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APOSTILA PSICOLOGIA ESCOLAR
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APOSTILA PSICOLOGIA ESCOLAR
Sumário 1. Relações entre Psicologia e Educação no Brasil: uma breve história 2
2. A construção da relação psicologia-educação 13
3. Psicologia escolar como campo de atuação 16
4. O psicólogo escolar clínico 20
5. Em que dimensões se inserem as novas perspectivas em Psicologia Escolar e Educacional? 24
6. Cotidiano escolar: o objeto para o psicólogo escolar 25
7. Compromissos e Perspectivas para a Psicologia Escolar e Educacional 31
8. Estatuto da Psicologia Escolar e Educacional: alguns pressupostos 36
Referências 39
1. Relações entre Psicologia e Educação no Brasil: uma breve história
A história da Psicologia Escolar e Educacional no Brasil pode ser
identificada desde os tempos coloniais, quando preocupações com
a educação e a pedagogia traziam em seu bojo elaborações sobre
o fenômeno psicológico. Massimi (1986; 1990), ao estudar obras
produzidas no período colonial, no âmbito da filosofia, moral,
educação e medicina, entre outras, identifica temas como:
aprendizagem, desenvolvimento, função da família, motivação,
papel dos jogos, controle e manipulação do comportamento,
formação da personalidade, educação dos indígenas e da mulher,
entre outros temas que, mais tarde, tornaram-se objetos de estudo
ou campos de ação da psicologia. É importante destacar que a
maioria desses escritos estava comprometida com os interesses
metropolitanos e expressava as mazelas de sua dominação na
colônia. Entretanto, há contradições, sendo que algumas dessas
obras assumiram posições que se opunham aos ideais da
metrópole, como a defesa da educação feminina, entre outras. Além
disso, várias obras não apenas trataram de temas que viriam a ser
próprios da psicologia, mas os trataram de maneira bastante
original, antecipando formulações que viriam a ser incorporadas
pela psicologia do século XX.
No século XIX, ideias psicológicas articuladas à educação foram
também produzidas no interior de outras áreas de conhecimento,
embora de maneira mais institucionalizada. No campo da
pedagogia, escolas normais (criadas a partir da década de 1830)
foram espaços de discussão, ainda que incipientes e pouco
sistemáticos, sobre a criança e seu processo educativo, incluindo
temas como aprendizagem, desenvolvimento, ensino e outros. Em
meados do século, essa preocupação torna-se mais sistemática e
frequente e, nos anos finais desse mesmo século, é possível
perceber a incorporação de conteúdos que mais tarde viriam a ser
considerados como objetos próprios da psicologia educacional, com
particular interesse por temas anteriormente estudados, como
aprendizagem e desenvolvimento, mas também por outros que já
seriam considerados expressões da psicologia do século XX, como
a inteligência, por exemplo. Deve-se destacar, no âmbito oficial, a
Reforma Benjamin Constant, de 1890, que transformou a disciplina
filosofia em psicologia e lógica, que, por desdobramento, gerou
mais tarde a disciplina pedagogia e psicologia para o ensino normal.
Data dessa época a introdução, ainda que assistemática e pontual,
do ideário escolanovista, que só mais tarde viria a se tornar
hegemônico no pensamento pedagógico e teria na psicologia seu
principal fundamento científico.
Os anos finais do século XIX e os primeiros anos do século
seguinte trazem mudanças profundas na sociedade brasileira:
fortalecimento do pensamento liberal; busca da "modernidade"; luta
contra a hegemonia do modelo agrário-exportador, em direção ao
processo de industrialização. Essas novas ideias traziam em seu
bojo um novo projeto de sociedade, que exigia uma transformação
radical da estrutura e da superestrutura social, para o qual seria
necessário um novo homem, cabendo à educação
responsabilizar-se por sua formação.
Nesse contexto, o debate sobre a educação tomou vulto, com a
defesa da difusão da escolaridade para a massa da população e
uma maior sistematização das ideias pedagógicas, com crescente
influência dos princípios da Escola Nova. Assim, as escolas normais
passaram a ser o principal centro de propagação das novas ideias,
baseadas nos princípios escolanovistas, com vistas à formação dos
novos professores, encarregando-se do ensino, da produção de
obras e do início da preocupação com a produção de
conhecimentos por meio dos então inaugurados laboratórios de
psicologia, fatores estes que deram as bases para as reformas
estaduais de ensino promovidas nos anos 1920 e foram por estas
potencializados.
Foi nesse quadro que ocorreu, paulatinamente, a conquista de
autonomia da psicologia como área especifica de conhecimento no
Brasil, deixando de ser produzida no interior de outras áreas do
saber, sendo reconhecida como ciência autônoma e dando as
condições para que, por essa via, penetrassem os conhecimentos
da psicologia que vinham sendo produzidos na Europa e nos
Estados Unidos.
Assim, percebe-se uma interdependência entre psicologia e
educação, sobretudo pela via da pedagogia, a partir da articulação
entre saberes teóricos e prática pedagógica. Pode-se afirmar que o
processo pelo qual a psicologia conquistou sua autonomia como
área de saber e o incremento do debate educacional e pedagógico
nas primeiras décadas do século XX estão intimamente
relacionados, de tal maneira que é possível afirmar que psicologia e
educação são, historicamente, no Brasil, mutuamente constituintes
uma da outra. Esse momento foi responsável pela consolidação da
articulação entre psicologia e educação, dando as bases para a
penetração e a consolidação daquilo que nos Estados Unidos e
Europa já se desenvolvia sob a denominação de psicologia
educacional.
O período seguinte, a partir da década de 1930, caracteriza-se pela
consolidação da psicologia no Brasil e tem como base a estreita
relação estabelecida entre essa área e a educação. Os campos de
atuação da psicologia que se desenvolveram a partir dessa época,
tornando-se campos tradicionais da profissão, como a atuação
clínica e a intervenção sobre a organização do trabalho, tiveram
suas raízes na educação, respectivamente pela criação dos
Serviços de Orientação Infantil nas Diretorias de Educação do Rio
de Janeiro e de São Paulo e da Clínica do Instituto Sedes
Sapientiae, com a finalidade de atender crianças com dificuldades
escolares, e pela Orientação Profissional, dentre outras ações
educacionais, no campo do trabalho.
Ao mesmo tempo, o ensino formal de psicologia em cursos
superiores tinha estreita articulação com a educação, pois as
cátedras de psicologia estavam vinculadas primordialmente aos
cursos de filosofia e de pedagogia, nestes últimos sob a
denominação de psicologia educacional.
