apostila iv curso livre marx engels boitempo editorial e sesc pinheiros

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CURSO DE INTRODUÇÃO À OBRA DE SL AVOJ ŽIŽEK 05 A 07/MARÇO, 19h | COM ALYSSON LEANDRO MASCARO, CHRISTIAN DUNKER E RODNEI NASCIMENTO IV CURSO LIVRE MARX ENGELS COM CURADORIA DE JOSÉ PAULO NETTO 07 A 15/MAIO |  ALYSSON LEANDRO MASCARO, ANTONIO RAGO, JORGE GRESPANJOSÉ PAULO NETTO , MARIO DUAYER, OSVALDO COGGIOLA RICARDO ANTUNES RUY BRAGA

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  • REALIZAO PARCEIROS

    Sesc Pinheiros RUA PAES LEME, 195, CEP: 05424-150TEL: (11) [email protected] ESTAO FARIA LIMASESCSP.ORG.BR

    marxcriacaodestruidora.com.br

    Boitempo EditorialBOITEMPOEDITORIAL.COM.BRBLOGDABOITEMPO.COM.BRFACEBOOK.COM/BOITEMPOTWITTER.COM/EDITORABOITEMPOYOUTUBE.COM/USER/IMPRENSABOITEMPO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO CURSO DE INTRODUO OBRA DE SL AVOJ IEK

    05 A 07/MARO, 19h | COM ALYSSON LEANDRO MASCARO, CHRISTIAN DUNKER E RODNEI NASCIMENTO

    IV CURSO LIVRE MARX ENGELSCOM CURADORIA DE JOS PAULO NETTO

    07 A 15/MAIO | ALYSSON LEANDRO MASCARO, ANTONIO RAGO, JORGE GRESPAN, JOS PAULO NETTO, MARIO DUAYER,

    OSVALDO COGGIOLA, RICARDO ANTUNES E RUY BRAGA

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    GELS

  • IV Curso Livre Marx-Engels

    Teatro Paulo Autran do Sesc Pinheiros (capacidade para mil pessoas)

    De 7 a 15 de maio de 2013

    Curadoria: Jos Paulo Netto

    07/05

    15h30 | Aula 01Ttulo: A crtica do Estado e do direito: a forma poltica e a forma jurdicaProfessor: Alysson Leandro Mascaro (USP/Mackenzie)

    Exposio: revelam-se elementos para teorizar na perspectiva mar-xista o poder, a poltica, o Estado, as relaes de classe e o direito. As leituras desta aula so voltadas principalmente a Introduo da Crtica da filosofia do direito de Hegel (1844) e O 18 de brumrio de Lus Bonaparte (1852).

    19h | Aula 02Ttulo: A crtica ao idealismo: poltica e ideologiaProfessor: Antonio Rago (PUC-SP)

    Exposio: mostra o avano em relao a 1844: a tese do papel his-trico universal do proletariado (que aparece com a primeira crti-ca cultura alem ps-hegeliana, A sagrada famlia) e a elaborao do conceito crtico-negativo de ideologia, que surge na continuidade da citada crtica, precisamente em A ideologia alem (1846), com a crtica feita a Feuerbach e a colocao da questo do mtodo que ascende da terra ao cu.

  • 08/05

    15h30 | Aula 03Ttulo: A relevncia e atualidade do Manifesto ComunistaProfessor: Jos Paulo Netto (UFRJ)

    Exposio: o Manifesto do Partido Comunista, ou simplesmente Mani-festo Comunista (1848), demonstra a madurez de Marx e Engels, com 30 e 28 anos respectivamente. Esta aula far um tratamento cuidadoso desse texto fundamental, com nfase em sua atualidade.

    19h | Aula 04Ttulo: Anlises concretas da luta de classesProfessor: Osvaldo Coggiola (USP)

    Exposio: nesta aula (que implica um salto cronolgico em relao ao andamento da primeira terceira), mostra-se como os princpios elementares do Manifesto Comunista mais a maturao metodolgica propiciada pela militncia de Marx e Engels convertem-se em supor-tes de preciosas anlises concretas de situaes concretas (Lenin ca-racterizava assim o marxismo). Aula dedicada a Marx e Engels como analistas de conjuntura, baseada principalmente nas obras Lutas de classes na Alemanha (1848), Lutas de classes na Frana (1850) e A guerra civil na Frana (1871).

    14/05

    15h30 | Aula 05Ttulo: A constituio do proletariado e sua prxis revolucionriaProfessor: Ricardo Antunes (Unicamp)

    Exposio: o eixo desta aula a passagem de Marx posio revolu-cionria, com o aparecimento formal do proletariado e sua emerso efetiva (com o peso do trabalho na constituio do ser social, um ser da prxis) nos Manuscritos econmico-filosficos (1844). fundamental a importncia de Engels nesse perodo da evoluo de Marx, em seu ensaio nos Anais Franco-Alemes (1844) e A situao da classe traba-lhadora na Inglaterra (1845).

  • 19h | Aula 06Ttulo: A crtica ontolgica do capitalismoProfessor: Mario Duayer (UERJ)

    Exposio: nesta aula a questo central Marx e a crtica da economia poltica, recorrendo especialmente aos Grundrisse (1857).

    15/05

    15h30 | Aula 07Ttulo: A crtica da economia polticaProfessor: Jorge Grespan (USP)

    Exposio: nesta aula a questo central novamente Marx e a crtica da economia poltica, recorrendo desta vez principalmente a O capital, de Marx (Livro I, 1867).

    19h | Aula 08Ttulo: Democracia, trabalho e socialismoProfessor: Ruy Braga (USP)

    Exposio: a nfase aqui como Marx concebe o papel do programa do partido na luta democrtica e sua concepo da transio socialista; o texto bsico a Crtica do programa de Gotha (1875) e, subsidiariamen-te, O socialismo jurdico (1887).

    21h30 | Homenagem da Boitempo a Francisco de Oliveira

    As trs primeiras edies do Curso Livre Marx-Engels (realizadas respectivamente na PUC-SP, na UERJ e no Sindicato dos Bancrios de So Paulo) contaram com mais de 3 mil alunos e homenagearam os intelectuais marxistas Jacob Gorender, Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. O escolhido desta vez foi o socilogo Francisco de Oliveira, professor titular aposentado de Sociologia da Universidade de So Paulo (USP) e autor de extensa obra, da qual destacamos Noiva da revoluo: elegia para uma re(li)gio (Boitempo, 2008) e Crtica razo dualista: o ornitorrinco (So Paulo, Boitempo, 2003).

  • Francisco de Oliveira, durante a aula sobre o Manifesto Comunista de en-cerramento do I Curso Livre Marx-Engels, realizado na PUC-SP, entre maro e abril de 2008. Nesse dia a Boitempo prestou homenagem ao historiador marxista Jacob Gorender, entregando-lhe uma placa comemorativa ao som da Interna-cional Comunista, cantada de p pelos presentes.Os vdeos das edies anteriores do curso introdutrio s obras dos dois pensadores alemes podem ser acessados no canal da Boitempo no Youtube: bit.ly/11iUF6R.Ver letra do hino internacionalista, escrita em 1871, pgina 103 desta apostila.

  • Marx: a criao destruidoraProgramao das primeiras etapas

    Dividida em trs etapas, marca o histrico lanamento da edio espe-cial, com traduo indita, do livro I dO Capital, de Karl Marx, 16o t-tulo da Coleo Marx-Engels, alm de Para entender O Capital, de David Harvey; Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialtico, de Slavoj iek; Estado e forma poltica, de Alysson Leandro Mascaro; e o nmero 20 da revista Margem Esquerda.

    Primeira etapa (5 a 8 de maro) Curso de introduo obra de Slavoj iek, com Alysson Leandro Mascaro, Christian Dunker e Rodnei Nascimento.

    De Hegel a Marx... e de volta a Hegel! A tradio dialtica em tempos de crise Conferncia de Slavoj iek

    Segunda etapa (22 a 23 de maro)IV Seminrio Margem Esquerda: Marx e O capital

    Debate Sobre os estudos dO capital no Brasil, com Emlia Viotti da Costa (historiadora); Emir Sader (socilogo); Joo Quartim de Moraes (filsofo); Jos Arthur Giannotti (filsofo) e Roberto Schwarz (crtico literrio). Mediao de Sofia Manzano.Conferncia internacional Os manuscritos de Karl Marx e Friedrich Engels, com Michael Heinrich (MEGA, Alemanha). Mediao de Au-gusto Buonicore (historiador). Debate O marxismo brasileiro hoje, com Marcelo Ridenti (socilogo), Antonio Carlos Mazzeo (cientista social) e Marcos Del Roio (cientista poltico). Mediao de Alexandre Linares.Debate Crtica da economia poltica hoje, com Paul Singer (econo-mista), Francisco de Oliveira (socilogo), Leda Paulani (economista) e Virgnia Fontes (historiadora). Mediao de Ruy Braga.Conferncia internacional Para ler O capital, com David Harvey (ge-grafo, Reino Unido), comentrio de Gilberto Cunha Franca (gegrafo) e mediao de Marcio Pochmann (economista).

  • Marx: a criao destruidorawww.marxcriacaodestruidora.com.br

    Servio social do comrcioAdministrao Regional no Estado de So Paulo

    Coordenao geral Ivana Jinkings

    Curadoria Curso Livre Marx-Engels Jos Paulo Netto

    Coordenao executiva Kim Doria

    Consultoria Alysson Leandro Mascaro, Antonio Rago, Emir Sader, Francisco de Oliveira, Jos Paulo Netto, Ruy Braga

    Identidade visual Ronaldo Alves

    Contedo didtico Ivana Jinkings e Kim Doria

    Diagramao apostila Livia Campos

    Divulgao Ana Yumi Kajiki e Tiago Miranda

    Produo Drika Bourquim e Fa Hoshi

    Receptivo e credenciamento Andrea Siomara

    Equipe de apoio Alcia Toffani, Artur Renzo, Bibiana Leme, Elaine Ramos, Ivam Oliveira, Joo Alexandre Peschanski, Johnson Tazoe, Livia Campos, Marlene Baptista, Renato Ferreira e Thiago Freitas

    Presidente do Conselho Regional Abram Szajman

    Diretor do Departamento Regional Danilo Santos de Miranda

    Superintendentes Tcnico Social Joel Naimayer Padula Comunicao Social Ivan Giannini Administrao Luiz Deoclcio Massaro Galina Assessoria Tcnica e de Planejamento Srgio Jos Battistelli

    Gerentes Estudos e Desenvolvimento Marta Colabone Adjunta Andra Nogueira Artes Grficas Hlcio Magalhes Adjunta Karina Musumeci Sesc Pinheiros Cristina Riscalla Madi Adjunto Ricardo de Oliveira Silva

    Boitempo Editorial

  • 9A crise das polticas neoliberais requer do pensamento crtico a des-mistificao da realidade social capitalista. A Boitempo, na me-lhor tradio marxista, tem se notabilizado no apenas em publicar li-vros de excelncia, mas tambm em organizar eventos de grande porte, como cursos, debates e conferncias, com importantes pensadores do Brasil e do exterior. E com a determinao de ampliar ainda mais a interao entre autores e pblico-leitor que a editora oferece mais este encontro, dando continuidade aos seminrios internacionais organiza-dos pela revista Margem Esquerda e ao curso livre de introduo obra de Karl Marx e Friedrich Engels.

