apostilla uff história da medicina - parte 4
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O Nascimento da Medicina Moderna
As concepções de doença variaram muito ao longo da História. Basta compararmos, por
exemplo, essas concepções na medicina hipocrática - um desequilíbrio entre os humores – e no
período anterior a Hipócrates: um produto de forças externas ao homem ou um castigo dos deuses.
Para nossa compreensão atual, o corpo humano constitui o local de origem e desenvolvimento
das doenças, o espaço cujas mínimas características a anatomia vê em detalhe. Esta é,
entretanto, apenas uma das maneiras da medicina situar as doenças, nem a primeira, nem a única. A
coincidência do “corpo da doença” com o corpo humano é relativamente recente, e evidente apenas
para o homem moderno. Os espaços de existência da doença e o de sua localização no corpo só
coincidiram, na experiência médica, na medicina do século XIX com os privilégios concedidos à
anatomia patológica.
I - A “Medicina Classificatória, ou das Espécies”
Thomas Sydenham (1624-1689) foi a
figura dominante na medicina clínica do
século XVII, na Inglaterra, e o iniciador do
pensamento classificatório. Graças à
observação de que, por exemplo, no sarampo,
na sífilis e na gota, o quadro clínico se repetia,
em diferentes pacientes, em diferentes
lugares, ele propôs a existência de doenças
distintas e específicas. Sugeriu também que
algumas dessas enfermidades se deviam a
agentes específicos, em luta, contra os
poderes curativos, naturais, do corpo.
Nessa época, as doenças eram
classificadas segundo um modelo botânico,
que não levava em consideração relações de
causa e efeito, ou a ordem dos eventos no
tempo, ou mesmo sua localização no corpo do
doente. Para classificar as várias “espécies”
de doença, o critério de análise era a forma, a
aparência. Ao médico cabia identificar a
“espécie” e, para fazê-lo, era preciso saber
separar os sintomas próprios da doença
daqueles acrescentados pelas características
individuais do paciente. Ou seja, para
conhecer a doença, o médico precisava
“esquecer” o doente. Assim, nesta “medicina
classificatória” ou “medicina das espécies”,
ou ainda, “medicina das crises”, o médico é
um decifrador de doenças, e o doente apenas
um exemplo, um lugar de manifestação das
enfermidades.
Para a medicina do século seguinte (o
século XVIII), a doença era uma luta entre a
natureza sadia do indivíduo e o mal que o
atacava, a contra-natureza. Cabiam ao médico
o diagnóstico e o prognóstico, pois a
intervenção terapêutica era mínima. A doença
aparecia “através” do corpo, no qual o olhar
médico não tem razões para demorar-se. Para
a medicina classificatória, a doença atingir um
órgão não a definia, pois a doença podia ir de
um ponto de localização a outro, ganhar
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outras superfícies corporais, mas permanecer
idêntica em sua natureza. O espaço do corpo e
o espaço da doença têm liberdade de se
deslocar um em relação ao outro. Quem
deseja conhecer a doença deve subtrair o
indivíduo.
Assim, a comunicação do “corpo
essencial” da doença com o “corpo real” do
doente não se dá, portanto, através dos pontos
de localização, nem dos efeitos da duração. É
a qualidade: o cérebro dos loucos é leve, seco
e friável, pois a loucura é uma doença viva,
quente, explosiva; o dos tuberculosos, será
esgotado e lânguido, na medida em que a
tuberculose se alinha na classe geral das
hemorragias. O conjunto qualitativo a
distinguir a doença deposita-se em um órgão,
que serve, então, de suporte aos sintomas. A
doença e o corpo só se comunicam através da
“qualidade”.
Quais são os princípios desta
configuração primária da doença? Segundo os
médicos do século XVIII, ela se dá em uma
experiência “histórica”, por oposição ao saber
“filosófico”.