Muitos foram os trabalhos realizados pela psicologia no âmbito da
educação, dentre os quais: Serviço de Psicologia Aplicada do
Instituto Pedagógico da Diretoria de Ensino de São Paulo;
Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais e, posteriormente,
Sociedade Pestalozzi do Brasil; "Escola para Anormais" em Recife;
atividades realizadas no INEP, particularmente com a utilização de
testes psicológicos; a criação das Clínicas de Orientação Infantil; o
trabalho desenvolvido por Helena Antipoff na Escola de
Aperfeiçoamento de Professores e na Fazenda do Rosário; Instituto
de Seleção e Orientação Profissional - ISOP-FGV; além dos
trabalhos desenvolvidos por Ana Maria Poppovic com "crianças
abandonadas" no Abrigo Social de Menores da Secretaria de
Bem-Estar Social do Município de São Paulo; a fundação do
Instituto de Psicologia da PUCSP, oferecendo serviços de medidas
escolares, pedagogia terapêutica e orientação psicopedagógica;
além das muitas instituições estritamente educacionais que
desenvolviam trabalhos relacionados à Psicologia.
Pode-se dizer que a Educação continuou sendo a base para o
desenvolvimento da psicologia, assim como esta permaneceu como
principal fundamento para a educação, particularmente no âmbito
pedagógico, como sustentação teórica da Didática e da Metodologia
de Ensino, bases para a formação de professores. Essa tendência
se expressa em experiências realizadas pela Escola Experimental
da Lapa e pelos Ginásios Vocacionais em São Paulo, dentre outras
inúmeras experiências, realizadas em todo o país.
Concomitantemente, o ensino nas Escolas Normais e nos Cursos
de Pedagogia continuavam dando à Psicologia espaço privilegiado
em seus currículos.
O desenvolvimento da pesquisa também ganha impulso, tendo
como referência algumas instituições, como o Instituto de Educação
do Rio de Janeiro; Escola de Aperfeiçoamento de Professores de
Belo Horizonte; Instituto de Seleção e Orientação Profissional de
Recife; Laboratório de Psicologia Educacional do Instituto de
Educação (evolução do Instituto Pedagógico de São Paulo); Núcleo
de Pesquisas Educacionais da Municipalidade do Rio de Janeiro;
Instituto Nacional de Surdos-mudos e o Centro Brasileiro de
Pesquisas Educacionais - CBPE - e seus correlatos, os Centros
Regionais de Pesquisas Educacionais - CRPE; além da produção
de escolas normais e universidades.
Nesse contexto, começam a se diferenciar, ainda que de forma não
sistemática e formal, a psicologia educacional, como conjunto de
saberes que pretende explicar e subsidiar a prática pedagógica,
sendo, portanto, de domínio necessário para todos os educadores,
e a psicologia escolar, como campo de atuação de profissionais da
psicologia que atuariam no âmbito da escola, desempenhando uma
função especifica, alicerçada na psicologia e que se caracterizou
inicialmente por adotar o modelo clínico de intervenção.
Embora contradições possam ser apontadas, revelando produções
teóricas e práticas afinadas com a construção de uma escola
comprometida com a aprendizagem e o desenvolvimento de seus
alunos, particularmente aqueles oriundos das camadas populares, o
papel que a psicologia desempenhou na educação tornou-se objeto
de crítica. A utilização e a interpretação indiscriminadas e
aligeiradas de teorias e técnicas psicológicas, como os testes
(principalmente os de nível mental e de prontidão); a
responsabilização da criança e de sua família, em nome de
problemas ditos de "ordem emocional", para justificar o
desempenho do aluno na escola e a redução dos processos
pedagógicos aos fatores de natureza psicológica colaboraram para
interpretações e práticas no mínimo equivocadas, desprezando o
processo educativo como totalidade multideterminada, relegando a
segundo plano, ou omitindo, fatores de natureza histórica, social,
cultural, política, econômica e, sobretudo, pedagógica na
determinação do processo educativo.
Esse processo culmina, em 1962, com a regulamentação da
profissão de psicólogo e o estabelecimento de cursos específicos
para sua formação. As ações desenvolvidas no período anterior
deram as bases para os campos tradicionais de atuação da
psicologia: educação, clínica e trabalho.
Um fato interessante a ser mencionado é que, justamente com a
regulamentação da profissão, o campo da educação, antes base
principal para o desenvolvimento da psicologia no Brasil, torna-se
secundário para os profissionais da área. Isso se revela não apenas
no âmbito curricular, mas, sobretudo, na preferência de alunos e
profissionais pelos campos da clínica e da organização do trabalho.
Esse é também um dos fatores explicativos para a adoção de uma
modalidade clínico-terapêutica na ação da psicologia escolar, tendo
como base o modelo médico, questão que será discutida adiante.
Entretanto, as relações entre educação e psicologia vão se
diferenciando. De um lado, a área da psicologia educacional, foco
de interesse tanto de pedagogos como de psicólogos, e, de outro, o
campo da psicologia escolar, como atributo específico do
profissional da psicologia que atua no espaço escolar. O
conhecimento psicológico estava incorporado à Pedagogia e à
prática dos educadores e a atuação do psicólogo escolar adotava
um modelo cada vez mais clínico-terapêutico, agindo fora da sala
de aula, focando sua atenção na dimensão individual do educando
e em seus "problemas", atendendo, sobretudo, demandas
específicas da escola, que encaminhava as crianças que tinham, a
seu ver, "problemas de aprendizagem" ou outras manifestações
consideradas como "distúrbios" inerentes ao próprio educando.
Pode-se falar que esse período herdou do período anterior o que
pode ser interpretado como hipertrofia da psicologia na educação,
numa tendência reducionista, que passou, na década de 1970, a
ser criticada tanto por pedagogos como por psicólogos. Criticava-se
a utilização dos testes e a interpretação de seus resultados, que
atribuía ao aluno a determinação de seus "problemas",
desconsiderando as condições pedagógicas; o encaminhamento de
alunos com deficiência que, sob a justificativa de lhes proporcionar
uma "educação especial", relegava-os a condições aligeiradas de
ensino e sem solução de continuidade, reforçando estigmas e
preconceitos e produzindo social e pedagogicamente a deficiência
intelectual; as interpretações e ações supostamente fundamentadas
na psicologia, por educadores e psicólogos, calcadas em fatores
como: atraso no desenvolvimento, distúrbios de atenção, motores
ou emocionais (estes em geral relacionados estritamente às
condições intrínsecas da criança ou da família). Uma das
consequências apontadas por essas críticas era a desconsideração
dos determinantes de natureza social, cultural, econômica e,
sobretudo, pedagógica; daí falar-se em reducionismo.
