apostilla uff história da medicina - parte 4

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29 O Nascimento da Medicina Moderna As concepções de doença variaram muito ao longo da História. Basta compararmos, por exemplo, essas concepções na medicina hipocrática - um desequilíbrio entre os humores – e no período anterior a Hipócrates: um produto de forças externas ao homem ou um castigo dos deuses. Para nossa compreensão atual, o corpo humano constitui o local de origem e desenvolvimento das doenças, o espaço cujas mínimas características a anatomia em detalhe. Esta é, entretanto, apenas uma das maneiras da medicina situar as doenças, nem a primeira, nem a única. A coincidência do “corpo da doença” com o corpo humano é relativamente recente, e evidente apenas para o homem moderno. Os espaços de existência da doença e o de sua localização no corpo só coincidiram, na experiência médica, na medicina do século XIX com os privilégios concedidos à anatomia patológica. I - A “Medicina Classificatória, ou das Espécies” Thomas Sydenham (1624-1689) foi a figura dominante na medicina clínica do século XVII, na Inglaterra, e o iniciador do pensamento classificatório. Graças à observação de que, por exemplo, no sarampo, na sífilis e na gota, o quadro clínico se repetia, em diferentes pacientes, em diferentes lugares, ele propôs a existência de doenças distintas e específicas. Sugeriu também que algumas dessas enfermidades se deviam a agentes específicos, em luta, contra os poderes curativos, naturais, do corpo. Nessa época, as doenças eram classificadas segundo um modelo botânico, que não levava em consideração relações de causa e efeito, ou a ordem dos eventos no tempo, ou mesmo sua localização no corpo do doente. Para classificar as várias “espécies” de doença, o critério de análise era a forma, a aparência. Ao médico cabia identificar a “espécie” e, para fazê-lo, era preciso saber separar os sintomas próprios da doença daqueles acrescentados pelas características individuais do paciente. Ou seja, para conhecer a doença, o médico precisava “esquecer” o doente. Assim, nesta “medicina classificatória” ou “medicina das espécies”, ou ainda, “medicina das crises”, o médico é um decifrador de doenças, e o doente apenas um exemplo, um lugar de manifestação das enfermidades. Para a medicina do século seguinte (o século XVIII), a doença era uma luta entre a natureza sadia do indivíduo e o mal que o atacava, a contra-natureza. Cabiam ao médico o diagnóstico e o prognóstico, pois a intervenção terapêutica era mínima. A doença aparecia “através” do corpo, no qual o olhar médico não tem razões para demorar-se. Para a medicina classificatória, a doença atingir um órgão não a definia, pois a doença podia ir de um ponto de localização a outro, ganhar

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Page 1: Apostilla UFF História da Medicina - Parte 4

29

O Nascimento da Medicina Moderna

As concepções de doença variaram muito ao longo da História. Basta compararmos, por

exemplo, essas concepções na medicina hipocrática - um desequilíbrio entre os humores – e no

período anterior a Hipócrates: um produto de forças externas ao homem ou um castigo dos deuses.

Para nossa compreensão atual, o corpo humano constitui o local de origem e desenvolvimento

das doenças, o espaço cujas mínimas características a anatomia vê em detalhe. Esta é,

entretanto, apenas uma das maneiras da medicina situar as doenças, nem a primeira, nem a única. A

coincidência do “corpo da doença” com o corpo humano é relativamente recente, e evidente apenas

para o homem moderno. Os espaços de existência da doença e o de sua localização no corpo só

coincidiram, na experiência médica, na medicina do século XIX com os privilégios concedidos à

anatomia patológica.

I - A “Medicina Classificatória, ou das Espécies”

Thomas Sydenham (1624-1689) foi a

figura dominante na medicina clínica do

século XVII, na Inglaterra, e o iniciador do

pensamento classificatório. Graças à

observação de que, por exemplo, no sarampo,

na sífilis e na gota, o quadro clínico se repetia,

em diferentes pacientes, em diferentes

lugares, ele propôs a existência de doenças

distintas e específicas. Sugeriu também que

algumas dessas enfermidades se deviam a

agentes específicos, em luta, contra os

poderes curativos, naturais, do corpo.