    Em 2004 a Margem Esquerda promoveu seu primeiro seminrio, Reflexes sobre o colapso, na Universidade de So Paulo (USP), com a participao de professores das principais universidades brasileiras. Um ano depois foi a vez de As aventuras de Karl Marx contra oBaro de Munchhausen:a obra indisciplinada de Michael Lwy, alcanando seis cidades brasileiras; e em 2009 realizou o III Seminrio Margem Esquer-da: Istvn Mszros e os desafios do tempo histrico em oito uni-versidades do pas, sendo todos esses eventos pblicos e gratuitos. Dos seminrios dedicados vida e obra de Michael Lwy e Istvn Mszros resultaram, posteriormente, dois livros: As utopias de Michael Lwy (Boitempo, 2007, org. Ivana Jinkings e Joo Alexandre Peschanski) e Istvn Mszros e os desafios do tempo histrico (Boitempo, 2011, org. Ivana Jinkings e Rodrigo Nobile).

    ApresentaoA atualidade da dialtica em tempos de crise

  • 10

    Em 2011 a Boitempo realizou ainda, em parceria com o Sesc e o ITS Brasil, o projeto Revolues cursos, filmes, conferncias presenciais e videoconferncias , reunindo Slavoj iek, Alexander Kluge, Eduardo Gruner, Michael Lwy, Marilena Chau, Emir Sader, Olgria Mattos, Bernard Stiegler e Costas Douzinas, entre outros. E promoveu trs cursos livres sobre as obras de Karl Marx e Friedrich Engels na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e no Sindicato dos Bancrios de So Paulo.

    Agora, um novo e importante passo dado, tendo como fio con-dutor a Criao Destruidora de Marx e este curso introdutrio s obras de Karl Marx e Friedrich Engels , no desvendamento de nosso presente e passado, tendo em vista um futuro mais justo e igualitrio. Pois se remar contra a corrente o destino inelutvel dos que anseiam por mudanas, esperamos que este seminrio fornea instrumentos aos que insistem em navegar para superar esses tempos de guas turvas.

    Maio de 2013

  • Sumrio

    Planos das aulas

    A crtica do Estado e do direito: forma poltica e forma jurdica, por Alysson Leandro Mascaro 15

    A crtica ao idealismo: poltica e ideologia, por Antonio Rago 19

    A relevncia e atualidade do Manifesto Comunista, por Jos Paulo Netto 23

    Anlises concretas da luta de classes, por Osvaldo Coggiola 27

    A constituio do proletariado e sua prxis revolucionria, por Ricardo Antunes 31

    A crtica ontolgica do capitalismo, por Mario Duayer 35

    A crtica da economia poltica, por Jorge Grespan 39

    Democracia, trabalho e socialismo, por Ruy Braga 41

    Leituras Complementares

    Crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo, por Karl Marx 45

    Ler O capital, por Francisco de Oliveira 65

    O internacionalismo e o Manifesto, por Michael Lwy 67

    Sobre A ideologia alem, por Leandro Konder 69

    Sobre Crtica do Programa de Gotha, por Virgnia Fontes 71

  • Sobre Karl Marx e Friedrich Engels 73

    Sobre os professores 75

    Cronologia de Karl Marx e Friedrich Engels 77

    Livros de Karl Marx e Friedrich Engels publicados pela Boitempo 95

  • Planos das aulas

  • Engels, Marx e suas filhas Jenny, Laura e Eleanor em meados de 1860.

  • 15

    A crtica do Estado e do direito: a forma poltica e a forma jurdica

    Alysson Leandro Mascaro

    Os livros de Marx Crtica da filosofia do direito de Hegel e O 18 de brumrio de Lus Bonaparte e o livro de Engels e Kautsky O socia-lismo jurdico so textos exemplares da evoluo do pensamento marxis-ta a respeito do Estado, da poltica e do direito: tais obras correspondem, exatamente e em sequncia, fase de juventude de Marx, depois, de sua primeira maturao e, no final, num balano engelsiano fiel a O capital, um extrato pleno que espelha o pensamento do Marx maduro. Nessa evoluo, delineia-se a importncia mpar do marxismo como a mais avanada compreenso da poltica e do direito no capitalismo.

    A Crtica da filosofia do direito de Hegel uma das obras fundamen-tais do perodo de formao de Marx. Aps os anos como aluno da Fa-culdade de Direito, o jovem Marx passa a limpo sua formao jurdica e o hegelianismo reinante no panorama filosfico alemo. A obra de He-gel, Princpios da filosofia do direito, representava uma leitura bastante original do perodo no qual a Europa transitava entre o Antigo Regime e a nova ordem burguesa. O mundo do direito natural teolgico e do jusracionalismo iluminista estava sendo substitudo pelo juspositivis-mo. O Estado se anunciava, para Hegel, como razo em si e para si.

    Marx, comentando pargrafo por pargrafo as letras de Hegel mas avanando contra o hegelianismo, anuncia em seu texto a crtica ao Estado, ao menos nos moldes pelos quais o prprio Estado se apresenta na realidade e no sistema hegeliano. Trata-se de uma crtica ao domnio do Estado pela burguesia, reveladora de uma postura terica romntica

  • 16

    e compromissada de Marx, mas que, na verdade, ainda no alcanou a natureza formal e estrutural do Estado no capitalismo. No mesmo livro, a crtica ao direito se faz contra o sentido de suas manifestaes concretas, mas ainda no sua forma.

    Meses depois do comentrio sistemtico obra de Hegel, Marx es-creve um novo texto que lhe permitir um avano na sua compreenso terica, j anunciando o problema da poltica para alm da prpria internalidade jurdica do Estado. A Introduo que escreveu sua Crtica da filosofia do direito de Hegel d conta de um sujeito histrico especfico, que passa a tomar corpo como sendo o cerne da possibi-lidade de transformao social: a classe trabalhadora. com base em sua ao poltica portanto, a partir do horizonte dos explorados do capital que o problema do Estado se reconfigura. Assim, nessa pri-meira fase, Marx anuncia a tomada do Estado pela classe trabalhadora como o grande horizonte crtico da poltica.

    No entanto, a reflexo de Marx sobre a poltica d um grande salto com a produo intermediria, j de pleno avano na sua maturao terica. Em O 18 de brumrio de Lus Bonaparte, Marx compreende, de modo bastante original, a natureza do Estado na reproduo da so-ciabilidade capitalista. Ao contrrio do exposto em suas obras iniciais, o pensamento marxiano analisa nesse livro as estruturas polticas que persistem na reproduo capitalista mesmo quando no diretamente controladas pela burguesia. Em um Estado cujos arranjos polticos libe-rais, diretamente burgueses, no do conta de manter as condies para a reproduo da prpria vida do capital, o golpe de Estado promovido por Lus Bonaparte afasta a burguesia da administrao estatal para justamente sustentar a sua prpria continuidade. Em seu livro, Marx expe, ento, que o Estado no simplesmente um aparelho neutro disposio da dominao das classes, moldado no todo em razo de seu

  • 17

    controle por elas. O Estado estruturalmente capitalista, ainda que as classes que o controlem imediatamente no o sejam. Com isso, d-se o salto de qualidade da teoria marxista quanto poltica: no o domnio de classe, mas sim a forma poltica estatal o horizonte que demanda o combate por parte dos socialistas.

    Tal reflexo ser sistematizada por Marx nO capital, na medida em que desvenda, na prpria lgica do capital, os elementos necessrios e fundadores de sua sociabilidade e sua reproduo. A mercadoria seu ncleo lastreado, em especial, na universalidade do trabalho assala-riado como mercadoria que estabelece uma totalidade social calcada nas formas de valor, da subjetividade jurdica, do apartamento da po-ltica em face dos agentes da produo. O Estado e o direito a encon-tram sua natureza estrutural. No se trata apenas de procurar quem os controla, tampouco a luta por eventuais ganhos parciais em suas bases. Estado e direito so, irremediavelmente, manifestaes do capital.

    Aps a morte de Marx, um reformismo de esquerda buscou en-fraquecer a plenitude da compreenso comunista sobre a poltica. No combate a teses reformistas encarnadas, ento, na figura do jurista Anton Menger , Engels e Kautsky escrevem O socialismo jurdico. Aos que advogavam os ganhos sociais por meio de reformas no direito e no Estado (os chamados socialistas jurdicos), os autores opem a nature-za estruturalmente capitalista das formas estatal e jurdica. Somente a superao dessas formas pode cessar a explorao de classe. O domnio do direito e do Estado no tem de ser considerado pela classe trabalha-dora uma meta da sua luta: acima de tudo, as formas jurdica e polti-ca estatal tm de ser extintas, permitindo, ento, que os trabalhadores apropriem diretamente os meios de produo e se organizem, social e politicamente, de modo livre e autnomo. O socialismo , necessaria-mente, a superao das formas sociais do capitalismo.

  • 18

    No percurso dessas trs obras poltico-jurdicas de Marx e Engels, revela-se a passagem de uma crtica de esquerda, quase romntica, do jovem Marx chegada ao nvel terico mais profundo na reflexo sobre o Estado e o direito na reproduo capitalista: suas formas sociais so inexorveis ao capital porque correspondentes diretas da forma valor e da mercadoria. Em tal horizonte reside a mais profunda crtica de nos-sos tempos sociedade capitalista, e a partir dela deve se estabelecer o marco terico e prtico das lutas transformadoras.

  • 19

    A crtica ao idealismo: poltica e ideologia

    Antonio Rago

    Ao longo de sua vida, Karl Marx construiu trs grandes crticas ontolgicas: politicidade; filosofia especulativa e cincia de seu tempo; e s formas do capital. Em seus anos formativos, um pero-do de intensa produo terica, entre 1843 e 1847, em particular com sua deciso de sair da direo do jornal Gazeta Renana, Marx fez uma reviso crtica de suas prprias concepes. Alinhado ao idealismo ati-vo que concebia a forma estatal em sua universalidade, racionalidade e espao de liberdade, ante as contradies sociais que surgiam em solo prussiano, Marx respondeu aos interesses materiais da VI Dieta Renana, que punia os camponeses pela apropriao ilegal de gravetos e galhos nos cercados da propriedade privada. At ento um direito costumeiro e secular. o salto de sua conscincia para desnudar no s que o Estado se degenerava ao acolher a particularidade, mas que Estado e propriedade privada formavam um anel autoperpetuador. A existncia do Estado e a existncia da escravido so inseparveis. Ps-se a decifrar em sua primeira crtica ontolgica as concepes filo-sficas de Hegel. Sua passagem ao materialismo teve como interlocutor o filsofo Ludwig Feuerbach. Para esse pensador, a filosofia hegeliana se apresentava como o ltimo refgio da teologia. Era uma forma de alienao, pois considerava o pensamento como simultaneamente su-jeito e seu prprio predicado. Era o ltimo suporte racional da teolo-gia. Tratava-se de reconhecer o ser em sua efetividade. Todavia, Feuer-bach considerava a essncia humana como generidade muda. Em suas

