apostila desenvolvimento do pensamento e da...

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1 CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO - FAVENI APOSTILA DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO E DA LINGUAGEM ESPÍRITO SANTO

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CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU

NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO - FAVENI

APOSTILA

DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO E DA LINGUAGEM

ESPÍRITO SANTO

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O SIGNIFICADO DAS PALAVRAS E A FORMAÇÃO DE

CONCEITOS

Fonte: http://www.ultracurioso.com.br/10-palavras-que-pessoas-dizem-e-que-nao-sabem-seus-significados/

A partir do momento que a criança descobre que tudo tem um nome, cada

novo objeto que surge representa um problema que a criança resolve atribuindo-lhe

um nome. Quando lhe falta à palavra para nomear este novo objeto, a criança

recorre ao adulto. Esses significados básicos de palavras assim adquiridos

funcionarão como embriões para a formação de novos e mais complexos conceitos.

De acordo com Vygotsky, todas as atividades cognitivas básicas do indivíduo

ocorrem de acordo com sua história social e acabam se constituindo no produto do

desenvolvimento histórico-social de sua comunidade (Luria, 1976). Portanto, as

habilidades cognitivas e as formas de estruturar o pensamento do indivíduo não são

determinadas por fatores congênitos. São, isto sim, resultado das atividades

praticadas de acordo com os hábitos sociais da cultura em que o indivíduo se

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desenvolve. Consequentemente, a história da sociedade na qual a criança se

desenvolve e a história pessoal desta criança são fatores cruciais que vão

determinar sua forma de pensar. Neste processo de desenvolvimento cognitivo, a

linguagem tem papel crucial na determinação de como a criança vai aprender a

pensar, uma vez que formas avançadas de pensamento são transmitidas à criança

através de palavras (Murray Thomas, 1993).

Para Vygotsky, um claro entendimento das relações entre pensamento e

língua é necessário para que se entenda o processo de desenvolvimento intelectual.

Linguagem não é apenas uma expressão do Pensamento e linguagem e sim o

conhecimento adquirido pela criança. Existe uma inter-relação fundamental entre

pensamento e linguagem, um proporcionando recursos ao outro. Desta forma a

linguagem tem um papel essencial na formação do pensamento e do caráter do

indivíduo.

ZONA DE DESENVOLVIMENTO PRÓXIMO

Fonte: http://www.helioteixeira.org/ciencias-da-aprendizagem/teoria-do-desenvolvimento-cognitivo-de-lev-vygotsky/

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Um dos princípios básicos da teoria de Vygotsky é o conceito de "zona de

desenvolvimento próximo". Zona de desenvolvimento próximo representa a

diferença entre a capacidade da criança de resolver problemas por si própria e a

capacidade de resolvê-los com ajuda de alguém. Em outras palavras, teríamos uma

"zona de desenvolvimento autossuficiente" que abrange todas as funções e

atividades que a criança consegue desempenhar por seus próprios meios, sem

ajuda externa. Zona de desenvolvimento próximo, por sua vez, abrange todas as

funções e atividades que a criança ou o aluno consegue desempenhar apenas se

houver ajuda de alguém. Esta pessoa que intervém para orientar a criança pode ser

tanto um adulto (pais, professor, responsável, instrutor de língua estrangeira) quanto

um colega que já tenha desenvolvido a habilidade requerida. Uma analogia

interessante nos vem à mente quando pensamos em zona de desenvolvimento

próximo.

Em mecânica, quando regula-se o ponto de um motor a explosão, este deve

ser ajustado ligeiramente à frente do momento de máxima compressão dentro do

cilindro, para maximizar a potência e o desempenho. A ideia de zona de

desenvolvimento próximo é de grande relevância em todas as áreas educacionais.

Uma implicação importante é a de que o aprendizado humano é de natureza social e

é parte de um processo em que a criança desenvolve seu intelecto dentro da

intelectualidade daqueles que a cercam (Vygotsky, 1978). De acordo com Vygotsky,

uma característica essencial do aprendizado é que ele desperta vários processos de

desenvolvimento internamente, os quais funcionam apenas quando a criança

interage em seu ambiente de convívio.

