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Apostila de Teologia Fundamental segunda versão Curso TG 02.02 1 o semestre de 2011

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Apostila de

Teologia Fundamental

segunda versão

Curso TG 02.02

1o semestre de 2011

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Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia

Departamento de Teologia

Curso de Teologia Fundamental - 1o semestre de 2011

Programa do curso

Prolegômenos

1. Apresentação do curso 2. As duas grandes vertentes da Teologia Fundamental 3. Pressuposto, objetivo, método e porta de entrada do nosso curso

I - Algumas noções iniciais (7 aulas)

1. Experiência: definição e importância 2. A experiência de Deus: aí se dá a revelação divina 3. A revelação considerada da parte de Deus: autor, objeto, iniciativa, motivo, finalidade 4. A revelação considerada da parte dos seres humanos: o tema da fé 4.1 Fides qua e fides quae 4.2 Fé como dom de Deus e como resposta do ser humano 4.3 Sobre a relação entre razão e fé 4.4 Fé, razão, credibilidade da revelação e Apologética 4.5 Fé, conversão e ainda o tema da credibilidade 4.6 Fé e religiosidade popular no contexto da América Latina 5. Outros elementos fundamentais 5.1 O conceito teológico de Tradição e a Bíblia 5.2 O desinstalador depósito da fé

II - Percurso histórico-teológico (17 aulas)

1. A noção bíblica de revelação

2. A noção de revelação na Patrística

3. A noção de revelação na Idade Média

4. A noção de revelação nos concílios de Trento e Vaticano 1o

5. A noção de revelação na constituição Dei Verbum do Vaticano 2o

6. Síntese da noção católica de revelação à luz do concílio Vaticano 2o

III - Reflexão teológica: as etapas da revelação de Deus em Israel (3 aulas)

1. Uma revelação progressiva, em etapas 2. A progressividade como aprofundamento 3. Primeira etapa. Um Deus que se revela como Alguém a se esvaziar: o mistério divino 4. Segunda etapa. Alguém que leva em conta as fragilidades e limitações 5. Terceira etapa. Uma “coisa imperfeita e transitória”: um Deus entre outros deuses 6. Quarta etapa. Alguém que salva de situações ruins 7. Quinta etapa. Alguém que tem a atitude de firmar compromissos 8. Sexta etapa. Outra “coisa imperfeita e transitória”: um Deus que dá bênção ou maldição 9. Sétima etapa. Alguém que é único e criador 10. Oitava etapa. Jesus Cristo, a revelação mais profunda e em plenitude

IV - Inspiração, verdade e inerrância da Sagrada Escritura (2 aulas)

Pe. César Alves SJ

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Nota sobre a leitura em três tipos diversos de mídia

Leitura de textos em papel:

Ler livros e artigos teológicos em papel faz com que o estudante seja capaz de aprofundar o conhecimento da Teologia e analisar os fatos e ideias com muito mais solidez. Tais leituras lhe permitem formar referências teológicas arraigadas e duradouras.

Leitura de textos em papel digitalizados:

Sendo difícil a obtenção de textos teológicos em papel, suas versões digitalizadas permitem suprir tal deficiência de modo bastante satisfatório e conseguem geralmente atingir os mesmos objetivos da leitura de textos em papel.

Leitura de textos digitais:

No mundo digital, a possibilidade de ter contato com várias mídias (vídeo, áudio, imagem e texto) é sem dúvida um grande trunfo. No entanto, os textos de Teologia meramente digitais (como aqueles preparados especialmente para a internet) tendem a ser bem mais ligeiros no que se refere ao seu conteúdo. Eles dificilmente permitem que o aluno aprofunde seus conhecimentos no campo da Teologia, e em geral geram referências teológicas superficiais.

Bibliografia

1) Principal (em ordem alfabética)

LATOURELLE, René. Théologie de la révélation. 2.ed. Bruges: Desclée de Brouwer, 1963, 1966; trad. em português: Teologia da revelação. 2.ed. São Paulo: Paulinas 1972, 1981; trad. em espanhol: Teología de la revelación. 11.ed. Salamanca: Sígueme, 2005; trad. em italiano: Teologia della rivelazione. Assisi: Cittadella, 1967.

LIBANIO, João Batista. Teologia da revelação a partir da modernidade. São Paulo: Loyola, 1992; trad. em espanhol: Teología de la revelación a partir de la modernidad. México: Dabar, 2002.

_______. Eu creio, nós cremos. Tratado da fé. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2000, 2004; tradução em espanhol: Teología de la fe: yo creo, nosotros creemos. México: Dabar, 2003.

_______. Crer num mundo de muitas crenças e pouca libertação. São Paulo: Paulinas, 2003; trad. em espanhol: Una fe cristiana y liberadora entre muchas creencias. México: Dabar, 2004.

O‟COLLINS, Gerald. Fundamental theology. Nova Iorque: Paulist Press, 1981; trad. em português: Teologia fundamental. São Paulo: Loyola, 1991; trad. em italiano: Teologia fondamentale. 2.ed. Brescia: Queriniana, 1984.

RUIZ ARENAS, Octavio. Jesús, epifanía del amor del Padre. Teología de la revelación. Bogotá: CELAM, 1987; trad. em português: Jesus, epifania do amor do Pai. Teologia da revelação. São Paulo: Loyola, 2001. [manual de teologia fundamental do CELAM]

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2) Auxiliar (em ordem alfabética)

ALFARO, Juan. Revelación cristiana, fe y teología. Salamanca: Sígueme, 1985.

ALFARO, Juan et al.. “Fe”. In: Sacramentum Mundi, III. Barcelona: Herder, 1973, col. 95-140.

BARRY, William. God and you. Prayer as a personal relationship. New England: The Society of Jesus of New England, 1987; trad. em português: Deus e você. A oração como relacionamento pessoal. 4.ed. São Paulo: Loyola, 1990, 1995.

BURGGRAF, Jutta. Teología fundamental. Manual de iniciación. Madrid: Rialp, 2002.

CASALE, Umberto. Il Dio comunicatore e l'avventura della fede. Saggio di teologia fondamentale. Leumann: Elledici, 2003.

CASSARINI, Davide. Elementi di teologia fondamentale. Assisi: Cittadella, 2003.

CONGAR, Yves. La Tradition et les traditions. I. Essai historique. II. Essai théologique. Paris: Fayard, 1960, 1963; trad. em espanhol: La Tradición e las tradiciones. I. Ensayo histórico. II. Ensayo teológico. San Sebastián: Dinor, 1964.

_______. La Tradition et la vie de l’Église. 2.ed. Paris: CERF, 1984; trad. em inglês: The meaning of Tradition. 2.ed. San Francisco: Ignatius, 2004.

DEWAILLY, Ludovic-Marie. Jésus-Christ, Parole de Dieu. 1.ed. Paris: CERF, 1945. 2.ed. Paris: CERF, 1969.

DULLES, Avery. Revelation theology. A history. New York: Herder, 1972.

_______. Models of revelation. New York: Doubleday, 1983.

EPIS, Massimo. Teologia fondamentale. La ratio della fede cristiana. Brescia: Queriniana, 2009.

FISICHELLA, Rino. Introduzione alla teologia fondamentale. 4.ed. Casale Monferrato: Piemme, 1997; trad. em português: Introdução à teologia fundamental. São Paulo: Loyola, 2000.

_______. (ed.) La teologia fondamentale. Convergenze per il terzo millennio. Casale Monferrato: Piemme, 1997.

FRIES, Heinrich. Fundamentaltheologie. 2.ed. Graz: Styria, 1985; trad. em espanhol: Teología fundamental. Barcelona: Herder, 1987.

GALLAGHER, Michael. Rifondazione metodologica della teologia fondamentale. Roma: Pontificia Università Gregoriana, 2006.

GRECO, Carlo. La rivelazione. Fenomenologia, dottrina e credibilità. Torino: San Paolo, 2000.

HERCSIK, Donath. Elementi di teologia fondamentale. Concetti, contenuti, metodi. Bologna: Dehoniane, 2006.

HOFMANN, Peter. Die Bibel ist die erste Theologie. Ein fundamentaltheologischer Ansatz. Paderborn: Schöningh, 2006.

KERN, Walter; POTTMEYER, Hermann; SECKLER, Max (ed.); Handbuch der Fundamentaltheologie. I. Traktat Religion. II. Traktat Offenbarung. III. Traktat Kirche. IV. Traktat theologische Erkenntnis-Lehre. 2.ed. Tübingen: Francke, 2000; trad. em italiano: Corso di teologia fondamentale. I. Trattato sulla religione. II. Trattato sulla rivelazione. III. Trattato sulla Chiesa. IV. Trattato di gnoseologia teologica. Brescia: Queriniana, 1990.

KLAUSNITZER, Wolfgang. Glaube und Wissen. Lehrbuch der Fundamentaltheologie für Studierende und Religionslehrer. Regensburg: Pustet, 2008.

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KNAUER, Peter. Der Glaube kommt vom Hören. Ökumenische Fundamentaltheologie. 6.ed. Freiburg: Herder, 1991.

_______. Unseren Glauben verstehen. Würzburg: Echter, 1986; trad. em português: Para compreender nossa fé. São Paulo: Loyola, 1989; trad. em espanhol: Para comprender nuestra fe. México: Palmarín, 1989; trad. em italiano: Per comprendere la nostra fede. Roma: Borla, 2006.

LATOURELLE, René; FISICHELLA, Rino (ed.). Dizionario di teologia fondamentale. Assisi: Cittadella, 1990; trad. em português: Dicionário de teologia fundamental. Petrópolis: Vozes, 1994; trad. em espanhol: Diccionario de teología fundamental. Madrid: Paulinas, 1992.

LATOURELLE, René; O‟COLLINS, Gerald (ed.). Problemi e prospettive di teologia fondamentale. Brescia: Queriniana, 1980; trad. em português: Problemas e perspectivas de teologia fundamental. São Paulo: Loyola, 1993.

LORIZIO, Giuseppe (ed.). Teologia fondamentale. I. Epistemologia. II. Fondamenti. III. Contesti. IV. Testi antologici. Roma: Città Nuova, 2004.

MANGANARO, Patrizia; RICCARDO Ferri (ed.). Gesto e parola. Ricerche sulla rivelazione. Roma: Città Nuova, 2005.

MATTIOLI, Anselmo. “Realtá e senso della pienezza della rivelazione di Dio in Cristo”. In: ASSOCIAZIONE

BIBLICA ITALIANA. Costituzione conciliare Dei Verbum. Atti della XX Settimana Biblica. Brescia: Paideia, 1970, p. 57-110.

MURO UGALDE, Tomás. Teología fundamental. La vida tiene sentido. San Sebastián: Sendoa, 2002.

OCÁRIZ, Fernando; BLANCO, Arturo. Rivelazione, fede e credibilità. Corso di teologia fondamentale. Roma: Università della Santa Croce, 2001.

PIÉ-NINOT, Salvador. La teología fundamental. Dar razón de la esperanza (2Pt 3,15). Salamanca: Secretariado Trinitario, 2002 (5a edição); trad. em italiano: La teologia fondamentale. “Rendere ragione della speranza” (1Pt 3,15). Brescia: Queriniana, 2002.

POUSSET, Édouard. Le mystère de Dieu et de l’homme. Écrits de théologie fondamentale. Paris: Facultés Jésuites de Paris, 2007.

RAHNER, Karl. Grundkurs des Glaubens. Studien zum Begriff des Christentums. 2.ed. Freiburg im Breisgau: Benziger, 1984; trad. em português: Curso fundamental da fé. Introdução ao conceito de cristianismo. São Paulo: Paulinas, 1989; trad. em espanhol: Curso fundamental sobre la fe. Introducción al concepto de cristianismo. Barcelona: Herder, 1979; trad. em italiano: Corso fondamentale sulla fede. Introduzione al concetto di cristianesimo. Roma: Paoline, 1977.

RATZINGER, Joseph. Theologische Prinzipienlehre. Bausteine zur Fundamentaltheologie. München: Wewel, 1982; trad. em espanhol: Teoría de los principios teológicos. Materiales para una teología fundamental. Barcelona: Herder, 1985; trad. em italiano: Elementi di teologia fondamentale. Saggi sulla fede e sul ministero. 2.ed. Brescia: Morcelliana, 2005.

SEGUNDO, Juan Luis. El dogma que libera. Fe, revelación, magisterio dogmático. Santander: Sal Terrae, 1989; trad. em português: O dogma que liberta. Fé, revelação, magistério dogmático. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 1991, 2000.

SEGUNDO, Juan Luis; SANCHIS, Pierre. As etapas pré-cristãs da descoberta de Deus. Uma chave para a análise do cristianismo (latino-americano). Petrópolis: Vozes, 1968.

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TORRES QUEIRUGA, Andrés. A revelacion de Deus na realizacion do home. Vigo: Galaxia, 1985; trad. em português: A revelação de Deus na realização humana. São Paulo: Paulus, 1995; Repensar a revelação. A revelação de Deus na realização humana. São Paulo: Paulinas, 2010; trad. em espanhol: La revelación de Dios en la realización del hombre. Madrid: Cristiandad, 1987.

THEOBALD, Christoph. La révélation. Paris: L‟Atelier, 2001; trad. em português: A revelação. São Paulo: Loyola, 2006; trad. em italiano: La rivelazione. Bologna: Dehoniane, 2006.

SAMPAIO COSTA, Alfredo. “Teologia e espiritualidade. Em busca de uma colaboração recíproca”. Perspectiva Teológica 38 (2006) p. 323-348.

SEQUERI, Pierangelo. L’idea della fede. Trattato di teologia fondamentale. Milano: Glossa, 2002.

SESBOÜÉ, Bernard (ed.). Histoire des dogmes. IV. La parole du salut. Paris: Desclée, 1996; trad. em português: História dos dogmas. IV. A palavra da salvação (séculos XVIII-XX). São Paulo: Loyola, 2006; trad. em espanhol: Historia de los dogmas. IV. La palabra de la salvación. Salamanca: Secretariado Trinitario, 1997; trad. em italiano: Storia dei dogmi. IV. La parola della salvezza, XVIII-XX secolo. Casale Monferrato: Piemme, 1998.

SCHMITZ, Josef. Offenbarung. Dusseldorf: Patmos, 1988; trad. em espanhol: La revelación. Barcelona: Herder, 1990.

TONIOLO, Andrea. Cristianesimo e verità. Corso di teologia fondamentale. Padova: Messaggero, 2008.

VALENTIN, Joachim; WENDEL, Saskia (ed.). Unbedingtes Verstehen?! Fundamentaltheologie zwischen Erstphilosophie und Hermeneutik. Regensburg: Pustet, 2001.

VERDEYEN, Paul. “La séparation entre théologie et spiritualité. Origine, conséquence et dépassement de ce divorce”. Nouvelle Revue Théologique 127 (2005) p. 62-75.

VERWEYEN, Hansjürgen. Gottes letztes Wort. Grundriss der Fundamentaltheologie. 4.ed. Regensburg: Pustet, 2002; trad. em italiano: La Parola definitiva di Dio. Compendio di teologia fondamentale. 3.ed. Brescia: Queriniana, 2001.

_______. Einführung in die Fundamentaltheologie. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2008.

WALDENFELS, Hans. Kontextuelle Fundamentaltheologie. Paderborn: Schöningh, 1985; trad. em espanhol: Teología fundamental contextual. Salamanca: Sígueme, 1994; trad. em italiano: Teologia fondamentale nel contesto del mondo contemporaneo. Cinisello Balsamo: Paoline, 1988.

WERBICK, Jürgen. Den Glauben verantworten. Eine Fundamentaltheologie. 3.ed. Freiburg im Breisgau: Herder, 2005; trad. em italiano: Essere responsabili della fede. Una teologia fondamentale. Brescia: Queriniana, 2002.

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Ementa aperfeiçoada do curso

O curso apresenta o tratado da revelação de um modo que reflete claramente o amadurecimento e a volta às fontes que esse tema vivenciou a partir do concílio Vaticano II. Especial atenção é dada à apresentação da revelação plena de Deus num ser humano concreto e completo, Jesus Cristo, enfatizando-se as consequências da expressão dogmática “Jesus Cristo, plenitude da revelação de Deus”.

Depois de expor as duas grandes vertentes atuais da Teologia Fundamental, a primeira parte do curso prossegue mostrando o vínculo do tema da revelação com a experiência de Deus. Ainda na primeira parte, considera-se então o segundo grande tema da Teologia Fundamental – o da fé – e são enfim introduzidos alguns conceitos básicos. A segunda parte do curso é um percurso histórico-teológico que mostra como o tema da revelação aparece na Bíblia. Faz-se também a análise do tema nas épocas patrística, escolástica, moderna e contemporânea. Nesta, apresenta-se o movimento de volta às fontes nas suas vertentes bíblica, patrística, litúrgica e ecumênica. Enfim, é apresentado o grande salto interpretativo dado pela constituição Dei Verbum do Vaticano II (junto com importantes elementos de teologia da revelação presentes na Lumen Gentium, Gaudium et Spes, Ad Gentes, Unitatis Redintegratio e Nostra Aetate). A terceira e a quarta parte do curso apresentam, respectivamente, uma reflexão teológica sobre as etapas da revelação em Israel e o tema da inspiração da Sagrada Escritura.

Dossiês de leitura

No final de cada um dos quatro meses de aula, pede-se a cada aluno a entrega por escrito de um dossiê das leituras efetivamente realizadas, a partir da lista bibliográfica pormenorizada que terá sido fornecida pelo professor. Os dossiês de leitura não receberão nota. Sua função é ajudar o professor a sentir o pulso do efetivo andamento da turma.

Avaliações

A nota final de cada aluno será a média aritmética de três notas obtidas ao longo do semestre:

Um trabalho escrito e individual do gênero literário “Reação”. O que é isso? A explicação está no Manual de normas e trabalhos acadêmicos da FAJE:

“Reação é o nome de uma produção textual crítica, ou seja, o aluno ou aluna, frente a um tema, obra, debate ou outro assunto, é solicitado a redigir um texto de sua autoria, refletindo e discutindo o objeto proposto. Geralmente, a reação é um texto pequeno, com no máximo duas páginas. Não é obrigatório o uso de citações e referência bibliográfica. A apresentação é a de um trabalho acadêmico. Ainda que seja pessoal o comentário, não se deve utilizar a primeira pessoa do singular ou plural” (p.15).

“Reação”, portanto, não é escrever o que der na telha, sem pesquisa nem reflexão. É necessário pesquisar, refletir e discutir o objeto proposto.

Tema do primeiro trabalho: qualquer um dos itens tratados nos “Prolegômenos” ou na “Parte I: Algumas noções iniciais”.

Tamanho: mínimo, 1 página; máximo, 2 páginas (as páginas que excederem esse limite não serão consideradas para a nota do trabalho). Seguir-se-á a formatação indicada pelo supracitado Manual de normas e trabalhos acadêmicos.

Prazo final de recebimento: uma semana depois da última aula da Parte I do curso.

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Um trabalho escrito e individual do gênero literário “Reação” sobre um elemento (um capítulo, um número, uma ideia basilar, uma frase) da constituição dogmática Dei Verbum do concílio Vaticano 2o.

Tamanho: mínimo, 1 página; máximo, 2 páginas (as páginas que excederem esse limite não serão consideradas para a nota do trabalho). Seguir-se-á a formatação indicada pelo Manual de normas e trabalhos acadêmicos.

Prazo final de recebimento: uma semana depois da aula em que a Dei Verbum será examinada durante o curso (aproximadamente no final de maio).

Além do texto da própria Dei Verbum, o aluno deverá utilizar algum comentário sobre a mesma. Indicam-se a seguir alguns, dos quais basta utilizar apenas um, se for suficiente para o trabalho sobre o tema escolhido:

a) PIAZZA, Waldomiro. A revelação cristã na constituição dogmática Dei Verbum. São Paulo: Loyola, 1986.

b) FISICHELLA, Rino – LATOURELLE, René. “Dei Verbum”. In: ______, Dicionário de Teologia Fundamental. Petrópolis: Vozes, 1994.

c) SESBOÜÉ, Bernard. “Capítulo 13. A comunicação da Palavra de Deus: Dei Verbum”. In: ______, História dos dogmas. A palavra da salvação (séculos XVIII-XX). São Paulo: Loyola, 2006. v.4.

Um trabalho escrito e individual sobre um dos temas teológicos apresentados a seguir. Tamanho máximo: 4 páginas (as páginas que excederem esse limite não serão consideradas

para a nota do trabalho). Seguir-se-á a formatação indicada pelo Manual de normas e trabalhos acadêmicos.

Colocar-se-á no final uma bibliografia, que não deverá ser incluída na conta do número de páginas do trabalho.

Um bom alvitre é atribuir ao trabalho um título adequado. Prazo final de recebimento: a penúltima semana de aula do curso. Temas:

Tema 1 (assunto: revelação)

• Desenvolva os vínculos existentes entre revelação e Teologia Fundamental, e exponha a posição desta última entre as diversas disciplinas estudadas no curso de Teologia; • Desenvolva a maneira como a revelação divina é atualmente apresentada (falando, por exemplo, do seu objetivo, história e plenificação em Cristo, assim como das relações entre a revelação cristã e a revelação além do âmbito estritamente cristão), indicando os textos essenciais do Magistério a esse respeito.

Tema 2 (assunto: revelação)

• Desenvolva a relação da revelação do Antigo com a do Novo Testamento; • Desenvolva o tema da revelação no Antigo Testamento, destacando o sentido e o papel do dabar divino e as principais fases; • Desenvolva o tema da revelação no Novo Testamento, apresentando suas características gerais e sua relação com o AT, e fornecendo uma síntese dos enfoques diversos ali apresentados.

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Tema 3 (assunto: revelação)

• Desenvolva as principais características dos modos de compreender a revelação na Patrística, na Idade Média (especialmente em Tomás de Aquino) e no período entre os concílios de Trento e Vaticano I. Em cada uma das três fases, mostre como apareciam elementos importantes que, durante o concílio Vaticano II, haveriam de ter grande importância na discussão que geraria a constituição Dei Verbum.

Tema 4 (assunto: revelação)

• Cada fase da história da salvação em Israel pode ser vista na perspectiva da Teologia Fundamental, ou seja, como revelação divina progressiva. Na terceira parte do curso consideramos o desenvolvimento da revelação de Deus ao longo daquela história da salvação, desde o tempo dos Patriarcas até Jesus Cristo e os apóstolos. Dividimos pedagogicamente o desenvolvimento daquela revelação em oito etapas, das quais a última era a plenitude da revelação. Desenvolva os elementos que cada uma das oito etapas manifesta a respeito de Deus, mostrando também como as etapas se relacionam entre si e culminam em Jesus Cristo.

Tema 5 (assunto: fé)

• Desenvolva a maneira segundo a qual, pela fé, o ser humano responde à revelação tanto nas dimensões individual como comunitária. Mostre a relação entre a fé como dom de Deus e como resposta humana, assim como a relação entre fides qua e fides quae (dando definições de ambas); • Desenvolva a questão da natureza racional da fé, mostrando também o significado profundo de tal racionalidade na resposta humana à revelação e os riscos dos dois extremos (racionalismo e fideísmo).

Tema 6 (assunto: fé)

• Desenvolva a apresentação da fé no Antigo e no Novo Testamento, e qual a importância aí de Jesus Cristo (pesquisar, por exemplo, em Fries, Teología Fundamental, p. 75-116); • Desenvolva a questão da credibilidade da fé assim como aparece na Bíblia e no tempo atual, indicando alguns dos principais desafios atuais à tal credibilidade e propostas de resposta a tais desafios.

Tema 7 (assunto: depósito da fé)

• Desenvolva o sentido de depósito nos mundos semita e greco-romano, assim como os sentidos usuais desse termo que não correspondem ao conceito teológico de depósito da fé. Sobre a figura do depósito aplicada à fé, apresente citações bíblicas, defina o conceito teológico em questão e comente o seu núcleo vivo e desinstalador; • Em base a Lumen Gentium 12 e Dei Verbum 10, desenvolva a relação entre o depósito da fé, o Povo de Deus e o Magistério. Comente a importância tanto de conservar o depósito da fé como de realizar a inculturação, indique critérios de discernimento para isso e fale de alguns dilemas.

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Tema 8 (assunto: Tradição)

• Tendo por base a constituição Dei Verbum e os teólogos estudados durante o curso, desenvolva a definição do conceito teológico de Tradição, assim como o papel dos apóstolos e seus sucessores na transmissão da revelação divina; • Desenvolva também a questão das relações que existem entre Tradição e Escritura, e a relação de ambas com a Igreja e o Magistério, indicando sucintamente as linhas principais da problemática do princípio protestante da sola Scriptura e a posição católica sobre o assunto.

Tema 9 (assunto: Tradição)

• Desenvolva a definição do conceito teológico de Tradição (tendo por base a Dei Verbum, as reflexões de Congar e o Catecismo da Igreja Católica), assim como as diferenças entre esse conceito e os sentidos do uso comum do termo tradição. Explique a manifestação da Tradição em tradições, ligando isso ao fenômeno da inculturação da Tradição. Fale sobre o valor das tradições e da inculturação, dê exemplos e manifeste sucintamente o problema e a solução das tradições caducas.

Tema 10 (assunto: inspiração da Sagrada Escritura)

• À luz do concílio Vaticano 2o, indique sinteticamente os sentidos próprio e analógico da expressão Palavra de Deus; • Ainda à luz do concílio Vaticano 2o, desenvolva a apresentação da origem divina da Bíblia, do sentido dado pelo mesmo autor divino presente em todas as diferentes etapas da composição do livro sagrado, e do caráter peculiar e distintivo dessa fase de gestação da Bíblia; • Sempre à luz do concílio Vaticano 2o, desenvolva a apresentação do essencial papel humano na composição da Bíblia e da importância do testemunho dos apóstolos, assim como a questão da verdade do livro sagrado e da mensagem nele contida sem erro.

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PROLEGÔMENOS

1. Apresentação do curso

• [programa, bibliografia, ementa, dossiês, avaliações] • Na grade curricular de 2011 do Departamento de Teologia estão previstos 41 diferentes cursos (considerados em conjunto 1o, 2o e 3o anos, tanto no 1o como no 2o semestre). • Naquele elenco, podemos detectar grandes áreas:

Direito Canônico

Bíblia

História da Igreja

Sacramentos

Moral

Metodologia

Seminários

“Tratados teológicos” ou “Teologia Sistemática” • Nessa última grande área (a dos assim chamados tratados ou, como é mais comum dizer, a área da Teologia Sistemática), cada curso aborda um grande tema teológico:

Cristo

Deus uno e trino

Igreja

Maria

O ser humano

As realidades últimas

Revelação • Do ponto de vista conceitual, o tema revelação é uma espécie de metatema, i.e., um tema que precede lógica e teologicamente os demais (não porém que seja mais importante, ou mais elevado, ou que tenha mais valor do que os demais). Tal precedência significa que os demais tratados têm como ponto de partida precisamente aquilo que a revelação mostra naquele campo específico: Cristo, Deus uno e trino, Igreja, etc. Por causa disso, o tratado que estuda o tema

revelação é qualificado de fundamental daí “Teologia Fundamental”.

2. As duas grandes vertentes da Teologia Fundamental

• O parágrafo acima mostra já uma tomada de posição dentro dos direcionamentos atuais da Teologia Fundamental. Os manuais de Teologia Fundamental nas últimas décadas se dividem aproximadamente em dois direcionamentos básicos: 1) A primeira linha da Teologia Fundamental segue uma orientação geral para toda a Teologia feita pela constituição Dei Verbum do Vaticano II. A Dei Verbum retomou um sábio ensinamento de Leão XIII na encíclica Providentissimus Deus de 1893 e frisou o seguinte: “o estudo dos Sagrados Livros deve ser como que a alma da Sagrada Teologia” (Dei Verbum 24).

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• Os manuais que seguem essa primeira linha assumem como tema básico da Teologia Fundamental o da revelação, e tratam o tema da fé como um tema importante porém secundário. • Tais manuais aprofundam a concepção bíblica sobre o assunto, assim como expõem algo da evolução multifacetada da reflexão dos teólogos que desde o início da era cristã trataram o tema da revelação. • Exemplos de manuais que adotam essa orientação são: Teologia da revelação, de René Latourelle, Teologia Fundamental, de Gerald O‟Collins e Jesus, epifania do amor do Pai, de Octavio Ruiz Arenas. • Essa primeira linha (que é a adotada por este curso de Teologia Fundamental) é minoritária atualmente. 2) É a segunda linha da Teologia Fundamental que é a majoritária hoje em dia. Os manuais que seguem essa segunda linha pressupõem que o tema básico da Teologia Fundamental é o da fé. • Um exemplo bem conhecido de livro que adota essa segunda linha é o Curso fundamental da fé, de Karl Rahner. • Após a encíclica Fides et ratio de João Paulo II, de 1998, essa segunda linha tornou-se predominante, de modo especial no continente europeu. Fruto da especialização filosófica do Sumo Pontífice, a Fides et ratio dedicou três números a mostrar a importância da filosofia para a Teologia Dogmática, a Teologia Fundamental e a Teologia Moral. • O número 67 é todo dedicado à Fundamental, e insiste em que esta deve desenvolver o tema da relação entre fé e reflexão filosófica. Tal número da encíclica fala o seguinte:

“A Teologia Fundamental, pelo seu próprio caráter de disciplina que tem por função dar razão da fé (cf. 1 Pd 3,15), deverá procurar justificar e explicitar a relação entre a fé e a reflexão filosófica. Já o concílio Vaticano I, reafirmando o ensinamento paulino (cf. Rm 1,19-20), chamara a atenção para o fato de existirem verdades que se podem conhecer de modo natural e, consequentemente, filosófico. O conhecimento dessas verdades constitui um pressuposto necessário para acolher a revelação de Deus. Quando a Teologia Fundamental estuda a revelação e a sua credibilidade com o relativo ato de fé, deverá mostrar como emergem, à luz do conhecimento pela fé, algumas verdades que a razão, autonomamente, já encontra ao longo do seu caminho de pesquisa. A essas verdades, a revelação confere-lhes plenitude de sentido, orientando-as para a riqueza do mistério revelado, onde encontram o seu fim último. Basta pensar, por exemplo, no conhecimento natural de Deus, na possibilidade de distinguir a revelação divina de outros fenômenos, ou no conhecimento da credibilidade da revelação, e na capacidade que tem a linguagem humana de falar de modo significativo e verdadeiro, mesmo do que ultrapassa a experiência humana. Por todas essas verdades, a mente é levada a reconhecer a existência de uma via realmente propedêutica da fé, que pode desembocar no acolhimento da revelação, sem faltar minimamente aos seus próprios princípios e autonomia. Da mesma forma, a Teologia Fundamental deverá manifestar a compatibilidade intrínseca entre a fé e a sua exigência essencial de se explicitar através de uma razão capaz de dar com plena liberdade o seu consentimento. Assim, a fé saberá mostrar plenamente o caminho a uma razão em busca sincera da verdade. Deste modo a fé, dom de Deus, apesar de não se basear na razão, decerto não pode existir sem esta; ao mesmo tempo, surge a necessidade de que a razão se fortifique na fé, para descobrir os horizontes aos quais, sozinha, não poderia chegar” (JOÃO PAULO II, Fides et ratio 67).

• (essa encíclica – assim como as outras – de João Paulo II pode ser encontrada na íntegra em dez línguas em: <www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/encyclicals/>) • Desde então os manuais de Teologia Fundamental adotaram quase sempre essa segunda orientação. Empregando um linguajar marcadamente filosófico, centralizam-se no estudo da fé, e relegam a uma consideração marginal o da revelação. São manuais que, em geral, não praticam o princípio da Bíblia como alma da teologia e, efetivamente, adotam como sua alma a filosofia.

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• O nosso parecer: • Parece-nos problemático conjugar a orientação dada por Dei Verbum 24 com aquela de Fides et ratio 67. Essa impressão é corroborada por aquilo que os manuais recentes de Teologia Fundamental realizam efetivamente como mensagem: eles tampouco conseguem conjugar as duas orientações, e se alinham nitidamente de acordo com a segunda. • Em suma: ou se adota como alma da Teologia a Bíblia, ou a Filosofia. Não é do nosso conhecimento que alguém tenha conseguido adotar ambas como alma. Esse impasse entre as duas orientações quase nunca é explicitado e discutido em Teologia. Aqui, deseja-se apresentá-lo e trazê-lo à tona para os alunos que estão iniciando o caminho da Teologia Fundamental. • Essa reflexão não significa de modo nenhum tirar o valor da Filosofia. Esta é de grande valor para a formação intelectual dos agentes de pastoral. Um pensamento treinado pela Filosofia e enriquecido com os conhecimentos desse campo do saber é capaz de mais se aprofundar no saber teológico.

• Mesmo sendo minoritária a primeira linha hoje em dia, este curso de Teologia Fundamental adota a orientação de Dei Verbum 24 por cinco motivos:

adotar a Bíblia como alma da Teologia permite explorar a noção semita de Deus que está contida na Sagrada Escritura: Deus com entranhas de misericórdia (Jr 31,20), que vai gradualmente revelando sua doação gratuita à humanidade até a plenitude, Jesus Cristo. Adotar a Filosofia como alma da Teologia leva com frequência a pressupor uma visão aristotélica de Deus como motor imóvel, no qual a misericórdia e a gratuidade têm escassa importância;

a adoção da Bíblia como alma da Teologia é mais fecunda para a formação de quem deseja aprofundar sua condição de agente pastoral e evangelizador na América Latina;

a segunda linha (a Filosofia como alma da Teologia) é típica de um contexto eclesial bem restrito, o europeu, e menos apropriada ao contexto mais vasto do Terceiro Mundo;

a adoção da Bíblia como alma da Teologia permite a consideração de temas essenciais que – nos manuais que adotam a segunda linha, a Filosofia como alma da Teologia – ou são tratados de forma marginal, ou então são simplesmente desconsiderados: revelação, Tradição e tradições, depósito da fé, inspiração da Escritura;

a adoção da Bíblia como alma da Teologia permite integrar melhor tais temas essenciais aos temas que são considerados nos demais cursos do currículo da Teologia, em especial nos cursos da área Bíblica e da área Sistemática;

3. Pressuposto, objetivo, método e porta de entrada do curso

Pressuposto • Os alunos que compõem essa turma do curso de Teologia Fundamental tiveram uma prévia formação acadêmica diversificada, o que é muito bom e enriquecedor. Estão agora iniciando-se numa nova área acadêmica, a Teologia. Não estão mais caminhando na área acadêmica de outrora. Bem-vindos à Teologia!

Objetivo • Em Teologia há um lema clássico: “Philosophia ancilla Theologiae” (“A Filosofia é serva/escrava da Teologia”).

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• É verdade que o termo ancilla, compreendido como escrava, tem hoje uma conotação pejorativa, e por isso convém que seja evitado. Isso não impede porém de reconhecermos dois elementos positivos intencionados por essa frase clássica:

primeiro, que Filosofia e Teologia são conciliáveis; como já afirmamos, um pensamento treinado pela Filosofia e enriquecido com os conhecimentos desse campo do saber é capaz de mais se aprofundar no saber teológico.

segundo, que Filosofia e Teologia não se encontram em igualdade de condições. • Cabe à Teologia perguntar e questionar os pressupostos da Filosofia, em especial o conceito de Deus adotado por esta ao tratar de tal tema. Em geral, é um conceito de Deus marcado pela influência da filosofia pagã grega (motor imóvel, essência que determina o movimento dos outros seres, ato puro que existe por necessidade, Ser último, Ser ilimitado, Ser impassível, Ser insensível). • A Teologia, porém, baseia-se no conceito bíblico-semita de Deus: “Deus é amor gratuito radical”, ao qual é intrínseco o fazer-se pequeno e ajoelhar-se. • À luz desses comentários, pode-se apresentar o objetivo do curso: trata-se de estudar a revelação de Deus, desse Deus da revelação bíblico-semita. • Buscamos com isso realizar o que é pedido numa passagem bíblica cujo uso é clássico na Teologia Fundamental, e que é também essencial para o presente curso:

“estejam sempre prontos a dar razão da esperança de vocês a todo aquele que o pedir; façam-no porém com mansidão e respeito” (1Pd 3,15-16).

• A proposta deste curso de Teologia Fundamental é “dar razão da nossa esperança”, mostrando a credibilidade da revelação cristã. Método • O estudo da revelação será feito inicialmente pela análise das coordenadas principais:

de Deus-revelador;

da pessoa humana que experimenta a revelação na fé;

da revelação que já aconteceu em plenitude na história e que continua se realizando no tempo posterior.

• Em seguida, pela análise histórico-teológica do tema da revelação:

na Bíblia;

na Patrística;

na Idade Média;

nos concílios de Trento e Vaticano 1o;

no Vaticano 2o, que operou a assim chamada volta às fontes. Porta de entrada do curso • A porta de entrada do curso é aquilo que a própria expressão diz: apenas uma porta de entrada ... não é o salão propriamente dito, mas uma forma de acesso ao mesmo.