Alguns psicólogos escolares e pesquisadores da área começaram,
nessa época, a elaborar uma crítica radical à Psicologia Escolar e
Educacional, com base em argumentos semelhantes aos apontados
por pedagogos e educadores em geral. De um lado, criticava-se a já
apontada hipertrofia da psicologia na educação e o reducionismo
dos fatores educacionais e pedagógicos às interpretações
psicologizantes. Por outro lado, enfocando mais especificamente a
prática da psicologia escolar e aprofundando a crítica a seu modo
de ação, avançavam para a demonstração de que o
enquadramento clínico-terapêutico baseava-se num modelo
médico, estranho às determinações pedagógicas, que tendia a
patologizar e individualizar o processo educativo, distanciando-se
da compreensão efetiva dos determinantes desse processo e
desconsiderando ações então denominadas preventivas, que
deveriam voltar-se para as condições mais propriamente
pedagógicas, de forma a atuar mais coletivamente, com base
naquilo que hoje seria denominado de interdisciplinaridade, com os
demais profissionais da educação e da escola. Alguns dos focos
possíveis de atuação eram apontados, naquela época, em direção à
formação de professores, à intervenção no âmbito das relações
escola-família-comunidade, ao processo grupal estabelecido na
instituição escolar, dentre outros. Particular preocupação entre
psicólogos escolares incidia sobre os índices de reprovação na
então 1ª. série do 1º. Grau, que mostravam que mais da metade
dos alunos ficava retida nessa série, muitas vezes na condição de
alunos multirrepetentes, culminando com o abandono da escola,
processo este que atingia fundamentalmente alunos oriundos das
classes populares. Esse fato levou muitos profissionais da
psicologia a se interessar pela alfabetização em especial e, de
maneira mais ampla, pela articulação mais estreita entre os
conhecimentos produzidos pela psicologia e aqueles produzidos por
outras áreas de saber, principalmente a sociologia da educação,
uma vez que a questão relativa à relação entre desempenho
escolar e condições socioeconômicas ganhava espaço nos debates
educacionais.
Entretanto, poucos trabalhos conseguiram efetivar esse modelo de
atuação, comprometido com o processo pedagógico, em
decorrência principalmente da expectativa da escola, cristalizada na
modalidade clínica de psicologia, pautada no encaminhamento do
aluno para que ele fosse "curado" fora do espaço da sala de aula e
depois devolvido "sem problemas", tirando da escola a
responsabilidade da ação sobre a escolarização da criança. Foram,
porém, esses poucos trabalhos, muitas vezes pautados na
desconstrução dessas expectativas da escola, que deram as bases
para a superação daquela psicologia escolar clínico-terapêutica, na
direção de uma psicologia que pode ser denominada efetivamente
como escolar, delimitando seu campo de atuação e criando uma
modalidade de trabalho efetivamente comprometida com o cotidiano
da escola em sua função essencialmente pedagógica.
Nesse sentido, a superação dessa situação exigia não somente a
crítica à hipertrofia da psicologia na educação, ao reducionismo, às
interpretações aligeiradas e banalizadas, às ações fundadas num
modelo estranho à educação, como o modelo médico, e à
culpabilização da criança e de sua família, mas também a
restituição de seu núcleo de bom senso. Fazia-se necessário
devolver à psicologia seu lugar no processo pedagógico.
É necessário, pois, que se considere que o processo educativo
ocorre no âmbito do sujeito; assim, a dimensão psicológica não
pode ser negada, mas incorporada na apreensão do fenômeno em
sua totalidade, condição fundamental para a produção de
conhecimento nesse campo, responsabilidade da psicologia
educacional. Esta, por sua vez, deve fundamentar, naquilo que lhe
cabe, a compreensão do fenômeno educativo e dar base para o
estabelecimento de processos efetivos de intervenção, que
poderiam constituir-se na matriz de atuação do psicólogo escolar.
Dessas considerações parte-se agora para um ensaio que visa
discutir possibilidades e limites para a construção de uma
Psicologia Escolar e Educacional, sob o foco de seus
compromissos e perspectivas.
2. A construção da relação psicologia-educação
A partir da emergência da Psicologia enquanto área de
conhecimento, pesquisa, produção de conhecimento e prática
profissional, sua articulação com a Educação passou a se
configurar como um dos campos de atuação dos psicólogos, apesar
de pouco escolhida pelos profissionais, os quais se detiveram,
historicamente, mais ao psicodiagnóstico e à avaliação psicológica.
A inserção da Psicologia nas escolas foi marcada por objetivos
fortemente adaptacionistas, nos quais predominava a necessidade
de corrigir e adaptar, à escola, o aluno portador de um problema de
aprendizagem. Esta adaptação se realizava, no passado, a partir da
aplicação de recursos psicométricos, entendidos como função do
psicólogo.
O psicodiagnóstico e a avaliação psicológica, dotados de aplicações
e técnicas próprias, foram atividades consideradas inerentes e
exclusivas do psicólogo, prevalecendo, prioritariamente, nos seus
diversos contextos de atuação, inclusive no educacional.
Assim sendo, a adoção dos instrumentos psicológicos de
classificação no interior das instituições educativas se encontra, no
nosso país, na origem do que se conhece como a Psicologia
Escolar e Educacional. Tais procedimentos refletiam a migração,
para o interior da escola, do modelo clínico de atuação e do seu
instrumental.
Foi, portanto, nesse contexto adaptacionistas e de correção, que
emergiu a figura do psicólogo escolar ou psicólogo educacional,
convocado à escola para resolver problemas que surgiam neste
espaço de formação. Um levantamento histórico acerca da atuação
do psicólogo escolar constata que a psicologia, enquanto
instrumento aplicado às práticas educacionais, se origina
justamente no final do século XIX, com o empenho de educadores e
cientistas do comportamento em classificarem crianças com
dificuldades escolares e proporem às mesmas métodos especiais
de educação, a fim de ajustá-las aos padrões de normalidade
definidos pela sociedade. (YAZLLE, 1997, p. 15).
No entanto, a aplicação desse modelo médico de intervenção na
escola conduziu à patologização e psicologização do espaço
escolar por atribuir ao próprio aluno a culpa por suas dificuldades de
aprendizagem e por isentar outras instâncias das suas
responsabilidades educativas. Com o passar dos anos e com a
revisão crítica acerca da formação e atuação do psicólogo,
reformulações e avanços foram dando contorno à área, de forma
que os profissionais procuraram não mais se coadunar “à
descontextualização e fragmentação do indivíduo, à naturalização
dos fenômenos do desenvolvimento humano, à negação do caráter
histórico-cultural da subjetividade, à tentativa de ‘psicologização’ no
cenário educacional.
As mudanças vêm ocorrendo de forma que se encontram, cada vez
mais, relatos de experiências de psicólogos que se preocupam em
não culpabilizar o aluno pelas dificuldades que enfrenta e tentam
conscientizar os demais profissionais de que a problemática do
aluno está inserida em uma gama maior de determinantes que não
apenas os individuais, os familiares ou os psicoafetivos.
Vê-se, portanto, que o vínculo inicial da relação entre a Psicologia e
a Educação, que se caracterizava pela aplicação acrítica das
teorias psicológicas às questões educacionais, não se manteve ao
longo da história entre esses dois campos científicos, dando lugar a
uma relação de interdependência. A aplicabilidade da Psicologia à
Educação foi fortemente criticada por não se entender como
adequado o uso dos conhecimentos psicológicos para adaptar os
alunos à escola, normatizando posturas, princípios e relações de
acordo com o que é esperado pela instituição. Além disso, a
aplicação dos conhecimentos psicológicos na educação sem a
devida reflexão, análise e planejamento, acabavam por gerar
processos de exclusão em relação a um conjunto de alunos, uma
vez que tais conhecimentos eram apropriados de forma
descontextualizada e sem referência à natureza histórico-cultural do
ser humano, desconsiderando a realidade social dos alunos e de
suas famílias.