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A TEORIA DE PIAGET SOBRE A LINGUAGEM E O

PENSAMENTO DAS CRIANÇAS

Fonte: https://www.emaze.com/@AZOWWWOT/Jean-Piaget

A psicologia deve muito a Jean Piaget. Não é exagero dizer-se que ele

revolucionou o estudo da linguagem e do pensamento infantis, pois desenvolveu o

método clínico de investigação das ideias das crianças que posteriormente tem sido

generalizadamente utilizado. Foi o primeiro a estudar sistematicamente a percepção

e a lógica infantis; além disso, trouxe ao seu objeto de estudo uma nova abordagem

de amplitude e arrojo invulgares. Em lugar de enumerar as deficiências do raciocínio

infantil quando comparado com o dos adultos, Piaget centrou a atenção nas

características distintivas do pensamento das crianças, quer dizer, centrou o estudo

mais sobre o que as crianças têm do que sobre o que lhes falta. Por esta abordagem

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positiva demonstrou que a diferença entre o pensamento das crianças e dos adultos

era mais qualitativa do que quantitativa.

Como muitas outras grandes descobertas, a ideia de Piaget é tão simples que

parece evidente. Já tinha sido expressa nas palavras de Rousseau, citadas pelo

próprio Piaget, segundo as quais uma criança não é um adulto em miniatura e o seu

cérebro não é um cérebro de adulto em ponto reduzido. Por detrás desta verdade,

que Piaget escorou com provas experimentais, esta outra ideia simples – a ideia de

evolução, que ilumina todos os estudos de Piaget com uma luz brilhante.

No entanto, apesar de toda a sua grandeza, a obra de Piaget sofre da

dualidade comum a todas as obras pioneiras da psicologia contemporânea. Esta

clivagem é correlativa da crise que a psicologia está atravessando à medida que se

transforma numa ciência no verdadeiro sentido da palavra. A crise decorre da aguda

contradição entre a matéria prima factual da ciência e as suas premissas

metodológicas e teóricas, que há muito são alvo de disputa entre as concepções

materialista e idealista do mundo. Na psicologia, a luta é talvez mais aguda do que

em qualquer outra disciplina.

Enquanto nos faltou um sistema generalizadamente aceite que incorpore todo

o conhecimento Psicológico disponível, qualquer descoberta factual importante

conduzirá à criação de uma nova teoria conforme aos fatos novos observados.

Freud, Levy-Burl, Bonde, todos eles criaram os seus próprios sistemas de psicologia.

A dualidade predominante reflete-se na incongruência entre estas estruturas

teóricas, com os seus tons carregados de metafísica e idealismo, e as bases

empíricas sobre que foram construídas. Na moderna psicologia fazem-se

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diariamente grandes descobertas, descobertas essas que, no entanto, logo são

envolvidas em teorias ad hoc pré-científicas e semi-metafísicas.

Piaget tenta escapar a esta dualidade fatal atendo-se aos fatos. Evita

deliberadamente fazer generalizações mesmo no seu próprio campo de estudo,

pondo especial cuidado em não invadir os domínios correlatos da lógica, da teoria

do conhecimento da História da filosofia. Para ele, o empirismo puro parece-lhe o

único terreno seguro. O seu livro, escreve ele, é, antes do mais, e acima de tudo,

uma coleção de fatos e documentos. Os elos que unem entre si os diversos

capítulos são os elos fornecidos por um método único a várias descobertas e de

maneira nenhuma os de uma exposição sistemática.

Na verdade, o seu forte consiste em desenterrar novos fatos, analisá-los e

classificá-los penosamente, quer dizer, na capacidade de escutar a sua mensagem,

como dizia Claparède. Das páginas de Piaget cai uma avalanche de grandes e

pequenos fatos sobre a psicologia infantil. O seu método clínico revela-se como uma

ferramenta verdadeiramente inestimável para o estudo dos todos estruturais

complexos do pensamento infantil nas suas transformações genéticas. É um método

que unifica as suas diversas investigações e nos proporciona um quadro coerente,

pormenorizado e vivo do pensamento das crianças.