  • 20

    anotaes Ad Feuerbach, Marx esclarece que a essncia humana no uma abstrao ao indivduo isolado, mas o conjunto de suas relaes sociais. Se Hegel considerava a histria humana como o progresso da conscincia da liberdade, regida por um Esprito Absoluto, Marx pro-punha uma histria aberta. Os indivduos vivos e atuantes como seres autoproducentes em seu processo real de vida. A partir de sua ida a Paris em 1844, o encontro com Engels e a publicao do primeiro e nico fascculo dos Anais Franco-Alemes, Marx abandonou o dispo-sitivo formado pela humanidade de sofridos e pensantes, para abraar a revoluo do proletariado. Expulso de Paris, em 3 de fevereiro de 1845, por ordem do ministro Guizot, dirigiu-se a Bruxelas, onde permane-ceu de fevereiro de 1845 a maro de 1848. Marx e Engels, como scios da vida, traaram vrios escritos contra a corrente neo-hegeliana. A sagrada famlia fez a crtica a Bruno Bauer e seus consortes. Marx de-monstrou a lgica da crtica crtica, pondo a nu o mistrio da cons-truo especulativa. Desmistificaram tambm a concepo idealista da histria, a considerao da passividade das massas, os limites da denncia moral e a confuso entre a emancipao poltica e a eman-cipao humana. A viso idealista no compreendia que o Estado ti-nha sua gerao nos antagonismos sociais e que s a supresso radi-cal do capital podia abrir para uma associao de indivduos livres. A sagrada famlia no se ocupou de poltica revolucionria, mas de mera teologia, no se ateve s contradies da vida burguesa. O Esta-do aperfeioado pelos direitos no suprimia a escravido da sociedade burguesa, no abolia os privilgios dos proprietrios privados. A cr-tica moral foi rebatida pela criao destruidora, a ao revolucionria, pois a moral a impotncia posta em ao. Em A ideologia alem, obra volumosa s publicada em 1932, os scios da vida expuseram a nova concepo materialista da histria. A contraposio a Feuerbach e aos

  • 21

    neo-hegelianos se fez pela determinao social da ideologia. No mate-rialismo feuerbachiano a histria no se fazia presente. Materialismo e histria nele se contrapunham. Marx e Engels detectaram momentos significativos da misria alem, da impotncia da burguesia como ser social que dividia o poder com a nobreza rural a fim de alijar as classes operria e camponesa. Ao contrrio da filosofia alem, que desce do cu terra, aqui, enfatizaram, se eleva da terra ao cu. As representa-es ideolgicas que configuravam um mundo invertido foram extra-das do processo real de vida social. Da a assertiva: no a conscincia que determina a vida, mas a vida que determina a conscincia. No se tratava de partir de conceitos, fantasias ou receitas filosficas, mas sim de partir da atividade prtica sensvel dos indivduos. De indivduos atuantes em suas condies materiais de vida, que contraam relaes polticas e sociais determinadas. O modo de produo no se reduzia reproduo biolgica ou reproduo sexual. Tratava-se de uma ma-neira determinada de existncia social. Os indivduos so o que fazem e o como fazem, num metabolismo constante entre eles e a natureza. As abstraes filosficas separadas dos comportamentos humano-so-cietrios perderam seu significado. No mbito da sociedade classista, a classe que controla os meios de produo material tambm contro-la os meios espirituais; as ideias dominantes so a expresso ideal da dominao burguesa. O Estado dos proprietrios se apresentava como comunidade ilusria, que necessitava das representaes ideolgicas para impor s maiorias seus interesses particulares como universali-dade. A contradio entre as relaes de produo e o desenvolvimen-to das foras produtivas abre para o processo revolucionrio. O mer-cado mundial com o inerente desenvolvimento das foras produtivas materiais abre para a possibilidade objetiva da emancipao humana. A libertao do indivduo singular poder ser alcanada na medida

  • 22

    em que, superando as barreiras locais e nacionais e destruindo a forma capital, dispor a riqueza genrica humana do mundo inteiro plenifi-cao de todos os indivduos.

  • 23

    O Manifesto do Partido Comunista (que, desde 1872, passou a ser co-nhecido simplesmente como Manifesto Comunista) completa 165 anos de publicao e continua a desempenhar papel absolutamente mpar na cultura e na prtica polticas do mundo contemporneo.

    Foi na primeira metade da dcada de 1840 que Engels (em 1843, em Londres) e depois Marx (em 1844, em Paris) entraram em contato, independentemente um do outro, com a Liga dos Justos, dispondo- -se a colaborar com seus membros, mas recusando-se a aderir formal-mente a ela, em razo de seu secretismo, confusionismo ideolgico e utopismo. De todas as relaes estabelecidas por Marx e Engels at en-to, a mais decisiva foi com a Liga (ciso de uma antecedente Liga dos Proscritos). Composta especialmente por artesos alemes emigrados, ei vada de ideias conspirativas e nutrida de utopias, a Liga dos Justos entrou em crise em meados dos anos 1840. No marco dessa crise, al-guns de seus dirigentes ganham o respaldo de Marx e Engels para a realizao de um congresso a fim de revisar suas concepes, condi-o imposta por ambos para ingressar na organizao. Em junho de 1847, a Liga se reuniu em um congresso em Londres (com a presena de Engels), transformou-se em Liga dos Comunistas e decidiu realizar um segundo congresso, precedido por uma ampla discusso acerca de sua reestruturao e de suas propostas programticas. Essa discusso prolongou-se at que, novamente em Londres, foi realizado outro con-gresso com delegados de vrios pases europeus, entre 29 de novembro

    A relevncia e atualidade do Manifesto Comunista

    Jos Paulo Netto

  • 24

    e 8 de dezembro, e, agora, com Marx e Engels. Os dois, eleitos para a direo central da Liga, foram incumbidos de redigir o seu manifes-to programtico. Foi assim que, entre dezembro de 1847 e janeiro de 1848, dedicaram-se elaborao do Manifesto, cujos primeiros 3 mil exemplares em alemo foram publicados em Londres, na ltima sema-na de fevereiro de 1848.

    O documento profundamente inovador na tradio de manifes-tos, inaugurada pelo que o Eric Hobsbawm chamou de era das re-volues: foi o primeiro, entre todos, a apresentar uma programtica sociopoltica embasada teoricamente. Suas propostas no partem de uma prospeco utpica de um futuro a ser construdo pela dedicao eticamente generosa de uma vanguarda ilustrada, mas da anlise das possibilidades concretas postas na dinmica histrica pelo desenvol-vimento real da situao presente. Por isso, o comunismo no aparece somente como a aspirao a uma sociedade onde o livre desenvolvi-mento de cada um a condio para o livre desenvolvimento de todos; antes, uma possibilidade concreta que se inscreve na dinmica da rea-lidade: o evolver da sociedade burguesa pe objetivamente a alternativa comunista (pelo florescer das foras produtivas, pela exigncia de uma fora de trabalho crescentemente organizada, pela interdependncia de todos os pases por meio da criao do mercado mundial e, sobretudo, pela radicalizao da contradio entre a produo progressivamente socializada e a apropriao privada do excedente econmico).

    Revoluo e exlioEm fevereiro de 1848, quase simultaneamente publicao do Ma-

    nifesto, a revoluo eclodiu em Paris e logo se espraiou pelo continente. Fasca que incendiou a plvora acumulada desde a reao promovida pela Santa Aliana, o processo abalou o edifcio europeu de ponta a

  • 25

    ponta, experimentou auges e refluxos por quase dezoito meses, envol-veu exigncias socioeconmicas, demandas polticas e aspiraes na-cionais e teve fim com a derrota das foras mais progressistas. O ano de 1848 foi um divisor de guas e adquiriu significado histrico-universal: esgotada a sua vocao emancipatria, a burguesia se retraiu no espao do conservadorismo (ou do reformismo conservador) e o proletariado emergiu na histria como classe para si; a herana ilustrada da Mo-dernidade, direita, foi ferida pelo emergente irracionalismo, o centro degradou-se no positivismo, e, a esquerda, foi criticamente recolhida pelos revolucionrios. No epicentro francs, a subsequente vitria elei-toral de Lus Napoleo demonstrou que conquistas democrticas po-diam ser neutralizadas e, na periferia europeia, foi breve a primavera dos povos mas o mundo mudou.

    Um balano exaustivo do Manifesto seguramente haveria de com-provar que os limites que nele hoje identificamos dificilmente poderiam ser evitados nas condies existentes h 165 anos. Entretanto, a prpria condio de que foi revestido objetivamente, a de documento histrico, obriga, ademais de contextualizar as limitaes do texto, a consider-lo com o olhar de hoje, mediado pelas traumticas experincias de um s-culo sobre cujos principais eventos o Manifesto incidiu com fora.

    O leitor de 2013 no encontrar nesse texto respostas para todas as suas questes, mas poder notar que ele oferece, com uma antecipao de mais de um sculo, um painel crtico e rigoroso da modernidade capitalista. A mundializao das relaes capitalistas, a mercantiliza-o universal das relaes sociais, o assalariamento generalizado, a insegurana social institucionalizada, a constituio de um mercado global, a gravitao urbana, o significado das comunicaes velozes, o desenvolvimento cientfico e tecnolgico todo esse complexo aparece sintetizado na apreciao do mundo burgus, caracterizado pela sub-

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    verso contnua da produo, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitao permanente.

    No preciso nenhum grau de simpatia para com o Manifesto para reconhecer a o nosso mundo de 2013. Ele, todavia, no se limita a des-crever, to antecipada e rigorosamente, os traos constitutivos do hoje. Dissolvendo a aparncia natural e eterna deste mundo, ele prope a sua radical transformao atravs da ao organizada dos homens e se, como vimos, necessrio repensar o sujeito social dessa ao, ele oferece um projeto que no perdeu seu duradouro fascnio: o projeto de uma sociedade emancipada, a que nomeou comunismo. Nisto reside sua atualidade: para alm da extraordinria antecipao analtica do nosso tempo, a proposio de que ele pode (e deve) ser diferente. Por isso mesmo, o objetivo desta aula o de lembrar-nos que o Manifesto ainda tem muito a dizer ao mundo no sculo XXI.

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    Karl Marx foi, antes de tudo, um terico da revoluo, no um cien-tista que dela se ocupava nas horas vagas. De modo amplo, sua experincia revolucionria, direta ou indireta, abrangeu o perodo do ltimo quartel do sculo XVIII at o incio do ltimo quartel do scu lo XIX, da Revoluo Francesa at a Comuna de Paris. O jacobinismo lhe forneceu um modelo geral revolucionrio contemporneo, capaz de fa-zer andar o mundo de ponta cabea, ao representar a vontade como encarnao do princpio da poltica (e) do Estado, um momento de genialidade no qual o terror sacrificou a sociedade burguesa (ou seja, a base material e econmica da revoluo) em favor de uma concepo antiga [da Antiguidade] da vida poltica, que entrou em contradio violenta com suas prprias condies de existncia, declarando o es-tado permanente da revoluo, uma iluso trgica desses homens, condenados guilhotina por terem lutado contra a sociedade burguesa, defendendo simultaneamente, nos direitos do homem, o carter sagra-do dos princpios dessa sociedade. Marx no vacilou em qualificar o jacobinismo de enigma terico e psicolgico. Um enigma ou incg-nita sobre cuja interpretao estariam baseadas todas as concepes de partido revolucionrio ulteriores. Um dos projetos no realizados do jovem Marx foi escrever um trabalho intitulado A Revoluo Francesa: o nascimento do Estado moderno, ou Histria da Conveno.

