da jurisdição voluntária, pode ensejar recurso especial dirigido ao STJ ou
recurso extraordinário encaminhado ao STF, desde que presentes os requisitos
constitucionais para admissibilidade desses recursos.
Como já assinalado, o Conselho Superior da Magistratura do Estado de São
Paulo por inúmeras vezes já decidiu que o fato de se tratar de título judicial não o torna
imune à qualificação registrária, sob o estrito ângulo da regularidade formal e que todos
os títulos, judiciais e extrajudiciais, são submetidos à qualificação registrária, com
fulcro na aplicação dos princípios e normas formais da legislação específica, vigentes à
época do respectivo ingresso (cf. ApCív 027353-0/8-SP, 26.01.1996, rel. Des. Alves
Braga; ApCív 66.564-0/6-SP, 16.03.2000, rel. Des. Luís de Macedo; ApCív 63.096-0/8-
SP, 10.09.1999, rel. Des. Nigro Conceição).
21 O Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo é composto pelo
presidente do Tribunal de Justiça, pelo Corregedor-Geral da Justiça e pelo 1.º vice-presidente do
Tribunal de Justiça (RITJSP, art. 22).
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Este entendimento da alta cúpula do Poder Judiciário do Estado de São Paulo,
devidamente desenvolvido de forma clara e coerente com o sistema vigente, evidencia o
verdadeiro sentido da limitação da função qualificadora do registrador, que não significa
limitação do alcance da qualificação, devendo o registrador, perfeitamente, desqualificar
título judicial para ingresso no registro imobiliário sempre que este apresente
irregularidade ou omissão ou não preencha as exigências legais.
Por certo deverá o registrador ater-se às exigências legais (Lei dos Registros
Públicos, art. 205, in fine), sendo esse (ater-se às exigências legais) o limite e o alcance
da função qualificadora; não mais, nem menos, porém, com força suficiente para
conduzir a reflexão empreendida na relação entre as autoridades judiciais que decidem
contraditoriamente inter partes e os registradores cujos atos registrais produzem efeitos
erga omnes, o que chama a atenção para a distinção entre partes e terceiros.
A jurisdição do juiz no processo se refere exclusivamente às partes litigantes de
sorte que a sentença e as decisões nos autos somente afetam as partes integrantes. O
princípio da coisa julgada e a relatividade de efeitos das sentenças judiciais constituem
o fundamento desta limitação.
Por seu turno, com respeito aos terceiros que não tenham participado ou sido
notificados do pleito, a decisão judicial é res inter alios, e é precisamente nesse
momento que exsurge a atividade do registrador ao desqualificar o título judicial que
venha a afetar titulares registrais que não figuraram no pólo passivo do pleito ou não
foram convocados pelo juízo onde tramita o processo, oferecendo-lhes o registrador a
proteção registral fundada nos princípios da presunção, da fé pública e do trato
sucessivo, sob pena de flagrante maltrato ao princípio constitucional do direito à tutela
jurisdicional dos próprios direitos e interesses legítimos, sem prejuízo de que, desde
logo, no âmbito contencioso entre as partes determinadas, impere, definitivamente, a
decisão judicial.
Os princípios do direito registral brasileiro são princípios de ordem pública e
cabe ao registrador aplicá-los cogentemente a todos os casos concretos. “O registrador,
pois, não pode abdicar de seus direitos de pessoalidade e independência na qualificação,
porque, secundum quid, são também deveres a observar. A delegação do juízo
qualificador ou seu submetimento a ordens superiores concretas (note-se bem!),
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configuram, assim, violações éticas e contribuem, para a desonra profissional dos
registradores.”22
Que sentido teria o princípio da presunção registral23
se não houvesse um
controle de legalidade por parte de órgãos imparciais e especializados em matéria
registral?
Pelos efeitos que emergem do registro24
o filtro de legalidade ativado pelo
oficial por força da função preventiva do registro imobiliário deve, na medida do
possível, ser suficientemente denso para impedir a prática de um ato registral que possa
ser facilmente impugnado na via judicial por terceiros. A razão é que a força decorrente
do ato registral em sistema procedente do germânico, como o nosso, é muito forte, e
embora não seja abstrata, como o tedesco, que não permite impugnações fora dos
consentimentos formais, já que nosso sistema é causal, exigindo título pré-constituído,
deve a qualificação registral considerar todos os supostos de nulidade ou anulação,
sempre em homenagem à segurança jurídica e ao tráfico imobiliário, todavia livre de
temores nascidos de meras suposições.
Walter Ceneviva orienta que o registrador deverá sempre observar a
razoabilidade das exigências, buscando soluções “que tendam a viabilizar – e não a
impedir – o registro. As garantias inerentes ao registro imobiliário devem estar abertas a
todos”.25
22 DIP, Ricardo Henry Marques. Revista de Direito Imobiliário, 30/85.
23 O princípio da presunção, que tem como efeito a inversão do ônus da prova, desde o
art. 859 do revogado CC/1916, o qual dispunha, in verbis “presume-se pertencer o direito real à
pessoa, em cujo nome se inscreveu, ou transcreveu”, é mantido com maior ênfase no atual
Código Civil ante o enunciado do par. ún. do art. 1.245, segundo o qual o direito do verdadeiro
proprietário prevalece sempre, mesmo que o adquirente inscrito esteja de boa-fé e tenha justo
título.
24 Dispõe o art. 252 da Lei de Registros Públicos que “o registro, enquanto não
cancelado, produz todos os seus efeitos legais ainda que, por outra maneira, prove que o título
está desfeito, anulado, extinto ou rescindido”.
25 CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos comentada. 7. ed. São Paulo:
Saraiva, 1991. p. 348.
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 230
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Sempre que o título judicial apresentar irregularidade ou omissão, é
aconselhável que o registrador, sem prejuízo da entrega do título ao portador,
comunique, por ofício, à autoridade judiciária que o expediu para que essa determine o
atendimento da exigência formulada ou se proceda à suscitação da dúvida na forma do
art. 198 da Lei de Registros Públicos.
6. A suscitação de dúvida como reexame da qualificação feita pelo
registrador
Feita a qualificação do título pelo registrador, esse indicará por escrito as
exigências a serem cumpridas, quando houver. O apresentante, de acordo com o art. 198
da Lei dos Registros Públicos, não se conformando com os requisitos formulados ou
não os podendo satisfazer, poderá requerer seja o título remetido ao juízo competente,
com a declaração de dúvida, para que seja ela dirimida.
A dúvida é formulada pelo registrador, mediante o requerimento do
apresentante. Trata-se de procedimento administrativo, no qual o juiz competente
decidirá sobre a legitimidade ou não da exigência feita.26
É preciso frisar que a suscitação de dúvida é mais uma garantia de legalidade
do ato; uma confirmação da segurança e confiabilidade que o registro transmite para a
sociedade. Decorre, como já afirmamos, da observância estritamente legal dos
requisitos imprescindíveis para o regular registro.
Além desse limite para suscitação de dúvida, há um outro, que vigora em todo
o Estado de São Paulo, por força do Comunicado 535/95 da Corregedoria-Geral de
Justiça do Estado, publicado no DOJ, segundo o qual, quando for suscitada dúvida
relativa a questões primárias ou de matéria já cristalizada em reiteradas decisões
anteriores e, portanto, desnecessária, a sentença que julgar a dúvida improcedente
reconhecerá, em cada caso, o direito ao reembolso das despesas com o processamento
do recurso e honorários de advogado, se demonstrado o pagamento.
26 Idem, ibidem, p. 346.
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Portanto, o registrador deve agir estritamente em conformidade com a lei,
lembrando-se que, na verdade, quem primeiro deve observar os requisitos na expedição
do título judicial é o órgão emissor. Por serem preceitos estabelecidos em lei, devem ser
conhecidos por todos e seguidos corretamente pelo Judiciário no momento da expedição
do título ou ordem. Com razão, Nicolau Balbino Filho argumenta que “por conseguinte,
os senhores oficiais de Justiça, ao lavrarem o auto de penhora, e os senhores escrivães,
ao expedirem o mandado judicial que determina o registro ou a inscrição da penhora,
deverão atender às exigências legais acima transcritas”.27
Se observarmos atentamente a intenção da lei, o registrador nada mais faz
senão conferir os requisitos formais que por disposição legal já deveriam ter sido
seguidos pelo próprio órgão emissor do título ou ordem e num segundo momento
conferir se os dados ali constantes se coadunam com os que constam no registro, o que
também deveria ter sido feito de antemão pelas partes (CPC, art. 158), pelo juiz e pelos
serventuários do foro judicial.
Num primeiro momento, tanto a qualificação registrária com a nota de
exigência de aditamentos ou retificações bem como a suscitação de dúvida parecem
transtornos para o processo judicial e para o advogado “que padeceria nos balcões dos
cartórios”, segundo alguns. No entanto, o que se vislumbra é, ao contrário, celeridade
processual, efetividade e certeza nas relações jurídicas.
A avaliação deve ser feita não apenas no estrito âmbito do processo judicial,
mas, principalmente, fora dele, já que os efeitos de um ato inscritivo registral atingem
toda a sociedade, haja vista a natureza jurídica do ato registral, que passa a ter caráter
público.
Mesmo no âmbito do processo executivo a eficácia da qualificação e da
suscitação de dúvida se evidencia na medida em que pode evitar “transtornos” ainda
mais protelatórios, como ocorre com os embargos de terceiro, cuja demora nem se
compara com uma solução administrativa. Não é difícil compreender tal idéia, voltada
para a paz social advinda, que para todos os efeitos deve nortear o tratamento da
matéria.
27 BALBINO FILHO, Nicolau. Registro de imóveis. 8. ed. São Paulo: Atlas, 1996. p.
157.
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7. Considerações finais
O acesso ao álbum registral de títulos e ordens judiciais é o objetivo e o anseio
dos registradores brasileiros que pugnam por oferecer as garantias e o amparo do
sistema registral, evidenciados por meio da publicidade e seus efeitos, para situações
concretizadas no âmbito processual pelo Estado-juiz, ao tempo em que reverenciam os
direitos reais inscritos e mais os interesses comunitários em potencial.
Em face da modernidade das instituições jurídicas, na esteira de conquistas
democráticas que lavraram um caminho seguro para o exercício dos direitos coletivos e
individuais via legalidade e igualdade, parece-nos que não encontra mais razão de ser
qualquer tipo de antinomia entre registradores e órgãos judiciários no que tange ao
acesso dos pronunciamentos judiciais consubstanciados em documentos judiciais,
típicos ou extraordinários.
Pese, por sua importância estratégica nacional, como instrumento de
desenvolvimento econômico, ser o Registro de Imóveis na atualidade mais um tema de
economia do que um tema de Justiça, visto ser vital para a estabilidade da cadeia
produtiva interna e de mercado, bem como para diminuir a desconfiança internacional,
resultando em maiores investimentos em nosso País, o sistema, por vocação, sempre
esteve a serviço da própria administração da Justiça, à medida que, pelo ato inscritivo,
complementa a efetividade da resolução judicial e a projeta erga omnes.
O tema exige uma monografia, porém, como contribuição, apresentamos esses
breves apontamentos à elevada apreciação dos ilustres registradores de imóveis e das
dignas Autoridades Judiciais presentes ao II Encuentro Iberoamericano sobre Registro
de la Propiedad y Tribunales de Justicia.
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9.
QUALIFICAÇÃO REGISTRAL DE TÍTULOS JUDICIAIS
E CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
SÍLVIA DIP
Advogada em São Paulo
Propósito deste pequeno texto é o de incursionar em sucinta análise da
autonomia do registrador contrastada por ordens judiciais que, recusando-lhes, ainda
que de modo implícito, o exercício da qualificação registral, indicam a vizinhança de
crime de desobediência.
Tem sido comum recebam os registradores ofícios e mandados judiciais, com
exigência da prática inquestionada de registros e averbações sob pena de crime de
desobediência e ameaça de medida de prisão.
A autonomia registral, atributo legal de todo registrador, está posta em xeque.
Ao registrador de imóveis, delegatário de serviço público (art. 236, da CF) e
profissional de direito (art. 3.º, da Lei 8.935/94), a lei conferiu independência no
exercício de suas atribuições (art. 28, da Lei 8.935), a ele incumbindo o direito e dever
de qualificação dos títulos apresentados para fins de registro, incluídos os títulos
judiciais, submetidos a possível revisão administrativa (art. 198, da Lei 6.015/73, e art.
30, XIII, Lei 8.935).
Ao impor-se o cumprimento da ordem de registro sob pena de desobediência,
impede-se ao Oficial de Registro o exame das formalidades registrais, de que é ele
guardião, guardião que atua até mesmo sob o peso de tríplice responsabilidade: civil,
penal e administrativa (arts. 22 a 24 e 31 a 36, da Lei 8.935) e que, em última análise, é
instrumento de garantia de um direito fundamental de primeira geração, o direito de
propriedade (art. 5.º, caput, da CF).
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 234
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Já isso seria bastante para, em observância do devido processo legal para o
registro de um título, preservar-se a faculdade de o registrador qualificar negativamente
esse título, sem a ameaça de incriminar-se pelo só cumprimento de uma de suas legais
funções jurídicas.
Nessa linha, num julgado recente do Egrégio Supremo Tribunal Federal, de
que foi relator o Min. Marco Aurélio, está assim ementado:
“O cumprimento do dever imposto pela Lei de Registros Públicos, cogitando-
se de deficiência de carta de adjudicação e levantando-se dúvida perante o juízo de
direito da vara competente, longe fica de configurar ato passível de enquadramento no
art. 330 do CP - crime de desobediência -, pouco importando o acolhimento, sob o
ângulo judicial, do que suscitado” (HC 85.911/9-MG).
Vai-se além, entretanto, porque esses títulos judiciais ferem também a lei penal
material.
O tipo objetivo do crime de desobediência inscrito no artigo 330, do CP
estampa: “Desobedecer a ordem legal de funcionário público”, e está inserido no
Capítulo II do Título XI da Parte Especial desse Código, capítulo que se denomina “Dos
crimes praticados por particular contra a Administração em geral”.
Trata-se de crime em que o sujeito ativo é o extraneus, a que se só pode
concorrer como co-autor ou partícipe o funcionário público na definição do Código
Penal (art. 327, caput), conceito que abrange o registrador de imóveis.
No direito penal, o princípio da reserva legal exige que os textos normativos
sejam interpretados sem ampliações ou equiparações por analogia, salvo, talvez, quando
in bonam partem.
O registrador público e o tabelião são agentes públicos (art. 236, da CF), e,
para os efeitos penais, funcionários públicos (art. 327, caput, do CP). Disso deriva a
admissibilidade de serem eles sujeitos ativos dos crimes funcionais (art. 312 a 326, do
CP).
No entanto, o delito de desobediência, previsto no art. 330 do CP, é crime
contra a administração pública que só pode ser praticado por particular. Assim,
enquanto o Capítulo I do Título XI dessa Parte Especial cuida dos crimes praticados por
funcionário público contra a administração em geral, o Capítulo II trata dos crimes
praticados por particular contra essa mesma administração em geral. Como é nesse
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 235
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Capítulo II que se encontra a previsão normativa do delito de desobediência, assim o
sujeito ativo desse crime só pode ser o particular ou o funcionário público atuando fora
de sua função.
Esse entendimento é comum na doutrina e na jurisprudência brasileiras (assim
sustentam Nélson Hungria, Magalhães Noronha, Fabrinni Mirabete, Damásio de Jesus;
nesse mesmo sentido, mais recentemente, a Revista de Direito Imobiliário publicou
artigo de Ricardo Dip, então Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo).
Nesse diapasão, recolhe-se da jurisprudência:
“O crime de desobediência somente é praticado por agente público quando este
está agindo como particular. CP, art. 330, II - O prefeito municipal que, quando no
exercício de suas funções, deixa de cumprir ordem judicial, não comete crime de
desobediência e, sim, o denominado crime de responsabilidade, tipificado no art. 1º,
XIV, do Dec-lei 201/67, que é, na verdade, crime comum (Habeas Corpus 69.428,
70.252 e 69.850)” (HC 76.888, relatado pelo Min. Carlos Velloso, na 2.ª T. do Egrégio
STF).
“O paciente –prefeito municipal, agindo em tal condição- não cometeu o delito
capitulado no art. 330 do CP, ilícito previsto no Título XI, no Capítulo II, que cuida dos
crimes praticados por particular contra a administração” (HC 71.875-2, relatado pelo
Min. Francisco Resek, na 2.ª T. do Egrégio STF).
“Crime de desobediência: só excepcionalmente tem por sujeito ativo
funcionário público (...). Acresce a circunstância de filiar o Código Penal, a espécie
delitiva em causa, ao gênero de condutas cujo sujeito ativo é um particular” (HC
64.142-3, relatado pelo Min. Célio Borja, na 2.ª T. do Egrégio STF).
“(...) atipicidade do delito de desobediência, quando em caso omissão de ato
funcional de servidor público” (HC 5043, relatado pelo Min. José Dantas, na 5.ª T. do
Egrégio STJ).
“(...) o crime de desobediência definido no art. 330 do CP só ocorre quando
praticado por particular contra a Administração Pública, nele não incidindo a conduta
do Prefeito Municipal, no exercício de suas funções. É que o Prefeito Municipal, nestas
circunstâncias, está revestido da condição de funcionário público” (RO em HC 7990,
relatado pelo Min. Fernando Gonçalves, na 6.ª T. do Egrégio STJ).
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“Os dirigentes de entidade integrante da Administração Pública Indireta, no
exercício de suas funções, não cometem o crime de desobediência, pois tal delito
pressupõe a atuação criminosa do particular contra a Administração” (RO em HC 9.066,
relatado pelo Min. Vicente Leal, na 6.ª T. do Egrégio STJ).
“O funcionário público, atuando nessa condição, não pratica crime próprio de
particular contra a Administração Pública” (RO em HC 5.327, relatado pelo Min. Luiz
Vicente Cernicchiaro, na 6.ª T. do Egrégio STJ).
No mesmo sentido: Inquéritos 1.757-4 e 1.931-3, decididos pelo Min. Nelson
Jobim, do Egrégio STF; Petição 1.999, decidida pelo Min. Néri da Silveira; Petição
3.081-8, decidida pelo Min. Carlos Velloso; RHC 9.189, relatado pelo Min. Vicente
Leal, na 6.ª T. do Egrégio STJ; HC 1.294, relatado pelo Min. Luiz Vicente
Cernicchiaro, na 6.ª T. do Egrégio STJ.
Outra questão que se põe, e que também será brevemente analisada, é a da
adequação típico-objetiva do crime de prevaricação em caso de cumprimento de ordem
judicial que se saiba ilícita.
Prevaricar é retardar ou deixar de praticar, o funcionário público,
indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para
satisfazer interesse ou sentimento pessoal (art. 319, do CP).
Ato de ofício é o que se “compreende nas atribuições do funcionário, ou em
sua competência, ou seja, ato administrativo ou judicial” (Magalhães Noronha, Direito
Penal, 1995, v. IV, p. 258). O dolo específico desse delito é a satisfação de interesse ou
sentimento pessoal: “Não haverá este crime se o agente retarda ou omite ato de ofício
que, se praticado, poderia acarretar a responsabilidade penal ou administrativa dele
próprio” (Delmanto, Código Penal Comentado, 2002, p. 637).
Desse modo, negar o registro porque o título aflige a legalidade, crime não é,
embora possa sê-lo praticar um registro, com ilegalidade admitida, para satisfazer
interesse pessoal.
A propósito, já se decidiu que os mandados judiciais devem respeitar a
autonomia registral:
“Oficial de Cartório de Registro de Imóveis – Crime de prevaricação –
Impossibilidade de atendimento de ordem judicial – Determinação para substituir
matrícula em área apurada em memorial – Cumprimento de dever de ofício – Dúvida
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levantada – Habeas corpus concedido para trancar inquérito policial” (RT 719/426,
Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo).
De qualquer forma, ainda que fundada fosse alguma tipificação penal para o
ato do registrador, em nenhuma o descumprimento da ordem judicial poderia levar à
prisão em flagrante do registrador. É que o crime de desobediência, regido pela Lei
9.099/95, proíbe a prisão em flagrante no caso de promessa de comparecimento do
suposto infrator ao Juizado (art. 69, par. único). Por outro lado, o crime de prevaricação
tem o procedimento dos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos (art. 513
e seguintes, do CPP) que exige a notificação prévia do acusado para apresentar resposta,
a fim de evitar queixas infundadas contra os servidores públicos, e, por analogia in
bonam partem, são-lhes aplicados os benefícios previstos na Lei 10.259/01 (analogia
essa defendida por, entre muitos outros, José Renato Nalini, Alberto Silva Franco,
Damásio de Jesus, na linha de firme jurisprudência, de que discrepam Volney Corrêa de
Moraes e Ricardo Dip).
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10.
SÃO TAXATIVOS OS ATOS REGISTRÁVEIS?
RICARDO HENRY MARQUES DIP
Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Acadêmico da Real de Jurisprudência e Legislação de Madrid.
1. A adoção de um aforismo, em que pese às suas vantagens gráficas e
expressivas, traz consigo, freqüentemente, riscos de simplificação. E, o que é mais
temível, de implicitação de juízos a que não se dirigia a referência tópica.
Não se trata só de aludir a conhecidas equivocações históricas. Por exemplo,
como a que se acha na divertida suspeita de que o princípio da legalidade penal vem do
direito romano. Ou melhor: teria forçosamente de vir dali, porque em Roma se falava o
latim e em latim se diz até hoje nullum crimen, nulla poena sine lege. E, no entanto,
esse travestimento latino do princípio da legalidade não vem dos tempos antigos. Não se
deve a Paulo ou a Modestino, nem ao jus honorarium romano, senão que a Feuerbach, o
penalista.
Ainda caberia lembrar a persistente boutade que se encontra em supor que as
constituições – ao menos as que, por uns tantos critérios, se dizem democráticas (com
perdão) - são tributárias, na realidade histórica, da Magna Charta com que, em 1215, se
tentou pôr freios à jurisdição de João Sem Terra sobre os nobres e os vassalos maiores.
Tanto é assim, dizem uns – e apontam a prova -, que as constituições atuais são
comumente designadas pela expressão Magna Carta. Tudo o que basta, enfim, e com
um sólido critério ao que se vê, para fazer prova de uma realidade histórica. E, sem
embargo, foi em 1188, em terras da Hispânia, que Dom Alfonso IX – dominus
Aldefonsus Rex Legionis et Galletie – jurou a primeira constituição dessas que, por
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agora, se nomeiam democráticas. Com ela jurou junto o princípio da legalidade penal. É
o que se lê no item XV de seu juramento às Cortes de León e Galícia.
O que mais desconforta os aforismos - cujo uso, em todo caso, não se deve
descartar simpliciter, até porque um aforismo vem pronto em socorro dizer que abusus
non tollit usum – não é, pois, como ficou dito, o risco de uma precipitação referencial-
histórica. Mas o da simplificação do objeto de seu conceito e o muita vez implícito
desbordamento de sua extensão, com indissociável reflexo, portanto, em sua
compreensão. Não há forma de evitar, já se fez ver desde Aristóteles, o relacionamento
inverso entre essas propriedades lógicas, extensão e compreensão.
2. Faz alguns anos, no ambiente do direito registral brasileiro, difundiu-se,
calcado patentemente numa conhecida formulação processual, o aforismo quod non est
in tabula, non est in mundo. Sua função originária – a exemplo da matriz de que
copiado: quod non est in acta, non est in mundo – era de caráter procedimental, voltado
à operatividade da qualificação registrária.
Não era assim por acaso. Quando se afirma a inclusão do registro público no
plano principaliter de um direito formal, põe-se prontamente sua familiaridade no
campo do processo. Não falta, é certo, que se divida cada espécie do direito registral em
substantivo e adjetivo, ou, noutros termos, em material e formal. Mas, para essa
classificação, no plano material – primeiro, aqui, considere-se o direito do registro
imobiliário, registro público de que se disse o ser por antonomásia -, tem-se de importar
realidades e noções versadas principalmente em outros segmentos jurídicos. Imóvel,
fatos jurídicos – e toda sua panóplia: obrigações, negócios, contratos, vícios, nulidades
etc. -, relações jurídicas, pessoa. O mesmo se passa, noutro exemplo, com o direito do
registro civil das pessoas naturais. Nascimento, morte, emancipação, casamento,
adoção, tudo isso é matéria primeira de outros ramos do direito, que somente num
aspecto se põem à frente para o procedimento registral e nessa perspectiva passam a
interessar-lhe. Fazem-se seu objeto, mas eram realidades que, primeiro e diretamente,
eram e seguem sendo objeto próprio de um direito material logicamente anterior. O
registro é essencialmente um processo, em sentido lato. Da mesma sorte que a ninguém
ocorrerá que, versando a ação de despejo, o processo civil seja o segmento científico
mais apropriado para tratar do instituto da locação. Da mesma forma como não se dirá
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 240
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que, cuidando de desconstituir, numa revisão criminal, a condenação de um
questionável homicídio à pena privativa de liberdade, o processo penal seja o campo do
saber jurídico mais azado para estudar o crime de homicídio. Assim também, o fato de
registrar-se uma venda e compra ou um nascimento, não faz do direito registral a esfera
propícia para estudar contratos e bens da personalidade.
Quando se disse, originariamente, quod non est in tabula, non est in mundo,
queria dizer-se que o registrador na sua função primordial de decidir sobre a inscrição
concreta de um título, está limitado ao que se acha no registro. O registro é seu mundo
oficial. Foi logo depois necessário esclarecer que o próprio título em via de registração
se engastava, enquanto tal, no aforismo. Daí a versão explicitada quod non est in tabula
et in instrumentum, non est in mundo. Não bastou essa explicitação de sentido, porque
pronto se fez interpelante a possibilidade de que conflitasse o conteúdo de títulos
(assim, no plural). É bem verdade que, num e noutro caso, já se achavam as idéias
ajustadas à expressão tabula, mas a resistência da práxis – melhor: a obstinação da
práxis – induzia à explicitação de sentido. Em vez de instrumentum, instrumenta. Ficou
assim: quod non est in tabula et in instrumenta, non est in mundo.
Fez-se largo período de tréguas, ao cabo do qual parece se ter dado uma
implícita e variada substantivização do conceito exprimido no aforismo. A tópica
originária resumia-se ao plano procedimental, não se dirigindo mais que a sintetizar um
estatuto epistêmico para o registrador. Passou agora a perspectivar-se uma referência
mais amplificada e própria do direito material. Em rigor, se se considera ainda o
aforismo, já não se pensa em quod non est in tabula, non est in mundo, mas
variadamente numa espécie de outros juízos inteiramente estranhos à estimação
originária. Do tipo quod non est in mundo, non est in tabula, talvez non est in tabula,
quia non est in mundo, ou mais longe: non est in mundo, quia non est in tabula.
Algumas dessas variantes tópicas substantivizadas - ditas em vernáculo,
porque, no fim de contas, causa (non) locuta, Roma finita – suportaria a seguinte
esquematização argumentativa:
- não há direitos reais relativos a imóveis, num sistema constitutivo, qual o
brasileiro, que os objetos de registro;
- de onde segue que o registro imobiliário está dirigido à inscrição de direitos
reais;
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- e porque os mesmos direitos reais, sabidamente, são elencados no direito
brasileiro em numerus clausus (um pequeno latim);
- ergo, os fatos suscetíveis de registro estão igualmente previstos de modo
taxativo na Lei de Registros Públicos.