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• A porta de entrada que será empregada será a consideração do tema experiência, que nos conduzirá ao tema experiência de Deus, ou seja, à consideração do modo como Deus se revela: a relação direta e imediata de Deus com a criatura humana. • Mas não haveria outras portas de entrada? • Claro que sim. Um curso de Teologia Fundamental bem que poderia começar entrando por outras portas, sempre na dependência das inclinações do professor que o estivesse ministrando. • Dependendo dessas inclinações do professor, poderia até não apresentar porta de entrada alguma, mas desde o início desenvolver-se dentro do majestoso salão da Teologia Fundamental. Aliás, é assim que geralmente acontece. • Uma outra porta de entrada possível é, por exemplo, aquela sustentada pelo teólogo jesuíta alemão Peter Knauer. Segundo Knauer, a porta de entrada da Teologia Fundamental não deveria explicitar o sentido da palavra Deus nas categorias do nosso pensar cotidiano, pois Deus não pode estar subordinado a um conceito da linguagem humana. A porta de entrada deveria, isto sim, ser de caráter metafísico, recebendo daquele autor o nome de “Ontologia relacional” (“relationale Ontologie”; cf. KNAUER, Peter. Der Glaube kommt vom Hören, cap. 2). • Tal porta de entrada apresentada por Knauer é ontológico-relacional porque utiliza a categoria ontológica de ser, e é chamada também de relacional porque põe o ser do mundo em relação constitutiva e distintiva para com Deus. Este aparece aí como o termo constitutivo do ser do mundo. O ser do mundo só pode ser explicado como um ser radicalmente relacionado com um outro ser totalmente diverso, aquele de Deus, sem o qual o ser do mundo nada é. • Qual o motivo para ser escolhido neste curso o tema experiência, e o tema decorrente experiência de Deus como porta de entrada? • A opção pela porta de entrada do tema experiência é decorrência de se optar por um curso de Teologia Fundamental cuja alma seja a Bíblia, e não a Filosofia. • A linguagem bíblico-semita para falar de Deus é eminentemente existencial e concreta. A intenção ao escolher tal porta de entrada é oferecer um gancho existencial e concreto para se começar a tratar o tema revelação. • O teólogo jesuíta australiano Gerald O‟Collins assim escreveu no Dicionário de Teologia Fundamental:

"A experiência não é o único caminho para o desenvolvimento de uma Teologia Fundamental. De qualquer forma, estudos claros e acurados podem fazer com que ela constitua uma abordagem frutuosa desta disciplina" (DTF, verbete “Experiência”, p. 318).

• Leituras sugeridas:

O‟COLLINS, Gerald. Teologia fundamental, capítulo 1, “Da Teologia à Teologia Fundamental”.

RUIZ ARENAS, Octavio. Jesús, epifanía del amor del Padre, parte 1, capítulos 1 e 2.

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I - ALGUMAS NOÇÕES INICIAIS

1. Experiência: definição e importância

• Definição de experiência: é a relação direta, a interação direta ou o contato direto (ou seja, sem intermediários, em 1a mão) do sujeito com uma realidade. Sujeito Realidade experimentada • Exemplos de realidades que podem ser assim experimentadas:

pequi

morte de uma pessoa amada

conhecer a Índia ganhar um prêmio vultoso na Mega-Sena

ser estrangeiro

• Contraposto à experiência (relação direta) é o conhecer por ouvir dizer. • Isso não significa que esse último seja negativo. O conhecer por ouvir dizer tem também o seu valor:

permite conhecer realidades difíceis de serem atingidas (ex: o fundo do mar, a Lua).

permite um conhecimento prévio de uma realidade que será experimentada depois (ex: uma cultura distante e fascinante).

“Chegamos à maioria de nossos conhecimentos não por experiência própria nem por investigação pessoal e direta. Nós os adquirimos quase sempre por experiências [dos outros que nos são] comunicadas (experiência alheia, experiência de outras pessoas, que nos foi participada oralmente ou por escrito). [...] Conhecemos o mundo, em primeiro lugar, através das palavras dos outros [...]”; MADURO, Otto. Mapas para a festa. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 126.

• Importância da experiência: a realidade experimentada marca (em algum nível: do superficial ao profundo) o sujeito. • A realidade experimentada pode portanto construir o sujeito, como também pode fazer-lhe mal. • Exemplos de experiências que marcam significativamente o sujeito:

nascer e ser criado numa determinada família (pacífica, violenta, ...)

casar-se com uma pessoa com determinada personalidade (pacífica, violenta, ...) o tipo de formação religiosa e/ou sacerdotal

• Leituras sugeridas: O‟COLLINS, Gerald. Teologia Fundamental, capítulo II, “A experiência humana”;

Dicionário de Teologia Fundamental, verbete “Experiência”.

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2. A experiência de Deus: aí se dá a revelação divina

• Definição de experiência de Deus (ou experiência com Deus): é a relação dialogal, direta e sem intermediários entre o sujeito e a realidade-Deus.

Sujeito Realidade-Deus • Santo Inácio de Loyola, nos Exercícios Espirituais:

“Aquele que dá os Exercícios Espirituais [...] deixe imediatamente agir o Criador com a criatura, e a criatura com seu Criador e Senhor” (EE 15).

• De novo retomamos a pergunta da página 14: por que usar este tema da experiência em geral, e a experiência de Deus em particular, como porta de entrada? Por que falar de experiência de Deus no estudo da revelação? • A intenção é fazer ver, desde o início do curso, que revelação não é a mera transmissão de uma série imensa de informações e de belas ideias sobre Deus, mas sim algo muito mais vital e existencial. A revelação implica numa relação dialogal com Alguém que vai se dando a conhecer. • Essa visão de fundo pode parecer sem muita importância agora no início, mas é de extrema relevância; ela aparecerá inúmeras vezes no percurso histórico-teológico que faremos na segunda parte do curso. • A experiência de Deus, na qual se dá a revelação, é um diálogo, um relacionamento explícito e consciente com aquele que se pode chamar de:

Alguém absoluto;

Santo por excelência;

Mistério absoluto;

Amigo sagrado;

... (outros nomes ...)

• Exemplos de acontecimentos ou ocasiões onde se deu ou pode se dar a experiência de Deus. No passado:

acontecimentos do povo de Israel

experiências com Jesus de Nazaré feitas pela primeira geração cristã

ações do Espírito Santo em todos os seres humanos da história

nas religiões em geral

No presente:

oração

sacramentos (especialmente a eucaristia)

eventos da vida cotidiana

retiros (ocasiões mais intensas)

liturgia das horas

terço

... (outras formas)

no cristianismo

no cristianismo e nas religiões em geral

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• Uma citação famosa de Karl Rahner:

“Apenas para explicar o que se quis dizer, e sabendo do fardo que o conceito de mística carrega (conceito que, se bem compreendido, não está em contradição com a fé no Espírito Santo, mas sim implica este último), poder-se-ia dizer o seguinte: o cristão do futuro ou será um místico que experimentou algo, ou não será mais cristão. Isso porque a religiosidade do futuro não mais se baseará numa convicção unânime, natural e pública e num costume religioso, anteriores a uma experiência e decisão pessoal” (RAHNER, Karl, “Frömmigkeit früher und heute”. In: ID., Schriften zur Theologie. Zur Theologie des geistlichen Lebens. Einsiedeln: Benziger, 1966, v. 7, p. 22; tradução em espanhol: ID., Escritos de Teología. Madrid: Taurus, 1969, v. 7, p. 25).

• Eis um texto atual sobre a importância da relação dialogal direta e sem intermediários com Deus. O artigo em questão é originalmente dirigido apenas aos religiosos, mas o que fala sobre a oração vale também para cristãos em geral (as assinalações em itálico são minhas):

“Um ponto a ser compreendido [...] diz respeito ao que seja a oração cristã. Não é um ato como os demais atos do dia a dia: levantar, escovar os dentes, rezar, tomar café. A oração consiste na comunhão continuada com Deus, com quem se está sempre em diálogo, a quem se escuta em cada instante do dia e a quem se procura responder com a mais total transparência e desejo de ser obediente. Existem momentos específicos, ao longo do dia, para se entregar à oração. Entretanto, ao se dizer o „amém‟ final, a vida de oração não fica em suspenso até o próximo momento, em que se deixará tudo „para ficar a sós com Deus‟. Antes, ela continua e, em determinadas circunstâncias, no auge da ação, poderá acontecer de forma até mais intensa e comprometedora. A autêntica oração resulta da comunhão com Deus. A refundação da vida de oração de cada religioso começa com o recentramento em Deus, com quem se está em diálogo, ao longo de toda a jornada. A oração formal, particular ou comunitária, inserir-se-á nesta dinâmica abrangente e tomará novo impulso, pois os lábios falarão do que vem do íntimo e não palavras bonitas para impressionar, tampouco ter-se-á a ousadia de aproveitar os momentos de oração para alfinetar os irmãos ou lhes jogar indiretas. Não será preciso recorrer a métodos sofisticados de oração ou gastar horas e horas para preparar orações bem elaboradas, cheias de dinâmicas, músicas de fundo, símbolos e gestos. A simplicidade será o caminho mais seguro para se encontrar o Senhor e dialogar com ele” (VITÓRIO, Jaldemir, “A refundação dos religiosos: uma exigência do Espírito!”, Convergência 44 [2009] p. 477).

• Uma bela poesia de Adélia Prado:

A Pintora

Hoje de tarde pus uma cadeira no sol pra chupar tangerinas e comecei a chorar, até me lembrar de que podia falar sem mediação com o próprio Deus daquela coisa vermelho-sangue, roxo-frio, cinza. Me agarrei aos seus pés: Vós sabeis, Vós sabeis, só Vós sabeis, só Vós. O bagaço da laranja, suas sementes me olhavam da casca em concha na mão seca. Não queria palavras pra rezar, bastava-me ser um quadro bem na frente de Deus pra Ele olhar.

(Adélia Prado, A duração do dia. 2.ed. São Paulo: Record, 2011, p. 74).

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• Lembramos aqui que a proposta deste curso de Teologia Fundamental é “dar razão da nossa esperança” (1Pd 3,15), mostrando a credibilidade da revelação cristã (cf. página 13). • O primeiro passo nesse processo de “dar razão da nossa esperança” é ressaltar o caráter dialogal da revelação que acontece na experiência de Deus, ou seja, que acontece no diálogo “eu-você” entre o ser humano e Deus. O fundamento da credibilidade da revelação cristã encontra-se na experiência de Deus assim compreendida. • Durante o longo tempo da cristandade (quando, nos termos de Rahner, a religiosidade se baseava “numa convicção unânime, natural e pública e num costume religioso”), o papel fundamental do diálogo “eu-você” com Deus, da experiência de Deus, para a credibilidade da revelação cristã ficou como que deixado de lado. • Conhecimento de Deus e experiência de Deus não são equivalentes. Pode-se conhecer Deus sem experiência de Deus. Pode-se acumular um grau razoável de conhecimento sobre Deus, sem no entanto entrar em relação dialógica com Ele. • Três características da experiência de Deus:

1) É oferta gratuita. Deus se propõe gratuitamente; o ser humano responde (aceita ou não) o Deus que se oferece gratuitamente.

2) É progressiva. Na experiência de Deus, o ser humano vai crescendo no conhecimento desse Alguém, num processo demorado. É o que chamamos de revelação ou autocomunicação de Deus.

3) É individual e coletiva. Além do indivíduo, também grupos e comunidades fazem a experiência.

Grupo ou comunidade Realidade-Deus • Os indivíduos de um grupo podem fazer uma experiência coletiva em modos distintos (um exemplo geral é um nascimento que acontece numa família; uma será a experiência do pai, outra a da mãe, e outra ainda a dos irmãozinhos já existentes). • O mesmo acontece na experiência de Deus. Exemplos:

Êxodo do Egito (Moisés e Aarão; os que queriam voltar para o Egito)

Primeira comunidade cristã • Por isso o indivíduo não deve absolutizar a sua experiência de Deus. Outros também a fazem, e com frequência de modos diferentes. • Qual a diferença entre experiência religiosa e experiência de Deus? • Experiência religiosa representa algo mais amplo, que inclui tanto a experiência de Deus como outras coisas que não são experiência de Deus. • Dito de outro modo: a experiência de Deus é um tipo de experiência religiosa, mas nem toda experiência religiosa é experiência de Deus. • A experiência de Deus é a experiência religiosa dialogal; a experiência religiosa não dialogal não é experiência de Deus.

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“Alguém” que

é tratado

como “você”

Esquema: “Experiência religiosa e experiência de Deus”

Experiência religiosa

Experiência religiosa não dialogal Experiência religiosa dialogal

Experiências religiosas que não são

experiência de Deus Experiência religiosa

que é experiência de Deus A)

Por exemplo: a) “Energia cósmica” b) “Ilimitado absoluto” c) “Mistério do Ser absoluto”

B)

Sujeito

Sujeito

Sujeito

“Algo”,

“Alguma coisa”

“Alguém” que é

tratado como “ele”

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especialmente para

os jesuítas

• Existe analogia entre a experiência de se conhecer uma pessoa humana e a experiência de Deus. Ressaltemos algumas semelhanças e diferenças.

Semelhanças

Experiência com uma nova pessoa Experiência de Deus

No começo: parte-se do “zero”, ou então já se ouviu falar algo sobre aquela pessoa (inclusive informações falsas).

No começo: em geral, já se ouviu falar alguma coisa de Deus (doutrinas, testemunhos ...); pode-se até mesmo ter informações falsas sobre Deus.

Progressividade: na convivência, vai-se conhecendo diretamente a pessoa num processo lento.

Progressividade: no encontro eu-você com Deus, leva-se muito tempo para conhecê-lo bem.

Sem a convivência (o diálogo, o encontro, a experiência) com a outra pessoa, não a conheceremos em profundidade.

Sem a convivência (o diálogo, o encontro, a experiência) com Deus, não o conheceremos bem.

Diferença

Experiência com uma nova pessoa Experiência de Deus

Na convivência (no diálogo, no encontro, na experiência), às vezes pode-se descobrir algo totalmente novo sobre a pessoa, que ninguém sabe.

Jesus Cristo é a plenitude da revelação de Deus. Isso significa que tudo o que Deus tinha para revelar de si já foi ali revelado, inclusive o elemento positivo de que Deus é mistério. Hoje, nada descobriremos sobre Deus que já não tenha sido descoberto antes por outras pessoas.

• Leituras sugeridas:

O‟COLLINS, Gerald. Teologia Fundamental, capítulo III, “A autocomunicação divina”; LIBANIO, João Batista. Teologia da revelação a partir da modernidade, cap. VII, “Revelação e

experiência”; BARRY, William. Deus e você. A oração como relacionamento pessoal.

RAHNER, Karl. Palavras de Inácio de Loyola a um jesuíta de hoje. São Paulo: Loyola (Coleção Ignatiana, 18), p. 8-13.

RUIZ DE GOPEGUI, Juan. Experiência de Deus e catequese narrativa. São Paulo: Loyola, 2010 (Coleção Theologica);

ARRUPE, Pedro. A experiência de Deus na vida religiosa. São Paulo: Loyola (Coleção Ignatiana, 4)

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3. A revelação considerada da parte de Deus: autor, objeto, iniciativa, motivo, finalidade

• Vimos que, na experiência com Deus, vai-se crescendo no conhecimento desse Alguém, num processo demorado. Dissemos que aí acontece a revelação de Deus. • Vimos também que, na revelação, Deus propõe ou oferece a si mesmo gratuitamente; o ser humano responde se aceita ou não o Deus que se oferece de graça. • Podemos resumir isso esquematicamente: AUTOR ou Sujeito da revelação (i.e., quem a faz) é Deus; OBJETO da revelação (i.e., o que é revelado) é também Deus; Na revelação, o autor e o objeto são idênticos; toda a iniciativa da revelação parte de Deus. • Qual é o MOTIVO de Deus tomar essa iniciativa? O QUE MOTIVA Deus a tomá-la? • O motivo é o amor gratuito (graça, gratuidade) radical de Deus. Isso quer dizer que, da parte de Deus, não há obrigação nem necessidade. A revelação é feita com gratuidade radical e incondicional da parte de Deus. É oferecimento, dom, proposta, convite. • Por ser gratuita da parte de Deus, é uma iniciativa que não obriga a ser acolhida. • Qual é a FINALIDADE de Deus ao tomar tal iniciativa? Deus está visando o quê? • A finalidade é recompor as pessoas como “imagem e semelhança” (cf. Gn 1,26) de Deus, ou seja, recompô-las como o amor gratuito radical. • Deus se revela a uma humanidade encharcada de violência. A violência é uma realidade presente por toda a história humana; a violência caracteriza a história humana, e a minha história. • À violência podem ser dados outros nomes:

mal

rejeição parcial do amor gratuito

endurecimento do coração

maldade

vida diminuída

vida ameaçada

pecado • Em Teologia, o primeiro e o último nomes – mal e pecado – são preferentemente empregados. • Em seu acesso à revelação, os seres humanos não estão portanto num estado neutro ou imparcial. Em suas existências, em nossas existências, encontramo-nos num estado de rejeição parcial do amor gratuito. É uma situação na qual a vida encontra-se ameaçada ou diminuída. Dizendo o mesmo em outras palavras, encontramo-nos num estado de violência, de maldade, de pecado. • Portanto, a FINALIDADE de Deus ao tomar tal iniciativa da revelação é recompor as pessoas como “imagem e semelhança” (cf. Gn 1,26) de Deus, ou seja, recompô-las como o amor gratuito radical. Tal recomposição chama-se em Teologia salvação. • A FINALIDADE da revelação é portanto a SALVAÇÃO, tanto individual como coletiva.

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• É salvação, neste mundo, da:

violência

maldade

culpa

doença

solidão • E salvação, após a morte, da supressão definitiva. • Em resumo:

“Deus revela-se salvando, salva revelando-se” (LIBÂNIO, João Batista, Teologia da revelação a partir da modernidade, p. 159).

• Leituras sugeridas:

LATOURELLE, René, Teologia da revelação, quinta parte, capítulo 9, “Finalidade da revelação”;

______, Teologia da revelação, quinta parte, capítulo 1, “A revelação como palavra, testemunho e encontro” (especialmente páginas 431ss);

LIBANIO, João Batista, Eu creio, nós cremos, capítulo 13, “Fé e salvação”.

4. A revelação considerada da parte dos seres humanos: o tema da fé

4.1 Fides qua e fides quae • A mesma palavra fé pode designar, em Teologia, duas coisas que são diferentes. Devemos ter bem clara a diferença entre esses dois sentidos. • Tornou-se habitual referir-se a esses dois sentidos diferentes com duas expressões em latim: uma é fides qua, a outra é fides quae. Ambas são expressões reduzidas a partir de duas frases naquela língua. Os livros de Teologia em geral as utilizam sem maiores explicações; aproveitem esta que é aqui oferecida ...

• A primeira delas – fides qua – é a redução da frase “Fides qua creditur”. • Fides significa fé e encontra-se declinada no nominativo. Qua é o pronome relativo feminino singular, declinado no ablativo; significa com a qual. Creditur é o verbo crer conjugado na 3a pessoa do singular do presente do indicativo, mas da conjugação passiva. • A frase portanto é traduzida como “A fé com a qual se crê”. • Portanto o sentido da palavra fé designado através da expressão fides qua refere-se à dimensão subjetiva. É a fé enquanto produto da decisão do sujeito. Fides qua indica aquilo que em Teologia é comumente chamado de ato de fé (uma expressão importante!) ou atitude de fé. A fides qua, ou seja, o ato de fé, surge como uma decisão da pessoa e se mantém como uma renovação constante daquela decisão.

• A importância da experiência de Deus para a fides qua (ato de fé): É muito comum a fides qua tomada em base a uma relação não dialogal com Deus; essa fides qua será porém mais frágil do que uma outra fides qua fundada na experiência de Deus. A fides qua (ato de fé) feita em base a tal experiência com Deus será mais sólida.

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• A segunda expressão – fides quae – é a redução da frase “fides quae creditur”. Quae é o mesmo pronome relativo feminino singular da frase “fides qua creditur”, mas declinado no acusativo. • Traduzida literalmente, “fides quae creditur” significa “a fé que é acreditada”. Em bom português, a tradução é “A fé na qual se crê”. • Portanto o sentido da palavra fé designado através da expressão fides quae refere-se à dimensão objetiva. É a fé enquanto palavras objetivas ou conteúdos (por exemplo, imagens visuais), que normalmente já existiam antes do ato de fé (fides qua) do sujeito. • Um exemplo é a chamada profissão de fé (ou credo) que é proferida na missa, logo após a homilia.

Geração A Geração B • A fides quae (fé expressa e objetivada em conteúdos de palavras ou imagens visuais) abre-nos para a consideração da dimensão comunitária da fé; leva-nos a passar do eu creio para o nós cremos. • Esse nós não se refere só ao tempo presente, mas também às gerações anteriores. • Sobre a fides quae como imagens visuais artísticas, cf. MASTACCHI, Roberto. Il credo nell’arte cristiana italiana. Siena: Cantagalli, 2007. Sobre a fides quae como palavras, a bibliografia é vasta. Basta pesquisar na Biblioteca Padre Vaz o item credo. • O ser humano é constitucionalmente herdeiro, tanto biológica como culturalmente. Herdamos, por exemplo, a língua materna e determinadas estruturas de pensamento; herdamos também expressões objetivas de fé. • Na página 14, vimos que “hoje, nada descobriremos sobre Deus que já não tenha sido descoberto

antes por outras pessoas”. Pois tais pessoas expressaram sua fides qua em conteúdos objetivos de palavras ou imagens visuais (fides quae). • Hoje, tais expressões nos poupam do trabalho de recomeçar tudo da estaca zero. A nossa experiência atual de Deus é facilitada pela fides quae que herdamos do passado. • Podemos concluir que há uma relação íntima entre estas duas coisas diferentes que chamamos de fides qua e fides quae. Elas se fortalecem e se estimulam reciprocamente. • Leitura sugerida:

O‟COLLINS, Gerald, Teologia Fundamental, capítulo 6, “Afirmações de fé partilhadas”.

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4.2 Fé como dom de Deus e como resposta do ser humano

• Uma citação serve de apresentação:

“Há em nós alguém que age primeiro: numa iniciativa soberana que nos convida a crer na palavra do Cristo que ressoa externamente” (LATOURELLE, René, Teologia da revelação, p. 498)

• Deus age primeiro. A resposta humana de fé é secundária. A fé do ser humano responde à revelação feita por Deus. • A fé, porém, não é apenas uma resposta dada pelo ser humano; é também um dom de Deus. Mas como pode a fé ser ao mesmo tempo dom de Deus e resposta humana? • Para compreender melhor isso, precisamos ter clara a diferença entre fides qua e fides quae.

• A fé, ENQUANTO RESPOSTA DO SER HUMANO, corresponde ao ato de fé do sujeito. É a fides

qua, que exige o empenho da liberdade da pessoa.

• Partindo de Deus toda a iniciativa da revelação, aos seres humanos cabe algo muito

importante: dar uma resposta a tal oferecimento radicalmente gratuito.

• Por resposta entende-se aqui não evidentemente um mero falar sim, não ou talvez. A resposta

consiste na aceitação ou rejeição da iniciativa revelatória de Deus.

• Por resposta entendemos a entrada ou não numa convivência com o Autor da revelação, uma

convivência consciente e frequente com o “Santo por excelência”, com o “Alguém absoluto”,

com o “Amigo sagrado”.

• Podemos também expressar essa ideia de resposta como o dar ou não um salto, o assim

chamado salto da fé, com o qual se acolhe como verídico o que é revelado.

• Uma outra figura para expressar essa ideia de resposta é a do sorriso:

“Como primeiro encontro entre Deus e o homem, a fé equivale ao sorriso de amizade no diálogo humano”

(LATOURELLE, René, Teologia da revelação, p. 432).

• Podemos compreender a fé, ENQUANTO DOM DE DEUS, em dois sentidos:

• De um ponto de vista histórico, a fides quae, ou seja, aquelas expressões objetivadas em

conteúdos de palavras ou imagens (que normalmente já existiam antes do ato de fé do

indivíduo), é um dom de Deus mediado pela comunidade eclesial.

• De um ponto de vista ontológico, a fides qua, ou seja, o ato de fé, só é possível porque Deus o

permite universalmente aos seres humanos. Na sua estrutura ontológica que é um dom de

Deus, a universalidade dos seres humanos tem a capacidade de realizar o ato de fé. Nesse

sentido, é Deus que torna universalmente possível a fides qua, o ato de fé.

• Leituras sugeridas:

LATOURELLE, René, Teologia da revelação, quinta parte, capítulo 5, “Revelação e luz da fé”;

RUIZ ARENAS, Octavio, Jesús, epifanía del amor del Padre, capítulo 7, itens 1, 2 e 3;

Dicionário de Teologia Fundamental, verbete “Fé”;

LIBANIO, João Batista, Eu creio, nós cremos, capítulo 9, “A liberdade do ato de fé”;

ALFARO, Juan, “Naturaleza de la fé”, em Sacramentum Mundi, III, col. 106-124;

DULLES, Avery, Models of revelation, capítulo 15, “The acceptance of revelation”;

O‟COLLINS, Gerald, Teologia fundamental, capítulo 5, “Experimentando a autocomunicação divina na fé”.

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4.3 Sobre a relação entre razão e fé

• Uma questão clássica da Teologia Fundamental é aquela das relações possíveis entre razão e

fé, entre a atividade do raciocínio e a capacidade de crer. Apresentaremos sinteticamente aqui

um resumo dos cinco principais modos de compreender tal relação.

1) Um dos modos mais importantes e famosos é o assim chamado fideísmo. Neste, a fé

implicaria numa espécie de sacrifício da razão. Com a intenção de manter o caráter autêntico e

genuíno da fé, a posição fideísta rejeita a atividade crítica do raciocínio, do pensamento.

• A posição fideísta justifica a fé unicamente através da convicção pessoal, ou então por meio

de algum texto mostrado no seu aspecto literal. O fideísmo rejeita uma justificação da fé que

seja baseada no raciocínio.

• A posição fideísta julga inúteis a razão, o raciocínio e o pensamento, e os trata de um modo

hostil.

2) Outro modo importante e famoso de compreender a relação entre fé e razão é o assim chamado racionalismo. Neste, a utilização da razão implicaria numa espécie de sacrifício da fé. Com a intenção de manter o caráter autêntico e genuíno do raciocínio e do pensamento, a posição racionalista desqualifica a capacidade de crer. • A posição racionalista, na sua forma mais pura, considera que a razão é a única instância capaz de julgar o que é verdadeiro e o que é falso, rejeitando toda demonstração da verdade que se baseie em crenças ou convicções pessoais. Típica do século XIX (por exemplo, Nietzsche e o positivismo), esta segunda posição sustenta que convicções e crenças não têm direito de cidadania no território da ciência. • A razão pode e deve trabalhar sem a fé. • A fé e a capacidade de crer são julgadas pela posição racionalista como inúteis, e são tratados por ela como características de um estado humano ainda imaturo ou infantil. 3) Uma terceira posição dá extremo valor à razão: esta seria a única instância capaz de determinar a verdade. Nessa terceira posição, entretanto, não há hostilidade nem menosprezo à fé. • Nessa terceira posição, um certo limite é atribuído à razão: esta não consegue dar resposta a tudo. Mas ainda assim a razão continua sendo a única instância capaz de julgar o que é verdadeiro ou falso, mesmo que tal capacidade de julgamento não seja considerada onipotente. • Nessa terceira posição a fé é como que colocada entre parênteses. Suspende-se qualquer juízo – quer de aceitação quer de negação – sobre Deus e sobre as coisas que se afirmem como reveladas por ele. 4) A quarta posição é a mais aceita na Teologia católica. Ela admite que tanto a razão como a fé são válidas no acesso à verdade. A fé é tratada como uma instância legítima nessa tarefa, e uma legitimidade é também conferida à razão. • Na quarta posição, um certo limite é atribuído à razão, no mesmo sentido da terceira posição acima: a razão não consegue dar resposta a tudo, a razão não é onipotente. • Essa quarta posição é muito comum na teologia católica desde o final do século XIX, e é em geral adotada até hoje nos manuais de Teologia Fundamental de origem europeia.

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• Há um documento do Magistério que é muito usado para expor a quarta posição. Trata-se da constituição Dei Filius do concílio Vaticano 1o, elaborada no final do século XIX num contexto de discussão contra racionalismo. Ali se afirma o seguinte:

“A mesma santa mãe Igreja sustenta e ensina que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, a partir das coisas criadas [...]; por todos, mesmo nas condições atuais do gênero humano, pode ser conhecido facilmente, com firme certeza e sem mistura de erro, aquilo que nas coisas divinas não é por si inacessível à razão humana. [...] O constante sentir da Igreja Católica tem também sustentado e sustenta que há duas ordens de conhecimento, distintas não só pelo princípio, mas também pelo objeto. Pelo princípio, visto que numa conhecemos pela razão natural e na outra pela fé divina. Pelo objeto, porque, além daquilo que a razão natural pode atingir, são propostos para crermos mistérios escondidos em Deus, que não podemos conhecer sem a divina revelação” (DH 3004. 3015).

• A quarta posição concebe que o ser humano – se assim o desejar – possa operar a sua capacidade de raciocínio sem nenhuma interferência da crença. Concebe-se aí que a razão possa ser exercida – se a pessoa assim o desejar – de um modo puramente racional e isento de qualquer fé. Tal forma de operação da razão, em linguagem teológica, é chamada de natural, ou seja, dependente exclusivamente da iniciativa humana. A categoria de natural distingue-se daquela de sobrenatural, que designa o campo das coisas que dependem da iniciativa divina, como a revelação. Tal distinção natural-sobrenatural impôs-se à Teologia desde o tempo da Escolástica, e em especial a partir de Tomás de Aquino. • Evidentemente esta quarta posição é bem distinta da segunda, o racionalismo. • Curiosamente, porém, os dois modos de compreender a relação entre razão e fé têm num ponto uma certa proximidade. Ambas concebem a possibilidade da razão conseguir trabalhar sem nenhum ato de fé. Para o racionalismo (por exemplo, no ateísmo e no positivismo), a razão pode e deve trabalhar sem a fé. Para a quarta posição, a razão pode – se o desejar – trabalhar sem a fé. 5) Gostaríamos de oferecer aqui uma reflexão pessoal e acrescentar ainda um quinto e último modo de compreender a relação entre razão e fé. Por vezes, num juízo apressado e superficial, esse quinto modo é classificado de sobrenaturalismo. Pensamos porém que encerra elementos de valor que não podem ficar fora da discussão das relações entre razão e fé. • Em comum com o quarto modo descrito anteriormente, o quinto admite que tanto a razão como a fé são válidas no acesso à verdade. A fé é sem dúvida uma instância legítima para o acesso à verdade. Uma legitimidade nesse acesso é também conferida à razão. A esta é também reconhecido um certo limite, no mesmo sentido da terceira e da quarta posições anteriormente descritas: a razão não consegue dar resposta a tudo. • No entanto, o que distingue o quinto modo é ver que a razão humana não pode funcionar em modo absolutamente independente da fé. A razão não pode ser exercida de um modo puramente racional e isento de qualquer fé. O ser humano só consegue operar a sua capacidade de raciocínio por operar antes alguma crença decorrente de um ato de fé. • Como entender isso? Em primeiro lugar, a quinta posição vê que o ateísmo, o agnosticismo e a atitude de incredulidade radical não são neutros ou objetivos, ou seja, não são atitudes puramente racionais nas quais a fé não está envolvida. Tal presunção de neutralidade ou objetividade do observador, aliás, era típica do positivismo.

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• O ateísmo e o agnosticismo valem-se do ato de fé na inexistência de Deus, a qual não podem provar mediante o emprego apenas da razão. O agnosticismo e a incredulidade, por sua vez, valem-se do ato de fé – por exemplo – na morte como o fim da existência da pessoa, ou então no caráter exclusivamente humano de Jesus Cristo. Esses são também elementos de fé que não podem ser provados mediante o emprego apenas da razão. • Em segundo lugar, nem sequer um cientista que se julgue puramente racional pode prescindir daquilo que em Lógica se chama pressuposto. Trata-se de um pressuposto que não pode ser provado pela pura razão, que é uma opinião adotada com profunda convicção. Dito de modo mais direto: é uma crença decorrente do que a Teologia chama de ato de fé. O que é pressuposto em toda a atividade científica é a invariabilidade das leis da natureza ao longo do tempo e do espaço. Em termos técnicos, essa invariabilidade é chamada de simetria. O físico Paul Davies comentou que “toda a Física se fundamenta na noção de lei, a crença [o itálico é meu] de que vivemos num universo ordenado” (DAVIES, Paul. Introduction. In: FEYNMAN, Richard. The character of physical law. London: Penguin Books, 1992, p. 10). • A regularidade da natureza, ou seja, o fato da natureza ser governada por leis, manifesta-se no fato essencial – mas a princípio banal – de que deslocamentos no tempo e no espaço não alteram a repetição de um fenômeno da natureza. Se um fenômeno da natureza acontece em determinadas condições no Brasil, no futuro e nas mesmas condições ele acontecerá igualmente na Ásia ou na América Central. Como já bem o notou o biólogo Stephen Jay Gould (JAY GOULD, Stephen. Is uniformitarianism necessary?, American Journal of Science, v. 263, mar. 1965, p. 226), sem a Ciência assumir tal invariabilidade, não possui nenhuma base para formular conclusões gerais a partir de um número limitado de observações. Richard Feynman (um dos mais destacados cientistas do século XX e prêmio Nobel de Física em 1965) afirmou que “a melhor característica da lei física é a sua universalidade” (FEYNMAN, Richard. The character of physical law. London: Penguin Books, 1992, p. 87). Foi só no século XX que a consideração dessa simetria, ou invariabilidade no tempo e no tempo, dos fenômenos da natureza ganhou importância na reflexão científica. • Acontece que tal simetria ou invariabilidade no tempo e no espaço não pode ser provada só pela razão. A pressuposição de tal invariabilidade é, efetivamente, uma crença decorrente de um ato de fé. É essa invariabilidade que vem pressuposta no próprio método científico, quando os resultados obtidos por um cientista são repetidos, trabalhados e comprovados por outros pesquisadores em tempos e espaços diferentes. Tal trabalho feito por alguém que se encontra em outro tempo e espaço, diferentes de quem realizou o trabalho original, pressupõe a simetria ou invariabilidade no tempo e no espaço das leis da natureza. Em Teologia essa pressuposição pode ser chamada de crença, e é decorrente de um ato de fé. A Ciência, portanto, carrega um essencial elemento de fé que pertence à estrutura mesma do seu método, e isso não diminui o valor do conhecimento confiável que ela obtém. • Mesmo a hipótese, levantada pelo físico Martin Rees, da existência de outros universos com outras leis diferentes não escapa a esse pressuposto ou crença. De fato, Rees acredita que “o nosso universo observável – tudo o que podemos ver até os limites dos nossos telescópios – é apenas uma parte de um conjunto, cujos [universos individuais] apresentariam até mesmo diversidade nas leis físicas” (REES, Martin. Just six numbers. The deep forces that shape the universe. London: Phoenix, 2000, p. 25; cf. também ibid., p. 169). Mesmo que cada um desses universos ostentasse leis físicas exclusivas, no âmbito de cada um deles tais leis exclusivas continuariam a manifestar simetria ou invariabilidade ao longo do espaço e do tempo. • Em suma, a quinta posição sustenta que a razão humana (mesmo que se julgue totalmente racional e, nesse sentido, pretensa e positivisticamente objetiva e neutra) só consegue na realidade desenvolver a sua atividade racional valendo-se de algum ato de fé.

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• Nosso juízo: • Os modos 1, 2 e 3 de compreensão das relações entre razão e fé são claramente incompatíveis com o ensinamento da Igreja. Razão e fé são indiscutivelmente válidas para o acesso à verdade. • O modo 4 é aquele dominante na Teologia católica. No nosso entender particular, deixa-se levar – sem culpa, sem dar-se conta disso – por um estado de compreensão do assunto típico do século XIX. Sob um aspecto bem específico, o modo 4 tem um ponto de proximidade (embora não refletido) com um elemento da compreensão da fé próprio de certas correntes derivadas do iluminismo e do positivismo. Algumas correntes do iluminismo (das quais o positivismo talvez seja o melhor representante) concebiam ser possível à razão operar sem nenhuma espécie de interferência da fé. Julgavam que tal estado sem fé seria neutro e objetivo, e que a adoção da fé removeria tal neutralidade e objetividade. O modo 4 também admite que seria possível à razão – se a pessoa assim o desejar – operar sem interferência da fé, no modo que em Teologia se chama natural. • Essa visão teórica de que a razão possa operar sem interferência da fé, no entanto, a nosso ver se mostra ingênua e equivocada. Na realidade, como vimos, mesmo as linhas de pensamento que se julgam absolutamente racionais, e nesse sentido neutras e objetivas, também se valem de atos de fé, embora dificilmente o admitam e raramente reflitam sobre isso. • Adotando a possibilidade de que seja possível à razão ser exercida – se a pessoa assim o desejar – de um modo exclusivamente racional e isento de qualquer fé, a reflexão teológica que abraça a posição 4 fica em séria dificuldade na clássica questão da Teologia Fundamental a respeito das relações entre fé e razão. A reflexão teológica fica como que atolada numa necessidade de provar o valor da fé para posições que se julgam – equivocadamente, à semelhança do positivismo – puramente racionais e neutras, como o ateísmo, o agnosticismo e a incredulidade radical. • O modo 5 de compreender a relação entre razão e fé, no nosso modo particular de ver, desmascara o neo-positivismo que – pressupondo-se equivocadamente como neutro, objetivo e isento de fé – até hoje aflora por vezes na reflexão sobre a relação entre razão e fé e se põe a atacar a fé cristã, diminuindo-a ao acusá-la de ser não racional e não ter caráter científico. Com a reflexão do modo 5, a nosso ver a clássica questão da justificação da fé diante da razão assume um rosto mais realista: a razão, de fato, não consegue desenvolver sua atividade sem algum pressuposto, sem alguma crença, decorrentes de um ato de fé. A fé, portanto, não é uma espécie de acréscimo subjetivo que tira a pretensa neutralidade e objetividade do ser humano, mas sim é algo intrínseco à condição humana. • Leituras sugeridas:

LIBANIO, João Batista, Eu creio, nós cremos, capítulos 8 e 10;

RUIZ ARENAS, Octavio, Jesús, epifanía del amor del Padre, capítulo 7, item 4, “La fe, obsequium rationale”;

Dicionário de Teologia Fundamental, verbetes “Agnosticismo”, “Ateísmo”, “Ceticismo”, “Fideísmo”, “Racionalismo” e “Razão e fé”.

