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Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática - PPGECEM
Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemáticas - REAMEC
Curso de Doutorado – Turma 2010
EMERSON BATISTA GOMES
APRENDIZAGEM DOCENTE E DESENVOLVIMENTO
PROFISSIONAL DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA INVESTIGAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS COLABORATIVAS NO CONTEXTO DA
AMAZÔNIA PARAENSE
BELÉM-PA
2014
~ 3 ~
Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática - PPGECEM
Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemáticas - REAMEC
Curso de Doutorado – Turma 2010
EMERSON BATISTA GOMES
APRENDIZAGEM DOCENTE E DESENVOLVIMENTO
PROFISSIONAL DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA INVESTIGAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS COLABORATIVAS NO CONTEXTO DA
AMAZÔNIA PARAENSE
Tese apresentada como exigência parcial para obtenção do título
de Doutor em Educação em Ciências e Matemáticas à banca
examinadora da REAMEC-UFMT/UFPA/UEA, sob orientação
do Professor Doutor Dario Fiorentini.
Banca Examinadora:
______________________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Dario Fiorentini
______________________________________________________
Co-Orientador: Prof. Dr. Tadeu Oliver Gonçalves
______________________________________________________
Examinador Externo: Prof. Dr. Iran Abreu Mendes
______________________________________________________
Examinador Externo: Prof. Dr. José Messildo Viana Nunes
______________________________________________________
Examinador Interno: Prof. Dr. Renato Borges Guerra
______________________________________________________
Examinadora Interna: Profa. Dra. Rosália Maria Ribeiro de Aragão
~ 5 ~
DEDICATÓRIA
À mulher da minha vida Marcela e às minhas filhas Emily, Milene e
Elen pelo apoio incondicional em todos os momentos e pela paciência
em razão de minhas ausências e temperamento inconstante.
Sem vocês nenhuma conquista valeria a pena.
~ 7 ~
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todos que colaboraram com a produção desta tese, em
especial ao meu Ilustre Orientador Prof. Dr. Dario Fiorentini que
pacientemente teceu suas considerações sobre este trabalho e
contribuiu imensamente com minha formação profissional, ao meu Co-
Orientador Prof. Dr. Tadeu Oliver Gonçalves, que nunca mediu
esforços no sentido de viabilizar minha produção e construção de
minha autonomia como pesquisador, à Profa. Dra. Rosália Aragão,
que me acolheu como uma mãe em seu lar para que eu pudesse estudar
e cumprir com minhas obrigações doutorais, à Profa. Dra. Isabel
Lucena que deu seu voto de confiança para que eu percebesse os
recursos financeiros necessários à viabilização deste instrumento
acadêmico e à Profa. Terezinha Valim por sua incansável luta na
criação de oportunidades para que pessoas como eu acesse seus sonhos
intelectuais e profissionais. Este agradecimento não estaria completo
sem um especialíssimo agradecimento aos meus colaboradores do
Grupo Colaborativo de Educação Matemática – CGEM, professores
supervisores e professores em formação inicial que tornaram possível
a reificação que ora faço, por seu tempo, críticas, participação,
diálogo, produção, discussão e carinho.
Agradeço também às instituições e programas que diretamente ou
indiretamente financiaram esta produção, CAPES, UEPA, UFPA,
UFMT, UEA, SEDUC-PA, SEMED Igarapé-Açu, Campus X e Escolas
parceiras.
~ 9 ~
EPÍGRAFE
Nunca ensino meus discípulos; apenas tento dar a eles as condições
necessárias para que possam aprender.
- Albert Einstein
~ 11 ~
RESUMO
Este estudo tem por objetivo identificar, descrever e analisar evidências e processos de
aprendizagem e desenvolvimento profissional docente de professores de matemática situados
em contornos de experiências colaborativas na interface entre a Universidade e a Escola. A
experiência colaborativa situada nessa interface, e que foi tomada como campo empírico desta
pesquisa, foi desenvolvida no interior do Estado do Pará, envolvendo licenciandos em
matemática, professores de matemática da rede pública e formador da universidade, que
participaram de um projeto de iniciação à docência (PIBID). O foco de análise da aprendizagem
e do desenvolvimento profissional dos participantes dessa experiência colaborativa incidiu
exclusivamente sobre seis professores em processo de formação inicial. Para descrever e
compreender esses processos de aprendizagem e de desenvolvimento profissional do professor
de matemática, foi desenvolvido um modelo analítico-descritivo, o qual consistiu, de um lado,
em tecer relações conceituais e teóricas entre experiência, aprendizagem, socialização e a teoria
das catástrofes e, de outro, identificar e explorar indícios de aprendizagem situada em
experiências significativas de prática da docência dos licenciandos em matemática, ao longo do
período de investigação, em um percurso de formação e desenvolvimento profissional, no qual
foi possível mapear relações entre a formação em disciplinas específicas, disciplinas didático-
pedagógicas e as atividades extracurriculares. Este percurso de formação pôde ser apreendido
pelos depoimentos e registros de atividades dos professores tomados por sujeitos, como
relatórios de pesquisa, diários reflexivos e entrevistas. A pesquisa contou com duas fases: a
primeira denominada pesquisa de primeira ordem em que se desenvolveram as experiências de
docência e estudos em grupo; e a segunda, dita pesquisa de segunda ordem ou meta-análise,
desenvolvida exclusivamente pelo autor desta tese, momento em que foram tecidas análises e
interpretações sobre o ocorrido na pesquisa de primeira ordem. Este processo de investigação
configura, portanto, uma pesquisa de natureza qualitativa e interpretativa em que foram feitas
análises textuais discursivas sobre informações individuais e coletivas de seis sujeitos
principais, selecionados pelos critérios de participação ativa e qualidade de suas reificações
sobre a práxis docente. Como um dos subprodutos dessa pesquisa de segunda ordem, foi
produzido um modelo analítico para a interpretação do desenvolvimento profissional docente
em uma perspectiva catastrófica (DPDPC). Este modelo auxiliou descrever e compreender a
aprendizagem e o desenvolvimento profissional docente dos professores em formação inicial,
a partir de experiências de formação e de docência nas quais ocorrem momentos de conversão
catastrófica com potencial de promover mudanças de atitudes e de relação com o saber escolar
e também uma progressiva socialização e identificação dos licenciandos com outras formas de
ser e fazer docente em uma comunidade profissional. Este trabalho apresenta também, como
subproduto, o mapeamento de um processo de formação e aprendizagem em que foi possível
identificar tipologias de aprendizagem da docência, tais como reflexividade crítica sobre a
realidade, curiosidade epistemológica do conteúdo e do sujeito, dialogicidade da comunicação
e da atuação docente, instrumentalidade tecnológica e estratégica do ensino, inacabamento e
consciência social da profissão, sensibilidade ecológica, domínio didático-pedagógico do
currículo e do ensino e assunção da autoridade docente.
Palavras-chave: Formação de Professores de Matemática, Experiência, Pesquisa-ação
Colaborativa, Aprendizagem e Desenvolvimento Profissional Docente, Catástrofe.
~ 13 ~
RESUMEN
Este estudio tiene como objetivo identificar, describir y analizar los procesos de pruebas y de
aprendizaje y desarrollo profesional docente de los profesores de matemáticas ubicados en
experiencias colaborativas en los contornos de la interfaz entre la Universidad y la Escuela. La
experiencia de colaboración situado en esta interfaz, y se tomó como campo empírico de esta
investigación fue desarrollada en el Estado de Pará, con la participación de pregrado en
matemáticas, profesores de matemáticas de la escuela pública y entrenador de la Universidad,
que participaron en un proyecto para la iniciación de la enseñanza (PIBID). El foco de análisis
del aprendizaje y el desarrollo profesional de los participantes en esta experiencia de
colaboración sólo examinó seis profesores en formación inicial. Para describir y comprender
estos procesos de aprendizaje y desarrollo profesional de los profesores de matemáticas, hemos
desarrollado un modelo analítico-descriptivo, que consistía en un mano a tejer relaciones
conceptuales y teóricas entre la experiencia, el aprendizaje, la socialización y la teoría de las
catástrofes y por otro, identificar y aprovechar las experiencias de aprendizaje significativas de
pruebas que se encuentren en la práctica de la enseñanza de los estudiantes en matemáticas,
durante el período de investigación, en un curso de formación y desarrollo profesional, en la
que era posible mapear las relaciones entre la formación disciplinas específicas, cursos
didácticos y pedagógicos y actividades extracurriculares. Esta trayectoria educativa podría ser
aprovechada por las actividades testimonios y registros de maestros tomadas por temas, tales
como informes de investigación, de reflexión diaria y entrevistas. En la investigación
participaron dos fases: primero se llama la primera orden de búsqueda en el que se desarrollaron
las experiencias de enseñanza y el estudio en grupo; y la segunda, dijo investigación de segundo
orden o meta-análisis, desarrollado en exclusiva por el autor de esta tesis, en el que se analizan
y se hicieron interpretaciones sobre lo que ocurrió en la investigación de primer orden. Por
tanto, este proceso de investigación establece una investigación cualitativa e interpretativa en
la que se hicieron análisis textual discursiva de la información individual y colectiva de los seis
grandes temas seleccionados por los criterios de la participación activa y la calidad de su
reificación de la práctica docente. Como un subproducto de esta pesquisa de la segunda orden,
se produjo un modelo analítico para la interpretación del desarrollo profesional de docentes en
una perspectiva catastrófica (DPDPC). Este modelo ayudó a describir y comprender el
aprendizaje y desarrollo profesional docente de los profesores en formación inicial, a partir de
experiencias de capacitación y enseñanza en el que se producen momentos de conversión
catastrófica con potencial para promover cambios en las actitudes y relaciones con el
conocimiento escolar y también una socialización progresiva y la identificación de los
estudiantes con otras formas de ser y de hacer la enseñanza en una comunidad profesional. Este
trabajo presenta también, como un subproducto, la asignación de un proceso de formación y el
aprendizaje que era posible identificar tipologías de enseñanza y aprendizaje, como reflexión
crítica sobre la realidad, la curiosidad epistemológica del contenido y el tema de la
comunicación y el diálogo de la actuación la enseñanza, la tecnología y la instrumentalidad
estratégica de la educación, la conciencia sin terminar y social de la profesión, la sensibilidad
ecológica, didáctico y pedagógico área del plan de estudios y la enseñanza y la asunción de la
autoridad docente.
Palabras clave: Educación del Profesor de Matemáticas, Experiencia, Acción de Investigación
en Colaboración, Aprendizaje y Desarrollo Profesional de los Maestros, Catástrofes.
~ 15 ~
ABSTRACT
This study aims to identify, describe and analyze evidence and learning processes and teacher
professional development of mathematics teachers located in collaborative experiences
contours at the interface between the University and the School. The collaborative experience
situated in this interface, and it was taken as empirical field of this research was developed
within the State of Pará, involving undergraduates in mathematics, mathematics public school
teachers and trainer University, who participated in a project initiation to teaching (PIBID). The
focus of analysis of learning and professional development of participants in this collaborative
experience only examined six teachers in initial training. To describe and understand these
processes of learning and professional development of mathematics teachers, we developed an
analytical-descriptive model, which consisted of a hand at weaving conceptual and theoretical
relationships between experience, learning, socialization and catastrophe theory and on the
other, identify and exploit significant learning experiences of evidence located in the practice
of teaching of undergraduates in mathematics, during the investigation period, in a course of
training and professional development, in which it was possible to map relationships between
training specific disciplines, didactic and pedagogical courses and extracurricular activities.
This educational path could be seized by the testimony and records activities of teachers taken
by subjects, such as research reports, daily reflective and interviews. The research involved two
phases: first is called the first search order in which they developed the teaching experiences
and group study; and the second, said second rate research or meta-analysis, developed
exclusively by the author of this thesis, at which analyzes and interpretations were made about
what happened in first-order research. This process of research sets therefore a qualitative and
interpretative research in which they were made discursive textual analysis of individual and
collective information of six major subjects selected by the criteria of active participation and
quality of its reification of the teaching practice. As a byproduct of this research of second
order, was produced an analytical model for the interpretation of teacher professional
development in a catastrophic perspective (DPDPC). This model helped describe and
understand learning and teacher professional development of teachers in initial training, from
training and teaching experiences in which occur moments of catastrophic conversion with
potential to promote changes in attitudes and relationship with the school knowledge and also
a progressive socialization and identification of undergraduates with other ways of being and
doing teaching in a professional community. This paper presents also, as a byproduct, the
mapping of a process of training and learning it was possible to identify teaching learning
typologies, such as critical reflexivity about reality, epistemological curiosity of the content and
subject of the communication dialog and the performance teaching, technology and strategic
instrumentality of education, unfinished and social awareness of the profession, ecological
sensitivity, didactic and pedagogical area of the curriculum and teaching and assumption of
teaching authority.
Keywords: Math Teacher Training, Experience, Collaborative Learning, Action Research and
Teacher Professional Development, Catastrophe.
~ 17 ~
ÍNDICE DE FIGURAS
Fig. 01 – Singularidade Cúspide de Whitney ...............................................................63
Fig. 02 – Modelo Cúspide da Aprendizagem da Docência ...................................................64
Fig. 03 – A espiral de ciclos auto-reflexivos na pesquisa-ação .......................................74
Fig. 04 – Síntese dos múltiplos sentidos e modalidades de trabalho
coletivo e suas relações com a pesquisa ...............................................................75
Fig. 05 – Eixos de Trabalho/Pesquisa do GCEM ...............................................................87
Fig. 06 – Percurso de Formação do PIBID ...........................................................................95
Fig. 07 – Contorno Experienciais da Formação Inicial ..................................................111
Fig. 08 – Tipologias de Aprendizagem da Docência ..................................................122
Fig. 09 – Página do livro Exame de Artilheiro de 1744 ..................................................125
Fig. 10 – Macro-contornos da formação docente ..............................................................137
Fig. 11 - Experiência e Sujeitos Principais (Sp) e Sujeitos Secundários (Ss) ...............161
Fig. 12 – Desenvolvimento Natural Esperado de Grupos ..................................................164
Fig. 13 – Esquema de (co)determinação didático (CHEVALLARD, 2009) ...............224
Fig. 14 – Representação da dialética do desenvolvimento ecológico por níveis
de co-determinação e sucessão de formas ..............................................................225
Fig. 15 – Gráfico de DPC G1 ......................................................................................230
~ 19 ~
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................................21
COMPOSIÇÃO I
CONTORNOS TEÓRICO-EPISTEMOLÓGICOS DA PESQUISA .............................................................36
Contornos e tessituras da experiência ........................................................................................................ 37
Tecendo relações entre Experiência e Aprendizagem Profissional Situada em Comunidades de Prática
(CoP) ............................................................................................................................................................ 45
Identidade e Desenvolvimento Profissional Docente (DPD) ...................................................................... 49
(Re)construindo significados a partir da experiência ............................................................................49
Desenvolvimento Profissional Docente em uma Perspectiva Catastrófica (DPDPC) ............................... 56
A Pesquisa-Ação Colaborativa (PAC) ........................................................................................................ 66
Aspectos constitutivos da pesquisa-ação colaborativa ...........................................................................72
Convergências e projeções da Composição I .............................................................................................. 76
COMPOSIÇÃO II
CONTORNOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA ....................................................................................83
Contornos institucionais e empíricos da pesquisa de primeira ordem: a constituição do grupo e a
Pesquisa-Ação Colaborativa (PAC) ............................................................................................................ 83
Colaboradores da pesquisa .......................................................................................................................90
Contornos didático-pedagógicos e formativos da PAC .............................................................................93
Contornos metodológicos do processo de meta-análise da pesquisa de segunda ordem .......................... 96
Os instrumentos da metanálise ...............................................................................................................98
Construção das categorias de aprendizagem docente .............................................................................. 104
COMPOSIÇÃO III
CONTORNOS META-ANALÍTICOS DA PESQUISA .................................................................................109
Marcos conceituais das tipologias de aprendizagem da docência ........................................................... 112
1) Reflexividade crítica sobre a realidade............................................................................................... 113
2) Curiosidade epistemológica do conteúdo e do sujeito ........................................................................ 113
3) Dialogicidade da comunicação e da atuação docente ........................................................................ 115
4) Instrumentalidade tecnológica e estratégica do ensino ...................................................................... 116
5) Inacabamento e consciência social da profissão ................................................................................ 117
6) Sensibilidade ecológica ...................................................................................................................... 118
7) Domínio didático-pedagógico do currículo e do ensino da matemática ............................................. 119
8) Assunção da autoridade docente ........................................................................................................ 120
A Formação Específica e a articulação entre as disciplinas específicas e didático-pedagógicas ............. 122
~ 20 ~
A formação didático-pedagógica e a articulação entre teoria e prática.................................................... 131
Os contornos das atividades extracurriculares .......................................................................................... 134
O percurso de formação ....................................................................................................................... 137
Análises do Percurso Formativo no PIBID de Matemática ..................................................................... 138
Experiências de preparação para o ingresso em sala de aula.............................................................. 138
A produção do glossário básico de educação ....................................................................................... 139
A produção de resenhas ........................................................................................................................ 142
A produção dos diários reflexivos ........................................................................................................ 145
A passagem através do espelho e instalação da dualidade ....................................................................... 149
Experiências de incursão em sala de aula ............................................................................................ 149
Experiências de participação do grupo em eventos científicos ............................................................ 154
Experiências de elaboração de Sequências Didáticas .......................................................................... 159
Situações de elaboração dos Trabalhos de Conclusão de Curso ......................................................... 197
Convergências e projeções da Composição III ......................................................................................... 211
COMPOSIÇÃO IV
CONTORNOS DE CONVERGÊNCIAS DA PESQUISA
Um modelo analítico-descritivo do Desenvolvimento Profissional Docente em uma Perspectiva Catastrófica
(DPDPC) ..............................................................................................................................................................217
Princípios relativos ao professor, sua aprendizagem e seu desenvolvimento profissional ..................... 218
A ecologia das práticas e dos processos de mudança no DPDPC ............................................................ 223
A condição atropológica e a representação topológica do Modelo de DPDPC ....................................... 228
O Percurso de um Desenvolvimento Profissional Docente em uma Perspectiva Catastrófica ............... 230
A trajetória escolar e seu impacto no DPDPC de Sena ....................................................................... 231
A trajetória formativa durante a Licenciatura em Matemática e seu impacto no DPDPC de Sena e
Queiroz: a passagem pelo espelho e escolha da carreira ...................................................................... 234
A entrada em sala como professor e o princípio da dualidade ............................................................... 240
A dualidade operante no estudo em grupo e construção de sequências didáticas .................................. 242
A dualidade operante nas regências de classe e nos projetos de pesquisa sobre a prática docente ........ 244
A conversão catastrófica enquanto consolidação provisória do processo de sujeição ............................ 246
CONTORNOS CONCLUSIVOS ......................................................................................................................255
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................................261
APÊNDICE ……………………………………………………………………………………….……………279
~ 21 ~
INTRODUÇÃO
As altercações a respeito dos processos de aprendizagem e do desenvolvimento
profissional do professor há muito têm circunscrito as pesquisas acerca da problemática da
formação docente. Longe de figurarem como o único foco de perscrutação e análise das
investigações que visam a melhoria da qualidade da Educação em nosso país, ou de
engendrarem soluções definitivas à problemática assinalada, compõem, entretanto, aspectos
importantes do matiz deste sistema complexo. Isto porque se elegeu historicamente entre os
elementos constitutivos da Educação a formação docente como um dos seus pilares de
sustentação.
Mudam-se, no entanto, as políticas e com elas as perspectivas conceituais sobre a
formação de professores. O advento do século XXI, com suas dinâmicas aceleradas e complexo
sistema tecnológico, expressa uma realidade diferente daquela que se apresentava no início do
século XX. Em cada tempo as características sociais e econômicas têm dado suportes
diferenciados à formação docente. Com efeito, o paradigma de ciência moderna, em que a
realidade era vista como existindo em si mesma, separada do sujeito do conhecimento
(MIZUKAMI et al., 2002), sendo que este pretendia descrevê-la por meio de leis e agir sobre
ela por meio de técnicas (CHAUÍ, 1997) gerou, até o final da década de 1970, uma formação
docente cuja preocupação central era modelar o comportamento do professor, treiná-lo em
tarefas específicas produzidas por estudos experimentais quantitativos realizados em grandes
centros de formação (FERREIRA, 2003).
A partir dos anos 70, sob o paradigma do processo-produto, os pesquisadores
procuravam descobrir comportamentos genéricos dos professores que estivessem relacionados
com a aprendizagem dos estudantes quando medidos por testes estandardizados. Nesta
perspectiva, a formação, embora buscasse uma compreensão sobre o comportamento do
professor, suas metodologias e disposição física em sala de aula, focava a construção de
modelos eficientes que, pressupunha-se, influenciariam no processo ensino-aprendizagem nas
escolas (FERREIRA, 2003).
~ 22 ~
Na década de 80, com a ampliação das questões referentes à educação escolar, passou a
predominar a formação cujo ponto importante era o desenvolvimento cognitivo e moral dos
professores. Diante do que podemos chamar de paradigma naturalista-interpretativo, a
formação de professores se mantinha pouco reconhecida e se orientou principalmente para a
atualização do conhecimento específico do professor. A partir da década de 80, inúmeros
trabalhos foram desenvolvidos acerca do que pensa o professor – suas crenças, suas concepções,
seus valores, por exemplo -, como numa tentativa de superar o modelo até então vigente, em
que o professor não era percebido como um profissional com uma história de vida, crenças,
experiências, valores e saberes próprios (FERREIRA, 2003).
Nesse novo contexto, surgem perspectivas de formação que percebem o professor como
um agente cognoscente e problematizam como os professores se comportam e como eles fazem
(em lugar de o que fazem), como eles dão sentido ao seu mundo e que significados eles atribuem
às suas experiências (COONEY, 1994). Subjaz a esse processo o paradigma comunicativo-
dialógico, que tem como base a racionalidade comunicativa, em que o ensino se faz pela
construção e reconstrução da identidade pessoal e profissional dos sujeitos que interagem em
determinados ambientes de aprendizagem (FELDMANN, 2009).
Por este breve retrospecto, é possível perceber uma nítida passagem de uma concepção
de formação docente em que o professor é objeto passivo para uma formação em que este
começa a ser considerado como sujeito com participação ativa e, em alguns casos,
colaborativa. Nessa trajetória se modifica também o lócus dessa formação, deslocando-se das
Universidades e centros de pesquisa e formação superior para o chão da Escola, depois desta
para ambientes de interface entre as duas instituições, pressupondo uma relação harmônica e
produtiva à formação docente. Articulam-se nesse processo a formação inicial1 de professores
- por meio de estágios, práticas de ensino e projetos de iniciação à docência -, bem como a
chamada formação continuada2. Contudo, essa transição, como quase tudo relacionado à
educação, não tem se dado de forma tão simples. Isto porque a relação Universidade-Escola
tem apresentado aspectos políticos e culturais que obstaculizam tal articulação.
1 A Formação Inicial de Professores compreende a graduação em licenciatura em determinada área ou campo
científico de atuação, constituindo uma habilitação profissional relativa à prática docente. 2 Atualmente a Formação Continuada tem valorizado uma modalidade de formação do docente centrada nas
práticas de ensino e na problemática do professor no exercício da profissão. Possui respaldo pela Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (LDB/Lei Nº 9.394/96) em seu Artigo 87, parágrafo 3, inciso III, que determina ser
dever de cada município, e supletivamente ao Estado e União, realizar programas de capacitação para todos os
professores em exercício, utilizando também, para isto, os recursos da educação a distância.
~ 23 ~
Configurada a necessidade de perscrutar os complexos processos da formação docente,
em especial dos professores de matemática, em meio a articulação entre estas instituições
potencialmente formadoras (Universidade e Escola), percebo o imperativo de tomar como
referência as pesquisas que visam encontrar caminhos viáveis à melhoria da aprendizagem dos
alunos nas escolas. Estes estudos têm dado especial atenção à constituição identitária do
professor e seu consequente desenvolvimento profissional. Destaco a especificidade da questão,
uma vez que a categoria de docentes de matemática há muito tem sofrido com a indefinição
identitária da profissão, visto que os currículos da formação não têm acompanhado de perto as
mudanças e transformações que têm marcado a vida social nas últimas décadas. O
desenvolvimento das tecnologias da informação, a globalização da comunicação e a
mundialização da economia têm contribuído para o acelerado progresso das descobertas
científicas e padronização da produção e relações sociais. Vivemos hoje em uma sociedade de
mudanças aceleradas, caracterizada pela incerteza e provisoriedade. O que implica a
constituição de um quadro que torna mais complexo e difícil a tarefa do estabelecimento de
padrões de referência para a vida social e, em específico, para a vida profissional do professor
de matemática.
A sociedade tem elaborado demandas - como o letramento matemático, capaz de situar
os cidadãos em sua realidade por meio da interpretação de dados e resolução de problemas
provenientes de seu contexto social, ou da Etnomatemática, que postula um sujeito capaz de
articular a sensibilidade antropológico-cultural, de resgate e respeito dos saberes locais, aos
processos formativos globais -, que quase nunca são atendidas pelos profissionais de ensino da
matemática. Essa defasagem tem contribuído para o estabelecimento de altos índices de
reprovação, baixos níveis de motivação dos alunos e uma séria depreciação da carreira do
professor de matemática.
Para amenizar os problemas causados por esta insuficiência das práticas formativas, se
tem buscado por estratégias que promovam uma melhor preparação deste profissional, seja no
nível de sua formação inicial seja na formação continuada. Diante dessa perspectiva, nos
últimos trinta anos, percebemos se acentuar o número de trabalhos narrando experiências de
formação docente que privilegiam as dinâmicas colaborativas, indicando uma forte transição
do tipo de pesquisa técnica para o da pesquisa-ação emancipatória3. Tais publicações
3 A Pesquisa-Ação Colaborativa será objeto de discussão em tópico específico neste trabalho.
~ 24 ~
destacam o reconhecimento de iniciativas de professores do Ensino Básico que assumem o
papel de reflexivos sobre suas práticas, isto é, em que os professores tomam maior consciência
de seus próprios atos, interpretam a reflexão como conhecimento do conhecimento (LIBANEO,
2006), pensam sobre suas ideias, examinando-as, modificando-as, formando teorias que
orientam suas práticas (ZEICHNER, 1993).
Não obstante, longe de ser uma realidade geral, a emancipação do professor da educação
básica ainda é algo distante para muitos grupos de professores, sobretudo daqueles residentes
nas periferias e localidades afastadas dos grandes centros intelectuais. Assim, ainda é
hegemônico nesses locais que a iniciativa ao debate sobre as perspectivas teóricas da educação
se deem a partir das instituições de ensino superior (GOMES, 2012). É neste contexto, de
emergência de estratégias formativas com vistas a preparação de profissionais docentes situados
às demandas do século XXI, que destaco o caso da formação do Grupo Colaborativo de
Educação Matemática (GCEM)4, sitiado no município de Igarapé-Açu, Nordeste da
Amazônia Paraense.
A complexidade do enfrentamento da realidade que despontava me levou a propor uma
adequação do projeto institucional do grupo para o curso de doutoramento do Programa de Pós-
Graduação em Educação em Ciências e Matemática (PPGECEM) da Rede Amazônica de
Educação em Ciências e Matemática (REAMEC). Essa estratégia se mostrou eficiente, pois
com a publicação de um edital pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), pudemos apresentar uma variação do projeto doutoral aos critérios do
Projeto Institucional - Universidade e Escola: desafios e caminhos para a form(ação) de
professores no contexto amazônico -, para o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à
Docência (PIBID), a partir do qual conseguimos a institucionalização do Subprojeto de Área
Formação de Multiplicadores em Educação Matemática Colaborativa – o Lúdico em Questão5.
4 Este grupo surge em resposta à demanda da comunidade igarapeaçuense por ocasião do planejamento estratégico
(2010) do Campus X da Universidade do Estado do Pará (UEPA), quando identificamos a necessidade de ações
que promovessem uma maior articulação entre a Universidade e as Escolas Públicas do município, bem como do
aumento do número de projetos formativos que problematizassem a inter-relação entre pesquisa, ensino e extensão
no Campus. 5 Este projeto visa atender a iniciação à docência dos professores em formação inicial da licenciatura em
matemática da UEPA de Igarapé-Açu e promover ações afirmativas nas escolas conveniadas. O projeto conta com
financiamento pela Coordenação de Apoio ao Pessoal de Ensino Superior (CAPES) e formalizou convênio de
cooperação entre a UEPA e as secretarias Municipal de Educação do Município de Igarapé-Açu (SEMED-IA) e
de Estado de Educação do Pará (SEDUC-PA). Reúne uma equipe composta por 1 (um) coordenador de área,
docente da UEPA, 20 (vinte) estudantes da licenciatura em matemática e 4 (quatro) professores da rede pública de
Ensino Básico de Igarapé-Açu.
~ 25 ~
Particularmente, depois desta formalização, tornou-me evidente que dispúnhamos de
dois direcionamentos a seguir: o primeiro direcionamento dizia respeito à ação política de
gestão e de formação docente em que nos predispúnhamos - eu, os professores escolares e os
acadêmicos - a discutir o ensino da matemática por meio de atividades de pesquisa, ensino e
extensão, mediatizadas por dinâmicas colaborativas em ambientes de interface entre a
Universidade e as Escolas; e um segundo direcionamento, que passei a definir como meta-
analítico, em que ponho em suspensão o primeiro direcionamento e reflito sobre os registros
fornecidos pelas dinâmicas colaborativas supracitadas, com fins à compreensão dos processos
de aprendizagem e desenvolvimento profissional desses docentes, estabelecendo, assim, o
objeto e foco do presente trabalho.
Ao institucionalizarmos o GCEM junto ao PIBID, assumimos o pressuposto de que o
professor de matemática pode se propor de forma competente a desenvolver pesquisa baseada
em sua experiência, levantando e respondendo questões relevantes sobre os problemas do
ensino da matemática, refletindo e produzindo ações em colaboração com acadêmicos e
professores em exercício, bem como contribuindo para a (re)formulação de teorias e práticas
que propiciem a melhoria das condições de trabalho e ensino nas escolas públicas de Igarapé-
Açu/PA (GOMES, 2012). Essas atividades têm sido desenvolvidas, desde então, mediante a
proposição de projetos elaborados em ambientes de discussão e pela problematização de temas
levantados a partir de dinâmicas colaborativas de investigação e processos reflexivos na ação,
sobre a ação e para a ação (SCHÖN, 2000), realizados a partir/nas/para as práticas educativas
acadêmicas e escolares (COCHRAN-SMIT & LYTLE, 1999).
Comprometido com as atividades do GCEM, que impunham um olhar mais específico
à formação inicial dos professores de matemática e por meio das leituras aprofundadas pela
participação no curso de formação doutoral, evidenciei que a dificuldade de articulação entre
Universidade e Escola se apresenta acompanhada de outros processos dissociativos como os
intervenientes na articulação entre teoria e prática, e entre as disciplinas específicas e didático-
pedagógicas. Percebi, ainda, que essas características estão presentes tanto na Universidade
como na Escola, logo, tendem a impregnar a relação entre ambas, e isso tem implicado na
formação dos professores, produzindo o que Veenman (1984) chama de “choque de realidade”,
situação em que o professor iniciante defronta-se com a diferença entre o idealizado nos cursos
de formação e o encontrado na realidade das escolas.
~ 26 ~
Em contraposição a este choque de realidade, a promoção de atividades
extracurriculares como as que promovemos no GCEM, por exemplo, tendem a favorecer a
construção de caminhos e sentidos para articulação entre Universidade e Escola, teoria e prática
e entre disciplinas específicas e didático-pedagógicas, visto que tanto as experiências em
contextos de pesquisa colaborativa quanto a problematização das práticas de ensino nos
ambientes de interface entre a Universidade e a Escola, vivenciadas pelos professores de
matemática em formação inicial, desencadeiam processos de aprendizagem docente que criam
condições para o desenvolvimento profissional desses professores. Constitui função deste
trabalho lançar luz a essa assertiva. Mas, parece-me plausível afirmar que as estratégias
formativas planeadas e desenvolvidas pelo grupo tornam-se imprescindíveis para a superação
de uma visão de valência negativa6 assinalada acerca das atividades docentes do professor de
matemática, além de propiciarem um prolífero campo para debates sobre a constituição
identitária e desenvolvimento profissional dos professores envolvidos.
Assumindo estes aspectos, acessíveis pela elucubração das práxis7, experienciadas neste
projeto, sou levado a interpretar a aprendizagem docente sob a perspectiva conceitual da
categoria experiência de Dewey (2011) definida pelos princípios de interação e continuidade8,
e as dinâmicas de socialização e desenvolvimento profissional como resultado de um processo
identitário, de assimilação das práticas de uma comunidade (DUBAR, 1997; FIORENTINI,
2006, 2009, 2013b), bem como a formular a tese de que a aprendizagem docente, pode ser
interpretada como o resultado da interação de um sujeito com práticas situadas em uma
experiência educativa significativa, capaz de ressignificar posturas, redirecionar atitudes e
impulsionar o desejo de continuar aprendendo. Sendo, nestes termos, o desenvolvimento
profissional docente um processo de conversão catastrófica - de identificação dos sujeitos a
um corpo de conhecimentos, valores, teorias, saberes e práticas de um grupo tomado por
referência -, resultante, pois, da aprendizagem docente frente a situações de práticas
6 Este termo é empregado por Kurt Lewin (1973) para designar experiências em que há perdas nas relações
estabelecidas entre um dado sujeito e seu contexto experiencial. 7 Assumida aqui indistintamente como experiência prática, prática da experiência ou simplesmente prática, desde
que levada em conta seu sentido ampliado de indissociabilidade com a teoria. 8 Aprofundarei os conceitos de interação e continuidade mais à frente. Por ora assumo a noção de interação e
continuidade como princípios indissociáveis da teoria da experiência de Dewey, sendo que a interação respeita
as condições objetivas (mundo exterior) e condições internas (psicológicas). Já o princípio da continuidade,
quando aplicada à Educação, significa que o futuro tem de ser considerado em cada estágio do processo educativo
(DEWEY, 2011).
~ 27 ~
colaborativas com intencionalidade de mudança, tanto pelo sujeito quanto pelo grupo
institucional de referência.
Diante deste contexto, assumo a hipótese de que o professor aprende e se desenvolve
profissionalmente a partir do momento em que ele compartilha uma relação positiva para com
as “regras” objetivas (práxis docentes) e subjetivas (valores e crenças) de uma comunidade de
práticas9 docentes. Vale assinalar que interpreto experiência educativa como toda espécie de
relação do sujeito docente com o contexto educacional, seja em um ambiente proporcionado
por uma comunidade de práticas, por grupos de investigação, por processos de ensino em classe
ou mesmo pela leitura de livros, pelos debates despretensiosos sobre a educação, pela
participação em eventos e cursos, pela manipulação de instrumentos de ensino e pela
investigação colaborativa. E por significativo, me refiro aos significados atribuídos pelos
sujeitos durante uma experiência, dos quais me interessam aqueles que são potencialmente
mobilizadores de novas práticas e de identificação com o grupo de referência.
Investigo, neste contexto de experiências, as evidências de aprendizagem situadas ao
longo do processo interativo dos sujeitos no grupo e compreendo o desenvolvimento
profissional dos professores como resultado do envolvimento ativo destes sujeitos nos
processos de formulação colaborativa dos objetivos partilhados e na construção de práticas
investigativas e reflexivas da/sobre/na ação docente, assumindo, invariavelmente, o GCEM
como a principal instituição de referência. Produzindo assim um desenvolvimento profissional
com características bot-top-up10, cuja centralidade dos atores nos seus processos de
aprendizagem é premissa fundante e válida (FORMOSINHO J., 2009).
Esta noção de aprendizagem apresenta afinidades com a Teoria Social da
Aprendizagem de Lave & Wenger (1991), em que toda aprendizagem é situada em uma prática
social que acontece mediante participação ativa em práticas de comunidades sociais e
construção de identidades com essas comunidades. De acordo com Fiorentini (2013b) os
saberes em uma comunidade de práticas (CoP) são produzidos e evidenciados através de
9 A expressão comunidade de práticas (CoP) foi cunhada por Lave & Wenger (1991, p. 99) para designar a prática
social de um coletivo de pessoas que comungam um sistema de atividades no qual compartilham compreensões
sobre aquilo que fazem e o que isso significa em suas vidas e comunidades (FIORENTINI, 2009). 10 Termo cunhado por mim em oposição à formação top-down (de cima para baixo) empregado em Zeichner (1993)
e que quer dizer “de baixo para cima”, isto é, a partir das decisões e necessidades do grupo em formação.
~ 28 ~
formas compartilhadas de fazer e entender dentro da comunidade, as quais resultam de
dinâmicas de negociação, envolvendo participação11 plena e reificação12 na/pela comunidade.
Com base no material reunido, na tese formulada e nas referências assumidas, elaborei
as seguintes questões de pesquisa:
Que evidências de aprendizagem ocorrem e que processos as produzem nas
experiências colaborativas de professores de matemática em ambientes de interface entre a
Universidade e Escola?
Em que sentido as manifestações de aprendizagem docente de professores de
matemática situadas nas experiências colaborativas em ambientes de interface entre a
Universidade e a Escola promovem o desenvolvimento profissional do professor de
matemática?
Visando levar a termo meu trabalho de pesquisa qualitativa e de natureza interpretativa,
busquei definir meu objeto de investigação implicando a concepção da pesquisa-ação
colaborativa, na formação do professor reflexivo e na concepção de aprendizagem
profissional pela experiência da docência em ambientes de interface entre a Universidade e a
Escola. Nesta perspectiva, delimitei meu foco de análise na formação inicial de professores de
matemática e procurei construir os seguintes objetivos como subsídios para a elucidação das
questões de pesquisa supracitadas:
Objetivo Geral:
Identificar, descrever e analisar as evidências de aprendizagem, os processos de
aprendizagem e o desenvolvimento profissional docente de professores de matemática situados
nos contornos das experiências colaborativas em ambientes de interface entre a Universidade
e a Escola.
11 Participar significa engajar-se na atividade própria da comunidade, apropriar-se da prática, dos saberes e dos
valores da mesma e também contribuir para o desenvolvimento da própria comunidade, sobretudo de seus
membros e de seu repertório de saberes (FIORENTINI, 2009). 12 Reificar significa tornar coisa. Não se refere apenas a objetos materiais ou concretos (textos, tarefas, materiais
manipulativos), mas também conceitos, ideias, rotinas, registros escritos e teorias que dão sentido às práticas da
comunidade (WENGER, 2001).
~ 29 ~
Objetivos Específicos:
Identificar e analisar os contornos das experiências colaborativas em que se evidenciam
processos de aprendizagem que criam condições para a problematização e desnaturalização
da prática docente;
Caracterizar/explicitar um modelo heurístico pelo qual se avalie em que termos as
evidências de aprendizagem docente, dinamicamente, promovem o desenvolvimento
profissional do professor de matemática.
Os resultados da pesquisa, que tratarei oportunamente, serão abordados sob a
perspectiva dos objetivos traçados manifestando a pertinência da ação, pois como sugere Tardif
(2007) é preciso rever a visão de que a prática dos professores é somente um espaço para
aplicação de saberes provenientes da teoria, mas também um espaço de produção de saberes
específicos oriundos dessa mesma prática.
Ao perceber a dinâmica imbricada do trabalho a ser delineado, considerei imperativa a
construção de uma trama igualmente complexa para o tratamento e compreensão das
experiências do grupo. Essa tarefa me fez refletir sobre a adoção de uma perspectiva
multirreferencial para que eu pudesse produzir um novo olhar sobre o professor de matemática
em formação inicial, sob uma perspectiva humana plural, a partir da conjugação de várias
correntes teóricas não conflitantes. Nesses termos, tenho em vista a florescência de uma
epistemologia coerente de construção do conhecimento sobre os fenômenos da experiência e
aprendizagem docentes, produzindo, assim, um modelo heurístico plausível e dialógico que
verse sobre o desenvolvimento profissional desses sujeitos.
Para explicitar os meios pelos quais justifico, conduzo e analiso as evidências de
aprendizagem in procesu, os processos de aprendizagem e o desenvolvimento profissional dos
professores de matemática situados em contextos de experiências colaborativas, pretendo, neste
relatório final de pesquisa, apresentar os argumentos elucidativos sobre as questões de pesquisa
e avaliação de minha tese, circunscrevendo-os pela seguinte configuração:
~ 30 ~
Na primeira composição13, intitulada Contornos14 Teórico-epistemológicos da
Pesquisa15, busco realizar um aprofundamento teórico multirreferencial sobre as temáticas:
formação de professores, aprendizagem docente e desenvolvimento profissional. Defino a
experiência como unidade fundamental de estudos sobre a aprendizagem docente situada e o
desenvolvimento profissional enquanto identificação com um grupo de práticas por meio da
participação ativa e reificação dos processos interativos dos sujeitos no ambiente social. Com
o objetivo de substanciar teoricamente os argumentos reflexivos sobre os fenômenos formativos
e desenvolvimento profissional docente, resgato as teorias sobre a experiência e o contínuo
experiencial (DEWEY, 1979, 2011), a investigação reflexiva e a pesquisa-ação-colaborativa
(LEWIN, 1973; ZEICHNER, 1993; PIMENTA, 2005b; FIORENTINI & LORENZATO, 2006;
IBIAPINA, 2008) e o desenvolvimento profissional como um processo de socialização e
constituição identitária (DUBAR, 1997), bem como os conceitos de sujeitamento e
conformidade institucional (CHEVALLARD, 1991) na ocorrência da aprendizagem situada
(LAVE & WENGER, 1991; FIORENTINI, 2006, 2009, 2010, 2013a). Introduzo também as
noções de catástrofe e desenvolvimento profissional docente em uma perspectiva catastrófica16
com base em Thom (1977, 1995). Saliento que os referencias teóricos desta composição serão
assumidos por mim como principais por apresentarem caráter longitudinal à obra, enquanto os
demais serão considerados como secundários ou auxiliares, uma vez que darão suporte a
composições específicas.
Na segunda composição, denominada Contornos Metodológicos da Pesquisa,
apresentarei, inicialmente, os pressupostos metodológicos da ação formativa do GCEM e
estabelecerei os parâmetros metodológicos da pesquisa de primeira e de segunda ordem, em
que apresento os critérios de escolha dos sujeitos principais17, o tipo de pesquisa adotada, os
13 O termo composição é utilizado no lugar de capítulo para caracterizar seu sentido de inacabamento, de parte que
somente assume sentido completo em conjunto com as demais partes do trabalho. Conceituação que está presente
na Teoria Gestalt de Wertheimer, Wolfgang e Köhler (apud MARX & HILLIX, 2008), nos princípios de Psicologia
Topológica de Kurt Lewin (1973) e na Teoria das Catástrofes de René Thom (1977, 1995), referências estas que
atribuem grande sentido às análises do presente trabalho. 14 O termo contorno assume neste trabalho o sentido de força estrutural, isto é, de força de organização da forma
que tende a se dirigir ao observador tanto quanto permitem as condições dadas no sentido da clareza, da unidade
e do equilíbrio do observado, sendo grande o valor da experiência no fenômeno da percepção (GOMES FILHO,
2009). 15 Saliento que outros referenciais serão introduzidos se demandados no decorrer deste trabalho de pesquisa,
perspectivando tratamentos mais pormenorizados dos assuntos e adequada conformação de cada composição. 16 Temas estes que terão continuidade e aprofundamento na Composição IV. 17 Os demais sujeitos, em condição de interação com os sujeitos principais da pesquisa, serão denominados sujeitos
secundários ou periféricos.
~ 31 ~
instrumentos de coleta de informações, o gênero discursivo e as técnicas e instrumentos de
análise. Apresentarei ainda a caracterização do lócus da investigação, em que situo os diferentes
ambientes de integração dos sujeitos investigados discriminando os microssistemas,
mesossistemas e macrossistemas18 que definem as relações ecológicas institucionais em que os
indivíduos do grupo experienciam a docência e se desenvolvem profissionalmente (macro-
percurso de formação e instâncias formativas); Exporei as motivações legais que regem
institucionalmente as ações do GCEM no Projeto de Área Matemática do PIBID/UEPA e o
perfil dos seus integrantes colaboradores; e finalizo com uma descrição da dinâmica de trabalho
dos projetos e ações desenvolvidas pelo grupo, ampliando o olhar sobre os principais destaques
que tomarei em consideração como objetos de perscrutação da pesquisa, como os indicativos
das tipologias de aprendizagem emergentes dos processos de formação/prática reflexiva
docente.
Reservo a terceira composição, que chamo de Contornos Meta-analíticos da Pesquisa,
para tecer um diálogo teórico analítico – em que me valho de entrevistas, diários de atividade,
gravações, filmagens, relatórios e outras produções escritas –, para estabelecer relações entre
as percepções significativas dos sujeitos sobre suas experiências em contextos de prática
colaborativa e o referencial teórico proposto na Composição I, que dão suporte à caracterização
dos processos de aprendizagem e identificação de tipos de aprendizagem nestes contextos de
experiência. Apresento, nesta composição, um quadro conceitual sobre as tipologias de
aprendizagem e um percurso longitudinal, no qual destaco as evidências de aprendizagem
relativas às experiências de: entrada em sala de aula e análise da práxis docente; participação
em eventos como estratégia formativa; atividades em grupo de estudo para a identificação de
organizações matemáticas e construção de sequências didáticas com base na Teoria
Antropológica do Didático (TAD); de incursões em sala de aula e proposição de projetos de
intervenção e investigação da própria prática; e da percepção pessoal dos sujeitos investigados
sobre sua aprendizagem da docência e seu desenvolvimento profissional, por meio de
entrevistas realizadas ao término de sua formação inicial.
Na quarta composição, denominada de Contornos de Convergências da Pesquisa –
apresento a construção de um modelo heurístico de análise do desenvolvimento profissional
docente a partir de uma compreensão dos processos desencadeados pelas experiências dos
18 Esses termos são objeto de consideração especifica na Psicologia Topológica de Kurt Lewin (1973), que define
as relações dos indivíduos com o ambiente em que estão inseridos.
~ 32 ~
professores investigados, valendo-me, para tal, de uma metáfora do modelo acúspico da Teoria
das Catástrofes (THOM, 1977, 1995; ARNOUD, 1989) para explicitar o processo de
identificação dos professores em formação inicial com as perspectivas profissionais da
docência. Este projeto tem por ambição tornar inteligíveis os contornos das formas e conteúdo
das práxis docentes inerentes às experiências colaborativas definidoras do percurso de
identificação com a docência, ou seja, visa identificar os tipos de aprendizagem e processos de
aprendizagem que dão sentido à constituição identitária e desenvolvimento profissional docente
dos integrantes de um grupo de professores de matemática em formação inicial.
Na quinta e última composição, de Contornos Contributivos Finais, estabeleço o que
considero uma síntese possível dos principais resultados da pesquisa, em que procuro elucidar,
a partir dos referenciais assumidos, os elementos que justificam as questões e objetivos da
investigação para com as situações de aprendizagem e processos formativos experienciados,
bem como teço considerações sobre os resultados alcançados acerca das evidências de
aprendizagem docente e subjacente desenvolvimento profissional, procurando, assim, construir
argumentos plausíveis à sustentação da tese que assumo neste trabalho.
~ 34 ~
COMPOSIÇÃO I
Nesta composição realizo um aprofundamento teórico multirreferencial
sobre as temáticas: formação de professores, aprendizagem docente e
desenvolvimento profissional docente (DPD). Para isso introduzo o
conceito de Experiência como unidade fundamental de estudos sobre a
qual se revela a aprendizagem docente resultante da reflexão,
investigação e reificação dos processos interativos e de socialização
dos sujeitos em comunidades de prática e/ou grupos colaborativos.
Conceituo o desenvolvimento profissional como um processo de socialização e constituição identitária que ocorre por meio da
(re)estruturação de formas definidas pela aprendizagem por conversão
catastrófica, originando o que chamo de Desenvolvimento Profissional
em uma Perspectiva Catastrófica (DPDPC). Discuto ainda a
construção conceitual da Pesquisa-Ação Colaborativa (PAC) que
assumo como suporte teórico da ação mobilizada na pesquisa de
primeira ordem, em análise neste relatório. Figuram como principais
referências desta composição Dewey (1979, 2011), Lewin (1973),
Zeichner (1993, 2003), Barbier (2007), Ponte (1998), Fiorentini &
Lorenzato (2006), Lave & Wenger (1991), Fiorentini (2006, 2010,
2013b), Ibiapina (2008), Formosinho J. (2009), Chevallard (1991,
1992, 1996, 2009), Dubar (1997), René Thom (1977, 1995) e Arnoud
(1989).
~ 36 ~
COMPOSIÇÃO I
CONTORNOS TEÓRICO-EPISTEMOLÓGICOS
DA PESQUISA
Estar na vida como um ser pensante significa um contínuo querer saber, que não é
diferente de um contínuo pesquisar. Para nos situarmos na vida e construirmos nossa
ideia da realidade, precisamos: observar, explorar, experimentar, deduzir, concluir. A
vida toda é uma grande pesquisa. Pesquisar é um processo apaixonante, apesar da
frustação que pode gerar caso não se encontrem respostas completas e
tranquilizadoras. Pesquisar é estar vivo, é ser sujeito.
(MATALOBOS, 2005)
Refletindo sobre o que expressa a epígrafe acima, fico convicto de que partilhamos de
uma mesma utopia sobre a pesquisa, qual seja, a de que somos todos capazes de pesquisar, isto
por ser a pesquisa uma ação inerentemente humana. Partindo desse pressuposto me parece
plausível afirmar que pesquisar sistematicamente a própria prática no âmbito da docência,
embora não se constitua um hábito comungado por todos os professores, é algo perfeitamente
exequível.
Parto dessas considerações para situar uma ferramenta que considero imprescindível
para a construção de um instrumental teórico, metodológico e analítico, de abordagem das
evidências de aprendizagem e do desenvolvimento profissional de professores de matemática
associados aos contextos de experiências colaborativas. Com este intuito, nesta primeira
composição, reúno referenciais que me auxiliam na construção desta trama reflexiva e
argumentativa que tece uma compreensão sobre a educação como vida e a aprendizagem como
reflexo das experiências (DEWEY, 2011; LARROSA, 1995; COCHRAM-SMITH, 1999;
JOSSO, 2010); busco as bases para a definição dos contornos ontológicos dos fluxos das
experiências perceptuais dos sujeitos que aprendem (PERLS, 1977) e se desenvolvem a partir
de práticas de investigação-ação dos processos de experimentação criativa de suas realidades
concretas (HARGREAVES & FULLAN, 1992; WENGER, 1998).
Oriento-me nessa perspectiva pelas definições da teoria do contínuo experiencial de
Dewey (2011) que me conduzem à compreensão dos campos de motivação, descritos pelos
contornos do comportamento humano dentro de uma totalidade de contexto social e físico,
~ 37 ~
portanto institucional, que manifestam evidências de aprendizagem da docência por parte dos
sujeitos tomados para observação, que por sua vez refletem sobre suas ações e se dão conta das
potencialidades da investigação em ação solitária ou em grupo (FORMOSINHO J., 2009)
como forma de intervenção em problemáticas sugeridas pela interpretação de dados da prática,
desencadeando processos de mudança e avaliação de todo o percurso de experiências (LEWIN,
1973; ZEICHNER, 2003; LISONDO, 2011).
Contornos e tessituras da experiência
Situando-me quanto à trajetória descrita pela formação docente em seu movimento de
passagem do século XX para o século XXI percebi, nas pesquisas desenvolvidas a esse respeito,
algumas idiossincrasias ou peculiaridades expressas por antagonismos tais como: educação
tradicional e educação progressista, marginalização e profissionalismo, formação academicista
e formação profissional, desenvolvimento profissional training19 e desenvolvimento
profissional ecology20. Longe de pretender esgotar tais questões, reservo-me à tarefa não menos
simples de construir e expressar uma reflexão crítica que aponte para ruptura com o que tenho
considerado uma visão de precedentes dissociativos, que adotam posturas dualísticas e
maniqueístas de ‘bem e mal’, do ‘certo e errado’, ‘mente e corpo’, para em seu lugar, tratar de
uma percepção holística perspectivando uma compreensão de totalidade da ação do professor
que lhe propicie aprendizagem significativa21 baseada em suas experiências e lhe oriente a um
desenvolvimento profissional condizente com as necessidades da atualidade.
Para cumprir essa meta, assumo neste trabalho a categoria experiência como uma
unidade fundamental de estudo. Tomando-a como categoria de pesquisa, procuro estabelecer
os critérios conceituais que me possibilitam definir em que sentido os tipos de aprendizagem
docente em contexto de experiências colaborativas contribuem para o desenvolvimento
profissional dos professores de matemática. A noção de experiência permeia tanto a pesquisa
de primeira ordem (empírica) – dando-lhe suporte à ação -, quanto a pesquisa de segunda
19 Desenvolvimento profissional concebido por meio de cursos. 20 Desenvolvimento profissional associado às relações do homem e seu ambiente. 21 Por ora me refiro por aprendizagem significativa à apreensão advinda de sentidos atribuídos pelos sujeitos a
uma dada experiência, que são potencialmente mobilizadores de novas práticas e de identificação com o grupo de
referência.
.
~ 38 ~
ordem (meta-análise) – auxiliando-me na evidenciação dos tipos de aprendizagem, na
identificação dos processos de aprendizagem e, ainda, no delineamento dos processos de
desenvolvimento profissional dos sujeitos tomados para observação e análise. Lamentável,
porém, foi constatar em minhas apreciações sobre a formação docente os distanciamentos, em
termos semânticos, promovidos por publicações22 pouco comprometidas com a construção
epistemológica do conceito de experiência.
O termo experiência quando caracterizado somente por seu conteúdo emocional, o
reduz a um nível naturalista e imediatista, eliminando o sujeito ativo do processo. De outro
modo, abordagens baseadas em pressupostos positivistas empregam uma conceituação que se
limita ao experimentalismo, considerando por experiência apenas o que é passível de
comprovação empírica, eliminando valores ou relacionamentos pessoais, considerando-a
apenas enquanto representação ou reação. Considero que essas reduções trazem sérias
consequências à Educação, visto que o distanciamento da inteligibilidade da complexidade
desse termo impossibilita compreender o fenômeno humano em sua unidade e totalidade,
fragmentando o real e impondo um método inadequado ao objeto em questão.
De modo a reconduzir a categoria experiência à sua epistemologia da práxis23, inicio
minhas arguições por uma das primeiras e mais notórias discussões sobre a questão da
experiência com repercussão na Educação e Formação de Professores, realizada pelo filósofo,
educador e psicólogo John Dewey (1859-1952). Este importante pesquisador nasceu em
Brurlington, Vermont nos Estados Unidos, e sua vivência em uma comunidade formada por
pequenas propriedades rurais protestantes em que prevalecia o espírito de igualdade e autêntica
democracia religiosa foi, certamente, uma das grandes influências de sua constituição
identitária e produção com perfil pragmático de preocupações democráticas sobre a educação.
Em Dewey temos que o educador é o responsável por desenvolver, mediante o ato
pedagógico24, a capacidade de reflexão. Entendendo por reflexão a melhor maneira de se
22 Refiro-me ao contingente de publicações comumente encontradas na rede mundial de comunicação e informação
que se valem da experiência em seu sentido de senso comum. 23 A epistemologia da práxis surge em contraposição a uma epistemologia da prática profissional, segundo a qual
o universo da prática social se restringe à prática profissional em seus aspectos puramente empíricos, técnicos e
utilitários, à mercê das demandas do mercado e em detrimento das ilimitadas possibilidades de desenvolvimento
que o existir humano potencialmente provoca (SCALCON, 2007). Busca-se na epistemologia da práxis uma
unidade teórico-prática para os processos de produção e reprodução do conhecimento e uma consequente
compreensão da estrutura objetiva da realidade que reconheça o significado do valor teórico da prática aliançado
ao valor prático da teoria (SCALCON, 2008). Deste modo, neste trabalho, o termo prática será usado
perspectivando o sentido de práxis. 24 A prática docente relacionada ao ensino e afazeres do professor.
~ 39 ~
pensar, ou seja, a espécie de pensamento que consiste em examinar mentalmente o assunto e
dar-lhe consideração séria e consecutiva (DEWEY, 1979, p.13). Dewey asseverava que o
pensamento reflexivo visa uma conclusão, orienta-se a algum lugar e nos impele à indagação.
O ato de pensar reflexivo seria intelectual, pois se diferencia da forma de pensar rotineira por
abranger um estado de dúvida e um estado de pesquisa, uma vez que envolve a necessidade de
encontrar uma forma de resolver a dúvida.
A noção de ato reflexivo de Dewey sofreu séria influência da concepção de crença de
Charles Pierce que atribuía o significado de crença para a ação de pensar, incitada por uma
dúvida que nos lança à busca de sua cessação. A esse processo transcorrido na relação entre a
dúvida e a crença chamou de inquérito ou investigação (WESTBOOK & TEIXEIRA, 2010).
Dewey (1979, p. 16) explica que,
Uma crença refere-se a algo além de si própria, por onde se aquilata o seu valor: faz
uma afirmação sobre algum fato, algum princípio ou lei. Significa que determinado
fato ou lei é aceito ou rejeitado, que é algo que é próprio a se afirmar ou, pelo menos,
aquiescer.
Essas conceituações de Dewey e Pierce sobre a crença foram revolucionárias em seu
tempo, pois colocavam como hipótese e passível de alteração conceitos antes tidos como coisas
bem definidas, estáveis, imutáveis e tradicionalmente assumidas como pertencente a uma
instância situada acima da ação humana, resultante de processos de ação próprios da vida que
vivemos neste mundo, um mundo de transitoriedade.
Dewey, utilizando-se da noção de crença e de transitoriedade, interpretou a experiência
como atitude empírica ou atitude experimental da mente e, como tal, não poderia ser algo rígido
e acabado, mas algo vital e, por isso, em permanente desenvolvimento (DEWEY, 1979).
Expressou que a experiência, quando dominada pelo passado, pelo costume ou pela rotina,
muitas vezes se opõe ao racional, ao reflexivo. Contudo, asseverou que a experiência também
inclui a reflexão que nos libera da influencia limitadora dos sentidos, do desejo e da tradição.
Essa interpretação assegura que a mente humana, pela experiência, pode acomodar e assimilar
tudo o que descobre o pensamento preciso e penetrante. Na realidade, segundo Dewey, poder-
se-ia definir a tarefa da educação como ‘emancipação e ampliação da experiência’.
Dewey ocupou boa parte de seu tempo em trabalhos sobre educação que tinham por
finalidade estudar as consequências de seu instrumentalismo para a Pedagogia e comprovar sua
validade mediante a experiência.
~ 40 ~
Dewey estava convencido de que [somos] seres ativos que aprendem mediante o
enfrentamento de situações problemáticas que surgem no curso das atividades que
merecem seu interesse. O pensamento constitui, para todos, instrumento destinado a
resolver os problemas da experiência e o conhecimento é a acumulação de sabedoria
que gera a resolução desses problemas. (WESTBOOK & TEIXEIRA, 2010, p.15,
adequação minha)
Há de se compreender, porém, que nem todas as experiências são verdadeiramente ou
igualmente educativas. Algumas experiências são deseducativas, isto é, qualquer experiência
que tenha o efeito de impedir ou distorcer o amadurecimento do sujeito para futuras
experiências é deseducativa.
Uma experiência pode ser de tal natureza que produza indiferença, insensibilidade e
incapacidade de reação, limitando, assim, as possibilidades de experiências mais ricas
no futuro. Uma outra experiência pode aumentar a destreza de uma habilidade
automática, de forma que a pessoa se habitue a certos tipos de rotina, limitando-lhe,
igualmente, as possibilidades de novas experiências. Uma experiência pode ser
imediatamente prazerosa e, mesmo assim, contribuir para a formação de uma atitude
negligente e preguiçosa que, desse modo, atua modificando a qualidade das
experiências subsequentes, impedindo a pessoa de extrair dessas experiências tudo o
que elas podem proporcionar. (DEWEY, 2011, p. 27)
Podem ocorrer ainda experiências desconectadas umas das outras, que, apesar de
agradáveis e até excitantes, não se articulam cumulativamente. Dewey dizia que neste caso a
energia se dissiparia e a pessoa se tornaria dispersa. Considero importante esse aspecto, pois a
falta de conexão entre as experiências pode gerar hábitos dispersivos, desintegrados.
Experiências de gênero dispersivo são a tônica da educação tradicional, que privilegia o ensino
pontual25. Por isso é pertinente aprofundar a questão da necessidade de continuidade das
experiências.
Para Dewey a educação depende da qualidade das experiências, para as quais atribuiu
dois aspectos: o aspecto imediato de ser agradável ou desagradável e o segundo aspecto que diz
respeito a sua influência sobre experiências posteriores. O primeiro aspecto me parece óbvio
julgar, por estar intimamente associado ao caráter motivador26 da experiência, enquanto o
25 O ensino pontual, segundo minha acepção, é aquele cujos procedimentos de ensino estão centrados na
metodologia e negligenciam a construção histórica e epistemológica do objeto de ensino, bem como suas
manifestações passadas e futuras no horizonte curricular. 26 Reporto-me à motivação em seu sentido etimológico que vem do verbo latino movere e que se relaciona ao
substantivo motivum, logo motivação é “aquilo que move uma pessoa ou que a põe em ação ou a faz mudar de
curso” (BZUNECK, 2004, p. 9).
~ 41 ~
segundo associa-se a tarefa de proporcionar situações e atividades mais do que imediatamente
agradáveis, mas que estimulem e preparem os sujeitos para experiências futuras27.
Assim como nenhum homem vive e morre para si mesmo, nenhuma experiência vive
e morre para si mesma. Totalmente independente do desejo ou da intenção, toda
experiência vive e se perpetua nas experiências que a sucedem. Portanto, o problema
central de uma educação baseada na experiência é selecionar o tipo de experiências
presentes que continuem a viver frutífera e criativamente nas experiências
subsequentes. (DEWEY, 2011, p. 29)
Dewey define assim um princípio da continuidade da experiência ou o que podemos
chamar de contínuo experiencial. Com esta proposição atribui a suas ideias o status de uma
teoria da experiência, para a qual estabelece critérios que auxiliam em seu direcionamento e
aplicação, os quais elenco na seguinte ordem:
Categoria da continuidade - esse princípio atua como um critério de discriminação na
seleção de experiências com perspectivas humanísticas e democráticas, isto é, está envolvido
em toda tentativa de discriminar as experiências de valor educativo das que não possuem tal
valor;
Hábito28 - sua característica básica é a de que toda ação praticada ou sofrida em uma
experiência modifica quem a pratica e quem a sofre. Significa também que toda experiência
tanto toma algo das experiências passadas quanto modifica de algum modo a qualidade das
experiências que virão;
Crescimento como educação e educação como crescimento – o crescimento não é apenas
físico, mas de desenvolvimento intelectual e moral dos sujeitos. Por esse ponto de vista se
avalia se o crescimento em determinada direção promove ou atrasa o crescimento geral, se
cria condições para crescimentos subsequentes ou estabelece condições que impedem a
pessoa que cresceu nessa direção específica de ter acesso a situações, estímulos e
oportunidades para continuar crescendo em outras direções.
Os princípios teóricos do contínuo experiencial explicitados por Dewey demandam
algumas considerações complementares e nos alertam sobre certas consequências. Por
exemplo, quando avalio que toda experiência exerce, em algum grau, influência sobre as
condições objetivas sob as quais novas experiências ocorrem, devo ter consciência das
27 Esse princípio remonta às discussões sobre a crítica ao ensino pontual pelos investigadores da didática francesa. 28 A concepção ampla de hábito envolve a formação de atitudes emocionais e intelectuais; envolve nossas
sensibilidades básicas e nossos modos de receber e responder a todas as condições com as quais nos deparamos na
vida (DEWEY, 2011, p. 36).
~ 42 ~
consequências de certas escolhas que realizo, a saber, se decido ser professor de matemática,
ao pôr em prática essa intenção, essa escolha, de certa forma, necessariamente limita o ambiente
em que irei atuar no futuro. Isto é, a pessoa se torna mais sensível e responsiva a certas
condições, e relativamente imune a coisas que lhe poderiam ser estimulantes se ela tivesse
feito outra escolha (DEWEY, 2011, p. 38).
Outra advertência de Dewey diz respeito ao que chamou de excesso de indulgência.
Neste caso o processo contínuo decorrente de excesso de indulgência cria no sujeito uma atitude
que opera como um mecanismo automático que exige que as pessoas e objetos atendam a seus
desejos e caprichos no futuro. Caso não tenha limites, o sujeito buscará por tipos de situação
que lhe possibilitem fazer o que gostaria e não o que deve fazer no momento, mostrando-se
adversa a situações que requeiram esforço e perseverança para superar obstáculos, tornando-a,
assim, incapaz de enfrentar tais situações. Nestes termos, o princípio da continuidade da
experiência opera isolando a pessoa em um baixo nível de desenvolvimento, de forma a limitar
posteriormente sua capacidade de crescimento.
Ao evocar o princípio do continuo experiencial e associá-lo ao campo da Educação,
percebi que o professor tem a grande responsabilidade em acompanhar a direção do crescimento
dos sujeitos com os quais se dispõe trabalhar. Isto se dá pela proposição de situações e
atividades que lhes proporcionem o despertar da curiosidade e o fortalecimento de iniciativas
que deem origem a desejos suficientemente intensos que levem as pessoas, no futuro, a lugares
além de seus limites. Concordo, nestes termos, com Dewey (2011, p. 38) quando afirma que
toda experiência é uma força em movimento, competindo a nós, professores, acompanhar
responsavelmente as direções para as quais caminham as experiências de nossos estudantes.
Outro aspecto sobre a experiência, relevante segundo Dewey, é o das condições
objetivas29 em que essa experiência se processa. Tais condições implicam a compreensão de
que a experiência não ocorre apenas no interior da pessoa, onde se processam os desejos,
atitudes e propósitos, mas é fortemente influenciada pelas condições externas, ambientais que
lhe conferem condições de desenvolvimento.
29 Considero oportuno situar que repercussões de tais considerações em minha atuação como educador implicaram
tanto em estar atento ao princípio geral de que as condições ambientais modelavam minhas experiências presentes,
quanto exigiam que eu reconhecesse, concretamente, que as circunstâncias ambientais conduziam as experiências
que levavam meus interlocutores e a mim ao crescimento. Essa compreensão me responsabilizava como formador,
saber como utilizar as circunstâncias físicas e sociais existentes, delas extraindo tudo o que pudesse contribuir para
a construção de experiências válidas pelo grupo de professores com o qual trabalhava.
~ 43 ~
Vivemos do nascimento à morte em um mundo de pessoas e coisas, em grande
medida, é o que é por causa do que vem sendo feito e transferido a partir de atividades
humanas anteriores. Quando esse fato é ignorado, a experiência é tratada como algo
que passa exclusivamente dentro do corpo e da mente de um indivíduo. Não deveria
ser necessário dizer que a experiência não ocorre no vácuo. Há elementos fora do
indivíduo que dão origem às experiências que são constantemente alimentadas por
esses elementos. (DEWEY, 2011, 40)
A este princípio que atribui direitos iguais a ambos os fatores da experiência – condições
objetivas e condições internas – chama-se interação (DEWEY, 2011, p. 43). Qualquer
experiência se dá por intercâmbio entre esses dois grupos de condições. Quando consideradas
em conjunto, isto é, em interação, as condições objetivas e internas formam o que chamamos
situação30.
A afirmação de que os indivíduos vivem em um mundo significa, concretamente, que
eles vivem em uma série de situações. E quando dizemos que eles vivem em uma série
de situações, o significado da palavra em é diferente do seu significado quando
dizemos que as moedas estão “em” um bolso ou que a tinta está “em” uma lata. Isso
significa, mais uma vez, que está ocorrendo interação entre um indivíduo, objetos e
outras pessoas. (DEWEY, 2011, p.44)
Neste sentido, interação e situação são inseparáveis, isto é, minha experiência sempre
é o que é por conta de uma íntima relação entre o que acontece interiormente comigo e o que,
no momento, constitui o ambiente em que estou. Integram este ambiente, portanto, as pessoas
com quem estou conversando, o assunto da conversa, o livro que estou lendo, o material com o
qual realizo um experimento, ou seja, o ambiente é quaisquer condições em interação com
minhas necessidades pessoais, desejos, propósitos e capacidades de criar a experiência pela qual
estou passando.
Os princípios de continuidade e interação também são indissociáveis. Constituem, pois,
os aspectos longitudinal e lateral da experiência. Estes aspectos conferem dinâmica a sucessão
das situações, sendo que por conta da continuidade, algo é levado de uma situação anterior para
outra posterior. Assim, o que aprendo no processo de aquisição de um conhecimento ou
habilidade em uma determinada situação, torna-se instrumento para que eu possa lidar com uma
situação posterior.
Para Dewey a união ativa entre continuidade e interação é o que dá a medida do valor
da experiência e cabe ao educador regular, ao nível de suas possibilidades, as condições
objetivas da experiência. Dentre estas se inclui o que é feito e como é feito pelo educador, como:
30 Apresento um breve estudo sobre as situações de ordem didática na Composição III deste trabalho.
~ 44 ~
as palavras faladas e o tom de voz em que são faladas; os equipamentos, livros, aparelhos,
brinquedos e jogos; materiais com os quais os sujeitos interagem e, acima de tudo, a ampla
organização social e cultural na qual uma pessoa está envolvida.
Em relação à teoria do contínuo experiencial de Dewey há muito que explorar.
Entretanto, reservo-me, por ora, a tratar de conclusões decorrentes dos princípios da
continuidade e interação, para assentar que toda experiência presente deve preparar o aprendiz
para uma experiência futura, isto quer dizer que o futuro deve ser considerado em cada estágio
do processo educativo, tomando-se cuidado, porém, com certos aspectos traiçoeiros desta
preparação. Por exemplo, é um equívoco supor que a simples aquisição de certa quantidade de
conhecimento, deva ser ensinada e estudada porque pode ser útil em algum momento no futuro,
assim como é também um equívoco supor que a aquisição de certas habilidades constituirá
automaticamente a preparação para seu uso futuro. Isto porque as condições futuras podem ser
bem diferentes daquelas em que os conhecimentos ou habilidades foram adquiridos.
A questão da preparação dos sujeitos para as condições futuras merece séria atenção, é
importante termos em mente que sempre vivemos o tempo em que estamos e não outro tempo,
e é só extraindo de cada tempo presente o sentido completo de cada experiência presente que
estaremos preparados para fazer o mesmo no futuro (DEWEY, 2011, p. 50-51). Carecemos,
portanto, de parâmetros a nossa ação educativa, ao que Dewey estabelece como os elementos
que nos auxiliam na condução das experiências e atribuição de significados a aprendizagem,
mantendo sob supervisão os impulsos e desejos dos sujeitos até que possam sobre eles operar a
observação e o julgamento, a esta operação chamou de atividade inteligente.
Os procedimentos de uma atividade inteligente envolvem, segundo Dewey (2011, p.
70), o seguinte:
1) Observação das condições que a cercam31;
2) O conhecimento do que aconteceu em situações similares no passado, um conhecimento
obtido parcialmente pela recordação, como também pelas informações, conselhos e
advertência por parte daqueles que já possuam uma maior experiência e;
3) Pelo julgamento que nos permite juntar o que observamos com o que recordamos para
compreender o que significa toda a situação.
31 Convém salientar que nem sempre tais condições são perceptíveis ou estão claras.
~ 45 ~
Uma preocupação que considero pertinente sobre esta condução das experiências, se
relaciona com o fato de, apesar de sempre planejar as atividades julgando-as inteligentes e, por
isso, pensava atender às expectativas da maioria dos os integrantes do grupo, percebi, porém,
que nem sempre obtinha o retorno esperado, em termos de aprendizagem, de boa parte dos
envolvidos. Questionava-me sobre o que faz com que os professores atribuam significado a
certas situações e outras não?
