apostila psciologia.indisciplina

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1 PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO E INDISCIPLINA NA ESCOLA 1.VIGOTSKY, L S. FORMAÇÃO SOCIAL DA MENTE. SÃO PAULO: MARTINS FONTES, 1996 – 2º PARTE 2.LA TAILLE, IVES DE & OLIVEIRA, MARTA KOHL DE & DANTAS, TEORIAS PSICOGENÉTICAS EM DISCUSSÃO _ SÃO PAULO: SUMMUS. 1992 3.ESTRELA, MARIA TEREZA.RELAÇÃO PEDAGÓGICA, DISCIPLINA E INDISCIPLINA. COLEÇÃO CIÊNCIAS DA NATUREZA 1992 4.AQUINO, JULIO R. GROPPA A DESORDEM NA RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO: INDISCIPLINA, MORALIDADE E CONHECIMENTO.INDISCIPLINA NA ESCOLA: ALTERNATIVAS TEÓRICAS E PRÁTICAS

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PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO EINDISCIPLINA NA ESCOLA

1.VIGOTSKY, L S. FORMAÇÃO SOCIAL DA MENTE. SÃO PAULO: MARTINS FONTES, 1996 – 2º PARTE2.LA TAILLE, IVES DE & OLIVEIRA, MARTA KOHL DE & DANTAS, TEORIAS PSICOGENÉTICAS EM DISCUSSÃO _ SÃO PAULO: SUMMUS. 19923.ESTRELA, MARIA TEREZA.RELAÇÃO PEDAGÓGICA, DISCIPLINA E INDISCIPLINA. COLEÇÃO CIÊNCIAS DA NATUREZA 19924.AQUINO, JULIO R. GROPPA A DESORDEM NA RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO: INDISCIPLINA, MORALIDADE E CONHECIMENTO.INDISCIPLINA NA ESCOLA: ALTERNATIVAS TEÓRICAS E PRÁTICAS

21) - VIGOTSKY, L S. FORMAÇÃO SOCIAL DA MENTE. SÃO PAULO: MARTINS FONTES, 1996 – 2º PARTE.

INTRODUÇÃO

Lev S. Vygotsky, advogado e filósofo, iniciou sua carreira como psicólogo após a Revolução Russa de 1917. Para entender sua obra é preciso refletir sobre as condições da psicologia européia, cenário principal de suas teorias.

Até a metade do século XIX o estudo da natureza humana cabia a filosofia. Na Inglaterra os seguidores de John Locke enfatizavam que a origem das idéias eram produzidas por estimulação ambiental (concepção empiricista da mente). Immanuel Kant e seus seguidores afirmavam que Idéias de espaço e tempo e conceitos de quantidades, qualidade e relação originavam-se na mente humana e não poderiam ser decompostos em elementos mais simples. Essas idéias filosóficas baseavam-se nos trabalhos de René Descartes, que dizia que o estudo científico do homem cabia ao seu corpo físico, enquanto o estudo de sua alma cabia à filosofia.

O pensamento psicológico do final do século XIX baseava-se nas obras de Darwin, Fechmer e Sechenov, embora nenhum desses autores se considerava psicólogo. No entanto, questões por eles levantados preocupavam a psicologia como: Quais as relações entre o comportamento humano e o animal? Entre eventos ambientais e eventos mentais? Entre outras.

A partir dessas questões surgiram várias escolas de psicologia, sendo a primeira fundada em 1890 por Willelm Wundt. Ele se propôs a estudar a descrição do conteúdo da consciência humana e sua relação com a estimulação externa.

Por volta do começo da primeira guerra mundial os estudos da consciência foram substituídos pelo estudo do comportamento.

Através dos estudos de Pavlov (reflexos condicionados) e das teorias de Darwin (continuidade evolutiva entre os animais e o homem), foram abertas muitas áreas para o estudo científico do comportamento animal e humano. Estudavam assim, ao invés das sensações a unidade estímulo – resposta e alguns elementos que combinados a (S-R) produziam fenômenos mais complexos.

Dessa forma os processos psicológicos superiores, pensamento, linguagem e comportamento volitivo, não eram estudados.

Em seguida surgiu a psicologia da Gestalt que demonstrou que muitos fenômenos intelectuais e fenômenos perceptuais não poderiam ser explicados pela postulação de elementos básicos da consciência e nem pelas teorias comportamentais (S-R).

Era esta a situação da psicologia européia quando Vygotsky começou a atuar.Na Rússia, no início do século XX também haviam escolas antagônicas de psicologia. K. N. Kornilov

foi o responsável pela primeira grande mudança intelectual na psicologia.Usava uma estrutura marxista e as reações comportamentais eram os elementos básicos. Sua teoria

se contrapunha à de Chelpanov que era adepto da psicologia introspectiva.Caracterizava-se assim uma psicologia dividida em duas metades irreconciliáveis: de um lado a

“ciência natural” que poderia explicar os processos elementares sensoriais e reflexos e de outro a “ciência mental” responsável por descrever os processos psicológicos superiores.

Vygotsky procurou então uma abordagem que abrangesse a descrição e a explicação das funções psicológicas superiores, aceitáveis para as ciências naturais. Deveria assim incluir a identificação dos mecanismos cerebrais subjacentes a uma determinada função; explicar detalhadamente sua história ao longo do desenvolvimento, estabelecendo relações entre as formas simples e complexas do comportamento; e incluir o contexto social no desenvolvimento do comportamento.

Na década de 1924 e na subseqüente, Vygotsky se dedicou a uma crítica de que a compreensão das funções psicológicas superiores humanas poderia ser feita através da multiplicação e complicação da psicologia animal. Criticou também as teorias que afirmavam que as propriedades das funções intelectuais do adulto são resultado unicamente da maturação.

Enfatizou as origens sociais da linguagem e do pensamento. Para Vygotsky as funções psicológicas são um produto da atividade cerebral, defendendo a associação da psicologia cognitiva experimental com a neurologia e a fisiologia.

Tudo isso, no entanto, deveria ser entendido sob a base da teoria marxista.Vygotsky baseava-se no materialismo dialético para solucionar as contradições científicas fundamentais com que se defrontavam seus contemporâneos. Dessa forma, todos os fenômenos deveriam ser estudados como processos em movimentos e em mudança. O objetivo da psicologia é estudar a origem e o curso do desenvolvimento do comportamento e da consciência. Foi sobre esse prisma que Vygotsky explicou a transformação dos processos psicológicos elementares em processos complexos.

O materialismo histórico defendido por Marx também serviu de base para as explicações de Vygotsky sobre as questões psicológicas concretas. Vygotsky abrangeu o conceito de mediação na inter-relação homem-ambiente pelo uso de instrumento, para o uso de signos (linguagem, escrita, sistema de números). Ele acreditava que a internalização desses sistemas de signos provoca transformações comportamentais e estabelece um elo entre as formas iniciais e tardias do desenvolvimento individual. Sendo assim, as mudanças individuais têm suas raízes na sociedade e na cultura.

3Vygotsky foi também influenciado pelos trabalhos; de P. P. Blonsky (psicologia) e de Thurnvald e Levy

- Bruhl (sociologia e antropologia).Não podemos, no entanto, deixar de analisar a teoria de Vygotsky sem levar em conta o contexto

sócio-político da União Soviética na época. A teoria psicológica não poderia ser elaborada à margens das demandas do governo. Assim, o trabalho de Vygotsky mostrava uma psicologia voltada para a educação e para a prática médica.

Vygotsky trabalhou com a educação de deficientes mentais e físicos e era adepto dos testes de capacidade intelectual.

Vygotsky usava o trabalho empírico (de experimentação) como forma de ilustrar e apoiar seus princípios, sendo os resultados apresentados sob a forma de conclusões gerais e não de dados brutos.

Para Vygotsky, o objetivo da experimentação é completamente diferente do convencional, pois acreditava que a psicologia só poderia ser compreendida através da determinação da origem e da história dos processos psicológicos superiores. Ele usava como técnica a introdução de obstáculos ou dificuldades na tarefa de forma a quebrar os métodos rotineiros de solução de problemas. Uma segunda técnica por ele utilizada era fornecer caminhos alternativos para a solução do problema, incluindo vários tipos de materiais.

Um outro método era colocar a criança frente a uma tarefa que excedesse em muito os seus conhecimentos e capacidades, para observar o início de novas habilidades.

Com isso, os dados fornecidos nos experimentos são os métodos pelos quais o desempenho é atingido e não o nível de desempenho como tal.

A abordagem teórica e o método experimental usados por Vygotsky permitem que os resultados experimentais sejam tanto quantitativos como qualitativos. As observações detalhadas são outra parte importante em seus estudos. Esses estudos, no entanto passaram de situações de “laboratório” para “campo”, ou seja, suas observações podiam ser feitas na escola, num ambiente clínico, etc.

Concluindo, o método experimental por ele utilizado engloba a história do desenvolvimento das funções psicológicas juntamente com a história da cultura e da sociedade ao lado da história da criança.

CAPÍTULO 1: O INSTRUMENTO E O SIMBOLO NO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA

Vygotsky tem por objetivo neste livro caracterizar os aspectos tipicamente humanos do comportamento e elaborar hipóteses de como essas características se desenvolveram durante a vida de um indivíduo.Para isso enfatizar 3 aspectos:

1 - A relação entre os seres humanos e o seu ambiente físico e social.2 - Novas formas de atividade que fizeram com que o trabalho fosse o meio fundamental de relacionamento entre o homem e a natureza e as conseqüências psicológicas dessas formas de atividade.3 - A natureza das relações entre o uso de instrumentos e desenvolvimento da linguagem.

O estudo do desenvolvimento infantil então, começou a ser feito por comparação à botânica, associando à maturação do organismo como um todo. Como a maturação por si só, é um fator secundário e não explica o desenvolvimento de formas mais complexas do comportamento humano, a psicologia moderna passou a estudar a criança a partir de modelos zoológicos, isto é, da experimentação animal.

O trabalho experimental no campo da inteligência prática começou a ser feito durante a primeira guerra mundial, e através da observação de macacos. As pesquisas constataram que as manifestações de inteligência prática em crianças eram exatamente do mesmo tipo daquelas conhecidas em chimpanzés.

Por manifestações de inteligência prática entende-se a apreensão manual de objetos por crianças pequenas, sua capacidade de usar vias alternativas quando da consecução de um objetivo e o uso que elas fazem de instrumentos primitivos.

A pesquisa feita por K. Buhler concluiu que essas manifestações de inteligência prática ocorrem independentemente da fala, pois já foram encontradas em crianças de 6 meses de idade.

K. Buhler friza, entretanto, que, o sistema de atividade da criança é determinado tanto pelo seu grau de desenvolvimento orgânico quanto pelo grau de domínio no uso de instrumento.

Mais tarde, com o avanço dos estudos nessa área, constatou-se que existe sim uma integração entre fala e raciocínio prático ao longo do desenvolvimento, contrapondo a pesquisa de K. Buhler.

Shapiro e Gerke, em seu estudo sobre o desenvolvimento do raciocínio prático em crianças enfatizaram o papel dominante da experiência social, que exerce o seu papel através do processo de imitação. Sendo assim, a criança imita o adulto e vai repetindo essas ações, que se acumulam umas sobre as outras. O resultado é a cristalização de um esquema, um princípio definido de atividade.

Dessa forma, esses pesquisadores limitam o papel da experiência social aos provimentos de esquemas motores na criança, desconsiderando as mudanças na estrutura interna das operações intelectuais da mesma.

4A fala, só passou a ter papel importante nas formas humanas de comportamento a partir dos estudos

de Guillaume e Meyerson. “Seus achados apóiam minha suposição de que a fala tem um papel essencial na organização das funções psicológicas superiores”. (Vygotsky, pág 30).

Com relação a importância da fala no desenvolvimento intelectual, vários experimentos são citados neste livro.

Kohler concluiu que o uso de instrumentos entre macacos antropóides é independente da atividade simbólica, ou seja, da fala.

Como conseqüência de tais estudos, a origem e o desenvolvimento da fala e de todas as outras atividades que usam signos foram tratados como independentes da organização da atividade prática na criança. Eram tidos como fruto do intelecto puro e não produto da história do desenvolvimento da criança.

O comportamento adaptativo das crianças e a atividade de uso de signos são tratados como fenômenos paralelos, sendo que não se reconhece o embricamento entre essas duas funções. Já Vygotsky atribui à atividade simbólica a função organizadora que invade o processo do uso de instrumento e produz formas fundamentalmente novas de comportamento.

Segundo Vygotsky, “o momento de maior significado no curso do desenvolvimento intelectual, que dá origem às formas puramente humanas de inteligência prática e abstrata, acontece quando a fala e a atividade prática, então duas linhas completamente independentes de desenvolvimento, comurgem”.

A criança, antes de controlar o próprio comportamento, começa a controlar o ambiente com a ajuda da fala, produzindo novas relações com o ambiente, além de uma nova organização do próprio ambiente. A criação dessas formas caracteristicamente humanas de comportamento produz, o intelecto, e constitui a base do trabalho produtivo: a forma especificamente humana do uso de instrumento.

Experimentos feitos por Vygotsky concluíram que a fala da criança é tão importante quanto a ação para atingir um objetivo. Sua fala e ação fazem parte de uma mesma função psicológica complexa, dirigida para a solução do problema em questão.

Conclui-se também que quanto mais complexa a ação exigida pela situação e menos direta a solução, maior a importância que a fala adquire na operação como um todo.

“Essas observações me levam a concluir que as crianças resolvem suas tarefas práticas com a ajuda da fala, assim como dos olhos e das mãos”.

As operações práticas de uma criança que pode falar são ampliadas quanto ao seu campo de ação, pois esta tem maior liberdade e independência na realização da ação. E capaz também de incluir estímulos que não estão contidos no seu campo visual de ação.

Essas ações também tornam-se menos impulsivas e espontâneas se comparadas as dos macacos que não fazem uso da fala. Através da fala, a criança planeja como solucionar o problema e então executa a solução elaborada através de uma atividade visível.

Por fim, a fala é capaz também de controlar O comportamento da própria criança.Foi constatado que essa fala egocêntrica de criança que acompanha a atividade, aumenta à medida

em que se torna mais difícil o problema prático enfrentado pela criança.A fala egocêntrica, porém, está ligada à fala social das crianças. A capacidade da criança de usar a

linguagem como um instrumento para a solução de problemas começa quando essa fala socializada é internalizada (ao invés de apelar para o adulto, as crianças passam a apelar para si mesmas).

A relação entre a fala e a ação é dinâmica. Num primeiro momento a fala acompanha as ações da criança e somente reflete o processo de solução do problema. Num momento seguinte, essa fala precede a ação, dirigindo, determinando e dominando o curso da ação.

O uso da linguagem para planejar a ação faz com que a criança adquira independência em relação ao seu ambiente concreto imediato.

Em resumo, a capacidade do ser humano para o desenvolvimento da linguagem, permite às crianças, usarem instrumentos auxiliares na solução de tarefas difíceis, superando a ação impulsiva, planejando uma solução para o problema antes de sua execução e controlando seu próprio comportamento.

CAPÍTULO 2: O DESENVOLVIMENTO DA PERCEPÇÃO E DA ATENÇÃO

O autor coloca que a relação entre o uso de instrumento e a fala afeta funções psicológicas como a percepção, as operações sensório-motoras e a atenção.

Alguns experimentos forma realizados e levaram a descobertas sobre algumas leis que caracterizam as formas humanas superiores de percepção.

Em primeiro lugar veremos o desenvolvimento da percepção de figuras pelas crianças. Observou-se que o estágio em que as crianças percebem objetos isolados precede o estágio em que elas são capazes de perceber a figura como um todo. Essas observações porém, contradizem aspectos psicológicos que sugerem que os processos perceptivos da criança são inicialmente fundidos e só posteriormente tornam-se diferenciados.

Para explicitar essa contradição colocada acima, Vygotsky concluiu que o que Stern dizia ser uma característica das habilidades perceptuais da criança, era na verdade um produto das limitações do desenvolvimento da sua linguagem, ou seja, um aspecto de sua percepção verbalizada.

5Algumas observações revelaram que a função primária da fala é a rotulação. Esta rotulação permite a

criança escolher um objeto específico a partir de uma situação global. Dessa forma a fala possibilita o conhecimento do mundo e torna-se parte essencial do desenvolvimento cognitivo da criança.

Mais tarde, a fala deixa de funcionar somente como ato de rotular e passa a assumir a função da percepção verbalizada. A função agora é sintetizadora, podendo a criança atingir formas mais complexas da percepção cognitiva.

As pesquisas desenvolvidas também, possibilitaram concluir que a percepção humana não ocorre apenas do ponto de vista de cor e forma, mas como um mundo com sentido e significado. Isso difere a percepção humana da percepção animal.

A percepção é assim, parte de um sistema dinâmico de comportamento, sendo fundamental a relação entre as transformações dos processos perceptivos e as transformações em outras atividades intelectuais.

Quanto a relação entre a percepção e a ação motora em crianças pequenas, Vygotsky coloca que todo o processo de seleção pela criança é externo e concentrado na esfera motora. Isto significa que na solução de problemas a criança faz sua escolha através de uma seleção dentre seus próprios movimentos.Quando há presença de signos (estímulos auxiliares) para a resolução de um problema, observou-se que a criança não mais resolve o problema impulsivamente. Ela é capaz de dominar seu movimento, pois reconstrói o processo de escolha em bases totalmente novas.

A atenção é outra função psicológica que embasa o uso de instrumentos, pois a capacidade de focalizar a atenção é essencial para o sucesso de qualquer operação prática.

A fala também auxilia a criança a dirigir sua atenção de uma maneira dinâmica. A atenção permite que a criança reorganize seu campo visual, o que não ocorre com os animais, pois o campo visual da criança engloba a totalidade de campos perceptivos que formam estruturas dinâmicas e sucessivas ao longo do tempo.

A capacidade da criança de combinar elementos de campos visuais num único campo de atenção, possibilita a reconstrução da memória, pois sintetiza o presente e o passado para atingir seus objetivos.A inclusão de signos em funções como a memória e a atenção, cria condições para que a criança possa lidar com elementos do passado, presente e futuro.

Esse sistema psicológico abrange duas outras funções: as intenções e as representações simbólicas das ações propositadas.

Observa-se, no entanto, que em todas as funções psicológicas a fala desempenha papel fundamental para o desenvolvimento das mesmas.

CAPÍTULO 3: O DOMINIO SOBRE A MEMÓRIA E O PENSAMENTO

Neste capitulo o autor aborda a utilização de signos nas manifestações concretas desempenhadas pelas crianças (desenho, escrita, leitura, etc).

O estudo da memória revela que existem dois tipos principais de memória. Uma delas refere-se a retenção das experiências reais, chamada de memória natural. Esta memória se aproxima da percepção, pois surge da influência direta dos estímulos externos sobre os seres humanos.

Outros tipos de memória estão associadas ao desenvolvimento social e incorporam o que chamamos de signos.

A utilização de signos no entanto é característica dos seres humanos, e permeia uma forma interinamente nova de comportamento. A diferença, no entanto, entre esse tipo de comportamento e as funções elementares, será encontrada nas relações entre os estímulos e as respostas em cada um deles. As funções elementares têm como característica fundamental à estimulação ambiental, enquanto que as funções superiores têm como característica a estimulação auto-gerada.

Todo comportamento pressupõe uma reação direta no ambiente (S-R). As operações com signos exige um elo entre o estimulo e a resposta. Esse elo é o que chamamos de signo, e age sobre o indivíduo e não sobre o ambiente. Constitui assim um ato complexo, pois confere à operação psicológica formas qualitativamente novas e superiores. Dá assim, condições ao indivíduo, com a ajuda de estímulos extrínsecos controlar seu próprio comportamento.

Leontiev conduziu experimentos que demonstram o papel dos signos na atenção voluntária e na memória.

Os resultados indicaram a existência do processo de lembrança mediada. Os signos externos vão se transformando em signos internos, processo esse denominado internalização.

Esses experimentos forma realizados com pessoas de diferentes idades e a internalização de signos é produzida pelo adulto como um meio de memorizar. Já a utilização de signos externos é feito por crianças em idade escolar.

Os processos mentais superiores tem como característica fundamental o aspecto mediado das operações psicológicas. As operações indiretas (comportamento mediado) não são inventadas ou deduzidas pela criança. As pesquisas desenvolvidas por Vygotsky concluíram que as operações indiretas ou com signos são resultado de um processo prolongado e complexo, sujeitos a todas as leis básicas da evolução

6psicológica. Sendo assim, as funções psicológicas superiores sujeitam-se à lei do desenvolvimento, surgindo através do processo dialético deste desenvolvimento.

De acordo com esta linha de pensamento é possível dizer que o processo geral do desenvolvimento está baseado de um lado pelos processos elementares que são de origem biológica. Por outro lado, estão as funções psicológicas superiores, de origem sócio-cultural. A história do comportamento da criança, nasce da junção dessas duas linhas.

É preciso também para estudar as funções psicológicas superiores atentar-se para duas formas de comportamento que surgem durante a infância: o uso de instrumentos e a fala humana. Dessa forma a infância é fundamental para o estudo do desenvolvimento.

Vygotsky faz menção também que existem muitos sistemas psicológicos de transição entre o nível inicial e os níveis superiores de comportamento. Esses sistemas de transição encontram-se entre o biológico e o cultural e é denominado história natural do signo. Ao estudar o processo mediado de memorização vários experimentos desenvolvidos por diferentes autores.

Como resultados obtiveram que existe um estágio de desenvolvimento intermediário, entre o processo elementar e o completamente instrumental, a partir do qual vão se desenvolver mais tarde, completamente mediadas.

Leontiev também apresentou estudos sobre o desenvolvimento das operações com signos no processo de memorização e concluiu que há, como nos estudos descritos acima, estágios posteriores do desenvolvimento da operação com signos durante a memorização.

A medida que a criança cresce, mudam-se as atividades evocadoras da memória, como o seu papel no sistema das funções psicológicas.

Com o desenvolvimento, ocorrem mudanças tanto na estrutura de uma função isolada (memória) mas também nas funções do processo de lembrança. Na realidade, o que muda são as relações interfuncionais que ligam a memória a outras funções.

As análises feitas a partir do estudo da memória sugerem que o ato de pensar na criança muito pequena é determinado pela sua memória. Mas à medida em que a criança avança no seu desenvolvimento a ação da memória não é mais a mesma.

Desse ponto de vista a memória, mais do que o pensamento abstrato, é característica fundamental dos primeiros estágios do desenvolvimento cognitivo. Segundo Vygotsky, “Para as crianças, pensar significa lembrar; no entanto, para o adolescente, lembrar significa pensar”.

Finalizando, a memória humana é distinguida da memória dos animais através do uso de signos que é característica única do ser humano.

CAPÍTULO 4: INTERNALIZAÇÃO DAS FUNÇÕES PSICOLÓGICAS SUPERIORES

O signo age como um instrumento da atividade psicológica de maneira análoga ao papel de um instrumento no trabalho. Mesmo assim, não há muita semelhança entre os instrumentos e os meios de adaptação que chamamos signos.

Vygotsky coloca que só é possível igualar fenômenos psicológicos e não psicológicos na medida em que se ignora a essência de cada forma de atividade, bem como, a diferença entre suas naturezas e papéis históricos. A partir disso realizou-se estudos empíricos para saber como os usos de instrumentos e signo estão mutuamente ligados, ainda que separados, no desenvolvimento cultural da criança.

Três pontos de investigação foram levantados:

1 - Analogia e os pontos comuns aos dois tipos de atividade;2 - Suas diferenças básicas e;3 - O elo psicológico real existente entre uma e outra.

Como analogia entre o signo e o instrumento temos a função mediadora que os caracteriza. Com relação a diferença mais essencial entre signo e instrumento, conclui-se que esta se baseia nas diferentes maneiras com que eles orientam o comportamento humano.

A função do instrumento é de orientação externa, pois leva mudanças nos objetos. Por outro lado, o signo constituI uma atividade interna, dirigindo para o controle do próprio indivíduo.

Quanto ao terceiro aspecto, a ligação real entre essas atividades é a função psicológica, superior ou comportamento superior.

No que diz respeito as operações com o uso de signos, Vygotsky coloca que há na fase inicial do desenvolvimento da criança, a utilização essencial dos signos externos. Através do desenvolvimento no entanto, as operações por ela (criança) desempenhadas passam a ocorrer num processo puramente interno (como exemplo a memorização).

À reconstrução interna de uma operação externa foi denominado de internalização. Esse processo de internalização consiste em algumas transformações:

a) Uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente.

7b) Um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal.

c) A transformação de um processo interpessoal num processo intrapessoal é o resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento.

Sendo assim, a internalização de formas culturais de comportamento envolve a reconstrução da atividade psicológica tendo como base as operações com signos. E essa internalização das atividades sociais que caracteriza a psicologia humana.

CAPÍTULO 5: PROBLEMAS DE MÉTODO

Com relação aos métodos de investigação e análise em psicologia, todos os experimentos baseiam-se numa estrutura chamada estímulo-resposta. A essência da experimentação é evocar o fenômeno em estudo de maneira artificial e estudar as variações nas respostas que ocorrem em relação às várias mudanças nos estímulos.

As escolas da psicologia que fazem uso desse método de experimentação confiam, é claro, em interpretações do tipo estímulo-resposta do comportamento.

Em meados de 1880 a psicologia introspectiva passou a utilizar essa estrutura estímulo-resposta, e teve suas raízes no solo firme das ciências naturais.

Wund, teórico das teorias subjetivas, utilizou esse método experimental, embora tratasse dos fenômenos psicológicos mais simples, ligados a agentes externos. Sendo assim, ele relatava as manifestações internas através das manifestações externas. Além disso, Wund acreditava que o estímulo e a resposta tinham a função única de criar uma estrutura na qual poderiam ser estudados os processos psicológicos.

Já para Vygotsky aponta limitações na aplicação desse método, pois as funções psicológicas superiores não podiam ser estudadas a partir de tal experimentação. Abrange somente as funções psicológicas elementares.

É diante dessas constatações que Vygotsky propõe uma nova metodologia em que o elemento-chave é o contraste estabelecido pelas abordagens naturalísticas e dialética para a compreensão da história humana. O elemento-chave então passa a ser a influência que a natureza tem sobre o homem, que por sua vez, também age sobre a natureza criando condições para sua existência. Assim é possível, segundo Vygotsky estudar e interpretar as funções psicológicas superiores do homem.

Se a estrutura da experimentação é outra, a análise das funções psicológicas superiores também necessita de reformulações e respeitam três princípios.

Análise de processos e não objetos: analisar processos é diferente de analisar objetos. A psicologia do desenvolvimento e não a psicologia experimental é que passa a fornecer dados para esse tipo de analise. A tarefa básica da pesquisa é a reconstrução de cada estágio no desenvolvimento do processo.

Explicação versus descrição: A análise deve deixar de ser descritiva e passar a ser explicativa, pois a descrição não revela as relações dinâmicas – causas reais subjacentes ao fenômeno.

Essa análise propõe revelar as relações e a essência dos fenômenos psicológicos ao invés de suas características perceptíveis, embora as manifestações externas não sejam ignoradas na análise.

O problema do “comportamento fossilizado” por “comportamento fossilizado” entende-se ser os processos psicológicos automatizados ou mecanizados, que são de origem remota e vão sendo repetidos até tornarem-se mecanizados. Perderam assim sua aparência original, sendo difícil discorrer sobre sua natureza interna. Como exemplo pode-se citar a atenção voluntária e involuntária.

Resumindo, é preciso concentrar-se não no produto do desenvolvimento, mas no próprio processo de estabelecimento das formas superiores.

Esse método dialético de pesquisa propõe como requisito básico, estudar alguma coisa historicamente, ou seja, no processo de mudança.

Finalizando essa questão, o objetivo e os fatores essenciais da análise psicológica são:

1 - uma análise do processo em oposição a uma análise do objeto;2 - uma análise revela as relações dinâmicas ou causais, isto é, uma análise explicativa e não descritiva;3 - uma análise do desenvolvimento que reconstrói todos os pontos da origem de uma estrutura.

O resultado disso é uma forma qualitativamente nova que aparece no processo de desenvolvimento.Para ilustrar as abordagens contrastantes da análise psicológica, Vygotsky propõe duas análises

diferentes de uma mesma tarefa. Ao colocar um indivíduo frente a um ou mais estímulos observa-se que ocorre uma resposta simples com a apresentação de um único estímulo e uma resposta complexa com a apresentação de vários estímulos. Isso pressupõe que a complexidade da tarefa é idêntica à complexidade da resposta interna do sujeito.

Existem porém algumas teorias como a de Titchener que contradizem essas afirmações.

8No entanto as análises feitas como no exemplo citado acima é uma análise psicológica fenotípica, pois

as reações complexas acabam sendo descritivas.A análise introspectiva por sua vez não permite avanços nos resultados dos trabalhos. Esse tipo de

análise não fornece explicação dinâmica ou causal real de um processo. Para que isso aconteça é preciso se ater na análise do desenvolvimento, não mais nas aparências típicas.

As pesquisas sobre reações complexas ilustra que a psicologia só depende da análise de processos depois que eles se tenham tornado fossilizados. Mesmo assim, para Vygotsky a reação complexa tem de ser estudada como um processo vivo e não como um objeto.

Vygotsky procurou mostrar com os seus experimentos que o desenvolvimento da criança caracteriza-se por uma alteração radical na própria estrutura do comportamento. Operações psicológicas que em estágios iniciais eram realizadas através de formas diretas de adaptação mais tarde são realizadas por meios indiretos.

Esse conceito de desenvolvimento utilizado por Vygotsky é o de um processo dialético complexo caracterizado pela periodicidade, desigualdade no desenvolvimento de diferentes funções, transformação qualitativa de uma forma em outra, inter-relação de fatores internos e externos e processos adaptativos.

Com relação ao método de pesquisa por ele utilizado pode-se dizer que lhe ajuda a tornar objetivos os processos psicológicos interiores. Vygotsky acredita que somente a “objetivação” dos processos interiores garante o acesso às formas específicas do comportamento superior em contraposição às formas subordinadas.

SEGUNDA PARTE: IMPLICAÇÕES EDUCACIONAIS

CAPÍTULO 6: DETERMINAÇÃO ENTRE APRENDIZADO E DESENVOLVIMENTO

Não é possível analisar psicologicamente o ensino e não nos referirmos à relação entre o aprendizado e o desenvolvimento em crianças em idade escolar.

Três grandes posições teóricas surgiram. A primeira se refere no pressuposto de que os processos de desenvolvimento da criança são

independentes do aprendizado. O aprendizado é então entendido como um processo necessariamente externo que não está envolvido ativamente no desenvolvimento. O desenvolvimento e a maturação são assim vistos como uma pré-condição do aprendizado, mas nunca como resultado dele.

A segunda proposição teórica é a de que a aprendizagem é desenvolvimento. O conceito de reflexo assume papel importante, pois o desenvolvimento é visto como o domínio dos reflexos condicionados. Dessa forma o desenvolvimento é visto como elaboração substituição de respostas inatas.

Diante dessas duas posições teóricas, os estudiosos dividiram-se em 2 pontos de vista: a primeira posição teórica afirma que 03 ciclos de desenvolvimento precedem os ciclos do aprendizado; enquanto a segunda os dois processos ocorram simultaneamente.

A terceira posição teórica procura englobar as duas anteriores. O desenvolvimento de baseia em dois processos diferentes e relacionados e que se influenciam.

De um lado a maturação que depende do desempenho do S.N.; e de outro o aprendizado que é considerado um processo de desenvolvimento. Como conseqüência, ao dar um passo na aprendizagem, a criança dá dois no desenvolvimento.

Algumas pesquisas demonstraram que a mente não é uma rede complexa de capacidades gerais como observação, atenção, memória, mas um conjunto de capacidades específicas que se desenvolvem independentemente. O aprendizado é a aquisição de muitas capacidades especializadas para pensar sobre várias coisas. Desenvolve também a capacidade de focalizar a atenção sobre várias coisas. (Thorndike).

Vygotsky, no entanto, rejeita as três posições teóricas discutidas acima e defende a idéia de que o aprendizado das crianças começa muito antes delas freqüentarem a escola. Dessa forma o aprendizado como ocorre na idade pré-escolar difere do aprendizado escolar, o qual está voltado para a assimilação de fundamentos do conhecimento científico. Para entender melhor qual a diferença entre esses dois aprendizados, Vygotsky descreve um novo conceito: a zona de desenvolvimento proximal.

O que se pretende é estabelecer as relações reais entre o processo de desenvolvimento e a capacidade de aprendizado, para isso determinou-se dois níveis de desenvolvimento.

O primeiro é o nível de desenvolvimento real, ou seja, o nível de desenvolvimento das funções mentais da criança estabelecidos a partir de ciclos de desenvolvimentos já completados.

A partir desse nível é possível estabelecer o que Vygotsky chamou de zona de desenvolvimento proximal. Ela é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes.

O nível de desenvolvimento real é então o nível de desenvolvimento real de uma criança que define funções que já amadureceram, ou seja, os produtos finais do desenvolvimento.

Através desse método é possível verificar quais os ciclos e processos de maturação que já foram completados, como os que estão em formação.

O desenvolvimento mental de uma criança só pode ser determinado então a partir dos seus dois níveis: o nível de desenvolvimento real e a zona de desenvolvimento proximal. Aquilo que uma criança pode

9fazer com assistência hoje, (zona de desenho proximal) ela será capaz de fazer sozinha amanhã (nível de desenvolvimento real).

Para melhor compreensão da zona de desenvolvimento proximal é preciso considerar o papel da imitação no aprendizado. A imitação no entanto passou de um processo puramente mecânico para o conceito de que a criança só consegue imitar aquilo que está no seu nível de desenvolvimento.

Com relação ao aprendizado e o desenvolvimento, é possível afirmar que ambos são processos diferentes, pois o processo de desenvolvimento progride de forma mais lenta e atrás do processo do aprendizado é desta seqüência que resultam as zonas de desenvolvimento proximal.

Por outro lado, existem relações dinâmicas altamente complexas entre os processos de desenvolvimento e aprendizado.

CAPÍTULO 7: O PAPEL DO BRINQUEDO NO DESENVOLVIMENTO

A criança satisfaz certas necessidades no brinquedo e sem entender essas necessidades não é possível entender o brinquedo como uma forma de atividade.O brinquedo é o mundo do ilusório e do imaginário onde os desejos não realizáveis podem ser realizados. E nesse sentido que o brinquedo é parte importante para a criança na fase pré-escolar. Nessa fase a criança tem desejos que não podem ser satisfeitos imediatamente, como acontecia quando era bebê. O brinquedo então é o meio de diminuir a tensão surgida a partir dos desejos não satisfeitos imediatamente.

A imaginação é um processo psicológico novo para a criança e representa uma forma especificamente humana da atividade consciente.

Ela surge da ação, como todas as funções conscientes.No brinquedo a criança cria uma situação imaginária.Para Vygotsky no entanto, essas considerações acima acerca do brinquedo são insatisfatórias. Para

ele o brinquedo não é uma ação simbólica, sendo importante considerar a motivação no brinquedo e também é importante os processos cognitivos dele decorrentes.

Ele coloca ainda que não existe brinquedo sem regras, pois a situação imaginária que permeia o brinquedo já contém regras de comportamento.

Isso leva a crer que os jogos com regras também implicam numa situação imaginária.No brinquedo os objetos perdem sua força determinadora. A criança vê um objeto, mas age de

maneira diferente em relação àquilo que vê. Assim, é alcançada uma condição em que a criança começa a agir independentemente daquilo que vê.

A ação numa situação imaginaria ensina a criança a dirigir seu comportamento não só através da percepção, mas também pelo significado dessa situação. Em crianças muito pequenas há uma fusão entre o significado e o que é visto.

Esta mesma ligação entre percepção e significado pode ser vista no processo de desenvolvimento da fala nas crianças.

Na idade pré-escolar começa a existir uma divergência entre os campos do significado e da visão, pois no brinquedo, o pensamento está separado dos objetos e a ação surge das idéias e não das coisas. A ação passa a ser determinada pelas idéias e não pelos objetos.

No brinquedo, o significado torna-se o ponto central e os objetos são deslocados de uma posição dominante para uma posição subordinada.

Através do brinquedo, a criança atinge uma definição funcional de conceitos ou de objetos, e as palavras passam a se tornar parte de algo concreto.

Pode-se dizer que o maior autocontrole da criança ocorre na situação de brinquedo, pois a criança vê-se frente a um conflito entre as regras do jogo e o que ela faria se pudesse agir espontaneamente.

Assim, o atributo essencial do brinquedo é que uma regra torna-se um desejo. Essa regra é, portanto interna, uma regra de autocontenção e autodeterminação, como diz Piaget. Resumindo, o brinquedo cria na criança uma nova forma de desejos, pois ensina a desejar, relacionando seus desejos a um “eu” fictício, ao seu papel no jogo e suas regras.

Separando ação e significado pode-se dizer que numa criança em idade escolar a ação predomina sobre o significado, ela é capaz de fazer mais do que ela pode compreender. Mas é nessa idade também, que surge uma estrutura de ação na qual o significado e o determinante. A criança ao querer realiza seus desejos. Ao pensar ela age. A imaginação, a interpretação e a vontade são processos internos conduzidos pela ação externa. Assim como o operar com o significado de coisas leva ao pensamento abstrato, observa-se que o desempenho da vontade, a capacidade de fazer escolhas conscientes, ocorre quando a criança opera com o significado de ações.

No brinquedo surge o campo do significado, mas a ação dentro dele ocorre assim como na realidade.Vygotsky conclui que o brinquedo não é o aspecto predominante da infância, mas é um fator

importante do desenvolvimento. No brinquedo ocorre uma mudança da predominância de situações imaginárias para a predominância de regras. E o brinquedo promove mudanças internas no desenvolvimento da criança.

Apesar de Vygotsky não considerar o brinquedo como a principal atividade do dia-a-dia da criança, ele afirma que o brinquedo contém todas as tendências do desenvolvimento sob a forma condensada. Ele mesmo é uma grande fonte de desenvolvimento.

10O brinquedo fornece uma estrutura básica para mudanças das necessidades e da consciência.Uma criança quando brinca reproduz uma situação real. O brinquedo é muito mais a lembrança de

alguma coisa que aconteceu do que imaginação.À medida que o brinquedo se desenvolve, observa-se um movimento em direção à realização

consciente de seu propósito.No final do desenvolvimento surgem as regras que quanto mais rígidas forem, maior é a exigência da

criança na atividade e mais tenso torna-se o brinquedo. Do ponto de vista do desenvolvimento, a criação de uma situação imaginária pode ser considerada um

meio para desenvolver o pensamento abstrato. No entanto, a essência do brinquedo é a criação de uma nova situação entre pensamento e situações reais.

CAPÍTULO 8: A PRÉ-HISTÓRIA DA LINGUAGEM ESCRITA

Vygotsky coloca que a escrita até agora ocupou um lugar muito estreito na prática escolar. Ensina-se a criança a desenhar letras e construir palavras, mas não se ensina a linguagem escrita. Isso ocorre porque os métodos para ensinar a ler e escrever não ensina a linguagem escrita às crianças. Diferentemente da linguagem falada, a linguagem escrita exige um treinamento artificial.

Até agora a psicologia tem considerado a escrita simplesmente como uma complicada habilidade motora. Quanto à linguagem escrita tem dado pouca atenção. Não a considera como um sistema particular de símbolos e signos cuja dominação prenuncia um ponto crítico em todo o desenvolvimento cultural da criança.

A linguagem escrita é constituída por um sistema de signos que designam os sons e as palavras da linguagem falada, que são signos das relações e entidades reais.

A pré-história da linguagem escrita para Vygotsky é mostrar o que leva as crianças a escrever, mostrando quais os pontos pelos quais passa esse desenvolvimento e qual sua relação com o aprendizado escolar.

Os gestos e os signos visuais são pontos importantes da pré-história da linguagem escrita. Os gestos são a escrita no ar, e os signos são simples gestos que foram fixados.

Os rabiscos das crianças e os desenhos das crianças são vistos primeiramente mais como gestos do que como desenhos no verdadeiro sentido da palavra. São signos (gestos) que foram fixados.

A segunda esfera de atividades que une os gestos e a linguagem escrita é a dos jogos das crianças. Para elas, alguns objetos podem denotar outros, pois não é importante o grau de similaridade com a coisa com que se brinca e o objeto denotado. Essa é a chave de todo a formação simbólica da criança.

Desse ponto de vista, o brinquedo simbólico das crianças pode ser entendido como um sistema muito complexo de “fala” através de gestos que comunicam e indicam os significados dos objetos usados para brincar.

Em alguns experimentos realizados por Vygotsky foi possível detectar que a partir de novos significados adquiridos nos jogos. Modifica-se a estrutura corriqueira dos objetos. O velho significado funciona como condição para o novo.

No desenho também o significado surge inicialmente com um simbolismo, pois eles surgem tarde a representação gráfica começa a representar um objeto.

R. Buhler notou que o desenho começa quando a linguagem falada já alcançou grande progresso.Inicialmente a criança desenha de memória e como mostrou Sully ela não se preocupa com a

representação, pois são muito mais simbolistas do que naturalistas.No entanto é observado que quando a criança faz um desenho usando a memória ela o faz à maneira

da fala, isto é, contando uma história, contendo certo grau de abstração.Com o desenvolvimento do desenho é possível dizer que a passagem de simples rabiscos para o uso

de grafias se dá porque a criança percebe que os traços feitos por ela significam algo.Vygotsky coloca que o desenho das crianças se torna linguagem escrita real, ou seja, a linguagem

falada permeia o desenho das crianças e isso é fundamental para o desenvolvimento da escrita e do desenho da criança.

Com relação ao simbolismo na escrita foi Luria quem iniciou o estudo. Através do experimento que realizou. Luria observou que traços não diferenciados e sem sentido, reproduzia frases. Os traços tornavam-se então símbolos memotécnicos.

Mais tarde, Vygotsky considerou esse estágio memotécnico como o primeiro precursor da futura escrita. Gradualmente esses traços indiferenciados são transformados em simples sinais indicativos e traços e rabiscos simbolizadores são substituídos por pequenas figuras e desenhos e estes por sua vez são substituídos por signos.

Os sinais escritos representam símbolos de primeira ordem, denotando objetos ou ações e a criança terá ainda de evoluir no sentido do simbolismo de segunda ordem, que compreende a criação de sinais escritos representativos de símbolos falados das palavras. Para isso a criança precisa descobrir que se pode desenhar, além das coisas, também a fala.

Foi essa descoberta que levou a humanidade ao método da escrita por letras e frases, a mesma descoberta conduz a criança à escrita literal.

11Vygotsky afirma que por mais complexo que seja o processo de desenvolvimento da linguagem

escrita, existe uma linha histórica unificada que conduz às formas da linguagem escrita.A linguagem escrita assume o caráter de simbolismo direto, passando a ser percebida da mesma

maneira que a linguagem falada.Essa visão da história do desenvolvimento da linguagem escrita nas crianças leva-nos a três

conclusões:A primeira refere-se ao ensino da escrita para a pré-escola, pois a criança nesta idade é capaz de

descobrir a função simbólica da escrita.Uma segunda conclusão é a de que a escrita deve ter significado para as crianças, de que uma

necessidade intrínseca deve ser despertada nelas e a escrita deve ser incorporada a uma tarefa necessária e relevante para a vida.

O terceiro ponto é a necessidade de a escrita ser ensinada naturalmente, como propôs Montessori.Em resumo, Vygotsky afirma que o que se deve fazer é ensinar às crianças a linguagem escrita, e não

apenas a escrita de letras.

POSFÁCIO

De acordo com o estudo da teoria de Vygotsky pode-se dizer que esta foi primeiramente indutiva, construída a partir da exploração da memória, da fala interior e do brinquedo.

Para Vygotsky, o desenvolvimento constitui a “num complexo processo dialético, caracterizado pela periodicidade, irregularidade no desenvolvimento das diferentes funções, metamorfose ou transformação qualitativa de uma forma em outra, entrelaçamentos de fatores externos e internos e processos adaptativos”. Para ele fazem parte do pensamento científico as alterações evolutivas e as mudanças revolucionárias.

Vygotsky abordou o problema do desenvolvimento através da determinação histórica e da transmissão cultural da psicologia dos seres humanos. Ele objetiva, ao mapear as mudanças ao longo do desenvolvimento, mostrar as implicações psicológicas do homem ao ser participante ativo de sua própria existência e mostrar que a cada estágio do seu desenvolvimento, a criança adquire meios para intervir no seu mundo e em si mesma.

Assim, a criação e o uso de estímulo auxiliares que tem início na infância é fundamental, pois permite a adaptação desse ser. Eles incluem, segundo Vygotsky, os instrumentos da cultura na qual a criança nasce, a linguagem das pessoas que se relacionam com as crianças e os instrumentos por ela produzidos, podendo ser o próprio corpo.

Enquanto Piaget destaca os estágios universais, com base mais biológica, Vygotsky se detém mais na interação entre as condições sociais em transformação e os aspectos biológicos do comportamento.

Vygotsky propõe um conceito para representar a interação entre as bases biológicas e as condições sociais do comportamento, chamado sistema funcional do aprendizado. Para isso usou tanto a psicologia contemporânea quanto o estudo do comportamento animal. Os sistemas funcionais segundo Vygotsky, estão baseados nas respostas do organismo como os reflexos condicionados e os incondicionados.

Vygotsky coloca que durante o desenvolvimento,aparecem sistemas psicológicos que unem funções separadas em novas combinações e complexos. Luria no entanto, retornou este conceito de Vygotsky e acrescentou que além da relação destas funções unitárias, o desenvolvimento também depende das experiências sociais da criança.

Nesta teoria, as funções psicológicas superiores constituem novos sistemas funcionais de aprendizado. Esses sistemas são flexíveis e adaptativos de acordo com o problema com o qual a criança se depara e com o estágio de desenvolvimento em que se encontra. Todo aprendizado novo é resultado do processo de desenvolvimento da criança.

Vygotsky afirma ainda que, o sistema funcional de aprendizado varia de uma criança para outra, embora possa haver semelhanças, pois depende das condições históricas de cada criança. Este é mais um dos pontos de discordância de Vygotsky e Piaget, que descreve estágios universais idênticos para cada criança.

O aprendizado depende também da memória mediada, que ocorre através da interação entre crianças e adultos. Vygotsky explora ainda o papel das experiências sociais e culturais através da investigação do brinquedo na criança. Durante o brincar, as crianças dependem e ao mesmo tempo transformam imaginativamente os objetos socialmente produzidos e os comportamentos disponíveis em seu ambiente.

O conceito marxista acompanha todas as idéias defendidas por Vygotsky. No entanto sua hipótese fundamental é que as funções mentais superiores são socialmente formadas e culturalmente transmitidas. Desta forma a criança consegue internalizar os meios de adaptação social e através dos signos. Mais tarde a integração dos símbolos socialmente elaborados (valores, crenças...) permite a expansão do entendimento da criança.

Diz Vygotsky: “se modificarmos os instrumentos de pensamento disponíveis para uma criança, sua mente terá uma estrutura radicalmente diferente”.

Quanto à linguagem, Vygotsky argumenta que ela é o próprio meio através do qual a reflexão e a elaboração da experiência ocorre. A fala humana é o comportamento de uso de signos mais importante do desenvolvimento da criança. Através da fala, a criança é capaz de se preparar para atividades futuras,

12planejar, ordenar e controlar o próprio comportamento e o dos outros. A fala atua na organização, unificação e integração de aspectos variados do comportamento da criança (percepção, memória e solução de problemas).

Por outro lado, os instrumentos e os signos não verbais, ao contrário da palavra, são também um meio eficaz de adaptação e solução de problemas.

Tanto o uso de instrumentos, como o uso de signos envolvem uma atividade mediada, embora os instrumentos sejam orientados externamente e os signos orientados internamente.

Vygotsky coloca ainda que a criança internaliza a linguagem social tornando-a pessoal e que num momento mais tarde pensamento e linguagem se unem: “Até certo momento, os dois seguem caminhos distintos, independente... Um certo momento esses caminhos se encontram, quando o pensamento torna-se verbal e a fala racional”.

Com relação as implicações educacionais, Vygotsky diz que durante os anos pré-escolares e da escola a criança expande suas habilidades conceituais através do brinquedo e do uso da imaginação.

Segundo Vygotsky, “ao brincar, a criança está sempre acima da própria idade, acima de seu comportamento diário, maior do que é na realidade”. Dessa forma, o brinquedo dirige o desenvolvimento.

Analogamente, a instrução e o aprendizado na escola estão avançados em relação ao desenvolvimento cognitivo da criança. Para Vygotsky, tanto o brinquedo como a instrução escolar, criam uma “zona de desenvolvimento proximal” que é descrito da seguinte forma: “a distância entre o nível real (da criança) de desenvolvimento determinado pela resolução de problemas independentemente e o nível de desenvolvimento potencial determinado pela resolução de problemas sob orientação de adultos ou em colaboração com companheiros mais capacitados”.

Vygotsky vê o aprendizado como um processo profundamente social e portanto enfatiza o diálogo e as diversas funções da linguagem na instrução e no desenvolvimento cognitivo mediado. Por este motivo é contrário ao uso de instrução programada e mecanizada para crianças tidas como “aprendizes lentos”.

Outro aspecto das colocações de Vygotsky e que continua um problema hoje, são a extensão e os objetivos da educação pública, o uso de testes padronizados para medir a potencial idade escolar das crianças e os modelos eficazes para o ensino e formulação de currículos.

Vygotsky crítica a intervenção educacional que se arrasta atrás dos processos psicológicos desenvolvidos ao invés de focalizar as capacidades e funções emergentes. Paulo Freire desenvolveu campanhas de alfabetização baseado neste conceito de Vygotsky, pois adaptou seus métodos educacionais ao contexto histórico e cultural de seus alunos, possibilitando a combinação dos conceitos espontâneos das crianças e os conceitos introduzidos pelos professores na situação de instrução.

Do ponto de vista histórico-cultural, Vygotsky enfatiza as qualidades únicas de nossa espécie, nossas transformações e nossa realização ativa nos diferentes contextos culturais e históricos. Seus estudos foram influenciados por Fridrich Engel, que enfatizou o papel crítico do trabalho e dos instrumentos na transformação da relação entre os seres humanos e o meio ambiente. Para ele, o papel ativo da história influencia no desenvolvimento psicológico humano.

Tanto Vygotsky como Engels enfatizam que ao longo da história o homem também “afeta e natureza, transformando-a, criando para si novas condições naturais de existência”, e não somente afetado pela natureza.

Concluindo, o trabalho de Vygotsky é ao mesmo tempo geral e específico, mas suas obras ainda são debatidas nos dias de hoje, como se discute um autor contemporâneo.

2) - LA TAILLE, IVES DE & OLIVEIRA, MARTA KOHL DE & DANTAS, LA TAILLE, IVES DE & OLIVEIRA, MARTA KOHL DE & DANTAS, TEORIAS PSICOGENÉTICAS EM DISCUSSÃO. SÃO PAULO: SUMMUS.

1992

A linguagem humana, sistema simbólico fundamental na mediação entre sujeito o objeto de conhecimento, tem para Vygotsky, duas funções básicas: a de intercâmbio social e a de pensamento generalizante...

A linguagem favorece processos de abstração e generalização.Vygotsky focaliza seu interesse pela questão dos conceitos no processo de formação de conceitos,

isto é, como se transforma ao longo do desenvolvimento o sistema de relações e generalizações contido numa palavra.

Para estudar o processo de formação de conceitos, Vygotsky utilizou uma tarefa experimental na qual apresentava-se aos sujeitos vários objetos de diferentes cores, formas, alturas e larguras, cujos nomes estavam isentos na face anterior de cada objeto. Esses nomes designavam “Conceitos artificiais”, isto é, combinações de atributos rotulados por palavras não existentes na língua natural. Os objetos eram colocados num tabuleiro diante do sujeito e os experimentados viravam um dos blocos, lendo seu nome em voz alta. Este bloco era colocado, com o nome visível, numa parte separada do tabuleiro e o experimentador explicava que esse era um brinquedo de uma criança de cultura, que havia mais brinquedos desse tipo entre os objetos do tabuleiro e que a criança deveria encontrá-los.

Ao longo do experimento, conforme a criança escolhia diferentes objetos como instância do conceito em questão, o pesquisador ia interferindo e revelando o nome de outros objetos, como forma de oferecer

13informações adicionais à criança. A partir dos objetos escolhidos, e de sua seqüência, e que Vygotsky propôs um percurso genético do desenvolvimento do pensamento conceitual.

Divide o percurso em 3 grandes estágios, subdivididos em fases:

1º) A criança forma conjuntos sincréticos, agrupando objetos com base em nexos vagos, subjetivos e baseados em fatores percentuais como a proximidade espacial, por exemplo os nexos são instáveis e não relacionados aos atributos relevantes dos objetos;2º) Chamado de “pensamento por complexos” – em um complexo as ligações entre seus componentes são concretos e factuais, e não abstratas e lógicas, as ligações factuais subjacentes aos complexos são descobertos por meio da experiência direta.

Assim, qualquer conexão factualmente presente pode levar à inclusão de um determinado elemento em um complexo esta é a diferença principal entre um complexo e um conceito.

A formação de complexos exige a combinação de objetos com base em sua similaridade, a unificação de impressões dispersas.

3º) A criança agrupa objetos com base num único atributo, sendo capaz de abstrair características isoladas da totalidade da experiência concreta, o que levará à formação dos conceitos propriamente ditos.

O percurso genético não é linear; é como se houvesse duas linhas genéticas, duas raízes independentes, que se unem num momento avançado do desenvolvimento para possibilitar a emergência dos conceitos genuínos.

A questão dos conceitos concretiza as concepções de Vygotsky sobre o processo de desenvolvimento: “o indivíduo humano, dotado de um aparato humano que estabelece limites e possibilidades para seu funcionamento psicológico, interage simultaneamente com o mundo real em que vive com as formas de organização dessa realidade pela cultura. Essas formas culturalmente dadas serão ao longo do processo de desenvolvimento internalizadas pelo indivíduo e se constituirão no material simbólico que fará a mediação entre o sujeito e o objeto do conhecimento”.

Vygotsky distingue os conceitos “cotidianos” ou “espontâneos” (experiência relatada), desenvolvidos no decorrer da atividade prática da criança e interações sociais imediatas do tipo de conceitos dos chamados “conceitos científicos”, que são aqueles adquiridos por meio do ensino, como parte de um sistema organizado de conhecimentos, onde as crianças são submetidas a processos deliberados de instrução escolar.

Pode se dizer que o desenvolvimento dos conceitos espontâneos da criança é ascendente, enquanto o desenvolvimento dos seus conceitos científicos é descendente, para um nível mais elementar e concreto.

Vygotsky afirma “embora os conceitos científicos e espontâneos se desenvolvam em direções opostas, os dois processos estão intimamente relacionados. E preciso que o desenvolvimento de um conceito espontâneo tenha alcançado um certo nível para que a criança possa absorver um conceito científico correlato. Por exemplo, os conceitos históricos só podem começar a se desenvolver quando o conceito cotidiano que a criança tem passado estiver suficientemente diferenciado – quando a sua própria vida e a vida dos que a cercam puder adaptar-se a generalização elementar “no passado e agora”, os seus conceitos geográficos e sociológicos devem se desenvolver a partir do esquema simples “aqui e em outro lugar”, ao forçar a sua lenta trajetória para cima, um conceito cotidiano abre o caminho para um conceito científico e seu desenvolvimento descendente. Cria uma série de estruturas necessárias para a evolução dos aspectos mais primitivos e elementares de um conceito, que lhe dão corpo e vitalidade. Os conceitos científicos, por sua vez, fornecem estruturas para o desenvolvimento ascendente dos conceitos espontâneos da criança em relação à consciência e ao uso deliberado. Os conceitos científicos desenvolvem-se para cima por meio dos conceitos científicos”?

As concepções sobre o processo de formação de conceitos científicos remetem a idéia mais gerais a cerca do desenvolvimento humano.

Em primeiro lugar, a particular importância da instituição escola nas sociedades letradas; os procedimentos de instrução deliberada que nela ocorrem são fundamentais na construção dos processos psicológicos dos indivíduos dessas sociedades.