A partir de processos de avaliação e reflexão acerca da relação que
se estabeleceu entre o conhecimento psicológico e a educação,
transformações foram geradas tanto na formação do psicólogo
escolar quanto em sua atuação. Como desdobramento deste
processo de crítica e reformulação da atuação em Psicologia
Escolar, reconhece-se tentativas no sentido de definir o que venha
a ser a Psicologia Escolar e de delimitar seu campo de atuação,
bem como de apresentar alternativas teórico-práticas que orientem
o trabalho dos psicólogos escolares. Sendo assim, a próxima seção
traz, inicialmente, reflexões acerca do que seja a Psicologia Escolar
e seu campo de atuação e, em seguida, apresenta algumas opções
de atuação.
3. Psicologia escolar como campo de atuação
O entrelaçamento entre a Psicologia e a Educação trouxe, para o
contexto educativo, um novo profissional: o psicólogo escolar.
Entretanto, definir o papel deste profissional e estabelecer seu
campo de atuação é uma tarefa complexa, apesar de extremamente
necessária, uma vez que co-existem posicionamentos diferentes
acerca do que é a Psicologia Escolar. González Rey (1997) e
Mitjáns Martínez (2003) apontam que tais diferenças encontram
suas raízes na fragmentação da Psicologia, do conhecimento e,
conseqüentemente, do indivíduo, em áreas ou partes segmentadas.
Tal fragmentação se reflete no debate do que se entende por
Psicologia Escolar e sobre quais são as características que a
distingue de outros campos e áreas da Psicologia.
Tentando esclarecer tais colocações, Mitjáns Martínez (2003)
aponta que “a psicologia escolar é, de fato, a expressão da
psicologia (na sua dupla condição de produção científica e de
trabalho profissional) no contexto escolar” (p. 107). Nesse sentido, a
Psicologia Escolar se refere à Psicologia na escola, com todas as
suas possibilidades e implicações no que diz respeito ao processo
educativo.
Representando uma intersecção entre a Psicologia e a Educação, o
termo Psicologia Escolar se confunde, muitas vezes, com
Psicologia Educacional ou Psicologia da Educação. Em relação a
estas terminologias, acredita-se, assim como Araújo (2003), que a
confusão ocorre em decorrência de concepções dicotômicas entre
prática e teoria que atribuem à Psicologia Escolar o caráter prático e
à Psicologia da Educação ou Educacional a função da construção
de conhecimentos que possam ser úteis ao processo educacional.
Essa distinção que separa teoria e prática traz, como consequência,
uma dissociação entre o exercício profissional do psicólogo na
escola e as elaborações teóricas necessárias a tal exercício.
Discordando desta visão dicotômica acredita-se que a Psicologia
Escolar se define como um campo de produção de conhecimentos,
de pesquisa e de intervenção e que, entre outras atribuições,
assume um compromisso teórico e prático com as questões
relativas à escola e a seus processos, sua dinâmica, resultados e
atores.
Nesse sentido, a Psicologia Escolar é entendida como um campo
de atuação profissional do psicólogo e, também, de produção
científica, caracterizado pela inserção da Psicologia no contexto
escolar, sendo que o objetivo principal deste campo é mediar os
processos de desenvolvimento humano e de aprendizagem,
contribuindo para sua promoção. Mitjáns Martinez (2003) conceitua
a Psicologia Escolar como
um campo de atuação profissional do psicólogo (e eventualmente
de produção científica) caracterizado pela utilização da Psicologia
no contexto escolar, com o objetivo de contribuir para otimizar o
processo educativo, entendido este como complexo processo de
transmissão cultural e de espaço de desenvolvimento da
subjetividade. (p. 107).
Dessa forma, a autora aponta que a especificidade do que se
denomina Psicologia Escolar está dada, hoje, pela conjunção de
dois elementos: por seu objetivo de contribuir para a promoção do
processo educativo e pelo espaço de sua atuação, qual seja o das
instituições do sistema escolar, sendo que essas delimitam um
espaço que não se reduz à escola, apesar deste ser o espaço
fundamental de atuação profissional.
Em relação ao contexto de atuação, alguns autores consideram que
o psicólogo escolar se define independentemente do espaço
profissional que possa ocupar, enquanto outros assumem que a
escola é o espaço preferencial e específico de sua atuação. Meira
(2000) e Tanamachi (2000), por exemplo, defendem que o espaço
de atuação do psicólogo escolar se estende para outros contextos
profissionais que não necessariamente a escola, uma vez que
entendem que o psicólogo escolar se define como tal por estar
inserido na Educação e não propriamente na escola. Nesse ponto
de vista a Psicologia Escolar “enquanto área de estudo e de
aplicação dos conhecimentos da Psicologia à Educação escolar
efetiva-se menos pela ocupação de um espaço específico – a
escola – do que pela definição de objetivos e finalidades”.
Por outro lado, Araújo (2003) e Marinho-Araújo e Almeida (2005)
discordam das posições que sustentam não ser a escola o espaço
preferencial e específico de atuação do psicólogo escolar. A
identidade do psicólogo escolar constitui-se “a partir da imersão
na escola, enquanto espaço institucional de efetivação concreta da
condição humana dos sujeitos participantes e
enquanto locus privilegiado para a ocorrência do processo de
canalização cultural”.
A identidade do psicólogo escolar e a especificidade de sua atuação
são dadas, sobretudo, pela configuração de um campo de atuação
profissional, e não por um campo de saberes delimitado por uma
abordagem teórica e/ou metodológica. Em sua atuação profissional
o psicólogo escolar utiliza múltiplos e diversos conhecimentos,
organizados em diferentes áreas da Psicologia, para contribuir com
os processos de aprendizagem e de desenvolvimento que ocorrem
no contexto escolar (MITJÁNS MARTINEZ, no prelo). Ademais, a
especificidade da Psicologia Escolar advém da articulação que o
profissional faz dos diversos conhecimentos psicológicos na direção
de mediar as relações entre aprendizagem e desenvolvimento que
têm lugar no contexto escolar.
Tendo essa discussão como pano de fundo, assume-se que a
escola é o contexto principal de atuação do psicólogo escolar,
apesar de não se configurar como o único, uma vez que atuações
relevantes em Psicologia Escolar têm se desenvolvido em outros
contextos educativos, como é o caso de creches, cursinhos
pré-vestibulares e Organizações Não Governamentais – ONGs.
Pelo exposto, evidencia-se que a atuação da Psicologia Escolar se
relaciona com contextos de natureza educativa nos quais os
processos de aprendizagem e de desenvolvimento humano, e a
relação que se estabelece entre eles, são tidos como foco do
trabalho. A intervenção desencadeada pelo profissional da área
volta-se, essencialmente, para a mediação desses processos com o
objetivo precípuo de promovê-los.