Parece-me adequado concluir, com base no contínuo experiencial, que cada um dos
sujeitos passa por um processo distinto, atribuindo significados diferentes ao contexto
experienciado por compreendê-lo como uma situação diferente, sob condições diferentes,
mesmo que compartilhem um mesmo ambiente. Torna-se de fundamental importância que os
professores em formação tenham à disposição uma preparação a mais rica possível de situações
que suscitem a integração entre a dimensão objetiva e subjetiva de cada sujeito em prol de
significações propícias ao desenvolvimento da aprendizagem da docência.
Tecendo relações entre Experiência e Aprendizagem Profissional Situada em
Comunidades de Prática (CoP)
Em sua obra - Como Pensamos – Dewey (1979) nos possibilita compreender com mais
propriedade o significado que ele atribuía à experiência. O termo experiência, segundo o autor,
pode ser interpretado como a atitude empírica ou experimental da mente. A experiência não
seria algo rígido e fechado, mas sim algo vital e, portanto, em movimento e em
desenvolvimento. Quando esta experiência está dominada por um passado, pelo costume e pela
rotina, invariavelmente se opõe ao racional e à reflexão. Contudo, a experiência também pode
incluir a reflexão que nos libera da influência limitadora do sentido, do desejo e da tradição.
Neste sentido, poder-se-ia definir a tarefa da educação como emancipação e ampliação da
experiência e o seu trabalho exerceria a função social de proporcionar ao jovem a oportunidade
de julgar a partir de seu ponto de vista o planejamento e construção de sua realidade, de forma
criativa e reflexiva, sem por isso cortar as relações emocionais com sua história.
Mais uma vez evidenciamos a função reflexiva como relação entre condições internas
(subjetividade do sujeito) e condições objetivas (ambiente) da experiência, formando uma
situação ou série de situações. A experiência de um sujeito é o que é por causa de uma transação
que acontece entre este sujeito e o que, no momento, constitui seu ambiente. Vivemos, portanto,
~ 46 ~
em uma série de situações e em contínua interação com o meio (DEWEY, 2011). Condições
internas e objetivas constituem, pois, princípios inseparáveis na noção de experiência que
resgato para fundamentar alguns pressupostos sobre a aprendizagem neste trabalho,
estabelecendo interlocução com as quatro premissas32 de Jean Lave (2001) sobre o
conhecimento e a aprendizagem situados em uma comunidade de práticas (CoP) (WENGER,
2001).
Neste sentido, uma vez que a experiência é constituída de condições internas (1) A
aquisição de conhecimento não é uma simples questão de absorver conhecimento. Contudo, a
experiência não se processa simplesmente no interior da pessoa. Embora seja certo que lá se
processa, pois influencia a formação de valores, de atitudes e desejos, além de que toda
experiência genuína muda as condições objetivas em que se passam as experiências, isto é,
experiências prévias mudam as condições objetivas em que se passam as experiências
subsequentes (DEWEY, 2011, p. 40), ou seja, (2) o conhecimento sempre se constrói e se
transforma ao ser usado. Exemplos disso são as construções de ferramentas, utensílios, novas
tecnologias etc. Se assim não ocorresse e fossem destruídas as condições externas da
experiência civilizada, nossa experiência regrediria a um nível mais primitivo, o que não ocorre
porque (3) A aprendizagem é parte integrante da atividade no/com o mundo, em todos os
momentos. O que leva a crer que construir aprendizagem não constitui problema. Mas deve se
desenvolver a partir de condições de experiência que deem origem a uma busca ativa por
informações novas, visto que nenhum problema surgirá a não ser que uma dada experiência
conduza a um campo que não seja previamente conhecido, que apresente novos problemas,
estimulando a reflexão (DEWEY, 2011, p. 82), isto é, (4) o que se aprende é sempre
complexamente problemático.
Fiorentini (2013b), tomando por base essas premissas de Lave (2001) no contexto da
aprendizagem situada, questiona-se sobre: O que seria uma aprendizagem docente em uma
comunidade de professores de matemática? Que práticas seriam formativas no interior dessa
comunidade? e; Faz sentido transmitir conhecimentos descontextualizados e formais para essa
comunidade, sem estabelecer relações com as suas práticas cotidianas?
32 As quatro premissas de Lave (2001, p. 20) são: 1) O conhecimento sempre se constrói e se transforma ao ser
usado; 2) A aprendizagem é parte integrante da atividade no/com o mundo, em todos os momentos. Ou seja,
produzir aprendizagem não se constitui um problema; 3) O que se aprende é sempre complexamente
problemático; 4) A aquisição de conhecimento não é uma simples questão de absorver conhecimento.
~ 47 ~
Valendo-me destes questionamentos e dos referenciais destacados, oriento-me na
análise das participações e reificações33 dos professores tomados como sujeitos desta
investigação. Concordando com Fiorentini (2013b, p. 2) que:
Nesse contexto de aprendizagem situada, parece fazer muito sentido [o] estudo,
análise e problematização das práticas de ensinar e aprender dos próprios professores
envolvidos. Os formadores e professores podem, juntos e colaborativamente, elaborar
tarefas de ensino ou analisar episódios de sala de aula, os quais podem ser registrados
em vídeos ou narrados oralmente ou por escrito pelos próprios professores
participantes.
Deste modo, considero pertinente, ao investigar a aprendizagem profissional situada em
uma comunidade específica de professores e professores de matemática em formação inicial,
no interior do Estado do Pará, desenvolver um estudo meta-analítico sobre as experiências
formativas que desenvolvemos. Nesta meta-análise, tomarei como foco analítico as evidências
de aprendizagem profissional produzidas pelos participantes do projeto PIBID, tendo como
referência, a produção, transformação e mudança histórica das pessoas que participaram
daquela comunidade34.
Algumas pistas sobre as situações em que se evidenciam a aprendizagem docente de
sujeitos que participam de comunidades investigativas podem ser consultadas ainda em
Fiorentini et al. (2005) e Fiorentini (2009). Uma reflexão constante nestes trabalhos é a da
evidenciação de que comunidades investigativas35 possuem por característica comum a
heterogeneidade, isto é, contam com a participação de professores da Escola e de formadores e
acadêmicos da Universidade. Contudo, essa heterogeneidade não é vista de maneira hierárquica
ou desigual (FIORENTINI, 2013a, 2013b), mas com diferentes conhecimentos e excedentes de
visão entre os participantes (BAKHTIN, 2011). Conforme nos expressa Fiorentini (2013, p.4):
Os professores da escola básica, por exemplo, trazem como excedente de visão, em
relação aos formadores e futuros professores, um saber de experiência relativo ao
ensino da matemática nas escolas e conhecem as condições e as possibilidades de
determinadas tarefas e práticas letivas. Os conhecimentos que mobilizam e produzem
são situados na complexidade de suas práticas, sendo esta a principal referência nos
processos de negociação de sentidos e significados durante a elaboração de tarefas, de
33 Definirei tais termos mais à frente. 34 Darei atenção especial às reificações produzidas pelos (ou com os) participantes nessa comunidade, as quais
compreendem a elaboração e discussão de tarefas de ensino, registros ou episódios de aulas narrados, tais como
capítulos de livro, artigos publicados em periódicos ou em anais de congressos, dissertações de mestrado, atas
ou gravações de encontros do grupo, dentre outros (FIORENTINI, 2013b). 35 Comunidades investigativas são comunidades de prática, geralmente colaborativas, formadas por professores
que têm se interessado em investigar suas próprias práticas de ensinar e aprender matemática em contextos
escolares (FIORENTINI, 2011, p.10).
~ 48 ~
análise de episódios ou situações de ensino-aprendizagem. Os formadores da
universidade, por sua vez, têm como excedente de visão as teorias e metodologias a
partir das quais produzem análises, interpretações e compreensão das práticas
escolares vigentes, com o propósito de problematizá-las e desnaturalizá-las. Os
futuros professores apresentam como excedente em relação aos demais participantes,
suas habilidades no uso das tecnologias de informação e comunicação e uma maior
proximidade ou compreensão das culturas de referência dos alunos da escola básica.
Em relação à caracterização de excedente de visão expresso por Fiorentini (2013b),
tenho a inferir que tal estrutura não deve ser assumida de forma rígida, visto existirem
comunidades investigativas com características variadas em que, por exemplo, o excedente de
visão tecnológico ou compreensão das culturas de referência dos alunos é mais próprio dos
professores da escola básica ou dos formadores do que dos ‘futuros professores’ e, ainda, é
possível, e não excludente, que ‘futuros professores’ manifestem excedentes de visão em
relação aos demais participantes do grupo sobre as teorias e metodologias provenientes de sua
formação na Universidade. Ou seja, é prudente compreender que os excedentes de visão,
embora próprios de uma categoria, assumem caráter relativo e isso possibilita que os integrantes
do grupo, apesar da heterogeneidade, comportem-se de maneira participativa e colaborativa.
Cumpre assim destacar, nas comunidades de prática, nas comunidades investigativas e nos
grupos colaborativos, a importância do nível de participação e reificação dos seus integrantes,
visto que toda aprendizagem é situada em uma prática social que acontece mediante
participação ativa em práticas de comunidades sociais e construção de identidades com essas
comunidades (LAVE & WENGER, 1991). Ou seja,
Os saberes em uma comunidade de prática são produzidos e evidenciados através de
formas compartilhadas de fazer e entender dentro da comunidade, as quais resultam
de dinâmicas de negociação, envolvendo participação plena ou periférica legítima e
reificação na (ou a partir da) comunidade (FIORENTINI, 2013b, p. 6).
Conforme esta interpretação, a participação se apresenta como um processo pelo qual
os membros de uma comunidade compartilham, discutem e negociam significados sobre o que
fazem, falam, pensam e produzem conjuntamente, enquanto a reificação significaria tornar em
coisa, referindo-se não apenas aos objetos materiais (textos, tarefas, materiais manipulativos),
como a conceitos, ideias, rotinas e teorias que dão sentido às práticas da comunidade. A
participação e a reificação são, portanto, processos interdependentes e essenciais à
aprendizagem e à constituição de identidades de/em uma comunidade (FIORENTINI, 2013b,
p. 6).
~ 49 ~
Outro ponto importante de auxílio à identificação de evidências de aprendizagem
docente segundo este autor, diz respeito à construção de uma profissionalidade investigativa
pelo professor. Esta profissionalidade docente estaria calcada no trabalho de investigação, que
se distingue da simples reflexão da prática, em que o professor assume uma postura
investigativa tanto em relação ao conhecimento gerado por outros de fora do contexto local
como do que é construído por meio dos esforços conjuntos dos integrantes da comunidade
(COCHRAN-SMITH & LYTLE, 2009).
Essa profissionalidade não deve ser definida ou caracterizada apenas pelos saberes de
base de uma profissão, mas também a partir dos princípios e valores ético-políticos cultivados
pelos profissionais em uma comunidade (FIORENTINI, 2009, 2013a). Por isso considero que
este caráter de profissionalidade investigativa pode e deve ser cultivado desde a formação
inicial dos professores, sob uma perspectiva planejada de formação compartilhada de
professores, buscando a indissociabilidade entre pesquisa, ensino e extensão (GONÇALVES,
T, 2005, 73). Esta ação implica uma relação estreita entre experiência, desenvolvimento
profissional e constituição de uma identidade docente.
Identidade e Desenvolvimento Profissional Docente (DPD)
(Re)construindo significados a partir da experiência
Temos visto neste trabalho que experiência é um termo de conceituação complexa e
muitas vezes de difícil apreensão. Talvez isso ocorra devido abranger diferentes maneiras pelas
quais podemos apreender e construir a realidade, desde os mais diretos como a audição, olfato,
paladar e tato, passando pela percepção visual ativa até chegar a uma maneira mais subjetiva e
indireta como a simbolização.
A experiência não é desprovida de emoção. Pelo contrário, é esta que lhe confere
qualidade por meio dos sentimentos. Os sentimentos por sua vez são intencionais, dizem
respeito a “alguma coisa” – um calor sufocante, uma provocação irritante, um amável elogio.
Os sentimentos, nestes termos, são reveladores de duas facetas da experiência: uma que indica
qualidades sentidas quanto às coisas, às pessoas e ao mundo; e outra que desvela a maneira
pelo qual o eu é afetado intimamente (RICOEUR, 1967, p. 127).
~ 50 ~
O termo experiência, assumido aqui como uma categoria de pesquisa, não deve ser
tomado como o resultado de uma situação de passividade, como a de alguém que é experiente
por ter lhe acontecido muitas coisas, tampouco como alguém que adquire experiência por ter
estado dentro de uma situação como a de um “botão que está dentro de um bolso”. A experiência
que julgo apropriada e necessária à construção que promovo neste trabalho é a que implica a
capacidade de aprender a partir da vivência. Experienciar é aprender, significa atuar sobre o
dado e criar a partir dele (TUAN, 2013, p. 18). Exploro, pois, experiências relativas a
constituir-se como professor de matemática. Experiências estas que, constatei, constituem uma
aprendizagem complexa, visto que as situações investigadas evidenciam que lidar com as
contingências da sala de aula implicam discernimentos, habilidades e competências que
superam em muito a simples transferência de conhecimentos.
Neste sentido, embora pesquisas mostrem que situações vivenciadas como alunos são
forte influência no trabalho do professor em sala de aula, porque correspondem a experiências
reiteradas relativas ao ensino, à aprendizagem, à avaliação, à relação professor-aluno, ao papel
do professor e do aluno em aula (CAMARGO, 1998), o que confere um valor autêntico ao
discurso de que o processo de aprender a ensinar começa muito antes dos alunos
frequentarem os cursos de formação de professores (FEIMAN-NENSER & BUCHMANN,
1987, p. 62 apud DARSIE & CARVALHO, 1998). É, entretanto, nossa responsabilidade na
formação inicial, levá-los a exteriorizarem suas ideias e auxiliá-los na elaboração de concepções
mais apropriadas sobre o ensino e a profissão docente.
Este processo de constituir-se professor de matemática ganha consistência, portanto, se
orientado e acompanhado por um pensamento reflexivo, que Dewey (2011) define como uma
espécie de pensamento que consiste em examinar mentalmente o assunto e dar-lhe
consideração séria e consecutiva. Deste modo, o objeto da reflexão do professor em formação
inicial passa a ser a prática de ensinar e aprender, posto que,
É a partir da problematização da prática que o professor passa a refletir e produzir
significados para os acontecimentos que vivencia. Os saberes específicos de conteúdo
– muitas vezes adquiridos nos cursos de licenciatura – sofrem (re)significações
quando trabalhados em sala de aula, pois passam a ser imbricados com as questões
pedagógicas e curriculares. Constituem, assim, uma unidade em que não é mais
possível separar o conteúdo específico, do pedagógico e do curricular. (NACARATO
et al., 2006, p. 200)
Desta forma, é de suma importância o professor em formação inicial atuar o quanto
antes em sala de aula, visto que esta experiência pode se configurar como uma formação para
~ 51 ~
o docente iniciar seu desenvolvimento profissional (GONÇALVES T., 2000). O que,
infelizmente, parece não acontecer, com frequência, com os estudantes da licenciatura
(MENDES & GONÇALVES, 2007, p. 49).
Sobre este contexto, Mendes & Gonçalves (2007, p. 50) afirmam que unir a formação
ao desenvolvimento da profissão possibilita ver a formação como uma aprendizagem
constante. Esta visão é corroborada por pesquisadores como Ponte (1996, 1997), Polettini
(1999) e Fiorentini (2009, 2010, 2013a), que admitem que o desenvolvimento profissional
envolve sempre alguma aprendizagem e, por consequência, alguma mudança. Para Ponte (1997,
p. 44), por exemplo,
O desenvolvimento profissional do professor corresponde a um processo de
crescimento na sua competência em termos de práticas lectivas e não lectivas, no
autocontrolo da sua atividade como educador e como elemento activo da organização
escolar. O desenvolvimento profissional diz assim respeito aos aspectos ligados à
didáctica, mas também à acção educativa geral, aos aspectos pessoais e relacionais e
de interacção com os outros professores e com a comunidade extra-escolar.
A noção de desenvolvimento profissional do autor é próxima à noção de formação, mas
não deve ser tomada como uma noção equivalente a ela. Pois ele alerta para algumas diferenças
que são observadas quando percebemos que a formação está mais associada à ideia de
“frequentar” cursos, numa lógica mais ou menos “escolar”; enquanto o desenvolvimento
profissional ocorre por meio de múltiplas formas e processos, que inclui a frequência de cursos,
mas também outras atividades, como: projetos, troca de experiências, leituras, reflexões.
Enquanto a formação seria um movimento de fora para dentro, cabendo ao professor absorver
os conhecimentos e informação que lhes são transmitidos; com o desenvolvimento profissional
está-se a pensar num movimento de dentro para fora, na medida em que o professor toma as
decisões fundamentais relativamente às questões que quer considerar, aos projetos que quer
apreender e ao modo como os quer executar, ou seja, o professor é objeto de sua formação,
mas é sujeito no desenvolvimento profissional (PONTE, 1996, p. 142).
Polettini (1999), por sua vez, chama a atenção para a existência de pontos críticos e
incidentais em comunhão com nossos interesses para mudar ou resistir à mudança. Dessa
maneira, é de suma importância o professor analisar os desafios e experiências que poderiam
ter influenciado as mudanças, enfatizando a sua percepção do que ocorreu. Além disso, a
profissão do professor é repleta de desafios, que embora possam ser os mesmos para um
conjunto de pessoas, cada sujeito deste grupo é diferente, e reage diferentemente aos mesmos
~ 52 ~
estímulos. Neste sentido, ao refletirmos sob a lógica da noção de experiência em Dewey, é
possível percebermos que, embora os desafios externos (componentes sociais e objetivos)
possam influenciar uma mudança, o desenvolvimento não ocorre somente em resposta a
desafios externos, mas, também em resposta a perturbações internas (componentes subjetivos).
Faz-se necessário, portanto, analisar mais profundamente o “interplay” entre o componente
social e o componente individual no estudo do desenvolvimento profissional do professor.
Nestes termos, parece plausível dizer que ninguém muda ninguém, isto é, a mudança
ocorre, em grande parte, de dentro de cada um, segundo seu desejo e disposição para enfrentar
os riscos inerentes às inovações e inseguranças de novas abordagens. Entretanto, é possível
dizer que a aprendizagem do professor ocorre quando ele adquire a capacidade de ver, ouvir
e fazer coisas que não fazia antes (CHRISTIANSEN & WALTHER, 1986). Para Chevallard
(1991, 2003), esta aprendizagem ou manifestação de mudança é uma mudança de relação a
um objeto de saber (de comportamento, de valor moral, de compreensão de um conteúdo
disciplinar, de um procedimento metodológico ou técnica) sob o constrangimento da relação
institucional, ou seja, o sujeito aprende e se desenvolve na medida em que estabelece relações
em conformidade com as instituições – família, escola, universidade, sociedade. Neste sentido,
a aprendizagem da docência e o desenvolvimento profissional implicam, para o professor, um
processo contínuo de sujeitamento e construção de identidade em relação aos saberes de uma
instituição de referência, como um grupo de professores, uma escola, um grupo de estudo,
dentre outros.
O Processo de socialização e mudança
Para Dubar (1997) o caráter de mudança e desenvolvimento constitui o que chama de
socialização, definido, essencialmente, como uma construção lenta e gradual de um código
simbólico. A socialização é, enfim, um processo de identificação, de construção de identidade,
ou seja, de pertença e de relação. Socializar-se é assumir o sentimento de pertença a grupos (de
pertença ou referência), ou seja, assumimos pessoalmente as atitudes do grupo que, sem nos
percebermos, guiam nossas condutas.
O sinal decisivo de pertença a um grupo é a aprendizagem de um “saber intuitivo”, que
está de acordo com a interessante fórmula de começar a pensar com os outros. Este saber
implica assumir-se de acordo com o passado, o presente e o projeto do grupo, tal como eles
~ 53 ~
exprimem no código simbólico comum que fundamenta a relação entre os membros
(DUBAR, 1997, p. 32). Assim, se as experiências constitutivas de identidades sociais são
produzidas pela história dos indivíduos, elas também são produtoras da sua história futura (à
semelhança do contínuo experiencial em Dewey).
Este futuro depende não só da estrutura “objetiva” dos sistemas nos quais se
desenvolvem as práticas individuais e nomeadamente do estado das relações sociais
no interior destes campos, mas também do balanço “subjetivo” das capacidades
individuais que influenciam as construções mentais das oportunidades destes campos.
As identidades resultam, portanto, do encontro de trajetórias socialmente
condicionadas por campos socialmente estruturados. (DUBAR, 1997, p. 59)
O destaque acima me leva a interpretar que esta construção identitária é dialética, visto
que a aprendizagem é singular ao sujeito e produzida a partir de interações do indivíduo da
consciência e da estrutura social, na qual este está inserido, sendo a identidade um fenômeno
que deriva da dialética entre um sujeito e a sociedade. Esta identidade forma-se e é remodelada
através de processos de relações sociais (BERGER & LUKMAN, 1985, p. 228).
É a partir desta perspectiva social que Lave & Wenger (1991) asseveram que toda
aprendizagem é situada em uma prática social que acontece mediante participação ativa em
práticas de comunidades sociais e construção de identidades com essas comunidades. Para
estes autores, os saberes em uma comunidade de prática (CoP) 36 são produzidos e evidenciados
através de formas compartilhadas de fazer e entender dentro da comunidade, as quais resultam
de dinâmicas de negociação, envolvendo participação ativa e reificação de sua prática.
Segundo Fiorentini (2010) é a participação dos professores nas práticas reflexivas e
investigativas do grupo que os tornam membros legítimos da comunidade profissional, sendo
o desenvolvimento profissional e a melhoria de sua prática docente uma consequência dessa
participação. Pesquisas desenvolvidas por este autor junto a grupos colaborativos trazem
indícios de que o desenvolvimento profissional do professor de matemática pode ser expresso
a partir de:
1) Mudanças na produção do currículo escolar, reconhecendo outras possibilidades mais
efetivas de promoção da inclusão escolar de alunos com dificuldades de aprendizagem da
matemática;
36 Comunidade de Prática (CoP) designa uma prática social de um coletivo de pessoas que comungam um sistema
de atividades no qual compartilham compreensões sobre aquilo que fazem e o que fazem e o que isso significa em
suas vidas e comunidades (FIORENTINI, 2010, p. 571).
~ 54 ~
2) Aprendizagem de novos conhecimentos matemáticos a partir da vivência nesse ambiente
exploratório-investigativo;
3) Mudança de atitudes em relação ao saber matemático e à atividade matemática em sala de
aula, assumindo uma postura mais questionadora e aberta a negociação de significados;
4) Acentuação das críticas em relação a si mesmo e às práticas vigentes de ensino da
matemática nas escolas e processos de formação docente.
Algo importante neste processo de mudança é o duplo movimento pelo qual os
professores de matemática se apropriam subjetivamente de um “mundo social”, “do espírito”
da comunidade a que pertencem e, ao mesmo tempo, se identificam com os papéis, ao aprender
a jogar de uma forma pessoal e eficaz neste campo institucional. Na realidade, no processo de
desenvolvimento profissional, os professores em formação inicial começam por “absorver” o
mundo social geral, mas filtram-no à sua maneira através de atitudes particulares que,
simultaneamente, definem as suas relações específicas com os outros membros do grupo e
selecionam determinados papéis em detrimento de outros.
Pesquisadores como Goffman (1963), Berger & Luckmann (1985) e Dubar (1997),
asseveram que o desenvolvimento de um sujeito ocorre mediante um duplo processo de
“mudança de mundo” e de “desestruturação/reestruturação de identidade” que pressupõem as
seguintes condições:
1) Um assumir de “distanciamento de papéis” que inclui uma disjunção de “identidade real” e
de “identidade virtual”37;
2) Técnicas especiais que asseguram uma forte identificação ao futuro papel visado, um forte
“compromisso pessoal”38;
3) Um processo institucional de “iniciação” que permita uma transformação real da “casa” do
indivíduo e uma implicação dos socializadores na passagem de uma “casa” para outra39;
4) A ação contínua de um “aparelho de conversão” que permite manter, modificar e reconstituir
a realidade subjetiva incluindo uma “contradefinição da realidade” (transformação do
37 A identidade real é a interiorizada ou projectada pelo indivíduo, enquanto a identidade virtual é proposta ou
imposta pelo outro. (DUBAR, 1997, p. 85) 38 Como as técnicas de socialização presentes em cursos de formação inicial e continuada, que propiciam a
problematização de contextos e conscientização dos sujeitos no sentido do desenvolvimento de uma inclinação
pessoal a fazer o que é certo. 39 Como os ritos promovidos pelas passagens do sujeito do ensino básico à graduação (vestibular) e da graduação
ao exercício profissional (defesa do Trabalho de Conclusão de Curso - TCC).
~ 55 ~
mundo vivido pela modificação da linguagem)40;
5) A existência de uma “estrutura de plausibilidade”, isto é, de uma instituição mediadora (o
laboratório de transformação), que permita a conservação de uma parte da identidade antiga
acompanhando a identificação a novos outros significativos, percepcionados como
legítimos41.
Segundo Dubar (1997) quando observadas estas condições, a ruptura seria notória,
assiste-se verdadeiras “altercações”, isto é, transformações totais da identidade. O resultado
deste processo de socialização é chamado de ruptura biográfica e é legitimado como uma
“separação cognitiva entre trevas e luz”. Constitui-se, assim, o processo de incorporação da
identidade, que implica uma nova relação frente a si e em relação ao grupo de referência para
o qual se constituiu a mudança psicossocial durante a trajetória vivida42.
Sobre isso, Hughes (1955, apud Dubar, 1997) afirma que a socialização profissional
apresentaria cumulativamente as características de (i) “iniciação” à cultura profissional e (ii)
“conversão” do indivíduo a uma nova concepção do eu e do mundo, ou seja, o assumir de uma
nova identidade. Este autor indica os seguintes mecanismos específicos no processo de
socialização profissional:
A passagem através do espelho - olhar o mundo às avessas, levando à descoberta da
realidade desencantada do mundo profissional;
A instalação da dualidade entre o modelo ideal que caracteriza a “dignidade da
profissão” e o “modelo prático” que se refere às tarefas quotidianas, muitas das quais
bem desagradáveis, e que tende a ser ultrapassada pela identificação com um grupo de
referência (que nem sempre é o grupo de pertença), que representa uma antecipação de
posições desejáveis e uma instância de legitimação;
O ajustamento da concepção do “eu” - que constitui a solução habitual da fase de
conversão última – por abandono e rejeição dos estereótipos – e da dualidade entre o
modelo ideal e as normas práticas.
É por esta razão que qualquer análise dos processos de mudança identitária, de
desenvolvimento profissional ou de inovação se confronta com a questão da aprendizagem
40 Papel assumido mais propriamente pelas instâncias formadoras (Escola, Universidade, Institutos de Formação). 41 Função exercida pelo campo de práticas e sustentado por um corpo teórico/simbólico que permeiam as atividades
de uma comunidade. 42 A noção de "trajectória vivida" designa a forma como os indivíduos reconstroem subjectivamente os
acontecimentos da sua biografia social que julgam significativos (DUBAR, 1997, p. 85)
~ 56 ~
situada nas práxis de um coletivo de atores com potencial para invenção de novos jogos, de
novas regras e de novos modelos relacionais. Nestes termos,
A transação objetiva entre indivíduos e as instituições é, antes de mais, aquela que se
organiza à volta do reconhecimento e do não-reconhecimento das competências, dos
saberes e das imagens de si e que constituem os núcleos duros das identidades
reivindicadas. (DUBAR, 1997, p. 94)
Em suma, para realizar a construção biográfica de uma identidade profissional e,
portanto, social, os indivíduos devem entrar em relações de trabalho, participar de uma forma
ou de outra em atividades coletivas de organizações, e aprender como intervir de uma forma ou
de outra no jogo de atores. O espaço de reconhecimento das identidades, portanto, é inseparável
dos espaços de legitimação dos saberes e competências associados às situações de
aprendizagem constitutivas da identidade e do desenvolvimento profissional.
Desenvolvimento Profissional Docente em uma Perspectiva Catastrófica
(DPDPC)
A formação de significados e traição desses significados no ato de contar; o paradoxo
de um conhecimento voltado para o que é de mais marcante e específico na
experiência, mas fadado a perder a especificidade exatamente ao torna-la
compreensível; o esquecimento do evento que, aqui é sinônimo aberratório da
lembrança: este é o pano de fundo contra o qual vêm se dar tantas obras da nossa
cultura.
(NESTROVSKI & SELIGMANN-SILVA, 2000)
Os autores da epigrafe acima fazem menção sobre algo semelhante ao que tenho tomado
emprestado de Lave & Wenger (1991) como reificação. Não necessariamente ao ato ou
processo de reificar, mas a seu produto, que uma vez tornado em coisa deixa de ter autoria,
passa às considerações da coletividade, às ressignificações43 de sentidos e negociação de
significados para uma possível institucionalização. A perspectiva de desenvolvimento
profissional docente que aqui desenvolvo tem esse caráter, pois embora me tenha utilidade na
forma que reifico seu conceito, tomarão de mim a posse dos significados. Mas farei o possível
para que se torne inteligível, mesmo que por alguns momentos, de sorte que me permita aplica-
43 Adoto neste trabalho o termo ressignificação segundo Fiorentini & Castro (2003, p. 127), que o conceituam
como um processo criativo de atribuir novos significados a partir do já conhecido, validando um novo olhar sobre
o contexto em que o sujeito está imerso.
~ 57 ~
lo ao menos como uma boa metáfora44 ao processo identitário dos professores de matemática,
para os quais busco tecer uma compreensão sobre seus processos de aprendizagem, eventuais
tipos de aprendizagem e desenvolvimento profissional docente, acreditando poder fazer
referência a aspectos sobre esses temas abordando propriedades fundamentais ainda não
aprofundadas pela literatura na forma que as reifico. Neste sentido, o primeiro conceito que
reifico é o de catástrofe.
A catástrofe costuma trazer em si um problema de representação (NESTROVSKI &
SELIGMANN-SILVA, 2000) uma vez que a acepção mais comum está associada a desastres
de ordem natural ou acidentes em larga escala provocados pelo homem, ou seja, experiências
de contingências traumáticas. O que parece ser natural, visto que a etimologia da palavra
catástrofe, que vem do grego, significa, literalmente, “virada para baixo” (kata+strophé).
Outra tradução possível é “desabamento”, “desastre”. Assim, por definição, a catástrofe é um
evento que provoca um trauma, que em grego traduz-se por “ferimento”. A palavra trauma
tem origem indo-europeia, a qual se pode atribuir o sentido de “passar através”, “suplantar”.
Superando esta linha de pensamento, estudos modernos, como os de Freud (apud
NESTROVSKI & SELIGMANN-SILVA, 2000), definem o trauma como uma experiência que
traz à mente, num período curto de tempo, um aumento de estímulo grande demais para ser
absorvido, isto é, uma lembrança que o sujeito não sabe que lembra, mas que se manifesta por
meio de atos sem ligação consciente com a atualidade. Neste sentido, em uma situação, não há,
uma plena assimilação da experiência no momento em que ocorre, mas a posteriori, na repetida
possessão daquele que a experienciou.
Sobre isso, Dewey (2011) afirma que a experiência anterior vive de algum modo na
experiência presente. Visto que, neste momento de retomada, certas circunstâncias recuperam
marcas do passado - saber e não saber se confundem -, o que há de mais concreto e
característico nas memórias traumáticas. Essas memórias imputam complexidade à
44 O modelo heurístico a ser construído apresentar-se-á como uma metáfora do modelo matemático acúspico
desenvolvido por René Thom, que apresenta uma geometria no espaço tridimensional, e encontrará paralelos na
filosofia da experiência de Dewey (2011), bem como em pesquisas com base no paradigma comunicativo e nas
asserções do campo da complexidade. A utilização de metáforas é largamente utilizada nas Ciências Sociais.
Segundo Santos (1989), as imagens, analogias e metáforas desempenham um papel importante e essencial,
responsável em boa medida pelo desenvolvimento e pela inovação científica. Para Contenças (1999), as metáforas
substantivas ou constitutivas (utilizadas pelos cientistas para expressar teses teóricas para as quais não se conhecem
paráfrases literais adequadas) surgem quando há ou parece haver boas razões para acreditar que existem relações
de similaridade e analogia teoricamente importantes entre o assunto principal da metáfora e o assunto secundário.
~ 58 ~
temporalidade da situação, envolvendo construções recíprocas do passado e do presente.
Resgatar as marcas que nos dão consciência da catástrofe nos faz modificar o nosso modo de
perceber e representar o que nos acontece (NESTROVSKI & SELIGMANN-SILVA, 2000).
Torno, com vistas a amenizar o impacto semântico, o termo memória traumática
equivalente ao de memória significativa. Com efeito, e sem perda de generalidade, afirmo que
a memória significativa, assim como a traumática, responde a evocação do sujeito em nova
situação de experiência o que se lhe tem marcado ao espírito por experiências passadas em
situações assemelhadas. É consenso na neurologia que a evocação se faz mediante a ação de
recriação do maior número possível de sinapses pertencentes aos estímulos condicionados dessa
memória (IZQUIERDO, 2011). O sujeito, deve, pois, reconhecer-se em um contexto cujos
sentidos sejam próximos daqueles em que tenham vivenciado experiências no passado.
Antecipo o inquérito afirmando que há, nesse sentido, espaço para a criatividade, posto
que a capacidade criativa de adaptação é, na verdade, influenciada por uma memória
traumática/significativa vivenciada em um contexto passado que por evocação empresta
sentido à nova experiência. Interpreto assim, que é, de modo específico, a evocação que
possibilita o contínuo experiencial apontado por Dewey e dá sentido à possibilidade da
formação docente, posto que, parece ser um consenso geral, que experiências de prática
antecipadas, estimuladas por situações de prática profissionais a serem vivenciadas pelos
professores no futuro, possibilitam a construção de significados próprios para a ação exercida
e constituição de uma identidade profissional pelos professores, mediante a construção de
sinapses permanentes, ou pelo menos duradouras, que venham constituir memórias
significativas que possibilitarão sua evocação no futuro.
Memórias significativas evocadas em situações de práxis são indicativos de que uma
dada experiência teve, de algum modo, efeito sobre o sujeito que a vivenciou. Isto é, são
indicativos de que o sujeito estabeleceu uma (nova) relação para com um objeto do saber
mediante os constrangimentos de uma instituição. Houve, neste sentido, uma mudança do
sujeito, houve uma aprendizagem significativa nos termos que a tenho definido, ou seja,
aprender é dar-se conta, é uma mudança catastrófica. Isto se dá porque nosso mundo é mutante,
e a variabilidade estará sempre presente entre as pessoas, nos produtos ou serviços, em todos
os processos da vida, e também em nós mesmos que somos pessoas diferentes em diferentes
lugares, em diferentes momentos e em diferentes instituições.
~ 59 ~
O mundo muda e com ele mudam nossas relações. Esse processo dinâmico estimula
nosso potencial interior de realização, isto é, uma série de mudanças contextuais estimulam
nosso potencial de desenvolvimento pessoal, em específico, mudanças no contexto profissional
estimulam nosso potencial de desenvolvimento profissional. Esse potencial pode vir a ser
realizado em maior ou menor grau dependendo, especialmente, de dois fatores: a história de
vida do sujeito e o ambiente no qual interatua – a sua vida relacional/institucional (LISONDO,
2011).
Esta concepção de mudança ou desenvolvimento catastrófico é suportado pelo
paradigma pós-moderno que rompe, segundo Kuhn (2006), com as bases da ciência moderna
mediante a apresentação de anomalias e emergência de descobertas que viriam se caracterizar
como novas teorias científicas. Esta perspectiva de mudança ganhou importante contribuição a
partir de uma teoria matemática surgida no final dos anos 60 e consolidada no início dos anos
80, denominada de Teoria das Catástrofes, formulada pelo matemático francês René Thom.
A Teoria das Catástrofes fornece um método universal para o estudo de todas as
transições por saltos, descontinuidades e súbitas mudanças qualitativas. Estas transformações
nada mais são que mudanças de forma. Sobre isso, René Thom (1995) destaca, em sua Teoria
das Catástrofes, que toda ciência é antes de tudo o estudo de uma fenomenologia, isto é, que os
fenômenos que são o objeto de uma disciplina científica dada aparecem como acidentes de
formas definidas em um espaço dado que se poderia chamar o espaço substrato da morfologia
estudada, o qual, nos casos os mais gerais, é tão simplesmente o espaço-tempo habitual. Assim,
à Teoria das Catástrofes interessa de perto às relações entre continuidades e descontinuidades
das formas, fornecendo, como observa Arnoud (1989), um método para a perscrutação das
transições de formas ocorridas por meio de súbitas mudanças qualitativas.
Uma vez que a finalidade deste tópico é apresentar a dinâmica dos processos de
aprendizagem docente a partir da Teoria das Catástrofes de René Thom, o elemento
fenomenológico a ser estudado, em meio a um processo dinâmico, é a aprendizagem docente,
identificada por uma conversão catastrófica, que se caracteriza por uma ocorrência súbita e de
difícil predição. A aprendizagem por conversão catastrófica, como tenho construído,
corresponderia a uma reestruturação abrangente não só do sujeito como de seu entorno objetivo
(aquilo que constitui seu ambiente), posto que ele passa a operar interativamente com os
sistemas ecológicos, sobretudo, estabelecendo uma nova relação com os elementos
~ 60 ~
constitutivos deste contorno, como por exemplo: os outros sujeitos, os objetos de saber, os
valores e princípios institucionais e as restrições econômicas, políticas e culturais.
Antes de prosseguir à construção de um modelo plausível para interpretar a questão da
aprendizagem docente e seus desdobramentos, é imperativo clarificar que não tomarei o termo
catástrofe na acepção corriqueira de "desastre", e sim numa acepção mais fenomenológica
associada à ideia de mudança súbita de estado. No caso específico do estudo em tela, esta
mudança corresponde à conversão devida à aprendizagem docente e à constituição identitária
do sujeito socializado segundo uma instituição de referência.
Outra ressalva que faço, diz respeito às formas. As evidências de desenvolvimento
profissional do professor não são algo simples de se observar, visto que constituem-se em um
processo complexo de mudança. Um modo perspicaz de identificar alguma mudança é delimitar
a forma de uma cultura institucional. A forma da cultura docente consiste nos modelos de
relação e formas de associação características entre os participantes dessa cultura
(HARGREAVES, 1998a). A forma pode ser percebida nas condições concretas em que se
desenvolve o trabalho do professor, mais especificamente o modo como este sujeito articula
suas relações com os demais colegas (FARIAS, 2006, p. 85). E eu acrescentaria, com seus
alunos e com o saber de referência.
Todavia, a respeito das formas, Henri Lefebvre (1991) releva a sua dupla existência,
mental e social, esforçando-se por existir no estado puro como abstração mental e coisa social,
lembrando que a mesma não pode existir no estado puro, sem conteúdo, pois não há forma sem
conteúdo e, reciprocamente, não há conteúdo sem uma forma, o que há é uma unidade
conflituosa e dialética da forma e do conteúdo. Neste sentido, o conteúdo configura-se como
um componente mais conceitual da cultura docente institucional. Consiste pois, nas atividades
substantivas, valores, crenças, hábitos, suposições e formas de fazer as coisas, as quais são
compartilhadas por um grupo de professores ou por uma coletividade mais ampla de docentes
(HARGREAVES, 1998a).
O meio pelo qual os professores se apropriariam mutuamente destes conteúdos e formas,
passa: pela participação ativa nas práticas sociais do grupo, marcada, de um lado pelo
compartilhamento de experiências e problemas relativos à prática pedagógica de ensinar e
aprender em sala de aula e aos múltiplos constrangimentos e possibilidades do trabalho
docente e, de outro, pela realização de leituras, reflexões, investigações e escritas sobre esse
modo de ser-estar na profissão docente (FIORENTINI, 2009, 2013); e pela reificação que
~ 61 ~
sugere o processo de dar forma e sentido à experiência humana mediante a produção de objetos
tais como artefatos, ideias, conceitos ou textos escritos (WENGER, 2001).
Retomando minha inspiração na obra de René Thom, percebo que a modelização das
formas é fugidia, de difícil precisão. Por exemplo, em relação ao desenvolvimento da
criatividade do professor de matemática. Apesar da existência de trabalhos, como o de Tobias
(2004), em que este afirma que o desenvolvimento da criatividade como um dos objetivos do
trabalho pedagógico com a Matemática pode colaborar para a superação da ansiedade
envolvida em sua aprendizagem, além de quebrar barreiras que impedem o sucesso nessa área;
não há, nos documentos oficiais, uma definição do que seja potencialmente criativo ou de
criatividade, ou orientações sobre estratégicas de como estimular a criatividade no campo da
Matemática. Há, porém, uma vasta produção de estudos, pesquisas e experiências que
correspondem a referenciais diferentes, e muitas vezes divergentes, sobre como estruturar uma
boa aula de Matemática. Contudo, recaímos mais uma vez em uma questão do tipo: O que
constitui uma boa aula de Matemática? E com isso surgem inúmeras outras referências
igualmente não convergentes sobre o assunto.
Pelo exposto, vejo que a forma é, por essência, deformável, sendo por isso uma noção
fundamentalmente qualitativa, não sendo uma grandeza do mesmo tipo que o comprimento, a
velocidade, a massa, a temperatura. Assim, Thom (1995) destaca que um dos problemas
centrais postos ao espírito humano é o problema da sucessão das formas, pois qualquer que seja
a natureza última da forma, é inegável que o Universo não é um completo caos, já que neste se
discerne seres, objetos e outras coisas designadas por palavras. Esses seres ou coisas também
são formas, estruturas dotadas de uma certa estabilidade, ocupando uma certa porção do espaço
e durando um certo lapso de tempo, permitindo admitir que o espetáculo do universo é um
movimento contínuo de nascimento, desenvolvimento e destruição de formas, tornando-se o
objetivo de toda ciência prever essa evolução das formas e, se possível, explicá-la.
Sobre a sucessão das formas, René Thom (1995) afirma que o primeiro objetivo consiste
em caracterizar um fenômeno quanto a sua forma, forma espacial, o que significa dizer, antes
de tudo, geometrizar para a partir daí poderem ser estudadas, quer dizer, reconhecidas e
conceitualizadas, de modo que as morfologias devem de alguma maneira usufruir de uma certa
estabilidade, que no caso específico das experiências formativas e processos de aprendizagem
docente, baseia-se na observação repetida de certas situações que fornecem um indicativo um
tanto seguro de sua estabilidade.
~ 62 ~
Na Teoria das Catástrofes se define forma como sendo sempre em última análise uma
descontinuidade qualitativa sobre um certo fundo contínuo (THOM, 1977), sendo próprio de
toda forma, de toda morfogênese, expressar-se por uma descontinuidade das propriedades do
meio. Ou seja, há catástrofe quando uma variação contínua das causas origina uma variação
descontínua dos efeitos, sendo a oposição contínuo/descontínuo, em efeito, a base da percepção
ingênua das coisas e do mundo, recordando a distinção gestaltiana do fundo (continuidade) e
da forma (descontinuidade), levando-o a afirmar que quando uma função apresenta uma
descontinuidade em um ponto, quer dizer muda de valor bruscamente nesse ponto, esse ponto
será dito catastrófico (BOUTOT, 1993).
Analogamente, na interpretação que tenciono, a definição de forma é a que explicitei a
pouco, isto é, diz respeito à cultura institucional. A descontinuidade de ordem qualitativa é
relativa à forma assumida pelo sujeito em processo de socialização/constituição identitária, isto
é, a cada nova relação que o sujeito estabelece com o objeto institucional ocorre, por isso, a
constituição de uma nova forma. Em específico, a cada nova experiência em que ocorra
aprendizagem da docência, o professor de matemática reestrutura sua relação para com pelo
menos um objeto em específico, e constrói, assim, uma nova forma de ser e estar na profissão.
Neste sentido, acredito que oportunidades diferentes em que o professor tenha a
possibilidade de problematizar as situações de ensino-aprendizagem, promovem a evocação de
memórias significativas que provocam a conversão catastrófica. O fundo contínuo é, neste
caso, definido por um percurso formativo, que embora possa ser estratificado para efeito de
estudo45, constitui-se no espaço-tempo usual, caracterizado pelas contínuas e sucessivas
experiências de vida dos sujeitos que, a seu tempo e modo, criam condição para a constituição
identitária do professor, ou melhor, promovem o desenvolvimento profissional em uma
perspectiva catastrófica.
Para Marramao (1995) a verdadeira catástrofe é a criação de identidade por meio da
produção de uma forma, pois toda forma se constitui por meio de um recorte de contornos que
é imposição violenta de limites. Assim, o grande mérito da Teoria das Catástrofes foi dizer que
se poderia produzir uma teoria dos acidentes, das formas, do mundo exterior,
independentemente do substrato, de sua materialidade (THOM, 1977). Com este objetivo René
Thom investigou sete modelos catastróficos, dos quais a catástrofe do tipo cúspide é a de meu
45 A exemplo do que faço na descrição do percurso formativo constante na Composição III deste trabalho.
~ 63 ~
interesse aprofundar, uma vez que este esquema matemático de mudança se manifesta com
maior frequência no mundo, em específico nas dinâmicas estudadas pelas ciências humanas.
A cúspide é uma singularidade que surge quando uma superfície como a da figura 01 é
projetada num plano. Essa superfície é dada pela equação 𝑦1 = 𝑥13 + 𝑥1𝑥2 relativamente às
coordenadas espaciais (𝑥1, 𝑥2, 𝑦1) e projeta-se sobre o plano horizontal (𝑥2,𝑦1). Em
coordenadas locais o mapeamento é dado por 𝑦1 = 𝑥13 + 𝑥1𝑥2, 𝑦2 = 𝑥2.
Fig. 01 – Singularidade Cúspide de Whitney.
Sobre o plano horizontal é possível perceber uma parábola semicúbica, com uma
cúspide (ponta) na origem. Essa curva divide o plano em duas regiões, uma maior à esquerda
da figura, e outra menor à direita. Os pontos da região da direita têm três imagens inversas, isto
é, três pontos da superfície projetam-se em um único ponto do plano. Enquanto isso, pontos da
região da esquerda têm somente uma imagem inversa, e pontos sobre a curva têm duas imagens
inversas. Quando nos movimentamos da região da direita para a da esquerda, duas das três
imagens inversas fundem-se ao atingirmos a curva, e desaparecem em seguida quando
penetramos na região da esquerda, onde cada ponto só tem uma imagem inversa (aqui a
singularidade é uma dobra). Se atingirmos a curva exatamente na cúspide, todas as três imagens
inversas coalescem de uma só vez.
No caso da cúspide aplicada à descrição do fenômeno da aprendizagem e
desenvolvimento profissional docente, o modelo assumiria uma feição dinâmica de
~ 64 ~
compreensão de um sujeito em face a uma dada experiência de ensino e aprendizagem. Nesta
situação de apropriação de uma nova forma da cultura docente o objetivo central é a
aprendizagem da docência e ascensão no nível de compreensão da complexidade das práxis de
ensinar, que aqui definirei pelo eixo vertical A. As obras de inúmeros educadores da atualidade,
dentre os quais posso citar Fiorentini (2006, 2009, 2013), Vázquez (2011), Pimenta (2006a),
Chevallard (1991, 1999), cada uma a seu modo, indicam que o professor deve saber articular
teoria e prática, assumindo-as no processo de ensino como componentes indissociáveis. Neste
sentido, atribuo aos eixos horizontais os componentes domínio da prática P e Compreensão
Teórica T, assim temos esses três parâmetros relacionados entre si constituindo uma superfície
no espaço tridimensional com coordenadas (P, T, A).
Projetando essa superfície no plano (P, T) na direção de A, temos o modelo cúspide da
aprendizagem, que possuiria a seguinte representação:
Fig. 02 – Modelo Cúspide da Aprendizagem da Docência.
Observemos como, nas condições assumidas, a aprendizagem da docência pode ser
modificada devido a relação Teoria-Prática. Se a compreensão teórica T do professor não é
grande, a aprendizagem da docência A cresce monotônica e lentamente com a prática do ensino
P. Se a compreensão teórica T do professor é suficientemente grande, então produz-se um
fenômeno diferente, pois com o aumento da prática de ensino P, a aprendizagem da docência
A pode aumentar com um salto (tal salto ocorre, por exemplo, no ponto 2 da figura 02, à medida
~ 65 ~
que a compreensão teórica e a prática de ensino variam ao longo da curva 1). A região de alta
aprendizagem na superfície é indicada pela atuação de um “bom professor”.
Por outro lado, um crescimento de compreensão teórica T sem estar sustentado por um
aumento correspondente da prática de ensino P conduz a uma catástrofe negativa (no ponto 4
da curva 3 da figura 02), na qual a aprendizagem da docência A reduz-se bruscamente, caindo
na região denominada “Professor Tradicional”46. É possível observar que o salto do estado de
bom professor para professor tradicional e vice-versa se produz ao longo de várias linhas, de
modo que, para valores de aprendizagem da docência A suficientemente grandes, um bom
professor e um professor tradicional podem ter níveis de aprendizagem docente A equivalentes,
diferindo apenas pelo percurso de experiências que constituem a história de vida dos dois
sujeitos.
É importante registrar que tanto um salto qualitativo positivo como uma queda
qualitativa, constituem uma mudança na forma, isto é, configuram uma catástrofe. Tais saltos
ou quedas ocorrem devido perturbações exercidas nas variáveis de controle. Como professores
formadores pouco temos como interferir internamente nos sujeitos para que ocorram saltos
qualitativos positivos, mas é nosso dever propiciar os elementos ambientais que possibilitem o
estabelecimento de novas relações do sujeito para com o objeto de saber, ou seja, nos cabe levar
o sujeito ao encontro do saber (CHEVALLARD, 1991).
O modelo heurístico da Aprendizagem da Docência por conversão catastrófica, sobre
o qual inicio consideração, assumirá uma estrutura mais inteligível quando estiverem explícitos
os elementos do percurso formativo cujas experiências de reflexão individual e coletiva sobre
a prática de ensinar matemática substancializarem os tipos de aprendizagem condizentes com
o que assumo constituir a identidade docente de bons professores de matemática. Contudo, é
possível adiantar que a concepção de desenvolvimento profissional com base na conversão
catastrófica alinha-se com a concepção construtivista, que reconhece que os professores em
formação trazem, por evocação, experiências anteriores a cada nova situação, possibilitando-
lhes constituírem uma nova forma de socialização e identificação com a profissão. Ou seja, a
aprendizagem por meio de experiências ou, como tenho agora definido, aprendizagem por
conversão catastrófica, ocorre ao longo do tempo, e não em momentos isolados, de modo que
46 Esta “queda” catastrófica não deve ser compreendida como uma dezaprendizagem, mas simplesmente como um
investimento de tempo e recurso na condução de uma experiência que não surtiu os efeitos desejados na perspectiva
de uma apreensão pelo sujeito.
~ 66 ~
a aprendizagem ativa requer oportunidades de acessar experiências passadas em novas
situações problemáticas. O modelo que representa esta dinâmica será retomado na Composição
IV como culminância da meta-análise do percurso de formação e convergências deste trabalho.
Para mobilizar a conversão catastrófica do grupo de professores de professores de
matemática em formação inicial, assumi a pesquisa-ação colaborativa como estratégia
formativa e de desenvolvimento profissional, visto que seus princípios e métodos apresentam
potencialidades reflexivas sobre a prática docente que propiciam a problematização da
realidade e projeção de mudanças não só dos sujeitos investigados, mas do coletivo do grupo,
dos alunos das escolas parceiras e da comunidade em geral. Além é claro de fornecer os critérios
necessários à investigação das experiências e evidências de aprendizagem, bem como de um
possível desenvolvimento profissional destes sujeitos, como apresentarei nas composições
subsequentes.
A Pesquisa-Ação Colaborativa (PAC)
A prática docente crítica envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o
pensar sobre o fazer porque os sujeitos envolvidos nesta prática são
epistemologicamente curiosos e por estarem pensando criticamente a prática de hoje
ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática.
(FREIRE, 1996)
As raízes genealógicas da Pesquisa-Ação Colaborativa estão relacionadas à história da
formação dos professores, mais especificamente ao momento em que se acentuam os
movimentos emancipatórios dos professores no sentido de caracterização do que conhecemos
por professor reflexivo (ZEICHNER, 1993). Este movimento, de proporções internacionais, foi
considerado uma reação contra o fato dos professores serem vistos como técnicos que se
limitavam a cumprir o que os outros lhes ditavam de fora da sala de aula, isto é, foi um
movimento de rejeição às reformas feitas “de cima para baixo”, na qual os professores eram
tidos como meros participantes passivos.
Encontrei indícios de tais reformas na literatura científica47 a partir da caracterização de
três grandes fases do percurso evolutivo da investigação pedagógica: a primeira distingue-se
47 As bases teóricas de cada fase podem ser encontradas em Saviani (2002, 2003), no Brasil, a partir de estudos
que caracterizam as teorias pedagógicas “em três grupos: teorias não-críticas, teorias crítico-reprodutivas e teorias
críticas. As teorias não-críticas partem do pressuposto de que a educação tem autonomia em relação à estrutura
social e que podem determinar a equalização das relações sociais; as teorias crítico-reprodutivistas entendem a
educação como um instrumento de discriminação social, que reproduz as relações sociais de produção; e,
~ 67 ~
pela procura das características intrínsecas ao “bom” professor; a segunda define-se pela
tentativa de encontrar o melhor método de ensino; e a terceira caracteriza-se pela importância
concedida à análise do ensino no contexto real da sala de aula (NÓVOA, 2000).
Nas duas primeiras fases a posição dos professores em termos participativos na
construção de propostas formativas era predominantemente passiva, visto que dos anos de 1960
a 1970 os professores foram “ignorados”, parecendo não terem existência própria enquanto
fator determinante da dinâmica educativa, sendo uma das características da fase a redução da
profissão docente a um conjunto de competências e capacidades que realçavam essencialmente
a dimensão técnica da ação pedagógica; enquanto no período de 1970 a 1980 os professores
foram ‘esmagados’, sob o peso da acusação de contribuírem para a reprodução das
desigualdades sociais, uma vez que eram considerados marionetes dos sistemas educacionais e
hegemonias políticas.
A partir do levantamento bibliográfico sobre o tema encontrei evidências de uma recente
mudança de perspectiva no quadro situacional docente, recolocando os professores no centro
dos debates educativos e das problemáticas da investigação de suas práticas, mais
especificamente, a partir da publicação de duas importantes obras: a primeira delas é o
conhecido livro de Donald Schön, The reflective practitioner48, publicado em 1983, que
apresenta como pontos fundamentais da prática reflexiva a valorização dos processos de
produção do saber docente a partir da prática e a pesquisa como um instrumento de formação
de professores (PASSOS et all, 2005, p. 471); a segunda, de acordo com Nóvoa (2000) é a
publicação em 1984, nos Estados Unidos, do livro L’enseignant est une personne49 de Ada
Abraham, em uma importante reunião internacional, em que destaca que a profissão docente
está ligada à construção da identidade profissional através da construção do Eu profissional.
Após estas publicações a literatura pedagógica foi invadida por obras e estudos sobre a
vida dos professores, as carreiras e os percursos profissionais, as biografias e autobiografias
docentes ou desenvolvimento pessoal dos professores. Esses esforços, que exploravam as
possibilidades formativas das práticas reflexivas dos professores ganharam novo ânimo,
fazendo com que fossem resgatados antigos referenciais sobre a prática docente e princípios
finalmente, as teorias críticas compreendem a educação inserida no movimento histórico da tendência de
transformação da sociedade (FACCI, 2004, p. 23). 48 O professor reflexivo. 49 O professor é uma pessoa.
~ 68 ~
democráticos da educação, como os livros Como pensamos (1910), Democracia e Educação
(1916) e Experiência e Educação (1938) de John Dewey.
A partir da valorização do tema reflexão a causa da valorização docente assume
contornos políticos mais profundos como a de promover a profissionalização dos professores
em paralelo com a construção de uma sociedade mais justa e decente (ZEICHNER, 1993, p.
14). E implicou ainda,
No reconhecimento de que os professores são profissionais que devem desempenhar
um papel ativo na formulação tanto dos propósitos e objetivos do seu trabalho, como
dos meios para os atingir. Isto implica que a produção de conhecimentos sobre o que
seria um ensino de qualidade não é propriedade exclusiva das universidades e centros
de investigação e desenvolvimento e de que os professores também têm teorias que
podem contribuir para uma base codificada de conhecimentos de ensino (ZEICHNER,
1993, p. 16).
Conjuntamente a essa dinâmica de valorização dos professores se viu avançarem as
perspectivas de pesquisa como prática social. Uma destas “abordagens”, senão a mais
significativa foi a pesquisa-ação, para a qual situo pelo menos dois grandes períodos: o
primeiro, mais norte-americano, a partir da emergência do termo “cunhado” por Kurt Lewin
nos anos anteriores à Segunda Guerra Mundial, indo até os anos de 1960; e o segundo, mais
europeu, australiano e canadense, do final dos anos 1960 até os dias atuais (BARBIER, 2007).
Assim, a pesquisa-ação variou de uma leitura com perspectivas explicativas/experimentais
(LESSARD-HÉRBERT, 1991) até projetos de ações com vistas à solução de problemas de
ordem social (THIOLLENT, 1986; ZEICHNER, 2005).
Apesar de pesquisas cuidadosas (MCKERMAN, 1991) de cunho historiográfico darem
conta de que a pesquisa-ação fora empregada em diversas iniciativas desde o século XIX, foi
Kurt Lewin quem, em meados de 1940, a teorizou como um procedimento em uma espiral de
passos, cada um dos quais é composta de planejamento, ação e avaliação do resultado da
ação (KEMMIS & MCTAGGERT, 1990, p. 8). Lewin argumentava que “in order to understand
and change certain social practices, social scientists have to include practitioners from the real
social world in all phases of inquiry” (MCKERNAN, 1991, p. 10), isto é, a fim de compreender
e mudar certas práticas sociais, os cientistas sociais têm de incluir os profissionais do mundo
real social em todas as fases da investigação. Foi a partir desta construção de Lewin que a
pesquisa-ação se tornou um método de pesquisa aceitável.
Um dos casos mais citados sobre a pesquisa-ação de Kurt Lewin está registrado em uma
publicação póstuma de 1965, e diz respeito a célebre pesquisa sobre os esforços de
~ 69 ~
convencimento das donas-de-casa norte-americanas a se abastecerem de pedaços de carne de
baixo preço (coração de boi, testículos, tripas), tradicionalmente pouco apreciados por esse tipo
de público. A ocasião fora oportuna para se trabalhar a pesquisa-ação apoiada na ação dos
grupos e necessidades de fazer com que as pessoas participassem na própria mudança de atitude
ou de comportamento num sistema interativo (BARBIER, 2007, p. 29). O caso também
expressa a pesquisa-ação em uma dimensão de emergência, ao que Lewin afirma:
Quando nós falamos de pesquisa, submetemos Action-Research, quer dizer, uma ação
em um nível realista sempre seguida por uma reflexão autocrítica objetiva e uma
avaliação dos resultados. Uma vez que o nosso objetivo é aprender rapidamente,
nunca teremos medo de enfrentar nossas deficiências. Não queremos ação sem
pesquisa, nem pesquisa sem ação (apud MARROW, 1972).
O modelo de Lewin discutia a pesquisa-ação como uma forma de investigação
experimental baseada nos grupos que experimentavam problemas e defendia que os problemas
sociais deveriam servir como lócus de pesquisa das ciências sociais. A morte de Lewin em 1947
não interrompeu o progresso dos trabalhos em pesquisa-ação, que se multiplicaram depois da
segunda grande guerra.
Nos anos cinquenta e início dos anos sessenta a pesquisa-ação foi utilizada no estudo da
indústria, que desenvolveu uma sequência de projetos nos EUA, no Instituto de Tecnologia de
Massachusetts, e no Reino Unido no Instituto Tavistock. (MCKERNAN, 1991). Sob esta
perspectiva a pesquisa-ação se volta para as decisões de grupo, a auto-organização, a
formação dos quadros, a modificação dos estereótipos e a resistência à mudança (BARBIER,
2007, p. 29). No âmbito social, a Escola de Chicago, realizou investigações sobre o
comportamento de grupos de adolescentes, a influência das leis sobre a mudança social, a
integração dos vendedores negros, a solidariedade de grupo, a integração nos prédios
residenciais. Enfim, surgem trabalhos de toda ordem que segundo Barbier (2007) podem assim
serem enumerados:
1) A Action-Research diagnóstica – visa produzir planos de ação encomendados em que uma
equipe de pesquisadores intervém numa situação existente (motim racial, ato de
vandalismo) e estabelece um diagnóstico e recomenda medidas saneadoras;
2) A Action-Research participativa – envolve, desde o início, no processo de pesquisa, os
membros da comunidade em risco;
3) A Action-Research empírica – consiste em acumular os dados das experiências de um
trabalho cotidiano nos grupos sociais semelhantes;
~ 70 ~
4) A Action –Research experimental – exige um estudo controlado da eficácia relativa das
diferentes técnicas utilizadas em situações sociais aproximadamente idênticas.
A pesquisa-ação que a época de Lewin dava habitualmente ênfase a “pesquisa” na sua
concepção, paulatinamente torna a “ação” mais importante. Perspectiva a partir da qual Jacques
Ardoino (1989 apud BARBIER, 2007) diz ser possível categorizar em:
Axiológica – visa amenizar o sofrimento humano, ao trabalhar as disfunções sociais e ao
privilegiar as formas de gestão democrática;
Praxiológica – que otimiza a ação e facilita a decisão;
Metodológica – dividida entre uma clínica de situações sociais, ainda em estado inicial, e
uma opção francamente experimentalista;
Epistemológica – como uma teoria de campo e do contexto e uma oposição entre um modo
de pensamento aristotélico e um modo de pensamento galileano.
Não posso deixar de comentar a importante contribuição de Stenhouse (1971, 1975)50
que, no Reino Unido, desenvolveu um trabalho fundamental sobre o projeto curricular em
Ciências Humanas, assumindo o professor como pesquisador. Stenhouse declarou que todo o
ensino deve ser baseado em uma pesquisa, e que o desenvolvimento da pesquisa e currículo
eram privilégios dos professores (MCKERNAN, 1991, p. 11).
Posso afirmar que a partir desta época a pesquisa-ação dá uma guinada radical,
assumindo tanto no campo social como na educação conceituações tão diversas quanto eram os
projetos desenvolvidos. A exemplo disso destaco as seguintes enunciações sobre a pesquisa-
ação:
Investigação sistêmica, que é coletiva, colaborativa, auto-reflexiva, crítica e realizada
pelos participantes na pesquisa (MCCUTCHEON & JURG, 1990, p.148, tradução
minha).
Uma forma de investigação auto-reflexiva, coletiva, realizada pelos participantes em
situações sociais, a fim de melhorar a racionalidade e a justiça de suas próprias
práticas sociais ou educacionais, bem como a sua compreensão dessas práticas e as
situações em que essas práticas são realizadas (KEMMIS & MCTAGGERT, 1990, p.
5, tradução minha).
Visa contribuir tanto para as preocupações práticas de pessoas em uma situação
imediata problemática e para os objetivos da ciência social pela colaboração conjunta
dentro de um quadro ético mutuamente aceitável (RAPOPORT, 1970, p. 499 apud
MCKERNAN, 1991, p. 4, tradução minha).
50 Apud MCKERNAM, 1991, p. 11.
~ 71 ~
É possível evidenciar nas perspectivas apresentadas pelo menos quatro temas básicos:
1) o empoderamento dos participantes; 2) a colaboração através da participação; 3) a aquisição
de conhecimentos e 4) a perspectiva de mudança social. O processo pelo qual o pesquisador
passa para alcançar esses temas se dá por uma espiral de ciclos de investigação-ação que
consiste em quatro atividades principais: planejamento, ação, observação e reflexão (ZUBER-
SKERRIT, 1992).
Auxilia-me na compreensão dessa evidenciação pensar como Grundy & Kemmis (1981,
apud GRUNDY, 1988) que afirmam existirem três requisitos mínimos para a pesquisa-ação.
Estes requisitos incorporariam as metas de melhoria e envolvimento que caracterizam qualquer
projeto de pesquisa-ação. Tais condições necessárias e conjuntamente suficientes para
pesquisa-ação seriam:
1) O projeto ter como objeto uma prática social, considerando-o como uma ação estratégica
suscetível de melhoria;
2) O projeto desenvolver-se através de uma espiral de ciclos de planejamento, ação, observação
e reflexão, com cada uma dessas atividades a ser sistematicamente e autocriticamente
implementadas e inter-relacionadas; e
3) O projeto envolver os responsáveis pela prática em cada um dos momentos da atividade,
ampliando a participação no projeto gradualmente para incluir os outros afetados pela prática
e manter o controle colaborativo do processo.
Foi assumindo essas condições que a pesquisa-ação passou a tomar por objeto a prática
escolar e posicionar o professor como usuário reflexivo e crítico do saber elaborado por outros,
além de requerer deste professor-pesquisador que desenvolva sistematicamente um saber
educacional que justifique suas práticas educativas assim como as situações educativas
constituídas através de tais práticas (CARR & KEMMIS, 1988). Este professor, de sujeito
passivo, consumidor de ações formativas que conduziam seus trabalhos nas escolas, ou como
“obreiro de uma fábrica” (ELLIOTT, 1990), passa a ser reconhecido, sob a perspectiva reflexiva
e por meio da pesquisa-ação, como agente capaz de promover mudanças sociais.
Como já enunciei, com o resgate das obras de John Dewey no início da década de 1980,
passa-se a reconhecer o professor como prático reflexivo e a riqueza da experiência que reside
na prática dos bons professores. Na perspectiva de cada professor, significa que o processo de
compreensão e melhoria do seu ensino deve começar pela reflexão sobre a sua própria
~ 72 ~
experiência e que o tipo de saber inteiramente tirado da experiência dos outros (mesmo de
outros professores) é, no melhor dos casos, pobre e, no pior, uma ilusão (ZEICHNER, 1993).
Para assumir essa postura promotora de pesquisa-ação-crítico-reflexiva, Zeichner
(1993) resgata em Dewey três atitudes necessárias:
1ª) Abertura de espírito – refere-se ao desejo ativo de se ouvir mais do que uma opinião, de se
atender a possíveis alternativas e de se admitir a possibilidade de erro, mesmo naquilo em que
se acredita com mais força;
2ª) Ponderação cuidadosa das consequências de uma determinada ação – deve-se ser
responsável, perguntando-se porque se está fazendo o que se está fazendo, de modo que se
ultrapasse as questões de utilidade imediata e se pense de que maneira se está obtendo resultado
e para quem. Esta atitude gera pelo menos três tipos de consequências: consequências pessoais
– os efeitos do seu ensino nos autoconceitos dos seus alunos; consequências acadêmicas – os
efeitos do seu ensino no desenvolvimento intelectual dos alunos; e consequências sociais e
políticas – os efeitos do seu ensino na vida dos alunos;
3ª) Sinceridade – a abertura de espírito e a responsabilidade devem ser os componentes centrais
da vida do professor reflexivo, que tem que ser responsável pela sua própria aprendizagem.
Assumir tais princípios significa compreender que a reflexão não consiste em um
conjunto de passos ou procedimentos específicos a serem usados pelos professores
(ZEICHNER, 1993, p. 18). Pelo contrário, é uma maneira de encarar e responder aos
problemas, uma maneira de ser professor.
Aspectos constitutivos da pesquisa-ação colaborativa
Quando a busca de transformação é solicitada pelo grupo de referência à equipe de
pesquisadores, a pesquisa tem sido conceituada como pesquisa-ação colaborativa,
onde a função do pesquisador será a de fazer parte e cientifizar um processo de
mudança anteriormente desencadeado pelos sujeitos do grupo.
(PIMENTA, 2005a)
Ao encontro da formação de grupos de professores de espírito aberto, responsáveis e
sinceros, tem-se buscado práticas de pesquisa que privilegiem processos de intervenção que
visem transformar determinadas realidades, emancipando os indivíduos que dela participam. É
diante desse contexto que a pesquisa-ação em educação começa a adquirir intencionalidade
~ 73 ~
claramente emancipatória, via reconhecimento da dimensão política que a pesquisa assume no
âmbito do desenvolvimento profissional docente (IBIAPINA, 2008).
A pesquisa-ação desenvolvida com o propósito de transformar as escolas em
comunidades críticas de professores que problematizam, pensam e reformulam práticas, tendo
em vista a emancipação profissional, postula o professor como um sujeito que compartilha com
os pesquisadores a atividade de transformar as práticas, a escola e a sociedade. Portanto, as
pesquisas deixam de investigar sobre o professor e passam a investigar com o professor,
trabalhando na perspectiva de contribuir para que os docentes se reconheçam como produtores
de conhecimentos, da teoria e da prática de ensinar, transformando, assim, a compreensão e o
próprio contexto do trabalho escolar (IBIAPINA, 2008).
A perspectiva sobre os objetivos da abordagem de pesquisa-ação defendidos por
Thiollent (1986) - articular o desenvolvimento profissional dos professores envolvidos;
analisar os processos de construção dos saberes pedagógicos pela equipe escolar; estimular
mudanças na cultura organizacional escolar; e oferecer subsídios para as políticas públicas
de formação contínua de professores – me remete a uma dimensão importante de ser
explicitada, que diz respeito a: como fazer pesquisa-ação?
Diante dessa questão, e considerando o potencial formador da prática (da pesquisa da
prática) assumo que a mediação entre pesquisa educacional e ação reflexiva docente é a base
de nossa epistemologia da prática, pois o profissional não pode constituir seu saber-fazer,
senão a partir de seu próprio fazer (PIMENTA, 2005a, p. 17), o que me leva a crer ser possível
desenvolver a pesquisa/formação docente por meio de um processo em forma de espiral de
ciclos auto-reflexivos51 de:
Planejamento de uma mudança;
Ação e observação do processo e das consequências dessa mudança;
Reflexão sobre esses processos e suas consequências, e então;
Replanejamento, e assim por diante.
51 KEMMIS & WILKINSON in PEREIRA & ZEICHNER, 2011.
~ 74 ~
Fig. 03 – A espiral de ciclos auto-reflexivos na pesquisa-ação.
Kemmis & Wilkinson (2011) advertem que o processo de pesquisa-ação não é tão
organizado como essa espiral de ciclos autocontidos de planejamento, ação e observação e
reflexão sugere.
Esses estágios sobrepõem-se e os planos iniciais rapidamente tornam-se obsoletos à
luz do aprendizado a partir da experiência. Na verdade, o processo é provavelmente
mais fluido, aberto e sensível. O critério para avaliar o sucesso da pesquisa-ação não
se trata de os participantes terem ou não seguido os passos fielmente, mas se eles têm
um senso definido e autêntico do desenvolvimento e da evolução de suas práticas, se
deu entendimento acerca de suas próprias práticas e das situações em que exercem
tais práticas. (p. 44)
A forma como concebo particularmente a pesquisa-ação a situa em uma dimensão
colaborativa, em que os professores devem, eles próprios, constituírem-se como pesquisadores
de sua prática, podendo ou não ter um auxiliar externo, geralmente um professor-pesquisador
universitário (FIORENTINI & LORENZATO, 2006). A dinâmica de espiral reflexiva não se
constitui, nessa perspectiva, uma ação solitária, mas conjunta, compartilhada, formada por
ciclos sucessivos de:
Planejamento Ação Observação Registros Sistematização/Reflexão/Análise
Avaliação Planejamento de novas ações Novas ações Novas observações
Novos registros Novas análises e avaliações e assim por diante ...