“A intervenção pedagógica provoca avanços que não ocorreriam espontaneamente”. A importância da intervenção deliberada de um indivíduo sobre os outros como forma de promover

desenvolvimento articula-se com postulado básico de Vygotsky a aprendizagem é fundamental para o desenvolvimento desde o nascimento da criança.

“O processo ensino-aprendizagem que ocorre na escola propicia o acesso dos membros imaturos da cultura letrada ao conhecimento construído e acumulado pela ciência e a procedimentos metacognitivos, centrais ao próprio modo de articulação dos conceitos científicos”.

Diferentes culturas produzem modos diversos de funcionamentos psicológicos, assim, as diferenças qualitativas no modo de pensamento de indivíduos provenientes de diferentes grupos culturais estariam baseadas no instrumental psicológico advindo do próprio modo de organização das atividades de cada grupo.

“A construção de uma concepção que constitua uma síntese entre o homem enquanto corpo e o homem enquanto mente, objetivo específico do projeto intelectual de Vygotsky e seus colaboradores, permanece um desafio para a pesquisa e a reflexão contemporâneas, sendo uma questão central nas investigações sobre o funcionamento psicológico do homem”.

14O PROBLEMA DA AFETIVIDADE EM VYGOTSKY: Marta Kohl de Oliveira

Vygotsky menciona que um dos principais defeitos da psicologia tradicional é a separação entre os aspectos intelectuais, de um lado, e os volitivos e afetivos, de outro, propondo a consideração da unidade entre esses processos.

Além dos pressupostos mais gerais de sua teoria, várias são as “portas de entrada”, em sua obra, que permitem uma aproximação com a dimensão afetiva do funcionamento psicológico.

Em primeiro lugar escreveu textos sobre questões ligadas a essa dimensão (emoção, vontade, imaginação, criatividade) e um longo manuscrito sobre emoções. Em segundo lugar, escreveu comentários sobre psicanálise, tema também explorado por seu colaborador A. R. Luria.

As idéias de Vygotsky a respeito da consciência são tão centrais em sua concepção das relações entre efeito e intelecto, bem como suas idéias sobre alguns outros conceitos específicos, que têm uma ligação mais direta com a dimensão afetiva do funcionamento psicológico do homem.

Consciência toma a dimensão social da consciência como essencial, sendo a dimensão individual derivada e secundária.

O processo de internalização, de construção de um plano intrapsicológico a partir de material interpsicológico, de relações sociais, é o processo de formação da consciência.

Para Vygotsky “a internalização não é um processo de cópia da realidade externa num plano interior já existente; é mais que isso, um processo em cujo seio se desenvolve um plano interno da consciência”.

É clara a ligação com os postulados básicos de sua abordagem (fundamentação marxista): o funcionamento sócio-histórico do funcionamento psicológico do homem; a importância da mediação; a idéia de que a organização dos processos psicológicos é dinâmica e que as conexões interfuncionais não são permanentes.

A consciência seria a própria essência da psique humana, constituída, por uma inter-relação dinâmica e em transformação ao longo do desenvolvimento entre intelecto e afeto, atividade no mundo e representação simbólica, controle dos processos psicológicos, subjetividade e interação social.

SUBJETIVIDADE E INTERSUBJETIVIDADE

“A cultura não é pensada por Vygotsky como um sistema estático ao qual o indivíduo se submete, mas como um “palco de negociações em que seus membros estão em constante processo de recriação e reinterpretação de informações, conceitos e significados...”

Assim, o indivíduo ao tomar posse do material cultural, o torna seu e passa a utilizá-lo como instrumento pessoal do pensamento e ação no mundo.

O processo de internalização, que corresponde à própria formação da consciência, é também um processo de constituição da subjetividade a partir de situações de intersubjetividade.

Envolve a construção de sujeitos absolutamente únicos com trajetórias pessoais singulares e experiências particulares em sua relação com o mundo e, fundamentalmente, com as outras pessoas.

Sentido e Significado – as questões anteriores remetem-nos à questão da mediação simbólica, e conseqüentemente, à importância da linguagem no desenvolvimento psicológico do homem.

Conforme Vygotsky “é no significado que a unidade das duas funções básicas da linguagem: o intercâmbio social e o pensamento generalizante.”“... o significado propriamente dito refere-se ao sistema de relações objetivas que se formou no processo do desenvolvimento da palavra, constituindo num núcleo relativamente estável de compreensão da palavra, compartilhando por todas as pessoas que a utilizam. O sentido refere-se ao significado da palavra para cada indivíduo, composto por relações que dizem respeito ao contexto de uso da palavra às vivências afetivas do indivíduo”.

O DISCURSO INTERIOR

A forma internalizada da linguagem – ”discurso interior”, é um discurso sem vocalização, uma espécie de diálogo interno consigo mesmo; voltado interno para o pensamento, com a função de auxiliar o indivíduo em suas operações psicológicas.

Diferencia-se da fala exterior, é fragmentado, abreviado, contém quase só núcleos de significação, consistindo numa espécie de “dialeto pessoal”, compreensível apenas pelo próprio sujeito.

A função do discurso interior é apoiar os processos psicológicos mais complexos: processos de pensamento, de auto-regulação, de planejamento da ação de monitoração do próprio funcionamento afetivo-volitivo.

15DO ATO MOTOR AO ATO MENTAL - A GÊNESE DA INTELIGÊNCIA - SEGUNDO WALLON (Heloysa Dantas)

O grande eixo é a questão da motricidade; os outros surgem porque Wallon não consegue dissociá-lo do funcionamento da pessoa.

A psicogênese da motricidade se confunde com a psicogênese da pessoa, e a patologia do movimento com a patologia do funcionamento da personalidade.

O ato mental – que se desenvolve a partir do ato motor – passa em seguida a inibi-lo, sem deixar de ser atividade corpórea. Do relevo dado à função tônica, resulta a percepção da importância de um tipo de movimento associado a ela, e que é normalmente ignorado, obscurecido pelo movimento prático.

“Antagonismo, descontinuidade entre o ato motor e ato mental, anterioridade da modificação do meio social em relação ao meio físico: este são elementos essenciais à compreensão da concepção Walloniana”.

A seqüência psicogenética de aparecimento dos diferentes tipos de movimento acompanha a marcha, que se faz de baixo, para cima, do amadurecimento das estruturas nervosas.

– predominância dos gestões instrumentais, práticos, no cenário do comportamento infantil – começa a se estabelecer no 20 semestre de vida;– o amadurecimento cortical torna aptos os sistemas necessários à exploração direta sensório-motora da realidade: a marcha, a capacidade de investigação ocular sistemática;– início do primeiro ano: o ser está à mercê das suas sensações internas, viscerais e posturais;– o reflexo da preensão serão substituído por volta do 20 trimestre, por uma preensão voluntária (preensão palmar, depois a preensão em pinça aos 9 meses);– a competência do uso das mãos só está completa por volta do final do primeiro ano – define a mão dominante;

– competência visual: primeiro trajetórias mais simples, horizontais, depois as verticais, próximo ao final do primeiro ano, as circulares;

As competências básicas de pegar e olhar ainda não bastam para a exploração autônoma da realidade, descompassadas da possibilidade de andar. Wallon realiza aí o corte que dá entrada do período sensório-motor, e, com ele à etapa dominantemente prática da motricidade.

Quase ao mesmo tempo, a influência ambiental, aliada ao amadurecimento da região temporal do córtex, dará lugar à fase simbólica e semiótica.

Entram em cena movimento de natureza diversa, veiculadores de imagens: são os movimentos simbólicos ou ideomovimentos (expressão peculiar de Wallon – movimento que contém idéias).

O processo ideativo é inicialmente projetivo. Projeta-se em atos, sejam eles mímicos, na fala, ou mesmo nos gestos da escrita.

O controle do gesto pela idéia inverte-se ao longo do desenvolvimento.A transição do ato motor para o mental, ruptura e descontinuidade que assinalam a entrada em cena

de um novo sistema, o cortrial, pode ser acompanhada na evolução das condutas limitativas (longe de ampliar esta noção para alcançar a chamada imitação sensório-motora ou pré-simbólica).

Wallon restringe o termo imitação sensório-motor ou pré-simbólica às suas formas superiores, corticais, porque supõe nas outras a ação de mecanismos mais primitivos.

Distingue, desta forma, os “contágios” motores, ecocinesias, ecolalias, ecoprascias, simples mimetismo, da chamada imitação diferida, onde a ausência do modelo torna inquestionável a sua natureza simbólica.

A irritação realiza a passagem do sensório-motor ao mental.A reprodução dos gestos do modelo acaba por se reduzir a uma impregnação postural: o ato se torna

simples atitude. Este congelamento corporal da ação constituiria o seu resíduo último antes de se virtualizar em imagem mental.

À seqüência que leva ao sinal do símbolo, Wallon acrescenta o “simulacrio”, representação do objeto sem nenhum objeto substitutivo, pura mímica onde o significante é o próprio gesto.

“A imitação dá lugar à representação que lhe fará antagonismo: enquanto ato motor, ela tenderá a ser reduzida e desorganizada pela interferência do ato mental”.

A inteligência ocupa lugar de meio, de instrumento colocado à disposição da ampliação do desenvolvimento da pessoa.

Sujeito e objeto, afetividade e inteligência, construindo-se mutuamente, alternam-se na preponderância do consumo de energia psicogenética.

Correspondente ao primeiro ano de vida, dominam as relações emocionais com o ambiente e acabamento da embriogênese: trata-se de uma fase de construção do sujeito, onde o trabalho cognitivo está latente e ainda indeferenciado da atividade afetiva.

Com a função simbólica da linguagem, imagina-se pensamento discursivo, que mantém com a linguagem uma relação de construção recíproca. As primeiras manifestações se obteve a partir dos cinco anos, revestidas de características que sintetizou com nominação de sincretismo.

16Depois da latência cognitiva que acompanha os anos pré-escolares, ocupados com a tarefa de

reconstruir o eu no plano simbólico, a inteligência poderá beneficiar-se com o resultado da redução do sincretismo da pessoa.

A função da inteligência, para Wallon, reside na explicação da realidade. Explicar supõe definir: são estas, pois, as duas grandes dimensões em torno das quais se organizam os diálogos que compõem sua investigação.

Para Wallon, explicar é determinar condições de existência, entendimento que abraça os mais variados tipos de relações: espaciais, temporais, modais, dinâmicas, além das causas strictu sensu. Ele é seqüência da opção epistemológica Walloniana: para sua concepção dialética da natureza, tudo está ligado a tudo, além de estar em permanente devir.

Entre cinco e nove anos de idade, Wallon constatou uma tendência à redução do sincretismo e o aparecimento de uma forma diferenciada de pensamento a que chamou de “categorial”. Ela contém aquilo que para Wallon é a sua condição: a qualidade diferenciada da coisa em que se apresenta, tornada “categoria” abstrata, exigência “sine qua non” para a definição, e, por conseguinte, para a elaboração do conceito.

Esta é a mais fundamental de todas as diferenciações que se processam: só ela permitirá a atribuição das qualidades específicas de um objeto, tornando-o distinto dos outros, sem carregar consigo os demais atributos do objeto em que aparece. Enquanto ela não se processar, o pensamento binário permanecerá ao sabor das contradições, corolário Inevitável do sincretismo.

Wallon recusa persistentemente dar o passo que transforma sincretismo em egocentração: às explicações autocentradas, contrapõe outras de tendência inversa, encontrando na extrema instabilidade, e não em um eixo firmemente autocentrado, a característica maior da ideação infantil.

“A palavra carrega a idéia como o gesto carrega a intenção”.A linguagem, capaz de conduzir o pensamento, é também capaz de nutri-lo e alimentá-lo, estruturam-

se reciprocamente: produto da razão humana, ela acaba no curso da história, por se tornar sua fabricante; razão constituinte é razão constituída, conclusão inevitável que resulta de vê-Ia em perspectiva histórica.

A AFETIVIDADE E A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO NA PSICOGENÉTICA DE WALLONHeloysa Dantas

A dimensão afetiva ocupa lugar central, tanto do ponto de vista da construção da pessoa quanto do conhecimento, na psicogenética de Henry Wallon. Ambos se iniciam num período que ele denomina impulsivo-emocional e se estende ao longo do primeiro ano de vida.

A sua teoria da emoção tem nítida inspiração darwinista. A emoção constitui uma conduta com profundas raízes na vida orgânica.

A caracterização que Wallon apresenta da atividade emocional é complexa e paradoxal: ela é simultaneamente social e biológica em sua natureza; realiza a transcrição entre o estado orgânico do ser e a sua etapa cognitiva, racional, que só pode ser atingida através da mediação cultural, isto é, social.

A consciência afetiva é a forma pela qual o psiquismo emerge da vida orgânica: corresponde à sua primeira manifestação. Pelo vínculo imediato que instaura com o ambiente social, ela garante o acesso ao universo simbólica da cultura, elaborado e acumulado pelos homens ao longo da história.

“Esta posição na ontogênese ilustra o significado de que o psiquismo é uma síntese entre o orgânico e o social: ela indica precisamente o momento em que ela ocorre e permanece como conduta em que estão nítidos os dois componentes”.

A existência de fenômenos deste tipo faz com que, para Wallon, a melhor atitude metodológica a ser utilizada pela psicologia seja o materialismo dialético.

A toda alteração emocional corresponde uma flutuação tônica; modulação afetiva e modulação muscular acompanham-se estreitamente.

A análise Walloniana põe a ver três diferentes entradas para a obscura região em que se formam e reduzem as manifestações passionais; uma de natureza química, central; outra de tipo mecânico-muscular, periférica, e outra ainda de natureza abstrata, representacional.

Em sentido geral, a emoção pode ser descrito como potencialmente anárquica, explosiva imprevisível. Está aí a razão pela qual é tão raramente enfrentada pela reflexão pedagógica.

No seu momento inicial, a afetividade reduz-se praticamente às suas manifestações somáticas, vale dizer, é pura emoção.

Depois que a inteligência constrói a função simbólica, a comunicação se beneficia alargando seu raio de ação. Ela incorpora a linguagem em sua dimensão semântica, primeiro oral, depois escrita. A possibilidade de nutrição afetiva por estas vias passa a se acrescentar às anteriores. Instala-se a forma cognitiva de vinculação afetiva.

A construção do sujeito e a do objeto alimentam-se mutuamente; a elaboração do conhecimento, depende da construção do sujeito nos quadros do desenvolvimento humano concreto.

Nos momentos dominantemente afetivos do desenvolvimento o que está em sujeito, que se fé em pela interdição com outros sujeitos; naqueles de maior peso cognitivo, é o objeto, a realidade externa que se modela, à custa da aquisição das técnicas elaboradas pela cultura.

Ambos os processos são sociais, embora em sentidos diferentes: no primeiro, social é sinônimo de interpessoal: no segundo, é o equivalente de cultural.

17A PSICOLOGIA DA CRIANÇA - Jean Piaget

O desenvolvimento mental da criança surge como sucessão de 3 grandes construções. Cada uma delas prolonga a anterior, reconstituindo primeiro num plano novo, para ultrapassá-la em seguida e cada vez mais amplamente.

A construção de esquemas-sensórios motores prolonga e ultrapassa em seguida a cada vez mais amplamente.

A inteligência sensório-motora é essencialmente ser prática (alcançar, objetos afastados, escondidos, etc). Apóia-se em construções que se efetuar exclusivamente em percepções e movimenta (coordenação sensório-motora das ações), sem a intervenção da representação ou o pensamento. Apresenta 6(seis) estádios. E no curso do 5º estágio (+- cerca do 11º e 12º meses) acrescenta às condutas precedentes uma reação essencial: a procura de meios novos por diferenciação dos esquemas conhecidos. No último estágio a criança torna-se capaz de encontrar meios novos, através de combinações interiorizadas, que redundam numa compreensão súbita ou insight.

A percepção constitui um caso particular das atividades sensório motoras. Ela depende do aspecto figurativo do conhecimento do real ao passo que a ação no seu conjunto é inicialmente operativa e transforma o real.

Ao cabo do período sensório-motor, entre 1 ano e meio e 2 anos surge uma função fundamental para a evolução das condutas ulteriores, que consiste em poder representar alguma coisa por meio de um “significante” diferenciado e que só serve para essa representação: linguagem, imagem metal, gesto simbólico, etc. E a função semiótica ou simbólica (aparecem a imitação, o jogo simbólico, o desenho, as imagens mentais, a memória e a estrutura das lembranças = imagens, a linguagem).

A função semiótica apresenta notável unidade, a despeito da espantosa diversidade das suas manifestações.

“Consiste sempre em permitir a evocação representativa de objetos ou acontecimentos não percebidos atualmente. Mas, reciprocamente, se possibilita, dessa maneira, o pensamento, fornecendo-lhe ilimitado campo de ação, em oposição as fronteiras restritas da ação sensório-motora e da percepção, só progride sob a direção e graças às contribuições desse pensamento ou inteligência representativa.. .”

Assim, nem a imitação, nem o jogo, nem o desejo, nem a imagem, nem a linguagem, nem mesmo a memória se desenvolvem ou organizam sem o socorro constante da estruturação própria da inteligência.

No sub período pré-operatório de 2 a 7-8 anos ao sub período de remate, 7-8 a 11-12, desenrola-se um grande processo de conjunto, que pode ser caracterizado como passagem da centração subjetiva em todos os domínios (cognitivo, lúdico, afetivo, social e moral), à descentração a um tempo cognitiva, social e moral.

“O jogo, domínio de interferência entre os interesses cognitivos e afetivos, principia, no decorrer do sub-período de 2 a 7-8 anos, pelo apogeu do jogo simbólico, que é uma assimilação do real ao eu e a seus desejos, para evoluir em seguida na direção de jogos de construção e de regras, que assimilam uma objetividade do símbolo e uma socialização do eu”.

A afetividade amplia a sua escala à proporção da multiplicação das relações sociais.Os sentimentos morais e evoluem no sentido de um respeito mútuo e de uma reciprocidade cujos

efeitos de descentração são mais profundos e duráveis.As trocas sociais dão lugar a um processo de estruturação gradual ou socialização que passa de um

estado de não coordenação ou de não diferenciação relativa, entre o ponto de vista próprio e o dos outros, a um estado de coordenação de pontos de vista e de cooperação nas ações e informações.

Desde o nível de 11-12 anos, o pensamento formal nascente reestrutura as operações concretas, subordinando-as a estrutura novas, cujo desdobramento se prolongará durante a adolescência e toda a vida ulterior.

Entre 11-12 a 14-15 anos, o sujeito consegue libertar-se do concreto e situar o real num conjunto de transformações possíveis. A última descentração fundamental que se realiza no termo a infância, prepara a liberação do concreto em proveito de interesses orientados para o inatual e o futuro.

Um conjunto de síntese ou estruturações (pensamento formal e a combinatória, combinações proposicionais, etc), embora novas, prolongam direta e necessariamente as precedentes, preenchendo algumas de suas lacunas. Não se trata de superposição, mas sim de sínteses ou estruturações.

“...A diferença essencial entre o pensamento formal e as operações concretas é que estas estão centradas no real, ao passo que aquele atinge as transformações possíveis e só assimila o real em função desses desenvolvimentos imaginados ou deduzidos. Ora, tal mudança de perspectiva é tão fundamental do ponto de vista afetivo quanto do ponto de vista cognitivo, pois o mundo dos valores também pode permanecer aquém das fronteiras da realidade concreta e perceptível ou, ao contrário, abrir-se para todas as possibilidades inter-individuais ou sociais”.

A autonomia moral, que principia no plano inter-individual no nível de 7 a 12 anos adquire e com o pensamento formal, uma dimensão a mais no manejo do que se poderia denominar os valores individuais ou supra individuais.

183) - ESTRELA, MARIA TEREZA.RELAÇÃO PEDAGÓGICA, DISCIPLINA E INDISCIPLINA.COLEÇÃO CIÊNCIAS DA NATUREZA 1992

A manutenção da disciplina constitui uma preocupação de todas as épocas. No dicionário, assim se define disciplina: regime de ordem imposta ou livremente consentida; ordem

que convém ao funcionamento regular de uma organização; relação de subordinação do aluno ao mestre; submissão a um regulamento.

A indisciplina escolar pode tocar as fronteiras da delinqüência, ela raras vezes é delinqüência, pois não viola a ordem legal da sociedade, mas apenas a ordem estabelecida na escola.

Como vemos, a disciplina/ indisciplina, na escola, é um fenômeno que decorre da sociedade e de seu sistema de ensino, mas é também um fenômeno essencialmente escolar, tão antigo como a própria escola e tão inevitável como ela.

A indisciplina, na escola, tem suas características próprias e só adquire significado em relação ao processo pedagógico em curso, devendo ser compreendida levando-se em conta a função que desempenha nele. Só tendo uma postura investigativa em relação ao fenômeno da indisciplina, o mesmo será inteligível transparecendo o como e o porquê. Por outro lado, acreditamos que conteúdos, devem ser significativos para o aluno, contextualizados à sua realidade e relacionados interdisciplinarmente.

A aprendizagem só pode acontecer produzida a partir de um contato efetivo com os conteúdos.O professor deixa de ser o transmissor direto do saber para se transformar no organizador do

ambiente de aprendizagem. Um exercício equilibrado da autoridade exige que o professor conheça e tome em consideração os modelos de autoridade que os alunos tem interiorizado quando chegam às escolas para melhor poder agir sobre eles. A função organizativa desempenhada pelo professor tem, portanto, um efeito preventivo da indisciplina.

Esta verdade é cabível para os conhecimentos ditos escolares, com certeza também o é para atitudes, normas, valores, comportamento em geral. Embora a imitação e o contato com normas e valores do grupo a que o indivíduo pertence façam parte do processo de aprendizagem, só podemos considerar que o sujeito realmente se modificou e, portanto, aprendeu quando ele elabora e assume a autoria de seus valores.

Assim disciplina não poderá nunca obter-se “por ordens”, mas resulta do respeito pelas leis naturais e pelos princípios de trabalho e de liberdade. Os conflitos não se resolvem por censuras ou punições mas por elucidação dos fenômenos de grupo, servindo o professor de espelho ao grupo. E se houver lugar para sanções, caberá ao grupo decidir que medidas tomar em relação a alguém que prejudica o seu funcionamento. A este encaminhamento damos o nome de autogestão, dando forma à autonomia que se espera dos alunos.

Partindo desses pressupostos, propomos uma leitura pedagógica de disciplina e da indisciplina na aula, uma interpretação que permita distinguir o que acontece na escola e, principalmente, na sala de aula de outras formas de rompimento de ordem social.

Essa “leitura pedagógica” da disciplina requer que se pense na função da escola, em sua missão, objetivos e nos conceitos de aprendizagem, com especial ênfase nas relações professor/aluno e ensino/aprendizagem, não porque se pretenda culpabilizar ou desculpabilizar os protagonistas, mas porque propomos ajudá-los a entender seus papéis, nessa relação tão delicada.

Vejamos, o início da adolescência. Nessa fase, que tem início na quinta série do Ensino Fundamental, costumamos dizer que os alunos estão iniciando uma travessia entre o mundo da infância e o dos adultos, e é muito importante que ativem recursos necessários para empreender essa significativa e necessária viagem.

Ao contrário, meninos e meninas passam por grandes modificações, começam a contestar as normas vigentes, buscam a aprovação de seus pares, expõem-se a perigos, angustiam-se, sentem-se ora inseguros, ora poderosos e autônomos. Pais e professores representam porto seguro e, ao mesmo tempo figuras que ameaçam dominá-los.

Assim no grupo escola os alunos agregam-se por afinidades várias e dentro desses grupos verificam-se os fenômenos relacionais próprios dos pequenos grupos como luta pela liderança, emergência de líderes informais, pressão pra conformidade, procura de fins comuns que assegurem a coesão e a moral do grupo.

É possível para os professores ignorarem esse momento e trabalhar seus conteúdos disciplinares como se nada estivesse acontecendo? E mais: se essas são as principais preocupações dos pré-adolescentes, se eles não conseguem pensar em outra coisa, se agitam e se agridem, não poderiam esses conteúdos se transformar em poderosos aliados do processo de ensino aprendizagem?

Ao construir junto com os alunos as normas de comportamento, ou, ao lidar com os conflitos e transgressões, em primeiro lugar, pode-se transformar essas vivências em aprendizagens, através do processo de elaboração.

Construir uma vivência implica levantar todos os dados possíveis da situação: é como se circulássemos em termo de um objeto, olhando-o a partir de diversos pontos de vista para construir uma representação mais completa possível dos fatos. (Comparando-se com o ensino-aprendizagem de qualquer conteúdo, estaríamos na fase de levantar os conhecimentos prévios).

Partindo desse conhecimento objetivo, podemos então buscar as relações subjetivas: para quê, por quê, como a fim de que os alunos possam ter maior clareza de seu comportamento e o dos outros, das modalidades de relacionamento, das noções de hierarquia, de autoridade, de afeto e cumplicidade envolvidos. Vão percebendo as vantagens e desvantagens para si e para os outros de agir de uma determinada maneira

19(fase do estabelecimento de relações entre os vários elementos, fatos, conceitos, procedimentos, valores, pode-se começar a definição dos procedimentos e sua testagem na prática (momento de experimentar, corrigir rumos, chegar a conclusões e, talvez, sistematizar e fixar).

Nessa percepção construída pelo sujeito pode, verdadeiramente, transformar as atitudes. Punições desvinculadas desse processo não se transformem em valores verdadeiramente incorporados, e estes tendem a desaparecer, longe da vista da autoridade. Exclusão pura e simples do aluno, seja da atividade ou até da escola, significa desistência do educador de sua missão, desistência daquele aluno, o que pode até acontecer, mas para ninguém é desejável.

Isso não quer dizer que, no caso de indisciplina, não existam punições. Estas fazem parte do trabalho de elaboração e devem ser sempre muito trabalhadas com os alunos. Em casos extremos e raros, podem existir punições grupais, quando um conjunto de alunos participou direta ou indiretamente de um episódio inaceitável.

Além desse trabalho diretamente ligado aos atos de indisciplina ou ao conteúdo “disciplina” na sala de aula, na escola e na vida, a “leitura pedagógica” das transgressões escolares (ou não) dos alunos envolve também todas as possíveis relações com os conteúdos escolares.

Partindo do perfil da fase escolar e da possível caracterização da sala de aula que o professor tenha, podem-se propor intervenções que, ao mesmo tempo, trabalhem o assunto disciplina, mas que principalmente, transformem esses fatos perturbadores em centros integradores de trabalho interdisciplinar, usando o poder ilimitado que eles têm como fonte motivadora dos alunos e mobilizadora das suas melhores e mais fortes potencialidades.

É na escola e pela ação cotidiana que se revelam as necessidades de formação do professor, se forja a sua identidade profissional e se afina o seu projeto de vida.

Em síntese no livro “Relação Pedagógica, Disciplina e Indisciplina na Aula” podemos concluir, que para o professor ter a postura acima é preciso que ele tenha uma formação e “treino” profissional. Se temos de reconhecer que nas últimas décadas quase todos os países ocidentais se têm se preocupado com a formação dos seus docentes, temos de reconhecer também que essa formação tem secundarizado os aspectos relacionais do ensino em favor dos conteúdos e da didática. De certo que o domínio dos conteúdos e das formas da sua transmissão são alicerces da competência docente, mas alicerces frágeis se não forem acompanhados da chave mestra que é a competência relacional.

Se é claro que muitos professores, capazes de estabelecerem uma boa relação com os alunos, falham por que não dispõem de competência cientifica e didática que apóie a competência relacional, não é menos certo que muitos professores competentes nas matérias de ensino e dispondo de recursos didáticos não conseguem fazer passar a mensagem, por que o clima relacional e disciplinar da turma o não permite.

É sabido que as competências relacionais são susceptíveis de aquisição e desenvolvimento. Os trabalhos que são realizados de investigação colocaram em evidência uma série de competências

do professor em correlação com os comportamentos disciplinares dos alunos que podem fundamentar programas de formação e de autoformação dos professores tornando-os mais aptos a estabelecerem com os seus alunos uma relação positiva que permita a paz, harmonia, e a ordem necessária ao trabalho produtivo da aula. Formação e autoformação que passam pela aquisição de uma atitude científica que leva a interrogar e problematizar o real e a pôr-se a si próprio em questão, enquanto elemento desse real. Essa atitude está na base das competências de diagnóstico, intervenção e avaliação hoje requerida a todos os docentes.

A realização de um bom trabalho exige que haja uma boa organização do mesmo, ou seja, o trabalho deve ser variado, requerendo formas de atividade individual, em pequeno grupo e coletiva, de maneira a conciliar as necessidades de desenvolvimento individual com as necessidades de socialização de que a escola não se pode alhear. Devemos sempre nos lembrar que o ato pedagógico exige decisões claras e coerentes.

É preciso reinventar a riqueza original da escola, ou seja, precisamos desejar a reparticipação do aluno na escola, esta precisa ser encarada também como um local onde se recebem informações. É preciso uma mudança urgente na sua estrutura piramidal ele precisa passar a funcionar em rede onde há interação mútua a todos os níveis.

Sabemos que se isso não acontecer a escola irá se despedaçar com violência. E quem o fará serão os próprios alunos. Para que este grande incidente não tome conta do cenário da escola é preciso que os professores hajam com eficiência e eficácia.

4) - AQUINO, JULIO R. GROPPA A DESORDEM NA RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO: INDISCIPLINA, MORALIDADE E CONHECIMENTO.INDISCIPLINA NA ESCOLA: ALTERNATIVAS TEÓRICAS E PRÁTICAS

AQUINO, Julio R. Groppa

O autor inicia o texto com o Gabriel “O Pensador” – ”Estudo Errado” para afirmar algumas inquietações sobre o que ocorre com a educação brasileira. Ao se discutir os papéis, temos as dimensões – epistêmica, socializante, profissionalizante – inerentes à escola e ao ensino, conseqüentemente, à educação.

Pensando na problemática da indisciplina, há que se fazer um recuo estratégico do pensamento: quais os seus significados e quais os recursos de enfrentamento do tema?

20Em torno da circunscrição do tema.

O fenômeno é conhecido, porém a sua relevância teórica não é tão clara e os estudos também são restritos.

Nos relatos há bagunça, tumulto, falta de limite, desrespeito... bem como que essa problemática está presente nas escolas pública e privada. Além disso, tem caráter interdisciplinar, transversal à Pedagogia.

Da mesma forma que não é possível entender a escola como instituição independente ou autônoma frente às outras instituições, não dá para supor que o que acontece no seu interior não tenha ligação com os movimentos exteriores à ela. O “social” também é efeito e nunca causa primeira.

O olhar sócio-histórico: a indisciplina como força legítima da resistência

As práticas escolares são testemunhas protagonistas das transformações históricas, assim temos que admitir que a indisciplina nas escolas também revela algo interessante sobre os dias atuais.

O autor traz um texto de 1922 com recomendações disciplinares, isto é, correções inclusive quanto ao controle e ordenação do corpo e da fala. Porém aquela escola “do passado” tinha por base o castigo ou ameaça dele. É a isto que devemos saudar? Deduz-se que as relações escolares eram de subordinação e obediência (o professor não só sabem mais, mas também está mais próximo da lei).

Junto com a democratização do país, em termos políticos, uma nova geração surgiu. Novos sujeitos históricos. Porém, temos como medida pedagógica padrão, aquele aluno submisso e temeroso.

Outro item problematizador deste mito da escola de outros tempos, é relativo ao direito à escolaridade básica de oito anos, como sendo muito recente (década de 70). Um grande numero de educadores discutiram e defenderam a democratização do ensino, mas poucos defenderam a ampliação das vagas, alegando que “rebaixaria a qualidade do ensino”.

A grande maioria dos ideais que dirigem a escolarização ainda são direcionados para um aluno abstrato, idealizado e desenraizado dos condicionantes sócio-históricos.

Assim esse novo sujeito histórico estaria ingressando numa ordem arcaica e despreparada para recebê-lo plenamente. Assim a origem da indisciplina estaria na rejeição operada por essa escola incapaz de administrar novas formas de existência social concreta, expressas nas alterações do perfil da clientela. Assim, a indisciplina seria a força legítima de resistência à instituição escolar.

O olhar psicológico: a indisciplina como carência psíquica infra-estrutural

Na abordagem psicológica compreende o “reconhecimento da autoridade” externa que é anterior à escolarização, daí porque a queixa dos educadores sobre a inexistência, no aluno da noção de autoridade.

Indiscutivelmente há que se pensar que a estrutura escolar juntamente com a familiar, pois são duas dimensões que se articulam.

Portanto, a educação não é responsabilidade integral da escola; este é um dos eixos que compõem todo o processo.

Porém na relação professor-aluno que ainda existe, percebe-se a ênfase à normatização individual, esvaziando a escola de seu objetivo maior (trabalho de recriação do legado cultural). Investe-se muito mais energia como na questão disciplinadora do que com a tarefa epistêmica fundamental.

Assim, investir numa sedimentação moral do aluno exigiria uma posição consensual dos envolvidos sobre esta infra-estrutura psíquica e isto não existe. A tarefa docente, ao contrário é bem definida e diz respeito ao conhecimento acumulado (e não é pouca coisa).

Conseqüentemente temos observado: desperdício da força de trabalho e do talento do educador, desvio de funções desses professores; quebra do contrato pedagógico, com implicações éticas, pois o trabalho raramente se cumpre de maneira satisfatória.

Das implicações das diferentes leituras.

Na abordagem sócio-histórico a escola é palco do encontro dos movimentos históricos, do ponto de vista psicológico ela é afetada pelas alterações da estrutura familiar.

Primeiramente analisa-se a indisciplina sob a ótica do “autoritarismo”, no segundo, há o conceito de “autoridade” enquanto infra-estrutura psicológica para o trabalho pedagógico.

Não é plausível entender a indisciplina como exclusivamente relativa ao aluno, tornando-a problema psicológico/moral, nem creditá-la à estruturação escolar ou às ações docentes, fazendo dela um problema eminentemente didático-pedagógico.

O autor afirma que é fenômeno transversal ao professor/aluno/escola, sendo muito mais um dos efeitos do “entre pedagógico”.

21A relação professor-aluno como recorte

A relação entre professor e aluno está a matéria-prima a partir da qual se produz o “objeto institucional” -é aquilo que a instituição se apropria, reclamando a soberania e a legitimidade de sua posse ou guarda. (Exemplo: - conhecimento na escola, salvação na religião, direito no judiciário etc...).

Os agentes institucionais são os que teriam o direito de posse ou guarda do objeto, enquanto a clientela seria a que se posiciona como alvo da ação dos agentes. Portanto o conhecimento, a saúde, só existiriam mediante a ação concreta desses protagonistas responsáveis. Para essa ação são necessárias a repetição e a legitimação. Assim, a escola é referendada aos olhos das pessoas que a praticam. Para compreender-se a indisciplina precisamos retomar a relação professor-aluno. Os vínculos cotidianos e a maneira como cada qual se posiciona perante o outro complementar.

Ao aluno pode faltar pré-requisito da infra-estrutura moral para o trabalho pedagógico, haveriam de ser criadas pelo professor (até pelo seu conhecimento) condições para a sedimentação dessa infra-estrutura, mesmo que se apresentasse de maneira fragmentada.

O que deve regular a relação é uma proposta de trabalho baseada no conhecimento. O resgate da moralidade discente ocorrerá na medida em que o trabalho do conhecimento pressupor a observância de regras, semelhanças e diferenças. Nessa perspectiva, a matemática, as línguas, as ciências e as artes também são moralizadoras.

Por uma nova ordem pedagógica

Considerando que a relação professor-aluno deve ser pautada no próprio conhecimento é possível prever-se que a questão disciplinar deixará de ser dilema maior para as práticas pedagógicas, ou virá a ter novos sentidos mais produtivos. Essa é a “nova ordem pedagógica”. Resguardado as devidas proporções. É permitido afirmar-se que não importam tanto os aparatos técnico-metodológicos que o docente possua e sim que valor maior possui a (re) construção da compreensão do mundo mediada por maneiras próprias de conhecer.

A função da escola estará ligada à fermentação da experiência do sujeito, na aventura humana da busca incessante de uma visão de conhecimento mais ampliada.

O trabalho do aluno torna-se relevante tanto quanto o professor, pois terá de operar os conceitos levando em consideração os vários condicionantes que tornam sua ação relativizada. Prevê-se um movimento organizado na estruturação dessa engrenagem que é o pensamento lógico independentemente de matéria específica. É presumível, também, que uma nova espécie de disciplina possa despontar, pois estará ligada a movimento, vontade de transpor o obstáculo.

“Disciplina torna-se, então, vetor de rebeldia para consigo mesmo e de estranhamento para com o mundo – qualidades fundamentais do trabalho humano de conhecer”.

As mudanças de rumos dependerão de uma “conduta dialógica” do educador quando proporcionar a intervenção pedagógica adequada. O ofício do docente exigirá a “negociação” constante, quanto às estratégias, à avaliação, aos objetivos, aos conteúdos, sempre objetivando a flexibilização das delegações que cabem às instituições.

Para essa “negociação” são necessários:

– investimento nos vínculos concretos;– fidelidade ao contrato pedagógico;– predisposição para a mudança e para a invenção.

22

AVALIAÇÃO

1. PERRENOUD. PHILIPE. PEDAGOGIA DIFERENCIADA: DAS INTENÇÕES À AÇÃO. PORTO ALEGRE: ARTMED.

2. PERRENOUD. PHILIPE . DEZ NOVAS COMPETÊNCIAS PARA ENSINAR. PORTO ALEGRE: ARTMED, 2000.

3. HADJI, CHARLES - AVALIAÇÃO DESMISTIFICADA. PORTO ALEGRE: ARTMED.

4. LUCKESI, CIPRIANO CARLOS. AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM ESCOLAR. SÃO PAULO: CORTEZ, 1997.

231) PERRENOUD. PHILIPE. PEDAGOGIA DIFERENCIADA: DAS INTENÇÕES À AÇÃO. PORTO ALEGRE: ARTMED.

DA INDIFERENÇA ÀS DIFERENÇAS NAS PEDAGOGIAS DIFERENCIADAS: ITINERÁRIOS

As pedagogias diferenciadas inspiram-se, em geral, em uma revolta contra o fracasso escolar e contra as desigualdades. Assim, em uma perspectiva militante, parece urgente agir, propor dispositivos e instrumentos. Essa atuação é, muitas vezes, fundada em uma análise bastante rápida do próprio fracasso e de suas causas, de modo que um grande número de professores generosos lança-se de corpo e alma em uma diferenciação aproximada, sem bases sólidas e, portanto, sem futuro. Saem dessa empreitada esgotados e amargos. Essa passagem excessivamente rápida das intenções à ação não leva a um ganho de tempo. Seria importante, ao contrário, não queimar as etapas, assimilar que, no fundamento de qualquer pedagogia diferenciada digna desse nome, deve-se explicitar e validar uma análise aguçada dos mecanismos geradores das desigualdades já que são eles que se trata de neutralizar. Ela seria tanto mais necessária porque é, como veremos, a própria organização do trabalho pedagógico que produz o fracasso escolar.

O FRACASSO ESCOLAR, UMA REALIDADE FABRICADA

Normalmente, define-se o fracasso escolar como a simples conseqüência de dificuldades de aprendizagem e como a expressão de uma falta "objetiva" de conhecimentos e de competência. Essa visão, que "naturaliza" o fracasso, impede a compreensão do que ele resulta de formas e de normas de excelência instituídas pela escola, cuja execução local revela algumas arbitrariedades, entre as quais a definição do nível de exigência, do qual depende o limiar que separa aqueles que têm êxito daqueles que não os têm.

Nas sociedades humanas, quase todas as desigualdades culturais que correspondem a uma forma ou outra de domínio do real proporcionam classificações, que os sociólogos chamam de "hierarquias de excelência", para distingui-las de outros tipos de hierarquias. A excelência define-se como a qualidade de uma prática, na medida em que se aproxima de uma norma ideal. Ela remete a competências subjacentes, isto é, a uma “hierarquia de competência”.

0 fracasso escolar não é a simples tradução “lógica" de desigualdades tão reais quanto naturais. Não se pode pura e simplesmente compará-lo a uma falta de cultura, de conhecimentos ou de competências. Essa falta é sempre relativa a uma classificação, ela própria ligada a formas e a normas de excelência escolar, a programas, a níveis de exigência, a procedimentos de avaliação.

Sendo assim, a análise dos procedimentos de avaliação não dispensa a explicação da gênese das desigualdades reais nos domínios cobertos pelas formas e pelas normas de excelência. Ao contrário, ela convida a não esquecer jamais:

- por um lado, que o fracasso escolar é sempre relativo a uma cultura escolar definida, ou seja, a formas e normas particulares de excelência, a programas e a exigências;

- por outro, que a medida da excelência, por intermédio dos procedimentos de avaliação nunca é um simples reflexo das desigualdades de conhecimentos e de competências, que ela as dramatiza, amplia-as, desvia-as às vezes e, sobretudo, põe as hierarquias de excelência a serviço de decisões que as sobre-determinam.

As diferenças e as desigualdades extra-escolares - biológicas, psicológicas, econômicas, sociais e culturais - não se transformam em desigualdades de aprendizagem e de êxito escolar, a não ser ao sabor de um funcionamento particular do sistema de ensino, de sua maneira de “tratar" as diferenças.

Hoje, depois de mais de 20 anos de debates sobre a diferenciação possível e desejável do ensino, a maioria dos sistemas escolares ainda mantém amplamente a ficção segundo a qual todas as crianças de seis anos que entram na primeira série da escola obrigatória estariam igualmente desejosas e seriam capazes de aprender a ler e a escrever em um ano. Todo mundo sabe que isso é falso, o que não impede que tal ficção permaneça no princípio da estrutura escolar, do tratamento das faixas etárias e da distribuição do programa em graus anuais. No início da escolaridade obrigatória, as diferenças de idades são as únicas que a escola aceita levar em conta. Para afrontar a formidável diversidade dos ritmos de desenvolvimento, desejou-se ignorar ou deixar por conta das dispensas por idade o fato de que, aos seis anos, certos alunos possam manifestar um nível de desenvolvimento que outros só atingirão aos sete ou oito, ao passo que outros já o haviam atingido aos quatro ou cinco. Um atraso de desenvolvimento só é considerado quando tiver originado dificuldades graves, até mesmo um fracasso. A repetição da primeira série de escolaridade obrigatória, que pretende aumentar a homogeneidade dos alunos que passam para o ano seguinte, está muito fortemente ligada à classe social, que é, assim, indiretamente considerada, por uma medida de diferenciação grosseira e cujos efeitos são duvidosos.

Quanto às diferenças que não dizem respeito a um avanço ou a um atraso do desenvolvimento, elas tem alguns remédios conhecidos, utilizados apenas quando as dificuldades são confirmadas: reprovação, apoio pedagógico, atendimento médico-pedagógico ou psiquiátrico. A escola não pensa realmente sobre as diferenças; ela trata seus efeitos com meios rudimentares.

Para compreender como desigualdades e diferenças de desenvolvimento intelectual e de capital cultural transformam-se em desigualdades de aprendizagens escolares e, mais dia menos dia, em êxitos ou fracassos, convém não cair na caricatura. A indiferença às diferenças jamais é absoluta. Nenhum professor trata todos

24seus alunos como iguais em direitos e deveres. Ele pratica, voluntariamente ou não, uma forma de diferenciação do ensino. Um grupo de 20 a 30 alunos não formam um grupo ao qual possamos, sem cessar, dirigir-nos frontalmente, como se pode fazer em um anfiteatro com centenas de pessoas. Em aula, uma das interações didáticas estabelece-se entre o professor e um aluno, ou um pequeno grupo, e elas são inevitavelmente diferenciadas, em seu tom, em seu conteúdo, em sua duração, em sua intenção e em seus efeitos.

À indiferença às diferenças opõem-se, geralmente, uma diferenciação intencional da ação pedagógica, à qual se atribui nobres motivos. No debate pedagógico, a diferenciação é um valor progressista; fala-se de discriminação positiva, de apoio integrado, de educação compensadora. Evidentemente, essa é a diferenciação mais confessável, porque orienta de forma deliberada a ajuda às crianças desfavorecidas. Menos confortável é encarar a existência de uma diferenciação elitista, que escolhesse deliberadamente dar ênfase aos privilégios, até mesmo afundando ainda mais os maus alunos. Isso acontece. No entanto, as discriminações negativas deliberadas são, sem dúvida, negligenciáveis em relação às discriminações involuntárias.

Em cada classe, existe uma parcela significativa de diferenciação selvagem da qual os professores têm uma vaga consciência e a qual não dominam. Ela nasce da pressão da situação, da urgência, das solicitações, das personalidades e das culturas em jogo, do fato de que, em nenhuma interação social, pode-se tratar os interlocutores exatamente da mesma maneira. Na vida, não se pode funcionar sem diferenciar, mas essa diferenciação escapa-nos amplamente; ocorre, em parte, em nível inconsciente, através de automatismos, ao sabor das circunstâncias: há, em muitas intervenções pedagógicas, uma parcela de eventualidade. A ação do professor está longe de ser sempre programada. Na "escola das diferenças", a pedagogia continua balbuciante.

A diferenciação involuntária pode ter todo tipo de efeitos em relação ao fracasso escolar. Por vezes, espontânea e intuitivamente, o professor interessa-se pelos alunos que mais precisam dele, mesmo que não solicitem sua ajuda. Outras vezes, a diferenciação selvagem tende a aumentar as variações. Assim, em aula, quando faz uma atividade coletiva, o professor trabalha, de preferência, com os alunos que fazem perguntas, que se manifestam, que o ajudam a construir uma "boa aula", pois, com aqueles que nada dizem, é difícil criar uma dinâmica, um "diálogo socrático", um clima de curiosidade, fazer funcionar a rede oficial de comunicação. Além disso, nas interações mais individualizadas, o professor é levado a reagir positivamente aos alunos mais polidos, mais inteligentes, mais simpáticos, mais bonitos, mais comportados...

Essa forma de diferenciação involuntária tange simultaneamente às relações entre sujeitos singulares e, através deles, às relações entre as culturas em que se inserem. Psicanálise e antropologia ensinam-nos que, quando a distância interpessoal e intercultural é menor, a identificação é mais fácil, e o contato, mais estimulante. Inconscientemente, e às vezes contra seus valores, o professor pode ser levado a "favorecer os favorecidos". Não é muito gratificante trabalhar com os alunos que não gostam da escola, que se recusam a qualquer esforço, que não entram no jogo. Assim, a intervenção junto a um aluno em dificuldade pode ser vivenciada como uma relação conflitual, uma empreitada incerta, em suma, uma experiência pouco gratificante. 0 professor pode ter a impressão de trabalhar por nada, de "chocar-se contra uma parede", de "carregar um peso morto". Como poderia tratar da mesma maneira os alunos que aguçam o sentido de sua profissão e aqueles que fazem dela um calvário?

Em resumo, convém matizar a teoria da indiferença às diferenças. Sempre há uma parcela de diferenciação, pelo menos no ensino obrigatório. Porém, nada garante que contribua para a luta contra o fracasso escolar. Às vezes, ela não tem efeito discernível, porque obedece a critérios sem nenhuma relação com as dificuldades escolares. Em outras, em geral involuntariamente, ela aumenta as desigualdades. Enfim, mesmo quando há discriminação positiva, vontade declarada de favorecer os desfavorecidos, a diferenciação é, na maioria das vezes, irrisória em relação à natureza e à amplitude das diferenças entre alunos.

Dessa análise da gênese das desigualdades decorre "logicamente" a pedagogia diferenciada.Se o objetivo é dar a todos chances de aprender, quaisquer que sejam sua origem social e seus

recursos culturais, então, uma pedagogia diferenciada é uma pedagogia racional.No entanto, serão necessários ainda 10 ou 20 anos até que a diferenciação pedagógica torne-se a

palavra de ordem dos sistemas educativos nos países economicamente desenvolvidos. É o momento de uma lenta transformação do fracasso em problema social mais do que em fatalidade natural.

A PEDAGOGIA DIFERENCIADA DEFRONTA-SE COM AS ESTRUTURAS

Todo esforço de diferenciação da pedagogia defronta-se, cedo ou tarde, com o "costume" segundo o qual um grupo de alunos que tem mais ou menos a mesma idade e os mesmos conhecimentos anteriores trabalha, durante todo um ano, com um ou vários professores, para assimilar um programa concebido para esse fim e que representa um patamar bastante identificado na formação. A escolaridade é, assim, bastante dividida em etapas anuais chamadas, conforme as tradições nacionais, de graus, níveis, classes, seções (pequenas e grandes), cursos ou graduações. Falarei aqui de graus, entendidos como etapas de progressão em um currículo estruturado em anos de programa.

Há 30 anos, os esforços de diferenciação do ensino tentam tomar essa estrutura mais flexível.A situação atual não é nem desesperadora, nem motivadora. Começa-se a saber "o que não se deve

fazer", determinaram-se impasses - limitar-se a atenuar a reprovação - ou medidas úteis, mas sem

25comparação com a amplitude do problema, como o apoio pedagógico. Em compensação, seria bastante pretensioso saber como se pode, em larga escala, lutar contra o fracasso escolar e as desigualdades na escola. Os conhecimentos e os paradigmas que subentendem as pedagogias diferenciadas são ainda por demais abstratos, por demais pobres para guiar uma verdadeira operacionalização na área. Alguns obstáculos:

1 - Em torno da aprendizagem e do ensino

Por que se dar ao trabalho de diferenciar pedagogias ineficazes? Pode-se conceber, por exemplo, sistemas de trabalho de papel-e-lápis, com fichas individualizadas cobrindo todo o programa, a perder de vista. Sabe-se que isso não bastará para deter o fracasso escolar, pois o problema do sentido dos saberes e do trabalho em aula continua o mesmo em pedagogias que se limitam a ajustar as tarefas ao nível dos alunos, sem modificar nem seu conteúdo, nem a relação professor-aluno nem o contrato didático.

As pedagogias diferenciadas devem enfrentar o problema de base: como as crianças ou os adolescentes aprendem? Como criar uma relação menos utilitarista com o saber e instaurar um contrato didático e instituições internas que dêem ao trabalho escolar um verdadeiro sentido? Como inscrever o trabalho escolar em um contrato social e em uma relação entre professores e alunos que faça da escola um local de vida, um oásis protegido, ao menos em parte, dos conflitos, das crises, das desigualdades e das desordens que perpassam a sociedade?

As didáticas das disciplinas, assim como as correntes da escola nova, colocaram ou recolocaram o aluno no centro da ação educativa, insistiram no papel do professor como pessoa-recurso, como organizador de situações de aprendizagem mais do que como distribuidor de saberes. Defenderam-se as pedagogias construtivistas e interacionistas, ressaltou-se que ninguém pode aprender no lugar da criança ou do adolescente, mas que ninguém aprende sozinho. Propôs-se um trabalho sobre objetivos-obstáculos mais do que um planejamento-padrão das atividades, acentuou-se mais a construção de competências do que o acúmulo de conhecimentos, favoreceu-se o trabalho por projetos, por pesquisas e por situações-problema.

Tudo isso é agora evidente para todos? A ruptura com as pedagogias da transmissão está, certamente, consumada na maior parte dos textos oriundos das ciências da educação, dos movimentos pedagógicos, até mesmo dos ministérios e, em grande parte, dos locais de formação inicial ou contínua dos professores. 0 que se passa na mente da maioria? 0 "cenário para uma nova profissão" proposto por Meirieu não é - ainda não? - a referência comum e, mesmo entre os professores partidários do princípio da diferenciação - que não são majoritários - as representações do ensino e da aprendizagem permanecem bastante tradicionais.

2 - Em torno da diferenciação

Abandonar o sonho de saber suficientemente sobre cada aluno para propor-lhe a priori uma situação de aprendizagem sob medida. Allan introduziu a idéia de uma regulação interativa, não ocorrendo a diferenciação no início da situação de aprendizagem (regulação proativa) e também não intervindo à maneira de uma remediação (regulação retroativa), mas fazendo parte do dispositivo didático e da ação pedagógica cotidiana. Meirieu opôs igualmente duas orientações da diferenciação: uma delas centrada no diagnóstico prévio como fundamento de um tratamento individualizado ótimo, e a outra partindo do princípio de que não se poderia pretender conhecer o aluno antes de tê-lo envolvido em uma tarefa, a diferenciação tomando a forma de uma regulação no interior da situação assim criada. Sem renunciar a toda orientação dos alunos para situações que pertencem à sua zona proximal de desenvolvimento, há um afastamento cada vez maior do modelo do diagnóstico prévio.

3 - Em torno da avaliação e da regulação

Qualquer diferenciação do ensino requer uma avaliação formativa, ou seja, uma avaliação que supostamente ajude o aluno a aprender.

Juntamente com outros, defendi o princípio de uma abordagem pragmática da avaliação formativa, inteiramente orientada pelo cuidado com a regulação ou, mais exatamente, com a auto-regulação das aprendizagens. Também é importante não separar a avaliação da didática e aposta em situações de aprendizagem que estimulem a auto-regulação. Entretanto, essas intuições estão ainda muito longe de terem produzidos instrumentos leves e integrados aos procedimentos didáticos, situados "entre a intuição e a instrumentação". Quanto mais se destaca a observação formativa de uma avaliação formal e sincrônica, mais ela se integra à totalidade da ação pedagógica e do sistema didático, mais difícil é executá-la e otimizá-la sem transformar o conjunto da prática.

4- Em torno da relação e da distância cultural

Para que uma atividade seja geradora de aprendizagem, é necessário que a situação desafie o sujeito, que ele tenha necessidade de aceitar esse desafio e que isso esteja dentro de seus meios, ao preço de uma aprendizagem nova mais acessível.

26A vontade de aceitar o desafio é uma questão de sentido. Ora, o sentido é a coisa mais sutil e mais

fugaz do mundo. Não basta que uma atividade seja útil, interessante, apreciada, divertida ou lisonjeira, para que invistamos nela. É necessário, ainda, que tiremos proveito disso, no registro das emoções e das relações intersubjetivas. “Como eu poderia ensinar-lhe algo, ele não gosta de mim" dizia Alain. Os dispositivos didáticos melhor elaborados irão chocar-se com uma parede, se o aluno sentir-se mal-reconhecido, mal-amado, maltratado, se a aprendizagem separá-lo de seus próximos ou mergulhá-lo em tensões ou em angústias, ou até mesmo se ele não encontrar prazer nisso.

É inútil pensar a diferenciação de um ponto de vista estritamente cognitivo. Um professor carregado de conhecimentos e de instrumentos didáticos, mas que não consegue comunicar-se, criar um vínculo humano e forte será definitivamente menos eficaz do que um pedagogo menos preparado, mas com quem o aluno "sente-se bem".

INDIVIDUALIZAÇÃO DO CURRÍCULO E OTIMIZAÇÃO DAS SITUAÇÕES DE APRENDIZAGEM

Portanto, a luta contra o fracasso escolar não consiste absolutamente em inventar uma individualização dos percursos que existe em estado "selvagem", mas em dominá-la, para deixar de favorecer os favorecidos e desfavorecer os desfavorecidos. Para tanto, não basta praticar uma pedagogia diferenciada no seio de uma trama tradicional. As trajetórias se constroem em longos períodos. O domínio de sua individualização passa pela criação de dispositivos de acompanhamento e de regulação durante vários anos consecutivos, o que lança vários desafios maiores às instituições de formação:

- apropriar-se do conceito de individualização ou de personalização dos percursos a operar a ruptura conceitual com a idéia de individualização do ensino;

- conceber e dominar progressões nas aprendizagens durante vários anos, o que supõe um trabalho em equipes pedagógicas coerentes, no mínimo em escala de um ciclo de aprendizagem de dois ou três anos;

- criar e executar modos de agrupamento dos alunos que lhes dêem um sentimento de estabilidade, sem voltar a turma tradicional: grupos multi idades, grupos de projetos, de necessidades, de níveis;

- conceber processos e instrumentos de orientação que permitam seguir e reorientar as trajetórias individualizadas e decidir o encaminhamento dos alunos a tais atividades ou grupos.