4. O psicólogo escolar clínico
Está implícita nessa visão de Psicologia Escolar uma vinculação
com a área de saúde mental, onde os problemas são equacionados
em termos de saúde x doença, o que na escola se retraduz como
problemas de ajustamento e adaptação. O que nos parece estar
subjacente, mas nem sempre claro, nessa perspectiva, é a ideia de
que a escola como instituição é tomada como adequada, como
cumprindo os objetivos ideais a que se propõe. Permanecem
inquestionados, desta forma, o anacronismo dos currículos, dos
programas, das técnicas de ensino-aprendizagem empregadas,
bem como a adequação da relação professor-aluno estabelecida.
Esta é, portanto, uma visão conservadora e adaptativa, uma vez
que os problemas surgidos ficam centrados no aluno, isto é, a
responsabilidade dos insucessos e dos fracassos recai sempre
sobre o educando. O papel do psicólogo escolar seria então o
daquele profissional que tem por função tratar estes
alunos-problema e devolvê-los à sala de aula "bem ajustados".
Na medida em que os problemas são equacionados em termos de
saúde x doença, fica o papel do psicólogo investido de um caráter
onipotente, uma vez que seria o portador de soluções mágicas e
prontas para as dificuldades enfrentadas. Por outro lado, acaba por
estabelecer uma relação de assimetria, verticalidade e poder dentro
da instituição, uma vez que lhe é atribuída a decisão e o julgamento
a respeito da adequação ou inadequação das pessoas em geral.
São as duas faces de uma mesma moeda — de um lado o mágico,
o salvador, e do outro, um elemento altamente persecutório e
ameaçador. Essa dupla imagem que o psicólogo adquire ou
transmite em função deste tipo de abordagem ou da sua própria
postura, leva, com frequência, a uma atitude ambivalente e de
resistência por parte da instituição escolar, que muitas vezes
dificulta ou até impede a continuidade dos serviços de psicologia.
Uma outra consequência que nos parece importante denunciar
nesta visão clínica, é a de que o professor, ao entregar o seu "aluno
difícil" nas mãos de um profissional tido como mais habilitado que
ele para lidar com a questão, se exime da sua responsabilidade
para com este aluno. Passa então a considerá-lo como um
problema que não é seu e que deveria ser solucionado fora do
contexto de sala de aula, que é o seu ambiente de trabalho, a
saber, no gabinete de Psicologia. Na realidade, porém, a criança
que apresenta dificuldades, mesmo quando atendida por outros
profissionais, enquanto aluna continua sendo problema do professor
e da sua turma e como tal deve ser assumida.
É também frequente, no trabalho clínico dentro da escola, o uso de
testes variados, desde as tradicionais medidas de QI até provas de
personalidade, com elaboração de diagnósticos e orientação
bastante minuciosas e aprofundadas. Ocorre, entretanto, que este
trabalho todo se torna infrutífero e sem sentido, pois é comum as
famílias se recusarem a aceitar a orientação, preferindo atribuir as
causas do insucesso escolar à própria instituição, que é então
acusada de ineficiente. É evidente que, ao buscar uma orientação
psicológica, todo cliente passa por um processo, frequentemente
longo e ambivalente, de lidar e aceitar as suas próprias dificuldades
ou deficiências. Ora, na medida em que a escola toma a iniciativa
de realizar esse processo, através do serviço de Psicologia, sem
uma conscientização gradativa e espontânea da família a respeito
do seu filho-problema, o resultado deverá ser ou um recusa de
colaborar até mesmo na fase inicial de diagnóstico, ou uma rejeição
clara e aberta da orientação oferecida.
Uma outra dificuldade é a de os dados obtidos através de exames
psicológicos nem sempre revertem para a escola sob forma de
orientações concretas e acessíveis.
Lyons e Powers relatam que num estudo longitudinal com crianças
de nível primário dispensadas do sistema escolar de uma grande
cidade norte-americana por problemas de comportamento, foram
avaliadas as contribuições dos psicólogos da seguinte forma:
"Embora 263 escolas registrassem que o estudo psicológico havia
sido de alguma forma útil aos pais e/ou professores, 144 escolas
registraram que ele não tinha ajudado. Apenas uma escola deu uma
razão para este fato, afirmando que o estudo psicológico era muito
limitado."
Um outro impasse comumente enfrentado com relação aos exames
psicológicos é o da dificuldade de se encontrar, em nosso meio,
instituições que possibilitem a concretização das orientações dadas,
de forma economicamente acessível à maioria da nossa população
escolar. Desta maneira, o diagnóstico e a orientação realizados
perdem a sua utilidade e, portanto, o seu sentido.
Um outro aspecto a se questionar é a instalação de Serviços de
atendimento psicológico dentro da instituição-escola, com a
intenção de oferecer Psicoterapia para os portadores de distúrbios
emocionais e de conduta e Psicomotricidade para aqueles que
apresentassem deficiências de ordem motora. Com relação à
primeira hipótese, acreditamos ser totalmente inviável a sua
realização dentro do contexto escolar por duas razões
fundamentais:
1. Como tal tipo de tratamento fica ligado, pelo senso comum, à
doença mental, corre-se o sério risco de discriminar e estigmatizar
aqueles alunos que se beneficiassem desta forma de assistência;
2. Como a escola é uma organização complexa, onde a privacidade
é bastante restrita por ser um grupo onde as pessoas convivem por
longo tempo, diariamente por várias horas e durante anos, fica
muito comprometida a questão de sigilo, não por parte do
profissional, evidentemente, mas por parte dos próprios alunos.
Com relação à Psicomotricidade, visando atingir principalmente as
populações de baixa renda, que não têm acesso a terapêuticas
desta natureza, tem-se pensado num trabalho integrado com a área
de Educação Física, no sentido de incluir, nessas aulas, exercícios
de equilíbrio, coordenação motora ampla etc. Com relação aos
aspectos de motricidade fina, a montagem de pequenos grupos de
atendimento paralelo talvez pudesse ser levada a efeito dentro do
próprio ambiente da escola.
Num nível mais sofisticado, a abordagem clínica pode
transformar-se numa consultoria de saúde mental, com o enfoque
básico voltado para a prevenção já mencionada no início deste
trabalho. O psicólogo não se restringiria apenas à aplicação de
testes e à realização de terapia dentro do contexto escolar, mas
pretenderia "difundir a saúde mental, procurando alcançar um maior
número possível de pais, administradores e professores, que por
sua vez atingem o maior número possível de crianças".
5. Em que dimensões se inserem as novas perspectivas em Psicologia Escolar e Educacional?
As novas perspectivas em Psicologia Escolar e Educacional
referem-se à:
a) mudança nas perguntas advinda da ruptura epistemológica,
permitindo compreender a dimensão educativa do trabalho do
psicólogo;
b) ampliação das áreas tradicionais de atuação do psicólogo no
campo da educação;
c) construção de referentes teóricos para uma prática psicológica
que considere as dimensões individuais, sociais e históricas do
processo de escolarização.
Os avanços teórico-metodológicos da Psicologia Escolar e
Educacional trouxeram a possibilidade de construir um novo objeto
de estudo para a área, centrado no encontro do psicólogo com a
educação. Assim sendo, há várias propostas de modalidades de
intervenção/atuação profissional no campo educativo.