~ 75 ~
Essa concepção de pesquisa-ação colaborativa deve ser seguida com cautela, posto que
Fiorentini & Lorenzato (2006) nos advertem dos cuidados que se deve ter em relação ao
emprego do termo colaboração que não pode ser confundido com outras formas de trabalho
coletivo como, por exemplo, o cooperativo.
Embora as denominações “cooperação” e “colaboração” tenham o mesmo prefixo co,
que significa ação conjunta, elas diferenciam-se pelo fato de a primeira ser derivada
do verbo latino operare (operar, executar, fazer funcionar de acordo com o sistema) e
a segunda de laborare (trabalhar, produzir, desenvolver atividades tendo em vista
determinado fim). Assim, na cooperação, alguns ajudam os outros (co-operam),
executando tarefas cujas finalidades geralmente não resultam de negociação conjunta
do grupo, podendo haver subserviência de alguns em relação aos outros e/ou relações
desiguais e hierárquicas. Na colaboração, as relações, portanto, tendem a ser não-
hierárquicas, havendo liderança compartilhada, confiança mútua e co-
responsabilidade pela condução das ações. (FIORENTINI & LORENZATO, 2006, p.
115)
Como forma de mapear os múltiplos sentidos e modalidades de trabalho coletivo e suas
relações com a pesquisa, em particular os sentidos dados à pesquisa-ação e à pesquisa-
colaborativa, Fiorentini (2012, p. 58) define o seguinte esquema:
Fig. 04 – Síntese dos múltiplos sentidos e modalidades de trabalho
coletivo e suas relações com a pesquisa.
O pesquisador adverte, porém, que apesar de a representação ser uma simplificação da
realidade, seu esboço pode nos ajudar a compreender as diversas formas de trabalhos coletivos,
~ 76 ~
com a ressalva de que na prática tais distinções nem sempre são possíveis ou perceptíveis. Por
isso o autor prefere representa-las por sobreposição, a fim de retratar possíveis zonas de
indefinição.
Adotar, portanto, uma perspectiva colaborativa para a pesquisa-ação é condiciona-la a
um conjunto de práticas diferenciadas que Araújo (2004) denomina “cultura de coletividade”
que, uma vez instaurada, as pessoas nela envolvidas passam a reconhecer o que sabem, o que
os outros sabem e o que todos não sabem - atitudes que resultam na busca de superação dos
limites do grupo. Nono & Mizukami (2001), por sua vez, salientam a importância do
compartilhamento de experiências entre professores, explicando que pode favorecer o
desenvolvimento da destreza na análise crítica, na resolução de problemas e na tomada de
decisões.
Convergências e projeções da Composição I
A problemática da formação docente em nosso país tem suscitado inúmeras pesquisas,
as quais inevitavelmente passam pela questão da posição assumida pelos professores neste
processo. Compreender os aspectos que envolvem esta questão implica uma imersão
epistemológica complexa, posto que sendo a formação docente um dos pilares de sustentação
da educação, acabamos percebendo que ao longo do tempo houve sobre o tema uma grande
variação de sentidos, pois, mudam-se as políticas e a sociedade e, com elas, mudam também as
perspectivas conceituais e as práticas relativas à formação docente.
Em cada tempo as características sociais, políticas e econômicas dão suportes
diferenciados à formação docente. Com efeito, no decurso de um pouco mais de um século a
ciência e a educação variaram do paradigma de ciência moderna, com fortes marcas no início
do século XX, em que a realidade era vista como existindo em si mesma, separada do sujeito
do conhecimento (MIZUKAMI et al., 2002) passando, a partir dos anos 70, ao paradigma do
processo-produto, em que os pesquisadores procuravam descobrir comportamentos genéricos
dos professores na busca de modelos de eficiência (FERREIRA, 2003). Também houve, na
década de 80, o chamado paradigma naturalista-interpretativo em que passou a predominar a
formação com foco no desenvolvimento cognitivo e moral dos professores. E finalmente, nos
últimos trinta anos, com a massificação do paradigma comunicativo-dialógico, que tem como
~ 77 ~
base a racionalidade comunicativa, em que o ensino se faz pela construção e reconstrução da
identidade pessoal e profissional dos sujeitos que interagem em determinados ambientes de
aprendizagem (FELDMANN, 2009), tem-se considerado o professor como sujeito com
participação ativa e, em alguns casos colaborativa, na sua formação e desenvolvimento
profissional.
Nessa trajetória se modifica também o lócus dessa formação, deslocando-se das
Universidades e centros de pesquisa e formação superior para o chão da Escola, depois desta
para ambientes de interface entre as duas instituições, pressupondo uma relação mais efetiva e
produtiva à formação docente. Articulam-se nesse processo a formação inicial de professores -
por meio de estágios, práticas de ensino e projetos de iniciação à docência -, bem como a
chamada formação continuada.
Diante dessa perspectiva, tem-se destacado pesquisas que reconhecem as iniciativas de
professores do ensino básico que assumem o papel de reflexivos sobre suas práticas, isto é, em
que os professores tomam maior consciência de seus próprios atos, interpretam a reflexão como
conhecimento do conhecimento (LIBANEO, 2006), refletem sobre suas experiências e ideias,
formando teorias que orientam suas práticas (ZEICHNER, 1993).
Neste interim o conceito de experiência tem sido utilizado em ciências e educação sob
múltiplos sentidos. Ainda que, em muitas situações se compreenda experiência como sinônimo
de prática, o emprego que abordo neste trabalho rompe com a noção de ação/prática. Muito
embora se subtenda a prática como inerente ao contexto que assumo, visto que se aproxima do
sentido de acontecimento, que não deve ser, contudo, confundida com este. Mesmo que a
experiência seja constituída, nos termos de Dewey (2011), por uma situação ou conjunto de
situações.
O sentido de experiência que atribuo às situações estudadas neste trabalho não se refere,
necessariamente, ao que se faz, ao que se produz, mas ao que nos passa, nos acontece e,
essencialmente, ao que nos marca. Isto é, a perspectiva aqui assumida não procura situar a
noção de experiência vinculada, exclusivamente, ao sentido de experimento ou método, de um
plano inteligível, racional, lógico e universalizável. Pelo contrário, abrange reflexões que,
embora sejam possíveis projetar, planejar, perspectivar, ainda assim devem dar margem à uma
lógica do flexível, volátil, contextual, finito, singular.
Neste sentido, a experiência é algo que nos passa, que nos toca, o que nos forma e
transforma.
~ 78 ~
A experiência requer: parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar
mais devagar, olhar mais devagar, escutar mais devagar para sentir, sentir mais
devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender
a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir
os olhos e ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os
outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, dar-se tempo e espaço. (LARROSA,
2002, p. 24)
A experiência suscita, portanto, uma introspecção cuidadosa. Tal situação, requer
consideração sobre o sujeito desta experiência. Para Dewey (2011), este sujeito é um ser
pensante, protagonista porque de algum modo suas atitudes, desejos e propósitos mudam as
condições objetivas. Contudo, é preciso reconhecer que as circunstâncias ambientais também
modelam a experiência presente, não estando subordinadas às condições internas do sujeito.
Existe, pois, uma interação que atribui direitos iguais às condições objetivas e condições
internas nas situações de experiência. Uma experiência é sempre o que é por causa de uma
transação acontecendo entre um indivíduo e o que, no momento, constitui seu ambiente.
Outra atenção necessária, é devida ao princípio de continuidade da experiência ou
contínuo experiencial, que significa que toda experiência tanto toma algo das experiências
passadas quanto modifica de algum modo a qualidade das experiências que virão (DEWEY,
2011, p. 36). Este princípio nos possibilita, enquanto educadores, operar concretamente sobre
algumas circunstancias ambientais que conduzem as experiências de nossos alunos
perspectivando seus crescimentos.
A manifestação objetiva deste crescimento, que ora assumo por aprendizagem, ocorre
quando um indivíduo manifesta uma nova relação para com um determinado objeto de saber
institucional (CHEVALLARD, 1991). Este objeto de saber identifica-se, na perspectiva da
formação de professores, com uma prática comum de uma comunidade educativa. Daí dizer-se
que a aprendizagem da docência constitui uma aprendizagem situada em uma prática (LAVE
& WENGER, 1991), A aprendizagem da docência constitui, neste sentido, um processo
denominado por Dubar (1997) de socialização, que implica a constituição de uma identidade
institucional e, de modo específico, identidade profissional que, nos termos de Chevallard
(1991, 1992, 2009), ocorre mediante situações de sujeitamento do indivíduo em relação às
praxeologias52 próprias de uma instituição.
52 Abordarei mais detidamente o conceito de praxeologia na composição de meta-análise.
~ 79 ~
A identidade profissional docente, em seu turno, constitui um processo complexo e
contínuo de experiências de aprendizagem que envolvem o professor como uma totalidade
humana permeada de sentimentos, desejos, utopias, saberes, valores e condicionamentos
sociais e políticos (FIORENTINI & CASTRO, 2003). Esse processo contínuo de experiências
de aprendizagem e sujeitamento, que acontece ao longo da vida do professor, que envolvem
também, conforme García (1999), a formação inicial, constitui uma caminhada que
conceituamos por desenvolvimento profissional docente (DPD).
As evidências de desenvolvimento profissional do professor não são algo simples de se
observar, visto que constituem-se em um processo complexo de mudança em relação a duas
dimensões, as quais sejam: o conteúdo e a forma. O conteúdo configura-se como um
componente mais conceitual da cultura docente institucional. Consiste pois, nas atividades
substantivas, valores, crenças, hábitos, suposições e formas de fazer as coisas, as quais
compartilhadas por um grupo de professores ou por uma coletividade mais ampla de docentes.
A forma da cultura docente consiste nos modelos de relação e formas de associação
características entre os participantes dessa cultura (HARGREAVES, 1998b). A forma pode
ser percebida nas condições concretas em que se desenvolve o trabalho do professor, mais
especificamente no modo como este sujeito articula suas relações com os demais colegas
(FARIAS, 2006), com seus alunos e com o saber.
O meio pelo qual os professores se apropriariam mutuamente destes conteúdos e formas,
passa: pela participação ativa nas práticas sociais do grupo, marcada, de um lado pelo
compartilhamento de experiências e problemas relativos à prática pedagógica de ensinar e
aprender em sala de aula e aos múltiplos constrangimentos e possibilidades do trabalho
docente e, de outro, pela realização de leituras, reflexões, investigações e escritas sobre esse
modo de ser-estar na profissão docente (FIORENTINI, 2009, 2013); e pela reificação, que
sugere o processo de dar forma e sentido à experiência humana mediante a produção de objetos
tais como artefatos, ideias, conceitos ou textos escritos (WENGER, 2001).
Entretanto, embora se possa afirmar que uma vez efetivada a socialização, houve
aprendizagem docente mediada pela participação ativa e reificação, meus estudos sobre as
experiências e processos de socialização, de sujeitamento e aprendizagem do ensino,
evidenciam que a identidade profissional não se constitui apenas pela ocorrência
interdependente da participação ativa e reificação. Há, ainda, a necessidade da ocorrência de
uma conversão catastrófica, que constitui o ápice do processo de socialização mediante
~ 80 ~
determinado saber, de modo que seja possível distinguir, na trajetória do contínuo experiencial
do sujeito, um intervalo de contorno ou vizinhança em que ocorre um insight ou conversão
catastrófica. Esta conversão ocorre mediante a mudança de sentido atribuída pelo sujeito em
relação a determinado objeto devido tornar-se sensível a algum aspecto pregnante nas
experiências passadas que, por cumulação ou reorganização, promovem uma devolução ao
sujeito na forma da conversão. Esta mudança se apresenta como uma mudança de forma que
constitui o desenvolvimento profissional deste sujeito.
As conversões geralmente são identificadas com os ritos de passagem e envolvem
passos efetivos para a ocorrência de aprendizagem e consequente mudança de relação do sujeito
para com a prática docente. Nestes termos, o sujeito consolidará o processo de socialização ao
efetivar uma mudança tipo biográfico (identidade para si) e uma mudança do tipo relacional,
sistemático, comunicacional (identidade para outro). A esse processo de mudança Dubar
(1997) chama de processo de incorporação da identidade, que implica uma nova relação frente
a si e em relação ao grupo de referência para o qual se constituiu a mudança psicossocial durante
a trajetória vivida.
O trabalho investigativo aqui registrado incidirá, pois, sobre a identificação dos
processos de aprendizagem que constituem o percurso formativo e socialização dos professores
de matemática em formação inicial. Esta ação implica a devida identificação e categorização
das tipologias de aprendizagem manifestadas nas experiências, relativas às dinâmicas
colaborativas de investigação da própria prática, e de vivências de outras situações ocorridas
no ambiente de interface entre a Universidade e Escola, a serem destacadas no campo que
denominarei de atividades extracurriculares.
A metodologia de promoção da ação desenvolvida neste trabalho é a da pesquisa-ação
crítico colaborativa, entendida por mim como capaz de mobilizar o grupo de professores do
PIBID em atividades de reflexão sobre suas práticas e promoção de novas ações que orientam
o processo de socialização destes sujeitos no sentido de sua mudança pessoal e construção de
identidades profissionais docentes, bem como de mudanças na ordem social, desencadeadas por
estes sujeitos em seus projetos de intervenção e experiências junto à comunidade escolar. As
descrições dos percursos formativos construídos e experiências vivenciadas são objetos de
consideração e análise nas composições subsequentes.
~ 81 ~
COMPOSIÇÃO II
Nesta composição apresento os contornos metodológicos que
caracterizam as experiências formativas de primeira ordem vivenciadas
pelos integrantes do grupo colaborativo em investigação. Situo os
processos vivenciados como uma pesquisa-ação colaborativa,
apresento uma descrição dos ambientes de formação, bem como
discorro sobre os objetivos institucionais da formação e problematizo a
formação profissional dos professores como um percurso complexo que
se inicia mesmo antes da graduação e que durante a formação inicial apresenta características formativas oficiais (disciplinas específicas e
didático-pedagógicas) e extracurriculares (formais e informais).
Finalizo a composição com uma caracterização do percurso formativo
no PIBID – situações de formação, embasamentos teóricos das ações e
principais instrumentos de análise utilizados –, com o traço do perfil
dos colaboradores/sujeitos investigados e delineio as tipologias de
aprendizagem evidenciadas nos processos colaborativos desenvolvidos
pelos sujeitos.
~ 83 ~
COMPOSIÇÃO II
CONTORNOS METODOLÓGICOS DA
PESQUISA
A pesquisa ora apresentada orienta-se pela perspectiva da pesquisa-ação colaborativa e
trata do relato reflexivo sobre uma investigação nos moldes da pesquisa qualitativa com vista a
caracterização da formação docente como pilar da educação, em específico, como elemento
articulador da relação entre a Universidade e Escola, e foca as evidências de aprendizagem
resultantes de processos de investigação/reflexão da própria prática de professores de
matemática em formação inicial. Com o objetivo de identificar, descrever e analisar a
aprendizagem docente, os processos de aprendizagem e o desenvolvimento profissional desses
professores, assumi a postura colaborativa e seus métodos de formação e condução de grupos,
os quais descrevo a seguir.
Contornos institucionais e empíricos da pesquisa de primeira ordem: a
constituição do grupo e a Pesquisa-Ação Colaborativa (PAC)
O Grupo Colaborativo de Educação Matemática (GCEM)53 tem desenvolvido suas
ações a partir de um subprojeto de Matemática de formação de multiplicadores em educação
colaborativa de matemática e se articula a um projeto institucional referente à relação
Universidade e Escola, enfocando desafios e caminhos para a form(ação) de professores
no contexto amazônico. O subprojeto de Matemática referido visa o atendimento de uma
demanda social de professores de matemática por meio da formação de qualidade de futuros
professores de matemática e o aprimoramento do ensino daqueles que já se encontram em
atuação na rede pública.
53 Institucionalizado em junho de 2011 pela Universidade do Estado do Pará, mais especificamente, no Campus
Universitário de Igarapé-Açu/PA, interior da Amazônia Paraense.
~ 84 ~
O GCEM possui entre suas atribuições: a promoção de ações diferenciadas de ensino da
matemática para os alunos e professores da rede pública do município, e a preparação de
professores em formação inicial por meio de atividades que se ambientam na interface entre
Universidade e Escola. Isto se dá, ora na Universidade participando de atividades formativas
de natureza extracurricular (reuniões, encontros, eventos), ora desempenhando atividades de
observação e/ou intervenção nas escolas públicas conveniadas (regências de classe, oficinas e
minicursos). As escolas que mantêm relação institucional com o GCEM abrangem juntas um
percentual de alunos equivalente a 10% da população do município54 no qual se situa.
Essas escolas se situam na área urbana da cidade de Igarapé-Açu, que está localizada às
margens da extinta Estrada de Ferro de Bragança, pertence à mesorregião nordeste paraense, e
está a 110 km da capital do Estado, Belém. A população do município está disposta em zona
urbana com cerca de 21.013 habitantes e zona rural em torno de 12.983 habitantes. A economia
do município é voltada basicamente para a agricultura familiar, sendo a mandioca a principal
cultura agrícola cultivada nesta categoria, com baixos níveis tecnológicos. Outros meios
econômicos do município provêm da indústria do dendê e do comércio, este último sendo
responsável por grande parte dos empregos no município. Investe-se relativamente pouco no
turismo, muito embora no município haja grande potencial devido suas típicas festividades
culturais e religiosas, bem como um belo conjunto de igarapés (FREITAS, 2005).
É neste contexto pitoresco e acolhedor que desenvolvemos nossas ações educacionais
com perspectivas a melhoria dos índices nas avaliações institucionais (Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica - IDEB) e na qualificação dos professores para uma
atuação mais adequada às novas demandas sociais.
O grupo GCEM, embora reflita sobre sua prática como uma dinâmica colaborativa, por
receber incentivo financeiro da CAPES, necessita cumprir dois conjuntos de objetivos
institucionais:
Objetivos Institucionais da CAPES:
a) incentivar a formação de docentes em nível superior para a
Educação Básica;
b) contribuir para a valorização do magistério;
c) elevar a qualidade da formação inicial de professores nos cursos de
licenciatura, promovendo a integração entre a Educação Superior e a
Educação Básica;
54 Que segundo o último senso conta com uma população de 33.996 habitantes (dados do CENSO do IBGE/2010).
~ 85 ~
d) inserir os licenciandos no cotidiano de escolas da rede pública de
educação, proporcionando-lhes oportunidades de criação e
participação em experiências metodológicas, tecnológicas e práticas
docentes de caráter inovador e interdisciplinar que busquem a
superação de problemas identificados no processo de ensino-
aprendizagem;
e) incentivar escolas públicas de Educação Básica, mobilizando seus
professores como coformadores dos futuros docentes e tornando-as
protagonistas nos processos de formação inicial para o magistério; e
f) contribuir para a articulação entre teoria e prática necessárias à
formação dos docentes, elevando a qualidade das ações acadêmicas
nos cursos de licenciatura. (BRASIL, Portaria 260 de julho de 2010)
Objetivos Institucionais do Projeto PIBID/UEPA:
a) A formação dos licenciandos da UEPA, possibilitando a esses
alunos experiências significativas que valorizem a carreira do
magistério;
b) A valorização da escola pública como espaço social para a
construção do conhecimento na educação básica do sistema público de
ensino;
c) O fortalecimento da universidade pública como determinante na
formação de professores [...] integrando ensino, pesquisa e extensão;
d) O trabalho continuado na formação dos professores da rede pública, proporcionando práticas docentes inovadoras, articuladas
com a realidade local da escola;
e) A divulgação dos resultados decorrentes das ações desenvolvidas
em eventos científicos, encontros e palestras;
f) A integração de áreas de conhecimento, focadas para o contexto
socioeducacional, cultural, territorial, político-econômico e ambiental
amazônico, buscando de forma integrada e interdisciplinar, contribuir
com o diálogo e articulação entre universidade e educação básica
públicas, tendo em vista a qualidade social. (Projeto Institucional
PIBID/UEPA – Maio de 2011)
Ao refletir sobre os encaminhamentos assumidos em nosso grupo, vislumbrei o desafio
de nos distanciarmos da pesquisa técnica e transcendermos da pesquisa prática à pesquisa
emancipatória55. Entendendo ser este um caminho complexo, mas que ilustrava meu desejo de
55 A pesquisa técnica indica que a presença do pesquisador como agente externo ainda é muito forte. Nesta
modalidade o pesquisado é comumente chamado de participante, as teorias guiam os passos dos participes, a
comunicação e informação predominam mais que a cooperação e há um distanciamento da prática por parte do
pesquisador para melhor compreende-la e construir suas teorias. A perspectiva prática surge a partir do
pensamento de que o professor pode se transformar em pesquisador de sua prática, como alternativa à perspectiva
técnica. Nessa modalidade existem preocupações comuns entre os participes e pesquisadores, mas não há nenhum
desenvolvimento sistemático do grupo como comunidade reflexiva. A prática guia os passos dos participes e a
cooperação predomina sobre a colaboração, havendo uma supervalorização dos conhecimentos tácitos e a
teorização dos saberes da prática. Na pesquisa emancipatória as decisões são tomadas coletivamente e as relações
~ 86 ~
colaborar para a construção de uma educação de qualidade que desse retorno à comunidade em
que me inseria, formei a equipe assumindo por referência os grupos colaborativos como o grupo
de Prática Pedagógica em Matemática (PraPem) e Grupo de Sábado (GdS) da UNICAMP. Com
base nesses referenciais e perspectivando o cumprimento das metas e objetivos institucionais,
bem como o enfrentamento das problemáticas da relação entre Universidade e Escola, me foi
possível estruturar uma metodologia de trabalho em que pudéssemos desenvolver nossas
pesquisas e ações de ensino da matemática a partir de eixos de trabalho/pesquisa.
A perspectiva de trabalho por eixos nos surgiu da necessidade de coadunarmos as ações
de pesquisa e ensino com base nos referenciais teóricos e metodológicos que nos eram
disponíveis e que fossem de relativo domínio dos integrantes do grupo. Também contribuíram
para esta estruturação as intenções de pesquisa dos colaboradores, que já vinham da formação
específica com esboços previamente orientados por determinada tendência metodológica com
vista à produção de seus trabalhos de conclusão de curso (TCC).
Por termos criado o hábito de tratarmos as decisões do grupo democraticamente, os
temas das pesquisas se tornaram objeto de problematização e, invariavelmente, mediante
negociações sofreram modificações, sobretudo que se adequassem a princípios como: 1) as
pesquisas deveriam versar sobre questões emergentes das salas de aula e não serem impostas
a este ambiente; 2) os trabalhos deveriam ser orientados pelo coordenador do grupo e co-
orientados pelos respectivos supervisores dos bolsistas e; 3) toda produção do grupo deveria
assumir o princípio da publicização, isto é, deveria ser publicado e retornar às escolas na
forma de ações educativas.
Os eixos escolhidos por este processo de negociação foram: a Formação Colaborativa
e Didática e Ludicidade como eixos estruturantes transversais; a Informática e Educação,
Modelagem Matemática, Matemática e Avaliação e Matemática e Inserção Social como eixos
independentes de pesquisa.
de poder ficam diluídas pelas negociações. Isso pressupõe um movimento dialético entre teoria e prática e
movimentos de revalidação dos conhecimentos teóricos e práticos por meio da reflexividade crítica em que a
colaboração e a coprodução predominam (CARR & KEMMIS, 1988).
~ 87 ~
Fig. 05 – Eixos de Trabalho/Pesquisa do GCEM.
A Formação Colaborativa e a Didática e Ludicidade surgem como eixos transversais e
articuladores por estarem presentes na concepção teórica do subprojeto de área submetido à
agência financiadora, e assim permaneceram dando suporte teórico aos projetos e garantindo
certa coesão/identidade epistemológica ao grupo. Uma das propostas iniciais da formação do
GCEM era a de atender a uma demanda de produção de materiais e atividades lúdicas que
auxiliassem o trabalho do professor da escola pública no ensino da matemática, e para isso os
integrantes do grupo iriam investigar as necessidades dos alunos, reuniriam para discutir
estratégias de ação e construiriam suas propostas com base nessas observações e discussões.
Contudo, a complexidade dos problemas da sala de aula observados e os anseios pessoais dos
colaboradores, tencionaram as práticas investigativas para um outro sentido, criando os eixos
“independentes entre si” de pesquisa em Informática e Educação, Modelagem Matemática,
Matemática e Avaliação e Matemática e Inserção Social. Considero atualmente que a decisão
de readequarmos as pesquisas foi acertada, visto que o que se produziu se tornou o mais
apropriado para atender às necessidades formativas de ambos os grupos – alunos da escola
pública e os acadêmicos.
Os eixos de trabalho/pesquisa construídos deram origem aos seguintes temas de
pesquisa:
~ 88 ~
Quadro 01 – Projetos de Pesquisa defendidos pelo PIBID de 2011 a 2012.
A CONCEPÇÃO DOS PROFESSORES SOBRE O USO DOS JOGOS NO ENSINO DA MATEMÁTICA (Ss6) *
INFORMÁTICA EDUCATIVA: CONTEXTO E ASPECTOS OBSTACULARIZANTES DO USO DO COMPUTADOR NAS ESCOLAS PUBLICAS DE IGARAPÉ-AÇU (Ss 7)
A BELEZA NA MATEMÁTICA: UMA PROPOSTA MOTIVACIONAL PARA O ENSINO DA MATEMÁTICA (Ss8)
O DIÁLOGO COMO INSTRUMENTO DE IDENTIFICAÇÃO DE ERROS DECORRENTES DE OBSTÁCULOS DIDÁTICOS E EPISTEMOLÓGICOS (Ss9)
ABORDAGENS DIDÁTICAS E METODOLÓGICAS NO TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO PARA ALUNOS DO 9º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL (Sena e Ss2)
REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA DOCENTE DOS PROFESSORES DE MATEMÁTICA FRENTE À INCLUSÃO DE ALUNOS COM NECESSIDADES EDUCACIONAIS ESPECIAIS NAS ESCOLAS PÚBLICAS MUNICÍPIO DE IGARAPÉ-AÇU (Silva)
A INFLUÊNCIA DA LINGUAGEM NA APRENDIZAGEM DA MATEMÁTICA: UM ESTUDO DE CASO SOBRE O TRINÔMIO PROFESSOR/ALUNO/CONHECIMENTO (Queiroz e Ss4)
RELATOS DE UMA EXPERIÊNCIA DE ENSINO DA GEOMETRIA POR MEIO DE MATERIAIS REAPROVEITÁVEIS (Ss10)
EXPERIÊNCIAS DE ENSINO DA MATEMÁTICA POR MEIO DE REDES DE FORMAÇÃO EM INFORMÁTICA EDUCATIVA (Ss11 e Ss12)
DOBRADURAS E MODELAGEM: UMA NOVA PERSPECTIVA PARA O ENSINO DE GEOMETRIA (Ss13)
DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM EM MATEMÁTICA: UM ESTUDO DE CASO EM UMA ESCOLA PÚBLICA DE IGARAPÉ-AÇU (Soares e Ss3)
FORMAS E FORMALIZAÇÕES: O ENSINO DE POLINÔMIOS PARA ALUNOS DO 8º ANO POR MEIO DE MATERIAIS CONCRETOS (Ss15 e Ss16)
FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA: REFLEXÕES SOBRE O SER E CONSTITUIR-SE COMO DOCENTE (Ramos e Ss17)
AS CONTRIBUIÇÕES DO TEOREMA DE TALES PARA O ENSINO DA MATEMÁTICA: DA EPISTEMOLOGIA DA GEOMETRIA À INFORMÁTICA EDUCATIVA (Leite e Ss18)
CONCEPÇÃO DOS PROFESSORES DE MATEMÁTICA DO ENSINO MÉDIO NA REDE MUNICIPAL DE ENSINO EM IGARAPÉ-AÇU SOBRE CURRÍCULO (Ss19 e Ss20)
MODELAGEM MATEMÁTICA E CONSCIENTIZAÇÃO AMBIENTAL: UMA EXPERIÊNCIA INTERDISCIPLINAR COM ALUNOS DO 7º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL EM IGARAPÉ-AÇU (Ss21 e Ss22)
AS CONCEPÇÕES DOS PROFESSORES E ALUNOS SOBRE AVALIAÇÃO (Ss23 e Ss24)
Quantidade total 17
* Ss – Sujeitos secundários.
Fonte: Relatório do Subprojeto de Matemática do PIBID-UEPA/2012.
As pesquisas de primeira ordem, portanto, se configuram dentro de uma abordagem
qualitativa (RIBAS, 2004) associadas à interpretação dos fatos estudados (atividades docentes
em contextos de experiências colaborativas) com fins à obtenção de respostas que dessem
sentido às problemáticas do ensino e da aprendizagem da matemática. Expressaram-se também
pelo gênero de Pesquisa Prática ou Pesquisa-Ação por estarem voltadas à intervenção em uma
realidade social (DEMO, 2006) com objetivos explicativos, pois, além de registrar, analisar,
classificar e interpretar os fenômenos estudados, procuraram identificar seus fatores
determinantes e perspectivaram desenvolver ações com fins a uma mudança da realidade social
(ZEICHNER, 1993).
~ 89 ~
Uma vez inseridos no contexto da pesquisa (as salas de aula), para operacionalizar a
reflexividade dos professores integrantes do GCEM no contexto de suas experiências na
perspectiva da pesquisa-ação colaborativa, sistematizamos os processos interativos no grupo
por meio de três ações reflexivas: a descrição, a informação e o confronto, que desencadeiam
a quarta ação, a reconstrução (IBIAPINA, 2008, p. 73).
A Ação Descritiva era desencadeada pela questão: O que fiz? Nessa etapa os professores
(bolsistas e supervisores) descreviam suas práticas docentes de modo detalhado. Isso levava ao
distanciamento das ações, estimulando a descoberta das razões relativas às escolhas
feitas/observadas no decorrer das atividades docentes.
A Ação de Informar era exercitada por meio da elaboração de respostas às questões: O
que agir desse modo significa? O que nos levou a agir desse modo? O que nos motivou a
realizar essas ações? Qual o sentido dessas ações? De onde procedem historicamente as ideias
incorporadas na prática de ensino? Com base em que e quem ocorreu a apropriação dessas
ideias? Por que essas ideias foram utilizadas?
Esse segundo momento possibilitou ao grupo refletir sobre o significado das escolhas
feitas e descobrir se os conhecimentos utilizados no desenvolvimento da atividade docente eram
espontâneos ou sistematizados, explícitos ou não. Esses questionamentos possibilitaram aos
professores discutir sobre conceitos necessários para a condução do processo de ensino-
aprendizagem.
A Ação de Confrontar foi o momento em que o grupo analisou as práticas, visando
relacioná-las ao contexto cultural, social e político em que estava implicado, de maneira que
percebemos que elas não eram resultado de escolhas idiossincráticas, mas de condições
históricas que definem a forma como nós, profissionais, concebemos a situação de trabalho na
qual nos envolvemos.
O confronto envolveu não somente a busca das inconsistências das práticas e
experiências vivenciadas, entre preferências pessoais e modos de agir, como também remeteu
o grupo a questões políticas como, por exemplo, a que interesses nossas práticas estavam
servindo? No ato de confrontar me foi possível perceber como os discursos e as práticas que
ocorrem fora do ambiente escolar influenciam o modo de agir dentro dele. A reflexão sobre
esses discursos substanciou as situações que tomo por material de análise sobre a aprendizagem
docente na pesquisa de segunda ordem.
~ 90 ~
A Reconstrução constituiu o ato de reconstruir, em que buscamos alternativas para a
prática educativa na reflexão de cada ação com base nos diálogos e informações ocorridos nas
sessões reflexivas do grupo, a partir de questões do tipo: Como poderíamos organizar essa
atividade de outra maneira? Por quê? Entre outras.
As sessões reflexivas estiveram, em geral, apoiadas por técnicas, recursos,
procedimentos e estratégias utilizadas nas pesquisas sociais. Baseando-me em Ibiapina (2008),
utilizei a pesquisa-ação colaborativa e os seus procedimentos de construção de informações
para tornarem observáveis e verbalizáveis as práticas pedagógicas dos professores. Dentre esses
procedimentos me utilizei de: diálogos face a face, videoformação no contexto da pesquisa-
ação colaborativa, narrativas (auto)biográficas, observações colaborativas, sessões reflexivas
de grupo e produções acadêmicas.
Colaboradores da pesquisa
A motivação inicial para com o delineamento das tipologias de aprendizagem docente
provenientes das experiências colaborativas por parte dos professores de matemática
(profissional e em formação inicial) se fundaram no repensar sobre algumas preocupações que
fizeram parte de minha própria constituição identitária como professor de matemática, a saber:
a identificação das problemáticas da relação Universidade e Escola e os sentidos atribuídos à
formação docente na atualidade. Essas motivações, por sua vez, se articulam com o papel
assumido por cada integrante no grupo e espelham as experiências formativas e profissionais
que moldam os perfis docentes do pesquisador e dos professores que conduzem as ações do
GCEM. Deste modo, para uma adequada avaliação da aprendizagem destes professores,
apresento a seguir o perfil inicial desses colaboradores:
Professor Pesquisador, Formador ou Orientador: assume no grupo o papel de Coordenador
de Área, articulando ações de planejamento dos encontros de discussão do grupo; realiza
diagnósticos da situação de sua área de conhecimento na rede pública do estado e município;
orienta e acompanha a atuação dos bolsistas de iniciação à docência e atua conjuntamente com
os Supervisores das escolas envolvidas no âmbito do projeto que coordena, garantindo a
capacitação dos Supervisores nas normas e nos procedimentos do PIBID bem como sua
participação em eventos e em atividades de formação dos professores em formação inicial,
assegurando-lhes oportunidades de desenvolvimento profissional. O pesquisador é o
~ 91 ~
representante da academia no grupo; sendo licenciado em matemática, mestre em Educação em
Ciências e Matemática e está se doutorando também nesta área. No período da pesquisa atuava
como Coordenador do Campus Universitário em que se desenvolveu o projeto, era Professor
de Metodologia e Prática do Ensino da Matemática na mesma instituição e Professor de
Matemática da Secretaria de Educação do Estado. Possuía experiência em formação de
professores, gestão e planejamento educacional. Atuou como colaborador em diversos projetos
acadêmicos, comunitários e assistenciais, inclusive em cooperação internacional pelo
Ministério da Educação - MEC.
Professores Supervisores: Participavam do grupo quatro professores da rede pública de
ensino, sendo dois da rede municipal e dois da rede estadual, ora denominados S1, S2, S3 e S4.
Compete aos Supervisores o acompanhamento e orientação dos bolsistas em atividades
presenciais nas escolas em que atua. Os Supervisores são responsáveis pela articulação do
projeto e a gestão da escola. Seus perfis destacam a larga experiência como docentes da rede
pública de ensino, além de perfis específicos que os motivaram a participar do projeto, a saber:
S1 – Graduado em Licenciatura em Matemática e Especialista em Matemática Aplicada, este
Supervisor informou ter tido uma base fraca em matemática, mas optou por ser professor desde
a infância quando iniciara a profissão de marceneiro para sua subsistência. Atua como professor
desde 2004, embora tenha concluído a graduação apenas em 2006. Isso se deve a sua formação
do ensino médio ter se dado no magistério. É professor de matemática efetivo da rede pública
estadual e municipal de ensino no município de Igarapé-Açu desde 2008.
S2 – Graduado em Licenciatura Plena com Habilitação em Matemática (1987) e Especialista
em Matemática Básica (2002). Possui boa formação básica por ter frequentado escola
conceituada em Belém. Atua como professor efetivo da Secretaria Estadual de Educação desde
1992. Sempre envolvido em questões educacionais, participou de diversos eventos na área da e
Educação Matemática, na qual se inclinou aos processos de ensino de matemática e à
informática educativa.
S3 – Graduada em Licenciatura em Matemática (2003) e Especialista em Informática Educativa
(2003) e em Educação Matemática (2009). Atua como professora desde 2004, mas efetivou-se
na rede municipal de ensino de Igarapé-Açu em 2006. Possui experiência em formação de
professores como tutora de ensino de programa da Universidade Federal do Estado.
~ 92 ~
S4 – Graduada em Matemática e Especialista em Ensino de Ciências. Possui vinte anos de
carreira como docente da Secretaria de Ensino do Estado. Tem experiência em planejamento
educacional, tendo atuado na elaboração de projetos nas escolas em que atua.
Bolsistas: este seguimento corresponde aos acadêmicos de licenciatura em matemática do
Campus X. São estudantes residentes na região do Guamá-PA e têm por competência a
investigação do ambiente escolar sob orientação do Coordenador e Supervisores com vistas a
formação teórico-prática no âmbito da docência.
Devo salientar que as formalizações orientadas tanto pela instituição financiadora
quanto pela executora não conflitam com as perspectivas de formação do grupo em sua
dimensão colaborativa, visto que o projeto aprovado e institucionalizado se deu na forma de
concretização de uma demanda social local previamente articulada, que previa uma maior
participação da Universidade na comunidade.
Não obstante, nossas experiências em grupo têm consolidado nossos laços afetivos e
intelectuais em prol de uma formação diferenciada que nos possibilite repensar o modo como
ensinamos matemática. Essa dinâmica de encontros, debates, reflexões e atuações junto às
escolas tem nos oportunizado contagiar os acadêmicos, motivando-os e motivando-nos a
pesquisar cada vez mais os conteúdos que ensinamos e os dilemas e práticas advindos de
situações de classe.
Para fins práticos proponho neste texto, a título de exemplificação dos procedimentos
de planejamento, execução e reflexão sobre as evidências de aprendizagem e os processos que
as produzem, focar meu olhar sobre as ações reflexivas e atuação de um número de seis sujeitos
principais (Sp), sendo três professores e três professoras, ora denominados Leite, Sena, e
Ramos e Soares, Silva e Queiroz, respectivamente. Os demais interlocutores presentes no
processo de formação serão denominados sujeitos secundários ou periféricos (Ss). A escolha
dos sujeitos foi intencional e seletiva, em que assumi por critérios a participação ativa dos
sujeitos nos encontros de planejamento, formação e acompanhamento de classe, bem como da
intensidade de reificações publicizadas pelos sujeitos em encontros acadêmicos, simpósios e
congressos. Vale ressaltar, como se pode observar, que assumo tais sujeitos de pesquisa como
professores em formação inicial ou simplesmente professores, distinguindo-os dos professores
profissionais apenas por sua condição ainda de licenciandos.
~ 93 ~
Contornos didático-pedagógicos e formativos da PAC
Refletir sobre a formação docente é deveras desafiador. Isso se deve ao grande número
de estudos e publicações sobre o tema, que na atualidade objetivam buscar caminhos e
esclarecimentos sobre a prática docente e visam favorecer uma formação de qualidade aos
professores e suas práticas. Preocupou-me neste trabalho, entretanto, a construção de
procedimentos metodológicos de práticas formativas que constituíssem objetos de reflexão por
parte dos professores em formação inicial, especificamente daqueles que participaram
ativamente de nosso percurso formativo proposto junto ao Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação à Docência – PIBID.
É relevante salientar que o percurso desenvolvido, ao contrário do que geralmente se
observa em programas de formação, não foi constituído por um currículo fechado ou por
dinâmicas preestabelecidas. O projeto atendia, contudo, a alguns princípios que orientavam
nossas ações. Priorizávamos experiências que enriquecessem a formação inicial dos
professores, fortalecessem as atividades de formação e cooperação com a rede pública de ensino
do município e que melhorassem a qualidade técnica e conceitual das aulas de matemática nas
escolas parceiras. Ações essas que supunha fossem potencialmente formativas e que
propiciassem aos sujeitos uma compreensão da área em que atuam, das instituições com que
interagem e dos contextos vivenciados pelos profissionais da educação, ou mais
especificamente, os professores de matemática.
As ações e participações em dinâmicas que supúnhamos formativas e relevantes,
segundo tais critérios, deveriam ainda, por conta de recomendações institucionais da CAPES e
da própria Coordenação do projeto na UEPA, ser compatíveis com a Licenciatura, isto é, não
podíamos desenvolver atividades ou participar de qualquer ação que demandassem dos
bolsistas um período de estudos ou deslocamentos que implicassem em perdas significativas de
aulas ou que comprometessem sua dedicação ao estudo das disciplinas curriculares. Desta feita,
optamos pela lotação dos bolsistas no campo de pesquisa/ensino (Escolas) nos horários de
contra-turno às disciplinas curriculares e, em virtude de também ser professor eventual da turma
na qual se encontravam a totalidade dos bolsistas do projeto, aproveitamos algumas disciplinas
para potencializar as experiências reflexivas sobre a sala de aula. As atividades desenvolvidas
pelos bolsistas deveriam somar uma carga-horária mínima semanal de 15 horas.
~ 94 ~
Os bolsistas foram lotados em quatro escolas, duas Estaduais e duas Municipais,
priorizando-se experiências tanto em classes do Ensino Fundamental como do Ensino Médio.
O acompanhamento de classe se deu de junho de 2011 à dezembro de 2012, e teve por finalidade
a interação dos bolsistas com o ambiente escolar no qual deveriam observar e registrar em
diário reflexivo as ocorrências que lhes fossem significativas. As principais problemáticas
identificadas pelos bolsistas eram debatidas inicialmente com seus respectivos Supervisores e
depois constituíam objeto de discussão nas reuniões de grupo. Essas problematizações davam
origem a questões de investigação que geravam projetos de intervenção a serem desenvolvidos
pelos bolsistas e que, dependendo de sua complexidade, eram implementados individualmente,
em duplas ou mesmo em equipes de cinco ou seis colaboradores.
Todo projeto elaborado passava pela apreciação do grupo em sessões reflexivas e por
orientações dos Supervisores e Coordenador de Área. Cada projeto cumpria um ciclo de
reflexão para a ação, reflexão na ação e reflexão sobre a reflexão na ação (SHÖN, 2000). Era
justamente este último nível reflexivo que me dava a dimensão da experiência vivenciada pelos
envolvidos no projeto, visto que devido ao número de sujeitos a serem orientados e projetos e
serem executados, não tinha como acompanhar in loco as ações planejadas em grupo. Me valia,
pois, da fiabilidade das narrativas de meus sujeitos e tomava/tomo por evidência a consistência
de seus argumentos e compreensão do ocorrido por meio de seus relatos de experiência.
Retornando às reflexões em grupo acerca das experiências vivenciadas pelos sujeitos
nas intervenções, tínhamos em mãos grande número de informações sobre as condições dos
alunos em classe, das consistências e inconsistências das atividades propostas e das
necessidades de compreensão sobre novas questões que emergiam da prática. Púnhamos então
à busca de respostas às questões levantadas e de compreensão das situações vivenciadas. Nesta
busca, inicialmente recorríamos aos autores que nos subsidiavam no planejamento das
atividades, geralmente escritos sobre as Tendências da Educação Matemática. Todavia,
reconhecida suas insuficiências para determinado caso, empregávamos outros autores que
respondessem às nossas questões. Invariavelmente optávamos por um caráter multireferencial,
isto porque tal procedimento nos possibilitava explicitar os fenômenos investigados em sua
profundidade – em sua complexidade (MORIN, 2007).
Diante de um vasto material escrito sobre as experiências dos bolsistas, buscávamos por
espaços de divulgação de nossas reflexões. Com o objetivo de expor nossa compreensão sobre
~ 95 ~
as práticas desenvolvidas, participamos de inúmeros eventos locais, regionais e nacionais56. As
participações em eventos constituíram outro contorno de experiências formativas sobre as quais
os bolsistas avaliam ter construído diversos tipos de aprendizagem. Além dos eventos em que
tivemos oportunidade de publicar, participamos de inúmeros outros, dentre os quais os
professores em formação destacaram terem experienciado momentos significativos57.
As investigações e produções envolvendo experiências de estudo sobre a práxis escolar
ganharam maior complexidade à medida que findávamos este ciclo do projeto PIBID. De um
período de maior observação do campo e estudo dos objetos matemáticos expressos pela
preparação e inserção em sala de aula e a experiência de construção de sequências didáticas
até um período de aprofundamento nas questões emergentes da sala de aula que culminaram
com os Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) dos envolvidos, percorremos uma trajetória
rica de aprendizagem docente que delimito aqui, para efeito de estudo, como um percurso
formativo definido pelos contornos de experiências colaborativas de: Preparação para entrada
nos ambientes de colaboração, Participação em Eventos, Construção de Sequências Didáticas
e Elaboração e Execução dos Projetos de TCC.
Esquematicamente podemos associar este percurso formativo ao seguinte esquema:
Fig. 06 – Percurso de Formação do PIBID.
56 Dentre os quais se destacam as VIII e IX Semanas Acadêmicas do Campus X (Igarapé-Açu – 2011 e 2012), a
XVII Semana Acadêmica do Centro de Ciências Sociais e Educação (Belém - 2012), o XVI Encontro Nacional de
Didática e Práticas de Ensino (XVI ENDIPE) (Campinas – 2012), a 64ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC) (São Luiz - 2012) e a I Jornada de Matemática do Campus X (Igarapé-Açu -
2012) 57 A exemplo da VII Conferência Nacional sobre Modelagem Matemática na Educação Matemática (VII CNMEM)
(Belém - 2011) e do 4º Congresso Brasileiro de Etnomatemática (CBEm4) (Belém - 2012).
~ 96 ~
O diagrama apresenta um percurso de experiências formativas cujas etapas foram se
constituindo em virtude das potencialidades e necessidades formativas em contraste com
contingencias institucionais, aproveitando-se oportunidades financeiras, ocorrência de eventos,
calendários acadêmicos e escolares, disponibilidade de espaços e obrigatoriedade do
cumprimento de demandas curriculares da formação inicial dos professores envolvidos. Os
contornos de cada etapa deste percurso e suas respectivas situações de experiência serão objeto
de estudo e análise em seções subsequentes.
Contornos metodológicos do processo de meta-análise da pesquisa de
segunda ordem
Considero importante revelar que a complexidade da ação implementada - constituição
do grupo, formação dos integrantes, orientação de 17 projetos de pesquisa, exercício da
docência junto ao mesmo grupo, cumprimento de disciplinas e levantamentos de referenciais
para dar suporte às ações e reflexões sobre as ações do grupo, e a densa produção e participação
em inúmeros eventos com os colaboradores -, demandou parcela considerável do tempo
disponível para a elaboração deste relatório da pesquisa. A densidade do material reunido em
filmagens e gravações das reuniões, coletas de depoimentos em entrevistas e a reunião das
produções dos colaboradores na forma dos textos, diários e relatórios produzidos, deram-se com
base nas referências metodológicas da pesquisa de primeira ordem, implicando, pois, um maior
aprofundamento sobre as técnicas de meta-análise.
Uma intensão inicial de abordagem constituiu a de empregar os princípios da Análise
Textual Discursiva que Moraes & Galiazzi (2006, p. 118) descrevem como uma abordagem
de análise de dados que transita entre duas formas consagradas de análise na pesquisa
qualitativa que são a análise do conteúdo e a análise de discurso. Considerei pertinente o
emprego desta abordagem como uma referência para o tratamento de pelo menos dois conjuntos
de dados reunidos: os diários produzidos pelos colaboradores sobre suas experiências em sala
de aula, e as entrevistas realizadas ao final do percurso formativo, em que procurei inquirir os
professores sobre seu percurso formativo tendo por origem as suas formações no ensino básico
até o momento em que, depois de formados, assumiram posição de tutores de novos bolsistas
do projeto.
~ 97 ~
Para os dados supracitados procurei operar, inicialmente, o processo de unitarização
que consiste em separar os textos em unidades de significado que por si mesmas geraram outros
conjuntos de unidades oriundas da interlocução empírica das pesquisas de primeira ordem com
as interlocuções teóricas e das interpretações por mim realizadas. Neste movimento de
interpretação dos significados dos textos incorporei as vozes de múltiplos referenciais que me
auxiliaram na delimitação dos contornos das experiências de modo que, neste diálogo entre os
componentes empíricos da pesquisa de primeira ordem e a literatura, pude categorizar os tipos
de aprendizagem docente manifestadas pelos professores de matemática em formação inicial
em seu percurso de formação.
A abordagem da análise textual discursiva me foi relevante porque no início do trabalho
não possuía uma visão clara e completa do processo como um todo, necessitando, como
pontuam Moraes & Galiazzi (2006, p. 120), movimentar-me sobre a pesquisa como quem
navega construindo o mapa enquanto avança. Recordo-me que de início não me era muito
clara a necessidade de arguir sobre a minha pesquisa em dois níveis de trabalho, um primeiro
nível discorrendo sobre a pesquisa de primeira ordem em que exercia a ação formativa junto
aos meus colaboradores e uma pesquisa de segunda ordem, sob a qual assentava minha
compreensão e resultados sobre todo o processo experienciado por mim e meus colaboradores.
A análise textual discursiva me parece cumprir sua finalidade junto ao trabalho que
realizamos devido se comportar bem em situações em que as teorias são construídas em um
intenso diálogo teórico-empírico e em que os processos de pesquisa exigem constantemente a
(re)construção de caminhos. Esses espaços instáveis de criação me possibilitaram, por outro
lado, movimentar-me com mais liberdade, exigindo, entretanto, uma intensa impregnação nos
fenômenos investigados. A impregnação se concretiza a partir de leituras e releituras,
transcrições, unitarização e categorização e especialmente a partir da escrita, sendo condição
para um trabalho criativo e original (MOARES & GALIAZZI, 2006). Assumindo, pois, os
princípios da análise textual discursiva, orientei meus colaboradores na produção de diários
reflexivos e realizei entrevistas com fins à obtenção de uma compreensão sobre suas
experiências formativas.
~ 98 ~
Os instrumentos da metanálise
Os diários reflexivos
O Grupo Colaborativo de Educação Matemática (GCEM) tem atuado desde junho de
2011 na interface entre Universidade e Escola, discutindo problemáticas de sala de aula em
dinâmicas colaborativas que contam com a presença de professores, estudantes da rede pública
de ensino, e acadêmicos da licenciatura em Matemática Campus X – Igarapé-Açu. Em virtude
de nossas atividades suscitarem diversos níveis de reflexão sobre a práxis58 de ensinar e
aprender matemática, nos foi imperativo o estudo aprofundado sobre instrumentos que nos
possibilitassem o registro de nossas observações, conferissem substância às nossas discussões
em grupo e nos auxiliasse no planejamento de ações de intervenção na realidade observada.
Dentre os vários recursos que utilizamos cotidianamente, o diário reflexivo se apresentou como
principal articulador entre as experiências vivenciadas e as ações projetadas pelo grupo.
O diário é um instrumento que contribui para refletir sobre o que sucedeu na vida
quotidiana, na aula durante o dia ou semana, como sejam: sentimentos, preocupações, afetos,
frustrações, ambiente de aula, o que se fez, atitudes dos alunos, proposta de ações ou
perspectivas alternativas. E serve para preservar as vivências e as percepções dos fatos de uma
distorção que, com o tempo, a memória lhes vai introduzindo (ALVES, 2004).
Enquanto registro, o diário pertence a um conjunto de instrumentos de recolha de dados
biográficos, que designamos por documentos pessoais59. Fazem parte desta categoria:
autobiografias, cartas, respostas a questionários e entrevistas, evocações de sonhos, confissões,
portfólios, composições de arte, entre outras. Os diários produzidos pelos professores de
matemática em formação inicial contribuíram para a iluminação de intenções, interações e
efeitos docentes como tomadas de posição ou propostas de mudança, tanto nos seus aspectos
ou vivências positivas, como nas insatisfatórias ou negativas. Tornou-me, assim, um
58 A epistemologia da práxis surge em contraposição a uma epistemologia da prática profissional, segundo a qual
o universo da prática social se restringe à prática profissional em seus aspectos puramente empíricos, técnicos e
utilitários (SCALCON, 2007). Busca-se na epistemologia da práxis uma unidade teórico-prática para os processos
de produção e reprodução do conhecimento e uma consequente compreensão da estrutura objetiva da realidade
que reconheça o significado do valor teórico da prática aliançado ao valor prático da teoria (SCALCON, 2008). 59 Define-se por documento pessoal “qualquer produto autorevelador, que produza informação intencional ou não,
que contemple a estrutura, a dinâmica e o funcionamento da vida mental do autor (YINGER & CLARK, 1988).
~ 99 ~
instrumento adequado para conhecer os professores e os seus problemas. Para Fiorentini (2010,
p. 107),
Os diários reflexivos são geralmente utilizados em pesquisas sob abordagem
qualitativa, sobretudo em investigações etnográficas e podem ser denominados de
diário de bordo, diário de campo ou diário do pesquisador. Geralmente escritos sob
um estilo próprio e narrativo, utilizando o pronome pessoal “eu”, que indica sua
natureza personalista e idiossincrática. Nesse instrumento o professor narra suas
vivências, fenômenos e episódios e os interpreta com base em seus conhecimentos e
suas experiências passadas, expressando o que esses acontecimentos significam para
ele e que lições ou aprendizados extrai para sua vida pessoal e profissional. (Grifo
meu)
No excerto, o termo pesquisa possui dupla interpretação: uma primeira que assume a
práxis docente como lócus de investigação e teorização com perspectivas de produção
científica, e uma segunda que relaciona essa mesma práxis a uma constante retomada das ações
de ensino e aprendizagem em sala de aula. Ambas as interpretações descrevem níveis distintos
de reflexão que influem sobremaneira na (auto)formação dos professores com quem trabalhei.
Estiveram presentes na produção dos diários reflexivos dos colaboradores algumas
características que Holly (2000) descreve como:
Desconforto – o processo de produção de um diário não é uma tarefa confortável, pois
o autor se expõe no que escreve, deixa a mostra suas ideias, angustias, crenças e
fragilidades;
Distanciamento – por ser uma ação de retomada de experiências passadas, de registro
de memorias de vivências significativas, o autor nunca é o mesmo sujeito que praticou
a ação objeto da reflexão. Opera-se assim um distanciamento tanto temporal quanto
pessoal do fato descrito/narrado;
Transformação de perspectivas – a simples tomada de decisão da produção do diário
reflexivo já é uma mudança de perspectiva. O autor assume uma postura de abertura ao
novo, a críticas e a transformação de suas práticas. De outro modo a produção do diário
seria uma ação sem sentido, estéril;
Atenção focalizada – quando escreve um diário, o autor se atem a uma situação
específica, um problema que lhe chamou a atenção, um episódio que lhe se apresenta
significativo; e
Voz – ao escrever um diário com perspectiva de socialização ou mesmo retomada de
questões de interesse do autor, os registros adquirem forma e sentido para quem os lê,
os fatos e ideias são, portanto, expressões em “voz alta”.
~ 100 ~
Fiorentini (2010) distingue duas dimensões na produção dos diários pelos professores:
uma informativa e outra formativa. Pessoalmente interpreto tais dimensões como “duas faces
de uma mesma moeda”, isto é, considero as duas dimensões como interdependentes e como
projeções de uma mesma ação reflexiva. Para o autor a dimensão informativa da produção do
diário serve para observar, registrar, descrever e avaliar a prática escolar; possibilita detectar
problemas da prática e melhorá-la; serve para produzir (guar)dados que posteriormente serão
tomados como objeto de análise individual ou coletiva sobre a prática de ensinar e aprender; e
possibilita interrogar e desvendar o sentido da realidade. Quanto a dimensão formativa, o diário:
ajuda a refletir, investigar, compreender e transformar a própria prática, à medida que dá
visibilidade aos seus próprios valores, ideias e concepções que podem estar subjacentes ou
ocultos ao professor ou que podem estar naturalizados pelo fazer cotidiano; desenvolve a
sensibilidade do professor sobre o que o aluno faz, diz, escreve e pensa; proporciona meta-
reflexão sobre a prática e metacognição, isto é, o autor passa a tomar consciência de seu
aprendizado, dando visibilidade para si e para os outros sobre os saberes que constrói a partir
da prática.
Neste sentido, recomendei que os professores, assim que adentrassem no ambiente
escolar, passassem a confeccionar seus diários perspectivando descrever, analisar e narrar:
A dinâmica e a comunicação em sala de aula;
O que os alunos dizem, fazem ou escrevem;
Os gestos/silêncios, as resistências e as táticas dos alunos;
A sua didática e postura docente em classe;
Os problemas, os exercícios e as atividades desenvolvidas em sala de aula;
Os episódios durante as aulas, detalhando-os;
Os seus pensamentos e os sentimentos;
Suas dúvidas, inseguranças, incertezas e seu comportamento como professor.
Dentre os tipos de diários que orientei a produção, desejava que os professores optassem
pelos diários reflexivos. Contudo, devido à falta de hábito dos professores da escrita sobre suas
reflexões e vivências, foram-me encaminhados diários com características mais descritivas.
Segundo Fiorentini (2010) dentre os registros que o professor pode produzir, destacam-se três
tipos de diários:
~ 101 ~
Diários descritivos - neste tipo de registro os diários são estritamente descritivos. O
objetivo é ser o mais objetivo possível, limitando-se a descrever ou relatar o que observa
de uma prática de sala de aula. Geralmente se utiliza esta técnica quando se observa uma
prática alheia e neste caso, ao se tecer reflexões ou comentários pessoais, deve-se abrir uma
nota com as iniciais “RCP” (reflexões do pesquisador) ou deixar uma margem larga para
essas notas interpretativas.
Diários interpretativos - Neste tipo de diário se faz primeiro uma descrição da aula ou
episódio e depois se produz uma interpretação ou reflexão sobre o observado, elaborando
uma breve conclusão ou síntese e destacando aprendizados obtidos.
Diários narrativos - este tipo de diário evidencia-se pela descrição/narração de uma aula ou
prática educativa em que o autor se posiciona o tempo todo em relação aos acontecimentos,
refletindo, interpretando e analisando. Esse tipo de diário contém, impressões, comentários
e opiniões do observador sobre o meio social onde realiza suas observações, seus erros,
dificuldades, confusões, incertezas e temores, suas boas perspectivas, acertos e sucessos,
suas reações e as dos demais participantes, incluindo gestos, expressões verbais e faciais,
etc.
Como é possível intuir, a escrita de um diário é um hábito que deve ser adquirido e
cultivado, sendo que a prática de sua produção trará resultados cada vez mais significativos do
ponto de vista dos detalhes, ideias e reflexões sobre as experiências de seu autor. Por isso
cultivamos a prática da escrita dos diários com fins a subsidiar as reflexões dos professores,
sobretudo segundos os quatro seguintes passos:
1. Descrever o evento (o que eu faço ou o outro faz? Relato concreto dos eventos vivenciados
em sala de aula pelo professor);
2. Informar (o que significa? Evidenciar quais os princípios e teorias envolvidos no processo
de ensinar e aprender que subjazem às ações do professor);
3. Confrontar (como cheguei a agir assim? Relacionar ações e fatores culturais, políticos,
econômicos, que ultrapassem a sala de aula);
4. Reconstruir (como posso agir diferentemente? Reorganização do agir como resultado das
operações anteriores).
Assumir o processo descrito acima é reconhecer que o valor formativo da produção do
diário não se limita apenas a sua escrita e reflexão individual, mas parte de uma prática
individual para uma prática coletiva, isto é, a redação de um diário é tão mais instrutiva quão
~ 102 ~
mais abrangentes forem as contribuições externas que o autor do diário receber de seus pares
em sessões de reflexão coletiva. Tais sessões deram suporte às diversas discussões em reuniões
do grupo de estudo e se tornaram objeto de minha análise sobre as tipologias de aprendizagem
dos professores.
As entrevistas
Ao final do período de formação realizei entrevistas com os sujeitos da pesquisa que
subsidiaram minha compreensão não só dos percursos formativos situados nas experiências
universitárias, mas ainda me auxiliaram no delineamento do perfil pessoal e profissional dos
sujeitos. Situo neste tópico tais perfis que servirão de parâmetro de discussão e percepções sobre
suas práticas formativas. A entrevista assumiu o formato de diálogo semiestruturado em que
estabeleci alguns parâmetros iniciais para o início da conversação, depois conduzi a
interlocução sempre aproveitando as deixas dos entrevistados, quando de pausas na fala, para
introduzir novos temas, desenvolvendo assim uma entrevista fluida, possibilitando voz ativa
aos depoentes. Uma vez transcritas as falas, os textos das entrevistas foram encaminhados aos
entrevistados para que se posicionassem sobre seus depoimentos, momento este que poderiam
proceder acréscimos, supressões e opinar sobre suas preferências em relação a seus
pseudônimos na ocasião do texto final da tese.
O instrumento de suporte da entrevista (vide apêndice 2) foi subdividido em cinco eixos
com objetivos determinados, a saber:
Eixo 1 – Perfil perceptivo e praxeológico docente: Compunha uma dinâmica inicial com o fim
de deixar os entrevistados mais à vontade com a conversação. Dispus em uma tabela doze itens
versando sobre problemáticas da docência, os quais deveriam hierarquizar do nível que
compreendessem ser da mais elevada dificuldade para a mais branda. Tomei como referência
Zagury (2009)60 em que esta autora tece uma reflexão sobre as angústias e impossibilidades
concretas dos professores, que em seu ver tornaram-se reféns de decisões equivocadas da
sociedade. Assumi suas categorias de análise como itens, que ao serem hierarquizados pelos
entrevistados me possibilitaram dialogar com eles sobre suas três maiores dificuldades em
relação aos temas disponíveis. Busquei, portanto, apreender o universo cognitivo e as
60 No livro O professor refém.
~ 103 ~
construções praxeológicas dos entrevistados relativas às suas significações de necessidades e
lacunas formativas.
Eixo 2 – Construções pessoais: Este eixo versa sobre a trajetória escolar do entrevistado desde
sua infância até sua decisão pelo vestibular para a licenciatura em matemática. Comportando
seis questões, este eixo visa o delineamento dos contornos sociais que constituíram o espaço
vital61 (LEWIN, 1973) dos entrevistados bem como a identificação das tensões que influíram
na decisão pela docência em matemática.
Eixo 3 – Construções no PIBID: assentando-me nas experiências dos entrevistados e em suas
apreensões sobre essas experiências busquei, em quinze questões, a construção dos contornos
de aprendizagem destes sujeitos, isto é, dialogamos sobre as suas perspectivas, aprendizados,
angustias, crenças, certezas e incertezas emergentes de suas formações extracurriculares no
PIBID, bem como sobre as repercussões de tais experiências nas suas atuações docentes. O foco
deste eixo foi o de identificar os processos de aprendizagem e os tipos de aprendizagem situados
nas experiências da comunidade de prática colaborativa, na busca por evidências do
desenvolvimento profissional destes professores durante o corte temporal dos últimos dezoito
meses de suas graduações.
Eixo 4 – Percepções da formação específica: Situando apenas cinco questões, este eixo visa a
construção de compreensão sobre a colaboração da formação em disciplinas específicas da
licenciatura em matemática para o adequado exercício da profissão docente.
Eixo 5 – Percepções da prática docente: Neste eixo procuro, em seis questões, definir os
contornos contributivos da formação inicial dos licenciandos a sua construção identitária
docente. Trago questões acerca de suas percepções sobre a docência e projeções para o futuro.
Mais uma vez recorro à Zagury (2009) para construir estas questões que, asseguro, dão uma
visão coerente sobre como estes professores estão entrando no mercado de trabalho e que
compreensão possuem sobre disso.
Os diálogos das entrevistas tiveram duração média de duas horas. Foram gravados em
áudio e posteriormente transcritos por mim para subsidiar as análises dos diversos aspectos
presentes na Tese, sobretudo, acerca do percurso de formação dos integrantes do projeto PIBID
com vista a identificação de processos de aprendizagem, dos tipos de aprendizagem situados
nas práticas colaborativas e de evidências de desenvolvimento profissional destes docentes. As
61 Compreendido aqui como o contorno de relações do sujeito em interação com seu espaço social.
~ 104 ~
entrevistas não constituíram o único veículo para acessar os dados da formação, mas de certo
foram as mais exploradas neste trabalho.
Construção das categorias de aprendizagem docente
O estudo dos processos de aprendizagem subjacentes ao percurso de formação com
características colaborativas, demandou uma profunda incorporação de sentidos da docência
possível de ser adquirida somente com o estudo pormenorizado de múltiplos referenciais sobre
os temas educacionais. A multirreferencialidade, assumida por mim como uma estratégia para
ascender à compreensão do que ocorreu no ambiente formativo se fez necessário pelo fato de
os processos de aprendizagem da docência se constituírem de modo complexo, fluido, e, de
certo modo, imprevisível.
A análise textual discursiva aplicada às transcrições dos diálogos e reificações dos
sujeitos da pesquisa, associada à literatura - acerca de temas como: experiência, formação
docente, comunidades de prática, desenvolvimento e identidade profissional, práxis docentes,
aprendizagem docente, saberes, habilidades e competências da docência, dentre outros -, me
possibilitaram a construção de oito categorias ou tipologias abrangentes de aprendizagem da
docência, que ocorrem, seguramente, mediante um processo de conversão catastrófica.
Estas tipologias ou categorias possuem correspondentes em diversas pesquisas e
estudos sobre a prática docente, sobretudo materializadas nos trabalhos de Tardif (2007), Freire
(1996), Lorenzato (2006), Fiorentini (2006, 2009, 2013), Perrenoud (2001), Schön (1992),
Zeichner (1993, 2003, 2005), Morin (2007), Gonçalves T. (2005), Werneck (1996), Leite et al.
(2008), dentre muitos outros que desprenderam esforços no mapeamento dos comportamentos
necessários à prática docente de qualidade. Foi, justamente, para elucidar questões como “O
que constitui uma prática docente de qualidade?” e “O que é um bom professor?”, que investi
esforços na elaboração de categorias de análise que aqui introduzo como aprendizagem do tipo:
1) Reflexividade crítica sobre a realidade;
2) Curiosidade epistemológica do conteúdo e do sujeito;
3) Dialogicidade da comunicação e da atuação docente;
4) Instrumentalidade tecnológica e estratégica do ensino;
5) Inacabamento e consciência social da profissão;
~ 105 ~
6) Sensibilidade ecológica;
7) Domínio didático-pedagógico do currículo e do ensino; e
8) Assunção da autoridade docente.
As categorias de aprendizagem surgiram do esforço de transcrição das entrevistas, dos
recortes das produções escritas (diários, relatórios e TCCs), dos depoimentos registrados em
áudio e vídeo de situações de experiência em grupo e/ou em sala de aula, sobre os quais, por
um processo de unitarização e diálogo com a literatura62, destaquei unidades de sentido que
expressassem mudanças de relação dos sujeitos investigados para com suas práxis docentes.
Como o exercício era o de definir os tipos de aprendizagem, e sendo a aprendizagem uma
manifestação de conformidade com uma prática/saber/valor/habitus de um grupo de referência
ou comunidade de prática, resolvi mapear quais seriam estas tais
práticas/valores/saberes/competências/habilidades do professor que, ao serem mobilizadas
pelos docentes no ambiente complexo que é a escola, manifestariam tipos de aprendizagem
próprios do que assumo como um bom professor. É importante salientar que essas tipologias
não constituem categorias estanques e herméticas, mas flexíveis, que expressam o
desenvolvimento do sujeito docente no tempo e na ecologia dos espaços em que este se
encontra. São, portanto, mutantes com este e se entrecruzam na constituição identitária e
socialização do sujeito. As tipologias de aprendizagem serão retomadas com maior
detalhamento na composição posterior.
62 Ao recorrer à literatura, supracitada, encontrei 145 indicativos de saberes, habilidades e competências acessados
por tipos de aprendizagem correspondentes aos evidenciadas nos processos de aprendizagem do percurso de
formação dos professores investigados. Estas incidências da literatura influíram, sobremaneira, na composição das
tipologias de aprendizagem resultantes.
~ 107 ~
COMPOSIÇÃO III
Nesta composição, opero a análise sobre os relatos produzidos pelos
sujeitos da pesquisa - pautadas em discursos colhidos sobre as
experiências expressas por meio de interações gravadas em áudio e
vídeo e reificações como resenhas, relatórios, artigos, diários, TCCs e
entrevistas - com o fim de explicitar os tipos de aprendizagem
evidenciados durante as atividades colaborativas do grupo. Os
resultados indicam que os processos de aprendizagem da docência
ocorrem desde a formação no ensino básico quando o apoio familiar e
relações positivas para com a matemática e para com os professores
desta disciplina contribuem para a escolha da profissão docente. A
análise dos dados me possibilitou uma compreensão sobre o contínuo
experiencial da formação dos professores, bem como me orientou no
reconhecimento de indícios de identificação dos sujeitos observados
para com a docência a partir do seu percurso de formação.
~ 109 ~
COMPOSIÇÃO III
CONTORNOS META-ANALÍTICOS DA
PESQUISA
Cheguei a uma conclusão aterradora: eu sou o elemento decisivo na aula. É a minha
atitude pessoal que cria o clima. É o meu humor diário que determina o tempo. Como
professor, possuo um poder tremendo de fazer com que a vida de um menino seja
miserável ou feliz. Posso ser um instrumento de humor, de lesão ou cicatrização. Em
todas as situações, é minha resposta a que decide se uma crise se agudizará ou se
apaziguará e um menino se humanizará ou desumanizará.
(GINNOTT, 1973 apud JULIATTO, 2007)
O professor é imprescindível a qualquer proposta que envolva a melhoria de quaisquer
situações que impliquem a educação. Possibilitar que este profissional exerça de modo
autônomo e consciente seu trabalho também constitui um aspecto básico a esta melhoria. E
quando falo em exercício da autonomia considero-a em aspecto amplo, não permitindo que
forças externas exerçam sobre este sujeito repressões, imposições ou qualquer processo de
alienação, mas para que este professor tenha condições de compreender sua condição e seja
capaz de transformar sua realidade, é necessário que participe ativamente de sua formação,
indicando seus desejos, expressando suas experiências, desenvolvendo e exercendo sua
cidadania.
Nos dias de hoje esta parece ser uma utopia possível mediante o estabelecimento de um
novo status que podemos construir a partir da indicação de novos parâmetros para o paradigma
formativo docente, ou seja, os modos, formas e políticas assumidas pela sociedade para a
formação de professores. É importante salientar que em decorrência das premissas que se
seguiram no decorrer da história desta formação, convém avaliarmos mais apuradamente as
condições de reflexão e concepções de prática oferecidas aos professores na atualidade. Isso
pressupõe uma análise do que se tem proposto como princípios formativos que regem a
orientação de nossos professores em formação inicial, seja na articulação dos projetos
pedagógicos dos cursos, com suas avaliações e direcionamentos, seja nas ações
complementares formais e informais disponibilizadas institucionalmente.
~ 110 ~
Este caráter analítico, crítico e propositivo é necessário, pois a identidade do professor
embora seja construída no decorrer do exercício da sua profissão, é durante a formação inicial
que serão sedimentados os pressupostos e as diretrizes presentes no curso formador, decisivos
na construção de identidade docente (BARREIRO & GEBRAN, 2006). Além disso, a
formação inicial é estruturante da base em que se assentam as concepções e práticas que levam
à reflexão, e deve constituir um ambiente rico à promoção de saberes da experiência,
conjugados com a teoria, possibilitando ao professor em formação uma análise integrada e
sistemática da sua ação educativa de forma investigativa e interventiva. Esta linha de
pensamento encontra ressonância nos pressupostos de Gonçalves (2006, p. 20) que expõe seu
ponto de vista de que a formação inicial deveria configurar como uma formação para o
docente já começar a se desenvolver profissionalmente.
Coaduna com esta compreensão a não contradição entre a formação inicial e o
desenvolvimento profissional como elementos conceptivos que podem ser trabalhados
concomitantemente. Este argumento é sustentado por Imbernón (1994, p. 12) quando diz que:
Historicamente, formação e desenvolvimento profissional foram consideradas
isoladamente, não como conceitos opostos, mas como dois lados da mesma moeda:
uma entenderia a cultura que se desenvolvia e outra a técnica ou competência que
devia aplicar-se. Esta consideração foi coerente com o conceito estanque e técnico de
"profissionalização" que dominou os processos formativos, mas atualmente resulta
obsoleto, uma vez que se analisa a formação em sínteses que incluiem diversos
componentes (cultura, contexto, conhecimento disciplinar, ética, competência
metodológica e didática) e como um elemento impressindível para a socialização
profissional em uma determinada práxis contextualidada. Formação e
desenvolvimento profissional formam, portanto, um conjunto necessário para o
desempenho da profissão docente. (Tradução minha).