    Ao intervir, primeiro, e abordar o estudo, depois, das revolues de 1848, Marx (e Engels) j possua as linhas gerais de um modelo revolu-

    Anlises concretas da luta de classes

    Osvaldo Coggiola

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    cionrio contemporneo. Nos meios operrios cresciam as sociedades secretas, em especial na Frana, defendendo uma espcie de jacobinis-mo radicalizado, nos moldes do comunismo de Babeuf e do revolu-cionarismo permanente apregoado por Blanqui, herdeiro do volunta-rismo poltico jacobino; nos meios intelectuais aumentava a influncia de autores como Saint-Simon, Aurore Dupin, Charles Fourier, Victor Considerant e Robert Owen. Intelectuais radicais e socialistas entraram em contato com o nascente movimento operrio na Frana e na Ingla-terra. Em 1835, Flora Tristan publicou seu primeiro folheto, dedicado situao das mulheres estrangeiras pobres na Frana; Flora aprofundou seu compromisso com as lutas sociais, pela emancipao feminina e da classe operria, contra a pena de morte, o obscurantismo religioso e a escravido. Na Sociedade das quatro estaes, o comunismo de Blanqui, alis um frequentador das prises da monarquia do Rei Burgus, tor-nou-se fora atuante e conspirativa. Flora escreveu A Unio Operria (1843) e A emancipao da mulher (1846) e realizou por toda a Frana a tarefa de organizar a Unio Operria, que recorria experincia do nascente movimento operrio ingls, mas com nfase internacionalista e socialista. A temida revoluo democrtica acabaria reaparecendo na Europa, em 1848, com bases sociais diferenciadas e com uma ideologia mais radical do que a de 1789. Em 1848, revelou-se tambm o socialismo (e o comunismo) como nova fora poltica atuante no cenrio europeu.

    Os escritos de Marx e Engels sobre as revolues de 1848 no podem ser considerados incidentais ou brilhantes anlises prprias do jorna-lismo revolucionrio. Sua abordagem dos processos revolucionrios e de seu declnio delineou uma teoria da revoluo, da luta de classes ho-dierna e da organizao revolucionria do Estado. Em As lutas de clas-ses na frana 1848-1850 comparece, pela primeira vez, a noo de dita-dura do proletariado como concluso dessa luta, ao mesmo tempo em

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    que a ideia de revoluo permanente. Na posterior Circular Liga dos Comunistas, de 1850, Marx props desconfiar dos democratas peque-no-burgueses que, numa futura (e prxima) revoluo, iriam querer det-la no estgio democrtico, em que seus estreitos interesses de classe fossem satisfeitos, propondo a frmula de revoluo em per-manncia. Em carta a Engels, Marx caracterizou a Circular como um plano de guerra contra a democracia (entendendo por democracia a corrente poltica pequeno-burguesa, no um sistema poltico). Dcadas mais tarde, Engels afirmaria que o erro da Circular fora o ritmo, no que diz respeito iminncia da revoluo, porque o capitalismo continha ainda importantes possibilidades de um amplo desenvolvimento das foras produtivas, mas no um mtodo.

    Com o nascimento do Segundo Imprio, Marx, em O 18 de brum-rio de Lus Bonaparte, completou o balano do processo que, na Fran-a, deu origem poltica contempornea: A repblica social apareceu como fraseologia, como profecia no limiar da Revoluo de Fevereiro. No ms de junho de 1848, ela foi afogada no sangue do proletariado parisiense, mas rondou os atos seguintes do drama como um espectro. Anuncia-se a repblica democrtica. Esta se desmancha no ar em 13 de junho de 1849 com a fuga dos seus pequeno-burgueses, que ao fugir redobram os reclames a seu favor. Pelas mos da burguesia, a repblica parlamentar apodera-se de todo o cenrio, expandindo a sua existncia em toda a sua amplitude, at que o dia 2 de dezembro de 1851 a sepulta sob a gritaria angustiada dos monarquistas coligados: Viva a repbli-ca!. A democracia burguesa e o autoritarismo do Ancien Rgime se unificaram de vez contra o espectro evocado no Manifesto Comunista, transformado em realidade social.

    A Comuna de 1871 assinalou, por isso, o nascimento de um novo tipo de revoluo, analisado por Marx em A guerra civil na Frana. O

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    proletariado, para exercer o poder poltico e dissolver a sociedade de classes, no poderia se limitar a se apropriar da mquina do Estado existente; devia, ao contrrio, destru-la. O Estado-Comuna seria um Estado em vias de dissoluo. No texto marxiano elaborada, pela pri-meira vez e a partir da prpria experincia da Comuna, uma teoria do Estado na passagem revolucionria para uma sociedade sem classes. Em 1871, quando caram os ltimos communards atingidos pelas balas da reao francesa, encerrou-se um captulo da histria do movimento operrio e socialista mundial. Uma cortina de violncia desceu sobre o cenrio poltico europeu. Liberais e conservadores, republicanos e mo-narquistas se uniram numa nova Santa Aliana contra o proletariado revolucionrio. O legado poltico de Marx para os sculos futuros se concentra nos textos supracitados, redigidos entre 1850 e 1871.

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    A constituio do proletariado e sua prxis revolucionria

    Ricardo Antunes

    O eixo da aula explorar analiticamente a formao e desenvolvi-mento da classe trabalhadora/proletariado na obra de Marx, atra-vs do seu advento e de sua insero decisiva no capitalismo, como polo gerador de valor e de contraposio ao capital.

    Mostraremos o quo fundamental foi a influncia de Engels na g-nese e elaborao desse sujeito vital na obra de Marx, especialmente por intermdio do impacto de seu livro A situao da classe trabalhadora na Inglaterra (1845).

    Tomando esse referencial como ponto de partida, a aula ampliar a discusso at a concepo de Marx sobre a classe trabalhadora/proleta-riado em sua obra de maturidade (O capital, 1867), oferecendo os con-tornos mais gerais do conceito marxiano de classe trabalhadora/prole-tariado, elaborado a partir de uma complexa dimenso relacional entre mundo da objetividade e subjetividade.

    Aqui a remisso obra acentuadamente poltica de Marx ser im-prescindvel, discorrendo como as dimenses de classe, conscincia de classe e prxis revolucionria s podem ser plenamente compreendidas a partir de sua monumental crtica da economia poltica. O Manifesto Comunista (1848) e O 18 de brumrio de Lus Bonaparte (1852), en-tre outros, sero referncias importantes. De modo bastante sinttico, podemos dizer que Marx e Engels consideravam a classe trabalhadora/proletariado, na Europa de meados do sculo XIX, como o conjunto dos trabalhadores assalariados que viviam da venda de sua fora de trabalho

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    em troca de salrio, uma vez que eram despossudos dos meios de produ-o. Encontrava seu ncleo central no operariado industrial, que Marx concebia, no plano da materialidade, como formado pelos trabalhadores produtivos geradores de mais-valor e que atuavam no espao fabril. O trabalho produtivo pode ser assim resumido:

    1. expressa a ao dos trabalhadores e trabalhadoras que realiza-vam atividades geradoras de mais-valor;2. pago por capital-dinheiro e no por renda; 3. expressa uma forma de trabalho complexo, coletivo e social, con-formando a totalidade do trabalho social; 4. participa tanto da produo material, amplamente predominan-te, e tambm daquela esfera produtiva imaterial (ou no material). (Conforme Marx nO Capital (1867) e tambm no denominado Ca-ptulo indito, VI).A classe trabalhadora incorpora tambm, segundo Marx, a tota-

    lidade do trabalho social, a totalidade do trabalho coletivo, que vende sua fora de trabalho como mercadoria em troca de salrio. Se ela composta centralmente pelo conjunto de trabalhadores produtivos que produzem mais-valor e que participam do processo de valorizao do capital, ela incorpora tambm o conjunto dos trabalhadores improdu-tivos, cujas formas de trabalho so utilizadas como servios, tanto para uso pblico como para uso capitalista.

    O trabalho improdutivo, como veremos mais detalhadamente, en-to, aquele que no se constitui como elemento vivo no processo direto de valorizao do capital e de criao de mais-valor. Eles pertencem ao que Marx chamou de falsos custos, os quais, entretanto, so impres-cindveis para sobrevivncia do capital e de seu metabolismo social.

    Assim, para Marx, se todo trabalho produtivo assalariado, nem todo trabalhador assalariado produtivo e a noo de classe trabalha-

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    dora/proletariado articula indelevelmente as duas dimenses, numa complexa articulao entre as esferas da materialidade e da subjetivida-de, da objetividade e da conscincia de classe.

    Exploraremos ainda outra importante questo, a partir das indica-es de Marx: o proletariado moderno, que exerce atividades conside-radas produtivas, tem papel de centralidade nas lutas anticapitalistas pelo fato de ser gerador de mais-valor? Ou, ao contrrio, o conjunto ampliado do proletariado, em sua heterogeneidade, incluindo os n-cleos improdutivos, tambm exerce um papel poltico central nas lutas contra o capital? Em outras palavras: nos embates desencadeados pelos trabalhadores, possvel detectar maior potencialidade anticapitalista naqueles segmentos que tm maior participao no processo de criao de valor ou, pelo contrrio, o polo mais frtil da ao encontra-se exata-mente naqueles segmentos sociais mais precarizados, nos estratos mais subproletarizados? E mais: ser que esse dualismo encontra respaldo na obra de Marx e Engels?

    Sero estes os pontos centrais que pretendemos desenvolver ana-liticamente em nossa aula, tendo como base os seguintes textos: In-troduo, em Crtica da filosofia do direito de Hegel (Boitempo, 2005); Trabalho estranhado e propriedade privada, em Manuscritos econ-micos-filosficos (Boitempo, 2004); captulo 1, A mercadoria (itens 1, 2 e 4), em O capital (Boitempo, 2013), Livro I; captulo VI (indito), em O capital (Cincias Humanas, s.d.); O 18 de brumrio (Boitempo, 2011); Burgueses e proletrios e Proletrios e comunistas, em Manifesto Comunista (Boitempo, 1998).

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    A crtica ontolgica do capitalismo

    Mario Duayer

    Neste mdulo do IV Curso Livre Marx-Engels, promovido pela Boitempo, procuraremos enfatizar que a motivao de Karl Marx para iniciar o processo consolidador da crtica da economia poltica foi a perspectiva de uma crise de grandes propores na Eu-ropa na segunda metade do sculo XIX. O que no significa dizer, no entanto, que Marx um proxeneta das crises. Na verdade, ele no v nas crises a soluo, mas momentos mais favorveis para as lutas emancipatrias. Todavia, as lutas ensejadas pelas crises, para se-rem emancipatrias, no podem ser meramente reativas, espontneas. Por isso, possvel afirmar que a crtica da economia poltica marxia-na comea a ser elaborada como outra descrio, radicalmente crtica da sociedade capitalista, da lgica de sua dinmica, de suas contradi-es e dos futuros possveis e, sobretudo, desejveis que poderiam e deveriam inspirar as lutas sociais. Para diz-lo em poucas palavras, Marx comeava a esboar, de maneira sistemtica e como negao determinada da economia capitalista, uma ontologia crtica outra figurao de mundo, que, por isso mesmo, permitia pensar outras fi-nalidades, outros valores, outras prticas, no caso, emancipatrias. Ao contrrio, portanto, da(s) ontologia(s) geradas(s) e requerida(s) pelas estruturas da ordem capitalista.

    Admitindo que essa uma interpretao correta do pensamento de Marx, o argumento deve explicar, em primeiro lugar, o que significa crtica ontolgica e que a crtica genuna crtica ontolgica e, em se-

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    gundo, que a crtica ontolgica elaborada por Marx a da centralidade do trabalho.