Ressaltaremos algumas delas. Algumas áreas de atuação são
clássicas em Psicologia Escolar e educacional, tais como as
instituições escolares e o ensino de psicologia. Quanto a outras
áreas, vamos denominá-las emergentes, destacando-se:
instituições educativas; educação inclusiva de pessoas com
deficiência; direitos da criança e do adolescente e direitos humanos;
educação e saúde.
6. Cotidiano escolar: o objeto para o psicólogo escolar
Entendemos a escola como uma instituição sociocultural,
organizada e pautada por valores, concepções e expectativas,
perpassada por relações sociais na organização do trabalho e da
produção. Nela os alunos, os professores, a direção, os pais e a
comunidade são vistos como sujeitos históricos, culturais. Na
medida que abordamos a própria instituição escolar como um
produto histórico cultural que age e interage numa trama de
complexos processos socioculturais, vislumbramos novas
possibilidades para a construção de uma nova concepção de
escola.
"A escola é, na teoria tradicional, uma instituição ou um aparelho do
Estado. Tanto na versão positivista (Durkheim) como nas versões
críticas (Althuser, Bourdieu), sua pertença ao Estado transforma-a
automaticamente em representante unívoca da vontade estatal. A
escola tem uma história documentada, geralmente escrita a partir
do poder estatal, a qual destaca sua existência homogênea.
Coexiste, contudo, com esta história e existência documentada,
outra história e existência, não documentada, através da qual a
escola toma forma material, ganha vida. Nesta história, a
determinação e presença estatal se entrecruza com as
determinações e presença civis de variadas características. A
homogeneidade documentada decompõe-se em múltiplas
realidades cotidianas. Nesta história não documentada, nesta
dimensão cotidiana, os trabalhadores, os alunos e os pais se
apropriam dos subsídios e das prescrições estatais e constroem a
escola." (EZPELETA & ROCKWELL, 1986)
Sob esta ótica, a escola não é a mesma em todo o mundo
capitalista, pois ela se realiza num mundo profundamente diverso e
diferenciado. Olhando o movimento social a partir das situações e
dos sujeitos que realizam anonimamente a escola, podemos dizer
que a realidade de cada escola é uma construção social: a
construção de cada escola, mesmo circunscrita por um movimento
histórico de longo alcance (como é o caso do capitalismo), é
sempre uma versão local e particular. Dessa expressão local tomam
forma internamente as correlações de forças, as condições
trabalhistas, as formas de relação predominantes, as prioridades
administrativas, as tradições docentes, que constituem a trama real
em que se realiza a educação.
É uma trama em permanente construção que articula histórias
locais - pessoais e coletivas -, diante das quais a vontade estatal
abstrata pode ser assumida ou ignorada, mascarada ou recriada,
em particular abrindo espaços variáveis a uma maior ou menor
possibilidade hegemônica. Uma trama, finalmente, que é preciso
conhecer, porque constitui, simultaneamente, o ponto de partida e o
conteúdo do real em nossas alternativas tanto pedagógicas quanto
políticas.
A observação participante permite ao psicólogo escolar inserido
neste contexto "olhar" para o processo de apropriação de
conhecimento dos vários segmentos que estão inseridos no
ambiente escolar, o que significa analisar a existência cotidiana da
escola como história acumulada; buscar, no seu presente, os
elementos estatais e civis com as quais a escola se construiu. Ou
seja, na observação da escola ele poderá averiguar o que é
convergente, o que é divergente ou contraditório, nas diversas
formas do existir da escola. O cotidiano escolar, assim, passa a ser
o espaço privilegiado para a pesquisa e para a intervenção do
psicólogo escolar , pois é aí onde se dá o encontro dos diversos
segmentos que estão envolvidos com o dia-a-dia da escola, o que
circunscreve o campo para a emergência das contradições que
estão implícitas nas relações sociais que ali se desenvolvem7• O
cotidiano escolar, enfim, caracteriza-se como um campo de
interseção entre sujeitos individuais que levam seus saberes
específicos para a construção da escola. Nestes espaços
incorporam-se e tornam-se significativos numerosos elementos não
previstos na realidade, nas categorias tradicionais da realidade
escolar. A realidade escolar aparece sempre mediada pela
atividade cotidiana, pela apropriação, elaboração, refuncionalização
ou repulsa que os sujeitos levam a cabo. A partir do cotidiano
escolar e através da observação participante, o psicólogo escolar
terá acesso às representações sociais que medeiam as relações
que se travam intra e extra instituição escolar. "As representações
sociais são as explicações e as afirmações que os indivíduos dão
sobre sua realidade. É como assimila a estrutura social na qual
integram suas experiências, valores, ou seja, é a relação que se
estabelece entre o homem e o meio."
Representação social é, portanto, o conjunto de significados que os
indivíduos estabelecem para a sua realidade, significados esses
que são expressos pela linguagem. Tal perspectiva nos sugere que
o psiquismo humano é produto da sociedade e, concomitantemente,
as representações sociais são engendradas coletivamente pela
sociedade. Nesse sentido, a partir de uma abordagem sociocultural
do psiquismo humano, entendemos que os significados são
produzidos socialmente e se transformam através da atividade e
pensamento dos indivíduos e, assim, individualizam-se,
subjetivam-se. Tendo em vista estas considerações , podemos dizer
que, ao tomar o cotidiano escolar como espaço social de
pesquisa/intervenção, o psicólogo escolar terá acesso as
mediações que os indivíduos estabelecem para compreenderem
sua realidade - as representações sociais - e assim, poderá
desvelar os mecanismos utilizados (individual e coletivamente) na
construção de sentidos para a realidade escolar. Dito de outra
forma, o psicólogo escolar poderá desvelar os significados
(convergentes ou contraditórios) que os agentes sociais envolvidos
no processo educacional- pais, alunos, professores, direção, etc. -
Atribuem para a relação professor x aluno, para o conhecimento,
para o processo ensino/aprendizagem, para o processo de
avaliação, etc., além dos significados atribuídos ao próprio trabalho
do psicólogo escolar.
Estas considerações levam-nos a indicar a observação participante
como a metodologia mais adequada para o psicólogo escolar
apreender, compreender e intervir no contexto escolar. Por um lado,
esta metodologia lhe proporciona uma aproximação do cotidiano
escolar e de suas representações sociais, resgatando sua
dimensão histórica, sociocultural, seus processos. Por outro lado,
permite-lhe intervir neste cotidiano, e nele trabalhar ao nível das
representações sociais e propiciar a emergência de novas
necessidades para os agentes que ali se "movimentam". A
observação participante se insere no conjunto das metodologias
denominadas, no campo educacional, de "qualitativas"" e,
frequentemente de etnográficas avaliando a produção científica que
se desenvolveu sob esta abordagem nos últimos dez anos avalia:
"O que se verifica, no entanto, é que a grande maioria envolve
dados de campo, sistematizados em forma de descrições que
acrescentam muito pouco ao que se sabe ou conhece ao nível do
senso comum. É a empiria pela empiria. O autor parece
satisfazer-se com o fato de coletar uma grande quantidade de
dados e parece 'esperar' que esses dados por si produzam alguma
teoria. Mas é evidente que sem um referencial de apoio que oriente
o processo de reconstrução desses dados não há avanço teórico -
fica-se na constatação do óbvio, na mesmice, na reprodução do
senso comum. “A proposta que se coloca aqui vai na direção de
superar tais limitações. Trata-se de ir para além do senso comum.