Nessa época, as doenças eram

classificadas segundo um modelo botânico,

que não levava em consideração relações de

causa e efeito, ou a ordem dos eventos no

tempo, ou mesmo sua localização no corpo do

doente. Para classificar as várias “espécies”

de doença, o critério de análise era a forma, a

aparência. Ao médico cabia identificar a

“espécie” e, para fazê-lo, era preciso saber

separar os sintomas próprios da doença

daqueles acrescentados pelas características

individuais do paciente. Ou seja, para

conhecer a doença, o médico precisava

“esquecer” o doente. Assim, nesta “medicina

classificatória” ou “medicina das espécies”,

ou ainda, “medicina das crises”, o médico é

um decifrador de doenças, e o doente apenas

um exemplo, um lugar de manifestação das

enfermidades.

Para a medicina do século seguinte (o

século XVIII), a doença era uma luta entre a

natureza sadia do indivíduo e o mal que o

atacava, a contra-natureza. Cabiam ao médico

o diagnóstico e o prognóstico, pois a

intervenção terapêutica era mínima. A doença

aparecia “através” do corpo, no qual o olhar

médico não tem razões para demorar-se. Para

a medicina classificatória, a doença atingir um

órgão não a definia, pois a doença podia ir de

um ponto de localização a outro, ganhar

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outras superfícies corporais, mas permanecer

idêntica em sua natureza. O espaço do corpo e

o espaço da doença têm liberdade de se

deslocar um em relação ao outro. Quem

deseja conhecer a doença deve subtrair o

indivíduo.

Assim, a comunicação do “corpo

essencial” da doença com o “corpo real” do

doente não se dá, portanto, através dos pontos

de localização, nem dos efeitos da duração. É

a qualidade: o cérebro dos loucos é leve, seco

e friável, pois a loucura é uma doença viva,

quente, explosiva; o dos tuberculosos, será

esgotado e lânguido, na medida em que a

tuberculose se alinha na classe geral das

hemorragias. O conjunto qualitativo a

distinguir a doença deposita-se em um órgão,

que serve, então, de suporte aos sintomas. A

doença e o corpo só se comunicam através da

“qualidade”.

Quais são os princípios desta

configuração primária da doença? Segundo os

médicos do século XVIII, ela se dá em uma

experiência “histórica”, por oposição ao saber

“filosófico”.

Por exemplo, é histórico o conhecimento

que define a pneumonia por seus quatro

fenômenos: febre, dificuldade de respirar,

tosse e dor lateral. Será filosófico o

conhecimento que põe em questão a origem, o

princípio e as causas: resfriamento, derrame

seroso, inflamação da pleura. O histórico

reúne tudo o que, de fato ou de direito, cedo

ou tarde, direta ou indiretamente, apresenta-se

ao olhar. Uma causa que se vê, um sintoma

que, pouco a pouco, se descobre não são da

ordem do saber “filosófico”, mas de um saber

“muito simples”, que “deve preceder todos os

outros”, e se situa no cotidiano da experiência

médica.

Nestas condições, compreende-se que a

medicina se afaste de uma forma de

conhecimento “matemático”. Nenhuma

medida do corpo humano pode, em suas

particularidades físicas ou matemáticas, dar

conta de um fenômeno patológico.

II - Mecanicismo e Vitalismo

Duas correntes doutrinárias ligadas ao

Iluminismo marcaram a Medicina do século

XVIII, o mecanicismo e o vitalismo, ambas

com orientações hipocráticas. Estas duas

correntes vão persistir e, às vezes coexistir e

disputar a explicação dos diferentes

fenômenos. Na Universidade de Halle,

fundada em 1693, dois médicos naturistas

dividem o ensino e as duas visões de mundo:

Stahl (1660-1734), vitalista e Hoffmann

(1660-1742), mecanicista. Ambos tornaram-

se célebres e patronos de suas respectivas

concepções no campo da terapêutica.