Os novos fatos e o novo método conduzem-nos a muitos problemas; alguns

são inteiramente novos para a psicologia científica, outros aparecem-nos a uma luz

diferente. Os problemas dão origem a teorias, apesar de Piaget estar determinado a

evita-las atendo-se estreitamente aos fatos experimentais – e passando, de

momento, por cima do fato de que a própria escolha das experiências é determinada

por certas hipóteses. Mas os fatos são sempre examinados à luz de qualquer teoria,

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não podendo por conseguinte ser totalmente destrinçados da filosofia. Tal é

particularmente verdade para os fatos relativos ao pensamento.

Segundo Piaget, o elo que liga todas as características específicas da lógica

infantil é o egocentrismo do pensamento das crianças. Ele reporta todas as outras

características que descobriu, quais sejam, o realismo intelectual, o sincretismo e a

dificuldade de compreender as relações, a este traço nuclear e descreve o

egocentrismo como ocupando uma posição intermédia, genética, estrutural e

funcionalmente, entre o pensamento artístico e o pensamento orientado.

A ideia de polaridade do pensamento orientado e não orientado tomada de

empréstimo à psicanálise. Diz Piaget: O pensamento orientado é consciente, isto é,

prossegue objetivos presentes no espírito de quem pensa, É inteligente, isto é,

encontra-se adaptado a realidade e esforça-se por influenciá-la. É suscetível de

verdade e erro ... e pode ser comunicado através da linguagem. O pensamento

autístico é subconsciente, isto é, os objetivos que prossegue e os problemas que

põe a si próprio não se encontram presentes na consciência. Não se encontra

adaptado à realidade externa, antes cria para si próprio uma realidade de

imaginação ou sonhos. Tende, não a estabelecer verdades, mas a recompensar

desejos e permanece estritamente individual e incomunicável enquanto tal, por meio

da linguagem, visto que opera primordialmente por meio de imagens e, para ser

comunicado, tem que recorrer a métodos indiretos, evocando, por meio de símbolos

e mitos, os sentimentos que o guiam.

O pensamento orientado é social. À medida que se desenvolve vai sendo

progressivamente influenciado pelas leis da experiência e da lógica propriamente

dita. O pensamento autístico, pelo contrário, é individualista e obedece a um

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conjunto de leis especiais que lhe são próprias. Entre estes dois modos de

pensamento contrastantes: há muitas variedades no que respeita ao seu grau de

comunicabilidade. Estas variedades intermédias obedecerão necessariamente a

uma lógica especial, que também é uma lógica intermédia entre a lógica do autismo

e a lógica da inteligência. Propomos dar o nome de pensamento egocêntrico à

principal forma intermédia.

Embora a sua função principal continue a ser a satisfação das necessidades

pessoais, já engloba em si algumas adaptações mentais, um pouco da orientação

para a realidade característica do pensamento dos adultos. O pensamento

egocêntrico das crianças “situa-se a meio caminho entre o autismo no sentido estrito

da palavra e o pensamento socializado”. É esta a hipótese de base de Piaget.

É importante notar que através de toda a sua obra Piaget sublinha com mais

intensidade os traços que são comuns ao pensamento egocêntrico e ao autismo do

que os traços comuns que os distinguem.

É claro que, do ponto de vista genético, temos que partir da atividade da

criança para podermos compreender o seu pensamento; e essa atividade é

incontestavelmente egocêntrica e egotista. O instinto social sob a sua forma bem

definida só se desenvolve mais tarde. O primeiro período crítico a este respeito só

ocorre por volta dos sete ou oito anos de idade. Antes desta idade, Piaget tende a

ver o egocentrismo como algo que impregna tudo. Considera direta ou indiretamente

egocêntricos todos os fenômenos da lógica infantil na sua rica variedade. Do

sincretismo, importante expressão do egocentrismo, diz inequivocamente que

impregna todo o pensamento da criança, tanto na sua esfera verbal, como na sua

esfera sensorial Após os sete ou oito anos, quando o pensamento socializado

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começa a ganhar forma, os traços egocêntricos não desaparecem

instantaneamente. Desaparecem das operações sensoriais da criança, mas

continuam cristalizados na área mais abstrata do pensamento puramente verbal.