Nestes termos o que proponho é uma concepção atual de formação e desenvolvimento
profissional, que possui como característica básica as práticas predominantemente centradas
em uma lógica colaborativa e situada nas reflexões produtivas das aulas ministradas, o que
significa reconhecer o caráter profissional específico dos professores e a existência de um
espaço em que estes podem exercer sua autonomia. Esta concepção implica, portanto, em
reconhecer que os professores de matemática podem ser verdadeiros agentes sociais,
planejadores e gestores do ensino-aprendizagem, e que devem intervir nos complexos sistemas
que constituem a estrutura social, em que muitas vezes são ignorados, mesmo acerca de temas
que os afetam diretamente.
Estudos de minha práxis como formador neste atual e complexo contexto de
indissociabilidades entre formação e desenvolvimento profissional e entre ensino, pesquisa e
~ 111 ~
extensão, bem como os resultados das análises dos discursos de meus colaboradores, me
levaram à construção do que chamo Contornos Experienciais da Formação Docente, que aqui
sintetizo no diagrama abaixo:
Fig. 07 – Contorno Experienciais da Formação Inicial.
O diagrama surge de um insight ocorrido a partir da interpretação dos discursos dos
sujeitos entrevistados, com os quais foi possível identificar a Formação Inicial como uma
iniciação ou rito de passagem à vida profissional dos professores, ou melhor, como a própria
transição entre a preparação oficial e o exercício da profissão docente. Nesta preparação
oficial me foi possível identificar a articulação de três aspectos ou instâncias formativas
fundamentais à qualificação dos professores, as quais sejam: a Formação Específica, a
Formação Didático-Pedagógica e a formação advinda de experiências em Atividades
Extracurriculares. Destaco que, quão mais articuladas e bem desenvolvidas forem estas
instâncias formativas fundamentais (α), há expectativa de que melhor será a compreensão da
função docente e o exercício inicial da profissão (α’). Acrescento ainda, a possibilidade de
ocorrência de outras instâncias formativas durante esse processo, identificadas com as regiões
sem denominação específica presentes no diagrama, que não serão aqui tratadas por ocorrerem
em espaços não definidos como objetos de pesquisa sobre as experiências dos sujeitos, a saber:
participações em grupos comunitários ou religiosos, exercício da docência em projetos de
cursinho ou aulas de reforço, atividades voluntárias, ou mesmo interações sociais com parentes
e amigos.
~ 112 ~
Em que pese sob tais instâncias formativas fundamentais o caráter qualitativo de minha
tese, desprenderei breve atenção a cada uma delas. Contudo, considero de central interesse a
instância que diz respeito às Atividades Extracurriculares e suas interfaces com as demais, visto
que são em suas experiências que se assentam as ações do PIBID que desencadeiam os
processos de aprendizagem e se situam os contornos de aprendizagem docente que fornecem
evidências do desenvolvimento profissional dos professores em formação investigados.
Entretanto, para que melhor se elucide o percurso de formação objeto deste trabalho, passo a
seguir a um detalhamento pormenorizado das tipologias de aprendizagem que permearão as
análises desta pesquisa.
Marcos conceituais das tipologias de aprendizagem da docência
As práticas das quais emanam os processos de aprendizagem, aqui a serem descritos e
analisados na forma de um percurso extracurricular de formação, caracterizam e dão forma a
oito tipologias de aprendizagem que não devem ser entendidas como simples manifestações de
atitudes mecânicas, mas como resultados do que ora defino como um processo de conversão
catastrófica. Compreendo este processo como uma mudança, que geralmente corresponde a
uma aprendizagem resultante de uma situação evocativa de sentidos de experiências passadas
que provocam desequilíbrios no indivíduo, levando-o a estabelecer relações outras com
determinado saber - que constitui uma prática de valor para o sujeito. Esta mudança ocorre na
forma de socializações do indivíduo ao assumir-se sujeito de um grupo, no qual torna ostensivo
o que sabe e passa a apresentar um saber-fazer justificado, assumindo como seus os princípios
que são interativamente comungados pelo grupo.
Estas tipologias de aprendizagem docente, como já detalhei na composição anterior,
foram construídas por um processo dialético entre a análise da literatura sobre a formação e
desenvolvimento profissional docente e análise do que defino por macro-percurso de formação
de seis licenciandos do curso de matemática, que participaram do projeto de iniciação à
docência do PIBID. Deste modo, passo a detalhar as diferentes tipologias de aprendizagem:
~ 113 ~
1) Reflexividade crítica sobre a realidade
A reflexividade crítica sobre a realidade é, na atualidade, um dos principais objetivos
do processo formativo e do desenvolvimento profissional docente, em especial dos professores
de matemática. Esta reflexividade crítica, aqui definida como uma aprendizagem significativa
à formação docente, apresenta-se como componente de superação de visões limitadas que
assumem a crítica como um simples encontrar defeitos ou censurar (RATHS et al., 1977, p.26).
Deste modo, por meio da reflexividade crítica, se compreende que educar é intervir no
mundo, reconhecendo seus limites e condicionamentos, estando ciente de que há uma ideologia
institucional que subjaz a estrutura aparente. O profissional que apresenta esta visão crítica da
realidade apresenta uma mentalidade aberta, rejeita as discriminações, suscetibilidades e
parcialidades (DEWEY, 2011), pensa de forma autônoma (CONTREIRAS, 2002), duvidando
do que parece simples, óbvio e certo (LORENZATO, 2006). O professor com características
crítico-reflexivas questiona suas crenças prévias, estando convicto da possibilidade de mudança
e disposto a assumir novos problemas e ideias, defendendo-os de forma coerente, responsável
e harmoniosa (GONÇALVES T., 2005), perspectivando a apreensão qualificada da realidade
(FREIRE, 1996).
2) Curiosidade epistemológica do conteúdo e do sujeito
Segundo Paulo Freire (1996) a curiosidade é uma manifestação presente à experiência
vital humana, isto é, subjaz à vida e ao processo de aprendizagem. Existe de fato uma dimensão
ingênua da curiosidade, associada a um saber que caracteriza o senso comum, mas não é
discutido, problematizado, apesar de também gerar algumas inquietações. Entretanto, buscamos
na ciência o desenvolvimento de uma curiosidade crítica (ou curiosidade epistemológica).
Uma vez que a passagem da ingenuidade para a crítica não se faz automaticamente,
entendo que esta mudança de forma constitui uma aprendizagem. A superação da curiosidade
ingênua para uma curiosidade epistemológica ocorre mediante uma ruptura, uma conversão, à
medida em que se criticiza, tornando-se rigorosa na sua aproximação ao objeto. Esta
curiosidade indagadora procura esclarecimentos, o desvelamento de algo no mundo que não
fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos (FREIRE, 1996).
~ 114 ~
Esta aprendizagem, no âmbito da educação, diz respeito à curiosidade do professor em
relação à herança cultural da humanidade que se expressa, em específico ao professor de
matemática, por meio da (re)construção dos fundamentos dos saberes matemáticos e didáticos
do ensino. Esta manifestação é, por muitos, compreendida como uma necessidade de
conhecimento do conteúdo específico (SHULMAN, 1986a), neste caso, o conhecimento do
conteúdo matemático. Entretanto, perspectivar o saber sem relacioná-lo ao sujeito institucional
que o constrói, constitui, na melhor das hipóteses, uma limitação.
Neste sentido, a aprendizagem epistemológica do conteúdo e do sujeito constitui uma
interpretação da matemática tanto como linguagem, como instrumento e como ciência
socialmente construída, isto é, posiciona o sujeito no centro desse processo e reconhece a
necessidade de reconstruções do conhecimento matemático, levando em consideração os
problemas que deram origem a certos objetos e como estes objetos chegaram a se articular em
corpos coerentes, bem como seus saberes associados surgem, desenvolvem-se e morrem
(CHEVALLARD, 2005). Esta aprendizagem é, portanto, desmistificadora e desnaturalizadora
das práticas docentes, uma vez que enfatiza os porquês da matemática (LORENZATO, 2006),
reconhecendo suas implicações para a sociedade e para o desenvolvimento do sujeito docente.
Neste processo de (re)conhecimento epistemológico do seu objeto de ensino, o professor
percebe não ser possível uma construção sólida em sala de aula se sua postura for ensimesmada,
isto é, centrada no professor e dando a entender que a matemática, por exemplo, seria a simples
soma de resultados individuais de cabeças privilegiadas. Deste modo, considera assumir este
desafio do ensino como um jogo coletivo (DEMO, 2010). Este jogo coletivo ocorre, portanto,
ao se aceitar e reconhecer a importância dos outros neste processo educacional. Isso implica
saber sobre os valores, expectativas, preferências, objetivos e linguagens que caracterizam este
grupo, estando consciente de que tais características se alteram com o tempo e espaço
(LORENZATO, 2006, p. 21). Entretanto, todo grupo social é constituído de indivíduos, assim
o professor precisa levar em conta que em cada coletivo existem diferentes tipos de pessoas,
também com valores, expectativas, preferências, objetivos e linguagens que, embora imersas
no coletivo, possuem especificidades próprias. O professor que manifesta a aprendizagem em
tela reconhece o processo de ensino neste contexto de jogos coletivos e respeita a
individualidade dos sujeitos, que se constituem por meio de complexas relações intersubjetivas
com perspectivas de construção do conhecimento e de sua autoconstrução em conformidade
com as expectativas institucionais (Família, Escola, Universidade, Sociedade).
~ 115 ~
3) Dialogicidade da comunicação e da atuação docente
A comunicação63 é o canal pelo qual os padrões de vida de uma cultura são transmitidos,
o meio pelo qual os indivíduos se apropriam das formas, modos, saberes, valores, costumes e
crenças de sua sociedade. Isto é, aprendem a ser sujeitos em uma comunidade. O mundo
humano é, desta forma, um mundo de comunicação (FREIRE, 1983). E a comunicação, assim,
confunde-se com a própria vida (BORDANE, 1988).
Os indivíduos atuam e falam sobre o mundo, pensam e se comunicam acerca dele.
Porém, o sujeito pensante não pode pensar sozinho; não pode pensar sem a (co)participação de
outros sujeitos no ato de pensar sobre o objeto. Não há um “penso”, mas um “pensamos”. Neste
sentido, um sujeito docente comunicativo é o que manifesta a condução de uma postura
interessada, sensível, mediadora, de linguagem dialética e predisposição para ouvir e entender
a perspectiva do outro (FREIRE, 1996). Esta aprendizagem se manifestou em minha pesquisa
por meio de quatro tipos de situação, a saber:
Na organização do discurso de aula – que corresponde à preparação do docente para a aula,
que prevê a adequação de seu material de ensino e de seu discurso ao nível escolar e ao contexto
sociocultural dos alunos. Seus dispositivos de mediação possibilitam a interação e são
construídos com linguagem acessível ao seu público;
No domínio da fala em público - quando o professor tem a preocupação de aprimorar sua
oralidade, imputando credibilidade ao que fala, expondo suas ideias de modo coerente e
fundamentado. Manifesta também uma postura positiva para com seu público, sendo paciente,
solícito, compreensivo e honesto com seus interlocutores;
Na disponibilidade para o diálogo – no momento em que o professor revela primar por uma
conduta mediadora, sem privilégios ou preconceitos, pois é no respeito às diferenças entre
mim e eles ou elas, e na coerência do que faço e o que digo, que me encontro com eles e com
elas (FREIRE, 1996, p. 135). O professor que apresenta disponibilidade cria condições de
segurança ao diálogo. Uma disponibilidade curiosa à vida, a seus desafios, gera uma abertura
aos outros e à realidade dos alunos com quem compartilha sua atividade pedagógica;
63 A comunicação é normalmente associada ao discurso dos diversos intervenientes e tem a ver com o modo como
os significados são atribuídos e partilhados por interlocutores em situações concretas e contextualizadas. O
discurso pode ser oral, escrito ou gestual, tendo a comunicação oral papel fundamental na aula de Matemática
(PONTE et al., 1997, p. 83-84).
~ 116 ~
Na sensibilidade de escuta dos que falam e dos que silenciam – neste tipo de situação o
professor manifesta uma sensibilidade próxima ao que Barbier (1998) denominou de escuta
sensível64. O professor apresenta uma empatia e aceitação incondicional do outro, pratica o
ouvir como um movimento que visa estabelecer uma relação de confiança, que gera ambiência
para a interpretação subjetiva do discente segundo sua experiência. Interpretação esta que deve
ser avaliada pelo grupo, posto que nesta dinâmica de diálogo educador e educando estão no
mesmo nível, não há subordinação, a comunicação se dá na horizontal (FREIRE, 2003), em
oposição a uma postura vertical, autoritária e arrogante. Nesta perspectiva a manifestação do
erro não deve assumir conotação negativa, mas ao contrário deve ser compreendida como a
revelação daquilo que os alunos pensam, como indicador de (re)direcionamentos,
oportunidade de crescimento, ao aluno, e evolução, ao professor (LORENZATO, 2006, p.
49). O silêncio, por outro lado, também é objeto de consideração do professor que apresenta
escuta sensível, posto que reconhece no silêncio aqueles que possuem maior dificuldade, não
têm confiança em si mesmos, temem ser ridicularizados ou simplesmente negligenciados
(PERRENOUD, 2001). Uma expectativa inicial é a de fazer com que este aluno silencioso
participe das sessões de diálogo, indagando-lhe sua opinião em uma tentativa de incentivá-lo a
participar da produção do conhecimento. Todavia, existe a possibilidade de tencioná-lo e
constrangê-lo ao fazer isso, de modo que uma experiência social coletiva pode não ser a melhor
alternativa. Deste modo a interação pode se dar por meio de um diálogo tecido apenas entre
educador e aluno, como estratégia para construir pontes e identificar elementos de interesse e
motivação específicos para este sujeito.
4) Instrumentalidade tecnológica e estratégica do ensino
Esta aprendizagem se refere à capacidade do professor desenvolver um trabalho docente
de qualidade (LEITE et al., 2008) que envolva os alunos em atividades que produzam sentido
e favoreçam a (re)construção do objeto de ensino (CHEVALLARD, 1991), em específico o
matemático. Diz respeito à seleção de conteúdos adequados e que deem uma visão coerente da
disciplina, sendo acessíveis aos alunos e suscetível de interesse (FURIÓ et al., 1992, p. 9).
64 A escuta sensível caracteriza-se por uma teoria psicossociológica existencial e multirreferencial que sugere três
tipos de escuta (a científico-clínica, a poético-existencial e a espiritual-filosófica) e um eixo de vigilância que
possibilita ao pesquisador sentir o universo afetivo, imaginário e cognitivo do outro, para compreender suas
atitudes, comportamentos, sistemas de ideias, valores, símbolos e mitos (BARBIER, 1998, 2007).
~ 117 ~
Também comporta as aquisições diárias do professor que lida com novos métodos, técnicas e
instrumentos tecnológicos de ensino, visto que os avanços contemporâneos engendram
demandas cada vez mais complexas e impõem ao professor a articulação teoria-prática e a
construção de um ambiente de ensino propício à experimentação, pesquisa e exploração de
temas e aplicações da matemática (LORENZATO, 2006). Esta articulação envolve saberes
relacionados ao planejamento de ações que, ao serem desenvolvidas como atividades,
possibilitam a apropriação do conhecimento pelo aluno (ROESLER LOPES, 2009, p. 93) uma
vez que exploram a integração curricular – não saltar etapas – e a integração de temas da
matemática (LORENZATO, 2006) – elegendo tarefas matemáticas convenientes, organizando
o discurso da aula, criando um ambiente para a aprendizagem e analisando ensino e
aprendizagem (LAPPAN, G.; THEULE-LUBIENSKI, 1994), estabelecendo conexões entre
conteúdos tradicionalmente dispersos no currículo. Neste contexto, a apreensão dos recursos,
instrumentos e métodos de ensino configura condicio sine qua non à aprendizagem da docência,
visto incidir diretamente na criação de condições ambientais que auxiliam aos alunos
desenvolverem importantes atitudes matemáticas e atitudes em relação à matemática
(CHACÓN, 2003).
5) Inacabamento e consciência social da profissão
Esta tipologia caracteriza uma aprendizagem complexa, pois implica a percepção do
professor sobre si, sobre suas limitações e, fundamentalmente, sobre o que não conhece, pois
somente consciente do que não conhece o professor estará aberto à sua (auto)formação e à
formação de seus alunos. Neste sentido, a consciência de inacabamento, mais do que um senso
poético ou estético da formação docente, é entendimento necessário à abertura de espírito, em
oposição ao fechamento e naturalização das práticas, implicando, deste modo, a necessidade de
um constante aprimoramento do professor. Pois, sendo gente, vê-se presente em um mundo
multi-institucional, logo, social. Não havendo, portanto, construção de um sujeito em
isolamento, mas em constantes processos de socialização às instituições, em que o professor se
percebe condicionado, porém sua condição não é a de alguém que se adapta e sim a de quem
se insere, em luta constante para não ser apenas objeto, mas também sujeito da história
(FREIRE, 1996). Diante deste processo de tornar-se sujeito (CHEVALLARD, 2009) o
professor se apropria das formas, valores, modos de ser e de fazer institucionais. Os modos de
~ 118 ~
ser e de fazer institucionais docentes da atualidade implicam a consciência social da profissão
docente, de tal forma que mesmo sabendo que as condições materiais, econômicas, sociais e
políticas, culturais e ideológicas em que nos achamos geram quase sempre barreiras de difícil
superação para o cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo (FREIRE, 1996,
p. 54), o professor sabe que os obstáculos não se eternizam. Portanto, essa conscientização não
é um saber descompromissado que se presta a induzir novas formas de alienação (FREIRE,
2001, p. 9), mas um comprometimento com ações concretas com perspectivas de mudança de
quadros sociais para formas, manifestamente, mais justas. Isto é, quando douto de suas
limitações e cônscio de seu papel histórico como agente de mudanças, o professor expressa
atitude de entusiasmo, que envolve a disposição necessária para desempenhar seu trabalho com
curiosidade, energia, capacidade de renovação e luta contra a rotina, manifestando preocupação
com o nível de aprendizagem de seus alunos. Para estar à altura desta demanda, busca por
contínua qualificação profissional, visto compreender que se o mundo muda e a realidade muda,
com elas devem mudar suas relações docentes com os saberes do mundo e com os alunos com
quem interatua nesta realidade.
6) Sensibilidade ecológica
O termo ecologia (oikos+logos) foi empregado pela primeira vez no livro Generelle
Morphologie der Organismen, em 1866, pelo biólogo Ernst Haeckel, que o utilizou para
designar a parte da biologia que estuda as relações entre os seres vivos e o meio ambiente
(FERNANDES & GERRA, 2012). Este termo tem origem grega e significa a associação entre
“casa” e “estudo racional”, ou seja, trata do estudo racional das relações existentes em torno da
casa em que se vive, podendo-se considerar o termo “casa” como o ambiente de um modo geral,
fazendo com que a ecologia sirva para representar o estudo de ambientes específicos em que se
vive. Para Abbagnano (2007, p. 350) trata-se do estudo das relações entre o homem como
pessoa e seu ambiente social. Esta última acepção me possibilita extrapolar este sentido para a
tipologia de aprendizagem em tela, na qual temos que o seu significado incide sobre a
capacidade observacional e inquisitiva do professor acerca do porquê determinadas situações
de ensino e aprendizagem ocorrerem, e como ocorrem sob determinadas contingências
institucionais e que condições seriam necessárias para a ocorrência de outras situações
~ 119 ~
desejáveis dentro do ambiente escolar. Essas contingências ecológicas exigem sensibilidade do
professor quanto a questões de ordem:
Física - identificação dos espaços e recursos materiais que potencializam ou restringem
determinadas dinâmicas e tarefas docentes;
Econômica - o domínio do tempo e dos custos de determinadas tarefas, bem como da relação
custo-benefício na execução de uma atividade;
Política – identificação das relações interpessoais, horizontais ou hierárquicas, pertinentes
ou intervenientes em determinados espaços ou ações;
Social - sintonia com as ocorrências da comunidade/sociedade e o reconhecimento das
legislações e normas explícitas ou implícitas que regem a instituição;
Cultural – compreensão das modas, valores, costumes, manifestações e formas de fazer/ser
de um coletivo.
A sensibilidade ecológica possibilita ao professor, deste modo, o reconhecimento e
caracterização do meio no qual atua, potencializando, assim, suas práticas docentes.
7) Domínio didático-pedagógico do currículo e do ensino da matemática
Esta aprendizagem caracteriza a compreensão de que toda prática pedagógica gravita
em torno de um currículo (SACRISTÁN, 2000, p. 26). Diz respeito, pois, ao entrecruzamento
de diferentes práticas que convergem na perspectiva de cultivar determinados hábitos ou
construir certas competências nas aulas e nas escolas. Ao longo de sua formação e experiências
de docência o professor se apropria de saberes que correspondem aos discursos, objetivos,
conteúdos e métodos a partir dos quais a instituição escolar categoriza e apresenta os saberes
sociais por ela definidos e selecionados como modelos da cultura erudita e de formação para
a cultura erudita (TARDIF, 2007, p. 38). O domínio didático-pedagógico do ensino da
matemática, portanto, se apresenta concretamente sob a forma de apreensão de programas
escolares (objetivos, conteúdos, métodos) que os professores de matemática aprendem e
utilizam. Esta aprendizagem prática, por assim dizer, emana da experiência da docência e se
incorpora, individual e coletivamente, sob a forma de habitus (BOURDIEU, 2009) e
habilidades de saber-fazer e de saber-ser dentro de uma instituição que toma por referência ou
na qual se insere. A prática do ensino não é, portanto, um produto de decisões dos professores,
a não ser unicamente à medida que modelam pessoalmente este campo de determinações,
~ 120 ~
que é dinâmico, flexível e vulnerável à pressão (SACRISTÁN, 2000, p. 91), isto é, a dimensão
curricular do ensino não se resume ao didático, pois abrange níveis diversos como o político,
administrativo e jurídico que lhe impõem rumos distintos. Deste modo, a aprendizagem docente
associada à componente pedagógica do ensino, em específico do ensino da matemática, requer
o resgate das tipologias de aprendizagem anteriormente discutidas, sobretudo em relação aos
conhecimentos sobre os alunos – seus processos de desenvolvimento e seus contextos
socioculturais, como aprendem e constroem sua linguagem-, a matéria que ensina - relativa
aos componentes curriculares, objetivos educacionais e domínio epistemológico dos objetos
mediatizados/transpostos aos alunos -, e ao modo como ensina – que implica a postura que o
professor manifesta no desenvolvimento de suas atividades docentes, que se quer empreendam
dinâmicas investigativas, colaborativas e de reflexão sobre sua própria prática.
8) Assunção da autoridade docente
Esta tipologia de aprendizagem diz respeito aos significados atribuídos pelo professor e
suas implicações práticas na docência, ao assumir-se enquanto profissional, imputando-lhe
todas as responsabilidades e direitos que o exercício da profissão lhe convém. Esta
aprendizagem representa um estádio último da conversão e socialização à docência, posto que
o sujeito que a manifesta, de certo modo, incorporou o papel institucional de professor, isto é,
assume sua profissionalidade docente. Contudo, uma problemática que se apresenta, sobretudo,
quando falo em assumir-se como profissional docente, é justamente a multiplicidade
interpretativa que o termo profissional poderá assumir neste contexto. De modo, que sou
impelido a tecer um breve esclarecimento de que compreendo o profissional docente como
conceitua Altet (2001, p. 25), isto é, como uma pessoa autônoma, dotada de competências
específicas e especializadas que repousam sobre uma base de conhecimentos racionais,
reconhecidos, oriundos da ciência, legitimados pela Universidade, ou de conhecimentos
explicitados, oriundos da prática. Esta conceituação me ajuda a pensar o professor que
manifesta assunção da autoridade docente como um profissional capaz de articular processos
de ensino-aprendizagem em uma determinada situação como um:
Professor mediador (TÉBAR, 2011) - capaz de filtrar e selecionar os estímulos ou
experiências acessíveis ao nível de compreensão de seus educandos, buscando transcender
as limitações da realidade presente;
~ 121 ~
Professor reflexivo (ZEICHNER, 1993) - inquiridor de sua própria prática e com papel ativo
na formulação dos objetivos e teorias que podem contribuir para a construção de
conhecimentos sobre o ensino;
Professor comunicador (ANTÃO, 1999) – articulador de ensino que se vale da memória,
entusiasmo, ritmo, voz fluida, expressão corporal, naturalidade e conhecimento para
promover a transposição de saberes;
Professor agente de mudanças (SAVIANI, 2008; FREIRE, 1996) - promotor e defensor da
formação do sujeito como um homem livre, crítico, participativo, autônomo e consciente do
seu papel no seu tempo. Este professor sabe que sua ação é uma forma de intervenção no
mundo.
Dentre os elementos que definem o bom professor e que expressam a assunção de sua
autoridade docente figura a autonomia no contexto da prática de ensino (CONTRERAS, 2002),
definida por um processo pelo qual se irão se entrelaçando aspectos pessoais (dentre os quais
os próprios compromissos profissionais) com os de relacionamento (já que o ensino se realiza
sempre em um contexto de relações pessoais e sociais) e que implicam nas tentativas de
compreensão e tensionamento do tecido social em que se destacam a obrigação moral, o
compromisso social e a competência profissional. Estes aspectos envolvem tanto as qualidades
necessárias ao trabalho de ensinar que definem a profissionalidade do professor, quanto
reivindicam sua dignidade e autonomia como um direito de trabalho. Ao externar reconhecer
seu papel profissional e social, o professor demonstra com bom senso constituir-se uma
autoridade, que pratica seu dever respeitando a autonomia, a dignidade e identidade de seu
educando (FREIRE, 1996), apresentando comportamentos cativantes e influenciadores de
comportamentos de liderança e colaboração (TURNBULL, 2009), estabelecendo relações
criativas e produtivas, manifestando destrezas avaliativas justas e tomada de decisões
conscientes, passando a figurar como liderança e exemplo a ser seguido.
No esquema a seguir, represento as articulações entre as tipologias de aprendizagem na
perspectiva de constituição de um bom professor de matemática:
~ 122 ~
Fig. 08 – Tipologias de Aprendizagem da Docência.
Nos tópicos que seguem nesta composição, descreverei o percurso de formação de seis
professores em formação inicial, que me possibilitou, em diálogo com a literatura, a construção
das tipologias de aprendizagem que a partir de agora assumirei como categorias transversais de
análise, isto é, destacarei, sempre que possível, as tipologias de aprendizagem da docência nos
contornos das experiências como resultado de situações de reflexão individual ou coletiva sobre
a prática da docência.
A Formação Específica e a articulação entre as disciplinas específicas e
didático-pedagógicas
Preocupado com as influências da formação específica, ocorrida na Universidade, em
paralelo a nossas ações do PIBID, inquiri os professores colaboradores sobre como percebiam
essa formação. Suas respostas indicaram a presença de séria problemática, como podemos
evidenciar no seguinte depoimento:
~ 123 ~
(...) as disciplinas especificas em sua maioria não foram como esperava, posso
citar apenas as disciplinas de Cálculo I e II, Teoria do Números e Álgebra como
boas disciplinas e com professores muito bem preparados. As disciplinas de
FME que deveriam ser as bases para a nossa prática no ensino básico foram
“empurradas com a barriga”! (LEITE – Recorte da Entrevista)
Com vistas a uma melhor compreensão do caso, realizei uma breve consulta à História
da Educação no Brasil, em especial às legislações referentes à formação de professores em nível
superior, o que me levou ao Decreto-Lei nº 1190/39 como sendo um marco importante e
definidor da estrutura dos cursos superiores em Licenciatura. O decreto estabelece, em 1939,
a organização da Faculdade Nacional de Filosofia e aponta no seu artigo 1º, as suas finalidades:
a) Preparar trabalhadores intelectuais para o exercício das altas atividades culturais
de ordem desinteressada ou técnica; b) preparar candidatos ao magistério do ensino
secundário e normal; c) realizar pesquisas nos vários domínios da cultura que
constituam o objeto de seu ensino.
Foi instituído, assim, o chamado “padrão federal”, ao qual tiveram que se adequar as
demais instituições de ensino superior do país (BARREIRO & GEBRAN, 2006). Neste decreto
ainda se define a formação de bacharéis com a duração de três anos, ao final dos quais, a quem
interessasse, adicionava-se um ano de curso de didática, ao final do qual se formavam os novos
licenciados, fundando assim o conhecido esquema “3+1”. Tem-se, dessa forma, uma separação
entre o conteúdo estudado no curso de bacharel (onde eram vistas as disciplinas do conteúdo)
e os métodos de ensino, que eram vistos apenas no curso de Didática.
Evidencio por este processo uma concepção dicotômica que ainda na atualidade norteia
muitas situações de formação de professores, isto é, a separação entre conteúdo e método. É
possível verificar nos anos subsequentes ao Decreto-Lei de 1939 a disseminação de cursos que
privilegiavam a inclusão de disciplinas com conhecimentos científicos específicos e deixavam
de lado a formação didático-pedagógica, evidentemente essencial à futura prática do professor.
Muito embora nos últimos anos se tenha, por força de lei, ampliado a carga-horária das
disciplinas didático-pedagógicas nos cursos de licenciatura e se tenha proposto o seu
desenvolvimento ao longo do curso, o histórico de dicotomias entre teoria e prática e entre
conteúdos específicos e conteúdos didático-pedagógicos acabaram por construir uma cultura
de difícil modificação em prol de uma articulação mais orgânica entre essas instâncias. Tal
situação reflete uma séria preocupação no campo da investigação sobre a formação docente,
visto que inúmeros trabalhos têm dado conta de que para compreender a identidade profissional
~ 124 ~
docente é necessário considerar os contextos sociais, culturais e políticos em que se insere a
atividade do professor e a especificidade da profissão, que também decorre do fato que muito
daquilo que o professor sabe sobre a escola, o ensino e os alunos, foi aprendido quando se
sentava nos bancos da escola. A sua experiência anterior como aluno está muito presente nas
suas expectativas sobre a profissão (OLIVEIRA, 2004, p. 88).
Tudo o que se pensa sobre a profissão de professor acaba influenciando a construção
identitária. Isso porque uma identidade profissional se constrói, pois, a partir da
significação social da profissão; da revisão constante dos significados sociais da
profissão; da revisão das tradições. Mas também de reafirmação das práticas
consagradas culturalmente e que permanecem significativas. Práticas que resistem a
inovações porque prenhes de saberes válidos às necessidades da realidade
(OLIVEIRA, 2012, p. 5)
Uma vez que os professores necessitam dar respostas que consideram de ordem imediata
às questões que, invariavelmente, não foram discutidas durante sua formação inicial, suas
práticas são permeadas, na maioria das vezes, pelos ideais da tendência tradicional, inspirada
na racionalidade técnica. Essa atitude, assegura Valente (2008), é decorrente de práticas e
saberes que vêm de diferentes épocas. Amalgamados, reelaborados, descartados,
transformados, eles constituem a herança através da qual é possível a produção atual dos
professores de matemática.
Ao que tange nosso foco neste excerto, uma das primeiras referências à centralização
do trabalho do professor, em específico do professor de matemática, se identifica na genealogia
do docente do ensino secundário e situa o início de sua construção em 1699, discorrendo sobre
a formação de profissionais para dar conta da formação de oficiais para o manuseio de peças da
artilharia e construção de fortes (VALENTE, 1999).
Devido à complexidade matemática e densidade e linguagem estrangeira das obras
encaminhadas aos cursos de Artilharia e Fortificações, a formação não avançou muito até que
o militar José Fernandes Pinto Alpoim foi destacado para o Brasil em 1738. Iniciado nos estudos
militares na Academia de Vianna do Castelo, prosseguindo-os em Lisboa, Alpoim acumulou
experiência pedagógica, desde que foi lente substituto na Academia de Vianna do Castelo. Foi
ele quem escreveu os dois primeiros livros didáticos de matemática do Brasil: Exame de
artilheiros (1744) e Exame de bombeiros (1748). Seus ensinamentos tratam de um ensino
rudimentar de aritmética e geometria, em que os alunos copiavam parte da obra lhes apresentada
e resolviam problemas envolvendo quantidades de balas em uma pilha tomando-se exemplos
contidos no livro.
~ 125 ~
Fig. 09 – Página do livro Exame de Artilheiro de 1744.
Mais à frente na história, com fins a formação da elite brasileira após a Independência,
a sociedade hegemônica se viu diante da necessidade de preparar seus filhos para a admissão
nos cursos estrangeiros. Então criam os cursos preparatórios de língua francesa, gramática
latina, retórica, filosofia racional e moral e geometria, que ao ser requerida nos exames dos
Cursos Jurídicos ascende à categoria de saber de cultura geral (VALENTE, 1999).
Na República, com a criação do Colégio Pedro II, e as novas exigências para o ingresso
no ensino superior, se destacou o matemático Jerônimo Pereira Lima, que escreveu o texto
Pontos de Geometria para provas escritas nos exames da instrução pública da Corte. O material
continha 45 páginas impresso em 1869, disposto em uma estrutura simples para ser decorada,
contendo o tema, as definições, os processos de aplicação do objeto e os teoremas a ele
associado, tudo com pouca linguagem simbólica, expediente bastante próprio a exames orais.
~ 126 ~
A função pedagógica do professor era então a de fazer com que os alunos fixassem os pontos
dos exames.
A partir de 1930, surgem as primeiras faculdades responsáveis pela formação dos
professores da época. Surge nesta época a Matemática como disciplina escolar. Aumenta-se o
acesso ao estudo das classes menos favorecidas e o número de livros didáticos em produção.
Destacam-se como autores Euclides Roxo, Jacomo Stávale e Ary Quintella. Optou-se nesta
fase, não por fundir os conhecimentos matemáticos em sistemas complexos, mas em dividir os
conteúdos em aulas semanais em partes separadas, isto é, segunda se estudava Aritmética, terça
Álgebra... (VALENTE, 2004b). Aos poucos nossos ancestrais de profissão foram se
especializando não só em áreas como também em uma determinada série escolar. Em 1963, os
professores de matemática foram convidados a revolucionar o ensino por meio do que ficou
conhecido como Matemática Moderna:
(...) em que conjunto e estrutura são os conceitos que permitirão, desde o ensino
primário, com muito menos esforço do que o despendido atualmente pelo aluno,
compreender a unidade existente na interpretação de fatos que constituem não só o
que é ensinado na Matemática propriamente dita, mas também os que são
apresentados no estudo da língua pátria e da História, através de relações que guardam
e que não têm sido reveladas (Folha de São Paulo, 12 de julho de 1963 apud
VALENTE, 2008, p. 20).
Vendeu-se uma ilusão, vez que o que se apresentou foi uma matemática fragmentada da
realidade. Tataranetos do profissional militar, bisneto do preparador de cursinhos, netos do
pensar a matemática como unidade e filhos de um desencantado modo de ver a matemática
como moderna, seguimos o nosso caminho profissional na expectativa de melhor utilizar a
herança que esses parentes nos deixaram profissionalmente, construindo novas práticas e
saberes com esse legado (VALENTE, 2008).
Constitui um agravante à situação de privilégios às disciplinas específicas quando
compreendemos que as referências a nós apresentadas, bem como a oportunidade de
vivenciarmos certas questões enquanto licenciandos e posteriormente como professores, nos é
revelada mais que apenas uma falta de diálogo entre as disciplinas didático-pedagógicas e
específicas, mas percebemos divergências de ordem político-epistemológica entre as áreas.
Por exemplo, o estudo de Santos (2011) sobre os Currículos dos Cursos de Licenciatura
em Matemática no Brasil, traz evidências de que tais divergências podem ser observadas nos
diferentes posicionamentos assumidos pela Sociedade Brasileira de Educação Matemática –
SBEM, e pela Sociedade Brasileira de Matemática – SBM, diante de uma mesma questão: a
~ 127 ~
carga horária de 2800h e integralização do curso de Licenciatura em Matemática em três anos,
conforme proposta nos “Referenciais Curriculares Nacionais dos Cursos de Bacharelado e
Licenciatura em Matemática”. Ao posicionar-se contrária à proposta, a SBM argumenta:
A questão chave na formação do licenciando, em termos da qualidade de sua atuação
como educador, é seu domínio do conteúdo, do modo de pensar e das estratégias de
solução de problemas característicos da matemática. Esta questão chave não está
equacionada adequadamente pelas diretrizes curriculares vigentes, e ao ampliar a
formação desejável do licenciando, os Referenciais diluem ainda mais este foco
essencial (Apud SANTOS, 2011, p. 48).
Ao tratar da mesma questão, em resposta à CNE/CP 9, a SBEM também argumenta seu
posicionamento, contrário à SBM:
O domínio dos conteúdos matemáticos é fundamental para o desenvolvimento de
competências profissionais para a docência na Educação Básica. Dominar conteúdos
matemáticos é necessário, entretanto, não suficiente para a formação do professor,
tendo em vista os desafios inerentes à sua atuação profissional. O licenciado em
Matemática, além de conhecimento matemático, deve ter sólida formação pedagógica
que o permita realizar a transposição didática dos conteúdos, levando em consideração
as necessidades, motivações e nível de desenvolvimento dos aprendizes dos ensinos
fundamental e médio. Considerar que o conhecimento dos conteúdos matemáticos é
suficiente ou prioritário na formação é, no mínimo, uma posição ingênua daqueles que
não têm conhecimento da realidade da escola básica (Idem).
Evidencio assim que, enquanto a SBM defende o conhecimento de conteúdo como
princípio para uma “adequada” formação docente, revelando uma postura de valorização do
conhecimento específico, sem se pronunciar sobre os aspectos do âmbito pedagógico, a SBEM
salienta a importância de o professor ter domínio do conteúdo que irá ministrar, entretanto, não
o credencia como único ou prioritário à formação do professor de matemática, elencando ainda
outras modalidades de conhecimento inerentes à formação docente e, do mesmo modo,
indispensáveis a sua atuação e desenvolvimento profissional.
Não é difícil perceber por este breve histórico uma orientação hegemônica a um foco
disciplinar de privilégios aos conteúdos específicos da matemática na formação de nossos
professores. De certo, este histórico não justifica por si só a preferência dos professores de
matemática pelas disciplinas específicas, tão pouco a abrangente tendência a um ensino com
viés tradicional, técnico e de poucas aberturas ao diálogo com os alunos. Contudo, não há como
negligenciar a força que tal construção histórica tem exercido sobre a cultura docente e sobre
as concepções e posturas manifestadas pelos professores de matemática em sala de aula.
~ 128 ~
Muito embora, para pesquisadores como Chartier (1991), no emprego de seu conceito
de apropriação65 em que, como prática cultural a formação seria sempre um constructo
complexo, permeado dos significados dados pelos sujeitos às suas ações. Nestes termos, a
apropriação dos modos de tornar-se professor não seria algo transmitido de uma geração à outra,
de um formador a um formando, de forma linear, mas ela seria uma construção dialógica entre
teoria e prática, de contínuo questionamento dos pressupostos que permeiam a experiência
vivida na profissão. Assim, nos processos de formação docente, a apropriação tende a se
concentrar naquilo que é professado num dado mister. Nesse sentido, a história cultural
possibilitaria compreender como os educadores consomem de forma singular, em suas
trajetórias profissionais, as racionalidades em voga na época em que atuam.
Intrigado com as repercussões desta temática em minha pesquisa, perguntei aos meus
colaboradores se a formação exercida pelos professores das disciplinas específicas tinha lhes
proporcionado uma compreensão contributiva ao exercício da profissão no ensino básico. As
respostas ganharam contornos variados, contudo, foi-me possível evidenciar os sentidos
atribuídos pelos professores de disciplinas específicas ao seus contextos formativos, expressos
nas posturas assinaladas pelos entrevistados, que retrataram que as disciplinas específicas, com
algumas poucas exceções, tinham sido de pouca ou nenhuma contribuição ao exercício da
profissão docente no ensino básico. Contudo, atribuíam pontos positivos às posturas negativas
de alguns professores por entenderem servir de parâmetro para o que não se deve fazer em sala
de aula, como é possível evidenciar nos seguintes depoimentos:
A gente ter passado pelo professor O...., situação que foi traumática para
algumas pessoas que hoje não querem nem ouvir falar o nome dele, foi o que
mudou totalmente nossa postura quando veio Cálculo II. Todo mundo em
Cálculo II, nossa! Era um ligar de madrugada p’ra saber se o resultado estava
atendendo, porque ele dava as respostas. Será que algum número estava
errado? Se não resolveu, vamos de manhã cedo estudar! Todo mundo se
despertou para estudar. Porque os outros eram assim: Eles vinham, davam uma
apostila e cobravam o que estava na apostila e o que eles tinham dado, tirando
o O.... que na prova cobrava o que não tinha dado e dizia: “- Não é porque vi
isso que vou cobrar isso na prova. Tem que ter algo a mais!”. Obvio que o que
ele fez não foi legal, mas de alguma forma a gente tem de olhar o lado bom da
situação, todo mundo se espertou p’ras outras disciplinas específicas! Não vou
65 O conceito de apropriação tem como objetivo a produção de uma história social dos usos e das interpretações,
referidas a suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas específicas que as produzem os professores
(DUARTE, OLIVEIRA & PINTO, 2010, p. 107).
~ 129 ~
esperar só o que o professor vai passar no quadro. Não vou esperar só o que
está na apostila. Não vou só fazer os exemplos que ele deu. Vou buscar exemplos
mais complexos. Não é estudando na véspera da prova ou só estudando o que o
professor proporciona p’ra gente que a gente vai aprender. (QUEIROZ, Recorte
da Entrevista)
(...) teve também professores que a gente dizia que éramos autodidatas, porque
a gente tinha que aprender mesmo era com o livro e não lá com o professor!
P’ra mim aquela postura do professor que não estava ajudando serviu p’ra
alguma coisa, percebi que aquela postura dele estava me prejudicando, então
pensava como seria eu naquela posição de professor, naquela atitude. Será que
eu também não vou ter algumas atitudes dessas e estar prejudicando os alunos.
Eu acho bom quando temos professores bons e professores ruins. Te ajuda de
qualquer forma. O professor ruim me ajudou a saber que se aquilo não estava
me ajudando, então não iria ajudar outros alunos. (SILVA, Recorte da
Entrevista)
As falas de Queiroz e Silva apresentam críticas às posturas de alguns professores que
causaram algumas “situações traumáticas” ou que ministravam disciplinas “empurradas com
a barriga!” como ponderou Leite anteriormente. Mas também comentam que apesar das
posturas de alguns destes professores não estarem ajudando-os a compreender o conteúdo e que
deveriam “aprender era com o livro e não lá com o professor!”, os contextos representam
situações de aprendizagem positivas como o despertar dos professores para assumir a própria
formação como sua responsabilidade, independente da atuação do professor, como expressa
Queiroz ao considerar que “Não é estudando na véspera da prova ou só estudando o que o
professor proporciona p’ra gente que a gente vai aprender”, ou ainda quando Silva diz que é
“bom quando temos professores bons e professores ruins. O professor ruim me ajudou a saber
que se aquilo não estava me ajudando, então não iria ajudar outros alunos”.
Particularmente, considero que encontrar aspectos positivos em situações adversas são
perspectivas que devem ser acolhidas por profissionais da educação diferenciados, mas me
preocupa o sentimento de resignação em aceitarem posturas prejudiciais a sua aprendizagem,
pois é imperativo que todos os professores percebam a complexidade da formação e atuação
profissional docente, visto que além do conhecimento da disciplina que ministra, o docente
precisa compreender e assegurar-se da importância do desafio inerente ao processo de ensino-
aprendizagem, e dos princípios em relação ao caráter ético da sua atividade docente (LEITE et
al., 2008). Uma vez que, o novo contexto exige dos profissionais uma série de capacidades e
habilidades como pensamento sistemático, criatividade, solidariedade, habilidade de resolver
~ 130 ~
problemas, trabalhos em equipe, dentre outras, que se evidenciam incompatíveis com dinâmicas
centradas no conteúdo disciplinar e de resultados estanques ao final do livro ou lista de
exercícios.
Não obstante, a despeito da atuação dos professores de disciplina específica não
apresentarem resultados que considero de valência positiva66 nos termos de Lewin (1973), os
professores em formação conseguem tirar proveito das experiências vivenciadas nestas
disciplinas, apresentando significados e características próprios de aprendizagem docente.
Não sei se quando estiver em prática vou ser como a maioria é, mas o perfil
deles não é o que eu quero ser. Não sei se o professor de Matemática tem que
ser assim. O trabalho deles era conteúdo e prova. (SOARES, Recorte da
Entrevista)
(...) se pensarmos bem todas contribuíram. Seja no caso do preenchimento de
lacunas do que a gente não soubesse ou de uma forma que mostrasse que não
sei isso mas vou procurar. Quando se pensa assim todas as disciplinas foram
importantes. (QUEIROZ, Recorte da Entrevista)
Tomar como referência o que não deseja ser enquanto docente ou compreender a
necessidade do preenchimento de lacunas formativas pela evidência de que tais competências
não foram supridas no processo de ensino apresentam aprendizagem do tipo reflexividade
crítica sobre a realidade e de inacabamento e consciência social da profissão, que corroboram
o sentimento de que nenhum processo formativo é completo e que a formação docente é um
processo contínuo, mas também traz à tona a sensação de que a Universidade não supriu as
necessidades formativas mínimas para o exercício da profissão. Sobre esse aspecto Tedesco
(1998) e Leite et al. (2008) advertem que a formação inicial dos professores tem se dado de
forma insuficiente e aligeirada, não sendo capaz de suprir os desafios da formação docente,
visto que os programas de ensino das diferentes disciplinas estão sendo trabalhados de forma
desarticulada das demandas da prática e da realidade encontrada nas escolas, caracterizando-se
por uma concepção burocrática, acrítica, baseadas no modelo da racionalidade técnica.
É mister, portanto, na formação de professores, buscar alternativas de superação deste
modelo que considera o professor apenas como transmissor de conhecimentos, que se preocupa
apenas com a formação de atitudes de obediência, de passividade e de subordinação dos
66 Segundo a Teoria do Campo Vital, os objetos, pessoas ou situações de valência positiva atraem o indivíduo,
uma vez que este compreende que podem, ou prometem, atender às suas necessidades presentes (LEWIN, 1973).
~ 131 ~
estudantes. Aponto neste trabalho a possibilidade desta superação por meio de uma formação
profissional de base reflexiva como apontam Dewey (2011), Zeichner (1993), Fiorentini &
Lorenzato (2006), Ibiapina (2008), dentre outros.
A formação didático-pedagógica e a articulação entre teoria e prática
Continuando com minhas análises sobre as repercussões da formação inicial sobre os
tipos de aprendizagem expressos pelos professores do PIBID, identifiquei que o isolacionismo
técnico não é privilégio apenas das disciplinas específicas de matemática, haja vista existirem
diversos estudos críticos sobre a contraposição entre teoria e prática, como os de
Pimenta(2006), Tardif (2007) e Becker(2012), que apontam as disciplinas didático-pedagógicas
como representantes de uma teoria que se entende onipotente em suas relações com a realidade
e conferem à prática um caráter de mera aplicação ou degradação da teoria (PIMENTA, 2006b).
Sobre isso, autores como Fiorentini (2006; 2009) e Tardif (2007) salientam que noções tão
vastas quanto a Pedagogia, Didática, Aprendizagem, etc., não têm nenhuma utilidade se não
fizermos o esforço de situá-las, isto é, de relacioná-las com as situações concretas do trabalho
docente. Uma vez que,
O perigo que ameaça a pesquisa pedagógica e, de maneira mais ampla, toda pesquisa
na área da educação, é o da abstração: essas pesquisas se baseiam com demasiada
frequência em abstrações, sem levar em consideração coisas tão simples, mas tão
fundamentais, quanto o tempo de trabalho, o número de alunos, a matéria a ser dada
e sua natureza, os recursos disponíveis, os condicionantes presentes, os saberes dos
agentes, o controle da administração escolar, etc. (TARDIF, 2007, p. 115)
O problema constitui-se, pois, quando essas pesquisas se apresentam como materiais de
referência ou apoio aos cursos de formação docente. Essa escolha pode ocasionar o tipo de
formação Top-Down denunciada por Zeichner (1993) como sendo prejudicial à construção de
um espírito investigador, crítico e reflexivo sobre a sua própria prática, e sobre as condições
sociais nas quais se situa esta prática. Evidências deste tipo de formação foram declaradas pelos
professores em formação, como segue:
Eu já tinha um ano [de curso], e no início do segundo eu falei: - Quando eu
pegar meu diploma vou fazer outra coisa, porque isso não tem nada a ver
comigo! Isso porque de matemática só tínhamos tido duas disciplinas
específicas, o resto só era ‘leitura, leitura, leitura’! (QUEIROZ, Recorte da
Entrevista)
~ 132 ~
Quando ingressei na Universidade minha expectativa era de dar continuidade
ao que tive no ensino médio, com pesquisas na área de matemática mais
aplicada e computacional. Porém me deparei com uma matemática mais básica
e com muitas disciplinas pedagógicas no primeiro ano de curso, e a falta de um
laboratório de exatas e a precariedade do “Labinf”, não negarei que isso me
frustrou muitas vezes (...) depois de quase um ano de disciplinas pedagógicas
estava meio despreparado para uma [disciplina] especifica. (LEITE, Recorte da
Entrevista)
As queixas de Queiroz e Leite são um misto de decepção por estarem em um curso que
dava ênfase às questões didático-pedagógicas em detrimento das disciplinas específicas e a falta
de compreensão, no primeiro ano de curso, da importância das disciplinas didático-pedagógicas
para um exercício pleno da profissão docente. Preocupa-me, porém, a incipiente articulação
destas disciplinas ao caráter prático da docência, sendo este o provável motivo da desmotivação
apresentada. Minha justificativa encontra respaldo quando evidenciamos que, a partir das
dinâmicas experienciadas na formação do PIBID em que promovemos a articulação entre teoria
e prática, os professores passaram a atribuir significado aos textos didático-pedagógicos que
antes eram vistos de forma dogmática.
De início acreditei que havia escolhido errado por um curso de licenciatura, no
entanto quanto mais aprendia sobre educação mais esse universo me chamava
atenção, e a entrada no PIBID foi o empurrão que precisava para começar a
me esforçar mais nas disciplinas pedagógicas. Em compensação as disciplinas
especificas que foram as que mais esperava durante todo curso a maioria deixou
a desejar com carga horaria muito baixa e com professores que aparentavam
não estar bem preparados para ministrar essas disciplinas. (LEITE, Recorte da
Entrevista)
A insuficiência de articulações entre teoria e prática, especificamente provenientes de
debates em grupo, é preocupante em nossa instituição. Sobre isso Cury (2001) aponta que
mesmo docentes com experiência na Educação Básica, ao atuarem na licenciatura esforçam-se
em apresentar os conteúdos sem qualquer preocupação pedagógica. Em contrapartida, Shulman
(1986a, 1986b, 1987), Zimmermann (1997) e Pereira (2000) evidenciam em suas pesquisas que
ensinar ciências e matemática, conforme as mais modernas teorias construtivistas, além de
requerer profundas mudanças nas concepções pedagógicas dos professores, exige destes
profissionais um profundo conhecimento do conteúdo científico (específico), pedagógico e da
interação entre os conteúdos das disciplinas científicas básicas e os das disciplinas pedagógicas.
~ 133 ~
Saliento que, embora compartilhe da defesa apregoada por Shulman (1986a) sobre a
integração das disciplinas pedagógicas e de conteúdo específico, esta articulação não fora
evidenciada em meu estudo de caso sobre a formação dos professores de matemática do
Campus X em Igarapé-Açu. Longe de ser uma característica institucional local, esta baixa
articulação pode causar sérios prejuízos à formação dos professores, e em consequência à
educação proveniente da atuação destes sujeitos, sobretudo daqueles que não possuem
oportunidades de reverem suas práticas e/ou de participarem de comunidades de prática que
possuam a reflexão coletiva como premissa para suas atuações docentes. Fato é que os
significados atribuídos pelos professores em formação inicial às disciplinas pedagógicas,
sobretudo, em seus primeiros anos de curso, constituem elemento altamente desmotivador.
Quando eu me inscrevi eu achava que a gente ia ver o que tinha visto no colégio,
só que de uma forma mais aprofundada. Mas não. Quando a gente entra pensa
que vai aprender a matemática, jamais que vai aprender a lecionar matemática.
Então muita gente saiu no primeiro ano por causa disso. “- Eu não estou vendo
matemática! Só fico fazendo leituras! Só textos!”. Muita gente quando se
inscreveu não se ligou nesse detalhe que faz toda a diferença no curso.
(QUEIROZ, Recorte da Entrevista)
Evidenciei tanto nesta fala como nas dos demais entrevistados que as expectativas
iniciais dos professores em formação, quando ingressaram na Universidade, eram motivadas
por um estereótipo de matemático cuja vida profissional é dedicada aos cálculos laboriosos e
lida com sofisticados sistemas computacionais, como lembra Queiroz ao dizer que “Quando a
gente entra pensa que vai aprender a matemática, jamais que vai aprender a lecionar
matemática!”. Impera neste momento, tanto uma imagem construída pelo histórico que
anteriormente apresentei, como a carência ou superficialidade de informações e orientações
sobre as atividades a serem desenvolvidas pelos estudantes e os objetivos dos cursos oferecidos
pela Universidade. Todavia, é possível uma tomada de consciência e uma mudança de
concepção acerca da formação na Universidade. Sobretudo, se promovida a articulação entre
as instâncias formativas de modo a dar significado à presença dos professores na Universidade
por meio de ações extracurriculares como as que desenvolvemos pelo PIBID, como evidencia
a declaração de Queiroz sobre o tema:
Eu acredito que se não fosse a prática eu seria muito diferente. Eu acredito que
teria continuado com o mesmo ritmo do primeiro ano. Estudava e fazia prova.
Jamais teria parado para refletir como as nossas atitudes atingem as pessoas
~ 134 ~
que estão ao nosso redor. Ai é que está. Essa diferença de pensamento se fosse
só a Universidade eu não teria esse tipo de pensamento. Acho que não seria tão
bom assim. Obvio que sempre tem que mudar. Por exemplo, as coisas que
aconteceram no PIBID, se hoje acontecessem eu iria agir de uma forma
diferente. (QUEIROZ, Recorte da Entrevista)
Os professores em formação foram unânimes em dizer que a participação no projeto
PIBID foi fundamental a sua mudança de perspectiva sobre a carreira docente. Tais ponderações
indicam a proposição de que o projeto PIBID, nos moldes da reflexão sobre contextos de
experiências colaborativas, cumpriu seu papel articulador entre a Universidade e Escola, Teoria
e Prática e entre o Ensino, a Pesquisa e a Extensão. Os elementos até então levantados dão
conta de que a problemática das articulações presentes nas relações institucionais dos
envolvidos nos processos formativos de professores deve ser atacada com projetos que
perspectivem a integração de tais elementos, como o GCEM tem feito desde 2011. Contudo,
parece-me insuficiente assegurar tal eficácia sem a devida explicitação e análise do percurso
formativo dos sujeitos envolvidos no projeto. Deste modo, passo à discussão mais específica
sobre as Atividades Extracurriculares, e me centrarei mais propriamente no percurso específico
desenvolvido no PIBID junto aos professores de matemática em formação inicial.
Os contornos das atividades extracurriculares
Em 1968, foi escrita uma carta intitulada “Carta da Escola Moderna” que constitui um
texto básico de todos os movimentos que antecederam à pedagogia de Célestin Freinet (1896 –
1966) e que trabalhavam na construção da Escola Nova. Dentre seus princípios considero de
interesse central a de número 6 (seis), que diz: A pesquisa (o tateamento) experimental é a base
e a primeira condição do nosso esforço para a modernização e cooperação escolar. Penso que
se assentam ai mais do que um simples discurso, mas uma carga semântica inconfundível e um
caráter político-social que comporta uma gama de anseios educacionais para época e que ainda
hoje ressoam como dizeres necessários nos ambientes de formação docente. Posto que, falar de
pesquisa experimental no sentido de Freinet é falar de experiência da prática, experiência
refletida (DEWEY, 2011), experiência de vida e a própria vida (LARROSA, 1995).
Ao levantar a questão da experiência afirmo que quando estou tratando por instância
formativa constituída pelas/nas atividades extracurriculares, estou propondo como campo de
interface de experiências as formações de diversos gêneros, sobretudo informais (formações
~ 135 ~
em línguas estrangeiras, computação básica, corte e costura, pintura, cerâmica, redação de
poesias, equitação, natação, aulas de violão, etc.) e formais (treinamentos técnicos variados,
estágios extracurriculares, iniciações científicas, extensões universitárias, iniciações à
docência, etc.). Sem deméritos, a diferenciação que faço é se tais experiências cumprem um
papel formativo não obrigatório à formação inicial do profissional docente de modo que o seu
não cumprimento não afete sua certificação acadêmica.
Ainda sem um aprofundamento em termos de especificações laborais legais, distingo
aqui como formais as experiências institucionalizadas pela instância acadêmica formadora ou
órgãos de fomento que possuem por agenda o incentivo à formação ou aprimoramento do
profissional de nível superior e que exijam condições específicas como critérios de participação.
Em seu turno, as atividades informais, muito embora possuam caráter altamente contributivo à
constituição cidadã de um sujeito, não configuram propriamente, objeto de interesse das
instancias formadoras formais e/ou não possuem critérios rígidos para acesso às atividades a
elas correspondentes, sendo geralmente chamadas de cursos livres.
Vale registar a tessitura de uma crítica a como as atividades extracurriculares vêm sendo
concebidas nas últimas duas décadas. Atividades e ações formativas que antes visavam uma
diferenciação do sujeito em termos profissionais e/ou intelectuais, atualmente estão se tornando
instrumentos para a correção de distorções observadas nos espaços específicos da formação
inicial. Exemplo disso são as proliferações de cursos de aperfeiçoamento e de extensão que em
lugar de atualizarem os profissionais em questões relevantes da sociedade, novas tecnologias e
métodos de ensino, acabam por retomar discussões mal resolvidas na formação inicial ou que
nunca foram tangenciadas por esta. O mesmo papel tem cumprido o PIBID, objeto de minha
apreciação neste trabalho, que surge como uma proposta inovadora, mas que evidencia
possibilidades formativas integrativas que poderiam ser perfeitamente incorporadas ao
currículo formal e serem desenvolvidas nos cursos regulares de formação docente inicial, algo
que não se faz por condicionamentos de ordem orçamentária e/ou política.
Lentes de renome como Fiorentini & Lorenzato (2006), Gonçalves (2006), Leite et al.
(2008), dentre outros, salientam a importância de os cursos de formação de professores, antes
de tudo, superarem o modelo da racionalidade técnica para lhes assegurar a base reflexiva na
sua formação e atuação profissional. Recorro ao pronunciamento destes pesquisadores para
sustentar um olhar quase sempre ausente nas instâncias construtoras dos currículos e planos
pedagógicos dos cursos de matemática. Visto que as mais recentes adequações à Lei de
~ 136 ~
Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 – LDB, com seus pareceres e resoluções
normatizando um conjunto de 800 horas constituídas de 400 horas como componente curricular
e de 400 horas de estágio supervisionado, continuam desacompanhadas de um projeto
consistente de acompanhamento e avaliação da qualidade destas horas de formação. Sobre isso,
Leite et al. (2008, p. 24) evidenciam que,
Pesquisas recentes têm mostrado que os professores não estão recebendo preparo
inicial suficiente nas instituições formadoras para enfrentar os problemas encontrados
no cotidiano de sala de aula. Os programas estão, de um modo geral, sendo
trabalhados de forma independente da prática e da realidade das escolas,
caracterizando-se por uma visão burocrática, acrítica, baseada no modelo da
racionalidade técnica.
O autor e seus colaboradores reiteram, ainda, que as agências formadoras de professores
devem perceber a complexidade da formação e da atuação desse profissional, pois além da
disciplina que irá ministrar, o docente precisa ter condições para compreender e assegurar-se
da importância e do desafio inerente ao processo de ensino-aprendizagem, bem como dos
princípios em relação ao caráter ético da sua atividade docente. Sobre essa questão, os
entrevistados de minha pesquisa foram categóricos em afirmar que a Universidade, enquanto
agência responsável por sua formação inicial, não lhes ofereceu condições suficientes para o
exercício da profissão, como é possível evidenciar nas seguintes falas de Silva e Leite.
Eu não me senti preparada pela Universidade. Os professores comentam, eles
falam que a sala de aula não é isso que a gente pensa, que tem algumas
complicações, mas eu não me senti preparada. (SILVA, Recorte da Entrevista)
(...) quando atuei pelo PIBID apenas estranhei a falta de interesse de alguns
alunos. Posso constatar que se não tivesse essas oportunidades provavelmente
não estaria preparado para atuar em sala, pois a Universidade não dá suporte
para o necessário ganho de experiência, por mais que se tenha duas disciplinas
de prática. (LEITE, Recorte da Entrevista)
Compreendo pelos depoimentos que, em vista às distorções apresentadas pela formação
inicial, o projeto PIBID, embora lhe pese a crítica anterior de slep hole67, surge como um
componente extracurricular importante, na compreensão pelo professor em formação, do papel
da escola pública e de seu verdadeiro papel como professor. Reconhecendo que por mais
abrangente que fosse a formação lhe disponibilizada, ainda assim seria insuficiente para dar
67 Termo cunhado por mim para expressar o sentido de tapa-buraco.
~ 137 ~
conta em pare-passo de todas as competências necessárias para agir na urgência e decidir na
incerteza do ambiente complexo que constitui a escola (PERRENOUD, 2001).
O percurso de formação
Constitui interesse fundante deste trabalho compor uma sistematização das experiências
colaborativas que contribuíram para a aprendizagem docente dos professores envolvidos neste
processo formativo que foi o PIBID de Matemática. Porém, antes de um maior aprofundamento
nas questões referentes à categorização da aprendizagem e evidências de desenvolvimento
profissional dos professores em formação, apresento um breve esclarecimento sobre o macro-
percurso formativo experienciado pelos bolsistas que ilustro pelo seguinte diagrama:
Fig. 10 – Macro-contornos da formação docente.
Assim como o diagrama anterior, esta representação me surge da reflexão sobre os
discursos e depoimentos dos sujeitos investigados sobre suas trajetórias formativas, que aqui
defino por macro-contorno experiencial de formação. Compatível com a representação
anterior, esta nova configuração apresenta como componente importante da constituição
identitária do professor de matemática a sua formação básica, por ser nesta etapa que o sujeito
realiza a escolha pelo curso em que vai se especializar, e também por seu caráter recursivo e
decisivo nas escolhas iniciais da profissão durante a formação inicial, visto que o primeiro ano
de curso se apresenta como um campo de instabilidades em que ocorrem as maiores incidências
de desistência, bem como se assenta uma nova compreensão sobre o que constitui o objeto de
~ 138 ~
estudo na licenciatura, isto é, o sujeito se depara com uma dimensão de teorias e tecnologias
que justificam o emprego de certas tarefas e técnicas na solução de situações problemáticas
(CHEVALLARD, 1991; 1992), sendo esta uma experiência impactante e inusitada até então
em seus estudos disciplinares.
Como já explicitei anteriormente, o período de formação inicial é constituído de
componentes disciplinares específicas, didático-pedagógicas e extracurriculares, sendo esta
última o lócus principal de discussão deste trabalho. Esta fase do percurso formativo do
professor é decisiva para a consistência de sua transição entre a formação oficial e sua atuação
profissional, é, portanto, a fase em que novas formalizações se darão por meio de dinâmicas de
formação continuada, pós-graduações e/ou pela reflexão sobre sua própria prática docente.
Análises do Percurso Formativo no PIBID de Matemática
Experiências de preparação para o ingresso em sala de aula
O percurso de constituir-se professor de matemática implica um processo intenso de
aprendizagem e socialização numa profissão. Independentemente das trajetórias e escolhas
assumidas, é certo dizer que este processo é rico em experiências e que constitui um
emaranhado complexo de fatores determinantes na construção da identidade profissional.
Embora alguns estudiosos como Leite et al. (2008) propaguem que o processo prático e a
aprendizagem da profissão na prática não são suficientes para estabelecer conexões neurais para
instaurar uma cognição que provoque novos comportamentos e atitudes que encarem, percebam
e conduzam o processo no sentido de superar as dificuldades que o cotidiano escolar nos
apresenta, o que em parte concordo. Percebo também, que a situação de carência de
investimentos diferenciados em termos de práticas na formação inicial do profissional docente
tem implicado em uma má formação destes professores, que não recebem preparo suficiente
para o enfrentamento das novas demandas da realidade da escola pública. Esta situação
contribui para o que Veenman (1984) caracterizou como “choque de realidade”68.
68 Sentimento de insegurança, medo e despreparo profissional e busca de equilíbrio diante das contradições entre
seus princípios e ideais pessoais construídos ao longo do processo de formação e os desafios, os problemas e
constrangimentos do mundo da prática profissional (ROCHA & FIORENTINI, 2009). Ou ainda, o “colapso entre
os ideais missionários construídos durante a formação inicial e a dura e complexa realidade da vida da sala de
aula” (VEENMAN, 1984, p. 143).
~ 139 ~
Por outro lado, no sentido de superação desta realidade, pesquisadores como Tedesco
(1998), Pimenta (1999), Ponte (1996, et al 2009), Polettini (2009), Zeichner (1993), Fiorentini
(2006, 2010, 2013), dentre muitos outros, assumem o paradigma de valorização do pensamento
do professor, e investem seus esforços na caracterização do desenvolvimento profissional
docente, substancializada por investigações e problematizações de experiências, que suscitam
reflexão crítica sobre problemas destacados do cotidiano escolar, capazes de dar suporte a uma
progressiva análise pessoal e coletiva em busca da construção de uma identidade docente.
Assumindo esse novo paradigma, busquei sustentar as situações de preparação para o
ingresso em sala de aula, dos professores em formação inicial pelo PIBID, em atividades que
possibilitassem o exercício de apropriação dos instrumentos de observação e reflexão de suas
experiências. Trabalhamos, em um primeiro momento, na construção de um glossário básico
de educação, na construção de resenhas críticas e na elaboração de diários reflexivos para o
registro de experiências vivenciadas, como auxílio ao desenvolvimento de uma “escuta
sensível”69, necessária em um segundo momento, quando adentrassem no cotidiano escolar
propriamente dito.
A produção do glossário básico de educação
Pensei na atividade de produção de um glossário básico de educação junto aos bolsistas
do PIBID, motivado pela compreensão de que uma das maiores dificuldades na entrada em um
novo ambiente profissional é a apropriação dos códigos simbólicos que constituem a linguagem
própria deste contexto. Para Ponte (1997) a comunicação associada ao discurso dos integrantes
de um grupo tem a ver com o modo como os significados são atribuídos e partilhados pelos
interlocutores em situações concretas e contextualizadas. Sendo assim, a comunicação se torna
imprescindível à apropriação de novos referenciais, novas ideias e novos comportamentos, visto
que ela é uma forma de interação social (ALMIRO, 1997), e como tal, implica diferentes
oportunidades de aprendizagem de novas visões sobre o ensino e a aprendizagem da matemática
defendidas pelos participantes (WOOD, 1998).
69 Neste trabalho, o conceito de escuta sensível se insere no paradigma da pesquisa-ação apresentado por Barbier
(2007) que a vê como um “escutar/ver” que apoia-se na empatia, no sentir do universo afetivo pelo pesquisador.
Um saber sentir o imaginário e cognitivo do outro, para “compreender o interior”, as atitudes e os comportamentos,
o sistema de ideias, de valores, de símbolos e de mitos.
~ 140 ~
A atividade se desenvolveu em três etapas. Em uma primeira etapa enunciei trinta
verbetes que considerava centrais para iniciar as nossas discussões sobre educação. Destaquei
termos como: educação, reflexão, professor, aluno, ensino, aprendizagem, colaboração,
matemática, diálogo, avaliação, etc. De certo, para cada verbete incidia uma gama enorme de
possibilidades interpretativas. Contudo, a simples consulta ao dicionário prejudicaria o sentido
educativo da atividade, posto que, a exemplo do que assina-la Vygotsky (2005, p. 66):
Ao invés de trazer à tona, por instigação, o pensamento, esse método frequentemente
suscita uma mera reprodução do conhecimento verbal, de definições já prontas,
fornecidas a partir do exterior. Por ser um teste do conhecimento e da experiência, ou
de seu desenvolvimento linguístico, em vez de um estudo, processo intelectual
propriamente dito. Em segundo lugar, ao centrar-se na palavra, esse método deixa de
levar em consideração a percepção e a elaboração mental do material sensorial que dá
origem ao conceito. O material sensorial e a palavra são partes indispensáveis à
formação de conceitos. O estudo isolado da palavra coloca o processo no plano
puramente verbal, que não é característico do pensamento. A relação entre o conceito
e a realidade continua inexplorada; aborda-se o significado de uma determinada
palavra através de uma outra, e o que quer que se descubra por meio dessa operação
é antes um registro da relação entre famílias de palavras previamente formadas, do
que um quadro dos conceitos.
Deste modo, em vez de iniciarmos pela pesquisa, antes solicitei que descrevessem, a
partir de suas experiências prévias, seus (pré)conceitos associados aos verbetes enunciados.
Deste modo, os professores poderiam explorar seu pensamento e tornar ostensivas suas ideias
e relações acerca dos termos tomados em consideração. Em um segundo momento solicitei que
realizassem uma consulta destes mesmos verbetes em livros, revistas especializadas, textos da
internet e afins. Esta atividade tinha por finalidade que os professores buscassem se apropriar
dos termos e suas respectivas acepções em conformidade com as obras institucionalizadas, de
acordo com as produções da comunidade a qual se propunham participar. E, por fim, em um
terceiro momento, solicitei que comparassem o que tinham produzido antes e o que tinham
encontrado na literatura a respeito. De modo que os professores confrontassem sentidos e
construíssem novas relações com os objetos estudados. Invariavelmente, os professores
declararam ter aprendido muito com a atividade, expressando-se como segue:
Achei muito interessante a gente poder pensar o que realmente compreende por
uma palavra. Qual eu acho que seja o significado dela. Achei interessante, uma
lista de palavras que eu tinha que significa-la de acordo com a minha
concepção, sem ajuda de algum autor, e perceber qual a diferença da minha
concepção para o sentido da palavra. Eu tinha uma concepção que poderia se
aproximar daquele sentido, mas ela não significava aquilo. E palavras que eu
desconhecia, mas quando eu parava para pensar, para tentar fechar um
~ 141 ~
contexto para essa palavra, apesar de eu desconhecê-la, o significado dela, de
certa forma se aproximava do significado real. Parar, pensar e refletir o que
determinada coisa significa me faz pensar ser interessante que você pode até
não acertar “na mosca”, mas você vai dar um significado aproximado para ela,
que você pode dar um significado para uma palavra sem ela perder o sentido.
A sua concepção dela pode ser diferente da que está lá como significado real,
mas para você aquele significado tem o sentido da sua concepção. Eu achei
muito interessante esse raciocínio de pensar sobre o significado de determinada
palavra. (SENA, Recorte da Entrevista)
Outros esboçaram um sentido à própria atividade e que ganhos futuros poderia
expressar:
Eu acredito que a tarefa era p’ra gente aprender alguns significados que a gente
iria estar revendo durante o projeto. O que os outros autores tinham p’ra dizer
e a gente comparar os significados, p’ra gente estar entendendo. (SILVA,
Recorte da Entrevista)
A tarefa possibilitou-nos problematizar a complexidade inerente ao papel da linguagem
na conduta de nossas ações enquanto profissionais da educação, visto termos que zelar por uma
transposição de saberes junto a nossos alunos que, embora não desvalorize o que é cotidiano,
rotineiro e usual, também não sucumba a simples expressão com assento no senso comum, visto
estarem se constituindo como profissionais e deverem se apropriar dos sentidos científicos
atribuídos a velhos termos e agregar novos objetos e sentidos antes não percebidos ou
construídos, tais como podemos perceber no seguinte depoimento.