Aqueles que se engajam em tal empreendimento deparam-se com os limites da organização escolar atual e são levados, cedo ou tarde, a propor estruturas e procedimentos nitidamente mais complexos, mais móveis, que suscitam inevitavelmente inquietações, fantasias de injustiça ou de desordem, conflitos de territórios ou de interesses.

0 primeiro obstáculo são as palavras que geralmente veiculam idéias prontas. Temos uma grande dificuldade em fazer uma tábula rasa da organização escolar e das práticas pedagógicas atuais, em pensar de outro modo. Ora, no estado da arte e da teoria, esta é a chave de uma ruptura: tentar repensar os percursos escolares, para que sua individualização não se limite a algumas variações marginais em relação a uma formação-padrão definida como uma progressão de grau em grau em um programa estruturado em anos sucessivos.

Para isso, deixemos de encerrar-nos nos mesmos esquemas e tentemos imaginar uma organização diferente, que assumisse as mesmas funções, produzindo menos fracassos e desigualdades. 0 ideal seria confiar o problema a extraterrestres que nem mesmo soubessem o que é uma escola, um grau, um programa. Tentemos ser extraterrestres!

Se em minha proposta há um quê de utopia, ela não recai nem sobre as finalidades da escola, nem sobre seu sentido ou sua existência, coisas que mereceriam discussões em si mesmas. A utopia aqui considerada é simplesmente gestionária. Talvez seja a mais inacessível: podemos considerar uma sociedade sem escola, ou sem instrução obrigatória ou generalizada; basta considerar nosso passado ou, ainda, o desenvolvimento desigual da escolarização no planeta. Também podemos imaginar uma escola em busca de outros objetivos, transmitindo uma outra cultura, privilegiando outros valores. Contudo, é bem mais difícil para nós imaginarmos uma escola organizada de tal modo, que cada aluno seja tão freqüentemente quanto possível colocado em uma situação de aprendizagem fecunda para ele. No entanto, esse é o verdadeiro desafio!

DA DIFICULDADE DE PENSAR UMA ESCOLARIDADE SEM GRAUS ANUAIS CICLOS

Na escola primária, no colégio ou no ensino médio, a individualização dos percursos de formação deparam-se com a estruturação do curso em graus ou em níveis anuais. A criação de ciclos de aprendizagem de pelo menos dois a três anos, formando entidades globais no interior das quais não ocorre nem reprovação, nem qualquer outra forma de seleção, mostra-se uma condição necessária de progresso.

A questão, então, é saber como criar ciclos de aprendizagem sem estruturá-los em etapas anuais reconstituindo insidiosamente graus de programa.

Os ciclos de aprendizagem, na direção dos quais se orientam quase todas as instituições, surgem como um compromisso entre a lógica tradicional dos programas anuais e uma completa individualização dos percursos. Talvez seja uma etapa necessária e fecunda, mas não nos enganemos: a introdução de tais ciclos não é a resposta definitiva à questão.

27Em sua versão mais conservadora o ciclo de aprendizagem acaba, em princípio, com a reprovação,

mas, não rompe a estruturação do curso em graus sucessivos e não basta para neutralizar a fabricação das desigualdades. Um ciclo que não fosse acompanhado por nenhuma medida eficaz de diferenciação e por nenhum dispositivo de acompanhamento poderia aumentar os descompassos e diminuir o domínio dos percursos de formação. Mesmo quando os textos oficiais não distinguem mais graus anuais em um ciclo e de passagem de um ciclo ao seguinte.

Resolve-se provisoriamente, o primeiro problema por meio de dois artifícios: - limitando a duração de um ciclo a dois ou três anos, reagrupando graus consecutivos da antiga

organização; isso permite conservar os mesmos pontos de referência, de modo que se pode imaginar que, ainda durante uma geração, os professores pensarão na heterogeneidade de seus alunos, classificando-os em níveis comparáveis aos "antigos graus", como se conta ainda em "cruzeiros velhos"; os professores poderiam, então, responder facilmente à questão "se fosse necessário reintroduzir os graus, em qual você colocaria este ou aquele aluno?

- confiando os alunos aos mesmos professores (uma pessoa ou uma pequena equipe) durante toda a duração do ciclo, na tradição das classes de graus múltiplos, de sorte que terão "na cabeça" a progressão de cada um sem ter que forjar uma linguagem e categorias específicas.

Melhor seria, entretanto, pensar os ciclos não como um apagamento progressivo dos graus, em proveito de uma espécie de ambigüidade generalizada, de uma diversidade não-dominada das modalidades de progressão. 0 desafio é evitar o aumento das desigualdades que suscitaria qualquer funcionamento demasiadamente anárquico dos ciclos, qualquer orientação por demais laxista das aprendizagens. Para que servem os ciclos, se é para constatar, ao final de três ou quatro anos, que ocorrem descompassados irremediáveis, sem que tenham sido vistos desenvolverem-se, nem que se tenha sabido preveni-los? Como ressalta Allan, ter de, no final de um ciclo, manter ainda um ano os alunos menos adiantados não seria reinventar uma reprodução disfarçada, um pouco mais eficaz?

Serão necessários de 10 a 15 anos para descobrir-se que os ciclos não são, em si mesmos, uma resposta satisfatória à questão da individualização dos percursos de formação? Os militantes da luta contra o fracasso escolar, de tanto sonharem com uma escola sob medida, querem acreditar que a última idéia em voga é a correta. Infelizmente, a realidade resiste e sempre resistirá a fórmulas mágicas. Não se terminará com as desigualdades, a não ser repensando radicalmente a organização pedagógica e, talvez, a própria forma escolar. Os ciclos de aprendizagem oferecem novas possibilidades. Para compreendê-las, devemos fazer uma análise não-complacente de sua incidência sobre o trabalho dos professores e dos alunos, em particular sob o ângulo da progressão das aprendizagens e da gestão dos percursos em longa duração.

A questão de saber o que faz um professor isolado ou uma equipe, quando tentam funcionar em ciclo de aprendizagem, os interessados poderiam responder: "Fazemos o melhor possível, sabemos o que fazemos, confiem em nós". Essa prudência, bastante compreensível, parece impedir o progresso coletivo e a profissionalização interativa. Que cada um faça à sua maneira, de modo diferente de todos os outros se quiser, mas com a condição de poder dizer o que faz e, até um certo ponto, de justificá-lo por observações e com uma argumentação racional. Essa exigência deveria, aliás, aplicar-se às classes atuais na estrutura em grau. Ela se torna vital no âmbito dos ciclos de aprendizagem, ao menos por duas razões:

• Os funcionamentos internos dos ciclos de aprendizagem não são estabilizados, lá onde existem ou esboçam-se. Por isso, é muito útil que sejam descritos e confrontados uns com os outros antes que os professores fechem-se em novas rotinas, que se tornarão cada vez menos pensadas e explícitas, até mesmo para eles...

• A disfunção de uma classe durante um ano pode causar danos, mas eles não têm comparação com aqueles ocasionados pela disfunção de um ciclo de aprendizagem durante três ou quatro anos. Daí a importância de prestar conta e de expor-se ao questionamento, até mesmo à crítica, dos colegas ou de outros profissionais.

Não se pode fazer de uma completa profissionalização do ofício de professor um pré-requisito à criação de verdadeiros ciclos de aprendizagem. Ao contrário, o desenvolvimento de percursos mais individualizados, geridos por equipes, favorecerá a profissionalização, levando à cooperação e à explicitação das práticas. No entanto, esse movimento em direção à profissionalização não é automático, pois a transparência sempre causa medo, sempre e vivenciada como um risco. É por essa razão que só se menciona normalmente o que está garantido, o que "funciona", e fala-se muito pouco e muito tarde dos problemas.

Face aos problemas nomeados e trabalhados, resta um ponto cego na cultura profissional: como se pensa, como se nomeia o que ocorre em torno da progressão dos alunos de uma situação de aprendizagem à seguinte e depois de um tempo e de um espaço de formação ao seguinte?

Os especialistas estabeleceriam alguns postulados iniciais: 1. As crianças e os adolescentes só aprendem se colocados em situações de aprendizagem, que os

tornem ativos e os levem a escutar, ler, observar, comparar, classificar, analisar, argumentar, tentar compreender, prever, organizar, dominar a realidade, simbolicamente e na prática.

2. Essas situações devem ser criadas, organizadas, porque têm poucas chances de serem produzidas espontaneamente de modo bastante denso e judicioso para suscitar, em tempo útil, as aprendizagens almejadas.

283. Não se aprende sozinho; as situações exigirão, muitas vezes, que se estabeleçam interações

didáticas entre pessoas, ou seja, uma dinâmica de grupo, complexa e parcialmente imprevisível.4. Deve-se, então, criar dispositivos didáticos e integrá-los ao que se poderia chamar de espaços-

tempos de formação, forma de institucionalização de um trabalho de uma certa duração que persegue objetivos definidos com um grupo de composição estável.

5. No âmbito de um mesmo espaço-tempo de formação, não é nem possível, nem desejável, que todos os alunos vivam exatamente as mesmas situações, em razão de seu lugar nos dispositivos didáticos, de seus investimentos, dos jogos de poder, dos desafios relacionais, das iniciativas e dos projetos de uns e de outros, da divisão das tarefas e, mais ainda, das competências, dos saberes e dos interesses já construídos na mente de cada um. Não se pode, portanto, nem antecipar, nem controlar precisamente 0 que cada um viverá dentro de um espaço-tempo de formação. Tudo isso ocorre também com cada dispositivo didático, mesmo que seja possível controlar um pouco melhor o que se passa em períodos breves.

6. O princípio da diferenciação ordena que cada aprendiz encontra-se, sempre que possível, em situações de aprendizagem fecundas para ele, isto é, capazes de fazê-lo progredir; importa reconhecer que um dispositivo ou uma situação devem se aproximar desse ideal inacessível.

7. Esse limite e o longo tempo requeridos pelas aprendizagens fundamentais exigem uma forma de redundância que impede prever a aquisição de uma competência durante um único tempo e em um único espaço de formação. Reencontra-se, então, a noção de aprendizagem em espiral que já subentende inúmeros planos de estudos clássicos.

8. Nenhum espaço-tempo de formação, por mais rico e duradouro que seja, pode garantir sozinho todas as aprendizagens almejadas; por isso, deve-se pensar imediatamente em um conjunto diversificado de espaços-tempos de formação, cujo encadeamento cubra vários anos.9. Para dar conta do aspecto gradual da construção dos conhecimentos e das competências, a progressão de um espaço-tempo a um outro não deveria acontecer ao acaso, mas seguir uma ordem, que, entretanto, deveria ser aproximativa e parcial. É preciso que uma regulação seja criada para otimizar a circulação dos aprendizes de um espaço-tempo de formação a outro. Esse é um primeiro nível de diferenciação.

10. É importante que uma forma de regulação esteja presente nos dispositivos didáticos e no espaço-tempo de formação que os abriga, de maneira a otimizar as situações sob o ângulo das aprendizagens almejadas, apostando na auto-regulação de seu trabalho e de sua formação pelo aprendiz, mas oferecendo-lhe auxílio metodológico, incentivos e conselhos. Esse é um segundo nível de diferenciação, tão essencial quanto o anterior.

11. Sem mecanismos de incentivos, até de coerção, as crianças ou os adolescentes não se colocarão constantemente em situações de aprendizagem e não escolherão espontaneamente aquelas que os conduzirão, de modo progressivo, aos domínios almejados.

12. Da mesma maneira, e pouco provável que a circulação entre os espaços-tempos de formação possa ser deixada à livre iniciativa de cada aluno.

13. 0 funcionamento do currículo e a gestão dos problemas que ele levanta (território, decisões, justiça, atribuição de tarefas) exigem uma forma de autoridade que mantenha a coesão e a coerência do todo.

MÓDULOS

A idéia geral é de que o conjunto do currículo, que cobre o equivalente a vários anos de programa, seja estruturado em uma série de módulos, definidos como espaços-tempos de formação caracterizados cada um por uma unidade temática e por objetivos de formação definidos. Mais do que estarem inscritos em uma classe na qual, durante todo o ano, "faz-se de tudo a cada semana", por fragmentos, de acordo com uma grade horária estável, os alunos participariam, durante várias semanas, até mesmo durante vários meses, em paralelo, de dois ou três módulos no máximo, cada um deles explorando de modo intensivo uma faceta determinada do currículo. Essa organização já funciona em formação de adultos ou em certas formações profissionais ou universitárias. A questão é saber se pode convir à escolaridade básica. Deve-se observar que, sem ser o oposto, não se trata aqui dos módulos no sentido das escolas de ensino médio francesas, onde estão mais centrados no auxílio metodológico ou no apoio aos alunos em dificuldade do que no corpo principal do programa.

Uma organização modular ofereceria uma resposta à instabilidade permanente entre as disciplinas e, em relação a cada uma, entre seus diversos componentes. A idéia de módulo corresponde primeiramente à preocupação de criar espaços-tempos de formação suficientemente centrados em aquisições determinadas para que alguma coisa aí aconteça para todos os alunos. 0 funcionamento atual da escola, baseado em um perpétuo discurso sem nexo, ainda que permita uma salutar variedade das atividades, impede uma verdadeira construção das aprendizagens dos alunos, que não têm os meios intelectuais de aprender de maneira tão descosturada.

Uma estrutura modular propõe uma organização do tempo completamente diferente: mais do que fazer de tudo, a cada semana, de acordo com uma sábia dosagem das disciplinas, cada uma progredindo em seu programa anual, à razão de algumas horas por semana, os módulos tentariam romper com essa continuidade na diversidade que, para certos alunos, não constrói aprendizagens.

29Uma organização modular obrigaria a ir ao fundo das coisas, porque impediria que se escapasse para

outras tarefas, até mesmo para outros objetivos.No entanto, a hipótese modular só apresenta vantagem sob a dupla condição de: - conceber uma progressão de módulos que permitam percursos coerentes e completos no âmbito de

um ciclo ou da escolaridade básica; - desenvolver dentro de cada módulo formas de observação formativa, de regulação interativa e de

diferenciação mais fortes do que em outros modos de trabalho.Seja qual for a estruturação do currículo de um ciclo, ela não constituirá um progresso, a não ser que

haja ruptura com a gestão de fluxos extensos e com a instabilidade, quer haja ou não modularização.O que pleiteio é uma abordagem da individualização dos percursos, utilizando os instrumentos da

psicossociologia das organizações e do trabalho, bem como da pedagogia e da didática. A didática mais desenvolvida, a relação pedagógica mais fecunda, o grupo mais formador devem "aninhar-se" em uma organização escolar pensada em larga escala e favorável a regulações fortes contínuas, sem as quais a individualização dos percursos de formação é uma quimera, até mesmo um perigo.

ESTRATÉGIAS DE MUDANÇA

Não se trata de ver mais claramente para progredir. Dois dos obstáculos clássicos à inovação valem igualmente para a pedagogia diferenciada:

- Os sistemas educativos empregam estratégias de mudança ainda pouco eficazes, de modo que inúmeras reformas educativas permanecem cemitérios de boas idéias jamais postas em prática;

- as imensas exigências das pedagogias diferenciadas são pouco realistas em relação à identidade, às atitudes, às competências, ao nível de formação dos professores de hoje; elas postulam competências e um grau de profissionalização que ainda não caracterizam a totalidade do corpo docente.

Muitas reformas não se deparam somente com obstáculos específicos, mas com um descompasso global entre o nível de competência requerido por uma tecnologia original, uma didática de ponta ou um novo modo de gestão de classe e o nível médio de competência dos professores. Essa constatação leva ao tema da profissionalização do ofício de professor como condição geral de transformação dos sistemas educativos. Aumentar a autonomia e a responsabilidade dos professores parece de fato a única saída, quando se procura uma improvável passagem entre dois obstáculos igualmente funestos. Um deles seria superestimar os professores, considerá-los mais capazes do que são de apropriar-se, para adaptá-las livre e judiciosamente à sua situação concreta, das "idéias simples" que permeiam os trabalhos dos movimentos pedagógicos e das ciências da educação, aquelas, por exemplo, de avaliação formativa, de trabalho sobre as representações, de contrato didático, de conselho de classe. O outro obstáculo seria acreditar que se pode traduzir tais idéias em "receitas" a serem seguidas ao pé da letra.

A organização da escola em ciclos de aprendizagem permanece em todos os lugares um projeto, na medida em que nenhum sistema educativo pode pretender ter realizado, de forma ampla, uma escola sem graus, que distinguisse apenas ciclos de aprendizagem a serem percorridos em dois, três ou quatro anos. 0 que se observa, por enquanto, é mais uma vontade de abrir os graus adjacentes, de tornar as progressões mais fluídas, abolindo ou limitando a reprovação, de levar os professores a gerirem um ciclo de modo solidário, por meio de trabalho de equipe, se possível no âmbito de um projeto de estabelecimento. Na verdade, falando francamente, os ciclos são ainda uma intuição, pois não se sabe até agora concebê-los e fazê-los funcionar operando uma ruptura clara e definitiva com a segmentação do curso em anos de programas.

Trata-se de pôr a totalidade do sistema educativo em movimento. Convém, então, empregar um método de inovação em larga escala, que autorize e encoraje cada escola a progredir, sem inventar a roda, mas sem adotar um modelo pronto, em uma espécie de alternância entre momentos de imitação inteligente e momentos de invenção.

Para reorganizar a escola no sentido de uma individualização dos percursos de formação, não basta uma simples adesão ideológica, seguida de atuação. Esta última exige novas competências e uma outra relação com a profissão. Enfrenta-se, assim, um problema de nível de formação dos professores e, além disso, a questão da profissionalização do ofício de professor.

As reformas de estruturas e de programas são legítimas, mas não dão frutos, a não ser que sejam substituídas por novas práticas. Toda reforma de monta é, em última instância, uma reforma de terceiro tipo, que se consagra aberta e institucionalmente ao que vivem os alunos e os professores no dia-a-dia, nas classes e nos estabelecimentos. As reformas do primeiro tipo tangem às estruturas escolares no sentido restrito: habilitações, organização do curso. As reformas de segundo tipo transformam os currículos. Hoje em dia, isso não é mais suficiente, é preciso atingir as práticas, a relação pedagógica, o contrato didático, as culturas profissionais, a colaboração entre professores. Não nos enganemos, pois a introdução de ciclos de aprendizagem é uma reforma de terceiro tipo, ainda que se apresente na superfície como uma reforma de estrutura e de currículo. Afinal de contas, são as práticas profissionais, o trabalho dos professores que se trata de transformar. Os valores, as atitudes, as representações, os conhecimentos, as competências, a identidade e os projetos de uns e de outros são, portanto, decisivos.

0 que nos ensina o fracasso parcial de quase todas as reformas escolares, para além das diferenças de contexto e de conteúdo? Que a mudança foi quase invariavelmente pensada para um corpo docente que ainda não existia, pelo menos em larga escala, no momento decisivo. Assim, os professores de hoje não estão

30nem dispostos, nem preparados, em sua maioria, a praticar uma pedagogia ativa e diferenciada, a envolver os alunos em procedimentos de projeto, a conduzir uma avaliação formativa, a trabalhar em equipe.

A formação contínua parece uma alavanca de transformação mais fácil de acionar a curto prazo. Ela poderia, assim, mais do que a formação inicial, estar "em harmonia" com as reformas educativas do momento. Infelizmente, não é tão simples, pois se encontra mais um paradoxo: quando a formação contínua está ainda pouco implantada em um sistema educativo, não se pode esperar que exerça uma influência maciça sobre o corpo docente em atividade. Quando está bem-desenvolvida, ao contrário, ao mesmo tempo institucionalizou-se e burocratizou-se; pode-se temer que siga a mesma inclinação de qualquer organização: tornar-se um Estado dentro do Estado, um sistema mais preocupado em garantir seu próprio desenvolvimento do que em servir a uma política de conjunto.

Mesmo que os governos, ou outros poderes organizadores, tenham legitimidade e autoridade suficientes para mobilizar os órgãos de formação contínua no sentido das reformas, seria ingênuo esperar que os formadores detivessem a solução de todos os problemas. Podem, na melhor das hipóteses, contribuir para determiná-los e acompanhar a busca coletiva de soluções.

Entretanto, mesmo no caso mais favorável, a formação contínua, como a mais linda moça do mundo, só pode oferecer o que tem. Faz parte do sistema educativo e não pode ter 10 anos de avanço quanto à identificação e à resolução dos problemas. Todavia, pode contribuir, de modo decisivo, para o êxito de uma reforma.

Trata-se de desenvolver competências, tanto quanto de transmitir conhecimentos. Inúmeros estágios de formação contínua propõem essencialmente teorias e métodos, ou seja, conhecimentos declarativos e procedimentais, que não passam de ingredientes de competências profissionais. Hoje todo mundo fala em desenvolver competências. Essa linguagem da moda, falsamente familiar, leva a subestimar a amplitude da mudança em perspectiva. Uma abordagem por competências requer uma reconstrução completa dos dispositivos e dos procedimentos de formação contínua.

Percebe-se aqui o início de uma forte ligação entre reformas escolares e formação contínua, por intermédio da linguagem das competências. Mesmo que seja sua ambição e que ela tenha os meios para isso, a formação contínua não pode, todavia, pretender transformar sozinha as competências do corpo docente, que estão, em parte, sob o controle do meio profissional e da experiência pessoal.

Por outro lado, veremos que a organização da escola em ciclos de aprendizagem e a individualização dos percursos exigem mais do que uma extensão das competências dos professores e dos dirigentes. A renovação exige não somente um enriquecimento da formação, mas também uma mudança radical do nível de formação e da identidade profissional dos professores. Uma evolução nesse sentido requer uma nova "profissionalidade docente" ou um processo acelerado de profissionalização do ofício de professor.

Lutar contra o fracasso escolar é trazer soluções, ao mesmo tempo, mais engenhosas e mais humanas para os locais em que a realidade das diferenças resiste à ação pedagógica melhor intencionada. Para tanto, são necessários dispositivos pedagógicos e didáticos mais complexos, mais sofisticados, mais flexíveis, para serem mais eficazes. Eles não poderiam funcionar sem um excedente de competência dos atores.0 problema da desigualdade na escola reconstruiu-se, mas não é mais nem simples, nem menos gritante. Talvez se comece a compreender que não se pode resolvê-lo, a não ser acelerando a profissionalização e aumentando o nível de formação dos professores. Mesmo que se tenha compreendido isso, nada garante que serão alcançadas as conseqüências: o espetáculo dos sistemas educativos confrontados com a crise sugere mais que sua capacidade de antecipar esteja em queda livre. É verdade que parece vantajoso, de um ponto de vista estritamente orçamentário, frear e até mesmo fazer regredir a profissionalização do ofício de professor. A longo prazo, isso é econômica e culturalmente absurdo; mas quem, nas democracias, preocupa-se com o longo prazo?

2) PERRENOUD. PHILIPE. DEZ NOVAS COMPETÊNCIAS PARA ENSINAR. PORTO ALEGRE: ARTMED, 2000.

1- ORGANIZAR E DIRIGIR SITUAÇÕES DE APRENDIZAGEMCONHECER, PARA DETERMINADA DISCIPLINA, OS CONTEÚDOS A SEREM ENSINADOS E A SUA TRADUÇÃO EM OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

Conhecer os conteúdos a serem ensinados é a menor das coisas, quando se pretende instruir alguém. Porém, a verdadeira competência pedagógica não está aí; ela consiste, de um lado, em relacionar os conteúdos a objetivos e, de outro, a situações de aprendizagem. 0 ensino certamente persegue objetivos, mas não de maneira mecânica e obsessiva. Eles intervêm três estágios:1- do planejamento didático, não para ditar situações de aprendizagem próprias a cada objetivo, mas para identificar os objetivos trabalhados nas situações em questão, de modo a escolhê-los e dirigi-los com conhecimento de causa;

2- da análise a posteriori das situações e das atividades, quando se trata de delimitar o que se desenvolveu realmente e de modificar a seqüência das atividades propostas;

3- da avaliação, quando se trata de controlar os conhecimentos adquiridos pelos alunos.

31A competência requerida hoje em dia é o domínio dos conteúdos com suficiente fluência e distância

para construí-los em situações abertas e tarefas complexas, aproveitando ocasiões, partindo dos interesses dos alunos, explorando os acontecimentos, em suma, favorecendo a apropriação ativa e a transferência dos saberes, sem passar necessariamente por sua exposição metódica, na ordem prescrita por um sumário.

Competências de referência

Competências mais específicas a trabalhar em formação contínua (exemplos)

1- Organizar e dirigir situações

de aprendizagem.

- Conhecer, para determinada disciplina, os conteúdos a serem ensinados e a sua tradução em objetivos de aprendizagem.- Trabalhar a partir das representações dos alunos.- Trabalhar a partir dos erros e dos obstáculos à aprendizagem.- Construir e planejar dispositivos e seqüências didáticas.- envolver os alunos em atividades de pesquisa, em projetos de conhecimento.

2- Administrar a progressão das aprendizagens.

- Conceber e administrar situações-problema ajustadas ao nível e às possibilidades dos alunos.- Adquirir uma visão longitudinal dos objetivos do ensino.- Estabelecer laços com as teorias subjacentes às atividades de aprendizagem.- Observar e avaliar os alunos em situações de aprendizagem, de acordo com uma abordagem formativa.- Fazer balanços periódicos de competências e tomar decisões de progressão.

3- Conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação.

- Administrar a heterogeneidade no âmbito de uma turma.- Abrir, ampliar a gestão de classe para um espaço mais vasto.- Fornecer apoio integrado, trabalhar com alunos portadores de grandes dificuldades.- Desenvolver a cooperação entre os alunos e certas formas simples de ensino mútuo

4- Envolver os alunos em sua

aprendizagem e em seu trabalho.

- Suscitar o desejo de aprender, explicitar a relação com o saber, o sentido do trabalho escolar e desenvolver na criança a capacidade de auto-avaliação.- Instituir e fazer funcionar um conselho de alunos (conselho de classe ou de escola) e negociar com eles diversos tipos de regras e de contratos.- Oferecer atividades opcionais de formação, à la carte.- Favorecer a definição de um projeto pessoal do aluno.

5- Trabalhar em equipe.

- Elaborar um projeto de equipe, representações comuns.- Dirigir um grupo de trabalho, conduzir reuniões.- Formar e renovar uma equipe pedagógica.- Enfrentar e analisar em conjunto situaçõesComplexas, práticas e problemas profissionais.- Administrar crises ou conflitos interpessoais.

6- Participar da administração

da escola.

- Elaborar, negociar um projeto da instituição.- Administrar os recursos da escola.- Coordenar, dirigir uma escola com todos os seus parceiros ( serviços paraescolares, bairro, associações de pais, professores de língua e cultura de origem).- Organizar e fazer evoluir, no âmbito da escola, a participação dos alunos.

7- Informar e envolver os

pais.

- Dirigir reuniões de informação e de debate.- Fazer entrevistas.- Envolver os pais na construção dos saberes.

8- Utilizar novas tecnologias.

- Utilizar editores de texto.- Explorar as potencialidades didáticas dos programas em relação aos objetivos do ensino.- Comunicar-se à distância por meio da telemática.- Utilizar as ferramentas multimídia no ensino.

9- Enfrentar os deveres e os

dilemas éticos da profissão.

- Prevenir a violência na escola e fora dela.- Lutar contra os preconceitos e as discriminações sexuais, étnicas e sociais.- Participar da criação de regras de vida comum referentes à disciplina na escola, às sanções e à apreciação da conduta.- Analisar a relação pedagógica, a autoridade, a comunicação em aula.- Desenvolver o senso de responsabilidade, a solidariedade e o sentimento de justiça.

10-Administrar sua própria formação contínua.

- Saber explicitar as próprias práticas.- Estabelecer seu próprio balanço de competências e seu programa pessoal de formação contínua.- Negociar um projeto de formação comum com os colegas ( equipe, escola, rede).- Envolver-se em tarefas em escala de uma ordem de ensino ou do sistema

32educativo.- Acolher a formação dos colegas e participar dela.

TRABALHAR A PARTIR DAS REAPRESENTAÇÕES DOS ALUNOS

Trabalhar a partir das apresentações dos alunos não consiste em fazê-las expressarem-se, para desvalorizá-las imediatamente.

O professor que trabalha a partir das representações dos alunos tenta reencontrar a memória do tempo em que ainda não sabia, colocar-se no lugar dos aprendizes, lembrar-se de que, se não compreendem, não é por falta de vontade, mas porque o que é evidente para o especialista parece opaco e arbitrário para os aprendizes.

Resta trabalhar a partir das concepções dos alunos, dialogar com eles, fazer com que sejam avaliadas para aproximá-las dos conhecimentos científicos a serem ensinados. A competência do professor é, então, essencialmente didática. Ajuda-o a fundamentar-se nas representações prévias dos alunos, sem se fechar nelas, a encontrar um ponto de entrada em seu sistema cognitivo, uma maneira de desestabilizá-los apenas o suficiente para levá-los a restabelecerem o equilíbrio, incorporando novos elementos às representações existentes, reorganizando-as se necessário.

TRABALHAR A PARTIR DOS ERROS E DOS OBSTÁCULOS À APRENDIZAGEM

Uma verdadeira situação-problema obriga a transpor um obstáculo graças a uma aprendizagem inédita, quer se trate de uma simples transferência, de uma generalização ou da construção de um conhecimento inteiramente novo. O obstáculo torna-se, então, o objetivo do momento, um objetivo-obstáculo, põe-se em movimento, constrói hipóteses, procede a explorações, propõe tentativas “para ver”. Em um trabalho coletivo, inicia-se a discussão, o choque das representações obriga cada um a precisar seu pensamento e a levar em conta o dos outros.

A didática das disciplinas interessa-se cada vez mais pelos erros e tenta compreendê-los, antes de combatê-los. Astolfi (1997) propõe que se considere o erro como uma ferramenta para ensinar, um revelador dos mecanismos de pensamento do aprendiz.

CONSTRUIR E PLANEJAR DISPOSITIVOS E SEQÜÊNCIAS DIDÁTICAS

Não há dispositivo geral; tudo depende da disciplina, dos conteúdos específicos, do nível dos alunos, das opções do professor. Um procedimento de projeto leva a certos dispositivos. O trabalho por meio de situações-problema leva a outros, os procedimentos de pesquisa, a outros ainda. Nesses casos há um certo número de parâmetros que devem ser dominados para que as aprendizagens almejadas se realizem.

A competência profissional consiste na busca de um amplo repertório de dispositivos e de seqüências na sua adaptação ou construção, bem como na identificação, com tanta perspicácia quanto possível, que eles mobilizam e ensinam.

ENVOLVER OS ALUNOS EM ATIVIDADES DE PESQUISA, EM PROJETOS DE CONHECIMENTO

Para que aprendam, é preciso envolvê-los em uma atividade de uma certa importância e de uma certa duração, garantindo ao mesmo tempo uma progressão visível e mudanças de paisagem, para todos aqueles que não têm a vontade obsessiva de se debruçar durante dias sobre um problema que resiste.

A dinâmica de uma pesquisa é sempre simultaneamente intelectual, emocional e relacional. 0 papel do professor é relacionar os momentos fortes, assegurar a memória coletiva ou confiá-la a certos alunos, pôr à disposição de certos alunos, fazer buscar ou confeccionar os materiais requeridos para o experimento. Durante cada sessão, o interesse diminui. O desencorajamento atinge certos alunos, quando seus esforços não são recompensados ou quando descobrem que um problema pode esconder um outro, de modo que não vêem o fim do túnel, levando-os ao desinteresse pela questão. 0 envolvimento inicial pode ser, a cada instante, questionado.

2- ADMINISTRAR A PROGRESSÃO DAS APRENDIZAGENS: CONCEBER E ADMINISTRAR SITUAÇÕES-PROBLEMA AJUSTADAS AO NÍVEL E ÀS POSSIBILIDADES DOS ALUNOS

Como administrar a progressão das aprendizagens, praticando uma pedagogia das situações-problema? A resposta inicial é simples: otimizar a gestão do tempo que resta, propondo situações-problema que favoreçam as aprendizagens visadas, isto é, tomem os alunos onde se encontrem e os levem um pouco mais adiante. Na linguagem atual, seria possível dizer que se trata de solicitar os alunos em sua zona de desenvolvimento próximal (Vygotsky, 1985), de propor situações que ofereçam desafios que estejam ao seu alcance e que levem cada um a progredir sendo mobilizadoras. Esse princípio é de difícil operacionalidade por duas razões distintas:

33- o funcionamento em vários grupos heterogêneos não é, para dizer a verdade mais simples. 0 problema

desloca-se, e a mesma tarefa não representa igual desafio para todos. Nem todos desempenham o mesmo papel no procedimento coletivo, 0 que não suscita consequentemente as mesmas aprendizagens em todos.

- A competência do professor é, pois, dupla: investe na concepção e, portanto, na antecipação, no ajuste das situações-problema ao nível e às possibilidades dos alunos; manifesta-se também ao vivo, em tempo real, para guiar uma improvisação didática e ações de regulação. A forma de liderança e as competências requeridas não se comparam àquelas que exigem a condução de uma lição planejada, até mesmo interativa.

ADQUIRIR UMA VISÃO LONGITUDINAL DOS OBJETIVOS DO ENSINO

0 trabalho em equipe é favorável ao domínio das progressões sobre vários anos, quando leva à cooperação entre colegas que ensinam em outros níveis. Entretanto, não basta ter uma idéia aproximada dos programas dos anos anteriores e posteriores, assim como aqueles que moram em um país têm uma vaga idéia dos países limítrofes. 0 verdadeiro desafio é o domínio da totalidade da formação de um ciclo de aprendizagem e, se possível, da escolaridade básica, não tanto para ser capaz de ensinar indiferentemente em qualquer nível ou ciclo, mas para inscrever cada aprendizagem em uma continuidade a longo prazo, cuja lógica primordial é contribuir para a construção das competências visadas ao final do ciclo ou da formação.

ESTABELECER LAÇOS COM AS TEORIAS SUBJACENTES ÀS ATIVIDADES DE APRENDIZAGEM

As atividades de aprendizagem são, em princípio, apenas meios a serviço de finalidades que autorizariam outras trajetórias. Nessa perspectiva, são supostamente escolhidas em função de uma "teoria" - científica ou ingênua, pessoal ou partilhada - daquilo. que faz com que se aprenda melhor e, por tanto, progrida na formação.

Escolher e modular as atividades de aprendizagem é uma competência profissional essencial, que supõe não apenas um bom conhecimento dos mecanismos gerais de desenvolvimento e de aprendizagem, mas também um domínio das didáticas das disciplinas.

OBSERVAR E AVALIAR OS ALUNOS EM SITUAÇÕES DE APRENDIZAGEM, DE ACORDO COM UMA ABORDAGEM FORMATIVA

Para gerir a progressão das aprendizagens, não se pode deixar de fazer balanços periódicos das aquisições dos alunos. Eles são essenciais para fundamentar decisões de aprovação ou de orientação necessárias mais tarde. Longe de constituir uma surpresa, esses balanços deveriam confirmar e aprimorar o que o professor já sabe ou pressente. Portanto, não dispensam absolutamente uma observação contínua, da qual uma das funções é atualizar e completar representação das aquisições do aluno.

Sua primeira intenção é formativa o que, em uma perspectiva pragmática, significa que considera tudo o que pode auxiliar o aluno a aprender melhor: suas aquisições, as quais condicionam as tarefas que lhe podem ser propostas, assim como sua maneira de aprender e de raciocinar, sua relação com o saber, suas angústias e bloqueios eventuais diante de certos tipos de tarefas, o que faz sentido para ele e o mobiliza, seus interesses, seus projetos, sua auto-imagem como sujeito mais ou menos capaz de aprender, seu ambiente escolar e familiar.

A avaliação formativa situa-se em uma perspectiva pragmática (Perrenoud, 1991, 1998b), não tem nenhum motivo para ser padronizada, nem notificada aos pais ou à administração. Inscreve-se na relação diária entre o professor e seus alunos, e seu objetivo é auxiliar cada um a aprender, não a prestar contas a terceiros. Em suma, não mais separar a avaliação e ensino, considerar cada situação de aprendizagem como fonte de informações ou de hipóteses preciosas para delimitar melhor os conhecimentos e a atuação dos alunos.

FAZER BALANÇOS PERIÓDICOS DE COMPETÊNCIAS E TOMAR DECISÕES DE PROGRESSÃO

As decisões são tomadas a partir de um balanço das aquisições e, ao mesmo tempo, de um prognóstico e de uma estratégia de formação que considere recursos e dispositivos disponíveis. Encontramo-nos, nesse caso, no coração do ofício de professor.

RUMO A CICLOS DE APRENDIZAGEM (Vide texto anterior.) 3- CONCEBER E FAZER EVOLUIR OS DISPOSITIVOS DE DIFERENCIAÇÃO: ADMINISTRAR A HETEROGENEIDADE NO ÂMBITO DE UMA TURMA

Propõe-se que renuncie à composição de grupos homogêneos devidamente preparados para trata-mento padronizado, para enfrentar a heterogeneidade no âmbito de um grupo de trabalho, tal como se manifesta diante de uma tarefa e, em particular, diante de uma situação-problema. O que leva, sem renunciar a toda regulação retroativa (remediação, apoio) ou proativa (microorientação para tarefas e grupos diferentes), a dar prioridade às regulações interativas em situação, os alunos permanecendo juntos (Allal, 1988).

340 importante, em uma pedagogia diferenciada, é criar dispositivos múltiplos, não baseando tudo na

intervenção do professor. A diferenciação exige métodos complementares e, portanto, uma forma de inventividade didática e organizacional, baseada em um pensamento arquitetônico e sistêmico.

ABRIR, AMPLIAR A GESTÃO DE CLASSE PARA UM ESPAÇO MAIS VASTO

O trabalho em espaços mais amplos exige novas competências. Algumas delas giram em torno da cooperação profissional. Insistiremos aqui em uma competência propriamente administrativa, definida em uma escala mais vasta do que a classe: pensar, organizar, habitar, fazer viverem espaços de formação que reagrupem dezenas de alunos, durante vários anos. Esses funcionamentos levantam problemas inéditos de organização e de coordenação.

FORNECER APOIO INTEGRADO, TRABALHAR COM ALUNOS PORTADORES DE GRANDES DIFICULDADES

Isso supõe não só competências mais precisas em didáticas e em avaliação, mas também capacidades relacionais que permitam enfrentar, sem se desestabilizar, nem desencorajar, resistências, medos, rejeições, mecanismos de defesa, fenômenos de transferência, bloqueios, regressões e todo tipo de mecanismos psíquicos no decorrer dos quais dimensões afetivas, cognitivas e relacionais conjugam-se para impedir que aprendizagens decisivas comecem ou prossigam normalmente.

DESENVOLVER A COOPERAÇÃO ENTRE OS ALUNOS E CERTAS FORMAS SIMPLES DE ENSINO MÚTUO

“Não se aprende sozinho!”. Isso supõe que o professor seja capaz de fazer os alunos trabalharem em equipe. A organização do trabalho em equipe levanta problemas de gestão de classe, principalmente o da alternância entre as orientações e o trabalho coletivo e os momentos de trabalho em subgrupos. O desafio didático é inventar tarefas que imponham uma verdadeira cooperação. O desenvolvimento da cooperação passa, então, por atitudes, por regras do jogo, por uma cultura da solidariedade, da tolerância, da reciprocidade e por uma prática regular do conselho de classe.

4- ENVOLVER OS ALUNOS EM SUA APRENDIZAGEM E EM SEU TRABALHO: SUSCITAR O DESEJO DE APRENDER, EXPLICITAR A RELAÇÃO COM O SABER, O SENTIDO DO TRABALHO ESCOLAR E DESENVOLVER NA CRIANÇA A CAPACIDADE DE AUTO-AVALIAÇÃO

Ensinar é, reforçar a decisão de aprender. Ensinar é também estimular o desejo de saber. A competência profissional aqui em questão apela para dois recursos mais precisos:1- de um lado, uma compreensão e um certo domínio dos fatores e dos mecanismos sociológicos,

didáticos e psicológicos em jogo no surgimento e na manutenção do desejo de saber e da decisão de apren-der;

2- de outro, habilidades no campo da transposição didática, das situações, das competências, do trabalho sobre a transferência dos conhecimentos, todos eles recursos para auxiliar os alunos à conceberem as práticas sociais para as quais são preparados e o papel dos saberes que as tornam possíveis.

INSTITUIR UM CONSELHO DE ALUNOS E NEGOCIAR COM ELES DIVERSOS TIPOS DE REGRAS E DE CONTRATOS

O conselho de classe é um espaço onde é possível gerir abertamente a distância entre o programa e o sentido que os alunos dão a seu trabalho. Os poderes do grupo-classe (Imbert, 1976, 1998) são consideráveis e podem desempenhar um papel essencial de mediação: a relação com o saber pode ser redefinida na classe, graças a uma verdadeira negociação do contrato didático, o que evidentemente supõe, do professor, a vontade e a capacidade de escutar os alunos, de ajudá-los a formular seu pensamento e de ouvir suas declarações...

OFERECER ATIVIDADES OPCIONAIS DE FORMAÇÃO

Todos sabem que o sentido de uma atividade, para qualquer um depende muito de seu caráter escolhido ou não; quando a própria atividade é imposta, seu sentido depende ainda da possibilidade de escolher o método, os recursos, as etapas de realização, o local de trabalho, os prazos e os parceiros. A atividade que não tem nenhum componente escolhido pelo aluno tem muito poucas chances de envolvê-lo.

FAVORECER A DEFINIÇÃO DE UM PROJETO PESSOAL DO ALUNO

Aos alunos que têm um projeto pessoal, a escola quase não oferece encorajamentos, salvo se seu projeto coincidir miraculosamente com o programa e os leva a fazer de modo espontâneo o que o professor

35tinha justamente a intenção de lhes pedir... Uma primeira faceta dessa competência consiste, pois, em identificar os projetos pessoais existentes, sob todas as suas formas, valorizá-los, reforçá-los. O projeto pessoal de uma criança não é necessariamente completo, coerente e estável.

É legítimo incitar uma criança a se interrogar, a fazer projetos, realizá-los, avaliá-los, com a condição de se lembrar de que este é um longo caminho e seria injusto e pouco eficaz fazer disso um pré-requisito para as outras aprendizagens. Se elas se inscrevem em um projeto pessoal a médio prazo, tanto melhor! Se não, a construção do sentido deve tomar outros caminhos.

5- TRABALHAR EM EQUIPE: ELABORAR UM PROJETO EM EQUIPE, REPRESENTAÇÕES COMUNS

Pode-se definir uma equipe como um grupo reunido em torno de um projeto comum, cuja a realização passa por diversas formas de acordo e de cooperação. Essa competência ultrapassa a mera capacidade de comunicação. Supõe uma certa compreensão das dinâmicas de grupos e das diversas fases do “ciclo de vida de um projeto”.

DIRIGIR UM GRUPO DE TRABALHO, CONDUZIR REUNIÕES

Todos os membros de um grupo são coletivamente responsáveis por seu funcionamento: o respeito aos horários e à pauta do dia, a preocupação em chegar a decisões claras, a lembrança das opções feitas, a divisão das tarefas, o planejamento dos próximos encontros, a avaliação e a regulação do funcionamento, o que significa que cada um exerce permanentemente uma parte da função de comando e de condução.

É sensato delegar-se um condutor a um grupo, de um certo tamanho, que venha sendo pressionado sobre questões de prazos ou ameaçado por um nítido desequilíbrio de forças presentes, sem que seus integrantes percam tais preocupações. Para fazer com que esse papel emerja e para permitir ao condutor que o desempenhe plenamente, convém que a equipe enfrente a questão da liderança e não a confunda com a autoridade administrativa.

FORMAR E RENOVAR UMA EQUIPE PEDAGÓGICA

Na escola, acontece de uma administração tentar constituir autoritariamente um conjunto de professores em equipes. Em geral, porém, as equipes pedagógicas formam-se por escolha mútua. Elas se constituem em torno de um projeto ou de um contrato mais ou menos explícitos.

Seja qual for o ponto de partida, aqueles que desejam lançar ou relançar uma dinâmica de cooperação devem aproveitar as ocasiões e envolver-se para fazer com que um projeto comum emerja, sendo ao mesmo tempo bastante mobilizador para que os participantes não voltem imediatamente para sua torre de marfim e bastante aberto para não dar a impressão de que tudo está resolvido de antemão.

ENFRENTAR E ANALISAR EM CONJUNTO SITUAÇÕES COMPLEXAS, PRÁTICAS E PROBLEMAS PROFISSIONAIS

0 verdadeiro trabalho de equipe começa quando os membros se afastam do “muro de lamentações” para agir, utilizando toda a zona de autonomia disponível e toda a capacidade de negociação de um ator coletivo que está determinado, para realizar seu projeto, a afastar as restrições institucionais e a obter os recursos e os apoios necessários.

ADMINISTRAR CRISES OU CONFLITOS INTERPESSOAIS

O conflito faz parte da vida, é a expressão de um capacidade de recusar e de divergir que está no princípio de nossa autonomia e da individualização de nossa relação com o mundo. Cada pessoa aborda um conflito com sua própria identidade, que depende de seu desenvolvimento pessoal, ou seja, de sua história pessoal e de sua formação. Viver com as “neuroses” dos outros exige não apenas uma certa tolerância e uma forma de afeição, mas também competências de regulação que evitam o pior. Em cada grupo há mediadores, pessoas que antecipam e atenuam os confrontos. As competências requeridas dizem, então, respeito a uma moderação centrada na tarefa. É importante, por exemplo, que, em uma equipe, várias pessoas tenham bastante imaginação, informações e conhecimentos para reestruturar o debate de modo a chegar a um acordo, a uma decisão que não oponha de modo brutal ganhadores e perdedores. A vida de equipe é feita de pequenos conflitos que a fazem avançar, se resolvidos com humor e respeito mútuo. Os conflitos maiores aparecem e são, às vezes, intransponíveis. A capacidade de evitá-los, mesmo não sendo infalível, pelo menos ajuda as divergências ordinárias.

6- PARTICIPAR DA ADMINISTRAÇÃO DA ESCOLA: ELABORAR, NEGOCIAR UM PROJETO DA INSTITUIÇÃO

36Tirar o melhor partido da situação, das incitações, das oportunidades, dos problemas, até mesmo das

crises, é uma competência crucial. Todavia, o savoir-faire tático não basta para construir um projeto. É preciso propor um tema que "diga algo" à maioria, demonstrando uma certa lucidez sobre o que poderia mobilizar os colegas, assim como sobre as imposições que limitam sua disponibilidade, sua vontade de se formar, de debater, de se expor ao olhar dos outros e de assumir riscos.

Em uma instituição em projeto, não é preciso que cada um dos participantes saiba fazer tudo, mas é importante que todas as competências requeridas estejam presentes, de uma maneira ou outra, se for possível que sejam repartidas entre um número considerável de líderes informais. As competências de comunicação, de negociação, de resolução de conflitos, de planejamento flexível, de integração simbólica dizem respeito a saberes de inovação (Gather Thurler, 1998) que nenhum estatuto deveria monopolizar nas escolas.

ADMINISTRAR OS RECURSOS DA ESCOLA

Estamos muito longe de uma verdadeira autonomia orçamentária, que consistiria em dispor livremente de um pacote orçamentário com a condição de alcançar os objetivos. A inércia deve-se, às vezes, à delicada divisão dos poderes e dos encargos entre o Estado, as regiões e as municipalidades, com desafios fiscais e políticos que ultrapassam a escola.

Administrar os recursos de uma escola é fazer escolhas, ou seja, é tomar decisões coletivamente. Na ausência de projeto comum, uma coletividade utiliza os recursos que tem, esforçando-se, sobretudo, para preservar uma certa eq·idade na repartição dos recursos. Por essa razão, se não for posta a serviço de um projeto que proponha prioridades, a administração descentralizada dos recursos pode, sem benefício visível, criar tensões difíceis de vivenciar, com sentimentos de arbitrariedade ou de injustiça pouco propícios à cooperação.

COORDENAR, DIRIGIR UMA ESCOLA COM TODOS OS SEUS PARCEIROS

Coordenar o tratamento dos casos que requerem intervenções conjuntas será tanto mais fácil se as pessoas se conhecerem, se falarem, se estimarem reciprocamente e tiverem uma boa representação de suas tarefas e métodos respectivos de trabalho. Isso supõe atitudes e competências da parte de todos.

As capacidades de expressão e de escuta, de negociação, de planejamento, de condução do debate são recursos preciosos em uma escola de ensino fundamental de hoje. Coordenar: a palavra evoca uma tarefa de organização, de ação sinérgica.

ORGANIZAR E FAZER EVOLUIR, NO ÂMBITO DA ESCOLA, A PARTICIPAÇÃO DOS ALUNOS

Todas as iniciativas anteriores têm incidências sobre a vida dos alunos na escola: a atmosfera, a qualidade da orientação e da formação, a coerência das expectativas e dos procedimentos didáticos. Entretanto, nesse caso, trata-se especificamente de uma dimensão pedagógica. A participação dos alunos justifica-se, com efeito, por um duplo ponto de vista:

- É o exercício de um direito do ser humano, direito de participar, assim que tiver condições para isso, das decisões que lhe dizem respeito, direito da criança e do adolescente, antes de ser direito do adulto;

- É uma forma de educação para a cidadania, pela prática.

COMPETÊNCIAS PARA TRABALHAR EM CICLOS DE APRENDIZAGEM

Uma nova organização do trabalho, pela introdução de ciclos de aprendizagem, modifica o equilíbrio entre responsabilidades individuais e responsabilidades coletivas e torna necessários não somente um trabalho em equipe, mas também uma cooperação da totalidade do estabelecimento, de preferência baseada em um projeto.

7- INFORMAR E ENVOLVER OS PAIS: DIRIGIR REUNIÕES DE INFORMAÇÃO E DE DEBATE

A primeira competência de um professor é não organizar reuniões gerais quando os pais têm, antes de tudo, preocupações particulares. O que leva a prever reuniões:

- ou no início do ano letivo, quando se trata de determinar as expectativas e apresentar o sistema de trabalho, momento em que a maioria dos pais ainda não tem razões para se inquietar com seu filho;

- ou bem mais tarde, quando o professor tiver encontrado os pais individualmente e tiver respondido às questões e às preocupações que não dizem respeito à totalidade da classe.

Nas relações com os pais, uma das competências maiores de um professor é distinguir claramente o que diz respeito à sua autonomia profissional, assumindo-a plenamente, e o que tange às instâncias encarregadas de adotar uma política educacional, os programas, as regras de avaliação ou as estruturas escolares que comandam o momento e a severidade da seleção. Dissociar-se totalmente da instituição que o

37emprega é tão desastroso quanto “assumir" todos os artigos legais, todas as páginas do plano de estudos, todas as reformas e todas as decisões administrativas.

Uma das competências maiores que um professor experiente constrói é não se sentir "só contra todos", perceber que há, entre os pais, muitas diferenças e divergências. Deve-se, no entanto, resistir à tentação maquiavélica de jogar os pais uns contra os outros, para demonstrar que não há nada a mudar, já que, em cada ponto, as opiniões contrárias neutralizam-se. De que adianta reunir os pais apenas para lhes explicar que tudo o que se faz é irrepreensível?

FAZER ENTREVISTAS

Aqui, como nas reuniões, a falta de habilidade, de ambas as partes, revela mais temores do que más intenções ou desprezo. A competência maior é, mais uma vez, saber situar-se claramente.

Sem dúvida, é difícil crer que os pais não sejam de modo algum responsáveis, direta ou indiretamente, pelas dificuldades de seus filhos e, mais ainda, pela sua conduta. É necessária uma grande sabedoria para se dar conta de que essa ficção é fecunda, que libera os pais de se justificarem ou de se desculparem e, portanto, os constitui como verdadeiros parceiros no jogo cooperativo. Em suma, a competência consiste amplamente, neste caso, em não abusar de uma posição dominante, em controlar a tentação de culpar e de julgar os pais.

As competências requeridas de um verdadeiro profissional consistem, de preferência, em não gastar toda sua energia para se defender, para afastar o outro, mas, ao contrário, aceitar negociar, ouvir e compreender o que os pais têm a dizer, sem renunciar a defender as suas próprias convicções. Mais uma vez, as competências nada são se não podem apoiar-se em uma identidade, uma ética e uma forma de coragem...

ENVOLVER OS PAIS NA CONSTRUÇÃO DOS SABERES

Se quisermos a democratização do ensino, só nos resta defender uma pedagogia ativa e diferenciada. Não há, portanto, em minha mente, confusão entre professores inovadores confrontados com pais conservadores e professores tradicionais confrontados com pais que esperam pedagogias mais abertas e participativas. Porém, sob o ângulo da relação com os pais, percebe-se bem a simetria dos desafios: seja qual for sua pedagogia, um professor precisa que os pais de seus alunos compreendam-na e adiram a ela, pelo menos globalmente, em nível das intenções e das concepções do ensino e da aprendizagem. Essa necessidade é, sem dúvida, maior do lado das pedagogias novas, porque incitam mais, por razões ideológicas, mas também didáticas, a mobilizar e envolver os pais. E também porque são mais angustiantes para certos adultos, na exata medida em que apostam na autonomia e nos recursos do aprendiz.

Mesmo o professor mais convencional não pode fazer seu trabalho se seu método for mal-interpretado e denegrido por muitos pais. Desse modo, a competência de um professor consiste em conseguir o mais depressa possível a adesão dos pais que lhe parecem a priori refratários à sua pedagogia... sem abandonar os outros! Procura, em um primeiro momento, não ser alvo de críticas permanentes. Espera não tornar a tarefa dos alunos difícil demais. Não é favorável a suas aprendizagens que um aluno vivencie cada dia um conflito de lealdade. Se seus pais não compreenderem ou não aceitarem o que ele faz em aula, irão, verbalmente ou não, minar a confiança de seu filho nos professores.

8- UTILIZAR NOVAS TECNOLOGIAS. A INFORMÁTICA NA ESCOLA: UMA DISCIPLINA COMO QUALQUER OUTRA, UM SAVOIR-FAIRE OU UM SIMPLES MEIO DE ENSINO?

As competências analisadas a seguir permitem, em larga medida, matar dois coelhos com uma só cajadada: aumentar a eficácia do ensino e familiarizar os alunos com novas ferramentas informáticas do trabalho intelectual. A legitimidade e a prioridade concedidas a este último objetivo dependerão dos debates em andamento sobre a formação dos alunos e o desenvolvimento de competências desde a escola de ensino fundamental (Perrenoud, 1998a).

UTILIZAR EDITORES DE TEXTOS

A competência mínima requerida consistirá em situá-los, em conciliá-los com seu lugar de trabalho e mostrá-los aos alunos, seja imprimindo-os, seja projetando-os em uma tela. Será ultrapassado pendurar dois ou três mapas geográficos nas salas de aula quando todas elas dispuserem de um meio de projetar em tela imagens do mesmo tamanho, ou equipar cada local de trabalho com um monitor de vídeo. Assim, professores e alunos terão acesso a todos os mapas imagináveis, políticos, físicos, econômicos, demográficos, com possibilidades ilimitadas de mudança de escala e de passagem a textos explicativos ou a animações, até mesmo a imagens diretas por satélite.

Vê-se que essa simples transferência do impresso para os suportes digitais supõe que o professor construa uma grande capacidade de saber o que está disponível, de mover-se nesse mundo e de fazer escolhas. Passa-se de um universo documental limitado (o da sala de aula e do centro de documentação próximo) a um universo sem verdadeiros limites, o do hipertexto.

38Isso, infelizmente, escapa aos professores que ainda pensam que um computador é simplesmente uma

máquina de datilografia sofisticada. É pouco provável que o sistema educacional imponha autoritariamente aos professores em exercício o

domínio dos novos instrumentos. Os professores que não quiserem envolver-se nisso disporão de informações científicas e de fontes documentais cada vez mais pobres, em relação àquelas às quais terão acesso seus colegas mais avançados. Tal flutuação ameaça os alunos, até os menores, se a escola não lhes dá os meios de um uso crítico. A evolução da mídia, do comércio eletrônico e a generalização dos equipamentos familiares tornarão o acesso cada vez mais banal, sem que as competências requeridas se desenvolvam no mesmo ritmo. É por isso que a responsabilidade da escola está comprometida para além das escolhas individuais dos professores.