Para Stahl, uma alma conservadora é

responsável pela integridade do organismo,

que não pode, em absoluto, ser considerado

como uma soma de peças que se ajustam. Um

ser vivo é sempre considerado um todo

indivisível. As leis da mecânica nada

explicam dos movimentos do organismo, que

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se dão através de um agente vital, a alma

racional, que não é uma força material, mas a

própria natureza. O elemento mais

característico do vitalismo é a noção de que o

dinamismo vital, as transformações e os

movimentos corporais, têm uma origem

diferente daquela das leis que regem o

movimento dos corpos inanimados. Para se

conhecer e compreender o organismo, é

necessário escutar a natureza. E a doença é

um distúrbio dos movimentos vitais, mais do

que uma agressão externa que ataca o

organismo. Estes movimentos vitais voltam-

se, espontaneamente, para a cura. Stahl é

místico, seu vitalismo é animista: a alma e o

princípio vital não prescindem da idéia de

Deus. Mais tarde surgirão propostas vitalistas

não-animistas, isto é, que atribuem

singularidade ao fenômeno vital, mas não

recorrem a explicações de cunho religioso.

Friedrich Hoffmann (1660-1742) é

mecanicista e se diz também hipocrático. Sua

confiança na natureza também provém da

sabedoria divina, que engendrou esta máquina

tão bem regulada, o corpo vivo. O organismo

é regido pelo movimento dos humores,

nascido da contração e dilatação mecânica dos

órgãos. O corpo é uma máquina hidráulica. A

força curativa da Natureza consiste, assim, em

uma operação mecânica, o espasmo que

contrai os órgãos e redistribui os humores

desequilibrados.

Entretanto, tanto Stahl quanto Hoffmann

preconizam que o melhor meio de se obter a

saúde é o cuidado de si, a observação do que é

bom ou nocivo para o próprio organismo, é

recorrer, o mínimo, a um médico. Cada um

deve conhecer sua própria natureza e, assim,

ser o médico de si mesmo.

III - A Medicina dos Sintomas

No início do século XIX, o olhar do

médico se afasta do “modelo botânico” e se

aproxima do “modelo químico”. A doença

passa a ser uma combinação de elementos

mais simples, os sintomas. Os médicos devem

aprender a reconhecer os sintomas mais

importantes de cada doença, que ganham um

valor de sinal. A “medicina dos sintomas”

mantém a mesma atitude da “medicina das

espécies”: ver, identificar e isolar traços

idênticos e classificá-los. Mas o olhar se

organiza de uma nova maneira. Agora, há

uma identificação entre a essência da doença

e o conjunto de sintomas através dos quais ela

se manifesta. O sintoma não é mais um

indicador de doença, é, junto com os demais

sintomas, a doença. A medicina clássica é,

portanto, uma medicina classificatória, que se

elabora segundo o modelo da história natural.

Os sintomas são o ser da doença, definir uma

doença é enumerar seus sintomas.

Principais características:

1 - Não existe essência patológica além

dos sintomas: A coleção de sintomas forma o

que se chama doença. Os sintomas nada mais

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são do que uma verdade inteiramente exposta

ao olhar;

2 - A intervenção de um “saber” (do

médico) transforma o sintoma (do paciente)

em sinal. O sintoma se torna sinal sob um

olhar (do médico) que sabe distinguir

diferenças. A análise e o olhar clínico

compõem e decompõem, para revelar uma

ordenação, que é a própria ordem natural.

Para o bom médico, todos os sintomas podem

transformar-se em sinais.