Tinham palavras que eu não sabia, como “disciplinaridade” e outra mais difícil
de falar. A gente tinha que fazer antes, sem olhar no dicionário ou pesquisar e
tinha que fazer depois pesquisando. Várias eu não sabia o que significava, e
outras que a gente pensava que sabia o que significava quando tentava escrever,
também não conseguia. Por exemplo, aprendizagem, ensino, cognição, e várias
outras. Ora, quando eu aprendo alguma coisa está ocorrendo aprendizagem, e
o ensino? Era muito superficial a gente escrever isso no papel. Várias palavras
eu escrevia com superficialidade mesmo. Quando a gente vai pesquisar, a gente
vê que existem coisas que vão muito além do que a gente imaginava que era.
Tinham palavras que realmente eu nunca tinha visto. Foi muito “engraçado”
fazer. Depois quando a gente foi pesquisar, procuramos em dois dicionários
diferentes e na internet, porque algumas complementavam a resposta um do
outro. Tinham palavras que a gente achava que eram simples e não eram, outras
a gente achava dificérrima, até de pronunciar, e quando via dava um período
que se resumia no dicionário em uma linha. As vezes só a palavra assusta a
gente, mas quando se sabe a palavra se torna tão natural. Como o senhor falou,
“Não façam ao contrário, não vão pesquisar depois escrever! Façam a
experiência de fazer só com o que vocês sabem até agora.”. A minha cabeça era
~ 142 ~
de ensino médio, muitas coisas lá eu colocava mesmo o que eu achava que talvez
fosse parecido com aquilo. Depois que a gente ia pesquisar, é que era
“engraçado”. As vezes não tinha nada a ver como que a gente tinha escrito no
caderno. (QUEIROZ, Recorte da Entrevista)
De um modo geral concluí, semelhantemente a Vygotsky (2005), que o conceito em si
e para os outros existe antes de existir para o próprio sujeito, ou seja, a pessoa pode até aplicar
palavras corretamente antes de tomar consciência do conceito real uma vez que utiliza um
grande número de palavras com o significado apropriado. Isso ocorre porque partilham de um
mesmo contexto dos mais experientes, mas baseadas em operações psicológicas diferentes
(características concretas/significações abstratas); isso significa que o conceito no sentido real
não está desenvolvido. Ou seja, todo conhecimento é primeiramente interpsicológico para
depois tornar-se intrapsicológico, mais uma vez evidenciando o sentido da socialização
profissional.
Deste modo, compreendo que esta atividade cumpriu seu papel formativo, uma vez que
a partir desta tarefa os professores foram postos em suspensão, tiveram talvez pela primeira vez
que expressar a um coletivo o que pensam e refletir sobre isso de modo crítico e
instrumentalizado. Os professores foram postos em relação com objetos da educação,
expressando com isso uma relativa mudança de estado e compreensão da realidade que lhes se
apresentou deveras complexa. Considero, porém, que a aprendizagem de um vocabulário
adequado e suficiente para adentrar nas obras de educação matemática poderia ter sido
conduzido pela imersão nos próprios textos científicos. Contudo, este processo desprenderia
demasiado tempo, que avaliava que não dispúnhamos, fazendo-me optar pela primeira
condução. De posse deste vocabulário mínimo, pudemos desenvolver uma segunda experiência,
a produção de resenhas.
A produção de resenhas
A produção de resenhas foi pensada visando propiciar aos bolsistas do PIBID uma
experiência reflexiva e técnica em que pudessem, de maneira complementar à atividade de
produção do glossário, se apropriar de conceitos educacionais mediante o exercício da leitura e
escrita. Optei assim pela resenha, por ser um gênero textual que possibilita mais do que a
compreensão de um conteúdo (livro, artigo, filme, exposição, etc.) por meio de um registro
sistemático, mas abre uma porta para vivenciar a realidade. Concordando com isso, Freire
~ 143 ~
(1989) expressa que o processo que envolve uma compreensão crítica do ato de ler, que não se
esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, se antecipa e se alonga
na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, sendo que linguagem
e realidade se prendem dinamicamente.
O valor formativo da resenha, pois, está situado na compreensão do texto, a ser
alcançada por sua leitura crítica que implica a percepção das relações entre o texto e o contexto.
No sentido freireano, ao ensaiar escrever, os professores se sentem levados a "reler" momentos
fundamentais de suas práticas, guardados na memória, desde as experiências mais remotas da
infância, da adolescência, de mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de
ler neles se constitui. Os professores em formação resgatariam, deste modo, vivências da
formação básica e seus significados, que os auxiliaria na construção crítica do registro que se
materializara pela escrita.
Imbuído deste sentimento, partilhei esta compreensão com os professores, convidando-
os a produção de resenhas críticas (vide apêndice 3), cujos depoimentos destaco a seguir:
A resenha foi uma das primeiras que eu fiz e foi muito trabalhosa. Com o pouco
conhecimento que tinha, fazer uma resenha, ter uma concepção sobre
determinado texto, saber interpretar e analisar determinado texto. Eu posso não
ter interpretado corretamente, mas a resenha em si eu já sabia qual era o rumo
que ela poderia tomar, ou seja, ela foi trabalhosa porque eu não estava
acostumado a interpretar texto, acostumado a interpretar aquele tipo de texto
principalmente. Mas não foi algo do outro mundo, algo que eu não tinha me
deparado. Na época entendia como uma tarefa, hoje como algo que eu possa
compreender. A resenha, e os trabalhos, me fizeram despertar para a vontade
de pesquisar e escrever algo. Na época a gente tinha muitas outras coisas para
escrever, mas já estava em mente, parava de madrugada e pensava: “Eu tenho
que fazer isso!”, “Eu tenho que dar o meu ponto de vista sobre isso!”. Em
relação à pedagogia e matemática eu sempre questionei: “Por que a grande
maioria dos acadêmicos de matemática, nas três primeiras disciplinas
pedagógicas, se perguntava: ‘Por que estou aprendendo isso?’, ‘Eu nunca vou
usar isso!’, e ‘O que tem de importante para a matemática?’”. Aquela coisa, as
resenhas, os resumos, o hábito de escrever, o hábito de pesquisar, tentar
compreender, escrever o que pensa sobre algo, foi me instigando a querer
também dar minha opinião escrita, formalizada, uma pesquisa formalizada.
Digamos que foi um start. (SENA, Recorte da Entrevista)
O professor Sena destaca que na época da proposta de produção da resenha, a atividade
teve para ele um caráter de tarefa a ser cumprida, mas com o tempo assumiu um sentido de
iluminação de ideias – “Eu tenho que fazer isso!”, “Eu tenho que dar o meu ponto de vista
~ 144 ~
sobre isso!”. A partir da experiência, Sena desenvolve uma curiosidade epistemológica – “A
resenha, e os trabalhos, me fizeram despertar para a vontade de pesquisar e escrever algo” -,
que o faz querer emitir sua opinião por meio da elaboração de projetos futuros.
Outro interessante depoimento é feito por Queiroz, ao destacar que:
Algumas coisas talvez eu ainda não saiba fazer, mas eu sei que, quando eu leio
um texto, sempre penso em procurar nos autores que eu já li o que eles falam a
favor ou contra o que a pessoa do texto está “falando”. Eu fico pensando, ou a
pessoa leu o trabalho dele ou ele leu o da outra pessoa p’ra fazer seu trabalho.
Ai eu vou procurar p’ra saber quem escreveu primeiro, p’ra saber quem
primeiro pensou na coisa. Quando vejo textos muito idênticos, eu não me
aquieto enquanto não encontrar a referência que se usou. As vezes [a pessoa]
não fala com base em quem falou primeiro, mas eu sei que já li sobre em algum
lugar e vou procurar. Por exemplo, o texto de aprendizagem, eu não vou me
contentar em só ler o que ela escreveu, eu vou procurar outros textos e me apego
a coisas mais detalhadas, ideias que ela coloca, argumentos que ela coloca. Vou
procurar outras coisas p’ra ver se vão “bater” com o que ela disse, ou se não
“bate”, e se não “bater”, eu vou buscar outra coisa p’ra tentar argumentar. É
muito engraçado. Na primeira vez eu fiz muito rápido, deu um pouco mais que
uma página, e no final não falo nada com nada. Acho que só recortei algumas
partes que considerava mais importantes e hoje eu acho que não eram. A autora
exemplificava, mas quando eu resenhei, tinham só os exemplos, mas não o
contexto que ela estava exemplificando. Nesse sentido, eu posso de cara pegar
um texto e não saber dizer “fulano de tal fala disso, disso e disso!” Mas quando
a gente pega [um texto agora], consegue raciocinar melhor em cima disso,
pensar argumentos, pensar em textos, pensar se ele vai por essa linha aqui!
Vamos questionar sobre isso! (QUEIROZ, Recorte da Entrevista)
É possível perceber no depoimento de Queiroz a mudança de perspectiva para com a
leitura que processa ao se deparar com um texto científico hoje. Antes sua produção tinha “um
pouco mais que uma página” e no final avalia que não dizia “nada com nada”. Mas atualmente
a experiência lhe propiciou a construção de estratégias de apropriação do texto, em que assume
uma postura inicial de imparcialidade ao “procurar nos autores que eu já li o que eles falam a
favor ou contra o que a pessoa do texto está ‘falando’”. Essa nova postura assina-la uma
mudança que passou a lhe possibilitar o alargamento de seu senso crítico, posto que hoje
“consegue raciocinar melhor em cima disso, pensar argumentos, pensar em textos”,
demonstrando uma reflexividade crítica sobre a realidade.
A experiência de produção de resenhas não constituiu um fim em si mesmo, e seu papel
de fazer emergir o senso reflexivo e crítico sobre o que se lê e instrumentalizar os professores
~ 145 ~
de uma técnica de apropriação de conceitos subjacentes aos textos científicos cumpriu-se
enquanto objetivo. Contudo, ao serem questionados se continuavam fazendo resenhas os
professores foram unânimes em afirmar que não. A exemplo,
A experiência eu achei muito boa. Eu pensava que sabia fazer uma resenha, mas
eu descobri que não sabia. Quando o senhor ministrou a aula de como fazer
resenha foi muito gratificante. Agora eu digo que sei fazer uma resenha. Não
faço mais resenhas porque não dá tempo. Logo quando iniciei o TCC eu fazia
resenhas, mas depois não deu mais tempo. Eu fiz um cronograma com dia e
hora, mas nunca dava tempo p’ra gente fazer. (FIGUEIREDO, Recorte da
Entrevista)
A justificativa que Figueiredo atribui para a não produção de resenhas é a falta de tempo.
Argumento este compartilhado pelos outros entrevistados. Entretanto, independentemente da
produção dos registros estruturados, como procedi na transposição do tema, os professores
destacaram compreensão da lógica inerente ao ato de ler, que lhes impunha um ponto de vista,
ou vários pontos de vista, que necessitam ser interpretados, confrontados com outros pontos de
vista, de modo a lhes garantir uma apropriação conceitual libertadora e construtora de
autonomia. Evidencio, assim, a superação da imperativa lógica tradicional em que os
professores tinham que memorizar mecanicamente a descrição do objeto. Uma memorização
mecânica da descrição, que não se constitui em conhecimento do objeto. Substituindo-a por
uma lógica interpretativa de mundo, uma vez que passaram a aprender a ler a partir de uma
significação mais profunda.
A produção dos diários reflexivos
A discussão em grupo sobre a produção de diários reflexivos agregou um último passo
à instrumentalização inicial dos professores em formação no PIBID, antes de ingressarem em
sala de aula. A escolha por este instrumento se deve a uma dupla funcionalidade, uma vez que,
se por um lado me auxiliaria na materialização de dados sobre as experiências dos professores
que proveriam minha pesquisa de segunda ordem, de outro modo, a produção textual dos
professores, acreditava eu, cumpriria um papel altamente formativo, visto que o diário é um
instrumento que contribui para refletir sobre os acontecimentos da vida quotidiana, em
específico das experiências em sala de aula, reuniões do grupo e participações em eventos.
~ 146 ~
A produção dos diários daria suporte ao registro das experiências dos professores, ao
mesmo tempo em que a materialidade das experiências possibilitaria sua releitura e análise,
conduzindo os professores a produção de sentidos ao vivido, tais como: sentimentos,
preocupações, afetos, frustrações, ambiente de aula, o que se fez, atitudes dos alunos, proposta
de ações ou perspectivas alternativas. Neste sentido, o diário serviria para preservar as vivências
e as percepções dos fatos de uma distorção que, com o tempo, a memória lhes vai introduzindo
(ALVES, 2004).
A transposição do instrumento que operei junto ao grupo caracterizava-se pela
descrição/narração de uma aula ou prática educativa em que o autor deveria se posicionar o
tempo todo em relação aos acontecimentos, refletindo, interpretando e analisando. Esse tipo de
diário deveria conter: impressões, comentários e opiniões do observador sobre o meio social
onde realiza suas observações, seus erros, dificuldades, confusões, incertezas e temores, suas
boas perspectivas, acertos e sucessos, suas reações e as dos demais participantes, incluindo
gestos, expressões verbais e faciais, etc.
Um fator complicador, porém, em tarefas que envolvem a comunicação escrita,
nomeadamente a elaboração de registros escritos discursivos (que utilizem a escrita não
estritamente simbólica ou formal) é que, de um modo geral, sofrem certa resistência por parte
dos professores de Matemática, uma vez que essas tarefas não lhes são oportunizadas, com
muita frequência, nos cursos de Licenciatura em Matemática. Diferentemente da situação em
que os professores produziram significados a partir do estudo dos verbetes educativos e da
produção de resenhas, tarefas as quais possuíam, de algum modo, referências de apoio. A
produção de diários requeria destes sujeitos uma escrita livre, criativa e espontânea. Contudo,
no início, as produções variaram de composições com estrutura pouco clara, com divagações e
pouca estética a descrições muito simples e assépticas das ocorrências, como exemplifico a
seguir:
Neste dia trabalhamos a finalização do contexto histórico e posteriormente
partimos para uma pesquisa bibliográfica sobre a sequência didática de
funções, em que esta se mostrou bastante difícil, pois não havíamos
compreendido de forma correta o que realmente deveríamos procurar. (SENA,
Diário de 19/03/12)
O texto acima não se trata de um trecho do diário, mas o registro completo do dia.
Quando inquirido sobre o porquê da escrita sintética o professor respondeu que o que escrevera
lhe permitia, a qualquer tempo, resgatar todo o significado das ocorrências do dia. Longe de
~ 147 ~
discordar na ocasião de sua decisão e poder de memória, visto que havia me posicionado
anteriormente quanto a liberdade que teriam para se expressar de acordo com seus sentimentos,
penalizava-me àquela altura, porém, a perda de oportunidade por parte dos professores de uma
escrita mais aprofundada, em que se posicionassem sobre suas experiências e reavaliassem suas
atitudes. Penso que houve, naquele momento, descaso com a proposta, visto que os professores
não seguiam as recomendações para a elaboração dos diários sob uma perspectiva reflexiva.
A situação só iria mudar com o início das incursões em sala de aula, quando os
professores se deram conta da complexidade do ambiente e suas imbricadas relações. Presumo
que a nova experiência de acompanhar uma turma que lhes impunha a demanda de observar o
contexto e dele extrair contribuições para a elaboração de seus trabalhos de conclusão de curso,
forneceu o significado que faltara à tarefa de elaboração dos diários, os quais passaram das
sínteses descritivas às narrativas críticas e interpretativas, como a exemplificada a seguir:
Neste dia seria a segunda recuperação, o que me deixava muito intrigada. Será
que uma revisão de um dia com algumas questões faria diferença na hora da
recuperação? Ou não mudaria o resultado da primeira recuperação? Fiquei
pensando se eles, os alunos, não se esforçavam na primeira já sabendo que
teriam outra chance, considerada por eles mais fácil. Fica a reflexão. A
professora então distribuiu as provas, e um aluno disse: “- São as mesmas
questões da recuperação anterior?”. Eu não entendi a lógica, e a professora
justificou que não teve tempo de elaborar outra [prova]. Durante a prova
pudemos perceber que muitos alunos não sabiam como responder, diziam que
não sabiam antes e não sabiam agora. Logo me veio à mente o questionamento
feito anteriormente: Será que estava sendo útil uma reavaliação dessa forma?
Pois mesmo sendo a prova idêntica à anterior, muitos não conseguiam resolver
nem uma questão. A professora me chamou e pediu que eu ajudasse o mínimo,
pois já tinham tido muitas chances e agora era p’ra eles fazerem sozinhos.
Fiquei me questionando: Qual o motivo dessa segunda recuperação? Tentar
elevar as notas da turma somente? Acabou a prova e muitos não haviam feito
sequer uma questão. A professora disse que corrigiria a prova e depois os traria
as notas. Estou intrigada e curiosa para ver as notas. (QUEIROZ, Diário de
21/08/12)
Nesta etapa a professora em formação já possuía um ano de projeto e alguns meses de
incursão em sala de aula, acompanhadas paralelamente por leituras e discussões com o coletivo
do grupo em que problematizou continuamente os processos e posturas docentes observados no
ambiente escolar. A escrita deste diário, que data do terceiro dia de acompanhamento de classe
do segundo semestre, apresenta algo diferente dos diários elaborados até então, que é
~ 148 ~
justamente um caráter crítico-reflexivo no lugar dos diários descritivos sintéticos apresentados
no primeiro ano de projeto.
Vale lembrar que, a esta altura, o exercício de reflexão e registro das ações vivenciadas
tinha sido a tônica das atividades de construção das sequências didáticas no período em que a
rede pública se encontrava de greve. A partir daí a professora Queiroz parece ter compreendido,
por meio destes exercícios e da necessidade de informações para sua investigação da prática, o
valor formativo de um registro reflexivo que, em conjunto com sua vivência de sala de aula e
leituras prévias, passam a lhe auxiliar na identificação de pontos críticos do cotidiano escolar.
Outro exemplo de uma mudança na escrita dos diários se expressa pelo seguinte registro:
Sempre me surpreendo a cada primeiro dia de aula, apesar de ter tido a
oportunidade de estar em diferentes salas de aula. Esse é o nosso primeiro dia
com o novo professor supervisor. Ao entrar na sala os alunos pareciam bem
calmos, o que me deu uma tranquilidade. O que observei primeiramente foram
os aspectos físicos, a sala de aula é muito pequena e tem muitos alunos,
tornando-se difícil o professor andar dentro da sala de aula para poder auxiliar
os alunos durante a resolução dos exercícios. A sala não possui ventilador e
nem ar condicionado, tendo a janela e a porta como os únicos lugares por onde
pode entrar ventilação e, já que a quantidade de alunos é grande e a sala
pequena, fica muito quente e a aula quase sempre é nos últimos horários, sendo
mais quente. Segundo o professor foi preciso trocar as carteiras confortáveis
por carteiras desconfortáveis pela falta de espaço da sala, já que as carteiras
antigas ocupavam grande espaço. Como menciona Rotta (2006), para que a
criança tenha um bom aproveitamento escolar é essencial que a escola tenha:
boas condições físicas de sala de aula, que se relacionam com um ambiente
seguro, limpo, arejado, com boa iluminação e com um limite aceitável de alunos
em cada turma. Mas o que vimos foi o contrário. O professor iniciou a aula com
o conteúdo de MDC. Após explicar o novo assunto para a 3ª avaliação, o
professor passou um exercício de fixação para os alunos resolverem. Foi nesse
momento que intervimos ajudando os alunos na resolução do exercício. Ao final
da aula nós ficamos com o professor conversando. Ele disse que durante essa
semana nós só iríamos ficar observando a aula, que seria o tempo para poder
conhecer a turma, e que somente na próxima semana nós iríamos assumir.
(SOARES, Diário de 16/08/12)
A professora Soares realiza uma narrativa interessante sobre seu primeiro dia de
acompanhamento de turma no segundo semestre. Como já mencionado os professores em
formação não tiveram a oportunidade de acompanhar as turmas no primeiro semestre do ano
letivo, devido as paralizações de greve. Mas este tempo foi compensado com leituras e reflexões
no ambiente de discussões do GCEM. Mais uma vez observo que este tempo de
~ 149 ~
amadurecimento teórico instrumental foi significativo para os professores em formação, posto
que a exemplo de Queiroz, Soares também passa a redacionar seu diário com mais sensibilidade
e riqueza de detalhes. Seu registro me leva a entender que houve conscientização quanto ao
valor formativo do diário, sendo-lhe um suporte à reflexão e socialização de sua prática. Seu
caráter descritivo sobre o ambiente apresenta séria consideração sobre as condições da sala de
aula para o exercício do trabalho docente. Apresenta, assim, uma sensibilidade ecológica em
que pontua os intervenientes à condução da turma e implicações no contexto das interações em
sala. O resgate de um referencial teórico para expressar com mais detalhes o que observa na
situação é um diferencial em relação aos diários até então apresentados pela professora. Isso
demonstra um avanço em sua assunção da autoridade docente, pois ilustra a compreensão da
teoria como instrumento de auxílio à reflexão de um contexto para uma possível intervenção
prática.
Mais uma vez, é possível destacar que a aprendizagem da docência não constitui um
processo de imposição de saberes aos formandos, mas configura uma construção de sentidos
que cumulativamente racionalizam as decisões e motivam a ação docente, constituindo, assim,
um processo de socialização, de identificação com a profissão e, consequentemente, de
desenvolvimento profissional.
A passagem através do espelho e instalação da dualidade
Experiências de incursão em sala de aula
A incursão em sala de aula já na formação inicial constitui um importante começo na
busca pela construção de uma base sólida para o exercício da atividade docente. Para consolidar
esta crença, é preciso conceber a experiência como objeto de reflexão que conjugada com a
teoria é capaz de auxiliar o professor na percepção e compreensão de sua própria maneira de
pensar e agir. No entanto, para que a expectativa de socialização e desenvolvimento profissional
aí subentendidos se consolidem, é importante que esta incursão no ambiente escolar não se
configure como um procedimento burocrático, com simples preenchimento de fichas,
observação e regências desacompanhadas de meta-análises destas práticas.
Cumpre papel importante, neste sentido, o princípio colaborativo que deverá
acompanhar as ações deste professor iniciante, possibilitando-lhe um diálogo aberto com seus
~ 150 ~
pares e investidas supervisionadas junto as classes de alunos. Uma vez estabelecida esta
cumplicidade, surgem para o sujeito perspectivas promissoras de ocorrência de aprendizagem
da docência, dinamizada pela reflexão crítica sobre a experiência, que o leva a repensar sua
ação, a ação dos sujeitos envolvidos nos processos educativos em seu microssistema, bem como
compreender as decisões tomadas nos meso e macrossistemas. Essa postura reflexiva, nestes
termos, possibilita-lhe assumir uma nova identidade institucional relativa ao seu novo modo de
agir e pensar, às suas (re)estruturadas concepções de mundo e de conhecimento frente às
práticas institucionalizadas e expressas pela cultura e tradição das instituições.
Como já situei anteriormente, um obstáculo que se tem apresentado a esta incursão em
sala de aula é a visão de ensino comumente construída pelos professores durante sua formação
inicial nas universidades, que tem suscitado o propalado “choque de realidade” (VEENMAN,
1984). A incursão antecipada em sala de aula, que constitui uma prerrogativa do projeto PIBID,
assume, por hipótese, que as preocupações inerentes a esta fase de entrada na carreira, como
bem define Huberman (2000), seriam vivenciadas previamente pelos professores durante esta
etapa de formação.
Compreendo, no entanto, que por estarem amparados por profissionais com excedente
de visão próprios (BAKHTIN, 2011), tanto da academia, quanto das escolas em que se
processam as incursões, os professores estariam melhor preparados para lidar com as
contingências impostas pelo contexto escolar. Sob esta mesma ótica, Nacarato et. al. (2006, p.
206), ponderam que,
No seu trabalho solitário na escola, na maioria das vezes, o professor não toma a sua
prática como objeto de reflexão e investigação. Assim, ao fazer parte de um grupo que
planeja, discute, registra e analisa junto as atividades desenvolvidas em sala de aula,
ele não apenas se conscientiza de seu fazer pedagógico, como adquire uma postura de
professor-investigador.
Este modo de pensar, funda um outro sentido à formação docente, um que rompe como
as concepções tradicionais de formação que engendram teorias para futura aplicação pelos
professores na prática (DEWEY, 2011), e muda o espectro para uma lógica de parceria entre
Universidade e Escola, em que o interstício entre estas se configura como lócus de preparação
de professores, desafiando a hegemonia da Universidade como o único ambiente de formação
docente. Neste sentido, um trabalho mais aprofundado é necessário, pois, sobre as
potencialidades deste novo lócus de formação dos professores.
~ 151 ~
Os sujeitos de minha pesquisa foram unânimes em relatar que a preparação junto ao
GCEM lhes propiciou o suporte necessário a esta imersão em sala de aula, como se pode
evidenciar no seguinte depoimento:
Eu acredito que se não fosse a prática eu seria muito diferente. Eu acredito que
teria continuado com o mesmo ritmo do primeiro ano. Estudava e fazia prova.
Jamais teria parado para refletir como as nossas atitudes atingem as pessoas
que estão ao nosso redor. Ai é que está. Essa diferença de pensamento se fosse
só a Universidade eu não teria esse tipo de pensamento. Acho que não seria tão
bom assim. O choque de realidade mesmo a gente teve quando estava no PIBID.
Se eu pegar uma turma da EJA, em que eu nunca trabalhei, vai ser muito
diferente. Mas não é que eu sei como fazer lá, mas eu sei como eu posso aprender
para fazer lá. Eu posso buscar metodologias para ensiná-los. É esse o
pensamento que a gente tem. A gente nunca vai ter tudo ao dispor para fazer,
mas a gente tem hoje na cabeça que é possível fazer. Como e vou fazer? Não sei.
É melhor do que a “certeza” de saber como trabalhar com isso, porque você
vai cair no tradicional, na mesmice e pronto. Quando tu “não sabes”, passam
mil coisas na tua cabeça p’ra fazer. Eu acho que só a Universidade não
prepara, e nem o PIBID, mas acho que deveriam ter grupos para discutir, fazer
um projeto na escola, tem que ter. Porque isso muda muito. Muda a forma como
a gente pensa, de verdade. Eu acredito assim: “Eu não sei fazer, mas não vou
deixar p’ra lá! Eu vou tentar! Vou ver como eu posso fazer. Vou pedir ajuda se
for necessário, e tentar fazer!” É esse pensamento que valeu a pena em todo
esse processo do PIBID. (QUEIROZ, Recorte da Entrevista)
A professora Queiroz afirma que “só a Universidade não prepara”, e pondera que “nem
o PIBID” é capaz de lhe garantir todos os conhecimentos necessários para o exercício da
docência, posto que esta atividade é repleta de incertezas. Neste sentido, porém, o grupo lhe
garantiu a possibilidade de “refletir como as nossas atitudes atingem as pessoas que estão ao
nosso redor”, expressando, portanto, uma sensibilidade ecológica e reflexividade crítica sobre
a realidade que lhe faz perceber seu inacabamento. Este sentimento de incompletude, no
entanto, não é visto como algo negativo ou insuperável, pelo contrário, afirma que as certezas
é que são prejudiciais, visto “que a ‘certeza’ de saber” pode levar-nos a “cair no tradicional,
na mesmice”. Este nível de reflexão de Queiroz me faz recordar a crítica ao mundo mecanicista
de hoje, que foi abalado pela ecologia dinâmica das incertezas, sob a qual Morin (2007, p. 99)
afirma que,
A aquisição da incerteza é uma das maiores conquistas da consciência, porque a
aventura humana, desde seu começo, sempre foi desconhecida. É preciso ensinar
também que sabemos hoje que a aventura humana é desconhecida e que dispomos
apenas de dois instrumentos para enfrentar o inesperado: o primeiro é a consciência
~ 152 ~
do risco e do acaso. O segundo instrumento é a estratégia e isso implica ser capaz de
modificar o comportamento em função das informações e dos conhecimentos novos
que o desenvolvimento da ação nos propicia.
Neste sentido, Queiroz complementa: “Como e vou fazer? Não sei”, “mas não vou
deixar p’ra lá! Eu vou tentar! Vou ver como eu posso fazer. Vou pedir ajuda se for necessário,
e tentar fazer!”. Conclui dizendo ter sido este o pensamento que lhe acompanhou em todo o
processo de formação no PIBID.
A tônica das incertezas no ambiente escolar também foi objeto de reflexão de Perrenoud
(2001), para quem ensinar e avaliar são termos complementares e interdependentes, e isso
implica tomar decisões, a mobilizar recursos e a ativar esquemas, isto é, desenvolver
competências. Isso significa que ao fazermos escolhas, julgarmos, avaliarmos o que é melhor
(em termos de nossas referências ou valores), corremos riscos, utilizamos conhecimentos ou
informações como elementos importantes nesse processo, em que devemos saber argumentar,
enfrentar situações-problema, elaborar propostas, compreender fenômenos, enfim, participar
como sujeitos ativos em um sistema complexo. Esse nível de socialização é evidenciado em
grande parte na declaração do professor em formação inicial a seguir:
Eu lembro que no segundo dia de aula os alunos estavam falando um pouco
mais alto, e mesmo eu conversando com eles, controlando a situação, de vez em
quando aparecia um que queria falar muito alto, que queria aparecer, ai eu
trouxe um livro para eles que falava sobre morais de histórias. Eu li uma parte
do livro que falava sobre uma carroça vazia. Ia um garoto sentado ao lado do
pai, levando vários sacos dentro da carroça e o pai disse: “- Lá longe vem uma
carroça vazia!”; e o filho não entendia porque, e quando chegou perto o filho
viu que a carroça estava vazia realmente. Então perguntou ao pai como ele
sabia que a carroça estava vazia, e o pai disse: “- É simples meu filho, carroça
vazia faz mais barulho!”, ou seja, se você faz mais barulho quer dizer que não
está aprendendo, muito barulho por pouca coisa quer dizer que aquilo não tem
significado para você. E com uma coisa que não tinha haver com o meu
conteúdo eu consegui puxar aquele aluno de volta para prestar atenção naquilo
que a gente tentava compreender. (SENA, Recorte da Entrevista)
Na situação é possível perceber que Sena passou por um momento crítico em que
necessitou tomar uma decisão, posto que “vez em quando aparecia um que queria falar muito
alto” inviabilizando a condução da aula. O professor precisou avaliar a situação e tomar uma
decisão. Dentre inúmeras possibilidades que poderia ter encaminhado, variando de atitudes
como chamar a atenção do aluno de uma forma mais enérgica, retirá-lo de sala, chamar o
professor regente para tomar ele a atitude necessária, ou ainda, como habitualmente observamos
~ 153 ~
ocorrer nas escolas, poderia deixar a situação de lado e considerar a aula por lecionada. Mas
sua atitude foi diferenciada, pois demonstrou ponderação e eloquência ao buscar “um livro para
eles que falava sobre morais de histórias”. Buscou entre as várias histórias que certamente
compunham o livro, aquela que julgou ter afinidade com a situação experienciada e, mais uma
vez, de forma competente leu “uma parte do livro que falava sobre uma carroça vazia”, e
interpretou a história dizendo que “se você faz mais barulho quer dizer que não está
aprendendo, muito barulho por pouca coisa quer dizer que aquilo não tem significado para
você”. Finalizou sua narrativa oral declarando que “com uma coisa que não tinha haver com o
meu conteúdo eu consegui puxar aquele aluno de volta para prestar atenção naquilo que a
gente tentava compreender”.
De certo que a estratégia habilmente mobilizada por Sena poderia não ter surtido o efeito
desejado, mas também é correto dizer que a simples manifestação de inquietação com a situação
que se desdobrava, identificando o que chamo de “ruído” no processo de ensino, já configura
uma aprendizagem do tipo sensibilidade ecológica, que, por sua vez, levou-o a tomar uma
decisão que lhe mobilizou a construção de uma solução para o ocorrido. Ao resgatar de seu
equipamento praxiológico70 os elementos necessários à ação, demonstrou uma aprendizagem
do tipo instrumentalidade tecnológica e estratégica do ensino. E, finalmente, por esta escolha
envolver, em vez das atitudes variantes enunciadas acima, uma ação comunicativa, Sena
expressou sua assunção da autoridade docente quando empregou habilmente sua
dialogicidade da comunicação e da atuação docente.
Inúmeros foram os casos mapeados em que os professores manifestaram outras
categorias de aprendizagem adequadas ao exercício docente. Contudo, na composição deste
trabalho sou levado a optar apenas por alguns recortes que julgo suficientes para a expressar
cada faceta deste complexo projeto que desenvolvi. Neste sentido, retomarei, assim que
oportuno, outros episódios sobre as experiências de sala de aula que evidenciam os processos
de aprendizagem que constituíram o percurso de socialização e constituição identitária destes
sujeitos. Assim, abordarei outra etapa do percurso formativo experienciado pelos professores
integrantes do PIBID, em específico as situações de participação do grupo em eventos
científicos.
70 Constitui o conjunto de relações do sujeito para com um objeto estabelecidas por processos de assujeitamentos
institucionais.
~ 154 ~
Experiências de participação do grupo em eventos científicos
Com a aceleração dos meios de comunicação e informação, com a vasta proliferação de
pesquisas de toda ordem e áreas do conhecimento, com o desenvolvimento de tecnologias e
maquinários mais precisos e elaboração de teorias as mais variadas para explicar fenômenos e
solucionar problemas que a muito vêm encucando os cientistas, pesquisadores e educadores,
vejo que as Universidades, com seus cursos regulares e currículos pouco maleáveis se tornaram
obsoletos como mecanismo de divulgação deste vasto mundo do conhecimento. As reuniões de
classe e encontros científicos se tornaram, por isso, um imprescindível mecanismo de busca e
apreensão de novos conhecimentos e compartilhamento da cultura científica dos grupos sociais
acadêmicos. Diante deste contexto, SMITH (1991, p. 133) adverte que:
Para compartilharmos da cultura de um grupo social devemos compartilhar de uma
mesma base categórica que organiza nossa experiência; isso significa desenvolvermos
uma “teoria de mundo” que dá sentido ao que somos expostos e nos impede de
enfrentarmos o novo com perplexidade. Em outras palavras, vemos o mundo e
tentamos compreender seu funcionamento, com “óculos conceituais”. Inicialmente
com conceitos cotidianos, alternativos, espontâneos, ou pré-conceitos, que vão dando
lugar aos conceitos científicos.
Os eventos científicos têm, portanto, a finalidade de reunir profissionais e/ou estudantes
de determinadas especialidades para realizar trocas e transmissão de informações de interesse
comum dos participantes. Pensando nesta dinâmica estratégia de socialização, passei a incluir
no itinerário formativo de meus colaboradores a participação em eventos do gênero. Considerei,
a exemplo de minha própria formação, que esses eventos científicos, além de propiciarem maior
convívio dos professores no ambiente acadêmico, teriam caráter complementar às discussões
do grupo, uma vez que as palestras, cursos, oficinas e seminários, acreditava eu,
proporcionariam maior envolvimento, participação e troca de ideias e experiências,
imprescindíveis a compreensão do atual ambiente de transformações da sociedade e da
profissão docente.
Sobre a participação em eventos científicos o professor Sena destaca o seguinte:
O que me marcou muito mesmo foi a frase de uma professora que disse: “É bom
saber que existe pesquisa em Igarapé-Açu”. Igarapé-Açu era uma localidade
estranha e ainda é uma localidade estranha para muitas pessoas,
principalmente na capital [Belém]. Mas participar de eventos na capital,
levando pesquisas formuladas pelo grupo de pesquisa, pelo PIBID, a partir de
discussões, sendo apoiadas por esse grupo, sendo apoiada pelo PIBID e chegar
~ 155 ~
lá e ter o reconhecimento de que nós estávamos não só levando nosso nome, mas
levando o nome do Campus Universitário de Igarapé-Açu, e que aqui também
se fazia trabalhos e que ninguém estava brincando, que aqui, apesar das
dificuldades, a gente tinha capacidade. E também com relação a poder
conversar, de poder até mesmo discutir, mesmo sabendo que poderíamos estar
“anos luz deles!”. Um acadêmico discutir com um doutor, dentro de uma mesma
sala em que este doutor apresenta um trabalho, doutores e mestres assistindo e
a gente ter a oportunidade de discutir com eles, de conversar com eles. Essa
participação em eventos me deu uma autoestima muito grande. Sou acadêmico
do curso de matemática de Igarapé-Açu e estou aqui em Belém, estou aqui em
Campinas, discutindo com doutores e mestres, “que diacho é isso?!”. E por
incrível que pareça a minha opinião estava sendo relevante para eles. Quando
a gente foi ao ENDIPE conversar com professores que falavam da utilização de
recursos tecnológicos, foi engraçado ver um doutor dizendo “Realmente isso é
importante!”. Foi uma situação que até então não tinha presenciado. (SENA,
Recorte da Entrevista)
O depoimento do professor Sena é deveras feliz, pois aponta para aspectos formativos
relevantes que ensejam aprofundamento teórico sobre a formação em/a partir de eventos. Esta
abordagem, além de necessária conduz a um campo pouco explorado, uma vez que se situam
as possibilidades de aprendizagem em eventos como um fim em si mesmos, isto é, uma vez
encerrados, os eventos não são objetos de reflexão coletiva, quando muito, indicam tendências
que possibilitam a produção de projetos do tipo estado da arte ou, na melhor das hipóteses,
mobilizam algum grupo social à promoção de alguma ação afirmativa. Contudo, atividades
reflexivas de formação que prevejam a retomada das discussões levantadas nos eventos pouco
são exploradas.
Da exposição de Sena me foi possível destacar quatro aspectos formativos relevantes
acerca da participação em eventos, os quais sejam:
1) Mudança de contexto da formação – ao deslocar-se para um evento o sujeito tem a
possibilidade mudar de ambiente e contexto de formação. A própria viagem constitui um
momento a ser agregado como de valor formativo, pois o sujeito interage com seus colegas
podendo estabelecer vínculos mais fortes de amizade que potencializam os processos
colaborativos do grupo. A chegada no evento constitui um momento único de vislumbre de
mudança de ares, o transporte não é apenas físico, mas psíquico. A experiência oferece ao
sujeito novas contingências, nova cultura institucional e novos jogos sociais são iniciados. Há
o encontro de culturas e cabe ao sujeito representar a sua e fazer-se reconhecer, ou como afirma
Sena: “É bom saber que existe pesquisa em Igarapé-Açu”;
~ 156 ~
2) Divulgação científica e socialização do conhecimento pelo diálogo – um dos objetivos
principais da participação em um evento é a divulgação de resultados de pesquisas, sejam
produções inéditas, levantamentos bibliográficos ou relatos de experiência. Do ponto de vista
da pesquisa como formação a divulgação se traduz, geralmente, como a última etapa do
processo de produção científica. Neste sentido, “participar de eventos na capital, levando
pesquisas formuladas pelo grupo de pesquisa, pelo PIBID, a partir de discussões, (...) e chegar
lá e ter o reconhecimento de que (...) aqui também se fazia trabalhos e que ninguém estava
brincando” agrega valor ao que se faz, ao que se produz. A divulgação de uma compreensão
social sobre um dado objeto, constitui o momento de diálogo com os pares e demonstra que “a
gente tinha capacidade (...) com relação a poder conversar, de poder até mesmo discutir,
mesmo sabendo que poderíamos estar “anos luz deles!”, isto é, evidencia que a produção
intelectual não é um bem cuja posse esteja nas mãos apenas dos grandes pensadores, mas é um
processo de construção democrático, ao alcance de todos que estejam dispostos a lutar por ele,
mesmo que o primeiro passo neste sentido seja modesto;
3) Assunção no mundo acadêmico científico – a participação em eventos visa formar cidadãos
capazes de reconhecer e definir termos científicos, compreender ideias básicas do atual
conhecimento científico e ainda, saber aplicar tal conhecimento, posicionando-se de forma
crítica, reflexiva, consciente e atuante, em situações atuais e reais. Neste sentido, participar de
eventos científicos possibilita ao professor em formação inicial identificar-se como
profissional, “discutir com um doutor, doutores e mestres dentro de uma mesma sala em que
este doutor apresenta um trabalho”, “ter a oportunidade de discutir com eles, de conversar
com eles” e poder ouvir deles que “isso é importante!”;
4) Elevação da autoestima – O contato com profissionais e pesquisadores de locais e
instituições diferentes, em um ambiente de diálogos francos e mentes abertas constitui um
ambiente único a constituição do professor pesquisador. Tanto mais acolhedora for a relação
estabelecida entre os integrantes de um evento, maior será a constituição identitária deste
professor em formação. Percebo isso quando Sena declara que “por incrível que pareça a
minha opinião estava sendo relevante para eles” e “Essa participação em eventos me deu uma
autoestima muito grande”.
A participação do professor Sena nos eventos científicos lhe propiciou experiências que
possibilitaram a consubstanciação da sua assunção da autoridade docente, visto que passou a
se entender como um profissional, com direito a participação e voz no ambiente educacional,
~ 157 ~
além de assumir a responsabilidade de fazer parte de um grupo, respeitando-o, assumindo-o e
divulgando sua cultura institucional.
Em meio a tantos pontos positivos, sou obrigado a alertar para resultados que merecem
atenção por parte do formador que almeje fazer dos eventos uma estratégia de formação
profissional. Recordo da advertência de Dewey sobre o excesso de indulgência que, neste caso,
pode ser desencadeado quando há uma preparação do grupo para a participação em um evento.
Isto é, a preparação pode se tornar um conhecimento ou experiência que impossibilita a
significação de novas perspectivas sobre o assunto durante as dinâmicas do evento, dando a
entender para o sujeito que nada mais há de novo a se considerar, inviabilizando experiências
educativas futuras. Embora sutilmente, esta perspectiva pode ser evidenciada em algumas falas
dos professores, como no seguinte exemplo:
Achei aquele [evento] de modelagem tão legal. Talvez por ser o primeiro, estava
muito empolgada, foi muito bom. A gente foi p’ra uma sala em que estava tendo
uma discussão, o “Bassanezi” estava lá. Tinha umas mulheres paulistas
doutoras falando tudo enrolado e eu lá atrás falei bem baixinho que sou
graduanda e participo de um grupo. Fiquei até com vergonha! Mas quando se
tratou da discussão eu percebi que nosso nível não está tão longe do deles. Eu
fiquei depois pensando sobre o que aconteceu: “Será que eles não sabem tanto?
Ou estavam procurando estar no nosso nível? Ou a gente sabe muito?”. P’ra
mim foi dos melhores. (SOARES, Recorte da Entrevista)
Minha preocupação era a de que certas abordagens prévias sobre os assuntos a serem
discutidos em um evento configurassem obstáculos epistemológicos71 aos saberes em tela nos
encontros. Contudo, em relação aos preparativos realizados pelo GCEM, parece que a
inquietação fora superestimada, visto que considerações como a de Leite dão um sentido próprio
a situação em questão:
Durante o VII CNMEM, que ocorreu na UFPA, constatei um fato muito
gratificante. Foi perceber que professores de grande nome no cenário da
educação matemática estavam debatendo sobre a modelagem matemática em
um nível muito acessível para o grupo do PIBID, assim sendo, vemos que o que
debatíamos nas reuniões do grupo estava de certa forma próximo dos níveis de
explanações de professores bem conceituados. (LEITE, Recorte da Entrevista)
71 Esses obstáculos ocorrem no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem, por uma espécie de imperativo
funcional, lentidões e conflitos. É causa de estagnação e até de regressão conceitual (BACHELLARD, 1996).
~ 158 ~
Chega a ser lisonjeira a declaração de Leite, mas traduz nossos esforços conjuntos em
prol de uma formação de qualidade. O que mais uma vez é reconhecido nos destaques de
Queiroz:
Eu gostei muito quando a gente foi p’ro encontro de modelagem. Era muito
engraçado. Quando a gente lia um texto, ou a gente achava que o autor estava
morto ou tinha uma realidade totalmente diferente da gente. Quando a gente
encontrou um autor lá, a gente teve um choque muito grande. Por exemplo, o
Bassanezi, em que a gente ficou no minicurso dele. A gente tinha lido uns textos
de modelagem antes, e tinham umas ideias lá. E quando ele foi falar, parecia
que ele estava lendo o texto dele. Era muito “engraçado”! Outra coisa, no
congresso, quando a gente foi, parece que era um grupo que tinha discutido
vários textos e mesmo na presença do Bassanezi ninguém estava acanhado de
falar. No primeiro momento estava todo mundo acanhado porque ele
perguntava de onde tu eras e tudo o mais. Agente dizia que era do PIBID, de
Igarapé-Açu. Ele disse eu sei, vocês são os meninos do Emerson. Parecia que
ele conhecia a gente, ele parecia próximo da gente. Diferente de quando a gente
lia os textos dele. Parecia um cara de outro planeta quando a gente lia os textos
dele, mas quando a gente o viu, parecia outra pessoa. A gente pensa que todo
mundo que escreve bem, pensa rápido e de uma maneira muito bem articulada
já viveu muito e já está quase morrendo. Quando a gente vê que a pessoa é bem
novinha fica “besta”! O evento foi muito grande, eram muitas coisas p’ra ver e
nem tudo era específico de matemática, em vários lugares, mas p’ra mim foi
demais! (QUEIROZ, Recorte da Entrevista)
O depoimento de Queiroz demonstra mais uma vez a importância da mudança de contexto
da formação, uma vez que a nova ambientação traz ganhos, principalmente “Quando a gente
lia um texto, ou a gente achava que o autor estava morto ou tinha uma realidade totalmente
diferente da gente” e no evento “Quando a gente encontrou um autor lá, a gente teve um
choque muito grande”, pois o autor “Parecia que ele conhecia a gente, ele parecia próximo da
gente. Diferente de quando a gente lia os textos dele”. Como é possível observar, a participação
em eventos propicia a desmistificação de pensamentos, como o de “que todo mundo que
escreve bem, pensa rápido e de uma maneira muito bem articulada já viveu muito”.
Nossas incursões em eventos foram profícuas. Participamos de pelo menos quatro
grandes eventos nacionais e mais oito eventos locais, em que tivemos a oportunidade de
divulgar nossos trabalhos e aprender com nossos pares de outras instituições. A participação
em eventos constituiu uma consistente e promissora estratégia de formação e identificação com
a profissão docente, sobretudo articulando pesquisa, ensino e extensão.
~ 159 ~
Experiências de elaboração de Sequências Didáticas
A experiência que aqui registro e discuto refere-se ao conjunto de tarefas desenvolvidas
por meio de diálogos e considerações dos integrantes do grupo emergidos de reuniões de grupo
de estudos livres e reuniões grupo de estudos orientados. Nas reuniões de grupo de estudos
livres os integrantes do grupo se encontravam, em horário definido por eles, para a discussão,
pesquisa de referenciais bibliográficos e seleção de dados que entendessem pertinentes ao tema
de suas pesquisas. Nos diálogos de grupo orientados, seguíamos uma agenda com dia e horários
definidos no grande grupo, e os diálogos se davam com minha presença na função de
Orientador.
Para subsidiar minhas orientações aos grupos nesta experiência de construção de
conhecimentos, recorri às noções de didática da matemática de Chevallard (1991; 1996, 2005,
2009) que lida, em linhas gerais, com o trabalho coletivo em pesquisas de praxeologias em
didáticas, que se referem aos métodos e procedimentos pelos quais um conhecimento e
compreensão são alcançados e sobre a formulação sistemática e logicamente coerente com os
métodos de busca do conhecimento. Recorri ao autor por concordar com ele que este processo
de investigação e questionamento do saber a ser ensinado é, hoje em dia, mais necessário do
que nunca para combater os efeitos da rotinização e naturalização dos métodos do ensino
tradicional frequentemente utilizados.
Situações de aprendizagem nos grupos de estudo
Essa experiência teve por objetivo formativo subsidiar os acadêmicos em atividades que
dessem sentido à articulação entre o saber acadêmico e o saber da experiência, isto é, que
articulassem teoria e prática em uma ação de explicitação de uma organização matemática
(OM) materializada em uma organização didática (OD) justificada epistemologicamente72. A
tarefa previa o exercício de planejamento de um fazer docente real em um ambiente
experimental. As interações possíveis deveriam dar conta de externar relações institucionais e
ecológicas passíveis de percepção pelos integrantes dos grupos ou, em outros termos, deveria à
custa do investimento pessoal de cada um, proporcionar a aprendizagem e a abstração de
saberes docentes relativos ao estudo e planejamento do ensino da matemática.
72 Definirei apropriadamente Organização Matemática e Organização Didática maios à frente.
~ 160 ~
Para a efetivação deste percurso construtivo de uma epistemologia docente, elegi alguns
objetos que deveriam ser construídos sob a lógica do que chamamos grupo de trabalho. Cada
objeto de ensino foi (re)construído sob a tutela do orientador docente, em grupos formados por
um(a) coordenador(a) de estudos, um(a) secretário(a) e colaboradores, cujas funções
estiveram determinadas como se segue:
i) Orientador Docente: foi o responsável por formar os grupos, eleger os coordenadores de
estudo e secretários. Teve a função de distribuir tarefas aos grupos, acompanhar o
desenvolvimento das atividades, avaliar os processos e produtos construídos e subsidiar os
grupos de formação básica sobre a prática e teorias sobre a investigação docente;
ii) Coordenador(a) de Estudo: foi responsável por coordenar o grupo na execução das
tarefas encaminhadas pelo Orientador Docente. Teve a tarefa de assumir a organização dos
debates, mediar as discussões e a responsabilidade de fazer os trabalhos avançarem para a
elaboração dos produtos em tempo hábil para apresentação segundo a programação. Teve
a prerrogativa, a qual deveria usar com bom senso, de decidir sobre uma tomada de
direcionamento caso houvesse impasses que estivessem impedindo ou retardando o avanço
do grupo. Deveria estar ciente de que registraria os ocorridos e observações conforme
orientação do roteiro de investigação;
iii) Secretário(a): foi responsável por auxiliar o coordenador de estudo e o grupo de
colaboradores na realização das tarefas. Deveria realizar registros dos processos de tomada
de decisão, das observações, das tomadas de consciência, dos impasses, dos conflitos, das
descobertas, das dificuldades e dos avanços. Teve a responsabilidade junto com o
coordenador de estudos de elaborar a síntese de trabalho para apresentação segundo a
programação;
iv) Colaboradores: eram todos os integrantes do grupo, incluindo o(a) coordenador(a) de
estudo e o(a) secretário(a). Tinha por função geral contribuir com a realização das tarefas
e deveria assumir funções específicas conforme decisão do grupo e/ou do(a)
coordenador(a) de estudos. Não deveria assumir posição passiva no processo de
investigação, mas sim ativa, contribuindo com propostas, teorias, referências, elaboração
de conjecturas e produções bibliográficas em conformidade com as tarefas.
Para o desempenho da tarefa foram formados seis grupos de trabalho, cada qual foi
responsável por proporcionar situações ímpares à formação de todos os participantes. Contudo,
para efeito de estudo irei explorar as experiências proporcionadas pelos Grupos de Trabalho 1
~ 161 ~
(GT1) e Grupo de Trabalho 2 (GT2) que tiveram por objeto de investigação o ensino de funções
afim e quadrática e funções exponencial e logarítmica, respectivamente. A escolha desses
grupos para minhas análises se deu por suas contribuições aos encaminhamentos dos demais
grupos e por terem apresentado experiências com resultados relevantes para discussão acerca
de algumas idiossincrasias da formação docente. As exposições e considerações acerca do
trabalho do GT1 foram de grande valia para a reflexão dos outros grupos, tanto que observei
repercussões de tais experiências nos registros dos diários, relatórios e entrevistas dos demais
grupos investigados; enquanto os estudos das relações estabelecidas pelo GT2, no cumprimento
da tarefa, expressam importante contribuição para a compreensão da constituição de um grupo
colaborativo.
Analisarei, nesta composição, as experiências do GT1 e GT2 por meio dos
entrecruzamentos dos sujeitos principais (Sp) selecionados para a pesquisa e as experiências
possibilitadas pelas ações do GCEM. Assumo esta metodologia por considerar que desta forma
poderei explorar não apenas os processos de aprendizagem dos integrantes do GT1 e GT2 como
as contribuições dos demais investigados neste percurso de modo a identificar, posteriormente,
evidências de desenvolvimento profissional dos colaboradores selecionados. Para uma melhor
compreensão, ilustro o exposto pela configuração abaixo:
Fig. 11. Experiência e Sujeitos Principais (Sp) e Sujeitos Secundários (Ss).
A figura 11 ilustra genericamente os Sujeitos Principais (Sp1 e Sp2) e os Sujeitos
Secundários ou periféricos (Ss1) vivenciando uma experiência potencialmente formativa. Os
sujeitos principais foram assim denominados por serem os que efetivamente se envolveram em
todas as experiências selecionadas para análise ou os que assumiram uma postura plenamente
colaborativa.
~ 162 ~
A experiência em grupo de estudo com a tarefa de explicitar uma organização
matemática a partir da estruturação de uma sequência didática é uma atividade extremamente
rica por possibilitar aos professores uma reflexão para a prática e o questionamento da razão
de ser do objeto no currículo de determinada instituição, em dado nível de ensino
(CHEVALLARD; 1991). Neste caso, o nível de ensino secundário, ou mais precisamente, o 1º
ano do Ensino Médio. Exploro esta experiência por meio de três momentos: 1) a seleção dos
integrantes de cada grupo de trabalho para orientação e discussão dos conteúdos e teorias
relacionadas à prática investigativa em didática da matemática; 2) os momentos de estudo em
grupo e construção de sequências didáticas; 3) as exposições das sequências, considerações e
debates.
O primeiro momento de nossa experiência teve início por meio de uma dinâmica de
apresentação teórica do que vem ser um Percurso de Estudos e Investigação (PER). Esta ideia
me surgiu por conta das sucessivas greves nas redes de ensino do Município e Estado, que
impossibilitavam aos professores em formação de participarem das aulas nas turmas das escolas
conveniadas ao projeto PIBID. Como no período eu participava como discente da disciplina
Didática da Matemática e Formação de Professores no curso de doutorado, e tive a
oportunidade de me aproximar da Teoria Antropológica do Didático (TAD), resolvi
experienciar a prática de construção de uma organização didática junto aos professores em
formação do PIBID.
O período foi de boas coincidências, pois tinha de trabalhar com a turma do terceiro ano
de licenciatura em matemática a disciplina Prática de Ensino II e como meus vinte
colaboradores do PIBID eram integrantes dessa turma, resolvi realizar um único trabalho
integrando o tempo disponível para as atividades do PIBID e da disciplina. Optei por reuni-los
em grupos cujos coordenadores de estudo e secretários eram colaboradores do PIBID, por
serem potenciais sujeitos de minha pesquisa. Constituí seis grupos, a saber: GT1 – Estudo de
Funções Afim e Quadrática; GT2 – Estudo de Funções Exponenciais e Logarítmicas; GT3 –
Estudo de Progressões; GT4 – Estudo de Equações Trigonométricas; GT5 – Estudo de Sistemas
Lineares; e GT6 – Estudo do Princípio de Cavalieri.
As equipes foram formadas pelos coordenadores de estudo que escolhiam, um a um,
seus parceiros de trabalho. Ao final das escolhas as equipes ficaram com cinco ou seis
integrantes. Fiz isso para acompanhar as escolhas de cada coordenador e tentar perceber seus
critérios de constituição do grupo. Considerei interessante que, sem exceção, escolhiam os
~ 163 ~
integrantes de suas equipes por afinidade pessoal, não resultando em algo diferente das equipes
que já estavam habituados a trabalhar.
Esclareci anteriormente à escolha que estávamos simulando a formação de equipes de
trabalho, faríamos um trabalho profissional e não um trabalho especificamente acadêmico, e
como tal eu faria a vez de um diretor escolar ou coordenador de um projeto de ensino e eles
seriam os profissionais escolhidos para um trabalho de planejamento em uma instituição
escolar. A dinâmica possibilitaria selecionarem entre os colegas os que considerassem mais
aptos à tarefa, mas considero que se processou um sistema de escolha tendendo à zona de
conforto, isto é, os coordenadores optaram por não criar atritos, escolhendo potenciais
integrantes de outras equipes, apesar de haver disponíveis pessoas mais habilidosas em
informática, com mais acesso a recursos ou que apresentassem maior entusiasmo com a tarefa.
Mas apesar disso não houve modificação do status quo vigente na turma.
A preocupação com tal formação de grupos não se deu de maneira negligente ou
despretensiosa, pois considero que a forma e composição de um grupo exerce séria influência
sobre sua produção. Importava-me a característica de composição dos agregados para distinguir
efetivamente se, ao final do percurso de estudo, disporia de grupos efetivamente envolvidos
com suas tarefas ou apenas agrupamentos que desempenhavam ações sem refletir sobre seus
significados. Minhas especulações encontraram afinidade com as considerações de Zimerman
(1997) quando este define critérios para a distinção entre grupo e agrupamento, que considero
complementar a passagem de Fiorentini & Lorenzato (2006) quando estes estabelecem a
distinção entre grupos cooperativos e colaborativos.
Para ser considerado um grupo, é preciso que exista, entre as pessoas, uma interação
social e algum tipo de vínculo, pode-se dizer que a passagem da condição de um agrupamento
para a de um grupo, consiste na transformação de “interesses comuns” para a de “interesses
em comum” (ZIMERMAN, 1997, 28). Complementarmente, reafirmo que um grupo pode ser
cooperativo quando alguns ajudam uns aos os outros (co-operam), executando tarefas cujas
finalidades geralmente não resultam de negociação conjunta do grupo, podendo haver
subserviência de alguns em relação aos outros e/ou relações desiguais e hierárquicas, enquanto
será colaborativo se as relações entre os integrantes do grupo não se apresentam hierárquicas,
havendo liderança compartilhada, confiança mútua e co-responsabilidade pela condução das
ações (FIORENTINI & LORENZATO, 2006).
~ 164 ~
Nestes termos, o desenvolvimento natural que eu esperava dos agregados de
professores, quando lhes propunha a tarefa profissional, era o da formação de agrupamentos
que transformariam interesses comuns em interesses em comum, constituindo-se enquanto
grupo que estabeleceria relações tais, que suas ações hierarquizadas cooperativas dariam lugar
às dinâmicas de condução compartilhada das decisões tornando-se, portanto, colaborativas. A
figura abaixo representa este desenvolvimento natural esperado dos grupos:
Fig. 12 – Desenvolvimento Natural Esperado de Grupos.
Esclareço que “desenvolvimento natural esperado” (fluxo de setas em cinza) não
significa “desenvolvimento real observado” (que pode coincidir com qualquer outro fluxo). Isto
porque as formações de agregados sociais podem não seguir este desenvolvimento, podendo
nunca a vir constituírem grupos. O mesmo se aplica à transformação de grupos cooperativos
em grupos colaborativos, posto que um grupo cooperativo pode nunca vir a se tornar
colaborativo. Por outro lado, podem ocorrer desenvolvimentos harmônicos em que a
constituição de um grupo se dê colaborativamente, sem que tenha em algum momento sido
cooperativo.
Para finalizar esta caracterização, chamo atenção para a possibilidade de que o
desenvolvimento apresente momentos de instabilidades que resultem em catástrofes, ilustrada,
pela regressão de um grupo colaborativo que por uma perturbação passa a atuar como grupo
cooperativo ou mesmo se desarticular de tal forma que passa a atuar como um agrupamento.
Darei especial atenção a estas situações nas análises dos grupos selecionados para investigação.
~ 165 ~
Aspectos teóricos sobre a tarefa de elaboração das sequências didáticas
Para organizar a formação e observar as concepções mobilizadas, além do tratamento
que o grupo de professores em formação inicial daria para o ensino da matemática do 1º ano do
Ensino Médio, baseei-me na Teoria Antropológica do Didático (TAD). De acordo com esta
teoria, Chevallard (1999) destaca que o papel do professor pode ser expresso em termos de tipos
de tarefas (T) acompanhadas ao menos de uma certa maneira de fazer ou técnica (τ) que
associadas definem um saber-fazer. Esse bloco prático se sustenta respaldado por um ambiente
tecnológico-teórico (ou saber) formado por uma tecnologia θ (discurso que busca justificar e
tornar inteligível a técnica) e uma teoria Θ que justifica e esclarece essa tecnologia. Esse
sistema, de acordo com o autor, constitui uma organização praxeológica (ou praxeologia)
[T/τ/θ/Θ] que articula um bloco prático-técnico П=[T/ τ] ou práxis (saber-fazer) e um bloco
tecnológico-teórico Λ=[θ/Θ] ou logos (saber)73.
Para Chevallard (1997) o sistema de tarefas do professor se deixa evidenciar por meio
de dois grandes componentes, a saber: as organizações matemáticas (OM) e as organizações
didáticas (OD). A primeira é uma organização praxeológica matemática que se constitui em
torno de um ou mais tipos de tarefas matemáticas, mais ou menos bem identificadas, que
solicitam a mobilização de uma ou mais técnicas matemáticas, mais ou menos adaptadas e mais
ou menos justificadas por tecnologias matemáticas mais ou menos sólidas, desenvolvidas no
quadro de uma teoria matemática mais ou menos explícita. Em particular, uma praxeologia
matemática deve ser entendida como uma organização matemática que, ao ser vivenciada em
sala de aula, deve possibilitar aos alunos atuarem com eficácia na resolução de problemas e, ao
mesmo tempo, compreenderem o que fazem de maneira racional. De uma maneira simplificada,
podemos dizer, neste caso, que o que aprendemos e ensinamos em uma instituição educacional
são praxeologias matemáticas.
Neste sentido, uma das ideias essenciais da TAD que busquei elucidar nas dinâmicas
junto aos professores, foi a de que constitui uma tarefa docente determinar as OM que devem
ser estudadas pelos alunos, definindo para cada uma delas seu conteúdo, os tipos de tarefa
matemática necessários ao estabelecimento de uma boa relação com o conteúdo e ainda o grau
73 Na perspectiva antropológica, não existe uma práxis que não seja acompanhada por um logos, mesmo se, a partir
da posição que ocupa o observador (professor diante das praxeologías dos estudantes, pesquisadores face as
praxeologías professorais, cidadãos diante praxeologías de proletários, etc.), esta parte tecnológica-teórica pareça
estar ausente, ou porque ela não se faça visível ou seja mal visível (CHEVALLARD, 2009).
~ 166 ~
de desenvolvimento que deve ser dado aos componentes técnico, tecnológico e teórico. Outra
função do professor discutida, foi a de que lhe cabe conduzir a reconstrução desta OM na classe
por meio de uma OD.
As orientações presentes no trabalho em grupo, perspectivando a construção de uma OD
pelos professores em formação inicial, também se justificam pela necessidade de iniciar os
colaboradores na discussão do problema da desarticulação que se manifesta em organizações
matemáticas que apresentam pouca ou nenhuma conexão interna e ausência de conexões
objetivas com outros tópicos matemáticos.
Sobre isso, Andrade (2012) observou, em seus estudos sobre dispositivos didáticos, que
o problema das conexões internas se deve às organizações matemáticas propostas para o ensino
básico apresentarem praxeologias pontuais que aparecem totalmente desarticuladas, isto é,
desconectadas em temáticas que surgem em momentos diferentes do ensino. Isso lhe levou a
propor que um dispositivo viável ao tratamento da desarticulação seria a articulação de tarefas
fundamentais74, integradas dinamicamente entre si em níveis crescentes de complexidade.
Ainda segundo este autor, os problemas da desarticulação temática estão relacionados à
complexidade do currículo, à formação e prática docentes, ao autismo temático do professor,
ao uso de metodologias de resolução de problemas e da modelagem matemática do ensino (p.
12).
Para dar a compreender aos professores em formação inicial a existência desta
problemática, bem como viabilizar a aprendizagem epistemológica e didática investigativa
sobre objetos matemáticos e objetivos da docência, propus que os grupos de professores
questionassem suas respectivas temáticas e expusessem uma OD que levasse em conta o
problema da desarticulação por meio da proposição de tarefas que retomassem os conteúdos
antigos, inclusive os estudados em etapas educativas anteriores, questionando possibilidades de
desenvolvimento de tarefas articuladas em organizações matemáticas e didáticas de
complexidade crescente.
O trabalho de estudo realizado pelos grupos foi o de, principalmente, realizar as tarefas
de descrever e analisar organizações matemáticas para as quais se pudesse construir em uma
classe de matemática em que se estuda um tema θ, organizações didáticas que pudessem ser
postas em prática em uma classe de matemática em que se estuda o tema θ. Constitui, portanto,
74 Segundo Andrade (2012) as tarefas fundamentais constituiriam um conjunto de tarefas que devidamente
articuladas dariam sentido a construção de um objeto, tomando por referência uma dada organização matemática.
~ 167 ~
uma aprendizagem docente neste processo de estudo, a mudança de relação dos sujeitos para
com o tema θ, situadas no desenvolvimento de tipos de tarefas como observar, descrever,
analisar, avaliar, desenvolver e construir colaborativamente com os outros integrantes do
grupo as componentes técnicas, tecnológicas e teóricas das praxeologias consideradas. Neste
sentido, Chevallard (1999, p.230) salienta que,
En lo que sigue, el tipo de tareas T1, (la observación) será poco o mucho neutralizado
por el recuso a unos corpus simplesmente invocados de datos de observación ya
constituídos. Los tipos de tareas T3 (la avaluación) y T4 (el desarrollo), sobre los que
volveremos, estarán em el horizonte del trabajo más que em su interior. Em el centro
del trabajo, se situará, pues el tipo de tareas T2 – la descrición y el análisis de ciertos
objetos O relativos a las práticas de enseñanza.
Tais tarefas suscitam que eu retome o foco que me motivou a destacar o diálogo junto
aos professores em formação, pois devo esclarecer que minha preocupação, tanto no momento
que discutia o tema em sala, como agora, é o de que o professor deve considerar sua relação
com o saber como algo significativo no processo de ensino, ou seja, um tema proposto θ será
tão mais adequado aos alunos quanto forem suas condições de existência no contexto em que
este é proposto, contudo, antes de supor as incapacidades dos alunos em lidar com determinada
questão, deve o professor realizar um estudo pormenorizado que o leve a construção de uma
organização matemática OM que lhe auxilie epistemologicamente na discussão dos objetos
matemáticos com estes.
Reconhecer a importância disso e agir desta forma, demonstraria por parte dos
professores, uma aprendizagem matemática em relação à OM e uma aprendizagem didática em
relação à OD. Nestes termos, “ensinar”, para o professor, é criar condições que facilitem a
produção de um saber entre os alunos. E “aprender”, para o aluno, é se engajar numa
atividade intelectual, pela qual se produza a disponibilidade de um saber com seu duplo
estatuto de ferramenta e objeto75 (DOUADY, 1993, p. 4).
O processo de transformação ou desenvolvimento de um conceito matemático da
qualidade de objeto para o de ferramenta de auxílio à construção de novos conhecimentos
constitui uma temática complexa que demanda diálogo com outros elementos que não serão
expostos neste trabalho. A dialética ferramenta-objeto, embora constitua um tema altamente
75 Compreender esse duplo estatuto do saber matemático é entender que determinado conceito ou representação
matemática é considerado ferramenta quando se focaliza interesse no uso que está sendo feito dele para resolver
um problema, e essa ferramenta pode ser adaptada e utilizada em outros problemas diferentes (MARANHÃO,
2008).
~ 168 ~
relevante, destoa do foco de minha pesquisa, ao que retomarei a discussão das contribuições
empíricas das dinâmicas dos grupos GT1 e GT2 ao estudo dos processos de aprendizagem
docente, que aqui defino por meio da análise de situações.
Situação 1 – As primeiras reuniões de orientação do grande grupo
Depois da divisão das equipes, iniciei com os professores um diálogo esclarecendo
alguns princípios da didática da matemática francesa orientado por um roteiro de investigação
que preparei para a ocasião (vide apêndice 1). Dentre as reflexões subsequentes uma situação
que me chamou a atenção é expressa pelo seguinte diálogo:
Orientador: Tarefas não são exercícios, as tarefas fundamentais elaboradas
para a construção de um objeto matemático devem se alinhar de acordo com
níveis progressivos de complexidade, os exercícios são fundamentais para
tornar rotineiros cada um dos aspectos do objeto em construção. Isso me lembra
de que devemos ter cuidado com certas preconcepções em nossas construções
de aula. Quem já está em sala de aula pode até se influenciar por isso. Olhar
para uma questão e dizer “meu aluno não consegue resolver isso!”. Ou seja, já
se está preconcebendo a existência de um aluno que não vai dar conta de
resolver aquela coisa.
Sena: Tivemos uma experiência semelhante a essa em sala de aula pelo PIBID.
O professor chegou p’ra gente e disse: “- Olha, tu não passas esse assunto desse
e desse jeito que os alunos não vão aprender! Pega bem mais leve que eles são
desse jeito!”. Então a gente teve que “pegar mais leve”!
Orientador: Eu vou te dizer que este é um saber empírico do professor. O que
está por trás disso? A tradução disso? Talvez para ele [professor] os alunos
pareçam “fracos”, e se você chegar com uma questão complexa eles [alunos]
não vão aprender. Mas a história de vida dele [professor], as tentativas e
experiências que já teve, mostraram que existe uma sequência lógica de serem
apresentados os trabalhos. Esse nível progressivo de complexidade eles
percebem, mas atribuem isso à capacidade de assimilação dos alunos e não ao
saber matemático. (Fragmento de transcrição de vídeo de encontro de
orientação, 05/03/12)
O diálogo acima encerra o que considero uma “ideia chave” para explicar minha opção
pela didática francesa como referencial de nossa experiência de reflexão sobre o planejamento
das aulas de matemática. Isto porque penso que deva ser debatida, no âmbito da formação de
professores de matemática, a questão das relações do professor com seus alunos e do professor
com a construção do saber matemático para/na/sobre a sala de aula.
~ 169 ~
Quando recorro a Brousseau (1996) tenho o indicativo de que uma das propostas mais
significativas da didática da matemática para tratar dessas relações é a de fazer com que os
alunos vivenciem momentos de investigação semelhantes ao dos cientistas.
Saber matemática não é apenas aprender definições e teoremas, a fim de reconhecer
as ocasiões em que eles podem ser utilizados e aplicados; sabemos perfeitamente que
fazer matemática implica resolver problemas. Não se faz matemática simplesmente
resolvendo problemas, mas por vezes esquece-se que resolver um problema é apenas
uma parte do trabalho; encontrar boas questões é tão importante como encontrar
soluções para elas. Uma boa reprodução pelo aluno de uma atividade científica exige
que ele aja, formule, prove, construa modelos, linguagens, conceitos, teorias, os
troque com outros, conheça aqueles que são conformes à cultura, retire desta, aqueles
que lhe são uteis, etc. (p. 37-38)
Para tornar possível uma atividade deste tipo, o professor deve imaginar e propor aos
seus alunos situações que eles possam viver e nas quais os conhecimentos apareçam como
resultado dos problemas propostos, resultado este que os alunos podem descobrir. O trabalho
do professor nesse processo é, em certa medida, inverso ao do investigador, pois tem a tarefa
de produzir uma recontextualização e uma repersonalização dos conhecimentos (BROSSEAU,
1996). Cada conhecimento deve surgir de uma adaptação a uma situação específica, mobilizada
por bons problemas e o professor deve simular com os alunos micro sociedades científicas76
para realizar debates e construir linguagens que serão os meios pelos quais dominarão a situação
e formularão soluções para os problemas.