Trata-se da tradição etnográfica cuja essência é identificada como
"documentar a realidade não documentada. Ela se circunscreve, por
um lado, pela utilização das categorias'2 utilizadas pelas ciências
sociais para a compreensão da realidade (como classe social,
ideologia, poder, etc. ) e, por outro, pela criação de novas
categorias que são construídas/reconstruídas na relação
pesquisador x escola, pois "... a heterogeneidade e a
individualidade do cotidiano existem outras dimensões ordenadoras.
Impõem forçosamente o reconhecimento de sujeitos que
incorporam e objetivam, a seu modo, práticas e saberes dos quais
apropriaram em diferentes momentos e contextos de vida,
depositários que são de uma história acumulada durante séculos."
Através da observação participante, portanto, o psicólogo escolar
poderá reconstruir os processos que ocorrem na vida diária da
escola. Tal metodologia lhe permitirá integrar os vários momentos
da escola e interpretar sua realidade cotidiana. Como tais
processos se expressam por meio de elementos e situações
diferentes que perpassam todos os âmbitos, com a metodologia
acima indicada desvelar-se-á as tramas reais que se efetivam neste
contexto e que se estruturam a partir de pequenas histórias:
espaços sociais onde se negocia e se reordena a continuidade das
experiências e a atividade escolar. As contradições e
incongruências aparentes que se encontram nos mais diversos
espaços escolares (salas de aula, reuniões , na estrutura física da
escola, etc ...) adquirem sentido como resultado de mecanismos
diferenciáveis de reprodução e de apropriação entre outros e
mostram as diversas formas que a história - social e individual - está
presente na vida cotidiana da escola. A metodologia da observação
participante, enfim, possibilita ao psicólogo escolar, inserido no
contexto da escola, a "olhar" para as apropriações reais e potenciais
que acontecem de baixo para cima: a partir dos sujeitos individuais
que vivenciam diariamente a instituição. Além disso, ela cria a
possibilidade de se construir um conhecimento que permite o
estabelecimento de relações mais reais com os processos que se
dão no interior das escolas. Vale a pena resgatar, por um momento,
algumas implicações da observação participante inerentes na
relação psicólogo escolar x escola, considerando a dupla
perspectiva de sua atividade: a de pesquisa e a intervenção. Para
tal aprofundamento, faz-se necessário traçar algumas
considerações sobre a observação participante tendo como ponto
de partida a Antropologia.
7. Compromissos e Perspectivas para a Psicologia Escolar e Educacional
É condição para a discussão de compromissos, assim como das
perspectivas que se colocam a partir deles, a explicitação do lugar a
partir do qual se fala. Compromisso implica três instâncias: aquele
que se compromete (neste caso, referimo-nos à Psicologia Escolar
e Educacional), aquele com quem se compromete (as classes
populares) e aquilo com que se compromete (a construção de uma
educação democrática). Trata-se, portanto, de discutir o
compromisso da Psicologia Escolar e Educacional com a educação
das classes populares, o que torna necessário expor a concepção
de educação que dá base à posição aqui defendida.
A educação que aqui se afirmar é uma educação rigorosa e
amplamente democrática, que deve ser acessível a todos e que não
transige na defesa desse princípio. É concebida como instância
social responsável pela tarefa de socialização dos conhecimentos
produzidos pela humanidade ao longo de sua história, criando
condições para que todos possam ascender do senso-comum aos
saberes fundamentados, articulados e sintéticos sobre o mundo.
Educação democrática significa, portanto, democratização de
saberes; saberes estes que foram historicamente privilégios - na
produção e no acesso - das classes dominantes. Para que ela se
realize em cada sujeito, é necessário garantir o domínio de recursos
necessários para a apreensão do conhecimento, como o domínio
da leitura e da escrita, da matemática e de outros recursos próprios
da contemporaneidade, como informática e línguas estrangeiras.
Isso, entretanto, constitui-se tão somente o ponto de partida, pois
são apenas os meios necessários para a aquisição de outros
conhecimentos, que devem ser considerados em todas as suas
expressões, da filosofia à ciência e às artes, em permanente
diálogo com a cultura própria da criança, que deve ser respeitada e
considerada no processo de ensino-aprendizagem. Disso decorre
uma concepção de prática pedagógica centrada nos processos de
ensino e aprendizagem, cuja finalidade é propiciar o
desenvolvimento pleno do educando, em todos os aspectos que o
constitui como sujeito singular e, ao mesmo tempo, pertencente ao
gênero humano.
Essa concepção de educação remete ao compromisso com a
concretização de políticas públicas de educação radicalmente
comprometidas com os interesses das classes populares. Isso
significa garantir pleno acesso e condições de permanência de
todos os educandos na escola, independentemente de suas
condições, cabendo à escola transformar-se para possibilitar-lhes
condições efetivas de escolarização; essa questão traduz o
princípio de educação inclusiva, que incorpora não só a educação
de alunos com deficiência, mas todos aqueles que, por diversos
motivos, são alijados da escola e de seus bens. Para isso, faz-se
necessário que se construam currículos articulados às finalidades
acima expostas, superando os conhecidos "currículos mínimos",
geralmente entendidos como paliativos ou educação de segunda
categoria para pessoas socialmente consideradas também como
tal, com especial atenção aos processos avaliativos, que têm sido
um dos meios mais efetivos para a materialização da exclusão de
crianças das classes populares ao direito de uma educação de boa
qualidade. Esse processo depende também da gestão democrática
da escola e, sobretudo, no investimento maciço na formação dos
educadores.
Cabe, portanto, discutir as possibilidades e limites da Psicologia
Escolar e Educacional na construção de políticas públicas de
educação comprometidas socialmente com as classes populares;
eis aqui a questão relativa às perspectivas colocadas para essa
área de conhecimento e campo de atuação.
Disso resulta a afirmação de alguns princípios que podem ser
expressos a partir das assertivas que seguem.
A educação é constituída por múltiplos determinantes, dentre os
quais os fatores de ordem psicológica; portanto, a psicologia tem
contribuição para a Educação.
Que seja uma psicologia capaz de compreender o processo
ensino-aprendizagem e sua articulação com o desenvolvimento,
fundamentada na concreticidade humana (determinações
sócio-históricas), compreendida a partir das categorias totalidade,
contradição, mediação e superação. Deve fornecer categorias
teóricas e conceitos que permitam a compreensão dos processos
psicológicos que constituem o sujeito do processo educativo e são
necessários para a efetivação da ação pedagógica.
A psicologia deve assumir seu lugar como um dos fundamentos da
educação e da prática pedagógica, contribuindo para a
compreensão dos fatores presentes no processo educativo a partir
de mediações teóricas "fortes", com garantia de estabelecimento de
relação indissolúvel entre teoria e prática pedagógica cotidiana.