3. Quanto à primeira proposição – não há direitos reais relativos a imóveis,
num sistema constitutivo, qual o brasileiro, que os objetos de registro -, distingue-se. Se
se está a referir a direitos reais imobiliários constituídos por negócios inter vivos,
concede-se. Em âmbito mais geral, exclusor da sucessão hereditária, das divisões, da
usucapião e das acessões, nega-se. E prova-se, brevitatis causa, a distinção: basta ler o
que dispõem os arts. 1.572, 631 e 530, incs. II, III e IV, todos do Código Civil
brasileiro.
Quanto à segunda proposição, à margem de não ser conseqüente do aparente
entimema – o registro imobiliário está dirigido à inscrição de direitos reais -, também se
distingue. Que assim o seja ut in pluribus, concede-se. Que o seja sempre, nega-se.
Prova-se a distinção: basta cogitar do fato de que são registráveis, no direito brasileiro
posto, as locações de prédios, as penhoras, os arrestos e os seqüestros de imóveis, as
convenções antenupciais, as citações – maxime as relativas a ações pessoais
reipersecutórias relativas a imóveis, os dotes (art. 167, inc. I, n. 3, 5, 12, 21 27, da Lei
6.015, de 31.12.1973). Mas a locação, a penhora, o arresto, o seqüestro, o pacto
antenupcial, a citação e o dote, nunca se pensou que, no direito nacional, fossem direitos
reais. Uma coisa, por certo, é admitir que o registro imobiliário está voltado
tendencialmente a albergar direitos reais – seja para constituí-los ou não; coisa diversa é
dizer que o registro predial somente se dirija a publicar direitos reais.
No que concerne à terceira proposição – os mesmos direitos reais,
sabidamente, são elencados no direito brasileiro em numerus clausus -, concede-se juxta
modum. É certo que se adotou no direito pátrio o critério da taxatividade dos direitos
reais, mas cabe ao intérprete dizer quais dos direitos alinhados são reais e quais não o
são, o que, de conseguinte, afasta um critério de oficialidade literal (a direta doutrina do
sens clair normative).
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A proposta de conclusão sub examine – os fatos suscetíveis de registro estão
igualmente previstos de modo taxativo na Lei de Registros Públicos – não se infere das
premissas. Desde o plano estritamente lógico-formal não se pode extrair da taxatividade
dos direitos reais uma correlata enumeração exaustiva dos atos suscetíveis de
registração predial. Apropositam-se a isso alguns tantos fundamentos. Primeiro, o de
que o registro imobiliário, como visto, destina-se a acolher títulos não-referentes a
direitos reais. Segundo, o de que a taxatividade dos direitos reais não implica restrição
conseqüente dos títulos relativos a esses direitos: ter-se-á notado acaso que, na mescla
de uma terminologia criticável, o art. 167 da vigente Lei de Registros Públicos, tratando
do registro em sentido estrito, não se refere expressamente à propriedade? Mais além:
não se diz que espécie de título permitiria o registro – por sinal, declarativo – de
aquisição imobiliária por aluvião (arts. 530, II, 536, III, e 538, CC).
Isso não é nenhuma defectividade da normativa registral, mas próprio de um
sistema processual lato sensu, que, por seu caráter fundamentalmente instrumentário, se
proporciona mediante uma formulação de subsídio à realização do direito material.
Negar que se possa registrar um título no ofício imobiliário porque não no prevê
expressamente inscritível a regulativa específica ou lei extravagante é, em síntese,
desprezar o caráter instrumental do registro e, no fim e ao cabo, denegar a realização de
um direito que, recognoscível na ordem substantiva, não poderia já efetuar-se. Seria,
guardadas as distinções, o mesmo que dizer que o locador tem direito a reaver o imóvel
de um locatário inadimplente, e negar-lhe toda possibilidade de manejar uma ação de
despejo.
Nem sempre se adverte com clareza que o direito real é uma atualização que
depende de uma potência, scl., de um título, e que esse título é de direito obrigacional.
Ora,
- se o registro imobiliário atualiza o título para freqüentemente, constituir um
direito real;
- se esse título, no sistema obrigacional vigente, é resultado possível de uma
autonomia de vontades contratantes;
- esse título, não menos, é alheio de exigências tipológicas e restritivas;
tem-se de admitir que, longe de afirma-se a taxatividade dos atos suscetíveis de
registro imobiliário, deve antes e ao revés dizer-se que todos os atos aos quais, sem
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vícios, se possa atribuir potencialidade para constituir (ou modificar) direitos reais
imobiliários são suscetíveis de registração predial.
Há possíveis explicações para o equívoco de que se está a tratar. Primeira, a de
que a idéia de um sistema formal de garantias – assim, o registro público – induz um
critério formal de compreensão e de interpretação. O engano está em pensar que esse
critério opera na seleção dos atos registráveis, quando o campo de sua atuação está antes
internalizado no procedimento registral. De toda sorte, que haja mais ou menos atos
suscetíveis de registração, não é isso que torna mais ou menos rígido um sistema de
segurança jurídica. Segunda, a de que, pensam alguns, se registram direitos, e ainda por
cima direitos reais. Mas a verdade é que não se registram direitos, e sim fatos jurídicos
para publicar uma situação jurídica. Terceira, a de que alguns fatos, se inscritos,
implicariam um entrave persistente ao tráfico jurídico (por exemplo, o protesto contra a
alienação de bens). Mas aqui é preciso distinguir o que é um impedimento pontual e,
para mais, transitório, do que configura um obstáculo essencial: o protesto contra
alienação de bens só não pode ser registrado porque falta ao sistema brasileiro a
metódica da inscrição provisória; contasse o direito nacional com essa técnica, a medida
de protesto não só poderia, mas, como é patente, deveria ser registrável. Por agora, o
julgamento das hipóteses de inscrição, inclusa a do protesto, deve ser tomado à luz do
princípio mais principal do registro: a segurança jurídica.
Não se trata, é bem verdade, de afirmar quod tabellio vel judex placuit, tabula
habet vigorem, mas tampouco se pode chegar a dizer quod judex vel tabellio non
placuit, non est in tabula et non est in mundo.
4. Como se não fora pouca essa extensão da tópica inicial, agora tem-se outra
nascente: uma espécie de propter est in tabula, ergo est in mundo.
Não se trata – o que não estaria mal – de vincular essa derivação do aforismo
fundamental à hipótese prevista no art. 252 da Lei 6.015, de 1973 (“O registro,
enquanto não cancelado, produz todos os seus efeitos legais ainda que, por outra
maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido”). É
intrigante essa fórmula redacional e surpreende que um ato se desvincule tão aberta,
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mas tão sabiamente de sua potência. Nesse caso sim: porque está no registro, está no
mundo (est in mundo, quia est in tabula).
Coisa muito diversa é que se pretenda que estando algo registrado se torne
direito real. Ou o que se dá na mesma: o que é suscetível de registro, direito real deve
ser. Com símile argumentação e inteira justificativa interna, converteremos o dote, a
locação, as citações, as penhoras, seqüestros e arrestos em direito real.
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11.
PROCESSO ADMINISTRATIVO ORDINÁRIO NO JUÍZO CORREGEDOR
VICENTE DE ABREU AMADEI
Juiz auxiliar da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Do processo (gênero) ao processo administrativo
(espécie) – 3. Da síntese elementar do processo administrativo: 3.1 O extrato do direito positivo;
3.2 O extrato da doutrina e da jurisprudência; 3.3 A suma prática do processo administrativo:
3.3.1 Oficialidade; 3.3.2 Flexibilidade formal; 3.3.3 Controle administrativo e autotutela; 3.4 A
chave hermenêutica e o primado do direito – 4. Do processo administrativo no Poder Judiciário
– 5. Do processo administrativo no âmbito do Juízo Corregedor – 6. Do processo administrativo
especial referente ao registro de imóveis – 7. Do processo administrativo ordinário de registro
predial quanto ao objeto: 7.1 Processo de requalificação por dissenso sobre ato de averbação;
7.2 Processo de reexame de requerimento indeferido pelo registrador: abertura de matrícula,
certidão, informação etc.; 7.3 Processos de cancelamento, restauração, bloqueio e levantamento
de bloqueio; 7.4 Processo de dispensa de registro especial de parcelamento do solo; 7.5
Processo de consulta em geral e feitos diversos de caráter normativo – 8. Peculiaridades do
processo administrativo ordinário de registro predial quanto à forma – 9. Conclusão.
1. Introdução
É preciso compreender que este estudo encontra-se no foco do espírito
eminentemente prático que norteia o Projeto Educartório,1 existente no Estado de São
Paulo desde 2006, a partir de esforços conjugados de magistrados, registradores e
notários, por via da Corregedoria Geral da Justiça e de entidades representativas dos
delegatários, com escopo de agregar capacitação pessoal, fomentar eficiência e
1 Cf. <www.educartorio.com.br>.
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aperfeiçoamento na prática notarial e de registro, mediante encontros, palestras,
seminários, mesas-redondas... Tudo, ressalte-se, com feição pedagógica direcionada,
sobretudo, à práxis, ao saber técnico, sem grandes incursões na esfera especulativa e
prudencial dos saberes. Daí, por exemplo, a prevalência temática em matéria de
organização dos serviços extrajudiciais, administração de cartórios, atendimento ao
público, técnicas de registros e notas, especialmente perante os atuais desafios e a
realidade concreta do cotidiano cartorário.
Agora, o XIII Educartório, em sua edição especial, sem perder o seu norte
elementar, abre o leque para o trato da matéria concernente à segurança jurídica formal
não só na esfera dos serviços delegados, mas também no âmbito do Poder Judiciário,
com atenção especial ao caráter procedimental de alguns temas de registro predial.
Assim, este texto, que busca refletir e desenvolver aula ministrada naquela
edição especial do Educartório, está centrado na dimensão prática dos processos
administrativos que são do trato de juízes corregedores e da Corregedoria Geral da
Justiça. Cuidamos, pois, (a) do processo como instrumento para efetivar direitos; (b) dos
processos administrativos como ferramentas no universo da Administração Pública; e
(c) dos processos administrativo-judiciais, enfim, sob a perspectiva de sua compreensão
elementar e de suas peculiaridades, no único esforço de tentar contribuir àqueles que
operam direta ou indiretamente nesta órbita instrumental.
2. Do processo (gênero) ao processo administrativo (espécie)
De vários ângulos é possível visualizar o tema do processo e, daí, o do
processo administrativo: como relação jurídica dinâmica,2 como encadeamento
congruente de atos preparatórios de uma decisão final,3 como instrumento de garantias
2 “Assim, o processo administrativo é relação jurídica dinâmica, coordenada por normas
que estabelecem vínculo de segundo grau entre os sujeitos que dela participam” (Moreira,
Egon Bockmann. Processo administrativo. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 60). 3 É a ótica do processo enquanto iter preparatório de decisões, “atos coordenados para obtenção de
decisão” (Hely Lopes Meirelles. Direito administrativo brasileiro. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p.
559), ou ainda, no âmbito administrativo, como “sucessão itinerária e encadeada de atos administrativos
tendendo todos a um resultado final e conclusivo” (Celso Antonio Bandeira de Mello. Curso de direito
administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 446), comumente invocada para expressar a
acepção ampla de processo e de processo administrativo (cf. José Cretella Jr. Prática do processo
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 247
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de direitos individuais, de tutela dos administrados entre si e diante da Administração4
etc.
Diante do fim eminente prático deste estudo, prefiro, nesta primeira
abordagem, enfatizar apenas dois ângulos de visão:
a) primeiro, a utilidade de compreender o processo a partir de sua raiz
etimológica – de “processu(m), cognata do verbo procedere”, que “significa ir para
diante, marchar para frente, avançar, progredir”5 –, pois ela conduz a idéia de processo
como meio ou caminho dinâmico a determinado fim ou meta (método), como “forma,
instrumento, modo de proceder”6 na mira de determinado alvo, ao qual se projeta para
atingir;
b) segundo, a relação entre gênero e espécie que há entre processo (e direito
processual) e processo administrativo (e direito processual administrativo).
Francesco Carnelutti, compreendendo o processo não apenas como “mutação
da realidade que se concretiza por uma sucessão de fatos causalmente vinculados”, mas,
sobretudo como “um método para a formação ou para a aplicação do direito”, não deixa
de indicar o fim, a meta ou o alvo a que está direcionado, pois aí reside seu sentido, sua
razão de ser: a coisa justa e certa, promotora da paz; entenda-se: não se almeja qualquer
resultado, mas o “bom resultado”, ou seja, aquele em que “a justiça deve ser sua
qualidade superior ou substancial” e “a certeza, sua qualidade exterior ou formal”..7
Assim, também o processo administrativo não pode ser compreendido fora da meta da
res justa e certa, observadas, obviamente, as peculiaridades próprias do direito
administrativo em que se encontra inserido (agente público competente, finalidade no
interesse público fixado em lei etc.).
administrativo. 5. ed. São Paulo: RT, 2006. p. 45; Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Direito administrativo.
20. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 576 e 578).
4 “Hoje, muito mais que um iter para a produção dos atos administrativos, o processo administrativo é um
instrumento de garantia dos administrados em face de outros administrados e, sobretudo, da própria
Administração” (Adilson de Abreu Dallari; Sérgio Ferraz. Processo administrativo. 2. ed. São Paulo:
Malheiros, 2007. p. 25). 5 José Cretella Jr. Op. cit., p. 28. 6 Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Op. cit., p. 576. 7 Instituições do processo civil. Trad. Adrián Sotero De Witt Batista. São Paulo: Classic Book, 2000. p.
72.
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Por outro lado, Nelson de Souza Sampaio, com didática, destaca que no
“gênero amplo do direito processual”, que “revela o caráter dinâmico do ordenamento
jurídico”, podemos identificar três ramos: o do processo legislativo, que “diz quem
participa e como deve participar na formação dos atos legislativos”; o do processo
judiciário, subdividido em diferentes sub-ramos (v.g., processo eleitoral, processo civil,
processo penal, processo trabalhista), que “indica quais os órgãos que atuam e como
devem atuar na edição de atos jurisdicionais”; o do processo administrativo, “que define
os órgãos competentes para emitir os atos administrativos e a forma de sua emissão”..8
Este modo simples de compreender o fenômeno amplo do processo estatal9 no
direito, atrelando seus maiores ramos a cada um dos poderes da República (Legislativo,
Judiciário e Executivo), para, então (e só então), chegar a cada um de seus sub-ramos, é,
em rigor, não só de bom proveito didático, mas também encerra importante
compreensão do sistema jurídico formal, descortinando significativas e elementares
conseqüências, que o exame da prática dos processos administrativo-judiciais revela ser
de grande utilidade.
Processo, pois, neste enfoque, é instrumento ou meio para se chegar a
determinado fim: na órbita legislativa, meio à formação dos atos legislativos, pelo
exercício da função legiferante; no âmbito jurisdicional, instrumento à realização da
coisa justa e certa, que se deve expressar em provimentos jurisdicionais, pela função
jurisdicional; na esfera administrativa, iter à promoção da coisa justa e certa, que se
deve expressar em decisões e atos administrativos, pela função administrativa. Tudo,
necessariamente, no quadro finalístico maior de direcionamento ao bem comum, que
deve orientar todo movimento estatal.
É realmente importante a identificação desses três ramos do direito processual
estatal, uma vez que cada um deles tem “vida normativa própria e independente, bem
como finalidades distintas, que justificam a impossibilidade de aplicação de uma norma
processual destinada a um ramo do direito processual a outro ramo do direito
8 O processo legislativo. São Paulo: Saraiva, 1968. p. 2. Maria Sylvia Zanella Di Pietro também destaca
essa “primeira classificação, separando, de um lado, o processo legislativo, pelo qual o Estado elabora a
lei, e, de outro, os processos judicial e administrativo, pelos quais o Estado aplica a lei” (op. cit., p. 576). 9 Não se ignora que, além dos processos “estatais”, há os “não-estatais”, “conforme sirvam ao exercício
do poder pelo Estado ou por outra entidade” (Cândido Rangel Dinamarco, A instrumentalidade do
processo, 2. ed., São Paulo: RT, 1990, p. 83-84, com referência à doutrina de Fazzalari). Todavia, para o
fim a que se destina este trabalho, não há razão para ir além dos processos estatais.
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 249
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processual”, ou, ao menos, sem o necessário “temperamento”..10
Assim, diante da
disciplina jurídica específica de cada ramo e dos fins diversos, seus princípios e
comandos não se encontram em vasos comunicantes: não autorizam, em regra,
interpretação extensiva e integração por aplicação analógica de instituto e de norma
jurídica de um ramo ao outro, salvo situações excepcionais, como a de lacuna “que
possa culminar com a privação dos direitos protegidos pelo due process”..11
Quem pensa aplicar norma de processo civil para o processo legislativo?
Alguém já viu agravo de instrumento no trâmite de um projeto de lei? Recurso especial
ou extraordinário contra decisão do Tribunal de Impostos e Taxas? Portaria de juiz para
dar início ao processo penal?
É, pois, óbvio e da lógica jurídica que não há como unificar o processo estatal,
desconsiderando cada um de seus ramos. No entanto, se assim é, por que, então, busca-
se, com tanta freqüência, aplicar institutos, recursos e regras próprias do processo civil,
em processo administrativo do Juízo Corregedor, Permanente e Geral, e até em
processos administrativos de tramitação perante os registradores imobiliários?
É preciso, pois, logo na saída deste estudo, separar essas esferas, porque suas
bases e fins são completamente distintos, consignando-se que, quando não se tem
claramente formada aquela lição elementar – de que os três ramos do direito processual
estatal, em regra, não se comunicam -, desajustes, na prática, ocorrerão. E, então, os
erros serão freqüentes, sobretudo, quando se está no âmbito do Poder Judiciário, sem a
adequada compreensão de que lhe cabe exercer não apenas sua atividade típica
(jurisdicional), mas também atividades atípicas (como a de fiscalização das serventias
extrajudiciais, de caráter administrativo).
10 Decisões administrativas da Corregedoria Geral. São Paulo: RT, 1992. n. 94, p. 226: caso de
inaplicabilidade, em processo administrativo, das normas insertas nos arts. 84 e 246 do CPC, ou, ao
menos, “com o mesmo rigor de aplicabilidade que elas têm no processo civil, sem o temperamento que se
exige em processo administrativo”. 11 Egon Bockmann Moreira, após lembrar que o art. 2.º, parágrafo único, I, da Lei 9.784/99, vincula a
atividade processual administrativa à “atuação conforme à lei e o direito”, o que “dá conteúdo específico
ao princípio do devido processo legal”, destaca, para a “hipótese de não existir norma legal expressa e a
Administração tomar iniciativa que possa culminar com a privação dos direitos protegidos pelo due
process”, o dever de aplicar “extensiva ou analogicamente, as leis processuais em vigor”, tal como as
regra de processo civil em “casos de discussão a respeito de direitos disponíveis do particular –
propriedade, contratos etc.” e as de processo penal “quando o processo envolver a aplicação de
penalidades contratuais ou funcionais” (op. cit., p. 284-285 e nota 237). José Cretella Júnior alude à
analogia no direito administrativo disciplinar (op. cit., p. 96 e ss.).
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É certo que há um núcleo comum principiológico elementar de direito
processual, e, por isso, não se pode deixar de reconhecer um “sistema de conceitos e
princípios elevados ao grau máximo de generalização útil e condensados indutivamente
a partir do confronto dos diversos ramos do direito processual”, que permite configurar
a “teoria geral do processo”;12
todavia, isso não autoriza, por si, unificação dos distintos
ramos nem a quebra sistemática dos parâmetros normativos deles. É verdade, ainda,
que, também em sede do Juízo Corregedor, há alguma aplicação analógica, como ocorre
com a reabilitação da pena administrativa;13
todavia, isso não afasta seu caráter
excepcional.
Vale a pena, então, sublinhar, com Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que “cada
um dos processos estatais está sujeito a determinados princípios próprios, específicos,
adequados para a função que lhes incumbe. Não podem ser iguais o processo legislativo
e o processo judicial, e um e outro não podem ser iguais ao processo administrativo”
(op. cit., p. 576).
3. Da síntese elementar do processo administrativo
Fixada a primeira lição prática de que processo administrativo é caminho, iter
dinâmico, direcionado a fim ou meta própria, com incidência de princípios e normas
jurídicas específicas, no quadro da função pública – sem confusão, pois, com disciplina
de outros ramos do processo estatal, incluso o do processo judiciário (civil, penal,
trabalhista etc) –, importa destacar, em breve síntese, os seus traços essenciais, antes de
mergulhar em seu trato no âmbito do Poder Judiciário.
12 Cândido Rangel Dinamarco. Op. cit., p. 76. 13 “Nada obstante a ausência de previsão legal, a tradição desta Egrégia Corregedoria Geral da Justiça
consolidou entendimento de que, por aplicação analógica, o instituto de direito penal da reabilitação (arts.
93 a 95 do CP) comporta transposição ao direito administrativo-disciplinar dos notários e registradores,
“diante da semelhança (não identidade) que há entre a punição penal e a punição administrativa,
especialmente no que tange à sua finalidade corretiva do comportamento agente punido” (v.g., Decisões
administrativas da Corregedoria Geral, São Paulo: RT, 1992, n. 162, em que consta a referência histórica
aos precedentes). Após a edição da Lei 8.935/94, perdurou o mesmo entendimento, que consta com
previsão nas Normas do Pessoal das Serventias Extrajudiciais, para reabilitação de penas disciplinares de
repreensão, multa e suspensão (Provimento CG 5/96, Capítulo V, itens 11 e seguintes) e não faltaram
deferimentos de reabilitações de reprimendas aplicadas a Delegados (Protocolados CG 31.436/95,
10.667/99 e 29.033/2003)” (Prot. CG 47.512/2005, parecer de 12.01.2006).
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Ênfase, pois, não se pode deixar de dar ao núcleo comum principiológico de
processo estatal, bem como às normas constitucionais e às leis gerais de processo
administrativo, quer a federal (Lei federal 9.784/99), quer a paulista (Lei estadual
10.177/98); este, todavia, não é o momento para o discurso teórico e exaustivo da
matéria, razão pela qual bastam, aqui, poucas considerações qualificadas como úteis ao
trato cotidiano do processo administrativo.
3.1 O extrato do direito positivo
Assim como não se trata de Administração Pública sem referência aos
princípios de “legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência” (art. 37
da Constituição da República) nem de direito processual sem foco nos princípios de
“devido processo legal, contraditório e ampla defesa” (art. 5.º, LV e LV), não se pensa o
instituto híbrido do processo administrativo, sem igual menção àqueles cânones
maiores, acentuando-se, ademais, que sua lei geral federal ainda lhe agrega outros seis
princípios – os de “finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, segurança
jurídica e interesse público” (art. 2.º da Lei 9.748/99) – e indica (parágrafo único do art.
2.º da Lei 9.748/99) a necessidade de observâncias aos critérios de: “I – atuação
conforme a lei e o direito; II – atendimento a fins de interesse geral, vedada a renúncia
total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização em lei; III – objetividade
no atendimento do interesse público, vedada a promoção pessoal de agentes ou
autoridades; IV – atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé; V –
divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de sigilo previstas
na Constituição; VI – adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações,
restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao
atendimento do interesse público; VII – indicação dos pressupostos de fato e de direito
que determinarem a decisão; VIII – observância das formalidades essenciais à garantia
dos direitos dos administrados; IX – adoção de formas simples, suficientes para
propiciar adequado grau de certeza, segurança e respeito aos direitos dos administrados;
X – garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais, à produção
de provas e à interposição de recursos, nos processos de que possam resultar sanções e
nas situações de litígio; XI – proibição de cobrança de despesas processuais, ressalvadas
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as previstas em lei; XII – impulsão, de ofício, do processo administrativo, sem prejuízo
da atuação dos interessados; XIII – interpretação da norma administrativa da forma que
melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação
retroativa de nova interpretação”.
A lei bandeirante de processo administrativo (Lei estadual 10.177/98), de modo
mais concentrado, enuncia os princípios de “legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade, razoabilidade, finalidade, interesse público e motivação dos atos
administrativos” (art. 4.º), indica um norte principiológico interpretativo – “norma
administrativa deve ser interpretada e aplicada da forma que melhor garanta a realização
do fim público a que se dirige” (art. 5.º) –, e enfatiza a necessidade de observância ao
princípio da reserva legal na criação de “condicionamentos aos direitos dos
particulares”, na imposição de “deveres de qualquer espécie” aos administrados, na
previsão de “infrações” e prescrição de “sanções” (art. 6.º).
3.2 O extrato da doutrina e da jurisprudência
Em doutrina, além dessas diretrizes expressas em nosso direito positivo, ainda
se colhe atenção e destaque aos princípios de “oficialidade”, “informalismo”, “verdade
material”, “atipicidade”, “pluralidade de instâncias” (ou “duplo grau de jurisdição
administrativa”), “economia processual”, “participação popular”, “isonomia” (ou
“igualdade”) e “boa-fé”.14
Na jurisprudência, então, o leque principiológico ainda pode ser ampliado.
Confira, exemplificativamente:
a) “O princípio da instrumentalidade das formas, no âmbito administrativo,
veda o raciocínio simplista e exageradamente positivista. A solução está no formalismo
moderado (...)” (STJ, ROMS 8.005/SC, DJU 2.5.2000, p. 150, JSTJ 17/353, RSTJ
136/458);
b) caso de ofensa ao “princípio do juiz natural”, por vício de instauração em
processo administrativo disciplinar (STJ, EDcl no MS 63.648-8/2005, DJU 27.08.2007,
p. 187);
14 Hely Lopes Meirelles. Op. cit., p. 560-563; Diógenes Gasparini. Direito administrativo. 12 ed. São
Paulo: Saraiva, 2007. p. 936-938; Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Op. cit., p.582-590; Egon Bockmann
Moreira. Op. cit., p. 69-356. Adilson de Abreu Dallari; Sérgio Ferraz. Op. cit., p. 63-110.
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 253
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c) “O princípio da autotutela administrativa aplica-se à Administração Pública,
por isso que a possibilidade de revisão de seus atos, seja por vícios de ilegalidade, seja
por motivos de conveniência e oportunidade, na forma da Súmula 473, do E. STF”
(STJ, REsp 658.130/SP, DJU 28.09.2006, p. 195);
d) necessidade de respeito ao “princípio da inadmissibilidade da prova ilícita”
em processo administrativo disciplinar, considerando-se ilícita prova apoiada na quebra
de sigilo funcional, sem previa autorização judicial (STJ, RMS 8.327/MG, DJU
23.08.1999, p. 148, JSTJ 10/407, LEXSTJ 125/93);
e) garantia ao “princípio formal da vinculação ao processo”, em processo
administrativo licitatório (STJ, MS 5.601/DF, DJU 14.12.1998, p. 81, JSTJ 2/92, RSTJ
119/57);
f) “Ignorar, no âmbito do processo administrativo, a força normativa do
princípio da razoabilidade, enquanto mecanismo viabilizador do controle dos atos
administrativos, significa incorrer, a rigor, em afronta ao próprio princípio da
legalidade” (STJ, RMS 12.105/PR, DJU 20.06.2005, p. 174, RNDJ 69/108).