EXPLORAR AS POTENCIALIDADES DIDÁTICAS DOS PROGRAMAS EM RELAÇÃO AOS OBJETIVOS DO ENSINO

A principal competência de um professor, neste domínio, é ser:- um usuário alerta, crítico, seletivo do que propõem os especialistas dos softwares educativos e da

aprendizagem assistida por computador.- um conhecedor dos softwares que facilitam o trabalho intelectual, em geral, e uma disciplina, em

particular, com familiaridade pessoal e fértil imaginação didática, para evitar que esses instrumentos se des-viem de seu uso profissional.

Não é necessário que um professor torne-se especialista em informática ou em programação. Um certo número de softwares educativos são, hoje, concebidos para permitir ao usuário que escolha os numerosos parâmetros de utilização e o conteúdo dos exercícios.

COMUNICAR-SE À DISTÂNCIA POR MEIO DA TELEMÁTICA

Há de se convir que, para utilizar as redes para fins de formação nas diversas disciplinas escolares, impõe-se um mínimo de precauções. Todavia, para que os alunos não se tornem escravos das tecnologias e façam escolhas lúcidas, o desenvolvimento do espírito crítico e de competências aguçadas parece mais eficaz do que as censuras.

Tudo dependerá da maneira como o professor enquadrar e dirigir as atividades. Sua habilidade técnica facilita as coisas, mas aqui se trata de habilidade didática e de relação com o saber!

UTILIZAR AS FERRAMENTAS MULTIMÍDIA NO ENSINO

Cada vez mais os CD-ROMs e os sites multimídia farão uma séria concorrência aos professores, se estes não quiserem ou não souberem utilizá-los para enriquecer seu próprio ensino.

Em que consiste a competência dos professores? Sem dúvida, em utilizar os instrumentos multimídia já disponíveis, do banal CD-ROM a animações ou simulações mais sofisticadas. Talvez também consista em desenvolver nesse domínio uma abertura, uma curiosidade e, por que não, expectativas.

O mundo do ensino, ao invés de estar sempre atrasado em relação a uma revolução tecnológica, poderia tomar a frente de uma demanda social orientada para a formação. Equipar e diversificar as escolas é bom, mas isso não dispensa uma política mais ambiciosa quanto às finalidades e as didáticas.

9- ENFRENTAR OS DEVERES E OS DILEMAS ÉTICOS DA PROFISSÃO: PREVENIR A VIOLÊNCIA NA ESCOLA E FORA DELA

A escola sabe que agora está condenada a negociar, a não usar mais a violência institucional sem se preocupar com as reações. Importa, portanto, que a escola se torne, segundo a expressão de Ballion (1993), uma “cidade a construir” na qual a ordem não está adquirida no momento em que se entra nela, mas deve ser permanentemente renegociada e conquistada. Ora, como dizem Meirieu e Guiraud (1997), "excluir os bárbaros" não é uma solução em uma sociedade que os obriga à escolaridade e não pode indefinidamente confiná-los no equivalente escolar dos pavilhões penitenciários de segurança máxima.

Na medida em que a violência escolar está parcialmente ligada à violência urbana, quase não há mais escolas de ensino médio, mesmo nas cidades pequenas, em que seja possível gabar-se de viver sem nenhuma violência. É preferível aprender a negociar em tempos de paz.

LUTAR CONTRA OS PRECONCEITOS E AS DISCRIMINAÇÕES SEXUAIS, ÉTNICAS E SOCIAIS

Não basta ser individualmente contra os preconceitos e as discriminações sexuais, étnicas e sociais. Isso é apenas uma condição necessária para que os propósitos do professor sejam confiáveis. Resta conseguir a adesão dos alunos e, nesse caso, as palavras certas nem sempre fazem milagres, simplesmente porque os preconceitos e as discriminações atravessam os meios sociais e as famílias.

39Mais uma vez, a formação passa pelo conjunto do currículo e por uma prática - reflexiva - dos valores a

incutir. Lutar contra os preconceitos e as discriminações sexuais, étnicas e sociais na escola não é só preparar o futuro, mas é tornar o presente tolerável e, se possível, fecundo.

Os valores e o comprometimento pessoais do professor são decisivos. Eles deveriam ser trabalhados no período da formação, no âmbito de uma ética profissional. Não há receita infalível, mas uma boa preparação permite perceber cada ocasião de auxiliar os alunos a explicitarem e manterem distantes os preconceitos e os mecanismos de segregação que eles fazem funcionar. 0 professor competente não estará atento só às mais grosserias infrações, mas ao menosprezo e à indiferença comuns.

A razão e o debate (Perrenoud, 1998k), o respeito à expressão e ao pensamento do outro são questões bem mais importantes do que este ou aquele capítulo de qualquer disciplina. No ensino, como em outros ofícios, a lucidez é uma competência básica, quando se trata - não se podendo fazer tudo - de determinar as questões principais.

PARTICIPAR DA CRIAÇÃO DE REGRAS DA VIDA COMUM REFERENTES À DISCIPLINA NA ESCOLA, ÀS SANÇÕES E À APRECIAÇÃO DA CONDUTA

O professor aberto a negociações não abandona nem seu status, nem suas responsabilidades de adulto e de mestre. Não instaura a autogestão, mas antes, para dizê-lo com uma pitada de provocação, o equivalente de uma "monarquia constitucional" constantemente reversível:

- o professor faz tudo o que pode para que o grupo assuma, de maneira responsável, uma parte da definição das regras e das decisões coletivas;

- se o grupo não "entra no jogo", ele retoma cedo ou tarde o poder que a instituição delegou-lhe e serve-se dele de maneira tradicional, às vezes com a morte na alma.

Pode-se avaliar a ambig·idade fundamental da situação. Na escola pública, isso dificilmente é inevitável, na medida em que uma classe não é uma ilha, nem o professor um artesão que trabalha por conta própria, único senhor a bordo. A competência fundamental de um professor partidário do acordo é, indubitavelmente, a de viver essa ambig·idade com relativa serenidade, dominando sua angústia, sob pena de voltar, ao menor sinal de alarme, a uma autoridade unilateral, sem se responsabilizar por todas as contradições do sistema, nem esperar que elas sejam magicamente desatadas.

- O professor negociará ainda melhor quando souber como agir e considerar que isso faz parte de seu ofício, que nada é evidente em seu espírito, que ele julga normal reconstruir constantemente as condições do trabalho escolar e da aprendizagem, a começar pela adesão ativa dos alunos ao projeto de intruí-los e às regras da vida comum.

ANALISAR A RELAÇÃO PEDAGÓGICA, A AUTORIDADE E A COMUNICAÇÃO EM AULA

“Não estou aqui para gostar de vocês e não lhes peço que gostem de mim. Temos um contrato de trabalho a respeitar, nada mais”.

Infelizmente, no plano pedagógico, paga-se caro por essa atitude descompromissada. A maior parte dos alunos tem necessidade de ser reconhecida e valorizada como pessoa única. Os alunos não querem ser um número em uma sala de aula que tem um número. É por isso que o ensino eficaz é um trabalho de alto risco, que exige que as pessoas se envolvam sem abusar de seu poder. Nenhum professor pode renunciar inteiramente à sedução, à atração, a uma certa forma de manipulação. Ele necessita desses recursos para fazer o seu trabalho. Sua competência é saber o que faz, o que supõe idealmente um trabalho regular de desenvolvimento pessoal e de análise das práticas.

DESENVOLVER O SENSO DE RESPONSABILIDADE, A SOLIDARIEDADE E O SENTIMENTO DE JUSTIÇA

Além de uma orientação ideológica estável, o professor deve dominar "técnicas de Justiça" globalmente aceitas, sabendo que haverá aqui ou ali uma nota em falso, mas que, no conjunto, seus alunos reconhecerão que ele faz o melhor que pode. A pedagogia institucional propõe fazer do grupo-aula uma instância de justiça, mais do que confiar somente na sabedoria do professor. 0 que supõe uma explicitação pactuada dos direitos e deveres dos alunos (Perrenoud, 1994d), bem como dos professores, e um esclarecimento dos procedimentos de justiça da classe e do estabelecimento.

10- ADMINISTRAR SUA PRÓPRIA FORMAÇÃO CONTÍNUA SABER EXPLICITAR AS SUAS PRÓPRIAS PRÁTICAS

Essa competência é, na realidade, a base de uma autoformação: - formar-se não é - como uma visão burocrática poderia, às vezes, fazer crer - fazer cursos (mesmo

ativamente); é aprender, é mudar, a partir de diversos procedimentos pessoais e coletivos de autoformação;

40- entre esses procedimentos, podem-se mencionar a leitura, a experimentação, a inovação, o trabalho

em equipe, a participação em um projeto de instituição, a reflexão pessoal regular, a redação de um jornal ou a simples discussão com os colegas;

- sabe-se cada vez mais claramente que o mecanismo fundamental depende do que se chama agora com Sch¯n (1994, 1996) de prática reflexiva (Perrenoud, 1998g).

Todo ser humano é um prático reflexivo. Insiste-se nisso para convidar a uma reflexão mais metódica que não seja movida apenas por suas motivações habituais - angústia, preocupação de antecipar, resistência do real, regulação ou justificativa da ação -, mas por uma vontade de aprender metodicamente com a experiência e de transformar sua prática a cada ano.

Resta aprender a analisar, a explicitar, a tomar consciência do que se faz. Participar de um grupo de análise das praticas constitui uma forma de treinamento, a qual permite interiorizar posturas, procedimentos, questionamentos, que se poderão transferir no dia em que nos encontrarmos sós em nossa classe, ou melhor, ativos em uma equipe ou um grupo de trocas.

0s pedagogos ou terapeutas são obrigados a ter êxito, mas devem poder prestar contas de tentativas variadas e metódicas de delimitar os problemas, estabelecer diagnóstico, construir estratégias e superar obstáculos. Nessa abordagem, a capacidade de prestar contas não é a do contador, que alinha cifras, mas do especialista que descreve e comenta sua prática com um outro profissional, capaz de julgar as competências profissionais em jogo e de reportar a um feedback formativo.

ESTABELECER SEU PRÓPRIO BALANÇO DE COMPETÊNCIAS E SEU PROGRAMA PESSOAL DE FORMAÇÃO CONTÍNUA

A lucidez profissional consiste em saber igualmente quando se pode progredir pelos meios que a situação oferece (individualmente ou em grupo) e quando e mais econômico e rápido apelar para novos recur-sos de autoformação: leitura, consulta, acompanhamento de projeto, supervisão, pesquisa-ação ou aportes estruturados de formadores, suscetíveis de propor novos saberes e novos dispositivos de ensino-aprendizagem. Isso não significa que os professores adotarão, sem outra forma de processo, os modelos que lhes são propostos. Irão, antes, adaptá-los, até mesmo construir outra coisa, porém a formação lhes terá permitido parar de fazer "mais a mesma coisa", operar uma ruptura, recuar, imaginar maneiras totalmente diferentes de apreender para os problemas.

NEGOCIAR UM PROJETO DE FORMAÇÃO COMUM COM OS COLEGAS (EQUIPE, ESCOLA, REDE)

Enquanto a formação contínua fora do estabelecimento procede de uma escolha individual e afasta o professor de seu ambiente de trabalho, uma formação comum, no estabelecimento, faz evoluir o conjunto do grupo, em condições mais próximas do que uns e outros vivem cotidianamente. Isso representa uma chance de avançar mais rápido se as condições se prestam a isso, mas também um risco de conflitos e de sofrimento se as relações entre os professores são difíceis e se a paz só é mantida porque cada um evita expressar uma opinião sobre as práticas dos outros...

A competência visada aqui é, por conseguinte, dupla: saber não perder a ocasião de propor e desenvolver projetos coletivos, quando a situação o

permite, e saber renunciar a isso, quando a escola ainda não atingiu um estágio de cooperação mínima. Um projeto de formação contínua pode reforçar uma cultura de cooperação, não a cria completamente e pode entravá-la se violentar certos professores.

ENVOLVER-SE EM TAREFAS EM ESCALA DE UMA ORDEM DE ENSINO OU DO SISTEMA EDUCATIVO

Mais globalmente, a participação em outros níveis de funcionamento do sistema educacional amplia a cultura política, econômica, administrativa,

jurídica, sociológica dos professores em exercício, com as repercussões imaginadas para sua prática cotidiana, em um duplo sentido: enriquecimento dos conteúdos do ensino e abordagem mais analítica e menos defensiva dos fenômenos de poder e de conflito em geral, dos funcionamentos institucionais.

ACOLHER A FORMAÇÃO DOS COLEGAS E PARTICIPAR DELA

Os partidários das novas pedagogias e do ensino recíproco descobriram há muito tempo que formar alguém é uma das mais seguras maneiras de se formar.Claro, é preciso atingir um certo nível de especialização para pretender formar outrem. Sem dúvida, é por isso que é mais fácil receber um estudante em formação inicial do que um colega: a distância é mais evidente. A partir dessa especialização, a preocupação de compartilhar saberes ou de criar experiências formadoras impele a explicitar, organizar e aprofundar o que se sabe. Pode-se imaginar que a formação mútua, sob diversas formas, progredirá no decorrer dos próximos anos, uma vez vencidos os medos que surgem à idéia de trabalhar sob o olhar de um colega experiente.

413) HADJI, CHARLES - AVALIAÇÃO DESMISTIFICADA. PORTO ALEGRE: ARTMED.

A AVALIAÇÃO FORMATIVA COMO UTOPIA PROMISSORADe modo que, finalmente, é a intenção dominante do avaliador que torna a avaliação formativa. Isso fica

muito claro quando considera-se a maneira como se descreve, classicamente, uma avaliação formativa. Percebe-se, então, que se trata de um modelo ideal, indicando o que deveria ser feito... para tornar a avaliação verdadeiramente útil em situação pedagógica! Desta forma, considera-se primeiramente que a avaliação formativa é uma avaliação informativa. A tal ponto que Philippe Perrenoud, após ter relembrado que é “formativa toda avaliação que auxilia o aluno a aprender e a se desenvolver, ou seja, que colabora para a regulação das aprendizagens e do desenvolvimento no sentido de um projeto educativo”, afirma que seria melhor falar de “observação formativa do que de avaliação”. Duas coisas são, pois, claramente declaradas: a avaliação torna-se formativa na medida em que se inscreve em um projeto educativo específico, o de favorecer o desenvolvimento daquele que aprende, deixando de lado qualquer outra preocupação. “A observação é formativa quando permite guiar e otimizar as aprendizagens em andamento”. E é sua virtude informativa que é seu caráter essencial. A partir do momento em que informa, ela é formativa, quer seja instrumentalizada ou não, acidental ou deliberada, quantitativa ou qualitativa. “A priori, nenhum tipo de informação é excluído, nenhuma modalidade de coleta e de tratamento deve ser descartada”. Uma avaliação não precisa conformar-se a nenhum padrão metodológico para ser formativa. Para facilitar o próprio processo, basta-lhe informar os atores do processo educativo.

Por isso, e esta é a segunda característica em geral considerada, uma avaliação formativa informa os dois principais atores do processo. O professor, que será informado dos efeitos reais de seu trabalho pedagógico, poderá regular sua ação a partir disso. O aluno, que não somente saberá onde anda, mas poderá tomar consciência das dificuldades que encontra e tornar-se-á capaz, na melhor das hipóteses, de reconhecer e corrigir ele próprio seus erros.

Assim, e é sua terceira e mais importante característica, a essa função de regulação voltada para o professor e para o aluno, acrescenta-se o que designou-se como uma função “corretiva”. De fato, o professor, assim como o aluno, deve poder “corrigir” sua ação, modificando, se necessário, seu dispositivo pedagógico, com o objetivo de obter melhores efeitos por meio de uma maior “variabilidade didática”. A avaliação formativa implica, por parte do professor, flexibilidade e vontade de adaptação, de ajuste. Este é sem dúvida um dos únicos indicativos capazes de fazer com que se reconheça de fora uma avaliação formativa: o aumento da variabilidade didática. Uma avaliação que não é seguida por uma modificação das práticas do professor tem poucas chances de ser formativa! Por outro lado, compreende-se por que se diz freqüentemente que a avalia-ção formativa é, antes, contínua. A inscrição no centro do ato de formação se traduz, na verdade, por uma melhor articulação entre a coleta de informações e a ação remediadora. As correções a serem feitas com o objetivo de melhorar o desempenho do aluno, e que concernem portanto tanto à ação de ensino do professor quanto à atividade de aprendizagem do aluno, são escolhidas em função da análise da situação, tornada possível pela avaliação formativa. O remédio baseia-se no diagnóstico, o que permite aos atores retificar as modalidades da ação em andamento. Como Linda Allal indicará claramente já em 1979, a atividade de avaliação desenrola-se, nessas condições, em três etapas. À coleta de informações, referente aos progressos realizados e às dificuldades de aprendizagem encontradas pelo aluno, acrescenta-se uma interpretação dessas informações, com vistas a operar um diagnóstico das eventuais dificuldades, tudo isso levando a uma adaptação das atividades de ensino/aprendizagem - coleta de informação/diagnóstico individualizado/ajuste da ação, assim se apresenta a seqüência formativa.

Assim, a idéia de avaliação formativa corresponde ao modelo ideal de uma avaliação:- colocando-se deliberadamente a serviço do fim que lhe dá sentido: tornar-se um elemento, um

momento determinante da ação educativa;- propondo-se tanto a contribuir para uma evolução do aluno quanto a dizer o que, atualmente, ele é;- inscrevendo-se na continuidade da ação pedagógica, ao invés de ser simplesmente uma operação

externa de controle, cujo agente poderia ser totalmente estrangeiro à atividade pedagógica.

OS OBSTÁCULOS À EMERGÊNCIA DE UMA AVALIAÇÃO FORMATIVA

Isso equivale a dizer que a avaliação jamais será realmente formativa? E como contribuir para uma progressão das práticas no sentido do modelo ideal? Qual pode, em particular, ser o papel de uma obra como esta?

A resposta a essa pergunta pode expressar-se sob a forma de uma hipótese de trabalho: para agir eficazmente, é útil compreender primeiro.

A explicitação do estatuto de utopia promissora pode nos levar a compreender, nesse sentido, a fim de imaginar caminhos a serem encurtados ou contornados, quais são os principais obstáculos à emergência de uma Avaliação com Intenção Formativa (EVF)?

1. Um primeiro obstáculo decisivo é a existência de representações inibidoras. A representação segundo qual a avaliação é uma medida continua viva, até mesmo pregnante, na mente dos avaliadores escolares. Aliás, como não ser vítima disso quando todos (administração, pais, alunos, colegas) reclamam

42notas? A nota não é a expressão de uma justa medida? Em nome de que podemos afirmar aqui que se é “vítima” de tal representação? Só pode ser em nome de uma concepção cientificamente fundamentada da atividade de avaliação.

A primeira maneira de deixar de lado as representações inadequadas é voltar-se para o saber sem esperar, todavia, milagres da difusão desse saber. De fato, a mudança nas práticas implica, entre outras coisas, mudança das mentalidades, condicionada por fatores de ordem ideológica e social. Se, como observa J.-M. De Ketele, a avaliação “traduz e serve a ideologia dominante da instituição social à qual pertence o professor”, nenhuma avaliação decisiva pode ser esperada sem que haja uma mudança profunda na ideologia dominante. Dever-se-ia, em todo caso, aprofundar o estudo das condições de possibilidade da mudança, no sentido do trabalho de Yvan Tourneur.

2. Será igualmente necessário voltar-se para o saber para superar um segundo obstáculo constituído, paradoxalmente, pela pobreza atual dos saberes necessários, pois, como havia observado Linda Allal, a EVF implica necessariamente trabalho de interpretação das informações coletadas. Ora, tal interpretação exige “em princípio” poder “referir-se a um quadro teórico que dê conta dos múltiplos aspectos (cognitivo, afetivo, social) das aprendizagens”. Essa teoria está sendo construída.

Portanto, não depende dos professores, mas dos pesquisadores, que esse obstáculo seja superado ou não. Todavia, se, para ajudar o aluno a determinar, analisar e compreender seus erros, é necessário basear-se em modelos teóricos que esclareçam o funcionamento cognitivo, essa necessidade não deve tornar-se paralisante e transformar-se em álibi para o imobilismo.

3. O terceiro obstáculo, após a força das representações inibidoras e a pobreza dos conhecimentos que podem fundamentar a interpretação é... a preguiça, ou o medo, dos professores, que não ousam imaginar remediações. Com efeito, a EVF caracteriza-se, como bem sabemos pelo fato de que leva à terceira etapa, descrita por Linda Allal, de adaptação das atividades de ensino e de aprendizagem em função da interpretação que terá sido feita das informações coletadas. Aqui duas observações podem ser feitas. Primeiramente, essa terceira etapa do processo de avaliação também poderia ser vista, simplesmente, como o primeiro momento de uma nova seqüência didática, certamente esclarecido pela avaliação que precede, mas autônomo no sentido de que, se o diagnóstico orienta a busca de uma remediação, esta sempre deve ser inventada. Ela depende da capacidade do professor para imaginar, e pôr em execução, remediações. Assim, e é nossa se -gunda observação, não há relação de causalidade linear e mecânica entre o diagnóstico e a remediação. De modo que o que falta freqüentemente é ou a vontade de remediar (porque, por exemplo, não se acredita mais nas possibilidades de melhora do aluno), ou a capacidade de imaginar outros trabalhos, outros exercícios.

Concluindo, o que aprendemos durante essa primeira investigação? Que a avaliação formativa não é nem um modelo científico, nem um modelo de ação diretamente operatório. Não é mais do que uma utopia promissora, capaz de orientar o trabalho dos professores no sentido de uma prática avaliativa colocada. tanto quanto possível, a serviço das aprendizagens. Mas essa utopia é legítima na medida em que visa correlacionar atividade avaliativa e atividade pedagógica; essa legitimidade só vale, em função disso, no espaço das atividades com vocação educativa. Essa dimensão utópica possibilita compreender a impossibilidade de apresentar e de realizar o que corresponderia a um modelo acabado de avaliação formativa. Ela sempre será parcialmente sonhada. Mas isso não impossibilita trabalhar para progredir nessa direção, bem ao contrário. Pois, se três condições (pelo menos!) devem ser preenchidas para uma feliz evolução das práticas rumo a esse modelo, somente a segunda não depende diretamente dos avaliadores. Eles podem progredir no conhecimento do que é a avaliação e no desenvolvimento de sua variabilidade didática por meio da busca de pistas para uma remediação oportuna. Resta-nos então propor alguns elementos essenciais para a primeira tarefa e alguns materiais úteis para a segunda.

COMPREENDER QUE AVALIAR NÃO É MEDIR, MAS CONFRONTAR EM UM PROCESSO DE NEGOCIAÇÃO

O que é uma medida? Segundo J.-P. Guilford, citado por Gilbert De Landsheere, medir significa atribuir um número a um acontecimento ou a um objeto, de acordo com uma regra logicamente aceitável. Isso implica que o objeto, ou o acontecimento, possa ser apreendido sob uma única dimensão, isolável, capaz de receber uma escala numérica (Bonniol, 1976). A medida é assim uma operação de descrição quantitativa da realidade. Mas a avaliação, pelo menos em sua forma dominante de prática de notação, não equivale precisamente a atribuir números a coisas? Aí está a origem da ilusão: aparentemente, há identidade formal entre as operações de medida e de notação. E a idéia de que a avaliação é uma medida dos desempenhos dos alunos está, como já vimos solidamente enraizada na mente dos professores... e, freqüentemente, na dos alunos. Mas ob-servemos as coisas mais de perto. Uma medida é objetiva no sentido de que, uma vez definida a unidade, deve-se ter sempre a mesma medida do mesmo fenômeno. Certamente, um erro é sempre possível, devido às imperfeições da instrumentação, pois ele resulta então das condições de operacionalização dos instrumentos. Ele provém da própria operação de medida. Por essa razão, pode-se calculá-lo e, portanto, neutralizá-lo. O que acontece no domínio das notações? Vejamos o caso de um objeto a “medir”: um trabalho de aluno. Onde está o instrumento? Só pode ser a pessoa do corretor. Ora, é claro que esse instrumento não é confiável.

43Buscando várias medidas de um mesmo trabalho verificou-se que, com freqüência as notas divergiam muito amplamente. Os primeiros trabalhos de docimologia forneceram exemplos abundantes disso. No sentido etimológico, a docimologia é a ciência (logos) dos exames, ou da medida por exame (dokimê). Isso foi, portan-to, percebido pela docimologia, de saída, como um ato de medida. Mas os trabalhos empreendidos pela docimologia iam justamente demonstrar que a idéia de partida, segundo a qual o exame é uma medida, revela-se no mínimo muito discutível.

Quer sejam disciplinas literárias (o que, para o senso comum, poderá parecer menos surpreendente) ou científicas (o que parecerá mais chocante aos mesmos!), os resultados das experimentações vão sempre na mesma direção. O que concluir disso, senão que:

a) se é realmente uma operação de medida, o instrumento de medida carece totalmente de confiabilidade. Será então muito difícil, até mesmo impossível, reverter a situação;

b) trata-se provavelmente de algo bem diferente que de uma operação de medida.

Foi buscando, no eixo da primeira hipótese, tornar o instrumento (isto é, não esqueçamos, o corretor no caso da notação) mais confiável, que se compreendeu como a segunda hipótese era pertinente. Com efeito, para melhorar o instrumento, é preciso corrigir seus defeitos. Quais são eles?

- A primeira resposta resume-se a uma palavra: a subjetividade do corretor. Pode-se pensar aqui em suas mudanças de humor, em suas preferências imediatas, em suas “paixões” (no oral), em suas liberalidades mais ou menos repreensíveis, mas também em suas dúvidas, em seus momentos de cansaço, de “melan-colia”. Querer neutralizar tudo isso constitui certamente um vasto programa...

- Acreditar (ou esperar) em uma possível neutralização desse fator evidente de erro só tem sentido quando se acredita na objetividade de algum modo natural do julgamento professoral que se expressa durante a operação de avaliação. Deplora-se ainda mais as derivas da subjetividade quando vêm perturbar e perverter o jogo de um julgamento professoral que, liberado desse fator de perturbação, deveria poder desenrolar-se de modo satisfatório. Pelo menos quando se aposta na “certeza avaliativa”, isto é, quando se acredita que o corretor, em sua essência de examinador puro, liberto do que corrompe essa essência, é uma máquina de medir objetivamente os trabalhos. Que peso tem essa convicção, essa crença na existência de uma especialização professoral tal que o professor-notador-especialista poderia quase infalivelmente dizer a verdadeira nota de cada trabalho?

Os trabalhos de Pierre Merle mostraram que esse julgamento é sempre infiltrado por elementos provenientes do contexto escolar e social, desde a carga afetiva e a dimensão emocional devido à presença efetiva dos alunos (em aula, ou na prova oral), até as representações dos alunos (o modelo do bom aluno) ou do sistema escolar durante a correção de um trabalho anônimo. ou de um conselho de classe. O julgamento professoral ignora, em geral, que baseia-se em parte em uma representação construída do aluno e em con-vicções íntimas que nada têm de científicas! As práticas avaliativas dos professores são orientadas por “uma história escolar e social singular”. E conforme as ponderações sociais, as estratégias de precaução, o jogo duplo do professor, a manutenção da disciplina no dia-a-dia, a avaliação torna-se o “produto de interações múltiplas”, que expressa e traduz contradições. O julgamento professoral inscreve-se, pois, em “uma cons-trução social em movimento" do duplo ponto de vista da história do professor e daquela da classe e depende muito do contexto escolar e social. Ele implica sempre uma parcela de interpretação, socialmente condicionada. Assim, fortemente dependente do contexto social, está sempre às voltas com “vieses sociais”.

O que pensar de um instrumento de medida sensível ao contexto social da medida? Fica claro que é inútil insistir em tornar a avaliação tão objetiva quanto uma medida. É por essa razão que todos os procedimentos de redução de divergências das notas revelam-se pouco eficazes em alcançar seu objetivo. A maior parte deles não passa de procedimentos de moderação estatística, que conseguem apenas atenuar os efeitos mais visíveis da incerteza da correção, sem combater a própria incerteza.

Para progredir realmente, será necessário questionar a natureza exata da relação avaliador/avaliado. Não se pode mais considerá-la como aquela de um instrumento de medida com um objeto medido. O instrumento é demasiado incerto, e o objeto, demasiado vago.

Registremos aqui o fato de que hoje se sabe que a avaliação não é uma medida pelo simples fato de que o avaliador não é um instrumento, e porque o que é avaliado não é um objeto no sentido imediato do termo. Todos os professores-avaliadores deveriam, portanto, ter compreendido definitivamente que a noção de “nota verdadeira” quase não tem sentido.

Deve-se requestionar a natureza e o sentido da atividade de avaliação. Ela não é uma medida. Mas, então, em que consiste?

A AVALIAÇÃO É UM ATO QUE SE INSCREVE EM UM PROCESSO GERAL DE COMUNICAÇÃO/NEGOCIAÇÃO

O avaliador não é um instrumento de medida, mas o ator de uma comunicação social. A avaliação é primeiramente “problema de comunicação”. Hoje em dia, sabe-se qual a “incidência das situações e dos contextos sociais sobre a avaliação”. Compreendeu-se que a avaliação é ”uma interação, uma troca, uma negociação entre um avaliador e um avaliado, sobre um objeto particular e em um ambiente social dado”.

44PARA O ALUNO, O DESEMPENHO DEPENDE DO CONTEXTO

Jean Cardinet propõe que se considere que o desempenho observado é uma função com muitas variáveis. Sem dúvida, mas em uma proporção difícil de avaliar, função desse valor escolar “objetivo”. Mas igualmente função da história das interações do aluno com o professor. E até mesmo, em última hipótese, de toda a história escolar do indivíduo (o mesmo para o professor!): e função da formulação do problema que lhe é proposto no exame.

As práticas avaliativas apresentam-se fundamentalmente como trocas de questões e de respostas, no decorrer das quais se instaura um certo número de mal-entendidos sobre, no que diz respeito ao aluno, o sentido das questões e sobre o que o professor espera. Para o aluno, pode ser difícil distinguir os momentos de aprendizagem e os momentos de avaliação. Dessa forma, o erro é permitido no primeiro caso. Sancionado no segundo.

Além das ambigüidades inerentes à apresentação dos problemas e à formulação das questões (o que torna necessário um grande esforço de explicitação e de simplificação por parte dos professores-avaliadores), a criança freqüentemente se equivoca sobre a própria intenção do adulto. Ele quer que se faça cuidadosamente um desenho geométrico ou que se contente em raciocinar? Ele quer respostas:

mas por que então não as deu inicialmente? Quer que se extraia de um texto, como idéia principal, a idéia mais manifestamente presente, a mais original, ou a mais rica em informações? O aluno deve então adivinhar o que o professor espera e decodificar suas expectativas implícitas, o que exige “savoir-faire sociais”. Assim, “a criança, ator inconsciente de um roteiro que não conhece, esforça-se para dar sentido à situação, baseando-se em suas experiências anteriores. Para ela, ser interrogado é bem mais do que resolver um problema. É ser confrontado com uma situação social que deve ser bem compreendida primeiramente”.

Os processos psicossociais complexos postos em jogo pela avaliação dependem não somente dos conteúdos em jogo, mas também das condições sociais da própria prova de avaliação. Por essa razão, com o mesmo “equipamento intelectual”, um aluno poderá produzir outros desempenhos se o contexto social for diferente. Jean-Marc Monteil mostrou muito bem, nesse sentido, qual o peso, sobre o desempenho, das inserções sociais e das atribuições de valor. Os alunos têm comportamentos diferentes em situação de anonimato ou de visibilidade; e seus desempenhos também mudam se estiverem em situação de comparação social (quando a existência de diferentes níveis é publicamente proclamada) ou não (quando declara-se aos indivíduos que todos têm o mesmo nível).

Na condição com comparação social, os bons alunos dão-se melhor em situação de visibilidade do que de anonimato: nesse caso, eles se “superam”. Quanto aos maus alunos, é o inverso, como se, em situação de visibilidade, eles fracassassem conforme o hábito “social”; ao passo que em situação de anonimato, ainda que saiba-se publicamente que são maus alunos, são capazes de ter êxito, o que revela a existência das competências necessárias ao êxito, ainda que normalmente fracassem!

Na condição sem comparação social, de fato, seja qual for a situação (anonimato, visibilidade), os bons alunos têm êxito e os maus, desempenhos fracos.

A esses “resultados perturbadores”, pelo menos no que diz respeito à condição de comparação, acrescentam-se outros.

Bons alunos podem obter, na mesma prova, resultados diferentes conforme aprovados ou reprovados, publicamente, mas ao acaso, em uma prova anterior. Pode-se então “fabricar” êxito ou fracasso e produzir, a partir disso, resultados tão “perturbadores”. Os alunos a quem se disse terem sido reprovados têm êxito em situação de anonimato, mas fracassam em situação de visibilidade: ao passo que aqueles a quem se disse terem sido aprovados... fracassam em situação de anonimato (e, no entanto, são bons alunos!), mas têm êxito em situação de visibilidade.

O que concluir disso? Em situação de visibilidade social, os desempenhos estão de acordo com as atribuições sociais: o sujeito inscreve então sua conduta “no sistema de expectativas engendradas pela escola”. Em situação de anonimato, eles vão no sentido oposto às sanções atribuídas, como se o anonimato “corrigisse” o que havia sido socialmente fabricado. A conclusão que J.-M. Monteil tira disso é clara: “os desempenhos cognitivos do sujeito não são [...] independentes das condições sociais nas quais eles são reali -zados”. De um lado, as atribuições sociais de valor - que correspondem a um fenômeno de categorização - determinam, em parte, o êxito ou o fracasso. De outro, as situações de visibilidade social acentuam o peso dos fatores sociais. Assim, são evidenciados dois fatos fundamentais. A importância, para o aluno, do contexto social da avaliação, mas também o impacto desta sobre o futuro do aluno. Se podemos gerar fracasso escolar por construção experimental assim tão facilmente, compreende-se qual a “importância considerável das categorizações iniciais e o impacto dos lugares e posições sociais atribuídos a um sujeito sobre seus comportamentos posteriores”. Vamos ver que análises de Noizet e de J.-P. Caverni colocaram paralelamente em evidência a importância desse impacto sobre os avaliadores. Como um fenômeno reforça o outro, é muito fácil, pelo jogo das primeiras avaliações, treinar o aluno em uma espiral de fracasso... ou de êxito!. Para pôr as avaliações a serviço das aprendizagens, uma regra essencial seria, portanto, jamais se pronunciar levianamente e contar até 10 antes de fazer um julgamento... sobretudo se for negativo!

45Portanto, como lembra Jean Cardinet, se o desempenho observado pelo avaliador jamais constitui “uma

base quase científica para fazer um julgamento sobre as capacidades das pessoas”, isso acontece, entre outras razões, porque o aluno deve interpretar a situação de avaliação para imaginar a intenção provável daquele que o interroga. Seu desempenho depende “estritamente” dessa interpretação. Como essa interpretação exige savoir-faire sociais, um mal desempenho pode ser devido, não a uma falta de competência cognitiva ou de aptidão, mas a uma falta de savoir-faire social. O que confirma o caráter particularmente vago, já salientado, do objeto de avaliação. Quando se pensava apreender uma competência pessoal (competência que, além disso, seria quase natural aos olhos de certos professores), apreende-se freqüentemente um construto social, cujas manifestações flutuam conforme o contexto social!

A PERCEPÇÃO QUE O EXAMINADOR TEM DO DESEMPENHO É IGUALMENTE DEPENDENTE DO CONTEXTO SOCIAL

O efeito de categorização, de rotulação social, que vale para o aluno, também vale para o examinador.A ordem das correções revela-se importante: os primeiros trabalhos corrigidos são (salvo o primeiro)

superavaliados, e aqueles corrigidos por último, subavaliados (efeito de ordem). Um mesmo trabalho é superavaliado ou subavaliado conforme segue imediatamente um trabalho muito ruim ou muito bom.

Porém, o mais importante não está aí. Reside na revelação de efeitos de assimilação, fazendo com que variem as informações dadas a dois grupos de corretores equivalentes corrigindo o mesmo trabalho, constata-se:

- que o conhecimento das notas anteriormente obtidas pelo produtor do trabalho influencia a avaliação deste. Há assimilação de um desempenho aos desempenhos anteriores;

- que, do mesmo modo, o conhecimento do estatuto escolar do aluno (nível forte, ou o melhor possível, fraco) influencia a correção. Os avaliadores têm tendência a assimilar a produção ao nível presumido de seu autor;

- que a posse de informações referentes à origem socioeconômica do produtor do trabalho também influência a correção, ainda que esta informação se reduza à origem de determinada escola. O mesmo trabalho recebe uma nota melhor quando é atribuído a um aluno de uma escola de excelência, recebendo uma nota mais baixa quando atribuído a um aluno de uma escola de periferia. Neste último caso, o corretor dá a nota em parte em função da idéia que tem do valor escolar do aluno, em razão de sua origem social, imaginada através da freqüência a esta ou aquela escola!

A AVALIAÇÃO ESCOLAR TRADUZ ARRANJOS EM UMA DINÂMICA DE NEGOCIAÇÃO

Será possível, porém, desfazer-se dessa influência social? Certamente, o conhecimento desse fenômeno pode constituir, para o corretor, um primeiro fator de liberação.

A avaliação é um ato de comunicação que se inscreve em um contexto social de negociação.Para o professor, guiar a turma em uma progressão de saber e, para o aluno, modificar o percurso rumo

a uma linha de menor dificuldade -, professores e alunos deverão negociar e transigir, as táticas destes opondo-se à estratégia global daquele. Desse ponto de vista, o controle dos conhecimentos fixa os “cursos”. O professor não é uma máquina de dar notas, mas um ator que regateia, em função do valor essencial para ele, a média (que fixa o curso médio do saber na classe). As táticas dos alunos desenvolvem-se em vista da construção de uma imagem correta, a imagem escolar na qual se fixará seu valor de aluno, ao menor custo. De modo que, se a prova de avaliação mede alguma coisa, é a “habilidade tática do aluno” para construir a melhor imagem ao menor custo. O que recoloca muito claramente o problema do objeto “medido”, pois, nesse contexto didático, “a nota atribuída torna-se uma mensagem”. Negociação e comunicação andam juntas. Por isso, o que a avaliação escolar precisa para progredir (para mais justiça e, ao mesmo tempo, mais objetividade) é, primeiramente, de um “contrato social”.

Sem dúvida, definitivamente, o defeito principal do avaliador é sua demasiada sensibilidade aos fenômenos sociais. Mas essa sensibilidade não poderia, a rigor, ser neutralizada senão no âmbito de um “contrato social” que determinasse e fixasse as regras do jogo. Como diz Yves Chevallard, o importante é aprender a dominar as regras do jogo. A relação de ensino não escapa à lei de toda relação humana: ser moldada por regras do jogo.

Mas então, devido à própria importância dessa dimensão social, é preciso, de uma vez por todas, libertar-se da alegoria da medida. A conclusão dessa segunda análise dos saberes agora construídos sobre o processo de avaliação reencontra aquela da primeira análise. O avaliador não é um instrumento de medida, mas um ator em um processo de comunicação social. Certamente, ele precisa dizer, apesar de tudo, o valor de um produto. Mas o próprio uso do termo valor adverte que não se está, propriamente falando, no domínio da medida. A exatidão da especialização professoral não passa de uma crença, desmentida pelos fatos. Isso nos leva a compreender que a avaliação, mesmo em sua forma mais rigorosa, aparentemente, de notação, diz menos sobre o “verdadeiro valor” de um objeto (expressão sem dúvida marcada por uma contradição interna) do que expressa outra coisa. Mas o que?

46A AVALIAÇÃO É UM ATO DE CONFRONTO ENTRE UMA SITUAÇÃO REAL E EXPECTATIVAS REFERENTES A ESSA SITUAÇÃO

Primeiramente, todo julgamento de avaliação é institucional. Para a avaliação, não há legitimidade senão institucional. “Todo ‘juiz’ fala e sustenta sua declaração enquanto sujeito envolvido com uma instituição”. Neste caso: desejo de ver os alunos tornarem-se bons alunos com referência ao modelo institucional do bom aluno. Em segundo lugar, existe uma equivocidade essencial dos vereditos. Yves Chevallard fala de caráter vago (eis novamente o termo...), de um trêmito, de um não-determinismo dentro da própria instituição, pois a relação institucional com a atividade de avaliação “não fornece um ‘algoritmo’ de comportamento, levando o professor a um veredito univocamente determinado”. E, por outro lado, em uma outra instituição, outro veredito seria dado. De modo que todo veredito é marcado por uma “arbitrariedade que, aparentemente, nada pode reduzir totalmente”.

Resumindo: a avaliação não é uma operação científica. A declaração do avaliador é sempre equívoca. Ela só tem legitimidade no seio de uma instituição. E - para nós, o fato fundamental - ela expressa a adequação (ou a não adequação) percebida entre a relação atual do aluno com o saber, objeto da avaliação, e a relação ideal do aluno com o saber, objeto do “desejo” institucional. É em nome dessa relação ideal que é declarado o valor do aluno.

O avaliador tem sempre um pé fora do presente do ato de avaliação. Ele tem um pé no dever-ser. Ele sabe (ou deve saber) o que deve ser (deve saber fazer) o aluno. É em nome desse dever-ser, que representa o conteúdo de uma expectativa específica, que ele julga (aprecia) o desempenho atual do aluno. Avaliar não consiste pois, simplesmente, em medir esse desempenho, mas em dizer em que medida ele é adequado, ou não, ao desempenho que se podia esperar desse aluno. Em nome de quê? Do modelo ideal que orienta a leitura da realidade e que preside ao levantamento de indícios. Será em função desse modelo que se manifestarão expectativas precisas acerca do aluno.

No domínio da avaliação escolar, os dados são na maioria das vezes produzidos por ocasião de uma tarefa proposta ao aluno. É quando o aluno enfrenta essa tarefa, ou no produto de sua atividade, que se levantam os elementos observáveis que vão constituir “ o objeto de trabalho”.

Quando há uma preocupação com os instrumentos da avaliação, pensa-se de modo prioritário nos instrumentos que vão permitir recolher as informações para a avaliação. Esses instrumentos serão diversos, em função dos tipos de dados possíveis. Pode-se pensar em dados já existentes (os resultados de avaliações passadas, as informações contidas em um boletim escolar); em dados produzidos por observação, seja aquela do comportamento “natural” do aluno (na aula), ou aquela de seu comportamento no decorrer de um teste: este é, como já dissemos, o caso mais freqüente, pois a tarefa permite observar a atividade do aluno, ou seu produto (há então observação indireta do sujeito produtor através dos traços de sua produção); ou então, enfim, em dados produzidos por meio de uma entrevista com o aluno. Em todos os casos, esses dados constituem (ou permitem extrair) indicadores, que só indicam algo em referência ao critério. Assim:

a) O indicador jamais é um dado imediato, que bastaria apanhar, abaixando-se. É sempre o resultado de um trabalho de elaboração, de construção, feito à luz, dos critérios. Um indicador não indica nada que não esteja relacionado a um critério.

b) É a coerência -critérios/indicadores- que importa antes de tudo. Nisso reside toda a objetividade que se pode esperar de um julgamento de avaliação. Ele deve dizer o valor, baseando-se nos sinais (os indicadores) mais característicos da realidade (é preciso que os indicadores desvelem o próprio objeto), mas com referência às expectativas. Em outras palavras, o indicador deve ser, ao mesmo tempo, representativo da realidade avaliada (objetividade externa), e significante em relação a uma expectativa precisa (“objetividade” interna, ou coerência). A significação não está contida no indicador; ela não é uma propriedade dele. Ela nasce da proximidade com o critério.

c) Sendo o referido - aquilo a partir do que se poderá fazer o julgamento de valor - assim construído por meio do levantamento de indícios ou de indicadores (designa-se, portanto, pelo termo de referido o conjunto da informação que foi possível produzir para a avaliação), o ato específico de avaliação, que leva à produção de um julgamento de valor, consiste em relacionar um referido e um referente para dizer em que medida a realidade apreendida por meio do referido está de acordo com o ideal que transparece no referente.

Para produzir observáveis, poderei, por exemplo, submeter o aluno à seguinte prova: completar um calendário, ordenando diferentes etapas que correspondem ao passado e ao futuro próximos do próprio aluno. Esta é a tarefa que deve permitir recolher informações para a avaliação. Trata-se de completar etiquetas vazias correspondendo a etapas importantes da escolaridade durante três anos, em uma faixa vertical em que esses anos estão representados. As respostas do aluno (exata esperada; exata parcial sem elemento errôneo, errônea; ausência de resposta) constituirão o referido... que deverá ser interpretado em relação ao referente para formular um julgamento de valor do tipo: tanto quanto se pode julgar através deste exercício, tal aluno realizou perfeitamente o que se podia esperar dele. Ele sabe situar-se em um passado ou em um futuro próximos. Ou então: já este outro não possui, ou não domina senão parcialmente a competência visada. Observemos que se poderá sempre, atribuindo pontos aos tipos de respostas, traduzir isso em uma nota. Mas essa nota só terá sentido se não se perder de vista o que ela “traduz”: o grau de adequação de um comportamento cognitivo real a um comportamento cognitivo desejado.

47

Desse ponto de vista, o avaliador colocará a avaliação... primeiramente a seu serviço (para servir à sua função de professor), tornando-a informativa, por meio de uma explicitação o mais precisa possível do referente, e, a partir daí, uma coleta o mais pertinente possível dos dados que poderão então ser interpretados, em relação ao referente.

Esta nos parece ser a terceira aquisição fundamental dos trabalhos sobre a avaliação e que, em certo sentido, é a mais importante. Efetivamente, compreende-se que a avaliação não é uma medida (aquisição n.º 1); que se inscreve em um processo de comunicação/negociação (aquisição n.º 2), por referência à sua carac-terística essencial: é uma operação de confronto, de correlação, entre expectativas e uma realidade (ou, no outro sentido, entre o “existente e o desejado ou o esperado”). Essas expectativas são essencialmente sociais. É preciso estabelecer expectativas legítimas, o que nem sempre é evidente... pode exigir negociações. O julgamento de valor produzido destina-se a atores sociais (o próprio professor, o aluno, a administração, os pais, etc.), para quem o que se diz nessa comunicação significa muito. O lugar que se conseguirá na sociedade será, em parte, função do valor escolar, apreciado e proclamado na escola. Apreciado, e não medido no sentido estrito, já que não se trata de medir um objeto, mas de dizer em que medida esse objeto corresponde a expectativas específicas sobre ele. A primeira maneira de pôr a avaliação a serviço dos alunos é, para o professor-avaliador, compreender tudo isso.

PISTAS PARA AÇÃO

1) Do ponto de vista dos objetivos da prática avaliativa, compreendemos:

- que se devia privilegiar a auto-regulação;- desvinculando, na medida do possível, o escolar do social;- pela designação e pela explicitação do que se espera construir e desenvolver através do ensino;- de maneira que o aluno perceba o “alvo” visado;- aproprie-se tanto dos critérios de realização quanto dos critérios de êxito... e esteja em

condições de julgar sua situação com conhecimento de causa;- tornando-se o professor capaz de fundamentar as remediações feitas sobre os diagnósticos

elaborados (embora não haja causalidade linear do diagnóstico á remediação);- e de diversificar sua prática pedagógica, por meio de um aumento de sua “variabilidade

didática”.

2) Do ponto de vista das, modalidades da prática avaliativa, compreendemos:

- que o professor não devia autolimitar sua criatividade e sua imaginação;- que devia ter a preocupação de falar “correta” e pertinentemente;- privilegiando avaliações em segunda, até mesmo em primeira pessoa.

3) Do ponto de vista das condições técnicas da avaliação, compreendemos:

- que se tratava de relacionar de maneira coerente o exercício de avaliação ao objeto avaliado;- de explicitar os exercícios;- de especificar o sistema de expectativas e os critérios;- de não se afogar em um mar de observáveis- ampliando, entretanto, o campo das observações a fim de tornar a avaliação mais informativa.

4) Do ponto de vista da deontologia do trabalho do avaliador, compreendemos que este tinha o dever:

- de jamais se pronunciar levianamente (dever de prudência);- de construir um “contrato social”, fixando as regras do jogo (dever de clareza);- de despender tempo para refletir e identificar o que julgava poder esperar dos alunos (dever de

reflexão prévia);- de desconfiar, a esse respeito, do que parece ser evidente (dever de distanciamento, ou de

desconfiança);- de enunciar os valores em nome dos quais se tomava decisões (dever de transparência);- de não se deixar levar por uma embriaguez judiciária (dever de reserva ou de retenção).

A avaliação se tornará formativa se integrar tudo isso. Não seria pedir muito? E como fazer isso concretamente?

No que refere-se à primeira pergunta, podemos dizer que, de fato, o conjunto dessas pistas representa um nível de exigências relativamente alto. Porém, afirmar que fazer avaliação formativa é fácil seria contradizer a realidade. Nada é fácil. Devido ao que compreendemos da atividade de avaliação, torná-la formativa exigirá muita lucidez, inventividade e tenacidade. Mas o que está em jogo é a virtude, tanto quanto o saber, ou a competência técnica. Com efeito, o modelo ideal de EVF que se revela nas análises anteriores é,

48afinal, como modelo operatório, relativamente simples. A EVF implica, para o professor, quatro grandes condições (correspondentes às quatro grandes categorias de pistas que acabamos de distinguir):

- condição1: ter sempre o objetivo de esclarecer os atores do processo de aprendizagem (tanto o aluno como o professor);- condição 2: recusar limitar-se a uma única maneira de agir, a práticas estereotipadas;- condição 3: tornar os dispositivos transparentes;- condição 4: desconfiar dos entusiasmos e dos abusos de poder.

Assim ocorre com a EVF e com a moral, segundo Alain. “Não há verdadeiramente incerteza sobre os princípios. O difícil é “praticar individualmente”. Que cada um comece!

FACILITAR UM PROCEDIMENTO DE AUTO-AVALIAÇÃO

Dentre as condições de superação, não se deveria contar a participação do aluno neste trabalho de análise, na esperança de um envolvimento cada vez maior de cada um na regulação de suas aprendizagens? Certamente é muito útil abrir os olhos dos professores. Não seria mais útil ainda abrir os olhos dos próprios alunos?

Esta é, como bem sabemos, uma hipótese fundamental de trabalho para a avaliação formadora. Por isso, para ela, o primado da auto-avaliação não é, na verdade, senão a expressão de uma dupla vontade:

1) A vontade, primeiramente, de privilegiar a regulação da ação de aprendizagem, em relação à constatação dos efeitos produzidos por essa ação (perspectivas dinâmica e pedagógica). E de privilegiar, nesse âmbito, a auto-regulação. Por essa razão, deve-se distinguir claramente, segundo Georgette Nunziati, autonotação e autocontrole. A autonotação, através da qual o aluno atribui a si mesmo uma nota ao examinar seu próprio trabalho escolar, já pode ser, é verdade, a oportunidade (e o meio) de um autobalanço, por meio do qual o aluno, analisando o produto final, verifica sua conformidade ao modelo e ”mede” assim a distância entre sua produção e a norma. Porém, o autobalanço ocorre quando a ação de produção está terminada (ou quando uma parte significativa dessa ação já está pronta). Já o autocontrole, figura privilegiada da auto-avaliação, é “um componente natural da ação”. É um elemento constitutivo da ação, que se traduz por uma observação contínua do desenrolar de suas quatro principais fases (representação do objetivo, antecipação, planejamento, execução). É como, escreve Georgette Nunziati, se o sujeito se olhasse ao agir constantemente, a partir de um modelo ideal ou de um sistema de normas. O autocontrole corresponde a uma “avaliação” contínua, freqüentemente implícita, algumas vezes quase inconsciente, da ação conduzida. Ele constitui a instância reguladora da ação, cujo jogo pode chegar a modificar as normas e os modelos de referência. De algum modo, é um “olhar crítico sobre o que se faz enquanto se faz”, olhar através do qual se expressa o sistema interno de orientação próprio a cada um e cuja mobilização pode ter o efeito de uma modificação desse sistema. Vê-se então que o termo controle não tem absolutamente, aqui, o sentido negativo que assumia naqueles que opuseram fortemente a avaliação ao controle.

Assim, a auto-avaliação já está presente na atividade do aluno, mas constantemente, enquanto autocontrole. Portanto, é natural querer que o aluno desempenhe um papel essencial: ele já desempenha naturalmente esse papel! Poder-se-ia dizer então que o problema é colocar a avaliação instituída e instrumentalizada a serviço do autocontrole espontâneo e permanente, para assim ajudar o aluno a construir uma “instância avaliativa” cada vez mais adequada, substituindo os “elementos errôneos” (por exemplo: representação inadequada do objetivo) por elementos de orientação mais pertinentes (por exemplo: a percepção clara dos critérios de realização da tarefa). O objetivo da “auto-avaliação” no sentido clássico (como prática de instrumentação do autobalanço) é enriquecer o sistema interno de orientação para aumentar a eficiência da auto-regulação, verdadeira “chave” de todo o sistema.

Mesmo sendo essa chave, a auto-avaliação só o é enquanto for auto-regulação contínua, e não sob suas formas, que correspondem a “efeitos” de autonotação, até mesmo de autobalanço. Para a avaliação formadora, as prioridades são claras: a ação, e o sujeito que age. É por isso que a regulação operada pelo professor não é senão um “estepe”, que só deve intervir “quando os mecanismos de auto-regulação do aluno estão bloqueados”. Mas o professor pode intervir validamente do exterior, como acabamos de ver, para instrumentalizar de modo mais adequado o autocontrole, particularmente incitando o aluno a fazer análises de tarefa, e acompanhando essa atividade; em outras palavras, ajudando-o a formalizar suas análises pela produção de instrumentos que poderão servir então de instrumentos de autobalanço e de autonotação, sem perder seu sentido de instrumentos de regulação. É, pois, nesse espírito, e sem esquecer todo o trabalho preparatório que leva á sua produção, que vamos dar atenção a alguns outros instrumentos de “auto-avaliação”.

2) Todavia, devemos ainda observar que o primado concedido pela avaliação formadora à auto-avaliação exprime paralelamente a vontade de desenvolver atividades de metacognição. É sabido que se pode designar, por meio desse termo, um processo mental interno pelo qual um sujeito toma consciência dos dife-rentes aspectos e momentos de sua atividade cognitiva. Por meio desse processo, o sujeito toma distância em relação aos conteúdos envolvidos pelas atividades cognitivas em andamento. Por isso, a metacognição é

49sinônimo de atividade de autocontrole refletido das ações e condutas do sujeito que aprende. Ela é da ordem da conceptualização refletida, e implica uma tomada de consciência, pelo sujeito, de seu próprio funcionamento. Compreende-se seu papel no êxito das aprendizagens. Por meio da auto-avaliação, é visado exatamente o desenvolvimento das atividades de tipo cognitivo, como forma de uma melhoria da regulação das aprendizagens, pelo aumento do autocontrole e da diminuição da regulação externa do professor. Pois, como escreve Georgette Nunziati, o objetivo prioritário é o desenvolvimento da autonomia no âmbito “de um procedimento de regulação conduzido por aquele que aprende”. “A auto-avaliação, como processo de autocontrole cada vez mais pertinente, é uma ‘habilidade’ a construir”. Essa construção (construção de um modelo pessoal de ação que será o núcleo do sistema interno de orientação; construção, por isso mesmo, de uma instância avaliativa mais justa; desenvolvimento de uma atitude de distanciamento) supõe suspensões na seqüência e nas atividades de aprendizagem. Não para imobilizar o movimento e quebrar a dinâmica por meio de intempestivas fases de avaliação-balanço que estariam totalmente nas mãos dos formadores externos, dispondo do domínio de algo que não passaria de uma orientação. Mas para permitir ao aluno que reflita, análise, construa progressivamente um modelo da tarefa que se tornará um referente adequado para fazer um exame crítico de sua produção, a fim de progredir rumo a um êxito maior. Todo o sentido daquilo que se chama de auto-avaliação está nisso.