O olhar clínico incorpora também o

modelo matemático; à medicina importa,

agora, o saber probabilístico. Cada fato

isolado é confrontado a um conjunto, toma

lugar em uma série de acontecimentos, ajuda

a estabelecer graus de certeza. O olhar clínico

não é o de um olho intelectual, é um olhar da

sensibilidade concreta, que vai de corpo em

corpo. Para a clínica, toda verdade é verdade

sensível. O “golpe de vista” do médico, o

“olho clínico”, que muitas vezes vence a mais

vasta erudição e a mais sólida instrução, é o

resultado de freqüente, metódico, e justo

exercício dos sentidos. Nesta nova imagem

que dá de si mesma, a experiência clínica se

prepara para explorar um novo espaço: o

espaço palpável do corpo.

Esta medicina “clínica”, aprendida pela

observação do doente à beira do leito, pela

repetição dos fenômenos nas epidemias,

concretizada em um “conjunto de sintomas” e

em uma “estatística de casos”, aliar-se-á,

durante o século XIX, à anatomia. Então,

pouco a pouco, entrará em regressão, para

desaparecer diante da medicina dos órgãos, da

sede e das causas, diante de uma clínica

inteiramente ordenada pela anatomia

patológica, diante da base da medicina

contemporânea.

IV - A Medicina anátomoclínica

Até o século XVIII, era apenas através

dos sintomas visíveis que se podia identificar

o “invisível-Ser-da-doença”. No século XIX,

este processo inverteu-se. Partindo-se dos

cadáveres para conhecer os vivos, descobriu-

se que o invisível durante a vida pode ser

visível após a morte. A doença assumiu,

então, o caráter de um conjunto de fenômenos

reais, a ocorrerem no próprio corpo, a torná-lo

doente.

No século XVII, o médico suíço

Théophile Bonet (1620-1689) reuniu um

material muito vasto, próprio e alheio, que

publicou nos três volumes do livro

“Sepulchretum” (1679), em que mostrou a

utilidade de cadáveres para a prática clínica.

Quase cem anos depois, Giovanni Battista

Morgagni (1682-1771), ao publicar “De

sedibus et causis morborum per anatomen

indagatis” (Veneza, 1761), firmou

definitivamente a anatomia patológica como

disciplina médica indispensável para a

compreensão da doença.

Morgagni morreu aos 89 anos de idade,

tendo sido professor de anatomia em Pádua,

Itália, durante 56 anos. Durante todo esse

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tempo, trabalhou diariamente, dissecou, fez

experimentos, viu pacientes, leu e escreveu.

Morgagni inaugurou o “conceito anatômico”

de prática médica, e é, hoje, considerado o

“Pai da Patologia”. Quando a maioria dos

médicos insistia em perguntar “o que é a

doença?”, Morgagni se preocupava em saber

“onde está a doença?” (“Ubi est morbus?”).

Ou seja, Morgagni investigou as enfermidades

como um anatomista e, assim, não considerou

a natureza da doença como seu principal

problema. Não casualmente, o título de sua

grande obra se inicia com “A sede das

doenças …”.

A principal obra de Morgagni foi a

demonstração de que as diferentes

enfermidades se localizam em órgãos

distintos, e que assim se explica a grande

variedade de sintomas clínicos. Enquanto o

sinal clínico remetia à própria doença, o sinal

anátomoclínico remete à lesão. O olhar

médico vai, desde então, apoiar-se nessa nova

experiência, não mais a de um “olho vivo”,

mas a de um olho que viu a morte.

O próximo grande passo neste campo,

deu-o Bichat. Marie François Xavier Bichat

(1771-1802) morreu aos 31 anos de idade,

depois de trabalhar apenas quatro anos. Sua

descoberta principal foi o princípio de

decifração do espaço corporal. Em sua obra

“Anatomie Générale”, Bichat afirmou:

“Durante 20 anos, noite e dia se tomarão

notas, ao leito dos doentes, sobre as afecções

do coração, dos pulmões e da víscera gástrica

e o resultado será apenas confusão nos

sintomas, que, a nada se vinculando,

oferecerão uma série de fenômenos

incoerentes”. Em vista disso, recomenda:

“Abram alguns cadáveres: logo verão

desaparecer a obscuridade que apenas a

observação não pudera dissipar”.