A sua concepção da predominância do egocentrismo na infância leva Piaget a

concluir que o egocentrismo do pensamento se encontra tão intimamente

relacionado com a natureza psíquica da criança que é impermeável à experiência.

As influências a que os adultos submetem as crianças não se encontram nestas

como se tratasse de uma placa fotográfica: são assimiladas, quer dizer, são

deformadas pelo ser vivo que as sofre e implantam-se na sua própria substância. É

esta substância psicológica da criança, ou, por outras palavras, a estrutura e o

funcionamento característicos do pensamento da criança que procuramos descrever

e em certa medida explicar.

ORIGENS DA IMAGEM MENTAL NA IMITAÇÃO

SENSÓRIOMOTORA

Fonte: http://www.domtiton.com.br/proposta-pedagogica/bercario-maternal

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A investigação sobre as origens sensório-motoras da imagem mental revela

que ela resulta de um longo processo evolutivo da atividade imitativa, polo de

acomodação da inteligência. A pesquisa sobre a “Gênese da Imitação” (1935, 1945)

mostra que essa atividade, desde os primeiros meses de vida da criança, evolui

progressivamente na direção da imitação diferida, e esta, na direção da imagem

mental. A função da imitação é, desde o começo, reproduzir ou figurar os caracteres

particulares dos objetos, cujo desenvolvimento ocorre por influência do

esquematismo sensório-motor e, a seguir, pelo esquematismo conceptual. Como

mostramos em trabalhos anteriores (Dongo Montoya, 1998a, 1998b, 2005), o

nascimento da imagem, para Piaget, está atrelado ao nascimento do pensamento

enquanto coordenação interna de esquemas, de tal maneira que até mesmo o

desenvolvimento futuro de cada um desses dois elementos depende das suas

relações recíprocas e indissolúveis: o primeiro (o pensamento) é fonte de mobilidade

e de transformação e, esta última (a imagem) é fonte de figuração simbólica. Esse

processo construtivo evidencia que não há nada de lacunar na explicação da função

simbólica, por parte de Piaget, como alguns dos seus críticos insinuam; pelo

contrário, os novos dados experimentais e a própria consistência explicativa

mostram que há transformações progressivas, que envolvem reconstruções

estruturais e continuidade funcional, no acabamento e no subsequente

desenvolvimento dessa função.

Assim, o duplo processo de interiorização da coordenação dos esquemas

sensório-motores e da atividade imitativa é condição prévia para a constituição da

função simbólica, isto é, da capacidade do sujeito de diferenciar significantes de

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significados. A imagem mental se constitui como significante que se reporta a uma

situação ou a um objeto particular, sem esquecer que esse objeto também está

relacionado a um esquema conceptual ou pré-conceitual. O símbolo lúdico implica

também diferenciação de um significante (gesto ou objeto exterior) que representa

um significante (objeto ausente), o qual é reportado por uma imagem. O desenho,

enquanto figuração gráfica, reporta-se a um objeto ausente, mediado pela imagem

que o sujeito constitui desse objeto. A linguagem, enquanto sistema de signos,

implica significantes (gestos ou palavras articuladas) que se reportam a objetos

mediados por conceitos ou “pré-conceitos”, os quais se apoiam, sobretudo nas fases

inicias, nas imagens mentais.

A aquisição da linguagem encontra-se, portanto, atrelada à constituição da

capacidade humana de representar, isto é, de diferenciar significantes e significados,

e por isso, ao exercício da função simbólica. Isso não significa que a linguagem,

uma vez adquirida, possa contribuir, decididamente, em troca, para a evolução da

função simbólica em seu conjunto e particularmente para a evolução do pensamento

conceptual.

TRANSIÇÃO DA INTELIGÊNCIA SENSÓRIO-MOTORA

PARA A INTELIGÊNCIA CONCEITUAL

Na pesquisa sobre a transição dos esquemas sensório-motores para os

esquemas conceptuais, Piaget (1945) mostra que os primeiros “esquemas verbais”

da criança refletem o uso da linguagem, a qual se reporta a objetos exteriores

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assimilados em função dos esquemas sensório-motores em via de interiorização ou

de conceptualização. “A denominação, como já se verificou pelas introduções

precedentes, não é a simples atribuição de um nome, mas o enunciado de uma ação

possível: a palavra se limita quase a traduzir, neste nível, a organização de

esquemas sensório motores que poderiam passar sem ela” (Piaget, 1978, p.285).