    A primeira parte do argumento discute a impugnao de toda on-tologia pela tradio positivista e a sua refutao por parte de autores ps-positivistas (Thomas Kuhn e Irme Lakatos, por exemplo). A con-cluso dessa disputa no interior da filosofia da cincia deixa paten-te que as questes ontolgicas so incontornveis e, ademais, que as diferenas substantivas entre teorias ou correntes tericas sempre so ontolgicas ou seja, referem-se a interpretaes radicalmente distin-tas do mundo.

    Com isso, fica esclarecido o motivo de o pensamento de Marx re-presentar outra figurao do mundo social e, igualmente, a relevncia da dimenso ontolgica de tal crtica. Nesse caso, pretende-se indicar brevemente, com base em algumas passagens de sua obra, que a crtica ontolgica crtica do trabalho no capitalismo esta ltima como ca-tegoria estruturante da sociabilidade.

    Abordaremos nesta em especial os Grundrisse, que constituem o primeiro de uma srie de manuscritos escritos por Marx no desenvol-vimento de sua crtica da economia poltica, que culmina na publicao do Livro I dO capital, em 1867. Na verdade, essa crtica tem sua primei-ra verso publicada em 1859, logo em seguida redao dos Grundrisse, sob o ttulo de Para a crtica da economia poltica o primeiro volume de uma obra inicialmente projetada para seis livros. As investigaes preparatrias dos demais livros terminaram por suscitar a modificao do projeto original e resultaram nos chamados Manuscritos de 1861- -1863 e de 1863-1865.

    Na dcada e meia que transcorre desde os primeiros estudos de economia poltica at a redao do primeiro caderno dos Grundrisse, Marx deixa registrado em inmeros cadernos de excertos e de notas o

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    material que testemunha durante o processo de elaborao de sua cr-tica da economia poltica. Os Grundrisse marcam exatamente o prin-cpio da consolidao do processo que assume uma forma definitiva, ainda que parcial, somente dez anos mais tarde no Livro I dO capital.

  • Carta de Karl Marx a Friedrich Engels

    2 horas da manh, 16 de agosto de 1867Dear Fred,Acabei de corrigir a ltima folha (49) do livro. O apndice Forma de valor , impresso em fonte reduzida, abrange 11/4 folhas. Ontem foi enviado o prefcio, corrigido. Assim, este volume est pronto. Apenas a ti devo agradecer que isso tenha sido possvel! Sem teu sacrifcio por mim, eu jamais teria conseguido realizar o gigantesco trabalho desses trs volumes. I embrace you, full of thanks!Anexadas, 2 folhas das provas de impresso.As 15 foram recebidas com a mxima gratido.Salut, meu caro, precioso amigo!Teu K. MarxS precisarei das provas de impresso de volta quando o livro j estiver publicado.

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    A crtica da economia polticaJorge Grespan

    Publicado por Karl Marx pela primeira vez em 1867 e numa verso modificada pelo prprio autor em 1872, o Livro I dO capital s teve sequncia aps a morte de Marx, com a publicao por Friedrich Engels dos segundo e terceiro volumes em 1885 e 1894, respectivamente. Cada um dos livros trata de um momento especfico do modo de existncia do capital, definido em geral como relao social que permeia e determina a sociabilidade burguesa. No primeiro, trata-se do processo direto de produo de mercadorias pelo capital, tendo como centro a relao en-tre capital e trabalho assalariado. No segundo, o objeto a circulao de mercadorias realizada pelo capital, nos mbitos individual e social. No terceiro, por fim, o centro da anlise deslocado para a concorrncia entre as formas de capital, como modo de distribuio do mais-valor produzido pela fora de trabalho empregada produtivamente.

    Compreender essa arquitetnica obra de Marx nos seus trs nveis, bem como as relaes internas dos conceitos em cada um, o objetivo da aula em questo. Alm do Livro I, com a parte histrica e os con-ceitos de mercadoria, dinheiro e explorao, a aula dedicar ateno especial ao Livro III, cujo enfoque se aproxima da realidade visvel do capitalismo e torna a teoria de Marx imediatamente plausvel para o pblico geral, acostumado com o noticirio econmico, mas no tanto com a teoria do valor trabalho. Essa teoria, que pode parecer abstra-ta se tomada isoladamente, dever ser tambm compreendida sob um ponto de vista diferente do tradicional, quando a transformao de va-

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    lores em preos for levada em considerao desde o incio. Por isso, o mbito pelo qual a concorrncia distribui o mais-valor entre os vrios ramos capitalistas ser apresentado como momento derivado da teoria do valor, mas ao mesmo tempo pressuposto na dinmica da diviso do trabalho social daquilo que o Livro I chama de circulao simples.

    Por fim, a aula Sobre O capital de Marx procurar explicitar como cada momento da apresentao dos conceitos dessa obra est consti-tudo pela fora da contradio inerente a este sistema econmico, ex-pressada na realidade pelas crises que o atingem periodicamente. A cri-se econmica no explicada apenas em determinada parte da obra, mas em toda ela, numa ordem que a leitura dever recuperar. A crtica da economia poltica, que aparece como subttulo dO capital, ser da entendida no sentido amplo, pelo qual Marx se contrape tanto teo-ria econmica do seu tempo, que de fato est ainda a presente, como ao sistema real das relaes institudas pelo capital. Esta ltima crtica no consiste em uma condenao subjetiva ao sistema, apontando erros e injustias, mas em evidenciar e explicar como nele so inevitveis as crises econmicas. Com isso, pretendemos mais uma vez estabelecer a relao do texto de Marx com a realidade atual, marcada em escala crescente pela crise mundial.

    Toda esta anlise, entretanto, no supe grande conhecimento pr-vio da obra de Marx por parte do pblico, devendo ficar acessvel a ele pelo curso da prpria aula. Eventual aprofundamento ocorrer por conta de questes especficas propostas no debate.

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    Democracia, trabalho e socialismo

    Ruy Braga

    Sabidamente, a anlise do processo de trabalho capitalista ocupa o corao do Livro I dO capital. Ao surgimento do trabalhador co-letivo e sua posterior subsuno ao sistema de mquinas, Karl Marx dedicou vrios captulos, entre eles o mais longo de todos os trs li-vros, de sua obra-prima. Ofereceu-nos, assim, um verdadeiro modelo de como so forjados os automatismos sociais que singularizam a es-trutura social capitalista, impondo-se de forma autocrtica ao conjunto dos agentes, sejam eles capitalistas ou trabalhadores. Complementado pela anlise do salrio e pela histria do processo de expropriao dos produtores diretos, a formao da classe trabalhadora sob o capitalismo recebeu do pai do socialismo cientfico um tratamento privilegiado.

    O mesmo no pode ser dito de sua noo da organizao do traba-lho no socialismo. Afora algumas vagas sugestes presentes nos cap-tulos dedicados jornada de trabalho e indstria moderna, alm de certas formulaes abstratas, a superao positiva do trabalho aliena-do ou a livre associao dos produtores diretos, por exemplo, Marx no nos legou uma teoria sobre, afinal, como as relaes de produo emancipadas poderiam plasmar um processo de trabalho emancipado.

    Na realidade, quando a experincia histrica da Revoluo Russa veio luz, os bolcheviques podiam contar com abundantes indicaes de como as relaes polticas poderiam se reorganizar sob o socialis-mo, tendo em vista, em especial, os escritos de Marx sobre a Comuna de Paris. Entretanto, no tocante organizao das relaes sociais de

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    produo, nada parecido fazia parte do cabedal das ideias marxistas. A tarefa histrica de forjar essas relaes recaiu sobre uma gerao de revolucionrios profissionais, pouco versada em temas do trabalho. Sem mencionar o conhecido atraso capitalista da Rssia ou as condies his-tricas da revoluo, mesmo o contato mais elementar da maioria das li-deranas bolcheviques com a classe operria russa foi severamente obs-taculizado pela experincia de incontveis anos no exlio ou na priso.

    Tendo em vista essas duas limitaes, isto , uma de natureza teri-ca e outra histrica, a organizao do trabalho no socialismo foi, desde o incio da experincia sovitica, constrangido por uma frgil demo-cracia produtiva. Fragilidade esta que apenas se acentuou ao longo do perodo marcado pelo Termidor sovitico, ou seja, pela contrarrevo-luo stalinista. O objetivo desta aula ser o de problematizar a relao entre trabalho e democracia luz da experincia da organizao do processo de trabalho sob o socialismo. Assim, partiremos das poucas indicaes de Marx a respeito da superao do trabalho alienado, avan-ando pela complexa posio de Lenin acerca do taylorismo sovitico, pelas experincias stakhanovistas dos anos 1930, at chegarmos s in-meras tentativas russas de reelaborar o modelo sovitico de organiza-o do trabalho aps a morte de Joseph Stalin (1953).

    Para tanto, recorreremos s etnografias do trabalho socialista que buscaram explorar as caractersticas mais salientes da organizao do trabalho no bloco sovitico por meio, sobretudo, da teoria do regime fabril desptico-burocrtico, desenvolvida por, entre outros, Michael Burawoy. Finalmente, buscaremos retirar algumas lies da experin-cia histrica da organizao do trabalho no socialismo, a fim de atuali-zarmos a crtica marxista alienao capitalista do trabalho.

  • Leituras complementares

  • Fac-smile de pgina do livro Crtica da filosofia do di-reito de Hegel.

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    Crtica da filosofia do direito de Hegel Introduo*

    Karl Marx

    Na Alemanha, a crtica da religio est, no essencial, terminada; e a crtica da religio o pressuposto de toda a crtica.

    A existncia profana do erro est comprometida, depois que sua celestial oratio pro aris et focis** foi refutada. O homem, que na reali-dade fantstica do cu, onde procurava um super-homem, encontrou apenas o reflexo de si mesmo, j no ser tentado a encontrar apenas a aparncia de si, o inumano, l onde procura e tem de procurar sua autntica realidade.

    Este o fundamento da crtica irreligiosa: o homem faz a religio, a religio no faz o homem. E a religio de fato a autoconscincia e o autossentimento do homem, que ou ainda no conquistou a si mes-mo ou j se perdeu novamente. Mas o homem no um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem o mundo do homem, o Esta-do, a sociedade. Esse Estado e essa sociedade produzem a religio, uma conscincia invertida do mundo, porque eles so um mundo invertido. A religio a teoria geral deste mundo, seu compndio enciclopdico, sua lgica em forma popular, seu point dhonneur *** espiritualista, seu

    * O texto Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie Einleitung foi escrito entre de-zembro de 1843 e janeiro de 1844 e publicado nos Anais Franco-Alemes (Deutsch- -Franzsische Jahrbcher) em 1844. Traduzido por Rubens Enderle e publicado pela Boitempo no livro Crtica da filosofia do direito de Hegel (2010). (N. E.)

    ** Orao para altar e fogo. (N. E.)*** Ponto de honra. (N. T.)

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    entusiasmo, sua sano moral, seu complemento solene, sua base geral de consolao e de justifica o. Ela a realizao fantstica da essncia humana, porque a essncia humana no possui uma realidade verda-deira. Por conseguinte, a luta contra a religio , indiretamente, contra aquele mundo cujo aroma espiritual a religio.

    A misria religiosa constitui ao mesmo tempo a expresso da mi-sria real e o protesto contra a misria real. A religio o suspiro da criatura oprimida, o nimo de um mundo sem corao, assim como o esprito de estados de coisas embrutecidos. Ela o pio do povo.

    A supresso [Aufhebung] da religio como felicidade ilusria do povo a exign cia da sua felicidade real. A exigncia de que abandonem as iluses acerca de uma condio a exigncia de que abandonem uma condio que necessita de iluses. A crtica da religio , pois, em germe, a crtica do vale de lgrimas, cuja aurola a religio.