Em sua “Teoria dos Tecidos”, Bichat

considerava que o organismo era constituído

por órgãos, e estes por tecidos, a se

associarem entre si da mesma forma que os

elementos químicos (oxigênio, carbono,

nitrogênio, etc.) se combinam para formar

compostos químicos. As propriedades vitais

adotam um caráter diferente em cada tecido

que, por isso, são afetados de forma diferente.

De início, a anatomia patológica tomou

aspecto de um fundamento, enfim objetivo,

real e indubitável de descrição das doenças.

Mas, Bichat fez muito mais do que dar um

campo de aplicação objetivo aos métodos de

análise, pois transformou a anatomia

patológica em um momento essencial do

processo do adoecimento. Ele encontrou a

doença no próprio corpo; descobriu, na

profundidade do corpo, a ordem da superfície,

isto é, dos sinais e sintomas.

Mas como é possível ajustar a percepção

anatômica à leitura dos sintomas? Como

poderia um conjunto simultâneo de

fenômenos espaciais fundar a coerência de

uma série temporal que lhe é, por definição,

inteiramente anterior? Uma clínica dos

sintomas procura o corpo vivo da doença; a

anatomia só oferece o cadáver. Cadáver

duplamente enganador, pois aos fenômenos

que a morte interrompe acrescentam-se os que

ela provoca e deposita nos órgãos em um

tempo que lhe é próprio. Bichat resolveu esta

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questão ao formular o seguinte princípio: “Só

existe fato patológico comparado”.

A possibilidade de abrir imediatamente

os corpos, de diminuir o mais possível o

tempo entre o falecimento e a autópsia,

permitiu fazer coincidir, ou quase, o último

momento do tempo patológico e o primeiro

do tempo cadavérico. Assim, os efeitos da

decomposição orgânica serão, pouco a pouco,

suprimidos, ao menos em sua forma mais

exagerada. Além disso, era preciso estar

habituado à dissecção dos corpos sadios, para

saber decifrar uma doença em um cadáver e,

também, comparar os indivíduos que

morreram da mesma doença; confrontar enfim

o que se vê do órgão alterado com o que se

sabe de seu funcionamento normal.

Rudolf Ludwig Carl Virchow (1821-

1902) nasceu na Pomerania, um pequeno

povoado no noroeste da Alemanha.

Simultaneamente a seu trabalho clínico,

Virchow iniciou estudos de química e

histologia. Em 1849, aos 28 anos de idade,

assumiu a primeira cátedra alemã de anatomia

patológica. Neste cargo permaneceu por sete

anos, a trabalhar nas investigações cuja

culminância foi o desenvolvimento do

conceito de patologia celular. Entretanto, seus

interesses não se limitavam a este campo, pois

ele empenhou-se em estudos de

epidemiologia e de saúde pública. Virchow

reunia estes universos aparentemente distantes

para dar sua explicação sobre o processo do

adoecimento. Dizia ele: “O que é a doença? A

vida em condições anormais. E onde está a

doença? Nas células, porque é onde a vida

está”.

É preciso, portanto, que o olhar

médico percorra um caminho que, até então,

não lhe havia sido aberto, siga uma via

vertical, que vai da superfície sintomática à

superfície tissular, uma via que, desde o

manifesto, caminha em direção ao oculto. A

doença não é mais um feixe de características

espalhadas pela superfície do corpo e ligadas

entre si por coincidências ou sucessões

observáveis, é um conjunto de formas e

deformações, figuras, acidentes, elementos

destruídos ou modificados que se encadeiam

uns com os outros, segundo uma geografia

que se pode seguir passo a passo. Não é mais

uma espécie patológica a ser inserida no

corpo, onde é possível; é o próprio corpo a

adoecer. A noção de “sede” substitui,

definitivamente, a de “classe”.