Por exemplo, é histórico o conhecimento
que define a pneumonia por seus quatro
fenômenos: febre, dificuldade de respirar,
tosse e dor lateral. Será filosófico o
conhecimento que põe em questão a origem, o
princípio e as causas: resfriamento, derrame
seroso, inflamação da pleura. O histórico
reúne tudo o que, de fato ou de direito, cedo
ou tarde, direta ou indiretamente, apresenta-se
ao olhar. Uma causa que se vê, um sintoma
que, pouco a pouco, se descobre não são da
ordem do saber “filosófico”, mas de um saber
“muito simples”, que “deve preceder todos os
outros”, e se situa no cotidiano da experiência
médica.
Nestas condições, compreende-se que a
medicina se afaste de uma forma de
conhecimento “matemático”. Nenhuma
medida do corpo humano pode, em suas
particularidades físicas ou matemáticas, dar
conta de um fenômeno patológico.
II - Mecanicismo e Vitalismo
Duas correntes doutrinárias ligadas ao
Iluminismo marcaram a Medicina do século
XVIII, o mecanicismo e o vitalismo, ambas
com orientações hipocráticas. Estas duas
correntes vão persistir e, às vezes coexistir e
disputar a explicação dos diferentes
fenômenos. Na Universidade de Halle,
fundada em 1693, dois médicos naturistas
dividem o ensino e as duas visões de mundo:
Stahl (1660-1734), vitalista e Hoffmann
(1660-1742), mecanicista. Ambos tornaram-
se célebres e patronos de suas respectivas
concepções no campo da terapêutica.
Para Stahl, uma alma conservadora é
responsável pela integridade do organismo,
que não pode, em absoluto, ser considerado
como uma soma de peças que se ajustam. Um
ser vivo é sempre considerado um todo
indivisível. As leis da mecânica nada
explicam dos movimentos do organismo, que
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se dão através de um agente vital, a alma
racional, que não é uma força material, mas a
própria natureza. O elemento mais
característico do vitalismo é a noção de que o
dinamismo vital, as transformações e os
movimentos corporais, têm uma origem
diferente daquela das leis que regem o
movimento dos corpos inanimados. Para se
conhecer e compreender o organismo, é
necessário escutar a natureza. E a doença é
um distúrbio dos movimentos vitais, mais do
que uma agressão externa que ataca o
organismo. Estes movimentos vitais voltam-
se, espontaneamente, para a cura. Stahl é
místico, seu vitalismo é animista: a alma e o
princípio vital não prescindem da idéia de
Deus. Mais tarde surgirão propostas vitalistas
não-animistas, isto é, que atribuem
singularidade ao fenômeno vital, mas não
recorrem a explicações de cunho religioso.
Friedrich Hoffmann (1660-1742) é
mecanicista e se diz também hipocrático. Sua
confiança na natureza também provém da
sabedoria divina, que engendrou esta máquina
tão bem regulada, o corpo vivo. O organismo
é regido pelo movimento dos humores,
nascido da contração e dilatação mecânica dos
órgãos. O corpo é uma máquina hidráulica. A
força curativa da Natureza consiste, assim, em
uma operação mecânica, o espasmo que
contrai os órgãos e redistribui os humores
desequilibrados.
Entretanto, tanto Stahl quanto Hoffmann
preconizam que o melhor meio de se obter a
saúde é o cuidado de si, a observação do que é
bom ou nocivo para o próprio organismo, é
recorrer, o mínimo, a um médico. Cada um
deve conhecer sua própria natureza e, assim,
ser o médico de si mesmo.
III - A Medicina dos Sintomas
No início do século XIX, o olhar do
médico se afasta do “modelo botânico” e se
aproxima do “modelo químico”. A doença
passa a ser uma combinação de elementos
mais simples, os sintomas. Os médicos devem
aprender a reconhecer os sintomas mais
importantes de cada doença, que ganham um
valor de sinal. A “medicina dos sintomas”
mantém a mesma atitude da “medicina das
espécies”: ver, identificar e isolar traços
idênticos e classificá-los. Mas o olhar se
organiza de uma nova maneira. Agora, há
uma identificação entre a essência da doença
e o conjunto de sintomas através dos quais ela
se manifesta. O sintoma não é mais um
indicador de doença, é, junto com os demais
sintomas, a doença. A medicina clássica é,
portanto, uma medicina classificatória, que se
elabora segundo o modelo da história natural.