A avaliação não se tornará automaticamente mais formativa só pela operacionalização de instrumentos ditos de auto-avaliação. Tudo depende do uso que o aluno poderá fazer desse instrumento, do sentido que lhe dará, e de sua participação, a partir disso, em um movimento que favoreça “uma auto-regulação geradora de aprendizagens”.

AGIR, COMUNICANDO DE MODO ÚTIL

Como, falar adequadamente? Vamos levantar uma hipótese de ação e propor um método para determinar os princípios suscetíveis de tornar a avaliação mais justa, do ponto de vista das exigências de ordem ética.

A hipótese de ação baseia-se precisamente em um princípio de ordem ética, que dá sentido à nossa concepção da educação como “encontro majorante”, da pedagogia como acompanhamento de um desenvolvimento, e da positividade de uma avaliação com intenção formativa, conforme a “convicção fundadora” exposta no início desta obra: toda prática que se quer educativa está a serviço daqueles a quem diz respeito. Cabe, portanto, aos avaliadores não somente dar o primeiro passo, mas operar a mudança de atitude que permitirá que a avaliação saia do reino das máscaras, evitando a armadilha do fechamento em posições complementares e superando a situação de fala impedida (em uma economia do silêncio). As vantagens encontradas nesta última situação não passam de barreiras de proteção contra o medo. Para o professor, medo de perder sua posição superior e de não ser realmente capaz de ajudar. Para o aluno, medo de expor sua imperfeição atual e de ter que se envolver e trabalhar realmente. Mas que risco corre efetivamente o avaliador, ao sair do silêncio acima descrito, e ao tentar “falar para dizer”? O risco é triplo. Perder sua posição superior. Ser levado em um movimento sem fim de questionamento; enganar-se sobre o valor em nome do qual se envolverá realmente. Mas sair de uma relação complementar e colocar o outro em posição superior não é o próprio objetivo de toda relação educativa? Mesmo que o questionamento possa desestabilizar, o questionamento e a pesquisa não são as tarefas próprias do professor? Enfim, o risco de se enganar de valor não é ainda maior quando se recusa a levantar a questão do valor de seus valores?

Cabe então ao professor-avaliador, primeiramente, ousar enfrentar seu medo, correndo o risco de “falar”, isto é, de apreciar, comentar, julgar, interpretar. Assumindo o risco de se enganar, de não saber. Aceitando o princípio da discussão e do questionamento eventual dos princípios em nome dos quais ele julga e decide. Decidindo escutar realmente aqueles que avalia. Isso significa, para o avaliador, mostrar-se “falível”, em sua autenticidade de homem:

- não totalmente certo de seus valores, mas ao menos interrogando-se sobre eles;- de modo algum titular de uma posição superior vitalícia, mas mais avançado e melhor que o aluno em

certas áreas de competência;- em nenhum caso onisciente, mas sempre desejoso de aprender e de se aperfeiçoar.

É isso o que exige uma ética da fala avaliativa, levando ao princípio de ação que pode ser assim resumido: assumir o risco de falar verdadeiramente, dando um verdadeiro conteúdo à comunicação. Talvez, então, a relação se torne sadia, e o aspecto “relação” passe precisamente para o segundo plano.

Deixando a cada um o cuidado de realizar esse trabalho, daremos um único exemplo:

- Risco fundamental: abusar de sua posição superior (sentir um prazer culpado; humilhar o avaliado);- “Remédio” de ordem técnica: tornar seus dispositivos transparentes. (Isso aumentará a eficácia da

avaliação); - “Remédio" de ordem deontológica (ciência dos deveres. Conjunto de regras e deveres profissionais):

recusar-se a avaliar em um contexto de relação de forças (todos os avaliadores deveriam recusar-se a isso);

50- “Remédio” de ordem ética: somente aceitar exercer seu poder de avaliador se ele contribuir para que o

avaliado assuma o poder sobre si mesmo (o desenvolvimento de um sujeito autônomo e senhor de si é o fim “absoluto” de um trabalho de tipo educativo).

4) LUCKESI, CIPRIANO CARLOS. AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM ESCOLAR. SÃO PAULO: CORTEZ, 1997.

AVALIAÇÃO EDUCACIONAL ESCOLAR: PARA ALÉM DO AUTORITARISMO

Introdução Em outros momentos já tivemos oportunidade de mencionar e dar algum tratamento ao tema da

presente discussão, que visa sobre a questão do autoritarismo na prática da avaliação educacional escolar e sua possível superação por vias intra-escolares (Luckesi, 1984a e 1984b). Na presente ocasião, todavia, pretendemos ordenar e sistematizar, de forma mais orgânica e adequada, esta análise e subseqüente proposição de um modo de agir que possa significar um avanço para além dos limites dentro dos quais se encontra demarcada hoje a prática da avaliação educacional em sala de aula. Portanto, este trabalho versa sobre a avaliação escolar, especificamente.

Desse delineamento inicial, emerge o objetivo principal deste estudo que será desvendar a teia de fatos e aspectos patentes e latentes que delimitam o fenômeno que analisamos e, em seguida, tentar mostrar um encaminhamento que possibilite uma transformação de tal situação.

Para compreender adequadamente o que aqui vamos propor, importa estarmos cientes de que a avaliação educacional, em geral, e a avaliação da aprendizagem escolar, em particular, são meios e não fins em si mesmas, estando assim delimitadas pela teoria e pala prática que as circunstancializam. Desse modo, entendemos que a avaliação não se dá nem se dará num vazio conceitual, mas sim dimensionada por um modelo teórico de mundo e de educação, traduzido em prática pedagógica.

Nessa perspectiva de entendimento, é certo que o atual exercício da avaliação escolar não está sendo efetuado gratuitamente. Está a serviço de uma pedagogia, que nada mais é do que uma concepção teórica da educação, que, por sua vez, traduz uma concepção teórica da sociedade. O que pode estar ocorrendo é que, hoje, se exercite a atual prática da avaliação da aprendizagem escolar – ingênua e inconscientemente – como se ela não estivesse a serviço de um modelo teórico de sociedade e de educação, como se ela fosse uma atividade neutra. Postura essa que indica uma defasagem no entendimento e na compreensão da prática social (Luckesi, 1980).

A prática escolar predominante hoje se realiza dentro de um modelo teórico de compreensão que pressupõe a educação como um mecanismo de conservação reprodução da sociedade (Althusser, s/d.; Bourdieu & Passeron, 1975). O autoritarismo, como veremos, é elemento necessário para a garantia desse modelo social, daí a prática da avaliação manifestar-se de forma autoritária.

Estando a atual prática de avaliação educacional escolar a serviço de um entendimento teórico conservador da sociedade e da educação, para propor o rompimento dos seus limites, que é o que procuramos fazer, temos de necessariamente situá-la num outros contexto pedagógico, ou seja, temos de, opostamente, colocar a avaliação escolar a serviço de uma pedagogia que entenda e esteja preocupada com a educação como mecanismo de transformação social.

Tomando por base esta tessitura introdutória, nosso trabalho desenvolver-se-á em três passos consecutivos, a seguir descriminados. Em primeiro lugar, situaremos a avaliação educacional escolar dentro dos modelos pedagógicos para a conservação e para a transformação. Num segundo momento, analisaremos a fenomenologia da atual prática de avaliação escolar, tentando desocultar suas latências autoritárias e conservadoras. Por último, faremos algumas indicações de saída desta situação, a partir do entendimento da educação como instrumento de transformação da prática social.

Contextos pedagógicos para a prática da avaliação

A avaliação da aprendizagem escolar no Brasil, hoje, tomada in genera, está a serviço de uma pedagogia dominante que, por sua vez, serve a um modelo social dominante, o qual, genericamente, pode ser identificado como modelo social liberal conservador, nascido da estratificação dos empreendimentos transformadores que culminam na Revolução Francesa.

A burguesia fora revolucionária em sua fase constitutiva e de ascensão, na medida em que se unira às camadas populares porém, desde que se instalara vitoriosamente no poder, com o movimento de 1789, na França, tornara-se reacionária e conservadora (Politzer, s/d.), tendo em vista garantir e aprofundar os benefícios econômicos e sociais que havia adquirido. No entanto, os entendimentos, os ideais e os caracteres do entendimento liberal que nortearam as ações revolucionárias da burguesia, com vistas à transformação do modelo social vigente na época, permaneceram e hoje definem formalmente a sociedade que vivemos. Assim, a nossa sociedade prevê e garante (com os percalços conhecidos de todos nós) aos cidadãos os direitos de

51igualdade e liberdade perante a lei. Cada indivíduo (esta é outra categoria fundamental do pensamento liberal) pode e deve, com o seu próprio esforço, livremente, contando com a formalidade da lei, buscar sua auto-realização pessoal, por meio da conquista e do usufruto da propriedade privada e dos bens.

As pedagogias hegemônicas (ou em busca de hegemonia) que se definiram historicamente nos períodos subseqüentes à Revolução Francesa estiveram e ainda estão a serviço desse modelo social. Conseqüentemente, a avaliação educacional em geral e a da aprendizagem em específico, contextualizadas dentro dessas pedagógicas, estiveram e estão instrumentalizadas pelo mesmo entendimento teórico-prático da sociedade.

Simplificando, podemos dizer que o modelo liberal conservador da sociedade produziu três pedagogias diferentes, mas relacionadas entre si e com um mesmo objetivo: conservar a sociedade na sua configuração. A pedagogia tradicional, centrada no intelecto, na transmissão de conteúdo e na pessoa do professor; a pedagogia renovada ou escolanovista, centrada nos sentimentos, na espontaneidade da produção do conhecimento e no educando com suas diferenças individuais; e, por último, a pedagogia tecnicista, centrada na exacerbação dos meio técnicos de transmissão e apreensão dos conteúdos e no princípio do rendimento; todas são traduções do modelo liberal conservador da nossa sociedade, tentando produzir, sem o conseguir, a equalização social, pois há a garantia de que todos são formalmente iguais (Saviani, 1983). A desejada e legalmente definida equalização social não pode ser atingida, porque o modelo social não o permite. A equalização social só poderia ocorrer num outro modelo social. Então, as três pedagogias anteriormente citadas, movendo-se dentro deste modelo social conservador, não poderiam propor nem exercitar tentativas para transcendê-lo. O modelo social conservador e suas pedagogias respectivas permitem e procedem renovações internas ao sistema, mas não propõem e nem permite propostas para sua superação, o que, de certa forma, seria um contra-senso. Nessa perspectiva, os elementos dessas três pedagogias pretendem garantir os sistema social na sua integridade. Daí decorrem as definições pedagógicas, ou seja, como deve se dar a relação educador e educando, como deve ser executado o processo de ensino e de aprendizagem, como deve se proceder a avaliação etc. Para traduzir as aspirações do modelo social, por meio da educação, estabelece-se um ritual pedagógico, de contornos suficientemente definidos, de tal forma que a integridade do sistema permaneça intocável. (Cury, 1979).

No seio e no contexto da prática social liberal conservadora, vem-se aspirando e já se antevê uma opção por um outro modelo social, em que a igualdade entre os seres humanos e a sua liberdade não se mantivessem tão somente ao nível da formalidade da lei, mas que se traduzissem em concretudes históricas. Desse modo, um entendimento socializante da sociedade foi-se formulando e uma nova pedagogia foi nascendo para este modelo social. Tentando traduzir este projeto histórico em prática educacional, já contamos, hoje, em nosso meio, com a pedagogia denominada de libertadora, fundada e representada pelo pensamento e pela prática pedagógica inspirada nas atividades do professor Paulo Freire. Pedagogia esta marcada pela idéia de que a transformação virá pela emancipação das camadas populares, que define-se pelo processo de conscientização cultural e política fora dos muros da escola; por isso mesmo, destinada fundamentalmente à educação de adultos. Já temos também entre nós manifestações da pedagogia libertária, representada pelos anti-autoritários e autogestinários e centrada na idéia de que a escola deve ser um instrumento de conscientização e organização política dos educandos; e, por último, mais recentemente, está se formulando em nosso meio a chamada pedagogia dos conteúdos socioculturais, representada pelo grupo do professor Dermeval Saviani, centrada na idéia de igualdade, de oportunidade para todos no processo de educação e na compreensão de que a prática educacional se faz pela transmissão e assimilação dos conteúdos de conhecimentos sistematizados pela humanidade e na aquisição de habilidades de assimilação e transformação desses conteúdos, no contexto de uma prática social (Libâneo, 1984)

Utilizando uma expressão do professor Paulo Freire, poderíamos resumir estes dois grupos de pedagogias entre aquelas que, de um lado, têm por objetivo a domesticação dos educandos e, de outro, aquelas que pretendem a humanização dos educandos (Freire, 1975). Ou seja, de um lado, estariam as pedagogias que pretendem a conservação da sociedade e, por isso, propõem e praticam a adaptação e o enquadramento dos educandos no modelo social e, de outro, as pedagogias que pretendem oferecer ao educando meios pelos quais possa ser sujeito desse processo e não objeto de ajustamento. O primeiro grupo de pedagogias está preocupado com a reprodução e conservação da sociedade e, o segundo, voltado para as perspectivas e possibilidades de transformação social (Libâneo, 1984). Esses dois grupos de pedagogias, circunstancializados pelos dois modelos sociais correspondentes, exigem duas práticas diferentes de avaliação educacional e de avaliação da aprendizagem escolar.

A prática da avaliação escolar, dentro do modelo liberal conservador, terá de, obrigatoriamente, ser autoritária, pois esse caráter pertence à essência dessa perspectiva de sociedade, que exige controle e enquadramento dos indivíduos nos parâmetros previamente estabelecidos de equilíbrio social, seja pela utilização de coações explícitas seja pelos meios sub-reptícios. das diversas modalidades de propaganda ideológica. A avaliação educacional será, assim, um instrumento disciplinador não só das condutas cognitivas como também das sociais, no contexto da escola.

Ao contrário, a prática da avaliação nas pedagogias preocupadas com a transformação deverá estar atenta aos modos de superação do autoritarismo e ao estabelecimento da autonomia do educando, pois o novo modelo social exige a participação democrática de todos. Isso significa igualdade, fato que não se dará se não se conquistar a autonomia e a reciprocidade de relações (Piaget, 1973; Luckesi, 1984a) . Nesse

52contexto a avaliação educacional deverá manifestar-se como um mecanismo de diagnóstico da situação, tendo em vista o avanço e o crescimento e não a estagnação disciplinadora.

As análises e entendimentos que apresentaremos a seguir levarão em conta esses elementos que vimos definindo, ou seja, temos oportunidade de identificar que a avaliação da aprendizagem escolar será autoritária estando a serviço de uma pedagogia conservadora e, querendo estar atenta à transformação, terá de ser democrática e a serviço de uma pedagogia que esteja preocupada com a transformação da sociedade a favor do ser humano, de todos os seres humanos, igualmente.

A atual prática da avaliação educacional escolar: manifestação e exacerbação do autoritarismo

A avaliação pode ser caracterizada como uma forma de ajuizamento da qualidade do objeto avaliado, fator que implica uma tomada de posição a respeito do mesmo, para aceitá-lo ou para transformá-lo. A definição mais comum adequada, encontrada nos manuais, estipula que a avaliação é um julgamento de valor sobre manifestações relevantes da realidade, tendo em vista uma tomada de decisão (Luckesi, 1978).

Em primeiro lugar, ela é um juízo de valor, o que significa uma afirmação qualitativa sobre um dado objeto, a partir de critérios pré-estabelecidos, portanto diverso do juízo de existência que e funda nas demarcações “físicas” do objeto. O objeto avaliado será tanto mais satisfatório quanto mais se aproximar do ideal estabelecido, e menos satisfatório quanto mais distante estiver da definição ideal, como protótipo ou como estágio de um processo.

Em segundo lugar, esse julgamento se faz com base nos caracteres relevantes da realidade (do objeto de avaliação). Portanto, o julgamento, apesar de qualitativo, não será inteiramente subjetivo. O juízo emergirá dos indicadores da realidade que delimitam a qualidade efetivamente esperada do objeto. São os “sinais” do objeto que eliciam o juízo. E, evidentemente, a seleção dos “sinais” que fundamentarão o juízo de valor dependerá da finalidade a que se destina o objeto a ser avaliado. Se pretendo, por exemplo, avaliar a aprendizagem de matemática, não será observando condutas sociais do educando que virei a saber se ele detém o conhecimento do raciocínio matemático adequadamente. Para o caso, é preciso tomar os indicadores específicos do conhecimento e do raciocínio matemático.

Em terceiro lugar, a avaliação conduz a uma tomada de decisão. Ou seja, o julgamento de valor, por sua constituição mesma, desemboca num posicionamento de “não-indiferença”, o que significa obrigatoriamente uma tomada de posição sobre o objeto avaliado, e, uma tomada de decisão quando se trata de um processo, como é o caso da aprendizagem.

É no contexto desses três elementos que compõem a compreensão constitutiva da avaliação que, na prática escolar, se pode dar, e normalmente se dá, o arbitrário da autoridade pedagógica, ou, melhor dizendo, um dos arbitrários da autoridade pedagógica. Qualquer um dos três elementos pode ser perpassado pela posição autoritária. Porém, a nosso ver, a tomada de decisão é o componente da avaliação que coloca mais poder na mão do professor. Do arbitrário da tomada de decisão decorrem e se relacionam arbitrários menores, mas não menos significativos.

A atual prática da avaliação escolar estipulou como função do ato de avaliar a classificação e não o diagnóstico, como deveria ser constitutivamente. Ou seja, o julgamento de valor, que teria a função de possibilitar uma nova tomada de decisão sobre o objeto avaliado, passa a ter a função estática de classificar um objeto ou um ser humano histórico num padrão definitivamente determinado. Do ponto de vista da aprendizagem escolar, poderá ser definitivamente classificado como inferior, médio ou superior. Classificações essas que são registradas e podem ser transformadas em números e, por isso, adquirem a possibilidade de serem somadas e divididas em médias. Será que o inferior não pode atingir o nível médio ou superior? Todos os educadores sabem que isso é possível, até mesmo defendem a idéia do crescimento. todavia, parece que todos preferem que isto não ocorra, uma vez que optam por, definitivamente, deixar os alunos com as notas obtidas, como forma de “castigo” pelo seu desempenho possivelmente inadequado.

Vejamos como isso se dá. Trabalha-se uma unidade de estudo, faz-se uma verificação do aprendido, atribuem-se conceitos ou notas aos resultados (manifestação supostamente relevante do aprendido) que, em si, devem simbolizar o valor do aprendizado do educando e encerra-se aí o ato de avaliar. O símbolo que expressa o valor atribuído pelo professor ao aprendido é registrado e, definitivamente, o educando permanecerá nesta situação.

Dessa forma, o ato de avaliar não serve como pausa para pensar a prática e retornar a ela; mas sim como um meio de julgar a prática e torná-la estratificada. De fato, o momento de avaliação deveria ser um “momento de fôlego” na escalada, para, em seguida, ocorrer a retomada da marcha de forma mais adequada, e nunca um ponto definitivo de chegada, especialmente quando o objeto da ação avaliativa é dinâmico como, no caso, a aprendizagem. Com a função classificatória, a avaliação não auxilia em nada o avanço e o crescimento. Somente com uma função diagnóstica ela pode servir para essa finalidade.

Com a função classificatória, a avaliação constitui-se num instrumento estático e frenador do processo de crescimento; com a função diagnóstica, ao contrário, ela constitui-se num momento dialético do processo de avançar no desenvolvimento da ação, do crescimento para a autonomia, do crescimento para a competência etc. Como diagnóstica, ela será um momento dialético de “senso” do estágio em que se está e de sua distância em relação à perspectiva que está colocada como ponto a ser atingido à frente. A função classificatória subtrai da prática da avaliação aquilo que lhe é constitutivo: a obrigatoriedade da tomada de decisão quanto à ação, quando ela está avaliando uma ação.

53 Na prática pedagógica, a transformação da função da avaliação de diagnóstica em classificatória foi

péssima. O educando como sujeito humano é histórico; contudo, julgado e classificado, ele ficará, par o resto da vida, do ponto de vista do modelo escolar vigente, estigmatizado, pois as anotações e registros permanecerão, em definitivo, nos arquivos e nos históricos escolares, que se transformam em documentos legalmente definidos.

Aprofundando um pouco a descrição da fenomenologia da avaliação da aprendizagem escolar, poderemos perceber que esse fato se revela com maior força no processo de obtenção de médias de aprovação ou médias de reprovação. No final de uma unidade de ensino, por exemplo, um aluno foi classificado em inferior. Não se faz nada para que ele saia dessa situação, o que equivale a ele estar definitivamente classificado. Mas, vamos supor que um professor seja “democrático” e, então, se diz que ele “dá uma nova oportunidade ao aluno” para que se recupere. Faz-se uma nova avaliação da aprendizagem, após um período de estudo. E vamos supor, ainda, que o aluno agora seja classificado em “superior”. Por convenção, atribui-se ao conceito “inferior” o valor numérico 4 (quatro) e ao conceito “superior”, o valor 8 (oito). Apesar de o educando ter manifestado uma aprendizagem melhor, portanto, ter demonstrado que cresceu, o professor, sob “forma de castigo” não lhe garante o valor do novo desempenho, mas garante-lhe a média do desempenho anterior e do posterior. Ora, o educando cresceu, se desenvolveu e foi classificado abaixo do seu nível atual de desempenho devido à classificação anterior. A anterior era tão baixa e autoritariamente estabelecida que exigiu o rebaixamento da posterior. A média, assim obtida, não revela nem o valor anterior do desempenho nem o posterior, mas o enquadramento do educando a partir de posicionamentos estáticos e autoritários a respeito da prática educacional.

A situação anteriormente descrita suscita reflexões. Será que se o educando manifestou uma melhor e mais adequada aprendizagem, não deveria assim ser considerado? Então, por que classificá-lo abaixo do possível valor do seu desempenho? A possível competência não deveria ser, segundo as regras do ritual pedagógico, registrada em símbolos compatíveis e correspondentes? Por que, então, modificá-la? A explicação, parece-nos, encontrar-se no fato de que o professor traduz um modelo social, traduzido num modelo pedagógico, que reproduz a distribuição social das pessoas: os que são considerados “bons”, “médios” e “inferiores” no início de um processo de aprendizagem permanecerão nas mesmas posições, no seu final. Os “bons” serão “bons”; os “médios” serão “médios” e os “inferiores” serão “inferiores” . A curva estatística, dita normal, permanecerá normal. Assim sendo, a sociedade definida permanece como está, pois a distribuição social das pessoas não pode ser alterada com a prática pedagógica, mesmo dentro dos seus limites. É a forma de, pela avaliação, traduzir o modelo liberal conservador da sociedade. Apesar de a lei garantir igualdade para todos, no concreto histórico encontram-se os meios para garantir as diferenças individuais do ponto de vista da sociedade. Os mais aptos, socialmente, permanecem na situação de mais aptos e os menos aptos, do mesmo ponto de vista, permanecem menos aptos. Ou seja, o ritual pedagógico não propicia nenhuma modificação na distribuição social das pessoas, e, assim sendo, não auxilia a transformação social . A avaliação educacional escolar assumida como classificatória torna-se, desse modo, um instrumento autoritário e frenador do desenvolvimento de todos os que passarem pelo ritual escolar, possibilitando a uns o acesso e aprofundamento no saber, a outros a estagnação ou a evasão dos meios do saber. Mantém-se assim a distribuição social.

A partir dessa mudança de função, a avaliação desempenha, nas mãos do professor, um outro papel básico, que é significativo para o modelo social liberal-conservador: o papel disciplinador. Com o uso do poder, via avaliação classificatória, o professor, representando o sistema, enquadra os alunos-educandos dentro da normatividade socialmente estabelecida. Daí decorrem manifestações constantes de autoritarismo, chegando mesmo à sua exacerbação. Senhores do direito ex-cathedra de classificar definitivamente os alunos, os professores ampliam o arbitrário desta situação por meio de múltiplas manifestações, algumas das quais apresentamos a seguir.

Os “dados relevantes” a partir dos quais se deve manifestar o julgamento de valor, tornam-se “irrelevantes” na avaliação, dependendo do estado de humor do professor. Ou seja, a definição do relevante ou do irrelevante fica na dependência do arbítrio pessoal do professor e do seu estado psicológico. A gana conservadora da sociedade permite que se faça da avaliação um instrumento nas mãos do professor autoritário para hostilizar os alunos, exigindo-lhes condutas as mais variadas, até mesmo as plenamente irrelevantes. Por se “autoridade”, assume a postura de poder exigir a conduta que quiser, quaisquer que sejam. Então, aparecem as “armadilhas” nos testes; surgem as questões para “pegar os despreparados”; nascem os testes para derrubar todos os indisciplinados”. E assim por diante. São frase que ouvimos constantemente nas “salas dos mestres”. Os dados relevantes, que sustentariam a objetivação do juízo de valor, na avaliação, são substituídos pelo autoritarismo do professor e do sistema social vigente por dados que permitem o exercício do poder disciplinador. E assim, evidentemente, a avaliação é descaracterizada, mais uma vez, na sua constituição ontológica.

Quanto ao componente “juízo de valor”, encontramos a possibilidade arbitrária do estabelecimento e da mudança de critérios de julgamento, a partir de determinados interesses. Por exemplo, pode-se reduzir o padrão de exigência, se deseja facilitar a aprovação de alguém; ao contrário, pode-se elevar o padrão de exigência se deseja reprovar alguém. Isso, normalmente, não é feito previamente; ocorre na medida em que se julgam os resultados dos testes. Em ambos os casos, não ocorre uma posição de objetividade na avaliação, segundo a qual o educador, previamente, estabeleceria níveis necessários a serem atendidos pelo

54educando, tomando por base o nível de escolaridade, de maturação do educando, os pré-requisitos da disciplina, as habilidades necessárias etc.

Esse arbitrário, no que se refere ao aspecto do julgamento, pode ser exacerbado a níveis indescritíveis, devido à inexistência de instância pedagógica ou legal que possa coibir possíveis abusos. O julgamento de um professor, em sala de aula, sobre os possíveis resultados de aprendizagem de um educando, é praticamente inapelável, pois o expediente de “revisão de prova”, quando é praticado, dificilmente dá ganho de causa ao aluno. O chamado “Conselho de classe”, quando bem praticado, é a exceção que confirma a regra. Ou seja, o expediente foi criado para minorar o exercício do arbitrário por parte do professor.

Assim outras manifestações do papel autoritário da avaliação no modelo domesticador da educação podem ser levantadas. A comunicação do que se pede num teste pode não ser clara, mas o professor, com sua autoridade, sempre tenderá a dizer que ele tem razão e o aluno não sabia, por isso, não deu a resposta. Não poderia ser porque não entendeu o que se pediu? A ambigüidade do que se solicita num teste pode revelar mal a expectativa do professor e, deste modo, a resposta do aluno poderá ser considerada inadequada, por não estar aparentemente capacitado para ela. No entanto, o aluno poderia estar capacitado e só não manifestou o desempenho esperado por ter sido impossível entender o que se queira. Então, o professor, autoritariamente, decide que a comunicação estava bem-feita e o aluno deve ser classificado como incompetente.

A título de exemplo, citamos um item de teste de matemática apresentado a uma criança de 9 anos, fazendo a 2a série do 1.º Grau. Enquanto escrevíamos este texto, chegou-nos às mãos: um teste de IV Unidade do ano letivo em curso (1984), já respondido pelo aluno e corrigido pela professora. Analisando-o, deparamos com a questão que se segue, acrescida da respostas do aluno e da correção da professora.

Questão: Indique as frações correspondentes:

A B

C D

Resposta do aluno:

a) 2/8; b) 1/3; c) 1/2; d) 2/4;

Correção da professora:

a) 6/8; b) 2/3; c) 1/2; d) 2/4;

55

Sobre essa questão ambígua, a professora decidiu arbitrariamente pelo entendimento da questão como supostamente ela tinha formulado. A questão não informa que parte do todo deve ser tomada para formar o numerador da questão: se as partes hachuradas ou as não-hachuradas. O aluno tomou as não-hachuradas e, por isso, deu as seguintes respostas: 2/8, 1/3, 1/2, 2/4. a professora, no seu direito ex-cathedra, julgou essas respostas inadequada, porque tomou como fração do todo as partes hachuradas e sua resposta foi: 6/8, 2/3, 1/2, 2/4. Nessa situação, por que deve prevalecer o arbítrio do professor, se as operações estavam corretamente executadas, a partir do entendimento apresentado pela raiz da questão? A nosso ver, isso decorre da usurpação do poder pedagógico, que decide mesmo à revelia dos fatos.

No caso, pode ter havido um deslize por parte do professor em comunicar o que desejava. Então, por que não reconhecer o erro e admitir que o educando detém o conhecimento e a habilidade esperada? Contudo, é possível que existam casos mais graves que esse – e sabemos que eles existem -, em que o professor, por meio de uma comunicação ambígua, pretende confundir o aluno, para que este caia na armadilha. E que dirá ao professor que não faça isso? Qual a instância que poderá proibir tal atitude? Como se vê, a comunicação, no processo de avaliação, poderá ser um instrumento a mais para a manifestação e a exacerbação do autoritarismo pedagógico.

Outro uso autoritário da avaliação escolar é a sua transformação em mecanismo disciplinador de condutas sociais. É uma prática comum, no meio escolar, utilizar os expedientes de ameaçam os alunos com o poder e o veredicto da avaliação, caso a “ordem social” da escola ou das salas de aula seja infringia. Uma atitude de “indisciplina”, na sala de aula, por vezes, é imediatamente castigada com um teste relâmpago, que poderá reduzir as possibilidades de aprovação de um aluno; ou às vezes, os alunos são advertidos, previamente, que “se vierem a ferir a ordem social da escola” poderão sofrer conseqüências nos resultados da avaliação, a partir de teste mais difíceis e outras coisas mais. De instrumento de diagnóstico para o crescimento, a avaliação passa a ser um instrumento que ameaça e disciplina os alunos pelo medo. De instrumento de libertação, passa a assumir o papel de espada ameaçadora que pode descer a qualquer hora sobre a cabeça daqueles que ferirem possíveis ditames da ordem escolar. Que inversão!

A título de lembrete, podemos ainda recordar os expedientes de “conceder um ponto a mais” ou de “retirar um ponto” da nota (conceito) do aluno. O arbítrio do professor aqui é total. Ele decide, olimpicamente, sem critério prévio e sem relevância dos dados, conceder ou retirar pontos. A competência aí é desconsiderada. Vale a gana autoritária do professor que, com isso, pode agradar “os queridos” e reprimir e sujeitar os irrequietos e “malqueridos”. A avaliação, aqui, ganha os foros do direito de premiar ou castigar dentro do ritual pedagógico.

Por todas essas manifestações, que vimos analisando, a prática da avaliação escolar perde o seu significado constitutivo. Em função de estar no bojo de uma pedagogia que traduz as aspirações de uma sociedade delimitadamente conservadora, ela exacerba a autoridade e oprime o educando, impedindo o seu crescimento. De instrumento dialético se transforma em instrumento disciplinador da história individual de crescimento de cada um. Da forma como vem sendo exercida, a avaliação educacional escolar serve de mecanismo mediador da reprodução e conservação da sociedade, no contexto das pedagogias domesticadoras; para tanto, a avaliação necessita da autoridade exacerbada, ou seja, do autoritarismo.

Avaliação educacional no contexto de uma pedagogia para a humanização: uma proposta de ultrapassagem do autoritarismo

Para romper com esse estado de coisas, como mencionamos na introdução deste texto, importa romper com o modelo de sociedade e com a pedagogia que o traduz. Não há possibilidade de transformar os rumos da avaliação, fazendo-a permanecer no bojo de um modelo social e de uma pedagogia que não permite esse encaminhamento. a avaliação educacional escolar, como instrumento tradutor de uma pedagogia que, por sua vez, é representativa de um modelo social, não poderá mudar sua forma se continuar sendo vista e exercitada no âmago do mesmo corpo teórico-prático no qual está inserida.

Para que a avaliação educacional escolar assuma o se verdadeiro papel de instrumento dialético de diagnóstico para o crescimento, terá de se situar e estar a serviço de uma pedagogia que esteja preocupada com a transformação social e não com a sua conservação. A avaliação deixará de ser autoritária se o modelo social e a concepção teórico-prática da educação também não forem autoritários. Se as aspirações socializantes da humanidade se traduzem num modelo socializante e democrático, a pedagogia e a avaliação em seu interior também se transformarão na perspectiva de encaminhamentos democráticos.

Seria um contra-senso que um modelo social e um modelo pedagógico autoritários e conservadores tivesse no seu âmago uma prática de avaliação democrática. Isso não quer dizer que no seio da sociedade conservadora e no contexto de uma pedagogia autoritária não surjam os elementos contraditórios e antagônicos que vão possibilitar a sua transformação.

Para tanto, o educador que estiver afeito a dar um novo encaminhamento para a prática da avaliação escolar deverá estar preocupado em redefinir ou em definir propriamente os rumos de sua ação pedagógica, pois ela não é neutra, como todos nós sabemos. Ela se insere num contexto maior e está a serviço dele. Então, o primeiro passo que nos parece fundamental para redirecionar os caminhos da prática da avaliação é assumir um posicionamento pedagógico claro e explícito. Claro e explícito de tal modo que possa orientar diuturnamente a prática pedagógica, no planejamento, na execução e na avaliação.

56 Decorrente desse, um segundo ponto fundamental a ser levado em consideração como proposta de

ação é a conversão de cada um de nós, professor, educador, para novos rumos da prática educacional. Conversão, aqui, quer dizer conscientização e prática desta conscientização. Não basta saber que “deve ser assim”, é preciso fazer com que as coisas “sejam assim”. A conversão implica o entendimento novo da situação e dos rumos a seguir e de sua tradução na prática diária. Então, não basta entender que é necessária uma nova pedagogia nem basta entender que é necessária mudança nos rumos da prática da avaliação. Torna-se fundamental que, na medida mesma em que se venha a processar estes novos entendimentos, novas formas de conduta sejam manifestações desses acontecimentos. Há muito tempo se vem demonstrando que, só com boas intenções, não se modifica o mundo; muito menos ele será transformado por esta via idealista. Teoria e prática, apesar de serem abstratamente distinguíveis, formam uma unidade na ação para a transformação. A conversão da qual falamos significa a tradução histórica, pessoal, em cada um de nós, da teoria em prática.

O último aspecto que gostaríamos de considerar, e esse é mais técnico, refere-se ao resgate da avaliação em sua essência constitutiva. Ou seja, torna-se necessário que a avaliação educacional, no contexto de uma pedagogia preocupada com a transformação, seja efetivamente um julgamento de valor sobre manifestações relevantes da realidade para uma tomada de decisão. Os “dados relevantes” não poderão ser tomados ao acaso, ao bel-prazer do professor, mas terão de ser relevantes de fato para aquilo a que se propõem. Então, a avaliação estará preocupada com o objetivo maior que se tem, que é a transformação social. Ela dependerá deste objetivo e não propriamente das minudências psicológicas de quem, num determinado momento, está praticando o ato pedagógico.

Contudo, nesse contexto mais técnico, o elemento essencial, para que se dê à avaliação educacional escolar um rumo diverso ao que vem sendo exercitado, é o resgate da sua função diagnóstica. Para não ser autoritária e conservadora, a avaliação terá de ser diagnóstica, ou seja, deverá ser o instrumento dialético do avanço, terá de ser o instrumento da identificação de novos rumos. Enfim, terá de ser o instrumento do reconhecimento dos caminhos percorridos e da identificação dos caminhos a serem perseguidos. A avaliação educacional escolar como instrumento de classificação, como já vimos nesta discussão, não serve em nada para a transformação; contudo, é extremamente eficiente para a conservação da sociedade, pela domesticação dos educandos.

Como proceder a esse resgate? Dependerá, evidentemente, de que cada educador, no recôndito de sua sala de aula, assuma ser um companheiro de jornada de cada aluno; fato que não significa defender a total igualdade de ambos. O professor terá obrigatoriamente de ser diferente, mais maduro e mais experiente. Contudo, isso não lhe retira a possibilidade de assumir-se como companheiro de jornada no processo de formação e de capacitação do educando. E a avaliação diagnóstica será, com certeza, um instrumento fundamental para auxiliar cada educando no seu processo de competência e crescimento para a autonomia, situação que lhe garantirá sempre relações de reciprocidade. Uma sociedade democrática funda-se em relações de reciprocidade e não de subalternidade e para que isso ocorra é preciso um conjunto de competências e a escola tem o dever de auxiliar a formação dessas competências, sob pena de estar sendo conivente com a domesticação e a opressão, características de uma sociedade conservadora.

O resgate do significado diagnóstico da avaliação, que aqui propomos como um encaminhamento para a ultrapassagem do autoritarismo, de forma alguma quer significar menos rigor na prática da avaliação. Ao contrário, para ser diagnóstica, a avaliação deverá ter o máximo possível de rigor no seu encaminhamento. Pois que o rigor técnico e científico no exercício da avaliação garantirão ao professor, no caso, um instrumento mais objetivo de tomada de decisão. Em função disso, sua ação poderá ser mais adequada e mais eficiente na perspectiva da transformação.

Vale ainda um lembrete final sobre um possível modo prático e racional de proceder uma avaliação diagnóstica que conduza professor e aluno ao atendimento dos mínimos necessários para que cada um possa participar democraticamente da vida social. a avaliação deverá verificar a aprendizagem não a partir dos mínimos possíveis, mas sim a partir dos mínimos necessários. Gramsci (1979) diz que a escola não deve só tornar cada um mais qualificado, mas deve agir para que “cada ‘cidadão’ possa se tornar ‘governante’ e que a sociedade o coloque, ainda que ‘abstratamente’, nas condições gerais de poder fazê-lo; a democracia política tende a fazer coincidir governantes e governados (no sentido de governo com o consentimento de governados), assegurando a cada governado a aprendizagem gratuita das capacidade e da preparação técnica geral necessárias a fim de governar”. Não será, pois, com os encaminhamentos da pedagogia compensatória, nem com os encaminhamentos da pedagogia espontaneísta que se conseguirá desenvolver uma prática pedagógica e, consequentemente, uma avaliação escolar adequadas. É preciso que a ação pedagógica em geral e a de avaliação escolar adequadas. É preciso que a ação pedagógica em geral e a de avaliação sejam racionalmente decididas.

Para tanto, sugere-se que, tecnicamente, ao planejar suas atividade de ensino, o professor estabeleça previamente o mínimo necessário a ser aprendido efetivamente pelo aluno. É preciso que os conceitos ou notas médias de aprovação signifiquem o mínimo necessário para que cada “cidadão” se capacite para governar.

Jocosamente, poderíamos dizer que um aluno numa escola de pilotagem de Boeing pode ser aprovado com o seguinte processo: aprendeu excelentemente a decolar e, portanto, obteve nota 10 (dez); aprendeu muito mal a aterrissar e obteve nota dois; somando-se os dois resultados, tem-se um total de doze pontos, com uma média aritmética no valor de 6 (seis). Essa nota é suficiente para ser aprovado, pois está

57acima dos 5 (cinco) exigidos normalmente. É o mínimo de nota. Quem de nós (eu, você, e muitos outros) viajaria com este piloto?

Então, o médio não pode ser um médio de notas, mas um mínimo necessário de aprendizagem em todas as condutas que são indispensáveis para se viver e se exercer a cidadania, que significa a detenção das informações e a capacidade de estudar, pensar, refletir e dirigir as ações com adequação e saber.

Com o processo de se estabelecer os mínimos, os alunos que apresentarem a aprendizagem dos mínimos necessários seriam aprovados para o passo seguinte de sua aprendizagem. Enquanto não conseguirem isso, cada educando merece ser reorientado. Alguns, certamente, ultrapassarão os mínimo, por suas aptidões, sua dedicação, condições de diferenças sociais definidas dentro de uma sociedade capitalista etc., mas ninguém deverá ficar sem as condições mínimas de competência para a convivência social.

Concluindo

Um educador, que se preocupe com que a sua prática educacional esteja voltada para a transformação, não poderá agir inconsciente e irrefletidamente. Cada passo de sua ação deverá estar marcado por uma decisão clara e explícita do que está fazendo e para onde possivelmente está encaminhando os resultados de sua ação. A avaliação, neste contexto, não poderá ser uma ação mecânica. Ao contrário, terá de ser uma atividade racionalmente definida, dentro de um encaminhamento político e decisório a favor da competência de todos para a participação democrática da vida social.

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HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

1. HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO2. FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

1. GHIRALDELLI JR., PAULO. EDUCAÇÃO E RAZÃO HISTÓRICA. 2ª ED. SÃO PAULO: CORTEZ, 1996;

2. LOPES, ELIANE MARTA TEIXEIRA. PERSPECTIVAS HISTÓRICAS DA EDUCAÇÃO. SÃO PAULO: ÁTICA, 1986;

3. PAIVA, CARLOS. EDUCAÇÃO BRASILEIRA – UMA HISTÓRIA DE PRIVILÉGIOS E EXCLUSÃO. IN: APRENDER – FEIRA E CONGRESSO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO, 2002: SALVADOR – BA;

4. RIBEIRO, MARIA LUISA SANTOS. HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA – A ORGANIZAÇÃO ESCOLAR. 11ª ED. SÃO PAULO: CORTEZ; AUTORES ASSOCIADOS, 1991;

5. SAVIANI, DERMEVAL; LOMBARDI, JOSÉ CLAUDINEI; SANFELICE, JOSÉ LUÍS (ORGS.). HISTÓRIA E HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO. 2ª ED. SÃO PAULO: AUTORES ASSOCIADOS; HISTEDBR, 2000.

FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

1. FREIRE, PAULO REGLUS NEVES. PEDAGOGIA DA AUTONOMIA – SABERES NECESSÁRIOS À PRÁTICA EDUCATIVA. 12ª ED. SÃO PAULO: PAZ E TERRA, 1996;

2. LIBÂNEO, JOSÉ CARLOS. TENDÊNCIAS PEDAGÓGICAS NA PRÁTICA ESCOLAR. IN: DEMOCRATIZAÇÃO DA ESCOLA PÚBLICA: PEDAGOGIA CRÍTICO-SOCIAL DOS CONTEÚDOS. SÃO PAULO: LOYOLA, 1985;

3. SAVIANI, DERMEVAL. TEORIAS DA EDUCAÇÃO. IN: ESCOLA E DEMOCRACIA. 7ª ED. SÃO PAULO: CORTEZ; AUTORES ASSOCIADOS, 1985;

4. __. FUNÇÃO DO ENSINO DE FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO. IN: EDUCAÇÃO: DO SENSO COMUM À CONSCIÊNCIA FILOSÓFICA. SÃO PAULO: CORTEZ; AUTORES ASSOCIADOS, 1986;

5. __. PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA. SÃO PAULO: CORTEZ; AUTORES ASSOCIADOS, 1991.

591 - HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

Como disciplina, a História da Educação surge no final do século XIX no conjunto de várias especializações da História. A partir de 1880 começam a serem publicadas obras que versam sobre a matéria, e cursos começam a ser ministrados em Universidades e Escolas Normais, em diversos lugares da Europa.

No Brasil, a história da Educação não se dissocia da história da Escola Normal. À época do Império, nos cursos de preparação para o magistério os alunos seriam instruídos na técnica do ensino misto1, e em gramática e caligrafia.

No que diz respeito às Escolas Normais, entre as disciplinas obrigatórias aparece “Noções geraes de história e história do Brazil”. Em 1910 é criada a cadeira “História e Educação Moral e Cívica”, no terceiro e quarto anos.

Em 1927 a reforma Francisco Campos propõe “História da Civilização”, particularmente história dos métodos e processos de educação. O objetivo dessa História “é levar o aluno a compreender a importância da educação como processo social e seu significado na evolução da humanidade”.

Em 1946, a Lei Orgânica do Ensino Normal - Decreto-Lei 8.530, de 02.01.46, centralizou as diretrizes e fixou normas para a sua implantação. No currículo aparece, então, na terceira série, História e Filosofia da Educação.

Em 1939 o curso de Pedagogia, como curso superior, inclui-se como uma seção na Faculdade Nacional de Filosofia, pelo Decreto-Lei n.º 1.190, de 04.04.39, em vigência durante vinte e três anos. A História da Educação como disciplina (enquanto cadeira denominava-se História e Filosofia da Educação) integralizava o currículo na segunda e terceira séries.

Em 1961, a LDB mantém o curso de Pedagogia, e o Parecer n.º 251/62 fixa o Currículo Mínimo, que contém ‘História da Educação’ que deve ser entendida como uma apreciação coerente dos fundamentos históricos que explicam a educação Moderna, e, dentro desta orientação, conterá uma divisão especial dedicada à História da Educação Brasileira.

O Parecer n.º 252/69, decorrente da Lei 5.540/68, da Reforma Universitária, mantém a História da Educação entre as disciplinas da parte comum do currículo.

O caráter histórico da educação é dado de forma sistematizada por Émile Durkheim (1858-1917) em sua ‘Educação e sociologia’:

‘Todo o passado da humanidade contribuiu para estabelecer esse conjunto de princípios que dirigem a educação de hoje: toda a História aí deixou traços, como também o deixou a história dos povos que nos precederam. Da mesma forma, os organismos superiores trazem em si como que um eco de toda a evolução biológica de que são o resultado. Quando se estuda historicamente a maneira pela qual se desenvolveram os sistemas de educação, percebe-se que eles dependem da religião, da organização política, do grau de desenvolvimento das ciências, dos estados das indústrias, etc. (...) Não podemos agir sobre elas senão na medida em que sabemos qual é a sua natureza e quais as condições de que dependem, e não poderemos chegar a conhecê-las, se não nos pusermos a estudá-las, pela observação, como o físico estuda a matéria inanimada, e o biologista, os corpos vivos”.

A educação é, na concepção positivista durkheimiana, uma coisa social, que cumpre, assim, esse enunciado em obediência à regra mais fundamental de seu método sociológico, qual seja, a de considerar os fatos sociais como coisas.

Se, de um ponto de vista, o positivismo representou a fuga à mera descrição fatualista e providencialista da sociedade, de outro representou uma oposição às perigosas teorias negativas, críticas, destrutivas, dissolventes, subversivas, em uma palavra, revolucionárias, da Filosofia das Luzes, da Revolução Francesa e do Socialismo. Teoria que consolida a nova ordem social, burguesa e industrial.

“[O positivismo] tende profundamente, por sua natureza, a consolidar a ordem pública, pelo desenvolvimento de uma sábia resignação”. (Dukheim)

O erro fundamental do positivismo: a incompreensão da especificidade metodológica das ciências sociais. Esta especificidade estaria calcada em quatro causas principais:

1. O caráter histórico dos fenômenos sociais, transitórios, perecíveis, suscetíveis de transformação pela ação dos homens;

2. A identidade parcial entre o sujeito e o objeto do conhecimento;3. O fato de que os problemas sociais suscitam a entrada em jogo de concepções antagônicas das

diferentes classes sociais; e4. As implicações político - ideológicas da teoria social: o conhecimento da verdade pode ter

conseqüências diretas sobre a luta de classes.

1 Ensino misto - uma combinação do ensino simultâneo (várias séries na mesma sala) com o ensino mútuo (ensino através de monitores mais preparados a colegas menos preparados).

60CONCEPÇÕES DE HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA CONCEPÇÃO POSITIVISTA

Na concepção positivista, a história é pensada como a sucessão ordenada dos fatos em direção ao progresso, que seria atingido quando a humanidade alcançasse o estado positivo, perfeito. A determinação dos fatos históricos, através da pesquisa erudita em documentos e em fontes primárias em geral, consistiria na principal tarefa da história.

Historiadores positivistas viram o ‘fato histórico’ como algo que tem existência externa ao observador, e com o qual este não mantinha nenhuma relação. Preocuparam-se com a problemática da causalidade, ligando ‘causas’ e ‘conseqüências’ ao fio de uma ordem cronológica linear (o que vem antes causa o que vem depois). A história assim escrita é uma grande sucessão de acontecimentos que se baseiam em fatos isolados, preocupada sobretudo, com grandes feitos, grandes heróis.

Tendo como interlocutor o ‘positivismo’, desenvolver-se-ão duas linhas importantes da história: trata-se do marxismo e dos Annales.

CONCEPÇÃO MARXISTA2 - MATERIALISMO HISTÓRICO

O marxismo buscou o rompimento com a visão providencialista e metafísica da história, e com a visão ‘positivista’, ao colocar o cerne da história no homem e o cerne da ciência na história.

[...] temos que começar constatando o primeiro pressuposto de toda existência humana e, portanto, de toda história, a saber, o pressuposto de que os homens precisam estar em condições de viver para poderem ‘fazer história’. Mas para viver é preciso antes de mais nada comer e beber, morar, vestir, e ainda algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, portanto, engendrar os meios para satisfação dessas necessidades, produzir a vida material mesma - e isto é um ato histórico, uma condição básica de toda a história que ainda hoje, como há milênios, precisa ser preenchida a cada dia e a cada hora, tão-somente para manter os homens vivos. [...] Em segundo lugar, a primeira necessidade satisfeita, a ação da satisfação e o instrumento da satisfação adquirida levam a novas necessidades – e esse engendramento de novas necessidades é o primeiro ato histórico. [...] A terceira circunstância, o que já de antemão entra no desenvolvimento histórico, é a de que os seres humanos que renovam sua própria vida diariamente começam a fazer outros seres humanos, isto é, a reproduzirem – a relação entre homem e mulher, pais e filhos, a família.

A história para Marx e Engels aparece como ciência inclusiva e se configura com a ciência dos homens. É no transcurso da luta de classes que a história se constitui. O histórico é intrinsecamente sociológico, pois deve explicar o lado social do humano e, reciprocamente, o lado humano do social, o que desloca e inverte a tradição positivista.

[...] A conclusão geral a que cheguei, e que, uma vez adquirida serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. [...] Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes, e se abre, assim, uma época de revolução social. [...] Nenhuma formação social desaparece antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém, e jamais aparecem relações de produção novas e mais altas antes de amadurecerem no seio da própria sociedade antiga as condições materiais para a sua existência.

O trabalho humano é ação dirigida por finalidades conscientes, a resposta aos desafios da natureza (physis), na luta pela sobrevivência. É a atividade humana por excelência, pela qual o homem transforma a natureza e a si mesmo.

A ação do homem é uma ação coletiva. O trabalho é executado como tarefa social. A maneira pela qual os homens organizam as relações de trabalho possibilita o estabelecimento das regras de conduta e dos valores que nortearão a construção da vida social, econômica e política.

Pelo trabalho é estabelecida uma relação dialética entre a teoria e a prática: o projeto orienta a ação e esta altera o projeto, que de novo altera a ação, fazendo com que haja evolução dos processos empregados, o que gera um processo histórico.

O homem não se define por um modelo que o antecede, por uma essência que o caracteriza, nem é apenas o que as circunstâncias fizeram dele. Ele se define pelo lançar-se no futuro, antecipando, através de um projeto, a sua ação consciente sobre o mundo.

2 Marx, Karl. Prefácio à “Contribuição à crítica da economia política”. São Paulo: Martins Fontes, 1977.

61Essa concepção fragiliza o homem. Nada mais se apresenta como absolutamente certo e inquestionável. Não há caminho feito, mas a

fazer; não há modelo de conduta, mas um processo contínuo de estabelecimento de valores.Ao mesmo tempo, isto que parece ser sua fragilidade é justamente a característica humana mais

nobre: a capacidade de produzir sua própria história.

CONCEPÇÃO DOS “ANNALES”

Entre 1929 e 1969 a ciência da história, vivendo ainda a pendulação entre o positivismo e o marxismo, viverá inovações com a criação de uma revista, e um grupo e uma linha de trabalho a ela ligados, os Annales.

“Para fazer história, virem resolutamente as costas ao passado e antes de mais vivam. Envolvam-se na vida”. (Lucien Febvre)

No plano das diferenças entre a concepção de história marxista e a dos Annales a mais acentuada está na ausência, nesses últimos, da incorporação da luta de classes como categoria de explicação do movimento da história.

Pontos principais dos Annales e de seus seguidores :1. Passagem da ‘história – narração’ para a ‘história – problema’;2. O caráter científico da história;3. Contato e debate com as outras ciências sociais;4. Insistência nos aspectos sociais, coletivos e repetitivos;5. Ampliação dos limites da História, abrangendo todos os aspectos da vida social: civilização

material, poder e mentalidades coletivas;6. Ampliação da noção de fonte para além da escrita (vestígios arqueológicos, tradição oral, etc.);7. Construção de temporalidades múltiplas, ao contrário do tempo linear e simples da

historiografia tradicional;8. Reconhecimento da ligação indissolúvel e necessária entre passado e presente no

conhecimento histórico.

CONCEPÇÃO DA HISTÓRIA NOVA

A História Nova apresenta três processos como novidade: Novos problemas – põem em causa a própria história; Novas contribuições – modificam, enriquecem, transformam os setores tradicionais da história; Novos objetos – aparecem no campo epistemológico da história.

“Ciência do domínio do passado e da consciência do tempo, deve ainda definir-se como ciência da mudança, da transformação”.(Jacques Lê Goff)

O que obriga a história a se redefinir é, de imediato, a tomada de consciência pelos historiadores do relativismo de sua ciência. A história não é o absoluto dos historiadores do passado, providencialistas ou positivistas, mas o produto de uma situação, de uma história.

A História Nova reflete sobre os fundamentos epistemológicos da disciplina. A História também sofre a influência das ciências Sociais onde reina a quantificação: rigor estatístico, reconstruir a história a partir dos dados enumeráveis, quantificáveis, da documentação. Uma estatística, uma fotografia, um filme, uma ferramenta, são, para a História Nova, documentos de primeira ordem.

A História Nova esboça uma nova concepção de uma história contemporânea, que é procurada através das noções de história imediata ou de história do presente, a qual, ao recusar reduzir o presente a um passado incoativo (que começa), coloca em questão a definição tradicionalmente aceita da história como ciência do passado.

O essencial é sabermos fazer a história de que o presente tem necessidade.

AS TENDÊNCIAS MAIS RECENTES

Destacaremos dois historiadores, ambos marxistas, da historiografia inglesa: Erick Hobsbawn e Edward P. Thompson. Têm o mérito de trazer ao cenário da história, como principal protagonista, a classe trabalhadora. Ao fazê-lo, denunciam a obscura forma de registro da presença do trabalhador no mundo.

No Brasil merece destaque Edgar Salvadori de Decca com a obra “O silêncio dos vencidos”, consciente de que a história tem sido um registro do vencedor e que se há um vencedor há vencidos.

AO SE REDUZIR A HISTÓRIA A UMA SEQÜÊNCIA DE FATOS OU DE IDÉIAS, ELA ACABA POR SE TORNAR ‘CHATA’, UMA VEZ QUE SERÁ NECESSÁRIO RETER UMA SÉRIE DE FATOS OU DE IDÉIAS; ASSIM, A MEMORIZAÇÃO ACABA SENDO O RECURSO DE QUE O ALUNO LANÇA MÃO.

62ORA, A COMPREENSÃO DA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO SÓ SERÁ GARANTIDA SE FOREM LEVADOS EM CONTA OS ‘DADOS DE BASTIDORES’, SE SE EXAMINA A BASE MATERIAL DA SOCIEDADE CUJA HISTÓRIA ESTÁ SENDO RECONSTITUÍDA. TAL PROCEDIMENTO SUPÕE UM PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO DE ORDEM ECONÔMICA, POLÍTICA E SOCIAL DO PAÍS EM CUJO SEIO SE DESENVOLVE O FENÔMENO EDUCATIVO QUE SE QUER COMPREENDER.NOVAS MANEIRAS POSSÍVEIS DE OLHAR AS COISAS

(MODI RES CONSIDERANDI)José Ortega Y Gasset

O ponto de vista individual parece-me o único ponto de vista a partir do qual se pode olhar o mundo. A realidade não pode ser olhada a não ser a partir do ponto de vista que cada qual ocupa no universo. Aquele e este são correlativos.

O que meus olhos vêem da realidade, mais nenhuns olhos vêem. A perspectiva é uma das componentes da realidade. Longe de ser a sua formação é a sua organização. Cada vida é um ponto de vista sobre o universo.

Desde a Grécia, compreendeu-se a razão como algo que capta o imutável, a essência ‘eterna’das coisas. Buscou-se a consideração das coisas, ‘sub specie aeternitatis’, à margem do tempo.