3.3 A suma prática do processo administrativo
Foge ao objetivo prático, que reclama concentração, discorrer sobre cada um
desses vários e importantes princípios e critérios normativos; por isso, deste universo,
destaco apenas três cânones maiores que se apresentam de aguda utilidade no contexto
dos processos administrativos em geral: oficialidade, flexibilidade formal e controle
administrativo de legalidade.
3.3.1 Oficialidade
A boa e clássica síntese de Miguel Seabra Fagundes – administrar é “aplicar a
lei de ofício”15
–, por si, indica que inércia não combina com processo administrativo,
quer em seu surgir (iniciativa), quer em seu devir (movimento), quer em seu revir
(revisão).
15 O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 3.
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Isso, obviamente, não exclui a instauração de processos administrativos por
provocação de particulares nem o arquivamento de alguns por desinteresse dos
interessados que não atendem às determinações da Administração. Aliás, alguns
processos administrativos especiais sequer excluem a necessidade de rogação do
interessado para a prática de determinados atos administrativos (v.g., processos
destinados aos registros públicos ou ao protesto de títulos e documentos de dívidas).
A lição prática que convém sublinhar, por extração do princípio de
oficialidade, é o fato de que, em processo administrativo, a Administração “não age
como terceiro (...), mas como parte que atua no interesse e nos limites que lhe são
imposto por lei”. Destaquem-se desse ensino, então, como conseqüências igualmente
práticas, para os processos administrativos em geral:
a) referência aos integrantes da relação processual administrativa como
“interessados”, não como “partes”;16
b) “gratuidade”, exceto previsão legal, e inaplicabilidade do “princípio da
sucumbência”;17
c) ausência de “caducidade de instância” e de “extinção por decurso do
tempo”, salvo previsão legal expressa;18
d) não extinção automática ou necessária do processo por desistência ou
renúncia do interessado;19
e) desnecessidade de representação por advogado,20
observada a
facultatividade da defesa técnica, salvo exceções legais, como o processo administrativo
16 Até em sede de dúvida registrária, como se colhe, por exemplo, nas palavras do Ministro Thompson
Flores: “A dúvida constitui processo de natureza administrativa, e a decisão nela proferida reveste-se, por
igual, de conteúdo materialmente administrativo (Lei 6.015/73, art. 204). Esse processo – no qual inexiste
ação, mas simples pedido, onde figuram interessados, e não partes, e em que não há lide, mas mera
divergência entre o apresentante do título, que pretende o seu registro, e o Oficial registrador, que se
recusa a efetuá-lo – apresenta-se destituído de caráter jurisdicional, não se ajustando, por isso mesmo, ao
conceito constitucional de causa” (RTJ 50/196 – o realce não é do texto original). 17 Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Op. cit., p. 577 e 585. Confira, no âmbito da Corregedoria Geral da
Justiça de São Paulo: Processos CG 745/2005 e 614/2006 (não incidência de custas processuais ou da
taxa judiciária) e Processo CG 139/2007 (inadmissibilidade de condenação em verbas de sucumbência:
custas e verba honorária). 18 Hely Lopes Meirelles. Op. cit., p. 561. 19 Art. 51, § 2.º, da Lei 9.784/99, que, nas palavras de Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari, é a “maior
evidência do principio da oficialidade” (op. cit., p. 108). 20 Protocolado CG 52.000/2005.
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disciplinar (Súmula 343 do STJ) e processo de dúvida registrária a partir da sentença de
primeiro grau, ou seja, para apelar.21
3.3.2 Flexibilidade formal
Embora a doutrina clássica o denomine como principio do informalismo22
procedimental, parece mais adequada sua compreensão como flexibilidade formal,
lembrando, com o Ministro Hélio Quaglia Barbosa, que o “formalismo, ainda que
moderado, não se há de desprezar, mesmo que a pretexto de homenagear o princípio da
eficiência, na atividade administrativa”; afinal, não pode ser olvidada a advertência de
Agustín Gordillo, dando conta de que, via de regra, “o informalismo é a porta de entrada
para a arbitrariedade” (Tratado de derecho administrativo, 2. ed., Buenos Aires:
Macchi, t. 2, p. 2230 e ss.).23
Assim, flexibilidade formal ou formalidade temperada norteia o processo
administrativo, especialmente aquele classificado como comum ou ordinário, sem
previsão normativa especial.
O reflexo prático desse princípio cristaliza não só maior simplificação e
agilidade ao processo administrativo, mas também alerta o zelo que se deve ter para não
se incidir no grave erro de transpor ao processo administrativo os rigores formais do
processo judiciário, e, ainda, na máxima pas de nullité sans griefe, evitando-se nulidade
por razão formal da qual não decorra real prejuízo aquele que a invoca. Ademais, sua
leitura amarrada ao “espírito de benignidade” (em “benefício do administrado”),
sinaliza que “por defeito de forma” não se deve rejeitar “atos de defesa e recursos mal-
qualificados",24
observando-se que, na esfera da Corregedoria Geral da Justiça, são
inúmeros os exemplos de aplicação dessa diretriz, tal como o conhecimento de
21 Egon Bockmann Moreira. Op. cit., p. 351-353. CSM-SP: Apelações Cíveis 035160-0/0-Santos,
018207-0/1-General Salgado e 125-6/2-Catanduva. 22 Confira, a título exemplificativo, a lição de Hely Lopes Meirelles: “O princípio do informalismo
dispensa ritos sacramentais e formas rígidas para o processo administrativo, principalmente para os atos a
cargo do particular. Bastam as formalidades estritamente necessárias à obtenção da certeza jurídica e à
segurança procedimental” (op. cit., p. 561). 23 STJ, REsp 446.020, DJU 08.11.2005. 24 Hely Lopes Meirelles. Op. cit., p. 561.
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“apelação” (incabível em sede administrativa) como “recurso administrativo” (cabível,
nos termos do art. 246 do Código Judiciário).25
3.3.3 Controle administrativo e autotutela
Por fim, convém menção ao controle administrativo de “legalidade objetiva”26
e ao princípio da autotutela,27
que expressam o rigor de vinculação à lei que envolve
toda Administração Pública, justificando a revisão do ato pela própria autoridade que o
emitiu ou por seu superior – autotutela ou controle hierárquico –, ou, ainda que
hierarquia propriamente dita não haja, pelo exercício de função administrativa de
fiscalização, como ocorre em relação aos serviços públicos delegados (v.g., o caso dos
serviços notariais e de registro, fiscalizados pelo Poder Judiciário), em controle
administrativo fiscalizatório; tudo, para que o império da lei prevaleça.
Esse controle administrativo de legalidade não é alheio ao âmbito processual
administrativo, entenda-se, também incide sobre os atos processuais (de instauração, de
movimentação e de decisão) e, daí, ao ato administrativo conseqüente, a que se reporta
o processo administrativo. Logo, especialmente para o controle do devido processo
legal, contraditório e ampla defesa, não raramente observam-se julgados administrativos
com aplicação desse controle, como, a título ilustrativo, pode-se colher na ApCív 667-
6/5-Ribeirão Pires, j. 19.04.2007, rel. Des. Gilberto Passos de Freitas, DOE de
29.06.2007: “inobservado o procedimento legal, com afronta ao princípio do
contraditório, deve-se reconhecer a nulidade do processo, a partir do momento em que
deveria ter sido juntada a impugnação do Recorrente, e da sentença prolatada na
seqüência. Como já decidido por este Colendo Conselho Superior da Magistratura, em
acórdão da lavra do eminente Des. Sérgio Augusto Nigro Conceição, então Corregedor
Geral da Justiça: „Registro de Imóveis – Dúvida – Inobservância do procedimento legal
– Impugnação que somente foi juntada aos autos depois do julgamento, embora
tempestivamente apresentada – Nulidade da decisão – Recurso provido. (...) Suscitada a
dúvida, é imperativa a ciência ao interessado e a oportunidade para que apresente
25 Confira, a título exemplificativo: Processos CG 494/2006, 849/2006, 1.067/2006, 1.040/2006, 25/2007,
117/2007, 276/2007, 278/2007. 26 Hely Lopes Meirelles. Op. cit., p. 560. 27 Lembre-se que “controle administrativo” é gênero do qual são espécies “a tutela, o controle hierárquico
e a autotutela” (Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Op. cit., p. 452).
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eventual impugnação. Silente o interessado a dúvida será prontamente julgada,
independentemente de outras providências. Impugnada a dúvida, no entanto, será
ouvido o Ministério Público, seguindo-se o julgamento. Referido procedimento não foi
obedecido no caso destes autos, pois não obstante tenha a interessada no registro
impugnado a dúvida no prazo legal, sua impugnação não foi prontamente juntada aos
autos, o que somente se deu após a decisão da MM. Juíza Corregedora Permanente. Não
foram apreciados pela r. decisão recorrida, por tais razões, os argumentos constantes da
impugnação, o que impõe o reconhecimento da nulidade da decisão, e o retorno dos
autos para novo julgamento pelo Juiz Corregedor Permanente‟ (ApCív 54.642-0/0 – j.
28.10.1999)”.
Outrossim, o controle administrativo de legalidade e o princípio da autotutela
são consagrados na jurisprudência e cristalizados nas Súmulas 34628
e 47329
do STF,
observando-se, no entanto, que isso não justifica prática abusiva desse poder-dever da
Administração, especialmente quando consolidadas situações jurídicas em favor de
administrados, conforme atestam a doutrina e a jurisprudência:
a) “não cabe à Administração Pública invalidar ato administrativo que tenha
servido para a prática de outro, como é o caso do ato de aprovação de loteamento que
atende, juntamente com os demais documentos, às exigências para o registro”: “uma vez
registrado o loteamento, não é dado à Administração Pública promover sua extinção
mediante anulação ou revogação do ato de aprovação, salvo judicialmente”;30
b) “a Administração tem, em regra, o dever de anular os atos ilegais”, mas
“poderá deixar de fazê-lo, em circunstâncias determinadas, quando o prejuízo resultante
da anulação puder ser maior do que o decorrente da manutenção do ato ilegal”;31
c) inadmissível o cancelamento administrativo de registro de loteamento
regularizado, diante de situação de fato consolidada e do interesse coletivo de proteção
28 “A Administração Pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos”. 29 “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais,
porque deles não se originam direitos, (...)”. 30 Diógenes Gasparini. Op. cit., p. 19. Situação diversa, aliás, ocorre quando a aprovação do loteamento é
anulada antes do registro (ainda que após a prenotação), que, por conseqüência, o inibi (Processo CGJ
451/2006). 31 Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Op. cit., p. 219, com referência (p. 220) à doutrina de Seabra Fagundes,
Miguel Reale e Regis Fernandes de Oliveira, destacando exemplo deste último de aprovação ilegal de
loteamento em terras municipais urbanizado e consolidado há longo tempo.
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dos adquirentes,32
ou em atenção à “necessidade de proteção à segurança jurídica e ao
terceiro de boa fé”, ainda que casada a licença que já havia gerado “efeitos concretos e
consolidado situações”;33
d) “não é absoluto o poder do administrador, conforme insinua a Súmula 473”,
pois “deve-se preservar a estabilidade das relações jurídicas firmadas, respeitando-se o
direito adquirido e incorporado ao patrimônio material e moral do particular” (STJ,
EDcl no REsp 658130/SP, rel. Min. Luiz Fux, DJU 09.08.2007, p. 311);
e) “a invalidação, pela Administração Pública, de ato administrativo que tenha
repercussão no âmbito dos interesses individuais, deve ser precedida pelo devido
processo legal, assegurando-se a ampla defesa e o contraditório” (STJ, REsp 446020,
decisão monocrática do Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJU 08.11.2005).
Respeitados, então, esses postulados básicos que norteiam o controle
administrativo de legalidade, cumpre apontar o seu reflexo prático no âmbito do
processo administrativo, que se expressa, de um lado, como regra, na irrecorribilidade
das “decisões administrativas interlocutórias” (incabível recurso de “agravo”), e, de
outro, na possibilidade de “revisão de ofício dos atos ilegais” que compõe o processo
administrativo; tudo, num quadro maior em que, por princípio, não há “preclusão” nem
“coisa julgada” na esfera processual administrativa, ou, ao menos, com a mesma feição
do processo judiciário.
Sem caráter jurisdicional, decisão proferida em processo administrativo “não
adquire qualidade de coisa julgada”34
e, por isso, ainda quando não se conheça de
recurso administrativo interposto por intempestividade, por exemplo, “não se pode
descuidar do poder-dever de revisão ex officio”.35
Pela mesma razão, nada obsta renovar
pedido administrativo anteriormente indeferido para reapreciação.36
Todavia, cumpre destacar que, embora “coisa julgada administrativa” seja
“conceito usualmente refutado, devido à possibilidade de revogação e anulação dos atos
32 Processos CGJ-SP 13/88 e 41/88 (casos em que não foi colhida a anuência da antiga Secretaria dos
Negócios Metropolitanos, em regularização de loteamentos). 33 CSM, ApCív 26.842-0/2 (caso em que a Secretaria do Meio Ambiente “cassou” a licença de sua
antecessora [SNM]). 34 RTJ 50/196, rel. Min. Thompson Flores (caso referente à dúvida registrária). 35 Processo CG 756/2006, com referência a outros feitos (Processos CG 106/92, 03/94), destacando-se
que as “decisões proferidas pelos Juízes Corregedores Permanentes, que, aliás, por serem administrativas,
não estão cobertas pela coisa julgada (v.g,. Processos CG 794/05, 215/06, 600/06 e 804/06)”. 36
Processos CG 794/2005, 600/2006, 898/2006 e 917/2006.
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administrativos (...), não podem ser desprezados os efeitos preclusivos das decisões
administrativas – no sentido de vincular a Administração e conferir segurança e
estabilidade ao processo administrativo”37
–, não faltando atualmente sequer menção à
“coisa julgada administrativa” para situações em que “é defeso à Administração alterar
seu posicionamento”.38
Ademais, agora, diante do art. 54, § 1.º, da Lei 9.784/99, que
prescreve o prazo decadencial de cinco anos para anulação dos atos administrativos,
esse entendimento é reforçado (cf. STJ, EDcl no REsp 658.130/SP, rel. Min. Luiz Fux,
DJU 09.08.2007 p. 311), embora sem atribuição de efeito retroativo: “(...) a Lei
9.784/99, ponderando os princípios da legalidade e da segurança jurídica, submeteu a
prazo decadencial qüinqüenal o exercício da autotutela, no âmbito do Poder Público”,
mas “não há como atribuir-lhe incidência retroativa” (STJ, REsp 793.781, decisão
monocrática do Min. Hamilton Carvalhido, DJU 30.08.2007).
3.4 A chave hermenêutica e o primado do direito
Parece oportuno, por fim, não finalizar este capítulo sem destaque ao primado
do direito, como regra de ouro ou interpretação-chave, que tem colorido normativo
especial em matéria processual administrativa.
O primado do direito é a submissão não só à lei, mas à coisa justa, que se
impõe na singularidade do caso.
A Constituição alemã (art. 20.3)39
expressa a submissão do poder legislativo à
constituição e dos poderes executivo e judicial à lei e ao direito; a Constituição
espanhola de 1978 (art. 103.1)40
prescreve que a Administração deve atuar com plena
sujeição à lei e ao direito. Agora, no Brasil, a Lei 9.784/99 prevê aos processos
administrativos, como primeiro critério de observância necessária, a “atuação conforme
a lei e o direito” (art. 2.º, parágrafo único, I).
37 Egon Bockmann Moreira. Op. cit., p. 338. 38 TRF 4ª Reg., R.REO 16.456-PR, DJ 07.02.2001, p. 108, referido por Egon Bockmann Moreira (op. cit.,
p. 339), entre outros julgados destacados na nota 333 de seu livro. 39 “Die Gesetzgebung ist na die verfassungsmässige Ordnung, die vollziehende Gewalt und die
Rechtsprechung sind an Gesetz und Recht gebunden” (“O Poder Legislativo está submetido à ordem
constitucional; os Poderes Executivo e Judicial, à lei e ao direito”). 40 “La Administración Pública sirve con objetividad los intereses generales y actúa de acuerdo con los
princípios de eficacia, jeharquía, descentralización y coordinación, con sometimiento pleno a la ley e al
Derecho” (“A Administração Pública serve com objetividade aos interesses gerais e atua de acordo com
os princípios de eficácia, hierarquia, descentralização e coordenação, com submissão plena à lei e ao
direito”).
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Por que não basta atuação conforme a lei? O que se deve entender por
“direito”?
É certo que o Estado de Direito do século XIX não é o mesmo dos séculos XX
e XXI, na medida em que a fisionomia de “estado de Lei” cede a de “estado de
Constituição”, bem como que isso resulta não só em “mudança da supremacia legal pela
constitucional”, mas também na “atitude dos juízes”41
e, porque não dizer, também da
Administração, enquanto conduz e decide o processo administrativo em conformidade
não só com a lei, mas também com o “direito”. É certo, ainda, que essa mudança não
rompe a bitola do formalismo jurídico nem supera o positivismo que corre nas veias do
Estado Moderno e do Estado Pós-moderno, alterando apenas seu aspecto.42
No entanto, não se pode deixar de reconhecer que essa referência à atuação
conforme o “direito”, como algo diverso da “lei”, importa “introdução de elementos
jusnaturalisticos ou, ao menos, suprapositivos”,43
que provoca o interprete a não se
desviar do fim maior do Estado (e, por isso, da Administração e do processo
administrativo), que é o “bem comum que a lei, em sua literalidade, muitas vezes não
atinge, sendo imprescindível que não se olvide do direito”.44
Atenção, pois, ao primado do direito, como chave hermenêutica, que reclama,
também em processo administrativo, consideração àquilo que é devido ao outro por
justiça, no foco maior do bem comum; porém, cuidado, pois justiça e bem comum não
decorrem do arbítrio subjetivo nem de elementos racionais e abstratos, mas sim da
leitura racional da natureza das coisas em sua realidade (concreta, singular e histórica).
E, por isso mesmo, reclama a revitalização do direito natural clássico (da tradição
greco-romano-cristã), para não se perder em emaranhado de conceitos e princípios ocos,
e, assim, compreender que “sem direito natural não há verdadeiro Estado de Direito”,
41 Antonio-Carlos Pereira Menaut. Rule of law o Estado de Derecho. Madri: Marcial Pons, 2003. p. 61-
95. 42 Trocar a lei pela Constituição, pelas Declarações de Direitos Humanos, pela decisão judicial, em rigor,
não supera o positivismo jurídico reinante; apenas desloca seu ponto de atenção. Mas, na essência, a visão
positivista de que o Estado, com a Lei (ou, com a Constituição, com este ou aquele Tratado Internacional,
ou, ainda, com a decisão judicial), tudo pode, perdura. Confira, para maior desenvolvimento da matéria, o
que já escrevi em Urbanismo realista, Campinas: Millenium, 2006, p. 7-16. 43 Antonio-Carlos Pereira Menaut. Op. cit., p. 73. 44 Arnaldo Esteves Lima. O processo administrativo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p. 10.
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mas apenas “positivismo jurídico”, em que “o Estado de direito perde toda a riqueza do
seu conteúdo”.45
Eis aí a interpretação teleológica maior de todo processo administrativo, sua
primeira chave hermenêutica, sua fundamental orientação teórica, prática e, hoje, legal
(art. 2.º, parágrafo único, I, da Lei 9.784/99): apreço ao primado do direito, à atuação
não só em conformidade com a lei, mas, sobretudo, com a coisa justa, que se impõe
observar na direção do bem comum e no respeito à realidade de cada caso, nos limites,
obviamente, da função administrativa.46
4. Do processo administrativo no Poder Judiciário
Embora se possa dizer que tenha sido “Aristóteles quem, antes de qualquer
outro, fez a distinção dos vários poderes do Estado – o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário”,47
não foi dele, mas de Montesquieu, o erro de separá-los sob a vã esperança
de limitação do poder do Estado pelos poderes do próprio Estado, em fisiologia política
abstrata, individualista e antinatural, por desprezo dos poderes sociais, desconsiderando
que “só pelo revigoramento dos grupos sociais e das autoridades que os representam
será possível limitar efetivamente o poder do Estado, mantendo-o na órbita do bem
comum que o legitima. A questão não está em „separar‟ ou „dividir‟ o poder político –
todo poder precisa de unidade! – mas em reconhecer os poderes sociais, capazes de
tutelar os interesses dos grupos autônomos em face do Estado”.48
O que importa, todavia, destacar é que os poderes da República – Legislativo,
Executivo e Judiciário –, quanto às funções que exercem, não são puros, mas apenas
preponderantes: “a cada um deles correspondendo uma função que lhe é atribuída com
45 José Pedro Galvão de Sousa. Direito natural, direito positivo e Estado de direito. São Paulo: RT, 1977.
p. 125 e ss. 46 E de modo especial em sede notarial e de registros (e respectivas decisões de controle de legalidade do
Juízo Corregedor), quando os limites da função administrativos são ainda mais estreitos, pois
circunscritos a segurança jurídica formal, vale dizer, quando se tem em mira que a sua res justa é a
própria res certa, como enfatiza Ricardo Dip: “(...) o certo e reto do registro se obtêm exclusivamente
com metódica formal. Não é que o registro não tenha por escopo a realização do que é justo, mas é que o
seu justo está conformado pela certeza ou, mais bem dito, pela segurança jurídica (uma objetivação) (...)”
(Inexatidão retificações e cancelamento de registro, RDI 48/61). 47 Giordio Del Vecchio. Lições de filosofia do direito. Trad. Antonio José Brandão. 5. ed. Coimbra:
Armênio Amado, 1979. p. 50. 48 José Pedro Galvão de Sousa. Política e teoria do Estado. São Paulo: Saraiva, 1957. p. 115.
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precipuidade”, não com “privacidade”, “uma vez que todos os Poderes têm necessidade
de praticar atos administrativos, ainda que restritos à sua organização e ao seu
funcionamento, e, em caráter excepcional admitido pela Constituição, desempenham
funções e praticam atos que, a rigor, seriam de outro Poder”.49
Em outras palavras, na
lição de Seabra Fagundes, “assim como há atos legislativos, por natureza, que emanam
dos Poderes Executivo e Judiciário, também existem atos materialmente
administrativos, que não são praticados pela Administração Pública e sim pelos órgãos
legislativo e judicante”.50
Daí, então, costuma-se dizer que cada um dos poderes tem sua função típica
(preponderante ou precípua), mas também exercem funções atípicas. Assim é no Poder
Judiciário: embora sua atividade típica seja a prestação jurisdicional, também exerce
funções atípicas legiferantes e administrativas.
Logo, no Poder Judiciário também existem processos administrativos, alheios à
função jurisdicional, e, por conseqüência, ao processo judiciário.
Isso é de fácil constatação quando se está diante de expediente interno de
controle de funcionários (freqüências, faltas, férias, licença-prêmio etc.), de processo
administrativo disciplinar, de licitação ou de concurso público, por exemplo; todavia há
processos administrativos em que a fronteira que o aparta dos feitos jurisdicionais não é
tão perceptível, o que ocorre, não raramente, em relação àqueles da esfera correcional
dos serviços notariais e de registros públicos, como são alguns destinados à retificação,
cancelamento ou bloqueio de registro, à revisão de atos praticados por notários e
registradores em controle de legalidade, por exemplo.
O que parece oportuno enfatizar é que, em relação aos mencionados serviços
públicos extrajudiciais delegados, o Poder Judiciário exercer função de fiscalização (art.
236, § 1.º, da CR), que é de natureza administrativa, pois atividade de fiscalização é
atípica do Poder Judiciário, e não típica, como é a prestação jurisdicional, por meio de
processo judiciário.
A confusão das esferas (jurisdicional e administrativa), em matéria notarial e
de registro, diante de feitos em trâmite no Poder Judiciário, em que os operadores de
direito incidem com freqüência, ademais, é compreensível, pelo menos por três fatores:
49 Hely Lopes Meirelles. Op. cit., p. 61. 50 Op. cit., p. 29.
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a) primeiro, a especificidade da matéria, praticamente desconhecida, cuja raiz
da ignorância remonta a grade curricular universitária, que prioriza o estudo jurídico na
perspectiva das patologias sociais (lide, ação, processo; crime, ilícito civil, ato
infracional; dano, responsabilidade, indenização, pena...), sem adequada atenção ao
direito preventivo (especialmente ao direito preventivo formal);
b) segundo, ao fato que de há feitos de similares objetos nas duas esferas, como
são, por exemplo, os de retificações e cancelamentos de registros, ora no âmbito
administrativo (v.g., arts. 110, 213 e 214 da Lei de Registros Públicos), ora no âmbito
jurisdicional (v.g., arts. 109, 212, parágrafo único, e 216 da Lei de Registros Públicos);
c) terceiro, pela indevida imprecisão de conceitos, normas legais e orientações,
que não marcam as fronteiras daquelas esferas, ou, ao menos, não as delimitam com
clareza, o que exige, por vezes, aguda interpretação para se atingir a correta solução, tal
como se pode observar na confusão entre processos administrativos (sentido próprio,
pois no âmbito da Administração) e processos de jurisdição voluntária (também
designados “administrativos”, embora no âmbito do Juízo Comum),51
na dificuldade em
saber a que juiz (ou juízo) – o corregedor, na função administrativa, ou o juiz de direito,
na função jurisdicional – o legislador se reporta como competente (v.g., arts. 19, § 1.º,
38, §§ 1.º, 3.º e 4.º, 40, § 1.º, todos da Lei 6.766/79;52
arts. 18 e 26, § 3.º, da Lei
9.492/9753
), ou até na mudança de orientação, como se operou em sede de impugnação
ao registro de loteamento (antes no âmbito jurisdicional; hoje, administrativo).54
51 Digno de destaque é o parecer de lavra do então Juiz Auxiliar da Corregedoria, hoje Desembargador,
Dr. José Roberto Bedran, com excelentes referências as doutrinas de Frederico Marques, Messina,
Cristofolini, Pavanini, para conclusão de que os feitos de jurisdição voluntária, “embora não sejam
materialmente jurisdicionais”, são inconfundíveis com aqueles decorrentes da “função puramente
administrativa”, não havendo, pois, entre eles equiparação de modus faciendi nem de atos decisórios
(Decisões administrativas da CGJ-SP, 1983-1984. São Paulo: RT, n. 68, Processo 131/83, p. 170-178). 52 Em sede de definição do juiz competente e até de rito, para o feito de levantamento dos depósitos em
regularização de parcelamento do solo, confira a divergência de entendimento entre Theotônio Negrão,
Toshio Mukai, Sérgio A. F. Couto e a orientação da Corregedoria Geral da Justiça, em parecer de lavra de
Hélio Lobo Júnior (pela natureza administrativa do processo), que destaquei no artigo O registro
imobiliário e a regularização de parcelamento do solo urbano, RDI 41/70. 53 Embora o legislador não tenha sido explicito, nestas hipóteses da Lei de Protesto, o entendimento atual
tem sido no sentido de que as referências legais são ao Juízo Corregedor, que tem atribuição para rever as
desqualificações do tabelião (art. 18) e os atos ilegais que praticar (o que, então, pode justificar o
cancelamento administrativo), desde que a ilegalidade seja por vício procedimental ou formal, sem
prejuízo da esfera jurisdicional, que é de ampla cognição (para vícios formais e materiais, inclusa a
possibilidade de investigação da relação jurídica subjacente, conforme o caso). 54 Durante longo tempo, a tradição do Tribunal de Justiça foi no sentido de que a impugnação ao registro
de loteamento deveria ser resolvida na esfera jurisdicional, pelo Juízo Comum (1.º grau) e Câmaras
Cíveis do Tribunal de Justiça (2.º grau): RT 600/104, 650/96-97; JTJ 160/151-154; CSM, ApCív 36.490-
0/3; Processo CG 146/83, em Decisões administrativas da CGJ-SP, São Paulo: RT, 1983-1984, p. 135;
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Atenção, pois, a segregação das esferas (jurisdicional e administrativa), que há
dentro do Poder Judiciário, é imperativo prático elementar para boa compreensão dos
processos administrativos, identificando não só o órgão competente (v.g., o juiz
corregedor permanente, não o juiz de direito de determinada Vara, embora, fisicamente
podem ser a mesma pessoa, especialmente nas Comarcas de Vara Única), mas também
suas peculiaridades procedimentais distintas.