Os sintomas são o ser da doença, definir uma
doença é enumerar seus sintomas.
Principais características:
1 - Não existe essência patológica além
dos sintomas: A coleção de sintomas forma o
que se chama doença. Os sintomas nada mais
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são do que uma verdade inteiramente exposta
ao olhar;
2 - A intervenção de um “saber” (do
médico) transforma o sintoma (do paciente)
em sinal. O sintoma se torna sinal sob um
olhar (do médico) que sabe distinguir
diferenças. A análise e o olhar clínico
compõem e decompõem, para revelar uma
ordenação, que é a própria ordem natural.
Para o bom médico, todos os sintomas podem
transformar-se em sinais.
O olhar clínico incorpora também o
modelo matemático; à medicina importa,
agora, o saber probabilístico. Cada fato
isolado é confrontado a um conjunto, toma
lugar em uma série de acontecimentos, ajuda
a estabelecer graus de certeza. O olhar clínico
não é o de um olho intelectual, é um olhar da
sensibilidade concreta, que vai de corpo em
corpo. Para a clínica, toda verdade é verdade
sensível. O “golpe de vista” do médico, o
“olho clínico”, que muitas vezes vence a mais
vasta erudição e a mais sólida instrução, é o
resultado de freqüente, metódico, e justo
exercício dos sentidos. Nesta nova imagem
que dá de si mesma, a experiência clínica se
prepara para explorar um novo espaço: o
espaço palpável do corpo.
Esta medicina “clínica”, aprendida pela
observação do doente à beira do leito, pela
repetição dos fenômenos nas epidemias,
concretizada em um “conjunto de sintomas” e
em uma “estatística de casos”, aliar-se-á,
durante o século XIX, à anatomia. Então,
pouco a pouco, entrará em regressão, para
desaparecer diante da medicina dos órgãos, da
sede e das causas, diante de uma clínica
inteiramente ordenada pela anatomia
patológica, diante da base da medicina
contemporânea.
IV - A Medicina anátomoclínica
Até o século XVIII, era apenas através
dos sintomas visíveis que se podia identificar
o “invisível-Ser-da-doença”. No século XIX,
este processo inverteu-se. Partindo-se dos
cadáveres para conhecer os vivos, descobriu-
se que o invisível durante a vida pode ser
visível após a morte. A doença assumiu,
então, o caráter de um conjunto de fenômenos
reais, a ocorrerem no próprio corpo, a torná-lo
doente.
No século XVII, o médico suíço
Théophile Bonet (1620-1689) reuniu um
material muito vasto, próprio e alheio, que
publicou nos três volumes do livro
“Sepulchretum” (1679), em que mostrou a
utilidade de cadáveres para a prática clínica.
Quase cem anos depois, Giovanni Battista
Morgagni (1682-1771), ao publicar “De
sedibus et causis morborum per anatomen
indagatis” (Veneza, 1761), firmou
definitivamente a anatomia patológica como
disciplina médica indispensável para a
compreensão da doença.
Morgagni morreu aos 89 anos de idade,
tendo sido professor de anatomia em Pádua,
Itália, durante 56 anos. Durante todo esse
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tempo, trabalhou diariamente, dissecou, fez
experimentos, viu pacientes, leu e escreveu.
Morgagni inaugurou o “conceito anatômico”
de prática médica, e é, hoje, considerado o
“Pai da Patologia”. Quando a maioria dos
médicos insistia em perguntar “o que é a
doença?”, Morgagni se preocupava em saber
“onde está a doença?” (“Ubi est morbus?”).
Ou seja, Morgagni investigou as enfermidades
como um anatomista e, assim, não considerou
a natureza da doença como seu principal
problema. Não casualmente, o título de sua
grande obra se inicia com “A sede das
doenças …”.
A principal obra de Morgagni foi a
demonstração de que as diferentes
enfermidades se localizam em órgãos
distintos, e que assim se explica a grande
variedade de sintomas clínicos. Enquanto o
sinal clínico remetia à própria doença, o sinal
anátomoclínico remete à lesão. O olhar
médico vai, desde então, apoiar-se nessa nova
experiência, não mais a de um “olho vivo”,
mas a de um olho que viu a morte.