É evidente que a linguagem, nesse nível inicial, participa no processo de

socialização do pensamento, visto que permite trocar informações e colocar em

correspondência pontos de vista, e nesse sentido possibilita o processo de

conceptualização. Entretanto, esse processo não é de uma via somente, pois ele

possibilita, reciprocamente, o desenvolvimento da competência linguística. Sobre

isso, Piaget assim se manifesta:

Mas é claro que perdura o problema de compreender como a linguagem

permite a construção dos conceitos, pois a relação é naturalmente recíproca e a

possibilidade de construir representações conceptuais é uma das condições

necessárias para a aquisição da linguagem (1978, p. 285).

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Na passagem dos esquemas sensório-motores para os esquemas

conceituais, Piaget não deixa de outorgar a importância devida à linguagem,

sobretudo na atividade de narrativa do sujeito; porém, a narrativa não explica a

própria novidade construtiva da estrutura conceptual do pensamento, pois esta é

produto da reorganização dos esquemas interiorizados (abstrações reflexivas). A

narrativa, embora seja um intermediário indispensável como meio de evocação e de

reconstituição, ela somente se inicia no limite superior da produção dos primeiros

esquemas verbais, quando da produção dos primeiros “pré-conceitos” e transduções

da criança.

Fonte: http://pedagogiasalvador.blogspot.com.br/2013/06/porque-educacao-infantil-passa.html

Se a estrutura do pensamento não deriva da estrutura da linguagem, isso não

leva a subestimar o papel da linguagem na construção de representações

propriamente ditas. Por isso, Piaget, ao questionar-se sobre a passagem da

linguagem ligada ao ato imediato e presente (primeiros esquemas verbais) para a

construção de representações verbais propriamente ditas (de juízos de constatação

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e não mais apenas de juízos de ação), responde que a narrativa constitui um

intermediário indispensável como meio de evocação e de reconstituição.

A TEORIA DE STERN SOBRE O DESENVOLVIMENTO

DA LINGUAGEM

Fonte: http://www.biografiasyvidas.com/biografia/s/stern_otto.htm

A parte do sistema de Wilhelm Stern que é mais conhecida e que tem vindo a

ganhar terreno com o passar dos anos, é a sua concepção intelectualista sobre o

desenvolvimento da linguagem na criança. Contudo, é esta mesma concepção que

mais claramente revela as limitações e as incoerências do personalismo filosófico e

psicológico de Stern, os seus fundamentos idealistas e a sua ausência de validade

científica. É o próprio Stern quem descreve o seu ponto de vista como “personalista-

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genético”. Analisaremos o princípio personalista mais à frente. Para já, vamos ver

como Stern trata do aspecto genético.

Afirmaremos já à partida que esta teoria, tal como todas as teorias

intelectualistas, é, pela sua própria natureza, anti-genética. Stern estabelece uma

distinção entre três raízes da linguagem: a tendência expressiva, a tendência social

e a tendência “intencional”. Enquanto as duas primeiras estão também subjacentes

aos rudimentos de linguagem observados nos animais, a terceira é especificamente

humana. Stern define intencionalidade neste sentido como uma orientação para

certo conteúdo, ou significado. “Em determinado estádio do seu desenvolvimento

psíquico”, afirma ele, “o homem adquire a capacidade de significar algo proferindo

palavras, de se referir a algo objetivo”. Em substância, tais atos intencionais são já

atos de pensamento; o seu surgimento denota uma intelectualizarão e uma

objetificação do discurso.