Esta razão culmina na razão matemática dos racionalistas do século XVII, que produz as ciências físicas, e na ‘razão pura’de Kant. Mas esta razão matemática que tão bem serve para conhecer a natureza, isto é, as coisas que têm um ser fixo, uma realidade já feita, não funciona tão bem nos assuntos humanos. A razão matemática não é capaz de pensar a realidade mutável e temporal da vida humana. Aqui não podemos pensar ‘sub specie aeterni’, mas no tempo.

O horizonte da vida humana é histórico. O homem é definido pelo nível histórico que lhe coube em sorte viver. O que o homem foi é um componente essencial do que é. É hoje o que é, justamente por ter sido antes outras coisas.

O âmbito da vida humana inclui a história. A vida é – me dada, mas não me é dada feita, mas como uma vida por fazer. As coisas aparecem interpretadas como ‘circum – stantia’, como o que está ao redor do eu, referidas, portanto, ao eu.

Trata-se, pois, de um mundo, que não é o ácume das coisas, mas o horizonte de totalidade sobre as coisas e distinto delas; as coisas estão – como eu – no mundo; mas esse mundo é o meu mundo, isto é, a minha circunstância.

Viver é estar no mundo, atuar nele. Circunstância3 é tudo o que eu não sou, tudo aquilo em que me não encontro, inclusive a circunstância histórica. A minha vida se faz essencialmente acompanhada com a circunstância – sou inseparável dela, completando comigo a minha vida.

“Eu sou eu e a minha circunstância, e se a não salvo, não me salvo”.José Ortega Y Gasset

A realidade física está sendo afetada pela ação humana, isto é, está elaborada e transformada pela técnica.

Como a vida não está feita, uma vez que é preciso fazê-la, o homem tem que determinar previamente o que vai fazer. A vida é uma tarefa (poética) porque o homem tem que inventar o que vai ser.

Eu sou um projeto que pretendo realizar e que tive de examinar dadas as circunstâncias. Encontro perante mim um repertório de possibilidades e urgências, e só posso viver escolhendo entre elas. Essas possibilidades são finitas, mas são sempre várias, e aparecem como tais ao projetar o meu programa vital sobre as facilidades e dificuldades que compõem a minha circunstância.

Por isso o homem não pode viver sem um projeto vital, original ou valioso ou torpe: tem que ser, bom ou mau, novelista da sua própria vida, tem que imaginar ou inventar o personagem que pretende ser; e, por conseguinte, a vida humana é, antes de mais nada, pretensão.

Os homens de outras épocas, em forma de história, estão dentro de nós e nos constituem. O que o homem foi é um componente essencial do que é. É hoje o que é, justamente por ter sido antes outras coisas.

Para falar do ser – homem temos que elaborar um conceito não-eleático do ser, como se elaborou uma geometria não-euclidiana. Chegou a hora em que a semente de Heráclito tem de dar a sua copiosa colheita.

Como o vital é sempre singular e único, determinado por uma circunstância, os conceitos que apreendem a vida têm que ser ‘ocasionais’; isto é, trata-se de conceitos que não significam sempre o mesmo uma vez que o seu sentido depende, com todo o rigor, da circunstância.

O conhecimento é uma das coisas que o homem faz... Esta vida é algo que temos que fazer. É, portanto, problema, insegurança, naufrágio. Nesta insegurança, o homem busca uma incerteza; necessita saber, no sentido de saber a que se ater.

A vida apóia-se sempre num sistema de crenças em que ‘se está’. Quando estas crenças falham, o homem tem que fazer algo para saber em que se há de estribar, e isso que o homem faz, chama-se pensamento.

3 Circunstância (circum me): tudo aquilo que está à minha volta.

63O conhecimento é uma das formas essenciais de superar a incerteza. É uma interpretação da

realidade. É uma manipulação da realidade.Todo fazer arrasta consigo uma série de ‘não fazeres’ possíveis; e quando faço algo, o faço em vista

da circunstância.Para compreender uma época pretérita, precisamos reconstruir suas ‘formas de vida’, o horizonte

dentro do qual se encontrava todo homem pertencente a essa unidade histórica, e indagar quais os fundamentos em que sua vida se apoiava. Descobrir os ingredientes da circunstância e os desejos, apetites e pretensões dos homens desse mundo.

O decisivo, porém, é a perspectiva, a articulação funcional dos elementos.O passado chega até nós em forma histórica, enquanto passado conhecido, através de diversas vias

de transmissão, sendo os escritos a principal. Ora, estes escritos não podem ser entendidos sem uma reconstrução mínima da situação em função da qual foram compostos; portanto eles requerem uma interpretação ou hermenêutica (contexto).

O homem é herdeiro de um passado, de uma série de experiências humanas pretéritas, que condicionam o seu ser e as suas possibilidades. O indivíduo não estréia a humanidade. Encontra na sua circunstância outros homens e a sociedade (repertório de crenças, idéias, usos e problemas) que entre eles se produz.

Resumindo, pode-se dizer que a situação4 é intrinsecamente histórica, isto é, sua historicidade não consiste simplesmente no fato de que ela se dê na história; ela é historia, está constituída por dinamicidade, é definida por seu ‘vir de’ e ‘ir a’. Por esta razão, toda situação é essencialmente instável, é transição.

Não se está numa situação, simplesmente: se está nela porque antes se estava em outra – da qual se saiu, é claro, e porque se pretende fazer algo, ou ser algo determinado, o que é a mesma coisa.

O homem se move dentro de uma situação que também se move.Os ingredientes e as formas daquilo que denominamos ‘situação’ estão num constitutivo movimento

interno; cada um deles é o resultado de outros e seu modo de atuar e de ser consiste em mover e se mover como tendência que remete a outros novos ingredientes.

Nossa situação ‘atual’ é aquela que é, em função da que pretendemos ter depois; se esta apetência se altera, nossa situação presente também se altera. Só poderemos entender a nossa situação referindo-a às outras que a condicionam.

O futuro é reino de liberdade; só o fazer humano, projetivo e imaginativo, o pode realizar; e por isso a idéia de ‘evolução’ é totalmente insuficiente para entender a história. Esta não consiste numa “explicatio” ou num desenvolvimento de alguma coisa que já existisse, mas é uma autêntica inovação que, embora ligada ao passado, funda-se no caráter essencial da vida humana que consiste em não estar feita e ter que se fazer.

Por isso a história é poesia e drama. O mundo do homem é natureza e sociedade. Viver é, ao mesmo tempo, estar no mundo e conviver.

MAS, AFINAL DE CONTAS, O QUE É A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO?

Com Wilhelm Dilthey a história da educação e da pedagogia começou a ganhar um estatuto epistemológico no interior da universidade. Ele achava que o final do século (fin-de-siècle) precisava de um balanço e, portanto, precisava da história.

Dilthey queria ser o responsável pela ‘crítica da razão histórica’, isto é, queria estabelecer os limites do saber histórico e, a partir daí, dar-lhe estatuto científico-positivo. Procurou estabelecer os pontos de contato entre psicologia e história. Tentou resolver a relação entre indivíduo e história.

A teoria da história da educação de Dilthey possui uma configuração menos linear, forma seu conceito a partir de elementos – progresso, crise, autoliberação pela crítica, que aparecem conjugados. A idéia de progresso está presente.

O estabelecimento de uma teoria da evolução da vida, da história, da espécie, etc. em termos de fatores foi uma característica marcante da transição do século XIX para o XX.

Dez anos depois também Durkheim estabeleceu uma teoria da história da educação nesses termos. Uma teoria que competiu com a de Dilthey na preferência de um público leitor interessado em história da pedagogia e da educação.

Durkheim formulou sua visão geral sobre a evolução do ensino através da enunciação de duas ‘leis’, sendo a primeira de caráter descritivo e a segunda de caráter explicativo:

4 Situação: elementos da circunstância cuja variação define cada fase da história e que nos situam num determinado nível histórico.

641 - a educação é contínua, enquanto que a pedagogia é intermitente; isto é, a educação é permanente

em todos os povos, em todos os lugares, em todos os instantes, além de ser geral, enquanto que a pedagogia é descontínua e só aparece de forma mais autêntica em épocas relativamente recentes da história;

2 – a educação e os sistemas de ensino vão se complexificando e se ramificando em especializações, acompanhando o processo civilizatório que é marcado, não exclusivamente, mas principalmente, pela crescente divisão do trabalho, pela paulatina predominância da ‘solidariedade orgânica’ em relação à ‘mecânica’, isto é, pelas transformações que constituem a passagem da sociedade tradicional para a sociedade moderna.No tocante às teorias de evolução do ensino – circular em Dilthey e linear em Durkheim – houve mais

complementariedade do que divergências.Dilthey defendeu a idéia de uma historiografia da educação preocupada com três temáticas: a ‘história

da situação do ensino no sistema administrativo’(privado, das comunidades ou Estado, da Igreja), a ‘história da organização das escolas’ e a ‘história do conteúdo e dos métodos da instrução sob influências diretivas das idéias e teorias pedagógicas’.

Na verdade isto está em acordo com a crítica à história apegada ao meramente fatual, que esquece de buscar as causas, ou melhor, as relações dos fenômenos, que esquece de explicá-los.

Durkheim acrescentaria outras prioridades, em sintonia com os trabalhos de Voltaire – que no século XVIII já pedia por uma história do cotidiano, dos costumes, etc., em contraposição à história meramente ‘política’ que descrevia as intrigas palacianas, os reis, as batalhas, etc.

Durkheim pôs como prioridade para a história da educação o trabalho de investigação sobre que ‘carências sociais’ originaram determinado nível de ensino, a investigação sobre a origem dos ‘sistemas de emulação’, a perquirição sobre o porquê determinadas sociedades geraram aquela metodologia de ensino escolar e não outra, o estudo da mentalidade pedagógica de sociedades determinadas, etc.

Além disso, para Durkheim, a história da educação deve mostrar as doutrinas pedagógicas como ‘fatos históricos’, isto é, não como teorias para a atualidade, mas como correntes de opinião que devem ser classificadas, comparadas e julgadas, de modo que se compreenda que são elas que revelam as diretrizes das reformas de ensino que se efetivaram ou que poderiam se efetivar.

A importância desmesurada da idéia do trabalho cultural como sendo um trabalho da consciência individual, levou Dilthey a pensar a sociedade como um conjunto de mônadas psicofísicas. Esta concepção de sociedade foi trazida para o interior da sua história da educação e da pedagogia, forçando-o a interpretar o magistério como sacerdócio e, também, a entender as transformações como soma de esforços individuais e cotidianos de agentes individualizados.

É certo que, quase cem anos depois, Foucault criticou essa forma de história. Neste tipo de história, os objetos, preexistindo às relações que de fato os forjam, aparecem num determinado momento da narrativa historiográfica para encarnar na realidade descrita. É certo ainda que, quase meio século antes de Dilthey, Marx tinha alertado para as tendências à naturalização dos objetos, sua absolutização, tomando-as como tendências colaboradoras de uma história pouco confiável.

Dilthey e Durkheim, enquanto historiadores da educação, se vinculam ao historicismo e ao positivismo de maneiras bastante peculiares.

Em 1874, Nietzsche escreve “Da utilidade e desvantagem da história para a vida”, cuja preocupação central é o próprio conhecimento histórico como um dos condicionantes do homem: trata-se, então, não de avaliar como os acontecimentos de toda ordem tensionam o homem, mas como um acontecimento específico entra em choque com a personalidade individual:

Em que momento é necessário ver as coisas historicamente e em que momento é necessário não as ver historicamente? O conhecimento histórico e o esquecimento são, em algum grau, necessários à vida.

Presente e passado são uma única e mesma coisa e, apesar de apresentarem grande diversidade, mantêm tipos e estruturas estáveis, de valor invariável e significação idêntica.

Para Nietzsche, os tempos modernos constrangem todos esses tipos de historiografia a se colocarem sob os cânones da ciência. Como “ciência do vir-a-ser universal”, a história produziria uma massa desconexa e contraditória de informações que estariam a abarrotar o intelecto do ‘homem moderno’.

Uma vez perscrutada, a ‘alma do homem moderno’ mostraria o ‘interior caótico’, isto é, uma subjetividade construída a partir de um pensar e um sentir sobre a cultura, portanto um pensar e um sentir abstratos. Justamente por não ser cultura, mas um sentir e pensar sobre a cultura, a ‘cultura histórica’ seria incapaz de colocar esta subjetividade em prol de uma transformação também comportamental.

É a vida que deve prevalecer sobre o conhecimento e sobre a ciência, ou é o conhecimento que deve prevalecer sobre a vida? A resposta de Nietzsche é clara: a vida é superior ao conhecimento, porque o conhecimento que destruísse a vida destruir-se-ia no mesmo movimento.

Dilthey e Durkheim, como pensadores na e da transição do século XIX para o XX, estão preocupados com o ‘pensar histórico’.

65Um princípio de construção historiográfica do marxismo é o de recortar, por entre as lutas e paixões

individuais, por entre as atribulações do cotidiano, etc., o que seria a essencialidade do processo histórico: a história é feita pelos próprios homens; todavia é feita em condições determinadas (condições estruturais e superestruturais, a base material e as ideologias e tradições).

O segundo ponto diz respeito a uma categoria explorada por Gramsci: a problemática da hegemonia. Hegemonia é convencimento, é persuasão: uma classe social conseguindo colocar seus interesses e aspectos da sua concepção de mundo como universais, visando obter a adesão de vários outros segmentos sociais.

Manacorda, de inspiração marxista, insistiu na diferenciação entre escola profissionalizante – que ele identifica como uma proposta das classes dominantes, em especial da burguesia – e escola que une o trabalho produtivo, a instrução intelectual, os exercícios físicos e o treinamento politécnico – que ele coloca como sendo a original proposta marxista que deve se mostrar capaz de superar o que ele chama de ensino burguês.

A nossa atividade no magistério (professor de história da educação brasileira) exige a abordagem de um período muito extenso: do século XVI (Colônia - 1549) ao século XX, com um olhar para o século XXI que se inicia.

Ao elaborar a sua “História da educação brasileira – a organização escolar”, Maria Luisa Santos Ribeiro faz algumas considerações:

1. Visão de totalidade : para se chegar a uma compreensão da organização escolar brasileira, há que se ter uma visão do contexto social, do qual é parte e com o qual estabelece uma relação permanente;

2. Noções sobre estrutura social : para se chegar a uma compreensão do fenômeno social da ‘organização escolar brasileira’ há que se ter em mente ser ele um dos elementos de superestrutura que, em unidade com seu contrário – a infra-estrutura (modo do ser humano produzir sua existência), formam a estrutura social. As mudanças na infra-estrutura pressionarão, de forma determinante, as mudanças nos elementos que compõem a superestrutura (idéias e instituições). E esta age sobre aquela ao retardar ou acelerar o processo de mudança.

3. A mudança e as suas causas : a contradição é a causa primeira da mudança; contradição interior, isto é, aquela que cada elemento comporta dentro de si. No caso da organização escolar, a contradição é resultado de ela ter que atender a uma determinada clientela (quantidade) e atendê-la bem (qualidade).

O pressuposto é que a organização escolar brasileira deve atender a todos. E que tem que atender bem. Mas não tem atendido!

Maria Luisa considera dois elementos mediadores na solução da contradição – quantidade X qualidade: os recursos financeiros e a teoria educacional.

É assim que, no estudo da ‘organização escolar brasileira’, atentando-se para sua contradição interna e para seus elementos mediadores, parte da constatação do fato de ter a sociedade brasileira, desde sua origem, uma vinculação com o sistema econômico, político e social capitalista.

Apresenta-se como uma sociedade periférica (dependente) e não central (hegemônica), não tendo, até nossos dias, superado a dominação externa, a submissão dos interesses da população brasileira em favor dos da população de outros países.

Para que tais interesses externos sejam atendidos se contrapõem os interesses da maioria da população aos de uma minoria privilegiada: os recursos financeiros necessários à satisfação das necessidades escolares não estarão à disposição.

Por outro lado, a teoria educacional fica comprometida pelo fenômeno de transplante cultural que nada mais é que o reflexo, na superestrutura, da dependência caracterizada na infra-estrutura.

Quanto a este traço de dependência tem-se que assinalar que, vagarosamente, processa-se uma tomada de consciência do fenômeno de dominação e a conquista paulatina de sua superação. A dependência gera seu contrário – a independência.

1. BRASIL (de 1500 a 1530) : expansão comercial – marítima européia e, nesse contexto, a chegada dos europeus; caráter inicial da formação econômica brasileira - a extração do pau-brasil;

2. Brasil (de 1530 a 1640) : o início da agricultura e as atividades acessórias.A “descoberta” e a colonização da América são um capítulo da expansão marítima dos países da

Europa, depois do século XV. Derivam do desenvolvimento do comércio continental europeu que até o século XIV é quase unicamente terrestre e limitado, por via marítima, a uma navegação costeira e de cabotagem.

66A grande rota comercial do mundo europeu que sai do esfacelamento do Império do Ocidente, é a que

liga por terra o Mediterrâneo ao mar do Norte, desde as repúblicas italianas até o estuário do rio onde estão as cidades flamengas.

No século XIV, mercê de uma verdadeira revolução na arte de navegar e nos meios de transporte por mar, outra rota ligará aqueles dois pólos: será a marítima que contorna o continente pelo estreito de Gibraltar. O primeiro reflexo dessa mudança de rota foi deslocar a primazia comercial dos territórios centrais do continente, por onde passava a antiga rota, para aqueles que formam a sua fachada oceânica, a Holanda, a Inglaterra, a Normandia, a Bretanha, a Península Ibérica.

Deste novo equilíbrio derivará, não só todo um novo sistema de relações internas do continente como, nas suas conseqüências mais afastadas, a expansão européia ultramarina.

A Europa deixará de viver recolhida sobre si mesma para enfrentar o Oceano. O papel de pioneiro nesta nova etapa caberá aos portugueses, os melhores situados, geograficamente, no extremo desta península que avança pelo mar.

Os portugueses buscarão a costa ocidental da África, traficando aí com os mouros que dominavam as populações indígenas. Nesta avançada pelo Oceano descobrirão as Ilhas – Cabo Verde, Madeira, Açores -, e continuarão perlongando o continente negro para o sul.

Começa, então, a desenhar um plano mais amplo: atingir o Oriente contornando a África: abrir uma rota que os poria em contato com as opulentas Índias, das preciosas especiarias, cujo comércio fazia a riqueza das repúblicas italianas e dos mouros.

Atrás dos portugueses lançam-se os espanhóis. Escolheram outra rota: pelo Ocidente, ao invés do Oriente. Descobrirão a América, seguidos de perto pelos portugueses que também toparam com o novo continente.

Virão depois dos países peninsulares, os franceses, ingleses, holandeses, dinamarqueses e suecos. A grande navegação oceânica estava aberta. Só ficarão atrás aqueles que dominavam o antigo sistema comercial terrestre ou mediterrâneo. A Alemanha e a Itália passarão para um plano secundário.

Todos os acontecimentos desta era articulam-se num conjunto que não é senão um capítulo da história do comércio europeu. Não têm outro caráter a exploração da costa africana e o ‘descobrimento’ e a colonização das Ilhas pelos portugueses, o roteiro das Índias, o ‘descobrimento da América, a exploração e ocupação de seus vários setores.

Os portugueses traficarão na costa africana com marfim, ouro, escravo; na Índia irão buscar especiarias. Magalhães encontrará o estreito que conservou o seu nome e que constitui a passagem tão procurada. Mas será logo desprezada.

A idéia de povoar a América não ocorre inicialmente a nenhum dos povos da Europa. É o comércio que interessa. A princípio ninguém cogitará de outra coisa que não sejam produtos espontâneos, extrativos: as madeiras de construção ou tinturarias (pau-brasil, que alcança um metro de diâmetro na base do tronco e 10 a 15 m de altura), as peles de animais e a pesca. Os espanhóis toparão com metais preciosos, a prata e o ouro do México e do Peru.

A exploração do pau-brasil constituía monopólio real, privilégio da coroa, que cobrava direitos por sua exploração. Deu origem a alguns estabelecimentos coloniais e a margem de lucros era considerável, pois a madeira alcançava grandes preços na Europa.

A primeira concessão relativa ao pau-brasil data de 1501 e foi outorgada a um Fernando de Noronha, associado a vários mercadores judeus. A exploração da madeira também era feita por vários traficantes.

Foi rápida a decadência da exploração do pau-brasil. E algumas décadas esgotara-se o melhor das matas costeiras, e o negócio perdeu seu interesse.

Na década de 30 o Rei de Portugal estará convencido que nem seu ‘direito’ sobre as terras, nem o sistema de simples guarda-costas volantes, era suficiente para afugentar os franceses. Cogitará então pela ocupação: pelo povoamento e colonização. A primeira expedição oficial de povoadores é de 1532.

Mas, como ninguém se interessava pelo Brasil, a não ser os traficantes de madeira, o Rei procurou compensar a dificuldade outorgando àqueles que se abalançassem em colonizar o Brasil vantagens consideráveis. Assim mesmo, poucos serão os pretendentes: doze indivíduos de pequena expressão social e econômica. Apenas dois tiveram sucesso; e um destes foi auxiliado pelo Rei.

Dividiu-se a costa brasileira em doze setores lineares com extensões que variavam entre 180 e 600 quilômetros. Estes setores chamar-se-ão capitanias.

As capitanias serão doadas a titulares que gozarão de grandes regalias e poderes soberanos; caber-lhes-á nomear autoridades administrativas e juízes em seus respectivos territórios, receber taxas e impostos, distribuir terras, etc.

Para as despesas de transporte e estabelecimento de povoadores os donatários levantaram fundos tanto em Portugal como na Holanda, tendo contribuído em boa parte banqueiros e negociantes judeus.

A perspectiva principal do negócio está na cultura da cana-de-açúcar, um produto de grande valor comercial na Europa, que se vendia em boticas, pesado aos gramas. O clima quente e úmido era favorável.

67O Rei conservará apenas direitos de soberania semelhantes aos que vigoravam na Europa feudal. É

nesta base que se iniciará a ocupação efetiva e a colonização do Brasil:• O tipo de exploração agrária: a grande propriedade;• O regime de posse da terra: o da propriedade alodial e plena.

A grande propriedade será acompanhada pela monocultura. Com a grande propriedade monocultural instala-se no Brasil o trabalho escravo. Não eram passados ainda 30 anos do início da ocupação efetiva e do estabelecimento da agricultura, e já a escravidão dos índios se generalizara e instituíra firmemente em toda parte.

Isto não se fez, aliás, sem lutas prolongadas. Os nativos se defenderam, eram guerreiros e não temiam a luta. Foi este um período agitado da história brasileira. Para fazer frente a este estado de coisas, a metrópole procurará legislar na matéria. Data de 1570 a primeira carta régia a respeito. Estabelece-se nela o direito da escravidão dos índios, mas limitada aos aprisionados em ‘guerra justa’ (aquela que resultasse de agressão dos indígenas ou que fosse promovida contra tribos que recusavam submeter-se aos colonos).

Além da resistência o índio se mostrou de pouca resistência física para o trabalho cativo. A escravidão dos índios será substituída pelo negro africano. O processo de substituição do índio pelo negro prolongar-se-á até o fim da era colonial e, em São Paulo, até o século XIX.

As grandes propriedades açucareiras foram a grande unidade produtora da colônia. É a exploração em larga escala. É a única organização coletiva do trabalho e da produção. O seu elemento central é o engenho, isto é, a fábrica onde se reúnem as instalações para a manipulação da cana e o preparo do açúcar.

As terras, além dos canaviais, são reservadas para outros fins: pastagens para animais de trabalho; culturas alimentares; matas para fornecimento de lenha e madeira de construção.

Além do açúcar, extrai-se também da cana a aguardente. É um subproduto de grande consumo na colônia, e que se exportava para as costas da África.

Durante mais de século e meio a produção do açúcar representará praticamente a única base em que assenta a economia brasileira. Até meados do século XVII o Brasil será o maior produtor mundial de açúcar.

Além do açúcar, embora em escala relativamente pequena, começará a cultivar-se, desde princípios do século XVII, o tabaco. Trata-se de uma planta indígena da América.

Para manter em funcionamento a ‘economia de exportação’ são desenvolvidas atividades acessórias, que se destinam a fornecer os meios de subsistência à população: produção de gêneros de consumo alimentar (mandioca, milho, arroz, feijão, frutas – sobretudo a banana e a laranja).

Neste setor da subsistência também entra a pecuária. Ela também se destina a satisfazer as necessidades alimentares da população. A carne de vaca será um dos gêneros fundamentais do consumo colonial.

A FASE JESUÍTICA DA ESCOLARIZAÇÃO COLONIAL (1549 A 1759)

Diante das dificuldades encontradas com o regime de capitanias hereditárias, é criado o Governo Geral, que tinha como obrigação apoiar as capitanias. Na nova política ditada por D. João II (17.12.1548) é encontrada uma diretriz referente à conversão dos indígenas à fé católica pela catequese e pela instrução.

Em cumprimento a isto, chegam, com Tomé de Souza, em 1549, quatro padres e dois irmãos jesuítas, chefiados por Manoel da Nóbrega. Em decorrência do estágio primitivo em que se encontravam as populações indígenas, a educação não chegara a se escolarizar.

Os comerciantes portugueses (burguesia mercantil) desempenham papel pioneiro na empresa de expansão naval, mas não desenvolveram o capitalismo industrial. Num contexto social com tais características, a instrução, a educação escolarizada só podia ser conveniente e interessar a esta camada dirigente (pequena nobreza e seus descendentes), que deveria servir de articulação entre os interesses metropolitanos e as atividades coloniais.

Os jesuítas deveriam fundar colégios que recebiam subsídios do Estado português relativos às missões. Ficavam obrigados a formar gratuitamente sacerdotes para a catequese.

No primeiro plano educacional, elaborado pelo padre Manoel de Nóbrega, percebe-se a intenção de catequizar e instruir os indígenas. Percebe-se, também, a necessidade de incluir os filhos dos colonos.

Naquele instante os jesuítas eram os únicos educadores de profissão que contavam com significativo apoio real da colônia.

O plano de estudos, começando pelo aprendizado do português, incluía o ensino da doutrina cristã, a escola de ler e escrever. Daí em diante, continua, em caráter opcional, o ensino de canto orfeônico e de música instrumental, e uma bifurcação tendo em um dos lados o aprendizado profissional e agrícola e, de outro, aula de gramática e viagem de estudos à Europa.

68Contava também Nóbrega recrutar as vocações sacerdotais indígenas. Mas cedo percebeu a não-

adequação do índio para a formação sacerdotal católica. Este plano encontra sérias resistências a partir de 1556, ano em que começam a vigorar as “Constituições da Companhia de Jesus”.

Isto é constatado pelo fato de o plano que vigora durante o período de 1570 a 1759 excluir as etapas iniciais de estudo, o aprendizado do canto, da música instrumental, profissional e agrícola.

Nota-se que a orientação contida no Ratio Studiorum, que era a organização e plano de estudos da Companhia de Jesus publicado em 1599, concentra sua programação nos elementos da cultura européia. Evidencia desta forma um desinteresse ou a constatação da impossibilidade de ‘instruir’ também o índio.

Era necessário concentrar pessoal e recursos em ‘pontos estratégicos’, já que aqueles eram reduzidos. E tais ‘pontos’ eram os filhos dos colonos em detrimento do índio, os futuros sacerdotes em detrimento do leigo, justificam os religiosos.

Desta maneira, os colégios jesuíticos foram o instrumento de formação da elite colonial. O plano legal (catequisar e instruir os índios) e o plano real se distanciam. Os instruídos serão descendentes dos colonizadores. Os indígenas serão apenas catequizados.

A catequese, do ponto de vista religioso, interessava à Companhia como fonte de novos adeptos do catolicismo, bastante abalado com o movimento de Reforma.

Do ponto de vista econômico, interessava tanto a ela como ao colonizador, à medida que tornava o índio mais dócil e, portanto, mais fácil de ser aproveitado como mão-de-obra.

A educação profissional (trabalho manual), sempre muito elementar diante das técnicas rudimentares de trabalho, era conseguida através do convívio, no ambiente de trabalho, quer de índios, negros ou mestiços que formavam a maioria da população colonial. A educação feminina restringia-se a boas maneiras e prendas domésticas.

A elite era preparada para o trabalho intelectual segundo um modelo religioso (católico), mesmo que muitos de seus membros não chegassem a ser sacerdotes. A Companhia de Jesus se tornou a ordem dominante no campo educacional.

Isto, por sua vez, fez com que os seus colégios fossem procurados por muitos que não tinham realmente vocação religiosa, mas esta era a única via de preparo intelectual. Haja vista que, em determinadas épocas, a procura era tão maior que a capacidade dos colégios que chegou a causar problemas, como a “Questão dos Moços Pardos”5, resolvida em 1689.

No século XVII, os graus acadêmicos obtidos nessas escolas eram, juntamente com a propriedade de terra e escravos, critérios importantes de classificação social.

Este componente religioso da elite colonial brasileira deve ser destacado juntamente com seu desejo de lucro fácil, rápido e abundante. E esta vinculação tem origens na história da constituição da nação portuguesa, onde o guerreiro estava conquistando o seu próprio território, e depois outros, contra infiéis árabes, africanos e indígenas. Os movimentos de Reforma e Contra-Reforma, ocorridos no início do século XVI, criam o mesmo problema no seio do cristianismo.

Portugal se considera defensor do catolicismo e estimula a atuação educacional (no território metropolitano e na colônia) de uma ordem religiosa que se constitui para servir de instrumento de defesa do catolicismo e de ataque a toda heresia. Nesta tarefa os membros da Companhia de Jesus se dedicam por interiro, como guerreiros de Cristo. Inácio de Loyola, o fundador, como antigo militar espanhol, chega a imprimir um regime de trabalho modelado nessa forma de vida.

A formação intelectual oferecida pelos jesuítas, e, portanto, a formação da elite colonial, será marcada por uma intensa ‘rigidez’ na maneira de pensar e, conseqüentemente, de interpretar a realidade.

Planejaram converter seus alunos ao catolicismo, afastando-os das influências consideradas nocivas – e foram bastante eficientes. É por isso que dedicavam especial atenção ao preparo dos professores (que somente se tornam aptos após os trinta anos), selecionavam cuidadosamente os livros e exerciam rigoroso controle sobre as questões a serem suscitadas pelos professores, especialmente em filosofia e teologia.

O seu objetivo acima de tudo religioso, o seu conteúdo literário, a metodologia (dos cursos inferiores – humanidades6, e dos cursos superiores - filosofia e teologia) subordinada ao ‘escolasticismo’, faziam com que não só os religiosos de profissão como os intelectuais de forma geral se afastassem não apenas de outras

5 Esta questão surge da proibição, por parte dos jesuítas, da matrícula e freqüência de mestiços “por serem muitos e provocarem arruaças”. Como eram escolas públicas, pelos subsídios que recebiam foram obrigados a readmiti-los.6 Humanidades – estudos menores, que se compunham de quatro séries de gramática (assegurar expressão clara e exata), uma de humanidades (assegurar expressão rica e elegante) e uma retórica (assegurar expressão poderosa e convincente). A escola de ler e escrever existia excepcionalmente nos colégios.

69orientações religiosas como também do espírito científico nascente e que atinge, durante o século XVII, uma etapa bastante significativa.

Isto porque a busca de um novo método de conhecimento, método este que caracteriza a ciência moderna, tem origem no reconhecimento das insuficiências do método escolástico medieval, adotado pelos jesuítas.

Este isolacionismo, fruto não apenas desta orientação educacional como também do simples fato de ser colônia, e, enquanto tal, subordinada a um monopólio que é também intelectual, no caso do Brasil teve conseqüências bastante graves para a vida intelectual, porque a própria metrópole portuguesa encontrava-se afastada das influências modernas.

A formação da elite colonial em tais moldes fica adequada quase que completamente à política colonial, uma vez que: a orientação jesuítica é universalista, baseada na literatura antiga e na língua latina; existe a necessidade de complementação dos estudos na metrópole (Universidade de Coimbra); e, privilegiasse o trabalho intelectual em detrimento do manual afastando os alunos dos assuntos e problemas relativos à realidade imediata.

Os letrados acabavam por rejeitar a maioria e exercem sobre ela uma eficiente dominação, como a própria realidade colonial.

Este princípio universalista visava formar o cristão católico sem vinculações especificamente declaradas com nenhum governo civil. Isto, acrescido do fato de que os melhores alunos eram escolhidos para cursarem Teologia e tornarem-se membros da Companhia de Jesus, fazia com que a maior beneficiada fosse a própria ordem religiosa.

A união entre o governo português e os jesuítas foi conduzida em benefício destes últimos. Isto levou posteriormente a um choque, culminando com a expulsão da Companhia de Jesus de Portugal e do Brasil, em 1759.

No plano de Nóbrega, havia a proposição de criação de confrarias para sustento da clientela dos Recolhimentos, que teriam nos missionários os diretores espirituais e docentes e nos leigos os administradores dos bens materiais. Com os jesuítas, não só se proibia a criação destes Recolhimentos e o atendimento de sua clientela, como também ficava determinado que os bens materiais deveriam permanecer vinculados à Companhia de Jesus.

E estes bens eram basicamente conseguidos com os 10% de toda arrecadação dos dízimos reais (impostos), em todas as capitanias da colônia e seus povoados, e ficavam para sempre vinculados à manutenção e sustento dos colégios jesuíticos.

Cumpre destacar que as missões jesuíticas foram a base da economia florestal amazônica durante a primeira metade do século VXII, advindo daí grande lucro.

A importância social destes religiosos chegou a tal ponto, que se transformaram na única força capaz de influir no domínio do senhor do engenho. Isto foi conseguido não só através dos colégios, como do confessionário, do teatro e, particularmente, pelo terceiro filho, que deveria seguir a vida religiosa (o primeiro seria o herdeiro, o segundo, o letrado).

O número de estabelecimentos que a ordem possuía quando de sua expulsão (1759) varia:• para Tito Lívio Ferreira eram 20 Colégios, 12 Seminários, 1 Colégio e 1 Recolhimento feminino;• para Fernando de Azevedo eram 36 residências, 36 missões e 17 colégios e seminários, sem

contar os seminários menores e as escolas de ler e escrever.

A FASE POMBALINA DA ESCOLARIZAÇÃO COLONIAL (1759 A 1808)

A política colonial objetivava a conquista de um capital necessário à passagem da etapa mercantil para a industrial do regime capitalista. Portugal, mesmo tendo se antecipado em relação à primeira etapa, não chegou à segunda.

O processo de industrialização em Portugal é sufocado: seu mercado interno foi inundado pelas manufaturas inglesas, enquanto a Inglaterra se comprometia a comprar os vinhos fabricados em Portugal (Tratado de Methun - 1703).

Canaliza-se assim, para a Inglaterra, o capital português, diante da desvantagem dos preços dos produtos agrícolas em relação aos manufaturados.

A nação que lidera, no transcorrer dos séculos XVI ao XIX é a Inglaterra, que passa a ser beneficiada pelos próprios lucros coloniais portugueses, especificamente a partir do início do século XVII.

A Inglaterra, já uma nação burguesa e industrial, estava em ascensão. Portugal entrava em decadência. A decadência já pode ser claramente constatada após o período de dominação espanhola de Portugal (1580-1640): sua marinha destruída, seu império colonial esfacelado, o comércio asiático perdido. Efetivamente só lhe sobraria o antigo império ultramarino, o Brasil e algumas posses na África.

70Como nação, Portugal continuava pobre, sem capitais, quase despovoado, com uma lavoura

decadente pela falta de braços e pelas relações de caráter feudal, dirigido por um Rei absoluto, uma nobreza arruinada, quase sem terras e sem fontes de renda, onde se salientava uma burguesia mercantil rica, mas politicamente débil.

Enquanto ministro de um monarca ilustrado (D José I), o marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo), em meados do século XVIII, orienta-se no sentido de recuperar a economia através de uma concentração do poder real e de modernizar a cultura portuguesa.

Esta tentativa de transformação da situação portuguesa foi consubstanciada nas “Reformas Pombalinas”, que incluem o âmbito escolar metropolitano e colonial.

Diante dessa realidade era necessário tirar o maior proveito possível da colônia. Era necessária uma mais intensa fiscalização das atividades aqui desenvolvidas. As posições superiores deveriam ser ocupadas apenas pelos metropolitanos.

A ampliação do aparelho administrativo e o conseqüente aumento de funções de categoria inferior passou a exigir um pessoal com um preparo elementar. As técnicas de leitura escrita se fazem necessárias, surgindo a instrução primária.

A mineração, com os primeiros achados no final do século XVII, neste contexto, parecia ser um acontecimento providencial: era a solução esperada. Na verdade foi apenas esperança, já que o ouro brasileiro será, na sua parte mais significativa canalizado para a Inglaterra, em decorrência do Tratado de Methuen, e desta forma, impulsionará, sim, o processo de industrialização inglês.

Este ciclo econômico da mineração provocou mudanças que começam a abalar a manutenção do pacto colonial: estabelecimento de vínculos entre as áreas baiana, fluminense, pernambucana e paulista; aumento do preço da mão-de-obra escrava, provocando novo surto no tráfico; aumento das possibilidades de alforria e de impulso à rebeldia; aparecimento de uma camada média e de um mercado interno; deslocamento da população colonial e da capital para o Rio de Janeiro (1763); descontentamento das camadas dominante e média pelas discriminações.

Portugal chega em meados do século XVIII com sua Universidade – a de Coimbra – tão medieval como sempre fora. A filosofia moderna (Descartes), a ciência físico-matemática, os novos métodos de estudo da língua latina eram desconhecidos em Portugal.

O ensino jesuítico, solidamente instalado, continuava formando elementos da corte dentro dos moldes do Ratio Studiorum.

Boa parte da intelectualidade portuguesa toma consciência da necessidade de recuperação e produz uma literatura expressando isto. Esta manifestação tem início ainda com o aparecimento da Academia Real de História (1720), e com a criação da Academia Real de Ciências (1779).

A fonte das idéias aí defendidas está no movimento iluminista que toma corpo no final do século VXII e caracteriza o XVIII. A Inglaterra é o centro principal de 1680 a 1720, vindo, posteriormente, a compartilhar sua posição com a França e depois com a Alemanha.

O que Pombal tenta é tornar este programa concreto. Como se sabe, o absolutismo ilustrado era uma forma de governo monárquico idealizada e praticada como conseqüência do movimento iluminista. É percebida uma mudança mais de conteúdo que de método. Este ainda se mantém bastante preso à exposição escolástica.

A Real Mesa Censória, criada em 1768, proibiu, durante seu período de exercício, obras de Locke, Hobbes, Rousseau, Spinoza, Voltaire, etc. porque poderiam levar o país na direção do deísmo, ateísmo e materialismo.

Entretanto a Companhia de Jesus é atingida e chega a ser expulsa em 1759. O motivo apontado era o fato de ela ser um empecilho na conservação da unidade cristã e da sociedade civil – razão de Estado invocada na época, porque ela era detentora de um poder econômico, que deveria ser devolvido ao governo, e educava o cristão a serviço da ordem e não dos interesses do país.

Do ponto de vista educacional, a orientação adotada foi a de formar o nobre, agora negociante; simplificar e abreviar os estudos fazendo com que um maior número se interessasse pelos cursos superiores; propiciar o aprimoramento da língua portuguesa; diversificar o conteúdo, incluindo o de natureza científica; torna-los os mais práticos possíveis.

Surge um ensino público financiado pelo e para o Estado; não mais aquele financiado pelo Estado, mas que formava o indivíduo para a Igreja. O Alvará de 28.06.1759 criava o cargo de diretor geral dos estudos, determinada a prestação de exames para todos os professores – que passaram a gozar do direito de nobres, proibia o ensino público ou particular sem licença do diretor geral e designava comissários para o levantamento sobre o estado das escolas e dos professores.

Foi aberto inquérito para verificar quais os professores que lecionavam sem licença e quais usavam os livros proibidos. Foram realizados concursos para provimento das cátedras de latim e retórica na Bahia e Rio. Foram enviados dois professores régios portugueses para Pernambuco.

71O ensino secundário, que ao tempo dos jesuítas era organizado em forma de curso - Humanidades,

passa a ser em aulas avulsas (aulas régias) de latim, grego, filosofia, retórica. Pedagogicamente é um retrocesso. Representou avanço ao exigir novos métodos e novos livros.

As dificuldades quanto à falta de gente preparada e de dinheiro se fizeram sentir, no Brasil e na metrópole. A primeira dificuldade teve como conseqüência a continuidade do exercício profissional de boa parte de professores com formação jesuítica. A segunda só foi minorada quando se aplicaram os recursos vindos da cobrança do ‘subsídio literário’.

O nível fundamental permaneceu desvinculado dos assuntos e problemas da realidade imediata. Os que tinham interesse e condições de cursar o ensino superior deveriam freqüentar a Universidade de Coimbra e/ou outros centros europeus.

As ‘Reformas’ visavam transformar Portugal numa metrópole capitalista e adaptar o Brasil à nova ordem.

PERÍODO DE 1808 A 1850: A FASE JOANINA

A estrutura social foi caracterizada pelas relações de submissão externa em relação à metrópole, e submissão interna da maioria negra ou mestiça pela minoria branca (colonizadores). A opressão era intensa, bloqueando as manifestações de descontentamento, aparentando uma calmaria.

Mas uma análise mais profunda mostra que ‘tal placidez é aparente’ - as contradições internas chegam a motivar lutas difíceis. Nos três primeiros séculos sucederam-se motins da escravaria, resistências, fugas, atentados, violências, particularmente caracterizados nos episódios dos quilombos.

Mas a história tem omitido de forma sistemática os traços dessa contradição: entre consumidores e monopolizadores - motins do sal, rebelião maranhense de Bechman,...; entre senhores de terras e escravos e comerciantes - guerra dos Mascates; entre os descobridores paulistas e os adventícios que chegam da Metrópole, atraídos pelo ouro – guerra dos Emboabas; entre contribuintes coloniais e o fisco metropolitano – de que a Inconfidência Mineira é expressão;...

O ‘antilusismo’ encontra, assim, as suas razões. Acompanhando-se este processo de manifestação de descontentamento, verifica-se que o elemento novo – emancipação - vai se desenvolvendo a partir de reações, interesses, internos e externos.

É assim que a “abertura dos portos” tanto interessava ‘aos senhores de escravos e de terras’ da colônia, à boa parte da camada média que aqui surge com a mineração, como também à burguesia dominante ou em processo de dominação nas sociedades industriais, especialmente a Inglaterra.

Quando Portugal é invadido (1807) pelas tropas francesas e a família real e a corte se vêem obrigadas a virem para o Brasil, sob a guarda inglesa, a conjugação de tais interesses (grupos coloniais e ingleses) obriga o príncipe regente a decretar a “abertura dos portos” (1808) mesmo sendo em caráter temporário, mas que em realidade nunca chega a ser revogada.

Toda a estrutura de formação colonial, que nos vinha de três séculos, será abalada pelo favor de circunstâncias internacionais: o monopólio do comércio externo, os privilégios econômicos, os privilégios políticos e sociais, os quadros administrativos e jurídicos do país. Será abalada a própria estrutura tradicional de classes e mesmo o regime servil.

É o conjunto todo que efetivamente fundamenta e condiciona o resto que entra em crise: a estrutura econômica básica de um país colonial que produz para exportar e que se organiza, não para atender às necessidades próprias, mas para servir a interesses outros.

Desencadeiam-se então as forças renovadoras latentes que, daí por diante, afirmar-se-ão cada vez mais no sentido de transformarem a antiga colônia numa comunidade nacional e autônoma.

Esta necessidade de instalação imediata do governo português em território colonial obrigou a uma reorganização administrativa com a nomeação dos titulares dos ministérios e o estabelecimento, no Rio de Janeiro, então capital, de quase todos os órgãos de administração pública e justiça, o que também ocorreu em algumas das capitanias.

Provocou, por outro lado, o desenvolvimento da vida urbana de Vila Rica, Salvador, Recife e Rio de Janeiro que, contando na época com cerca de 45.000 habitantes, recebe mais de 15.000 pessoas.

A partir desta nova realidade se fez necessária uma série de medidas, como: a criação da Imprensa Régia (13.05.1808), a Biblioteca Pública (1810, franqueada ao público em 1814), o Jardim Botânico (1810), o Museu Nacional (1818).

Em 1808 circulava o primeiro jornal (A Gazeta do Rio), em 1812, a primeira revista (AS Variações ou Ensaios de Literatura), em 1813, a primeira revista carioca – O Patriota.

A possibilidade de uma maior contato com povos e idéias diferentes, acontecia com a ‘abertura dos portos’.

Em 1816 é contratada uma missão de artistas franceses - escultor, pintor, arquiteto, gravador, maquinista, empreiteiro de obra de ferraria, oficial de serralheiro, surradores de peles, curtidores e carpinteiros de carros. São criados cursos, por ser preciso o preparo de pessoal mais diversificado.

72É em razão da defesa militar que são criadas, em 1808, a Academia Real da Marinha e, em 1818, a

Academia Real Militar (hoje, Escola Nacional de Engenharia), a fim de atender à formação de oficiais e engenheiros civis e militares.

Em 1808 é criado o curso de cirurgia (Bahia), que se instalou no Hospital Militar, e os cursos de cirurgia e anatomia, no Rio, onde, no ano seguinte, organiza-se o de medicina. Todos visando atender à formação de médicos e cirurgiões para o Exército e a Marinha.

Em 1812 é criada a escola de serralheiros, oficiais de lima e espingardeiros (MG); são criados na Bahia os cursos de economia (1808); agricultura (1812), com estudos de botânica e jardim botânico anexo; o de química (1817), abrangendo química industrial, geologia e mineralogia; em 1818, o de desenho técnico. No Rio, o laboratório de química (1812) e o curso de agricultura (1814). Tais cursos deveriam formar técnicos em economia, agricultura e indústria.

Estes ‘cursos’7 representam:• a inauguração do nível superior de ensino no Brasil,• o atendimento a necessidades reais do Brasil (coisa que pela primeira vez ocorria),• uma ruptura parcial com o ensino jesuítico colonial (já que não houve reformulações nos níveis

escolares anteriores e que o tratamento dado ao estudo seguia padrões mais literários, retóricos, que científicos).

Com isso, tem-se a origem da estrutura do ensino imperial composta de três níveis. Com relação à seqüência do primário ao superior, pode-se afirmar:

Quanto ao primário: continua sendo um nível de instrumentalização técnica (escola de ler e escrever), pois apenas tem-se notícia da criação de ‘mais de 60 cadeiras de primeiras letras’; tem sua importância aumentada à medida que cresce o número de pessoas que vêem nele, não só um preparo para o secundário como também para pequenos cargos burocráticos;

Quanto ao ensino secundário: permanece a organização de aulas régias, tendo sido criadas ‘pelo menos umas 20 cadeiras de gramática latina’. Essas cadeiras e as de matemática superior em Pernambuco (1809), a de desenho e história em Vila Rica (1817) e a de retórica e filosofia em Paracatu-MG (1821), integram-se a um conteúdo de ensino em vigor desde a época jesuítica. Foram criadas também duas cadeiras de inglês e uma de francês no Rio.

2. A FASE POLITICAMENTE AUTÔNOMA

Enquanto isto se passava no Brasil, em Portugal o descontentamento da população com relação governo aumentava, diante do abandono do território em mãos dos ingleses, que se responsabilizaram pela expulsão dos franceses (1809) e pela demora no regresso da família real e da corte.

Este descontentamento leva, em 1820, à Revolução Constitucionalista, que visava uma liberalização do regime, um fortalecimento das cortes em detrimento do absolutismo real.

Tais acontecimentos não só obrigam a volta do grupo chefiado por D. João VI, em 1821, como também contribui para o aceleramento do processo de emancipação política. Isto porque as cortes portuguesas insistiam numa política colonialista em relação ao Brasil – impunham a perda da categoria de vice-reino e o ‘fechamento dos portos’, para restabelecer o monopólio comercial.

Em decorrência do descontentamento interno dois grupos adquirem significação no processo político que acaba por levar à autonomia:

• a classe dominante colonial (que pretende que a classe dominante metropolitana lhe reconheça o direito ao comércio livre e estabeleça um sistema tributário que a ambas satisfaça);

• um grupo que pretende levar a autonomia à ruptura completa com a Metrópole (admitindo reformas que atenuem a contradição com a Inglaterra no que se refere ao trabalho).

A maioria do primeiro grupo, aos poucos, muda de posição, aceitando a ruptura com a Metrópole. O segundo grupo, aos poucos, abandona o seu teor reformista. Quando as Cortes lisboetas pretendem impor a sua vontade à colônia, encontram uma irredutível resistência. O movimento pela autonomia une a classe dominante colonial e as outras classes sociais.

O Império empreende e realiza a Independência, configurando o país à sua imagem e semelhança: faz uma aliança com a burguesia européia e recebe desta a liberdade de comércio; mantêm o tráfico negreiro e o

7 A Expressão curso não dá idéia precisa, uma vez que, em verdade, muitos correspondiam a aulas, e pelas condições: organização isolada e preocupação basicamente profissionalizante.

73trabalho escravo (resistindo à pressão externa); resiste a qualquer alteração interna, realizando alterações formais.

Conseguida a autonomia política em 1822, se fazia necessária uma Constituição. A burguesia européia envia um projeto inspirado na Constituição francesa de 1791. Quanto à educação, estava presente a idéia de um “sistema nacional de educação” em seu duplo aspecto: graduação da escola e distribuição por todo o território nacional8.

Em 1824 é outorgada a Constituição, onde a idéia de ‘sistema nacional de educação’ é abandonada.O texto constitucional outorgado, com relação à educação, no seu art. 179 diz: “A inviolabilidade dos

direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império”, entre outras maneiras, pela “instrução primária gratuita a todos os cidadãos” e pela criação de “Colégios e Universidades, onde serão ensinados os elementos das ciências, belas artes e artes”.

É de 15.10.1827 a única lei geral relativa ao ensino elementar que vigora até 1946. Essa lei era o que resultara do projeto de Januário da Cunha Barbosa (1826), onde estavam presentes as idéias da educação como dever do Estado, da distribuição racional por todo o território nacional das escolas dos diferentes graus e da necessária graduação do processo educativo.

Do projeto vigorou simplesmente a idéia de distribuição racional por todo o território nacional, mas apenas das escolas de primeiras letras, o que equivale a uma limitação quanto ao grau (só um) e quanto aos objetivos (primeiras letras).

A classificação de escolas de primeiras letras simbolizava a tibieza que irá marcar a maior parte dos esforços de educação popular durante o Império, e até mesmo na República.

A conquista da autonomia política, ou seja, o surgimento da nação brasileira, impunha exigências à organização educacional. Mas as condições em que tal autonomia foi conseguida, constituem sérios obstáculos a um eficiente atendimento escolar. O número de projetos (40) e leis aprovadas que tratam da educação (2), e a adoção do método lancasteriano9, de influência inglesa, em 1827, pode ser citado para reforçar essa opinião.

Tal eficiência deveria traduzir-se num planejamento que reorganizasse os objetivos, os métodos e o conteúdo, a fim de atender aos interesses e necessidades dos cidadãos da recente nação, e implantasse uma rede escolar capaz de receber todos em idade escolar, distribuídos nos seus diferentes graus.

Mas como sociedade brasileira manteve sua base escravocrata, a clientela se reduzia aos filhos dos ‘homens livres’. Os padrões aristocráticos da monarquia exigiam somente a ‘popularização’ do nível elementar.

No plano econômico as dificuldades voltam a agravar-se, diante do desequilíbrio da balança comercial pela estimulação das necessidades e consumo muito além das capacidades produtivas, e diante da concorrência agravada com o fim do bloqueio continental.

A atividade manufatureira não tinha condições de desenvolver-se devido à concorrência inglesa. Foram taxadas as importações. Foram feitos empréstimos estrangeiros, tornando a economia dependente de tais capitais. Faltavam recursos para o complexo aparelho administrativo, inclusive com muita gente parasitária.

A crise instala-se e leva a perturbações sociais que marcam a história do Brasil durante a primeira metade do século XIX. Os recursos exigidos para uma reorganização da estrutura escolar não estarão disponíveis. A educação escolarizada não será vista como setor prioritário. A educação escolar apresenta graves deficiências quantitativas e qualitativas.

Para agravar a situação era difícil encontrar pessoal preparado para o magistério - havia completa falta de amparo profissional, fazendo da carreira algo desinteressante.

Em 1835 (Niterói), 1836 (Bahia), 1845 (Ceará) e 1846 (São Paulo) são criadas as primeiras escolas normais visando uma melhora no preparo do pessoal docente. São escolas de, no máximo, dois anos e em nível secundário.

8 Art. 250: “Haverá no Império escolas primárias em cada termo, ginásios em cada comarca, e universidades nos mais apropriados locais”.

9 Método lancasteriano – os alunos de toda uma escola se dividem em grupos que ficam sob a direção imediata dos alunos mais adiantados, os quais instruem seus colegas, do mesmo modo como foram ensinados pelo mestre horas antes. Estes alunos auxiliares se denominam monitores. Além dos monitores há na classe o inspetor, que se encarrega de vigiar os monitores. Um severo sistema de castigo e prêmios mantém a disciplina. O mestre intervém nos casos difíceis. Era este método planejado para suprir a quantidade insuficiente de professores.

74Quanto à instrução secundária, assiste-se à proliferação das aulas avulsas e particulares para

meninos. Consistiam no ensino do latim, da retórica, da filosofia, da geometria, do francês e do comércio. Estas aulas são procuradas apenas por aqueles que não tinham condições de ingresso no curso superior e queriam ter algum elemento de cultura literária.

Na tentativa de imprimir alguma organicidade, são criados liceus provinciais, que, na prática, não passaram de reunião de aulas avulsas num mesmo prédio. Em 1837 é criado o Colégio Pedro II, na Corte, destinado a servir de padrão de ensino.

Quanto à instrução superior, em 09.01.1825 é criado um curso jurídico provisório na Corte. Vários projetos são apresentados para o ensino médico. Inaugura-se a Academia de Belas Artes. O observatório astronômico, criado em 1827, é a instituição científica surgida no período.

Este nível é o que mais interessa às autoridades, pois formavam a elite dirigente de uma sociedade aristocrática. Mas continuaram sendo cursos isolados e estritamente profissionalizantes, com base na literatura européia.

PERÍODO DE 1850 A 1870

Com a decadência da mineração e um certo desenvolvimento da agricultura tradicional, ainda no século XVIII deixa de existir aquela proximidade entre centro econômico e centro político, conseguida com a transferência da capital para o Rio, em 1763. Os recursos arrecadados mostravam-se insuficientes.

As rebeliões se sucedem após a autonomia política até o final da primeira metade do século XIX. Estas lutas representavam choques entre grupos, com fundamento mais econômico que político.

A solução temporária vem com o sucesso da lavoura cafeeira que, a partir de 1840, começa a propiciar lucros. A nova lavoura representava uma criação original brasileira gerada de condições internas e, particularmente, de recursos internos. Aproveitando-se dos meios de produção disponíveis - grande propriedade e trabalho escravo, gera o novo, permanecendo vinculada ao mercado externo, dando continuidade a uma estrutura colonial de produção.

A lavoura cafeeira transforma progressivamente as condições de trabalho, desembaraçando-se, aos poucos, do escravo. Era compatível com lavouras de subsistência. Alicerça o surto demográfico e leva a urbanização ao interior. Estava ocorrendo a passagem de uma sociedade exportadora com base ‘rural – agrícola’ para uma sociedade com base ‘urbano – agrícola – comercial’.

O capitalismo internacional requer o desenvolvimento do mercado competitivo nos países periféricos como condição de sua própria expansão. Já na metade do século, os Estados Unidos alcançam uma posição dominante como mercado consumidor, recebendo mais da metade da exportação cafeeira.

As cidades passam a ser os pólos dinâmicos do crescimento capitalista interno:• promovem uma reorganização do sistema de trabalho, fazendo surgir novas categorias

econômicas;• promovem uma atração de contingentes populacionais de rendas altas e médias, de origem

nativa ou estrangeira;• promovem uma atração de contingentes populacionais de renda baixa, de origem estrangeira

(comércio, ocupações artesanais, serviços) e de origem nacional - escravos forros e libertos (serviços domésticos, trabalho artesanal, prostituição, comércio ambulante).