O próximo grande passo neste campo,
deu-o Bichat. Marie François Xavier Bichat
(1771-1802) morreu aos 31 anos de idade,
depois de trabalhar apenas quatro anos. Sua
descoberta principal foi o princípio de
decifração do espaço corporal. Em sua obra
“Anatomie Générale”, Bichat afirmou:
“Durante 20 anos, noite e dia se tomarão
notas, ao leito dos doentes, sobre as afecções
do coração, dos pulmões e da víscera gástrica
e o resultado será apenas confusão nos
sintomas, que, a nada se vinculando,
oferecerão uma série de fenômenos
incoerentes”. Em vista disso, recomenda:
“Abram alguns cadáveres: logo verão
desaparecer a obscuridade que apenas a
observação não pudera dissipar”.
Em sua “Teoria dos Tecidos”, Bichat
considerava que o organismo era constituído
por órgãos, e estes por tecidos, a se
associarem entre si da mesma forma que os
elementos químicos (oxigênio, carbono,
nitrogênio, etc.) se combinam para formar
compostos químicos. As propriedades vitais
adotam um caráter diferente em cada tecido
que, por isso, são afetados de forma diferente.
De início, a anatomia patológica tomou
aspecto de um fundamento, enfim objetivo,
real e indubitável de descrição das doenças.
Mas, Bichat fez muito mais do que dar um
campo de aplicação objetivo aos métodos de
análise, pois transformou a anatomia
patológica em um momento essencial do
processo do adoecimento. Ele encontrou a
doença no próprio corpo; descobriu, na
profundidade do corpo, a ordem da superfície,
isto é, dos sinais e sintomas.
Mas como é possível ajustar a percepção
anatômica à leitura dos sintomas? Como
poderia um conjunto simultâneo de
fenômenos espaciais fundar a coerência de
uma série temporal que lhe é, por definição,
inteiramente anterior? Uma clínica dos
sintomas procura o corpo vivo da doença; a
anatomia só oferece o cadáver. Cadáver
duplamente enganador, pois aos fenômenos
que a morte interrompe acrescentam-se os que
ela provoca e deposita nos órgãos em um
tempo que lhe é próprio. Bichat resolveu esta
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questão ao formular o seguinte princípio: “Só
existe fato patológico comparado”.
A possibilidade de abrir imediatamente
os corpos, de diminuir o mais possível o
tempo entre o falecimento e a autópsia,
permitiu fazer coincidir, ou quase, o último
momento do tempo patológico e o primeiro
do tempo cadavérico. Assim, os efeitos da
decomposição orgânica serão, pouco a pouco,
suprimidos, ao menos em sua forma mais
exagerada. Além disso, era preciso estar
habituado à dissecção dos corpos sadios, para
saber decifrar uma doença em um cadáver e,
também, comparar os indivíduos que
morreram da mesma doença; confrontar enfim
o que se vê do órgão alterado com o que se
sabe de seu funcionamento normal.
Rudolf Ludwig Carl Virchow (1821-
1902) nasceu na Pomerania, um pequeno
povoado no noroeste da Alemanha.
Simultaneamente a seu trabalho clínico,
Virchow iniciou estudos de química e
histologia. Em 1849, aos 28 anos de idade,
assumiu a primeira cátedra alemã de anatomia
patológica. Neste cargo permaneceu por sete
anos, a trabalhar nas investigações cuja
culminância foi o desenvolvimento do
conceito de patologia celular. Entretanto, seus
interesses não se limitavam a este campo, pois
ele empenhou-se em estudos de
epidemiologia e de saúde pública. Virchow
reunia estes universos aparentemente distantes
para dar sua explicação sobre o processo do
adoecimento. Dizia ele: “O que é a doença? A
vida em condições anormais. E onde está a
doença? Nas células, porque é onde a vida
está”.