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4.4 Fé, razão, credibilidade da revelação, Apologética

• Vimos mais atrás que a resposta do ser humano à revelação pode ser expressa mediante a figura do salto da fé, com o qual se acolhe como verídico o que é revelado. • Esse salto não é porém feito como que de olhos fechados e no escuro. • Ele é dado com os olhos abertos e de dia. Queremos dizer com isso que a resposta de fé é dada mantendo-se vivos a inteligência, o raciocínio, a razão. • Pelo fato da resposta humana da fé ser um passo dado mantendo-se viva a razão, o ser humano que dá tal resposta pode apresentar justificativas e motivos para o fazer. Ele pode explicar o porquê da revelação ser digna de considerar-se verídica. Ele pode justificar a credibilidade da revelação. Essa justificação recebeu tradicionalmente o nome de Apologética. • Uma passagem bíblica a esse respeito, famosa em Teologia Fundamental, já foi vista neste curso:

“estejam sempre prontos a dar razão da esperança de vocês a todo aquele que o pedir; façam-no porém com mansidão e respeito” (1Pd 3,15-16).

• Como já vimos (cf. página 9), a proposta deste curso de Teologia Fundamental é precisamente “dar razão da nossa esperança”, mostrando a credibilidade da revelação cristã. a) Duas frases famosas

• Há duas frases nesse campo que ficaram célebres graças à produtiva figura de Santo Anselmo de Cantuária (1033, Aosta, Itália – 1109, Cantuária, Inglaterra; monge beneditino na Normandia, França, e depois bispo de Cantuária). Ambas provêm da sua obra mais famosa, o Proslogion. • Nota: essa e muitas outras obras podem ser encontradas em <www.thelatinlibrary.com> e <www.fordham.edu/halsall> (nesta, clicar em medieval e depois em full texts).

1) “Fides quaerens intellectum”. • Fides significa fé, no nominativo. Quaerens é o particípio presente do verbo quaerere, que significa procurar, indagar, querer encontrar. Intellectum significa inteligência, no acusativo. • Em bom português, a tradução é: “Uma fé que procura a inteligência”.

2) “Credo, ut intellegam”. • É inspirada numa frase de Santo Agostinho: “crede, ut intelligas”. Nessa frase de Agostinho, crede é o imperativo presente do verbo credere, e significa creia. Ut é uma conjunção que, nesse caso, tem sentido consecutivo e significa de tal forma que, de tal maneira que. Intelligas é o conjuntivo presente da segunda pessoa do singular do verbo intellegere, que significa entender, compreender. • A frase de Santo Agostinho portanto significa: “Creia, de tal forma que você entenda”, ou ainda “creia, para entender”. • Na frase de Santo Anselmo, credo, indicativo presente da primeira pessoa do singular, significa creio, confio. Intellegam é o conjuntivo presente da primeira pessoa do singular do verbo intellegere, visto acima. • A tradução da frase de Santo Anselmo é: “Creio, de tal forma que eu entenda”, ou ainda “creio, para entender”. • (na frase de Agostinho e nessa segunda frase de Anselmo, quem sabe, poderíamos até mesmo ver evidências daquela mesma conclusão vista na página anterior: o exercício do entendimento, da razão, só é possível com alguma crença, decorrente de um ato de fé).

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b) Brevíssimo itinerário da Apologética

• Ao longo da história da Teologia, este setor que estuda a credibilidade da revelação desenvolveu-se consideravelmente e recebeu um nome especial: Apologética (cf. o extenso verbete Apologética no Dicionário de Teologia Fundamental).

• (apologuia) significa defesa, explicação justificadora. • Já a partir do segundo século se encontram textos cristãos de apologia: Clemente de Alexandria, Justino, Atenágoras, Tertuliano, Agostinho... • Tomás de Aquino explica o valor teológico da Apologética na Summa contra gentiles. • A partir do século XVI, a Apologética veio notavelmente reforçada contra três frentes de ataques:

da reforma protestante,

do iluminismo e correntes derivadas (liberalismo, materialismo, deísmo),

contra o Estado Pontifício. • No século XIX o contexto eclesial se fez especialmente conturbado devido a tantos ataques. Sobre esse contexto falaremos mais na parte II do curso, “Percurso histórico-teológico”. Uma demonstração do clima tenso de então é o trecho da encíclica Mirari vos do papa Gregório XVI em 1832:

“A fé católica não é mais atacada secretamente e como que em modo subterrâneo, mas já se lança contra ela uma guerra horrenda e execrável” (Mirari vos, Actae Sanctae Sedis v. 4, p. 338).

• Nesse contexto tão conturbado, desenvolveu-se um estilo teológico de defesa aguerrida da fé, da qual a expressão mais sistemática era a disciplina Apologética. Até a primeira metade do século XX, Apologética era precisamente o nome do que hoje chamamos de Teologia Fundamental. Essa Apologética aguerrida ficou ultrapassada. • Hoje em dia será que uma Apologética não é mais necessária? • No molde agressivo e pouco bíblico dos últimos séculos, certamente não. • Mas há sim motivos atuais para uma Apologética, no sentido de explicação justificadora da nossa fé. Lembremo-nos de 1Pd 3,15-16: “estejam sempre prontos a dar razão da esperança de vocês a todo aquele que o pedir; façam-no porém com mansidão e respeito”. Há sem dúvida contextos atuais nos quais se pede aos cristãos que deem razão da sua esperança:

1) Em algumas áreas do planeta, há fortes correntes de pensamento que pregam a impossibilidade de se conhecer – ou sequer de existir – uma verdade última e definitiva. A isso se tem chamado ultimamente de relativismo. A revelação cristã, porém, apresenta Jesus de Nazaré como “o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6). Como diz o Vaticano 2o:

“A Igreja, por sua parte, acredita que Jesus Cristo, morto e ressuscitado por todos, oferece aos homens pelo seu Espírito a luz e a força para poderem corresponder à sua altíssima vocação; nem foi dado aos homens sob o céu outro nome, no qual devam ser salvos. A Igreja acredita também que a chave, o centro e o fim de toda a história humana se encontram no seu Senhor e mestre. E afirma, além disso, que, subjacentes a todas as transformações, há muitas coisas que não mudam, cujo último fundamento é Cristo, o mesmo ontem, hoje, e para sempre” (Gaudium et Spes 10).

• (esse documento do Vaticano 2o, assim como os outros, podem ser encontrados na íntegra em onze línguas em: < www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/index_it.htm>). • O desafio, nesse caso, é apresentar – na linguagem que o nosso tempo exige e em tal contexto de relativismo – que a chave da história humana se encontra em Cristo.

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2) Na América Latina (um continente já com séculos de evangelização), a persistência da violência, da exploração e da opressão – feita por cristãos contra cristãos – parece mostrar que a revelação de Deus não é verídica. A ausência de uma ortopráxis (ou seja, uma práxis guiada pelo Espírito Santo, o “Espírito de Cristo” – Rm 8,9 – ou “Espírito do Senhor” – 2Cor 3,17) leva ao descrédito da revelação cristã. A ortodoxia desligada da ortopráxis é pedra de tropeço para muitos. A revelação cristã, porém, mostra que aquela verdade última desmascara a violência, a exploração e a opressão. • O desafio, nesse caso, é o de apresentar – na linguagem que o nosso tempo exige e em tal contexto de histórica falta de ortopráxis – a existência pessoal e da comunidade de fé segundo o “Espírito de Cristo”.

3) Faz-se em geral mais clara a consciência de outras crenças religiosas – especialmente

as monoteístas, e em particular a fé muçulmana – que se posicionam diferentemente em relação a temas centrais, como a natureza de Deus, a divindade de Jesus de Nazaré e a Palavra divina. Em algumas áreas do planeta essas crenças precisam conviver e coabitar, o que nem sempre se faz de modo pacífico. A revelação cristã, para muitos aí, não aparece como verídica. A revelação cristã, porém, ao apresentar Jesus Cristo, diz que “Deus é amor” (1Jo 4,8.16) e que “no início era a Palavra, [...] a Palavra era Deus, [...] e a Palavra se fez carne e habitou entre nós, e nos vimos sua glória, glória que tem junto ao Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade” (Jo 1, 1.14). • O desafio, nesse caso, é o de, mantendo a humildade e misericórdia indispensáveis à ortopráxis, apresentar – na linguagem que o nosso tempo exige e em tal contexto de questionamento por outras tradições religiosas – o caráter verídico da revelação divina culminada em Jesus Cristo. • Leituras sugeridas:

Dicionário de Teologia Fundamental, verbetes “Apologética”, “Credibilidade” e “Razão e fé”. 4.5 Fé, conversão e ainda o tema da credibilidade

• Vimos na página 24 que, tomando Deus gratuitamente toda a iniciativa da revelação, cabe aos seres humanos dar uma resposta a tal oferecimento radicalmente gratuito. • Vimos que, por resposta, não se entende um mero falar sim, não ou talvez, mas sim a aceitação ou rejeição da iniciativa revelatória de Deus. • Expressamos a ideia de resposta como o dar ou não um salto, o salto da fé, com o qual se acolhe como verdadeiro aquilo que é revelado. Vimos também outra figura, a do sorriso. • Tal resposta implica na entrada ou não numa convivência consciente e dialogal com o Autor da revelação, com o “Santo por excelência”, com o “Alguém absoluto”, com o “Amigo sagrado”. • Vimos também na página 21 que Deus se revela a uma humanidade encharcada de violência. A violência caracteriza a história humana e a minha história. Tal violência pode ser chamada de outros nomes. Em Teologia os termos mal e pecado são preferentemente empregados. Há um contraste nítido entre o modo de conduta de Deus e o modo de conduta dos seres humanos:

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Iniciativa de Deus Resposta humana

• Como existe tal contraste, a resposta humana de entrar ou não numa convivência com o “Santo por excelência” implica entrar num dinamismo existencial de conduta de vida e de conversão. • Uma expressão bíblica famosa para expressar esse apelo é do Novo Testamento, que já a havia retomado do Antigo Testamento: “Sejam santos, porque eu sou santo”.

Antes, como é santo aquele que os chamou, tornem-se também vocês santos em todo o seu comportamento, porque está escrito: “sejam santos, porque eu sou santo” (1Pd 1,15). Iahweh falou a Moisés e disse: “Fale a toda a comunidade dos filhos de Israel. Você lhes dirá: „Sejam santos, porque eu, Iahweh, Deus de vocês, sou santo‟ ” (Lv 19, 1-2).

• Por conversão entendemos aqui a mudança das atitudes pessoais que não são imagem daquele amor gratuito com o qual Deus toma a iniciativa de se revelar:

Resposta humana

• Uma síntese da atitude fundamental de amor gratuito é dada pela figura do “esvaziar a si

próprio” (ou ,kénosis, esvaziamento, cf. Fl 2,1-11). Poderíamos explicitar alguns elementos dessa figura:

considerar-se pequenino, e não “o tal” (humildade);

ajoelhar-se, abaixar-se, fazer-se pequeno para dar da própria vida em benefício dos demais (= ser alimento, eucaristia);

admirar os demais, sem carregar o fardo de condená-los;

descobrir o bem naquele que errou = viver a misericórdia, o perdão;

agradecer pelas coisas recebidas, e relativizar o negativo.

Motivo: amor gratuito, graça, gratuidade radicais e

incondicionais; da parte de Deus não há obrigação nem

necessidade; a revelação é oferecimento, dom, convite, que

não obriga a ser acolhida.

Dada numa humanidade encharcada de violência; a

violência caracteriza a história humana e a minha

história.

De: caracterizada pela violência

Para: imagem do amor gratuito radical que toma a

iniciativa da revelação

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• A conversão é um processo:

contínuo (para toda a vida), e não de um só momento;

trabalhoso, árduo, difícil. • Uma figura para exprimir esse caráter trabalhoso da conversão é a da porta estreita:

“Entrem pela porta estreita, porque largo e espaçoso é o caminho que conduz à perdição. E muitos são os que entram por ele. Estreita, porém, é a porta e apertado o caminho que conduz à vida. E poucos são os que o encontram” (Mt 7,13-14).

• A conversão permite que se experimente, de modo cada vez mais profundo, quem é o Deus que se está revelando. Sem conversão, o conhecimento de Deus permanece superficial. • Uma citação de um importante Padre da Igreja:

“Se alguém quer ver a luz do sol, é imprescindível limpar os olhos e expô-los à luz do sol. [...] Assim também, quem quer compreender os ensinamentos de Deus deve antes se purificar e lavar através do seu jeito de viver, e se pôr ao lado dos santos tomando atitudes semelhantes às deles. Desse modo, junto a eles devido à sua conduta de vida, compreende também o que Deus lhes revelou” (ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, De Incarnatione 57,8-9.13-18, em Sources Chrétiennes 199. Paris: CERF 1973, p. 466-469).

• A conversão e a credibilidade da fé cristã guardam uma relação muito próxima. • O modo de vida dos cristãos tem sido, desde as origens do cristianismo, um elemento importante para que outras pessoas creiam na revelação cristã. • Determinadas deficiências no modo de vida dos cristãos podem depor contra a credibilidade da revelação. O Vaticano 2o falou assim a esse respeito:

“Com efeito, o ateísmo, considerado no seu conjunto, não é um fenômeno originário, mas sim resulta de várias causas, entre as quais se conta também a reação crítica contra as religiões e, em alguns países, principalmente contra a religião cristã. Pelo que os fiéis podem ter tido parte não pequena na gênese do ateísmo, na medida em que, pela negligência na educação da sua fé, ou por exposições falaciosas da doutrina, ou ainda pelas deficiências da sua vida religiosa, moral e social, se pode dizer que antes esconderam do que revelaram o autêntico rosto de Deus e da religião” (Gaudium et Spes 19).

• À afirmação anterior, a saber, que conversão e credibilidade da fé cristã guardam uma relação muito próxima, é necessário acrescentar uma outra que ajuda a fornecer um quadro mais real. • Um modo de vida santo não é garantia para a credibilidade da revelação cristã. • Não há uma passagem automática de “santidade de vida dos cristãos” para “credibilidade da revelação”. • Embora santidade de vida e credibilidade da revelação cristã guardem relação muito próxima, é verdade que, desde o acontecimento Jesus de Nazaré, podemos ver também que a revelação tem uma relação muito próxima com o caráter de não credibilidade. • Por um lado, podemos ver a vinculação estreita entre santidade de vida e credibilidade da revelação cristã na santidade de vida de Jesus Cristo e na credibilidade suscitada por isso nos apóstolos e demais cristãos da primeira geração, aquela que conheceu Jesus antes da sua morte e ressurreição.

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• Por outro lado, podemos ver também a vinculação estreita entre a revelação acontecida na pessoa de Jesus e o caráter da sua não credibilidade. A revelação culminada no evento Jesus Cristo, mesmo reivindicando desde o início uma validade universal, tem também desde o início o caráter da aceitação não universal e muito parcial. • Por exemplo, “os chefes dos sacerdotes e os escribas procuravam como prender Jesus por meio de um ardil para o matar” (Mc 14,1) e se afirmava que Jesus “está possuído por Beelzebu” (Mc 3,22). O evangelho de João nos conta que “muitos dos discípulos de Jesus, ouvindo-o, disseram: „Essa palavra é muito dura! Quem pode escutá-la?‟ [...] A partir daí, muitos de seus discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele” (Jo 6,60.66). • O mesmo se verificou no tempo das missões dos apóstolos (entre aproximadamente os anos 30 e 90 do primeiro século) e nos dois séculos seguintes. • Por um lado, havia ali uma vinculação estreita entre santidade de vida e credibilidade da revelação cristã. • Por outro lado, também se via uma vinculação estreita entre a revelação cristã e o caráter da sua não credibilidade. Incontáveis foram os sofrimentos e as perseguições sofridas pelos cristãos naqueles três séculos. • A aceitação limitada (fruto da não credibilidade) da revelação cristã é portanto um elemento normal desta. • Como porém por muitos séculos o cristianismo gozou de uma situação de cristandade, na qual a sua aceitação parecia óbvia, a dimensão real da sua não credibilidade ficou ofuscada. • A dimensão da não credibilidade da revelação cristã parece tornar-se uma pedra de tropeço só num contexto mal-acostumado ao espírito de cristandade, e desabituado à aceitação minoritária.

• Leituras sugeridas:

RATZINGER, Joseph, Teoría de los principios teológicos. Materiales para una teología fundamental, parte 1, cap. 1, seção 2, item 1.1.2.1, “La fe como conversión: metanoia” (p. 63-76);

Dicionário de Teologia Fundamental, verbetes “Conversão” e “Credibilidade”. 4.6 Fé e religiosidade popular no contexto da América Latina

• O que se compreende aqui por religiosidade popular, ou expressões equivalentes como piedade popular, catolicismo popular, espiritualidade popular ou religião do povo? São expressões simples da fé nos países latino-americanos, vividas em modo particular pelos pobres. • A religiosidade popular compõe-se de:

crenças e convicções religiosas profundas e arraigadas;

atitudes de vida que exprimem essas crenças;

uma séria de expressões como peregrinações, festas de padroeiro, procissões, danças do folclore religioso, orações nas famílias, novenas, rosários e vias sacras.

• O valor dessa religiosidade popular começou a ser resgatado a partir das conferências episcopais de Medellin (1968) e Puebla (1979). Santo Domingo (1992) retomou o assunto, e Aparecida (2007) fez substanciais comentários a respeito. • O resgate do valor da religiosidade – ou piedade – popular se fez em contraposição a um preconceito ou má vontade que se tinha contra ela, tachada como “provinda de raízes pagãs”, “fruto de evangelização deficiente” e “fé rala e superficial”.

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• No seu discurso de abertura da conferência de Aparecida, Bento 16 classificou a religiosidade popular de “o precioso tesouro da Igreja Católica na América Latina” (Documento de Aparecida, 258). • A religiosidade popular latino-americana é “uma originalidade histórica cultural dos pobres deste continente, e fruto de uma síntese entre as culturas e a fé cristã” (Documento de Aparecida, 264). • Alguns aspectos positivos da religiosidade popular na América Latina:

a fé em Jesus Cristo (do qual se acentua a divindade);

a presença da Trindade (por meio de devoções e de iconografias);

um intenso sentido da transcendência;

uma capacidade simples e verdadeira de se amparar em Deus;

o valor das mediações, quer de pessoas conhecidas (orações de intercessão), quer dos santos e, especialmente, de Maria;

uma linguagem que vai além da razão: vale-se também de músicas, danças, gestos e imagens;

“esforços têm sido realizados para inculturar a liturgia nos povos indígenas e afro-americanos” (Documento de Aparecida, 99b);

o valor da expressão comunitária da fé, na qual a comunidade é tida como uma família;

o valor da renúncia de si mesmo, manifestada especialmente na ajuda por vezes extremada aos demais e na confissão da fé mesmo às custas da perda da própria vida (mártires).

• A religiosidade popular apresenta também aspectos que necessitam de purificação. Puebla fala de “sinais que indicam deformação”. • A indicação de tais elementos não quer dizer que a religiosidade popular seja negativa. É, isto sim, um convite a que o seguimento de Jesus seja feito de modo cada vez mais fiel e aprofundado. • Eis alguns desafios, ou aspectos que necessitam purificação:

concepções simplistas ou mesmo equivocadas de Deus, que pode ser apresentado como castigador, fornecedor de favores ou estabelecedor de contratos;

concepções simplistas de Jesus Cristo, às vezes apresentado como pouco humano;

o culto aos santos pode ocupar o lugar central, ao invés de Jesus;

o compromisso eclesial muitas vezes limita-se à recepção do sacramento do batismo; a pessoa consequentemente não se sente pertencente à Igreja, e as relações humanas da vida cotidiana são pouco atingidas pela fé.

• A religiosidade popular latino-americana indica que se trata de uma cultura intrinsecamente aberta a Deus. Há aí portanto um grande espaço para aprofundar a evangelização:

colocando-se Jesus Cristo como centro da vida;

convertendo o ideal de realização humana de uma linha capitalista de acumulação de bens, poder e fama para a linha da doação de vida, do altruísmo e da gratuidade;

elaborando pastoralmente um processo ou caminhada de experiência de Deus;

oferecendo uma catequese que não só comunique conteúdos e doutrinas da fé, mas que também leve ao crescimento nas virtudes do Evangelho, à leitura orante da Bíblia e à prática da justiça e da solidariedade, especialmente com os pobres;

abrindo-se à esperança do Reino de Deus.

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• No documento de Aparecida podemos ler:

“Conscientes de nossa responsabilidade pelos batizados que deixaram, sob uma capa de indiferença e esquecimento, essa graça da participação no mistério pascal e de incorporação no Corpo de Cristo, é necessário cuidar do tesouro da religiosidade popular de nossos povos, para que nela resplandeça cada vez mais “a pérola preciosa” que é Jesus Cristo. [...] Só graças a esse encontro e seguimento, que se converte em familiaridade e comunhão, transbordante de gratidão e alegria, somos resgatados de nossa consciência isolada e saímos para comunicar a todos a vida verdadeira, a felicidade e a esperança que nos tem sido dada a experimentar e a nos alegrar” (Documento de Aparecida, 549).

• Leituras sugeridas:

RUIZ ARENAS, Octavio, Jesús, epifanía del amor del Padre, capítulo 7, item 5, “La religiosidad popular como expresión de fe”;

Documento de Aparecida. Texto conclusivo do V CELAM, parte 2, capítulo 6, item 6.1, subitem 6.1.3, “A piedade popular como lugar de encontro com Jesus Cristo”.

5. Outros elementos fundamentais

5.1 O conceito teológico de Tradição e a Bíblia

• No que diz respeito ao tema da Tradição, segue-se neste curso a linha adotada pelo concílio Vaticano 2o (na constituição Dei Verbum), por teólogos como Yves Congar e Gerald O‟Collins, e até mesmo pelo Catecismo da Igreja Católica. • Tal linha distingue entre o termo Tradição, com maiúscula e no singular, e os termos tradição e tradições, com minúscula e, no último caso, no plural • Neste curso, queremos com tal distinção deixar clara a diferença entre o conceito teológico de Tradição, e o uso ordinário da palavra tradição. • Infelizmente o Dicionário de Teologia Fundamental não adota essa distinção, consolidada na Teologia com o Vaticano 2o. a) Alguns textos

• Antes de tratarmos do aspecto teológico do tema, apresenta-se aqui um percurso extremamente resumido da distinção e não distinção (através do uso de minúsculas e maiúsculas, de singular e plural) no uso dos termos em questão. • O concílio de Trento, tratando da questão da revelação, afirmou em 1546:

“hanc veritatem et disciplinam contineri in libris scriptis et sine scripto traditionibus” (“essa verdade e essa ordem estão contidas em livros escritos e em tradições não escritas”; DH 1501).

• Trento, portanto:

não distinguiu entre o uso da maiúscula e minúscula;

utilizou o plural.

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• O concílio Vaticano 1o, tratando da mesma questão da revelação, declarou em 1870:

[haec revelatio] “secundum universalis Ecclesiae fidem a sancta Tridentina Synodo declaratam continetur „in

libris scriptis et sine scripto traditionibus‟ ” ([essa revelação], conforme a doutrina da Igreja universal, definida

pelo santo Sínodo de Trento, está contida „nos livros escritos e nas tradições não escritas‟ ”; DH 3006).

• O Vaticano 1o, portanto, meramente repetiu a expressão adotada pelo concílio de Trento:

não distinguiu entre o uso da maiúscula e minúscula;

utilizou o plural. • Já o concílio Vaticano 2o, na Dei Verbum, fez a distinção do uso:

de minúsculas e maiúsculas;

de singular e plural. • Esse detalhe encerra em si uma vontade de dar um importante passo adiante no esclarecimento do conceito teológico de Tradição. • Apesar de importante, esse detalhe passa despercebido em muitos livros recentes que tratam o tema da Tradição. Não passará porém despercebido no nosso curso. • A constituição Dei Verbum do Vaticano 2o apresenta onze vezes a palavra Traditio escrita com inicial maiúscula e sempre no singular:

número 7- “Haec igitur Sacra Traditio et Sacra Scriptura” (“esta sagrada Tradição e a Sagrada Escritura”).

número 8- “Haec Apostolis Traditio” (“Esta Tradição Apostólica”).

número 8- “huius Traditionis vivificam” (“a presença vivificadora desta Tradição”).

número 8- “Per eandem Traditionem” (“Mediante a mesma Tradição”).

número 9- “Sacra Traditio ergo et Sacra Scriptura” (“A sagrada Tradição, portanto, e a Sagrada Escritura”).

número 9- “Sacra autem Traditio” (“a Sagrada Tradição, por sua vez”).

número 10- “Sacra Traditio et Sacra Scriptura” (“A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura”).

número 10- “Patet igitur Sacram Traditionem” (“É claro, portanto, que a Sagrada Tradição”).

número 12- “ratione habita vivae totius Ecclesiae Traditionis” (“tendo em conta a Tradição viva de toda a Igreja”).

número 21- “Eas una cum Sacra Traditione” (“juntamente com a Sagrada Tradição”).

número 24- “in verbo Dei scripto, una cum Sacra Traditione” (“na Palavra de Deus escrita e na Sagrada Tradição”).

• A mesma constituição apresenta uma vez a palavra traditiones escrita com inicial minúscula e no plural:

número 8- “teneant traditiones” (“observem as tradições”).

• O Vaticano 2o, portanto, exprime uma vontade de dar um passo adiante:

distinguindo entre o uso de maiúscula e minúscula;

distinguindo entre o uso do singular e do plural.

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• A grafia com maiúscula sempre aparece no singular (Sagrada Tradição), e a grafia com minúscula vem no plural (tradições). Neste curso, seguiremos essa linha do concílio. • A intenção teológica do Vaticano 2o é a mesma de um livro clássico sobre o tema surgido durante o mesmo concílio, no ano de 1963. Trata-se da obra de Yves Congar, La Tradition e les traditions (A Tradição e as tradições). • É também a linha seguida por Gerald O‟Collins na sua obra Teologia Fundamental (cf. capítulo 8, “Encontrando a Tradição dentro das tradições”). • A distinção entre Tradição e tradições é hoje em dia tão pacífica que é até mesmo adotada pelo Catecismo da Igreja Católica (cf. no 83).

• Mas qual foi esse passo adiante expresso pelo Vaticano 2o quando distingue as duas coisas? • O passo adiante que se quis dar no Vaticano 2o foi o estabelecimento de uma distinção entre o conceito teológico de Tradição e o uso comum da palavra tradição. Conhecemos bem o sentido do uso comum da palavra tradição, mas o conceito teológico Tradição é certamente algo que se precisa aprender.

b) Elementos teológicos

• O termo tradição, que usaremos aqui sempre no plural (tradições) para não confundir, tem estes sentidos comuns apresentados pelos dicionários:

transmissão oral de valores, cultura e história de geração em geração (p. ex, tradições indígenas, tradições gaúchas, tradições mineiras).

costumes e usos de hoje, enraizados no passado. • As tradições ou costumes são visíveis com os olhos. • Já a Tradição não se vê com os olhos. • O conceito teológico de Tradição recebe três especificações na constituição Dei Verbum:

1) Mediante a Tradição, acontece o diálogo vivo entre Deus e a Igreja. A consideração do conceito teológico de Tradição é uma ocasião privilegiada para se apresentar o caráter vivo e atual de tal comunicação dialogal.

número 8: “Mediante a mesma Tradição, a Igreja conhece o cânon inteiro dos livros sagrados, e a própria Sagrada Escritura entende-se nela mais profundamente e torna-se incessantemente operante; e assim, Deus, que outrora falou, dialoga sem interrupção com a esposa do seu amado Filho”.

2) Por Tradição não se compreende de modo algum a transmissão e a conservação de relíquias do passado, como num museu. A Tradição é viva.

número 8: “A Tradição Apostólica progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo”.

número 7: “A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura dos dois Testamentos são como um espelho no qual a Igreja peregrina na terra contempla a Deus, de quem tudo recebe”.

3) Tanto a Sagrada Escritura como a Sagrada Tradição são Palavra de Deus. Não porém duas Palavras de Deus, mas uma só.

número 10: “A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da Palavra de Deus, confiado à Igreja”.

número 9: “A Sagrada Escritura é a Palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito Santo; a Sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a Palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos”.

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• O Catecismo da Igreja Católica assim define o conceito teológico de Tradição:

“Esta transmissão viva [da revelação], realizada no Espírito Santo, é chamada de Tradição enquanto distinta da Sagrada Escritura, embora intimamente ligada a ela” (Catecismo da Igreja Católica, 78).

• O mesmo Catecismo explica assim o conceito teológico de Tradição, distinguindo-o do uso comum da palavra tradição:

“A Tradição da qual aqui falamos é a que vem dos apóstolos e transmite o que estes receberam do ensinamento e do exemplo de Jesus e o que receberam por meio do Espírito Santo. Com efeito, a primeira geração de cristãos ainda não dispunha de um Novo Testamento escrito, e o próprio Novo Testamento atesta o processo da Tradição viva. Dela é preciso distinguir as tradições teológicas, disciplinares, litúrgicas ou devocionais surgidas ao longo do temo nas Igrejas locais. Constituem elas formas particulares sob as quais a grande Tradição recebe expressões adaptadas aos diversos lugares e às diversas épocas. É à luz da grande Tradição que estas [as tradições] podem ser mantidas, modificadas ou mesmo abandonadas, sob a guia do Magistério da Igreja” (Catecismo da Igreja Católica, 83).

• A definição mais clara surgida no pós-concílio é ainda aquela da Comissão Teológica Internacional (um órgão oficial da Cúria Roma que presta auxílio ao papa) em 1989. O termo autocomunicação é sinônimo de revelação:

“A Tradição (Parádosis) é, em último termo, a autocomunicação de Deus Pai por Jesus Cristo no Espírito Santo, para uma presença sempre nova na comunhão da Igreja.” (COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, La interpretación de los dogmas, em ID., Documentos 1969-1996, Madrid: Católica, 1998, p. 443-444).

• Nessa definição da Comissão Teológica Internacional, notam-se três coisas mais relevantes a respeito do conceito teológico de Tradição:

é revelação (sinônimo de autocomunicação);

é atual, do tempo presente, renova-se na atualidade;

acontece em comunhão com a Igreja. • Concluindo, podemos portanto dizer que a Tradição é o fenômeno da autocomunicação ou revelação – eclesial, viva e atual – de Deus, bem ali onde acontece a comunicação dialogal de Deus com as gerações de cada tempo da Igreja, e por conseguinte também com aquelas do nosso tempo presente. • Vimos no início do curso, quando falamos da experiência de Deus, que nesta se dá a revelação ou autocomunicação divina. Sujeito Realidade-Deus

Grupo ou comunidade Realidade-Deus

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• À luz disso que vimos no início do curso e que vem agora esquematizado, Tradição é portanto o imenso conjunto da revelação (ou autocomunicação) de Deus:

1) que aconteceu nas experiências de Deus do passado (no povo de Israel e na Igreja do tempo apostólico)

E ... 2) que aconteceu e acontece nas experiências de Deus posteriores, e atuais, feitas em

comunhão com aquela revelação do passado. • Por isso a Tradição é viva, e não como uma coisa conservada num museu. Ela não é uma coisa morta, mas uma revelação bem viva e que acontece no tempo presente quando em comunhão com aquela revelação do passado. • Uma citação nesse sentido de Bento 16:

“A Tradição é a presença permanente do Salvador que vem nos encontrar, redimir e santificar no Espírito mediante o ministério da sua Igreja [...]. A Tradição não é a transmissão de coisas ou palavras, um ajuntamento de coisas mortas. A Tradição é o rio vivo que nos liga às origens, o rio vivo no qual as origens estão sempre presentes” (BENTO 16. A comunhão no tempo: a Tradição. Audiência Geral de 26 de abril de 2006).

• O conceito teológico de Tradição, no sentido visto acima, é comparável à corrente de um rio, a um grande fluxo vivo de água que corre ao longo dos séculos. A experiência de Deus, feita em comunhão com aquelas acontecidas em Israel e na Igreja do tempo apostólico, atualiza a revelação divina e dá “voz” aos fiéis de todos os tempos. Nesse sentido, Santo Ambrósio de Milão (morto em 397) escreveu:

“Há um rio que corre para os seus santos como uma torrente. [...] Quem recebe da plenitude desse rio, como João Evangelista, Pedro e Paulo, levanta a sua voz. Do mesmo modo que os apóstolos difundiram até os confins da terra [...] a voz da pregação apostólica, assim quem receber da plenitude desse rio começa a anunciar o Evangelho do Senhor Jesus. Receba, portanto, da plenitude de Cristo para que a sua voz também se manifeste” (AMBRÓSIO DE MILÃO, Carta 2, 4).

c) A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura

• O termo Igreja: deriva do latim Ecclesia, que por sua vez deriva do grego (ekklesía). • Já na Bíblia dos 70 (cerca de 250 a.C.), esse termo grego traduziu o original hebraico Qahal (Povo). Há portanto uma continuidade terminológica entre o Povo de Deus (Qahal Yahweh) do Antigo Testamento e a Igreja (Ekklesía) do Novo Testamento.

• Essa continuidade terminológica se reflete na Tradição e nos permite dizer que a esta é mãe, irmã e filha da Bíblia.

1) A Tradição como mãe da Bíblia. • Em Israel, a Tradição já acontecia séculos antes dos livros do Antigo Testamento serem escritos. • Era um oceano vivo de revelação que acontecia nas experiências de Deus. Este oceano vivo formou e gerou a Bíblia. • Nesse sentido, a Tradição é anterior à Bíblia, é a mãe da Bíblia.

2) A Tradição como irmã da Bíblia. • A Tradição continuou enquanto a Bíblia estava sendo escrita (aproximadamente 1.000 a.C. a 90 d.C.). • A revelação até Jesus Cristo, que aconteceu na experiência de Deus feita pelo Povo de Deus, foi expressa na Bíblia. • Nesse sentido, a Tradição é irmã e contemporânea da Bíblia.

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3) A Tradição como filha da Bíblia. • Mas a Tradição não parou lá no ano 90 d.C, com o término da composição da Bíblia. • A Tradição continuou também depois da Bíblia estar acabada, e continua até hoje. • Depois de pronta, a Bíblia passou a orientar o Povo de Deus, como parâmetro para aprofundar a Tradição que continuava acontecendo nas gerações sucessivas. • Nesse sentido, a Tradição é também filha da Bíblia.

“A sagrada Tradição, portanto, e a sagrada Escritura, estão intimamente unidas e compenetradas entre si. Com efeito, derivando ambas da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e tendem ao mesmo fim. [...] Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com igual espírito de piedade e reverência” (CONCÍLIO

VATICANO 2O, constituição Dei Verbum, no 9)

d) Tradição, tradições e inculturação

• Ao longo dos séculos, nas comunidades cristãs, a Tradição se inculturou e foi expressa sob forma de usos, costumes ou tradições. • As tradições (produzidas ao longo desse processo bimilenar de inculturação) são muito importantes. Elas poupam cada geração de recomeçar o cristianismo a partir da estaca zero. • As tradições ou costumes a que nos referimos aqui se verificam sobretudo nos seguintes campos:

línguas

liturgias

construções e disposição espacial do espaço sagrado

doutrinas

conceitos estruturais do pensamento

roupas

• Exemplos:

no quarto século, em Roma e arredores, intensificou-se o processo de expressar a Tradição na língua local, o latim, e nas tradições daquela região. Um evento marcante nesse processo foi a elaboração da tradução da Vulgata por São Jerônimo (entre 380 e 400 d.C.).

a partir do nono século, a evangelização dos povos eslavos por São Cirilo e São Metódio, quando a Tradição passou ali a se manifestar nas línguas e tradições locais.

• Ainda hoje na Ásia, na África e na América Latina, mantém-se a importância vital da Tradição se inculturar e se expressar sob forma de costumes e tradições dessas regiões.