Com relação à prática médica, era

normal que a medicina clássica, ao final do

século XVIII, deixasse na sombra as técnicas

de exame físico (palpação/percussão) que,

“artificialmente”, faziam aparecer um sinal

onde não havia sintoma. Mas, a partir do

momento em que a anatomia patológica

recomenda à clínica interrogar o corpo em sua

espessura orgânica, e fazer aflorar à superfície

o que só se dava em camadas profundas, a

idéia de um artifício técnico capaz de

surpreender a lesão ganha fundamento

científico. Assim, o olhar médico envolve

mais do que diz a palavra “olhar”. Encerra,

em uma estrutura única, diferentes sentidos. A

trindade visão-tato-audição define uma

possibilidade perceptiva em que a lesão é

trazida à superfície e revelada. Em resumo, a

Page 7: Apostilla UFF História da Medicina - Parte 4

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medicina dos órgãos sofredores comporta três

momentos:

1º) Determinar qual órgão sofre;

2º) Explicar como um órgão se tornou

sofredor;

3º) Indicar o que é preciso fazer para

que deixe de sofrer.

É curioso contrastar a contribuição de

Morgagni, que morreu aos 89 anos de idade,

depois de trabalhar 56 anos, e deixou a

patologia firmemente estabelecida sobre a

base da correlação dos sintomas clínicos com

alterações nos órgãos, com a obra de Bichat,

que faleceu aos 31 anos de idade e, em apenas

quatro anos de trabalho, conseguiu fazer a

patologia caminhar dos órgãos para os

tecidos.

Assim, a medicina deixa de ser um

“saber histórico” - a enumeração dos sintomas

no tempo – e passa a ser um “saber

geográfico”, a se preocupar com a sede e os

deslocamentos dos sintomas. Os sinais, agora,

não identificam mais a essência da doença,

mas o lugar da mesma. O problema é tornar

visível, ainda em vida, o que se esconde na

profundidade do corpo. Para isso, o olhar

clínico vai associar à visão outros sentidos,

como o tato e a audição. Se, na “medicina das

espécies”, as características individuais de

cada paciente deviam ser afastadas, para não

disfarçar ou distorcer a essência da doença, na

medicina anátomoclínica essas variações são

parte integrante da doença em cada corpo.

V - A Fisiologia se incorpora à Anatomoclínica

Entretanto, se a doença é a lesão de

algum elemento da anatomia, o que dizer das

doenças sem qualquer achado

anatomopatológico? Os médicos da época

tentaram várias formas de contornar este

obstáculo, desde a simples negação, até as

classificações complexas e contraditórias, n a

tentativa de justificar o que era injustificável,

à luz das concepções utilizadas.

Foi François Joseph Victor Broussais

(1772-1838) que, em 1816, ao reunir as

conclusões de experiências e trabalhos de

vários médicos, estabeleceu um esquema

causal em que todas as doenças se incluíam.

Para Broussais, a doença seria uma reação dos

tecidos a uma “causa irritante” e a chamada

sede da doença, nada mais do que o ponto do

organismo em que esta “causa” se fixou,

ponto determinado tanto pela irritabilidade do

tecido quanto pela força irritativa do agente.

Assim, se apagará a distinção entre distúrbio

funcional e doença orgânica, cuja diferença

passa a ser apenas o grau de visibilidade aos

nossos olhos. A sede não é mais a doença em

si, mas o ponto inicial da perturbação

fisiológica. Assim, Broussais abriu caminho

para a incorporação da fisiologia à medicina

anátomoclínica. Com suas concepções neo-

hipocráticas, Broussais via no equilíbrio entre

o organismo e o seu meio ambiente o segredo

da saúde. A origem de todas as doenças

residia no excesso, ou na deficiência, de

Page 8: Apostilla UFF História da Medicina - Parte 4

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excitação dos diversos tecidos, acima ou

abaixo do grau considerado normal. A maior

dificuldade de aceitação da chamada

“medicina fisiológica”, de Broussais, é que

sua fisiologia era exclusivamente

especulativa, sem dados concretos que a

comprovassem.