As contradições acabam levando à Proclamação da República.A camada média em crescimento (comerciantes, funcionários públicos, profissionais liberais, militares,

religiosos, intelectuais, pequenos proprietários agrícolas) e a trabalhadora (escravos, semi-escravos, trabalhadores livres) compõem a maioria dominada da sociedade brasileira.

Com relação à educação, a década de 1850 é apontada como uma época de férteis realizações, no entanto, restritas em sua maioria ao município da Corte: criação da Inspetoria Geral da Instrução Primária e Secundária do Município da Corte, destinada a fiscalizar e orientar o ensino público e particular (1854); estabelecimento das normas para o exercício da liberdade de ensino e de um sistema de preparação do professor primário (1854); reformulação dos estatutos do Colégio de Preparatórios (1854); reformulação dos estatutos da Academia de Belas Artes (1855); reorganização do Conservatório de Música e reformulação dos estatutos da Aula de Comércio da Corte.

As medidas relacionadas à escola são superficiais, pois dependiam da boa vontade de pessoas pertencentes à camada privilegiada, sem razões para interessar-se pela transformação da estrutura social, geral e educacional.

São superficiais também pelo tipo de formação superior recebida, que oferece uma interpretação da realidade fruto desta perspectiva de privilégios a serem conservados ou, quando muito, uma interpretação da realidade segundo modelos importados.

75 Este tipo de atividade escolar envolve um gosto acentuado pela palavra e limita as possibilidades de

concretização das idéias. Desvinculação completa entre teoria e prática.Faltavam instituições que se dedicassem à pesquisa científica e aos estudos filosóficos metódicos.

Estes foram desenvolvidos, em grande parte, pelos formados nos cursos jurídicos, sob a influência quase sempre francesa.

Continuam freqüentes as queixas quanto ao mau preparo dos alunos, ao critério ‘liberal’ de aprovação e à falta de assiduidade dos professores, pela necessidade de completarem o orçamento com outras atividades.

Pressupõe-se que apenas um décimo da população era atendida com a instrução primária – aulas de leitura, escrita e cálculo10. Só em 1880, em São Paulo, as escolas normais passaram a três anos, no período noturno, sem aulas práticas.

A instrução secundária se caracterizou por ser predominantemente para alunos do sexo masculino, pela falta de organicidade, pelo predomínio literário, pela aplicação de métodos tradicionais e pela atuação da iniciativa privada.

O governo central, apesar de omitir-se na tarefa de reorganização dos níveis anteriores ao superior, manteve os cursos preparatórios e os exames parcelados para o ingresso no curso superior.

Com a reforma José Bento da Cunha Figueiredo (1876-78) houve a concentração dos estudos exigidos pelos exames ao nível superior e passou-se a aceitar a matrícula por disciplina.

Mesmo nesta época de superávit econômico a educação não contou com verbas suficientes que possibilitassem, ao final do século XIX, um atendimento pelo menos elementar da população em idade escolar. Para a monarquia brasileira nem a instrução primária tornou-se necessária a toda a população.

No Brasil acontecia a passagem de uma sociedade exportadora-rural-agrícola para uma exportadora-urbano-comercial. Na França a passagem era para uma sociedade industrial avançada. E é pela estrutura social resultante do capitalismo industrial que surge e se desenvolve a escolarização, mesmo que elementar, de um contingente maior da população.

A exclusão não se fazia paulatinamente, de um nível de ensino para outro, e sim, marcadamente, no início da escolarização, pois a grande maioria não tinha condições e, em boa parte, nem interesse, diante do regime de vida a que estava submetida, em ingressas e permanecer na escola.

A reduzida camada média, que vai ampliando-se nas últimas décadas do Império, é que pressiona pela abertura de escolas. Como o preparo intelectual representava oportunidade de ascensão social, os poucos alunos que conseguiam matricular-se nos colégios, nos liceus, não tinham outro objetivo senão o de ingressar no curso superior, qualquer que fosse sua origem social – média ou alta.

O ensino secundário brasileiro não conseguia conciliar o preparo para o curso superior com uma formação humana a nível médio, mesmo atendendo a tão reduzido número. As condições concretas do meio determinavam uma única função – preparo para o superior.

Além dessa pressão no meio, as limitações decorriam da atitude dos interessados na solução dos problemas escolares em buscar soluções teóricas em modelos estrangeiros.

Em 1862 é feita uma reforma acentuando os estudos literários. Com a de 1870, voltam os conhecimentos científicos a ter importância. Nas reformas de 1878 e 1881 e no decreto de 1888 estas diferentes tendências se repetem.

Fica revelado o dilema da tentativa de conciliação entre formação humana com base na literatura clássica e formação humana com base na ciência. Este era o problema enfrentado pela estrutura escolar francesa. A brasileira, em realidade, enfrentava um dilema anterior – conciliar a formação humana e o preparo para o ensino superior.

Os colégios particulares que conseguem a conciliação, quer seja através de uma formação humana de tipo clássico, ou de uma formação moderna, são exceções e de existência bastante interrompida.

Como seria de se esperar, o ensino técnico, agrícola e industrial fica no plano dos ensaios.Criou-se na Corte o ensino para cegos (1854) e surdos-mudos (1856). Estes incluíam a instrução

elementar e a iniciação técnica e só continuaram pela boa vontade de diretores e professores.

PERÍODO DE 1870 A 1894: 1. A FASE IMPERIALO fim do tráfico de escravos (1850) e a solução cafeeira fazem com que haja internamente uma

disponibilidade de capitais.

10 Não se tem certeza, já que não existiam estatísticas educacionais.

76O primeiro acontecimento é significativo no sentido da solução das divergências entre a burguesia,

inglesa em especial, e a camada dos senhores de terra e escravos no que diz respeito ao regime de trabalho mais adequado à nova estrutura social capitalista em sua fase concorrencial. Isto contribui para a disponibilidade de capitais de origem externa (ingleses) em forma de empréstimos e de investimentos, como de origem interna: aqueles que eram aplicados na compra de escravos.

Em conseqüência a sociedade brasileira passa por uma época acelerada de mudanças. Assim é que em 1851 tinha início o movimento regular de constituição das sociedades anônimas. Na mesma data funda-se o Banco do Brasil. Em 1852 inaugura-se a primeira linha telegráfica no Rio. Em 1853 funda-se o Banco Rural e Hipotecário. Em 1854 abre-se ao tráfego a primeira linha de estradas de ferro do país. Começa o desenvolvimento de atividades industriais.

A consolidação desse desenvolvimento econômico manifesta-se de imediato com o contato mais intenso com a Europa, fonte fornecedora não só dos novos maquinários e instrumentos, que importávamos, mas também das novas idéias que passaram a circular no acanhado meio intelectual dos meados do século XIX brasileiro.

Esta elite intelectual brasileira era composta de elementos oriundos das camadas dominante e média. Esta se desenvolve aceleradamente em conseqüência de tal processo de modernização da sociedade e, entusiasmada por ele, procura contribuir para que se torne cada vez mais rápido. E o consumo das ‘novas idéias’ parece um meio eficaz. O manifesto liberal de 1868 é considerado o início de um amplo movimento que vai agitar o final do Império e o início da República.

As crenças do liberalismo e do cientificismo tornam-se os pilares do esforço para elevar o Brasil ao nível do século. É uma fase rica de propostas de reformas de quase todas as instituições existentes. Mas de reformas que não partem da realidade, mas do modelo importado.

Liberais e cientificistas (positivistas) estabelecem pontos comuns em seus programas de ação: abolição dos privilégios aristocráticos, separação da Igreja do Estado, instituição do casamento e registro civil, secularização dos cemitérios, abolição da escravidão, libertação da mulher para, através da instrução, desempenhar seu papel de esposa e mãe e a crença na educação enquanto chave dos problemas fundamentais do país.

Tal modernização era exigência do processo de mudança da base da sociedade. Tanto grupos internos (camada dominante e média) como externos (burguesia que evolui de mercantil para concorrencial) estão interessados nela.

A organização escolar em tal contexto é atingida não só pelas críticas às deficiências constatadas como também pela proposição e até decretação de reforma. Um exemplo está na difusão das idéias a respeito do ensino alemão. Despertava especial atenção a organização do ensino superior.

Data deste final de século o aparecimento do ensino feminino em nível secundário, como resultado da iniciativa particular. Dado o grau de subordinação da mulher no período, a maioria era analfabeta. Uma pequena parte era tradicionalmente preparada na família pelos pais e preceptores, limitando-se às primeiras letras e ao aprendizado das prendas domésticas e de boas maneiras.

Mas pelo fato destes cursos estarem desobrigados da preparação para o superior, eles acabam tendo maior organicidade, grande importância é dada às línguas modernas, às ciências e incluem cadeiras pedagógicas.

Protestantes norte-americanos e positivistas criam escolas primárias modelo; transplantavam para o Brasil a experiência que os Estados Unidos haviam desenvolvido. Deste modo, a partir das experiências de Pestalozzi, uma notável renovação dos métodos de ensino atinge no século XIX a educação americana. A influência deste modelo atinge a escola pública, no início da República.

Assim, a atenção é chamada para o fato de a criança ser um ser ativo, da necessidade de se respeitar a ordem natural do seu crescimento, de desenvolver os sentidos, capacitando-a a descobrir as coisas por si mesma e, em conseqüência, o preparo do professor parece indispensável.

2. A FASE REPUBLICANA

A influência positivista torna-se mais marcante, no que se refere à educação nacional, alguns anos depois, em decorrência das transformações políticas, conseqüências de todo o processo de inquietação.

O governo imperial atendia aos interesses da camada senhorial constituída de duas facções significativa: a ligada à lavoura tradicional (cana, tabaco, algodão) e a ligada à nova lavoura (café). Esta última dominava o aparelho de Estado, admitindo, no entanto, a participação da outra facção.

O crescimento acelerado da camada média e a participação de seus elementos na vida pública (intelectuais, militares, religiosos) criam condições de expressão de seus interesses mais amplos. As duas últimas décadas do Império são pontilhadas por ‘questões’ – dos escravos, eleitoral, política, religiosa, militar -, que demonstram claramente que o regime não atendia às aspirações de um setor importante da população no

77final do século XIX. Apesar de seu crescimento e descontentamento, a camada média não chegava a ser socialmente tão forte que, sozinha, pudesse levar adiante um movimento que resultasse.

A aliança com a camada baixa de trabalhadores não tinha condições objetivas, pelo fato de os elementos do setor médio estarem distanciados das bases, das características, dos problemas concretos da realidade brasileira (exclusão da maioria do processo de crescimento).

Desta forma, a mudança na ordem política ficava dependente de uma cisão na camada dominante que fizesse com que uma das facções passasse a se interessar por tal modificação, já que a burguesia internacional não faria pressão em contrário.Neste instante, o elemento novo na contradição fundamental se desenvolve em termos de reconhecer que a forma de governo republicano seria uma garantia, a exemplo do que aconteceu quando da ‘abertura dos portos’ (1808) e da ‘autonomia política’ (1822).As forças se compõem de tal maneira que, sob a liderança de elementos da camada média (especialmente militar), com o apoio significativo da camada dominante do café e com a aparente omissão da maioria da população, é proclamada a República (1889).

O aparelho do Estado se tornara obsoleto. A República altera aquele quadro: cai o poder Moderador, cai a vitaliciedade do senado, cai a eleição à base de renda, cai a nobreza titulada, cai a escolha de governadores provinciais, cai a centralização.

O novo regime permite a participação no poder, embora transitoriamente, da classe média, e há uma luta em torno da política tarifária e cambial. As reformas visavam, muitas vezes apenas na intenção, atender a determinados fatores que vinham em ascendência.

Adota-se o modelo norte-americano que, segundo Rui Barbosa, era o que mais se adaptava ao Brasil. A burguesia via na descentralização um instrumento de concentração de rendas, já que não teria que dividi-las com os senhores da lavoura tradicional.

É por esse razão que se instala na organização escolar da Primeira República uma dualidade, fruto da descentralização. Pela Constituição (1891) à União competia legislar sobre o ensino superior na Capital, cabendo-lhe criar instituições de ensino secundário nos Estados e promover a instrução no Distrito Federal. Aos Estados se permitia organizar os sistemas escolares, completos.

Existiam, entretanto, sérias divergências quanto à política tarifária e cambial, o que fazia com que tal composição fosse bastante circunstancial e instável, sendo caracterizado o período até 1894 como o de ‘crise da República’.

Se do ponto de vista econômico a divergência era frontal, a ‘pequena burguesia urbana’, de que os militares no poder (Deodoro e Floriano) faziam parte, não era suficientemente forte enquanto apoio a uma nova orientação, uma vez que esta comprometia os interesses dos donos da terra que detinham os meios de produção. Desta maneira, a continuidade da camada média na liderança do processo político brasileiro só podia ocorrer pela força das armas, pois faltava-lhe esta base de classe por não dominar os meios de produção. O governo de Floriano Peixoto (1891-1894) retrata essa situação.

Neste período em que o componente médio lidera o processo político, acontece uma tentativa de mudança tanto na orientação econômica como na escolar. É a primeira tentativa (frustrada) de fazer do governo um instrumento de diversificação das atividades econômicas. Atitude retomada após 1930.

Quanto à organização escolar, percebe-se a influência positivista. Era a forma de tentar implantar e difundir tais idéias através da educação escolarizada, já que, politicamente, tal corrente de pensamento sofre um declínio de influência a partir de 1890.

A Reforma Benjamim Constant tinha como princípios orientadores: a liberdade, a laicidade do ensino, e a gratuidade da escola primária. Atingia, por força da descentralização reinante, a instrução pública primária e secundária no Distrito Federal e a instrução superior, artística e técnica em todo o território nacional.

A escola primária ficava organizada em duas categorias: de 1.º grau para crianças de 7 a 13 anos e de 2.º grau para crianças de 13 a 15 anos. A secundária tinha a duração de sete anos. No nível superior afetou o ensino politécnico, o de direito, o de medicina e o militar.

Uma das intenções era tornar os diversos níveis de ensino ‘formadores’ e não apenas preparadores dos alunos, com vistas ao ensino superior. Foi criado o ‘exame de madureza’, destinado a verificar se o aluno tinha cultura intelectual necessária ao término do curso. A partir do 3.º ano, seria introduzido tempo para a revisão da matéria e, no 7.º, isto ocuparia a maior parte do horário.

A outra intenção era fundamentar esta formação na ciência, rompendo com a tradição humanista clássica, responsável pelo academismo dominante no ensino brasileiro. A predominância literária deveria ser substituída pela científica e, para tanto, foram introduzidas as ciências, respeitando-se a ordenação positivista: matemática, astronomia, física, química, biologia, sociologia e moral.

Os próprios positivistas fizeram restrições à Reforma, pelo fato de não ter respeitado o modelo pedagógico de Comte no que diz respeito à idade de introdução dos estudos científicos (14 anos).

Na realidade, o que ocorreu foi um acréscimo de matérias científicas às tradicionais, tornando o ensino enciclopédico. Este fato constitui outro motivo de crítica. Já em 1893 há uma modificação visando uma distribuição mais proporcional das matérias do Ginásio com ampliação da parte literária.

78Os resultados conseguidos, completamente distintos dos ‘idealizados’, comprovam, mais uma vez, a

ineficácia e os prejuízos de tal atitude intelectual.

PERÍODO DE 1894 A 1920

A compreensão da característica básica da sociedade brasileira, neste período, requer o esclarecimento dos significados do combate ao florianismo, que são: afastar do poder o componente militar que nele representava a camada média; e, utilizar o novo regime (republicano) para conseguir antigos fins (atendimento dos interesses da ‘camada senhorial’).

Percebe-se, neste instante, que a aliança entre camada média e uma facção da camada dominante, útil por ocasião da necessária alteração do regime político, agora já não o era mais. A queda de Floriano Peixoto representava a vitória desse grupo e a solução da crise política.

As possibilidades de saída da crise econômica pareciam ser a aliança com a burguesia internacional e a reorganização interna. Para tanto era indispensável deslocar do poder o componente médio que, como os outros setores da população, com exceção do dominante, seriam bastante prejudicados.

É assim que no ano de 1898 são empreendidas certas reformas que eram, inclusive, uma das condições impostas pelos credores. O grande beneficiário das reformas foi a finança internacional.Consolidara-se uma situação de dependência que se vinha formando havia muito.

A reorganização interna foi conseguida com a adoção da ‘política dos governadores’. Tratava-se de entregar cada Estado à oligarquia regional que o dominasse.

A política econômica de ‘valorização’ dos produtos agrícolas, mais diretamente o café, feita com capital estrangeiro, concentrava os lucros nas mãos da burguesia estrangeira e da burguesia agrário-exportadora brasileira.

Instalar-se-ão grandes e modernos portos, a rede ferroviária crescerá rapidamente, inauguram-se as primeiras usinas de produção de energia elétrica, remodelam-se com grandes obras as principais cidades. A sociedade brasileira continua a modernizar-se, mas a um custo muito alto, pesadamente pago pela maioria da população.

As condições de trabalho e o isolamento da população rural impossibilitam manifestações de descontentamento. Este fato e a representação eleitoral manobrada pelo ‘coronelismo’, pelos ‘currais eleitorais’, garantiram o sucesso do regime até o final da Primeira Guerra, quando manifestações urbanas de descontentamento vão se intensificando.

A caracterização do traço de dependência, durante os anos de 1894 a 1919, se refletirá na organização escolar, reafirmando o traço de dependência cultural.

As reformas da organização escolar oscilam entre a influência humanista clássica e a realista ou científica. A dependência cultural traduz-se pela falta de capacidade criativa e atraso constante em relação ao centro criador que serve de modelo - o positivismo já havia sido enterrado 40 anos atrás na Europa.

Enquanto isso os problemas reais agravavam-se e, no dia-a-dia escolar, profissionais e alunos ‘solucionavam como podiam’, isto é, improvisadamente e, portanto, também de forma ineficiente.

Daí sair desacreditada tanto a teoria importada, e por isso desligada da prática, como a prática sem a teoria, ou melhor, uma prática com base numa ‘teoria’ fruto do senso comum, onde não se tem consciência clara das razões desta nossa forma de agir.

É assim que o problema do analfabetismo não pode ser solucionado, ficando muito longe disto, já que aumentou em números absolutos e, em 1920, 65% da população de 15 anos e mais era analfabeta, mais da metade há via sido totalmente excluída da escola. Com a sociedade brasileira se desenvolvendo em base urbano-comercial, o analfabeto passa a se constituir um problema, porque as técnicas de leitura e escrita vão se tornando instrumentos necessários à integração em tal contexto social.

Como faltam registros das despesas do governo com relação ao ensino, pode-se, apenas, inferir a insuficiência de verbas, que se soma à insuficiência teórica para enfrentar o problema. Só em 1916 o Brasil iniciou a publicação do seu Anuário Estatístico, cujo primeiro foi dedicado ao período de 1907 a 1912.

ENSINO PRIMÁRIO - no início da República a melhora não foi apenas quantitativa, uma vez que data daí a introdução do ensino graduado, com o aparecimento dos primeiros grupos escolares ou escolas-modelo. Mas, ainda em 1907, o tipo comum de escola primária é a de um só professor e uma só classe, agrupando alunos de vários níveis de adiantamento.

De 1.100.129 alunos que ingressaram na 1.ª série em 1945, somente 90.657 conseguem ser aprovados na 3.ª série em 1947, e aprovados na 4.ª série, em 1948, 54.297. Colocava-se o dilema: atender menos e melhor, ou mais e pior? Optou-se pela primeira alternativa, mas mesmo assim menos de um terço da população em idade escolar foi atendida. O que equivale dizer que mais de dois terços continuaram a serem excluídos da escola.

Isto entra em choque com o próprio ideário republicano de um regime de participação política. O choque ocorre uma vez que o novo aparelho de Estado foi colocado a serviço de antigos interesses.

79Faltava um modelo de desenvolvimento eminentemente nacional e popular. A própria base industrial,

que agiu como um elemento pressionador da abertura da escola elementar, não existia na Primeira República.ENSINO MÉDIO – A este nível continua ocorrendo um outro ponto de estrangulamento na organização

escolar brasileira. Se houve certa ampliação no ensino secundário, ela ocorreu no ensino particular. No público houve um pequeno aumento com relação ao pessoal docente e diminuição quanto às escolas e às matrículas. A elitização se mantém como uma característica marcante.

O pobre não pode freqüentar o ensino secundário: o liceu, o ginásio, o colégio custam caro. Os pobres vão para as fábricas, para a lavoura, para a mão-de-obra. Os ricos farão exames, depois serão bacharéis, médicos, engenheiros, jornalistas, burocratas, políticos, constituirão a elite nacional.

Como o ensino secundário é decadente, já de má qualidade no Império, é possível pressupor a baixa capacidade da elite brasileira.

Outra conseqüência da intensa seleção feita desde o início devido à falta de escolas primárias, ao problema da evasão, bem como ao fato de as escolas secundárias serem predominantemente pagas é que o número de alunos com condições de cursar se restringia aos elementos originários de setores sociais altos e, paulatinamente, também dos médios. Daí o caráter propedêutico do ensino secundário se manter.

O fato mais digno de significado do ponto de vista cultural nesse período é o que se chamou de bacharelismo, no pior sentido, significando a mania generalizada entre os pais, de formar o filho, dar-lhe de qualquer modo um título de doutor. Pois ser doutor era, senão um meio de enriquecer, certamente uma forma de ascender socialmente.

Éramos um país de doutores e analfabetos.Continuava um ensino de tipo literário. Aprendiam-se os conhecimentos científicos como eram

assimilados os de natureza literária. Não se fazia ciência, não se aplicava o método científico. Tomava-se conhecimento dos resultados da atividade científica.

ENSINO PROFISSIONAL - atendia a uma crescente, mas mesmo assim, diminuta clientela. Tanto o setor público como o particular apresentaram um crescimento.

A idéia de que o ensino profissional (elementar e médio) destinava-se às camadas menos favorecidas, acaba por agravar o problema referente às distintas formações: um conjunto de escolas propiciava a formação das ‘elites’ e, outro, a do ‘povo’.

O crescimento do ensino profissional, se, de um lado, pode representar o encaminhamento da contradição entre não-escolarizados e escolarizados, de outro, pode representar o surgimento e/ou aprofundamento de outra contradição entre formação de ‘elite’ e de ‘povo’, como já assinalado.

ENSINO SUPERIOR – durante os anos de 1907 a 1912 as escolas particulares é que apresentaram um maior aumento. A esfera estadual, mesmo diminuindo o número de suas escolas e professores, apresentou um aumento de matrícula e conclusão de curso.

Quanto ao tipo de curso, o médico-cirúrgico-farmacêutico e o politécnico suplantaram em crescimento o jurídico.

A matrícula no ensino superior representava 0,05% da população total do país, que, em 1900, era de mais de 17 milhões de habitantes. Isto é, em 2.000 habitantes, um estava cursando o superior.

No nível superior também se constata uma dicotomia entre atividades literárias e atividades científicas. As atividades científicas continuaram dispersas em instituições de várias naturezas – museus, laboratórios -, que não serviam ao ensino e nem se enquadravam no sistema propriamente escolar. A única exceção foi a Faculdade de Medicina da Bahia.

Em setembro de 1920 criou-se a Universidade do Rio de Janeiro, fruto da reunião ‘nominal’da Escola Politécnica, da Escola de Medicina do Rio de Janeiro e uma das Faculdades Livres de Direito.

Continuou a ser dada pouca atenção à formação do magistério. Foram criadas algumas escolas normais. Não foram organizados cursos para a formação do magistério secundário e os critérios de seleção dos professores de nível superior não eram eficientes.

Para que cinco Academias de Direito na capital de um país de analfabetos, na qual se não contam quatro ginásios excelentes? Em cidade nenhuma do mundo se nos depara semelhante abundância de cursos superiores. Nos centros pouco populosos, se acaso uma faculdade existe, não é possível a seleção do pessoal docente: todos os médicos ou todos os advogados do lugar se tornam professores.

PERÍODO DE 1920 A 1937

“Façamos a revolução antes que o povo a faça!”. Essa é a famosa frase de Antonio Carlos, governador de Minas e presidente do Partido Republicano

Mineiro, pronunciada às vésperas da Revolução de 30. Ela é interessante porque chama a atenção não só para a ocorrência de significativos acontecimentos na década anterior, como também indica a orientação e conseqüente limitação do próprio movimento de outubro de 1930.

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A FASE ANTERIOR À “REVOLUÇÃO DE 30”

De 1918 a 1930 é conhecido como o período do “declínio das oligarquias”, que ocorre devido à existência de novas forças sociais, em decorrência das modificações na estrutura econômica.

A modificação básica é representada pelo impulso sofrido pelo parque manufatureiro que, apesar de débil, passa a ter papel indispensável no conjunto da economia brasileira. Se em 1907 existiam no Brasil 3.258 estabelecimentos industriais, 150.000 operários e um capital de 666.000 contos de réis, em 1920 estes números haviam aumentado para 13.336, 276.000 e 1.816.000, respectivamente.

Essa industrialização ‘florescia espontaneamente’no vazio deixado pela produção primário-exportadora interna e pela produção industrial das sociedades capitalistas centrais. Socialmente representa a consolidação de dois componentes: a burguesia industrial e o operariado.

A burguesia industrial apresenta pontos de contato com os outros setores dominantes da classe dominante (muitos foram ou são fazendeiros). Ao mesmo tempo apresenta traços de distinção que levam a choques de interesses econômicos que acabam por atingir, às vezes, a área política.

A Revolução de 30 representa um dos instantes agudos de um desses choques: os vários setores se polarizam contra um dos setores dominantes representado pelos cafeicultores, com o objetivo de conseguir uma mudança na orientação.

O operariado representa, a partir daí, a existência do povo enquanto expressão política. As manifestações urbanas organizadas retratavam de forma mais objetiva a insatisfação dos setores de classe dominada. Nos anos de 1917 e 1918 os movimentos grevistas recrudescem e acontece a primeira greve geral em São Paulo, que dura trinta dias e chega a levar o governo a abandonar a cidade.

Mas os políticos da década de 20 insistiram em ignorar esta emersão popular. Não compreendiam que o proletariado passara a existir e era, agora, uma classe definida, com interesses e reivindicações próprias e que nos cálculos eleitorais era preciso levá-lo em conta. Para muitos a questão social era caso de polícia.

Por outro lado, em 1922 é criado o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que tem duração legal de apenas quatro (4) meses, em decorrência do estado de sítio decretado logo em seguida.

É interessante também assinalar, nos anos 20, o crescimento do setor médio da população, composto pela pequena burguesia das cidades, as chamadas classes liberais e intelectuais e, por fim, os militares cuja origem social era agora a própria classe média.

O movimento chamado de ‘tenentismo’ sintetiza as reivindicações e exigências desse setor que conclui que o regime político era bom, ruim eram os homens que estavam no poder - eram corruptos. Diante disso, reivindicam representação (a forma como eram escolhidos os mandatários tornava impossível à oposição chegar ao poder) e justiça.

Mais uma vez os militares é que lideram tal movimento contestatório e provocam uma série de revoltas, como a do Forte de Copacabana, em 1922, a liderada por Isidoro dias Lopes, em 1924, e a Coluna Prestes – 1924 a 1927.

Havia, tanto nos setores dominantes como nos dominados uma insatisfação geral e um desejo de mudança.

Era de se esperar que neste ambiente de agitação, de contestação, também as idéias e práticas que caracterizavam a organização escolar fossem combatidas. Já não eram apenas e predominantemente os políticos que denunciavam a insuficiência do atendimento escolar elementar e os conseqüentes altos índices de analfabetismo. O problema passou a ser tratado, agora, por educadores de ‘profissão’.

Caracteriza-se a crença de que, pela disseminação da educação escolar, será possível incorporar grandes camadas da população na senda do progresso nacional e colocar o Brasil no caminho das grandes nações do mundo. Além do entusiasmo pela educação caracteriza-se, também, o otimismo pedagógico – a crença de que determinadas formulações doutrinárias sobre a escolarização indicam o caminho para a verdadeira formação do homem brasileiro.

O entusiasmo pela educação e o otimismo pedagógico começaram a ser, no decênio anterior à década de 20, uma atitude que se desenvolveu nas correntes pedagógicas de idéias e movimentos político-sociais e que consistia em atribuir importância cada vez maior ao tema da instrução, nos diversos níveis e tipos, com a inclusão sistemática dos assuntos educacionais nos programas de diferentes organizações.

Apenas na década final da Primeira República a situação vai ser alterada, com o aparecimento do ‘técnico’ em escolarização, a nova categoria profissional. Justamente nesse momento os temas de escolarização vão se restringindo a formulações meramente educacionais ou pedagógicas, com o que vão perdendo ligações com os problemas de outra natureza.

Quatro etapas já haviam sucedido, no desenvolvimento histórico geral do escolanovismo, enquanto no Brasil não havia sido atingida nem a primeira. A série de reformas pedagógicas empreendidas nos anos

81vinte11 era mais ou menos a repetição da primeira etapa ocorrida em âmbito universal na última década do século passado.

Tais reformas representavam a tentativa de implantação da ‘escola primária integral’, definida no art. 65 da Lei n.º 1.846, que reformulou o ensino primário baiano em 1925 (In: Nagle,Jorge. Educação e sociedade na Primeira República. São Paulo: EPU/USP, 1974, 400p.).

Quanto aos níveis médio e superior são defendidas idéias que não chegam a alterar, nem em parte, as instituições do primeiro período republicano. Uma limitação teórica está no fato de representar mais uma forma de transplante cultural e de pedagogismo, isto é, de interpretação do fenômeno educacional sem ter claro as verdadeiras relações que ele estabelece com o contexto do qual é parte.

Em realidade, acreditam ser a educação um fator determinante na mudança social, mas o fenômeno educacional está sendo concebido como isolado do contexto. Com isso, a ação que este exerce sobre aquele não é bem definida.

Mesmo partindo de uma visão superficial da realidade social, é importante destacar a atuação de tais educadores defendendo a idéia de que não só era preciso difundir a educação e a cultura, como também era necessário reestrutura-las: e isto como um dever do regime republicano, que se dizia democrático e não aristocrático; tentando implantar reformas, mesmo que parciais, mas sempre denunciando os graves problemas existentes na organização escolar brasileira.

A FASE POSTERIOR À “REVOLUÇÃO DE 30”

O período da ‘Revolução de 30’ é o do grande despertar da sociedade brasileira, para as causas do seu subdesenvolvimento, do seu atraso em relação às sociedade tidas como desenvolvidas.

Duas causas básicas desse atraso passaram a ser atacadas de forma intensa:• o reconhecimento de que uma economia onde o setor central era a agricultura de exportação

não oferecia condições de um processo de transformação econômico, político, social que propicie o crescimento do padrão de vida da população;

• o reconhecimento de que a dependência da economia brasileira em relação à economia externa tinha que ser rompida.

Em outubro de 1930, o conflito entre dois grupos de classe dominante (os ligados à exportação e os dela desligado) eclode em forma de movimento armado e aglutina o apoio dos outros setores sociais.

A supremacia dos setores desligados da exportação estabelece as condições necessárias à organização de um modelo econômico-político ao derrubar do poder o setor agrário-comercial exportador. O choque entre eles, daí por diante, continuará existindo, mas a tendência é em favor do setor novo dirigido ao mercado interno.

Desta forma tem origem, de uma maneira confusa no início, a ideologia política do ‘nacional desenvolvimentismo’, e o modelo econômico compatível – a substituição de importações.

Os descontentes que se unem para tomar o poder, têm em comum a intenção de derrubar o Partido Republicano, liderado pela facção paulista ligada à plantação e exportação de café e, em especial, ao Instituto do Café.

No próprio PRP ocorre uma divisão pouco antes de 1930, e os cafeicultores, descontentes com a política de valorização do café, passam a formar o Partido Democrático (PD). O mesmo motivo aproxima o Partido Republicano Mineiro (PRM) do PD, afastando-se do PRP.

Tais cafeicultores descontentes reconhecem que a política de valorização está, em realidade, enriquecendo os financistas ingleses e empobrecendo os cafeicultores. Os financistas norte-americanos, desejosos de ocuparem o lugar até então ocupado pelos ingleses, também têm interesses na mudança. Só não interferem mais diretamente devido à crise em que se encontram em 1929.

Outro grupo descontente é representado pelos setores dominantes do rio Grande do Sul (pecuaristas), cujos partidos rivais, o Partido Republicano Rio-Grandense e o Partido Libertador, se unem numa frente única.

As camadas médias, lideradas pelos tenentes, os intelectuais desiludidos e as massas populares completam o quadro que compõe a “aliança Liberal”, nome dado ao movimento político nacional que marca o período.

Além de derrubar o PRP, pouca coisa em comum, grupos tão diversificados, tinham em relação às novas bases de estruturação do país. Tanto que, após a deposição de Washington Luís e a entrega do governo

11 Reformas de Lourenço Filho (Ceará, 1923), Anísio Teixeira (Bahia, 1925), Francisco Campos e Mário Casassanta (Minas, 1927), Fernando de Azevedo (distrito Federal, 1928), Carneiro Leão (Pernambuco, 1928).

82a Getúlio Vargas, a confusão é que caracteriza os meses seguintes, onde o problema fundamental passa a ser o manter-se no poder.

Com a aproximação de Prestes e do PCB, a partir de 1928, o ‘prestismo’ passa a ser alvo de combate. A pequena burguesia e as camadas médias, nesses primeiros anos, acreditavam exercer a liderança, já que seus chefes (tenentes) eram ministros interventores.

Por volta de 1931 o governo já está cambaleando e perdeu a confiança do povo. O desemprego continua. Em 1932 a ‘Revolução Constitucionalista’ expressa a intenção da elite paulista (aliança entre PD e PRP) de voltar ao poder. Não havia um plano de governo, que vai se delineando ditado pelas circunstâncias.

Em 1930 é criado o Ministério da Educação e Saúde. Em abril de 1931 é empreendida a reforma do ensino superior. Esta reforma se reveste de importância por ter adotado como regra de organização o sistema universitário. Isto através da criação da reitoria, com a função de coordenar administrativamente as faculdades.

A reforma exigia a incorporação de, pelo menos, três institutos de ensino superior – Direito, Medicina e Engenharia – ou, em lugar de algum desses, a Faculdade de Ciências e Letras, à qual competia dar ao conjunto das Faculdades integradas na Universidade o caráter especificamente universitário. Estava proposta oficialmente a criação da Faculdade de Educação, Ciências e Letras, para a formação do magistério.

Outro Decreto, de 18.04.1931, organiza o ensino secundário com o objetivo de transforma-lo em um curso eminentemente educativo. Para tanto, divide-se em duas etapas:

• a primeira, com a duração de cinco anos (curso fundamental), era o ‘curso de formação do homem, que através de hábitos, atitudes e comportamento se habilite a viver integralmente e a ser capaz de decisões convenientes e seguras em qualquer situação’.

• a segunda, de dois anos, visava a adaptação às futuras especializações profissionais.Esta reforma também tornou obrigatórias certas cadeiras nesta segunda etapa (sociologia, história da

filosofia, higiene, economia política, estatística).Outro decreto de 30.06.1931 altera o ensino comercial, que passa a ter o curso propedêutico (3 anos),

seguido de cursos técnicos (de 1 a 3 anos) em cinco modalidades e o curso superior (3 anos) de administração e finanças.

Os educadores participantes do movimento de reformas da década de 20 lançam, em 1932, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova12, preocupados com uma política nacional de educação. Do Manifesto se extrai um esboço de um programa educacional.

Foram programados e realizados vários congressos e conferências, onde eram debatidos os princípios fundamentais que deveriam orientar a educação nacional. Nestes debates, duas orientações se conflitavam: uma representada pelos educadores católicos, outra pelos educadores influenciados pelas ‘idéias novas.

Os educadores católicos defendiam a educação subordinada à doutrina religiosa (católica), a educação em separado e, portanto, diferenciada para os sexos masculino e feminino, o ensino particular, a responsabilidade da família quanto à educação, etc. Os educadores influenciados pelas ‘idéias novas’ defendiam a laicidade, a co-educação, a gratuidade, a responsabilidade pública em educação, etc.

Educadores de ambos os grupos, entretanto, eram unânimes em combater o princípio de monopólio do ensino pelo Estado, colocando-se, assim, diziam eles, contra as ideologias de esquerda como de direita.

Ao mesmo tempo em que representa um período renovador e fecundo, representa paulatinamente um período de sectarização: a ‘responsabilidade pública’, por exemplo, foi identificada com o princípio do ‘monopólio do ensino pelo Estado’, fazendo com que educadores escolanovistas fossem taxados de comunistas.

Diante da pressão de significativos setores sociais do contexto da época, pode-se concluir que os motivos da identificação eram outros que não a defesa pura e simples de princípios educacionais, uma vez que, tendo-se a compreensão dos princípios “educação como responsabilidade pública” e “monopólio da educação”, se verá que eles não podem ser identificados.

A escola pública, gratuita e leiga era vista pelos educadores como a situação ideal, justamente com vistas ao atendimento das aspirações individuais e sociais, o que equivale ao contrário de qualquer imposição orientadora, quer seja de ordem religiosa, quer seja de ordem política. Ao indivíduo cabia fazer a opção – bem ao gosto da concepção liberal de mundo.

Na realidade a luta estabelecia-se entre ‘conservadores’ versus ‘modernos’, de defesa de interesses sempre particulares. Isto porque no capitalismo, existindo a propriedade privado dos meios de produção, o público, em última análise, é privado, uma vez que os interesses primordiais na sociedade são os do grupo de proprietários (minoria) e não os da coletividade em geral.

12 Manifesto escrito por Fernando de Azevedo e assinado por numerosos educadores.

83A diferença apontada existe em decorrência da existência de modelos capitalistas parcialmente

diferentes. A forma ‘conservadora’ vincula-se a uma estrutura social com base num modelo agrário-exportador, enquanto a ‘moderna’ vincula-se a uma estrutura social com base num modelo urbano-industrial.

Essas acusações infundadas de comunismo revelam uma estratégia que, a partir dos anos 20, as forças mais resistentes às mudanças fazem uso.

Em 1928 surge o Partido Fascista Brasileiro e em 1932 é criada por Plínio Salgado a ‘Ação Integralista Brasileira’, que defende princípios relativos a um Estado autoritário, nacionalista e anticomunista, dirigido por elites esclarecidas que tinham por função principal ‘conciliar’ os conflitos de classes através de um controle autoritário das práticas das classes sociais.

Contra esta tendência conservadora é criada a Aliança Nacional Libertadora, a exemplo das Frentes Populares antifascistas e antiimperialistas que surgiam na Europa. Esta Aliança era composta de ex-tenentes reformistas e politicamente mais à esquerda, comunistas, socialistas, líderes sindicais e mesmo alguns liberais.

Diante das manifestações organizadas pela ANL o governo, com o apoio das oligarquias e dos fascistas - integralistas, aprova em abril de 1935 a Lei de Segurança Nacional, que representava um estado de sítio permanente no país.

Em reação, membros da ANL mais à esquerda declaram em novembro de 1935 uma insurreição, sob a direção de Luís Carlos Prestes, conhecida como “Intentona Comunista”.

A insurreição fracassa e intensifica-se a perseguição às forças populares de oposição ao governo Vargas. Aguçam-se as disputas no interior das frações das classes dominantes. Getúlio, representando mais uma vez estes interesses, dá o golpe de Estado a 10.10.1937, decretando o Estado Novo.

A Constituição de 1934, apesar de trazer pontos contraditórios ao atender reivindicações, principalmente de reformadores e católicos, dá bastante ênfase à educação, dedicando um capítulo ao assunto (cap. II). Cria o Conselho Nacional e Estadual de Educação e determina a aplicação de nunca menos de 10%, da parte dos municípios, e nunca menos de 20%, da parte dos estados, da renda resultante dos impostos “na manutenção e desenvolvimento dos sistemas educacionais”.

Procura intensificar o processo de democratização ao reconhecer na educação ‘um direito de todos’, ao instituir a liberdade de ensino, ao instituir a liberdade de cátedra, a gratuidade e obrigatoriedade, e criando fundos especiais de educação.

Constata-se um aumento percentual em relação às despesas com a educação. Isto foi suficiente para proporcionar certa ampliação na organização escolar, mas insuficiente para sua transformação.

O crescimento real foi mais que duplicado em relação ao crescimento do decênio anterior: ampliação da matrícula e do número de professores.

Mas não foi suficiente para que o alto grau de seletividade deixasse de ser uma das características da organização escolar brasileira. Não foi suficiente para destruir a bifurcação dos caminhos escolares após o primário: a via para o povo (escolas profissionais) e a via para a elite (escolas secundárias).

TEORIA EDUCACIONAL – ESCOLA NOVA

A Teoria educacional continua sendo um produto de um processo de transplante cultural e de uma concepção ingênua de realidade. As ‘idéias novas’ em educação são o resultado da adesão de tais educadores ao movimento europeu e norte-americano, chamado de ‘Escola Nova’.

Este movimento visava o ‘restabelecimento daquele sentido do humano, ameaçado pelas exigências econômicas como pelas exigências políticas’, advindas da industrialização e da nacionalização que pressionava a educação para o trabalho e para a nação durante o século XIX. Adequada, pois, às sociedade capitalistas avançadas.

Distintas situações infra-estruturais resultam em diferentes situações superestruturais e, portanto, educacionais, tanto ao nível das idéias como ao nível das instituições existentes, situações estas que têm que ser levadas em consideração.

Outra causa do comprometimento da teoria foi o fato de ela ser fruto de uma concepção ingênua (superficial) da realidade. E isto diz respeito ao movimento da ‘Escola Nova’ como um todo e não apenas aos ‘discípulos’ brasileiros.

O aspecto positivo resultante de mais este transplante cultural está no fato de ter levado os educadores a diagnosticar as deficiências da estrutura escolar brasileira e a denunciá-las.

PERÍODO DE 1937 A 1955

Este período pode ser subdividido em três instantes: o de Getúlio Vargas, chamado de ‘Estado Novo’(1937-1945), o de Eurico Gaspar Dutra, em reação ao Estado Novo (1946-1950), e o de Getúlio retornando por via eleitoral (1951-1954).

84Durante todo o período verifica-se o crescimento acelerado de forças econômico-sociais novas no

contexto brasileiro. Essas forças exercem pressão sobre a superestrutura política, a fim de que sejam conquistadas condições efetivas de aceleração do crescimento.

As forças econômico-sociais apontadas são as vinculadas às atividades urbano-industriais. E, sob este prisma, a opção ditatorial (37-45) se explica como a condição possível, dadas as circunstâncias externas e internas de desenvolvimento de um modelo capitalista-industrial dependente.

Em conseqüência do golpe é outorgada uma nova Constituição, que dispensava o sistema representativo, enquadrava os demais poderes, liquidava com o federalismo, com os governos estaduais, com a pluralidade sindical, etc. Um de seus artigos permitia ao governo aposentar ou demitir funcionários considerados contrários ao governo.

Quanto à educação, mantém a gratuidade e a obrigatoriedade do ensino primário, instituindo, em caráter obrigatório, o ensino de trabalhos manuais em todas as escolas primárias, normais e secundárias, e, sobretudo, dá providências ao programa de política escolar em termos de ensino pré-vocacional e profissional que se destina ‘às classes menos favorecidas e é, em matéria de educação, o primeiro dever do Estado’. Estabelece o regime de cooperação entre indústria e Estado.

Fica explicitada a orientação político-educacional capitalista de preparação de um maior contingente de mão-de-obra para as novas funções abertas pelo mercado.

O terror policial, a repressão violenta, as deportações impostas pela ditadura getulina à população foram os instrumentos de imposição de uma ‘paz interna’ sentida como necessária pelos grupos dominantes.

Os sacrifícios foram grandes, também pela dependência da economia brasileira em relação à internacional. Solicitações de capital estrangeiro são freqüentemente feitas e condições onerosas são impostas, fazendo com que haja descapitalização da economia nacional.

Em 09.04.1942 é decretada a reforma de ensino Capanema, relativa ao ensino secundário, refletindo o transplante da ideologia nazi-fascista já agora na organização escolar brasileira.

No final do período, como resultado do encaminhamento do conflito mundial, que vai deixando de ser uma luta entre trustes internacionais e se transformando em guerra dos povos pela liberdade contra os regimes que a colocavam em perigo, campanhas populares em favor da anistia e dos preceitos democráticos vão ganhando força internacional. Diante deste fato, Getúlio, percebendo a força desses grupos, acaba por decretar a anistia e concede a legalidade ao PCB, que cresce rapidamente.

Essas atitudes de G.V. no sentido de aproximação das massas para usa-las em favor de seus objetivos, faz com que a sua renúncia se imponha. Acrescenta-se a isso o fato de ele não ser simpático e nem simpatizar com os Estados Unidos.

Dutra representava a oportunidade dos ‘novos-ricos da política’, que eram aliados aos tradicionais grupos agrários, continuarem no poder sem Getúlio, que tomara certas medidas populares. É sob este prisma que o governo Dutra representa um recuo.

Em 1946 foi promulgada a 4.ª Constituição Republicana, que não diferia muito da de 1934. Afirmava os três poderes independentes, o presidencialismo, etc Foram eleitos 15 deputados federais pelo PCB que, entretanto, no ano seguinte foram cassados. Quanto à educação, reafirmava os princípios de ‘democratização’, sendo, entretanto, mais restrita quanto aos propósitos relativos à gratuidade.

As empresas ficam responsáveis pela educação de seus empregados menores e dos filhos dos empregados, se o número destes for superior a cem. A lei proverá a criação de institutos de pesquisa, de preferência junto aos estabelecimentos de ensino superior. É dada à União a competência de legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional.

A inflação, iniciada em 1942, marcou o governo Dutra, enriquecendo um pequeno grupo, já que os salários diminuem e os preços sobem assustadoramente. Os saldos das exportações não foram utilizados para fins produtivos, pelo contrário foram empregados para uma importação desbragada de mercadorias as mais inúteis... De tal modo que em fins de 1947 já estávamos devendo outra vez, voltando a tomar dinheiro emprestado.

Getúlio, em campanha, deixa claro que tentará empreender uma luta contra o imperialismo, a quem responsabilizava por sua deposição em 1945. Afirmava que defenderia o petróleo de poderosas forças estrangeiras. A segunda presidência de G.V. se caracteriza por forte influência de interesses financeiros e industriais, em conseqüência do intenso processo de capitalização e concentração capitalista.

Já no governo decide reiniciar a política de aproximação com as massas e entrega o Ministério do Trabalho a João Goulart, que se liga aos líderes sindicais, inaugurando a política conhecida como peleguismo. Fixou o salário mínimo. Sanciona a Lei n.º 2.004, que criou a Petrobrás.

Os três anos e meio do governo foram um dos mais agitados períodos da vida constitucional brasileira.A porcentagem destinada à educação e cultura sempre aumentou, sendo o aumento bastante

significativo no ano de 1955. O que, à primeira vista, indica uma prioridade de atenção. Mas as áreas militares, da Fazenda e da Viação e Obras Públicas consomem cerca de 80% das despesas.

85O aumento da porcentagem da educação e cultura propiciou um ataque ao problema da alfabetização,

provocando uma queda percentual, não a ponto de representar um decréscimo em números absolutos. A tendência à concentração da população nas zonas urbanas é uma realidade, agravando o problema do analfabetismo.

A ampliação da rede escolar é uma constante, tanto quanto ao pessoal docente como quanto à matrícula. Mesmo assim, não chega a atender a toda a população em idade escolar. Mais da metade da população em idade escolar continuava sem escola. O alto grau de seletividade e a reprovação acabam por levar ao abandono da escola (evasão). A matrícula na 4.ª série é 16,5% em relação aos matriculados na 1ª série. Apenas 20,9% dos que iniciam o curso, concluem-no quatro anos depois.

A melhor formação do professor e a organização de classes menos numerosas não apresentam mudança significativa. O ensino médio continua atendendo a uma população bastante reduzida em comparação com a do ensino elementar. O ensino industrial apresentou o maior crescimento de matrícula. O ensino comercial foi o segundo em crescimento no período.

Durante o primeiro período da política getulina (30-45) a atenção esteve mais voltada para os níveis elementar e médio que para o superior. Na década seguinte apresenta tendência de ampliação marcante em todos os aspectos.

TEORIA EDUCACIONAL

Um significativo avanço é constatado através da tomada de medidas que visam concretizar o princípio de ser traçada uma política educacional de âmbito nacional. Cria-se uma série de órgãos – Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (1938), Serviço Nacional de Radiodifusão Educativa (1939), Instituto Nacional do Cinema Educativo (1937), Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (1937), Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (1942), Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (1946), Conselho Nacional de Pesquisa (1951), Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (1951)...

Tem início o trabalho de elaboração de lei de diretrizes e bases da educação nacional (1948). Transformar-se-ia em lei 13 anos depois. A reforma Capanema, já mencionada, vigorou até a aprovação da LDB de 20.12.1961.

PERÍODO DE 1955 A 1968 - PERÍODO ANTERIOR AO GOLPE DE 1964

Em 1954 temos o suicídio de Getúlio Vargas, levado ao isolacionismo político. As eleições são realizadas e vence a dupla Juscelino Kubitschek de oliveira/João Goulart, com o programa de fazer o Brasil progredir ’50 anos em 5’. Contaram com o apoio de vários setores, entre os quais a burguesia industrial, agrária, o operariado sindicalizado e as forças nacionalistas.

Após várias tentativas de impedimento da posse, esta foi garantida através de um golpe liderado pelo general Lott, em novembro de 1955. O presidente eleito toma posse em 31 de janeiro de 1956. Juscelino estabelece uma real liberdade política. Há, no período, grande fluxo de capitais estrangeiros. Ênfase na produção de equipamentos, bens de consumo duráveis e produtos químicos.

Desta forma, os anos de 1956 a 1961 constituíram o período ‘áureo’ do desenvolvimento econômico, aumentando as possibilidades de emprego, mas concentrado os lucros.

Verifica-se, na prática, que uma Nação rica não faz, necessariamente, um povo rico. A maioria da região nordestina ficou mais pobre ainda. Não se abriu o mercado interno exigido. O capital estrangeiro entra em condições privilegiadas, com sacrifício do capital nacional (desnacionalização da burguesia industrial).

Essa política leva a um aguçamento dos dilemas enfrentados pelo Brasil, provocando novo período de intensa crise. É sob este prisma que se deve entender a eleição, o governo e a renúncia de Jânio, bem como o governo e a queda de João Goulart.

O movimento de princípio de 1964 foi desencadeado pelos grupos que acreditavam na convivência da compatibilização, mantendo a orientação econômica (com base no capital externo) e mudando a orientação política (abandono do nacional-desenvolvimentismo em benefício de um modelo associado).

Houve um aumento percentual nas despesas com a educação e cultura. Houve melhora com relação ao problema do analfabetismo, que aumenta em números absolutos.

A concentração da população nas zonas urbanas e suburbanas continua, atingindo, no ano de 1970, mais da metade da população (56%). A sociedade brasileira, nos últimos 20 anos, trocou sua base econômica agrícola pela industrial. A simples alfabetização já não basta.

As grandes massas rurais que a partir de 1960 migraram para as cidades, aí permaneceram analfabetas, formando o colossal contingente de marginalizados na periferia das metrópoles.

86Continua a ampliação da rede escolar, tanto quanto ao pessoal docente como à matrícula. Na década

de 55-65 ela mais do que dobrou. Um contingente de 40% do total dos professores não é formado. A evasão diminui.

O atendimento no ensino médio ainda é reduzido. Houve mais do que duplicação de capacidade no ensino superior, tanto no que diz respeito ao pessoal docente como à matrícula efetiva. No entanto a matrícula do ensino superior em relação à do elementar continua reduzida (1,7%).

O aumento percentual nos recursos financeiros dedicados à educação não chegou a ser suficiente para a superação da seletividade ainda intensa que caracteriza a escola brasileira.

TEORIA EDUCACIONAL (58-61)

Choque entre a escola pública e a escola particular. Do ponto de vista pedagógico, a Igreja Católica acusa a escola pública de instruir, mas não educar. Os defensores da escola pública rebatiam tal argumentação: o educador deve estar interessado na determinação dos fins da educação, quanto também dos meios de realizá-los.

Os movimentos de educação popular surgem na primeira metade da década dos anos 60. O objetivo mais amplo era o de que a população adulta tomasse parte ativa na vida política do país. Podem ser citados os movimentos: Centros Populares de Cultura, os Movimentos de Cultura Popular e o Movimento de Educação de Base.

Surgem novos quadros teóricos destes movimentos. Destaca-se Paulo Freire, com ‘Educação como prática da liberdade’(1975).

O GOLPE MILITAR DE 1964

Período do Marechal Castelo Branco (64-67), período do Marechal Costa e Silva (67-69). Período de perseguições. AI -1. SNI (Golbery do Couto e Silva). IPM...

O uso da tortura como instrumento de obtenção de “confissões” generalizou-se e aprimorou-se – a arte de espancar sem deixar marcas. Em especial, para aqueles que se dedicam ao campo da educação, ler: ‘Brasil: nunca mais’, vários autores, ed. Vozes, 1985.

O AI-1 (10.04.64), dava o direito ao governo de cassar mandatos e suspender direitos políticos sem necessidade de justificação, julgamento ou direito de defesa. O AI-2 (27.10.64), acaba com as eleições diretas para presidente e governador; acaba com os partidos políticos e impõe o bipartidarismo (Arena e MDB); O AI-3 (05.02.66), estabelece normas para as eleições; O AI-4 (06.12.66), estabelece as condições em que seria votado pelo Congresso o projeto de Constituição elaborado pelo Executivo (promulgada em 24.01.67). Foram mudadas, a Lei de Imprensa e a Lei de Segurança Nacional.

Estabeleceu-se uma política anticomunista, antidemocrática, anti-reformista, anti-desenvolvimentista e pró-americana. Reformulou-se a Lei de Remessas de Lucros, eliminando o limite de remessa de 10% e deixando de especificar o que era considerado’capital estrangeiro’. Assinatura em Washington da Lei de Investimentos para evitar novas encampações de propriedades norte-americanas... Aumento dos impostos, restrições de crédito bancário, arrocho salarial. Proibição do direito de greve, fim da estabilidade no emprego (FGTS).

As pequenas e médias empresas, de capital de origem nacional e maiores empregadoras, entram em falência ou são absorvidas pelas grandes empresas multinacionais. A taxa de desemprego atinge índices de 1930.

Analisando os atos (e não os discursos) dos governos militares verifica-se que o golpe representou a possibilidade de instalação, pela força, de um Estado que tinha como tarefa concreta a diminuição dos obstáculos à expansão do capitalismo internacional.

A ampliação das matrículas do ensino elementar apresenta um ritmo menor à ocorrida durante os dez anos anteriores. Diminuiu a evasão. Verifica-se uma tendência de ampliação do ensino médio.

Ampliação do pessoal docente menos intensa que a ampliação de matrícula. Aumenta a matrícula no ensino superior.

Estes dados evidenciam a intensidade do grau de seletividade que caracteriza a organização escolar brasileira.

O terror político também atingiu imediatamente o campo educacional.A Universidade de Brasília foi invadida em 09.04.1964, professores e alunos foram presos. Professores

foram ‘cassados’. O Plano Nacional de Alfabetização foi extinto (14.04.64).

TEORIA EDUCACIONAL

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O governo passa a tomar iniciativas para um novo ordenamento legal das atividades educacionais em seus diferentes níveis:

É firmado acordo do MEC com a United States Agency International for Developement (USAID). A União Nacional dos Estudantes (UNE) denuncia os mecanismos de subordinação da educação aos interesses norte-americanos. O então deputado Márcio Moreira Alves publica, em 1968, o livro ‘Beabá dos MEC/USAID’, tornando público o conteúdo dos projetos em andamento.

É criado o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), em 67, mas que só tem suas atividades regularmente iniciadas em setembro de 70. Se antes de 64 o que motivava vários grupos a descobrirem meios de alfabetizar a população adulta era a convicção de que a alfabetização era um instrumento indispensável, mesmo que não suficiente, à participação ativa na política do país, com o Mobral é feita a vinculação imediata da alfabetização com a ‘participação’ na vida econômica – possibilidade de emprego como assalariado em um novo modelo de acumulação acelerada do capital internacional.