• Mas algumas tradições ou costumes podem ficar caducas, mofadas, e estorvar a Tradição. Podem atrapalhar a revelação de Deus que acontece nas experiências de Deus que as novas gerações fazem em comunhão com o processo anterior de revelação. • Como discernir? O critério secundário (porém importante) são os concílios e o Direito Canônico. O critério principal de discernimento é mesmo a sua presença no depósito da fé, no patrimônio revelado e confiado por Deus à Igreja.

• Leituras sugeridas:

O‟COLLINS, Gerald, Teologia Fundamental, capítulo 7, “Tradição: a convergência ecumênica e o desafio comum”.

______, Teologia Fundamental, capítulo 8, “Encontrando a Tradição dentro das tradições”.

“Editorial: A Palavra de Deus”, Perspectiva Teológica 41 (2009), 157-163.

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5.2 O desinstalador depósito da fé

• Há sentidos comuns da palavra depósito que não correspondem ao que se quer designar com a expressão depósito da fé:

“Com o tempo, formou-se no fundo da caixa-d‟água um depósito escuro”; em Minas Gerais: depósito de material de construção;

depósito de explosivos;

“Fiz um depósito de R$ 100,00 na conta dele”. • O sentido da palavra depósito, na expressão depósito da fé, não tem nada a ver com os sentidos mencionados acima. O que então quer significar? • Na Antiguidade, no âmbito dos povos semitas e do mundo greco-romano, havia uma determinada figura jurídica comum. • Em caso de necessidade (viagens, prisão ...), uma pessoa podia confiar a uma outra – ou a um santuário religioso – os objetos de valor e o dinheiro que possuía, para serem guardados e protegidos. Quem recebia a riqueza confiada não podia de nenhum modo gastar aquilo, mas tinha a obrigação legal de conservar fielmente o que lhe fora entregue, até que ela lhe fosse requisitada pelo proprietário. • Essa riqueza confiada era o depósito. • Tal elemento jurídico encontra-se até hoje no Direito, que prevê a pessoa do fiel depositário. Este é a pessoa a quem a Justiça confia um determinado bem para ser zelado e guardado, sob pena de prisão prevista em lei. O fiel depositário não se torna dono do que lhe é confiado, mas responde pela sua guarda e integridade. • Essa mesma figura jurídica do depósito aparece no Antigo Testamento:

“Iahweh falou a Moisés e disse: „Se alguém pecar e cometer uma ofensa contra Iahweh, negando a um compatriota o depósito que lhe foi dado em guarda, ou um penhor, ou que defraude a seu compatriota, [...] deverá restituir aquilo que extorquiu [...], o depósito que lhe foi confiado [...]. Fará um acréscimo de um quinto e devolverá o valor ao proprietário do objeto, no dia em que se tornou responsável. Depois trará a Iahweh, como sacrifício de reparação, um carneiro sem defeito [...]. O sacerdote fará por ele o rito de expiação diante de Iahweh, e ele será perdoado, qualquer que seja a ação que ocasionou a sua culpa‟ ” (Lv 5, 20.23.24b-26).

“Se alguém der ao seu próximo dinheiro ou objetos para guardar, e isso for furtado daquele que o recebeu, se for achado o ladrão, este pagará em dobro. Se o ladrão não for achado, então o dono da casa será levado diante de Deus para testemunhar que não se apossou do bem alheio” (Ex 22, 6-7).

• No Novo Testamento, tal ideia de depósito foi empregada como figura para a revelação:

“Tome por modelo as sãs palavras que de mim você ouviu, com fé e com o amor que está em Cristo Jesus. Guarde o bom depósito, por meio do Espírito Santo que habita em nós.” (2Tm 1, 13-14).

“Timóteo, guarde o bom depósito, evite o palavreado vão e ímpio, e as contradições de um falso conhecimento, pois alguns, professando-o, se desviaram da fé. A graça esteja com você” (1Tm 6,20-21).

• No depósito, portanto, alguém confia uma riqueza a outrem. Este não se torna dono da riqueza confiada, mas fiel depositário. • Em Teologia, o patrimônio da revelação de Deus acontecido no Povo de Israel e na Igreja do tempo apostólico recebe o título de depósito da fé. • Depósito da fé coincide com o que Gerald O‟Collins chama de revelação fundamental (cf. Teologia Fundamental, capítulo 3, p. 125-126).

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Brevíssima linha do tempo da história da humanidade (as datas são aproximadas)

± 150.000 aC origem do Homo sapiens na África ± 12.000 aC Homem de Lagoa Santa Sumérios Assírios, Babilônicos, Mesopotâmia História da humanidade antes dos Patriarcas Egito, Pirâmides ± 2.000 aC ± 1.800 aC

Patriarcas (Abraão, Isaac, Jacó) Moisés Profetas. Relatos da criação, Adão e Eva (“fábula”) Revelação de Deus em Israel 538 aC Retorno do exílio na Babilônia e na Igreja do tempo apostólico Depósito da fé ou revelação fundamental ± 0 Jesus Cristo: plenitude da revelação de Deus ± 90 Fim do tempo apostólico revelação dependente hoje

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• No depósito da fé:

Quem confia a riqueza é Deus;

A riqueza que é confiada é a revelação;

Tal riqueza é confiada à Igreja.

• No depósito da fé, a parte mais importante corresponde a Jesus de Nazaré e ao tempo dos apóstolos: ali se deu a plenitude da revelação. • Em termos ainda mais precisos, o núcleo último do depósito da fé é Jesus Cristo em pessoa. • O depósito da fé a nós confiado é portanto vivo, e não algo inanimado a ser conservado num museu. • Uma citação de um Padre da Igreja, Santo Ambrósio de Milão (morto em 397):

“Há um rio que corre para os seus santos como uma torrente. [...] Quem recebe da plenitude desse rio, como João Evangelista, Pedro e Paulo, levanta a sua voz. Do mesmo modo que os apóstolos difundiram até os confins da terra [...] a pregação evangélica, assim o que receber da plenitude desse rio começa a anunciar o Evangelho do Senhor Jesus. Recebe, portanto, da plenitude de Cristo para que sua voz também se manifeste” (AMBRÓSIO DE MILÃO, Carta 2, 4).

• Observações:

1) Na Igreja do tempo pós-apostólico, o depósito da fé é o critério para discernir o que é essencial e o que não é (embora o que não é essencial possa ser também importante!).

2) A Igreja deve guardar o depósito da fé em condições culturais e históricas que mudam e que geram tradições, costumes e fides quae diversos no espaço (todo o planeta) e no tempo (2.000 anos). Nessa tarefa é dever da Igreja:

conservar o depósito da fé (que pode ser revolucionário; ex: em Lc 2, embora César Augusto e Quirino fossem as máximas autoridades políticas, os anjos foram enviados a pastores da periferia do império; gratuidade x capitalismo);

inculturar-se (“transformar-se”, “progredir”) nas culturas em mudança.

• Daí que uma distinção entre conservadores e progressistas é teologicamente superficial. Ela é comum sobretudo na esfera jornalística, e a sua superficialidade adquire gravidade quando tal distinção é contrabandeada para a esfera da reflexão teológica (em artigos, palestras, congressos ...). Tal distinção mostra que quem a utiliza não está tendo claro o papel positivo e essencial tanto da conservação como do progresso:

Por um lado, o depósito da fé que está sendo conservado é desinstalador e revolucionário: “anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo e para os gregos é loucura”; 1Cor 1,23.

Por outro lado, a inculturação que está sendo feita de modo progressista é algo antigo e tradicional na Igreja.

3) No depósito da fé há riquezas que, antes menos compreendidas, revelam seu potencial revolucionário quando melhor compreendidas:

opção preferencial pelos pobres: evidenciada na encarnação e na prática de Jesus de Nazaré;

direitos humanos: evidenciados no amor preferencial de Deus aos pecadores e inimigos.

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• Muitas vezes surge a questão: “O elemento tal (uma tradição, uma doutrina ...) é intocável ou não?” • Essa questão se faz de grande relevância quando se trata de uma tradição ou costume que alguns julgam caduca ou mofada. • Em geral são questões acerca de:

línguas

liturgias

construções e disposição espacial do espaço sagrado

doutrinas

conceitos estruturais do pensamento

roupas • O critério principal de discernimento é a sua presença no depósito da fé, no patrimônio revelado e confiado por Deus à Igreja. • Exemplos polêmicos nos últimos 50 anos: presente no depósito da fé

sim não

- missa em latim segundo o missal de Pio V, do século XVI: obrigação

proibição

- religião cristã: obrigação

liberdade religiosa, cf. Vaticano 2o, Dignitatis Humanae

- ordenação reservada só aos homens

- celibato sacerdotal

- doutrina sobre determinadas práticas sexuais: aceitáveis

rejeitáveis

• A quem é confiado o depósito da fé? • À Igreja. Em termos mais precisos, ao sensus fidei (sentido de fé) de todo o Povo de Deus:

“O povo santo de Deus participa também da função profética de Cristo, difundindo o seu testemunho vivo, sobretudo pela vida de fé e de caridade [...]. A totalidade dos fiéis que receberam a unção do Espírito Santo (cf. Jo 2,20.27) não pode enganar-se na fé. Esta sua propriedade peculiar manifesta-se por meio do sobrenatural sentido de fé do povo todo, quando este, desde os bispos até o último dos leigos fiéis, manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes. Com este sentido de fé, que se desperta e sustenta pela ação do Espírito de verdade, o povo de Deus – sob a direção do sagrado Magistério – [...] adere indefectivelmente à fé uma vez confiada aos santos (cf. Jd 3) penetra-a mais profundamente com juízo acertado e aplica-a mais totalmente na vida” (CONCÍLIO VATICANO 2O, constituição Lumen Gentium, no 12).

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• A quem cabe a decisão final do discernimento? • Não é por votação universal. • No tempo apostólico, a decisão final cabia a Pedro e aos demais apóstolos (cf. At 15). • No tempo pós-apostólico, a decisão final cabe ao sucessor de Pedro e aos sucessores dos demais apóstolos, i.e., ao Magistério hierárquico:

“A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da Palavra de Deus, confiado à Igreja. Aderindo a este, todo o povo santo persevera unido aos seus pastores na doutrina dos apóstolos [...]. Porém o encargo de interpretar autenticamente a Palavra de Deus escrita ou contida na Tradição, foi confiado só ao Magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo. Este Magistério não está acima da Palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido” (CONCÍLIO

VATICANO 2O, constituição Dei Verbum, número 10).

• Desafios atuais sobre o depósito da fé. • É necessária a coragem de ser profeta:

afirmar o depósito da fé mesmo em condições adversas (por exemplo: a gratuidade num contexto de capitalismo; a fé num contexto de ateísmo; a relação de Cristo com os pobres, os fracos e os pecadores; o amor preferencial de Deus aos inimigos e pecadores)

expressar o depósito da fé e a Tradição em tradições novas e originais (por exemplo: no século IV em Roma e arredores; no século IX nos povos eslavos; hoje na Ásia, África e América Latina)

No quarto capítulo da Carta aos Efésios, o apóstolo Paulo nos diz que com Cristo devemos atingir a idade adulta, uma humanidade madura. Não podemos mais permanecer “crianças à mercê das ondas, agitados de um lado ao outro por qualquer vento de doutrina” (Ef 4,14). Paulo deseja que os cristãos tenham uma fé responsável, uma fé adulta. Nos últimos decênios essa expressão fé adulta tornou-se um slogan difundido. Este é compreendido em geral como a atitude de quem não escuta mais a Igreja e os seus pastores, mas que escolhe autonomamente aquilo que deseja crer e não crer – uma fé do tipo autosserviço, portanto. Isto vem apresentado como coragem de se expressar contra o Magistério da Igreja. Na realidade, porém, para isso não é necessária coragem porquê se pode sempre ter certeza do aplauso público. É necessária coragem, isto sim, para aderir à fé da Igreja, mesmo se esta contradiz o esquema do mundo contemporâneo. É este não conformismo da fé que Paulo chama de fé adulta. Ele classifica de infantil, ao contrário, o ficar seguindo a onda e as correntes do tempo. Desse modo, faz parte da fé adulta, por exemplo, o compromisso com a inviolabilidade da vida humana desde o primeiro momento, opondo-se assim radicalmente ao princípio da violência, e também em defesa das criaturas humanas mais indefesas. Faz parte da fé adulta reconhecer o matrimônio entre um homem e uma mulher por toda a vida como uma ordem do Criador, restabelecida novamente por Cristo (BENTO 16, “Homilia de 28 de junho de 2009”)

• Leituras sugeridas:

Dicionário de Teologia Fundamental, verbete “Depósito da fé”.

RATZINGER, Joseph, Teoría de los principios teológicos. Materiales para una teología fundamental, parte 1, capítulo 2, seção 1, apêndice “Lo mudable e lo inmutable en la Iglesia” (p. 153-157).

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II - PERCURSO HISTÓRICO-TEOLÓGICO

• Vimos em Prolegômenos e na Parte I uma série de elementos teológicos essenciais para a compreensão do tema revelação. Iniciamos agora outra parte, a segunda, do nosso curso de Teologia Fundamental. • Nesta segunda parte consideraremos – de modo bastante sintético – a noção de revelação conforme ela veio mostrada em grandes fases da história da Teologia. Trata-se das fases mais significativas a esse respeito:

Na Bíblia

Na Patrística

Na Idade Média

Nos concílios de Trento e Vaticano 1o

Na constituição Dei Verbum do Vaticano 2o

No concílio Vaticano 2o como um todo, quando elaboraremos uma síntese da noção católica de revelação à luz do Vaticano 2o que incluirá elementos importantes presentes em outros documentos conciliares além da Dei Verbum.

1. A noção bíblica de revelação

• Na Bíblia, podemos fazer uma certa distinção didática entre a revelação no Antigo e no Novo Testamento. • Não é porém uma distinção muito rigorosa, como se a revelação no Antigo Testamento fosse uma coisa e no Novo outra bem diferente. Na verdade, o processo revelativo foi o mesmo em ambos os Testamentos. Há entre eles um nexo essencial. 1.1 A interdependência entre Antigo e Novo Testamento • O Antigo Testamento não mostra uma revelação completa, mas parte de um processo revelativo que culmina no Novo Testamento. • Tampouco o Novo Testamento mostra uma revelação completa. O Novo Testamento não fica de pé sozinho, pois possui um vínculo orgânico com o Antigo Testamento. Este é a matriz e o solo no qual o Novo Testamento estende suas raízes. A revelação do Novo Testamento é continuação e cume daquela do Antigo Testamento. • A revelação do Antigo Testamento fica incompleta sem aquela do Novo Testamento. A revelação do Novo Testamento também fica incompleta sem aquela do Antigo Testamento. • Tendo claro a interdependência entre Antigo e Novo Testamento no que concerne à revelação, podemos fazer agora uma breve análise da revelação em cada um deles. 1.2 A revelação no Antigo Testamento a) O não específico da revelação em Israel • No Antigo Testamento podemos encontrar aqui e ali concepções de revelação que não são específicas dos israelitas, mas sim comuns naquela região ocidental da Ásia.

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• Leituras de presságios e sonhos:

“José disse a seu intendente: „Encha de mantimento as sacas desses homens, quanto puderem levar, e ponha o dinheiro de cada um na boca de sua saca. Minha taça, a de prata, você a porá na boca da saca do mais novo, junto com o dinheiro do mantimento dele‟. E assim ele fez. Quando amanheceu, foram despedidos os homens com seus jumentos. Eles tinham apenas saído da cidade e não iam longe, quando José disse a seu intendente: „Levante-se! Corra atrás desses homens, alcance-os e diga-lhes: Por que vocês pagaram o bem com o mal? Não é a taça que serve ao meu senhor para beber e também para ler presságios? Procederam mal‟ ” (Gn 44, 1-5).

• Certas práticas de adivinhação e sortilégios são proibidas:

“Iahweh falou a Moisés e disse: „Fale a toda a comunidade dos filhos de Israel. Você lhes dirá: [...] Não praticarão adivinhações nem encantamentos‟ ” (Lv 19, 1-2.26b).

“Quando entrar na terra que Iahweh seu Deus lhe dará, não aprenda a imitar as abominações daquelas nações. Que no meio de você não se encontre alguém que queime o filho ou a filha, nem que faça presságio, oráculo, adivinhação ou magia, ou que pratique encantamentos, que interrogue espíritos ou adivinhos, ou ainda que invoque os mortos, pois quem pratica essas coisas é abominável a Iahweh, e é por causa dessas abominações que Iahweh seu Deus os desalojará em favor de você” (Dt 18, 9-12).

• Uma prática aceita porém é a da bolsa (êfod) com o peitoral e duas pedras (Urim e Tummim), usada por um sacerdote:

“Farão para Aarão, teu irmão, vestimentas sagradas para esplendor e ornamento. [...] Farão o êfod bordado de ouro, púrpura violeta, púrpura escarlate, carmesim e linho fino retorcido. Duas ombreiras nele serão fixadas. Ele aí será fixado por suas extremidades. [...] Farão o peitoral do julgamento. [...] Prender-se-á o peitoral, através de suas argolas, às argolas do êfod [...]. Porão também no peitoral do julgamento o Urim e o Tummim, para que estejam sobre o coração de Aarão quando entrar na presença de Iahweh. (Êx 28, 2.6-7.15.28.30)

“Mandou Aarão e seus filhos se aproximarem e os lavou com água. Colocou-lhe a túnica, cingiu-o com o cinto, revestiu-o com o manto e pôs sobre este o êfod. Depois cingiu-o com a faixa do êfod e a fixou em Aarão. Colocou-lhe o peitoral, no qual pôs o Urim e o Tummim. Colocou-lhe sobre a cabeça o turbante e, na parte dianteira do turbante a flor de ouro. Este é o sinal da santa consagração, como Iahweh ordenou a Moisés” (Lv 8, 6-9)

“Saul disse então: „Ó Iahweh, Deus de Israel, por que não respondeu hoje ao seu servo? Se o pecado recai sobre mim ou sobre o meu filho Jônatas, ó Iahweh, Deus de Israel, que dê Urim. Se a falta foi cometida pelo teu povo de Israel, que dê Tummim‟. Saul e Jõnatas foram apontados, e o povo ficou livre. Saul disse: „Lancem a sorte entre mim e o meu filho Jônatas‟. Jônatas foi apontado” (1 Sm 14, 41-42)

• No Antigo Testamento, há portanto de modo esporádico concepções de revelação que não eram exclusivas do povo de Israel, mas sim comuns a outros povos da região. São no entanto concepções periféricas, de importância bastante secundária, dentro do conjunto do Antigo Testamento. b) O específico da revelação em Israel • Na noção de revelação do Antigo Testamento, o essencial é especificamente israelita. Trata-se da revelação que acontecia nos eventos históricos que forjaram em fases o Povo de Israel. • No Antigo Testamento a expressão privilegiada e mais frequente para designar esse aspecto específico da revelação em Israel é Dabar Iahweh ou Dabar Adonai (Palavra de Iahweh ou Palavra do Senhor).

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• Palavra, nesse caso, é mais do que a nossa noção atual de palavra. • Não é equivalente a oralidade, discurso especulativo, expressão de ideias abstratas ou conteúdo oral composto de frases. • É a junção de oralidade, de palavra oral (dimensão noética) com o ato, com a transformação da realidade, com a realidade que a palavra suscita (dimensão dinâmica). • Por dimensão dinâmica do Dabar – transformação da realidade – compreende-se:

palavra que é manifestação de Deus na história humana, e que se deve unicamente à livre decisão de Deus;

palavra que é encontro transformador com o Senhor que profere a palavra;

palavra que é experiência de uma potência soberana que transforma a história da comunidade e a existência individual; tal potência soberana se manifesta como Senhor da história (está acima dela; transcendência) e Senhor na história (está nela; imanência);

palavra que é encontro de Alguém que fala com alguém que ouve e responde;

da parte do ser humano cabe escutar em disponibilidade, ativamente e não passivamente; tal resposta é chamada fé.

c) Objeto da revelação no Antigo Testamento • No processo revelativo do Antigo Testamento, o que é revelado?

Deus;

Deus-salvador, atuante mediante alianças na história humana marcada pelo pecado, pela infidelidade.

d) Fases da revelação (segundo Latourelle e Dulles, Revelation theology). • Esses autores relacionam as fases da revelação do Antigo Testamento com os livros deste. • Tal método tem um limite: nem sempre deixa teologicamente evidente aquilo que Deus revelou de si em cada fase. • Patriarcas, em particular Abraão (Gn 12 ss) • Os textos refletem tradições muito mais antigas, transmitidas oralmente em Israel. • Deus transcendente intervém na história: muda a vida daqueles a quem se dirige, estabelece pacto de salvação (aliança) e solicita dedicação total. • Êxodo e aliança do Sinai (Êx 3ss) • Início: Deus se apresenta a Moisés como “Deus de Abraão, Isaac e Jacó”. Há portanto estreita continuidade com a revelação anterior, feita aos patriarcas. • A aliança do Sinai (Êx 19-31; no esquema bênção e maldição) é o momento chave da história da revelação do Antigo Testamento. Transformou em nação as tribos saídas do Egito e as submeteu a Iahweh.

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• Profetas • O termo nabi designa um indivíduo que recebe determinadas comunicações divinas e as transmite à nação de Israel. • Moisés é o arquétipo do profeta, mas em geral estes são contados a partir de Samuel (1Sm 3,1s). • A tradição mais antiga mostra os profetas orais (por exemplo, Samuel, Elias, Eliseu). • A tradição menos antiga (séculos 8-7 aC) mostra os profetas escritores (por exemplo, Isaías, Jeremias, Ezequiel). • O conteúdo de suas mensagens reflete uma clara consciência da situação histórico-política, julgada à luz da aliança do Sinai. • Deus atua na história segundo a aliança firmada, distribuindo bênção ou maldição.

• Deuteronômio • Distingue-se pela expressão da aliança sob forma de lei escrita, de cunho religioso, civil e criminal). Tal lei escrita é tão central que simplesmente se chama Lei. • A revelação é sobretudo essa Lei.

• Literatura histórica • O Deuteronômio forneceu a base para a Literatura Histórica (Juízes, 1-2Sm, 1-2Rs). • A história de Israel vem interpretada sob a ótica da fidelidade ou infidelidade ao que está revelado na Lei.

• Literatura Sapiencial (por exemplo Jó, Qohelet, Sabedoria) • Composta em geral nos períodos persa e helenístico. • Reflete sobre a existência humana à luz da fé em Iahweh e da fidelidade ou infidelidade ao que Este revelou.

• Salmos • Exprimem orações em formas de hinos. • A revelação mostra o poder, a majestade e a fidelidade de Iahweh para com o seu povo, que muitas vezes mostrou-se porém infiel.

• Expectativas messiânicas e apocalípticas (encontradas em Ezequiel, Deutero-Isaías e Daniel) • Nascem a partir das experiências traumáticas do fim do Reino do Norte (século 8 aC) e do exílio na Babilônia (século 6 aC). • Apontam a revelação de uma salvação futura, personificada na figura do ungido de Deus, o que nos introduz ao tema da abertura do Antigo Testamento.

• Na terceira parte deste curso de Teologia Fundamental, a revelação do Antigo Testamento será mostrada de outro modo. Ao contrário dessa linha de Latourelle e Dulles, que analisam a revelação de acordo com grupos específicos de livros, a terceira parte do curso não fará a distinção por livros, mas por tema teológico. Será dada ênfase não às classes de livros, mas às etapas cada vez mais profundas daquilo que Deus ia revelando a seu respeito ao longo da história de Israel. Parece-nos que tal caminho é teologicamente mais fecundo.

e) A abertura do Antigo Testamento

• No Antigo Testamento, a revelação aponta com certa constância para uma salvação que há de vir. • Revela-se que o sentido pleno do presente encontra-se ainda num tempo futuro.

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• Importante é a profecia de Natã sobre a permanência da linhagem de Davi no trono de Israel:

“Nesta mesma noite a Palavra de Iahweh veio a Natã nestes termos: „Vá dizer ao meu servo Davi: Assim diz Iahweh. Você construiria uma casa em que eu venha habitar? [...] Eu lhe darei um grande nome como o nome dos grandes da terra. Prepararei um lugar para o meu povo Israel [...]. E quando os dias de Davi estiverem completos e ele vier a dormir com seus pais, farei permanecer a sua linhagem após você, gerada das suas entranhas, e firmarei a sua realeza. Ela construirá uma casa para o meu nome, e estabelecerei para sempre o seu trono. Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho [...]. A sua casa e a sua realeza subsistirão para sempre diante de mim, e o seu trono se estabelecerá para sempre.‟ Natã comunicou a Davi todas essas palavras e toda essa revelação” (2Sm 7,4-5.9-10.12-13a.16).

• Essa profecia de Natã a Davi é a chave principal para a esperança de um messias futuro em Israel. Tal profecia, por exemplo, é relembrada nos Salmos:

“Fiz uma aliança com meu eleito, eu jurei ao meu servo Davi: estabeleci sua descendência para sempre, de geração em geração construo um trono para você” (Sl 89,4-5). “Iahweh jurou a Davi uma verdade que jamais desmentirá: „É um fruto do seu ventre que eu vou colocar em seu trono‟ ” (Sl 132,11).

“Eu o louvo entre as nações, Iahweh, e toco em honra do seu nome: „Ele dá grandes vitórias ao seu rei e age pelo seu ungido com amor, por Davi e sua descendência para sempre‟” (Sl 18,50-51).

• Em Daniel a história tende para uma realização futura na pessoa desse ungido de Deus:

“Daniel, eu saí para vir instruí-lo na inteligência. [...] Preste atenção à Palavra e recebe a compreensão da visão. [...] Desde a promulgação do decreto sobre o retorno e a reconstrução de Jerusalém até um príncipe ungido haverá sete semanas. Durante sessenta e duas semanas serão novamente construídas praças e muralhas, embora em tempos calamitosos. Depois de sessenta e duas semanas um ungido será eliminado, e a cidade e o santuário serão destruídos por um príncipe que virá. Seu fim será no cataclismo e, até o fim, a guerra e as desolações decretadas” (Dn 9,22.23.25-26).

1.3 A revelação no Novo Testamento a) Dos termos ao tema da revelação

• O Novo Testamento usa muitos termos para expressar a ação e o fato da revelação de Deus:

revelar/revelação (/, apokalýptein/apokálypsis)

mostrar/mostra = aparição (/, faneróun e epifáneia)

trazer boa notícia/boa notícia (/, euaggelídzestai e euaggélion)

ensinar/ensinamento (/, didáschein e didaché)

testemunhar/testemunho (/, martyréin e martýrion)

tomar conhecimento = revelar/conhecimento (/, gnorídzein e gnósis)

pregar = proclamar/pregação = proclamação (/, kerýssein e kérigma)

iluminar (, fotídzein)

falar, dizer (/, légein e lálein)

palavra = algo que é dito (, lógos)

verdade (, alétheia)

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• Unificando todos esses muitos termos está o tema da revelação. É este que nos permite ter uma visão de conjunto dos muitos termos:

“Mais que às palavras, devemos estar atentos ao tema da revelação” (LATOURELLE, René, Teologia da revelação, p. 42)

b) Características do tema revelação no Novo Testamento

• O Novo Testamento assume a revelação acontecida no Antigo Testamento. São inúmeros os referimentos neste sentido. Alguns exemplos:

a transfiguração de Jesus, com Moisés e Elias ao lado (Mc 9,2-13 e paralelos em Mateus e Lucas);

as referências à Antiga e à Nova Aliança (Mt 5, 17-48 “Ouviram o que foi dito aos antigos; eu porém lhes digo”; Carta aos Hebreus);

a inserção de Jesus, desde a concepção, no povo de Israel;

as muitas citações do Antigo Testamento feitas pelo Novo Testamento. • O núcleo do Novo Testamento consiste em mostrar que a revelação começada no Antigo Testamento foi levada ao seu ponto mais profundo e definitivo: Jesus Cristo. Nele, tudo o que Deus tinha para revelar foi revelado. • O melhor resumo de como o Novo Testamento mostra essa concepção de revelação aparece na Carta aos Hebreus, comumente citada pelos concílios quando se fala de revelação:

“Muitas vezes e de modos diversos Deus falou outrora aos Pais pelos profetas. Agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e pelo qual fez os séculos” (Hb 1, 1-2).

• Outras citações exemplares da concepção de revelação que culmina em Jesus Cristo:

“Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas [...]. Ele é antes de tudo, e tudo nele subsiste [...], nele aprouve a Deus fazer habitar toda a plenitude” (Cl 1, 15-16a.17.19).

“Nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2,9).

“No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus. [...] E a Palavra se fez carne, e habitou entre nós, e nós vimos a sua glória” (Jo 1, 1.14).

“Filipe lhe diz: „Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta!‟ Diz-lhe Jesus: „Há tanto tempo estou com vocês e você ainda não me conhece, Filipe? Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,8-9).

• Mas, na revelação culminada em Jesus Cristo, onde precisamente ela acontece? A revelação acontece nas atitudes, gestos e palavras de Jesus. A sua pessoa, junto com tudo o que ela realizou, é revelativa. • Por isso, em sentido próprio (não analógico), Jesus em pessoa é o Dabar divino, a Palavra de Deus (cf. Jo 1,1.14, reproduzido logo acima).

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• Podem-se indicar outras três características importantes da revelação no Novo Testamento: 1) Para o Novo Testamento, a revelação é salvífica e completamente gratuita da parte de

Deus. Ele não obriga a que a revelação salvífica seja aceita.

“Muitos de seus discípulos, ouvindo-o, disseram: „Essa palavra é dura. Quem aguenta escutá-la?‟ Compreendendo que seus discípulos murmuravam por causa disso, Jesus lhes disse: „Isto os escandaliza? [...]‟. A partir daí, muitos dos seus discípulos voltaram atrás e não andavam mais com ele. Então disse Jesus aos Doze: „Vocês também não querem partir?‟ Simão Pedro respondeu-lhe: „Senhor, a quem iremos?” (Jo 6, 60-61.66-68).

2) Para o Novo Testamento, tal revelação plena e definitiva é para ser proclamada a toda a humanidade.

“O que lhes é dito aos ouvidos, proclamem-no sobre os telhados” (Mt 10, 27b).

“Os onze discípulos caminharam para a Galileia, à montanha que Jesus lhes determinara. [...] Jesus, aproximando-se deles, falou: „Toda a autoridade sobre o céu e a terra me foi entregue. Vão, portanto, e façam que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, e ensinando-as a observar tudo que eu lhes ordenei. E eis que eu estou com vocês todos os dias, até a consumação dos séculos‟ ” (Mt 28, 18-20).

3) No Novo Testamento, os apóstolos – tendo Pedro como líder – são os proclamadores

principais dessa revelação.

“Então, do monte chamado das Oliveiras, voltaram a Jerusalém. A distância é pequena: a de uma caminhada de sábado. Tendo entrado na cidade, subiram à sala superior, onde costumavam ficar. Eram Pedro e João, Tiago e André, Filipe e Tomé, Bartolomeu e Mateus, Tiago (filho de Alfeu) e Simão, o zelota, e Judas (filho de Tiago). Todos estes, unânimes, perseveravam na oração com algumas mulheres, entre as quais Maria, a mãe de Jesus, e com os irmãos dele. Naqueles dias, Pedro levantou-se no meio dos irmãos e disse: [...]” (At 1, 12-15).

“Pedro, então, de pé junto com os Onze, levantou a voz e assim lhes falou: [...]” (At 2, 14).

“Ouvindo isto, eles sentiram o coração traspassado, e perguntaram a Pedro e aos demais apóstolos: [...]” (At 2, 37).

“No dia seguinte, reuniram-se em Jerusalém seus chefes, anciãos e escribas. Estava presente o sumo sacerdote Anás, e também Caifás, Jônatas, Alexandre e todos os que eram da linhagem do sumo sacerdote. Mandaram então comparecer os apóstolos e começaram a interrogá-los: „Com que poder ou por meio de que nome vocês fizeram isso?‟ Então Pedro, repleto do Espírito Santo, lhes disse: [...]” (At 4, 5-8).

“Tendo-os trazido, fizeram-nos comparecer perante o Sinédrio. O sumo-sacerdote os interpelou: „Ordenamos expressamente que não ensinassem nesse nome. No entanto, vocês encheram Jerusalém com essa doutrina, querendo fazer recair sobre nós o sangue desse homem!‟ Pedro e os apóstolos, porém, responderam: [...]” (At 5,27-29).

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c) Novo Testamento: enfoques diversos do mesmo Cristo • O Antigo Testamento mostra etapas diversas e cada vez mais profundas da revelação. • O Novo Testamento mostra diversos enfoques da mesma plenitude da revelação, Cristo. O objeto da revelação é tão rico que a adoção de um enfoque único empobreceria a boa notícia que ali é testemunhada. • Sinóticos

• Jesus como revelador é chamado de Rabbi ou (didáskalos, mestre), com discípulos. • A revelação é a comunicação feita por Jesus na pregação e no ensinamento por palavras e gestos. • A revelação é mostrada como o Reino, que chega e que já se encontra presente em meio à humanidade. • A revelação ou Reino é mostrada aos pequeninos; os sábios e entendidos não a compreendem direito. • Há um claro conflito entre, por um lado, a revelação da boa notícia do Reino (o amor e a misericórdia de Deus aos pecadores e aos inimigos) e, por outro lado, a fixação de diversas pessoas na convicção de uma merecida maldição divina a tais classes de pessoas. • João (evangelho e cartas)

• Jesus é o revelador visto como a Palavra (, lógos) de Deus. • A revelação é apresentada como:

testemunho: o Filho dá testemunho do Pai com gestos e palavras; o Pai dá testemunho do Filho através dos sinais; o Espírito Santo dá testemunho do Filho aos discípulos;

luz: Jesus (revelador e revelação) é a luz, mas muitos preferem a escuridão;

amor: numa das mais sucintas e profundas formulações do Novo Testamento, Deus é apresentado como amor.

• Há um claro conflito entre, por um lado, a revelação do amor e da misericórdia de Deus aos pecadores e aos inimigos e, por outro lado, a fixação de diversas pessoas na convicção de uma merecida maldição divina a tais pessoas. • Atos • Há um pressuposto básico: a revelação foi dada na vida, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. • O Espírito Santo age na Igreja do tempo dos apóstolos, os quais testemunham a revelação em Jesus Cristo e a aprofundam a compreensão desta. • Aparece aqui o mesmo conflito mostrado nos evangelhos: entre a boa notícia da revelação do amor de Deus aos pecadores e inimigos, e a fixação de várias pessoas na convicção de que pecadores e inimigos mereceriam a maldição. • Paulo • O hino no início da carta aos colossenses é um resumo da concepção de revelação paulina, herdada das primeiríssimas gerações cristãs:

a revelação é revelação do amor de Deus;

o Filho mostra o Pai em gestos e palavras;

como o Pai, o Filho preexiste e participou da criação;

o Filho é como que a cabeça da Igreja, que compõe os membros daquele corpo.

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“Ele [o Pai] nos arrancou ao poder das trevas e nos transferiu para o reino do Filho do seu amor. Neste somos libertos, nossos pecados são perdoados. Ele é a imagem do Deus invisível, primogênito de toda criatura, pois nele tudo foi criado [...]. Tudo foi criado por ele e para ele, e ele existe antes de tudo. Tudo nele se mantém, e ele é a cabeça do corpo, que é a Igreja” (Cl 1,13-18).

• O Espírito tem uma relação tão estreita com o Pai e o Filho que é chamado “Espírito de Deus” (1Cor 3,16; 1Cor 7,40; 1Cor 12,3; Ef 4,30), “Espírito do Senhor” (2Cor 3,17) e “Espírito de Cristo” (Rm 8,9).

• A revelação é apresentada como o (mystérion, segredo) do plano salvífico de Deus, finalmente revelado a toda a humanidade em Jesus Cristo:

“Ele nos fez conhecer o mistério da sua vontade, o desígnio benevolente que de antemão determinou em si mesmo para levar os tempos à sua plenitude e reunir o universo inteiro sob um só chefe, Cristo” (Ef 1,9-10).

“Quero que assim os seus corações sejam encorajados e, estreitamente unidos no amor, eles tenham acesso – em toda a sua riqueza – à plenitude do entendimento, ao conhecimento do mistério de Deus: Cristo” (Cl, 2,2).

• O tesouro da revelação foi confiado aos apóstolos. É o depósito (1Tm 6,20-21; 2Tm 1, 13-14).

• Apocalipse

• O próprio nome (apokálypsis) significa revelação. • Segue a linha apocalíptica (isto é, revelativa) presente em alguns escritos do Antigo Testamento, usando o gênero literário da revelação em visões. • Querendo designar o caráter pleno e definitivo da revelação acontecida em Jesus, o livro do Apocalipse o apresenta ali como Palavra de Deus, Rei dos reis e Senhor dos senhores e Alfa e Ômega:

“Seus olhos são chama de fogo. Sobre sua cabeça há muitos diademas, e traz escrito um nome que ninguém conhece, exceto ele. Veste um manto embebido de sangue, e o nome com que é chamado é Palavra de Deus. [...] Um nome está escrito sobre seu manto e sobre sua coxa: Rei dos reis e Senhor dos senhores” (Ap 19, 12-13.16).

“Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim” (Ap 22, 13).

• Hebreus • Para explicar como a revelação plena e definitiva aconteceu em Jesus de Nazaré, mostra a unidade

e a diferença entre a (diathéke; aliança, declaração de uma última vontade, testamento)

velha e a nova. • Esta carta pressupõe que o leitor conheça a fundo a revelação acontecida na Antiga Aliança. • A revelação acontecida em Cristo é superior àquela dada através de Moisés, ou seja, àquela do Antigo Testamento:

“Considerem o apóstolo e sumo sacerdote da nossa profissão de fé, Jesus. [...] De fato, cabe-lhe uma glória superior à de Moisés, na medida exata em que se deve maior honra ao construtor da casa que à própria casa. Pois toda casa tem seu construtor, e o construtor de tudo é Deus” (Hb 3,1.3-4).

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• Uma figura muito importante – e única no Novo Testamento – é usada para indicar que Jesus Cristo é o máximo revelador de Deus: a de sacerdote e sumo sacerdote. É esse sumo sacerdote que realiza o acesso da humanidade a Deus, é ele que consuma a revelação. • O sacrifício gratuito e amoroso de si aos pecadores é a característica principal da atividade revelativa desse sumo sacerdote. Tal sacrifício é a nova aliança, no sentido de última declaração da vontade de Deus. • A revelação trazida pela nova aliança gratuita e amorosa é boa notícia para a humanidade pecadora:

“Nós recebemos a boa notícia tal como aquela gente” (Hb 4,2).

• A revelação acontecida em Jesus Cristo é a revelação de Deus em pessoa, mas a realidade humana do Cristo é indiscutível. A afirmação da divindade e da humanidade de Cristo devem ser mantidas juntas. • De natureza divina, Cristo é aquele “por quem e para quem tudo existe” (Hb 2,10). Hb 1,5-14 é uma defesa rigorosamente escriturística da divindade do Cristo revelador. • Uma passagem, formada pela junção de dois trechos diversos da carta aos Hebreus, tornou-se muito famosa em Teologia a partir do concílio de Calcedônia (ano 451; cf. DH 301). Ela mostra a radical realidade humana do Cristo revelador:

“Convinha que ele se tornasse em tudo semelhante aos irmãos, [...] ele mesmo foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado” (Hb 2,17.4,15).

• Leituras sugeridas:

LATOURELLE, René, Teologia da revelação, parte 1, “Noção bíblica de revelação” (especialmente “Antigo Testamento”, “A tradição sinótica”, “Paulo” e “João”).

RUIZ ARENAS, Octavio, Jesús, epifanía del amor del Padre, capítulos 5 e 6.

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2. A noção patrística de revelação

• Nossa consideração examinará brevemente os Padres da Igreja entre os anos 100 e 400. • Nenhum Padre da Igreja escreveu um tratado específico sobre a revelação, mas a abordagem do tema é frequente nos seus escritos.

2.1 Características gerais • A revelação é em geral vinculada às ações e às palavras de Jesus Cristo, mas com nuances importantes:

Há os que seguem mais de perto a apresentação realista da Bíblia, realismo este marcado pela mentalidade semita, ao invés daquela grega. Por realismo queremos indicar a intuição básica de que Deus se revelou plenamente na existência carnal e visível de Jesus. Exemplos de Padres da Igreja que adotam essa linha: Inácio de Antioquia, Atanásio e Irineu.

Nota-se em Orígenes um certo distanciamento dessa apresentação realista. Ele sustenta que pela carne de Jesus se pode fazer uma ideia do Verbo divino, e daí podemos chegar a compreender a revelação de Deus.

Há enfim os que se afastam mais do realismo bíblico. Levam menos em consideração a importância essencial, na revelação acontecida em Jesus Cristo, da carne do Verbo. Jesus é o Mestre por excelência, que comunica acima de tudo verdades de revelação. Há nisto um nítido influxo da mentalidade grega. Os Padres da Igreja que adotam essa linha tinham em geral grande familiaridade com a Filosofia grega. Exemplos são Clemente de Alexandria e Justino.

Uma chave de leitura fundamental para as próximas aulas: A partir dos séculos 14 e 15, a terceira linha se fará predominante na Teologia. Somente no século 20, e em especial no Vaticano 2o, será resgatado o realismo bíblico, de matriz semita.

• A revelação é vista como uma progressividade do Antigo Testamento para o Novo. • Os Padres da Igreja em geral deixam claras:

A unidade entre Antigo e Novo Testamento: Deus é o único autor da revelação em ambos

A progressividade de um para o outro: o único autor manifestou gradualmente a sua revelação. O cume foi Jesus Cristo, ao qual se vinculam tanto o Antigo Testamento como os apóstolos e a Igreja do tempo apostólico

Leis e Profetas Cristo Apóstolos e Igreja do tempo apostólico

A pedagogia de Deus em tal processo: Deus levou em consideração as deficiências da humanidade à qual se revelava. Ele preparou a humanidade e a fez amadurecer. João

Crisóstomo fala da (sigkatábasis, “condescendência” no sentido de “descer com”, abaixar-se com) de Deus. Deus adapta sua grandeza à fraqueza da humanidade. Esse conceito foi redescoberto no século 20 e incorporado à Dei Verbum.

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2.2 Elementos da noção de revelação em cinco Padres da Igreja

a) Inácio (bispo de Antioquia; martirizado em ± 115)

• Cristo é o revelador por excelência:

Cristo é a porta do Pai, pela qual entraram Abraão, Isaac, Jacó, os profetas e os apóstolos da Igreja” (Carta aos cristãos de Filadélfia 9,1).

• Os ensinamentos de Cristo e dos apóstolos mantêm-se fielmente no bispo e no seu presbitério. Permanecer com estes é permanecer com Cristo e com os apóstolos. Inácio é o “campeão” do papel do episcopado na Igreja. b) Justino (bispo de Nablus, Judeia; martirizado em ± 165)

• Foi um apologista que procurava, nos sistemas filosóficos da época, as categorias para apresentar o Evangelho.

• O estoicismo falava da Palavra ou Verbo () que permeava o universo. • Justino (e outros, como Atenágoras e Teófilo de Antioquia) desenvolveu nesse contexto a “Teologia da Palavra” baseada em João. • Na revelação: a Palavra que permeia o universo manifesta-se parcialmente no Povo de Israel do Antigo Testamento, e plenamente em Cristo. • Em cada ser humano há uma semente da Palavra ou semente do Verbo (, lógos spermatikós) pela qual a pessoa participa parcialmente da verdade. Por isso os filósofos pagãos tinham podido conhecer elementos dessa verdade.

• A figura do tornou-se muito famosa em Teologia. Atualmente é uma porta de entrada importante para fundar no cristianismo o diálogo inter-religioso. • Somente a Palavra encarnada (Cristo) permite conhecer toda a verdade. Cristo permite conhecer tudo do Pai. c) Inineu (bispo de Lion; martirizado em ± 200)

• A revelação é progressiva devido às limitações do gênero humano. Aconteceu o mesmo que com uma criança que vai progressivamente podendo se alimentar com comidas cada vez mais sólidas. • O Filho é o revelador desde o início da criação. • Desde o início da criação, o Filho revela Deus aos anjos e arcanjos. • A Palavra divina (o Filho) estava presente junto à humanidade desde o surgimento desta, e veio guiando seu amadurecimento. • Em modo especial, a Palavra divina manifestou-se no Antigo Testamento; manifestou-se plenamente no Novo Testamento. • Na pessoa de Cristo dá-se a revelação total de Deus, em atos e palavras.

“Pela Palavra, feita visível e palpável, mostra-se o Pai” (Contra as heresias [Adversus Haereses], 4,6,6).

• Há estreita unidade: “Cristo”“apóstolos”“Igreja da época de Irineu”. Nesta última, a revelação é fielmente conservada e transmitida. • A revelação é ato totalmente gratuito de Deus, e também obra de salvação do ser humano.

“A glória de Deus é a vida do ser humano, e a vida do ser humano é a visão de Deus” (Contra as heresias [Adversus Haereses], 4,20,6-7).

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d) Orígenes (Alexandria; martirizado em ± 255)

• A Palavra () é Deus e imagem do Deus invisível • A Palavra existe para manifestar o Pai. A Palavra já o revelava gradualmente na história da salvação em Israel. A Palavra fez-se carne para nos fazer ver como ela era antes de se fazer carne. • A carne da Palavra veio para instruir e educar o ser humano no caminho da salvação. Com a carne a Palavra revela Deus mediante seu ensinamento. • A doutrina do Filho chegou ao tempo de Orígenes:

pela pregação dos apóstolos

através da Escritura; toda a Escritura refere-se a Cristo

pelo ensinamento da Igreja e) Agostinho (bispo de Hipona, África; morto em 430)

• A revelação teve três fases:

de Adão ao tempo dos hebreus no Egito: não conheciam nem o Antigo nem o Novo Testamento

a partir de Moisés: veio revelada a Antiga Aliança

a partir de Cristo: a Nova Aliança foi revelada • Cristo é mediador de toda a revelação divina, por suas palavras e ações. Por isso ele pode ser chamado de Profeta e Mestre. • Cristo é caminho, porque ensina a verdade:

A essência de Deus é amor, e Cristo a revela através de sua vida na carne

Toda ação do Filho encarnado é palavra da revelação

Revelando sua própria pessoa, Cristo revela o Pai; conhecemos a vida íntima de Deus pelo testemunho feito por Cristo

Quando Cristo falava, era o Pai que ensinava • Cristo é meta, pois ele é a verdade. • A doutrina da iluminação: para crer (para a fides qua, o ato de fé), é necessária uma luz interior – fornecida pelo Espírito Santo – que atraia à revelação. Nesse sentido, é Deus que possibilita ao ser humano acolher a revelação de Cristo. 2.3 Enfoques heréticos sobre a revelação

• Alguns cristãos do período pensaram o tema da revelação em termos que contradiziam o tesouro revelado e confiado aos apóstolos e à Igreja como um todo (o depósito da fé). • Esses pensamentos são chamados de heresias. Este termo pode ter duas origens em grego:

(hairéomai, preferir ou escolher)/ (hairétidzo, selecionar/escolher), e

(háiresis, partido ou facção)/ (hairetikós, faccioso ou causador de divisão). • Os enfoques heréticos sobre a revelação são importantes porque a visão de revelação dos Padres da Igreja aparece muitas vezes de modo indireto nos seus textos contra tais heresias.

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a) Gnosticismo (Basílides e Valentino, século 2)

• Basílides nasceu no início do século 2 em Alexandria, onde abriu uma escola filosófica de linha aristotélica. Ali aderiu ao cristianismo. Chegou a escrever um evangelho e lhe atribuiu o próprio nome. • Valentino nasceu na primeira metade do século 2. Era originário do Egito. Recebeu educação greca em Alexandria e tornou-se filósofo platônico. Era inteligente e eloquente. Passou cerca de 20 anos como pregador em Roma. Ali aderiu primeiramente à doutrina católica. Esperando obter o episcopado, afastou-se da comunidade ao ver o posto ocupado por outro. Além disso entrou diversas vezes em conflito com a comunidade, até ser afastado definitivamente. • Segundo o gnosticismo, Cristo teria sido o revelador porque nos entregou um conjunto de ensinamentos proposicionais salvíficos (conjunto este chamado de gnose). Cristo revela todos os pontos fundamentais do conhecimento, necessários para o batismo. Cristo é revestido só em aparência de um corpo humano. • Tal conjunto de verdades reveladas por Cristo compunha-se especialmente de ensinamentos secretos (esotéricos) destinados ao conhecimento de algumas pessoas selecionadas. Era difícil entrar num grupo gnóstico. Os futuros adeptos tinham uma etapa probatória de vários anos, e eram obrigados a manter segredo do que ali aprendiam. b) Marcião (século 2)

• Junto com Basílides e Valentino, foi um dos principais nomes do gnosticismo. • Marcião nasceu no início do século 2. Pessoa muito inteligente, é originário da região do Ponto, no norte da Ásia Menor, às margens do Mar Negro. Ali adere ao cristianismo e, anos depois, é afastado pela comunidade. Após passar por Éfeso, estabelece-se em Roma na metade do século 2. Ali também entra em conflito com a comunidade cristã e é declarado separado. • Além da concepção gnóstica já vista, Marcião se distinguiu pela sua concepção que separava o Deus mau do Antigo, e o Deus bom do Novo Testamento. • O Deus do Antigo Testamento é mau. Ele é o criador do mundo, mas não tem valor por causa do seu caráter vingativo. É o Deus da Lei e dos Profetas, e deseja as guerras. A materialidade é má porque provem desse Deus mau. • Cristo é filho do Deus bom, que o enviou ao mundo para a salvação das almas. Só ele é que tem valor como revelação. • O corpo de Cristo não seria real, mas sim apenas aparência de corpo. O valor da revelação feita por ele estaria portanto no seu conteúdo oral, aquilo que foi falado pela boca de Cristo. c) Montano (com as profetisas Prisca, ou Priscila, e Maximila; século 2)

• Montano nasceu da Frígia, região centro-ocidental da Ásia menor, na primeira metade do século 2. Tendo-se convertido ao cristianismo, começou a profetizar e dar testemunhos dizendo ter recebido revelações diretamente de Deus. O trio Montano, Prisca e Maximila falava em êxtase e exortava as pessoas à oração e ao jejum. • A revelação máxima não tinha acontecido em Cristo, mas sim em Montano e companheiras, através do Espírito Santo. Montano e companheiras estariam iniciando a era final da revelação, chamada de Era do Espírito Santo.

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d) Eunômio (século 4)

• Eunômio era natural da Capadócia, região centro-oriental da Ásia Menor. Tendo estudado teologia em Alexandria, foi ordenado diácono. Em 360 foi nomeado bispo de Cízico, cidade da Ásia Menor situada no Estreito de Mármara, entre os mares Mediterrâneo e Negro. Claramente alinhado com o arianismo, foi deposto pelo imperador romano um ano depois. • No campo da revelação, sustentava que aquilo que Deus havia mostrado em Cristo haveria terminado com o mistério divino. Uma vez plenamente revelado, Deus não seria mais mistério.

• Leituras sugeridas:

LATOURELLE, René, Teologia da revelação, parte 2, “O tema da revelação nos Santos Padres” (especialmente capítulo 1, “Primeiras testemunhas”, capítulo 3, “Testemunhas da Igreja Grega”, e Agostinho);

RUIZ ARENAS, Octavio, Jesús, epifanía del amor del Padre, capítulo 4, item 1, “La revelación según los Padres de la Iglesia”;

SESBOÜÉ, Bernard (ed.), História dos dogmas. IV. A palavra da salvação. Capítulo 2, item 2.2, “A revelação”, páginas 98-100;

Um bom manual recente sobre heresias até a metade do século 2, em língua italiana, é: PERROTA, Romolo. Hairéseis. Gruppi, movimenti e fazioni del giudaismo antico e del cristianesimo. Bologna: EDB, 2009.

3. A noção de revelação na Idade Média

3.1 Considerações iniciais

a) Autores importantes na Idade Média

• Os escolásticos dos séculos 13 e 14 (e Tomás de Aquino em particular) não trataram em profundidade e sistematicamente o tema da revelação. • Por razões de brevidade, aqui nos dedicaremos só a Tomás de Aquino (morto em 1274). René Latourelle considera também Duns Scoto (morto em 1308) e Boaventura (morto em 1274, quatro meses depois de Tomás). • Em Tomás de Aquino, o tema da revelação aparece em:

Summa Theologiae Ia, q. 1

Summa Theologiae IIa-IIae, q. 1-7.9

Summa contra gentiles, l. 3-4

De Veritate, q. 12 b) Um parêntese: como citar a Summa Theologiae

Não escrever o nome por extenso, como foi feito anteriormente, mas apenas STh

Dar em seguida o número do livro, da questão e do artigo

Exemplos de números do livro: Ia (= prima pars, primeira parte), Ia-IIae (= prima pars secundae partis, primeira parte da segunda parte)

O número da questão vem após a indicação sempre abreviada “q.” (quaestio, questão) O número do artigo vem após a indicação sempre abreviada “a.” (articulus, artigo)

Caso necessário, citar também a subdivisão do artigo: obi. (obiectio, objeção), ad (a, isto é, resposta a uma objeção), s.c. (sed in contra, mas ao contrário), c (corpus articuli, corpo do artigo, isto é, exposição que responde a um s.c.)

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3.2 Tomás de Aquino e a revelação

• Segundo Latourelle, podemos sistematizar assim a visão de Tomás de Aquino sobre a revelação: a) A revelação é uma operação salvífica

• O ser humano foi criado gratuitamente por Deus. Este, quando o criou, já tinha implícito o propósito de se revelar com a mesma gratuidade. • O objeto da revelação:

é Deus. Esse Deus revelado é a salvação do ser humano; desse modo, quando a revelação aconteceu de fato na história humana, teve um intrínseco caráter salvífico

são verdades. Deus fornece ao ser humano todas as verdades que este necessita para a sua salvação

• A revelação é eminentemente o processo no qual o ser humano vem posto na posse de conhecimentos salvíficos de origem divina. • Tais conhecimentos – ou verdades – de origem divina são de dois tipos:

“revelado” o “sobrenatural”, isto é, que o ser humano não consegue obter com o próprio esforço

“revelável” o “natural”, isto é, que o ser humano pode obter mesmo que utilize somente o esforço da sua própria razão

b) A revelação deu-se por etapas

• A revelação não se realizou de uma vez só, mas por etapas. • Ela é tão rica que ao ser humano foram necessários vários séculos para a assimilar. • A revelação formou um plano (em latim oeconomia, que por transliteração dá economia; originalmente oeconomia significava a ordem harmônica das partes de um espetáculo musical). Tal plano da revelação é complexo, podendo serem distinguidas nele etapas:

Era Patriarcal (Abraão, Isaac e Jacó): antes da Lei; destinava-se a algumas famílias

Era Profética (Moisés e Profetas): sob a Lei; destinava-se a um povo

Cristo: sob a graça; destina-se a toda a humanidade • Depois de Cristo, o Espírito Santo continuou agindo. Não traz novos conhecimentos divinos, mas orienta os atos humanos. c) Um interesse especial de Tomás de Aquino: a ação divina na mente de um profeta

• Tomás de Aquino teve um interesse particular pela revelação que se manifestava no psiquismo de um profeta no momento em que este recebia a revelação de Deus. • Naquele processo, Deus comunicaria ao profeta verdades que este não conseguiria obter com o próprio esforço (ou seja, tratava-se de um conhecimento sobrenatural). • Deus está sempre próximo do ser humano, mas o conhecimento do ser humano com frequência está longe de Deus. A profecia percorria essa distância, e trazia ao profeta aquele conhecimento antes longínquo:

“Os profetas conhecem coisas que estão longe do conhecimento ordinário dos seres humanos” (STh, IIa-IIae, q. 171, a.1, c).

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• Na mente do profeta, a revelação era um processo com duas fases: fase principal = cognitio (conhecimento) ou acceptio rerum (recepção das coisas). O profeta é

passivo, e recebe o conteúdo da revelação que vem da mente de Deus fase secundária = locutio (palavra oral) ou iudicium rerum (julgamento das coisas). O profeta é

ativo. Ele escolhe os temas e as imagens que empregará, e emite a profecia em palavras orais. O juízo do profeta está sob a ação de uma luz divina especial, que lhe permite julgar com certeza e sem erro.

esfera divina

conteúdo a ser revelado revelação com 2 fases:

cognitio e locutio

1o: aos profetas passagem dos profetas para o povo

2o: para o povo

esfera humana

d) A doutrina sagrada comunicada por Cristo aos apóstolos e transmitida por estes a todos os povos

• Deus revelou aos profetas e apóstolos uma série de conhecimentos. Estes compõem a doutrina sagrada. • O papel de Cristo nessa comunicação:

é o primeiro e principal Doctor (ensinador) da fé, e a sua palavra revela os segredos do Pai

Cristo é a verdade, pela sua carne o Verbo fala, e o ser humano pode ouvir Todos os fatos da sua vida revelam algum aspecto da doutrina sagrada (por exemplo, o

nascimento, o batismo, os milagres) A pregação de Cristo se faz não só em palavras, mas também em ações

A doutrina comunicada pelo Filho supera em autoridade a que foi revelada aos profetas • Os apóstolos, assim instruídos por Cristo, transmitiram sua doutrina através da pregação.

Daí emerge uma chave de leitura fundamental para compreender Tomás de Aquino: Sem negar a revelação na pessoa, nos gestos e nas ações de Jesus Cristo, Tomás de Aquino acentua a dimensão doutrinal e comunicável das verdades e dos conhecimentos que, de Cristo, passaram aos apóstolos e daí para todos os povos.

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• Recordamos agora o que vimos sobre a noção de revelação nos Padres da Igreja, e comparamos aquilo com Tomás de Aquino. • Nos Padres da Igreja, a revelação é em geral vinculada às ações e às palavras de Jesus Cristo, mas com nuances importantes:

1. Há os que seguem mais de perto a apresentação realista da Bíblia, realismo este marcado pela mentalidade semita, ao invés daquela grega. Por realismo queremos indicar a intuição básica de que Deus se revelou plenamente na existência carnal e visível de Jesus. Exemplos de Padres da Igreja que adotam essa linha: Inácio de Antioquia, Atanásio e Irineu.

2. Nota-se em Orígenes um certo distanciamento dessa apresentação realista. Ele sustenta que pela carne de Jesus se pode fazer uma ideia do Verbo divino, e daí podemos chegar a compreender a revelação de Deus.

3. Há enfim os que se afastam mais do realismo bíblico. Levam menos em consideração a importância essencial, na revelação acontecida em Jesus Cristo, da carne do Verbo. Jesus é o Mestre por excelência, que comunica acima de tudo verdades de revelação. Há nisto um nítido influxo da mentalidade grega. Os Padres da Igreja que adotam essa linha tinham em geral grande familiaridade com a Filosofia grega. Exemplos são Clemente de Alexandria e Justino.

• Tomás de Aquino alinha-se portanto com o grupo 3. Ele acentua a dimensão doutrinal e comunicável das verdades e dos conhecimentos que, de Cristo, passaram aos apóstolos e daí para todos os povos. • Como Tomás foi um gigante da Teologia, e como a sua influência dominaria toda a Teologia católica até o século 20, a terceira linha por conseguinte adquiriu vasto predomínio em tal período. • A primeira linha ficaria ofuscada e como que na sombra, até que viesse a ser resgatada pela renovação bíblica e pela renovação patrística dos séculos 19 e 20. Sobre estas falaremos mais adiante. e) Revelação, Escritura e Igreja • A revelação está contida na Escritura. • Mas como a Escritura é complexa (muitos livros e muitos gêneros literários), nem sempre é fácil detectar ali a doutrina sagrada.

“A verdade da fé está contida na Escritura de maneira difusa, sob formas diferentes e, em certos pontos, de maneira obscura” (STh, IIa-IIae, q. 1, a.9, ad 1).

• Daí que a missão da Igreja é esclarecer o que a Escritura quer realmente ensinar (hoje diríamos: o modo de interpretar a Escritura). • Um modo pelo qual a Igreja realiza isso é através dos Símbolos da fé (as fórmulas do Credo).

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f) Revelação e visão • A maioria das pessoas só tem acesso à revelação através da pregação da Igreja. Esse acesso se faz no seguinte processo:

externamente, o pregador realiza, com sua voz, a transmissão da doutrina (é o dom da doutrina). Poderíamos dizer que assim, para Tomás, o fiel é ouvinte da Palavra, mas numa acepção diferente de Karl Rahner.

internamente, o Espírito age e atrai o ouvinte a dar o seu assentimento àquilo que escuta (é o dom da graça)

• Tal processo tem uma natureza imperfeita, pois o conhecimento de Deus que aí se obtém é imperfeito. Trata-se apenas de uma iniciação ao visum (visão, percepção). • O visum é a visão escatológica ou beatífica. Só nele é que se conhecerá perfeitamente o que foi revelado:

“[Então] A verdade será apresentada ao ser humano não mais como que escondida embaixo de uma coberta, mas completamente visível” (Summa contra gentiles, IV, c. 1).

Daí emerge outra chave de leitura fundamental para compreender Tomás de Aquino:

Sem negar que a revelação divina em plenitude já aconteceu na história em Jesus de Nazaré, Tomás de Aquino acentua a dimensão totalizante da visão beatífica que acontecerá no final dos tempos. Com isso, ele não abre espaço, na sua consideração sobre a revelação, para a experiência de Deus que acontece na vida presente do fiel.

g) Em resumo • Tomás de Aquino não nega:

1. que a revelação plena de Deus aconteceu na pessoa, nos gestos e nas palavras de Jesus 2. que, na história humana, tudo de Deus já foi revelado em Jesus, inclusive que Deus

plenamente revelado continua sendo mistério num certo sentido • Evidentemente Tomás de Aquino era muito ortodoxo. A negação de qualquer um desses dois pontos colocaria qualquer teólogo no “clube dos hereges”. • Mas acentua:

3. a dimensão doutrinal e comunicável das verdades e conhecimentos que, de Cristo, passaram aos apóstolos e daí para todos os povos 4. a dimensão totalizante e a-histórica da visão beatífica no final dos tempos

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Dessas considerações emerge uma chave de leitura fundamental para as considerações que

faremos sobre a noção de revelação dos séculos posteriores a Tomás de Aquino:

Nos séculos seguintes (até o Vaticano 2o) a Teologia de Tomás de Aquino ganhará muita

força no âmbito católico. Nas considerações sobre a revelação feitas nos séculos 19 e 20, os tratados sobre esse

tema enfatizarão os pontos 3 e 4 (acentuados por Tomás), e deixarão na sombra os pontos 1 e 2 (não enfatizados por Tomás).

Tais tratados, portanto, acentuarão: a dimensão doutrinal e comunicável das verdades reveladas; o conhecimento máximo de Deus na escatológica visão beatífica.

Deixarão na sombra: a revelação nos gestos e ações de Jesus; que na história humana tudo de Deus já foi revelado no passado, na pessoa de Jesus Cristo. • Leituras sugeridas:

LATOURELLE, René, Teologia da revelação, parte 3, “A noção de revelação na tradição teológica” (especialmente Tomás de Aquino).

RUIZ ARENAS, Octavio, Jesús, epifanía del amor del Padre, capítulo 4, item 2a, “Doctrina de Santo Tomás de Aquino”.

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4. A noção de revelação nos concílios de Trento e Vaticano 1o

4.1 Considerações iniciais a) Autores importantes entre os séculos 16 e 19

• Após o século 14, a Teologia católica se impregnou do pensamento de Tomás de Aquino. À luz especialmente de Tomás foi que, nos séculos seguintes, muitos teólogos formariam ondas de reflexão, nas quais o pensamento de Tomás era retomado com maior ênfase. • Essas ondas de reflexão foram duas:

Escolástica Moderna (séculos 16 a 18, tendo como centro de gravidade a Espanha);

Renovação Escolástica (século 19, tendo como centro de gravidade a Alemanha). • Vários autores destas correntes são relevantes para a consideração do tema da revelação. Na Escolástica Moderna:

Melchior Cano OP (morto em 1560);

Domingo Bañes OP (morto em 1604);

Francisco Suárez SJ (morto em 1617);

Juan de Lugo SJ (morto em 1660). Na Renovação Escolástica:

Johann Möhler (morto em 1838);

Mathias Scheeben (morto em 1888);

Johannes Baptist Franzelin SJ (morto em 1886);

Giovanni Perrone SJ (italiano, morto em 1876);

Cardeal John Henry Newman (inglês, morto em 1890). • No entanto, por limite de tempo, não trataremos deles. Consideraremos aqui apenas o que, entre os séculos 16 e 19, o Magistério da Igreja manifestou a respeito nos dois concílios ecumênicos realizados no período. • Leitura sugerida:

LATOURELLE, René, Teologia da revelação, parte 3, “A noção de revelação na tradição teológica”, capítulo 2 (“Escolásticos pós-tridentinos”) e capítulo 3 (“A renovação escolástica no século 19”).

b) Um parêntese: o Denzinger • Heinrich Denzinger (1819-1883) foi um dos teólogos católicos que compuseram a Renovação Escolástica do século 19. Ele no entanto tornou-se mais famoso por uma obra em especial. Heinrich Denzinger escreveu uma obra que se tornaria muito conhecida no âmbito da Teologia católica: o Enchiridion symbolorum (Compêndio dos símbolos).

•Essa obra veio a ter mais de trinta edições entre os anos de 1854 e 1963. Por questão de facilidade, ela foi apelidada com o nome do seu próprio autor. Até hoje, todos chamam esse livro simplesmente de Denzinger. Mas em que consiste o Denzinger? • É um grande manual que reproduz milhares de orientações do Magistério desde o século segundo.

no Collegio Romano, atual Gregoriana, em Roma

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• A estrutura do Denzinger consiste de:

duas colunas por página, a primeira na língua original (grego ou latim) e a segunda com a tradução

as colunas são divididas em parágrafos, numerados em numeração crescente

o número 1 contém símbolos de fé do século segundo

na edição de 1963, o último número era 2.354, correspondente a documentos do ano de 1954

• A citação daquelas edições até 1963 se faz assim: DZ + o número que contém o trecho citado. • Em 1963, a 32a edição veio totalmente reelaborada por Adolf Schönmetzer. Ela passou a ser conhecida como Denzinger-Schönmetzer. • A sua citação era feita com DS, e os números não correspondiam em geral aos do DZ. • Em 1991 a 37a edição foi reelaborada por Peter Hünermann. Ela passou a ser conhecida como Denzinger-Hünermann, cuja citação é feita com DH. É a versão mais recente, e a que deve ser usada para que quem cita o Denzinger não passe por atrasado. • Para ter acesso aos concílios de Trento e Vaticano 1o, a partir de agora usaremos o Denzinger na sua versão DH.

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4.2 A revelação no concílio de Trento a) Dados sobre o concílio de Trento • Foi um concílio ecumênico muito demorado que se desenvolveu em três períodos:

1545-1549 (até 1547 em Trento, e de 1547 a 1549 em Bolonha, Itália)

1551-1552

1562-1563 • O local: a cidade de Trento, no norte da Itália, ao pé dos Alpes. • O motivo do concílio: responder aos desafios lançados pela reforma protestante. b) Trento e a revelação • Trento não formulou nenhum decreto expressamente sobre o tema da revelação. • Em 1546, na sua 4a sessão, o concílio considerou esse tema no seu decreto sobre a Escritura e as tradições (DH 1501; relembrando o que já vimos anteriormente: na época, não se fazia a distinção entre Tradição e tradições). • No decreto, o concílio empregou a expressão pureza do Evangelho, que deve ser compreendida como pureza da revelação, e não como unicamente referida aos quatro evangelhos. • A seguir, analisaremos no Denzinger o trecho do decreto do concílio de Trento que, de passagem, aborda o tema da revelação. • Embora curto e sem muita profundidade, esse trecho tornou-se citação obrigatória para quem examina o tema da revelação naquele concílio. • Observações para ajudar na compreensão do trecho a seguir:

o que está compreendido entre “tendo sempre” e “Padres ortodoxos” funciona como introdução, tendo os verbos no gerúndio;

o que está compreendido desde “recebe e venera” até o final é propriamente o corpo do decreto.

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Introdução

Corpo do decreto

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c) Comentários sobre a noção de revelação no concílio de Trento • O concílio de Trento realmente fala pouco do tema revelação. • Na revelação (“Evangelho”) distinguem-se duas fases. • Primeira fase: a dos profetas; é a fase da promessa (“a pureza do Evangelho que, prometido primeiramente pelos profetas”). • Segunda fase:

foi promulgada oralmente por Jesus (“nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, promulgou por sua própria boca” e “provenientes da boca de Cristo”);

como também foi ditada aos apóstolos pelo Espírito Santo (“ou ditadas pelo Espírito Santo”).

• A origem da revelação portanto é dupla: palavras orais de Jesus (livros e tradições);

ditado do Espírito Santo (tradições). • Segundo Trento, onde a revelação pode ser encontrada no tempo presente? Na Bíblia e em tradições não escritas. O concílio não especifica, porém, o que são estas últimas. • Do que trata essa revelação? Ela é a “fonte de toda a verdade salvífica (salutar) e de toda a ordem moral”. • Silêncios de Trento:

a revelação nas ações e gestos de Jesus;

a revelação como comunicação imediata de Deus ao ser humano no tempo presente, na experiência de Deus;

a revelação fora do âmbito do cristianismo. • Percebe-se, num nível histórico mais próximo, a nítida influência do pensamento de São Tomás de Aquino. • Não se nega que a revelação plena de Deus tenha acontecido na pessoa e nos gestos de Jesus, mas se acentua a dimensão doutrinal e comunicável das verdades e conhecimentos que, de Cristo, passaram aos apóstolos e daí para todos os povos. • Num olhar histórico mais distante, constata-se que, das três linhas da Patrística mencionadas anteriormente (cf. página 57), a terceira é que ia se consolidando. • Tal terceira linha da Patrística é aquela que se afastava mais do realismo bíblico. É aquela que levava menos em consideração a importância essencial, na revelação acontecida em Jesus Cristo, da carne do Verbo. É aquela que considerava que Jesus comunicava acima de tudo verdades orais de revelação. • Há nisto um nítido influxo da mentalidade grega. Ia se compondo assim uma Teologia da revelação que, em geral, possuía grande familiaridade com a Filosofia grega.

• Apenas no século 20, e em especial no Vaticano 2o, será resgatado na Teologia da revelação o realismo bíblico de matriz semita.

• Leituras sugeridas: LATOURELLE, René, Teologia da revelação, parte 4 (“Noção de revelação e Magistério

Eclesiástico”), capítulo 1 (“O concílio de Trento e o protestantismo”). RUIZ ARENAS, Octavio, Jesús, epifanía del amor del Padre, capítulo 4, item 3a (“Doctrina del

concilio de Trento”), p. 95-96. LIBANIO, João Batista, Teologia da revelação a partir da modernidade, capítulo 14, item 1 (“A

revelação nos concílios”), subitem 2 (“Concílio de Trento”), p. 382-383. Dicionário de Teologia Fundamental, verbete “Trento”. SESBOÜÉ, Bernard, História dos dogmas. IV. A palavra da salvação (séculos XVIII-XX).

Capítulo 3 (“Escrituras, tradições e dogmas no concílio de Trento”).

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4.3 O conflituoso contexto do antimodernismo

• O concílio de Trento falou muito pouco sobre o tema da revelação, e o fez “de passagem”. Trezentos anos depois, porém, o concílio Vaticano 1o dedicar-se-ia longamente ao assunto. Seria a primeira vez que um concílio se expressava explicitamente sobre o tema da revelação. Quais os motivos para essa mudança? Tratava-se de um contexto bastante conflituoso. • No século 19, a Igreja Católica sofria ataques pesados em três frentes. Esses ataques já plurisseculares geraram, na Igreja Católica, uma atitude geral de contraofensiva agressiva que iria influenciar também a reflexão teológica. • Como uma parte daqueles ataques tocavam precisamente o tema da revelação, a contraofensiva agressiva manifestou-se também na afirmação da visão católica sobre a revelação. Foi motivado por essa necessidade que o concílio Vaticano 1o desenvolveu sua exposição da revelação.

• Antes de considerarmos a noção de revelação no Vaticano 1o, podemos porém perguntar: quais foram essas três frentes de ataques contra a Igreja Católica? Qual foi a reação predominante da Igreja Católica a elas? A compreensão desse contexto ajudará na compreensão daquilo que o Vaticano 1o afirmou sobre a revelação.

a) A primeira frente de ataque: o confronto plurissecular com a reforma protestante

• No campo da revelação, que é o nosso foco de interesse neste assunto, os ataques da reforma protestante podem ser resumidos assim:

“Para se ter acesso à revelação, basta a Bíblia”;

“A Bíblia é a única fonte de norma religiosa”. • Eram argumentos que rejeitavam o papel da Igreja Católica na transmissão e na interpretação da revelação divina.

b) A segunda frente de ataque: o confronto plurissecular com a cultura racional-iluminista

• No campo da revelação, os ataques podem ser resumidos assim:

Do iluminismo em geral: “Deus existe, mas a razão humana descobriu em nosso tempo que é autossuficiente. Obter conhecimento é tarefa que compete só a nós, não sendo necessários aí outros seres. Daí que a racionalidade é a maneira plena e a forma adulta do ser humano. A fé, que aceita revelações que provêm de fora da razão, é um degrau infantil do ser humano”;

Do deísmo: “Deus existe, mas não interveio no universo após tê-lo criado. Não há portanto revelação”;

Do ateísmo: “Deus não existe. Não há portanto revelação”. • Eram argumentos para desclassificar todo o cristianismo, seja católico, protestante ou ortodoxo. • Trata-se de um fenômeno forte ainda hoje, em especial em círculos pensantes ou intelectuais e no meio científico.

c) A terceira frente de ataque: a tomada do Estado Pontifício

• Durante o século 19, eram já muitos séculos que o que hoje conhecemos como Itália não era um único país, mas uma composição de diversos reinos independentes: Nápoles, Sicília, Toscana, Parma, Lombardia, Piemonte, Tirol e o assim chamado Estado Pontifício ou Estado da Igreja. • Sendo independentes, cada um deles tinha seu governante próprio, além de uma sua exclusiva estrutura política, administrativa, jurídica e policial. • O Estado Pontifício era portanto um reino independente entre outros reinos independentes da península itálica. Tinha como rei o Papa. Era composto de centenas de cidades e milhões de habitantes.