Esta dificuldade permaneceu,

relativamente intacta, até o aparecimento de

Claude Bernard (1813-1878). Claude Bernard

iniciou seus estudos com os jesuítas, dos quais

recebeu educação de caráter mais humanista

do que científico. Atraído pela carreira teatral,

escreveu uma comédia, que obteve algum

sucesso, e um drama em cinco atos, que

submeteu à apreciação de famoso crítico de

sua época, que o estimulou a continuar os

estudos de medicina.

Em Paris, sob a orientação de François

Magendie, ele aprendeu a técnica de

vivissecção. Com base nesta, Bernard criou

novos métodos de experimentação e se tornou

célebre graças ao extraordinário rigor de suas

investigações. Em 1854, ganhou o posto de

primeiro professor de Fisiologia Experimental

da Sorbonne. Entre suas descobertas mais

importantes encontram-se:

- (1845): o controle da corrente

sangüínea pelo sistema nervoso. Ao seccionar

o nervo simpático cervical de um coelho,

Claude Bernard verificou que o lado

correspondente da cabeça do animal tornara-

se mais quente, devido ao relaxamento da

constrição dos capilares sangüíneos;

- a do transporte do oxigênio pelos

glóbulos vermelhos;

- a da participação do suco pancreático

no processo da digestão de gorduras.

Deduziu-o pela observação da ação desse

suco sobre a gordura, em um tubo de ensaio e

ao aparecimento de um líquido branco no

intestino de cobaias, mas abaixo do ponto em

que o ducto pancreático desemboca no

duodeno;

- (1857): a do armazenamento da glicose

pelo fígado, sob a forma de glicogênio;

Claude Bernard, assim, deu início ao

conhecimento do metabolismo dos

carbohidratos, que teve conseqüências

práticas, por exemplo, no tratamento do

diabetes. Primeiro demonstrou que se um cão

era alimentado com uma dieta contendo

açúcar, aparecia glicose na veia porta e nas

veias hepáticas. Porém, quando o animal

recebia uma dieta à base de proteínas, não

havia glicose na veia porta, mas mantinha-se

alta concentração da mesma nas veias

hepáticas.

Claude Bernard desenvolveu um modo

de encarar o fenômeno da doença que se

baseava na identidade entre os estados normal

e patológico: a concepção de que a diferença

entre eles é apenas quantitativa. Assim, se as

doenças são explicadas por variações

quantitativas, qualquer concepção de

patologia deve basear-se em um

conhecimento prévio do estado normal. Os

fenômenos da doença coincidem,

essencialmente, com os fenômenos da saúde,

e só diferem dos mesmos pela intensidade.

É Claude Bernard quem afirma: “Toda

doença tem uma função normal

correspondente, da qual é, apenas, uma

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expressão perturbada, exagerada, diminuída

ou anulada. Se não podemos, hoje em dia,

explicar todos os fenômenos das doenças, é

porque a fisiologia ainda não está bastante

adiantada e porque ainda há uma quantidade

de funções normais que desconhecemos”.

“A saúde e a doença não são dois modos

que diferem essencialmente, como talvez

tenham pensado os antigos médicos e como

ainda pensam alguns. É preciso não fazer da

saúde e da doença princípios distintos … Na

realidade, entre essas duas maneiras de ser há

apenas diferenças de grau: a exageração, a

desproporção, a desarmonia dos fenômenos

normais constituem o estado doentio”.

No século XIX, Claude Bernard

procurou construir uma ciência fisiológica,

base de uma patologia científica que desse

sustentação à terapêutica racional. Claude

Bernard formulou, no campo médico, a

exigência profunda de uma época que

acreditava na onipotência de uma técnica

científica. Ele trouxe, para sustentar seu

princípio geral de patologia, argumentos

controláveis, protocolos de experiências e,

sobretudo, métodos de quantificação dos

conceitos fisiológicos. Entretanto, rechaçava

uma interpretação mecânica e simplista dos

processos vitais. Por isso, introduziu o

conceito de “meio interno”, para dar conta da

constância da química interna do corpo e da

regulação coordenada de suas várias partes,

mecanismos essenciais à saúde.