Seguindo com as atividades de introdução à tarefa do que àquela altura supunha
constituir um percurso de estudo e investigação, discutimos por mais dois encontros, alguns
princípios sobre o papel do professor no século XXI77e noções sobre a epistemologia da didática
da matemática francesa. A dinâmica de leitura dialogada, em que cada integrante teve a
possibilidade de destacar os pontos que considerava relevante nos textos, me pareceu
promissora, pois os professores em formação me indicaram reflexões pertinentes sobre os
encaminhamentos para tornar suas aulas mais dinâmicas, tais como o que segue:
(...) sobre o texto78foi de suma importância o modelo proposto para o aluno,
basicamente a maioria dos modelos já estão prontos como ele [Orientador]
76As micro sociedades científicas estão aqui presentes no mesmo sentido de grupos de estudo, comunidades de
estudo ou comunidades investigativas e diz respeito, em específico, aos grupos de professores em formação deste
trabalho. 77 Trabalhamos o texto Formação de Professores de Matemática para o Século XXI: o grande desafio de
D’Ambrósio B (1993) e o texto Epistemologia, Didática da Matemática e Práticas de Ensino de D’Amore (2007). 78 Referia-se ao Texto de D’Ambrósio B (1993).
~ 170 ~
citou o da conta de luz que não é tão interessante para o aluno, que as
investigações teriam que ser novas, e que quando procurarmos usar a
modelagem matemática temos que ter aqueles [modelos] que ainda não estão
pré-definidos. (FIGUEIREDO, Diário de 06/03/12 – Grifos meus)
Figueiredo considerou importante nossa discussão sobre a diferença entre modelos pré-
definidos e modelos construídos a partir de dinâmicas de investigação realizadas pelos alunos.
No texto estudado, D’Ambrósio B (1993) encerra um conjunto de críticas à crença
erroneamente difundida de que a Matemática seja uma disciplina com resultados precisos e
procedimentos infalíveis, cujos elementos fundamentais são as operações aritméticas,
procedimentos algébricos e definições e teoremas geométricos. Dessa forma o conteúdo seria
fixo e seu estado pronto e acabado, tornando-a uma disciplina fria, sem espaço à criatividade.
A reflexão sobre os modelos é pertinente e evidencia uma aprendizagem do tipo
reflexividade crítica sobre a realidade de Figueiredo sobre leitura de contexto, pois a pretexto
de se estar realizando modelagem matemática com os alunos, muitos professores têm proposto
atividades de leitura e identificação de dados numéricos em boletos de contas de água ou
energia elétrica, e divulgam tais procedimentos como se de fato houvessem construído os
modelos com os alunos, quando muito explicitavam um modelo pré-estabelecido nos boletos.
O problema deste procedimento não reside, necessariamente, na semântica de se estar
modelando ou não, mas nas restrições à construção criativa de conhecimentos pelos alunos
nesse tipo de proposta.
A manifestação de compreensão sobre a necessidade das dinâmicas de ensino da
matemática abre perspectivas para o questionamento dos dados disponíveis em um fenômeno
específico se as atividades se derem por meio da investigação, desenvolvimento do raciocínio
lógico e argumentativo dos alunos, valorizando assim a criatividade e admitindo as estratégias
pessoais destes na resolução dos problemas propostos. Compreender isso expressa mais uma
aprendizagem docente segundo as demandas da atualidade. Contudo, este olhar diferenciado
sobre a ação docente, embora não se apresente por um discurso relativamente novo79, ainda
surpreende os professores em formação inicial. Como é possível destacar na seguinte produção
textual:
O interessante desse texto é que a autora visa muito o lado do professor, ao
contrário do que estou acostumado a ver na Universidade, em que o
79 O texto do estudo é de 1993.
~ 171 ~
aprendizado do aluno é o mais visado, sendo que é perceptível em todo o texto
que se trata de expor as atuais propostas para um ensino mais significativo para
a disciplina matemática, sendo que para isso o professor deva ter uma nova
visão sobre o que vem a ser realmente o ensino dos objetos matemáticos, e
ressalta também que essa visão já deve estar presente na formação dos novos
professores. (LEITE, Diário de 08/03/12)
Leite expressa em seu relato uma reflexão interessante, pois pondera o fato de se deparar
com um material que apresenta um olhar sobre a Educação Matemática a partir da perspectiva
do professor, diferentemente do que estava habituado, certamente por suas leituras pregressas
focarem os processos de aprendizagem dos alunos e não dos professores. Relativamente a sua
percepção e significação do fato presente na narrativa em seu diário, Leite expressa uma
reflexividade crítica da realidade importante, pois passa a reconhecer que os textos de
formação se diferenciam entre si e destacam focos de interesse também diferenciados, neste
caso em específico o texto dialoga com o leitor sob a perspectiva da formação docente e não da
formação dos alunos.
Embora altamente significativa, considero essa aprendizagem tardia em relação a
experiência perceptiva acerca da existência dos textos que refletem sobre a formação e a prática
dos professores de matemática. Isso se deve, de certo modo, à constituição curricular do curso
de licenciatura em matemática de nossa instituição, visto que continua apresentando resquícios
do modelo já superado no formado “3+1”80, isto é, inicia-se o curso com disciplinas “teóricas”
e só se trabalham as disciplinas “práticas” a partir do sexto e sétimo semestres.
Um diferencial do currículo do curso de licenciatura em matemática da UEPA é a
introdução de disciplinas consideradas didático-pedagógicas desde o início do curso, porém que
são geralmente trabalhadas do ponto de vista teórico, com foco acadêmico, e pouca ou nenhuma
articulação com a prática. Apesar de os pibidianos81 já terem a esta altura trabalhado diversos
textos e realizado algumas dinâmicas de grupo com vistas à atuação docente, estes professores
em formação constituem um grupo extremante restrito, de número pouco significativo em
relação ao quantitativo de professores que graduamos anualmente na instituição.
80 Modelo em que a formação dos professores para atuação nos anos finais do ensino Fundamental e do ensino
Médio em que se outorgava o título de Bacharel em Matemática àqueles que realizassem estudos por três anos de
conteúdos específicos, e poderia atuar com título de Licenciado caso cursasse mais um ano de estudos envolvendo
fundamentos e teorias educacionais (CARVALHO, 2012). 81 Chamo assim os bolsistas do PIBID.
~ 172 ~
O destaque de Leite sobre o texto, expressando a necessidade de que uma nova visão
sobre o ensino dos objetos matemáticos já esteja presente na formação dos novos professores,
é pertinente. No entanto, pode ser considerado insuficiente se os professores das disciplinas
específicas não participarem das reflexões sobre a prática profissional conjuntamente com os
professores das disciplinas didático-pedagógicas. Esta é uma preocupação comungada por
outros professores em formação, como destaco a seguir:
É difícil achar uma finalidade, por exemplo, para a resolução de uma integral
no ensino básico. Nossos professores de disciplinas específicas não nos ensinam
isso. Não nos deram a entender cálculo diferencial, derivada, integral,
problemas de análise real e teoria dos números para nossa aplicação nos
ensinos Médio e Fundamental. (SENA, Recorte da Entrevista)
Ao ser questionado sobre a contribuição dos professores das disciplinas específicas a
sua formação como professor de matemática, Sena expressa com certa apreensão que a
participação dos professores de disciplinas específicas em sua constituição como docente lhe
propiciou pouca compreensão. Isso corrobora minha preocupação institucional com a formação
destes jovens professores, visto que os exemplos fornecidos pelo entrevistado expressam temas
da matemática que, se trabalhados numa perspectiva de formação docente integral, como
defende D’Ambrósio B (1993), seriam extremamente esclarecedores a certos questionamentos
do nível médio de ensino como, por exemplo, a compreensão do conceito de variável,
características dos conjuntos numéricos, cálculos de fórmulas e justificação de procedimentos
e técnicas.
O investimento na preparação dos professores para um diálogo com perspectiva de
construção de uma organização matemática para algumas temáticas do Ensino Médio foi
recompensado, pois além das reflexões já destacadas o grupo se apresentou bem dinâmico e
questionador. Este passo inicial foi dado segundo o que tinha planejado, atingindo o objetivo
de reunir o grupo em torno de reflexões, situando-os diante das novas conceituações e posturas
de ensino, e relação docente com o saber situado e que precisa ser apresentado aos estudantes
de maneira não arbitraria.
~ 173 ~
Situação 2 – As orientações em subgrupos
O propósito da experiência não foi, necessariamente, o de defender o potencial da
Organização Matemática (OM), expressa como uma sequência de tarefas articuladas82 em
nível crescente de complexidade, como um dispositivo viável para abordar a problemática da
desarticulação dos temas matemáticos no currículo, mas o de tomar o processo de estudo
investigativo subjacente à explicitação desta organização como potencializador da construção
de uma compreensão pelos professores em formação sobre os problemas da docência.
Perspectivei, portanto, o desenvolvimento de um processo de estudo e investigação em que os
professores revissem suas relações com o saber matemático.
Motivado, inicialmente, pela complexidade de um PER (Percurso de Estudo e
Investigação)83, que me esteve próximo pela formação que obtive no curso doutoral, organizei
os grupos de trabalho e iniciamos as investigações. Mas evidenciei, porém, com a prática junto
ao grupo de professores, que efetivamente mobilizamos um AER (Atividades de Estudo e
Reflexão)84. Isto porque as atividades reflexivas do grupo acabaram por introduzir os
professores em dinâmicas de questionamento do saber, procurando estabelecer situações em
que pudessem pôr em curso um processo de construção de relação com uma OM capaz de
responder a certas problemáticas do ensino, tomando-se por base um currículo prescrito e não
a própria construção curricular como preconiza o PER.
Alguns aspectos desta compreensão passam a ser destacados a partir da seguinte
situação recortada dos primeiros diálogos de orientação do GT1 alguns dias depois dos
encontros e discussões dos textos de orientação geral.
Orientador – O que vocês avançaram nas discussões do trabalho de vocês?
Sena – O que a gente avançou mais foi com o levantamento bibliográfico. A
gente ficou procurando por referências.
Orientador – E vocês entenderam a proposta de levantar questões sobre o tema?
Ss1 – Não. Entendemos uma coisa totalmente diferente.
Sena – Entendemos que era para preparar uma aula sobre função.
Orientador – Isso é natural, vocês estão em conflito entre o que estão
acostumados a ver ou fazer com o que propõe a didática da matemática. Então antes de vocês apresentarem [um conteúdo] para o aluno é preciso construir
82 As tarefas articuladas seriam tarefas potencialmente geradoras de outras tarefas que de modo articulado
expressam uma escolha epistemológica na construção de uma organização matemática sobre um objeto
matemático. 83 No original Parcours d’Étude et de Recherche (PER). 84 No original Activité d´Enseignement et d´Étude (AER).
~ 174 ~
uma epistemologia intermediária, ou seja, o que desse conhecimento a gente
precisa apreender para o ensino? E como é que fazemos para ensinar
determinados objetos matemáticos para o aluno?
Leite – Então é assim: primeiro a gente vai fazer um trabalho totalmente teórico;
ai dentro dessa teoria ...
Orientador – Ele não deve ser pensando totalmente teórico.
Ss2 – Não, mas colocando assim: primeiro vamos tratar totalmente da teoria;
depois de a gente ter isso em mente, vamos traçar os passos que a gente vai
colocar em prática para passar para os alunos; então essa parte seria a prática.
Orientador – Se tu queres enxergar assim. Mas ela não deveria ser enxergada
assim. Quando tu pensas em uma transposição, mesmo que para ti, ela não é
somente teórica, ela também é prática para ti. Vocês conseguem compreender?
Sena – É um pensamento visando uma prática. Visando o nosso ensino.
Orientador – Ééé...!? [Como que não concordando totalmente]
Sena – No caso a gente não vai usar aquela ferramenta naquele momento, mas
é uma transposição do teórico p’ro nosso prático. Para que depois haja essa
prática de fato.
(Fragmento de transcrição de áudio de encontro de orientação, 13/03/12)
A situação registra um estado inicial do grupo de professores que se reúne com a
perspectiva de refletir sobre um objeto matemático com fins ao seu ensino. A tarefa de
questionarem o saber matemático sob um ponto de vista epistemológico se apresentou inédito
ao grupo, bem como o modo de pensar complexo e sua característica intrínseca de
indissociabilidade entre teoria e prática. A lógica de organizar o ensino concebendo-o como
dois momentos distintos em que primeiro se apreende a teoria e depois se procede à prática
expressa um pensar baseado na pedagogia tradicional (DEWEY, 2011) e ratificado pelo modelo
da racionalidade técnica (SCHÖN, 1992).
O modo de pensar o ensino dos objetos matemáticos enquanto teoria que se aplica,
expresso pelos professores do GT1, é resultado de um processo conhecido como simetria
invertida às avessas. Esse processo redunda de uma inversão do que prevê as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica (Parecer
CNE/CES 09), de maio de 2001, sobre o desenvolvimento das competências docentes pela
simetria invertida. Segundo as Diretrizes Curriculares, pelo fato de o futuro professor ser
preparado em um lugar similar ao que irá atuar, demanda que haja coerência entre o que é
experienciado como aluno durante a formação e o que se espera de sua prática como docente.
Sob esta ótica, o formando deveria adquirir no curso de licenciatura, entre outros recursos, tanto
as competências requisitadas pelo exercício da profissão quanto as que seus alunos deverão
dominar quando concluírem a educação básica.
~ 175 ~
Percebo, porém, que em virtude de os professores em formação terem mantido relações
durante a formação inicial com muitos professores que não tinham por hábito focar seu trabalho
didático e metodológico em processos reflexivos e de reconhecimento da epistemologia dos
saberes com que lidam, estes professores em formação inicial acabam por expressar um
habitus85 inadequado às complexidades atuais da educação, e aprendem o que não deveriam
fazer em sala de aula.
Esclareço, portanto, que não é pertinente atribuir responsabilidade aos professores do
GT1 por suas manifestações iniciais sobre o ensino como aplicação da teoria; isto porque
estavam, talvez pela primeira vez em suas vidas, deparando-se com o questionamento do saber
que pretendem ensinar. Estiveram por muito tempo expostos a uma sujeição histórica de
percepção dicotômica da teoria em relação à prática (CANDAU & LELIS, 1983). Como já
discuti neste trabalho, essa ótica considera a teoria e prática como polos associados em que a
teoria tem primazia em relação à prática e esta é aplicação daquela (PIMENTA, 2006b). Urge,
a partir dessas reflexões, retificar essa visão dicotômica em prol de uma perspectiva de
totalidade, de unidade. Com este intuito discutimos em nosso encontro sobre a
indissociabilidade entre teoria e prática, fundamentando-nos no que Pimenta (2006b)
interpretando Vásquez (1968) definiria como práxis, isto é, toda atividade teórico-prática tem
um lado ideal, teórico, e um lado material, propriamente prático, com a particularidade de
que só artificialmente, por um processo de abstração, podemos separar, isolar um do outro
(p. 241).
Em relação a isso Chevallard (1999) introduziu a noção de praxeologia, em que
qualquer estrutura possível de atuação e conhecimento, isto é, que toda atividade humana, pode
ser descrita como a ativação de praxeologias e que qualquer prática ou “saber-fazer” (toda
práxis) é sempre acompanhada de um discurso ou ‘saber” (um logos); isto é, uma descrição,
uma explicação ou uma racionalidade mínima sobre o que é feito, como se faz e porque se faz.
Nesse sentido, a conclusão a que chego assemelha-se a de Fávero (1992), isto é, que ninguém
se tornará profissional apenas porque sabe sobre os problemas da profissão, por ter estudado
algumas teorias a respeito, mas, sobretudo, comprometendo-se profundamente como construtor
85 Segundo Bourdieu (1984) o habitus atua como a mediação entre as relações objetivas e os comportamentos
individuais e “torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas
de esquemas, que permitem resolver os problemas da mesma forma”. A prática, dessa perspectiva, é considerada
o resultado da relação dialética entre uma situação e um habitus, o que inviabiliza enxergá-la como mera execução
das imposições da estrutura objetiva ou como produto das deliberações autônomas do indivíduo.
~ 176 ~
de uma práxis. Com esse espírito o grupo partiu para a discussão do que entendia ser uma
construção praxeológica.
Na orientação do segundo grupo (GT2), ocorrida na sequência do encontro com o GT1,
novas questões foram levantadas, agora acerca da proposição de uma organização para o ensino
de funções exponenciais e logarítmicas. A equipe fora formada por três de nossas colaboradoras
do GCEM e duas colaboradoras secundárias (Ss3 e Ss4). A situação expressou diálogos
relevantes sobre a perscrutação do objeto de ensino, conforme destaco a seguir:
Orientador – E ai, o que vocês fizeram?
Queiroz – A gente se “bateu” mais com os conceitos de construção de uma
sequência dos conceitos de exponencial e conceitos de “log”. Até ontem
estudamos mais o conceito de “log”, pois a gente “não ia muito com a cara
dele”, mas a partir de ontem a gente entendeu um pouco mais.
Orientador – Mas dentro do que foi possível estudar, o que vocês fizeram?
Queiroz – A gente se perguntou, “- Por que estudar ‘log’?” E a gente encontrou
algumas razões. Por exemplo, ele pode ser usado em outras disciplinas, como
na biologia, na física e na química também.
Orientador – Mas o que é “log”?
Soares – Quando a gente estava discutindo a gente se fez essa pergunta, ai a
Queiroz falou se não poderíamos usar uma tendência para explicar isso.
Queiroz – Mas o problema é: Qual a importância explicativa para ensinar
“log”? A gente quer saber isso!
Orientador – Vocês estão pensando em alunos, e a relação de vocês com o
saber? E vocês com o objeto? Qual o procedimento de segurança? Eu não posso
ensinar algo que não sei. O procedimento de segurança seria: “O que é esse
objeto p’ra mim?”.
Ss3 – É complicado, pois acho que todas aqui, sem exceção, não gostam de
“log”!
Orientador – Ahá! Não gostam porque ele nos é estranho ou porque nós não o
compreendemos?
Ss4 – Porque não o compreendemos.
Ss3 – Não, a gente não gostava. Só que é complicado do jeito que o senhor
pergunta: “Porque e para que ensinar?”. Essa é a parte mais difícil, porque a
gente é acostumada a chegar lá e dizer, “‘log’ é isso e se resolve assim!”, e é
bom que o aluno nem pergunte “por quê?” nem “para que?”. Isso é uma coisa
muito além do que a gente estudou.
Orientador – Vejam! Se eu não conhecer a “Silva” não saberei quem ela é, nem
suas potencialidades. Ai chega a Ss4 e me fala da “Silva”, então o que sei sobre
ela é por meio de alguém intermediário, eis ai o livro didático. Só terei como
saber mais sobre a “Silva” a partir do momento que a conheço e lhe faço
questionamentos para avaliar suas potencialidades e ela manifestar certas
propriedades que vão me dizer se ela é “bacana”. É assim que a gente vai olhar
o objeto...
~ 177 ~
Ss4 – A gente está dando mais atenção ao aluno do que à gente. Pensando na
cabecinha dele, como vamos convencer o aluno do ensino médio sobre “log” se
não estamos convencidas?
Queiroz – Até agora nenhum professor me convenceu! Por exemplo, qual o
sentido de ensinar “log” no cálculo de um terremoto?
Ss4 – O convencimento é que vai cair no vestibular!
Soares – Como a Ss4 falou. Se o aluno não tiver interesse pelo vestibular as
coisas pouco importam!
Queiroz – Eu vi no ensino médio o “log” na química, na biologia, mas tudo de
modo diferente.
Orientador – E vocês não consideram esse um motivo mais que suficiente para
“ele” estar “morando” lá no ensino médio? Por exemplo, para descobrir a
acidez ou alcalinidade de um composto?
Queiroz – Mas essa é a única forma de encontrar essa acidez? Preciso do “log”
p’ra isso?
Orientador – Então existe outro meio? Boa pergunta a de vocês. Então, os
problemas resolvidos por “log” possuem outra forma de resolvê-los? Parece-
me uma questão relevante. Que outras questões vocês levantaram?
Queiroz – Consideramos também a questão dos conhecimentos prévios dos
alunos, aqueles que eles trazem do ensino fundamental para o primeiro ano [do
Ensino Médio]. Conhecimentos que deem uma continuidade para a exponencial
e o logaritmo.
Ss3 – Para a gente ensinar “log” e exponencial é preciso resgatar o
conhecimento de potência, o que é uma base, etc. Não é isso?
Queiroz – Pensando na sequência didática a gente verá potência, propriedades
de potência, equação exponencial, valores e gráficos, vamos trabalhar o porquê
de trabalharmos uma coisa depois da outra. Não é isso?
Orientador – É mais ou menos nestes termos.
(Fragmento de transcrição de áudio de encontro de orientação, 13/03/12)
Nossa relação de diálogo foi aberta, franca e objetiva. As colaboradoras expuseram
neste ambiente uma verdadeira postura colaborativa. As integrantes estavam afinadas umas
com as outras, discutiram previamente à reunião e debateram sobre seus questionamentos e
sobre o objeto em estudo. Suas relações, posturas e instrumentos de investigação definiram um
contorno propício ao avanço da pesquisa em grupo. Expressando já nesta primeira reunião,
mesmo que sutilmente, algumas tipologias de aprendizagem docente como a curiosidade
epistemológica e didática do conteúdo em “qual a importância explicativa para ensinar
‘log’?” ou em “Mas essa é a única forma de encontrar essa acidez? Preciso do “log” p’ra
isso?” e sensibilidade ecológica e domínio didático-pedagógico do currículo e do ensino da
matemática, respectivamente, quando expressam que “Consideramos também a questão dos
conhecimentos prévios dos alunos, aqueles que eles trazem do ensino fundamental para o
primeiro ano [do Ensino Médio]. Conhecimentos que deem uma continuidade para a
~ 178 ~
exponencial e o logaritmo” e “Pensando na sequência didática a gente verá potência,
propriedades de potência, equação exponencial, valores e gráficos, vamos trabalhar o porquê
de trabalharmos uma coisa depois da outra”.
A temática discutida girou, basicamente, em torno da necessidade de uma maior
aproximação do grupo e o objeto de estudo. Inicialmente identifiquei, mais uma vez, o princípio
da simetria invertida, agora operando sobre a visão das professoras que afirmaram que haviam
cogitado um olhar sobre a metodologia em detrimento de uma maior atenção ao objeto de saber,
isto é, quando afirmaram “se não poderíamos usar uma tendência para explicar isso”,
admitiram que não estivessem de início focando o objeto, mas a metodologia que utilizariam
durante a exposição desse saber. O princípio da simetria invertida retrata neste caso um habitus
adquirido pela observação de procedimentos clássicos86 de exposição dos objetos matemáticos
- “a gente é acostumada a chegar lá e dizer, ‘log’ é isso e se resolve assim!”-, afastando-as de
um processo que Brousseau (1996) denomina de trabalho do professor, que seria, em certa
medida, inverso ao do investigador, uma vez que este tem de produzir uma recontextualização
dos conhecimentos, ou equivalentemente, para tornar mais fácil o seu ensino, isola
determinadas noções e propriedades do tecido de atividades em que elas tiveram a sua
origem, o seu sentido, a sua motivação e a sua utilização transpondo-as para o contexto
escolar87 (p. 36).
Além disso, professar interesse pelas ditas tendências da Educação Matemática, sem
prévia perscrutação do objeto matemático em sua relação matemática e extramatemática no
contexto de ensino, pode vir a gerar o que conhecemos por problema da investigação, em que
sabemos não haver garantia de transferência automática de um sólido conhecimento da teoria
matemática para a capacidade de resolver problemas matemáticos não-rotineiros (NISS, 1999,
p.21), isto é, tendências como a resolução de problemas e a modelagem matemática –
amplamente difundidas no meio acadêmico e escolar atualmente - , têm de apresentar objetivos
explícitos de ensino e aprendizagem, de outro modo, restritos apenas ao nível temático, podem
dar lugar à construção de organizações matemáticas pontuais e isoladas.
86 Tais procedimentos refletem os modelos docentes teoricista e tecnicista que são duas formas de materializar o
que poderíamos chamar de “modelos docentes clássicos”, muito simplistas e fortemente arraigados na cultura
comum, segundo a qual o processo de ensino é um processo mecânico e trivial, totalmente controlável pelo
professor (GASCÓN, 2001, p. 5 – tradução minha). 87 A esta operação do professor chamamos transposição didática.
~ 179 ~
Es puntual en la medida que se considera un sistema aislado, geralmente de natureza
extramatemática, sobre el que el alumno tiene que trabajar para construir un modelo
que lo represente, obteniendo algún tipo de conclusión que tendrá que ser confrontada
de nuevo con la situación original. Construido este modelo, el sistema ha perdido todo
su interés, el modelo pasa a formar parte del patrimônio matemático del alumno y
comienza un nuevo proceso no necessariamente vinculado con el anterior. (BOSCH,
et al, 2006, p. 46)
Associado ao problema temático está o problema de origem disciplinar. Esse tipo de
investigação se formula de maneira independente do conhecimento matemático e seus
diferentes níveis de estruturação (áreas, setores, temas). Devemos, pois, combater este paradoxo
em que o estudante deve desenvolver competências modeladoras através de atividades
concretas que assumem uma determinada subdivisão da matemática escolar que não se
considera problemática. Trabalhamos na perspectiva de investigações que se situem em níveis
intermediários (áreas, setores) e que abarquem diferentes áreas e setores da matemática,
possibilitando a articulação entre eles, como recomenda Bosch et. al. (2006).
As afirmações das professoras não são eleitas arbitrariamente, mas estão associadas a
argumentos que abarcam certos pressupostos justificativos e interpretativos presentes em certas
técnicas situadas nas instituições onde tiveram lugar o seu ensino, a formação como professoras
que têm recebido, os conhecimentos e crenças e as suas múltiplas sujeições a diferentes
instituições (escolares, científicas, culturais, ...) (BOSCH & GASCÓN, 2001). Afirmações
como “a gente não ia muito com a cara dele”, “acho que todas aqui, sem exceção, não gostam
de ‘log’” ou “isso é uma coisa muito além do que a gente estudou” refletem uma convivência
com o saber (logaritmo) de pouca afinidade, ou porque não dizer, de pouca afetividade
(CHACÓN, 2003). Esse tipo de manifestação, como havia expressado na introdução deste
trabalho, pode ser compreendido pela análise do que ocorre nas relações de sala de aula em um
contexto pedagógico tradicional, em que se valoriza a aprendizagem pela aquisição de
princípios, habilidades e regras de conduta estáticas, de concepção de produto cultural acabado
que deve ser transmitido às gerações futuras exatamente como se fez no passado – “e é bom
que o aluno não pergunte ‘por quê?’ nem ‘para que?’”.
Contudo, as professoras demonstram uma superação dessa lógica reprodutivista inicial
quando expressam preocupações docentes legítimas ao levantarem questões como: “Por que
estudar ‘log’?”, “qual o sentido de ensinar ‘log’ no cálculo de um terremoto?”, “preciso do
‘log’ p’ra isso?”. O gênero das questões pontuadas hegemonicamente por Queiroz condiz com
o conceito de problemática proposto por Chevallard (1991) que a situa como o conjunto de
~ 180 ~
questões às quais um determinado saber busca responder. Estas questões reposicionam a
investigação que antes se concentrava no aluno para um modelo de investigação (Research
Model) que supostamente determina o comportamento e conhecimento do professor em sala de
aula, para o qual devemos levar em consideração, segundo Bosch & Gascón (2001), três
aspectos fundamentais: o conhecimento do conteúdo matemático, o conhecimento pedagógico
dos métodos de ensino, e o conhecimento dos mecanismos mediante os quais os alunos
entendem e aprendem um conhecimento particular. Ainda segundo os autores são também
importantes, para o desenvolvimento do Research Model, considerarmos as crenças dos
professores e suas atitudes em sala de aula, uma vez que implicam fortemente no rendimento
do aluno.
Devo advertir, porém, que nosso objetivo na tarefa não foi o de reposicionar o ponto de
vista de que o objeto primário de investigação da didática da matemática (isto é, da
epistemologia experimental) passasse do conhecimento do aluno ao pensamento do professor,
mas sim à atividade matemática escolar, elemento este imprescindível à relação entre
professores e alunos. Quem primeiro propôs este ponto de vista foi Brousseau (1986; 1998)
para o qual,
(...) los conocimientos del alumno, sus atividades de aprendizaje, la atividade docente
del professor, los processos cognitivos que acompañan a estas atividades y, em
general, los processos de enseñanza-aprendizaje, pasen a ser considerados como
objetos “secundários” (lo que no quiere decir que sean menos importantes) porque
deberán ser construídos o definidos a partir de los términos primitivos del modelo
epistemológico de las matemáticas que se adopte como núcleo firme y puerta de
entrada al análisis de los fenómenos didáticos (apud BOSCH & GASCÓN, 2001, p.
9).
Nestes termos a aprendizagem docente que anunciei é perceptível, principalmente, pelas
arguições da colaboradora Queiroz quando manifesta compreensão da necessidade de discussão
do saber, semelhante à lógica representada pela figura do artesão, na qual se privilegia o
domínio dos processos, o objeto e o seu motivo e, sobretudo, a possibilidade de aprender em
grupo com suas parceiras – “a gente verá potência, propriedades de potência, equação
exponencial, valores e gráficos, vamos trabalhar o porquê de trabalharmos uma coisa depois
da outra”. Isto me traduziu ainda a possibilidade das professoras, coletivamente, lidarem
analítica e sinteticamente com seu objeto de trabalho por meio da construção e compreensão
dos instrumentos, "as atividades de ensino", que lhes possibilitassem não apenas criar novas
operações, mas também satisfizessem as necessidades que se apresentavam.
~ 181 ~
Trato, pois, de uma aprendizagem da função docente do tipo instrumentalidade
tecnológica e estratégica do ensino, que reconhece e viabiliza caminhos para sairmos de uma
lógica de manufatura fundamentada na produção em série dos atos pedagógicos, para a da
compreensão de que toda ação pedagógica é única, principalmente se guiada por um modelo
investigativo com enfoque epistemológico de valorização da experiência – “Consideramos
também a questão dos conhecimentos prévios dos alunos, aqueles que eles trazem do ensino
fundamental para o primeiro ano [do ensino médio]. Conhecimentos que deem uma
continuidade para a exponencial e o logaritmo”. Esta manifestação positiva do
estabelecimento de relação entre a continuidade dos conhecimentos e o conhecimento prévio
dos alunos resgata o que expus na primeira composição deste trabalho acerca dos princípios do
contínuo experiencial (DEWEY, 2011), a saber, que toda experiência vive, de algum modo, em
experiências futuras.
Satisfeitos com este primeiro debate sobre as reuniões de estudo livre, agendamos outra
data para que pudéssemos dialogar sobre os avanços do grupo. Por ora as professoras acordaram
que deveriam aprofundar seus estudos na justificativa - da razão de ser - dos objetos
matemáticos função exponencial e função logarítmica estarem no ensino médio e de como
poderiam ser apresentados aos alunos neste nível de ensino.
Em meu segundo encontro com o GT1 discutimos sobre funções enquanto padrões de
comportamento de sequências numéricas. Esperava, porém, que tivessem avançado em seus
estudos na perspectiva de questionamento do objeto, mas demonstraram maior preocupação
com a apresentação do tema aos colegas do que com a construção de uma praxeologia própria
sobre o objeto, isto é, com um melhor conhecimento do objeto de estudo. Diferentemente das
integrantes do GT2, os rapazes do GT1 não apresentavam indicativos de que estavam
questionando o que seria uma função e o porquê de ensinarmos este assunto no Ensino Médio.
Aparentemente aceitavam a ideia de que se tratava de um tema relevante constante no currículo
prescrito e isso bastava para seu ensino. Compreendi, neste momento, o que nos ensina a
metáfora de Becker (1993) sobre a estranheza do professor às perguntas a respeito do
conhecimento.
O professor cotidianamente ensina conhecimento, mas reage ao convite à reflexão
sobre isso como alguém que está almoçando, jantando ou bebendo um copo d’água e
se lhe pergunta por que está comendo ou bebendo. Parece que nunca alguém lhes
perguntou a respeito. Alguns afirmam que nunca pensaram sobre isso. Entende-se,
então, por que ocorrem algumas respostas vagas do tipo: “Conhecimento é aquilo que
~ 182 ~
tu sabe”, ou ainda: “São as coisas, as experiências de vida que a gente vai adquirindo,
guardando ao longo da vida”. (p. 37)
Nesse sentido, a ausência de reflexão epistemológica do professor acaba assumindo
feições de senso comum. Diante desse contexto nossas discussões se deram, então, dentro de
uma perspectiva técnica de estruturação de uma sequência de ensino, na qual tentei introduzir
alguns aspectos que considerava relevante que tivessem percebido no estudo epistemológico do
tema, uma vez que não lhes parecia claro a diferenciação entre estudo epistemológico e resgate
histórico. Em verdade, esta diferenciação é de certa forma sutil, visto que,
A história, para a epistemologia, é um elemento mediador e não um fim. Dessa
maneira, “oferece um bom meio de análise ao separar, pela data e pelas circunstâncias
do seu aparecimento, os diversos elementos que contribuíram para formar pouco a
pouco as noções e os princípios da nossa ciência”, de forma crítica, ao mesmo tempo
que dinâmica. (BLANCHÉ, 1975, p. 46-47)
Esta visão não era inusitada ao grupo, uma vez ter sido palta de discussão em nossos
encontros preparatórios no grande grupo, quando trabalhamos o texto de D’Amore (2007a) em
que este situa a concepção epistemológica como um conjunto de convicções, de conhecimentos
e de saberes científicos, os quais tendem a dizer o que são os conhecimentos dos indivíduos ou
de grupos de pessoas, como funcionam, os modos de estabelecer sua validade, bem como
adquiri-los e então de ensiná-los e aprendê-los. Nestes termos, a epistemologia é uma tentativa
de identificar e de unificar concepções epistemológicas diferentes relativas a determinadas
ciências, a movimentos intelectuais, a grupos de pessoas, a instituições, ou a culturas
(D’AMORE, 2007a, p. 181).
Em nossa discussão, embora sem a devida circunscrição histórica, tentei alertá-los sobre
a concepção epistemológica de função enquanto modelização funcional, isto é, como
identificação e registro de padrões. Esta situação é perceptível na transcrição do seguinte trecho
de diálogos.
Orientador – No que vocês avançaram?
Ss1 – Pesquisamos mais sobre a história das funções.
Orientador – E o que encontraram sobre a noção de função?
Ss1 – Muita coisa.
Orientador – Encontraram algo sobre padrão de sequências? Por exemplo, qual
o padrão da sequência {0, 2, 4, 6, 8, ...}?
Sena – São os números pares!
Ss2 – É uma P.A.!
~ 183 ~
Orientador – Mas e em termos das funções que estão estudando? Conseguem
ver um f(x)=ax? É uma f(x)=ax+b com b=0. É uma incompleta.
Ss1 – Isso a gente sabe. O problema é: o que tem haver com a didática?
Orientador – E se o padrão fosse esse {1, 4, 9, 16, ...}?
Ss1 – Esse é fácil! {12, 22, 32, 42, ...}.
Orientador – Então podemos representar por f(x)=x2, né? ... Bom, vejam essa
outra sequência: {2, 5, 10, 17, ...}. Qual o padrão?
Sena – Esse é mais difícil!
Orientador – Não podemos escrever a sequência assim {1.1+1, 2.2+1, 3.3+1,
4.4+1, ...}?
Sena – Sim, podemos.
Orientador – E se fosse {3, 6, 11, 18, ...}? O que seria Ss1?
Ss1 – Seria a quadrática mais dois! [quiz dizer f(x)=x2+2].
Sena – Essa a gente já sabe!
Orientador – É! Porque algo já é rotineiro. [quiz mostrar-les que ai estaria a
didática!]
Sena – Então a primeira que a gente mostra é a quadrática incompleta?!
Orientador – Vejam que se eu achar que é uma quadrática então será
f(x)=ax2+bx+c. Então eu olho p’ra cá e pergunto, quem é esse K? [escrevendo
bx+c=K no quadro]. Se verificarmos que K é uma constante acabou, é uma
f(x)=ax2+k; se não, se vermos k1≠k2≠k3...[mostrando na sequência que K varia
em cada ponto] então K é definido por b e possívelmente c na forma K=bx+c.
Por exemplo, {12+2, 22+3, 32+4, 42+5, ...}. Vejam que a parte ao quadrado já
sabemos, mas na segunda parte qual o padrão?
Sena – Basta a gente fazer X=x+1!
Orintador – A gente tem que qualificar essa exploração. O público tem que
olhar e identificar esse padrão!
Sena – Por exemplo, se em X0=12+2 temos que x=1, então 2=1+1; em X1=22+3,
então 3=2+1, e assim por diante.
Orientador – Isso! Vocês estão entendendo, p’ra não causar “tilte” nas pessoas
elas têm que perceber o padrão.
(Fragmento de transcrição de áudio de encontro de orientação, 20/03/12)
Embora não estivéssemos discutindo a identificação de padrões como um elemento
situado historicamente como uma construção de determinado grupo social em dada cultura e
instituição para atender determinados fins sociais, parecia que estávamos avançando na
compreensão de que um objeto matemático não é simplesmente “jogado” na lousa para ser
copiado, decorado e aplicado. A eleição de tarefas para se discutir os padrões de comportamento
dos números em uma sequência descortinava uma forma viável de apresentação do tema de
modo a promover a reflexão e motivação do grupo. Possibilitaria que esboçassem suas
conjecturas e avaliassem seus resultados, sem a necessidade imediata de decorar passos, mas
sem perder de vista que certos processos são rotineiros, uma vez que o professor pode/deve
apresentar tarefas com graus cada vez mais elevados de complexidade de modo que os
~ 184 ~
estudantes reconheçam tanto os padrões já trabalhados (antigos) quanto identifiquem os novos,
que lhes colocam em estado de reflexão à procura de uma solução para o problema inusitado
que se apresenta (pesquisa). Este estado de reflexão mobiliza-os à formulação de ideias que são
validadas ou refutadas, sendo que as diversas concepções presentes revelam novos
conhecimentos que podem entrar em conflito com os antigos ou, então, podem surgir “erros”
ou contradições. Segundo Maranhão (2008, p. 146) algumas dessas convicções podem ser
fecundas, do ponto de vista cognitivo (da formação de conhecimentos). Neste caso, novas
situações podem servir de avanço.
Demos continuidade à discussão procurando estabelecer a melhor organização do que
havíamos estudado para a montagem da sequência de ensino. Avançamos no sentido da
construção das tarefas necessárias à introdução da noção de funções quadráticas completas a
partir dos conhecimentos antigos de funções incompletas do segundo grau. Dialogamos sobre
a importância dos alunos aprenderem a identificar padrões, algo necessário na resolução de
problemas que envolvem a leitura de tabelas e gráficos. A questão central foi a eleição de tarefas
que suscitassem esses padrões tidos como fundamentais, de modo que os estudantes pudessem
levar estes conhecimentos a outros padrões. Despedimo-nos estabelecendo o acordo de que o
grupo aprofundaria esta questão das tarefas expressas por esses padrões que resgatam o
entendimento de que a generalização de certas sequências pode representar funções.
Em nossa segunda reunião de orientação com o GT2 tivemos um debate mais específico
sobre a construção e justificação do objeto matemático em uma sequência plausível de ensino.
As professoras haviam explorado diversos livros e nesta segunda semana de trabalho tínhamos
bastante material empírico a discutir.
Orientador - E ai, o que a gente tem p’ra hoje?
Queiroz – Discutimos a construção da sequência.
Orientador – E temos algum problema?
Queiroz – O problema está na exponencial da qual não conseguimos mostrar o
logaritmo.
Orientador – E o que os livros dizem? [Não obtendo uma resposta, continuei
falando]. Vocês precisam compreender o que são tarefas fundamentais. Que
saberes são imprescindíveis aos alunos? Quais problemas se traduzem em
tarefas fundamentais? Por exemplo, quando trabalhamos com exponencial a
questão gira em torno de questões como: que tipo de problemas são resolvidos
com exponencial que não são resolvidos por outras funções? Nestes tipos de
problemas geralmente se supõe as funções afim e quadrática como ferramentas
ou conhecimentos antigos. Vejamos as sequências {0, 2, 4, 6, 8, 10, ...}, {0, 1, 4,
~ 185 ~
9, 16, 25, ...} e {1, 2, 4, 8, 16, 32, ...}. Que sequências são essas? Elas são
semelhantes? Elas representam padrões semelhantes?
Queiroz – Na primeira os números estão crescendo de 2 em 2.
Orientador – E como vocês sabem que estão crescendo?
Ss4 – Porque cada um é 2 maior do que o anterior.
Orientador – Isto é, se você faz y0=0, y1=2, y2=4, y3=6, y4=8, y5=10 e assim por
diante, então y1-y0=2-0=2, y2-y1=4-2=2, y3-y2=6-4=2, e assim por diante, ou
seja, quando você pega cada número subtraído de seu sucessor sempre encontra
uma mesma constante, igual a 2. [Depois de alguns cálculos de indução
chegamos à ideia de que yn=yn-1+2]. Mas olhando para a sequência y0=0, y1=2,
y2=4, y3=6, y4=8, y5=10..., qual a relação entre seus valores e os índices?
Ss4 – É sempre o dobro.
Orientador – Isso, y0=0=2.0, y1=2=2.1, y2=4=2.2, y3=6=2.3, y4=8=2.4,
y5=10=2.5 e por indução yn=2.n. E nessa segunda sequência {0, 1, 4, 9, 16, 25,
...}? Qual é o padrão? O que acontece quando tiramos a diferença entre um
termo e seu sucessor?
[Depois de um tempo...]
Ss3 – Não dá constante.
Orientador – Isso! Pois 1-0=1, 4-1=3, 9-4=5, 16-9=7, 25-16=9, etc. Mas e se
fizermos a diferença da diferença?
Ss3 – Agora dá constante.
Orientador – Já discutimos que agora não dá uma afim, mas os estudantes estão
no 1º ano, então o que eles já viram no 7º e 9º ano que pode ser percebido aqui?
Ss3 – Potência!
Orientador – E a gente ainda dá uma “pincelada” em potenciação e radiciação
no início do 1º ano p’ra assegurar nosso trabalho, né? Então ele pode dizer: “-
Isso daí não é potência?” Então a gente aproveita e escreve: y0=0=02, y1=1=12,
y2=4=22, y3=9=32, y4=16=42, y5=25=25, ..., yn=n2. E o que nós temos?
Ss3 – Temos o valor do índice elevado ao quadrado!
Orientador – Então essa não é afim, é uma quadrática. E como fica a outra
sequência? O que fazemos primeiro?
Tatiane – Fazemos as diferenças.
Orientador – E quando fazemos isso o que encontramos? [Fizemos as contas e
constatamos que a primeira e a segunda diferença não são constantes]. Se as
subtrações não nos ajudam a encontrar um padrão devemos procurar outra
estratégia. E se em vez de subtrairmos dividíssemos os termos? O que acontece?
[Fizemos as contas e chegamos aos seguintes resultados: 1/0=∄, 4/2=2, 8/4=2, 16/8=2,32/16=2, ...] O padrão de proporcionalidade é 2, e qual a relação disso
com os índices?
Ss3 – Não poderíamos decompor os números?
Orientador – Como e com que propósito? E se invés disso fizéssemos y0=1= 20,
y1=2=21, y2=4=22, y3=8=23, y4=16=24, y5=32=35, etc. A esta altura os alunos
já estão habituados a trabalhar com os índices e em sua função determinar os
padrões.
SS4 – Na verdade é a constante elevada ao índice!
Orientador – É, e qual é a constante?
Ss4 – O 2.
~ 186 ~
Orientador – Então por indução chegamos a 2x. Vejam que diferente desta
[mostrando a quadrática] a variação está no expoente, por isso é que dá um
“bum” muito rápido! Cresce muito rápido!
Ss4 – E se não tivéssemos falado que era para dividir os termos um pelo outro,
como identificaríamos que era uma exponencial?
Orientador – Essa é uma técnica que apresentamos em nossa epistemologia.
Não surge do nada, se necessário compartilhamos.
Queiroz – E como fazemos a passagem para apresentar o logaritmo?
Orientador – O que vocês propõem?
Silva – Já lemos os “fundamentos” e outros livros.
Orientador – O “pulo do gato” está na ideia de construção das tabelas
logarítmicas segundo Napier. A definição de logaritmo surge da necessidade de
se resolver equações do tipo ax=b, quando não se consegue reduzir todas as
potências à mesma base, como é feito nos estudos das exponenciais.
Queiroz – Esse livro aqui apresenta a definição do logaritmo como uma inversa
da exponencial. [Lemos a definição]
Orientador – É, aqui temos que a exponencial possui uma inversa, mas quem
disse que essa inversa é o “log”?
Silva – A gente tem uma resposta. A gente “entra” na história que lá tem.
Queiroz – Aqui temos essa passagem. Todos os autores que encontramos
mostram essa passagem por definição.
Orientador – Não quero que vocês se frustrem. Façam o que for possível para
o tempo que estudaram nestas duas semanas. A apresentação de vocês tem que
ter lógica, uma justificativa, deve levar em consideração tarefas fundamentais
em grau crescente de complexidade.
Queiroz – Devemos construir tarefas para tornar o objeto rotineiro?
Orientador – Isso. Por exemplo, se já temos compreensão de uma sequência que
expressa f(x)=2x, será que existe uma sequência que nos leve a um g(x)=3x ou
outra qualquer? Quando isso será válido?
Queiroz – Então a gente faz esse tipo de questão p’ra eles?
Orientador – É. E outras como: Como eu posso fazer isso? Como
representaríamos isso em um gráfico?
Queiroz – Então teremos de trabalhar domínio e imagem.
Orientador – Será inevitável. Mas o ponto crítico é a passagem da exponencial
para a logarítmica.
Queiroz – Perfeito, eu adoro demonstrações! [Esboçando um sorriso irônico].
(Fragmento de transcrição de áudio de encontro de orientação, 20/03/12)
Nossa reunião foi bem estimulante, pois nos oportunizou discutir a proposição da
sequência e explorar alguns problemas sobre o ensino do tema em estudo. Um dos primeiros
que evidenciamos se refere ao problema da desarticulação dos conteúdos, visto que anunciam
“O problema está na exponencial da qual não conseguimos mostrar o logaritmo”, e reiteram
mais à frente “E como fazemos a passagem para apresentar o logaritmo?”. Contudo, as
respostas encontradas nos livros que consultamos retratam a função logarítmica como uma
~ 187 ~
função inversa da função exponencial sem muito aprofundamento. Isso ocasiona um longo
turno sem resposta no início de nossa discussão – “E o que os livros dizem? [Não obtendo uma
resposta, continuei falando]” -, bem como a seguinte constatação de Queiroz “Todos os
autores que encontramos mostram essa passagem por definição”.
Sobre o problema da desarticulação dos conteúdos presentes no ensino básico BOSCH
et. al. (2006) nos afirmam que em muitos países os currículos das instituições escolares têm
sido estruturados em grandes seções de conteúdos: conceituais, procedimentais e atitudinais.
Cada uma destas seções se constitui em uma relação, geralmente pouco estruturada de
diferentes tipos de conteúdo. Além disso, temos os currículos de matemática estruturados em
um conjunto de áreas e estas estruturadas em setores. Assume-se, desde os primórdios do
currículo, que todos estes conteúdos formam parte de uma organização maior, a Matemática,
porém, não estabelece qual a maneira de articular estes conteúdos para proceder ao seu estudo
nas instituições escolares, quando muito algumas considerações gerais e um tanto vagas.
Embora minhas preocupações iniciais estivessem voltadas à percepção do grupo sobre
as estruturas apresentadas nos livros didáticos – “E o que os livros dizem?” -, em particular,
em como a epistemologia dos autores e professores refletem em suas organizações didáticas e
mais propriamente na atuação docente em sala de aula - “Essa é uma técnica que apresentamos
em nossa epistemologia”. Talvez devesse ter sido mais explícito sobre isso no processo de
mediação, visto que cada dispositivo didático88 expressa uma epistemologia, e cada professor
também apresenta uma epistemologia que orienta a estruturação de suas organizações didáticas
e suas ações de ensino. Esta problemática é crucial ao processo de estudo, pois está associada
a uma questão que Piaget (apud BECKER, 2012) expunha em toda sua obra: Como o sujeito
passa de um conhecimento mais simples a um conhecimento mais complexo? Este problema
não deve ser subestimado – “A apresentação de vocês tem que ter lógica, uma justificativa,
deve levar em consideração tarefas fundamentais em grau crescente de complexidade” -,
devemos, pois, buscar estratégias didáticas que venham contemplar este problema de modo
prático na tarefa de ensino – “Devemos construir tarefas para tornar o objeto rotineiro?”.
Sobre isso Becker (2012) entende que este problema,
88 Chamamos de dispositivo didático as classes de matemática, os livros de matemática, os exames de matemática,
as perguntas que fazem os professores em classes de matemática, etc. (CHEVALLARD et al., 1997, p. 277)
~ 188 ~
(...) pretende responder não apenas como o bebê passa dos reflexos aos primeiros
esquemas, como a criança sensório-motora passa de um conhecimento prático para
um pensamento simbólico ou pré-operatório, e deste para o operatório-concreto e,
depois, para o operatório-formal, mas também como se passa da aritmética para a
álgebra, e desta para o cálculo diferencial e integral. (BECKER, 2012, p. 71-72)
Pretendia imprimir este entendimento ao nosso diálogo e empregava a questão
piagetiana à estruturação da sequência matemática que discutíamos. Dialogávamos na
perspectiva de distanciarmo-nos de respostas categorizadas como de “senso comum”, isto é,
das concepções epistemológicas que naturalizassem o ensino de funções exponenciais e
logarítmicas legitimadas pelo lema “todo mundo pensa assim, então estou certo” – “Todos os
autores que encontramos mostram essa passagem por definição”. Foi justamente esta lógica
de questionamento da razão de ser do objeto, propondo outra abordagem ao seu ensino, que nos
motivou na construção da sequência didática. Nesse sentido, encerramos o debate com boas
expectativas. As professoras disseram já possuir diversos materiais e terem produzido bastantes
slides sobre o trabalho. Todas as integrantes do grupo expressaram esmero e dedicação, atitudes
necessárias ao profissional docente. Neste ambiente estimulante e prazeroso despedimo-nos.
Nosso próximo encontro seria na data de exposição dos resultados do trabalho.
Situação 3 - Exposição das organizações didáticas
Nossa primeira reunião para que os grupos iniciassem a exposição de suas reflexões e
produções teve por tema o ensino de funções afim e quadrática, mediado pelo GT1,
especificamente pelos seus integrantes Leite e Sena. Os expositores tiveram trinta minutos para
suas arguições, seguidas de considerações dos integrantes do grande grupo, no qual me incluo.
A decisão de apenas dois integrantes do grupo exporem o trabalho não foi imposta por mim,
que apenas estipulara um mínimo de dois integrantes para assumir a dianteira da exposição,
sendo facultada a presença de todos os colaboradores do grupo à frente da mediação. Somente
meses depois, por ocasião das seções de entrevistas com os meus interlocutores é que pude
compreender o que se passava de fato naquela ocasião89.
89 Sena me informou em entrevista que naquela ocasião apenas os dois haviam realmente finalizado o produto para
a apresentação, mas preferiram omitir esta informação para não prejudicar os colegas ausentes na tarefa.
~ 189 ~
A exposição, talvez pela condição de saúde de Rubervan, deu-se de maneira invariável,
com pouca dinâmica. Embora dificilmente varie seu comportamento ectomorfo retraído90, pelo
que havíamos discutido durante duas semanas, eu possuía uma expectativa mais elevada sobre
os resultados a serem apresentados pelo grupo. A dupla expôs o trabalho dividido em dois
momentos: o primeiro com informes históricos sobre os estudos de função de matemáticos
renomados, e o segundo de apresentação de conceitos e definições, além de proposições de
aplicação destes conceitos e definições.
O trabalho exposto pelo grupo assumiu um tom de contradição, de conflito interno entre
os objetivos mais contemporâneos do ensino, de preocupações com as tendências de ensino da
matemática em contraste com ponderações menos reflexivas, muitas vezes admitindo estarem
se baseando em uma perspectiva da pedagogia tradicional, como pode ser percebido já na
passagem de introdução ao trabalho do grupo:
Aqui a gente montou uma sequência que acreditamos ser a mais plausível,
visando tanto o ensino tradicional quanto utilizando tendências. Apenas
tirando a modelagem, pois a gente sabe que na modelagem a gente não vai ter
o controle do que o aluno vai aprender. Na dinâmica ele vai aprender coisas
aqui e ali. (LEITE – Recorte da transcrição do áudio da Exposição do GT1 -
26/03/12)
O destaque ilustra o quão complexa é a tarefa reflexiva sobre a aprendizagem dos
professores em formação que passam por um estado de problematização e busca de
desnaturalização das práticas de ensino, uma vez que, neste caso, admitem a possibilidade de
novas abordagens para o ensino da matemática, mas sua pouca experiência os posiciona em um
campo limíndrofe, de conflitos, entre as novas leituras, os discursos com que tiveram contato
no percurso de estudo e o que já estão acostumados a presenciar/vivenciar durante toda sua
formação escolar, e parte da formação acadêmica, com características marcadas pela lógica da
racionalidade técnica. Apesar de pretenderem dar ao grande grupo respostas condizentes com
as perspectivas mais atuais de postura e encaminhamentos de ensino da matemática, retornam
a sua zona de conforto com perspectivas tradicionais sempre que não têm respostas a dar sobre
o processo de ensino. Demostraram, na ocasião, que sua compreensão de ensino e aprendizagem
90 Pessoa esguia e tímida, segundo descrição com base na teoria das variedades do temperamento humano
desenvolvida por Sheldon (1942) e seus colaboradores (SHELDON et. al., 1954), em que se relacionam
diretamente a forma física do corpo com tipos específicos de temperamentos (apud PASQUALI, 2000, p. 9).
~ 190 ~
da matemática valorizava, hegemonicamente, o caráter sintático do conteúdo (regras e
processos relativos) (FIORENTINI; MELO & SOUZA JR, 1998).
Contrariamente ao que discutimos ao longo de mais de duas semanas em nossas
reuniões, a história da matemática foi tradada de um ponto de vista apenas alegórico91 e
cronológico, não cumprindo nenhuma função de valor epistemológico92. Na segunda parte da
apresentação, o grupo optou por apresentar uma organização matemática semelhante à dos
livros didáticos consultados, expressando mais uma vez a preocupação do grupo com os
aspectos normativos e não, necessariamente, criativos de organização/abstração de uma
sequência didática, uma vez que optaram por uma organização didática nos moldes do
paradigma do exercício93, deixando de lado nosso exaustivo trabalho de seleção de tarefas em
que propúnhamos atividades exploratórias sobre os padrões e propriedades dos elementos de
uma sequência numérica que subsidiariam a modelagem de fenômenos concretos. E com esta
perspectiva tradicional, continuam a exposição:
A gente apresenta primeiro o plano cartesiano. Não é melhor a gente
apresentar primeiro o plano cartesiano depois as relações? Depois do plano
cartesiano a gente passa p’ro conceito de função. Falo o que é. Que a função
é a relação entre duas variáveis, sendo que há uma variável de um conjunto
relacionada com a variável de outro conjunto. Logo serão o conjunto domínio
e contradomínio, domínio e imagem. A gente apresenta a função. Podemos
mostrar p’ra eles por meio de diagramas e no próprio plano cartesiano, por
tabela. A gente pode mostrar p’ra eles como encontrar a imagem ali [nos
diagramas] e também por aqui, no gráfico. A gente vê que os alunos sentem
dificuldades de interpretar gráfico. Outra coisa é que os professores algumas
vezes não mostram como identificar uma função através do gráfico. É sempre
através dos diagramas ou dos conjuntos. Mas, se eu “jogo” um gráfico p’ra
eles e pergunto: “o gráfico representa uma função?” Ai fica meio difícil! Daqui
a gente pode partir p’ros zeros de uma função polinomial do primeiro grau, a
função afim. A gente primeiro “dá” uma definição p’ra eles, montamos o
gráfico. Primeiro todo tracejado, depois a gente passa para as propriedades.
91 Termo utilizado pelos historiadores da matemática para se referirem à situação na qual o professor lança mão
das raras preciosidades que ele acha encravadas no fim dos capítulos do livro texto [ou em publicações de eventos]
e acaba utilizando-as como recreio mental, para fugir por uns momentos de assuntos mais sérios (FOSSA, 2001)
ou formais do ensino, assumindo caráter de história-anedotária com função psicológica de motivação (MIGUEL
& MIORIN, 2008). 92 Relativo à natureza e aos significados dos conhecimentos, ao desenvolvimento histórico das ideias, ao que é
fundamental e ao que é secundário, aos diferentes modos de organizar os conceitos e princípios básicos da
disciplina, e às concepções e crenças que os sustentam e o legitimam (FIORENTINI; MELO & SOUZA JR, 1998,
p. 316). 93 Paradigma interpretado por Cotton (1998, apud SKOVISMOSE, 2000) nas salas de aula de ensino de matemática
em que os professores ocupavam a maior parte de seu tempo com exposições dos conteúdos (ideias e técnicas
matemáticas) e os alunos ocupavam a maior parte de seu tempo com resolução de exercícios.
~ 191 ~
Essa aqui é uma reta, temos a propriedade de ter uma função crescente, a função
decrescente e a constante. Feito isso, quando eles souberem fazer o gráfico,
podemos estudar os sinais das funções. A função polinomial do segundo grau
ou quadrática, apresentamos também a definição e logo em seguida os
gráficos. Primeiro apresentamos p’ra eles os pontos [do gráfico], depois
traçamos a parábola. Porque eles vão ver os pontos e querer passar logo uma
reta no x ali [mostrando o gráfico], não, a gente vai ter que fazer a parábola.
Depois a gente vai mostrar p’ra eles o vértice da parábola. Depois que eles
tiverem aprendido “bacana” que o gráfico é uma parábola, podemos mostrar
p’ra eles como encontrar os valores de x no eixo e o ponto de intersecção da
parábola com o eixo Y. A gente mostra p’ra eles o y do vértice e o x do vértice
e como encontra-los. Passando isso, depois de eles encontrarem o vértice a
gente mostra a noção de máximo e mínimo de uma função. Depois podemos
mostrar p’ra eles os sinais das funções. Aqui positivo, negativo, positivo
[mostrando o gráfico no slide]. E logo em seguida a gente pode mostrar p’ra
eles a inequação polinomial que é o finalzinho das funções do segundo grau.
[Questionado pelo grupo sobre a possibilidade de se cumprir todo esse conteúdo
em um ano letivo, Leite responde positivamente necessitando ainda esclarecer
sobre os tipos de aplicações a serem vistas em sala de aula]. A gente tem a
definição de função afim, ela tá aqui! Então legal, vamos fazer uma aplicação
com ela? Tipo, a taxa de variação de temperatura na cidade, ou aquele velho
exemplo da função afim: “a gente pega um taxi de R$0,50 o minuto e bandeira
de R$ 10,00 ali em Castanhal”. (LEITE – Recorte da transcrição do áudio da
Exposição do GT1 - 26/03/12)
A exposição claramente apresenta uma estrutura pedagógica centrada no professor – “A
gente mostra p’ra eles” -, posicionando-o hierarquicamente como aquele que sabe e apresenta
seu saber aos alunos que provavelmente nada sabem: “Falo o que é. Que a função é a relação
entre duas variáveis, sendo que há uma variável de um conjunto relacionada com a variável
de outro conjunto”, “A gente primeiro ‘dá’ uma definição p’ra eles”, “apresentamos também
a definição e logo em seguida os gráficos”. Confesso que o momento da exposição exigiu de
mim grande autocontrole e paciência, por não estar visualizando nenhum aspecto do que
havíamos discutido nos encontros de grupo. Angustiava-me a minha falta de discernimento para
identificar naquela situação a razão de tamanho distanciamento entre o planejado e o
efetivamente apresentado pelo grupo.
Minha reação na ocasião também espelhou certa inexperiência na condução de grupos,
posto que ao invés de questionar os expositores sobre suas escolhas e tentar esclarecer o porquê
de suas opções os levarem a uma explanação antagônica ao que havíamos discutido na
preparação do trabalho, teci forte comentário expressando minha decepção com a defesa de
uma sequência didática tradicional, centralizadora e diretivista, com pouca abertura à reflexão
~ 192 ~
por parte dos alunos. Devo dizer que esta reação passou a fazer parte significativa de minha
própria formação como educador, fazendo-me refletir sobre termos a todo o momento que nos
manter atentos ao que ocorre no ambiente de formação e que nossas reações podem repercutir
decisivamente na vida de nossos interlocutores.
Passados alguns meses, depois de colhidas algumas informações e revisando a situação
com certo distanciamento, conjecturei algumas explicações sobre a experiência, que pontuo da
seguinte forma: 1) Os integrantes do GT1 compunham um grupo de indivíduos conhecidos na
turma por se destacarem nas tarefas das disciplinas específicas do curso de Matemática. Esse
destaque, por ser reconhecido por todos, deve de algum modo ter nos contagiado a todos,
levando-nos a supor que o êxito nas disciplinas específicas também se repetiria nas situações
didáticas no grupo de estudo. Acreditei, portanto, talvez erroneamente, que estudantes
exemplares nas dinâmicas de disciplinas específicas do curso teriam facilidade para
desenvolver a tarefa proposta nos termos da didática da matemática; 2) Discutimos a existência
de uma epistemologia presente nas obras matemáticas, passiveis de serem explicitadas a partir
da identificação e análise de organizações matemáticas presentes nos livros didáticos e nas aulas
ministradas por professores em determinadas instituições. Uma vez que tais organizações se
manifestariam por meio das tarefas eleitas em determinada obra, é possível que o grupo tenha
suposto que a sequência expressa pela organização do livro didático consultado fosse
semelhante à discutida pelo grupo nas reuniões de orientação. Assim, apesar de não adotar o
mesmo desenvolvimento que havíamos discutido, os professores assumiram a sequência do
livro didático como algo mais prático do que elaborar sua própria compreensão de organização
didática para o objeto em estudo.
A primeira conjectura explicativa para o ocorrido não exclui a segunda, ou melhor,
provavelmente as duas situações tenham se dado em simultâneo, colaborando assim para uma
visível “transgressão” dos consensos supostamente estabelecidos nas orientações. O primeiro
ponto nos alerta para o fato de que dinâmicas colaborativas, embora se proponham dialéticas e
construtivas, não são simples, pois incorporam procedimentos, princípios e posturas que não
fazem parte da rotina dos sujeitos em formação, habituados ao sistema tradicional de ensino a
que foram sujeitados na maior parte de suas vidas escolares. Fator esse, certamente agravado
pela inusitada tarefa reflexiva de propor uma organização didática capaz de criar condições para
que os alunos possam ter acesso às obras matemáticas. Isto porque o programa epistemológico
de investigação em didática da matemática propõe a difícil, mas necessária, tarefa de
~ 193 ~
problematizar o modelo epistemológico do ensino da matemática em vez de considera-lo dado,
estabelecido de uma vez por todas.
El punto de vista de la didáctica propone que el problema de la elaboración del
currículo tiene um componente matemático essencial. No se trata unicamente de um
problema de secuenciar y temporalizar los contenidos del currículo. Se trata de uma
verdadeira reconstrucción creativa de las obras que forman el currículo.
(CHEVALARD et al., 1997, p. 127)
Esta formulação, conhecida como o problema da articulação, tem assumido contornos
mais característicos de um problema docente do que de um problema didático, que nos termos
de Gascón (1999) se caracteriza da seguinte forma: a) está formulado usando as noções
existentes nas instituições escolares (assumindo mais ou menos as ideias dominantes destas);
b) está estruturado mais como um problema dos sujeitos das instituições do que como um
problema do sistema de ensino da matemática (que como tal é bastante transparente e não se
questiona); c) Assume que existe uma forma universal e inquestionável de descrever o
conhecimento matemático (a desarticulação ai se projeta, pois se dá em referência a esta
articulação natural, intrínseca, eterna e imutável do conhecimento matemático); e d) se restringe
“o matemático” ao conhecimento matemático do aluno (aquilo que deve aprender) e “o
didático” aos processos que ocorrem em aula.
Apesar de a tarefa proposta aparentar assumir contornos de dificuldade, são
absolutamente passiveis de serem executadas no nível de formação proposto. É justamente o
que me faz resgatar a exposição do GT2, composto por professoras que assumiram a tarefa de
problematizar o ensino de Funções Exponenciais e Logarítmicas, buscando reformular o
problema docente como um problema didático, levando em conta uma organização didática que
retomasse os conteúdos antigos, questionando o seu desenvolvimento integrando-os a
organizações mais amplas e complexas.
Alguns dias depois da exposição do GT1 as integrantes do GT2, Queiroz e Soares,
expuseram os resultados das investigações do grupo sobre os objetos “funções exponenciais e
logarítmicas”. Soares iniciou sua arguição por uma breve, mas elucidativa introdução do papel
docente na perspectiva institucional da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB),
expressando a função social do Ensino Médio, situando seu aspecto transcendente a simples
concepção de complementação do Ensino Fundamental, por seu caráter de formação para o
mundo do trabalho e de desempenho da cidadania, à formação ética, ao desenvolvimento da
autonomia intelectual e compreensão dos processos produtivos pelos alunos.
~ 194 ~
De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira o Ensino
Médio não tem como função apenas o aprofundamento de conhecimentos do
Ensino Fundamental, no intuito de garantir a continuidade dos estudos, mas
também para a preparação para o mundo do trabalho e desempenho da
cidadania, a formação ética, ao desenvolvimento da autonomia intelectual e
compreensão dos processos produtivos. O professor precisa refletir sobre as
competências exigidas pela sociedade para os alunos do Ensino Médio, como
o desenvolvimento do Estado, suas metas e princípios, e a capacidade [dos
alunos] de fazer, o que fazer e como. (SOARES – Recorte da transcrição do
áudio da Exposição do GT2 - 28/03/12)
A preocupação do grupo em apresentar uma justificativa social para o posicionamento
institucional do professor é pertinente, e para este fim se baseiam na LDB como um dos
instrumentos, certamente o mais expressivo, que registram a razão de ser deste profissional no
ambiente escolar. Assim sendo, o currículo e os conteúdos não estão isentos de interferência
política e social, pelo contrário, são altamente por estes determinados (CHEVALLARD 2001;
2002; BOSCH et al., 2006).
Este contexto de codeterminação é explorado pelo grupo na sequência de sua exposição,
pois cientes de sua condição docente procuram elucidar sua organização didática levantando
questões que julgam pertinentes, ou mais precisamente, buscando questões que Chevallard et
al. (1997) classificariam como “questões com sentido”94 para a escola, por serem relevantes
socialmente e dizerem respeito a noções prévias trazidas pelos alunos.
Assim como a “Soares” já falou que o professor deve refletir sobre questões de
relevância da sociedade, outro aspecto a se considerar é levar em conta
conhecimentos que o aluno já possui, construídos nas séries anteriores, que
contribuam para os novos conceitos que pretendemos apresentar p’ra ele. No
caso da exponencial, através de sequências de números que os alunos conhecem
e que já tenham trabalhado as noções de função afim e função quadrática, a
priori identificando padrões nessas sequências de números. É isso que o aluno
vai fazer, tentar identificar um padrão, e pode fazer isso por tentativas, por
exemplo, subtraindo cada termo. (QUEIROZ – Recorte da transcrição do áudio
da Exposição do GT2 - 28/03/12)
94 Para que uma cuestión matemática pueda estudiarse com “sentido” em la escuela, es necessário: 1) Que provenga
de cuestiones que la Sociedade propone para que se estudien em la escuela (legitimidade cultural o social); 2) Que
apareza em ciertas situaciones “umlilicales” de las matemáticas, esto es, situadas em la raiz central de las
matemáticas (legitimidade matemática); Que conduzca a alguna parte, esto es, que este relacionada com otras
cuestiones que se estudian em la escuela, sean matemáticas o relativas a otras disciplinas (legitimidade funcional)
(CHEVALARD et al, 1997)
~ 195 ~
Queiroz esboça a sequência {1, 2, 4, 8, 16, ...} e passa a registrar no quadro o
procedimento de subtrair de cada termo o seu antecessor e observa que quando o aluno faz isso
não encontrará um padrão como na tarefa das funções afins, tão pouco encontrará um padrão
nas diferenças das diferenças como na tarefa das funções quadráticas. Diz que neste caso o
aluno deverá tentar outra técnica, por exemplo, a divisão dos termos por seu antecessor, neste
caso percebendo um padrão.
Mas quando ele observa que não encontra padrão na diferença de cada número
e seu antecessor [observando que a diferença da diferença ainda não apresenta
um padrão, avança para outra técnica] pode tentar, por exemplo, a divisão
[executa os cálculos na lousa]. Neste caso o aluno percebe nesta sequência o
número 2. Então ele pode representar esta sequência assim [expõe a sequência
y0=20, y1=21, y2=22, y3=23, y4=24, ...]. (QUEIROZ – Recorte da transcrição do
áudio da Exposição do GT2 28/03/12)
Em sua proposta, Queiroz encontra a constante 2 e expressa a sequência dada no quadro
agora com seus termos assumindo esta base. Considero interessante o diálogo que a professora
tece com a turma, como se segue:
Queiroz - Quando a gente encontra esta sequência com o aluno, qual o padrão
que ele percebe?
Ss1 – Que os expoentes estão crescendo.
Queiroz – E na nossa sequência, esses expoentes se parecem com quem?
Ss1 – São iguais aos índices dos y que determinam as ordens dos elementos.
Queiroz – Então nossa sequência pode ser escrita como o padrão que
encontramos (a base) elevado ao índice. Podemos escrever essa sequência na
forma f(x)=2x e iniciar os estudos da função exponencial. (QUEIROZ – Recorte
da transcrição do áudio da Exposição do GT2 28/03/12)
Este diálogo é deveras interessante, pois se diferencia sutilmente das outras
apresentações até então realizadas no grupo, pois Queiroz conduz a turma de forma dialética,
não assumindo a construção como sua, mas como uma tarefa do grupo – “quando a gente
encontra esta sequência com o aluno”, “E na nossa sequência” -, realizando questionamentos
– “qual o padrão que ele percebe?”, “esses expoentes se parecem com quem?” -,
possibilitando assim a interação dos seus interlocutores, assumindo-os como participantes do
processo de construção e não como uma plateia passiva. Esta postura dialética95 expressa uma
95 Para Paulo Freire (1996), a educação se torna um momento da experiência dialética total da humanização dos
homens, com igual participação dialógica do educador e do educando.
~ 196 ~
aprendizagem docente do tipo dialogicidade da comunicação e da atuação docente, construída
possivelmente pela percepção das dinâmicas realizadas no grupo, na sala de aula que
acompanha e, sobretudo, na ressignificação dos textos disponibilizados para estudo no GCEM.
Mais à frente em sua exposição, Queiroz manifesta outra aprendizagem que já havia
identificado desde o momento de nossas discussões preparatórias, destacada no seguinte trecho:
Quando você define uma situação para eles [os alunos], neste caso função
exponencial, você deve trazer questões que façam com que este conhecimento se
torne comum a eles. Assim eles não terão dificuldades em outras situações.