É preciso, portanto, que o olhar
médico percorra um caminho que, até então,
não lhe havia sido aberto, siga uma via
vertical, que vai da superfície sintomática à
superfície tissular, uma via que, desde o
manifesto, caminha em direção ao oculto. A
doença não é mais um feixe de características
espalhadas pela superfície do corpo e ligadas
entre si por coincidências ou sucessões
observáveis, é um conjunto de formas e
deformações, figuras, acidentes, elementos
destruídos ou modificados que se encadeiam
uns com os outros, segundo uma geografia
que se pode seguir passo a passo. Não é mais
uma espécie patológica a ser inserida no
corpo, onde é possível; é o próprio corpo a
adoecer. A noção de “sede” substitui,
definitivamente, a de “classe”.
Com relação à prática médica, era
normal que a medicina clássica, ao final do
século XVIII, deixasse na sombra as técnicas
de exame físico (palpação/percussão) que,
“artificialmente”, faziam aparecer um sinal
onde não havia sintoma. Mas, a partir do
momento em que a anatomia patológica
recomenda à clínica interrogar o corpo em sua
espessura orgânica, e fazer aflorar à superfície
o que só se dava em camadas profundas, a
idéia de um artifício técnico capaz de
surpreender a lesão ganha fundamento
científico. Assim, o olhar médico envolve
mais do que diz a palavra “olhar”. Encerra,
em uma estrutura única, diferentes sentidos. A
trindade visão-tato-audição define uma
possibilidade perceptiva em que a lesão é
trazida à superfície e revelada. Em resumo, a
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medicina dos órgãos sofredores comporta três
momentos:
1º) Determinar qual órgão sofre;
2º) Explicar como um órgão se tornou
sofredor;
3º) Indicar o que é preciso fazer para
que deixe de sofrer.
É curioso contrastar a contribuição de
Morgagni, que morreu aos 89 anos de idade,
depois de trabalhar 56 anos, e deixou a
patologia firmemente estabelecida sobre a
base da correlação dos sintomas clínicos com
alterações nos órgãos, com a obra de Bichat,
que faleceu aos 31 anos de idade e, em apenas
quatro anos de trabalho, conseguiu fazer a
patologia caminhar dos órgãos para os
tecidos.
Assim, a medicina deixa de ser um
“saber histórico” - a enumeração dos sintomas
no tempo – e passa a ser um “saber
geográfico”, a se preocupar com a sede e os
deslocamentos dos sintomas. Os sinais, agora,
não identificam mais a essência da doença,
mas o lugar da mesma. O problema é tornar
visível, ainda em vida, o que se esconde na
profundidade do corpo. Para isso, o olhar
clínico vai associar à visão outros sentidos,
como o tato e a audição. Se, na “medicina das
espécies”, as características individuais de
cada paciente deviam ser afastadas, para não
disfarçar ou distorcer a essência da doença, na
medicina anátomoclínica essas variações são
parte integrante da doença em cada corpo.
V - A Fisiologia se incorpora à Anatomoclínica
Entretanto, se a doença é a lesão de
algum elemento da anatomia, o que dizer das
doenças sem qualquer achado
anatomopatológico? Os médicos da época
tentaram várias formas de contornar este
obstáculo, desde a simples negação, até as
classificações complexas e contraditórias, n a
tentativa de justificar o que era injustificável,
à luz das concepções utilizadas.
Foi François Joseph Victor Broussais
(1772-1838) que, em 1816, ao reunir as
conclusões de experiências e trabalhos de
vários médicos, estabeleceu um esquema
causal em que todas as doenças se incluíam.
Para Broussais, a doença seria uma reação dos
tecidos a uma “causa irritante” e a chamada
sede da doença, nada mais do que o ponto do
organismo em que esta “causa” se fixou,
ponto determinado tanto pela irritabilidade do
tecido quanto pela força irritativa do agente.
Assim, se apagará a distinção entre distúrbio
funcional e doença orgânica, cuja diferença
passa a ser apenas o grau de visibilidade aos
nossos olhos. A sede não é mais a doença em
si, mas o ponto inicial da perturbação
fisiológica. Assim, Broussais abriu caminho
para a incorporação da fisiologia à medicina
anátomoclínica. Com suas concepções neo-
hipocráticas, Broussais via no equilíbrio entre
o organismo e o seu meio ambiente o segredo
da saúde. A origem de todas as doenças
residia no excesso, ou na deficiência, de
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excitação dos diversos tecidos, acima ou
abaixo do grau considerado normal. A maior
dificuldade de aceitação da chamada
“medicina fisiológica”, de Broussais, é que
sua fisiologia era exclusivamente
especulativa, sem dados concretos que a
comprovassem.