Mas, além deste zelo elementar, convêm também examinar neste tópico, ainda
que tangencialmente, a questão da incidência e da aplicação, ou não, das leis gerais de
processo administrativo na seara do Poder Judiciário.
No plano federal, dúvida não há, pois a Lei 9.748/99 expressamente resolveu o
problema, ampliando seu campo de incidência para além dos processos administrativos
da Administração Federal direta e indireta, ao prescrever no § 1.º de seu art. 1.º: “Os
preceitos desta Lei também se aplicam aos órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário
da União, quando no desempenho de função administrativa”.
Fora, no entanto, do campo de incidência dessa lei federal, os processos
administrativos dos Poderes Judiciários dos Estados.
A lei estadual paulista do processo legislativo, Lei 10.177/98, por sua vez,
limitou seu destino de regramento aos “atos e procedimentos administrativos da
Administração Pública centralizada e descentralizada do Estado de São Paulo, que não
tenham disciplina legal específica” (art. 1.º), considerando “integrante da Administração
descentralizada estadual toda pessoa jurídica controlada ou mantida, direta ou
indiretamente, pelo Poder Público estadual, seja qual for seu regime jurídico” (parágrafo
único do art. 1.º) e, ainda determinando sua aplicação subsidiária “aos atos e
procedimentos administrativos com disciplina legal específica” (art. 2.º).
Parece, pois, evidente que os processos administrativos do Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo também estão fora do campo de incidência dessa lei estadual
bandeirante.
Sem incidência direta das normas insertas nas Leis 9.748/99 e 10.177/98 aos
processos administrativos do TJSP, fica a pergunta: poderá haver, nesse âmbito, sua
Processo CG 175/92, em Decisões administrativas da CGJ-SP, São Paulo: RT, 1992, p. 291-295.
Todavia, alterada a orientação, desde o ano 2000, que prevalece atualmente, qualificando-se o processo
como administrativo e, assim, de competência do Juízo Corregedor, Permanente (1.º grau) e Geral (2.º
grau): CSM, Apelações Cíveis 36.490-0/3-Presidente Epitácio, 46.513-0/8-Jundiaí; CGJ, Processos
1.258/2000, 451/2006, 517/2006, 590/2006, 933/2006 e 139/2007.
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interpretação extensiva ou aplicação analógica? Pela doutrina de Sérgio Ferraz e
Adilson de Abreu Dallari,55
apoiada em alguns julgados que enfrentaram a mesma
questão em relação aos processos administrativos do Tribunal de Contas (TJSP, Órgão
Especial, MS 094.552-0/1-00; STF, MS 23.550-1-DF), a tendência da resposta é
positiva, na medida em que “as leis gerais de processo administrativo, ainda quando não
diretamente aplicáveis, fornecem substanciosos parâmetros para decisão de casos
análogos”.56
Assim, embora a questão ainda esteja aberta e carente de estudo de maior
profundidade para a especificidade dos processos administrativos da Justiça Comum
Estadual, não se pode ignorar que a luz principiológica do processo administrativo, em
boa parte expressa naquelas leis gerais (federal e estadual paulista), não deixa de
iluminar os processos administrativos em geral, inclusos os do Poder Judiciário
estadual, especialmente naquilo em que não houver disciplina normativa específica.
5. Do processo administrativo no âmbito do Juízo Corregedor
Antonio Manuel Hespanha informa que foi com Dom Afonso III (1254 ou
1261) que surgiram os “meirinhos” com funções de inspeção administrativa e de
“correição”; e, então, no Reinado seguinte (D. Afonso IV), em substituição aos
“meirinhos”, surgem os “corregedores”, com vasta competência, “pois abrangia, quer
„feitos de justiça‟, quer o „vereamento da terra‟: inquirir da actividade dos juízes
ordinários (e também dos juízes de fora), dos tabeliães e de outros funcionários locais
(...), receber queixas contra os poderosos, reprimir os “bandos” locais (...), encarregar-se
da colheita de dados estatísticos sobre a região (...)”.57
Comparando essas antigas funções dos corregedores lusitanos, com as atuais
atribuições dos corregedores brasileiros,58
parece que, na essência, não houve muita
alteração: fiscalização dos serviços judiciais e extrajudiciais (notariais e de registro),
55 Op. cit., p.29-35. 56 Sérgio Ferraz; Adilson Abreu Dallari. Op. cit., p. 32. 57 História das instituições. Coimbra: Almedina, 1982. p. 252. 58 Quanto às atribuições do Corregedor Geral da Justiça, no Estado de São Paulo, confira: art. 68 do Dec.-
lei Complementar 3, de 27.08.1969, que institui o Código Judiciário do Estado de São Paulo; art. 29 da
Lei estadual 3.396/82; art. 78 da Resolução 2/76; arts. 199 e 221 a 223 do Regimento Interno, todos do
TJSP. Quanto às atribuições correcionais de fiscalização dos serviços notariais e de registro, confira,
também, os arts. 37 e 38 da Lei 8.935/94.
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que se expressa no âmbito administrativo e, portanto, por meio de processos igualmente
administrativos. Assim, sempre que se estiver diante de um Juízo Corregedor,
Permanente ou Geral, saiba-se que se está em exercício de função atípica do Poder
Judiciário, e, por conseqüência, a disciplina normativa e os princípios específicos de
processo são distintos daqueles que norteiam a função jurisdicional e o processo civil.
Essa, aliás, a razão pela qual juiz corregedor permanente é especificadamente designado
(não investido em jurisdição, como é o juiz de direito), com atribuição de parcela do
poder administrativo correcional; daí, juiz substituto (e juiz auxiliar, também), embora
investido em jurisdição, não pode exercer função correcional (inclusive aplicar pena em
processo administrativo disciplinar), salvo quando estiver assumindo a Vara.59
Aliás, alguns sinais elementares dos feitos, de saída, já revelam essa distinção
de esferas: em processo judiciário, sempre há distribuição (“Distribuidor” e
“distribuição” são próprios dos feitos jurisdicionais) ao juiz de direito (e, assim, a
autoridade costuma se auto-intitular em suas decisões) competente; em processo
administrativo de juiz corregedor (e, deste modo, a autoridade, em regra, se auto-intitula
em suas decisões), não há distribuição alguma, pois a atribuição administrativa é previa
e singularmente fixada mediante designação de órgão, igualmente administrativo.60
Por outro lado, a função correcional demanda serviços, processos e atos
administrativos correcionais, conforme a especificidade de cada uma de suas
atribuições.
Assim, os processos administrativos no âmbito do Juízo Corregedor são
inúmeros e, embora não seja possível aqui esgotar todo esse universo, oportuno, em
perspectiva prática, a apresentação de alguns, sob a classificação tripartida dos atributos
da função correcional (direção, superintendência e disciplina), que é de bom proveito
para a compreensão do quadro geral.
Embora aquela classificação tricotômica dos atributos da função correcional
deite raiz na estruturação hierárquica da Administração, especialmente nas doutrinas de
Diogo Freitas do Amaral e Ruy Cirne Lime, bem sintetizadas por Ricardo Dip,61
e,
59 Processo CG 238/89. 60 Daí, por exemplo, a razão pela qual Juiz Substituto não pode exercer função correcional, tal como
aplicar pena em processo administrativo disciplinar, salvo quando estiver assumindo a Vara (Processo CG
238/89). Idem, para o Juiz Auxiliar. 61 Acompanhe-se, com apoio na doutrina de Diogo Freitas do Amaral (Conceito e natureza do recurso
hierárquico, ed. 1981, v. 1) e de Ruy Cirne Lima (Princípios de direito administrativo, ed. 1987) a síntese
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ainda que hoje não mais se compreenda a fiscalização dos serviços notariais e de
registros delegados no contexto hierárquico (em sentido próprio), parece-nos, com
respeito ao entendimento diverso, de boa utilidade aquela categorização e ainda atual a
lição pretérita: “que fiscalização constitucional, em suma, poderia efetivar o Poder
Judiciário, se não lhe fora possível – nos limites da lei – por primeiro regulamentar,
instruir, ordenar o serviço registrário; depois, modificar ou revogar os atos contrapostos
da lei ou dos regulamentos; por fim, punir os subalternos?”62
Limite-se, então, a análise desses atributos no âmbito da fiscalização dos
serviços delegados notariais e de registro, destacando-se, em cada um, alguns processos
administrativos.
Diante da função correcional em seu atributo de (a) direção, com feição de
orientação-normativa de caráter preventivo, destacam-se provimentos, decisões de
caráter normativo em consultas (processos administrativos especiais, de rito previsto no
art. 29 da Lei estadual 11.331/2002) e, ainda, em processos administrativos comuns63
(consultas, em geral, comumente não conhecidas, podem, por exceção, em vista de sua
relevância ao interesse público e, conforme juízo de conveniência e oportunidade, ser
conhecidas), recomendações em atas de correição, entre outros meios.
Na categoria correspondente à função correcional de (b) superintendência, cujo
fim é zelar pelo binômio continuidade-regularidade do serviço delegado, destacam-se os
serviços de correições e visitas às unidades de serviço, os processos administrativos de
saneamento de irregularidades constatadas e os de verificação de irregularidades
alegadas, os serviços de gestão institucional (que abrange desde a designação de
responsáveis para unidades vaga até a organização, impulso e apoio aos concursos
públicos de provas e títulos destinados às outorgas das delegações, que se desdobram
que Ricardo Dip fez ao indicar os atributos do dever de fiscalização dos serviços: “de direção („faculdade
de dar ordens e instruções ao subalterno‟ – Diogo Freitas do Amaral, op. cit., p. 50; competência de
„orientar e dirigir a atividade de seus subalternos, por intermédio de atos regulamentários‟ – RUY CIRNE
LIMA, op. cit., p. 157); de superintendência („faculdade de revogar e, eventualmente, modificar os actos
do subalterno‟ – Freitas do Amaral, idem; incumbência de „suspender ou revogar os atos administrativos,
praticados pelo subalterno, quando contrários ao direito, inconvenientes ou inoportunos‟ – Cirne Lima,
idem); e de disciplina („faculdade de punir e, eventualmente, expulsar o subalterno‟ – Freitas do Amaral,
idem; „O superior hierárquico exercita, sobre os funcionários subalternos, ação disciplinar‟ – Cirne Lima,
op. cit., p. 158)” – (sentença proferida em 24.04.1989, nos autos do Processo CP 233/89 – 1ª Vara de
Registros Públicos da Capital). 62 Ricardo Dip, sentença proferida em 24.04.1989, nos autos do Processo CP 233/89 (1ª Vara de Registros
Públicos da Capital). 63 CSM, Apelações Cíveis 35.926-0/7 e 50.203-0/8.
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em vários processos e atos administrativos específicos), e, ainda, o controle de
legalidade por via de processos administrativos diversos.
Por fim, quanto ao caráter (c) disciplinar, de escopo censório, há processos
administrativos qualificados como reclamações (art. 30 da Lei estadual 11.331/2002),
representações (art. 37 da Lei 8.935/94), averiguações de ofício, sindicâncias e
processos administrativos disciplinares, por exemplo.
6. Do processo administrativo especial referente ao registro de imóveis
Inúmeras são as classificações de processo administrativo,64
mas no ângulo da
praticidade, a razão é de Sergio Ferraz e Adilson de Abreu Dallari, ao sublinhar que “a
única linha classificatória que nos parece relevante e rentável é a que rotula os processos
administrativos em „gerais‟ e „especiais‟”, pois essa distinção reflete a “diferença da
dinâmica de cada um dos concretos processos administrativos”, configurando estes ou
aqueles, conforme haja, ou não, “dicção legal” particular.65
É, pois, de utilidade prática distinguir os processos administrativos em
especiais e ordinários (ou comuns ou gerais), conforme haja, ou não, ao seu
procedimento, disciplina normativa própria. Há, pois, no Poder Judiciário, e também no
Juízo Corregedor (Permanente e Geral), processos administrativos especiais, com rito
normativo definido; outros, porém, sem definição formal de sua dinâmica, são
ordinários ou comuns, seguindo apenas as diretrizes gerais de processo administrativo.
São especiais os processos administrativos que tramitam no Poder Judiciário
sob disciplina jurídica própria, tal como a licitação para aquisição de bens ou serviços,
64 “A angústia classificatória – terrível doença muito própria dos juristas – impôs, então, uma variada
gama de critérios tipológicos, quase todos centrados no elemento diacrítico do conteúdo e do objeto.
Falava-se, assim – por exemplo, Nelson Nery Costa –, em „processo de expediente‟, „de outorga‟, „de
restrições‟, „de controle‟, „de gestão‟, „de punição‟ etc. Ou em „processos ampliativos‟ (com inúmeras
subdivisões) e „restritivos‟ (também comportando subtipos), na dicção de Celso Antonio Bandeira de
Mello” (Sérgio Ferraz; Adilson Abreu Dallari. Op. cit., p. 42). Distinguem-se, ainda, outras modalidades
de processo administrativo: o técnico e o jurídico (Guimarães Menegale, RDA 2, fasc. 2:473 – cf. Maria
Sylvia Zanella Di Pietro, op. cit., p. 580); o de conflito de interesses (ou em que há controvérsias, como
os de gestão, de outorga, de verificação ou determinação, e de revisão) e o punitivo (ou sancionadores,
alguns internos, outros externos) – (Odete Medauar. A processualidade no direito administrativo. São
Paulo: RT, 1993. p. 132). 65 Op. cit., p. 43.
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 269
Capítulo I - Princípios UNIREGISTRAL - Universidade Corporativa do Registro www.uniregistral.com.br
nas várias modalidades licitatórias previstas em lei (Lei 8.666/93 e, sobre a modalidade
do pregão, a Lei 10.520/2002), cercadas em regras procedimentais próprias.
São ordinários ou comuns os processos administrativos sem disciplina jurídica
particular. Alguns deles são até chamados de meros expedientes, que bem indica a
ausência de forma legal prefixada. Assim, por exemplo, para a contagem de tempo de
servidor público, de notário, registrador e seus prepostos não optantes pelo regime
celetista e, portanto, ainda sob o regime híbrido (“estatutário”, embora remunerado pelo
particular delegatário), há processos administrativos no Tribunal de Justiça, para os
quais não incide regra legal específica alguma, que prescreva como devem tramitar.
Em sede de registros prediais, o mesmo ocorre. Assim, por exemplo, o
processo de dúvida registrária tem peculiaridades que o distingue de outros processos,
em vista de sua disciplina especial, até especialíssima. Isso porque, até determinado
ponto, vai tramitando com as regras da Lei de Registros Públicos, art. 198, e depois, na
fase de recurso, se apropria de uma forma de ser do Código de Processo Civil. Esse
processo é administrativo por sua natureza, mas tem regras próprias na disciplina de
seus passos, no trâmite do processo, ou nas fases que devem acompanhá-lo. Logo, é
especial. No entanto, também na seara registral imobiliária, existem processos que não
têm disciplina normativa específica e, por isso, são ordinários, comuns ou gerais.
Alguns processos administrativos especiais têm uma disciplina jurídica própria
somente na esfera do registro de imóveis; outros também apresentam regramento
específico no âmbito do Juízo Corregedor.
Destacam-se, pois, no universo dos serviços correcionais de registro de imóveis
(ou, de algum modo, vinculado às atribuições do Juízo Corregedor), os seguintes
exemplos de processos administrativos especiais:
a) dúvida registrária (art. 198 da Lei de Registros Públicos);
b) retificações de registro (art. 213 da Lei de Registros Públicos);66
c) dúvida (“imprópria”67
) de emolumentos (art. 29 da Lei estadual
11.331/2002);
66 Consigne-se, quanto à retificação de registro, que, quando, provenientes do serviço de registro,
eventualmente atingem a esfera judicial, em razão de impugnação (§ 6.º do art. 213 da LRP), também
terão trato administrativo (não jurisdicional). 67
Além da “dúvida” sobre a interpretação da lei e da tabela de emolumentos, julgado pelo Juiz
Corregedor Permanente, com possibilidade de recurso ao Corregedor Geral da Justiça (art. 29 da Lei
11.331/2002), também é denominada “duvida imprópria” aquela da Lei de Protesto (art. 18 da Lei
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 270
Capítulo I - Princípios UNIREGISTRAL - Universidade Corporativa do Registro www.uniregistral.com.br
d) reclamação sobre a cobrança de emolumentos (art. 30 da Lei Estadual
11.331/2002);68
e) sindicância e processo administrativo disciplinar (arts. 268/307 do Estatuto
dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo: Lei estadual 10.261/68 c.c. a LC
estadual 942/03);
f) impugnação de registro de loteamento (art. 19 da Lei 6.766/79);69
g) regularização de parcelamento do solo (arts. 38 e 40 da Lei 6.766/79 e itens
193/198 e 152/155 do Capítulo XX do Prov CG 58/89) e de condomínio (item 216/217
do Capítulo XX do Prov CG 58/89).
Consigne-se, por oportuno, que não há fungibilidade de ritos em processos
administrativos e, assim, não se conhece, em dúvida registrária, de questão referente à
cobrança de emolumentos,70
à impugnação de registro de loteamento71
e à regularização
de parcelamento do solo,72
por exemplo.
Importante ressaltar, por fim, em orientação prática, que é a especificidade de
alguns desses processos administrativos que define a atribuição recursal, ora da
Corregedoria Geral da Justiça, ora do Conselho Superior da Magistratura, ora até da
Câmara Especial do Tribunal de Justiça. Assim, por exemplo, a apelação na dúvida
registrária deve ser julgada por órgão colegiado do Tribunal de Justiça (afinal, nada
obstante a natureza administrativa do processo, o recurso é de apelação, no rito do
CPC), e, daí, a competência recursal é do Conselho Superior da Magistratura; outros
processos, ainda que especiais, cujas decisões dos juízes corregedores permanentes são
suscetíveis apenas de recurso administrativo (não de apelação) são de competência
recursal da Corregedoria Geral da Justiça; outros, ainda, como são os processos
administrativos disciplinares de decisão originária do Corregedor Geral da Justiça,
apontam a competência recursal para a Câmara Especial do Tribunal de Justiça. A dica
9.492/97 – v. nota 53, retro), mas esta é de processo comum, ao passo que aquela (a de emolumentos) é
especial em virtude da existência de regras legais procedimentais, com definição de seu sumário rito,
recurso específico e prazos próprios. 68 A reclamação quanto à cobrança a maior, ao Juiz Corregedor Permanente, com possibilidade de recurso
ao Corregedor Geral da Justiça, tem disciplina especifica na lei estadual de emolumentos (art. 30), bem
como previsão de restituição no décuplo da quantia irregularmente cobrada, em até cinco dias úteis da
data da decisão (art. 32, §§ 3.º e 4.º). 69 V. nota 54, retro. 70 CSM, ApCív 98.928-0/7. 71 CSM, ApCív 46.513-0/8. 72 CSM, ApCív 48.788-0/6.
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 271
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para saber de quem é a competência recursal dos diversos processos administrativos é o
exame do Regimento Interno do Tribunal de Justiça.
7. Do processo administrativo ordinário de registro predial quanto ao
objeto
Talvez seja o caráter residual de seu objeto um dos principais traços do
processo administrativo ordinário. O processo administrativo especial tem sua dinâmica
formalizada em lei, justamente em razão de seu objeto específico; o ordinário ou
comum, todavia, caracteriza-se não só por sua maior fluidez formal – carente de
condução normativa particular e, por isso, pautado apenas nas diretrizes gerais do
processo administrativo –, mas também por sua abertura de objeto, na medida em que –
respeitados os limites de atribuição e de finalidade do órgão administrativo ou ente
delegado –, tem fins variados, não pré-fixados e indefinidos, desde que no contexto
maior do interesse público que a função administrativa tem o poder-dever de realizar.
Em outras palavras, todo objeto que não for próprio de processo administrativo especial
pode, residualmente, ser objeto de processo administrativo ordinário, que é aberto a
qualquer fim necessário à função administrativa, no quadro demarcado de atribuições,
finalidade administrativa e interesse público de determinado órgão administrativo ou
ente delegado.
Essa pluralidade torna a apresentação dos processos administrativos ordinários,
pelo objeto, senão vã, ao menos muito difícil. Assim, seguindo tão-somente o critério de
ocorrência com maior freqüência no cotidiano dos Juízos Corregedores, Permanentes e
Geral, sem pretensão alguma de esgotar o rol atípico desses feitos comuns (referentes ao
registro predial), destacam-se os seguintes procedimentos administrativos ordinários:
a) de requalificação de título desqualificado pelo registrador, alheio ao
universo da dúvida de registro, referente, pois, a dissenso sobre a prática de ato de
averbação;
b) de reexame de requerimentos diversos indeferidos pelo registrador, por
provocação de interessados, tal como para abertura de matrículas, expedição de
certidões, informações etc.;
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 272
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c) de cancelamentos administrativos de registro e de restauração de registros
cancelados;
d) de bloqueio de matrículas e de levantamento de bloqueios;
e) de dispensa de registro especial de parcelamento do solo urbano;
f) de consulta geral – conhecível por conveniência e oportunidade, conforme o
interesse público –, ou de instauração de ofício, geralmente tendentes a alterações,
reformas e inovações de normas de serviço ou decisões normativas.
7.1 Processo de requalificação por dissenso sobre ato de averbação
Dissenso entre o registrador e o interessado sobre a prática de ato averbatório
(arts. 167, II, e 246, ambos da Lei de Registros Públicos) tramita em processo
administrativo comum, não em processo administrativo especial de dúvida registrária
(próprio, no Estado de São Paulo, apenas para situação de registro em sentido estrito:
art. 167, I, da Lei de Registros Públicos).
São, pois, entre outros de fim averbatório, alguns exemplos desses processos
administrativos ordinários freqüentes no Juízo Corregedor, os de averbação de:
a) construção;73
b) desdobro,74
ainda que as novas unidades imobiliárias tenham áreas inferiores
a 125 m²;75
c) desmembramento de pequeno porte de imóvel urbano;76
d) desmembramento de imóvel rural;77
e) fusão e encerramento de matrículas;78
f) abertura de rua;79
g) alteração de convenção condominial;80
h) óbito de cônjuge;81
73 CSM, Apelações Cíveis 30.656-0/8 e 72.130-0/5; Processo CG 620/2006. 74 CSM, ApCív 72.357-0/0; Processos CG 29/2006, 453/2006. 75 Processos CG 276/2007, 599/2006, 39.612/81, 1.528/97 e 1595/01; CSM, Apelações Cíveis 2.199-0 e
3.607-0. 76 CSM, Apelações Cíveis 44.645-0/5, 50.233-0/4 e 65.036-0/0. Cf., ainda, adiante, as notas de
referências aos Processos da CGJ, no item 7.4. 77 Processo CG 884/2005 e 259/2006. 78 CSM, Apelações Cíveis 33.807-0/0 e 42.930-0/1. 79 CSM, ApCív 36.260-0/4; Processo CG 171/92, 177/96,1.539/96 e 1.716/96. 80 Processo CG 56/95.
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 273
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i) incorporação da sociedade que figura como titular do domínio tabular;82
j) protesto contra alienação de bens,83
antes inadmissíveis, hoje, admissíveis no
Estado de São Paulo;84
k) localização do imóvel em território de dois Municípios;85
l) caução,86
especialmente a caução atípica no âmbito de locação predial urbana
(Lei 8.245/91, art. 38, § 1.º),87
que são mais comuns, sem esquecer, todavia, da caução
dos direitos de crédito decorrentes da alienação fiduciária dada pelo credor fiduciário;88
m) cisão de sociedade anônima89
e de sociedade por cotas;90
n) mera notícia de titularidade exclusiva de domínio (próprio de um dos
cônjuges) por incomunicabilidade de bens,91
inclusive diante da possível dúvida
decorrente de aplicação de lei estrangeira;92
o) casamento e respectivo regime de bens93
e de separação do casal;94
p) desafetação de logradouros classificados como bens de uso comum do povo
para a classe de bens dominiais;95
q) indivisibilidade de imóvel decorrente de TAC (Termo de Ajustamento de
Conduta);96
r) ineficácia por fraude à execução, para inscrição de penhora;97
s) cessões de crédito com garantia hipotecária;98
t) renúncia em geral, tal como de usufruto;99
81 CSM, ApCív 36.146-0/4. 82 CSM, ApCív 28.418-0/2; Processo CG 3.436/95. 83 CSM, ApCív 25.277-0/6; Processos CG 850/2006 e 846/2006. 84 Processo CG 485/2007. 85 CSM, ApCív 67.554-0/8. 86 CSM, ApCív 66.561-0/2. 87 Processo CG 1.065/2005, 960/2006 e 129/2007, Protoc CG 34.906/2005. 88 Processo CG 1.035/2006. 89 CSM, Apelações Cíveis 65.666-0/4 e 65.893-0/0. 90 Processo CG 1.779/95. 91 Processo CG 1.640/96. 92 Processo CG 755/2005. 93 Processo CG 933/2005. 94 Processo CG 431/96. 95 Processos CG 1.066/2005, 274/93. 96 Processo CG 215/2006. 97 Processo CG 40.690/2006. 98 Processo CG 390/2004. 99 Processo CG 156/92.
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u) cancelamento em geral, tal como de pacto comissório,100
de hipoteca,101
de
usufruto,102
de cláusula fideicomissária,103
de medida cautelar de arrolamento de
bens;104
v) retificações em geral, tal como as decorrentes de mandado judicial,105
aquelas para correção de averbação errônea de restrição convencional.106
7.2 Processo de reexame de requerimento indeferido pelo registrador:
abertura de matrícula, certidão, informação etc.
Quanto à abertura de matrícula, embora seja ato de inscrição (ou de registro em
sentido amplo), não é ato de registro em sentido estrito (art. 167, I, da Lei de Registros
Públicos) e, assim, também está fora do processo especial de dúvida, classificando-se na
seara do processo administrativo ordinário.107
Certidões e informações estão no contexto maior da publicidade registrária e,
não raramente, a matéria também é objeto de apreciação em procedimentos
administrativos ordinários,
a) enfatizando a distinção entre publicidade direta e indireta – e assentando que
aquela, antes prevista no Dec. 4.857/39 (art. 19), não é acolhida pela Lei 6.015/73 (art.