Depois que você trabalha com eles outras situações como 3 elevado a x, 4
elevado a x, e esse conhecimento se tornou comum, agora você vai ter que
propor questões um pouco mais complexas, mas na mesma lógica de resgatar o
conhecimento que eles já têm. (QUEIROZ – Recorte da transcrição do áudio da
Exposição do GT2 28/03/12)
Além de trazer sua compreensão sobre a necessidade do resgate dos conhecimentos
prévios dos alunos, o que configura ciência dos princípios básicos de uma aprendizagem
significativa, Queiroz expressa conhecimento funcional da dialética ferramenta-objeto –
“Depois que você trabalha com eles outras situações como 3 elevado a x, 4 elevado a x, e esse
conhecimento se tornou comum, agora você vai ter que propor questões um pouco mais
complexas”-, e da necessidade de tornar certos procedimentos rotineiros. À luz do princípio do
contínuo experiencial de Dewey (2011), Queiroz estabelece um processo com proposição de
tarefas com grau cada vez mais elevado de complexidade que garantem que experiências de
resolução de problemas encontrem repercussão em tarefas futuras, o mesmo ocorrendo com
cada tarefa executada, em que propõe o resgate e ressignificação de experiências passadas para
a solução de uma nova tarefa. A professora segue sua dinâmica sempre compartilhando o tempo
e tarefas com o público, não lhes impondo os resultados, mas dialogando e negociando os
registros com o grupo.
Em outra situação você expõe uma sequência com valores diferentes das outras
e o aluno tem a tarefa de identificar um padrão [escreve no quadro a sequência
2, 3, 5, 9, 17, 33, ...]. Um aluno do primeiro ano que já fez a questão 1 vai fazer
o que fez da primeira vez [ela repete o procedimento de dividir cada termo por
seu antecessor]. Ao fazer isso ele não identificará logo um padrão. E o que ele
poderá fazer? [Ss1 esboça uma resposta, mas a abandona por perceber estar
incorreta. Queiroz passa a mão sobre uma coluna de restos das divisões e todos
parecem perceber outro tipo de padrão]. Agora ficou fácil identificar um
padrão, no caso o resto apresenta um padrão. Assim ele [o aluno] pode usar os
~ 197 ~
índices da sequência e fazer como ele tinha feito nas tarefas anteriores [Queiroz
dá um tempo e todos envolvidos com a tarefa proposta começam a fazer
anotações, parecendo estarem reescrevendo suas sequências na forma
exponencial]. Como podem ver, esta tarefa foi um pouco mais complexa p’ra
eles, mas mesmo assim eles ainda usaram conhecimento que já era comum p’ra
eles da situação 1, mas um pouco mais complexa, porque tiveram que adicionar
mais 1 para determinar os termos da sequência. Então, como eu posso escrever
a função dessa sequência agora? [Escreve-a no quadro com yn=2n+1). Depois
desse trabalho percebemos a existência de outros padrões que não só o 2, então
eu vou escrever a função de modo geral para qualquer padrão que eu encontre,
neste caso yx=ax+k. (QUEIROZ – Recorte da transcrição do áudio da Exposição
do GT2 28/03/12)
Queiroz finaliza a primeira parte de sua exposição com a seguinte expressão:
Quando o aluno em uma primeira tentativa não consegue identificar um padrão,
ele vai tentar buscar outras formas para encontrar este padrão. É assim que ele
vai construir o conhecimento dele. (QUEIROZ – Recorte da transcrição do
áudio da Exposição do GT2 28/03/12)
A professora assume em sua exposição uma postura mediadora, compreende o seu
ensino como um processo de construção do conhecimento a ser realizado pelo próprio aluno e
conduz este processo de modo dialético, posicionando-se enquanto representante institucional,
que propõe tarefas planejadas por um coletivo docente, as quais ganham vida nas inferências
do público com que trabalha. Este tipo de tarefa de longe se configura como um plano
engessado, fixo, e de pouca contribuição aos estudantes. Pelo contrário, a construção de
sequências didáticas pode se configurar como um excelente instrumento formativo aos docentes
e seus resultados - as sequências -, podem se constituir como proposições relevantes, ao
ganharem contornos singulares em cada turma, pela participação de sujeitos também singulares,
os alunos, em processos investigativos.
Situações de elaboração dos Trabalhos de Conclusão de Curso
O percurso formativo experienciado pelo grupo encontra sua conclusão em situações de
incursão em sala de aula e construção de compreensão de problemáticas a que estavam sensíveis
os bolsistas. O segundo semestre de 2012 configurou um período de intensa observação de sala
de aula e produção de textos e análise de contextos passíveis de perscrutação de processos e
~ 198 ~
tipos de aprendizagem docente. Estes processos são objetos passíveis de análise por meio do
estudo das experiências pessoais de pesquisa, expressas a seguir.
Experiências de Silva
Silva desenvolveu um projeto intitulado “Reflexões sobre o processo de inclusão de
alunos surdos nas aulas de matemática de uma escola estadual de ensino regular do município
de Igarapé-Açu”. O trabalho se constituiu de um estudo de caso em que a professora investigou
o ambiente de ensino de alunos surdos à procura de peculiaridades referentes às suas
dificuldades de aprendizagem da matemática escolar. Depois de uma análise preliminar do
levantamento situacional das matrículas de alunos com necessidades especiais do município,
constatou que não haviam sujeitos com esta característica nas escolas parceiras do projeto
PIBID. Desta forma, a professora resolveu passar um período de observação em uma escola
que se apresentava adequada à pesquisa sobre o tema. Nesta escola, considerada como
referência no município, em relação ao ensino de pessoas com deficiência, encontramos três
potenciais sujeitos. Uma vez tendo contatado com suas famílias e professores, a professora
iniciou seu acompanhamento de pesquisa.
Com o objetivo de identificar e analisar as dificuldades dos alunos especiais,
especificamente surdos, em relação à aprendizagem da matemática, foram realizadas
observações em sala de aula e entrevistas com os professores destes sujeitos, entrevistas com
os coordenadores pedagógicos e com a família dos alunos. O trabalho apontou três situações de
grande importância nesta relação dos sujeitos com necessidades especiais (surdez) e a
aprendizagem da matemática, a saber: a preparação dos professores de matemática para lidar
com a questão da inclusão; o apoio familiar aos estudantes e professores; e o apoio
especializado e estrutura em sala de aula para potencializar o ensino da matemática.
Sobre o trabalho realizado a professora tece as seguintes considerações:
Compreendo que incluir os alunos com necessidades educacionais especiais não
é apenas certificar que eles estejam em uma sala de ensino regular esperando com que eles se padronizem de acordo com as regras da escola, mas sim
proporcionar a esses alunos, estratégias, recursos e possibilidades que
favoreçam a eles se sentirem inclusos e capazes de construir seu próprio
conhecimento matemático, respeitando seus limites e potencializando suas
habilidades.
~ 199 ~
Com essa pesquisa percebi que os três alunos com necessidades educacionais
especiais (NEE), especificamente surdos, estão encontrando, nas aulas de
matemática da escola pesquisada, obstáculos em relação a se sentirem parte
desse processo de inclusão. Talvez seja pela dificuldade de comunicação que os
professores de matemática encontram, repercutindo dessa forma também na
relação com esses sujeitos. Percebo que os professores, principalmente os de
matemática, precisam de uma formação continuada de qualidade, a qual possa
favorecer a eles conhecimentos sobre as dificuldades de seu aluno com NEE e
possíveis estratégias, para que ele possa utilizá-las em sala de aula. Isso,
provavelmente, favorecerá também a aprendizagem dos demais alunos, fazendo
com que eles também se sintam incluídos nesse processo.
Percebo, também, que esses professores de matemática, com carência dessa
formação, necessitam da ajuda da família desses alunos, pois é importante para
os professores conhecerem seus alunos, uma vez que isso possibilitaria a eles
delinear melhor suas estratégias de ensino. Assim sendo, destaco a necessidade
de analisar e refletir as formas de como a inclusão dos alunos com necessidades
educacionais especiais está ocorrendo nas Escolas Públicas de Ensino Regular
no Brasil, em especial nas aulas de matemática, pois o fato de que a lei assegura
que eles sejam matriculados nas turmas de ensino regular, não garante que os
alunos irão aprender, já que para proporcionar a aprendizagem deles são
indispensáveis metodologias diferenciadas e para o professor é imprescindível
uma formação que possibilite conhecer melhor as dificuldades desses alunos.
(SILVA - Recortes do TCC)
Este trabalho iniciou com uma inquietação da professora no ambiente formal da
licenciatura de matemática, quando percebeu que nem todos os professores tiveram uma
formação para lidar com a questão da inclusão, sendo inclusive uma discussão relativamente
recente, como demonstra em seu relatório de pesquisa. Destaca, pois, sua sensibilidade e
perseverança em lidar com um tema ainda nebuloso e de poucas referências na Educação
Matemática. Esta inquietação revela tipologias de aprendizagem como: a sensibilidade
ecológica - por perceber uma problemática subjacente ao contexto escolar; a curiosidade
epistemológica - por estar atenta à uma necessidade no contexto em que atuava de modo a
mobilizá-la à pesquisa e à procura de referências, da história que envolvia o tema e de
perscrutação da realidade local em busca de significado aos seus questionamentos; e o
inacabamento e consciência social da profissão – por entender-se incompleta quanto à
compreensão de um tema da profissão e ao desenvolver um trabalho e socializar suas reflexões
e achados de modo sistemático e crítico junto à comunidade local.
~ 200 ~
Experiências de Sena
Durante o processo de observação de classe pelo PIBID uma questão que sempre
acompanhara Sena, segundo suas declarações, era a da relação entre o ensino da matemática e
o contexto social. Assim optou por desenvolver o projeto de título “Abordagens didáticas e
metodológicas no tratamento da informação para alunos do 9º ano do ensino fundamental”. O
projeto inicialmente visava evidenciar as dificuldades do professor no ensino do tratamento da
informação e na utilização de metodologias que possibilitassem o desenvolvimento crítico dos
alunos na interpretação de dados e informações de seu cotidiano. Contudo, pendeu para uma
investigação sobre os resultados de abordagens diferenciadas de ensino do tratamento da
informação junto aos alunos 9º ano do Ensino Fundamental. Assumindo uma pesquisa de
abordagem qualitativa, com características colaborativas, Sena analisou uma situação, proposta
por ele em parceria com um colega de classe, em que propunham a discussão de conteúdos
estatísticos e probabilísticos relacionados ao tema eleição. Depois de um complexo trabalho,
com realização de exaustivo levantamento bibliográfico, bem como de desenvolvimento e
análise de oficinas junto aos alunos das escolas parceiras, Sena expressa as seguintes
considerações finais:
Nesse trabalho, identificamos a importância de se trabalhar os conteúdos
relacionados ao Tratamento da Informação a partir de uma perspectiva que
desenvolva o pensamento crítico e reflexivo do aluno. Destacamos a
importância da Estatística, da Probabilidade e da Combinatória,
principalmente com relação à interpretação das várias formas de informação.
Tal como a análise de índices de custo de vida, feitura de pesquisas, coleta de
dados, entendimento do uso matemático nos jogos de azar, e a compreensão das
pesquisas expostas pela mídia, como, por exemplo, as pesquisas eleitorais.
Percebemos durante o levantamento da literatura, e confirmamos com a prática,
que trabalhar a construção de gráficos, tabelas e medidas, de modo puramente
expositivo não seria suficiente para desenvolvermos um trabalho que busca a
reflexão e criticidade dos alunos. Tendo isso em vista, salientamos o uso do
Tratamento da Informação como um conteúdo Matemático que permite uma
análise dialógica e crítica de fatos e problemáticas que ocorrem diariamente.
Durante o desenvolvimento da prática, percebemos que a escolha do tema
gerador, proposto pelo professor regente da turma e nosso colaborador no
projeto, permitiu que desenvolvêssemos um trabalho que instigou os alunos à
reflexão do uso de uma ferramenta matemática como recurso para a análise de
dados provenientes do cotidiano. Essa experiência, que vivenciamos dentro de
sala, nos remeteu a um novo diálogo com o professor colaborador, em que
percebemos sua intenção de trabalhar problemáticas atuais, fazendo uso
~ 201 ~
principalmente de livros didáticos que expressassem uma relação do conteúdo
a ser ensinado e o cotidiano do aluno, além de envolver o Tratamento da
Informação em uma perspectiva do uso de planilhas eletrônicas como
facilitadoras na construção e análise de gráficos. Partindo da concepção de
trabalhar o cotidiano como atrativo aos alunos, pudemos esclarecer que a
Matemática é de grande valia para exercitarmos um pensamento crítico e
reflexivo, pois quando abrangemos uma temática que se faz presente na vida de
todos os cidadãos de nosso município e propiciarmos a coleta, análise e
organização de dados referentes a uma pesquisa construída pelos próprios
alunos, disponibilizamos a eles instrumentos que facilitam uma compreensão
mais profunda acerca de uma situação cotidiana.
Observamos no decorrer do projeto, que o fato de trabalharmos uma temática
atual e inerente ao dia a dia, motivou os discentes durante o processo de
pesquisa, coleta e organização dos dados, pois na perspectiva dos alunos não
estávamos trabalhando um conteúdo “sem relevância”, pelo contrário, as
ferramentas que utilizamos seriam facilmente aplicáveis em outras situações.
Quanto ao uso da matemática na construção dos gráficos, averiguamos que os
alunos esboçaram maior interesse ao utilizar a Matemática em algo concreto e
que representava suas respectivas pesquisas em grupo, o que expressam
positivamente nas respostas aos questionários.
Ao término de nossa pesquisa, constatamos que é necessário levar em conta os
acontecimentos que compõem o cotidiano do aluno, tendo como mediadores
desse processo os professores, que sempre são de grande importância nesse
processo de aprendizado dos alunos. Entendemos que, o uso dos conteúdos
associados ao Tratamento da Informação está cada vez mais presente em nosso
cotidiano, e desse modo se faz necessário nos mobilizarmos cada vez mais para
o desenvolvimento do aluno sob este contexto, seja em que nível estiver. (SENA
- Recortes do TCC)
Sena apresenta segurança em suas colocações e, a menos de algumas inserções de ordem
positivistas como “pudemos esclarecer que a Matemática é de grande valia”, que acompanham
a redação do trabalho como um todo, em que atribuem o processo de aprendizagem em curso
como um “conjunto de certezas” e não como “possibilidades”, o professor consegue perceber
a importância de um trabalho situado em contextos de práticas e associações com a realidade
dos alunos, sendo este, inclusive, uma característica central de seu investimento didático.
Apresenta, assim, instrumentalidade tecnológica e estratégica do ensino, sensibilidade
ecológica e certa consciência social da profissão.
Experiências de Queiroz
Sensibilizada pela qualidade da relação entre professora regente e alunos em uma turma
de 8º ano que acompanhara pelo PIBID, Queiroz se viu inquieta sobre as implicações da
~ 202 ~
comunicação na aprendizagem da matemática pelos alunos. A questão mobilizou a professora
na busca de sentido às interpretações dos códigos matemáticos pelos alunos que,
invariavelmente, perpassam pela mediação da língua materna, porém não se limitam a ela.
Neste sentido, se perguntou: Em que termos as linguagens matemática e materna influenciam
na aprendizagem matemática dos alunos do ensino fundamental? Sua busca, no entanto,
perpassou pela busca de evidências sobre a influência da língua materna na apropriação do
conhecimento matemático, que percebia como uma influência debilitada nas relações
estabelecidas na sala de aula que acompanhou.
Queiroz observou que nas aulas de matemática os alunos apresentavam dificuldades na
resolução de problemas matemáticos por não compreenderem o que lhes era proposto na
situação. Mas conseguiam resolver os problemas mediante o auxílio da professora regente
quando esta operava o que Queiroz chamou de transformação de uma linguagem formal para
uma linguagem natural. Este comportamento, aponta Queiroz, acaba por apresentar um
conjunto de “palavras chave” que são utilizadas para induzir determinada ação. Tais condutas,
complementa, muitas vezes impedem o aluno de se apropriar da linguagem matemática, pois,
tal “tradução”, ao invés de oportunizar a compreensão de certos conceitos e palavras, reduz-
se a simples identificação de um algoritmo. O que, segundo a professora, transforma conceitos
em operações que conduzem o aluno a respostas nem sempre compreendidas, mas esperadas
pelo professor. Sobre seu trabalho, realizado em parceria, a professora Queiroz tece as seguintes
considerações:
O ensino da Matemática está historicamente relacionado ao tratamento e
aplicação de fórmulas e procedimentos mecânicos ou cálculos repetitivos.
Modificar essa concepção, representa um grande desafio para o ensino e a
aprendizagem desta disciplina. A pesquisa oportunizou aos alunos refletirem
sobre sua linguagem ao responderem às questões e ao terem a oportunidade de
explicar os seus procedimentos através da oralidade, buscando organizar o
pensamento para comunicar o conhecimento ao seu professor e colegas.
Observamos, neste estudo, que entre a utilização de algumas estratégias para
facilitar a compreensão do discurso, a principal é fazer perguntas aos alunos.
Em alguns momentos os discursos dos alunos são fiéis ao discurso matemático
formal e em outros são colocados de lado. Outra estratégia a ser utilizada é
buscar apresentar o conteúdo relacionando-o com objetos do dia-a-dia do
aluno. Com relação ao objetivo que foi estabelecido para a pesquisa,
identificamos nas atividades desenvolvidas, as influencias e implicações da
língua materna e da linguagem matemática mobilizadas em sala de aula com
fins de estabelecer uma comunicação. Disso, podemos concluir que a
~ 203 ~
construção de estratégias que viabilizem a comunicação em sala pode ser um
caminho para tornar a relação professor-aluno e aluno-aluno mais interativa e,
consequentemente, mais efetiva para a construção do conhecimento
matemático. (QUEIROZ - Recortes do TCC)
As motivações que mobilizaram a feitura do projeto advêm da sensibilidade ecológica
da professora Queiroz em relação à sala de aula pela. Esta sensibilidade, quando direcionada a
uma reflexão mais profunda sobre as ações desenvolvidas em sala de aula e que incidem em
uma pesquisa com características científicas, com observação e experimentação em sala,
identificação de padrões e análises, bem como produção de relatório e publicização de seus
achados, configura uma aprendizagem docente do tipo curiosidade epistemológica do
conteúdo e do sujeito, posto que a questão poderia ter permanecido inerte se não percebida e
explorada pela professora no contexto observado. Identificar problemas do ofício docente
constitui, ainda, indício de uma aprendizagem docente do tipo reflexividade crítica sobre a
realidade e contribui para a apropriação de nuances da profissão, portanto, que constituem uma
socialização ao ofício do professor, isto é, evidencia uma identificação com a docência e
contribui para o seu desenvolvimento docente.
Experiências de Soares
A professora Soares desenvolveu seu projeto de investigação de sala de aula em parceria
com outra acadêmica do curso e teve o seguinte título: “Dificuldades na aprendizagem em
matemática: um estudo de caso em uma escola pública de Igarapé-Açu”. A motivação para o
trabalho se situa na identificação feita por Soares de alunos com dificuldades em sala, que se
apresentavam desmotivados e, por isso, pouco participativos. Depois de uma sólida incursão na
literatura, Soares evidenciou que o problema da baixa aprendizagem se constitui complexo,
variando entre abordagens psicológicas, psicanalíticas e neurológicas até explicações
antropológicas, sociais e mesmo de ordem didática. Seu projeto foi um dos que mais suscitou
o princípio colaborativo do grupo, posto que estiveram envolvidos neste processo, além de mim
e do seu supervisor como orientadores, uma psicóloga do município, a coordenadora
pedagógica da escola, além dos alunos, obviamente. A professora Soares e sua parceira
encerram seu trabalho com as seguintes considerações finais:
Este trabalho surgiu de nosso interesse em saber quais os fatores que
influenciam nas dificuldades de aprendizagem em matemática. Diante de tal
~ 204 ~
problemática, as dificuldades de aprendizagem foram concebidas como
decorrentes de vários fatores de ordem pessoal, familiar, emocional,
pedagógico e social, podendo ou não englobar alguma patologia de ordem
orgânica da criança. Desta forma, as dificuldades de aprendizagem podem estar
relacionadas à criança ou também, às deficiências escolares. Com vista a
desenvolver ações que propiciem aos alunos a superação dos problemas que
implicam na aprendizagem da matemática, a escola, principalmente nós
professores e técnicos pedagógicos, devemos nos preocupar com o
desenvolvimento integral do aluno, propiciando-lhe a aproximação escola-
família, em que a escola auxilie a família a compreender o problema de
aprendizagem de seus filhos, já que, em muitos casos, os pais não conseguem
entender que o baixo rendimento escolar pode estar relacionado a diversos
fatores, inclusive o próprio ambiente familiar.
Conforme pudemos observar, a aplicação do teste de aprendizagem pode
contribuir para um maior e melhor conhecimento por parte dos professores em
relação às dificuldades em matemática dos alunos, pois foi a partir das
respostas do teste que conseguimos identificar os alunos com necessidades e
alguns possíveis fatores que implicam na aprendizagem matemática dos
mesmos. Fatores estes que após a realização de entrevistas com os alunos, com
a professora regente da turma e a técnica pedagógica da escola serviu-nos para
ratificar a existência de uma interação entre fatores educativos (ambiente
escolar, relação professor-aluno e didático), sociais (ambiente familiar) e
individuais (disfunção motivacional) implicando na aprendizagem matemática
dos alunos.
Essa interação ocorre de diversas formas. Um exemplo disso, são os problemas
motivacionais do aluno, quando detectados muito tarde pela escola - pois é nela
que são reveladas as dificuldades do aluno -, levam a um acúmulo de frustrações
e ao insucesso escolar; daí a importância do apoio da família para disposições
da aprendizagem escolar através do encorajamento, confiança e segurança,
reforçando os aspectos positivos do aluno; e a escola precisa garantir esse
apoio. Não centralizando a problemática no aluno, ao contrário, a escola deve
direcionar os seus recursos disponíveis, através de cursos de formação
continuada, aos docentes e matérias didáticos e pedagógicos, para possibilitar
a construção do conhecimento e sem discriminar os que têm dificuldade de
aprender. (SOARES – Recortes do TCC)
A questão central da pesquisa - Que fatores influem para a ocorrência de dificuldades
na aprendizagem da matemática? -, trazida ao grupo pela professora Soares, mobilizou-nos a
todos no sentido de uma discussão que nos remeteu a existência de vários fatores, como
implicantes na baixa aprendizagem dos alunos. Ficamos intrigados, porém, pela existência de
três claras vertentes para as quais não encontramos pesquisas que as conciliassem, a saber,
existem pesquisas que exploram as dificuldades de aprendizagem de ordem psicológica ou
neurológica, outras que discutem as dificuldades do ponto de vista pedagógico e social e mais
outras do ponto de vista dos obstáculos epistemológicos e didáticos. A contribuição do
~ 205 ~
investimento de Soares foi, sem dúvida, a articulação destas vertentes em um trabalho
multireferencial, e que discute as dificuldades de aprendizagem segundo duas dimensões, as de
ordem externa (social e didático) e as de ordem interna (psicológicas e neurológicas), tecendo
relações entre elas, isto é, Soares explorou os fatores inerentes as ações da sociedade, da família
e da escola, e investigou as causas motivacionais e de ordem biológica que implicam na
aprendizagem dos sujeitos. A motivação para a investigação assiná-la não apenas uma
aprendizagem do tipo sensibilidade ecológica em que a professora pontua aspecto relevante do
contexto escolar, levantando uma questão docente significativa, mas ainda manifesta
consciência social da profissão ao propor como um de seus produtos um roteiro de atividades
que auxilia aos professores na identificação de problemas de aprendizagem matemática dos
alunos, demonstrando preocupação em seu discurso, com a formação de seus pares e a solução
de problemas presentes em seu contexto social.
Experiências de Figueiredo
O professor Figueiredo apresentou desde muito cedo no grupo o interesse em realizar
um trabalho investigativo que refletisse seu processo de imersão na sala de aula e nos ambientes
de aprendizagem do PIBID. Deste modo, foi natural que desenvolvesse o projeto “Formação
de professores de matemática: reflexões sobre o ser e o constituir-se como docente”. Neste
trabalho Figueiredo desenvolve, em parceria, um relato sobre suas experiências como bolsista
do projeto PIBID, em que questiona: Em que as experiências de formação em ambientes
colaborativos têm contribuído para a constituição de professores de matemática? A partir desta
questão, o professor tece uma narrativa sobre suas experiências no projeto e pondera sobre a
importância de práticas antecipadas de ensino para o enfrentamento de problemas inerentes a
carreira profissional docente. Sobre seu trabalho Figueiredo pontua, em parceria, as seguintes
considerações finais:
O que relatamos neste TCC faz referência às experiências apreendidas no
GCEM, assim como as reflexões realizadas a partir das ideias de Dewey (2011) e Schön (apud DORINGON & ROMANOWSKI, 2008), Fiorentini (2005; 2008),
Garcia (1998), Pimenta (2004; 2008) e muitos outros autores, que contribuíram
para as nossas práticas enquanto futuros professores. As pesquisas, as
intervenções e os relatos dos diários nos proporcionaram um grande apanhado
de conhecimentos e aprendizagens. Com isso, pudemos perceber de perto como
é complexa a realidade de um ambiente escolar, que até então estava
~ 206 ~
“embaçada” aos nossos olhos. Nessa perspectiva, os dezessete meses de
experiências no grupo foram marcados por várias discussões, conferências e
seminários que nos ajudaram a identificar as diversas características da
profissão docente, assim como nos ajudou a nos constituir como tal. O que não
foi tão simples assim, pois, muitas vezes, em dupla, tivemos muitos impasses e
divergências com relação às reflexões e as discussões que as mesmas
propiciavam. Relatar experiências de forma conjunta é um tanto complicado,
mais ainda quando essas experiências propiciam resultados e concepções
diferentes para cada indivíduo.
Acreditamos que o GCEM nos proporcionou algo muito além de experiências
em espaços formativos, pois, nos fez compreender como o mesmo contribuiu de
forma ímpar para com a constituição da nossa identidade docente, visto que
muito do que aprendemos é graças a nossa participação neste grupo. Assim,
percebemos que o objetivo de investigar em que nossas experiências de
formação colaborativa contribuíram para nossa constituição como professores
de matemática foi alcançado e o resultado foi positivo, já que o GCEM nos
possibilitou o que poucos cursos de formação possibilitam a seus alunos, pois,
foi devido a participação neste referido grupo que nos tornarmos profissionais
melhores, que não buscam apenas cumprir seu papel institucional de educador,
mas que se preocupam com o seus alunos de modo transcendente ao simples
aprendizado dos conteúdos, contribuindo com esta sociedade que está
necessitando de professores qualificados e que acreditam em uma educação de
qualidade. (FIGUEIREDO – Recortes do TCC)
O debruçar sobre o relatório escrito de Figueiredo é um verdadeiro resgate de bons
momentos que vivenciamos juntos no grupo e que nos trazem diversas experiências de vida e
profissionais. Contudo, embora não se evidencie explicitamente em seu registro as
contribuições das experiências colaborativas à sua formação como professor de matemática, é
possível perceber em seu discurso importantes categorias de aprendizagem como a
reflexividade crítica sobre a realidade pela própria escolha do tema e necessidade expressa de
se “olhar”, de perceber-se em um processo de desenvolvimento. O que nos remete à segunda
categoria, a de inacabamento e consciência social da profissão, pois declara ter antes uma
“realidade embaraçada” aos seus olhos e que seu percurso de experiências “contribuiu de
forma ímpar para com a constituição da nossa identidade docente” e expressa ainda que “nos
tornarmos profissionais melhores, que não buscam apenas cumprir seu papel institucional de
educador, mas que se preocupam com os seus alunos de modo transcendente ao simples
aprendizado dos conteúdos, contribuindo para com esta sociedade que está necessitando de
professores qualificados e que acreditam em uma educação de qualidade”.
~ 207 ~
Experiências de Leite
O professor Leite demonstrou durante todo seu percurso de formação uma inclinação
aos processos didáticos da matemática e à lida com as estruturas matemáticas mais puras. Este
perfil o levou a desenvolver, em parceria, o projeto: “As contribuições do Teorema de Tales
para o ensino da matemática: da epistemologia da Geometria à Informática Educativa”. Uma
preocupação inicial de Leite era com relação à potencialidade do aparato computacional como
auxílio ao ensino da Matemática. Para isso, propunha investir esforços na elaboração de um
roteiro de atividades de ensino em que seriam desenvolvidos passos em um software livre de
geometria e testadas hipóteses de aprendizagem. Contudo, a proposta possuída dois imbricados
problemas que davam ao projeto um caráter diretivo e tecnicista. O primeiro dizia respeito ao
emprego do software como instrumento de ensino. Não havia justificativa emergente do
contexto de sala de aula observado que motivasse esta proposta, ou pelo menos nada que àquela
altura o professor pudesse justificar como um problema do contexto, como fora requerido de
todos os participantes do GCEM. O segundo problema era a própria estrutura do material
elaborado para a atividade prática. As atividades que deveriam dar conta de auxiliar a
construção dos conceitos geométricos do Teorema de Tales apresentavam-se extremamente
pontuais e desarticulados, isto é, não havia conexão entre as tarefas propostas. Os professores
possuíam uma compreensão sobre o conteúdo Teorema de Tales, mas tinham dificuldade de
promover a transposição da praxeologia do professor para uma sequência didática plausível de
ser materializada e desenvolvida com os alunos. Esta dificuldade dos professores já se
apresentava quando da experiência de construção das sequências didáticas nas experiências dos
estudos em grupo, especificamente quando compuseram o GT1 para o trabalho com funções
afins e quadráticas.
Para que os professores se dessem conta dos problemas da proposta, marcamos algumas
sessões para discussão em grupo sobre o roteiro de atividades proposto e para a problematização
dos encaminhamentos gerais do projeto. Percebia um forte apego dos professores ao perfil
racional e técnico do ensino, com foco no conteúdo e nos instrumentos de ensino e pouca
sensibilidade para com as necessidades inerentes à relação professor/aluno/saber. Em relação a
isso, discutimos que o professor deve estar atento para os imprevistos do contexto escolar. Neste
sentido, questionava: Como procederiam na aula de Teorema de Tales se não tivessem
disponível o computador? Que construções seriam necessárias para a compreensão por parte
~ 208 ~
dos alunos do objeto Teorema de Tales, de modo que independessem dos recursos tecnológicos
escolhidos? Que questionamentos envolveriam o diálogo de mediação da sequência junto aos
alunos de modo que o processo fosse construtivo? Propus ainda que estudassem como dariam
aula do mesmo assunto com o emprego dos instrumentos régua e compasso concretos, depois
com régua e compasso virtuais, e apontassem quais as potencialidades e restrições de cada
método. Discutimos também o porquê de ser de cada tarefa por eles elaborada em seu roteiro
de trabalho.
Depois de todo o planejamento e materiais elaborados, constituiu outra problemática a
formação do público para a execução do projeto. Inicialmente se pensou na elaboração de uma
oficina para docentes, depois para alunos do ensino médio em uma turma regular, mas devido
o número insuficiente de computadores e o tipo de sistema operacional disponível na escola,
que era incompatível como o software proposto no trabalho, o projeto teve que ser desenvolvido
no laboratório da Universidade com um público reduzido de alunos convidados. Sobre o projeto
Leite tece, em parceria, as seguintes considerações finais:
Neste trabalho foi apresentada uma sequência didática com características
fundamentadas na didática da matemática, sendo criada uma organização de
tarefas fundamentais, na qual indicamos uma sequência a ser seguida pelos
alunos com grau de complexidade crescente, por meio de atividades
experimentais que resgatavam conteúdos necessários para o aprendizado do
Teorema de Tales. Nesse aspecto, trabalhamos em dois ambientes
complementares para o aprendizado do Teorema de Tales, sendo que o
primeiro, das construções estáticas, em que trabalhamos conteúdos referentes a
ampliação e redução de figuras, razões, perímetro, cálculo de áreas, para
podermos conceituar os conteúdos de Semelhança, Congruência e
Proporcionalidade, e por último, através da sobreposição de triângulos
semelhantes, em que introduzimos os conceitos de feixes de retas paralelas e
retas transversais. No segundo ambiente, o das construções dinâmicas,
apresentamos o software C.A.R. e suas potencialidades. Por meio das atividades
realizadas nesse ambiente os alunos identificaram e compreenderam os
conceitos do Teorema de Tales e, através de sua aplicação, construíram o
conceito de Semelhança de Triângulos e por fim descobriram também as
relações métricas em um triângulo retângulo qualquer.
Pela análise realizada sobre o desenvolvimento dos alunos durante a fase da
aplicação da oficina e os resultados apresentados no questionário que
aplicamos com eles, concluímos que nossos objetivos almejados para a
sequência didática foram alcançados, pois os alunos conseguiram identificar as
potencialidades e restrições que cada ambiente possuía e viram que foi
fundamental a complementaridade desses para o aprendizado do Teorema de
Tales. Nossa metodologia adotada contribuiu bastante para o desenvolvimento
~ 209 ~
tanto pessoal quanto intelectual desses alunos, pois na entrevista realizada após
a aplicação da sequência com o professor regente da turma, além dos objetivos
que eram almejados nesse trabalho aconteceram outras contribuições, entre
elas, podemos citar a motivação em sala dos alunos e a mudança
comportamental, ou seja, além do rendimento em sala ter melhorado, teve
também uma melhora na relação de respeito com o professor.
Os ambientes que apresentamos auxiliarão o professor a construir o
pensamento e a aprendizagem dos alunos de uma forma criativa e ao mesmo
tempo lhes permitirá uma alfabetização tecnológica. Desse modo, seria
interessante que cada professor de matemática tivesse conhecimento de pelo
menos algum software educativo, para que utilize em suas aulas adaptando-o
ao conteúdo que será abordado e, preferencialmente, possa permitir a
participação ativa dos alunos. Vale ressaltar que apesar dos ambientes de
geometria dinâmica proporcionarem autonomia para os alunos realizarem as
atividades propostas pelos professores, esses continuam com um papel
importante quanto a elaboração de situações, institucionalização de ações e nas
orientações.
O trabalho apresentado por Leite apresenta um certo distanciamento do que o GCEM
preconiza enquanto grupo em relação a investigação da emersão de problemáticas do contexto
escolar observado e de valorização de procedimentos construtivos no processo de ensino da
matemática. Apesar das discussões sobre tais aspectos estarem sempre presentes no grupo, o
exemplo acima vem demonstrar que o processo identitário perpassa por uma sensibilização do
sujeito a um conjunto de valores e formas de saber-fazer no grupo. De modo que esta identidade
nem sempre será garantida pelo exercício da díade participação ativa e reificação dentro da
comunidade.
Este exemplo, vem demonstrar que a aprendizagem da docência é situada em uma
prática, mas parece que a conformidade pode não se dar em relação às perspectivas de prática
do grupo frequentado pelo professor, mas a uma outra comunidade com a qual, embora não
esteja presente, age como referencial de resistência aos novos valores e práticas vivenciados
pelo sujeito. Neste sentido, o professor viveu, mas não experienciou plenamente o vivido
conforme os princípios institucionais do grupo. Mas, pelo que preconizamos no GCEM, não
podemos dizer que Leite não apresentou avanços neste processo de investigação. Isso não seria
verdade, visto que as dificuldades do processo de desenvolvimento do trabalho se encarregaram
de tornar concretas algumas problemáticas que já apontávamos como de relevância para a
ocorrência da aprendizagem docente, a exemplo, quando da execução da aula em laboratório
faltou energia e os professores tiveram que trabalhar por um momento com a régua e compasso
concretos, apontando a existência de imprevistos na sala de aula para os quais o professor
~ 210 ~
precisou construir estratégias alternativas e adaptadas à emergência do contexto para contornar
a situação de dificuldade, sempre mantendo o profissionalismo. Neste sentido, Leite manifestou
uma instrumentalidade tecnológica e estratégica do ensino.
Entretanto, posicionamentos como “indicamos uma sequência a ser seguida pelos
alunos”, “Nossa metodologia adotada contribuiu bastante para o desenvolvimento tanto
pessoal quanto intelectual desses alunos”, e “Os ambientes que apresentamos auxiliarão o
professor a construir o pensamento e a aprendizagem dos alunos de uma forma criativa e ao
mesmo tempo lhes permitirá uma alfabetização tecnológica”, evidenciam carência de
compreensão sobre o potencial da construção e desenvolvimento de uma sequência didática,
que de modo algum deve ser entendida como algo imposto ao aluno, mas problematizado,
apresentado por meio de tarefas que instiguem questionamentos e experimentações pelos
estudantes, uma vez que demandam diálogo e construção de estratégias e não, necessariamente,
seguimento de passos conforme deseja o professor. Também é contraindicado o
estabelecimento de certezas no processo educativo, de modo que a condução linear no
desenvolvimento do projeto não é garantia de efetiva aprendizagem pelos alunos, tampouco se
deve esperar garantia de êxito desta mesma metodologia em próxima experimentação realizada
por outros professores.
A condução de Leite manteve relação estreita com uma perspectiva positiva, em que as
pessoas trabalham como sujeitos técnicos que aplicam com maior ou menor eficácia as diversas
tecnologias pedagógicas (no caso o software) produzidas pelos cientistas, pelos técnicos e pelos
especialistas. Em outros termos, posso dizer que o professor Leite manteve uma identidade real
vinculada à racionalidade técnica, enquanto projetávamos uma identidade virtual construtivista
no grupo, o que não se consolidou neste caso. O professor Leite apresentou, porém, durante o
processo de estudo, tipos de aprendizagem como o instrumental e tecnológico do ensino, bem
como certos aspectos do domínio didático-pedagógico do currículo e do ensino da
matemática, visto que seu investimento configurou-se no sentido da apropriação de um
software de manuseio simples, mas de possibilidades complexas, bem como executou um sério
aprofundamento em relação ao conteúdo Teoremas de Tales e Semelhança de Triângulos.
No geral, todos os professores manifestaram tipos de aprendizagem desejáveis à
socialização docente em relação ao grupo de referência GCEM, evidenciando indícios de uma
possível apreensão da assunção da autoridade docente.
~ 211 ~
Convergências e projeções da Composição III
O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente,
interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no
mundo não é só o de quem constata o que ocorre mas também o de quem intervém
como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História mas seu sujeito
igualmente. No mundo da História, da cultura, da política, constato não para me
adaptar mas para mudar. (FREIRE, 1996)
A história do mundo tem demonstrado que as mudanças sociais não se fazem por
decretos, normas e portarias. Elas são processuais e se constituem, no tempo, pela dinâmica da
articulação entre a subjetividade (vontade de mudar) e a objetividade (condições objetivas para
que as mudanças possam ocorrer). Pensar nessa articulação é necessário, na medida em que
cada pessoa, em sua condição de sujeito, pode interferir na objetividade do mundo, não para se
adaptar, mas para mudar.
Neste sentido mudar é aprender, e aprender é tecer novos significados a um saber que
outrora nos estando presente não respondia satisfatoriamente a um fazer e um compreender que
lhe impúnhamos, de outro modo, aprender é criar uma relação com um saber que se faz novo,
presente agora por circunstancias tais que já não podemos ignorá-lo. Aprender é estar presente
em um processo de vida, de interação, de diálogo, de construção de sentidos e justificativas de
passos, decisões, atitudes, acertos e equívocos decorrentes de uma breve ilusão.
Aprender é identificar-se, é assumir um papel social, que aqui tenho expressado em
diversos momentos e de modos distintos. Neste caso do papel docente, que é o de assumir uma
posição em um contexto institucional em que é preciso dar monstras de um fazer docente
(práxis docente) em conformidade com uma discursividade profissional (um paradigma
docente) preexistente. Em específico, este fazer se caracteriza pela “perpetuação” de um saber
(logos docente) legitimado. Para que ocorra a identificação ou conformidade com certas
praxeologias docentes, o processo de mudança deve ser legitimado por uma comunidade de
práticas que adote, em grande medida, as decisões e atitudes expressas por este indivíduo de
pretensões docentes, pondo a prova o saber produzido por ele na proporção em que se agrega à
comunidade.
Inserir-se em uma comunidade de práticas docente é correlato, portanto, a adotar um
paradigma e dar mostras de estar de acordo com ele. Por esse pressuposto, há a necessidade de
definirmos os conteúdos que dão forma às práticas a serem legitimadas pelo grupo, que aqui
~ 212 ~
assumo por grupo de referência. O grupo de referência em tela é constituído pelos integrantes
do GCEM que têm adotado os referenciais teóricos de grupos de prática que valorizam os
pressupostos democráticos, os processos construtivos e dialógicos, as interações não
hierarquizadas, a heterogeneidade de sujeitos e preocupação com as questões de ordem social,
comuns, portanto, aos grupos colaborativos.
Uma vez que o GCEM adotou por lócus de suas ações um ambiente de interstício entre
a Universidade e a Escola, não adotando, por isso, uma ou a outra instituição em primazia, tem
construído sua própria base de referências em práticas de problemáticas de sala de aula, em
específico as surgidas nas aulas de matemática, e sobre elas reflete a partir de “óculos
referenciais” encontrados nos ambientes acadêmicos correspondentes. Tais problemáticas
fazem surgir projetos e, com os projetos, experiências formativas únicas em termos de
oportunidade de aprendizagem da docência, que constituem um percurso formativo com viés
extracurricular, uma vez que não atende a currículos e/ou itinerários pré-definidos.
Pelo que já expus, é possível observar a necessidade posta de definirmos os sentidos
assumidos por positivos no grupo, de tal modo que constituam os critérios de legitimidade e de
identificação dos processos de aprendizagem, das categorias de aprendizagem presentes em
nossas práticas e de evidenciação de sujeições positivas, isto é, de constituição identitária e/ou
desenvolvimento profissional a partir das experiências colaborativas vivenciadas no grupo.
Neste sentido, a partir de um profundo estudo das obras de referência sobre a formação e
desenvolvimento profissional docente e por um processo de unitarização aplicado sobre os
textos (reificações) dos sujeitos colaboradores do grupo, foi possível fazer emergir deste
complexo discursivo oito categorias de aprendizagem que, em conjunto, dão sentido às práticas
recomendadas e legitimadas pelo GCEM como práticas de um “bom professor”.
O percurso descrito pelas experiências dos professores tomados por sujeitos desta
pesquisa, registra uma trajetória possível de formação, com características únicas em termos de
suas contingências. Constituíram, pois, as condições para a efetivação deste percurso formativo:
minha posição como Coordenador Geral do Campus Universitário (por lhes dar suporte
institucional), as bolsas de incentivo da agência de fomento (por financiar alguns recursos
materiais e auxiliar financeiramente os integrantes do grupo), a composição do grupo que era
formado por estudantes de uma mesma classe (que, por vezes, possibilitava o desenvolvimento
de atividades articuladas entre as disciplinas oficiais do curso e as tarefas do PIBID), a
proximidade das residências dos colaboradores do grupo (que facilitavam a execução de tarefas
~ 213 ~
coletivas e a identificação de uma identidade cultural e certa uniformidade econômica e social
destes sujeitos). E, por sua vez, constituíram restrições aos processos de socialização: a
distância do Campus à capital (que implicavam a dificuldade de acesso a gestão institucional
do programa), a dificuldade de acesso a livros e revistas especializadas, acesso às linhas
telefônicas e à rede mundial de informação e comunicação, financeira dos professores e
supervisores (que necessitavam realizar outros trabalhos para complementar renda, o que
dificultava sua participação plena nas reuniões de formação e participação em eventos,
principalmente os nacionais); e as greves estudantis e de professores da rede estadual e
municipal de ensino (que impossibilitavam o acompanhamento das classes de alunos).
Dadas as contingências, que assumo por comuns a quaisquer contextos educacionais em
nosso país, o percurso de experiências construído evidenciou diversos momentos positivos e de
grandes contribuições ao grupo de professores. Possibilitando tipos de aprendizagem
importantes sobre a docência que se constituíram-se em processos contínuos de experiências,
as quais explorei atentamente nesta composição. É oportuno destacar, neste percurso de
experiências exitosas, duas invariantes, a saber: a relação dos sujeitos com as reflexões teóricas
sobre suas práticas, e suas práticas efetivas “encharcadas” de compreensão teórica. Deste modo,
a relação teoria-prática se fez presente em todo o percurso de experiências vivenciadas pelos
professores. Iniludível, portanto, em todos os processos de conversão e constituição identitária
destes sujeitos.
O avanço, se assim se pode dizer, da compreensão da docência por meio das mudanças
de relação com o saber, mediante o saber-fazer principiam os contornos de uma conversão
catastrófica, nos termos que defini na Composição I. Deste modo, o percurso docente aqui
descrito, prescinde da construção de um modelo de formação e desenvolvimento profissional
que o determine. Este modelo constitui uma síntese possível deste trabalho, pois enseja a
caracterização do que chamo Modelo de Desenvolvimento Profissional Docente em uma
Perspectiva Catastrófica, que será objeto da próxima composição.
~ 215 ~
COMPOSIÇÃO IV
Nesta composição teço relações entre os componentes teóricos
Experiência, Aprendizagem, Socialização e a Teoria das Catástrofes,
tendo em vista a construção de um modelo analítico para o
desenvolvimento profissional docente em uma perspectiva catastrófica
(DPDPC). Foram adotados alguns procedimentos metodológicos de
pesquisa qualitativa, envolvendo experiências de aprendizagem de dois,
dentre os seis sujeitos iniciais da pesquisa. A modo de síntese, o
DPDPC representa um modelo conceitual que ajuda a descrever e
compreender a aprendizagem e o desenvolvimento profissional dos
professores, a partir de experiências de formação e de docência nas
quais ocorrem mudanças e momentos de conversão catastrófica,
promovendo novas relações com o saber escolar e uma progressiva
socialização e identificação com outras formas de ser e fazer em uma
comunidade docente.
Katastrophé
~ 217 ~
COMPOSIÇÃO IV
CONTORNOS DE CONVERGÊNCIAS DA PESQUISA
Um modelo analítico-descritivo do Desenvolvimento Profissional
Docente em uma Perspectiva Catastrófica (DPDPC)
Assumi neste trabalho, que a aprendizagem docente constitui uma mudança, uma
modificação do sujeito em relação a um saber, de modo que se possa avaliar a sua conformidade
com as formas de ser e saber-fazer próprias da comunidade de práticas profissionais docentes.
Esta compreensão faz surgir a oportunidade de construção de um modelo analítico-descritivo
desse componente complexo que constitui o desenvolvimento profissional docente. A partir de
então, sou levado a entretecer relações das teorias da Experiência (DEWEY, 1979, 2011),
Aprendizagem Situada (LAVE & WENGER, 1991), Socialização (DUBAR, 1997) e
Desenvolvimento Profissional Docente (FIORENTINI, 2009, 2013; PONTE, 1998; PONTE et
al, 2003) e a Teoria das Catástrofes (THOM, 1977, 1995; ARNOUD, 1989), que objetivam
construir este modelo, que denomino por Modelo de Desenvolvimento Profissional em uma
Perspectiva Catastrófica (DPDPC).
Construí uma compreensão prévia deste modelo na primeira composição, ao que
associei a este a característica de metáfora, posto tratar-se, em verdade, de uma interpretação
do desenvolvimento profissional a partir dos componentes teóricos da Teoria das Catástrofes
de René Thom (1977; 1995) – com suas respectivas noções de contorno, mudança, forma,
desenvolvimento e pregnância.
Este modelo enseja a fluidez interpretativa de um fenômeno complexo e tem por
finalidade identificar, descrever e analisar os processos de aprendizagem e o desenvolvimento
profissional docente em contextos de experiências colaborativas em comunidades de prática
docentes. Lembro, neste sentido, das considerações de Sparks & Loucks-Horsley (1990, apud
FORMOSINHO J., 2009), que apresentam dois pressupostos sobre o desenho de modelos de
desenvolvimento profissional docente. Em primeiro lugar, situar a origem dos conhecimentos
~ 218 ~
sobre as práticas de ensino e, em segundo lugar, lançar luz sobre os processos como os
professores adquirem e desenvolvem seus conhecimentos.
Em linhas gerais, procurando respeitar estes pressupostos, tomei em consideração o
macro-percurso formativo96, descrito na composição anterior, caracterizando os contornos de
aprendizagem que indicam os processos de conversão catastrófica próprios dos sujeitos em
estado de mudança. Esta conversão será apontada, indicando, para cada ponto do percurso de
formação profissional dos sujeitos, uma descrição da relação destes ante à evocação de
significados da experiência, próprios de uma conversão catastrófica. Para isso utilizarei os
discursos e produções de dois dos sujeitos, Sena e Queiroz. A escolha destes sujeitos se deve
tão somente pela profusão de dados coletados sobre eles, que supera, em densidade, as
participações e reificações dos demais participantes do projeto. Assumo estes critérios de
seleção dos sujeitos, devido entender que a participação e a reificação constituem processos
interdependentes e essenciais à aprendizagem e à constituição de identidades de/em uma
comunidade (FIORENTINI, 2013b, p. 6)
Princípios relativos ao professor, sua aprendizagem e seu desenvolvimento
profissional
Posso elencar e assumir, neste trabalho, pelo menos seis princípios acerca da
aprendizagem e do desenvolvimento profissional do professor sob uma perspectiva catastrófica:
O DPDPC ocorre em um contexto de prática reflexiva ou investigativa - A aprendizagem
e o desenvolvimento profissional do professor, em uma perspectiva catastrófica, requer uma
conversão que pode ser desencadeada por uma ação reflexiva ou investigativa sobre sua prática.
Assim, um problema identificado, um desafio, uma dificuldade percebida, ou uma determinada
prática educativa, pode passar por um processo reflexivo ou investigativo de problematização,
individual ou coletivo, com perspectivas de promover mudanças em relação ao saber ou à
compreensão de uma situação específica da prática pedagógica;
Os professores são indivíduos inteligentes, questionadores, críticos e de espírito aberto –
Os professores são capazes de construir conhecimento a partir de experiências relevantes
96 O percurso de formação descrito pelas experiências de formação de um sujeito docente, iniciado na formação
básica, passando pela formação inicial oficial e tendo continuidade, depois da formatura, em práticas efetivas de
docência e formações continuadas.
~ 219 ~
(DEWEY, 2011) e estão dispostos a procurar informações que os auxiliem na resolução de
questões problemáticas da experiência;
Os professores são protagonistas e criativos - Os professores desenvolvem modos de
compreensão da realidade e de intervenção na mesma por meio de processos de enfrentamento
de questões, desafios e situações problemáticas que lhes preocupam, buscando na prática e na
literatura, as informações necessárias;
O professor é um ser social - O caminho mais promissor para o desenvolvimento
profissional é a reflexão em grupo, por meio de dinâmicas colaborativas, que discutam os
problemas e desafios docentes de modo a tentar tornar as práticas individuais e coletivas mais
consistentes, econômicas e efetivas, segundo princípios e valores éticos e institucionais que
compartilham;
Viver a formação é construir mudanças - A formação enseja a inovação como um
processo de transformação das práticas. A questão central aqui é refletir em que termos os
professores envolvidos em uma experiência de formação dela se apropriam;
O DPDPC não se constrói por meio de simples acumulação de cursos, conhecimentos e
técnicas – O desenvolvimento profissional docente, em uma perspectiva catastrófica, ocorre
por meio de um trabalho reflexivo e crítico contínuo sobre as práticas e envolve adotar como
seus as normas e valores essenciais da profissão docente (PONTE et al., 2003). Desenvolve
uma forte identidade profissional associada a uma postura e a um compromisso de aprimorar
sua prática e a si próprio como educador e de contribuir para a melhoria das instituições
educativas em que atua e, sobretudo, da formação integral e crítica dos que nela estudam.
Podem ocorrer situações imprevisíveis em sala de aula, mas a análise constante e coletiva destas
vivências possibilita a construção de conhecimentos estratégicos sobre a docência, habilitando
os professores a perceber os padrões e as possibilidades que auxiliam na compreensão e solução
de uma situação problema (NÓVOA, 2000; FIORENTINI, 2009). Há, portanto, um contínuo
experiencial ai operando (DEWEY, 2011).
Os princípios ora enunciados são passíveis de evidenciação em episódios narrativos que
expressam desenvolvimento profissional docente em uma perspectiva catastrófica. Para efeito
de exemplificação, tomarei o seguinte episódio narrado por Queiroz:
Quando entrei no grupo eu pensava que ia passar um ano e pronto. Na minha
mente eu achava que ia passar logo a empolgação do momento. Eu achava que
isso não ia me atingir tanto p’ro futuro, não ia mudar muito minha cabeça. Eu
~ 220 ~
ainda tinha a ideia de que ia ser legal, ia ser interessante, mas ia ser passageiro.
Bem objetivo, eu ia lá, fazia alguma coisa e voltava. Eu não pensava que o que
eu fazia lá, ou que ocorriam lá, iriam me atingir tanto. A primeira vez que mudou
comigo foi uma coisa “besta”. A professora falou p’ra eu pegar o caderno dos
meninos e conferir o visto de todo mundo. Eu disse tá! Conferia as folhas, um,
dois, três, quatro e dependendo do número de vistos que tinham valeria um
ponto. Eu peguei, vi outros vistos, tudo bonitinho, mas tinha um com uma rasura.
O menino tinha falsificado o visto no caderno. Pensei assim, falsificar um visto
pode não parecer nada quando você tem dez anos, mas quando você se cria
naquilo de “assim vou me dar bem!”, fazendo esse tipo de coisa, o que ele vai
fazer? Vai falsificar dinheiro quando for mais velho. Ai pensei “o que vou
fazer?”. Ele era um aluno super legal e não tinha necessidade de falsificar um
visto. Ele poderia dizer que não tinha todos os vistos, mas que vinha e fazia tudo.
Mas ele achou que seria mais seguro falsificar o visto. Eu fiquei pensando e
chamei ele. Eu falei p’ra ele: “- Vou te dar só os vistos que tu tens, porque eu
peguei isso aqui! Eu quero que tu me digas, o que é isso?”. Então ele foi me
explicar que naquele dia não tinha vindo. Eu falei que se ele tivesse me falado
antes eu tinha dado os pontos de todos os vistos, mas como ele falsificou iria
ficar com zero, porque eu não saberia dizer qual era original e qual era
falsificado. Eu disse que não tinha a ver com o visto, mas com a atitude de querer
enganar outra pessoa p’ra se dar bem. Isso não vale, isso não pode. Porque eu
peguei e lhe dei zero, mas mais à frente pode não ser um zero em uma caderneta,
pode ser uma coisa muito mais grave. Quando eu sai de lá pensei em como uma
coisa “besta” pode mudar a gente, ou no que a gente acredita mais p’ra frente.
Isso foi na primeira semana quando a gente voltou ao PIBID depois das férias.
Eu até falei p’ra Soares: “- A gente fica o tempo todo pensando sobre os
meninos. Nas coisas que eles falam, como eles falam. De como as vezes não têm
noção de futuro!”. Talvez eles pensem: “- Ela não sabe o que se passa na minha
vida!”. Mas só deles pararem p’ra conversar com a gente já vale a pena, porque
a gente teve seis meses só de formação e de leitura de textos, e na primeira vez
em sala de aula isso aconteceu. Eu fiquei pensando, foi a primeira vez que pensei
que licenciatura não é só chegar lá, dar o conteúdo e ir embora. Não, as vezes
acontecem várias coisas na sala de aula que se tu está lá, vai ter que responder.
Isso é importante, pois depende da atitude que vais tomar. Acho que foi essa
situação que desencadeou todas as outras vezes que eu pensei, quando eu olhava
o caderno dos meninos, quando via que não traziam caderno, essas coisas assim
... (QUEIROZ, Recortes da Entrevista)
Neste episódio é possível observar a ocorrência dos princípios do DPDPC, construídos
a partir de evidências empíricas em diálogo com a literatura, operando conforme os seguintes
destaques:
O desenvolvimento profissional em uma perspectiva catastrófica ocorre em um contexto
de práticas - Neste caso específico, a reflexão de Queiroz é desencadeada por uma prática
de sala de aula: “A professora falou p’ra eu pegar o caderno dos meninos e conferir o visto
~ 221 ~
de todo mundo. (...) Conferia as folhas, um, dois, três, quatro e dependendo do número de
vistos que tinham valeria um ponto”. Contudo, existiu outro contexto de experiências que
possivelmente a tornaram sensível à nova experiência, perceptível quando Queiroz assinala
que: “(...) a gente teve seis meses só de formação e de leitura de textos, e na primeira vez
em sala de aula isso aconteceu.”;
Os professores são indivíduos inteligentes, questionadores, críticos e de espírito aberto -
Esta interpretação é passível de percepção no seguinte destaque: “Pensei assim, falsificar
um visto pode não parecer nada quando você tem dez anos, mas quando você se cria naquilo
de ‘assim vou me dar bem!’, fazendo esse tipo de coisa, o que ele vai fazer? Vai falsificar
dinheiro quando for mais velho.”. Evidenciei também que a professora está disposta a
procurar informações que à auxilie na resolução da problemática experienciada, como em:
“Ai pensei ‘o que vou fazer?’”;
Os professores são criativos – Para enfrentar a questão que lhe preocupava a professora
decidiu interpor diálogo com o aluno para recolher as informações necessárias para obtenção
de solução para a situação, como visto em: “Eu quero que tu me digas, o que é isso?”. Então
ele foi me explicar que naquele dia não tinha vindo. Eu falei que se ele tivesse me falado
antes eu tinha dado os pontos de todos os vistos, mas como ele falsificou iria ficar com zero,
(...) Eu disse que não tinha haver com o visto, mas com a atitude de querer enganar outra
pessoa p’ra se dar bem. (...) eu peguei e lhe dei zero, mas mais à frente pode não ser um
zero em uma caderneta, pode ser uma coisa muito mais grave.”;
O professor é um ser social – A professora relata manter uma conduta de reflexão coletiva
com seus pares sempre que surgem situações problemáticas e que considera significativo
explorar, evidenciada no seguinte excerto: “Eu até falei p’ra Soares: ‘- A gente fica o tempo
todo pensando sobre os meninos. Nas coisas que eles falam, como eles falam. De como as
vezes não têm noção de futuro!’. Talvez eles pensem: ‘- Ela não sabe o que se passa na
minha vida!’. Mas só deles pararem p’ra conversar com a gente já vale a pena”;
Viver a formação é construir mudança – Uma declaração reflexiva sobre sua mudança
enquanto docente é perceptível no destaque: “(...) a gente teve seis meses só de formação e
de leitura de textos, e na primeira vez em sala de aula isso aconteceu. Eu fiquei pensando,
foi a primeira vez que pensei que licenciatura não é só chegar lá, dar o conteúdo e ir
embora.”;
~ 222 ~
O DPDPC não se constrói por meio de simples acumulação de cursos, conhecimentos e
técnicas – O desenvolvimento profissional catastrófico neste caso se evidencia por meio de
uma reflexão da professora acerca das possíveis tomadas de decisão em casos problemáticos
como o que experienciou, evidente em: “as vezes acontecem várias coisas na sala de aula
que se tu está lá, vai ter que responder. Isso é importante, pois depende da atitude que vais
tomar.”
Por este exemplo, percebo que o desenvolvimento profissional em uma perspectiva
catastrófica requer uma conversão desencadeada por uma ação reflexiva, isto é, enseja uma
prática a ser ponderada, investigada, para ser evolutivo. Assim, um problema identificado, uma
dificuldade sentida, pode desencadear um processo reflexivo, individual ou coletivo, com
perspectivas de mudança. Assumir estes princípios me leva a entender que professores
participantes de comunidades de prática aprendem ao olhar para a sala de aula como
comunidades de aprendizagem ou mesmo de investigação. Ou seja, o professor, assim, toma
consciência de que aprende e desenvolve-se em comunidade e seu aluno também
(FIORENTINI, 2009, 2013). O DPDPC é, nestes termos, um desenvolvimento que parte de
práticas docentes e, uma vez operada a análise das mesmas pelo professor, há grande
possibilidade de transformá-la. Ascende-se, assim, à transformação da práxis pela conversão
docente e, quando registrada e analisada individual ou coletivamente, possibilita a expansão do
conhecimento profissional.
O enfoque do DPDPC conota uma realidade que se preocupa com os processos
(levantamento de necessidades), com os conteúdos concretos aprendidos (novos
conhecimentos, novas competências, novos saberes), com os contextos da aprendizagem (a sala
de aula, os eventos científicos, os espaços da Universidade, com o ambiente intersticial entre
Universidade e Escola), a relevância das práticas (formação de novas práticas, transformação
da práxis), e com o impacto na aprendizagem dos alunos e dos professores. O DPDPC é,
portanto, um processo contínuo de melhoria das práticas docentes, centrado num grupo de
professores em interação, que desenvolvem projetos com a preocupação de promover
mudanças educativas em benefício dos alunos, das escolas, da comunidade docente local e
também global (FIORENTINI, 2009). Tais considerações criam a base para a inserção de uma
estrutura com características de mudança ecológica e mudança de formas equivalentes às da
Teoria das Catástrofes de Thom (1977, 1995).
~ 223 ~
A ecologia das práticas e dos processos de mudança no DPDPC
As sementes do desenvolvimento não crescerão se caírem em terreno pedregoso. Não
se desenvolverá a reflexão crítica se não houver tempo e encorajamento para que se
realize. Os professores aprenderão pouco uns com os outros se trabalharem
persistentemente em isolamento. Se a inovação for imposta do exterior por uma
administração de mão pesada, será pouco provável que surjam processos de
experimentação criativa. O processo de desenvolvimento do professor depende muito
do contexto em que tem lugar. A natureza desse contexto pode fazer ou desfazer os
esforços de desenvolvimento dos professores. Assim, é uma prioridade entender a
ecologia do desenvolvimento do professor.
(HARGREAVES & FURLLAN, 1992)
Hargreaves & Fullan (1992) destacam o contexto dos ambientes sociais e culturais que
podem auxiliar ou comprometer os esforços de desenvolvimento dos professores. Contudo,
acredito, assim como Lisondo (2011), na existência de um potencial realizador no ser humano,
em especial no professor de matemática, que, quando sublimado, resulta numa série de
mudanças que se projetam no desenvolvimento da pessoa. Esse potencial é dependente de dois
fatores já explorados neste trabalho: a história de vida do indivíduo e o ambiente no qual
interatua.
Estes fatores influenciam, em maior ou menor grau, a vida dos sujeitos e, em essência,
o próprio processo de crescimento humano que marcha num contínuo experiencial que nunca
alcança acabamento. Tais fatores interatuam nos microssistemas (família, escola, universidade,
trabalho), mesossistemas (comunidade, cultura e sociedade local) e macrossistemas
(civilização, cultura global, sociedade global) (LEWIN, 1973), nos quais residem as principais
variáveis que podem influenciar a qualidade das experiências, tanto em relação ao ambiente em
que ocorrem as práticas quanto às situações a serem enfrentadas. Neste sentido, os sistemas de
interação promotoras de desenvolvimento agem dialeticamente sob duas perspectivas: uma que
chamo de desenvolvimento ecológico por níveis de co-determinação e outra que denomino de
desenvolvimento ecológico por sucessão de formas.
O desenvolvimento ecológico por níveis de co-determinação enseja a compreensão do
professor sobre os sistemas atuantes nos diversos níveis de contingência de sua prática docente
em dado espaço institucional, em dado momento de sua história. Devo salientar que estes
sistemas, nesta perspectiva, não constituem entidades isoladas, ao que recorro a Chevallard
(2009) para esclarecer que existem múltiplas influencias entre tais sistemas. Em especial, no
~ 224 ~
tratamento da prática docente e seus respectivos processos didáticos, existem o que este autor
chama de níveis de (co)determinação que se inter-relacionam mutuamente, esquematicamente
mostrado a seguir:
Civilização
↓↑
Sociedade
↓↑
Escola
↓↑
Pedagogia
↓↑
Disciplina
Fig. 13 – Esquema de (co)determinação didático (CHEVALLARD, 2009).
Ao centrar o foco sob a perspectiva de desenvolvimento ecológico por níveis de co-
determinação, sobretudo, destacando as condições para o agir não criadas pelo professor (que
muitas vezes manifestam restrições desconhecidas ou ignoradas por este), é possível distinguir,
em escala ascendente, que o nível Disciplina revela o conteúdo praxeológico (matemática,
gramática da língua materna, biologia, etc.), em seguida o nível da Pedagogia destaca os eixos
estruturantes (metodologias gerais, princípios e conceitos de aluno, ensino, aprendizagem e
tarefas docentes), depois o nível Escola que encerra as políticas de gestão (valores e princípios
institucionais, filosofia educacional institucional), em seguida o nível Sociedade em que as
políticas são estruturadas (programas de ensino, leis e diretrizes curriculares) e, por fim, a
Civilização que encerra condicionantes de ordem global (cultura global, sistemas econômicos,
políticas globais, paradigmas dominantes).
Sob esta perspectiva ecológica por níveis de co-determinação, desenvolver-se
profissionalmente constitui se apropriar de praxeologias que levem em conta, de forma cada
vez mais alargada, os níveis de (co)determinação. Neste sentido, Chevallard (2009) tece séria
crítica aos investimentos didáticos tradicionais que têm privilegiado o estudo das condições no
nível disciplinar, esquecendo, por vezes, os condicionamentos dos níveis superiores, sem os
quais muitos fenômenos relativos ao ensino da disciplina não podem ser explicados. O que,
~ 225 ~
segundo minha visão, provoca a naturalização das práticas ao nível apenas do domínio do
conteúdo, implicando em baixo desenvolvimento profissional docente, ou melhor, condiciona
o desenvolvimento profissional docente sob uma perspectiva de acúmulo de conteúdo mediante
a instrução diretiva, top down, próprio do modelo tradicional de formação e afim com as
abordagens da racionalidade técnica (DEWEY, 2011; ZEICHINER, 1993).
A outra perspectiva ecológica de desenvolvimento profissional assume que o caráter de
mudança - e desenvolvimento -, constitui o que Dubar (1997) chama de socialização, definida,
essencialmente, como uma construção lenta e gradual de um código simbólico. A socialização
é, enfim, um processo de identificação, de construção de identidade, ou seja, de pertença e de
relação. Socializar-se é assumir o sentimento de pertença a grupos (de pertença ou referência).
Defino assim o desenvolvimento ecológico por sucessão de formas, já explorado nos termos
da socialização na primeira composição deste trabalho, e que aqui assumo como um processo
de constituição e sucessão de modos de saber-fazer próprios de uma comunidade de prática
docente. O esquema abaixo pretende dar certa materialidade à dialética entre as perspectivas de
desenvolvimento ecológico.
Fig. 14 – Representação da dialética do desenvolvimento ecológico
por níveis de co-determinação e sucessão de formas.
As perspectivas de desenvolvimento ecológico por níveis de co-determinação e por
sucessão de formas definem o meio pelo qual são possíveis mapear os contornos em que se
evidenciam os tipos de aprendizagem, os processos de aprendizagem e o desenvolvimento
~ 226 ~
profissional docente caracterizados pelas conversões catastróficas. Isto é, toda vez que um
sujeito passa por uma experiência docente significativa e dá um salto qualitativo em sua
compreensão da profissão em relação aos níveis de co-determinação e em relação as formas de
saber-fazer da comunidade, podemos dizer que este sujeito passou por uma conversão
catastrófica, isto é, que aprendeu, que se socializou, que estabeleceu uma nova relação com um
objeto de saber, que estabeleceu uma nova identidade para com um grupo/instituição de
referência.
Uma invariante estrutural presente neste desenvolvimento profissional em uma
perspectiva catastrófica é a mudança, sendo esta uma condição para sua existência. Esta
característica está em conformidade com esse mundo de inter-relações, rico e complexo, que
configura o paradigma contemporâneo pós-newtoniano. Este modelo sugere que deixemos de
centrarmo-nos nos fatos e dados e, em seu lugar, passemos a nos preocupar com as interações.
Deste modo, ninguém existe independentemente das suas relações com os outros e com o
mundo. Assim, no modelo do DPDPC, a predição e uniformidade cedem lugar ao plausível e
a pregnância das formas97. Isto porque cada indivíduo se apresenta como uma pessoa98
diferente em lugares diferentes. Existe, pois, uma díade pessoa-ambiente, que confere vida à
uma relação mutante – porque ambos mudam ininterruptamente no decurso da história do
sujeito -, evocando potenciais sempre distintos.
Para Chevallard (2009) esta pessoa é o par formado por um indivíduo x e o sistema de
relações pessoais R (x, o) – em que o é um objeto -, em um dado momento da história de x.
Neste sentido, é plausível dizer que, no curso do tempo, o sistema de relações pessoais de x
evolui; e um objeto que não existe para ele passa a existir, enquanto outras deixam de existir;
para outros enfim a relação pessoal de x muda. Nesta evolução, um outro invariante do modelo
é o indivíduo, o que muda é a pessoa.
97 A pregnância da forma é a lei básica da percepção visual da Gestalt, assim definida: as forças de organização
da forma tendem a se dirigir tanto quanto o permitam as condições dadas, no sentido da harmonia e do equilíbrio
visual. Qualquer padrão de estímulo tende a ser visto de tal modo que a estrutura resultante é tão simples quanto
o permitam as condições dadas (GOMES FILHO, 2009, p.36) 98 Para Chevallard (2009), esta pessoa é o par formado por um indivíduo x e o sistema de relações pessoais R (x,
o) – em que o é um objeto -, em um dado momento da história de x. Neste sentido, é plausível dizer que, no curso
do tempo, o sistema de relações pessoais de x evolui; e um objeto que não existe para ele passa a existir, enquanto
outras deixam de existir; para outros enfim a relação pessoal de x muda. Nesta evolução, um outro invariante do
modelo é o indivíduo, o que muda é a pessoa.
~ 227 ~
Segundo Chevallard (2009) para explicar a formação e evolução do universo cognitivo99
de uma pessoa x, é conveniente resgatar a noção de instituição. Uma instituição I é um
dispositivo social "total", o que certamente pode ser apenas uma parte muito pequena do espaço
social (há micro-instituições), mas que permite - e impõe - para seus sujeitos, isto é, para pessoas
x que vivem e ocupam diferentes posições p oferecidas em I, colocar em jogo as maneiras de
fazer e de pensar próprios em I - isto é, praxeologias. Neste sentido, focando as maneiras de
fazer e de pensar do professor de matemática, temos que este deve ser capaz de realizar as
atividades profissionais próprias de um professor eficiente e identificar-se pessoalmente com a
profissão. Isso significa assumir uma posição institucional p que corresponde a um ponto de
vista de um professor, interiorizar o respectivo papel e os modos naturais de lidar com as
questões profissionais (PONTE et al., 2003, p. 163), e o modo docente de lidar com questões
profissionais é mobilizando praxeologias.
Deste modo, o desenvolvimento é um processo de construção de identidades
profissionais, fazendo parte do processo de socialização do professor. Sob este aspecto Dubar
(1997) exclarece que a construção de identidades sociais envolve dois processos
complementares: de um lado, o processo biográfico que diz respeito à construção de identidades
sociais pelos próprios indivíduos, através do tempo, assumindo diferentes posições oferecidas
pelas instituições existentes em seu contexto; de outro, como um processo relacional que
envolve transações externas entre indivíduos e outros significativos. Esse é um processo de
conversão, de reconhecimento num dado momento e num dado espaço de legitimação das
identidades relacionadas com conhecimentos, competências, imagens e valores que dão forma
ao contorno inteligível, evidenciável pela mudança e que são expressos pelos diversos sistemas
de ação.
A conversão, neste sentido, é catastrófica, pois consiste em uma mudança de forma, e
a identificação de uma nova forma evidencia uma aprendizagem, uma nova apropriação
praxeológica, de sorte que o Desenvolvimento Profissional em uma Perspectiva Catastrófica
torna-se um processo contínuo de sucessão de formas, portanto de sussessivas apropriações
praxeológicas, que resulta em uma permanete aprendizagem docente. Essa aprendizagem, por
99 Quando um objeto o existe para uma pessoa x, ou ainda que x conhece o, a relação R (x; o) define como x
conhece o. O chamado universo cognitivo de x é o conjunto: UC(x) = {(o, R(x; o)) / R(x; o) ≠ ∅ }. Deve-se notar
que o termo cognitivo não é tomado aqui em sua acepção intelectualista corrente (CHEVALLARD, 2009, p. 2).
~ 228 ~
sua vez, só é possível pela ressignificação das práxis de ensinar viabilizada por um contínuo
experiencial que ocorre ao longo do percurso formativo/profissional do sujeito.