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• Uma cronologia (a partir do final do século 18) nos ajuda a compreender o ataque em questão:

1789: Revolução Francesa e Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (em 1793, na catedral de Notre-Dame em Paris, a estátua da deusa Razão vem entronizada sobre o altar).

1804: Napoleão, rei da França.

1809: Napoleão anexa o Estado Pontifício.

1815: O Congresso de Viena restitui o Estado Pontifício ao Papa.

1831/32: No Estado Pontifício acontecem diversas revoltas populares. Na península itálica, de modo geral, fortalece-se o movimento nacionalista de unificação.

1848: No Estado Pontifício, o primeiro-ministro de Pio 9o é assassinado. O Papa foge de Roma disfarçado.

Reforçava-se na cúpula hierárquica da Igreja a convicção da relação entre os princípios da Revolução Francesa e a destruição dos valores tradicionais na ordem social, moral e religiosa.

20 de setembro de 1870: O exército do Reino da Itália em unificação toma a cidade de Roma. É o fim do Estado Pontifício. Roma torna-se a capital do Reino da Itália unificada.

• Os Papas ficam sem um território sobre o qual governar por quase 60 anos, até 1929. Neste ano, um tratado entre Pio XI e o primeiro-ministro (do rei da Itália) Mussolini criou o atual Estado do Vaticano (com uma área que equivale aproximadamente a um quadrado de 750 metros de lado).

d) A reação predominante da Igreja Católica no século 19 contra as três frentes de ataque

• Rejeitada asperamente nessas três frentes de ataque, a Igreja Católica retribuiu a rejeição com outra rejeição. Os ataques sofridos deram vigor a uma atitude clara e difusa de desconfiança e de contraofensiva em relação a tudo aquilo que se mostrava como novo e moderno, o que vinha então julgado como território inimigo. • Por novo e moderno se entendiam em geral as coisas ligadas aos ideais da Revolução Francesa, lida sobretudo a partir dos seus horrores. • Tal postura é geralmente chamada de antimodernismo. Ele vigorou na Igreja Católica desde o século 19 até aproximadamente a metade do século 20. • Os inimigos eram todos os que estavam nas fileiras atacantes, todos os que adotavam aquelas ideias, contra as quais era imperioso combater e contra-atacar. Pode-se falar de um certo espírito maniqueu que considerava a priori como mau tudo aquilo que era proposto pelos adversários. • Não se pode porém negar o relativo valor desta contraofensiva católica que levou adiante uma crítica radical. A história haveria de mostrar que os atacantes, seja a reforma protestante como as correntes na esteira do iluminismo, traziam com si alguns elementos incompatíveis com a revelação cristã. • A reforma protestante tinha a pretensão de ter acesso à revelação sem fazer recurso ao imenso patrimônio que a comunidade de fé (que vem desde o tempo dos escritores bíblicos) carrega sobre si com dificuldade. Como a Escritura “não é suficiente para nos fazer conhecer o seu sentido” (Y. CONGAR, La Tradition et les traditions, p. 142), é precisamente tal patrimônio vivo – a Tradição – que transmite a orientação interpretativa fiel às experiências fundadoras daqueles que compuseram a Bíblia. • O iluminismo e derivados, por sua vez, pretenderam inúmeras vezes estabelecer um mundo e uma sociedade totalmente alheia ao “Deus que dá a vida a todos” e ao “Cristo que é a vida de vocês” (respectivamente At 17,25 e Cl 3,4).

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• A crítica contundente do Magistério se fez especialmente através de encíclicas e decretos papais, e das constituições do concílio Vaticano 1o. • Os documentos mais típicos daquele período foram:

Mirari Vos (1832) de Gregório XVI;

Qui Pluribus (1846), Quanta Cura e seu célebre anexo Syllabus Errorum (1864) de Pio IX;

Dei Filius e Pastor Aeternus (1870) do concílio;

Humanum Genus (1884) de Leão XIII;

Lamentabili (1907) do Santo Ofício;

Pascendi (1907) de Pio X;

Humani Generis (1950) de Pio XII. • Exemplos da linha seguida por esses documentos antimodernistas.

1- Trechos da encíclica Mirari Vos de Gregório XVI (1832) a respeito da fé católica e da liberdade de consciência (o texto da encíclica está em Actae Sanctae Sedis 4 [1868-1869], p. 336-345):

“A fé católica não é mais atacada secretamente e como que em modo subterrâneo, mas já se lança contra ela uma guerra horrenda e execrável” (p. 338). “Da fonte infecta do indiferentismo brota essa máxima absurda e errônea - ou melhor, esse delírio - de que é preciso assegurar e garantir a qualquer um a liberdade de consciência. O caminho a esse erro prejudicial é preparado pela liberdade de opinião plena e sem limites, que se espalha longe, para a desgraça da sociedade religiosa e civil, apesar de alguns, com extrema imprudência, repetirem que daí resultam algumas vantagens para a religião. Mas, dizia Santo Agostinho, quem melhor pode dar a morte à alma do que a liberdade do erro? Com efeito, tirando todo freio que poderia reter os homens nos caminhos da verdade, a natureza deles, inclinada ao mal, cai num precipício; e podemos dizer que, na verdade, o poço do abismo está aberto, este poço de onde São João viu uma fumaça que escureceu o céu e sair gafanhotos que assolaram a terra. [cf. Ap 9,1-3] Daquela fonte vêm: a mudança dos espíritos, uma corrupção mais profunda da juventude, o desprezo das coisas santas e das leis mais respeitáveis espalhado entre o povo; numa palavra, o flagelo mais mortal para a sociedade, porque a experiência mostrou, desde a antiguidade, que os Estados que brilharam por sua riqueza, por seu poder e por sua glória vieram a perecer unicamente por este mal: a liberdade desenfreada das opiniões, a licença dos discursos e o amor das novidades. A essas coisas se relaciona a liberdade funesta – da qual não se consegue ter suficiente horror – de se publicar qualquer escrito que seja, liberdade que alguns ousam solicitar e estender com tanto barulho e ardor. Nós estamos espantados, veneráveis irmãos, considerando quais doutrinas, ou melhor, quais erros monstruosos nos oprimem, vendo que eles se espalham longe e em todo lugar – por meio de uma multidão de livros e escritos de todo tipo, pequenos no volume, mas cheios de malícia – dos quais sai uma maldição que se difunde (o que deploramos) sobre a face da terra. Há alguns, apesar disso, que infelizmente se deixam levar a tal ponto de imprudência que sustentam teimosamente que o dilúvio de erros que de lá brota é compensado bastante bem por algum livro que, no meio desta perversidade desencadeada, for publicado para defender a religião e a verdade. Ora, é certamente uma coisa ilícita e contrária a todas as noções da equidade fazer premeditadamente um mal certo e maior porque se tenha a esperança que dele resultará algum bem. Quem é o homem que, no seu bom senso, dirá que é preciso deixar espalhar livremente venenos, vendê-los e transportá-los publicamente – e bebê-los até – porque existe um remédio pelo qual alguns podem, usando-o, escapar da morte?”.

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2- Trecho da encíclica Qui Pluribus de Pio IX (1846) a respeito dos perigos vividos pela religião católica (o texto da encíclica está em Enchiridion delle encicliche II, Bolonha 2002, p. 152-181):

Nesta nossa idade lamentável levantou-se uma guerra vigorosíssima e muito assustadora contra tudo aquilo que é católico, feita por aquelas pessoas [...] que odeiam a verdade e a luz, enganadores competentíssimos que tramam para subverter todos os direitos divinos e humanos, para abalar, danificar e, até se puderem, destruir os alicerces da religião católica e da sociedade civil. Vocês, irmãos veneráveis, sabem de fato que esses inimigos obstinados do nome cristão [...] não se envergonham de ensinar aberta e publicamente que os mistérios sacrossantos da nossa religião são fantasias e invenções dos homens, que a doutrina da Igreja Católica se opõe ao bem e ao interesse da sociedade, e que nem sequer temem repudiar Cristo e Deus”. (p. 154.156)

3- Em 8 de dezembro de 1864, no décimo aniversário da definição dogmática da Imaculada Conceição da Virgem Maria, o papa Pio IX publicou a encíclica Quanta Cura na qual reprovava, proscrevia e condenava oitenta teses, opiniões ou doutrinas. Estas foram reunidas numa coleção anexa à encíclica e denominada Syllabus Errorum (Resumo ou Compêndio dos erros).

• As teses condenadas pelo Syllabus estão reunidas em pequenos capítulos: - 1o, sobre o panteísmo, naturalismo e racionalismo absoluto; - 2o, sobre o racionalismo moderado; etc. - 4o (um dos capítulos mais breves), que condena “socialismo, comunismo, sociedades secretas, sociedades bíblicas, sociedades clérico-liberais”. • Trechos do documento Syllabus Errorum de Pio IX (1864; cf. DH 2901-2980):

• Um dos capítulos mais longos é o que condena os erros sobre a Igreja e seus direitos, entre os quais:

“19- A Igreja não é uma sociedade verdadeira e perfeita, inteiramente livre, nem goza de direitos próprios e constantes, dados a ela por seu divino fundador, mas cabe ao poder civil definir quais sejam os direitos da Igreja e os limites dentro dos quais ela pode exercer os mesmos”. “24- A Igreja não tem poder de empregar a força nem poder temporal algum, direto ou indireto”. “37- Podem ser instituídas igrejas nacionais isentas da autoridade do pontífice romano, e separadas dele”.

• No capítulo sobre os erros da sociedade civil, consta a condenação de:

“55- A Igreja deve ser separada do Estado, e o Estado da Igreja”.

• No capítulo sétimo, acerca dos erros sobre a moral natural, consta também a condenação de:

“62- É preciso proclamar e observar o princípio da não intervenção [da Igreja nesse campo da moral]”.

• Um capítulo especial, o oitavo, é dedicado à condenação dos erros acerca do matrimônio cristão. Por exemplo, condena-se:

“67- Pelo direito natural o vínculo matrimonial não é indissolúvel e, em muitos casos, pode a autoridade sancionar o divórcio propriamente dito”.

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• Finalmente, é condenada:

“76- A ab-rogação do poder temporal que possui a Sé Apostólica contribuiria muito para a felicidade e a liberdade da Igreja”.

• A última tese é uma síntese e condena o seguinte:

“80- O pontífice romano pode e deve conciliar com o progresso, com o liberalismo e com a civilização moderna”.

• Na linha desses documentos, a partir de 1910 todos os candidatos ao sacerdócio deviam prestar o juramento antimodernista (cf. DH 3537-3550). • A vinculação do antimodernismo com o neotomismo.

• Ainda no século 19 surgiu uma tendência católica de revalorização da Teologia de São Tomás de Aquino: é a chamada renovação escolástica ou neotomismo. • O pensamento de Tomás de Aquino era o instrumental conceitual mais seguro que a Igreja Católica dispunha na época. • Em 1870, o concílio Vaticano 1o seguiu a linha neotomista nas suas reflexões sobre a revelação. • Em 1879 a encíclica Aeterni Patris de Leão 13 tornou a teologia tomista norma para toda a formação sacerdotal. • Desse modo, o antimodernismo se associa ao neotomismo. No ambiente eclesial católico antimodernista, a teologia reinante veio a ser a de São Tomás de Aquino. • Leituras sugeridas:

LATOURELLE, René, Teologia da revelação, parte 4, “Noção de revelação e Magistério Eclesiástico”, capítulo 3 (“A crise modernista”).

SESBOÜÉ, Bernard, História dos dogmas. IV. A palavra da salvação (séculos XVIII-XX). Capítulo 9 “O que é um dogma?”, subcapítulo 3 “As intervenções do Magistério romano”, itens 3 e 4 (“Cultura católica e sociedade moderna” e “Conclusão”), p. 342-344.

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4.4 A noção de revelação no concílio Vaticano 1o a) Pressupostos teológicos do Vaticano 1o • O concílio Vaticano 1o adotou dois elementos teológicos como pressupostos. Tais elementos precisam ser conhecidos antes de se ler os textos desse concílio. • O primeiro pressuposto é o uso da metafísica aristotélica, com os atributos do Ser Último: uno, bom, verdadeiro, imutável, eterno, invisível, simples. • Deus é visto na ótica ontologizande aristotélico-tomista, segundo a qual o que importa é que o “Ser é” (nível metafísico), e não o “Ser na história” (nível do devir); • O segundo pressuposto é a distinção entre natural e sobrenatural. • Essa distinção encontra-se já na teologia de Tomás de Aquino, tendo sido depois divulgada mais graças a dois teólogos importantes dos séculos seguintes: o cardeal italiano Tomás Cayetano OP (ou Gaetano, da cidade onde nasceu, Gaeta; morto em 1534) e o espanhol Francisco Suárez SJ (morto em 1617). • O âmbito do natural designa aquilo que depende da iniciativa da criatura. No caso do ser humano, designa por excelência a sua razão, o seu raciocínio. • O âmbito do sobrenatural designa o que depende da iniciativa de Deus, como a revelação e a graça. • Natural e sobrenatural definiam dois tipos de acesso a Deus e dois tipos de conhecimento:

o conhecimento natural e o acesso natural a Deus, que o ser humano faz de modo autônomo, raciocinando sobre as coisas criadas.

o conhecimento sobrenatural e o acesso sobrenatural a Deus, que o ser humano só pode fazer através daquilo que Deus tomou a iniciativa de mostrar.

b) Considerações gerais sobre o Vaticano 1o • Esse concílio aconteceu na cidade de Roma (ainda capital do Estado Pontifício), nos últimos meses da existência deste (de dezembro de 1869 a julho de 1870). • O concílio foi bruscamente interrompido porque era patente a iminência da tomada de Roma pelas tropas do Reino da Itália em unificação. Isso aconteceu de fato em setembro de 1870. • Foi a primeira vez que um concílio se expressou explicitamente sobre o tema da revelação. Expressou-se principalmente na constituição Dei Filius, e secundariamente na constituição Pastor Aeternus. • A Dei Filius é uma resposta da Igreja atacada por certas correntes filosóficas e teológicas que tinham elementos incompatíveis com a revelação cristã. • Devido ao clima generalizado de ataques e perigos, essa constituição não é uma exposição positiva e equilibrada sobre o tema da revelação. • A Dei Filius não oferece uma doutrina completa sobre a revelação. Propõe-se apenas a destacar os aspectos que se opõem aos ataques.

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Deus visto com os olhos da metafísica,

oriunda da filosofia pagã

grega.

Natural e sobrenatural.

Objeto da revelação:

Deus e decretos

Citação de Hb 1, 1.2

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Natural e sobrenatural

A revelação como palavras

objetivas, escritas ou

orais

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As ações divinas são

aludidas para garantir a

verdade da revelação

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Defesa da Igreja contra os ataques

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Natural e sobrenatural

(este vem referido como

“fé divina”)

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A revelação como

“depósito” confiado à

Igreja

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Natural e

sobrenatural

Natural e

sobrenatural

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Contexto: contraofensiva

aos ataques

A plenitude da revelação não

eliminou o mistério em

Deus

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Revelação equivale a “depósito

da fé”

Condena-se: Deu origem a uma

expressão comum:

“clausura da revelação”

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c) A definição de revelação no Vaticano 1o • É uma dupla definição, de acordo com a época em que tal revelação se manifesta: época apostólica e época pós-apostólica. • Primeiro: revelação na época apostólica.

• A revelação se deu nos acontecimentos do passado nos quais Deus comunicou (portanto é sobrenatural) as verdades divinas e a si mesmo aos seres humanos (cf. DH 3004). • Autor e motivo da revelação: Deus, em obra gratuita.

Placuisse = aprouve revelar-se, Deus teve a satisfação de revelar-se. • Objetos da revelação:

Deus (si mesmo): esse objeto é mencionado só aí; a revelação pessoal de Deus é afirmada, mas tem importância mínima na reflexão. Além disso, esse objeto é considerado pelo ângulo da metafísica (onipotente, eterno, incomensurável, incompreensível, infinito em intelecto; cf. DH 3001).

Decretos eternos: acentua-se o caráter cognoscitivo, a comunicação de verdades abstratas. A revelação é acontecimento verbal que desvela segredos ou enigmas.

• De que forma se deu a revelação naquela época? Através de acontecimentos daquele tempo passado nos quais Deus a comunicou pela boca de Cristo e dos profetas (DH 3006 cita literalmente Trento). • Hb 1, 1-2 é reproduzido em DH 3004, e o verbo falar é interpretado literalmente: “Deus falou aos pais pelos profetas [...] falou-nos pelo Filho”. • O que garante a verdade da revelação?

auxílio interno do Espírito Santo

argumentos externos ou fatos divinos, sobretudo milagres e profecias (cf. DH 3009) • Os fatos (ações) divinos são mencionados apenas aqui. São mencionados como garantia mas não como modo de revelação. • A revelação é identificada com o depósito da fé, entendido porém como um imenso conjunto de decretos eternos (cf. DH 3020 e 3070). • O fato da revelação estar completa (no sentido de Deus ter revelado tudo o que tinha para revelar sobre si mesmo) está implícito em DH 3070, mas só virá a ser explicitado em 1907, no decreto Lamentabili (cf. DH 3421).

• Segundo: revelação na época pós-apostólica.

• A revelação são os conteúdos da Bíblia e das tradições não escritas (cita-se literalmente Trento; cf. DH 3006). • Não se define o que se quer dizer com tradições não escritas. • Objeto da revelação: conteúdos formados por palavras, e não Deus em si mesmo. • Só a Igreja Católica possui ambos os conteúdos revelados (cf. DH 3013).

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• A fé nessa revelação (cf. DH 3008): é uma obrigação, pois dependemos inteiramente de Deus como criador (Visto que o

homem depende inteiramente de Deus como seu criador e senhor, [...] somos obrigados a prestar, pela fé, a Deus que revela, plena adesão do intelecto e da vontade).

é virtude sobrenatural, dom de Deus (Esta fé [...] a Igreja a professa como virtude sobrenatural pela qual, mediante o impulso de Deus e com a ajuda da graça; em DH 3010: é dom de Deus).

acontece devido ao auxílio interno de Deus; não é suficiente ouvir a pregação do Evangelho (cf. a doutrina da iluminação de Agostinho, e o processo imperfeito de acesso à revelação antes da visão beatífica, de Tomás de Aquino).

• Pela fé: presta-se obediência a Deus mesmo (DH 3010: a própria fé [...] pela qual o homem presta livre

obediência a Deus mesmo, consentindo e cooperando com a sua graça, à qual poderia resistir). crê-se no conteúdo da Palavra de Deus, composta de Bíblia e tradições não escritas (DH

3011: deve-se pois crer com fé divina e católica tudo o que está contido na Palavra de Deus escrita ou transmitida).

d) Silêncios, vigor e caducidade da noção de revelação do concílio Vaticano 1o

• Silêncios da noção de revelação do concílio Vaticano 1o.

• Deus é considerado em linha grega ontologizante, com os atributos do Ser último: eterno, incomensurável, infinito. Falta o enfoque realista e existencial da Bíblia, na qual Deus, como amor gratuito radical, se encarna. • Ausência da revelação que acontece no tempo presente, a partir do diálogo imediato entre Criador e criatura. • E a revelação fora do cristianismo?

• Vigor da noção de revelação do concílio Vaticano 1o.

• Na Teologia católica e na formação presbiteral, esta noção de revelação imperou nas décadas seguintes, especialmente sob a forma de tratados. De fato, o século 19 marca o florescer de tratados sobre o tema da revelação, usualmente com títulos deste tipo:

De Revelatione christiana (Sobre a revelação cristã);

De Revelatione per Ecclesiam Catholicam proposita (Sobre a revelação apresentada pela Ig. Católica);

De religione revelata (Sobre a religião revelada); De vera religione (Sobre a verdadeira religião);

Theologia fundamentalis ou Apologetica. • Uma lista abrangente desses tratados com títulos em diversas línguas, feita em 1950, encontra-se em: TROMP, Sebastian. De Revelatione christiana. 6.ed. Roma: Universitas Gregoriana, 1950, p. 437-440.

• Esses tratados eram também parte da resposta católica aos ataques que a noção de revelação sofria por parte da reforma protestante e do iluminismo (e correntes derivadas).

• No final do século 19 e durante o século 20, a linha geral de tais tratados seguia o que tinha sido demarcado pelos concílios de Trento e Vaticano 1o:

Deus visto com os olhos da metafísica; Deus-Filho visto essencialmente como mediador da revelação que passa do Pai para os

apóstolos, e comunicador oral da revelação sobrenatural.

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• Alguns autores famosos que escreveram tratados nessa linha durante o período:

Johannes Baptist Franzelin SJ (cardeal austríaco, morto em 1886);

Christian Pesch SJ (alemão, morto em 1925);

Hermann Dieckmann SJ (alemão, morto em 1928);

Ambroise Gardeil OP (francês, morto em 1931);

Reginald Garrigou-Lagrange OP (francês, morto em 1964);

Sebastian Tromp SJ (holandês, morto em 1972). • (paralelamente aos dois últimos, vários outros autores – que veremos mais a frente – começavam a trabalhar o tema da revelação seguindo outra linha) • Ainda hoje a noção de revelação do Vaticano 1o (que herdou uma plurissecular herança da terceira linha da Patrística, de São Tomás de Aquino e de Trento) marca a concepção de Deus dos fiéis:

Deus metafísico;

grande dificuldade de articular a afirmação Maria, mãe de Deus (= Jesus de Nazaré) com a concepção metafísica de Deus;

revelação que consiste essencialmente de doutrinas;

revelação só no cristianismo.

• O vigor dessa noção de revelação nota-se no longo passado que ela tem atrás de si. Uma ótica semelhante já se encontrava numa linha de reflexão da Patrística, tendo sido depois acentuada por São Tomás de Aquino e retomada pelo concílio de Trento. • De fato, nas últimas semanas do nosso curso de Teologia Fundamental, viemos acompanhando a noção de revelação em diversas épocas teologicamente fundamentais:

A noção de revelação na Bíblia

A noção de revelação na Patrística

A noção de revelação na Idade Média

A noção de revelação nos concílios de Trento e Vaticano 1o • Como podemos resumir esse longo passado que viemos estudando, de modo a entender melhor o que o Vaticano 1o fez com a apresentação do tema da revelação? • noção bíblica de revelação: • O Antigo Testamento é a matriz e o solo no qual o Novo Testamento estende suas raízes. A revelação do Novo Testamento é continuação e cume daquela do Antigo Testamento. • No Antigo Testamento, o essencial é a revelação divina que acontecia nos eventos históricos que forjaram em fases o Povo de Israel. A expressão privilegiada e mais frequente para designar a revelação é Dabar Iahweh ou Dabar Adonai (Palavra de Iahweh ou Palavra do Senhor). • Palavra ali é mais do que a nossa noção atual de palavra. Não é equivalente a discurso especulativo, expressão de ideias abstratas ou conteúdo oral composto de frases. É a junção de:

oralidade (dimensão noética);

ato transformador da realidade (dimensão dinâmica). • A dimensão dinâmica do Dabar indica a experiência de uma potência soberana que transforma a história da comunidade e a existência individual. Nesse sentido, a linguagem bíblica é realista, num estilo típico da mentalidade semita. • No Novo Testamento, Jesus em pessoa é o Dabar divino, a Palavra de Deus em sentido próprio (não analógico, como o são a Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição). • A revelação acontece nas atitudes, gestos e palavras de Jesus. Tudo o que ele realizou é revelativo. A linguagem do Novo Testamento – tipicamente semita, e não grega – prossegue sendo realista como aquela do Antigo Testamento.

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• noção patrística de revelação: • Constatamos que, das três linhas da Patrística mencionadas anteriormente (cf. página 57), a terceira é que veio acelerando o seu processo de consolidação. • A terceira linha da Patrística tinha sido aquela que mais se afastava do “realismo bíblico”, que menos levava em consideração a importância essencial da carne do Verbo para a plenitude da revelação acontecida em Jesus Cristo. • A terceira linha da Patrística é aquela que apresentava Jesus acima de tudo como comunicador de verdades orais de revelação. Naquela terceira linha da Patrística havia um nítido influxo da mentalidade grega. • noção de revelação em Tomás de Aquino: • Mais tarde, Tomás acentuou a dimensão doutrinal e comunicável das verdades e dos conhecimentos que, de Cristo, passaram aos apóstolos e daí para todos os povos. • Tomás, no entanto, nunca negou a revelação na pessoa, nos gestos e nas ações de Jesus Cristo (cf. página 63.65). • Tomás de Aquino alinhou-se portanto com a terceira linha da Patrística. • noção de revelação em Trento: • Na sequência, o concílio de Trento demonstrou a grande influência exercida por Tomás de Aquino e, por extensão, por aquela terceira linha da Patrística. • Esse concílio considerou o tema da revelação eminentemente do ponto de vista oral. Trento sublinhou que a revelação foi promulgada oralmente por Jesus (“nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, promulgou por sua própria boca” e “provenientes da boca de Cristo”; cf. p. 70). • Como Tomás de Aquino, Trento não negou que a revelação plena de Deus tenha acontecido na pessoa e nos gestos de Jesus, mas acentuou a dimensão doutrinal e comunicável das verdades e conhecimentos que, de Cristo, passaram aos apóstolos e daí para todos os povos.

• Agora, no Vaticano 1o, consolidava-se na Igreja Católica uma apresentação da revelação eminentemente como comunicação de verdades orais. • Em tal apresentação que se consolidava como nunca antes na Teologia, era como que deixada de lado – meio esquecida – a importância essencial da carne do Verbo para a plenitude da revelação acontecida também nas atitudes e ações de Jesus Cristo. • Nota-se nisso o forte influxo da Filosofia grega. Empregou-se uma linguagem para se falar de Deus na qual predominava a metafísica a-histórica. Faltou o “realismo bíblico” típico do mundo semita. • Na época do concílio Vaticano 2o, foi com a noção de revelação consolidada pelo Vaticano 1o que veio a ser escrita a primeira versão do documento sobre a revelação divina.

• Caducidade da noção de revelação do concílio Vaticano 1o. • Só durante o Vaticano 2o é que o Magistério eclesial irá resgatar, na sua apresentação da revelação, o “realismo bíblico” de matriz semita. • Na época do concílio Vaticano 2o, foi com a noção de revelação do Vaticano 1o que foi escrita a primeira versão do documento sobre a revelação divina. Mas essa primeira versão, apresentada ao plenário do concílio Vaticano 2o em 1962, foi rejeitada pela maioria dos mais de 2.500 delegados (quase todos bispos) ali presentes.

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• O motivo: via-se a necessidade de uma noção de revelação que fosse: mais fiel ao depósito da fé;

mais bíblica; mais cristocêntrica;

mais realista na consideração da encarnação de Deus-Filho;

menos a-histórica; menos ontológica na abordagem de Deus;

• Em outras palavras, sentia-se a necessidade de uma “volta às fontes”. • Por que, na consciência da maioria dos participantes do Vaticano 2o, tal necessidade tinha ficado clara? • Alguns elementos que respondem essa pergunta serão tratados no item seguinte, na parte intitulada “ampliação dos horizontes”. • Leituras sugeridas:

LATOURELLE, René, Teologia da revelação, parte 4 (“Noção de revelação e Magistério Eclesiástico”), capítulo 2 (“O primeiro concílio do Vaticano e o racionalismo”).

RUIZ ARENAS, Octavio, Jesús, epifanía del amor del Padre, capítulo 4, item 3b (“Doctrina del concilio Vaticano 1o”), p. 96-100.

LIBANIO, João Batista, Teologia da revelação a partir da modernidade, capítulo 14, item 1 (“A revelação nos concílios”), subitem 3 (“Concílio Vaticano 1o”), p. 383-385.

Dicionário de Teologia Fundamental, verbete “Vaticano 1o”.

SESBOÜÉ, Bernard, História dos dogmas. IV. A palavra da salvação (séculos XVIII-XX). Capítulo 6 (“A constituição dogmática Dei Filius do concílio Vaticano 1o”).

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5. A noção de revelação na constituição Dei Verbum do Vaticano 2o

• A rejeição (durante o Vaticano 2o) da primeira versão do documento sobre a revelação divina que havia sido elaborada com a noção de revelação consolidada pelo Vaticano 1o indica algo muito importante. • Indica que, a respeito do tema da revelação divina, havia surgido na Igreja Católica uma consciência eclesial diferente e generalizada (embora com uma expressiva minoria contrária). • Mas o que houve entre os concílios Vaticano 1o e 2o que possibilitou o surgimento dessa consciência eclesial diferente tão generalizada a ponto de compor uma maioria (ao menos entre os bispos)? • Evidentemente uma resposta completa seria demasiado extensa. Como o foco do nosso interesse é o tema da revelação, concentrar-nos-emos sobre quatro elementos que estão mais diretamente relacionados com isso.

5.1 A ampliação dos horizontes

• A partir do século 16, e de modo mais acentuado a partir do século 18, desenvolvia-se a chamada “revolução científica”. O processo marcava não só o início da Idade Moderna, mas também do iluminismo. A engenhosidade humana forjava e robustecia um novo e revolucionário modo de produção de conhecimento, obtidos por meio de estudos objetivos e meticulosos da realidade que nos envolve. A “revolução científica” e o iluminismo têm uma relação estreita, visceral. • Entre os diversos ramos da ciência moderna que então floresciam, um deles era a ciência da história. • O renovado interesse pela ciência da história manifestou-se, no cristianismo de modo geral, pelo interesse de estudar historicamente quatro campos mais específicos: Bíblia, Padres da Igreja, liturgia e ecumenismo. Chamam-se em geral esses estudos de “volta às fontes”. • Tais quatro direcionamentos deram origem às correntes que são usualmente denominadas renovação bíblica, renovação patrística, movimento litúrgico e movimento ecumênico.

a) A renovação bíblica

• O interesse pela história em geral propiciava perguntas sobre um aspecto em particular: o processo de formação redacional de textos antigos (também em geral). Hoje essa forma já plurissecular de estudo sobre a formação de textos antigos é chamada de método histórico-crítico. • As perguntas históricas sobre a formação de textos antigos (por exemplo, os autores clássicos da Grécia e de Roma) levaram a se perguntar sobre algo ainda mais particular: dentre os textos antigos em geral, como teria sido o processo de formação redacional da Bíblia em particular? • Tal pergunta sobre a formação histórica da Bíblia estimulou estudos:

de história antiga e arqueologia relacionada a Israel; de antigas línguas semíticas, não só de Israel, mas dos povos vizinhos; dos manuscritos bíblicos antigos.

• Esses estudos e pesquisas no campo bíblico podem ser divididos em duas fases:

período pré-crítico (aproximadamente séculos 16 e 17); período crítico (aproximadamente a partir do século 18).

• Tais estudos e pesquisas apresentavam também duas características: muito vinculados ao iluminismo ou ao âmbito da reforma protestante; em geral trabalhava-se separadamente sobre o Antigo ou sobre o Novo Testamento.

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• Um resumo da história do método histórico-crítico encontra-se em: LOHFINK, Norbert, Exégesis bíblica y Teología. La exégesis en evolución. Salamanca: Sígueme, 1969, p. 55-64.

• Uma abordagem mais completa foi feita em: PRIOR, Joseph, The historical critical method in catholic exegesis. Tesi Gregoriana, série Teologia 50. Roma: Editrice Pontificia Università Gregoriana, 1999.

• Deste último reproduzimos abaixo (com adaptações) as páginas 14-15, que apresentam um esquema com os principais autores que contribuíram para o desenvolvimento do método histórico-crítico.

O desenvolvimento do MHC (método histórico-crítico) Alguns dos autores importantes para o desenvolvimento do método

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• Nomes principais até a primeira década do século 20:

séculos 18: Richard Simon (linguista francês, morto em 1712); Jean Astruc (médico francês, morto em 1766); Hermann Reimarus (filósofo alemão, morto em 1768).

século 19: Johann Eichhorn (teólogo protestante alemão, morto em 1827); Ferdinand Baur (teólogo protestante alemão, morto em 1860); David Strauss (teólogo protestante alemão, morto em 1874); Heinrich Holtzmann (teólogo protestante alemão, morto em 1910); Julius Wellhausen (biblista e orientalista alemão, morto em 1918).

início do século 20: Albert Schweitzer (teólogo e médico alemão, morto em 1965); Marie-Joseph Lagrange OP (biblista francês, morto em 1938).

• No século 19 verificou-se uma grande acentuação daqueles estudos e pesquisas no campo bíblico, em geral no protestantismo. É o tempo em que florescem as sociedades bíblicas. • No campo católico, tal acentuação no século 19 correspondeu à época do início do antimodernismo. É também a época do início do reinado do neotomismo (reinado oficializado com a encíclica Aeterni Patris de 1879). • Por causa disso, a renovação bíblica se desenvolvia com dificuldade no campo católico. • Marcos da renovação bíblica no campo católico:

1890: Padre Lagrange funda a Escola Bíblica de Jerusalém.

1893: a encíclica Providentissimus Deus de Leão 13 é o início da abertura oficial católica à moderna exegese histórico-crítica da Bíblia.

1909: fundação do Pontifício Instituto Bíblico em Roma.

1943: a encíclica Divino afflante Spiritu de Pio 12 incorpora oficialmente o método histórico-crítico à teologia católica.

b) A renovação patrística

• Mencionamos antes que, nos últimos séculos, por razões diversas e complexas produziu-se no cristianismo uma tendência que hoje chamamos de volta às fontes. • Vimos que uma das causas dessa tendência foi o crescente interesse pela ciência da história. • Tal interesse particular pela ciência da história era fruto de um interesse mais geral: o florescer (a partir do século 16) da atividade científica como um todo. Era um florescimento causado sobretudo pelo iluminismo. • Vimos também que interesse pela história em geral propiciava perguntas sobre um aspecto em particular: o processo de formação redacional de textos antigos em geral. • Vimos igualmente que as perguntas históricas sobre a formação de textos antigos conduziu a pesquisas sobre o processo de formação redacional da Bíblia. • Aquelas perguntas históricas sobre a formação e a compreensão de textos antigos dirigiram-se também às obras dos Padres da Igreja. • Nesse campo, os esforços de pesquisa se realizaram mais no âmbito católico.

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• Alguns eventos marcantes da renovação patrística:

• Desde o início do século 17, na França, os beneditinos da Congregação de São Mauro (conhecidos como maurinos ou mauristas) começaram a trabalhar na edição das obras dos Padres da Igreja, utilizando elementos histórico-críticos. • Esse trabalho dos mauristas foi cortado pela Revolução Francesa, que extinguiu tal congregação religiosa.

• No início do século 19, o sacerdote diocesano francês Jacques-Paul Migne (morto em 1875) realizou um trabalho monumental. • Seu objetivo era editar uma vasta coleção de textos a baixo custo que servissem à formação do clero francês em diversas áreas: teologia, filosofia, direito canônico, Bíblia, autores cristãos antigos, história da Igreja. • O motivo: a Revolução Francesa havia suprimido a quase totalidade das bibliotecas dos seminários franceses, e os seminaristas de lá estavam com sua formação muito comprometida por causa disso. • A vasta coleção de Migne tornou-se famosa, no entanto, especialmente por causa de duas subcoleções, denominadas séries, que continham obras dos Padres da Igreja. Essas séries tinham os seguintes títulos:

Patristica Graeca (PG), com 251 volumes; Patristica Latina (PL), com 218 volumes.

• A consagração da obra de Migne deu-se por ocasião do concílio Vaticano 1o. Foi montada uma biblioteca para uso dos padres conciliares enquanto estivessem ali reunidos, e uma posição de destaque foi dada às duas séries que, na coleção de Migne, eram dedicadas aos Padres da Igreja.

• A partir de 1866, a Academia de Viena (a academia austríaca de ciências) publica até hoje o Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum (CSEL), coleção dedicada à patrologia latina.

• A partir de 1897 a Academia de Berlim (a academia berlinense de ciências) publica até hoje o Die griechischen christlichen Schriftsteller (GCS ), coleção dedicada à patrologia grega.

• No século 20 foram iniciadas duas outras coleções importantes no campo patrístico:

a partir de 1903 a Katholieke Universiteit Leuven, na Bélgica e a Catholic University of America, nos E.U.A., publicam o Corpus Scriptorum Christianorum Orientalium (CSCO ), com textos de antigos autores siríacos, coptas, árabes e etíopes;

a partir de 1941, sob a direção inicialmente de Henri de Lubac SJ e Jean Daniélou SJ, são publicados os volumes de Sources Chrétiennes (SC ).

• Muitas universidades instituíram cátedras de estudos patrísticos.