16), que, em regra, segue o sistema da publicidade indireta (via certidões e informações)
–, para explicitar que não se deve exibir aos particulares os próprios livros, fichas ou
documentos arquivados,108
ressalvada a exceção do processo de registro de loteamento,
desmembramento e incorporação imobiliária;
b) ressaltado que os interessados têm direito à certidão, não à sua forma, que
deve resguardar os pressupostos de clareza da redação escrita e da segurança jurídica, o
que afasta a possibilidade de expedição de certidão de transcrição em forma
reprográfica do respectivo livro;109
100 Processo CG 30/2006. 101 Processo CG 193/2006, 15/2007 e 94/2007. 102 Processo CG 3.512/95. 103 Processo CG 1.505/94. 104 Processo CG 1920/95. 105 Processo CG 1.108/2005. 106 Processo CG 189/2006. 107 CSM, ApCív 72.618-0/2; Processo CG 1.044/2006. 108 Protoc CG 42.249/2005. 109 Processo CG 23/92.
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c) confirmando a lição tradicional que a certidão deve espelhar a realidade do
registro imobiliário, para afastar pretensões testificatórias que buscam distorcer a
verdade tabular;110
d) observando que não se pode impor ao registrado o dever de comunicar ao
proprietário quando do eventual ingresso de título tendente à alienação de seu imóvel,
por receio de eventual e futura falsificação, facultando-se, todavia, ao interessado
solicitar esporadicamente informações ou certidões, com o escopo de monitorar a
situação registral dos seus imóveis.111
7.3 Processos de cancelamento, restauração, bloqueio e levantamento de
bloqueio
Embora haja, em lei, a previsão para o cancelamento administrativo de registro
e norma indicativa da necessidade de respeito ao contraditório (art. 214, § 1.º, da LRP),
não há previsão normativa especial do procedimento,112
o que justifica sua classificação
no rol dos processos ordinários, observando-se que o Conselho Superior da Magistratura
não conhece da matéria, quer de cancelamento,113
quer de restauração de registro
cancelado.114
Idem, quanto ao bloqueio de matrículas e ao levantamento de bloqueios.115
Vale a pena sublinhar nestas questões que há três lições maiores – de primeira
magnitude – que não podem passar despercebidas dos operadores do direito:116
a) primeira: apenas vício extrínseco (formal ou do próprio registro),
identificável na face das tábuas registrais, pode justificar cancelamento pela via
administrativa (art. 214 da LRP), e, consequentemente, se não houver esse tipo de vício,
não se dispensa a via jurisdicional mediante ação adequada (art. 216 da LRP), ainda que
haja relevantes razões para supor a deficiência do título causal;
110 Processos CG 263/93, 1.339/94 e 36/2006. 111
Processo CG 191/2006. 112 É verdade que a Lei 10.931, de 2004, incluiu o § 2.º no art. 214 da LRP, indicando, para decisão que
decretar a nulidade, os recursos de apelação ou agravo conforme o caso; todavia, no Estado de São Paulo,
o entendimento que ainda perdura é no sentido de que se está na esfera do processo administrativo
comum, com atribuição recursal de 2.º grau ao Corregedor Geral da Justiça. 113 V.g., Apelações Cíveis 33.365-0/1 e 34.785-0/5. 114 V.g., ApCív 68.438-0/6. 115 CSM, ApCív 32.851-0/2. 116 Processo CG 582/2006.
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b) segunda: sem esse vício de registro (extrínseco), bloqueio de matrículas (§§
3.º e 4.º do art. 214 da LRP), pela via administrativa, também não pode haver, ainda que
haja relevantes razões para supor a deficiência do título causal;
c) terceiro: cancelamento e bloqueio de transcrição/matrícula são inadmissíveis
em prejuízo de terceiro de boa-fé, acobertado pelo lapso temporal da prescrição
aquisitiva (art. 214, § 5.º, da LRP).
É, pois, em razão daquela primeira lição (a), que se afirma, reiteradamente, que
vício intrínseco, referente ao título que deu causa ao registro, não pode ser reconhecido
na via administrativa, pois não prescinde do ajuizamento de ação própria,117
tal como
em hipótese que demanda a análise da alegada falsificação da procuração na via
jurisdicional,118
ou em notícia de partícipe de escrituras de venda e compra, falecido
antes dos atos notariais,119
ou de alegação de morte de adjudicatário ao tempo da
adjudicação e do registro da carta,120
ou em razão de duplicidade de venda do mesmo
imóvel,121
ou por suposta alienação em fraude à execução,122
entre outras situações.
A mencionada segunda lição (b) também pode ser expressa de outro modo: se
não há motivo para cancelar administrativamente, também não pode haver bloqueio
administrativo. Ela resulta não só da localização topográfica da norma que prevê o
bloqueio (§§ 3.º e 4.º) em relação àquela que prevê o cancelamento (caput), no mesmo
artigo de lei (art. 214 da LRP), e da máxima – “quem pode o mais, pode o menos” –,
mas também da compreensão histórica e finalística do bloqueio, que recomenda a
solução menos drástica a mais drástica, para remediar ou prevenir o mal ocorrido ou em
potencial, em situação que se deva aguardar o remédio adequado que sane o vício.123
117 Processos CG 292/91, 270/92, 38/92, 185/93, 519/94, 10.819/96, 455/2006. 118 Processo CG 767/2006. 119 Processo CG 1.032/2006. 120 Processo CG 689/2006. 121 Processo CG 86/92. 122 Processo CG 516/2006. 123
“De fato, basta verificar a circunstância de que a inovação legal do bloqueio (Lei 10.931, de
02.08.2004) consta em parágrafo (§ 3.º) do mencionado art. 214 da Lei de Registros Públicos, para
concluir que só é possível o bloqueio administrativo em igual situação de vício registrário extrínseco:
afinal é principio elementar de hermenêutica a necessidade de extrair a inteligência de norma inserta em
parágrafo em função daquela constante no caput respectivo. Mas não é só. Inteligência histórica do
bloqueio, decorrente do estudo dos precedentes administrativos que o admitiam mesmo antes daquela
previsão legal, não conduzem a conclusão diversa, bastando verificar as hipóteses que os justificavam, ou
seja, situações de vícios formais, do próprio registro, que, por prudência, indicavam a medida menos
drástica (bloqueio) à mais drástica (cancelamento), desde que necessária e suficiente para remediar ou
prevenir o mal ocorrido ou em potencial (cf. Protocolado CG 7.400/92, Processos CG 54/92, 1.319/96,
entre outros). Sólidos, pois, os precedentes da Corregedoria Geral da Justiça, no sentido de que o bloqueio
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A terceira lição (c), que tem em mira preservar situações jurídicas consolidadas
pelo tempo, em favor de adquirente de boa fé, embora expressa em lei apenas a partir de
02.08.2004 (Lei 10.931/2004), não era novidade no âmbito da Corregedoria Geral da
Justiça bandeirante,124
destacando-se hoje vários outros julgados, agora com suporte
legal (art. 214, § 5.º, da Lei de Registros Públicos), no mesmo sentido.125
Além dessas três lições de primeira grandeza, outras, menores, mas não
desprezíveis para boa orientação prática, convém ter em conta:
a) ordem judicial inclusa no fólio real (ou no sistema registral) não se cancela
senão por novo comando judicial mandamental;126
b) cancelamento na via administrativa é limitada à cognição restrita (formal), e,
assim, é imprescindível a via jurisdicional para ampla cognição (formal e material),
inclusa a de interpretação de vontade negocial;127
c) admissível o cancelamento administrativo em situações de registros com
violação às normas e aos princípios registrários, como ao de continuidade,128
ao de
especialidade objetiva,129
ou à fusão de matrículas viciada por ausência de contigüidade
tabular;130
d) bloqueio de matrícula é medida excepcional, e, assim, inviável sua
permanência, após cessada a causa que lhe originou,131
lembrando-se ser medida de boa
utilidade para casos de duplicidade, total ou parcial, de matrículas em correntes
administrativo de atos de registro e averbação não se pode impor quando não houver vício de natureza
registrária, ou seja, quando a situação estiver fora do amparo no art. 214 da Lei 6.015/73 (Processo CG
1.319/96, Decisões Administrativas da Corregedoria Geral da Justiça -1996, ementa 63). Entenda-se: “nos
termos do disposto nos §§ 3.º e 4.º do referido art. 214 da Lei 6.015/73, a providência do bloqueio
destina-se, a rigor, a impedir danos de difícil reparação, na hipótese de nulidade de pleno direito do
registro, danos esses que poderiam ser causados na superveniência de novos registros”, e, daí é inviável o
bloqueio administrativo, se “inexiste vício registral passível de ser reconhecido nesta esfera
administrativa” (Processo CG 825/05). Essa, por fim, a orientação de Vossa Excelência, como ficou
expresso em vossa decisão de 09.01.2006, no Processo CG 829/2005: “(...) sem vício de registro,
bloqueio de matrículas (§§ 3.º e 4.º do art. 214 da LRP), pela via administrativa, não pode haver”
(Processo CG 249/2006). 124 Processos CG 32.391/2000, 1.268/2002 e 812/2003. 125 Processos CG 885/2005, 1.144/2005, 1.150/2005, 577/2006, 582/2006, 1.040/2006 e 1.636/2006. 126 Processo CG 810/2005 (caso de averbação de arrecadação). 127 Processos CG 851/2006, 1.109/2005, 1.583/95, 605/94 e 120/84 (casos de cláusulas restritivas –
impenhorabilidade e inalienabilidade – instituídas em testamento, que exigem interpretação da vontade do
testador). 128 Processo CG 898/2005. 129 Processo CG 812/2005. 130 Protoc. CG 726/2005. 131 Processo CG 29.831/1999.
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filiatórias distintas, até solução jurisdicional,132
bem como para se evitar que erros
registrários continuem ocorrendo, até que o vício de raiz seja sanado.133
7.4 Processo de dispensa de registro especial de parcelamento do solo
Dispensa de registro especial de parcelamento do solo urbano (art. 18 da Lei
6.766/79), que também é de procedimento administrativo comum,134
resulta de
inúmeras decisões da Corregedoria Geral da Justiça, por interpretação teleológica da Lei
6.766/79 (especialmente da finalidade do registro especial de loteamentos e
desmembramentos), que até justificaram previsão nas normas de serviço (item 150.4 do
Capítulo XX do Prov. CG 58/89).135
Esses feitos são, até hoje, freqüentes no cotidiano do Juízo Corregedor, como é
possível conferir em recentes julgados, que enfatizam, para dispensar o registro
especial, a necessidade de verificação de duas situações negativas e uma positiva:
a) ausência de razão urbanística (inovação viária inexistente);
b) ausência de razão protetivo-social (massa de adquirentes potencialmente
descoberta de tutela jurídica inexistente);
c) presença de elementos objetivos circunstanciais, de análise conjuntural, que
caracterizem o parcelamento fora da feição de empreendimento imobiliário e de
configuração de fraude à lei (v.g., parcelamento sucessivo).
Conseqüência do primeiro pressuposto (a) é a assertiva de que apenas
desmembramentos, não loteamentos, podem ser dispensados do registro especial; do
segundo (b), que o número não elevado de lotes resultante do parcelamento (v.g., dez136
)
é critério bom (não único) para extrair alguma conclusão favorável à dispensa; do
terceiro (c), enfim, diversas afirmações em que se observa a importância de análise
conjunta de diversos fatores circunstâncias para se atingir a justa solução, tal como
132 Processo CG 890/2006. 133 Processos CG 600/2006 e 245/2006. 134 CSM, ApCív 28.945-0/7. 135 Previsão de cabimento, que não equivale à previsão de procedimento, não retira o caráter ordinário do
processo. Confira a norma de serviço: “Nos desmembramentos, o oficial, sempre com o propósito de
obstar expedientes ou artifícios que visem a afastar a aplicação da Lei 6.766, de 19.12.1979, cuidará de
examinar, com seu prudente critério e baseado em elementos de ordem objetiva, especialmente na
quantidade de lotes parcelados, se se trata ou não de hipótese de incidência do registro especial. Na
dúvida, submeterá o caso à apreciação do Juiz Corregedor Permanente”. 136 Provimento 3/88 da 1ª Vara de Registros Públicos da Capital de São Paulo.
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aquela (c.1) que pela sucessão de desmembramentos constante nas tábuas de registro,
extrai situação de empreendimento em fraude à lei;137
(c.2) que associa a realidade do
parcelamento à de construções de casas para alienação via SFH, minimizando os riscos
aos adquirentes (situações que justificam dispensa para maior número de unidades
resultantes de desmembramento138
); (c.3) que reclama, para sustentar, ou não, fraude à
lei por parcelamento sucessivo, atenção não só à cadeia de assentos, mas também à
cadeia de domínio e ao lapso temporal entre as inscrições prediais, afastando a
qualificação de fraude quando o conjunto de informações tabulares não revelar situação
de empreendimento imobiliário (v.g., falta de elo entre o atual proprietário que pretende
o desmembramento, em relação àquele que, há longo tempo, promoveu
desmembramento anterior).139
7.5 Processo de consulta em geral e feitos diversos de caráter normativo
Por fim, na esfera das consultas em geral e de feitos relacionados a alterações,
reformas e inovações de normas de serviço ou decisões normativas, também não faltam
exemplos, bastando ressaltar, a título ilustrativo, processos administrativos que
examinaram a admissibilidade de averbação de áreas contaminadas140
e de temas a ela
correlatos,141
a inadmissibilidade de cancelamento de ofício de constrições judiciais
averbadas sem determinação do juiz do processo,142
a admissibilidade de averbação de
137 Processos CG 1.074/2005, 243/2006, 564/2006 e 917/2006. 138 Processos CG 182/85, 141/85, 267/85, 25/90 e 195/88. 139 Processos CG 65/2006, 68/2006, 229/2006, 394/2006, 496/2006 e 588/2006. 140 Admissível a publicidade registral de áreas contaminadas por substâncias tóxicas e perigosas, por
averbação enunciativa de “declaração” ou “termo” emitido pela Cetesb, conforme consulta conhecida,
com resposta positiva (Processo CG 167/2005). 141
Consulta complementar a mesma matéria, também conhecida, para “determinação aos oficiais de
registro de imóveis para que acessem o site do órgão ambiental, localizem os endereços das áreas
contaminadas e providenciem o encaminhamento de certidões das matrículas dos imóveis
correspondentes”, e esclarecer que as averbação de áreas contaminadas pela Cetesb são isentas, diante da
incidência da norma do art. 8.º, parágrafo único, da Lei 11.331/2002 (Protoc CG 167/2005). 142
Consulta conhecida, no sentido de definir que o cancelamento automático ou por decisão
administrativa da Corregedoria Permanente ou da Corregedoria Geral da Justiça de penhoras, arrestos e
seqüestros anteriores, a partir do registro da arrematação ou adjudicação do bem constrito realizada em
ação de execução, não é admissível, necessitando de ordem judicial expressa oriunda do juízo que
determinou a constrição (Protoc. CG 11.394/2006).
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protesto contra alienação de bens,143
de averbação de tombamento provisório144
e de
penhora on line,145
entre outros feitos.
8. Peculiaridades de processo administrativo ordinário de registro predial
quanto à forma
Não há dúvida, como já exposto, de que as principais informações, para
compreensão dos feitos comuns do Juízo Corregedor (Permanente e Geral), em sua
forma, decorrem, de um lado, das conseqüências de sua natureza administrativa e, de
outro, da fluidez formal do processo administrativo ordinário, que impõe sua baliza
pelas diretrizes gerais de processo administrativo.
Cumpre, todavia, para fechar o quadro de orientação prática deste trabalho,
apenas indicar, em síntese, conforme se pode colher em vários julgados da Corregedoria
Geral da Justiça, alguns traços formais marcantes do processo administrativo ordinário
de registro predial no âmbito correcional e algumas de suas peculiaridades, no escopo
de orientar seu bom trâmite, evitando confusões que comumente ocorrem com outros
tipos de processos.
Destaquem-se, então, em resumo, que os processos administrativos ordinários:
a) não são regulados em lei específica, embora tenham base legal expressa ou
implícita;
b) em regra, têm por fim a legalidade do serviço delegado e dos respectivos
atos praticados;
143 Consulta conhecida para admitir a averbação de protesto contra alienação de bens imóveis, diante do
entendimento fixado pela Corte Especial do E. STJ (EREsp 440.837-RS, DJ 28.05.2007) – (Processo CG
485/2007). 144 Consulta conhecida no sentido de admitir a averbação de mera notícia do tombamento provisório, de
restrições próprias de bens imóveis integrantes do patrimônio cultural, decorrentes de outras formas de
preservação e acautelamento, expressas em ato administrativo ou legislativo ou em decisão judicial, bem
como de restrições próprias de imóveis situados no entorno dos bens tombados ou reconhecidos como
integrantes do patrimônio cultural (Processo CG 1.029/2006). 145 Consulta conhecida no sentido de admitir o sistema eletrônico de averbação e cancelamento de
penhora de bens imóveis nas serventias prediais, denominado “penhora on line”, diante do prescrito no
art. 659, § 6.º, do CPC, com a redação dada pela Lei 11.382/2006, obedecidos os requisitos da
autenticidade, integridade, validade jurídica e interoperabilidade da Infra-Estrutura de Chaves Públicas
Brasileira – ICP-Brasil (art. 154 do CPC) – (Processo CG 888/2006).
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c) sua iniciativa é aberta a qualquer interessado (particular, registrador,
Ministério Publico, poder ou órgão público, entidade de classe etc.), sem esquecer que,
em determinadas circunstâncias, até de ofício podem ser instaurados;146
d) seu movimento é por impulso oficial, sem formas rígidas;
e) há intervenção do Ministério Público, como curador de registros públicos;147
f) a decisão de primeiro grau é do juiz corregedor permanente, sem reexame
necessário (ou recurso de ofício), mas com possibilidade de recurso administrativo (art.
246 do Código Judiciário), não apelação, no prazo de 15 dias, ao Corregedor Geral da
Justiça;
g) não têm função sensório-disciplinar, observando-se que, se alguém quiser
fazer reclamação ou representação contra a prática de ato do registrador, ou se o juiz for
promover alguma medida dessa ordem, terá que agir mediante processo administrativo
específico.
Por fim, atenção as seguintes peculiaridades destinadas a evitar confusões, que
partem do cuidado elementar para não transpor ao processo administrativo as regras e os
institutos próprios do Código de Processo Civil. Assim, nos processos administrativos
ordinários do Juízo Corregedor (Permanente e Geral):
a) não cabe agravo (salvo para recurso não recebido);148
b) não cabe intervenção de terceiros;149
146 E não importa em ofensa ao princípio constitucional de ampla defesa “o julgamento do processo
administrativo pelo mesmo Juiz que instaurou o procedimento e instruiu o feito” (Processo CG 1.700/94).
Confira, ainda, Processo CG 2.400/96. 147 Processos CG 1.149/2003, 608/2004, 1.037/2005, 1.150/2005. Todavia, sem o mesmo rigor do
processo civil: Processo CG 28/92 (caso em que não se anulou o processo, por falta de manifestação do
Ministério Público em primeiro grau). 148
V.g., Processo CG 900/2006 e Protocolo CG 29.463/2006. Ver, ainda, Processos CG 293/92
(Decisões administrativas da CGJ, cit., 1992, verbete 61), com menção a vários precedentes (Decisões
administrativas da CGJ, 1983/1984, cit., verbetes 44 e 92; Processos CG 161/89, 222/89 e 86/91) e
Processo CG99/92 (Decisões administrativas da CGJ, 1992, verbete 112), com referência a vários outros
precedentes (Processos CG 91/92, 296/91, 169/85 e 220/83). Do CSM, confira, ainda, ApCív 096905-0/8
(rel. Des. Luiz Tâmbara). 149 Embora em sede de dúvida, valem também para os processos administrativos em geral, as lições
constantes na declaração de voto do Des. Young Da Costa Manso, Presidente e Revisor, na ApCiv 408-0,
da Comarca de Americana (CSM), j. 06.10.1981, DOE. de 13.11.1981: “Trata-se, porém, de simples
procedimento administrativo de dúvida, em que “não se vêm partes, não se convocam, nem se ouvem
terceiros, não se discutem obrigações, não se interpretam vontades, não se analisam comportamentos.
Examina-se objetivamente o título, verificando-se a sua idoneidade para o pretendido acesso ao registro”
(RT, 494/84). Não se aplicam a esse tipo de procedimento as regras de litisconsórcio que vigoram no
processo judicial, de finalidade e alcance diversos”.
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c) não incidem custas (taxa judiciária) nem há condenação em verbas de
sucumbência;150
d) não há necessidade de advogado;151
e) não há prazo em dobro para recorrer;152
f) não há coisa julgada com feição igual à da sentença judicial;153
g) não há, em regra, espaço para perícia154
nem para prova oral;
h) não há citação, revelia nem nomeação de curador especial.155
Fica, deste modo, para quem opera ou vai operar com tais processos
correcionais ordinários a dica para se desvestir da roupagem do Código de Processo
Civil e da mentalidade própria do processo civil, apropriando-se, isso sim, da
mentalidade do direito administrativo e das frouxas vestes do processo administrativo.
8. Conclusão
150 Processos CG 745/2005 e 614/2006 (não incidência de custas processuais ou da taxa judiciária),
Processo CG 139/2007 (inadmissibilidade de condenação em verbas de sucumbência: custas e verba
honorária), Processos CG 05/93 e 856/94 (não cabimento de honorários de advogado). 151 Processos CG 85/92, 52.000/2005. 152
Diversamente da dúvida registrária, em que há prazo em dobro para recorrer, por aplicação subsidiária
(não análoga) do CPC (CSM, Apelações Cíveis 12.315-0/0 (rel. Onei Raphael) e 6072-0 (rel. Des. Sylvio
do Amaral), não há situação equivalente em processo administrativo ordinário do Juízo Corregedor:
Processos CG 756/2006, 03/94, 106/92, 91/92, 53/86 e 220/83. 153 Processos CG 756/2006, 794/2005 e 215/2006, entre outros. V. ainda, item 3.3.3 supra, deste estudo. 154 CSM, ApCív 1.214-0, da Comarca de Santos, j. 18.04.1983, rel. Bruno Affonso de André
(inadmissibilidade de perícia grafotécnica). Consigne-se, enfim, a boa síntese do Des. Marcos Nogueira
Garcez, na ApCív 3.598-0 (CSM), j. 02.05.1985, DOE de 08.01.1985: “Frise-se que o juízo
administrativo dos registros públicos “é mero instrumento de controle de publicidade e da regularidade
extrínseca dos direitos reais imobiliários, não comportando ele competência para examinar o suporte
fático subjacente, com pretende obter o apelante” (ApCív 2.194-0, São Paulo, 17.05.1983, rel. Des.
Affonso de André)”. Observe-se, no entanto, que, por exceção, admite-se perícia em processo
administrativo-judicial de retificação de área (Processo CG 441/2006) e de regularização de parcelamento
do solo (item 154.1 do Cap. XX das NSCGJ-SP, Prov. CG 58/89). Para avaliação de acervo público da
unidade de serviço, há também previsão de perícia na Lei estadual 12.227/2006 (cf. Protoc. CG
41.868/2005), mas essa lei está com sua vigência e eficácia suspensa (TJSP, ADin 134.113.0/9-00). 155
Processo CG 1.398/94.
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Hans Baldung, artífice do Renascimento
conhecido por Grien, em 1510, pintou o quadro
intitulado Alegoria do efêmero ou As três idades
da vida e da morte. Alegoria da vaidade das
coisas terrenas (que se encontra no
Kunsthistorisches Museum de Viena).
A tela, dividida em duas partes, tem na
metade direita, a figura humana da morte, e, na
metade esquerda, três figuras de mulher, cada
uma em uma das três idades da vida (criança,
jovem e velha). Todas, no entanto, em dinâmico
elo: o cadáver eleva, sobre as fases da vida, uma
ampulheta, que a velha, com uma das mãos, busca afastar, embora a jovem a ignore, por
estar atenta apenas a sua imagem no espelho convexo, que a idosa lhe apóia, e a criança
tem olhar voltado apenas à moça; um véu, por outro lado, parte da infante, envolve o
braço da jovem e, passando pelas mãos da morte, é agarrado, antes de seguir caminho
para fora do quadro.
Todas as figuras, pois, da criança até a morte estão unidas, em fases, sob a
perspectiva dinâmica e o rigor do tempo, em eloqüente expressão de sua efemeridade.
Eis aí, a imagem da vida terrena e, por que não dizer, do processo... O processo
é como essa vida: tem fases (infância, juventude e velhice) em elo dinâmico marcado
pelo tempo. E, ainda mais, também como a vida humana, nasce para morrer: é efêmero.
Por isso, processos têm prazos e estão sob a ampulheta, para que sejam concluídos.
Ao falar em registros públicos, logo percebemos que neles, ou em torno deles,
existem vários processos (processo de registro de um título, processo de retificação
administrativa, processo de retificação judicial, processo de dúvida, processos
administrativos do Juízo Corregedor, processos jurisdicionais etc.): alguns
extrajudiciais, outros judiciais; alguns administrativos, outros jurisdicionais; alguns
administrativos de rito especial, outros administrativos de rito comum ou ordinário etc.
Mas, o que realmente importa é que os processos são para a vida, porque no
verso de cada um existem pessoas que aguardam decisões e soluções, quer de
registradores, quer de juízes, na esperança de paz, pela segurança jurídica e justiça, que
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devem propiciar. Processos administrativos de registro, pois, também nascem para
morrer, mas nascem, sobretudo, para facilitar a igualmente efêmera vida terrena das
pessoas: nascem para atender às concretas necessidades humanas.
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12.
A PENHORA E O PROCEDIMENTO DE DÚVIDA*
SÉRGIO JACOMINO
Mestre e Doutor em Direito pela Unesp.
Coordenador Editorial do Irib.
5.º Oficial de Registro de Imóveis de São Paulo-SP.
SUMÁRIO: Dúvida – O nome e a coisa - Dublês de notários, registradores e escrivães
judiciais - Dúvida – Averbação e registro - Política judiciária - O Código Judiciário de São
Paulo - Penhora – Registro ou averbação?
Coube-me enfrentar o problema da penhora e o procedimento de dúvida. Essa
tarefa se torna ainda mais árdua e desafiante em razão de suceder ao desembargador
Ricardo Dip, organizador e nossa maior inspiração na concretização desses diálogos no
Café com Jurisprudência, hoje se realizando em Alphaville.
Os tópicos que vou procurar abordar são: dúvida – o nome e a coisa; cabimento
da dúvida somente para os casos de registro stricto sensu; penhora, objeto de registro ou
averbação?
Dúvida – O nome e a coisa
A utilização da palavra dúvida, para qualificar o procedimento decorrente de
denegação resistida à pretensão de registro, sempre me causou certa perplexidade.
* Seguindo a orientação do Organizador do Café com Jurisprudêndia, Des. Ricardo Dip, o texto
ora apresentado conserva o tom coloquial da apresentação feita no dia 2 de junho de 2007, na
manhã chuvosa de Alphaville.