A condição atropológica e a representação topológica do Modelo de DPDPC
O homem, ao nascer, o faz em um universo preexistente, estruturado, ingressando em
um mundo onde o humano existe sob a forma de outros homens e de tudo o que a
espécie humana construiu anteriormente. O filho do homem nasce inacabado; é um
ser prematuro que deve construir-se a si mesmo, com a ajuda de outros, num longo
processo ao qual se dá o nome de educação. Se o sujeito nasce sob tais condições –
prematuro e imerso em um “universo simbólico”, no qual sobressai a linguagem,
herdado de outros – e se tem de produzir-se a si mesmo, a partir de tais condições, isto
só é possível com a ajuda e “mediação” do outro.
(CHARLOT, 2000)
Para Charlot (2000) nascer significa ver-se submetido à obrigação de aprender. De fato,
aprender, para este autor, constitui um triplo processo de “hominização” (tornar-se homem),
“singularização” (tornar-se um exemplar único de homem) e de “socialização” (tornar-se
membro de uma comunidade, partilhando seus valores e ocupando um lugar nela). Entretanto,
no caso do professor, o modo pelo qual é possível tal apropriação do universo exige o
estabelecimento de relações do indivíduo com os saberes constitutivos deste universo, exige,
pois, o reconhecimento e domínio dos seus símbolos representativos e apropriação crítica dos
mesmos para constituir-se professor.
Uma das posições possíveis deste indivíduo no mundo é a de professor, sendo grande
parte de suas relações com o universo simbólico tomadas por relações com o mundo escolar. A
relação com o saber, neste caso, diz respeito ao conjunto de significados atribuídos às relações
epistêmica da docência (disciplinas, ensino, conteúdo, aprendizagem), pessoal (valores,
perspectivas, crenças, interesses, desejos) e social (aspirações dos outros, expectativas dos
outros, valores dos outros).
O desenvolvimento docente, neste sentido, constitui também um triplo processo, mas
agora de “conversão docente” (tornar-se professor), “individualização e constituição da
autonomia” (tornar-se um exemplar único de professor) e de “sujeição/identificação” (tornar-
se membro de uma comunidade de práticas docentes, compartilhando seus valores e ocupando
um lugar nela). O modo pelo qual, neste caso, o sujeito se apropria do universo simbólico é por
meio do reconhecimento e domínio dos símbolos representativos da práxis docente, isto é, por
meio da mobilização de praxeologias.
~ 229 ~
É justamente neste contexto de mobilizações praxeológicas que o DPDPC pode ocorrer,
como parece ter acontecido com dois de nossos sujeitos, Sena e Queiroz, pois, na constituição
identitária dos professores em formação inicial promovida pelas conversões ocorridas em
decorrência dos processos reflexivos de investigação da práxis de ensino, mobilizadas pelo
grupo, é possível evidenciar a emergência de diversas tipologias de aprendizagem da docência,
as quais qualifico como constitutivas do universo representativo de um bom professor de
matemática.
O modelo representacional do percurso de DPDPC requer, pois, enquanto parâmetros,
os componentes práxis e logos. O logos constitui o campo das atividades da consciência,
enquanto a práxis, radica no caráter real, objetivo, da matéria-prima sobre o qual se atua, dos
meios ou instrumentos com os quais se exerce a ação e de seu resultado ou produto (VÁZQUEZ,
2011). Nesse modelo do DPDPC, o logos (Teoria) constitui as apreensões advindas de leituras,
pesquisas e referências interpretativas disponibilizadas ao professor por meio dos cursos de
formação inicial e/ou continuada, estudo em grupo, participação como ouvinte em seminários,
palestras e congressos, dentre outros. A práxis (Prática), por sua vez, representa a construção
histórica do sujeito docente em meio às suas experiências concretas, objetivas no ambiente
escolar em que operou-se o processo de sucessão de posições assumidas por este sujeito na
instituição escolar (aluno, estagiário, professor). O modelo de DPDPC, como tenho construído,
diz respeito ao desenvolvimento do docente em processo de sujeição e sucessão de formas por
meio de situações em que, geralmente, ocorrem conversões catastróficas que promovem
identificação com uma forma de ser e fazer na docência. A título de ilustração, levemos em
consideração, nos próximos tópicos, o seguinte gráfico topológico representativo de uma
situação em que ocorre o DPDPC:
~ 230 ~
Fig. 15 – Gráfico de DPDPC G1.
O Percurso de um Desenvolvimento Profissional Docente em uma
Perspectiva Catastrófica
O percurso de DPDPC pode ser expresso pela modelagem dos contornos de experiência
definidos pelo mapeamento dos processos de socialização do sujeito desde sua mais tenra idade
- que aqui caracterizo pelo recorte do Ensino Básico -, avançam ao Ensino Superior - onde
ocorrem processos de mudança de forma, em que o sujeito assume novas posições (estudante,
bolsista, estagiário, professor iniciante) sob as quais estabelece novas relações com o saber
docente -, e tem continuidade pelo restante de sua vida profissional. Em cada ambiente o sujeito
sofre sujeições potenciais à constituição identitária docente, em específico, na Formação
Inicial, para a qual defini que os Contornos Experienciais da Formação Docente, que se
expressam pela existência de pelo menos três instâncias formativas que agem/concorrem com
este propósito, definidas pelos contornos da formação em disciplinas específicas, da formação
em disciplinas didático-pedagógicas e da formação extracurricular.
Das interconexões destas instâncias formativas emanam experiências que definem a
preparação do sujeito docente para a carreira profissional. É nesta etapa de vida do sujeito que
ocorrem as primeiras construções praxeológicas de sentido verdadeiramente
docente/profissional, uma vez que o sujeito passa, por meio de situações de experiência da
docência a assumir a posição efetiva de professor ao lidar com as problemáticas da profissão –
~ 231 ~
em estágios, simulações, investigações e imersão em contextos de sala de aula. Acredito que,
quão mais problematizadas e refletidas, individual e coletivamente, forem as questões
emergentes destas práticas, mais consistentes e pregnantes serão as praxeologias construídas, e
o professor estará potencialmente melhor preparado para o exercício de sua carreira.
As sucessões de formas, decorrentes destas mudanças de posição, são, em certo sentido,
mudanças de compreensão do saber-fazer docente, mapeáveis pelos processos em que se
evidenciam as conversões e constituição de identidade com a docência. Este processo contínuo
que, acredito, se estende para além do rito de passagem caracterizado pela formatura do
professor, ao término de sua formação inicial, delineia o que tenho definido por
Desenvolvimento Profissional Docente em uma Perspectiva Catastrófica. Este modelo
interpretativo será utilizado para descrever e compreender os percursos formativos de dois dos
sujeitos colaboradores do projeto para ilustrar a consistência desta análise.
A trajetória escolar e seu impacto no DPDPC de Sena
Neste tópico, descrevo a trajetória inicial de um professor de matemática e, ao mesmo,
busco analisar e compreender sua trajetória de aprendizagem docente de DPDPC, sobretudo
quando, enquanto colaborador do PIBID, estabelece suas primeiras relações com a prática
escolar.
Sena estudou em escola particular até a quarta série, sendo matriculado em
escola pública a partir da quinta série, rede em que concluiu seus estudos
básicos. Mais especificamente, na instituição em que viria atuar pelo PIBID
durante a graduação. Sempre foi apoiado pela família que lhe deu suporte e
incentivo a tudo que se disponibilizava fazer em relação ao estudo. Teve uma
relação positiva com o ensino, sobretudo com a matemática da qual recorda ter
tido uma professora que o acompanhou no ensino fundamental e parte do ensino
médio, sobre a qual declarou “sempre mostrou um lado divertido de aprender
matemática”, muito embora nunca tenha se utilizado “de recurso visual” ou
outras ferramentas que não “a própria matemática”. O diferencial desta
professora consistia em propor “exercícios simples” e assumir uma atitude
branda e comunicativa com os alunos. Sena diz que assim “ficava mais gostoso
de se aprender!”. Já no cursinho, Sena declara ter aprendido com seus
professores “que a matemática é muito complexa, mas ela pode ser muito
encantadora”. No cursinho ele se deparou com uma matemática que ainda não
conhecia, com situações “mirabolantes” que se resolviam por “macetes”. Diz
que naquele momento pode refletir sobre a resolução de problemas com o uso
de “macetes” e chegou à conclusão de que “pode não dar certo em outras
~ 232 ~
ocasiões, mas naquele momento podia dar certo, ou seja a matemática não
estava pronta e acabada, existiam outras possibilidades”, cabendo a nós
descobri-las. Ressaltou que desde o ensino fundamental queria ser professor,
não necessariamente professor de matemática, mas que já externalizava este
sonho aos seus professores. Valendo-se de indignações, em relação às atitudes
negativas dos professores, como motivação para estar em sala de aula. Declara
que optou por ser professor pela “vontade de querer melhorar, de querer
repassar isso [o conhecimento] de outra forma”. Sena sempre teve afinidade
com os professores de matemática, embora declare não ter sido
necessariamente por conta da matemática, disciplina com a qual nunca teve
atritos. Considerava os exercícios de matemática divertidos, certamente por
constituírem um desafio ao seu intelecto que o mobilizava a “terminar e
entregar”, receber o indicativo de certo ou errado e em caso de estar errado,
“voltava e fazia de novo! E de novo!”. O período compreendido entre o segundo
e terceiro ano foi decisivo para Sena, que começou a pensar o que fazer. Como
era muito novo – dezesseis anos – “não via a possibilidade de ir muito longe.
De ir para outra cidade e morar em outro lugar”. (SENA – Perfil traçado com
base em entrevista)
Sena estudou em escola pública a maior parte de sua vida, o que certamente lhe
proporcionou um ensino básico de relações comuns com o ambiente escolar. Um diferencial
neste percurso inicial, porém, foi o apoio incondicional que sua família lhe prestou em termos
de suporte e incentivos. Várias pesquisas têm evidenciado que o fator familiar implica
diretamente no rendimento escolar dos alunos, sobretudo em termos de interesse, valorização e
participação nas atividades escolares (OLIVEIRA, 1999; REIS, 2010). Neste sentido, é dentro
de casa, na socialização familiar, que um filho adquire, aprende e desenvolve a disciplina
necessária para seu sucesso escolar.
A existência, no ambiente escolar, de uma professora que sempre o acompanhou e lhe
mostrou “um lado divertido de aprender matemática” ajudou, de certo modo, para que Sena
não sofresse diretamente as influências negativas de mitos como: “a matemática é difícil!”, “a
matemática é para os inteligentes!”, “temos que fazer incansáveis exercícios para aprender
matemática!”, e outras expressões do gênero. O fator emocional em relação à matemática, por
sua vez, implica nas atitudes de predisposição à matemática, que podem ser avaliadas por meio
das atitudes em relação à matemática e pelas atitudes matemáticas. As atitudes em relação à
matemática referem-se à valorização e ao apreço desta disciplina, bem como ao interesse em
aprendê-la, sobressaindo mais o componente afetivo do que o cognitivo, e que se manifesta em
termos de interesse, satisfação, curiosidade, valorização, dentre outros (CHACÓN, 2003).
~ 233 ~
Estas atitudes e interesses corroboram à constituição identitária futura do sujeito em
relação à docência em matemática, por gerarem um ambiente receptivo à matemática e ao
desenvolvimento de hábitos não dispersivos em relação ao seu ensino. Segundo Chacón (2003,
p. 21), estas atitudes positivas em relação à matemática se manifestam por meio de:
Atitudes em relação à matemática e aos matemáticos;
Interesse pela atividade matemática e científica;
Atitudes em relação à matemática como disciplina;
Atitudes em relação a determinados tópicos da matemática;
Atitudes em relação aos métodos de ensino.
As atitudes matemáticas, por outro lado, possuem um caráter marcadamente cognitivo
e se referem ao modo de utilizar capacidades gerais como a flexibilidade de pensamento, a
abertura mental, o espírito crítico, a objetividade, e outros qualificativos do gênero, importantes
para o trabalho em matemática. No caso de Sena, é possível perceber uma relação afetiva, de
predisposição à matemática, evidenciada quando considerava os exercícios de matemática
divertidos, certamente por constituírem um desafio ao seu intelecto que o mobilizava a
“terminar e entregar”.
Outro aspecto que considero relevante salientar nos contornos ecológicos definidos
pelas relações de Sena, durante o recorte formativo do Ensino Básico, diz respeito à sua
descoberta de uma matemática “mirabolante” para a qual chegou a constatação de que se
tratava de “macetes”, característicos de um ensino altamente econômico e pontual, que avalia
“pode não dar certo em outras ocasiões”. Neste momento, Sena se depara com praxeologias
institucionais que divergiam das práticas a que estava acostumado no ensino regular, uma vez
que os profissionais do cursinho almejam cobrir um maior número de conteúdos em um curto
período de tempo. O conjunto de contingências, neste caso, é outro, as estratégias de ensino são
outras, os objetivos institucionais são outros, o espaço de formação também é outro, e Sena se
dá conta de que a matemática também pode assumir outras feições, isto é, “a matemática não
estava pronta e acabada, existiam outras possibilidades”.
Disso tudo é plausível dizer que o recorte formativo do Ensino Básico constitui um
prolífero lócus de relações, propício à perscrutação sobre a construção inicial de um ideário
científico e pedagógico sobre a prática de ensino da matemática. Não é possível afirmar, porém,
que experiências afetivas positivas e mobilizadoras de atitudes em relação à matemática e
atitudes matemáticas relevantes, constituem os componentes decisivos da escolha pela
~ 234 ~
docência em matemática. Contudo, considero possível afirmar que uma vez ocorrido o processo
de iniciação pela “troca de casa” (do Ensino Médio para a Licenciatura em Matemática), os
aparelhos de conversão têm ai um conjunto de atitudes que encontram legitimidade no saber-
fazer docente próprios desta nova casa em que o sujeito se instala - a Universidade.
A trajetória formativa durante a Licenciatura em Matemática e seu impacto no
DPDPC de Sena e Queiroz: a passagem pelo espelho e escolha da carreira
Os futuros professores chegam aos programas de formação com uma bagagem de
ideias a respeito do que fazem os professores, já que, com essa idade, passaram muitas
horas sentados numa cadeira vendo seus professores atuarem. Ali adquiriram um
repertório de conhecimentos e técnicas através das distintas disciplinas, mas quando
eles mesmos começam a ensinar, seguem aprendendo sobre o ensino, os alunos e os
conteúdos das disciplinas durante toda sua vida profissional.
(ZEICHNER, 1995)
A formação do professor não tem início na licenciatura. Ainda enquanto estudantes da
escola básica, como mostrei ao descrever a trajetória escolar de Sena, aprendem um jeito de ser
aluno, professor e de ensinar e de estabelecer relação com o saber. No excerto, Zeichner (1995)
observa que as situações vivenciadas como alunos serem forte influência no trabalho do
professor em sala de aula, porque correspondem a experiências reiteradas relativas ao ensino, à
aprendizagem, à avaliação, à relação professor-aluno, ao papel do professor e do aluno em aula,
conferindo um valor autêntico à compreensão de que o processo de aprender a ensinar começa
muito antes dos alunos frequentarem os cursos de formação de professores (FEIMAN-
NENSER & BUCHMANN, 1987, apud DARSIE & CARVALHO, 1998).
Contudo, defendo que o desenvolvimento profissional do professor se evidencia, em
toda sua complexidade, somente a partir dos Contornos Experienciais da Formação Docente,
sobretudo, mediante um processo de: (1) entrada no campo de formação oficial (A passagem
através do espelho) - iniciação à cultura profissional; (2) tomada de decisão pela profissão (A
instalação da dualidade) – confronto entre o modelo ideal que caracteriza a “dignidade da
profissão” e o “modelo prático” que se refere às tarefas quotidianas; e (3) A conversão (O
ajustamento) – constitui o processo de incorporação da identidade profissional mediante uma
ruptura biográfica advinda do processo último de socialização, sujeição e identificação com
um grupo de referência. Este processo é impregnado por tipos de aprendizagem docentes que
dão sentido ao modelo do DPDPC, e tem início com a entrada na Universidade.
~ 235 ~
Nos últimos doze anos, nosso país tem sido marcado pela problematização de questões
sociais e políticas que buscam uma melhoria na qualificação do cidadão tomando por base
propostas de expansão universitária100. As políticas de expansão do Ensino Superior,
acompanhadas de outras iniciativas equivalentes no Ensino Básico têm contribuído para a
matrícula de estudantes com faixa etária cada vez mais baixa no Ensino Superior101. Não raro,
podemos evidenciar benefícios como o rompimento de uma tradição de curta escolaridade nas
famílias de baixa renda e ainda a possibilidade de ascensão social, por outro lado o ingresso no
Ensino Superior se configura para os jovens uma transição que traz potenciais repercussões
para seu desenvolvimento psicológico, sobretudo os incidentes sobre a primeira tentativa
importante de implementar um senso de identidade autônomo, tentativa esta traduzida por meio
da escolha profissional (ou tentativa de escolha), que é uma tarefa típica do desenvolvimento
na passagem da adolescência para a vida adulta (ERIKSON, 1976).
Entrar na Universidade é uma escolha marcada por muitas instabilidades psicossociais
que repercutem na decisão pela continuidade ou não no curso em que os jovens ingressaram e,
consequentemente, na sequência de uma dada carreira profissional. Depois da experiência de
entrada no campo de formação oficial, é o primeiro ano de curso que se configura crucial para
a tomada de decisão pela profissão e, consequente, permanência na Universidade. Esta
experiência decisiva de entrada no campo de formação oficial é destacada nos seguintes
depoimentos de Sena e Queiroz:
Entre o segundo e terceiro ano do ensino médio a gente começa a pensar o que
vai fazer. Eu sempre tive muitas dúvidas sobre que curso seguir. Só sabia que
eu queria estar na área da Educação. Eu não sabia que curso. Eu tinha dúvidas
sobre o que eu queria fazer, mas eu sabia que eu queria estar na sala de aula.
E a Matemática foi uma oportunidade que apareceu no meu município. Eu
sempre gostei de Matemática, na verdade eu sempre dizia, não é nem da
Matemática, eu sempre gostei de fazer conta e terminar a conta. E eu vi que no
meu município tinha curso de Matemática. Uniu o útil ao agradável. Vou fazer
Matemática aqui no meu município. (SENA, Recortes da Entrevista)
100 Por exemplo, segundo dados do Censo Inep/MEC 2012 o número de matrículas no ensino superior foi de
7.037.688. Se comparado ao número correspondente do ano de 2002, que contou, segundo dados do Resumo
Técnico MEC/Inep de 2008, com 3.479.913 matrículas, percebemos um acréscimo de 3.557.775 matrículas
ofertadas para o Ensino Superior, ou um incremento de aproximadamente 102,24% em apenas dez anos 101 De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2012) e do Censo Inep/MEC
2012, no período de 2002 a 2012, o acesso dos jovens ao ensino superior cresceu, sendo que a população de 18 a
24 anos que frequentava o ensino superior que correspondia à 9,8% do total de jovens brasileiros nesta faixa etária
em 2002, aumentou para 15,1% em 2012.
~ 236 ~
Eu estudei a vida toda na mesma escola. Eu não era muito de falar, mas sempre
fui estudiosa. No terceiro ano [do Ensino Médio] decidi o que ia fazer. Então
me inscrevi no cursinho. Quando foi em outubro, p’ra decidir, eu estava em
dúvida sobre o que eu ia fazer [vestibular], entre Matemática e Administração.
No dia da inscrição todo mundo se inscreveu no colégio e a moça que fez minha
inscrição disse que eu tinha que começar pelo que eu tinha mais afinidade.
Dentre todas as disciplinas, a que eu tinha mais afinidade era a Matemática.
Em toda a minha vida foi sempre a disciplina a que eu mais gostava, a que eu
mais me esforçava. Foi uma disciplina que se eu tirasse uma média abaixo de
oito, hum! ... Eu pedia p’ra fazer a prova de novo. (QUEIROZ, Recorte da
Entrevista)
Ambos os professores escolhem seus cursos por apresentarem predisposição à
Matemática. Seus percursos escolares demonstram experiências afetivas positivas e
mobilizadoras de atitudes em relação à matemática e atitudes matemáticas significativas que
lhes auxiliam na escolha inicial pela docência em Matemática. Esta escolha também fora
condicionada, em grande peso, por fatores econômicos e sociais, geralmente associados à oferta
de cursos disponíveis em sua comunidade e à falta de recursos para enfrentar graduações fora
do município de origem, como evidenciado em “eu vi que no meu município tinha curso de
Matemática. Uniu o útil ao agradável. Vou fazer Matemática aqui no meu município”.
Entretanto, o primeiro ano de curso parece se configurar como o componente mais decisivo
para a tomada de decisão pela profissão e consequente permanência na Universidade.
Dewey (2011) explica que a escolha por uma área de atuação restringe, de certo modo,
o campo de experiências que o sujeito terá possibilidades de acessar no futuro. A decisão pela
permanência no curso, portanto, projeta uma trajetória que se afirma enquanto condição para a
conformidade com os conteúdos e formas da carreira escolhida e, por isso, configuram um
momento de instabilidade emocional, podendo ocorrer situações de desconforto para o sujeito
que se depara com uma realidade a qual não previa, optando por vezes pela desistência do curso.
Uma primeira situação que pode ser representada pelo gráfico G1 (Figura 15) é a de
“passagem pelo espelho”, aqui ilustrada pela experiência de entrada da professora Queiroz no
curso de graduação. Seu primeiro ano da licenciatura constituiu um período em que se deparou
com um curso diferente do que esperava. Seu contexto durante este período esteve
contingenciado por relações interpessoais e situações de ensino que caracterizavam um
contorno repleto de incertezas, amizades dispersivas e insegurança em relação a profissão
docente.
~ 237 ~
No início do segundo ano [da graduação] eu falei: “- Quando eu pegar meu
diploma vou fazer outra coisa, porque isso não tem nada a ver comigo!”. Isso
porque de matemática só tínhamos tido duas disciplinas específicas, o resto só
era “leitura, leitura e leitura!”. (QUEIROZ, Recorte da Entrevista)
Suas expectativas de obtenção de respostas às questões sobre o fazer matemático que
lhe afligiam no Ensino Básico não eram supridas e o que se evidenciava era a “leitura, leitura
e leitura” sem a devida contextualização. O contorno experiencial sinalizava à Queiroz que ela
se encontrava em um ambiente estranho, fazendo-a pensar em “mudar de curso”. No entanto,
a aprendizagem da docência constitui um processo social, portanto, sujeito à contribuição de
outras pessoas no ambiente institucional.
Até que a gente montou um grupo e conheceu a Ss3 e a Soares. A Ss3 tinha muito
conhecimento do que era a escola. Tudo mudou quando mudamos de lugar na
sala. Coisa ‘besta’, mas saímos de um grupo que queria fazer outro vestibular
porque pensavam que iam ver muita matemática, mas na verdade a gente
aprendeu muito mais sobre Educação do que a Matemática em si. Eram muitas
leituras. Mas quando a gente passou p’ro outro lado da sala, as leituras
começaram a fazer sentido, porque a Ss3 falava muito da “Escola X”.
(QUEIROZ, Recorte da Entrevista)
A mudança espacial em sala, acompanhada do estabelecimento de novas relações
interpessoais materializou um novo quadro de condições que contribuiu para a ocorrência de
novas experiências. A profusão de leituras, que antes se apresentavam sem sentido porque não
contextualizadas ou situadas na prática escolar, estava influindo negativamente no processo de
aprendizagem da docência de Queiroz (situação descrita pela curva 3 do gráfico G1), acabou
por se constituir um suporte interessante quando (re)significada pela discussão com uma
companheira mais experiente e institucionalmente mais engajada, como foi o caso da Ss3. Deste
modo, os contornos de experiência definiram novos processos de aprendizagem da docência,
culminando na compreensão da importância das leituras para quem deseja seguir a profissão de
professor.
Queiroz, ao se dar conta da necessidade da leitura para promover um melhor diálogo
com os alunos, instrumentalizar as estratégias e práticas pedagógicas e subsidiar a reflexão
crítica dos contextos de ensino, apresenta um processo de aprendizagem que assume a trajetória
da curva 1, passando de um ponto de baixa compreensão da docência para o ponto 2, por meio
de um salto qualitativo com características de conversão catastrófica. Percebo por isso, que as
experiências durante o primeiro ano na Universidade são muito importantes para a
~ 238 ~
permanência no ensino superior e para o sucesso acadêmico dos estudantes (PASCARELLA
& TERENZINI, 2005). Sobretudo, quando os professores em formação inicial se identificam
com aspectos peculiares da docência, como o declarado por Sena.
Quando eu ingressei na Universidade me encantei com o como os professores
se portavam dentro da instituição, como era o diálogo. O diálogo era diferente
dos professores do Ensino Médio e Fundamental. Você tem um diálogo dentro
da Universidade, professor, aluno, muito mais de um igual para o outro. Você
consegue estabelecer discussões, e eu fiquei fascinado por isso. Eu poderia falar
de tudo um pouco. Primeiramente eu entrei na Universidade com a ideia de
acabar a graduação, o que iria fazer depois não sabia ainda, mas a partir do
segundo ano eu fui tendo essa percepção, “eu quero dar aulas em
Universidade!”. (SENA, Recorte da Entrevista)
O Professor Sena se identifica com a prática de interação dos profissionais docentes da
Universidade que exercem a função docente reconhecida por ele (a mediação dialógica). Essa
função interativa da docência se configura como uma das competências relacionadas à gestão
de classe e consiste num conjunto de regras e disposições necessárias para criar e manter um
ambiente ordenado favorável tanto ao ensino quanto à aprendizagem (GAUTHIER et al., 1998,
p. 240).
A conversão dos professores da formação inicial em Matemática, por sua vez, tem início
mediante condições e restrições características dos contornos delineados pelas instâncias
formativas definidas pelas disciplinas específicas, didático-pedagógicas e atividades
extracurriculares. Constituem-se, por meio destas instâncias formativas, os processos de
aprendizagem próprios da docência, mediante a apropriação ativa, crítica e criativa destes
sujeitos, dos conteúdos e formas da práxis docente, relacionados à: (1) reflexividade crítica
sobre a realidade do contexto em que atua; (2) Curiosidade epistemológica do conteúdo e do
sujeito que auxilia a (re)construção dos fundamentos dos saberes matemáticos e didáticos do
ensino da matemática; (3) Dialogicidade da comunicação e atuação docente que propicia a
condução de uma postura interessada, sensível, mediadora, de linguagem dialética e
predisposição para ouvir e entender a perspectiva do outro; (4) Instrumentalidade tecnológica
e estratégica do ensino propícia à lida diária com novos métodos, técnicas e instrumentos
tecnológicos de ensino; (5) Inacabamento e consciência social da profissão que garante a
noção de incompletude do docente que busca por contínua qualificação profissional; (6)
Sensibilidade ecológica que possibilita ao professor se dar conta das contingências físicas,
~ 239 ~
econômicas, sociais e culturais do meio; (7) Domínio Didático-pedagógico do Currículo e do
ensino que diz respeito à (cons)ciência dos aspectos contingentes dos sistemas políticos e níveis
de (co)determinação didática, e; (8) Assunção da autoridade docente que configura o assumir-
se enquanto profissional docente, bem como todas as responsabilidades e direitos que a este
convém. Neste contexto, a ocorrência de conversão na formação oficial requer mobilização de
praxeologias, nos termos de Chevallard (1991; 2009), e inserção e vivência da práxis no sentido
de Pimenta (2006), Tardif (2007) e Vázquez (2011), a partir de processos de exploração,
reflexão e investigação de tarefas e atividades relativas à docência.
Os professores em formação inicial se queixam, em seus depoimentos, sobre esta não
ter sido a lógica ou a ênfase de sua formação nas instâncias formativas das disciplinas
específicas e didático-pedagógicas. Entretanto, declaram ter tido o devido esclarecimento sobre
sua profissão a partir das experiências formativas e colaborativas proporcionadas pelas
atividades extracurriculares desenvolvidas pelo projeto de iniciação à docência (PIBID) em
que tomaram parte. Estas experiências, por agregarem os componentes praxiológicos do
conteúdo e da gestão de classe, acabaram por evidenciar maior intensidade de conversões
catastróficas em relação à docência em matemática do que as demais instâncias formativas.
Como se pode apreciar no depoimento a seguir:
Em nossa Universidade, antigamente dizíamos que só tinha ensino, não tinha
pesquisa nem extensão. Mas a pesquisa já começou. Eu tinha essa curiosidade
de saber o que um grupo de estudos faz, o que ele tem por finalidade. Eu sabia
que iria me aprimorar se eu estivesse inserido em algo do gênero, se estivesse
participando de alguma discussão sobre algo e não apenas ficasse lá ouvindo e
acabou. Não, a gente ia lá, conversava sobre o que estava acontecendo [em sala
de aula] e ia refletir, pensar depois. E não se tinha essa oportunidade antes.
Principalmente com relação à matemática. Então foi uma oportunidade que a
gente teve de começar a pensar sobre o que estava acontecendo, como as
pessoas fazem determinadas coisas, de como nós poderíamos fazer. (SENA,
Recorte da entrevista)
As tarefas desenvolvidas no grupo colaborativo poderiam, ou melhor, deveriam compor
as práticas da formação oficial regular da licenciatura em matemática, o que, contudo, não vinha
ocorrendo. Deste modo, em geral, os professores investigados avaliam o potencial
transformador do grupo, desenvolvido de forma a integrar ensino, pesquisa e extensão por meio
de dinâmicas colaborativas com características de pesquisa-ação, e declaram ter sido por meio
~ 240 ~
desta iniciativa que acessaram os significados próprios do que vem constituir-se um professor
de matemática. A pesquisa-ação colaborativa, pois, foi o que oportunizou aos professores as
práticas, as quais tornam-se foco de análise e problematização, que dão formas iniciais a seus
princípios, valores e posturas germinativas da docência.
Durante o planejamento do nosso trabalho de investigação, que contou com a
participação do professor orientador do PIBID, nos foi muito relevante
perceber que as ideias que nós tínhamos nem sempre poderiam ser aplicadas do
jeito que tínhamos a ideia. Mas, com o ponto de vista dele, nós poderíamos
utilizar as ideias que nós tínhamos de uma outra forma. A colaboração se deu
no fato de que ambos tínhamos um objetivo e que, para isso, nos ajudávamos
tanto em relação ao conteúdo a ser abordado, quanto na metodologia a ser
utilizada. Nossa postura dentro da sala de aula e nossas concepções sobre a
temática, apesar de não serem iguais, tinham objetividade e foram se moldando
a um bem comum que era a aplicação do projeto. (SENA, Recortes da
Entrevista)
Neste depoimento, Sena fala da contribuição do Professor Universitário em sua reflexão
sobre a docência, mas houve ainda sistemático acompanhamento do professor escolar na
posição de Supervisor dos projetos e investigações em sala de aula. Esta construção coletiva
por meio da perscrutação de um objeto de saber em que tomam assento o Professor em
Formação Inicial, o Professor Universitário e o Professor Escolar põem em questão relações
antes não consideradas por nenhum destes sujeitos, e que são possíveis, talvez, somente em um
ambiente colaborativo de uma comunidade de prática docente.
As experiências advindas das atividades extracurriculares, tendo como norte a escola
básica, marcadas pela relação dos sujeitos com os modos de ser, saber-fazer e saber próprias
da instituição definida pelo grupo de práticas colaborativas, possibilitam a construção de
conhecimentos e instrumentos construídos na própria prática escolar, considerando a
complexidade da sala de aula, não necessitando passar por um processo de transposição didática
como entende a didática tradicional.
A entrada em sala como professor e o princípio da dualidade
O ingresso no PIBID configurou um momento de entusiasmo para os professores
selecionados. Todos tinham expectativas quanto ao que teriam que realizar no projeto, que
~ 241 ~
posições iriam assumir e que tarefas iriam executar. Depois de um período preparatório, ocorreu
o momento tão aguardado, a experiência em sala de aula e a instauração da dualidade.
A primeira ideia é a diferença entre um projeto em que você vai à escola, passa
cinco horas e nunca mais volta na turma e de acompanhar a turma. A gente
pensa na atuação, se vai ser “assim ou assado”, tem algumas ilusões, e quando
tu vais ter a experiência do PIBID toda, tu tens uma ideia mais próxima da
realidade possível. Não é a tua turma de fato, mas é o mais próximo do que é
assumir de fato uma turma. (QUEIROZ, Recorte da Entrevista)
A professora Queiroz vivenciou diversas experiências que ilustram as mudanças de
postura assumidas por ela durante situações problemáticas de prática pedagógica, como a que
segue:
Na aula de hoje seria exibido um vídeo, mas um imprevisto mudou os planos, e
ainda para complicar mais a situação a professora teve que unir, à turma,
alunos de outra sala que iriam fazer recuperação. Fiquei meio sem jeito, pois
não podíamos falar em voz alta para não atrapalhar esses alunos. Então
resolvemos dar continuidade à resolução das questões da aula anterior. Todos
esses imprevistos acabaram sendo favoráveis, pois pude observar quem estava
com dificuldades e onde estavam essas dificuldades. Dispusemos os alunos em
duplas e eles começaram a resolver [os exercícios]. Muitos entenderam o
conceito de fatoração por fator comum, mas tinham alunos com muitas
dificuldades, principalmente em divisão, porém estavam tentando e com nossa
ajuda estavam conseguindo. O interessante foi perceber como a ideia de
parceria funcionou, eles discutiam entre eles qual a melhor forma de resolver a
questão, os argumentos que eles davam um para outro os levavam a um
consenso. No final da aula fiquei satisfeita com o caminho que a turma está
seguindo. (QUEIROZ, Diário de 24/08/12)
Nesta situação Queiroz manifesta sensibilidade ecológica ao entender que o contexto
de imprevistos exigia uma nova estratégia de aula. Enquanto a professora conduzia a revisão
com os alunos da outra turma ela orientava uma dinâmica de parceria que lhe possibilitou
identificar lacunas de aprendizagem dos alunos e o diálogo entre eles. Constatou com isso que
sua estratégia foi positiva, dando-lhe ânimo para continuar sua experiência em sala de aula. A
situação de imprevisto poderia tolher sua atitude de ensino, porém, tendo em vista o novo
contexto, em vez de aguardar a orientação da professora Supervisora, decidiu assumir a
condução da classe e experimentar uma estratégia que, ao final do trabalho, considerou exitosa.
A avaliação positiva da experiência certamente faz com que Queiroz agregue mais esta
praxeologia ao seu universo cognitivo, configurando a aprendizagem de um saber estratégico
~ 242 ~
de ensino. Mais uma vez o processo identitário de Queiroz tende à mudança de forma em
relação à docência. Neste caso, o processo se deu por meio da trajetória descrita pela curva 5
no sentido do ponto 6, no gráfico G1 (Figura 15).
A dualidade operante no estudo em grupo e construção de sequências didáticas
As contingências impostas pelo nível sociedade expressas pelas constantes greves de
professores, levou-nos a desenvolvermos nossas atividades reflexivas sobre objetos tomados do
currículo regular do Ensino Médio. Sobre esta experiência Queiroz pondera:
Na reunião de grupo buscamos em livros alguma sequência que nos parecesse
coerente, entretanto o que pudemos observar foi que a maioria dos livros ao
qual tivemos acesso não trazia uma sequência e sim tópicos separados com a
definição do que era cada coisa, o que era totalmente ao contrário ao que
estávamos procurando. (QUEIROZ, Diário de 16/03/12)
A professora Queiroz relata em seu diário sua busca nos livros didáticos por estruturas
definidoras de uma organização didática coerente sobre o ensino de funções exponenciais e
logarítmicas. Contudo, observou que tais livros não “traziam uma sequência e sim tópicos
separados com a definição do que era cada coisa”, isto é, prevalecia uma disposição de textos
em que se definiam os tópicos como temas pontuais e desarticulados, isto é, compartimentados
e sem qualquer relação entre eles. O ensino pontual desarticulado é a tônica do modelo
tradicional, cuja lógica estrutural é a reprodutivista, visando passos a serem imitados e
infindáveis exercícios cujas técnicas de resolução devem ser decoradas para utilização em
situações idênticas no futuro, privilegiando-se a memória como o recurso intelectual e atitudes
como docilidade, receptividade e obediência (DEWEY, 2011). A sequência de ensino é, pois,
desarticulada, não respeitando organizações didáticas com tópicos conectados e tarefas
construídas com grau crescente de complexidade e levando em conta a vida do objeto no
horizonte do currículo.
Na ausência de uma organização didática articulada nos livros didáticos, Queiroz e suas
colaboradoras julgaram ser coerente construir a sua própria organização a partir do
levantamento histórico do tema e operar sobre ele questionamentos acerca de sua razão de ser
no currículo escolar e no nível de ensino em que o percebiam situado. Assim o seu grupo
apresentou uma sequência didática que julgou coerente com suas expectativas da sala de aula.
~ 243 ~
Nas reuniões seguintes que foram para socializar as leituras que tínhamos feito
até então, ficou evidente outro obstáculo em relação à função logarítmica. Não
conseguíamos construir uma sequência parecida com a que tínhamos de função
exponencial. Porém com o decorrer das reuniões e discussões sobre o tema e
suas propriedades tomamos consciência de uma informação que até então não
tínhamos percebido, e que seria fundamental para o desenvolvimento do nosso
trabalho. Que entre tantas peculiaridades que agora nos eram conhecidas do
objeto estudado, uma seria fundamental para a construção da sequência. A
propriedade que diz que a função exponencial possui uma inversa e essa é a
função logarítmica. Partindo dessa propriedade conseguimos construir nossa
sequência didática. (QUEIROZ, Diário de 23/03/12)
O estudo epistemológico do objeto matemático faz surgir questionamentos que antes
não eram perceptíveis por meio do método tradicional de ensino da matemática, pois a
construção de uma sequência didática baseada em uma organização matemática coerente, isto
é, que embora artificial tenha consistência do ponto de vista de suas estruturas matemáticas,
requereu que as professoras se fizessem perguntas e dessem justificativas aos seus passos –
“com o decorrer das reuniões e discussões sobre o tema e suas propriedades tomamos
consciência de uma informação que até então não tínhamos percebido”-, e que dessem sentido
aos procedimentos adotados, levando-as à mobilização de praxeologias, e construção de
“andaimes” que sustentassem teoricamente os procedimentos empregados – “A propriedade
que diz que a função exponencial possui uma inversa e essa é a função logarítmica”. Esta
perspectiva evidencia a curiosidade epistemológica do conteúdo e do sujeito operando para
além do currículo tradicional o que, certamente, implicou na forma de Queiroz lidar com o
currículo em sua abordagem didático-pedagógica.
A mudança a ser aqui registrada diz respeito a nova relação estabelecida entre Queiroz
e os objetos função exponencial e função logarítmica, expressos por uma articulação que,
tradicionalmente, não se dá a devida importância, mas que, na apropriação do professor faz
muita diferença, pois assegura-lhe um sentido para seu emprego em sala de aula, além de
fundamentar seus procedimentos e decisões na lida com o objeto em classe.
A representação no gráfico G1 (Figura 15) que melhor descreve o presente
desenvolvimento manifestado por Queiroz pode ser modelado pela curva 1, ascendente no
sentido do ponto 2, uma vez que assumir com tal propriedade o processo investigativo como
prática docente, perspectivando a gerência de relações epistêmicas, pessoais e sociais
(ARRUDA et al., 2011), e a si mesmo como profissional, condiz com uma mudança de forma
característica de uma conversão catastrófica. A professora, pois, apresentou articulações
~ 244 ~
coerentes com a aprendizagem do tipo Domínio didático-pedagógico do currículo e do ensino
da matemática.
A dualidade operante nas regências de classe e nos projetos de pesquisa sobre a prática
docente
Como já detalhei, na composição anterior, a professora Queiroz assumiu a problemática
da comunicação em sala de aula como ponto de partida para sua reflexão sobre a prática de
ensinar e aprender matemática. Sobre o tema a professora declara que:
A dificuldade de comunicação com os alunos foi, em minha
experiência, o que mais percebi. Quando a gente ia p’ra sala, a gente
explicava ali na frente e achava que a maioria entendia. Quando a
gente ia explicar p’ra um aluno específico sobre alguma dúvida, a
gente achava que explicava do mesmo jeito, mas ouvindo os áudios
percebemos que a gente não explica do mesmo jeito. A gente se dava
conta de alguns detalhes que faltavam na explicação no quadro. Eu
posso saber, mas quando vou explicar, eu posso não utilizar as
palavras certas p’ra eles entenderem o que eu quero falar. Eu achei
essa uma das maiores dificuldades. (QUEIROZ, Recorte da Entrevista)
A temática da comunicação foi recorrente nas reflexões de Queiroz, posto que a muito
vinha considerando seus aspectos. Esta postura expressa dialogicidade da comunicação e
atuação docente devido sua sensibilidade e predisposição para entender a perspectiva do aluno,
evidenciando uma conversão associada à docência, como ainda é possível corroborar pelos
seguintes depoimentos.
Eu sentia muita dificuldade na linguagem mesmo. Eu tentava ao máximo
possível utilizar uma linguagem que fosse próxima dos alunos. Porque se tu
falas uma palavra difícil p’ra um menino de onze anos, essa palavra “pula” na
compreensão do todo. Você tem que aproximar. Não dá p’ra ficar primeiro com
o pessoal da frente e depois com o pessoal que é mais velho [pessoal do fundo
da sala]. (QUEIROZ, Recorte da Entrevista)
A constatação de Queiroz de que deveria o “máximo possível utilizar uma linguagem
que fosse próxima dos alunos”, expressa uma consciência comunicacional de que o diálogo
pode “aproximar” os sujeitos heterogêneos em sala de aula. A preocupação com a linguagem
~ 245 ~
utilizada, bem como a comunicação com os alunos de uma forma mais alargada esteve evidente
em diversas atividades executadas por Queiroz, como no caso de um projeto de intervenção em
parceria com Ss4 em que desenvolveram uma ação chamada O cantinho do quadro que tinha
por princípio recuperar informações passadas do objeto matemático em discussão na aula, como
no caso da resolução de produtos notáveis em que as regras de potenciação de números reais
eram retomadas no cantinho do quadro para auxiliar a resolução dos problemas mais
complexos. Estes registros constituíram um instrumento mediador e facilitador da compreensão
sobre o novo sentido atribuído à potência expressa nos produtos notáveis. Outra evidência de
interesse pelo tema comunicação esteve associada à regência em Prática I, quando em parceria
com Ss3 a professora Queiroz desenvolveu jogos para o trabalho com MMC e MDC, de onde
surge o depoimento anterior, e mais uma vez a temática se materializa no trabalho de conclusão
de curso (TCC) em que desenvolve uma pesquisa em sala de aula em que investiga as
implicações da comunicação na aprendizagem da matemática dos alunos do 8º ano.
As reiteradas experiências de Queiroz em que esta esteve refletindo sobre os aspectos
comunicacionais em sala de aula evidenciam o que Dewey (2011) chama a atenção sobre uma
experiência atual resgatar, de algum modo, experiências passadas e viver em experiências que
virão. Os significados atribuídos por Queiroz ao tema comunicação em sala de aula expressam
um contínuo experiencial em que a práxis dialógica comunicacional é constantemente
revisada, alargada, aprimorada. A conversão catastrófica ocorre, a exemplo deste caso,
semelhantemente a um copo com água preenchido até a borda, em que vão se depositando
moedas. Em determinado momento a tensão superficial da água romperá e a água contida no
copo transbordará, ocorrerá uma catástrofe, não em decorrência somente da inserção da última
moeda no copo, mas pelas moedas inseridas anteriormente e à situação de o copo estar cheio
de água até a borda. A conversão catastrófica é, neste sentido, resultante de múltiplos fatores
intervenientes no processo em desenvolvimento que o tornam crônico e em condições de
deflagrar a catástrofe. A mudança de estado, de forma, e de relações entre tais fatores é o que
contribui para a ocorrência da catástrofe. As experiências ressignificadas em novas situações
contribuem para a aprendizagem expressa por Queiroz, e sua percepção alargada sobre a
problemática lhe assegura novas formas de saber-fazer em sala de aula.
O processo descrito aqui é mais uma vez passível de modelação pela curva 1, ascendente
no sentido do ponto 2, visto que evidencia uma aprendizagem reificada pelo discurso de
Queiroz tecido durante sua entrevista, evidenciando uma conversão catastrófica quando sua
~ 246 ~
reflexão lhe faz evocar no percurso que traçou, experiências significativas de cada situação
vivenciada, e que somente naquele momento sistematizou na forma de um discurso consciente
sobre o tema, certamente aprimorado na feitura de seu TCC, mas que toma forma somente
agora, por ocasião do diálogo reflexivo que tecemos durante a entrevista.
A conversão catastrófica enquanto consolidação provisória do processo de
sujeição
Quando inquiridos sobre como significaram o percurso experienciado no PIBID os
professores manifestam ter percebido mudanças significativas em suas práticas, como
exemplificado pelo depoimento de Sena:
De um modo geral foi muito construtiva. Eu mudei muito mesmo! Durante esses
quatro anos [graduação] e como bolsista do PIBID. Eu hoje assumo posições
muito mais enfáticas do que eu tomava antes, acredito. E até falando com alguns
colegas eles dizem que eu estou diferente, ou seja, essa vivência da
Universidade, no PIBID, me transformou muito mais do que eu possa imaginar.
Me mudou de certa forma que, se eu fosse pegar quando era aluno do Ensino
Médio, talvez eu não me reconheça, eu teria a mesma vontade de ser professor
que eu tinha no Ensino Médio, mas a minha visão sobre tudo, a minha vontade
e a minha capacidade hoje de me expressar é diferente. Por exemplo,
antigamente, apesar de em determinadas situações eu não estar de acordo, eu
baixava a cabeça, porque eu não tinha confiança suficiente. Eu ouvia,
discordava, mas fazia. Hoje eu já penso diferente. Já ajo um pouco diferente. Se
eu realmente discordo, eu continuo discordando, mas argumento sobre o que
discordo. Se a pessoa disser “- Vamos fazer assim!” e eu discorde, respondo “-
E se for feito desse jeito?”, “- E se a gente não fizer desse jeito?”, até entrarmos
em consenso ou eu verificar que o outro jeito era o melhor. (SENA, Recortes da
Entrevista)
O professor Sena manifesta detalhes sob que aspectos visualiza sua mudança de forma
em relação à docência. De uma postura um tanto quanto submissa, muito em decorrência da
forma afetuosa como lhe fora apresentado o paradigma do exercício, atualmente avalia estar
mais aberto à negociação de significados, à exploração e assume posição por avaliar-se em
condição para o debate. Acredito, que boa parte de seu desenvolvimento se deve às experiências
vivenciadas no PIBID, como dá a entender no seguinte depoimento.
Nós não sabemos de tudo, nós não somos o centro do universo, o professor deve
sempre buscar algo mais, o professor deve sempre olhar a turma com o
~ 247 ~
pensamento de “o que devo fazer para melhorar?”. Não como se pensava antes,
que era o de “eu estou fazendo isso certo e os alunos é que não estão
aprendendo!”. Hoje, assim como todos nós, todas as pessoas que participaram
do PIBID e viveram essa experiência, assim como eu, elas têm uma concepção
de que a educação é complexa. Educação é difícil, educação é um trabalho
árduo, independente de qual área. Mas é, como alguns autores falam, um
exercício diário. Você tem que estar sempre melhorando. Você tem que estar
sempre aprendendo. Eu acho que nossa capacidade cognitiva, nosso
aprendizado, nunca chega ao fim, nunca conseguimos aprender tudo, sempre
surge alguma coisa nova para a gente aprender, tentar compreender. Pois
muitas vezes a gente não compreendia, e durante muitas vezes nos foi ressaltada
essa percepção de que nós não sabemos de tudo, nós temos que aprender. Essa
percepção não deveria ser firmada só no PIBID, só na Universidade, mas
deveria ser levada na profissão. Acredito, pessoalmente, que eu aprendi muita
coisa. Aprendi a ver o mundo de outra forma. Aprendi a ver a educação de outra
forma. Eu sempre gostei de ministrar aula de uma maneira mais espontânea, de
uma maneira mais divertida, mas com essa percepção de que existem métodos e
metodologias que podem me auxiliar ainda mais, que eu posso buscar ainda
mais, que eu posso pensar ainda mais como melhorar isso, é o que eu vou levar
por muito tempo. (SENA, Recorte da Entrevista)
Mais uma vez Sena expressa evidências de aprendizagem do tipo de inacabamento e
consciência social da profissão, demonstra consciência de que “Nós não sabemos de tudo, nós
não somos o centro do universo, o professor deve sempre buscar algo mais, o professor deve
sempre olhar a turma com o pensamento de “o que devo fazer para melhorar?” e ainda que “a
educação é complexa” e exige que o professor esteja “sempre melhorando”, “sempre
aprendendo”. Sena dá demonstrações de superação do paradigma do exercício, mas, nesse
sentido, declara ter ainda muito o que aprender.
De um modo geral, os professores mudaram realmente a partir de suas experiências e
passaram a assumir um habitus que antes não consideravam ser prerrogativa da docência, como
evidencia o caso a seguir, vivenciado por Queiroz:
Ontem eu me peguei em um domingo, meio dia e meia, no terminal rodoviário,
lendo o texto do Ss6. Ele me ligou e disse que estava no Centro. Perguntava
onde poderíamos nos encontrar. Não havia nada aberto no Centro. Então fomos
para o terminal, pois havia cadeiras lá. Ele havia enviado um texto por e-mail,
mas queria que eu argumentasse com ele na frente dele. Então fomos p’ro
terminal. Falava com a Soares: “Será que a gente fez isso, tirar o professor do
~ 248 ~
que estava fazendo p’ra vir falar com a gente?”, provavelmente sim, porque a
gente pegava ele em qualquer lugar e ficava mostrando os trabalhos,
“Professor, vem aqui! Como é que se faz isso aqui? Rapidinho!”. É, a gente era
desse jeito! (QUEIROZ, Recorte da Entrevista)
Neste caso, a conversão se instaura à medida em que Queiroz se dá conta de sua
assunção da autoridade docente que lhe confere um status de referência para um outro sujeito,
neste caso Ss6, a quem acolhe prontamente por compreender ser uma responsabilidade inerente
ao seu papel profissional, espelhando um saber-fazer profissional que aprendera, talvez
inconscientemente. Queiroz pondera sobre este seu novo ponto de vista sobre a docência e
avalia o quanto mudou em relação a seu início na graduação, principalmente, do início de sua
participação no PIBID.
Eu tinha uma ideia muito diferente do que era ser professor de matemática. Ia,
passava uma continha. Se soubessem, pronto! Mas hoje não. Tu participas muito
da formação deles. Ela [professora do Ensino Médio], do jeito dela, participou
da minha [formação]. Hoje estou aqui por conta dela. Então, que tipo de
exemplo a gente quer ser p’ros nossos alunos? Eu sempre penso nisso. Que tipo
de exemplo eu quero ser. Quando eu entrei na turma do Ensino Médio, eu era
igualzinha a eles, mas agora eu não estou mais como aluna, estou como
professora. Então, que tipo de atitude eu vou tomar? Meu pensamento é esse.
Que tipo de exemplo eu quero ser? Que tipo de memória eu quero que tenham
de mim no futuro quando eles forem falar de mim, como hoje eu falo dos meus
professores? Isso tem que estar na tua cabeça. (QUEIROZ, Recorte da
Entrevista)
A professora manifesta reflexividade crítica sobre a realidade e consciência social da
profissão ao entender-se enquanto docente, ao assumir uma nova posição na Escola e ao desejar
ser um “exemplo” para seus alunos. Os demais professores em formação compartilham desta
perspectiva social da profissão docente e projetam seu futuro almejando dar continuidade a seus
estudos para se desenvolverem pessoal e profissionalmente.
O quadro a seguir apresenta uma síntese do modelo aqui construído, expondo breves
descrições das fases do desenvolvimento profissional até à conclusão da formação inicial
oficial, as características das experiências vivenciadas e as tipologias de aprendizagem inerentes
ao DPDPC.
Quadro 02 – Síntese do Modelo de Desenvolvimento Profissional Docente em uma Perspectiva Catastrófica (DPDPC)
Fases do
Desenvolvimento
Características das Fases de
Desenvolvimento
Experiências Formativas Tipologias de Aprendizagem
Formação Básica
Desenvolvimento de atitudes em
relação à matemática
Trabalhos que motivem o interesse pelo
trabalho matemático, estabeleçam relações
com a matemática como disciplina, com
determinadas partes da matemática e aos
métodos de ensino
Aprendizagem como componente afetivo:
- Valorização e apreço pela disciplina
- Interesse, satisfação e curiosidade pela
matéria e por sua aprendizagem
Desenvolvimento de atitudes
matemáticas
Atividades matemáticas, resolução de
problemas, exercícios e tarefas com o objetivo
de tornar o saber sobre um objeto rotineiro
Aprendizagem como componente cognitivo:
- Flexibilidade de pensamento
- Abertura mental
- Espírito crítico
- Objetividade
Passagem pelo
Espelho
Entrada no campo de formação oficial
e tomada de decisão pela profissão e
iniciação à cultura profissional
Experiências afetivas e econômicas que
contribuem para a escolha da carreira.
Mudança da “casa” do Ensino Médio para a
“casa” da Formação Oficial.
Experiências vivenciadas nas instâncias
formativas das disciplinas específicas,
didático-pedagógicas e extracurriculares
Reconhecimento de aspectos peculiares da
docência como a prática de interação dos
professores universitários associadas à
gestão de classe e a promoção da relação
teoria e prática
~ 250 ~
Dualidade
Operante
Passagem da posição de aluno à
posição de professor. Primeiras
experiências efetivamente
problematizadoras da atuação
profissional docente
Entrada em sala de aula, estudo em grupos e
elaboração de projetos de observação e/ou
investigação da práxis docente
Primeiros indícios das tipologias de
aprendizagem profissionais como:
- Sensibilidade ecológica
- Dialogicidade da comunicação e atuação
docente
- Instrumentalidade tecnológica e estratégica
de ensino
- reflexividade crítica sobre a realidade
- Curiosidade epistemológica do conteúdo e
do sujeito
- Domínio didático-pedagógico do currículo
e do ensino da matemática
Conversão
Catastrófica
(Ajustamento)
Consolidação provisória do processo
de sujeição. Processo contínuo de
experiências significativas sobre a
docência em que, invariavelmente,
ocorrem mudanças de forma,
momentos de conversão catastrófica,
estabelecimento de novas relações com
o saber expressas pelo professor (em
formação inicial) no sentido de uma
progressiva socialização e sujeitamento
aos modos de ser e fazer próprios de
uma comunidade docente.
Participação em comunidades de práticas
docentes e Dinâmicas reflexivas individuais e
coletivas sobre a própria prática
Além da incidência de tipologias de
aprendizagem presentes na fase da dualidade
operante, apresenta ainda:
- Inacabamento e consciência social da
profissão
- Assunção da autoridade docente
O quadro visa assegurar o registro de que posturas de conversão catastrófica, no sentido
de mudança de forma em relação à consciência social da profissão, assumida pelos professores
que experienciaram as atividades extracurriculares, em particular, as desenvolvidas neste
projeto, implicam o desejo de assunção profissional. Contudo, esta socialização deu mostras
de que operou de acordo com as contingências próprias do ambiente em que tomaram lugar as
experiências aqui compartilhadas, suportadas por condições próprias deste meio e tempo, mas
que geram perspectivas de se perpetuar no horizonte da carreira profissional desses professores.
Dos processos possíveis, por uma questão econômica, destaquei, nesta composição,
somente algumas situações e casos para ilustrar o potencial analítico e teórico-instrumental do
modelo de DPDPC. O modelo traz novas perspectivas sobre a investigação acerca do
desenvolvimento profissional docente e, sobretudo, apontando a necessidade de seu
aperfeiçoamento. Configuro, assim, a investigação da aprendizagem docente em contextos de
práticas colaborativas de professores em formação inicial como uma verdadeira linha de
pesquisa, em que situamos o modelo de DPDPC como um instrumento potencial de
perscrutação (análise e compreensão) de práticas e trajetórias docentes.
A partir dos processos de aprendizagem evidenciados em nas experiências de prática
colaborativas, vivenciadas no âmbito do projeto extracurricular de iniciação à docência
(PIBID), sinalizei os tipos de aprendizagem compatíveis com o que defini por um Bom
Professor, especialmente, um Bom professor de Matemática, além de dar forma e conteúdo ao
que defini como Desenvolvimento Profissional Docente em uma Perspectiva Catastrófica
(DPDPC), sendo este desenvolvimento expresso por um processo contínuo de experiências
significativas sobre a docência em que, invariavelmente, ocorrem mudanças de forma,
momentos de conversão catastrófica, estabelecimento de novas relações com o saber,
expressas pelo professor (em formação inicial), no sentido de uma progressiva socialização
e sujeitamento aos modos de ser e fazer próprios de uma comunidade docente.
Destaco que os processos de constituição identitária, de desenvolvimento profissional e
de apreensão praxeológica são contínuos e permanecem ao longo da vida profissional dos
professores de matemática. Mas evidenciamos que a conversão catastrófica se acentua, se
torna mais pregnante, sobretudo quando refletimos sobre as fases de desenvolvimento em que
se destacam as mudanças de casa e posição, em que os sujeitos investigados deixam de se
portar como alunos e passam a se assumir como professores.
~ 251 ~
~ 253 ~
COMPOSIÇÃO V
Nesta composição teço uma pretensa conclusão sobre a pesquisa
realizada. Procuro resgatar os fatores principais da identificação dos
processos de aprendizagem e evidenciação de tipos de aprendizagem
docente que implicam um contínuo experiencial que conduz ao
desenvolvimento profissional dos professores de matemática em
formação inicial. Sobretudo aqueles característicos de uma conversão
catastrófica, para a qual introduzo a conformação de um modelo
heurístico de análise da formação e desenvolvimento profissional
docente por meio de mudanças de formas e identificação com a carreira
docente.
AmarrasFinais
~ 255 ~
COMPOSIÇÃO V
CONTORNOS CONCLUSIVOS
Esta composição assume os contornos de uma pretensa conclusão. Porém constitui, em
verdade, amarrações com pontas soltas. Não por descuido ou despreparo, mas devido à
complexidade e mutabilidade do tema Formação Docente, que assume novas feições sempre
que as contingências ambientais se modificam. Fazendo emergir novas variáveis e
conformações para as relações entre os sujeitos docentes, na Universidade e nas Escolas. Com
efeito, ao analisar a problemática da formação docente, pude percebê-la e explorá-la sob dois
aspectos: o primeiro como um dos pilares de sustentação da educação escolar e o segundo como
lócus de investigação sobre os processos de aprendizagem da docência e do desenvolvimento
profissional docente.
Tanto um aspecto quanto outro refletem as mudanças sociais, políticas, econômicas e
tecnológico-científicas que caracterizam os paradigmas contextuais vigentes (KUHN, 2006).
Deste modo, apontei, na introdução deste trabalho, que a formação docente esteve
condicionada, no início do século XX até a década de 1970 pelo paradigma de ciência moderna
(CHAUÍ, 1997; MIZUKAMI et al., 2002; FERREIRA, 2003), passando a partir da década de
70 do século XX ao paradigma do processo-produto e depois na década de 80 para um
paradigma naturalista-interpretativo (FERREIRA, 2003) e, finalmente, nos encontramos
diante do paradigma comunicativo-dialógico (FELDMANN, 2009). Estas fases carregam
consigo estilos próprios de formação docente, assinalando a passagem de perspectivas top-
down (ZEICHNER, 1993) em que a formação se sustenta enquanto acumulação de cursos e
transmissão de conhecimentos sobre uma cultura que se entende estática e de valores imutáveis,
característicos de uma educação tradicional de viés reprodutivista, conforme observa Dewey
(2011) e associado à racionalidade técnica, para uma fase de formação com perspectivas bot-
top-up, de desenvolvimento e mudança, em que se valoriza o que pensa o professor, imputando
a este a responsabilidade por sua (auto)formação mediante experiências de reflexão, individual
ou coletiva, sobre suas práticas docentes e com possibilidade de mudança social.
~ 256 ~
Diante deste contexto, me senti impelido a investigar sobre as evidências de
aprendizagem que ocorrem e os processos que as produzem nas experiências colaborativas de
professores de matemática em ambientes de interface entre a Universidade e a Escola? E ainda,
em que sentido as manifestações de aprendizagem docente de professores de matemática
situados nessas experiências colaborativas promovem o desenvolvimento profissional do
professor de matemática? Visando levar a termo minha investigação, desenvolvi uma pesquisa
qualitativa de natureza interpretativa em que busquei identificar, descrever e analisar as
evidências de aprendizagem, os processos de aprendizagem e o desenvolvimento profissional
docente de professores de matemática situados nos contornos das experiências colaborativas
em ambientes de interface entre a Universidade e a Escola.
Por uma questão de foco e condição para a pesquisa, mobilizei esforços na investigação
dos processos de formação e de desenvolvimento profissional de professores de matemática
durante a formação inicial e que participavam de um projeto de iniciação à docência (PIBID).
Este público me possibilitou o desenvolvimento de uma pesquisa-ação colaborativa, a partir
da qual pude, em um primeiro nível, identificar e analisar os contornos das experiências
colaborativas em que se evidenciaram condições para a problematização e desnaturalização da
prática docente. Construí, a partir do processo de pesquisa, alguns resultados que trazem
identidade a este trabalho e contribuições à linha de pesquisa formação de professores de
matemática.
Ao retomar a problemática da formação de professores e o objetivo de identificar,
descrever e analisar as evidências de aprendizagem, os processos de aprendizagem e o
desenvolvimento profissional docente de professores de matemática situados nos contornos das
experiências colaborativas em ambientes de interface entre a Universidade e a Escola, fui
levado a crer, com base nos resultados construídos, que as expectativas iniciais foram atendidas
e, por vezes, superadas. Visto que, a partir dos Macro-contornos Experienciais de Formação,
pude explicitar o percurso de formação pelo qual passa o sujeito docente de matemática, e que
pode ser definido: pela formação básica - passando por um processo de escolha da profissão;
pela formação inicial ou oficial - passando por um período de transição entre a preparação
oficial e o exercício da profissão; e pela formação continuada.
Nos contornos da educação básica evidenciei, à luz de Chacón (2003), que a
predisposição para a matemática pode estar associada à existência de atitudes em relação à
matemática e pelas atitudes matemáticas e que a escolha pela carreira tem a ver, além das
~ 257 ~
existências destas atitudes, com fatores de ordem política e econômica, expressas aqui pela
oferta de cursos nas proximidades das residências dos professores em formação, conforme
declarações feitas por Sena e Queiroz. A decisão pela permanência na carreira ainda sofre
contingências de ordem contextual, sobretudo marcadas pela relação teoria-prática evidenciada
na Formação Oficial Inicial, em específico entre as instâncias formativas das disciplinas
específicas, didático-pedagógicas e das atividades extracurriculares, que concorrem para a
constituição identitária do professor em formação inicial e cuja articulação tem papel decisivo,
no primeiro ano de curso, para a aceitação ou não das prerrogativas docentes, como, por
exemplo, a necessidade de leitura e escrita sobre a educação, geralmente não bem recebidas por
estudantes de matemática que entram na licenciatura com expectativas em relação às práticas
eminentemente matemáticas, e exemplificadas nos depoimentos de Leite e Queiroz.
As análises dos contextos assinalados me possibilitaram a compreensão de que, nesta
preparação oficial, quão mais articuladas e bem desenvolvidas forem as instâncias formativas
fundamentais, melhor será a compreensão da função docente, o que gera expectativas para uma
melhor adaptação ao exercício inicial da profissão pelo professor de matemática. Esta
compreensão me foi possível pela perscrutação dos processos de aprendizagem desencadeados
nesses contornos de experiência. Para efeito de delineamento da pesquisa, o ponto de vista por
mim assumido para tratar da formação docente, foi o do contorno das atividades
extracurriculares, em específico, definido pelas relações estabelecidas entre professores de
formação inicial, professores atuantes na rede pública e professor formador universitário, em
experiências de práticas investigativas e colaborativas em ambientes de interface entre
Universidade e Escola.
A partir do contorno de atividades extracurriculares me foi possível discernir as
experiências de formação e o desenvolvimento dos professores mediante situações de:
preparação para a entrada nos ambientes de colaboração (GCEM e sala de aula), participação
em eventos (locais e nacionais), construção de sequências didáticas (tendo como referência a
Teoria Antropológica do Didático) e elaboração/execução dos projetos de pesquisa
(intervenções em sala e TCC). Os processos sistemáticos de estudo e investigação sobre a
formação docente e análise do grande grupo (24 sujeitos circunstanciais ou periféricos), em
específico do subgrupo composto pelos sujeitos com plena participação e reificação
(FIORENTINI, 2013), foi-me possível categorizar a aprendizagem da docência em oito
tipologias qualificativas, a saber: 1) Reflexividade crítica sobre a realidade; 2) Curiosidade
~ 258 ~
epistemológica do conteúdo e do sujeito; 3) Dialogicidade da comunicação e atuação docente;
4) Instrumentalidade tecnológica e estratégica do ensino; 5) Inacabamento e consciência
social da profissão; 6) Sensibilidade ecológica; 7) Domínio didático-pedagógico do currículo
e do ensino da matemática e; 8) Assunção da autoridade docente.
As experiências do percurso que registram momentos definidos como passagem pelo
espelho, dualidade operante e conversão catastrófica ou ajustamento (DUBAR, 1997)
evidenciam que estas tipologias qualificativas da aprendizagem docente não ocorrem no vazio,
mas, ao contrário, são situadas em práticas de ensino que visam estar em conformidade com o
grupo de referência (GCEM). Implicam, pois, tipos de aprendizagem que se articulam e
emergem de processos de conversão com características catastróficas, que dão consistência e
substância ao estudo das mudanças de forma (saber ser/fazer), próprias do que tenho
conceituado como Desenvolvimento Profissional Docente em uma Perspectiva Catastrófica
(DPDPC).
Deste modo, me parece plausível avaliar como consistente a tese de que a aprendizagem
docente dos professores de matemática, em formação inicial, pode ser interpretada como o
resultado da interação destes sujeitos com práticas situadas em uma experiência educativa
significativa, com potencial para ressignificar posturas, redirecionar atitudes e impulsionar o
desejo de continuar aprendendo. Sendo, nestes termos, o desenvolvimento profissional docente
um processo de conversão catastrófica - de identificação dos sujeitos a um corpo de
conhecimentos, valores, teorias, saberes e práticas de um grupo tomado por referência -,
resultante, pois, da aprendizagem docente frente a situações de práticas colaborativas com
intencionalidade de mudança, tanto pelos sujeitos individualmente quanto pelo grupo
institucional de referência.
A análise dos Macro-contornos Experienciais de Formação, em específico, dos
Contornos Experienciais da Formação Inicial definidos pela instância formativa das
atividades extracurriculares, possibilitaram ainda a caracterização dos fluxos de formação de
grupos e a construção do Modelo de Desenvolvimento Profissional Docente em uma
Perspectiva Catastrófica, que se evidencia por um processo de apropriação pelos professores
em formação inicial de um conjunto complexo de praxeologias institucionais, possibilitado por
uma conversão catastrófica, que constitui o ápice de um processo de socialização mediante
apropriação de determinado saber, de modo que seja possível distinguir, na trajetória do
contínuo experiencial do sujeito, um momento bem definido em que ocorre um insight, um dar-
~ 259 ~
se conta das contingências ecológicas em que se torna possível a experiência de reflexão da, na,
sobre a docência. Esta conversão ocorre mediante uma mudança de relação entre o sujeito e
determinado objeto, ao tornar-se sensível a algum aspecto pregnante nas experiências passadas
que, por cumulação ou reorganização, promovem evocações de sentidos pelo sujeito que as
expressa na forma da conversão, isto é, expressa uma aprendizagem.
As evidências empíricas em diálogo com a literatura, portanto, deram mostras de que
ascende-se à transformação das práxis pela conversão docente, que ocorre ao longo de um
processo contínuo de socialização (DUBAR, 1997) e de identificação com a carreira docente,
isso me levou a concluir que, o Desenvolvimento Profissional Docente em uma Perspectiva
Catastrófica (DPDPC) se expressa por um processo contínuo de experiências significativas
sobre a docência em que, invariavelmente, ocorrem mudanças de forma, momentos de
conversão catastrófica, estabelecimento de novas relações com o saber, expressas pelo
professor (em formação inicial), no sentido de uma progressiva socialização e sujeitamento
aos modos de ser e fazer próprios de uma comunidade docente.
Finalizo esta composição com a explicação de que é possível acessar a totalidade técnica
deste trabalho por meio da simples soma das partes que o compõem, todavia, estou convicto
que somente com um olhar ampliado sobre a reunião das composições, se poderá acessar e
verdadeira dimensão e sentido das premissas que anuncio neste relatório de pesquisa.
Encerrarei, no entanto, com certo sentimento de “não conclusão”, visto existirem aqui - ora
definidas, ora subentendidas -, inúmeras interrogações que caracterizam o conjunto deste
trabalho como um verdadeiro programa de pesquisa, que traz elementos para inúmeras outras
pesquisas, para as quais emergem inúmeras outras questões. Por exemplo, assumi em todo o
percurso de pesquisa/formação um currículo prescrito, em que poucas vezes tencionamos o
saber escolar sistematizado à procura de outros modelos epistemológicos de referência. Nestes
termos, o que ocorreria se o fizéssemos? Que tipologias de aprendizagem emergiriam desse
processo? E que processo seria este?
Ou se, ao invés disso, propusesse investigar os processos de aprendizagem dos
professores supervisores em vez dos professores em formação inicial? E, como a formação
descrita neste trabalho tem impactado na atuação docente efetiva daqueles que participaram
desse processo de formação? Ou ainda, qual o impacto de nosso trabalho na aprendizagem
matemática dos alunos das escolas parceiras?
~ 260 ~
Como é possível evidenciar, não é difícil verificar as potencialidades que este trabalho
apresenta a outras investigações, outras ações de formação e, sobretudo, à transformação social,
em específico ao ensino da matemática nas escolas públicas e à formação docente na
licenciatura em matemática. Fica aqui minha singela contribuição para o alargamento da área,
com o estabelecimento de algumas respostas e o encaminhamento de outras novas questões, as
quais me comprometo em futuro próximo me debruçar, não só, mas acompanhado dos
participantes de minha comunidade de práticas colaborativas, a quem devo e agradeço a
possibilidade das reflexões que foram reificadas por mim ao longo desta tese.
Enfim, se me perguntassem, o que deste processo de estudo e pesquisa sobre as práticas
de ensino e formação de professores de matemática em formação inicial, desenvolvidas em
ambientes de interface entre a Universidade e a Escola Pública, em contextos de experiências
colaborativas na Amazônia Paraense, contribuiu para minha constituição como pesquisador e
docente ... eu diria que me ajudaram a ser gente e agente profissional. Talvez não haja maior
contribuição do que esta, pois sendo gente me dou conta de minhas limitações e de que nada
faço no mundo sozinho. Enquanto agente profissional me constituo sujeito de possibilidades,
abraçando oportunidades, vencendo obstáculos, segurando firme a mão de quem a me estende,
em um processo de busca permanente de ser sujeito da história. Ser gente me faz pensar que,
assim como me foram dadas oportunidades, que me possibilitaram conquistar certos espaços
institucionais, é meu dever moral e social criar, como agente, condições para que dentro de suas
possibilidades intelectuais e desejo de mudança, outros indivíduos possam constituir-se neste
mundo de normas, crenças e valores institucionais. Mais do que uma possibilidade, é um direito
querer ser gente, e um dever de ser agente que proporciona recursos e orienta o outro,
independentemente de sua origem, credo, cor, condição social ou orientação sexual. Ser gente
é direito de todos! Ser agente social e formador de pessoas, mais que uma opção profissional,
é um compromisso político de quem assume a educação como profissão.
~ 261 ~
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