    A crtica arrancou as flores imaginrias dos grilhes, no para que o ho mem suporte grilhes desprovidos de fantasias ou consolo, mas para que se desvencilhe deles e a flor viva desabroche. A crtica da re-ligio desengana o homem a fim de que ele pense, aja, configure a sua realidade como um homem desenganado, que chegou razo, a fim de que ele gire em torno de si mesmo, em torno de seu verdadeiro sol. A religio apenas o sol ilusrio que gira em volta do homem enquanto ele no gira em torno de si mesmo.

    Portanto, a tarefa da histria, depois de desaparecido o alm da verdade, estabelecer a verdade do aqum. A tarefa imediata da filoso-fia, que est a servio da histria, , depois de desmascarada a forma sagrada da autoalienao [Selbstentfremdung] humana, desmascarar a autoa lienao nas suas formas no sagradas. A crtica do cu trans-forma-se, assim, na crtica da terra, a crtica da reli gio, na crtica do direito, a crtica da teologia, na crtica da poltica.

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    A exposio que se segue* uma contribuio a esse trabalho no se ocupa diretamente do original, mas de uma cpia, a filosofia alem do Estado e do direito, pela simples razo de se referir Alemanha.

    Se nos ativermos ao status quo alemo, mesmo que da nica ma-neira ade quada, isto , negativamente, o resultado permaneceria um anacronismo. Mesmo a negao de nosso presente poltico j um fato empoeirado no quarto de despejo histrico das naes modernas. Se nego as perucas empoadas, fico ainda com as perucas desempoadas. Quando nego a situao alem de 1843, no me encontro nem mesmo, segundo a cronologia francesa, no ano de 1789, quanto menos no cen-tro vital do perodo atual.

    A histria alem, verdade, orgulha-se de um desenvolvimento que nenhuma nao no firmamento histrico realizou antes dela ou chega-r um dia a imitar. Tomamos parte nas restauraes das naes moder-nas, sem termos to mado parte nas suas revolues. Fomos restaurados primeiramente porque outras naes ousaram fazer uma revoluo e, em segun do lugar, porque outras na es sofreram contrarrevolues; no primeiro caso, porque nossos senhores tiveram medo e, no segundo, porque nada temeram. Tendo nossos pastores frente, encontramo-nos na sociedade da liberda de apenas no dia do seu sepultamento.

    Uma escola que legitima a infmia de hoje pela de ontem, que consi-dera como rebelde todo grito do servo contra o aoite desde que este seja um aoite venervel, ancestral e histrico; uma escola qual a histria, tal como o Deus de Israel fez com o seu servo Moiss, s mostra o seu

    * Marx refere-se sua inteno de publicar um estudo crtico da Filosofia do direito de Hegel, a que o presente ensaio serviria de introduo. O estudo crtico corresponde ao texto aqui publicado, nas pginas que antecedem esta introduo. (N. E.)

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    a posteriori a Escola histrica do direito* , tal escola teria, assim, in-ventado a histria alem, no fosse ela uma inveno da histria alem. Um Shylock, mas um Shylock servil, que sobre seu ttulo de crdito, seu ttulo de crdito histrico, germnico-cristo, jura por cada libra de carne cortada do corao do povo.

    Em contrapartida, entusiastas bonacheires, chauvinistas alemes por san gue e liberais esclarecidos por reflexo buscam nossa histria de liberdade alm de nossa histria, nas primitivas florestas teutnicas. Mas, se ela s pode ser encontrada nas florestas, em que se diferencia a hist-ria da nossa liberdade da histria da liberdade do javali? Alm disso, conhecido o provrbio: o que para dentro da floresta se grita, para fora da floresta ecoa. Assim, deixemos em paz as antigas florestas teutnicas!

    Mas declaremos guerra situao alem! Sem dvida! Ela est abai-xo do nvel da histria, abaixo de toda a crtica; no obstante, continua a ser um objeto da crtica, assim como o criminoso, que est abaixo do nvel da humanidade, continua a ser um objeto do carrasco. Em luta contra ela, a crtica no uma paixo da cabea, mas a cabea da pai-xo. No um bisturi, mas uma arma. Seu objeto seu inimigo, que ela quer no refutar, mas destruir. Pois o esprito de tal situao j est

    * Tendncia nas cincias histricas e jurdicas que surgiu na Alemanha no fim do s-culo XVIII. Seu representante mais destacado foi o jesuta F. K. von Savigny. (N. T.) Savigny, defensor da tese de que o direito refletia a prpria alma de um povo sua cultura, seus costumes , sendo, portanto, refratrio a qualquer reformulao do di-reito orientada pelos princpios racionalistas, foi professor de Marx na Universidade de Berlim entre 1836 e 1837 e o influenciou quanto ao mtodo de estudo, j que era uma prerrogativa da Escola Histrica o estudo exegtico dos textos e documentos relaciona dos ao seu objeto de investigao. Entretanto, muito maior impacto na for-mao intelec tual de Marx teve o principal adversrio de Savigny, Eduard Gans, um hegeliano de tendncias progressistas bastante influenciado por Saint-Simon que propugnava que as leis deveriam ser constantemente transformadas de modo a acom-panharem o prprio desenvolvimento da Ideia. (N. E.)

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    refutado. Ela no constitui, em si e para si, um objeto memorvel, mas sim uma existncia to desprezvel como desprezada. A crtica para si no necessita de ulterior elucidao desse objeto, porque j o compreen-deu. Ela no se apresenta mais como fim em si, mas apenas como meio. Seu pathos essencial a indignao, seu trabalho essencial, a denncia.

    Trata-se de retratar uma presso sufocante que todas as esferas so-ciais exercem umas sobre as outras, uma irritao geral, passiva, uma estreiteza que tanto reconhece como ignora a si mesma, situada nos limites de um sistema de governo que vive da conservao de todas as indigncias, no sendo ele mesmo mais do que a indigncia no governo.

    Que espetculo! A infinita e progressiva diviso da sociedade nas mais diversas raas, que se defrontam umas s outras com pequenas antipatias, m conscincia e grosseira mediocridade; que, precisamente por causa de sua situao alternadamente ambgua e suspeitosa, so tratadas, sem exceo, mesmo que com diferentes formalidades, como existncias concedidas por seus senhores. E at mesmo o fato de serem dominadas, governadas, possudas, elas tm de reconhecer e admitir como uma concesso do cu! Do outro lado, encontram-se os prprios governantes, cuja grandeza est em proporo inversa ao seu nmero!

    A crtica que se ocupa desse contedo a crtica num combate corpo a corpo, e nele no importa se o adversrio nobre, bem-nascido, se um adversrio interessante o que importa atingi-lo. Trata-se de no conceder aos alemes um instante sequer de autoiluso e de resignao. preciso tornar a presso efetiva ainda maior, acrescentando a ela a conscincia da presso, e tornar a ignomnia ainda mais ignominiosa, tornando-a pblica. preciso retratar cada esfera da sociedade alem como a partie honteuse* da sociedade alem, forar essas relaes petri-

    * Parte vergonhosa. (N. T.)

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    ficadas a danar, entoando a elas sua prpria melodia! preciso ensinar o povo a se aterrorizar diante de si mesmo, a fim de nele incutir cora-gem. Assim satisfaz-se uma necessidade do povo alemo, e as neces-sidades dos povos so propriamente as causas finais da sua satisfao.

    E mesmo para os povos modernos, essa luta contra o teor limitado do status quo alemo no carece de interesse, pois o status quo alemo a perfeio manifesta do ancien rgime, e o ancien rgime o defeito oculto do Estado moderno. A luta contra o presente poltico alemo a luta contra o passado das naes modernas, e estas continuam a ser importuna das pelas reminiscncias desse passado. Para as naes mo-dernas, instru tivo assistir ao ancien rgime, que nelas viveu sua trag-dia, desem penhar uma comdia como fantasma alemo. Trgica foi sua histria, porque ele era o poder preexistente do mundo, ao passo que a liberdade, ao contrrio, era uma fantasia pessoal; numa palavra, porque ele mesmo acreditou em sua legitimidade e nela tinha de acreditar. Na medida em que o ancien rgime, como ordem do mundo existente, lu-tou contra um mundo que estava ento a emer gir, ocorreu de sua parte um erro histrico-mundial, mas no um erro pessoal. Seu declnio foi, por isso, trgico.

    Em contrapartida, o atual regime alemo, que um anacronismo, uma flagrante contradio de axiomas universalmente aceitos a nuli-dade do ancien rgime exposta ao mundo imagina apenas acreditar em si mesmo e exige do mundo a mesma imaginao. Se acreditasse na sua prpria essncia, tentaria ele ocult-la sob a aparncia de uma essncia estranha e buscar sua salvao na hipocrisia e no sofisma? O moderno ancien rgime apenas o comediante de uma ordem mundial cujos heris reais esto mortos. A histria slida e passa por muitas fases ao conduzir uma forma antiga ao sepulcro. A ltima fase de uma forma histrico-mundial sua comdia. Os deuses da Grcia, j mor-

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    talmente feridos na tragdia Pro meteu acorrentado, de squilo, tiveram de morrer uma vez mais, comicamente, nos dilogos de Luciano. Por que a histria assume tal curso? A fim de que a humanidade se separe alegremente do seu passado. esse alegre destino histrico que reivin-dicamos para os poderes polticos da Alemanha.

    Mas logo que a prpria moderna realidade poltico-social submeti-da crtica, logo que, portanto, a crtica se eleva aos problemas verdadei-ramente humanos, ela se encontra fora do status quo alemo ou apreen-de o seu objeto sob o seu objeto. Um exemplo: a relao da indstria, do mundo da riqueza em geral, com o mundo poltico um dos problemas fundamentais da era moderna. Sob que forma comea este problema a preocupar os alemes? Sob a forma de tarifas protecionistas, do sistema de proibio, da economia poltica. O chauvinismo alemo passou dos homens para a matria e, assim, nossos cavaleiros do algodo e heris do ferro viram-se, um belo dia, metamorfosea dos em patriotas. Na Ale-manha, portanto, comea-se agora a reconhecer a soberania do mono-plio no interior do pas, por meio da qual se confere ao monoplio a soberania no exterior. Por conseguinte, na Alema nha comea-se, agora, com aquilo que j terminou na Frana e na Inglaterra. A situao antiga, apodrecida, contra a qual essas naes se rebelam teoricamente e que apenas suportam como se suportam grilhes, saudada na Alemanha como a aurora de um futuro glorioso que ainda mal ousa passar de uma teoria astuta* a uma prtica implacvel. Enquanto na Frana e na Ingla-terra o problema se apresenta assim: economia poltica ou domnio da sociedade sobre a riqueza; na Alemanha ele apresentado da seguinte

    * Listig, em alemo, astuto. Jogo de palavras com o nome de Friedrich List (1789-1846): economista e defensor do protecionismo, terico da burguesia ascendente nos anos anteriores a 1848 e promotor da unio alfandegria (Zolverein), da qual aproveitava-se, tambm, a Prssia. (N. T.)

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    maneira: economia nacional ou domnio da propriedade privada sobre a nacionalidade. Portanto, na Frana e na Inglaterra, importa suprimir o monoplio que progrediu at as ltimas consequn cias; na Alema-nha, importa progredir at as ltimas consequncias do monoplio. L, trata-se da soluo, aqui, trata-se da coliso. Um exemplo suficiente da forma alem dos problemas modernos; um exemplo de como nossa his-tria, tal como um recruta inexperiente, at agora s recebeu a tarefa de exercitar-se repetidamente em assuntos histricos envelhecidos.