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Dúvida é desconfiança, hesitação, incerteza. O campo semântico da expressão abarcaria,
no limite, a idéia de perplexidade e detimento diante do fato do registro rogado. Pode
significar um estado de irresolução, indecisão, que poderia acarretar a paralisação do
procedimento registral. E, no entanto, todos nós sabemos que o Registrador não tem
dúvida; não pode hesitar diante da necessidade de decidir acerca da registrabilidade de
um título. Não se detém em razão do dever legal de admitir ou denegar a inscrição.
O Regulamento de 1846 (arts. 30 e 31 do Dec. 482, de 1846) previa a
denegação do registro quando a recusa ou postergação da inscrição fosse fundada em
direito. Não se conformando com a demora, ou com a recusa, o interessado poderia
socorrer-se de autoridade judiciária competente para dirimir a controvérsia.
Vê-se, já nos primórdios de nossa legislação hipotecária, que o registrador se
obrigava a imperar a registração. Mas não a negativa. No dito Regulamento já se antevê
o espartilho procedimental que se desenvolverá com maior nitidez nos regulamentos
hipotecários que lhe sucederam. Nesse sentido, o aspecto que gostaria de reter para
nossa consideração é: no caso de ocorrer a qualificação positiva, o registro se faria (art.
30). Já a negativa seria decidida pelo juízo competente (art. 31).
A insinuação da expressão da qual hoje nos ocupamos – dúvida – se dará no
Regulamento de 1865 (Dec. 3.453, de 26 de abril), obra meritória do grande
jurisconsulto do Império, José Thomaz Nabuco de Araújo. A palavra calha nos arts. 69
e 328 do dito regulamento.
Duvidando da legalidade... será a expressão que fará fortuna.1 Essas
expressões serão recorrentes nos regulamentos sucessivos – levantar dúvida, duvidar da
legalidade, dúvida do oficial etc.
A expressão dúvida é, portanto, tradicional em nosso direito.
Todavia, como a ela chegamos? A doutrina de Serpa Lopes nos dará algumas
pistas.
Dublês de notários, registradores e escrivães judiciais
1 Cf. Dec. 370, de 02.05.1890, arts. 66 e ss.; Dec. 18.542, de 24.12.1928, art. 207; Dec. 4.857,
de 09.11.1939, art. 215, § 1.º, até a vigente Lei de Registros Públicos (art. 198 e ss.).
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Como já lhes disse, todos nós sabemos que o registrador jamais se deterá por
hesitações ou dúvidas acerca do pedido que lhe seja endereçado. Esse profissional deve
imperar o registro ou a sua recusa. Do ato caberá recurso administrativo à instância
superior. Essa a tipologia clássica do procedimento registral.
Serpa Lopes, quando escreveu sobre o Registro de Imóveis, apanhou e
sintetizou o espírito de época que animava o relacionamento entre registradores,
notários e juízes. Dizia o tratadista que o dever do oficial é suscitar dúvida em relação
aos atos apresentados à inscrição que, por fundada razão, não fossem admitidos a
registro. Tal encargo representa uma ação vinculada. Diz o jurista:
“O nosso sistema é diferente da legislação portuguesa e de outros onde o
oficial pode suspender a inscrição até que sejam preenchidas determinadas
formalidades, ou recusá-la formalmente quando haja nulidade substancial cabendo,
neste último caso, recurso para o juiz”.
“No nosso sistema, em princípio, o oficial não tem o direito propriamente dito
de recusar a inscrição no sentido de decidir que ela não é possível de se tornar efetiva,
mas apenas suscita dúvida. É ao juiz que compete decidir da sua procedência, ou não,
ordenando ou recusando a inscrição.”2
Vejam que curioso: é como se houvesse a suspensão do juízo de denegação
quando o registro, por infringência à legalidade, não se perfizesse. O registrador, nesses
casos, não poderia imperar a negativa. Não tem “o direito” de recusar a inscrição. A ele
caberá unicamente devolver ao juízo competente a pretensão perante ele, registrador,
deduzida. Nesses casos, deveria, simplesmente, suscitar dúvida!
No começo do século XX, o juiz era naturalmente considerado o presidente do
registro. Tanto o registrador quanto o notário – bem assim escrivães do feito judicial, e
outros tantos profissionais que atuavam no processo –, todos orbitavam a Galáxia
Judiciária; eram órgãos auxiliares da Justiça, astros que refletiam a poderosa luz própria
do Poder.
Nos primórdios, o registrador e o notário funcionavam integrados na máquina
judiciária: aquele era escrivão do feito cível ou criminal, este o escrivão do Cartório do
Júri, Cartório da Corregedoria Permanente etc. Na origem, esses profissionais eram
2 As referências podem ser encontradas em: SERPA LOPES. Miguel Maria de. Tratado de
registos públicos. 4. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960. v. 2, p. 345 e ss., n. 339.
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dublês de escrivães e notários ou registradores; atuavam concomitantemente no foro
judicial e extrajudicial.3
Muitos dos procedimentos no âmbito da escrivania judicial, que se aplicavam
ao processo e se desenvolviam sob a estrita direção do juiz, aplicavam-se analogamente
às Notas e ao Registro. Assim, quando o escrivão, no curso do processo, tinha uma
dúvida, isto é, deparava-se com um fato imprevisto, um acidente no regular andamento
do feito, então ele se detinha e formulava uma consulta, antecedida de uma informação,
ambas endereçadas afinal ao Presidente do processo. Em última instância, seria o juiz
quem decidiria o acidente processual intercorrente, não o escrivão.
Nesse sentido, se compreende perfeitamente como Serpa Lopes enxergava o
registrador na sua peculiar interação com juiz. A apreciação judicial, a direção dos
serviços auxiliares da Justiça, a dirimição de dúvidas de serventuários, escrivães,
oficiais de justiça, tudo isso estava sob a estrita orientação e direção do juiz.
Este era o ambiente em que vivíamos. Havia uma estrita vinculação hierárquica
que se estendia e atingia, inclusive, a medula da atividade própria do registrador. Assim,
quando o registrador se deparasse com uma situação que fugia das regras
preestabelecidas – quer fossem previstas em decisões normativas, quer se fundassem na
praxe cartorária –, então ele se detinha. Suspendia o juízo de qualificação. Devolvia a
matéria ao juiz, a requerimento, municiando-o com prévia informação e suscitação da
dúvida. Mesmo quando duvidasse da legalidade, ele não proferia a decisão denegatória,
porque isso implicaria declarar in concreto a infringência à ordem legal, o que sempre
esteve reservado ao juiz. Essa circunstância era suficiente para paralisar o procedimento
registral e submeter ao magistrado, a quem se reservava, então, a palavra final.
Havia claramente uma sujeição hierárquica. Éramos, como já disse, dublês de
escrivães do judicial e do extrajudicial, integrávamos a galáxia judiciária, como ainda
integramos, mas de maneira diversa, com outro estatuto profissional e institucional que
a legislação superveniente acabou conformando.
Deixem-me concluir. A nota mais importante a se destacar, na perspectiva
histórica, é que essa limitação na atuação do registrador somente seria ultrapassada com
3 Vale consultar o Dec. 9.420, de 28.04.1885, que consolidou a legislação relativa aos empregos
e ofícios de justiça para que se possa constatar que esses profissionais integravam a família
forense.
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a consagração e o reconhecimento da independência jurídica do registrador, que tem o
poder-dever de imperar não só a registrabilidade do título, mas igualmente a sua recusa.
Contudo, isso tardaria alguns anos ainda, e o marco definidor desse paradigma
se construiria a partir da doutrina do Des. Ricardo Dip, que percorrendo um largo
caminho, seria consagrada na Lei 8.935, de 1994 (art. 3.º c.c. art. 28).4
Dúvida – Averbação e registro
Hoje, no Estado de São Paulo, a dúvida é cabível apenas nos casos de recusa de
prática de ato de registro em sentido estrito. A dúvida só se instaura se presente o
dissenso entre a parte e o Oficial do Registro a propósito de ato de registro. Ou seja, se
o ato a ser praticado no cartório de Registro de Imóveis não for de registro, não caberá a
dúvida, ainda que o interessado, no ato de averbação, venha a requerer expressamente a
suscitação de dúvida. O processamento natural desses pedidos de revisão é a via de
procedimento administrativo comum, que corre no âmbito da administração judiciária
do Estado.
Vamos ver como isso traz algumas conseqüências práticas.
Em primeiro lugar, vamos nos deter na redação da Lei de Registros Públicos.
Nos arts. 198 a 207 encontramos a regulação do procedimento de dúvida.
Destaquemos o art. 203, II, da Lei de Registros Públicos. Diz esse inciso que, se for
julgada improcedente a dúvida, o interessado apresentará, de novo, os seus documentos,
com o respectivo mandado, ou certidão da sentença, que ficarão arquivados, para que,
desde logo, se proceda ao registro, declarando o oficial o fato na coluna de anotações
do Protocolo.
Ou seja, se a dúvida for julgada improcedente, desde logo se procederá ao
registro. Não diz o artigo que se procederá ao registro ou à averbação.
O art. 205 da Lei 6.015 também fala da cessação automática dos efeitos da
prenotação: “Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação se, decorridos 30
4 O autor se refere ao trabalho apresentado no XVIII Encontro dos Oficiais de Registro de
Imóveis do Brasil (Encontro Elvino Silva Filho), realizado em Maceió, no período de 21 a 25 de
outubro de 1991.
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(trinta) dias do seu lançamento no Protocolo, o título não tiver sido registrado por
omissão do interessado em atender às exigências legais”.
Novamente a referência a registro – e não a averbação.
Finalmente, o art. 206 diz que “se o documento, uma vez prenotado, não puder
ser registrado, ou o apresentante desistir do seu registro, a importância relativa às
despesas previstas no art. 14 será restituída, deduzida a quantia correspondente às
buscas e a prenotação”.
Notem bem, a lei não fala em nenhum momento em averbação.
Esse tem sido considerado o elemento fundamental para alicerçar a construção
de admissibilidade de suscitação de dúvida tão-somente nos casos de registro.
Política judiciária
Além desse argumento, qual outro é apresentado para justificar a opção
regulatória? Uma vez mais será o Des. Ricardo Dip que nos dará elementos de
compreensão.
Segundo ele, existe um aspecto político relacionado com a consideração de que
a dúvida só tem cabimento nos casos de registro stricto sensu. No Estado de São Paulo,
diz ele, a partir de meados da década de 80, tomou-se uma decisão que se afirmou,
desde o início, como uma decisão de caráter político. Distinguiu-se registro stricto
sensu de averbação para os fins de designar competências ou atribuições entre o
Conselho Superior da Magistratura e a Corregedoria-Geral da Justiça. Continua o
mestre:
“Estou em situação bastante suspeita para explicar esse episódio. A decisão foi
política, à vista de dificuldades de convivência entre o Corregedor-Geral da Justiça que
integrava, e ainda integra, enquanto cargo e função do Tribunal de Justiça, o Conselho
Superior da Magistratura como relator nato das dúvidas em segunda instância, e ele
corregedor no exercício das funções soberanas em sua ordem da Corregedoria-Geral da
Justiça de São Paulo. Em resumo, era freqüente que o Corregedor-Geral da Justiça,
quando decidia na Corregedoria, o fizesse de uma maneira e votasse vencido no
Conselho, criando, portanto, uma aparente dúplice soberania administrativa. Na
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 291
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verdade, era uma só, a do corregedor. Mas não era possível, como não o é até hoje,
contornar as circunstâncias por que as decisões do Conselho Superior da Magistratura
são muito autorizadas”.5
Era preciso encontrar suporte na lei para justificar a opção regulatória.
O Código Judiciário de São Paulo
Além da Lei 6.015, de 1973, outro eixo fundamental para justificar a não-
admissibilidade da dúvida nos casos de averbação, é o art. 246 do Código Judiciário do
Estado de São Paulo (Dec.-lei Complementar 3, de 27.08.1969).
Uma vez mais o paradigma construído sob a inspiração da estrita vinculação
hierárquica do registrador ao juiz-corregedor iluminará a interpretação hoje assente
sobre o tema. O referido art. 246 se acha aninhado no título dos Ofícios de Justiça Não-
Oficializados (Título III), em cujos capítulos são tratados o provimento, a remoção, a
promoção e o regime disciplinar dos “serventuários dos ofícios e cartórios não
oficializados”.
O art. 246 trata das decisões de juízes corregedores-permanentes; diz a norma:
“Art. 246. De todos os atos e decisões dos juízes corregedores permanentes,
sobre matéria administrativa ou disciplinar, caberá recurso voluntário para o Corregedor
Geral da Justiça, interposto no prazo de 15 (quinze) dias, por petição fundamentada,
contendo as razões do pedido de reforma da decisão”.
A inadequação do suporte legal é evidente. O exame de legalidade de um título
que ingressa no Registro por meio de averbação não representa matéria disciplinar
sujeita à corregedoria-permanente e, em grau de recurso, à Corregedoria-Geral da
Justiça. Essa interpretação rende homenagens a um sistema de relacionamento
hierárquico entre órgãos judiciários e órgãos da fé pública que foi ultrapassado pela
legislação superveniente. Trata-se de um anacronismo.
Mais importante, todavia, é o risco que representa, já que muitos títulos
ingressam no Registro Predial pela porta da averbação.
5 Boletim Eletrônico do Irib, n. 2.960, 23 maio 2007.
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 292
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É necessário e urgente superar esse paradigma. A ocorrência de novos fatos
típicos de averbação acarretará, cedo ou tarde, uma revisão dessa interpretação.
Estamos experimentando certa instabilidade nesse sistema de admissibilidade
de dúvida somente nos casos de registro – e isso devido, basicamente, à casuística
legislativa. Uma pequena amostra poderá nos dar uma idéia. Perfazem-se por averbação
os seguintes atos:
a) Contratos de promessa de compra e venda, cessões e promessas de cessão a que
alude o Dec.-lei 58, de 1937, quando o loteamento se tiver formalizado anteriormente à vigência
da Lei 6.015, de 1973 (art. 4.º, b, c/c o art. 5.º do Dec.-lei 58, de 1937).6
b) Fusão, cisão, incorporação de sociedades (art. 234 da Lei 6.404, de 1976).
c) Direito de preferência no caso de alienação de bem imóvel locado (art. 33,
parágrafo único, da Lei 8.245, de 1991).
d) Caução de imóvel em garantia locatícia. (art. 167, II, 16, da Lei 6.015, de 1973).
e) Penhora, no atual Código de Processo Civil (art. 659, § 4.º).
f) Usufruto de direito processual (art. 722, § 1.º, do CPC).
A circunstância de que esses títulos ingressem no Registro por meio de
averbação, acarreta a instabilidade do sistema. Não podemos desprezar a garantia que o
registro oferece na intercorrência de títulos contraditórios, que podem representar
interesses e direitos conflitantes.
Não é necessário descer a minúcias explicativas para verificar que, embora se
concretizando por ato de averbação no Ofício Registral, tais títulos podem acarretar
conflitos de direitos pela inobservância do procedimento de dúvida. Como se sabe, a
dúvida pressupõe a prenotação do título, suspensão do prazo decadencial da inscrição
no Protocolo e o rito de suscitação de dúvida com as garantias que a Lei consagra no art.
198 e seguintes.
Penhora – Registro ou averbação?
6 Embora as Normas de Serviço da CGJSP prevejam que os contratos de promessa de venda,
cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas condominiais (Lei 4.591, de 1964)
ingressam por ato de registro – “quando a incorporação ou a instituição de condomínio se
formalizar na vigência da Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973” (item 1, n. 18, Cap. XX) –,
permitindo-se concluir, a contrario, que nos demais casos se perfaria por ato de averbação, não
se pode olvidar, contudo, que o § 2.º, art. 32 da Lei 4.591, de 1974, foi alterado pela Lei 10.931,
de 2004. O ato se perfaz por registro.
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O advento da Lei 11.382, de 2006, que radicalizou as reformas do CPC, levou
os especialistas a um debate muito interessante. O experiente registrador paulistano
Ulysses da Silva, em seus comentários sobre a reforma do Código de Processo Civil,
feriu um tema caro aos registradores: a penhora se perfaz mediante ato de registro ou de
averbação? Poder-se-ia jungir: a inscrição da carta de usufruto (art. 722, § 1.º, do CPC)
se perfaz por ato de averbação ou de registro?
Diz Ulysses da Silva:
“Ensejada a oportunidade, e afastada a intenção proposital do legislador, nota-
se, mais uma vez, que ele demonstra falta de conhecimento da técnica registral ao falar
em averbação para a penhora, quando a Lei 6.015, de 1973, determina,
apropriadamente, o seu registro, no inciso I, item 5, do art. 167, considerando tratar-se
de ato de apreensão do imóvel matriculado e que pode levar à expropriação do direito
de propriedade. Há quem entenda, como eu, que a lei agora editada não tem força para
modificar a de n. 6.015, de 1973, com fundamento no princípio consagrado no
parágrafo primeiro do art. segundo da Lei de Introdução ao Código Civil”.
Logo em seguida acresce:
“O direito do legislador, no caso, vai até a determinação de ingresso da
penhora no registro imobiliário, para os fins de direito, mas, a especificação da forma ou
natureza do ato a praticar pelo registrador invade a área de competência do legislador da
Lei de Registros Públicos”.7
Em primeiro lugar, aqui talvez não se dê o caso de falta de conhecimento de
técnica registral do legislador, nem tampouco teria ocorrido a falta de intenção
identificada pelo comentador.
Vamos por partes.
A Lei 11.382, de 05.12.2006, como se sabe alterou o Código de Processo Civil
que, em seu art. 659, § 4.º, dispondo sobre a inscrição da penhora, assim consagrou o
ato de registro:
“§ 4.º A penhora de bens imóveis realizar-se-á mediante auto ou termo de
penhora, cabendo ao exeqüente, sem prejuízo da imediata intimação do executado (art.
7 SILVA, Ulysses da. O registrador imobiliário em face da Lei 11.382, de 2006. Boletim do Irib
em Revista, n. 331, p. 5, abr.-mai.-jun. 2007.
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652, § 4.º) providenciar, para presunção absoluta de conhecimento por terceiros, a
respectiva averbação no ofício imobiliário, mediante a apresentação de certidão de
inteiro teor do ato, independentemente de mandado judicial”.
O decaimento do ato registral da inscrição da penhora e do usufruto – de
registro para averbação – apresenta alguns problemas que devem ser ponderados para
aplicação harmônica e homogênea das regras e procedimentos registrais.
A mudança do status da inscrição foi deliberadamente objetivada pelos autores
do anteprojeto de Lei. Depois de encaminhado o Projeto de Lei 4.497, de 2004, ao
Congresso Nacional, na complementação de voto do relator, o Dep. Luiz Couto nos dá
algumas pistas para compreender o sentido da mudança. Diz ele:
“Adapta-se o dispositivo às demais alterações feitas pelo projeto e substitui-se
o registro da penhora pela sua averbação, o que atende ao objetivo de publicidade e
possui, s.m.j., custo inferior ao registro”.8
A doutrina igualmente denuncia o movimento. Assim, Humberto Theodoro Jr.:
“Embora a Lei dos Registros Públicos preveja o registro da penhora de imóveis
(Lei 6.015/73, art. 167, I, 5), a opção da reforma pela averbação certamente se deveu à
maior singeleza do último ato registral. O registro é sempre cercado de exigências
formais e substanciais que, no caso da penhora, retardam a publicidade do ato judicial,
que a lei empenha seja pronto. De mais a mais, não se trata de ato constitutivo do direito
real, e nem mesmo constitutivo do gravame judicial. Sua função é puramente de
publicidade perante terceiros. Para tal objetivo, é evidente que a averbação se mostra
suficiente e adequada, além de ser mais prontamente factível”.9
O tema é: mitigação do rigorismo formal do mecanismo registral e “custo
inferior ao registro”.
Aqui estou com o registrador paulistano Ulysses da Silva, com as reservas
críticas já anunciadas acima.
8 Complementação de voto do Dep. Luiz Couto na Comissão de Constituição e Justiça e de
Cidadania sobre o Projeto de Lei 4.497, de 2004, datado de 4 de abril de 2005, disponível no
site da Câmara em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/292377.pdf>. 9 THEODORO JR., Humberto. A reforma da execução do título extrajudicial. Rio de Janeiro:
Forense, 2007. p. 91-92.
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Em primeiro lugar, considero que, apesar da cizânia instaurada na definição
conceitual e terminológica dos atos de registro, tanto o registro quanto a averbação
merecem do registrador o mesmo rigor na qualificação registral.
Não se inaugura entre nós a qualificação light.
O fato de não se tratar de um ato constitutivo do direito, e nem, por óbvio,
conformativo do gravame judicial, a inscrição gera, contudo, importantes efeitos ao
tornar oponíveis a todos terceiros os direitos do exeqüente decorrentes do processo de
execução.
Como se verá, a inscrição da penhora ostenta um caráter declarativo. Mas isso
não responde plenamente à questão, pois há inúmeras hipóteses de atos que se
aperfeiçoam no registro por meio de averbação – fusão, cisão, incorporação de
sociedades (art. 234 da Lei 6.404, de 1976), cessões e promessas de cessões de imóveis
de loteamentos inscritos sob o regime do Dec.-lei 58, de 1937, caução de imóveis (art.
38, § 1.º, da Lei 8.245, de 1991) entre inúmeros outros exemplos –, e nem por essa
razão o rigor no exame dos títulos que lhes servem de base é flexibilizado. Por fim, há
ainda exemplos de registros com efeitos meramente declarativos – partilhas, usucapião,
desapropriação etc. – sem que o mesmo rigor deixe de ser observado.
É da tradição do direito brasileiro a relevação da penhora como ato que se
perfaz como registro (inscrição): desde o Dec. 4.827, de 1924 (art. 5.º, a, VII), passando
pelo Dec. 18.542, de 24.12.1928 (arts. 173, a, VI, e 265 e 266), Dec. 4.857, de
09.11.1939 (arts. 178, a, VI, 279 e 280) até a vigente Lei de Registros Públicos – Lei
6.015/73 (art. 167, I, 5, c/c os arts. 239 e 240).
Não se pode dizer que a penhora seja um direito real, nem tampouco um ônus
real em sentido próprio. O registro da penhora não cria nem constitui um direito
subjetivo de caráter real. A constrição judicial representa uma afetação do bem ao
processo executivo e esse estigma, por adjunção transitória que se faz à situação
inscrita, irradiado por efeito da publicidade registral, tem a função relevante de tornar
cognoscível a situação jurídica do bem. Isso no evidente interesse de terceiros.
Com as reformas do Código de Processo Civil a inscrição da penhora acarreta a
inversão do ônus probatório. Com o registro, gera-se, portanto, relevantes efeitos.
As vicissitudes jurídicas que gravam o imóvel – sejam elas decorrentes de
direitos reais limitados ou de situações jurídicas com transcendência real – pela ordem
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de relevância que apresentam, sempre se consagraram no Registro Predial como
inscrições, i.e., como registros stricto sensu.
Valestan Milhomem da Costa, em recente artigo publicado, assim se
manifestou:
“Ademais, malgradas as referências incidentais à averbação da penhora de bens
imóveis, pela nova redação dos §§ 4.º e 6.º do art. 659, e do art. 698, CPC, não parece
que tais referências tenham modificado a natureza do ato registrário a ser praticado para
a publicidade da penhora, conforme estabelecido na lei especial, sendo tais referências
consideradas „disposições gerais a par das já existentes‟, que „não revoga nem modifica
a lei anterior‟, conforme dispõe o § 2.º, art. 2.º, da LICC”.
“Nota-se, ainda, que o art. 7.º da Lei 11.382/2006 revogou expressamente
apenas artigos da Lei 5.869/73, mas não fez referência ao inciso que trata do registro da
penhora, nem o podia fazer, posto que não seria possível revogar o inciso apenas quanto
à penhora”.
“De sorte que, não havendo declaração expressa de revogação de artigos da Lei
6.015/73, nem incompatibilidade entre os fins pretendidos na Lei 11.382/2006 e o ato
de registro indicado nos arts. 167, I, 5, e 240 da Lei 6.015/73, nem tampouco havendo a
Lei 11.382/2006 regulado inteiramente a matéria, há que se entender que a publicidade
do ônus da penhora no Registro de Imóveis ocorre por ato de registro”.
“O mesmo se pode dizer em relação ao usufruto, o qual, não obstante a nova
redação do § 1.º do art. 722, do CPC, requer ato de registro, tanto pelos fundamentos
acima, como em razão da regra do art. 1.227 do CC”.10
João Pedro Lamana Paiva, por outro lado, no mesmo Boletim Eletrônico (n.
2.788, de 11.01.2007 – A penhora no Registro de Imóveis) asseverou:
“Outra inovação estabelecida pela nova Lei Processual é a modificação no
procedimento registral da penhora – que anteriormente era efetivada no álbum
imobiliário por ato de registro – o que ocasionava dificuldade em proceder ao ato, em
virtude do princípio da qualificação documental. Pois, é sabido que o ato de registro
requer um fenômeno registral complexo e, não raramente, os títulos judiciais são
devolvidos em virtude de não preencherem alguns requisitos indispensáveis,
10 COSTA. Valestan Milhomem da. A Lei 11.382/2006 e o Registro de Imóveis. Boletim
Eletrônico do Irib, n. 2.800, 16 jan. 2007.
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 297
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provocando desgastes entre o oficial, as partes, os advogados e o próprio Poder
Judiciário”.
“A opção do legislador em determinar, agora, que a penhora deva ser procedida
através de averbação, em virtude da apresentação de inteiro teor do ato,
independentemente do mandado judicial, ao meu juízo foi acertada. A modificação de
ato de registro para averbação viabilizará maior acesso dessas medidas acautelatórias
(penhora, arresto, seqüestro etc.) no registro imobiliário, uma vez que torna mais efetiva
e célere o ingresso dos mandados judiciais no fólio real. Nesse sentido, a nova lei
reforçou e valorizou um princípio muito comentado na Doutrina de Direito Registral
Imobiliário: o princípio da publicidade registral, tendo em vista que a averbação tem a
presunção absoluta de conhecimento de terceiros”.
“Ressalva-se, contudo, que não estou afirmando que haverá o princípio da
facilitação, porque a substituição do ato de registro pelo de averbação não autoriza que
os preceitos registrais restem esquecidos. O ingresso desse título judicial no álbum
imobiliário, através do ato de averbação, estará sujeito, como qualquer outro, a
qualificação registral, bem como a obediência aos princípios da especialização subjetiva
e objetiva, da continuidade, da disponibilidade, entre outros, devendo conter: a) dados
do imóvel; b) número da matrícula ou transcrição; c) credor/devedor; d) valor da dívida;
e) depositário etc.”.
A natureza jurídica da penhora é matéria complexa. Na síntese de José Alberto
dos Reis “a penhora é uma providência de afetação, a venda uma providência de
expropriação, o pagamento uma providência de satisfação”.11
A penhora é um ato de afetação no processo executivo. E a publicidade
registral da penhora, qual seria a sua natureza jurídica? Quais os efeitos de sua
publicidade pelo registro?
A resposta a essa pergunta poderá nos proporcionar elementos para justificar a
acessoriedade do ato (averbação) ou sua consideração e valoração pelo aspecto da sua
principalidade (registro).