Esta dificuldade permaneceu,
relativamente intacta, até o aparecimento de
Claude Bernard (1813-1878). Claude Bernard
iniciou seus estudos com os jesuítas, dos quais
recebeu educação de caráter mais humanista
do que científico. Atraído pela carreira teatral,
escreveu uma comédia, que obteve algum
sucesso, e um drama em cinco atos, que
submeteu à apreciação de famoso crítico de
sua época, que o estimulou a continuar os
estudos de medicina.
Em Paris, sob a orientação de François
Magendie, ele aprendeu a técnica de
vivissecção. Com base nesta, Bernard criou
novos métodos de experimentação e se tornou
célebre graças ao extraordinário rigor de suas
investigações. Em 1854, ganhou o posto de
primeiro professor de Fisiologia Experimental
da Sorbonne. Entre suas descobertas mais
importantes encontram-se:
- (1845): o controle da corrente
sangüínea pelo sistema nervoso. Ao seccionar
o nervo simpático cervical de um coelho,
Claude Bernard verificou que o lado
correspondente da cabeça do animal tornara-
se mais quente, devido ao relaxamento da
constrição dos capilares sangüíneos;
- a do transporte do oxigênio pelos
glóbulos vermelhos;
- a da participação do suco pancreático
no processo da digestão de gorduras.
Deduziu-o pela observação da ação desse
suco sobre a gordura, em um tubo de ensaio e
ao aparecimento de um líquido branco no
intestino de cobaias, mas abaixo do ponto em
que o ducto pancreático desemboca no
duodeno;
- (1857): a do armazenamento da glicose
pelo fígado, sob a forma de glicogênio;
Claude Bernard, assim, deu início ao
conhecimento do metabolismo dos
carbohidratos, que teve conseqüências
práticas, por exemplo, no tratamento do
diabetes. Primeiro demonstrou que se um cão
era alimentado com uma dieta contendo
açúcar, aparecia glicose na veia porta e nas
veias hepáticas. Porém, quando o animal
recebia uma dieta à base de proteínas, não
havia glicose na veia porta, mas mantinha-se
alta concentração da mesma nas veias
hepáticas.
Claude Bernard desenvolveu um modo
de encarar o fenômeno da doença que se
baseava na identidade entre os estados normal
e patológico: a concepção de que a diferença
entre eles é apenas quantitativa. Assim, se as
doenças são explicadas por variações
quantitativas, qualquer concepção de
patologia deve basear-se em um
conhecimento prévio do estado normal. Os
fenômenos da doença coincidem,
essencialmente, com os fenômenos da saúde,
e só diferem dos mesmos pela intensidade.
É Claude Bernard quem afirma: “Toda
doença tem uma função normal
correspondente, da qual é, apenas, uma
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expressão perturbada, exagerada, diminuída
ou anulada. Se não podemos, hoje em dia,
explicar todos os fenômenos das doenças, é
porque a fisiologia ainda não está bastante
adiantada e porque ainda há uma quantidade
de funções normais que desconhecemos”.
“A saúde e a doença não são dois modos
que diferem essencialmente, como talvez
tenham pensado os antigos médicos e como
ainda pensam alguns. É preciso não fazer da
saúde e da doença princípios distintos … Na
realidade, entre essas duas maneiras de ser há
apenas diferenças de grau: a exageração, a
desproporção, a desarmonia dos fenômenos
normais constituem o estado doentio”.
No século XIX, Claude Bernard
procurou construir uma ciência fisiológica,
base de uma patologia científica que desse
sustentação à terapêutica racional. Claude
Bernard formulou, no campo médico, a
exigência profunda de uma época que
acreditava na onipotência de uma técnica
científica. Ele trouxe, para sustentar seu
princípio geral de patologia, argumentos
controláveis, protocolos de experiências e,
sobretudo, métodos de quantificação dos
conceitos fisiológicos. Entretanto, rechaçava
uma interpretação mecânica e simplista dos
processos vitais. Por isso, introduziu o
conceito de “meio interno”, para dar conta da
constância da química interna do corpo e da
regulação coordenada de suas várias partes,
mecanismos essenciais à saúde.