    Se o desenvolvimento alemo inteiro no fosse alm do seu desen-volvimento poltico, um alemo poderia tomar parte nos problemas do presente apenas na mesma medida em que um russo pode. Mas se o indivduo no coagido pelas limitaes do seu pas, ainda menos a nao libertada por meio da liberta o de um indivduo. O fato de a Grcia contar com um cita entre seus filsofos* no fez com que os citas dessem um passo sequer em direo cultura grega.

    Felizmente, ns, os alemes, no somos citas.Assim como as naes do mundo antigo vivenciaram a sua pr-his-

    tria na imaginao, na mitologia, ns, alemes, vivenciamos a nossa ps-histria no pensamento, na filosofia. Somos contemporneos fi-losficos do presente, sem sermos seus contemporneos histricos. A filosofia alem o prolongamento ideal da histria alem. Quando, portanto, em vez das uvres incompltes** de nossa histria real, cri-ticamos as oeuvres posthumes*** de nossa histria ideal a filoso fia ento nossa crtica situa-se no centro dos problemas dos quais o pre-sente diz: that is the question. O que, para as naes avanadas, cons-

    * Marx refere-se, aqui, a Anacarsis, cita de nascimento, colocado pelos gregos, segundo Digenes Larcio, entre os sete sbios da Grcia. (N. T.)

    ** Obras incompletas. (N. T.)*** Obras pstumas. (N. T.)

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    titui uma ruptura prtica com as modernas condies polticas , na Alemanha, onde essas mesmas condies ainda no existem, imediata-mente uma ruptura crtica com a reflexo filosfica dessas condies.

    A filosofia alem do direito e do Estado a nica histria alem si-tuada al pari com o presente moderno, oficial. A nao alem tem, por isso, de ajustar a sua histria onrica s suas condies existentes e su-jeitar crtica no apenas essas condies existentes, mas igualmen-te sua continuao abstrata. Seu futuro no po de restringir-se nem negao direta de suas condies polticas e jurdi cas reais, nem imediata realizao de suas circunstncias polticas e jurdi cas ideais, pois a negao imediata de suas condies reais est em suas condi-es ideais, e ela quase tem sobrevivido realizao de suas condies ideais na contemplao das naes vizinhas. com razo, pois, que o partido poltico prtico na Alemanha exige a negao da filoso fia. Seu erro consiste no em formular tal exigncia, mas em limitar-se a uma exigncia que ela no realiza seriamente, nem pode realizar. Cr ser capaz de realizar essa negao ao murmurar dando as costas filosofia e afastando dela sua cabea algumas fraseologias furiosas e banais sobre ela. Dada a estreiteza de seu ngulo de viso, no con-sidera que a filosofia encontre-se no mesmo nvel da realidade alem ou at mesmo a situa falsamente abaixo da prtica alem e das teorias que a servem. Reivindicais que se deva seguir, como ponto de partida, o germe da vida real, mas esqueceis que o germe da vida real do povo alemo brotou, at agora, apenas no seu crnio. Em uma palavra: no podeis suprimir a filosofia sem realiz-la.

    O mesmo erro, apenas com fatores invertidos, cometeu o partido terico, oriundo da filosofia.

    Na presente luta, esse partido vislumbrou apenas o combate crtico da filosofia contra o mundo alemo, sem considerar que a prpria filo-

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    sofia at ento existente pertence a esse mundo e constitui seu comple-mento, mesmo que ideal. Crtico contra seu oponente, ele se compor ta acriticamente em relao a si mesmo, na medida em que partiu dos pressupostos da filosofia e ou aceitou seus resultados ou apresentou como exigncias e resultados da filosofia exigncias e resultados extra-dos de outros domnios, embora estes pressupondo-se sua legitimida-de s possam, ao contrrio, ser obtidos pela negao da filosofia at ento existente, da filosofia como filosofia. Reservamo-nos o direito a uma descrio mais detalhada desse partido. Seu defeito fundamental pode ser assim resumido: ele acreditou que pode ria realizar a filosofia sem suprimi-la.

    A crtica da filosofia alem do direito e do Estado, que com Hegel alcanou sua verso mais consistente, rica e completa, consiste tanto na anlise crtica do Estado moderno e da realidade com ele relaciona-da como na negao decidida de todo o modo da conscincia poltica e jurdica alem, cuja expresso mais distinta, mais universal, elevada ao status de cincia, justamente a prpria filosofia especulativa do direito. Se a filosofia especulativa do direito s foi possvel na Alemanha esse pensamento extravagante e abstrato do Estado moderno, cuja efetivida-de permanece como um alm, mesmo que esse alm signifique to so-mente o alm do Reno , a imagem mental alem do Estado moderno, que faz abstrao do homem efetivo, s foi possvel, ao contrrio, porque e na medida em que o prprio Estado moderno faz abstrao do homem efetivo ou satisfaz o homem total de uma maneira puramente imagin-ria. Em poltica, os alemes pensaram o que as outras naes fizeram. A Alemanha foi a sua conscincia terica. A abstrao e a presuno de seu pensamento andaram sempre no mesmo passo da unilateralidade e da atrofia de sua realidade. Se, pois, o status quo do sistema polti-co alemo exprime o acabamento do ancien rgime, o acabamento do

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    espinho na carne do Estado moderno, o status quo da cincia poltica alem exprime o inacabamento do Estado moderno, a deteriorao de sua prpria carne.

    J como oponente resoluto da forma anterior da conscincia polti-ca ale m, a crtica da filosofia especulativa do direito no desgua em si mesma, mas em tarefas para cujas solues h apenas um meio: a prtica.

    Pergunta-se: pode a Alemanha chegar a uma prxis la hauteur des principes*, quer dizer, a uma revoluo que a elevar no s ao nvel oficial das naes modernas, mas estatura humana que ser o futuro imediato dessas naes?

    A arma da crtica no pode, claro, substituir a crtica da arma, o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria tambm se torna fora material quando se apodera das massas. A teo-ria capaz de se apoderar das massas to logo demonstra ad hominem, e demonstra ad hominem to logo se torna radical. Ser radical agarrar a coisa pela raiz. Mas a raiz, para o homem, o prprio homem. A pro-va evidente do radica lismo da teoria alem, portanto, de sua energia prtica, o fato de ela partir da superao positiva da religio. A crtica da religio tem seu fim com a doutrina de que o homem o ser supre-mo para o homem, portanto, com o imperativo categrico de subverter todas as relaes em que o homem um ser humilhado, escravizado, abandonado, desprezvel. Relaes que no podem ser mais bem retra-tadas do que pela exclamao de um francs acerca de um projeto de imposto sobre ces: Pobres ces! Que rem vos tratar como homens!.

    Mesmo historicamente, a emancipao terica possui uma impor-tncia especificamente prtica para a Alemanha. O passado revolucio-nrio da Alemanha terico a Reforma. Assim como outrora a re-

    * altura dos princpios. (N. T.)

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    voluo comeou no crebro de um monge, agora ela comea no crebro do filsofo.

    Sem dvida, Lutero venceu a servido por devoo porque ps no seu lugar a servido por convico. Quebrou a f na autoridade porque restaurou a autoridade da f. Transformou os padres em leigos, trans-formando os leigos em padres. Libertou o homem da religiosidade ex-terior, fazendo da reli giosidade o homem interior. Libertou o corpo dos grilhes, prendendo com grilhes o corao.

    Mas se o protestantismo no era a verdadeira soluo, ele era o modo correto de colocar o problema. J no se tratava mais da luta do leigo com o padre fora dele, mas da luta contra o seu prprio padre inte-rior, a sua natureza clerical. E se a transformao protestante dos leigos alemes em padres emancipou os papas leigos, os prncipes em conjunto com o clero, os privilegiados e os filisteus, a metamorfose filosfica dos clericais alemes em homens emancipar o povo. Mas, assim como a emancipao no se limita aos prncipes, tampouco a secularizao dos bens se restringir confiscao da propriedade da Igreja, que foi, so-bretudo, praticada pela hipcrita Prssia. Naquele tempo, a Guerra dos Camponeses, o fato mais ra dical da histria alem, fracassou por culpa da teologia. Hoje, com o fracasso da prpria teologia, nosso status quo, o fato menos livre da histria alem, se despedaar contra a filosofia. Na vspera da Reforma, a Alema nha oficial era a serva mais incondicio-nal de Roma. Na vspera de sua revoluo, ela a serva incondicional de menos do que Roma: da Prssia e da ustria, dos aristocratas rurais [Krautjunker] e dos filisteus.

    Entretanto, a uma revoluo radical alem parece ser colocada uma dificuldade fundamental.

    As revolues precisam de um elemento passivo, de uma base ma-terial. A teoria s efetivada num povo na medida em que a efetiva-

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    o de suas neces sidades. Corresponder monstruosa discrepncia entre as exigncias do pensamento alemo e as respostas da reali-dade alem a mesma discrepncia da sociedade civil com o Estado e da sociedade civil consigo mesma? Sero as necessidades tericas imediatamente necessidades prticas? No basta que o pensamento procure se realizar; a realidade deve compelir a si mesma em direo ao pensamento.

    Mas a Alemanha no galgou os degraus intermedirios da emanci-pao poltica no mesmo tempo em que as naes modernas. Mesmo os degraus que ela superou teoricamente, ela ainda no alcanou pra-ticamente. Como poderia ela, com um salto mortale, transpor no s suas prprias barreiras como tambm, ao mesmo tempo, a das naes modernas, barreiras que, na realidade, ela tem de sentir e buscar atingir como uma libertao de suas prprias barreiras reais? Uma revoluo radical s pode ser a revoluo de necessidades reais, para a qual faltam justamente os pressupostos e o nascedouro.

    Mas, se a Alemanha acompanhou o desenvolvimento das naes mo-dernas apenas por meio da atividade abstrata do pensamento, sem tomar parte ativa nas lutas reais desse desenvolvimento, ela compartilhou, por outro lado, das dores desse desen volvimento, sem compartilhar de seus prazeres, de suas satisfaes parciais. atividade abstrata, por um lado, corresponde o sofrimento abstrato, por outro. Por isso, a Alemanha se encontrar, um belo dia, no nvel da decadncia europeia sem que jamais tenha atingido o nvel da emancipao. Poder-se- compar-la a um id-latra que padece das doenas do cristianismo.

    Se examinarmos agora os governos alemes, veremos que, devido s condi es da poca, situao da Alemanha, ao ponto de vista da formao alem e, por fim, ao seu prprio instinto afortunado, eles so levados a combinar as deficincias civilizadas do mundo poltico moder-

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    no, de cujas vantagens no des frutamos, com as deficincias brbaras do ancien rgime, de que frumos plenamente, de modo que a Alema-nha tem de participar cada vez mais, se no da sensatez, pelo menos da insensatez das formaes polticas que ultrapassam o seu status quo. Haver, por exemplo, algum pas no mundo que participe to ingenua-mente de todas as iluses do regime constitucional sem compartilhar das suas realidades como a chamada Alemanha constitucional? Ou no foi necessariamente ideia de um governo alemo combinar os tormen-tos da censura com os tormentos das leis francesas de setembro*, que pressupem a liberdade de imprensa? Assim como os deuses de todas as naes se encontravam no Panteo romano, tambm os pecados de todas as formas de Estado se encontraro no Sacro Imprio Romano- -Germnico. Que esse ecletismo atingir um grau at ento indito garantido, sobretudo, pela glutonaria poltico-esttica de um rei ale-mo** que pretende desempenhar todos os papis da realeza: o papel feudal e o burocrtico, o absoluto e o constitucional, o autocrtico e o democrtico, se no na pessoa do povo, pelo menos na sua prpria pes-soa, e se no para o povo, ao menos para si mesmo. A Alemanha, como deficincia da atual poltica constituda num mundo prprio, no conse-guir demolir as especficas barreiras alems sem demolir as barreiras gerais da poltica atual.