Serpa Lopes procurou distinguir os aspectos relacionados com a inscrição pelos
seus efeitos. Depois de asseverar que de um ponto de vista geral a averbação é um ato
acessório, quanto à substância,
11 REIS, José Alberto dos. Processo de execução. Coimbra: Coimbra Editora, 1982. v. 2, p. 91.
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 298
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“esse caráter apresenta-se nitidamente como um dos pontos diferenciais da
transcrição e da inscrição, porque, enquanto estas constituem condição de eficácia do
ato, de modo que a sua omissão prejudica o título que lhe serve de causa, averbação, se
omitida, não atenta contra o ato principal, que subsiste, mas apenas pode paralisar
qualquer procedimento no registro, enquanto não for feita, não importando nulidade a
sua omissão, mas apenas uma irregularidade embora devendo ser sanada”.12
E segue o festejado tratadista analisando os efeitos da publicidade:
“Deduz-se daí que, em relação ao fim da publicidade, a averbação e a inscrição
são idênticas; diferem apenas quanto aos efeitos decorrentes da omissão de qualquer
delas, quando obrigatórias. Ambas atuam como um espelho fiel da situação da
propriedade imobiliária, mas a repercussão da falta da primeira afeta ou à própria
existência do direito ou à sua disponibilidade, enquanto a segunda exige apenas que se
sane a irregularidade.13
O jurista português Carlos Ferreira de Almeida deteve-se na meditação acerca
da publicidade nos registros públicos. Apresentou uma classificação levando em
consideração os efeitos decorrentes da publicidade registral.
Talvez devêssemos recuperar as discussões que, no início do século passado,
empolgaram a doutrina – especialmente a italiana – acerca do fenômeno da publicidade
registral. Retomando a categorização que se supõe ainda hígida, aproveitando a
tipologia oferecida por Carlos Ferreira de Almeida, temos:
a) publicidade-notícia (sem particulares efeitos no ato publicado);
b) publicidade declarativa (necessária para que os fatos sejam eficazes em relação
a terceiros); e
c) publicidade constitutiva (indispensável para que os fatos produzam quaisquer
efeitos).
O mesmo jurista português veiculará a observação de que a tendência que se
verifica modernamente é considerar-se que “toda a publicidade que atua sobre a
extensão da eficácia do fato é constitutiva (de efeitos); e que a chamada até então
publicidade constitutiva é antes forma essencial do fato”.14
12
SERPA LOPES, Miguel Maria de. Tratado dos registros públicos. 3. ed. Rio de Janeiro:
Freitas Bastos, 1957. v. 4, p. 196, n. 653. 13 Idem, ibidem, p. 198. 14 ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Publicidade e teoria dos registos. Coimbra: Almedina, 1966.
p. 117.
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Carlos Ferreira de Almeida ainda notará que a publicidade-notícia apresenta
pouca relevância.15
Analisando os efeitos especiais da publicidade registral, referirá o
caso da publicidade-notícia, “em que se não verifica um dos efeitos considerados como
mínimos para a publicidade: a eficácia em relação a terceiros”. E segue o autor
português:
“A publicidade-notícia, ou seja, aquela que não exerce qualquer efeito sobre a
eficácia do fato registrado, tem-se vindo a tornar excepcional. A publicidade tende a
possuir como efeito mínimo a oponibilidade em relação a terceiros, e é essa a regra
quase geral no nosso direito”. E remata: “A publicidade-notícia está hoje em franca
decadência, inclusive no país que, durantes longos anos, dela fez tipo fundamental da
publicidade: a França”.16
Até o advento da Lei 8.935, de 1994, que alterou o art. 659, § 4.º, do CPC, as
constrições judiciais ingressavam no registro tão-somente com escopo de advertimento
e cautela de terceiros. Considerava-se que os efeitos da publicidade se limitavam
justamente à propagação dos atos processuais e se radicavam no registro para mera
cognoscibilidade de terceiros. Era o típico exemplo de publicidade-notícia.
Ora, o registro da penhora ganha relevância a partir das reformas no direito
processual pátrio, com maior desenvolvimento a partir de 1994. Confirma-se o papel
relevante da inscrição premonitória e se torna nítido que o seu efeito é constituir em
estado de má-fé o terceiro adquirente que inscreveu o seu direito após a inscrição.17
No mesmo sentido Afrânio de Carvalho:
“A premonição de riscos à propriedade completa a defesa desta, implícita na
instituição do registro, trazendo ao âmbito deste a ameaça sobrevinda em razão de
pretensões, quer de tomada do imóvel para satisfação de dívida, quer de negação do seu
título de senhorio. A inscrição dos títulos correspondentes a esses atos judiciais
(penhoras, arrestos, seqüestros; citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias)
informa do estado litigioso do bem a eventuais adquirentes, a fim de caracterizar-lhes a
má-fé da aquisição, cumprindo notar, quanto à da penhora, que faz prova da fraude de
qualquer negócio – transação, diz a lei – posterior (Lei 6.015, de 1973, art. 240)”.18
15 Idem, ibidem, p. 116. 16 Idem, ibidem, p. 333. 17 SERPA LOPES, Miguel Maria de. Tratado... cit., v. 2, p. 417, n. 401. 18 CARVALHO, Afrânio. Registro de imóveis. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 101.
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O mesmo Afrânio de Carvalho indicará, de passagem, que os atos constritivos
judiciais se aperfeiçoam no ofício imobiliário por meio de registro.19
Mas outros argumentos poderiam ser aduzidos. Por exemplo, na penhora
decorrente de execução fiscal, prevista no art. 7.º, IV, c/c o art. 14 da Lei 6.830, de
1980, persiste a exigência de registro stricto sensu, consentâneo com a natureza do ato a
ser inscrito e com os arts. 167, I, 5, e 240 da Lei 6.015/73. A regra, aplicável à penhora
trabalhista, por analogado do art. 186 do CTN, também reclama o ato de registro.
Portanto, salvo melhor juízo, o acesso da penhora ao Registro, gerando efeitos
de oponibilidade do ato judicial a terceiros, mormente após a reforma do Código de
Processo Civil, tal ato, coerentemente com a tradição do direito registral pátrio e em
atenção aos aspectos que o afastam da singela posição de acessoriedade (ou das
hipóteses de publicidade-notícia), tal ato, como dizia, se aperfeiçoa no álbum
imobiliário por meio de registro.
Encerro esta pequena exposição rendendo minhas homenagens ao Organizador,
Des. Ricardo Dip, que nos tem orientado, em firme e boa doutrina, na longa trajetória de
estudos sistemáticos do Direito Registral Imobiliário.
19 Idem, ibidem, p. 83, especialmente p. 150, na qual se destaca que “a inscrição preventiva
possui eficácia declarativa”.
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13.
AVERBAÇÃO PREMONITÓRIA, PUBLICIDADE REGISTRAL
E DISTRIBUIDORES: A PROBATIO DIABOLICA E O SANTO REMÉDIO
SÉRGIO JACOMINO
Registrador Imobiliário em São Paulo, Capital.
Doutor em Direito Civil. Membro do Conselho Deliberativo do Irib.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. A probatio diabolica e o remédio santo – 3. A história do
registro nos absolve – 4. A inteligência não é um atributo da contemporaneidade – 5. Segurança
jurídica e direito à privacidade – 6. Samba, carnaval e fraude à execução – O que têm em
comum? – 7. Defraudando a fraude – 8. Não há espaço para a relatividade do tempo – 9.
Diligência pessoal e extrajurídica – 10. Certidões de ações judiciais expedidas... pelo registro de
imóveis.
1. Introdução
No Boletim Eletrônico IRIB, BE 2.791, de 11 de janeiro, reproduziu-se uma
entrevista por mim concedida ao jornal paulista Agora São Paulo intitulada Averbação
premonitória – segurança do tráfego jurídico-imobiliário – efetividade do processo.
Ali acabei expressando algumas idéias que se relacionam diretamente com os
fundamentos que vêm inspirando as sucessivas reformas no CPC cuja culminância é a
Lei 11.382, de 2006.
O texto suscitou ácido debate interno e rendeu uma furiosa troca de e-mails
entre vários registradores e distribuidores. O tema central do debate relaciona-se com a
necessidade (ou não) de fazer depender a eficácia da publicidade registral da atuação de
outras instâncias não-registrais. Trocando em miúdos, o registro é auto-suficiente para
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 302
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prover as informações essenciais ao mercado, blindando o tráfico jurídico imobiliário
com a necessária e bastante segurança jurídica? Ou as transações imobiliárias são ainda
dependentes da informação extra-registral, como a proporcionada pelos distribuidores?
Acerca da correta ou incorreta interpretação da lei, o leitor avaliará. Era
realmente necessário trazer ao debate os argumentos que se digladiam tendo por fundo a
publicidade e a eficácia do sistema registral brasileiro.
Há muito o tema vem sendo agitado. Historicamente, nem mesmo entre os
oficiais registradores houve unanimidade – vejam-se, por exemplo, as opiniões de
Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza (Boletim do Irib em Revista 302, de julho de 2002,
p. 46) inclinando-se pela necessidade de consulta aos distribuidores e a firme refutação
feita por João Pedro Lamana Paiva (Boletim do Irib em Revista 302, de julho de 2002,
p. 46).
Entretanto, é bom que se esclareça. No âmbito do Irib essa questão está
superada e a convicção da necessidade do robustecimento da publicidade registral
parece já fora de cogitação. Mormente agora, com o advento das reformas no estatuto
processual.
Já preparava a publicação do artigo de Gilson Carlos Sant´Anna, (A correta
interpretação da Lei 11382/2006, divulgado no BE 2815, de 25.01.2007) com o
objetivo de ampliar o debate e expressar lealmente visões diferenciadas, quando veio a
lume, ainda na edição de 21 de janeiro do tradicional Boletim Eletrônico do Irib, artigo
do registrador aposentado Ulysses da Silva reafirmando a necessidade das diligências
investigatórias nos distribuidores (O registrador imobiliário em face da Lei 11.382, de
2006, BE 2810, 21.01.2007).
Estamos, pois, devendo um debate aprofundado sobre a correta interpretação e
alcance da Lei 11.382, de 2006.
O tema é polêmico. Hic sunt leones.
2. A probatio diabolica e o remédio santo
Para o conselheiro do Irib, a averbação premonitória “não dispensa a
apresentação das certidões dos distribuidores civis as quais continuarão a ser exigidas
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nos casos previstos em lei, por dois motivos: primeiro, porque podem existir ações de
outra natureza; segundo, porque a averbação em apreço dependerá da iniciativa do
exeqüente, não havendo garantia de que será efetuada em todas as situações criadas”. E
conclui. “Analisados os dispositivos legais mencionados até este ponto, cumpre
lembrar, inicialmente, ao registrador, que não é o ajuizamento de qualquer ação que
poderá ser averbado. O artigo criado (615-A) refere-se apenas à notícia da execução de
dívida oriunda de títulos executivos judiciais e extrajudiciais, enumerados nos arts. 584
e 585”.
Do mesmo sentir Gilson Carlos Sant´Anna no artigo citado.
Contudo, as conclusões comportam um enfoque divergente.
O ilogismo que se aninha na antevisão da pouca importância da averbação
premonitória é manifesto. Sobre esse tema gostaria de dedicar alguns poucos
comentários, divergindo com o devido respeito de meu querido colega, mestre de todos
nós na difícil arte do registro, Ulysses da Silva.
Quando se diz que a averbação premonitória cinge-se unicamente às
execuções, deve-se ter em mente que as demais hipóteses de publicidade registral já
estão previstas expressamente em lei. Tratou-se, na última reforma do CPC, de fechar
todas as brechas pelas quais ainda era possível transitar as conhecidas exceções. E a
mais expressiva delas, sem dúvida nenhuma, era a hipótese de fraude à execução que se
presumia e aperfeiçoava extra-tabula.
Nunca é demais lembrar que o art. 615-A aponta direta e expressamente ao art.
593 do estatuto processual civil, dispositivo que, em seus incisos, trata das fraudes à
execução. Entre as hipóteses listadas, acha-se a alienação ou oneração de bens “quando
sobre eles pender ação fundada em direito real” (inciso I).
Sobre o tema, Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery registram.
“O nome do instituto – fraude de execução – pode levar o intérprete a
confusões. Não é apenas no processo de execução que pode haver fraude de execução.
Como o ato fraudulento é atentatório à dignidade da justiça, é suficiente que haja
litispendência em ação judicial, qualquer que seja ela (de conhecimento – declaratória,
constitutiva ou condenatória –, cautelar ou de execução), em qualquer juízo (comum –
federal ou estadual –, trabalhista, eleitoral ou militar), desde que tenha aptidão para
levar o devedor à insolvência” (CPC comentado. 9.ed. São Paulo: RT, 2006, p. 850).
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Uma vez mais, não nos esqueçamos de que a hipótese de fraude à execução
decorrente de alienação ou oneração de bens, se pendente ação fundada em direito real
ou pessoal reipersecutória, é objeto de registro obrigatório, ex vi do art. 167, I, 21
combinado com o art. 169 da Lei de Registros Públicos.
E a doutrina sempre esteve atenta ao fato. Por todos, Liebman, para quem a
alienação de bens feita quando pendente ação real ou pessoal reipersecutória leva à
fraude à execução. Porém, “para ciência de terceiros, as citações relativas a estas ações,
em se tratando de imóveis, devem ser inscritas no registro imobiliário, e a falta desta
inscrição obrigará o credor a provar o conhecimento por parte do terceiro da existência
do processo pendente” (Liebman. Enrico Tullio. Processo de execução. 2.ed. São Paulo:
Saraiva, 1963, p.78, n.45).
De outra banda, afastemos, liminarmente, a interpretação que se faz de que o
art. 615-A do CPC representaria uma nova hipótese de fraude à execução – ladeada
àquelas já previstas nos incisos do art. 593 (em doutrina, v.g., Palharini Jr. Sidney et al.
Nova execução de título extrajudicial. São Paulo: Método, 2007, p. 55). Ora, fosse
assim, o parágrafo terceiro do art. 615-A estaria aninhado entre as hipóteses
subordinadas ao caput do referido art. 593.
Quer nos parecer que a melhor interpretação aponta na direção de que as
hipóteses de fraude à execução, já previstas nos três incisos do art. 593, são agora
qualificadas pela nova sistemática do Código pelo concurso da publicidade registral,
com o anexo efeito da presunção de conhecimento (e oponibilidade) dos atos judiciais.
Tanto as averbações previstas no art. 615-A do CPC quanto as hipóteses
arroladas na Lei 6.015/73 são espécies de uma mesma categoria cujo escopo – além de
advertir, prevenir, acautelar terceiros – é desencadear importantes efeitos de
oponibilidade/inoponibilidade. São, pois, inscrições premonitórias e delas decorrem
importantes efeitos presuntivos dos quais mais adiante se falará.
Não procede, pois, o argumento de que a averbação premonitória cingir-se-ia
exclusivamente às hipóteses executivas – de molde a sugerir que as demais seriam
apuradas pela informação dos distribuidores.
Já a eventual inação do exeqüente, longe de frustrar o desencadeamento dos
efeitos presuntivos – que vão acarretar a inversão do ônus da prova e a qualificação da
fraude à execução – tal inércia simplesmente concretizará o que a lei prevê e sanciona
Curso de Direito Registral Imobiliária 20/6/2008 - 305
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com o mecanismo da inoponibilidade. Parece demasiado, portanto, sustentar que a
eficácia da lei esteja na dependência da vontade do exeqüente.
Tampouco parece lógico que se exijam certidões unicamente dos distribuidores
cíveis estaduais. Se exigíveis, as certidões abrangerão, necessariamente, todos os
distribuidores, em qualquer juízo, federal ou estadual (comum, trabalhista, eleitoral ou
militar). E não só. Por uma questão de lógica e coerência, o raciocínio deve ser levado
ao seu limite: seriam necessárias certidões negativas da Fazenda Pública, pois o advento
da Lei Complementar 118, de 2005, alterou a redação do art. 185 do Código Tributário
Nacional, CTN, de modo que se presumirá fraudulenta a alienação ou oneração de bens
e rendas “por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa”.
Ora, se a “a simples existência da ação” já caracterizaria a fraude à execução,
segundo Ulysses da Silva – e por tal razão se exigiriam as certidões dos distribuidores –,
com igual razão deveriam ser exigidas as certidões das fazendas públicas.
É preciso compreender que, com as certidões investigatórias dos distribuidores,
estamos diante de uma verdadeira probatio diabolica. Para casos que-tais, os sistemas
jurídicos criaram presunções legais, inversão do ônus da prova e... sistemas registrais!
Percebe-se que a qualidade da diligência vestibular propugnada pelos
defensores das certidões dos distribuidores está na exata proporção dos custos inerentes
à investigação. Ou seja, será tanto mais custosa a investigação quanto mais acurada e
precisa for a pesquisa. Em outras palavras, a via eleita é claramente irracional por
antieconômica.
Por outro lado, se nos contentamos com uma diligência mediana para livrar o
adquirente de eventuais aborrecimentos futuros, haveremos de convir, então, que essa
providência não é a mais adequada, por só relativamente segura. Explica-se. Essa
providência poderá de fato livrar os bens do adquirente diligente caso ocorra uma
ameaça que provenha de fatos posteriores ou ocorridos fora do alcance da pesquisa.
Porém, nesses casos, o adquirente somente livrará o bem constrito após ilidir em juízo
uma presunção que a peregrinação aos distribuidores parece sempre sugerir. Esse o
ponto: só tem sentido uma investigação vestibular nos distribuidores se admitirmos que
sempre haverá uma presunção de má-fé na aquisição de bens por parte de terceiros.
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Haveríamos de pensar em outros mecanismos que pudessem garantir o
mercado imobiliário, blindar as transações jurídico-imobiliárias, sem onerar
demasiadamente os atores, nem colocá-los em risco.
Para poder superar essa deficiência essencial – consistente na necessidade de
peregrinação aos distribuidores e outras instâncias administrativas para realizar o tráfico
jurídico-imobiliário –, por incrível que possa parecer, talvez fosse necessário criar um
bom... sistema de registro de imóveis! Sim, justamente é isso mesmo que fizeram
nossos legisladores no século XIX, quando, para pôr cobro ao “clandestinismo jurídico”
– com suas hipotecas, constrições judiciais e onerações ocultas – fruto de uma
extraordinária engenharia econômico-jurídica, criou-se então o sistema registral pátrio.
Há outros aspectos na avaliação feita pelo conselheiro do Irib a respeito dos
quais gostaria de poder objetar. Deixemo-los para outra oportunidade. Fiquemos por ora
com os aspectos da publicidade registral em contraste com a dos distribuidores.
3. A história do registro nos absolve
O aspecto medular ferido na matéria – e nos artigos aqui comentados – refere-
se à eficácia do registro imobiliário brasileiro e a resposta que a instituição pode (e
deve) dar aos desafios da sociedade em superar as inúmeras dificuldades para se realizar
com segurança um negócio imobiliário.
Desde logo, convenhamos: não parece lógico fazer depender a inteira eficácia
da publicidade registral imobiliária da manifestação de outros órgãos alheios ao registro
de imóveis.
Não custa lembrar que há muito tempo a doutrina brasileira especializada vem
sustentando a imperiosa necessidade do acesso dos títulos judiciais ao registro. Desde
Clóvis, passando por Lysippo Garcia, Dídimo da Veiga, Philadelpho Azevedo, Serpa
Lopes e uma plêiade de grandes juristas pátrios, todos vêm procurando obviar o que
sempre se reconheceu como a nódoa essencial do sistema: o “clandestinismo jurídico”.
É preciso combater os ônus ocultos, atacar os gravames opacos, guerrear as constrições
que insistem em transcender os limites subjetivos da lide alcançando terceiros e
tomando de assalto o adquirente de boa-fé. Tudo isso ocorre simplesmente por não se
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cumprir o que desde muito cedo figura em nossa legislação como requisito obrigatório
para eficácia dos atos ou fatos jurídicos em relação a terceiros: o registro de todas as
vicissitudes judiciais que os possam afetar.
4. A inteligência não é um atributo da contemporaneidade
Já nos alvores do século XX, uma das primeiras medidas legais que o novo
Código Civil reclamava era a votação de um regulamento que versasse sobre os
registros públicos. Depois de uma longa jornada na Câmara – que teve início com o
Projeto de Lei 441, de 1917, até o de n. 533, de 1920 – chegava enfim ao Senado
federal, no ano de 1921, o projeto sobre o regulamento dos registros públicos, o
primeiro a ser editado após a vigência do Código de 1916.
Nessa altura, o grande jurista brasileiro Philadelpho Azevedo, em sessão
realizada a 08.06.1921 no Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, indicava a
necessidade de colaborar na feitura dessa importante lei, sugerindo um parecer da
Ordem. Foi nomeada uma comissão, composta por Eduardo Duvivier, o próprio
Philadelpho Azevedo, que foi o relator, sob a direção do Prof. Alfredo Bernardes. O
parecer foi apresentado na sessão de 29.06.1921, aprovado pelo Instituto a 7 de julho do
mesmo ano e logo encaminhado ao Senado.
Assim, atendendo à sugestão da douta comissão, figurou no Regulamento de
1924 (art. 5º, a, VII e VIII) a inscrição das penhoras, arrestos, seqüestros e das citações
de ações reais ou pessoais reipersecutórias.
Mas o que pensavam os mais ilustres juristas da época acerca dessa medida
premonitória? Vale a pena rememorar as palavras de Philadelpho Azevedo, escritas em
1924, registradas no livro que temos o enorme gosto de reeditar e que em breve virá a
lume (Registros públicos. Lei 4.827, de 07.02.1924. Comentário e desenvolvimento. Rio
de Janeiro: Litho-Typo Fluminense, 1924).
“Nos mesmos termos da alínea anterior [VII, que trata da penhora, arresto
seqüestro], o Congresso aceitou a sugestão do Instituto, que veio a concorrer para a
perfeição do nosso registro de imóveis, ainda que indiretamente, como vimos, por esse
conjunto de medidas que vêm facilitar o conhecimento de terceiros sobre circunstâncias
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úteis; independentemente de cadastro, aproximar-nos-emos do sistema germânico, sem
desvantagem”. [omissis]
“Assim, [omissis] ficarão constando dos registros de imóveis não só os
arrestos, seqüestros e penhoras, como as ações reais e pessoais reipersecutórias:
alcançado estará o duplo escopo, dificilmente colimado em leis diversas – a boa fé de
terceiros e a não fraudação dos credores, perfeitamente conciliáveis por essas
providências.”
“O próprio registro hipotecário suprirá o subsídio, em grande parte imperfeita,
das certidões dos distribuidores, que muitas vezes não podem fornecer informações
precisas, v.g. nos embargos de terceiros, e, o que é mais, não obedecem ao estrito
critério real, demandando uma busca rigorosa em todos os cartórios espalhados pelo
país.”
“É um regime análogo ao das prenotações usado na Alemanha (CC, arts. 883,
892 e 899), na Itália (CC, arts. 1.933, 1.080, 1.088, 1.325, 1.308, 1.511, 1.553 e 1.787),
na Argentina (Código de Processo - Buenos Aires, art. 482 e federal 247), em Portugal
(CC, arts. 949 e 966), na França (aliás, com preferência para as hipotecas judiciais, o
que a maioria dos autores condena) e na Espanha sob o título de anotaciones
preventivas (leis sucessivas a partir de 1861, sendo o atual de 16.12.1909).”
“Entre nós, o projeto de Código Processual, organizado sob os auspícios do
Ministro Esmeraldino Bandeira (Decreto 8.332, de 03.11.1910), já consagrava com
felicidade essas medidas, que, aliás, deviam constar de lei federal, como a presente,
sobre registros públicos”. (Op. cit., p. 88).
Segue o festejado autor comentando o acesso e a publicidade registral de atos
judiciais, fazendo referência ao Decreto 737, de 25.11.1850 (que determina a ordem do
juízo no processo comercial), diploma legal de capital importância para se
compreenderem as origens imediatas do instituto da fraude de execução entre nós.
“O Regulamento n. 737 referia-se no art. 494, n. 1, a bens litigiosos ou sobre os
quais pende demanda, sendo a sua origem a Ord. l. 4, tit. 10, a execução era sempre
possível sobre os bens litigiosos, em ação real ou pessoal in rem scriptae, quer tivesse
sido o adquirente particeps fraudis, quer não, com a única diferença de ser ouvido
sumariamente no segundo caso (Teixeira de Freitas. Consol., arts. 348, 349, 925 e
976).”
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“A lei estabeleceu o mesmo princípio, condicionado à inscrição prévia no
registro predial; do contrário, será necessária a prova de fraude do adquirente” (Op. cit.,
p. 88).
Mais adiante, esclarecerá o que sejam propriamente ações pessoais
reipersecutórias e, com rara percepção, justificará a fórmula adotada pela lei (mantida
até hoje) para enfeixar os atos jurídicos passíveis de produzir uma grave repercussão no
tráfico jurídico-imobiliário. É uma bela e justa síntese. Ao mesmo tempo que dirá que
ao profissional do direito caberá avaliar cada caso concreto para promover a inscrição,
faz antever que o registrador não estará adstrito a um elenco taxativo para atuar no
exercício de sua peculiar atividade de qualificação registral. Para ambos – requerente e
registrador – valerá o interesse legitimado daquele que rogará a inscrição; e o critério
norteador, nesses casos, demandará uma interpretação extensiva. Vamos lhe dar voz
uma vez mais.
“Reinando certa controvérsia sobre a classificação das ações, andou bem o
legislador consagrando uma fórmula genérica, ao invés da enumeração taxativa,
seguida, por exemplo, no código italiano.”
“Ao profissional caberá verificar em cada caso o caráter da ação para promover
a cautela da inscrição (Chironi, loc. cit.), devendo a interpretação ser extensiva; assim,
tudo aconselhará a inscrição das ações possessórias (Câmara Leal – Teoria e prática das
ações, 1923, n. 30. Sá Pereira, in Gazeta Jurídica de 18.01.1924; Azevedo Marques, Da
ação possessória, § 51), das ações divisórias cuja classificação definitiva é uma vexata
quaestio, etc.”
“O Prof. Aureliano de Gusmão considera ações pessoais reipersecutórias as
que, derivando de uma obrigação, têm uma direção real, recaindo sobre uma cousa certa
(rem sequuntur) e podendo ser propostas ou contra a pessoa obrigada ou contra o
possuidor da cousa” (Op cit., p. 89).
A doutrina acolheu as teses apresentadas pelos advogados por meio de sua
importante corporação. Capitaneada por Philadelpho Azevedo, as propostas lograram
acomodar-se no Regulamento de Registros de Imóveis e assim se mantêm até hoje,
ignoradas olimpicamente, contudo, por parte da doutrina – processualista notadamente.
Serpa Lopes, o tratadista de registros públicos, toma de empréstimo as
contribuições lúcidas e generosas e avança na confirmação e acerto da solução legal.
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Dirá, como agora o diz a doutrina processualista, que o efeito essencial do registro das
constrições judiciais é constituir o estado de má-fé do terceiro adquirente que registrou
o seu direito após a inscrição. Reitera a idéia da obrigatoriedade desses registros e,
citando Amílcar de Castro (nos seus comentários ao Código de 1939) dirá que o fato de
não ter sido inscrita a constrição judicial não impedirá a alegação da fraude à execução;
unicamente que ficará o exeqüente com o ônus de provar que o adquirente tinha
conhecimento da existência de ação real ou pessoal reipersecutória ou de demanda que
poderia reduzir o devedor à insolvência. Conclui que, feita a inscrição, as alienações
posteriores se presumirão absolutamente em fraude à execução (iuris et de iure),
independentemente de qualquer outra prova (Tratado de Registos Públicos. 4. ed. Rio
de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, v.II, p.419, n.400).