• Com tudo isso, a Teologia se aprofundou no contato e na familiaridade com produções teológicas não aristotélico-tomistas que se caracterizavam por mostrar:

uma linguagem mais acessível, mais concreta, menos abstrata, menos ontologizante; Cristo encarnado como revelador do Pai em gestos e palavras; Cristo inserido na história de Israel.

ambas com os textos originais e traduções

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c) O movimento litúrgico

• O concílio de Trento havia já nomeado uma comissão para unificar a multiplicidade de ritos com os quais se celebrava a missa. • Pouco depois do final do concílio, Pio 5o reuniu os trabalhos feitos e promulgou em 1570 o novo missal único, conhecido como Missal Tridentino. Neste, a língua era forçosamente o latim e havia uma única oração eucarística obrigatória. • Por cerca de quatro séculos, desde aquele ano até o século 20, o ritual da missa esteve imutado, congelado.

• No século 19, a partir da abadia de Solesmes (na França) e do abade Prosper Guéranger, surge em ambientes beneditinos europeus um esforço de buscar a renovação da vida espiritual através da liturgia. O texto mais representativo é a obra do abade Guéranger intitulada O ano litúrgico. Esse processo de renovação ali iniciado iria desabrochar mais intensamente em 1909.

• O Movimento Litúrgico foi oficialmente lançado pelo monge beneditino Lambert Beauduin, da abadia de Mont-César em Lovaina, Bélgica. Isso aconteceu em 23 de dezembro de 1909, no 5o Congresso Nacional das Obras Católicas que acontecia em Malines, na Bélgica. As intenções desse movimento eram basicamente duas:

buscar a participação ativa dos leigos na liturgia (não só a da missa), diminuindo o fosso existente entre o clero e a assembleia;

celebrar na vida o mistério de Jesus Cristo, abafado por ritualismos, rubricas e pompas. • Lambert Beauduin utilizou duas frases de um documento de Pio 10o. Em 1903 esse Papa havia escrito originalmente em italiano o motu proprio sobre a música sacra intitulado Tra le sollecitudini. Na introdução desse documento Pio 10o afirmava: “a participação ativa dos fiéis nos sacrossantos mistérios e na oração pública e solene da Igreja [... é] a primeira e indispensável fonte [... da qual] os fiéis colhem o verdadeiro espírito cristão”. E mais a frente, no número 3: “que os fiéis tomem de novo parte mais ativa nos ofícios litúrgicos”. Essas frases seletas tornar-se-iam como que os lemas do Movimento Litúrgico lançado por dom Beauduin. • O documento Tra le sollecitudini está disponível na aba “Pio X”, no endereço <www.vatican.va/holy_father/index_it.htm>).

• Atividades originadas a partir do âmbito acadêmico também trouxeram contribuições importantes. • Em 1922 funda-se em Roma o Pontifício Instituto Oriental, que fomenta estudos em liturgia. • Nos anos 40 são fundados diversos institutos de estudos em liturgia. • Pesquisas arqueológicas lançam luzes sobre a disposição do espaço sagrado nos primeiros séculos da era cristã e mostram diferenças em relação ao uso do início do século 20. • Estudos críticos trazem à luz rituais eucarísticos antiquíssimos e venerandos, distintos daquele do Missal Tridentino em vigor após 1570.

• Em 1953 acontecem mudanças com o intuito de atenuar, em casos especiais, o jejum eucarístico. Até então, a missa era apenas matutina e o jejum eucarístico se fazia sem exceções a partir da meia-noite até a hora da comunhão. A Constituição apostólica Christus Dominus de Pio 12, em 6 de janeiro de 1953, modifica um pouco a disciplina a ser observada no jejum eucarístico. Mantendo em geral a prática anterior, abre a possibilidade de que sacerdotes e fiéis, por razões sérias de horário de trabalho, o realizem apenas na hora que antecede a comunhão. Isso para possibilitar a grande novidade lançada pelo documento: celebrar a missa – em algumas ocasiões especiais, como por exemplo as festas de preceito, a primeira sexta-feira do mês e celebrações com grande número de fiéis – depois das quatro horas da tarde.

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• A Christus Dominus está disponível na aba “Pio XII”, no endereço <www.vatican.va/holy_father/index_it.htm>). • Essas mudanças no jejum eucarístico não devem ser confundidas com aquelas a respeito do jejum penitencial ou eclesiástico, introduzidas só depois do Vaticano 2o por Paulo 6o em 17 de fevereiro de 1966 com a Constituição apostólica Paenitemini.

• Em resumo: o movimento litúrgico ajudou a ver melhor a riqueza e a diversidade das liturgias mais antigas, assim como a fomentar uma mentalidade de maior proximidade com o mistério de Jesus de Nazaré que é celebrado em toda liturgia. d) O movimento ecumênico

• No século 18 havia já acontecido um processo que se chama de ressignificação do termo grego oikouméne. Esse termo designava, no mundo antigo, a totalidade da terra habitada. Um nome importante nessa ressignificação foi o matemático e filósofo luterano alemão Gottfried Leibniz (morto em 1716). Leibniz dedicou um esforço considerável para tentar reconciliar a Igreja Luterana com a Católica. Ele foi um dos primeiros a empregar o termo oikoumene – e seu derivado moderno ecumênico – no sentido de universalidade do cristianismo (cf. SANTA ANA, Júlio. Ecumenismo e libertação. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 21-23). • Em geral indica-se que o movimento ecumênico originou-se no início do século 19, no ambiente anglicano específico da Inglaterra. Sua grande motivação era contrapor-se aos quase três séculos anteriores de guerras em nome da religião que haviam acontecido na Europa. • A primeira reunião internacional de caráter ecumênico aconteceu somente cerca de um século depois. Foi a Conferência Missionária Internacional de 1910, em Edimburgo, na Escócia. • Outros eventos importantes naquela fase inicial do movimento ecumênico foram:

Conferência Cristã Internacional sobre Vida e Ação, em 1925 em Estocolmo, Suécia, com cerca de 600 delegados de mais de 30 países. Ali foi fundado o Conselho Ecumênico de Vida e Ação, com representantes de todas as confissões cristãs. Até mesmo a Igreja Católica estava ali presente, embora extraoficialmente.

Conferência da Paz, em 1929 em Praga, República Tcheca, com mais de 500 delegados.

Fundação do Conselho Mundial de Igrejas, em 1948, sem a Igreja Católica. • No campo católico o processo foi bem mais lento. • No final do século 19, Leão 13 iniciou uma aproximação com os ortodoxos. • Em 1922 funda-se em Roma o Pontifício Instituto Oriental, com pesquisas em teologia e liturgia ortodoxas. • Em 1948 é fundado o Conselho Mundial de Igrejas, mas sem a Igreja Católica. Esta enviará os primeiros observadores só em 1961. • O primeiro passo católico de grande envergadura no campo ecumênico aconteceu em 20 de dezembro de 1949. O então chamado Santo Ofício (atual Congregação para a Doutrina da Fé), na instrução De motione ecumenica (Sobre o movimento ecumênico) pede oficialmente aos bispos neste documento para fortalecerem o ecumenismo. • O movimento ecumênico trouxe à Igreja Católica um abrandamento dos ânimos acirrados pelos ataques sofridos nos séculos anteriores.

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e) Consequência da volta às fontes para o estudo da revelação • Emergia a figura do ser humano Jesus de Nazaré como revelador de Deus (esse era um elemento essencial da noção bíblica de revelação). Jesus revelou Deus:

com atitudes, com seu jeito de ser, e não apenas com as palavras que saíram de sua boca;

dentro dos eventos reais e concretos da história humana. • Tais coisas dificilmente conseguiam ser tematizadas pelas categorias aristotélico-tomistas então em vigor na Teologia católica, que eram acentuadamente abstratas e a-históricas. • Uma frase de René Latourelle resume bem a diferença entre a apresentação do tema da revelação nos tratados pré-conciliares e aquela segundo a nova mentalidade bíblico-patrístico-litúrgico-ecumênica que se ia formando na Igreja:

“Essa apresentação da revelação [dos tratados pré-conciliares] provocou em mim uma alergia incontrolável, uma verdadeira revolta interior. Eu dizia a mim mesmo: não, a revelação é infinitamente mais rica! Basta ler São João e São Paulo” (citado em RESTREPO-SIERRA, Argiro, La revelación según René Latourelle. Tesi Gregoriana, série Teologia 60. Roma: Editrice Pontificia Università Gregoriana, 2000, p. 19, nota 1)

f) Alguns nomes de autores importantes

• Ao longo dos primeiros sessenta anos do século 20, muitos autores (católicos e protestantes) refletiam sobre a noção de revelação, e postulavam que esta fosse apresentada num modo mais fiel ao que realmente tinha acontecido (algo mais complexo e rico do que um Deus metafísico que revela doutrinas sobrenaturais pela boca de Cristo). • Alguns nomes importantes: • Católicos:

Romano Guardini (sacerdote diocesano alemão, morto em 1968);

Jean Daniélou SJ (francês, morto em 1974);

Ludovic-Marie Dewailly OP (francês);

Louis Charlier OP (belga, morto em 1981);

Karl Rahner SJ (alemão, morto em 1984);

Pierre Benoit OP (francês, morto em 1987);

Hans Urs Von Balthasar (sacerdote diocesano suíço, morto em 1988);

Marie-Dominique Chenu OP (francês, morto em 1990);

Henri de Lubac SJ (francês, morto em 1991);

Gustave Thils (sacerdote diocesano belga, morto em 2000);

René Latourelle SJ (canadense, nascido em 1918, ainda vivo). • Protestante: Karl Barth (suíço, morto em 1968).

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g) A volta às fontes e o concílio Vaticano 2o

• As considerações feitas a partir da página 94 ajudam-nos a compreender como que foi possível que, logo no início do Vaticano 2o, aconteceu a rejeição da primeira versão do documento sobre a revelação divina. Esse documento rejeitado pela maioria dos padres conciliares havia sido elaborado com a noção de revelação consolidada pelo Vaticano 1o. • Os elementos considerados nas últimas páginas haviam gerado na Igreja Católica uma consciência eclesial diferente e generalizada que considerava a revelação de modo bem mais aprofundado que nos séculos anteriores, e em modo mais fiel à noção de revelação do depósito da fé. • O concílio Vaticano 2o representou o evento chave no qual aquelas linhas de renovação foram acolhidas pela Igreja Católica. Na sua viagem a Portugal em 2010, Bento 16 fez uma declaração a esse respeito. Tal comentário, feito originalmente em português, resume o que acontecia na consciência eclesial católica já no início do concílio:

“Foi para pôr o mundo moderno em contato com as energias vivificadoras e perenes do Evangelho que se fez o concílio Vaticano 2o, no qual a Igreja, a partir de uma renovada consciência da tradição católica, assume e discerne, transfigura e transcende as críticas que estão na base das forças que caracterizaram a modernidade, ou seja, a reforma e o iluminismo. Assim a Igreja acolhia e recriava por si mesma o melhor das instâncias da modernidade, por um lado, superando-as e, por outro, evitando os seus erros e becos sem saída. O evento conciliar colocou as premissas de uma autêntica renovação católica e de uma nova civilização – a „civilização do amor‟ – como serviço evangélico ao homem e à sociedade” (BENTO 16, Discurso no encontro com o mundo da cultura, 12 de maio de 2010).

5.2 Lendo a Dei Verbum • O texto da constituição dogmática Dei Verbum encontra-se em DH 4201-4235. Abaixo, um elenco dos pontos principais.

• Introdução.

1- Segue-se Trento e o Vaticano 1o. A intenção é a de expor a genuína doutrina sobre a revelação de Deus.

• Capítulo 1. Busca responder a pergunta: o que é a revelação? O núcleo da resposta: Cristo, Palavra de Deus.

2- Deus revela duas coisas: si mesmo e sua vontade. Como se dá a revelação? A Dei Verbum utiliza linguagem concreta e bela: “Com a riqueza do seu amor, na revelação Deus invisível fala aos homens e convive com eles”. A revelação realiza-se por meio de ações (obras, atitudes, opções, comportamentos) e palavras, intimamente relacionadas entre si. Cristo é a Palavra de Deus encarnada. Qual a finalidade da revelação? “Para os convidar e admitir à comunhão com ele”. Onde se dá a plenitude da revelação? “A verdade profunda a respeito de Deus se dá em Cristo, que é o mediador e a plenitude de toda a revelação”.

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3- Expõe a história da salvação: criação, Patriarcas, Moisés, profetas.

4- Continua expondo a história da salvação: a etapa final, Cristo. Cristo é a Palavra eterna de Deus. “Ver Cristo é ver o Pai, com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com sua morte e ressurreição, e o envio do Espírito Santo”.

5- A fé como resposta humana, precedida pela graça de Deus e pelo auxílio interno do Espírito.

6- Retoma-se a pergunta: o que é a revelação? Utiliza-se a expressão do Vaticano 1o; o clima muda. • Capítulo 2. Busca responder a pergunta: como a revelação chegou até hoje? O núcleo da resposta: Tradição e Bíblia.

7- Expõe a sequência: Cristo apóstolos bispos. O Evangelho (que foi cumprido e promulgado pessoalmente por Cristo) veio transmitido por pregação oral, exemplos e instituições, e por escrito. Aparece pela primeira vez a palavra Tradição (sempre com maiúscula e no singular), junto com Escritura: ambas “são como um espelho no qual a Igreja contempla Deus”.

8- Onde a pregação apostólica é transmitida? De modo especial, nos livros inspirados. Aparece também o termo tradições (com minúscula e no plural), para designar costumes e usos: “os apóstolos advertem os fiéis a que observem as tradições que tinham aprendido quer por palavras quer por escrito”. A Tradição progride na Igreja. Como? Em cada fiel, pela contemplação, estudo e meditação no coração; raciocinando sobre essas coisas; na pregação dos bispos. O que a Tradição permite? Primeiro, permite conhecer o cânon da Bíblia. Segundo, permite a compreensão mais profunda das Escrituras. Terceiro: “Mediante a mesma Tradição [...] Deus, que outrora falou, dialoga sem interrupção com a esposa do seu amado Filho” permite a relação dialogal com Deus, i.e., a experiência de Deus no tempo atual de cada geração.

9- A relação entre Tradição e Bíblia: são intimamente unidas e comunicantes. Derivam da mesma fonte: Deus. São “como que uma coisa só”. Têm a mesma finalidade: a salvação.

10- Mas “que coisa só” são Tradição e Bíblia? São Palavra de Deus confiada à Igreja. A interpretação última da Palavra de Deus composta por Tradição e Bíblia cabe ao Magistério. O Magistério não está acima da Palavra de Deus, mas sim abaixo dela, a seu serviço.

• Capítulo 3. Neste capítulo e nos seguintes, fala-se em especial da Bíblia.

11- Toca-se o tema da origem divina da Bíblia, e de como isso se relaciona com a composição humana desta. As coisas reveladas que estão na Bíblia foram escritas por inspiração do Espírito Santo. Qual a relação da Bíblia com Deus? “Os livros inteiros do AT e NT foram escritos por inspiração do Espírito Santo, têm Deus como autor e foram confiados à Igreja”. Como Deus se relacionou com os compositores humanos nas ocasiões em que se escrevia a Bíblia? “Para escrever os livros sagrados, Deus escolheu e se serviu de homens na posse de suas faculdades e capacidades, para que, agindo Deus neles e por eles, pusessem por escrito como verdadeiros autores tudo e só aquilo que Deus queria”. A Bíblia erra ou não erra? “Ensina com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse consignada por escrito”.

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12- Toca-se o tema da interpretação da Bíblia no tempo atual. Contra as interpretações abusadas da Bíblia, hoje devemos buscar a intenção original das pessoas que a escreveram. Para isso, precisam ser levados em conta os gêneros literários e a cultura daquela época. O sentido de um texto é dado em articulação com toda a Bíblia, e não interpretando cada passagem isoladamente.

13- Por bondade, Deus abaixou-se ou ajoelhou-se (= sentido do termo técnico condescendência) ao usar linguagem humana na Bíblia. É atitude análoga à que Ele teve ao se encarnar. Cristo é a Palavra do Pai eterno que se encarnou.

• Capítulo 4. Continuando a falar em especial da Bíblia: o Antigo Testamento

14- O plano geral da história da salvação: Abraão, Moisés, profetas. O Antigo Testamento tem valor.

15- O Antigo Testamento destina-se sobretudo a anunciar a vinda de Cristo. “Apesar de conter também coisas imperfeitas e transitórias, o Antigo Testamento revela a verdadeira pedagogia de Deus”. Por isso ele deve ser recebido com respeito.

16- A relação entre Antigo e Novo Testamento é de dependência e iluminação recíproca.

• Capítulo 5. Continuando a falar em especial da Bíblia: o Novo Testamento

17- Há uma hierarquia de livros na Bíblia. O Novo Testamento manifesta o poder máximo da Bíblia porque mostra explicita e centralmente Cristo. Cristo é a Palavra de Deus feita carne. Cristo manifestou a Deus com obras e palavras.

18- Mas mesmo dentro do Novo Testamento há uma hierarquia entre os livros. Os evangelhos são o principal testemunho de Cristo, que é a Palavra feita carne. “Os Evangelhos têm o primeiro lugar, enquanto são o principal testemunho da vida e da doutrina da Palavra encarnada”.

19- Os Evangelhos não são mera invenção. “Transmitem fielmente as coisas que Jesus, Filho de Deus, realmente operou e ensinou, para a salvação eterna dos homens, em sua vida terrena”.

20- Comentário sobre o cânon dos livros do Novo Testamento.

• Capítulo 6. Continuando a falar em especial da Bíblia: sua importância hoje

21- A veneração da Escritura tem tanta importância quanto a veneração da Eucaristia. Regra suprema da fé: Escrituras e Tradição. Toda pregação e toda religião devem alimentar-se e regular-se pela Escritura. Na Bíblia “o Pai que está nos céus vem muito amorosamente ao encontro de seus filhos e conversa com eles”.

22- Os fiéis precisam ter acesso à Bíblia na sua língua.

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23- Cristo é a Palavra feita carne, e a Igreja é como que sua esposa. Os estudos no campo da Patrística e da Liturgia ajudam a compreender mais profundamente a Sagrada Escritura. Também a atividade dos exegetas e as ciências bíblicas são de grande importância para essa compreensão aprofundada. “O concílio encoraja os filhos da Igreja que cultivam as ciências bíblicas para que continuem a realizar com todo o empenho esse trabalho felizmente começado”. Exegetas e teólogos devem trabalhar em íntima colaboração.

24- O estudo da Bíblia deve ser como que a alma da Teologia. A familiaridade com a Bíblia deve também alimentar a catequese, a pregação e a homilia.

25- Todos os evangelizadores devem manter contato assíduo com a Bíblia pela leitura, pelo estudo, pela liturgia e pela oração “a fim de que nenhum deles se torne „pregador vão e superficial da Palavra de Deus por não a ouvir de dentro‟ ”. “O concílio exorta com ardor e insistência todos os fiéis, mormente os religiosos, a que aprendam „a sublime ciência de Jesus Cristo‟ (Fl 3,8) com a leitura frequente das divinas Escrituras, porque „a ignorância das Escrituras é ignorância de Cristo‟ ”. Sobre a experiência de Deus: “lembrem-se que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada da oração para que seja possível o diálogo entre Deus e o homem”. É importante a elaboração de edições comentadas da Bíblia.

26- O crescimento da vida espiritual pela participação na Eucaristia é comparável ao crescimento na vida espiritual pela veneração da Palavra de Deus.

5.3 Em resumo

• Vimos nas últimas semanas que a noção de revelação na linha Tomás de Aquino–Trento–Vaticano 1o tinha as seguintes características:

apresentava Deus como “substância espiritual, singular, simples e imutável” (DH 3001);

era metafísica, abstrata em relação à experiência;

era pouco histórica: “aprouve à sua misericórdia e bondade revelar-se à humanidade a si mesmo e os decretos da sua vontade por outra via, esta sobrenatural” (DH 3004);

silenciava a respeito da revelação que acontece no tempo presente;

silenciava a respeito da revelação fora do cristianismo. • Diferentemente da linha desse noção de revelação, a noção de revelação empregada na Dei Verbum resgata elementos essenciais da noção bíblica de revelação que tinham ficado como que esquecidos ao longo dos séculos. Em outros termos, a teologia da revelação do Vaticano 2o resgatou elementos essenciais do depósito da fé: é cristocêntrica, é mais concreta, é mais histórica e abre caminho para falar da revelação no tempo atual de cada geração cristã pós-apostólica.

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• A noção de revelação da Dei Verbum é cristocêntrica.

• Ao invés de acentuar uma noção metafísica de Deus (“substância espiritual, singular, simples e imutável”) como a Dei Filius do Vaticano 1o, a noção de revelação da Dei Verbum é cristocêntrica. Leva mais em consideração aquele elemento essencial da confissão bíblica de fé que permite dizer “Maria, mãe de Deus”. Trata-se da afirmação apostólica fundamental de que o ser humano Jesus de Nazaré, com todas as suas limitações humanas não pecaminosas, é Deus, e de que esse ser humano concreto e completo é a plenitude da revelação de Deus. • Mais fiel à noção de revelação do depósito da fé, a Dei Verbum em particular – e o Vaticano 2o em geral – são cristocêntricos porque explicitam a consciência de que Jesus Cristo não só é o meio pelo qual se dá a revelação de Deus, mas também é a mensagem intencionada por tal revelação divina:

“A verdade profunda tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens, manifesta-se-nos, por esta revelação, em Cristo, que é, simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a revelação” (DV 2).

• A noção de revelação da Dei Verbum é mais concreta, mais próxima da experiência humana.

• Ao valorizar a carne de Jesus Cristo e seus gestos, atitudes e opções (como o faz o Novo Testamento), a Dei Verbum expressa sua noção de revelação em termos mais palpáveis e familiares às pessoas, e não através de conceitos abstratos e metafísicos que, em geral para os fiéis, são de difícil compreensão.

“Em virtude desta revelação, Deus invisível, na riqueza do seu amor, fala aos homens como amigos e convive com eles para os convidar e admitir à comunhão com Ele. Essa economia da revelação realiza-se por meio de ações e palavras intimamente relacionadas entre si” (DV 2);

“Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado como homem para os homens, „fala portanto as palavras de Deus‟ (Jo 3,34) [...]. Vê-lo é ver o Pai, com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição” (DV 4);

“Para escrever os livros sagrados, Deus escolheu e serviu-se de homens na posse das suas faculdades e capacidades, para que, agindo Ele neles e por eles, pusessem por escrito, como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que Ele queria” (DV 11);

“Com efeito, quando chegou a plenitude dos tempos (cf. Gl 4,4), o Verbo fez-se carne e habitou entre nós cheio de graça e verdade (cf. Jo 1,14). Cristo estabeleceu o reino de Deus na terra, manifestou com obras e palavras o Pai e a Si mesmo, e levou a cabo a Sua obra com a Sua morte, ressurreição, e gloriosa ascensão, e com o envio do Espírito Santo” (DV 17).

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• A noção de revelação da Dei Verbum é mais histórica.

• Ao explicitar com mais detalhes as etapas da revelação acontecidas em Israel antes de Jesus Cristo, a noção de revelação da Dei Verbum valoriza mais o processo histórico que acompanhou tal revelação. A Dei Verbum leva mais em conta a evolução da revelação ao longo da história. • A Dei Verbum utiliza uma expressão que, na época, era novidade: história da salvação. Tal expressão hoje se tornou comum na atual Teologia católica graças à sua utilização nesse documento.

“Esse plano da revelação realiza-se por meio de ações e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras realizadas por Deus na história da salvação manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido” (DV 2);

“Deus, criando e conservando todas as coisas pela Palavra (cf. Jo 1,3), oferece aos homens um testemunho perene de Si mesmo na criação (cf. Rm 1,1-20). Além disso, decidindo abrir o caminho da salvação sobrenatural, manifestou-se a Si mesmo, desde o princípio, aos nossos primeiros pais. Depois da sua queda, com a promessa de redenção, deu-lhes a esperança da salvação (cf. Gn 3,15), e cuidou continuamente do gênero humano [...]. No devido tempo chamou Abraão, para fazer dele pai dum grande povo (cf. Gn 12,2), povo que, depois dos patriarcas, ele instruiu, por meio de Moisés e dos profetas, para que o reconhecessem como único Deus vivo e verdadeiro, pai providente e juiz justo, e para que esperassem o salvador prometido” (DV 3);

“ „Depois de ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas, falou-nos Deus nestes nossos dias, que são os últimos, através de Seu Filho‟ (Hb 1, 1-2). Com efeito, enviou o Seu Filho, isto é, a Palavra eterna, que ilumina todos os homens, para habitar entre os homens e manifestar-lhes a vida íntima de Deus” (DV 4);

“O Deus do infinito amor, desejando e preparando com cuidado a salvação de todo o gênero humano, escolheu por especial providência um povo a quem confiar as suas promessas. Tendo estabelecido aliança com Abraão (cf. Gn 15,18), e com o povo de Israel por meio de Moisés (cf. Ex 24,8), revelou-se ao povo escolhido como único Deus verdadeiro e vivo, em palavras e obras, de tal modo que Israel pudesse conhecer por experiência os planos de Deus sobre os homens, os compreendesse cada vez mais profunda e claramente ao ouvir o mesmo Deus falar pela boca dos profetas, e os difundisse mais amplamente entre os homens” (DV 14).

• A noção de revelação da Dei Verbum abre caminho para falar da revelação acontecendo no tempo atual.

• Além disso, a noção de revelação empregada na Dei Verbum abre a possibilidade de se falar da revelação que acontece no tempo atual de cada geração cristã pós-apostólica. • Isso está na linha do que vimos no início do curso sobre a experiência de Deus como diálogo e relação direta, sem intermediários, entre o ser humano e Deus (ou ainda, nos termos de Santo Inácio de Loyola: “aquele que dá os Exercícios Espirituais [...] deixe imediatamente agir o Criador com a criatura, e a criatura com seu Criador e Senhor”; cf. p. 16-20 da apostila):

“Deus, que outrora falou, dialoga sem interrupção com a esposa do seu amado Filho” (DV 8); “Nos Livros Sagrados, o Pai que está nos céus vem muito amorosamente ao encontro de seus filhos e conversa com eles” (DV 21); “A leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada de oração, para que seja possível o diálogo entre Deus e o homem” (DV 25).

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• Limites da Dei Verbum.

• A Dei Verbum entretanto, assim como a Dei Filius do Vaticano 1o, fala apenas da revelação no cristianismo. • Para termos uma visão de conjunto sobre o que o Vaticano 2o ensina sobre a revelação como um todo (no cristianismo e nas demais religiões) precisamos recorrer também a outros documentos desse concílio. É o que faremos no item seguinte. • Leituras sugeridas:

LATOURELLE, René, Teologia da revelação, parte 4 (“Noção de revelação e Magistério Eclesiástico”), capítulo 5 (“O segundo concílio do Vaticano e a constituição Dei Verbum”).

RUIZ ARENAS, Octavio, Jesús, epifanía del amor del Padre, capítulo 3 (“Significado de la revelación”) e capítulo 4, item 3c (“Doctrina del concilio Vaticano 2o”).

LIBANIO, João Batista, Teologia da revelação a partir da modernidade, capítulo 14, item 1 (“A revelação nos concílios”), subitem 4 (“Concílio Vaticano 2o”), p. 385-387.

Dicionário de Teologia Fundamental, verbete “Dei Verbum [história e comentários]”.

SESBOÜÉ, Bernard, História dos dogmas. IV. A palavra da salvação (séculos XVIII-XX). Capítulo 13 (“A comunicação da Palavra de Deus: Dei Verbum”);

PIAZZA, Waldomiro. A revelação cristã na constituição dogmática Dei Verbum. São Paulo: Loyola, 1986.

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6. Síntese da noção católica de revelação à luz do concílio Vaticano 2o

• Uma síntese da noção católica de revelação à luz do Vaticano 2o precisa basear-se não só sobre a constituição dogmática Dei Verbum, mas também em importantes elementos de revelação contidos em outros documentos:

Constituição dogmática Lumen Gentium (LG), sobre a Igreja;

Constituição pastoral Gaudium et Spes (GS), sobre a Igreja no mundo atual;

Decreto Ad Gentes (AG), sobre a atividade missionária;

Declaração Nostra Aetate (NA), sobre a Igreja e as religiões não cristãs. • Baseando-se sobre tais documentos, a noção católica atual de revelação adota dois pressupostos, considerados a seguir. 6.1 Pressupostos da noção católica atual de revelação • Podemos dizer que a noção católica de revelação tem dois pressupostos. • Primeiro pressuposto: divino e humano não se contradizem

• A Filosofia grega – especialmente Aristóteles no livro 12 da sua Metafísica – apresentava as características do que seria a divindade: “o princípio e o primeiro dos seres”, “essência primeira”, “motor primeiro e imóvel”, “substância imóvel, eterna, indivisível, impassível, inalterável”, afirmando que “esse portanto é Deus” (ARISTÓTELES, Metafísica, XII, 6, 1072b 30). Concebido segundo esse modo grego, aquilo que é divino é apresentado como oposto àquilo que é humano. • O modo semita de apresentar Deus, no entanto, desde o início apresenta aquilo que é humano como criado à “imagem e semelhança de Deus”. Essa intuição está na base, como pressuposto, da noção católica atual de revelação. • A noção católica atual de revelação pressupõe que aquilo que é divino e aquilo que é humano não encerram entre si uma contradição, não são conflitantes entre si, um não impugna o outro. Pelo contrário, quanto mais autêntico for o humano, mais fielmente será “imagem de Deus”. • Esse pressuposto denota, na noção católica atual de revelação, uma assimilação mais aprofundada da famosa passagem do livro do Gênesis:

“Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança” (Gn 1,26).

• Na mesma linha da pressuposição de que aquilo que é divino e aquilo que é humano não encerram entre si uma contradição, a noção católica atual de revelação assimilou com mais profundidade outro elemento fundamental do modo semita de apresentar Deus: a santidade daquilo que é divino é sempre apresentada como a meta de vida daquilo que é humano:

“Iahweh falou a Moisés e disse: „Fale a toda a comunidade dos filhos de Israel. Você lhes dirá: Sejam santos, porque eu, Iahweh, Deus de vocês, sou santo‟ ” (Lv 19, 1-2).

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• Longe de considerar que aquilo que é divino e aquilo que é humano encerrem entre si uma contradição, na verdade esse pressuposto da noção católica atual de revelação permite questionar com mais profundidade falsas imagens de humanidade e de divindade.

• O que é verdadeiramente divino questiona falsas imagens de humanidade, como por exemplo:

uma concepção de humanidade que sustenta que o corpo e a materialidade são negativos ou descartáveis, e que aquilo que realmente tem valor no ser humano é só a alma;

uma concepção de humanidade que sustenta que o ideal desta é a autonomia e a independência, livre de qualquer dependência ou subordinação.

• O que é verdadeiramente humano questiona falsos ideais de divindade, como por exemplo:

a concepção de uma divindade que, longe de qualquer princípio de gratuidade e de imerecimento, faz o bem mediante retribuição ou pagamento somente àqueles que o merecem;

a concepção de uma divindade que, longe de qualquer princípio de humildade e serviço, adota uma glória semelhante àquela mundana: riqueza, poder e fama.

• Segundo pressuposto: toda a criação conta com a graça de Deus

• A Teologia escolástica apresentava a distinção de duas ordens: natural e sobrenatural. O campo do natural era concebido como uma ordem na qual a iniciativa dependeria unicamente do esforço da própria criatura. Por sua vez, o campo do sobrenatural seria aquela ordem na qual toda iniciativa dependeria unicamente da graça divina. • A noção católica atual de revelação pressupõe, no entanto, que nenhuma dimensão do universo criado por Deus deixa de contar com a graça divina (graça = amor gratuito, gratuidade). • A noção católica atual de revelação pressupõe que o amor gratuito de Deus é a base da existência de todo o universo. Todas as criaturas existem de graça, por graça, e não por direito e merecimento:

“O amor original é mais importante que o pecado original” (COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL, Teologia da redenção. São Paulo: Loyola, 1994, no 39)

• Esse pressuposto desconstrói a distinção entre natural e sobrenatural. A razão e a liberdade humanas (que, naquela distinção escolásitica, designam por excelência a dimensão natural) só existem e funcionam devido à graça (que, naquela distinção escolástica, assinala a dimensão sobrenatural) de Deus. Razão e liberdade portanto são também sobrenaturais.

• Em base a esses dois pressupostos, a atual apresentação católica da noção de revelação à luz do Vaticano 2o fala de:

revelação universal;

revelação no cristianismo;

revelação nas religiões em geral. • Tendo por base os dois pressupostos considerados anteriormente, esses três aspectos da noção católica atual de revelação serão analisados a seguir a partir dos elementos de Teologia da revelação contidos na Dei Verbum, Lumen Gentium, Gaudium et Spes, Ad Gentes e Nostra Aetate.

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6.2 A revelação universal • Textos conciliares básicos.

• Nos documentos do Vaticano 2o, há três passagens fundamentais que oferecem importantes elementos de Teologia da revelação para falar de algo que aqui chamamos de revelação universal.

“[...] para o cristão é uma necessidade e um dever lutar contra o mal através de muitas tribulações, e sofrer a morte. Mas, associado ao mistério pascal, e configurado à morte de Cristo, vai ao encontro da ressurreição, fortalecido pela esperança. E o que fica dito, vale não só dos cristãos, mas de todos os homens de boa vontade, em cujos corações a graça opera ocultamente. Com efeito, já que por todos morreu Cristo e a vocação última de todos os homens é realmente uma só, a saber, a divina, devemos manter que o Espírito Santo a todos dá a possibilidade de se associarem a este mistério pascal por um modo só de Deus conhecido” (GS 22);

“No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que não se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está chamando ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faça isto, evite aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado. A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser. Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus e do próximo. Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos demais homens, no dever de buscar a verdade e de nela resolver tantos problemas morais que surgem na vida individual e social. Quanto mais, portanto, prevalecer a reta consciência, tanto mais as pessoas e os grupos estarão longe da arbitrariedade cega e procurarão conformar-se com as normas objetivas da moralidade” (GS 16);

“A Igreja peregrina é, por sua natureza, missionária, visto que tem a sua origem, segundo o desígnio de Deus Pai, na missão do Filho e do Espírito Santo. Este desígnio brota do amor fontal, isto é, da caridade de Deus Pai, que, sendo o Princípio sem Princípio de quem é gerado o Filho e de quem procede o Espírito Santo pelo Filho, quis derramar e não cessa de derramar ainda a bondade divina, criando-nos livremente pela sua extraordinária e misericordiosa benignidade, e depois chamando-nos gratuitamente a partilhar da sua própria vida e glória. Quis ser, assim, não só criador de todas as coisas mas também “tudo em todas as coisas” (1Cor 15,28), conseguindo simultaneamente a sua glória e a nossa felicidade. Aprouve, porém, a Deus chamar os homens a esta participação na sua vida, não só de modo individual e sem qualquer solidariedade mútua, mas constituindo-os num Povo em que os seus filhos, que estavam dispersos, se congregassem em unidade. Este desígnio universal de Deus para a salvação do gênero humano realiza-se não somente de um modo quase secreto na mente humana, ou por esforços, ainda que religiosos, pelos quais os homens de mil maneiras buscam a Deus, tentando conseguir chegar até Ele ou encontrá-l'O, embora Ele não esteja longe de cada um de nós (cf. At 17,27). Com efeito, estes esforços precisam de ser iluminados e purificados, embora, por benigna determinação da providência de Deus, possam algumas vezes ser considerados como pedagogia ou preparação evangélica para o Deus verdadeiro” (AG 2-3);

• O que significa revelação universal?

• Por revelação universal queremos dizer que acontece uma manifestação efetiva de Deus a todos os seres humanos. Nos termos do concílio, isso é dito assim:

“a voz de Deus se faz ouvir na intimidade do ser do homem”, GS 16;

“de um modo só por Deus conhecido, o Espírito Santo dá a todos a possibilidade de se associarem ao mistério pascal”, GS 22;

“O desígnio universal de Deus realiza-se também de um modo quase secreto na mente humana”, AG 2.

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• Descrição teológica.

• É necessário desenvolver teologicamente essa noção que aqui chamamos de revelação universal. Por tal intuição afirma-se que Deus toma a iniciativa de se colocar como amor gratuito (= graça incriada) diante do coração de todo ser humano. • Onde quer que haja um coração, Deus como amor gratuito se põe diante:

nós

embriões, bebês

pessoas com severa deficiência mental

outros planetas • Mas como é que Deus se coloca como amor gratuito diante de todo coração? • Deus aí se coloca de um modo não conscientemente refletido pela pessoa. Karl Rahner chama esse modo de revelação não conscientemente refletido de modo atemático e conhecimento transcendental (cf. RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé, p. 33-34.69-71). • Uma frase comum que resume essa colocação de Deus como amor gratuito de todo coração: “O Espírito Santo se faz presente no coração de todo ser humano”. Há uma grande proximidade dessa frase comum com o que afirma a Gaudium et Spes:

“A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser” (GS 16).

• Nomes usados para se referir a essa ação universal de Deus: • Na Gaudium et Spes: “voz que se faz ouvir na intimidade” (GS 16).