VI – Conclusão
A racionalidade científica moderna
nasceu e se consolidou em um longo
processo, desde o Renascimento até o século
XIX. E, durante três séculos enfrentou pelo
menos duas outras “razões”: a moralidade
racional, de origem religiosa, e a
racionalidade mística das “ciências
alquímicas”: astrologia, alquimia e magia. A
hegemonia do saber anatomofisiopatológico,
no campo da medicina, deve ser
compreendida dentro do quadro mais amplo
da constituição da racionalidade científica
moderna.
Esse saber constituiu-se sobre os
seguintes elementos:
- Antropocentrismo: separam-se as
concepções de Deus, Homem e Natureza. O
Homem passa a ter uma existência objetiva,
independente da natureza. A Natureza é
desdivinizada, separada do sagrado e do
humano, passa a ser objeto de conhecimento,
sobretudo com o intuito de ser “controlada”;
- Experimentalismo: o método para
produção de novos saberes é exploratório,
interventor. A racionalidade científica não é
um conjunto de verdades, mas um método de
produção de verdades. Esta racionalidade está
permeada de rupturas dualistas: matéria-
espírito, qualidade-quantidade, natureza-
homem, objeto-sujeito, instinto-razão.
Assim, um saber médico objetivo, sobre
doenças localizadas no corpo orgânico, e
comprovável experimental e
quantitativamente, está perfeitamente
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integrado ao conjunto do saber científico
moderno.
A anátomoclínica não é simplesmente a
articulação entre duas formas analíticas: de
um lado, o olhar clínico, que busca entender o
significado dos sintomas; do outro, o olhar
anatômico, que busca ler as alterações dos
tecidos. Com a síntese proporcionada pela
abertura do cadáver, o olhar médico se
deslocou de um espaço ideal, pré-clínico, para
o espaço real, corporal. Ao estabelecer um
caminho entre as dimensões heterogêneas dos
sintomas e dos tecidos criou-se um novo
espaço: o corpo doente. A doença se localiza
no corpo; a lesão de um órgão explica os
sintomas. Para diagnosticar a doença, o olhar
médico deve penetrar verticalmente no corpo:
desde a superfície sintomática até a superfície
tissular. A fundação da clínica moderna deve-
se à transformação da relação entre o "visível"
e o "invisível". A clínica moderna torna
visível o que era invisível à medicina clássica.
Durante 150 anos, repetiu-se a
mesma explicação: a medicina só chegou ao
que a fundava, cientificamente, ao contornar,
com lentidão e prudência, os obstáculos e
preconceitos que impediam a abertura de
cadáveres. Esta explicação é historicamente
falsa. Morgagni, em meados do século XVIII,
não teve dificuldades em fazer autópsias.
Desde 1754, a clínica de Viena tinha uma sala
de dissecção, assim como a de Pádua,
organizada por Tissot. Portanto, não havia
nenhuma escassez de cadáveres no século
XVIII, nem sepulturas violadas ou missas
negras anatômicas. Essa ilusão tem um
sentido preciso na história da medicina, pois
funcionou como justificativa retrospectiva.
Bichat e seus contemporâneos, quarenta
anos depois de Morgagni, têm a sensação de
“redescobrir” a anatomia patológica. Quarenta
anos, o tempo de latência em que se formou o
método clínico. Aí está a correta explicação: a
clínica, preocupada em estabelecer parentesco
entre os sintomas e compreender sua
linguagem, era, por princípio, estranha à
investigação dos corpos. As causas e as sedes
a deixavam indiferente, a clínica era história e
não geografia.
Anatomia e clínica não têm o mesmo
espírito, por mais estranho que hoje possa
parecer, agora que a coerência anátomoclínica
está estabelecida e enraizada no tempo. E,
durante quarenta anos, o pensamento clínico
impediu a medicina de ouvir a lição de
Morgagni.
Referências Bibliográficas
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