VI – Conclusão

A racionalidade científica moderna

nasceu e se consolidou em um longo

processo, desde o Renascimento até o século

XIX. E, durante três séculos enfrentou pelo

menos duas outras “razões”: a moralidade

racional, de origem religiosa, e a

racionalidade mística das “ciências

alquímicas”: astrologia, alquimia e magia. A

hegemonia do saber anatomofisiopatológico,

no campo da medicina, deve ser

compreendida dentro do quadro mais amplo

da constituição da racionalidade científica

moderna.

Esse saber constituiu-se sobre os

seguintes elementos:

- Antropocentrismo: separam-se as

concepções de Deus, Homem e Natureza. O

Homem passa a ter uma existência objetiva,

independente da natureza. A Natureza é

desdivinizada, separada do sagrado e do

humano, passa a ser objeto de conhecimento,

sobretudo com o intuito de ser “controlada”;

- Experimentalismo: o método para

produção de novos saberes é exploratório,

interventor. A racionalidade científica não é

um conjunto de verdades, mas um método de

produção de verdades. Esta racionalidade está

permeada de rupturas dualistas: matéria-

espírito, qualidade-quantidade, natureza-

homem, objeto-sujeito, instinto-razão.

Assim, um saber médico objetivo, sobre

doenças localizadas no corpo orgânico, e

comprovável experimental e

quantitativamente, está perfeitamente

Page 10: Apostilla UFF História da Medicina - Parte 4

38

integrado ao conjunto do saber científico

moderno.

A anátomoclínica não é simplesmente a

articulação entre duas formas analíticas: de

um lado, o olhar clínico, que busca entender o

significado dos sintomas; do outro, o olhar

anatômico, que busca ler as alterações dos

tecidos. Com a síntese proporcionada pela

abertura do cadáver, o olhar médico se

deslocou de um espaço ideal, pré-clínico, para

o espaço real, corporal. Ao estabelecer um

caminho entre as dimensões heterogêneas dos

sintomas e dos tecidos criou-se um novo

espaço: o corpo doente. A doença se localiza

no corpo; a lesão de um órgão explica os

sintomas. Para diagnosticar a doença, o olhar

médico deve penetrar verticalmente no corpo:

desde a superfície sintomática até a superfície

tissular. A fundação da clínica moderna deve-

se à transformação da relação entre o "visível"

e o "invisível". A clínica moderna torna

visível o que era invisível à medicina clássica.

Durante 150 anos, repetiu-se a

mesma explicação: a medicina só chegou ao

que a fundava, cientificamente, ao contornar,

com lentidão e prudência, os obstáculos e

preconceitos que impediam a abertura de

cadáveres. Esta explicação é historicamente

falsa. Morgagni, em meados do século XVIII,

não teve dificuldades em fazer autópsias.

Desde 1754, a clínica de Viena tinha uma sala

de dissecção, assim como a de Pádua,

organizada por Tissot. Portanto, não havia

nenhuma escassez de cadáveres no século

XVIII, nem sepulturas violadas ou missas

negras anatômicas. Essa ilusão tem um

sentido preciso na história da medicina, pois

funcionou como justificativa retrospectiva.

Bichat e seus contemporâneos, quarenta

anos depois de Morgagni, têm a sensação de

“redescobrir” a anatomia patológica. Quarenta

anos, o tempo de latência em que se formou o

método clínico. Aí está a correta explicação: a

clínica, preocupada em estabelecer parentesco

entre os sintomas e compreender sua

linguagem, era, por princípio, estranha à

investigação dos corpos. As causas e as sedes

a deixavam indiferente, a clínica era história e

não geografia.

Anatomia e clínica não têm o mesmo

espírito, por mais estranho que hoje possa

parecer, agora que a coerência anátomoclínica

está estabelecida e enraizada no tempo. E,

durante quarenta anos, o pensamento clínico

impediu a medicina de ouvir a lição de

Morgagni.

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