É aprovada a Lei n.º 5.540/68 que fixa normas de organização e funcionamento do ensino superior e sua articulação com a escola média. A Lei busca responder a uma necessidade de encontrar maneiras para expandir esse nível de ensino com o mínimo de custo – departamentalização, matrícula por disciplina, curso básico, institucionalização da pós-graduação.

É aprovada a Lei n.º 5.692/71 que fixa diretrizes e bases para o ensino de 1.º e 2.º graus.Há, por trás dessa intervenção na educação, uma concepção tecnicista em educação, especialmente

em sua expressão na chamada ‘teoria do capital humano’. Temos também que dar conta da concepção crítico - reprodutivista, enquanto crítica à concepção tecnicista. E temos, ainda, que dar conta da crítica ao próprio ‘reprodutivismo’.

Os interesses das minorias, responsáveis pelo golpe, marcaram os textos das leis e os efeitos práticos, com suas posições conservadoras e ‘modernizantes’.

Luiz A. R. da Cunha (1975), no livro Educação e desenvolvimento social no Brasil, contribui para desfazer as ilusões do liberalismo que fundamenta as concepções ‘humanista’ tradicional e ‘humanista’ moderna, assim como as ilusões da teoria do capital humano. Ele também aponta o fato de que a ampliação de quatro para oito anos de tempo de escolaridade obrigatória está relacionado ao discurso do Brasil-potência. Para tanto, não só o analfabetismo era um obstáculo, mas também a baixa média de escolaridade, ou seja, de permanência na escola.

Dermeval Saviani, no seu livro Educação: do senso comum à consciência filosófica, faz uma análise crítica da organização escolar brasileira através das Leis 5.540/68 e 5.692/71. Ele demonstra que a ênfase é na quantidade e não na qualidade, nos métodos (técnicas) e não nos fins (ideais), na adaptação e não na autonomia, na formação profissional em detrimento da cultura geral. É a preocupação com o aprimoramento técnico, com a eficiência e a produtividade.

Numa sociedade que, tornada nação dependente, no início do século XIX (1822), e que a partir das primeiras décadas do século XX, passa a desenvolver também uma base industrial (produto da necessidade de adaptação aos interesses do regime capitalista internacional), constata-se que a cada década vai aumentando a pressão de significativos setores da população brasileira no sentido do ingresso e permanência na escola.

Esta pressão tem origem, num primeiro momento, mais nos setores médios, mas vai se intensificando com a presença de setores populares, na busca pela escola e pela conseqüente ampliação das unidades escolares, da matrícula e do número de professores.

As transformações no modo de produção da vida material provocam o aparecimento de ‘novas’ forças sociais, que se organizam e se articulam provocando mudanças. A educação passa a ser entendida como dever do Estado.

Mudanças que, na educação, são mais de ordem quantitativa do que qualitativa. E por ser de ordem prioritariamente quantitativa, amplia, agrava, os problemas já tradicionais: o não atendimento da maioria, a evasão e a repetência.

Uma vez que não se resolvem as questões de qualidade sem se resolverem as de quantidade, nosso trabalho deve ser: no sentido de alterar as condições de vida da maioria da população, para que ela possa sustentar seus filhos na escola, assim como, no sentido de mudar a escola, a fim de que em seu interior desenvolvam-se atividades que interessam a essa mesma população.

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2 - FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO EXCLUSÃO

A nossa organização escolar não atende à maioria da população, e continuam elevados os índices de repetência e evasão, com a conseqüente distorção ‘idade–série’. Como as teorias da educação se posicionam diante dessa realidade? Grosso modo, podemos dizer que, no que diz respeito à questão da exclusão, as teorias educacionais podem ser classificadas em dois grupos.

Num primeiro grupo, temos aquelas teorias que entendem ser a educação um instrumento de equalização social, portanto, de superação da marginalidade13. Num segundo grupo, estão as teorias que entendem ser a educação um instrumento de discriminação social, logo, um fator de marginalização.

Ambos os grupos explicam a questão da exclusão a partir de terminada maneira de entender as relações entre educação e sociedade.

O primeiro grupo de teorias concebe a sociedade como sendo harmoniosa, e a marginalidade como um desvio, uma distorção que deve ser corrigida. A educação emerge aí, como um instrumento de correção dessas distorções, como forças homogeneizadora que tem por função reforçar os laços sociais, promover a coesão e garantir a integração de todos os indivíduos no corpo social.

No que diz respeito às relações entre educação e sociedade, concebe-se a educação com uma ampla margem de autonomia em face da sociedade. Ela pode garantir a construção de uma sociedade igualitária.

O segundo grupo concebe a sociedade como sendo marcada pela divisão entre classes antagônicas que se relacionam à base da força, e a marginalidade como um fenômeno inerente à própria estrutura da sociedade. Isto porque o grupo que detém maior força se converte em dominante se apropriando dos resultados da produção social tendendo, em conseqüência, a relegar os demais à condição de excluídos.

Nesse contexto a educação é entendida como inteiramente dependente da estrutura social geradora de marginalidade, cumprindo aí a função de reforçar a dominação e legitimar a marginalização. Reproduz a marginalidade social produzindo marginalidade cultural e, especificamente, escolar.

1. AS TEORIAS ‘NÃO – CRÍTICAS’:Encaram a educação como autônoma e buscam compreendê-la a partir dela mesma.

1.1 A PEDAGOGIA TRADICIONALOs sistemas nacionais de ensino datam do início do século XIX, e sua organização inspirou-se no

princípio de que a educação é direito de todos e dever do Estado. O direito de todos decorria do tipo de sociedade correspondente aos interesses da nova classe que se consolidara no poder: a burguesia.

Tratava-se de construir uma sociedade democrática, de consolidar a democracia burguesa. Para superar a situação de opressão, própria do ‘Antigo Regime’, e ascender a um tipo de sociedade fundada no contrato social, era necessário vencer a barreira da ignorância. Como realizar essa tarefa? Através do ensino.

A escola é erigida, pois, no grande instrumento para converter os súditos em cidadãos. Nesse quadro, a causa da marginalidade é identificada com a ignorância. A escola surge como um antídoto à ignorância. Seu papel é difundir a instrução, transmitir os conhecimentos acumulados pela humanidade e sistematizados logicamente. O mestre-escola será o artífice dessa grande obra.

A escola se organiza, pois, como uma agência centrada no professor, o qual transmite o acervo cultural aos alunos. A estes cabe assimilar os conhecimentos que lhes são transmitidos. Como as iniciativas cabiam ao professor, o essencial era contar com um professor razoavelmente bem preparado.

Progressivamente percebeu-se que a referida escola, além de não conseguir realizar seu desiderato de universalização, ainda teve de curvar-se ante o fato de que nem todos os bem sucedidos se ajustavam ao tipo de sociedade que se queria consolidar. Começaram, então, a se avolumar críticas a essa teoria que passa a ser chamada de ‘escola tradicional’.

1.2 A PEDAGOGIA NOVAAs críticas à pedagogia tradicional foram, aos poucos, dando origem a uma outra teoria da educação.

Esta teoria mantinha a crença no poder da escola e em sua função de equalização social. Se a escola não vinha cumprindo essa função, tal fato se devia a que o tipo de escola implantado se revelara inadequado.

13 Marginal – no sentido de quem está à margem da sociedade, sem escola, sem teto, sem ter o que comer

89Toma corpo um amplo movimento de reforma cuja expressão mais típica ficou conhecida como

‘escolanovismo’. O ‘escolanovismo’ tem como ponto de partida a escola tradicional já implantada segundo as diretrizes

da teoria da educação que ficou conhecida como pedagogia tradicional. Começa, pois, a efetuar a crítica da pedagogia tradicional, esboçando uma nova maneira de interpretar a educação e ensaiando implantá-la, primeiro, através de experiências restritas; depois, advogando sua generalização no âmbito dos sistemas escolares.

Segundo essa teoria, a marginalidade (exclusão) deixa de ser vista predominantemente sob o ângulo da ignorância, isto é, o não domínio de conhecimentos. O ‘excluído’ (marginalizado) já não é o ignorante, mas o rejeitado. Alguém está integrado não quando é ilustrado, mas quando se sente aceito pelo grupo e, através dele, pela sociedade.

É interessante notar que alguns dos principais representantes da ‘pedagogia nova’ se converteram à pedagogia a partir da preocupação com os ‘anormais’ (Decroly, Montessori,...). Nota-se uma espécie de bio-psicologização da sociedade, da educação e da escola. Ao conceito de ‘anormalidade biológica’ construído a partir da constatação de deficiências neurofisiológicas se acrescenta o conceito de ‘anormalidade psíquica’ detectada através dos testes de inteligência, de personalidade, etc.

Forja-se uma pedagogia que advoga um tratamento diferente a partir das ‘diferenças’ individuais. Os homens são essencialmente diferentes; não se repetem; cada indivíduo é único. Portanto, a marginalidade não pode ser explicada pelas diferenças, quaisquer que sejam elas: não apenas diferenças de raça, de credo, de classe, o que já era defendido pela pedagogia tradicional; mas também diferenças no domínio do conhecimento, na participação do saber, no desempenho cognitivo.

Marginalizados são os desajustados e desadaptados de todos os matizes. Mas a ‘anormalidade’ não é algo, em si, negativo; ela é, simplesmente, uma diferença. Não é, pois, suficiente para caracterizar a marginalidade.

A educação, enquanto fator de equalização social será um instrumento de correção, na medida em que cumprir sua função de ajustar, de adaptar os indivíduos à sociedade, incutindo neles o sentimento de aceitação dos demais e pelos demais.

A educação será um instrumento de correção da marginalidade na medida em que contribuir para a constituição de uma sociedade cujos membros, não importam as diferenças de quaisquer tipos, se aceitem mutuamente e se respeitem na sua individualidade específica.

Compreende-se, então, que essa maneira de entender a educação, por referência à pedagogia tradicional tenha deslocado o eixo da questão pedagógica do intelecto para o sentimento; do aspecto lógico para o psicológico; dos conteúdos cognitivos para os métodos ou processos pedagógicos; do professor para o aluno; do esforço para o interesse; da disciplina para a espontaneidade; do diretivismo para o não-diretivismo; da quantidade para a qualidade; de uma pedagogia de inspiração filosófica centrada na ciência da lógica para uma pedagogia de inspiração experimental baseada principalmente nas contribuições da biologia e da psicologia.

Em suma, trata-se de uma teoria pedagógica que considera que o importante não é aprender, mas aprender a aprender.

Para isso a organização escolar teria de passar por uma sensível reformulação: em lugar de classes confiadas a professores que dominavam as grandes áreas do conhecimento revelando-se capazes de colocar os alunos em contato com os grandes textos que eram tomados como modelos a serem imitados e progressivamente assimilados pelos alunos, a escola deveria agrupar os alunos segundo áreas de interesses decorrentes de sua atividade livre.

O professor agiria como um estimulador e orientador da aprendizagem cuja iniciativa principal caberia aos próprios alunos. Tal aprendizagem seria uma decorrência espontânea do ambiente estimulante e da relação viva que se estabeleceria entre os alunos, sem o que a relação interpessoal, essência da atividade educativa, ficaria dificultada; e num ambiente estimulante, portanto, dotado de materiais didáticos, bibliotecas de classe, etc.

Em suma, a feição das escolas mudaria seu aspecto sombrio, disciplinado, silencioso e de paredes opacas, assumindo um ar alegre, movimentado, barulhento e multicolorido.

O tipo de escola acima descrito não conseguiu alterar significativamente o panorama organizacional dos sistemas escolares. Além do que implica em custos bem mais elevados.

Com isso a ‘Escola Nova’ organizou-se basicamente na forma de escolas experimentais ou como núcleos raros, muito bem equipados e circunscritos a pequenos grupos de elite.

No entanto o ‘ideário escolanovista’ penetrou nas cabeças dos educadores também nas amplas redes escolares oficiais, organizadas na forma tradicional. As conseqüências foram mais negativas do que positivas.

Provocaram o afrouxamento da disciplina e a despreocupação com a transmissão de conhecimentos. Acabou por rebaixar o nível do ensino destinado às camadas populares, as quais muito freqüentemente tem na escola o único meio de acesso ao conhecimento elaborado. Em contrapartida, a ‘Escola Nova’ aprimorou a qualidade do ensino destinado às elites.

90Vê-se que, em lugar de resolver o problema da exclusão, a ‘Escola Nova’ o agravou. Ao enfatizar a

qualidade do ensino, ela deslocou o eixo de preocupação do âmbito político (relativo à sociedade em conjunto) para o âmbito técnico-pedagógico (relativo ao interior da escola), cumprindo ao mesmo tempo uma dupla função: manter a expansão da escola em limites suportáveis pelos interesses dominantes e desenvolver um tipo de ensino adequado a esses interesses.

É a esse fenômeno que Dermeval Saviani, no seu livro Educação: do senso comum à consciência filosófica, denomina de “mecanismo de recomposição da hegemonia da classe dominante”.

O ideário da pedagogia nova ao mesmo tempo em que procurava evidenciar as ‘deficiências’ da escola tradicional, dava força à idéia segundo a qual é melhor uma boa escola para poucos do que uma escola deficiente para muitos.

1.3 A PEDAGOGIA TECNICISTAAo findar a primeira metade do século XX as esperanças depositadas na reforma da escola resultaram

frustradas. A pedagogia nova ao mesmo tempo em que se tornava dominante enquanto concepção teórica (a tal ponto que se tornou senso comum o entendimento segundo o qual a pedagogia nova é portadora de todas as virtudes e de nenhum vício, ao passo que a pedagogia tradicional é portadora de todos os vícios e de nenhuma virtude), na prática se revelou ineficaz em face da questão da exclusão.

Assim, de um lado surgiam tentativas de desenvolver uma espécie de “Escola nova Popular”, cujos exemplos mais significativos são as pedagogias de Freinet e de Paulo Freire; de outro lado, radicalizava-se a preocupação com os métodos pedagógicos presentes no escolanovismo que acaba por desembocar na eficiência instrumental. Articula-se aqui uma nova teoria educacional: a pedagogia tecnicista.

A partir do pressuposto da neutralidade científica e inspirada nos princípios de racionalidade, eficiência e produtividade, essa pedagogia advoga a reordenação do processo educativo de maneira a torná-lo objetivo e operacional.

Com efeito, se no artesanato o trabalho era subjetivo, isto é, os instrumentos de trabalho eram dispostos em função do trabalhador e este dispunha deles segundo seus desígnios, na produção fabril essa relação é invertida. Aqui é o trabalhador que deve se adaptar ao processo de trabalho, já que este foi objetivado e organizado na forma parcelada.

Nessas condições, o trabalhador ocupa seu posto na linha de montagem e executa determinada parcela do trabalho necessário para produzir determinados objetos. O produto é uma decorrência da forma como é organizado o processo. O concurso das ações de diferentes sujeitos produz assim um resultado com o qual nenhum dos sujeitos se identifica e que, ao contrário, lhes é estranho.

Buscou-se planejar a educação de modo a dotá-la de uma organização racional capaz de minimizar as interferências subjetivas que pudessem pôr em risco sua eficiência. Para tanto, era mister operacionalizar os objetivos e, pelo menos em certos aspectos, mecanizar o processo.

Daí a proliferação de propostas pedagógicas tais como o enfoque sistêmico, o tele-ensino, a instrução programada, etc. Daí, também, o parcelamento do trabalho pedagógico com a especialização de funções, postulando-se a introdução no sistema de ensino de técnicos dos mais diferentes matizes. Daí, enfim, a padronização do sistema de ensino a partir de esquemas de planejamento previamente formulados aos quais devem se ajustar as diferentes modalidades de disciplinas e práticas pedagógicas.

Se na pedagogia tradicional a iniciativa cabia ao professor que era, ao mesmo tempo, o sujeito do processo, o elemento decisivo é decisório; se na pedagogia nova a iniciativa desloca-se para o aluno, situando-se o nervo da ação educativa na relação professor-aluno, portanto, relação interpessoal, intersubjetiva – na pedagogia tecnicista, o elemento principal passa a ser a organização racional dos meios, ocupando professor e aluno posição secundária, relegados que são à condição de executores de um processo cuja concepção, planejamento, coordenação e controle ficam a cargo de especialistas supostamente habilitados, neutros, objetivos, imparciais.

A organização do processo converte-se na garantia da eficiência, compensando e corrigindo as deficiências do professor e maximizando os efeitos de sua intervenção. Cumpre notar que, enquanto na pedagogia nova os meios estão a serviço da relação professor-aluno, na pedagogia tecnicista a situação se inverte.

Enquanto na pedagogia nova são os professores e alunos que decidem se utilizam ou não determinados meios, bem como quando e como o farão, na pedagogia tecnicista dir-se-ia que é o processo que define o que professores e alunos devem fazer, e assim também quando e como o farão.

Para a pedagogia tecnicista a marginalidade não será identificada com a ignorância nem será detectada a partir do sentimento de rejeição. Marginalizado será o incompetente (no sentido técnico da palavra), isto é, ineficiente e improdutivo.

A educação estará contribuindo para superar o problema da exclusão na medida em que formar indivíduos eficientes, portanto, capazes de darem sua parcela de contribuição para o aumento da produtividade da sociedade. Assim, estará ela cumprindo sua função de equalização social.

91Nesse contexto teórico, a equalização social é identificada com o equilíbrio do sistema (no sentido do

enfoque sistêmico). A marginalidade, isto é, a ineficiência e a improdutividade se constituem numa ameaça à estabilidade do sistema.

Cabe à educação proporcionar um eficiente treinamento para a execução das múltiplas tarefas demandadas continuadamente pelo sistema social. Sua base de sustentação teórica desloca-se para a psicologia behaviorista, a engenharia comportamental, a ergonomia, informática, cibernética, que têm em comum a inspiração filosófica neopositivista e o método funcionalista.

Do ponto de vista pedagógico conclui-se, pois, que se para a pedagogia tradicional a questão central é aprender e para a pedagogia nova aprender a aprender, para a pedagogia tecnicista o que importa é aprender a fazer.

À teoria pedagógica tecnicista corresponde uma reorganização das escolas que passam por um crescente processo de burocratização (formulários). Na verdade, ao ensaiar transpor para a escola a forma de funcionamento do sistema fabril, perdeu de vista a especificidade da educação, ignorando que a articulação entre escola e processo produtivo se dá de modo indireto e através de complexas mediações.

Na prática educativa, a orientação tecnicista se cruzou com as condições tradicionais predominantes nas escolas bem como com a influência da pedagogia nova que exerceu poderoso atrativo sobre os educadores. Nessas condições, a pedagogia tecnicista acabou por contribuir para aumentar o caos no campo educativo gerando tal nível de descontinuidade, de heterogeneidade e de fragmentação, que praticamente inviabiliza o trabalho pedagógico.

Com isso o problema da exclusão só tendeu a se agravar: o conteúdo do ensino tornou-se ainda mais rarefeito e a relativa ampliação das vagas se tornou irrelevante em face dos altos índices de evasão e repetência. Diante da situação acima, houve desvio de parcela considerável dos escassos recursos destinados à educação das atividades-fim para as atividades-meio.

Programas internacionais de implantação de tecnologias de ensino na América Latina tinham por detrás outros interesses como, por exemplo, a venda de artefatos tecnológicos obsoletos.

Resumindo – este grupo de teorias concebe a marginalidade (exclusão) como um desvio, tendo a educação por função a correção desse desvio. A marginalidade é vista como um problema social e a educação, que dispõe de autonomia em relação à sociedade, estaria, por esta razão, capacitada a intervir eficazmente na sociedade, transformando-a, tornando-a melhor, corrigindo as injustiças; em suma, promovendo a equalização social. Essas teorias consideram, pois, apenas a ação da educação sobre a sociedade. Desconhecem as determinações sociais do fenômeno educativo.

2. AS TEORIAS ‘CRÍTICO–REPRODUTIVISTAS’: São críticas, uma vez que se empenham em compreender a educação remetendo-a sempre a seus

condicionantes objetivos, isto é, aos determinantes sociais, vale dizer, à estrutura sócio-econômica que condiciona a forma de manifestação do fenômeno educativo. Como, porém, entendem que a função básica da educação é a reprodução da sociedade, são reprodutivas.

As teorias deste grupo são críticas, uma vez que postulam não ser possível compreender a educação senão a partir dos seus condicionantes sociais. Há, pois, nessas teorias uma cabal percepção da dependência da educação em relação à sociedade. Chegam, invariavelmente, à conclusão de que a função própria da educação consiste na reprodução da sociedade em que ela se insere.

Tais teorias consideram que a escola tinha uma função equalizadora, entretanto ela se tornou, na prática, mais discriminadora e repressiva: todas as reformas escolares fracassaram, tornando cada vez mais evidente o papel que a escola desempenha: reproduzir a sociedade de classes e reforçar o modo de produção capitalista. No âmbito desse grupo, as teorias que maior repercussão tiveram e que alcançaram um maior nível de elaboração são as seguintes:

2.1 TEORIA DO SISTEMA DE ENSINO ENQUANTO VIOLÊNCIA SIMBÓLICA

Esta teoria está desenvolvida na obra ‘A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino’, de P. Bourdieu e J.C. Passeron (2 volumes, 1975). Não se trata de uma análise da educação como fato social, mas da explicitação das condições lógicas de possibilidade de toda e qualquer educação para toda e qualquer sociedade de toda e qualquer época ou lugar.

Trata-se de uma teoria axiomática que se desdobra dedutivamente dos princípios universais para os enunciados analíticos de suas conseqüências particulares. Por isso, cada grupo de proposições começa sempre por um enunciado universal (todo poder de violência..., toda ação pedagógica, etc.) e termina por uma aplicação particular (uma formação social determinada).

No intuito de preservar a validade universal da teoria, os autores têm o cuidado de utilizar sempre a expressão ‘grupos’ ou ‘classes’, jamais se referindo apenas às classes simplesmente - o que indica que a

92validade da teoria não pretende se circunscrever apenas às sociedades de classes, mas se estende também às sociedades sem classes, que porventura existiram ou venham a existir.

Em suma, o axioma fundamental, que enuncia a teoria geral da violência simbólica, se aplica ao sistema de ensino que é definido, pois, como uma modalidade específica de violência simbólica através de proposições intermediárias que tratam, sucessivamente, da ação pedagógica, da autoridade pedagógica e do trabalho pedagógico.

Os autores tomam como ponto de partida que toda e qualquer sociedade estrutura-se como um sistema de relações de força material entre grupos ou classes. Sobre a base da força material e sob sua determinação erige-se um sistema de relações de força simbólica cujo papel é reforçar, por dissimulação, as relações de força material.

Todo poder de violência simbólica, isto é, todo poder que chega a impor significações como legítimas, dissimulando as relações de força que estão na base de sua força, acrescenta sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a essas relações de força. Vê-se que o reforçamento da violência material se dá pela sua conversão ao plano simbólico onde se produz e reproduz o reconhecimento da dominação e de sua legitimidade pela dissimulação de seu caráter de violência explícita. À violência material (dominação econômica) corresponde a violência simbólica (dominação cultural).

A violência simbólica se manifesta de múltiplas formas: a formação da opinião pública através dos meios de comunicação de massa; a pregação religiosa; a atividade artística e literária; a propaganda e a moda; a educação familiar, etc.

Partindo da teoria geral da violência simbólica, os autores buscam explicitar a ação pedagógica como imposição arbitrária da cultura dos grupos ou classes dominantes aos grupos ou classes

dominados. Essa imposição, para se exercer, implica necessariamente a autoridade pedagógica, isto é, um poder arbitrário de imposição que se encontra objetivamente reconhecido como autoridade legítima.

A ação pedagógica que se exerce através da autoridade pedagógica se realiza através do trabalho pedagógico entendido como ‘trabalho de inculcação’, que deve se tornar um habitus, capaz de perpetuar-se após a cessação da ação pedagógica.

A ação pedagógica se exerce no quadro de uma instituição escolar que reproduz a cultura dominante, contribuindo desse modo para reproduzir a estrutura das relações de força.

A teoria não deixa margem a dúvidas. A função da educação é a de reprodução das desigualdades sociais. Pela reprodução cultural, ela contribui especificamente para a reprodução social. Marginalizados socialmente são os grupos ou classes dominados. Excluídos socialmente porque não possuem força material (capital econômico) e excluídos culturalmente porque não possuem força simbólica (capital cultural).

Segundo esta teoria, toda a tentativa de utilizar a educação como instrumento de superação da marginalidade não é apenas uma ilusão, é a forma através da qual ela dissimula.

2.2 TEORIA DA ESCOLA ENQUANTO APARELHO IDEOLÓGICO DE ESTADO

Althusser distingue os Aparelhos Repressivos de Estado (o governo, a Administração, o Exército, a Polícia, os Tribunais, as Prisões, etc.) e os Aparelhos Ideológicos de Estado que ele enumera da seguinte forma: o AIE religioso (igrejas); o AIE escolar (escolas públicas e particulares); o AIE familiar; o AIE jurídico; o AIE político (partidos); o AIE sindical (sindicatos e centrais sindicais); o AIE da informação e o AIE cultural (letras, belas artes, desportos, etc.).

O Aparelho Repressivo de Estado funciona massivamente pela violência e secundariamente pela ideologia; os Aparelhos Ideológicos de Estado funcionam massivamente pela ideologia e secundariamente pela repressão.

O conceito ‘Aparelho Ideológico de Estado’ deriva da tese segundo a qual ‘a ideologia tem uma existência material’: a ideologia existe sempre radicada em práticas materiais reguladas por rituais materiais definidos por instituições materiais. Em suma, a ideologia se materializa em aparelhos ideológicos de Estado.

Sendo Althusser o aparelho ideológico de Estado colocado em posição dominante nas formações capitalistas é o Aparelho Ideológico Escolar. A escola constitui o instrumento mais acabado de reprodução das relações de produção de tipo capitalista.

O fenômeno da exclusão, nesse contexto, se inscreve no próprio seio das relações de produção capitalista que se funda na expropriação dos trabalhadores pelos capitalistas. Marginalizado é, pois, a classe trabalhadora.

O AIE escolar constitui um mecanismo construído pela burguesia para garantir e perpetuar seus interesses. Se algumas teorias (1.º grupo) desconhecem essas determinações objetivas e imaginam que a escola possa cumprir o papel de correção da marginalidade, isso se deve simplesmente ao fato de que aquelas teorias são ideológicas, isto é, dissimulam, para reproduzi-las, as condições de marginalidade em que vivem as camadas trabalhadoras.

93

2.3 Teoria da Escola DualistaEssa teoria elaborada por C. Baudelot e R. Establet e exposta no livro ‘L’école capitaliste em France’,

de 1971, se empenha em mostrar que a escola, em que pese a aparência unitária e unificadora, é uma escola dividida em duas grandes redes - uma rede de escolarização secundária superior (SS) e uma rede de escolarização primária profissional (PP) -, as quais correspondem à divisão da sociedade capitalista em duas classes fundamentais: a burguesia e o proletariado.

Estas duas redes constituem, pelas relações que as definem, o aparelho escolar capitalista. Este aparelho é um aparelho ideológico do Estado capitalista, que contribui, pela parte que lhe cabe, a reproduzir as relações de produção capitalistas, quer dizer em definitivo a divisão da sociedade em classes, em proveito da classe dominante. É a divisão da sociedade que explica a existência das duas redes e os mecanismos de seu funcionamento, suas causas e seus efeitos.

É a mesma ideologia dominante que é imposta a todos os alunos sob formas necessariamente incompatíveis. Esta teoria retoma o conceito de Althusser (Aparelho ideológico de Estado), definindo o parelho escolar como ‘unidade contraditória de duas redes de escolarização’. Enquanto aparelho ideológico, a escola cumpre duas funções básicas: contribui para a formação da força de trabalho no próprio processo de inculcação da ideologia burguesa. E a inculcação da ideologia burguesa é feita, de forma concomitante com o recalcamento, a sujeição e o disfarce da ideologia proletária.

A ideologia proletária tem origem e existência fora da escola, isto é, nas massas operárias e em suas organizações. Considerando que o proletariado dispõe de força autônoma e forja, na prática da luta suas próprias organizações e sua própria ideologia, a escola tem por missão ‘impedi-la’ de se desenvolver. Para isso ela qualifica o trabalho intelectual e desqualifica o trabalho manual.

Baudelot e Establet entendem que a escola, enquanto aparelho ideológico, é um instrumento da burguesia na luta ideológica contra o proletariado. A possibilidade de que a escola se constitua num instrumento de luta do proletariado fica descartada.

Resumindo – Os estudos críticos-reprodutivistas tiveram o mérito de pôr em evidência o comprometimento da educação com os interesses dominantes, mas também contribuíram para disseminar entre os educadores um clima de pessimismo e de desânimo que, evidentemente, só poderia tornar ainda mais remota a possibilidade de articular os sistemas de ensino com os esforços de superação do problema da marginalidade (exclusão).

Enquanto as teorias não-críticas pretendem ingenuamente resolver o problema da marginalidade através da escola (poder ilusório), as teorias crítico-reprodutivistas pretendem explicar a razão do suposto fracasso da escola.

O aparente fracasso é, na verdade, o êxito da escola: sendo um instrumento de reprodução das relações de produção a escola na sociedade capitalista reproduz a dominação e exploração.

Em ambos os grupos a História é sacrificada. No primeiro grupo, sacrifica-se a História na idéia em cuja harmonia se pretende anular as contradições do real. No segundo grupo, a História é sacrificada na reificação da estrutura social em que as contradições ficam aprisionadas.

Educação compensatóriaUma proposta educativa que pode ser confundida com os interesses populares, intimamente ligada à

questão da exclusão, é a chamada “educação compensatória”, estratégia acionada para ‘superar’ o problema da marginalidade na medida em que se propõe nivelar as pré-condições de aprendizagem pela via da compensação das desvantagens das crianças carentes.

Uma vez que se acumulavam as evidências de que o fracasso escolar, incidindo predominantemente sobre os alunos sócio – economicamente desfavorecidos, se devia a fatores externos ao funcionamento da escola, tratava-se de agir sobre esses fatores.

Educação compensatória significa, então: para que a escola cumpra sua função equalizadora é necessário compensar as deficiências cuja persistência acaba sistematicamente por neutralizar a eficácia da ação pedagógica.

Daí porque a educação compensatória compreende um conjunto de programas destinados a compensar deficiências de diferentes ordens: de saúde e nutrição, familiares, emotivas, cognitivas, motoras, lingüísticas, etc.

Tais programas acabam colocando sob a responsabilidade da educação uma série de problemas que não são especificamente educacionais, o que significa, na verdade, a persistência da crença ingênua no poder redentor da educação em relação à sociedade.

Não se trata de negar a importância dos diferentes programas de ação compensatória (compensação alimentar, compensação sanitária, compensação afetiva, etc.), mas de não considerá-los como programas educativos, o que implica um afastamento ainda maior, em lugar da aproximação em direção à compreensão da natureza específica do fenômeno educativo.

Vê-se, pois, que não se formula uma nova interpretação da ação pedagógica, que continua sendo entendida em termos da pedagogia tradicional, da pedagogia nova ou da pedagogia tecnicista, encaradas de forma isolada ou de forma combinada.

94Com efeito, tal tendência acaba por se configurar numa nova forma de contornar o problema em legar

de ataca-lo de frente. Exemplo desse desvio é o caso da cidade de São Paulo onde, após dez anos de merenda escolar, os índices de fracasso escolar na passagem da primeira para a segunda série do ensino fundamental, em lugar de diminuir, aumentaram.

ENSINO NÃO É PESQUISA

A ‘Escola Nova’, ao buscar considerar o ensino como um processo de pesquisa, se assenta no pressuposto de que os assuntos de que trata o ensino são problemas, isto é, são assuntos desconhecidos não apenas pelos alunos, como também pelo professor.

Nesse sentido, o ensino seria o desenvolvimento de uma espécie de projeto de pesquisa, quer dizer uma atividade que, suscitando determinado problema, provocaria o levantamento de dados, a partir dos quais seriam formuladas as hipóteses explicativas do problema, empreendendo alunos e professores, a experimentação, que permitiria confirmar ou rejeitar as hipóteses formuladas.

Com essa maneira de interpretar a educação, a Escola Nova acabou por dissolver a diferença entre pesquisa e ensino, sem se dar conta de que, assim fazendo, ao mesmo tempo em que o ensino era empobrecido, se inviabilizava também a pesquisa.

Vejam bem que, se a pesquisa é incursão no desconhecido, este só se define por confronto com o conhecido, isto é, se não se domina o já conhecido, não é possível detectar o ainda não conhecido. Qualquer pesquisador sabe que ninguém chega a ser pesquisador, a ser cientista, se não domina os conhecimentos já existentes na área em que se propõe a ser investigador.

Em segundo lugar, o desconhecido não pode ser definido em termos individuais, mas em termos sociais, isto é, trata-se daquilo que a sociedade e, no limite, a humanidade em seu conjunto desconhece.

Diferentemente disso, o ensino tradicional se propunha a transmitir os conhecimentos obtidos pela ciência, portanto, já compendiados, sistematizados e incorporados ao acervo cultural da humanidade.

Eis porque o ensino tradicional se centra no professor, que domina os conteúdos logicamente estruturados, organizados, enquanto que os métodos novos se centram no aluno, nos procedimentos, isto é, nas motivações e interesses do aluno em desenvolver os procedimentos que conduzam à posse dos conhecimentos.

Em suma, nos métodos novos, se privilegiam os processos de obtenção dos conhecimentos, enquanto nos métodos tradicionais se privilegiam os métodos de transmissão dos conhecimentos já obtidos.

O ensino tradicional se estruturou através de um método pedagógico, que é o método expositivo, cuja matriz teórica pode ser encontrada em Herbart.

ENSINAR EXIGE PESQUISA

Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Enquanto ensino, continuo buscando. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade.

Pensar certo, em termos críticos é uma exigência que os momentos do ciclo gnosiológico vão pondo à curiosidade que, tornando-se mais e mais metodicamente rigorosa, transita da ingenuidade para a ‘curiosidade epistemológica’.

A curiosidade ingênua, de que resulta indiscutivelmente um certo saber, não importa que metodicamente sem rigor, é a que caracteriza o senso comum. O saber de pura experiência feito.

Pensar certo, do ponto de vista do professor, tanto implica o respeito ao senso comum no processo de sua necessária superação, quanto o respeito e o estímulo à capacidade criadora do educando. Implica o compromisso do educador com a consciência crítica do educando cuja ‘promoção’ da ingenuidade não se faz automaticamente.

Pensar certo coloca ao professor o dever de não só respeitar os saberes com os educandos chegam à escola, mas também discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos.

Não há, na diferença e na distância entre a ingenuidade e a criticidade, entre o saber de pura experiência feito e o que resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos, uma ruptura, mas uma superação. Muda de qualidade, mas não de essência; continua a ser curiosidade.

A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita à distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética.

É próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser negado ou acolhido só porque é novo, assim como o critério de recusa ao velho não é apenas o cronológico. O velho que preserva sua validade ou marca uma presença no tempo continua novo.

95Faz parte do pensar certo a rejeição decidida a qualquer forma de discriminação A prática docente

cr’tica envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer.Por isso é que, na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão

crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje que se pode melhorar a próxima prática.

PARA ALÉM DAS PEDAGOGIAS DA ESSÊNCIA E DA EXISTÊNCIA

Ao passar da pedagogia tradicional para a pedagogia nova evidenciou-se a passagem de uma concepção pedagógica igualitarista para uma pedagogia das diferenças, com sua conseqüência política: a justificação de privilégios. Nessas pedagogias (da essência e da existência) está ausente a perspectiva historicizadora. Falta-lhes a consciência dos condicionantes histórico-sociais da educação.

São, pois, ingênuas e não críticas já que é próprio da consciência crítica saber-se condicionada, determinada objetivamente, materialmente, ao passo que a consciência ingênua é aquela que não se sabe condicionada, mas, ao contrário, acredita-se superior aos fatos, imaginando-se mesmo capaz de determiná-los e alterá-los por si mesma. De elemento determinado pela estrutura social, a educação é convertida em elemento determinante, reduzindo-se o elemento determinante à condição de determinado.

O acesso das camadas trabalhadoras à escola implica a pressão no sentido de que a igualdade formal (todos são iguais perante a lei) própria da sociedade contratual instaurada com a revolução burguesa se transforme em igualdade real. Nesse sentido, a importância da transmissão de conhecimentos, de conteúdos culturais, marca distintiva da pedagogia da essência, não perde seu caráter revolucionário.

A pressão em direção à igualdade real implica a igualdade de acesso ao saber, portanto, a distribuição igualitária dos conhecimentos disponíveis. Ao conjunto de pressões decorrentes do acesso das camadas trabalhadoras à escola, a burguesia responde denunciando através da Escola Nova o caráter mecânico, artificial, desatualizado dos conteúdos próprios da escola tradicional.

Tal denúncia é procedente. Entretanto, ao reconhecer e absorver as pressões contra o caráter formalista e estático dos conhecimentos transmitidos pela escola, o ‘escolanovismo’ funcionou como mecanismo de recomposição da hegemonia burguesa: subordinou as aspirações populares aos interesses burgueses; a importância da transmissão de conhecimentos foi secundarizada e subordinada a uma pedagogia das diferenças, centrada nos métodos e processos – a pedagogia da existência (ou pedagogia nova).

Uma pedagogia revolucionária centra-se, pois, na igualdade essencial, real, entre os homens. Busca converter-se em instrumento à serviço da instauração de uma sociedade igualitária.

Para isso a pedagogia que se quer, longe de secundarizar os conhecimentos descuidando de sua transmissão, considera a difusão de conteúdos, vivos e atualizados, uma das tarefas primordiais do processo educativo em geral e da escola em particular. Entende que a educação se relaciona dialeticamente com a sociedade, não deixando de influenciar o elemento determinante.

A pedagogia que se quer situa-se além das pedagogias da essência e da existência, superando-as, quer seja na crença na autonomia, seja na dependência absoluta da educação em face das condições sociais vigentes.

A crítica ‘escolanovista’ atingiu não tanto o método tradicional, mas a forma como esse método se cristalizou na prática pedagógica, tornando-se mecânico, repetitivo, desvinculado das razões e finalidades que o justificavam.

Ora, se o principal problema da pedagogia nova está no seu efeito discriminatório (realizou-se em poucas escolas, exatamente naquelas freqüentadas pela elite), surge, então, a questão: os métodos novos não seriam generalizáveis? Assim como foram capazes de aprimorar a educação das elites, não seriam úteis para aprimorar a educação das massas?

É nessa direção que surgem tentativas de constituição de uma espécie de ‘Escola Nova Popular’. Exemplos dessas tentativas são a ‘Pedagogia Freinet’ na França e o ‘Movimento Paulo Freire de Educação’ no Brasil.

De modo especial no caso de Paulo Freire, é nítida a inspiração da ‘concepção humanista moderna’ de filosofia da educação, através da corrente personalista – existencialismo cristão. Na fase de constituição e implantação de sua pedagogia no Brasil (1959-1964), suas fontes de referência são principalmente Mounier, G. Marcel, Jaspers14. Parte da crítica à pedagogia tradicional (pedagogia bancária) caracterizada pela passividade, transmissão de conteúdos, memorização, verbalismo, etc. e advoga-se uma pedagogia viva, centrada na iniciativa dos alunos, no diálogo (relação dialógica), na troca de conhecimentos.

Assim como a escola tradicional volta-se contra seus interesses obrigando a uma recomposição de hegemonia através da Escola Nova, assim também a Escola Nova não fica imune à luta que se trava no seio da sociedade – pressupõe métodos sofisticados, escolas mais bem equipadas, menor número de alunos em classe, maior duração da jornada escolar, escola mais agradável,...

14 Freire, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1967.

96O problema permanece em aberto, e pode ser recolocado nos seguintes termos: é possível encarar a

escola como uma realidade histórica, isto é, suscetível de ser transformada intencionalmente pela ação humana? É possível uma teoria da educação que capte criticamente a escola como um instrumento capaz de contribuir para a superação do problema da exclusão?

3. PARA UMA TEORIA CRÍTICA DA EDUCAÇÃO

A escola é determinada socialmente, sofre a determinação de interesses. Considerando-se que a classe dominante não tem interesse na transformação histórica da escola (ela está empenhada na preservação de seu domínio, portanto apenas acionará mecanismos de adaptação que evitem a transformação) segue-se que uma teoria crítica só poderá ser formulada do ponto de vista dos interesses dos dominados.

É possível articular a escola com o interesse dos dominados? É possível uma teoria da educação que capte criticamente a escola como um instrumento capaz de contribuir para a superação do problema da marginalidade, da exclusão?

Uma teoria assim se impõe a tarefa de superar tanto o poder ilusório (teorias não-críticas) como a impotência (teorias crítico-reprodutivistas), colocando nas mãos dos educadores uma arma de luta capaz de permitir-lhes o exercício de um poder real, ainda que limitado.

O caminho é repleto de armadilhas, já que os mecanismos de adaptação acionados periodicamente a partir dos interesses dominantes podem ser confundidos com os anseios da classe dominada. Para evitar esse risco é necessário avançar no sentido de captar a natureza específica da educação o que nos levará à compreensão das complexas mediações pelas quais se dá sua inserção contraditória na sociedade capitalista.

Do ponto de vista prático, o papel de uma teoria crítica da educação é dar substância concreta à bandeira de luta contra a exclusão, garantindo à classe popular um ensino da melhor qualidade possível , e evitando que essa bandeira de luta seja apropriada e articulada com os interesses dominantes.

Trata-se, pois, de retomar vigorosamente a luta contra a seletividade, a discriminação e o rebaixamento do ensino das camadas populares. Significa engajar-se no esforço para garantir um ensino da melhor qualidade possível.

Uma pedagogia articulada com os interesses populares valorizará a escola; estará empenhada em que ela funcione bem; estará interessada em métodos de ensino eficazes. Serão métodos que estimularão a atividade e iniciativa dos alunos sem abrir mão, porém, da iniciativa do professor. Favorecerão o diálogo dos alunos entre si e com o professor, mas sem deixar de valorizar o diálogo com a cultura acumulada historicamente.

O seu ponto de partida do ensino não é a preparação dos alunos cuja iniciativa é do professor (pedagogia tradicional) nem a atividade que é de iniciativa dos alunos (pedagogia nova). O ponto de partida seria a prática social, que é comum a professor e alunos. Em relação à essa prática comum, o professor assim como os alunos podem se posicionar diferentemente enquanto agentes sociais diferenciados.

Entretanto, do ponto de vista pedagógico há uma diferença essencial que não pode ser perdida de vista: o professor, de um lado, e os alunos, de outro, encontram-se em níveis diferentes de compreensão (conhecimento e experiência) da prática social. Enquanto o professor tem uma compreensão que poderíamos denominar de ‘síntese precária’, a compreensão dos alunos é de caráter sincrético.

A compreensão do professor é sintética porque implica uma certa articulação dos conhecimentos e experiências que detém relativamente à prática social. Tal síntese, porém, é precária uma vez que, por mais articulados que sejam os conhecimentos e experiências, a inserção de sua própria prática pedagógica como uma dimensão da prática social envolve uma antecipação do que lhe será possível fazer com alunos cujos níveis de compreensão ele não pode conhecer, no ponto de partida, senão de forma precária.

Por seu lado, a compreensão dos alunos é sincrética uma vez que, por mais conhecimentos e experiências que detenham, sua própria condição de alunos implica uma impossibilidade, no ponto de partida, de articulação da experiência pedagógica na prática social de que participam.

O passo seguinte não seria a apresentação de novos conhecimentos por parte do professor (pedagogia tradicional) nem o problema como um obstáculo que interrompe a atividade do aluno (pedagogia nova).

Caberia, neste momento, a identificação dos principais problemas postos pela prática social (problematização) – detectar as questões que precisam ser resolvidas no âmbito da prática social e, em conseqüência, que conhecimentos é necessário dominar.

Segue-se o terceiro passo que não coincide com a assimilação de conteúdos transmitidos pelo professor (pedagogia tradicional) nem com a coleta de dados (pedagogia nova) ainda que envolva transmissão e assimilação de conhecimentos. Trata-se de se apropriar dos instrumentos teóricos e práticos necessários ao equacionamento dos problemas detectados na prática social.

O quarto passo não será a generalização (pedagogia tradicional) nem a hipótese (pedagogia nova). Adquiridas as ferramentas culturais básicas, é chegado o momento da expressão elaborada da nova forma de

97entendimento da prática social a que se ascendeu. Chamamos de catarse, entendida na acepção gramsciana de ‘elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens’.

O quinto passo, finalmente, também não será a aplicação (pedagogia tradicional) nem a experimentação (pedagogia nova). O ponto de chegada é a própria prática social, compreendida agora não mais em termos sincréticos pelos alunos.

Neste ponto, ao mesmo tempo em que os alunos ascendem ao nível sintético em que, por suposto, já se encontrava o professor no ponto de partida, reduz-se a precariedade da síntese do professor, cuja compreensão se torna mais e mais orgânica.

Essa elevação dos alunos ao nível do professor é essencial para se compreender a especificidade da relação pedagógica. Daí porque o momento catártico pode ser considerado o ponto culminante do processo educativo, já que é aí que se realiza pela mediação da análise levada a cabo no processo de ensino, a passagem da síncrese à síntese.

É a esse fenômeno que Dermeval Saviani se refere quando diz que a educação é uma atividade que supõe uma heterogeneidade real e uma homogeneidade possível; uma desigualdade no ponto de partida e uma igualdade no ponto de chegada15.

A prática social foi tomada como ponto de partida e ponto de chegada. A educação, portanto, não transforma de modo direto e imediato e sim de modo indireto e mediato, isto é, agindo sobre os sujeitos da prática. Entre a teoria e a atividade prática transformadora se insere um trabalho de educação das consciências, de organização dos meios materiais e planos concretos de ação.

O movimento que vai da síncrese (visão caótica do todo) à síntese (uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas) pela mediação da análise (as abstrações e determinações mais simples) constitui uma orientação segura tanto para o processo de descoberta de novos conhecimentos (o método científico) como para o processo de transmissão-assimilação de conhecimentos (o método de ensino).

A pedagogia aqui proposta, uma vez que se pretende a serviço dos interesses populares, terá contra si os interesses até agora dominantes. Trata-se, portanto, de lutar também no campo pedagógico para fazer prevalecer os interesses até agora não dominantes. E esta luta não parte do consenso, mas do dissenso.

Para chegar lá, porém, é necessário, através da prática social, transformar as relações de produção que impedem a construção de uma sociedade igualitária.

Se a educação é mediação, isto significa que ela não se justifica por si mesma, mas tem sua razão de ser nos efeitos que se prolongam para além dela e que persistem mesmo após a cessação da ação pedagógica.

Entendo, pois, que o processo educativo é passagem da desigualdade à igualdade. Democracia é uma conquista; não é um dado. Se não acredito que a desigualdade pode ser convertida em igualdade pela mediação da educação, então, não vale a pena desencadear a ação pedagógica.

O professor deve antever com uma certa clareza a diferença entre o ponto de partida e o ponto de chegada sem o que não será possível organizar e implementar os procedimentos necessários para se transformar a possibilidade em realidade.

Diga-se de passagem, esta capacidade de antecipar mentalmente os resultados da ação é a nota distintiva da atividade especificamente humana. Não sendo preenchida essa exigência cai-se no espontaneísmo.

Evidentemente, a proposta pedagógica apresentada aponta na direção de uma sociedade em que esteja superado o problema da divisão do saber.

A importância política da educação está condicionada à garantia de que a especificidade da prática educativa não seja dissolvida.

15 Saviani, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Cortez; Autores Associados, 1980.

98O PODER DE FOGO DA EDUCAÇÃO. GABRIEL CHALITA.

Publicado na revista FAPESP, Edição 85, março 2003.

Algumas palavras têm o poder de trazer consigo uma imensa carga de sentimentos, emoções, expectativas, sonhos, desejos e quereres. São, a um só tempo, misto de poesia, de filosofia, de arte... Expressá-las e professá-las pode significar a mudança, a transformação, a transcendência. A junção de suas sílabas tem uma força capaz de mudar o mundo e, em casos extremos, funciona como um artifício bélico do bem, utilizado pelos desbravadores de novos tempos e pelos descobridores de novos caminhos. São armas que injetam ânimo, coragem, sensibilidade, talento. Dessa forma, podemos definir o amplo leque de sentidos e potencialidades da palavra educação, cuja beleza está em desvendar novos amanhãs e promissores horizontes.

A todos nós, educadores, foi concedida a oportunidade de contribuir para promovê-la, transmitindo e propagando o desejo pelo conhecimento. Colaboramos para a criação de realidades mais belas e mais condizentes com os nossos sonhos. Faz parte da natureza humana querer sempre o melhor. Buscar a evolução, o desafio, a superação de limites. Façanhas impossíveis sem a educação como fundamento e passaporte. Ciente da grandiosidade dessa missão e de tudo o que ela pode proporcionar, o governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria de Estado da Educação, tem trabalhado para fazer da rede estadual de ensino uma ponte capaz de levar nossos 6 milhões de alunos à aquisição de saberes, de competências e de habilidades capazes de torná-los cidadãos críticos e conscientes, aptos à construção de um futuro erguido sobre os pilares da infinita capacidade humana (que deve ser desenvolvida, incentivada e constantemente aguçada).

Nossos programas, projetos e ações têm o objetivo primeiro de despertar mentes e corações para o prazer do aprendizado, da revelação, da epifania que caracterizam o fascinante processo da descoberta. Está sob nossa responsabilidade formar atores sociais talentosos, com maturidade intelectual e emocional suficiente para alcançar não apenas o sucesso profissional, mas a felicidade plena, em todos os aspectos de suas vidas.

Todos os nossos alunos compõem um complexo contingente educacional, mas, ao mesmo tempo em que formam um grupo, uma coletividade, são também seres únicos, dotados de histórias de vida singulares, ricas e de natureza incomparável. São meninos e meninas, crianças e jovens provenientes das mais diversas realidades e origens. Muitos vivenciam uma infância e uma adolescência repleta de amor, de cuidado, de atenção e de incentivo de suas famílias. Outros, no entanto, sobrevivem a duras penas numa atmosfera densa, pesada, em nada parecida com o que deveria ser o aconchego e a proteção de um lar estruturado. São desprovidos dos referenciais mais básicos e têm por alimento da alma apenas a esperança depositada em dias melhores.

Felizes ou apenas esperançosos têm, como todos nós, carências, problemas, alegrias, vontades, medos, posturas e os mais heterogêneos sonhos. Some-se a isso o fato de estarem atravessando uma fase de formação, de intenso aprendizado, de dúvidas, de questionamentos, de buscas incansáveis... Têm o privilégio, e também a grande responsabilidade, de ter todo um futuro pela frente.

Nesse sentido, nossas políticas públicas educacionais levam em consideração, em primeiro lugar, as necessidades mais básicas desses cidadãos do futuro: a compreensão, o respeito por suas diferenças, por seus valores e pela história pessoal de cada um.O desempenho, o sucesso e a ampliação do potencial dos aprendizes dependem de nossa sensibilidade para vê-los como seres humanos e não apenas como números registrados nas listas de chamada. Por meio dessa prática, nós, educadores, poderemos ter a chance de ir além e de também aprender com nossos educandos. Sem essa troca essencial, estamos condenados a perder o brilho, a seiva, o norte... Educar é, sobretudo, nunca deixar de aprender e de acreditar. O primeiro passo para fazer da educação uma possibilidade real para todos já foi dado na medida em que promovemos a universalização do ensino. Os números mais recentes apontam um total de 99% de crianças freqüentando a escola no Estado de São Paulo. Uma vez garantido o acesso aos bancos escolares, nossos esforços convergem diretamente para as melhorias nas condições de aprendizagem - decorrentes do reflexo direto da mudança de filosofia da cultura escolar. Agora, singramos os mares de forma mais habilidosa porque navegamos com um lema comum a todas as nossas rotas: "todo professor é capaz de ensinar, todo aluno é capaz de aprender". E o inverso é absolutamente verdadeiro.

Um lema que nos faz respeitar, por exemplo, o ritmo próprio de aprendizado e de assimilação de conteúdos de cada estudante. Um direito do indivíduo que vinha sendo relegado, mas que ganhou força com a implantação, em janeiro de 98, do regime de progressão continuada da aprendizagem, que possibilita o avanço contínuo dos alunos ao longo do percurso escolar, organizando o Ensino Fundamental em dois ciclos de quatro anos cada. Para ampliar os benefícios dessa prática aos estudantes de níveis mais avançados,

99adotamos a flexibilização do currículo no ensino médio, permitindo a matrícula por disciplina e evitando que o aluno refaça componentes nos quais foi bem-sucedido.

Nessa viagem de importância histórica, a sociedade civil organizada tem sido nossa grande companheira. Empresas, igrejas, ONGs, universidades, entidades e associações variadas têm contribuído para que nossos alunos e professores desfrutem uma formação intelectual, física e emocional sólida, com direito ao esporte, à cultura, ao lazer, à arte, à profissionalização, à saúde e, enfim, à conquista de uma vida melhor.

Juntos, temos viabilizado a capacitação constante dos educadores por meio de cursos, palestras, teleconferências e congressos. Em dezembro, por exemplo, presenciamos a formatura de 7 mil professores pelo programa PEC - Formação Universitária , programa de educação continuada, cujo objetivo é fornecer aos professores efetivos no ensino da 1ª à 4ª série, com formação de nível médio, de mais de 2 mil escolas de ensino fundamental do Estado, a oportunidade de formação em nível superior fornecida pela USP, Unesp e PUC-SP.

Em todas as capacitações, encontros, visitas às escolas e conversas com os representantes da categoria, sempre ressaltamos a importância da aliança entre o aperfeiçoamento técnico do professor e a solidificação de uma postura afetiva em sala de aula. Queremos que nossos aprendizes enxerguem no mestre um exemplo a ser seguido, um amigo com quem possam contar e não uma autoridade acima do bem e do mal. Nas escolas, muitos programas e projetos têm favorecido essa prática mais afetiva e integrada. Os alunos sentem-se incentivados a participar, a descobrir e a mostrar seus talentos. Por isso, é fundamental que a comunidade do entorno escolar e da sociedade como um todo prestigie os eventos constantemente promovidos pelos estabelecimentos de ensino. Foi o que a secretaria - juntamente com a população que transitava pelo Centro de São Paulo - fez durante o mês de dezembro de 2002. Nossos funcionários uniam-se aos populares, sempre ao meio-dia, na Praça da República, para prestigiar os corais natalinos de dezenas de escolas estaduais provenientes das mais diversas regiões do Estado.

O programa dos corais nas escolas, bem como aqueles ligados à música clássica, ao teatro, ao cinema, à criação de bandas e fanfarras, à preservação do meio ambiente, ao exercício dos direitos e deveres do cidadão - fortalecimento e reativação dos grêmios, campanhas comunitárias, combate às drogas e à violência, etc. - têm propiciado uma revolução verdadeiramente positiva na vida dos estudantes. Programas como Parceiros do Futuro, Comunidade Presente, Prevenção Também se Ensina, Escola em Parceria, Mutirão da Cidadania e Programa Profissão estão, na verdade, plantando sementes e oferecendo não só para São Paulo, mas para todo o Brasil, a chance de ter, num futuro breve, uma colheita digna dos anseios e do trabalho de todo o seu povo.

Que as nossas palavras, corroboradas - e impregnadas - pela verdade impressa em nossas ações, possam colaborar para a discussão, para o debate e para a reflexão em torno dessa educação afetiva e eficaz. Uma educação que privilegia a criação de gerações mais capacitadas, tanto para contribuir para o desenvolvimento e o progresso da ciência quanto para desfrutar todos os seus benefícios. Uma educação que oriente e funcione como a bússola que desvenda as infinitas maneiras de navegar, com sucesso, pelos mares da vida.

Gabriel Chalita , professor, é secretário de Estado da Educação de São Paulo. Doutor em Direito, Comunicação e Semiótica, e autor de 34 livros.