• Em João Paulo II: “graça de iluminação”

“Hoje como no passado, muitos homens não têm a possibilidade de conhecer ou aceitar a revelação do Evangelho, e de entrar na Igreja. Vivem em condições socioculturais que não o permitem, e frequentemente foram educados em outras tradições religiosas. Para eles, a salvação de Cristo torna-se acessível em virtude de uma graça que, embora dotada de uma misteriosa relação com a Igreja, todavia não os introduz formalmente nela, mas ilumina convenientemente a sua situação interior e ambiental. Esta graça provém de Cristo, é fruto do Seu sacrifício e é comunicada pelo Espírito Santo: ela permite a cada um alcançar a salvação, com a sua livre colaboração” (JOÃO PAULO 2O, Redemptoris Missio 10).

coração

é universal

amor gratuito divino, graça incriada

amor gratuito divino, graça incriada

amor gratuito divino, graça incriada amor gratuito divino,

graça incriada

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• Em René Latourelle: “atração”, “inclinação”

“A atração está à espera de seu objeto. Isso é mais visível no caso dos povos que ainda não ouviram a pregação do Evangelho. Antes mesmo que recebam a mensagem, a graça já está agindo. Neles a atração da graça obscuramente designa o deus de verdade como o objeto soberanamente capaz de saciar a inteligência que anseia pela verdade. Deus, por essa atração, já se dá incoativamente [= em estágio inicial], infundindo uma inclinação que leva a ele, verdade suprema. Os homens, sob a influência dessa graça, procuram tateantes, pressentindo vagamente um mistério de salvação” (LATOURELLE, René, Teologia da revelação, p. 502-503).

• Em Andrés Torres Queiruga: “pressão”

“De uma maneira que ultrapassa todos os limites da nossa compreensão, Deus revela-se sempre ao homem, pressionando a consciência humana para que cada pessoa em cada circunstância o possa descobrir” (TORRES

QUEIRUGA, Andrés, A revelação de Deus na realização humana, 197).

• Como a pessoa experimenta essa manifestação do amor gratuito divino diante do seu coração? • Como uma proposta ou apelo a assumir, como criatura, uma atitude existencial semelhante de amor gratuito. • A graça incriada propõe ao coração humano fazer-se imagem dela, ou seja, tornar-se graça criada. • Como a pessoa responde a essa proposta? • Num processo ao longo de toda a sua existência. Em tal processo extenso há episódios isolados de respostas mais intensas. • A resposta do coração humano tem duas possibilidades:

deixar-se guiar pelo dinamismo da proposta de amor gratuito,

ou então rejeitar existencialmente aquela proposta. • No processo de resposta que se verifica ao longo da existência da pessoa, esta se encontra sob outras influências que irão afetar sua resposta, como por exemplo:

instruções recebidas por educação (na família, na escola, na sociedade ...);

inserção em alguma religião;

violência sofrida, dor em geral, miséria;

condicionamentos biológicos. • A revelação universal mostra que os seres humanos têm algo em comum: são criados com uma estrutura de relação dialógica com Deus. • Tal estrutura é dom gratuito de Deus, prévio a qualquer ação da liberdade do ser humano. • Tal estrutura é irrenunciável pelo ser humano.

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• Consequências dessa estrutura humana geral: 1. Toda a humanidade está vinculada a Deus. Toda humanidade é, nesse sentido, Povo de Deus. 2. Nenhum de nós é a primeira pessoa a quem Deus se revela universalmente. Há um longo

passado de revelação universal, desde o primeiro coração que surgiu no universo. 3. O ser humano é tanto mais realizado e autêntico como ser humano quanto mais efetua

ou faz funcionar a sua estrutura de diálogo com Deus. 4. O ser humano é tanto mais realizado e autêntico como ser humano quanto mais

responde sim à proposta feita. • Leituras sugeridas:

RAHNER, Karl, Curso fundamental da fé, Introdução, item 3, subitens “A experiência transcendental” e “Saber atemático de Deus”, p. 33-36;

______, Curso fundamental da fé, seção 4, item 3 (“A oferta da autocomunicação como existencial sobrenatural”), p. 157-165;

______, Curso fundamental da fé, seção 5, item 6 (“Em busca de síntese do conceito de revelação”), p. 207-212.

TORRES QUEIRUGA, Andrés, A revelação de Deus na realização humana, capítulo 5 (“A revelação em seu acontecer originário”), itens 2 e 3 (“Apresentação global e direta” e “Caráter real da ação reveladora”), p. 142-159;

_____, A revelação de Deus na realização do homem, Epílogo (“Intuição de base e ideias fundamentais”), p. 407-419.

LIBANIO, João Batista, Teologia da revelação a partir da modernidade, capítulo 6 (“Revelação a partir da subjetividade”).

6.3 A revelação no cristianismo • O que significa

• O mesmo Deus que – de modo atemático na revelação universal – se manifesta como amor gratuito incriado, manifesta-se no cristianismo em modo refletido e tematizado. • Descrição teológica

• O termo revelação, no cristianismo, pode significar tanto o processo (decurso, sequência de fases, trajeto) como o objeto (aquilo que é mostrado) da revelação. 1) No sentido de processo, revelação significa o ato de Deus mostrar ou dar a descobrir si próprio. Trata-se de um itinerário plurissecular que se identifica com a origem do povo de Israel e que culminou em Jesus de Nazaré. Em tal processo, Deus mostrou do modo mais completo possível o que ele é. 2) No sentido de objeto, revelação significa alguém: a pessoa de Jesus Cristo. A revelação é Jesus de Nazaré. Por isso ele é chamado de Palavra de Deus.

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• Três formulações são clássicas na revelação cristã para sintetizar o Deus que se mostra ou se dá a descobrir:

“entranhas [...] de misericórdia” (“minhas entranhas se comovem [...], por ele transborda minha misericórdia”; Jr 31,20). Fórmula do Antigo Testamento, por vezes traduzida como “coração” e “ternura”;

“Abbá” (Mc 14,36; Rm 8,15; Gl 4,6): é uma palavra hebraica ou aramaica, inserida assim mesmo no meio do texto grego do Novo Testamento. Trata-se de uma forma familiar e íntima do termo pai, podendo ser traduzida como papai, painho ou paizinho. Jesus de Nazaré foi quem a utilizou pela primeira vez na relação com Deus;

“Deus é amor” (1Jo 4,8.16): fórmula utilizada por João para descrever o núcleo da mensagem revelativa da pessoa de Jesus Cristo.

• Essas três formulações sintéticas e clássicas são a chave para a descrição da atitude fundamental do Deus que se revela. Ao longo de toda a história da salvação acontecida em Israel e culminada em Jesus de Nazaré, Deus foi revelando sua atitude fundamental de dar de si próprio em benefício dos demais, sem condicionar tal gesto a alguma recompensa em troca. • Tal atitude pode ser ainda representada pela figura de “esvaziar-se a si próprio” (Fl 2,7): doar de si, para beneficiar os demais. Deus foi revelando gradualmente, até ela ficar escancarada, a extensão da sua capacidade de “esvaziar-se”, com “entranhas de misericórdia”, gratuitamente em benefício dos demais, sem tirar vantagem para si. • A descrição aprofundada dessa atitude fundamental do Deus que se revela será feita na parte 3 deste curso: “as etapas da revelação de Deus em Israel”. • Visão esquemática da revelação no cristianismo.

1) Da parte de quem propõe. • O autor da revelação é Deus • O objeto da revelação é Deus • A iniciativa da revelação é de Deus. Trata-se de um empreendimento que se realiza pela determinação de Deus. • O motivo da revelação é o divino amor gratuito, 100% livre. Deus se dá a descobrir por generosidade. Ao se determinar a revelar-se, Deus o faz sem obrigação e sem necessidade. • O contexto da revelação é o de violência. Deus, que é amor gratuito, se dá a descobrir numa história humana caracterizada pela violência. Os seres humanos que aí vivem não se encontram num estado neutro, mas encharcados dessa violência. • A finalidade da revelação é recompor as pessoas como imagem e semelhança do amor gratuito incriado, já que a real situação delas é a de uma imagem distorcida desse amor gratuito. Tal recomposição chama-se salvação. Retomando uma frase do livro do Levítico, assim a primeira carta de Pedro resumiu tal recomposição como imagem e semelhança do amor gratuito incriado:

Antes, como é santo aquele que os chamou, tornem-se também vocês santos em todo o seu comportamento, porque está escrito: “sejam santos, porque eu sou santo” (1Pd 1,15, cf. Lv 19,1-2).

Deus revela a si próprio;

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2) Da parte de quem responde. • A resposta humana à revelação feita por Deus no cristianismo é sempre secundária em relação à iniciativa divina. • A resposta humana consiste em aceitar ou rejeitar a iniciativa de Deus, ou seja, em entrar e perseverar, ou não, nesse processo de revelação. • A resposta de entrar e perseverar nesse diálogo se faz como ato de fé (fides qua) do sujeito na veracidade daquilo que é revelado. • Tal resposta, ou ato de fé, é:

contínua, é um processo;

trabalhosa, pois envolve conversão ou santificação.

• O ato de fé em Deus, mas sem conversão, não tem valor para a salvação:

“Não se salva quem, embora incorporado à Igreja, não persevera no amor e permanece no seio da Igreja com o corpo, mas não com o coração” (Lumen Gentium 14).

• Um livro recente comenta que o ato de fé em Deus, mas sem conversão, é pior do que o ateísmo. A obra é instigante porque lembra de que assim é o ato de fé dos demônios: reconhecem a existência de Deus, mas recusaram definitivamente qualquer santidade (cf. HADJADJ, Fabrice. La foi des démons ou l’athéisme dépassé. Paris: Salvator, 2009). • A revelação no cristianismo é um processo com um longo passado e com um vivo presente.

• O processo da revelação no cristianismo remonta ao início de Israel. É portanto um processo com um longo passado. • Esse longo passado da revelação no cristianismo se evidencia na Tradição e na Bíblia.

1) Tradição • Vimos (cf. p. 30) que a Tradição, em Teologia, é o imenso conjunto da autocomunicação de Deus: a) que aconteceu nas experiências de Deus do passado (no povo de Israel e na Igreja do tempo apostólico) MAIS ... b) aquela que aconteceu e acontece nas experiências de Deus posteriores, e atuais, feitas em comunhão com aquela revelação do passado. • Vimos também que, devido a esse segundo ponto, a Tradição é viva, e não como algo conservado reverentemente num museu.

2) Bíblia • A Tradição já acontecia séculos antes da Bíblia ser escrita, e gerou esta. • Era um oceano vivo de revelação que acontecia nas experiências de Deus. Este oceano vivo formou e gerou a Bíblia. • A Tradição portanto é a “mãe” da Bíblia. • Mas não só: podemos dizer também que a Tradição é irmã e filha da Bíblia. • A Tradição continuou enquanto a Bíblia estava sendo escrita (aproximadamente 1.000 a.C. a 90 d.C.). A revelação até Jesus Cristo, que aconteceu na experiência de Deus feita pelo Povo de Deus, foi expressa na Bíblia Nesse sentido, a Tradição é irmã e contemporânea da Bíblia.

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• Mas a Tradição não parou lá no ano 90 d.C, com o término da composição da Bíblia. • A Tradição continuou também depois da Bíblia estar acabada, e continua até hoje. A Bíblia passou a orientar o Povo de Deus, como parâmetro para aprofundar a Tradição que continuava acontecendo nas gerações sucessivas. Nesse sentido, a Tradição é também filha da Bíblia.

• A relação entre Bíblia e revelação.

• Na Bíblia, o metaconceito (o seu grande tema) que dá sentido a todas as afirmações daqueles livros é revelação. O grande tema da Biblia é a afirmação: “Deus está se revelando”. É claro que na Bíblia há muitos outros temas importantes. Todos eles, porém, são dependentes de tal metaconceito. É como, numa árvore, o tronco, os galhos e as folhas que dependem da raiz.

• No Antigo Testamento, o metaconceito revelação é sempre referido a Yahweh-Elohim, chamado de Adonai (o Senhor).

• No Novo Testamento, a intenção principal é referir esse metaconceito a Jesus de Nazaré. O Novo Testamento quer dizer que a progressividade da revelação em Israel manifestou tudo de

Deus em Jesus de Nazaré, que é o (Christós, Ungido) e o (Kýrios, Senhor). Jesus é o pleno revelador de Deus através da sua vida: gestos e palavras intimamente relacionados.

• Foi com o registro dessa plenitude da revelação que a Bíblia ficou pronta. Chamamos a Bíblia analogicamente de Palavra de Deus porque ela contém tal registro e é testemunha da revelação.

• Revelação completada em Cristo significa o fim da revelação? • O decreto Lamentabili de 1907 utilizou uma frase que ficaria famosa em Teologia: “[Condena-se:] A revelação que constitui o objeto da fé católica não ficou completa com os apóstolos” (DH 3421; cf. p. 88 da apostila). • Em base a essa afirmação do decreto Lamentabili, os tratados posteriores iriam criar e divulgar uma expressão que se tornaria famosa até hoje: “Com a morte do último apóstolo, houve a clausura (fechamento, término) da revelação”.

• A expressão “clausura da revelação” tem um sentido intencionado. Acontece com frequência, porém, que ela é compreendida em sentido equivocado. • Ela não quer dizer: “Nunca mais houve revelação de Deus”. • Tal compreensão é equivocada, pois é como que se estivesse proibindo a Deus, depois da morte do último apóstolo, de visitar, de dialogar e de se manifestar aos seres humanos. • Ela quer efetivamente dizer: “Nada mais de inédito será revelado sobre Deus”.

• O comentário mais oficial a esse respeito deu-se durante o concílio Vaticano II. A importante Comissão Doutrinal do concílio (órgão encarregado de examinar a ortodoxia de todos os documentos do mesmo) pronunciou-se do seguinte modo a respeito do número 4 da Dei Verbum, em 30 de setembro de 1964:

“Não se diz, porém, que a revelação está fechada com a morte dos apóstolos, [...] pois no texto [do número 4 da Dei Verbum] já está afirmado o sentido último do fato, que evidentemente a revelação se completou em Cristo” (“Non dicitur tamen revelatio esse clausa morte apostolorum, [...] dum in textu iam asseritur ultima ratio facti, nempe quod revelatio in Christo consumatur”; Acta synodalia sacrosancti concilii oecumenici Vaticani II, v. III, parte 3, p. 77).

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• Revelação fundamental e revelação dependente

Patriarcas, Moisés, ........ JN-apóstolos hoje 0% 100%

Profundidade Período A Período B da revelação

• No final do longo processo acontecido no período A, foi como se Deus dissesse: “Aqui vocês me conhecem 100%, plenamente” (“Filipe, quem me vê, vê o Pai”; Jo 14,9). • No período B, nunca se descobrirá algo inédito acerca de Deus, algo que já não tenha sido descoberto no período A. • Mas, em B, o que se descobre sobre Deus será novo para as novas gerações e as novas pessoas que vão nascendo, as quais o estão descobrindo pela primeira vez na vida delas. • Para as gerações do período B, a proposta é refazer a experiência com Deus em Jesus feita pela primeira comunidade cristã, até a máxima profundidade. • Para tais gerações:

ou se refaz a experiência de Deus no ressuscitado Jesus de Nazaré

ou a revelação em A será só coisa do passado. • Condição de possibilidade para essa experiência no período B: que a plenitude da revelação (Jesus de Nazaré) esteja ressuscitado e presente. • Na experiência de Deus no ressuscitado Jesus de Nazaré, a natureza humana não é “arrancada fora”. Tampouco, para atingir Deus em Jesus, são necessários êxtases ou acontecimentos fantásticos. • Tal experiência envolve uma relação dialogal constante, oração. • Tal experiência envolve a conversão ou santificação = adoção da mesma atitude fundamental de Jesus de Nazaré (amor gratuito, ou “esvaziar a si próprio”, fazendo-se pequeno). Em outras palavras, envolve tornar-se mais “imagem e semelhança” de Deus que se revelou plenamente nele, Jesus.

Antes, como é santo aquele que os chamou, tornem-se também vocês santos em todo o seu comportamento, porque está escrito: “sejam santos, porque eu sou santo” (1Pd 1,15, cf. Lv 19,1-2).

• Um esquema sintético dessa atitude fundamental de Jesus é:

- “ajoelhar-se” (no sentido de fazer-se pequeno, de aproximar-se daquilo que é pequeno) para dar da própria vida em benefício desse que são pequenos (ser alimento, eucaristia);

- considerar-se pequenino, e não “o tal” (humildade); - admirar os demais, sem o peso de condená-los; - descobrir o bem naquele que errou = viver a misericórdia; - agradecer pelas coisas recebidas, e relativizar o negativo.

linha do tempo

± 90-100d.C

“esvaziar a si próprio”

(,kénosis, esvaziamento, cf.

Fl 2,1-11)

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• Refazer essa experiência com Deus em Jesus de Nazaré é condição de credibilidade para os cristãos do período B (= para a Igreja do tempo pós-apostólico). • Uma frase de santo Atanásio de Alexandria:

“Devido ao que parece baixeza do Verbo, você terá uma religiosidade maior e mais rica” (De incarnatione I,15-17, in Sources Chrétiennes vol. 199, p. 261)

• A pedagogia de Deus ao longo de todo o processo da revelação

• Ver em Deus a atitude fundamental da kénosis traz consequências relevantes para compreender a pedagogia divina ao longo do processo de revelação. • A pedagogia empregada pelo Deus quenótico no processo da sua revelação fez com que fossem incluídas coisas imperfeitas e transitórias na Bíblia (cf. DV 15). • A pedagogia usada por Deus na sua revelação:

Não foi absolutista, no sentido de uma majestade que, com asco, se distancia do erro, da imperfeição, da limitação. Tal majestade seria altiva, arrogante.

Foi movida por entranhas de misericórdia; com amor gratuito, Deus se aproxima do erro, da imperfeição, da limitação. Em Deus, sua grandeza, sua excelência, é amorosamente humilde, no sentido que Deus se ajoelha com carinho e misericórdia para junto do que é limitado, pequeno e imperfeito.

• As passagens bíblicas com as coisas imperfeitas e transitórias têm sua interpretação fundamentalmente alterada de acordo com a consideração ou não de tal pedagogia da revelação:

Bíblia

• A universalidade da revelação no cristianismo

• A revelação no cristianismo é também universal, no sentido que é dirigida a todos os seres humanos. Nesse sentido o decreto Ad Gentes do Vaticano II afirma:

“Cristo e a Igreja que dele dá testemunho pela pregação evangélica transcendem todos os particularismos de estirpe ou de nação e, por isso, não podem ser considerados estranhos a ninguém e em nenhuma parte” (AG 8).

nível superficial de leitura: a “coisa imperfeita e transitória” é levada ao pé da letra (interpretação baseada numa imagem de um Deus absolutista e arrogante ao qual a imperfeição causa repugnância)

nível aprofundado de leitura: a presença da “coisa imperfeita e transitória” é compreendida como característica da pedagogia do Deus misericordioso que se ajoelha e assume o que é limitado e imperfeito.

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• Antes, falamos da revelação universal. Agora afirmamos também a universalidade da revelação no cristianismo. Elas são porém universais não no mesmo sentido:

para a revelação universal acontecer hoje, bastam Deus e o sujeito;

para que a revelação no cristianismo aconteça hoje, os demais cristãos são necessários porque a presença universal do ressuscitado só pode ser conhecida através da atividade missionária destes (da Igreja). Os cristãos são como que as “mãos” e os “pés” do ressuscitado no tempo presente.

• A revelação no cristianismo é universal através:

da presença universal do ressuscitado (Mt 28,20: “Estou com vocês todos os dias, até a consumação dos séculos”);

da atividade missionária dos cristãos (Mt, 28,19: “Vão, e façam que todas as nações se tornem discípulos”; Mc 16,15: “Vão por todo o mundo e proclamem o Evangelho”).

• A importância da Igreja

• No período B, ninguém vai adivinhar o que Jesus de Nazaré fez e o que ele é:

“O enigma do homem só se esclarece verdadeiramente no mistério da Palavra encarnada. [...] Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime. [...] „Imagem de Deus invisível‟ (Cl 1,15), ele é o homem perfeito que restitui aos filhos de Adão semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado. Já que nele a natureza humana foi assumida, e não destruída, por isso mesmo também em nós foi ela elevada a sublime dignidade. Porque, pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado” (GS 22).

• Como ninguém irá adivinhar o que Jesus de Nazaré fez e é, a Igreja é necessária. Os cristãos são como que os “pés e mãos” que o ressuscitado dispõe hoje para trabalhar:

“A atividade missionária da Igreja não é outra coisa, nem mais nem menos, que a manifestação ou epifania dos desígnios de Deus e a sua realização no mundo e na sua história, na qual Deus, pela missão, manifestamente vai tecendo a história da salvação” (AG 9).

• Nesse trabalho, a atividade missionária da Igreja mostra também ao ser humano o que este é:

“Ao dar a conhecer Cristo, a Igreja revela aos homens a genuína verdade da condição destes e da sua integral vocação, pois Cristo é o princípio e o modelo da humanidade renovada e imbuída de fraterno amor, sinceridade e espírito de paz, à qual todos aspiram” (AG 8).

• A atividade missionária da Igreja não é só falar oralmente de Jesus Cristo. O seu falar se faz também (e principalmente) assumindo a mesma atitude dele (= amor gratuito, “esvaziar a si próprio”).

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• A atividade missionária da Igreja só terá credibilidade no anúncio se assumir aquela atitude de Jesus Cristo:

refazendo a experiência com Deus em Jesus ressuscitado;

e tornando-se mais “imagem e semelhança” do Deus que se revelou plenamente em Jesus de Nazaré.

“O cristão, tornado conforme à imagem do Filho que é o primogênito entre a multidão dos irmãos, recebe „as primícias do Espírito‟ (Rm 8,23) que o tornam capaz de cumprir a lei nova do amor. [...] É verdade que para o cristão, é uma necessidade e um dever lutar contra o mal através de muitas tribulações, e sofrer a morte; mas, associado ao mistério pascal, e configurado à morte de Cristo, vai ao encontro da ressurreição, fortalecido pela esperança. [...] E assim, por Cristo e em Cristo, esclarece-se o enigma da dor e da morte, o qual, fora do Seu Evangelho, nos esmaga. Cristo ressuscitou, destruindo a morte com a própria morte, e deu-nos a vida, para que, tornados filhos no Filho, exclamemos no Espírito: Abbá, Pai” (GS 22).

• “Para que anunciar o Evangelho, uma vez que toda a gente é salva pela retidão do coração?” (PAULO 6o. Exortação apostólica Evangelii Nuntiandi, n. 80)

• O papa Paulo 6o, na exortação Evangelii Nuntiandi de 1975, tece alguns comentários muito atuais, que são expostos a seguir. • Muitos dos que deviam evangelizar experimentam, na verdade, desinteresse por esse trabalho. Algumas desculpas são particularmente enganosas, como por exemplo: 1) “Impor a verdade do Evangelho atenta contra a liberdade religiosa”; 2) “Para que anunciar o Evangelho, uma vez que toda a gente é salva pela retidão do coração?”; 3) “É ilusão pretender levar o Evangelho ao mundo e à história, que estão cheios das sementes da

Palavra. O Evangelho já se encontra aí, nessas sementes que o próprio Deus lançou”. • Sobre 1. Paulo 6o expõe que seria certamente um erro impor qualquer coisa à consciência das pessoas. Evangelizar, entretanto, não é impor, mas propor. Evangelizar é propor à consciência das pessoas a verdade evangélica e a salvação em Jesus Cristo. Tal proposta é feita com todo o respeito pelas opções livres que essa consciência fará, sem nenhuma pressão, sem nenhuma coerção, sem persuasões desonestas e sem a sedução por estímulos duvidosos. Feita com esse respeito pelas opções livres da consciência, a evangelização é uma homenagem, e não um atentado, à liberdade religiosa. Paulo 6o pergunta: “Será um crime contra a liberdade do outro a proclamação com alegria da Boa Nova que se recebeu primeiro pela misericórdia do Senhor?” • Por que só o consumismo, a mentira, a degradação e a pornografia teriam o direito de serem propostos insistentemente pela propaganda generalizada dos meios de comunicação? • Sobre 2. Paulo 6o comenta que, se não anunciarmos o Evangelho, os seres humanos certamente poderão salvar-se por outras vias, graças à misericórdia de Deus. Deus pode sem dúvida realizar essa salvação por vias extraordinárias que somente Ele conhece. • O problema é a nossa salvação. Se deixarmos de evangelizar por negligência, medo ou vergonha, ou por seguirmos ideias falsas, será que poderemos nos salvar? Poderemos nos salvar se incorrermos naquilo que o apóstolo Paulo chama de vergonha do Evangelho (Rm 1,16), e por causa dela nos omitirmos de o anunciar? • Pela vida, pelos gestos e palavras de Cristo, Deus veio precisamente nos revelar os caminhos ordinários da salvação. Ele nos ordenou, com sua própria autoridade, transmitir aos outros essa revelação.

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• Sobre 3. Paulo 6o comenta que é necessário fazer germinar tais sementes. É necessário fazer com que essas sementes tornem-se árvores e que produzam por sua vez frutos. Tal germinação se faz precisamente como decorrência do trabalho de evangelização. • O anúncio do Evangelho, que faz a semente germinar, mais do que um direito, é um dever do evangelizador. É também um direito dos seres humanos que só tem disponíveis as sementes receber o anúncio da Boa Nova da salvação, que tem o poder de germiná-las. • Paulo 6o acrescenta ainda o seguinte comentário:

“Conservemos o fervor do espírito, portanto. Conservemos a suave e reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando for preciso semear com lágrimas. Que isto constitua para nós, como para João Batista, para Pedro e para Paulo, para os outros apóstolos e para uma multidão de admiráveis evangelizadores no decurso da história da Igreja, um impulso interior que ninguém nem nada possam extinguir. Que isto constitua, ainda, a grande alegria das nossas vidas consagradas. E que o mundo do nosso tempo, que procura ora na angústia, ora com esperança, possa receber a Boa Notícia dos lábios não de evangelizadores abatidos ou desesperançados, nem tomados pela impaciência ou angústia, mas sim de ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram quem recebeu primeiro em si a alegria de Cristo, e são aqueles que aceitaram arriscar a sua própria vida para que o reino seja anunciado e a Igreja seja implantada no meio do mundo” (PAULO 6o. Exortação apostólica Evangelii Nuntiandi, n. 80).

6.4 A revelação nas religiões em geral

• Textos conciliares básicos

“Finalmente, aqueles que ainda não receberam o Evangelho estão de uma forma ou outra orientados para o Povo de Deus. Em primeiro lugar, aquele povo que recebeu a aliança e as promessas, e do qual nasceu Cristo segundo a carne [...]. Mas o desígnio da salvação estende-se também àqueles que reconhecem o Criador, entre os quais vêm em primeiro lugar os muçulmanos, que professam seguir a fé de Abraão, e conosco adoram o Deus único e misericordioso, que há de julgar os homens no último dia. E o mesmo Senhor nem sequer está longe daqueles que buscam, na sombra e em imagens, o Deus que ainda desconhecem; já que é Ele quem a todos dá vida, respiração e tudo o mais (cf. At 17,25-28) e, como Salvador, quer que todos os homens se salvem (cf. 1Tim 2,4). Com efeito, aqueles que, ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo e a Sua Igreja, procuram, contudo, a Deus com coração sincero, e se esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo ditame da consciência, também eles podem alcançar a salvação eterna. Nem a divina Providência nega os auxílios necessários à salvação àqueles que, sem culpa, não chegaram ainda ao conhecimento explícito de Deus e se esforçam, não sem o auxílio da graça, por levar uma vida reta. Tudo o que de bom e verdadeiro neles há, é considerado pela Igreja como preparação para receberem o Evangelho, dado por Aquele que ilumina todos os homens, para que possuam finalmente a vida” (LG 16).

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“Hoje, quando o gênero humano se torna cada vez mais unido e aumentam as relações entre os vários povos, a Igreja considera mais atentamente qual a sua relação com as religiões não cristãs. Na sua função de fomentar a união e a caridade entre os homens e até entre os povos, considera primeiramente tudo aquilo que os homens têm de comum e os leva à convivência. Com efeito, os homens constituem todos uma só comunidade; todos têm a mesma origem, pois foi Deus quem fez habitar em toda a terra o inteiro gênero humano; têm também todos um só fim último: Deus, que a todos estende a sua providência, seus testemunhos de bondade e seus desígnios de salvação até que os eleitos se reúnam na cidade santa, iluminada pela glória de Deus e onde todos os povos caminharão na sua luz. Os homens esperam das diversas religiões resposta para os enigmas da condição humana, os quais, hoje como ontem, profundamente preocupam seus corações: que é o homem? Qual o sentido e a finalidade da vida? Que é o pecado? De onde provém o sofrimento, e para que serve? Qual o caminho para alcançar a felicidade verdadeira? Que é a morte, o juízo e a retribuição depois da morte? Finalmente, que mistério último e inefável envolve a nossa existência, do qual vimos e para onde vamos? Desde os tempos mais remotos até aos nossos dias, encontra-se nos diversos povos certa percepção daquela força oculta presente no curso das coisas e acontecimentos humanos; encontra-se por vezes até o conhecimento da divindade suprema ou mesmo de Deus Pai. Percepção e conhecimento estes que penetram as suas vidas de profundo sentido religioso. [...] As outras religiões que existem no mundo procuram de vários modos ir ao encontro das inquietações do coração humano, propondo caminhos, isto é, doutrinas e normas de vida e também ritos sagrados. A Igreja Católica nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe, todavia, refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens. No entanto, ela anuncia, e tem mesmo obrigação de anunciar incessantemente Cristo, „caminho, verdade e vida‟ (Jo 14,6), em quem os homens encontram a plenitude da vida religiosa e no qual Deus reconciliou consigo todas as coisas. Exorta, por isso, os seus filhos a que, com prudência e caridade, pelo diálogo e colaboração com os seguidores de outras religiões, dando testemunho da vida e fé cristãs, reconheçam, conservem e promovam os bens espirituais e morais e os valores sócio-culturais que entre eles se encontram” (NA 1-2).

• O que significa

• Acontece uma manifestação efetiva de Deus no cristianismo não católico e nas religiões não cristãs. • Descrição teológica

• O Espírito Santo (= Deus) propõe universalmente, em todo coração humano, a atitude gratuita de doar humildemente a própria vida aos demais. • Ao longo da história das civilizações, essa voz que se faz sentir na intimidade ou pressão do Espírito Santo aflorou e foi acolhida na vida de incontáveis pessoas e comunidades. • Tendo aí aflorado, ela foi várias vezes tematizada, objetivada e refletida de muitas e diversas maneiras tanto cristãs como não cristãs. • Tais tematizações e reflexões são, principalmente, as religiões (sendo as religiões, evidentemente, muito mais do que isso).

• Alguns autores da Patrística usaram a expressão (lógos spermatikós; em latim se usa a forma plural, semina Verbi, assim como em português, sementes da Palavra ou sementes do Verbo) para se referir à ação de Deus fora da revelação em Israel (cf. p. 58).

• Nos primeiros séculos do cristianismo, essa figura do era aplicada à filosofia pagã grega. Esta era considerada etapa prévia que havia preparado os pagãos para a revelação plena em Jesus Cristo.

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• Sementes da Palavra é uma expressão que se tornou famosa em Teologia, sendo aí frequente até hoje. Com as palavras de João Paulo 2o:

“É o Espírito que infunde as sementes da Palavra, presentes nos ritos e nas culturas, e as faz maturar em Cristo. [...] Tudo quanto o Espírito opera no coração dos homens e na história dos povos, nas culturas e religiões, assume um papel de preparação evangélica, e não pode deixar de se referir a Cristo. [...] Este Espírito é o mesmo que agiu na encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus, e atua na Igreja” (JOÃO PAULO 2O, encíclica Redemptoris Missio 28-29).

• Neste curso, usaremos a expressão etapas prévias com a mesma intenção da figura do

. Etapas prévias equivale também à expressão preparação evangélica usada por João Paulo 2o. • O que há de verdadeiramente revelado sobre Deus nas religiões em geral é uma etapa prévia, uma via válida, para encaminhar à profundidade máxima da revelação ocorrida em Jesus de Nazaré. • Assim como na revelação cristã que se encontra no Antigo Testamento, tais etapas prévias não cristãs têm também coisas imperfeitas e transitórias. Podem ser dados alguns exemplos. • Nas religiões tradicionais africanas e no hinduísmo: o politeísmo; • No budismo: a impessoalidade da meta última, o nirvana, concebido como um estado de total ausência de sentimentos e de sensações, incluindo aí o amor e a misericórdia; • No Islã:

a monopessoalidade do Deus único;

a exclusão do amor em Deus antes da criação do universo;

o castigo e a punição divina aos criminosos, inimigos e infiéis;

a recusa da encarnação de Deus;

o rebaixamento de Jesus Cristo de Deus a profeta;

a privação da consciência do profeta que recebeu a revelação divina. • Assim como as coisas imperfeitas e transitórias da revelação no cristianismo ficam à mostra à luz da plenitude da revelação de Deus acontecida em Jesus de Nazaré, é à luz dessa mesma plenitude da revelação divina que as coisas imperfeitas e transitórias das demais religiões se evidenciam:

“Tudo o que de verdade e de graça se encontrava já entre os gentios como uma secreta presença de Deus, expurga-o de contaminações prejudiciais e restitui-o ao seu autor, Cristo [...]. O que de bom há no coração e no espírito dos homens ou nos ritos e culturas próprias dos povos, não só não se perde, mas é purificado, elevado e consumado para glória de Deus, confusão do demônio e felicidade do homem” (AG 9).

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• O diálogo inter-religioso.

• A iniciativa do diálogo entre as religiões parte em geral da Igreja Católica, impulsionada pelo concílio Vaticano 2o. Isso é algo relativamente novo na história. • Como é possível o diálogo entre religiões tão diferentes? A exposição seguinte é tirada de: MIDWEST DIALOGUE OF CATHOLICS AND MUSLIMS. Revelation: Catholic and Muslim perspectives. Washington: United States Conference of Catholic Bishops, 2005, p. 1-2. • No uso comum, a palavra diálogo tem várias acepções. Algumas delas não se aplicam ao diálogo inter-religioso. Eis os sentidos que devem ser excluídos:

negociação entre grupos que estão em desavença;

negociação na qual dois lados tentam chegar a um termo de compromisso, a um acordo no qual cada um cede um pouco com o intuito de atingir um ponto benéfico para ambos;

conversa na qual um dos lados entra para corrigir uma situação problemática, fazendo um desabafo no qual coloca finalmente para fora aquilo que, no outro, o está aborrecendo;

tentativa de combinar dois grupos de opiniões num só, harmonizando as diferenças que porventura aparecerem como inconciliáveis;

• O que implica o diálogo inter-religioso?

engajamento com a verdade;

respeito à liberdade de consciência;

com respeito e cuidadosa atenção àqueles que não compartilham da sua fé, fala-se daquilo que acredita ser verdadeiro;

com o mesmo respeito e cuidadosa atenção, escuta-se o que o outro fala daquilo que acredita ser verdadeiro (em geral escuta-se mais do que se fala);

uma espécie de clima de retiro espiritual, no qual os participantes compartilham suas orações e atendem-se mutuamente no desejo comum de compreender a revelação divina;

não se tenta minimizar ou provar as diferenças doutrinais de cada lado;

concordar em ser chamado por Deus para tal diálogo, para juntos tentar encontrar a vontade divina.

• Em tal diálogo, será fundamental a vivência do amor gratuito (= humildade e doação de vida aos demais, ou, em linguagem cristã, a kénosis) por parte dos dialogantes. Só com essa atitude será possível descobrir a verdade e o bem presentes no outro. • Segundo Andrés Torres Queiruga, o diálogo entre as religiões não deve se apoiar no grau de excelência de cada religião, mas sim no objeto revelado: Deus. • No nosso caso, é importante ter claro que a plenitude da revelação é Jesus Cristo, e não a Igreja Católica.

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• Leituras sugeridas:

O‟COLLINS, Gerald, Teologia fundamental, capítulo 4 (“Cristãos e não cristãos”);

SESBOÜÉ, Bernard, História dos dogmas. IV. A palavra da salvação (séculos XVIII-XX). Capítulo 14 (“A Igreja Católica e „os outros‟ ”), subcapítulo 2 (“A declaração Nostra Aetate sobre as religiões não cristãs”), p. 473-489.

TORRES QUEIRUGA, Andrés, A revelação de Deus na realização humana, capítulo 1 (“Concepção tradicional de revelação”), item 2 (“O lugar real da revelação”), p. 20-29;

_____, A revelação de Deus na realização humana, capítulo 7 (“Universalidade da religião cristã”), item 5 (“A universalidade no encontro com as religiões e a cultura”), p. 340-353.

LIBANIO, João Batista, Teologia da revelação a partir da modernidade, capítulo 9 (“A revelação na criação e nas religiões”), item 2 (“Deus nas religiões” e “Conclusão”), p. 266-282.

RAHNER, Karl, Curso fundamental da fé, seção 5, item 4 (“Sobre a relação entre a história da revelação transcendental geral e a história da revelação categorial especial”), subitens 3 e 4 (“Possibilidade da revelação fora do Antigo e do Novo Testamento” e “Jesus Cristo como critério de discernimento”), p. 191-193.