    * Tomando como pretexto o atentado cometido contra o rei Lus Filipe a 28 de julho de 1835, seu ministro Thiers apresentou no ms seguinte, na Assembleia, um projeto de lei essencialmente reacionrio que entrou em vigor em setembro do mesmo ano. Essas leis foram chamadas leis de setembro. A justia podia fazer juzos sumrios em caso de rebelio e recorrer a juzes, escolhidos por ela, adotando, ao mesmo tempo, severas medidas contra a imprensa. Entre estas figuravam o depsito em dinhei ro por parte dos jornais, o encarceramento e altas multas por ataques contra a proprieda de privada e contra o sistema estatal vigente. (N. T.)

    ** Trata-se de Frederico Guilherme IV. (N. E.)

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    O sonho utpico da Alemanha no a revoluo radical, a emanci-pao humana universal, mas a revoluo parcial, meramente poltica, a revoluo que deixa de p os pilares do edifcio. Em que se baseia uma revoluo parcial, meramente pol tica? No fato de que uma parte da sociedade civil se emancipa e alcana o domnio universal; que uma determinada classe, a partir da sua situao particu lar, realiza a eman-cipao universal da sociedade. Tal classe liberta a sociedade inteira, mas apenas sob o pressuposto de que toda a sociedade se encontre na situao de sua classe, portanto, por exemplo, de que ela possua ou pos-sa facilmente adquirir dinheiro e cultura.

    Nenhuma classe da sociedade civil pode desempenhar esse papel sem despertar, em si e nas massas, um momento de entusiasmo em que ela se confraternize e misture com a sociedade em geral, confunda-se com ela, seja sentida e reconhecida como sua representante universal; um momento em que suas exigncias e direitos sejam, na verdade, exi-gncias e direitos da sociedade, em que ela seja efetivamente o crebro e o corao sociais. S em nome dos interesses universais da sociedade que uma classe parti cular pode reivindicar o domnio universal. Para alcanar essa posio emancipatria e, com isso, a explorao polti-ca de todas as esferas da sociedade no interesse de sua prpria esfera, no bastam energia revolucionria e autossentimento [Selbstgefhl] espiritual. Para que a revoluo de um povo e a emancipao de uma classe particular da sociedade civil coincidam, para que um estamento [Stand] se afirme como um estamento de toda a sociedade, necessrio que, inversamente, todos os defeitos da sociedade sejam concentrados numa outra clas se, que um determinado estamento seja o do escnda-lo universal, a incorporao das barreiras universais; necessrio que uma esfera social particular se afirme como o crime notrio de toda a sociedade, de modo que a libertao dessa esfera aparea como uma

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    autolibertao universal. Para que um estamento seja par excellence o estamento da libertao necessrio, inversamente, que um outro es-tamento seja o estamento inequvoco da opresso. O significado nega-tivo-universal da nobreza e do clero francs condicionou o significa do positivo-universal da classe burguesa, que se situava imediatamente ao lado deles e os confrontava.

    Na Alemanha, porm, faltam a todas as classes particulares no apenas a consistncia, a penetrao, a cora gem e a intransigncia que delas fariam o representante negativo da socieda de. A todos os esta-mentos faltam, ainda, aquela grandeza de alma que, mesmo que por um momento apenas, identifica-se com a alma popular, aquela genialidade que anima a fora material a tornar-se poder poltico, aquela audcia re-volucionria que lana ao adversrio a frase desafiadora: no sou nada e teria de ser tudo. A cepa principal da moralidade e da honradez ale-ms, no apenas das classes como dos indivduos, formada por aquele modesto egosmo que afirma sua estreiteza e deixa que ela seja afirma-da contra si mesmo. A relao entre as diferentes esferas da sociedade alem no , portanto, dramtica, mas pica. Cada uma delas comea a conhecer a si mesma e a se estabelecer ao lado das outras com suas reivindicaes particulares, no a partir do momento em que oprimi-da, mas desde o momento em que as condies da poca, sem qualquer ao de sua parte, criam um novo substrato social que ela pode, por sua vez, oprimir. At mesmo o autossentimento moral da classe mdia ale-m assenta apenas sobre a cons cincia de ser o representante universal da mediocridade filistina de todas as outras classes. Por conseguinte, no so apenas os reis alemes que sobem ao trono mal--propos*; cada esfera da sociedade civil sofre uma derrota antes de alcanar sua vit-

    * Inoportunamente. (N. T.)

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    ria, cria suas prprias barreiras antes de ter superado as barreiras que ante ela se erguem, manifesta sua essncia mesquinha antes que sua essncia generosa tenha conseguido se manifestar e, assim, a oportu-nidade de desempenhar um papel importante desaparece antes mesmo de ter existido, de modo que cada clas se, to logo inicia a luta contra a classe que lhe superior, enreda-se numa luta contra a classe inferior. Por isso, o principado entra em luta contra a realeza, o burocrata contra o nobre, o burgus contra todos eles, enquanto o proletrio j comea a entrar em luta contra os burgueses. A classe mdia dificilmente ousa conceber a ideia da emancipao a partir de seu prprio ponto de vista, e o desenvolvimento das condies sociais, assim como o progresso da teoria poltica, j declaram esse ponto de vista como antiquado ou, no mnimo, problemtico.

    Na Frana, basta que algum queira ser alguma coisa para que queira ser tudo. Na Alemanha, ningum pode ser nada se no renun-ciar a tudo. Na Frana, a emancipao parcial a base da emancipa-o universal. Na Alemanha, a emancipao universal conditio sine qua non de toda emancipao parcial. Na Frana, a realidade, na Alemanha, a impossi bilidade da libertao gradual que tem de en-gendrar a completa liberdade. Na Frana, cada classe da nao um idealista poltico e se considera, em primeiro lugar, no como classe particular, mas como representante das necessidades sociais. Assim, o papel de emancipador sucessivamente assumido, num movimento dramtico, pelas diferentes classes do povo francs, at alcanar, por fim, a classe que realiza a liberda de social no mais sob o pressupos-to de certas condies externas ao homem e, no entanto, criadas pela sociedade humana, mas organizando todas as condies da exis tncia humana sob o pressuposto da liberdade social. Na Alemanha, ao con-trrio, onde a vida prtica to desprovida de esprito quanto a vida

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    espiritual desprovida de prtica, nenhuma classe da sociedade civil tem a necessidade e a capacidade de realizar a emancipao universal, at que seja forada a isso por sua situao imediata, pela necessidade material e por seus prprios grilhes.

    Onde se encontra, ento, a possibilidade positiva de emancipa-o alem?

    Eis a nossa resposta: na formao de uma classe com grilhes radi-cais, de uma classe da sociedade civil que no seja uma classe da so-ciedade civil, de um estamento que seja a dissoluo de todos os esta-mentos, de uma esfera que possua um carter universal mediante seus sofrimentos universais e que no reivindique nenhum direito particu-lar porque contra ela no se comete uma injustia particular, mas a injustia por excelncia, que j no possa exigir um ttulo histrico, mas apenas o ttulo humano, que no se encontre numa oposio unilateral s consequncias, mas numa oposio abrangente aos pressupostos do sistema poltico alemo; uma esfera, por fim, que no pode se eman-cipar sem se emancipar de todas as outras esferas da sociedade e, com isso, sem emancipar todas essas esferas uma esfera que , numa pala-vra, a perda total da humanidade e que, portanto, s pode ganhar a si mesma por um reganho total do homem. Tal dissoluo da sociedade, como um estamento particular, o proletariado.

    O proletariado comea a se formar na Alemanha como resultado do emergente movimento industrial, pois o que constitui o proletariado no a pobreza naturalmente existente, mas a pobreza produzida artifi-cialmente, no a massa humana mecanicamente oprimida pelo peso da sociedade, mas a mas sa que provm da dissoluo aguda da sociedade e, acima de tudo, da dissoluo da classe mdia, embora seja evidente que a pobreza natural e a servido cristo-germnica tambm engrossaram as fileiras do proletariado.

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    Quando o proletariado anuncia a dissoluo da ordem mundial at ento existente, ele apenas revela o mistrio de sua prpria existncia, uma vez que ele a dissoluo ftica dessa ordem mundial. Quando o proleta-riado exige a negao da propriedade privada, ele apenas eleva a princpio da sociedade o que a sociedade elevara a princpio do proletariado, aquilo que nele j est involuntariamente incorporado como resultado negativo da sociedade. Assim, o proletrio possui em relao ao mundo que est a surgir o mesmo direito que o rei alemo possui em relao ao mundo j existente, quando este chama o povo de seu povo ou o cavalo de seu cava-lo. Declarando o povo como sua propriedade privada, o rei expressa, to somente, que o proprietrio privado rei.

    Assim como a filosofia encontra suas armas materiais no proletaria-do, o proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais, e to logo o relmpa go do pensamento tenha penetrado profundamente nesse ing-nuo solo do povo, a emancipao dos alemes em homens se completar.

    Faamos um resumo dos resultados:A nica libertao praticamente possvel da Alemanha a liberta-

    o do ponto de vista da teoria que declara o homem como o ser su-premo do homem. Na Alemanha, a emancipao da Idade Mdia s possvel se realizada simultaneamente com a emancipao das supera-es parciais da Idade Mdia. Na Alemanha, nenhum tipo de servido destrudo sem que se destrua todo tipo de servido. A profunda Ale-manha no pode revolucionar sem revolucionar desde os fundamentos. A emancipa o do alemo a emancipao do homem. A cabea dessa emancipao a filosofia, o proletariado seu corao. A filosofia no pode se efetivar sem a suprassuno [Aufhebung] do proletariado, o proletariado no pode se suprassumir sem a efetivao da filosofia.

    Quando estiverem realizadas todas as condies internas, o dia da ressurreio alem ser anunciado pelo canto do galo gauls.

  • Marx e Engels em verso playmobil, no facebook do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

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    Esse o ttulo da edio brasileira do clebre texto de Louis Althusser e tienne Balibar, com as devidas desculpas pelo plgio proposital, pois no encontro melhor forma de recomendar este clssico de Marx aos lei-tores lusfonos.

    Nossa sem sentido de propriedade privada pequena e brava Boi-tempo presta um novo servio queles que necessitam recorrer ao texto mais completo sobre o capitalismo.

    Ela reuniu um time formidvel, encabeado por Jacob Gorender, Jos Arthur Giannotti e Louis Althusser, seguidos pelo tradutor Rubens Enderle e por expoentes de nossa esquerda marxista, a quem coube re-visar os captulos.

    O capital no um livro de leitura, mas de estudo e reflexo. Ape-sar do estilo sarcstico e irnico de Marx, sobretudo dirigido aos si-cofantas do liberalismo, da livre iniciativa e do livre mercado trs construes ideolgicas de notvel fora , em que o Mouro e