Esta psicologia deve propiciar a compreensão do educando a partir
da perspectiva de classe e em suas condições concretas de vida,
condição necessária para se construir uma prática pedagógica
realmente inclusiva e transformadora.
A psicologia como um dos fundamentos do processo formativo do
educador deve propiciar o reconhecimento do educador/professor
como sujeito do processo educativo, traduzindo-se na necessidade
de mudanças profundas das políticas de formação inicial e
continuada desse protagonista fundamental da educação.
Por sua vez, a ação do psicólogo escolar deve pautar-se no
domínio do referencial teórico da psicologia necessário à educação,
mediatizado necessariamente por conhecimentos que são próprios
do campo educativo e das áreas de conhecimento correlatas. O
próprio referencial teórico que aqui defendemos implica o trânsito
por outros saberes (totalidade). Daí, a necessidade de superação
das práticas tradicionais do psicólogo escolar, muitas vezes
pautadas ainda numa perspectiva, nem sempre consciente ou
assumida, de ação clínico-terapêutica.
Em outras palavras, afirmamos uma psicologia escolar
comprometida radicalmente com a educação das classes
populares, que supere o modelo clínico-terapêutico disfarçado e
dissimulado ainda presente na representação que o psicólogo tem
de sua própria ação, entendendo que a representação e,
consequentemente, as expectativas que os demais profissionais da
educação têm da psicologia só serão superadas pela própria prática
do psicólogo escolar.
Mudanças efetivas só ocorrerão a partir do envolvimento do
psicólogo com as questões concretas da educação e da prática
pedagógica; é necessário superar o preconceito de não querer
tornar-se "pedagogo". O psicólogo não é pedagogo, mas se quiser
trabalhar com educação terá que mergulhar nessa realidade como
alguém que faz parte dela, reconhecendo-se como portador de um
conhecimento que pode e deve ser socializado com os demais
educadores, tanto no trabalho interdisciplinar, como na formação de
educadores, sobretudo professores; que detém um saber que pode
contribuir com os processos sócio-institucionais da escola; tem um
conhecimento específico que pode e deve reconhecer o que é
próprio de sua formação profissional, e, ouso afirmar, algumas
vezes inclusive de caráter clínico-terapêutico, voltado para casos
individuais; possui ou pode desenvolver conhecimentos importantes
para a gestão de sistemas e redes de ensino, sobretudo no âmbito
de diagnósticos educacionais (avaliação institucional, docente,
discente etc.) e na intervenção sobre tais resultados.
8. Estatuto da Psicologia Escolar e Educacional: alguns pressupostos
Essa discussão exige, antes de mais nada, a explicitação de alguns
conceitos presentes nos termos da expressão Psicologia Escolar e
Educacional.
Entendemos educação como prática social humanizadora,
intencional, cuja finalidade é transmitir a cultura construída
historicamente pela humanidade. O homem não nasce humanizado,
mas torna-se humano por seu pertencimento ao mundo
histórico-social e pela incorporação desse mundo em si mesmo,
processo este para o qual concorre a educação. A historicidade e a
sociabilidade são constitutivas do ser humano; a educação é, nesse
processo, determinada e determinante.
A escola pode ser considerada como uma instituição gerada pelas
necessidades produzidas por sociedades que, por sua
complexidade crescente, demandavam formação específica de
seus membros. A escola adotou ao longo da história diversas
formas, em função das necessidades a que teria que responder,
tendo sido, em geral, destinada a uma parcela privilegiada da
população, a quem caberia desempenhar funções específicas,
articuladas aos interesses dominantes de uma dada sociedade.
Essa realidade deve ser, no entanto, compreendida também a partir
de suas contradições, sobretudo a concepção de escola como
instância que se coloca hoje como uma das condições
fundamentais para a democratização e o estabelecimento da plena
cidadania a todos, e que, embora não seja o único, é certamente
um dos fatores necessários e contingentes para a construção de
uma sociedade igualitária e justa. Sob essa perspectiva, a escola,
tal como nós a concebemos, tem como finalidade promover a
universalização do acesso aos bens culturais produzidos pela
humanidade, criando condições para a aprendizagem e para o
desenvolvimento de todos os membros da sociedade.
A pedagogia pode ser entendida como fundamentação,
sistematização e organização da prática educativa. A preocupação
pedagógica atravessa a história, sustentando-se em diferentes
concepções filosóficas, constituindo-se sob diversas bases teóricas
e estabelecendo várias proposições para a ação educativa. Com o
desenvolvimento das ciências a partir da modernidade, o
conhecimento científico tornou-se sua principal base de
sustentação.
A Psicologia Educacional1 pode ser considerada como uma subárea
da psicologia, o que pressupõe esta última como área de
conhecimento. Entende-se área de conhecimento
como corpus sistemático e organizado de saberes produzidos de
acordo com procedimentos definidos, referentes a determinados
fenômenos ou conjunto de fenômenos constituintes da realidade,
fundamentado em concepções ontológicas, epistemológicas,
metodológicas e éticas determinadas. Faz-se necessário, porém,
considerar a diversidade de concepções, abordagens e sistemas
teóricos que compõem o conhecimento, particularmente no âmbito
das ciências humanas, das quais a psicologia faz parte. Assim, a
psicologia da educação pode ser entendida como subárea de
conhecimento, que tem como vocação a produção de saberes
relativos ao fenômeno psicológico constituinte do processo
educativo.
A Psicologia Escolar, diferentemente, define-se pelo âmbito
profissional e refere-se a um campo de ação determinado, isto é, o
processo de escolarização, tendo por objeto a escola e as relações
que aí se estabelecem; fundamenta sua atuação nos
conhecimentos produzidos pela psicologia da educação, por outras
subáreas da psicologia e por outras áreas de conhecimento.
Deve-se, pois, sublinhar que psicologia educacional e psicologia
escolar são intrinsecamente relacionadas, mas não são idênticas,
nem podem reduzir-se uma à outra, guardando cada qual sua
autonomia relativa. A primeira é uma área de conhecimento (ou
subárea) e, grosso modo, tem por finalidade produzir saberes sobre
o fenômeno psicológico no processo educativo. A outra constitui-se
como campo de atuação profissional, realizando intervenções no
espaço escolar ou a ele relacionado, tendo como foco o fenômeno
psicológico, fundamentada em saberes produzidos, não só, mas
principalmente, pela subárea da psicologia, a psicologia da
educação.
Referências
MARTINS, J .B. Observação participante: uma abordagem
metodológica para a psicologia escolar.
Psicologia Escolar e Educacional em busca de novas perspectivas -
Marilene Proença Rebello de Souza
Psicologia Escolar e Educacional: história, compromissos e
perspectivas - Mitsuko Aparecida Makino Antunes
O papel do psicólogo escolar - Carmem Silvia de Arruda Andaló
Psicologia escolar: cenários atuais - Cynthia Bisinoto Evangelista de
Oliveira; Claisy Maria Marinho-Araújo
Introdução a psicologia escolar – Maria Helena Souza Patto.