Amílcar de Castro tiraria importantes conclusões dos efeitos decorrentes da
não-inscrição. Para ele, não tendo sido feita a inscrição premonitória, o exeqüente
deveria provar as condições legais da existência de fraude à execução, acenando com o
efeito meramente publicitário da inscrição registral. Vale a pena citá-lo na passagem em
que comenta o procedimento de execução.
“O fato, porém, de não ter sido registrada, ou inscrita, a penhora, ou o arresto,
o seqüestro, ou a citação, não impede a alegação de fraude contra a execução, e, sim,
somente, tem a significação de ficar o exeqüente no ônus de provar que o adquirente
tinha conhecimento, ou de que sobre os bens estava sendo movido litígio fundado em
direito real, ou de que pendia contra o alienante demanda capaz de lhe alterar o
patrimônio, de tal sorte que ficaria reduzido à insolvência. Feita a inscrição, as
alienações posteriores peremptoriamente se presumem feitas em fraude de execução,
independentemente de qualquer outra prova. Não sendo feita a inscrição, o exeqüente
deve provar as condições legais da existência de fraude à execução. Vale dizer, a
inscrição só tem efeito de publicidade, e, vale como prova presumida, irrefragável, de
conhecimento das condições legais de fraude por parte de terceiros” (Amílcar de Castro.
Do procedimento de execução. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p.66-7).
Não está dito, mas presumido, que a não-inscrição das constrições igualmente
gera importantes efeitos – nomeadamente a inoponibilidade das pretensões do credor-
exeqüente de exercitar, para além dos limites estreitos do processo, seus direitos. Se o
quiser, haverá de provar a fraude.
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Embora a fraude à execução se insira entre os fatos considerados atentatórios à
dignidade da Justiça (art. 600, do CPC) – o que relevaria o aspecto público do
microssistema – não se pode esquecer, todavia, que, tanto o art. 615-A, quanto o 659,
parágrafo quarto do estatuto processual, cometem ao exeqüente a tarefa de providenciar,
para presunção de conhecimento de terceiros, as inscrições premonitórias. Trata-se de
um fenômeno bastante relevado de colaboração com o poder público para a
movimentação e realização da jurisdição, não mais atuando as partes como meros
espectadores do desenvolvimento do processo.
Os efeitos desses registros, fixados na própria lei, parecem ultrapassar a
tipologia clássica da publicidade-notícia, acenada por Amílcar de Castro, jungindo
efeitos jurídicos relevantes ao ato judicial, como em outra oportunidade se procurará
demonstrar.
A doutrina especializada não discrepa. Assim, além dos citados, Waldemar
Loureiro (Registro da propriedade imóvel. 6. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 350-
2); Nicolau Balbino Filho (Registro de imóveis. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p.160-
1); Walter Ceneviva (LRP comentada. 15.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.389, n.477);
Wilson de Souza Campos Batalha (Comentários à Lei de Registros Públicos. 4. ed. Rio
de Janeiro: Forense, 1997, v.II, p.747); e Maria Helena Diniz (Sistemas de registro de
imóveis. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 213-16).
Enfim, execuções, cautelares, reivindicatórias, ações reais, pessoais ou
reipersecutórias, todo um elenco de ações judiciais que possam comprometer o tráfico
jurídico-imobiliário – inclusive as indicadas por Gilson Carlos Sant´Anna no artigo
citado e pelo Conselheiro do Irib – sempre tiveram acolhimento no registro. Ou
deveriam ter. Vejamos em concreto a larga trajetória da inscrição das constrições
judiciais ao longo do último século.
Como sugerido por Philadelpho Azevedo, ainda hoje se registram penhoras,
arrestos e seqüestros (art. 167, I, 5 c/c. os arts. 239 e 240, da LRP); registram-se as
citações de ações reais ou pessoais reipersecutórias, relativas a imóveis (art. 167, I, 21,
LRP); averbam-se as decisões, recursos e seus efeitos, que tenham por objeto atos ou
títulos registrados ou averbados (art. 167, II, 12, LRP). Averbam-se as
indisponibilidades (art. 247 c/c. o art. 185-A, CTN, por exemplo, dentre inúmeras outras
hipóteses de averbação de indisponibilidades). Averbam-se as circunstâncias que por
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qualquer modo alterem o registro – por exemplo, a limitação da disponibilidade e a
ineficácia de atos dispositivos (art. 246, LRP).
Como se vê, não é novidade alguma o acolhimento desses fatos no Registro
Imobiliário. Pelo contrário. É da tradição do direito brasileiro a relevação da inscrição
no registro de imóveis de fatos como penhoras, arrestos, seqüestros, ações reais,
pessoais reipersecutórias – desde o advento do Decreto 4.827, de 1924 (art. 5º, a, VII e
VIII), passando pelo Decreto 18.542, de 24.12.1928 (art. 173, a, VI e VII, e art. 265 e
266); Decreto 4.857, de 09.11.1939 (art. 178, a, VI, e arts. 279 e 280) até alcançar a
vigente Lei de Registros Públicos – Lei 6.015/73.
Todos esses registros e averbações são obrigatórios, nos expressos termos do
art. 169 da Lei 6.015/73.
“Art. 169. Todos os atos enumerados no art. 167 são obrigatórios e efetuar-se-
ão no Cartório da situação do imóvel.”
Já o eram na vigência do Decreto 4.857, de 1939 (art. 179). Até mesmo o
elenco de certidões solicitado por ocasião do registro de parcelamento do solo urbano e
incorporação imobiliária (Lei 6.766, de 1979, art. 18, e Lei 4.591, de 1964, art. 32,
respectivamente) pode ser considerado uma exigência expressa da lei, que leva em
muita consideração, desde as origens da legislação protetiva-social dos parcelamentos
do solo urbano, o caráter social, de evidente interesse público (direitos do consumidor,
ambiental, urbanístico, etc.) o que torna, em tese, indiscutível a aquisição desses bens,
numa ambiência de fé pública registral avant la lettre.
Aliás, registre-se de passagem que o Decreto-lei 58, de 1937, já previa que as
“penhoras, arrestos e seqüestros de imóveis, para os efeitos da apreciação da fraude de
alienações posteriores, serão inscritos obrigatoriamente, dependendo da prova desse
procedimento o curso da ação” (art. 2º das Disposições Transitórias). E o Código de
Processo de 1939 igualmente previu, no art. 348, que, “no mesmo despacho em que
conceder penhora, arresto ou seqüestro de imóvel loteado, o juiz, ex-officio, mandará
fazer, no registo, as devidas anotações”.
Restaria investigar se a regra do art. 348 se encontraria ainda vigorante, uma
vez que, nos termos do art. 1.218 do atual Código de Processo Civil (Lei 5.869, de
1973), continuariam em vigor “até serem incorporados nas leis especiais os
procedimentos regulados pelo Decreto-lei 1.608, de 18.09.1939”. Entre os quais
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figuram as regras concernentes ao loteamento e venda de imóveis a prestações (arts. 34-
39).
Como se vê, sempre houve uma grave preocupação do legislador com a
publicidade dos atos judiciais pela via do registro. A exigência legal – de se atrair para
os livros fundiários todas as circunstâncias extra-tabulares que possam afetar a
aquisição desses bens – visa a tutelar a boa-fé, dar impulso ao comércio jurídico,
diminuir custos transacionais e blindar o credor nas execuções contra a dissipação
patrimonial que pode calhar no encaminhamento das demandas.
A segura e determinada inflexão que o processo civil experimenta desde o
advento da Lei 8.953, de 1994, passando pela reforma da reforma (Lei 10.144, de 2002)
até o advento da Lei 11.382, de 2006, teve em mira justamente a tutela do terceiro
adquirente de boa-fé. Numa palavra, valorizou-se a segurança jurídica preventiva, com
apoio declarado e manifesto no registro imobiliário.
Portanto, não parece lógico que insistamos na senda de se exigir, para a
realização dos negócios jurídicos imobiliários, um elenco de certidões negativas que só
potencializa os custos e inocula o germe da insegurança jurídica. Sim, pois que, para se
obter certidões negativas de todos os distribuidores cíveis, criminais, trabalhistas,
federais, do domicílio do alienante e da situação do imóvel – considerando-se a regra do
domicílio no novo Código Civil (art. 71), a possível despersonalização da pessoa
jurídica, relevando-se a inversão de eleição do foro em virtude da situação privilegiada
do contratante, a inexistência de indicadores “reais” nos distribuidores, etc. –, o
conjunto de todas essas circunstâncias torna a investigação da situação patrimonial do
alienante simplesmente uma aventura. E cara. Os custos transacionais são uma variável
importante a ser considerada aqui.
5. Segurança jurídica e direito à privacidade
Estamos falando de segurança jurídica plena e tutela do direito à privacidade.
Ou o distribuidor provê a segurança com um grau de certeza e segurança equiparável à
que se espera do registro, ou a via eleita é inadequada. Ad argumentandum, talvez se
pudesse cogitar da coadjuvação dos distribuidores, se entre nós existisse uma central
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que congregasse, na sua base de dados, logicamente informatizada, dados abrangendo a
justiça comum e especializada de todo o país. Mas aí teríamos um megacadastro
redundante, inespecífico e invasivo. Nesse caso, ou a publicidade do registro imobiliário
seria simplesmente despicienda, redundante e antieconômica, ou a centralização dos
distribuidores, para esse fim específico, seria um investimento irracional, além de
atentatório ao direito individual de proteção de dados de caráter pessoal. Fácil perceber
que estamos diante de instituições com finalidades diversas e a solução salomônica,
alvitrada pelos críticos, não é nada razoável.
Fiquemos, pois com o que nos parece mais lógico, econômico e consentâneo
com o modelo de registros de segurança jurídica que existe praticamente no mundo todo
desde o século XIX (mesmo no Brasil): que se concentrem no registro imobiliário todas
as circunstâncias, fatos e atos jurídicos que, relacionados com o bem, possam afetar
terceiros.
6. Samba, carnaval e fraude à execução – O que têm em comum?
O Brasil tem características muito particulares, também nesse campo. O grande
processualista Enrico Tullio Liebman já manifestava sua perplexidade diante da figura
que, em sua opinião, é uma genuína criação nacional: a fraude à execução (Processo de
execução. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1963, p. 91). Para ele, na legislação de outros
países, a figura da fraude à execução é simplesmente desconhecida, o que levaria
Everaldo Cambler a destacar que essa ausência se deveria pela força do sistema
registral imobiliário, notadamente em países como Portugal, Itália, Alemanha e
Espanha (Fraude de execução. Revista de Processo v.58/157). Isto é, onde os registros
de imóveis funcionam, não são necessários mecanismos burocráticos, inseguros e
custosos para investigar a situação jurídica da propriedade e do alienante nem para se
garantirem os direitos agitados em juízo, em execuções, ações ordinárias, cautelares etc.
Deprimam-se os efeitos da publicidade registral e eis que surgem, vicejando à
sombra do ocaso dos sistemas registrais, simulacros de publicidade registral.
Ulysses da Silva, no artigo referido, liquida a inovação alvissareira contida na
verba legislativa, decretando que, quanto à fraude à execução, “a simples existência da
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ação já a caracteriza, nos termos do art. 593, com os agravantes previstos no art. 600,
servindo a averbação em apreço apenas como veículo de publicidade da execução.”
Ora, se a averbação servirá apenas como “veículo de publicidade da execução”
sem interferir, como se espera, que possa interferir na modulação da fraude à execução,
então, de fato, a reforma terá sido inócua.
Depois, a simples existência da ação executiva já não é suficiente para
caracterizar a fraude à execução. Para caracterizar a fraude à execução concorreriam os
seguintes fatores:
a) litispendência;
b) presunção de conhecimento pelo adquirente da existência e extensão da ação
pelo registro (ou prova desse conhecimento proporcionada pelo credor);
c) alienação ou oneração capaz de reduzir o devedor à insolvência. Não seria,
portanto, suficiente a “simples existência da ação”; além disso, se entendia necessária a
ocorrência da penhora. Do contrário, ainda que citado o executado regularmente, seria
imprescindível a prova da insolvência. (REsp 4.132-RS, 2/10/1990, relator Min. Sálvio
de Figueiredo).
Desde a modificação original do parágrafo quarto do art. 659 do CPC, feita
pela Lei 8.953, de 1994, essa tendência era percebida claramente pela doutrina. Por
todos, Cândido Rangel Dinamarco:
“Aí está a grande importância da inovação trazida nesse novo parágrafo: sem
ter sido feito o registro, aquele que adquirir o bem presume-se não ter conhecimento da
pendência do processo capaz de conduzir o devedor à insolvência. A publicidade dos
atos processuais passa a ser insuficiente como regra presuntiva de conhecimento. A
conseqüência prática dessa nova disposição será a inexistência de fraude de execução
capaz de permitir a responsabilidade patrimonial do bem alienado, sempre que a
penhora não esteja registrada no cartório imobiliário (CPC, art. 593, esp. Inc. II).”
Esse era o estado das discussões. Mas, como já se teve ocasião de referir,
estamos vivendo uma lenta e inexorável transformação. Prestigia o nosso Direito o
princípio da boa-fé, de modo que se vem robustecendo a tutela da posição do terceiro
adquirente que de boa-fé e confiado no que o registro publica adquire bens imóveis.
Valoriza-se cada vez mais a segurança jurídica – tudo isso em detrimento da cômoda
posição do credor-exeqüente inerte. Essa mudança se expressa na regra das presunções
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que o CPC criou (art. 659, §4º, c/c o art. 615-A) e na revigoração das tradicionais
virtudes do registro.
7. Defraudando a fraude
Em face de uma profunda modificação que a reforma do CPC representa para o
registro imobiliário brasileiro, com explícita referência no art. 615-A ao art. 593 do
estatuto processual (que trata, especificamente, da fraude à execução), causa
perplexidade que se insista na tese que desconsidera a tutela da segurança jurídica e da
boa-fé, fazendo pender a presunção de fraude em favor do credor-exeqüente, isso tão-só
por efeito da citação válida – malgrado o fato de a lei processual lhe ter concedido
instrumentos idôneos para ilidir a boa-fé dos sub-adquirentes.
O que gostaria de ver debatido pela doutrina, especialmente a registrária, é o
seguinte: em que medida a qualificação do art. 593, pelos termos do disposto no art.
615-A, parágrafo terceiro, não redundará, simplesmente, no decaimento da automática
presunção da fraude à execução para acomodar-se o fenômeno numa nova situação de
fraude contra credores quando não consumada a averbação premonitória?
A lei é clara: a presunção de fraude ocorre com a inscrição registral (averbação
premonitória) – “presume-se em fraude à execução a alienação ou oneração de bens
efetuada após a averbação (art. 593)”. No mesmo diapasão, a regra do art. 659,
parágrafo quarto do CPC: a inscrição da penhora no ofício imobiliário competente gera
a “presunção absoluta de conhecimento por terceiros” da execução.
As presunções são ilações que a lei cria para, à luz de um fato conhecido,
firmar um outro desconhecido. Quem tem a seu favor a dita presunção, fica escusado de
provar o fato a que ela conduz. Pode-se ilidir tal presunção, quando então se dirá que é
relativa ou iuris tantum. Ora, é assim a propriedade em nosso sistema. O art. 1.245,
parágrafo primeiro do Código Civil de 2002 gera uma presunção relativa da
propriedade; já o art. 2.o sinaliza que a invalidade do registro deve ser provada em ação
própria. Até a decretação judicial dessa invalidade, o proprietário continua mantido em
sua posição jurídica. Goza de uma presunção juris tantum que apóia sua posição
jurídica.
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Falando a lei processual, portanto, em presunção (art. 615-A, § 2º, e art. 656,
§4º), tal fenômeno, não ilidido, apresenta a nota de eficácia contra terceiros. Mas é
preciso estar atento para o fato de que, não diligenciando o exeqüente a dita averbação
premonitória (e a inscrição da penhora), produz-se a inversão do ônus da prova e o
efeito inverso da oponibilidade. Ou seja, a inação cria a inoponibilidade das pretensões
do exeqüente, que gera o efeito da presunção de boa-fé na aquisição do bem por
terceiros.
Nesse caso, caberá ao credor-exeqüente alegar (e provar) a má-fé do terceiro
adquirente nas aquisições a título oneroso.
Trata-se de um fenômeno bastante conhecido dos registradores: a
inoponibilidade. Os fatos sujeitos a registro e não registrados são inoponíveis a
terceiros.
Essa tendência vem ganhando robustez nos tribunais superiores. A
jurisprudência do STJ tem afastado o reconhecimento de fraude à execução nos casos
em que a alienação do bem do executado a terceiro de boa-fé tenha se dado
anteriormente ao registro da penhora do imóvel. Precedentes: REsp 893105/AL, relator
Min. Francisco Falcão, DJ 18.12.2006; REsp 739.388/MG, relator Min. Luiz Fux, DJ
de 10.04.2006; REsp 724.687/PE, relator Min. Francisco Peçanha Martins, DJ de
31.03.2006; e REsp 791.104/PR, relator Min. José Delgado, DJ de 06.02.2006, só para
ficar nas decisões mais recentes.
8. Não há espaço para a relatividade do tempo
Em outra passagem, Ulysses da Silva et al., comentando que a averbação
premonitória poderá ser feita com a certidão comprobatória do ajuizamento da
execução, pondera e recomenda que tal certidão seja fornecida pelo escrivão da vara
para a qual foi destinado o feito. E junge: “considero medida de prudência, para tal fim,
aguardar a autuação da ação e o despacho inicial do juiz, tendo em vista a possibilidade
de a execução não prosperar, em face de algum impedimento”.
Ora, mas foi justamente para dar mais velocidade, simplicidade e agilidade à
publicidade registral da pendência judicial que se deslocou do juízo para o instante
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seguinte à distribuição a providência publicitária acautelatória de terceiros – sabedores
que é crítico o período que medeia a distribuição e as providências de autuação, citação
e penhora (ou pré-penhora, nos casos cabíveis). Esse interregno pode demorar meses
nos grandes centros urbanos – o que tem dado ensanchas à dissipação patrimonial pelo
executado, colocando em risco a efetividade do processo executório, as pretensões do
exeqüente e fragilizando os direitos de terceiros.
Salvo melhor juízo, esse argumento investe contra o sentido mais essencial da
reforma neste particular aspecto.
Também é possível enfrentar a referência que se encontra no texto do
respeitado registrador que sugere que, uma vez realizada a averbação premonitória,
reduz-se a necessidade de inscrição da penhora, “a qual poderá vir a tornar-se
dispensável”.
Ora, o art. 615-A estabelece expressamente um rito próprio para a sobrevida
dessa averbação, prevendo seu cancelamento se formalizada a penhora sobre bens
suficientes para cobrir o valor da dívida (§ 2º). Assim como lhe pareceu lógico alhures
que a conversão do arresto em penhora devesse ser objeto de publicidade registral, com
a inscrição respectiva (Ulysses da Silva et al. Penhora e cautelares no registro de
imóveis. São Paulo: Irib, p. 76), também nesse caso, e pela mesma razão, far-se-á o
registro da penhora, fato mediante o qual se materializa a afetação do bem à demanda
executória.
É em razão da penhora que se dá a individualização e apreensão dos bens do
executado, afetando-os, desse modo, à execução, bem como confirmando-se que os atos
de disposição são ineficazes em face do processo executivo. Não nos esqueçamos de
que a presunção absoluta da existência da constrição judicial só ocorre com a inscrição
da penhora (ex-vi § 4º, art. 659, do CPC), o mesmo não ocorrendo com a averbação
premonitória. A nota de distinção fundamental repousa no interesse que movimenta a
rogação da averbação premonitória pelo particular – em contraste com o interesse
público que fundamenta a decretação, pelo juízo executivo, da penhora. As distinções
entre uma medida e outra podem ser medidas pelos efeitos da publicidade – presunção
relativa e absoluta que decorre da publicidade registral.
Há, ainda, um particular interesse no registro das penhoras, uma vez que,
embora a definição da preferência não tenha logrado deslocar-se para o registro (como
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parecia sugerir a Lei 8.953, de 1994), a verdade é que, em face da dispersão das ações
executivas e da inexistência de uma disciplina uniforme para a concentração e definição
da ordem de prioridade das penhoras – concretizado o princípio prior tempore, potior
iure –, também aqui o registro pode proporcionar informações seguras sobre a ordem
preferencial aos vários juízos executivos.
Por isso, o art. 698 do CPC, alterado pela lei em comento, prevê que não se
efetuará a adjudicação ou alienação de bem do executado sem que da execução seja
cientificado, por qualquer meio idôneo, “o credor com garantia real ou com penhora
anteriormente averbada, que não seja de qualquer modo parte na execução”.
Parece haver uma tendência de coordenar o controle de preferências do CPC
com as inscrições das penhoras – com vantagens para a clarificação da situação jurídica
dos bens constritos. O disposto no art. 698 faz repercutir, agora em segundo grau, a
eficácia decorrente do registro da penhora. Se não se efetuar a adjudicação ou alienação
de bem sem que da execução seja cientificado o credor com penhora anteriormente
averbada, segue-se que serão inoponíveis aos demais credores penhorantes as penhoras
não inscritas regularmente. A eficácia do registro da penhora alcança todos os terceiros
– mesmo, como não poderia deixar de ser, os demais credores-exeqüentes, como prevê
o disposto no art. 698 do CPC.
Parafraseando Lafayette, um direito de preferência que é eficaz somente entre
os concorrentes, partes na mesma execução, mas que não o é em relação a terceiros
executantes em mesma condição, “é uma monstruosidade que repugna à razão”.
De alguma forma a reforma concretiza na lei o que na capital de São Paulo, por
determinação do magistrado Venicio Antonio de Paula Salles, como juiz da Primeira
Vara de Registros Públicos de São Paulo, era praxe nos registros prediais. Vale a pena
conferir o decidido no Processo 000.03.130345-5, da Primeira Vara de Registros
Públicos da paulicéia.
Enfim, a inscrição da penhora é obrigatória (art. 169, LRP) e não pode ser
considerada dispensável no âmbito do microssistema criado pela reforma. Dispensável
será a averbação premonitória, desde que efetivada a penhora, mas não vice-versa.
9. Diligência pessoal e extrajurídica
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Enfim, não se nega a importância do distribuidor – cujo valor foi realçado pela
própria Lei 11.382, de 2006. Em São Paulo, por exemplo, a pesquisa acerca da
existência de ações contra eventual transmitente pode ser feita pela Internet. Para se
obter uma certidão negativa de débitos de tributos imobiliários municipais, o adquirente
simplesmente tem que acessar o site da prefeitura e obter a certidão negativa
gratuitamente: <http://www4.prefeitura.sp.gov.br/certidao>. O mesmo se pode dizer do
protesto: <http://dns3.protesto.com.br/protesto/ieptb/SP/pesquisa/SinProtFR.php>.
Tudo isso para não dizer que, na esmagadora maioria das transações
imobiliárias – ao menos na capital de São Paulo, cidade que representa perto de 15% do
PIB nacional (SMF/2005) – as transações se fazem com a dispensa das certidões dos
distribuidores, sob estrita responsabilidade dos contratantes.
10. Certidões de ações judiciais expedidas... pelo registro de imóveis
O art. 1.o, § 2.
o da Lei 7.433/1985 estabelece que o “tabelião consignará no ato
notarial, a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de
Transmissão inter vivos, as certidões fiscais, feitos ajuizados, e ônus reais, ficando
dispensada sua transcrição”.
As certidões fiscais são tratadas à parte e podem ser dispensadas.
Mas, especificamente, quais seriam essas outras certidões?
Dir-nos-á o Decreto 93.240, de 1986, no inciso IV: “a certidão de ações reais e
pessoais reipersecutórias, relativas ao imóvel, e a de ônus reais, expedidas pelo Registro
de Imóveis competente, cujo prazo de validade, para este fim, será de 30 (trinta) dias”.
Surpreenderia se eu dissesse que essas certidões são expedidas pelo registro de
imóveis? Essas certidões – de publicidade de ações reais e pessoais reipersecutórias
relativas ao imóvel e ônus reais – serão expedidas pelo registro de imóveis, onde, por
força de lei, devem estar averbadas as circunstâncias e vicissitudes que afetem o imóvel
ou os direitos a ele relativos, sob pena de ineficácia em relação ao terceiro adquirente ou
credor (art. 169, LRP c/c. o art. 167, I, 21). Notem o tempo verbal de expedidas,
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concordando com os tipos anteriores. Essas certidões do registro têm prazo de validade
de trinta dias.
E a declaração do alienante no art. 1.o, § 3.
o do Decreto 93.240, de 1986?
Argumenta-se com a possibilidade da existência de ações distribuídas em
outros sítios, considerada a possibilidade de ocorrência de demandas propostas fora da
situação do imóvel ou do domicílio do alienante. Por essa razão, o decreto terá referido
a obrigação do outorgante de declarar na escritura pública a existência de “outras ações
reais e pessoais reipersecutórias, relativas ao imóvel, e de outros ônus reais incidentes
sobre o mesmo”.
Ora, esperar que o alienante, obrando em fraude à execução, declare no título a
existência das ações é esperar demais da natureza humana. Esse aspecto demonstra, em
definitivo, as minguadas vantagens de se investir na publicidade dos distribuidores para
realização dos negócios imobiliários.
Por fim – para não ficar sem resposta – no caso de obrigações propter rem, a
própria Lei 7.433, de 1985, e seu decreto regulamentador trataram da matéria prevendo
a dispensa com a assunção das responsabilidades pelo adquirente e com as declarações
do síndico (art. 1º, V, § 1º, Decreto 93.240, de 1986, e art. 4º, Lei 4.591, de 1964,
respectivamente).
A exegese da Lei 7.433, de 1985, não é a que se tem exercitado ao longo
desses anos todos. Talvez porque estivéssemos conformados com uma situação de
subalternação do registro e o nosso entendimento estivesse de alguma forma obliterado
por uma praxe que há de ser transformada por superiores razões econômicas e jurídicas.
Que se continuem solicitando certidões do distribuidor para mais tranqüilidade
do adquirente ou do credor não é medida destituída totalmente de alguma razão e
prudência. Contudo, coisa muito distinta é considerar que elas são essenciais por uma
razão de ordem jurídica ou econômica, transcendendo a lógica do sistema de
publicidade registral.
Por outro lado, que alguns tribunais resistam à tendência da valorização da
posição do terceiro adquirente, à tutela da segurança jurídica e à eficácia dos registros
de segurança jurídica, tal fato não invalida a argumentação até aqui desenvolvida. O
nosso sistema legal já prevê, com sólidas bases, um marco legal definidor em relação ao
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qual o mercado poderia se movimentar com muito mais segurança e previsibilidade. É
preciso superar o preconceito e a tendência inercial.
Os distribuidores são muito importantes e formam com o registro de imóveis
um complexo sistema de informações do qual depende a sociedade para os diversos fins
para os quais foi instituído. Mas cada qual deve se dedicar ao que lhe seja próprio e
específico.
Aqui propriamente se pode dizer: reddite quae sunt Caesaris Caesari!
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