Em consonância com certo número de autores que representam a nova

psicologia do pensamento, embora em menor grau do que alguns deles, Stern

sublinha a importância do fator no desenvolvimento da linguagem. Não temos nada

a obstar à afirmação segundo a qual a linguagem humana desenvolvida possui um

significado objetivo, pressupondo portanto certo grau de desenvolvimento do

pensamento, e estamos de acordo em que é necessário tomar em linha de conta a

relação estreita que existe entre a linguagem e o pensamento lógico. O problema

está em que Stern encara a intencionalidade característica do discurso

desenvolvido, que exige explicação genética (isto é, que exige se explique como foi

gerada no processo evolutivo), como uma das raízes do desenvolvimento da

linguagem, como uma força motora, como uma tendência inata, quase como um

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impulso, mas, de qualquer forma como algo primordial, geneticamente equiparada

às tendências expressiva e comunicativa – as quais na verdade são detectáveis já

nos primeiros estádios da linguagem. Ao ver a intencionalidade desta maneira (“die

intentionale Triebfeder de Sprachdranges”), substitui a explicação genética por uma

explicação intelectualista.

Este método de explicar uma coisa pela própria coisa que há que explicar é o

erro fundamental de todas as teorias intelectualistas e, em particular, da de Stern –

daí a sua vacuidade geral e o seu caráter anti-genético (pois se relegam para os

primeiros estádios de desenvolvimento da linguagem características que pertencem

aos seus estádios mais avançados) Stern responde à questão de como e porque a

linguagem adquire significado afirmando. a linguagem adquire significado pela sua

tendência intencional, isto é, pela tendência à significação. Isto faz-nos recordar o

médico de Molière que explicava os efeitos soporíferos do ópio pelas suas

propriedades dormitivas. Da famosa descrição que Stern nos dá da grande

descoberta feita pelas crianças por volta do ano e meio ou dois anos de idade

podemos ver a que exageros pode conduzir uma acentuação exagerada dos

aspectos lógicos. Por essa idade, a criança descobre pela primeira vez que cada

objeto tem o seu símbolo permanente, uma configuração sonora que o identifica –

quer dizer, que cada coisa tem o seu significado. Stern crê que, pelo segundo ano

da sua vida, uma criança pode tomar consciência dos símbolos e da sua

necessidade e considera que esta descoberta é já um processo de pensamento no

sentido próprio do termo:

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A compreensão da relação entre o signo e o significado que desponta na

criança por esta altura é algo diferente em princípio da simples utilização de imagens

sonoras, de imagens de objetos e da sua associação. É a exigência de que todos os

objetos, sejam eles quais forem, tenham o seu nome próprio pode considerar-se

como uma verdadeira generalização levada a cabo pela criança.

AS RAÍZES GENÉTICAS DO PENSAMENTO E DA

LINGUAGEM

Fonte: http://www.neurocienciasaplicadas.com.br/site/noticias/uma-breve-relacao-entre-neurociencias-e-linguagem/

O fato mais importante posto a nu pelo estudo genético do pensamento e a

linguagem é o fato de a relação entre ambas passar por muitas alterações; os

progressos no pensamento e na linguagem não seguem trajetórias paralelas: as

suas curvas de desenvolvimento cruzam-se repetidas vezes, podem aproximar-se e

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correr lado a lado, podem até fundir-se por momentos, mas acabam por se afastar

de novo. Isto aplica-se tanto ao desenvolvimento filogenético como ao ontogenético.

Nos animais, o pensamento e a linguagem têm várias raízes e desenvolvem-

se segundo diferentes trajetórias de desenvolvimento. Este fato é confirmado pelos

estudos recentes de Koehler, Yerkes e outros sobre os macacos. Koehler provou

que o surgimento de um intelecto embrionário nos animais, isto é, o aparecimento de

pensamento no sentido próprio do termo – não se encontra de maneira nenhuma

relacionado com a linguagem. As “invenções” dos macacos na execução e utilização

de instrumentos, ou no capítulo da descoberta de caminhos indiretos para a solução

de determinados problemas, embora sejam sem sombra de dúvida pensamento

embrionário, pertencem a uma fase pré-linguística do desenvolvimento do

pensamento.

Na opinião de Koehler, as suas investigações mostram que o chimpanzé

evidencia um esboço de comportamento intelectual do mesmo gênero e do mesmo

tipo que o do homem. São a ausência de linguagem. “esse instrumento técnico

auxiliar infinitamente valioso”, e a pobreza das imagens, “esse material intelectual

extremamente importante”, que explicam a tremenda diferença existente entre os

antropoides e os homens mais primitivos “e vedam ao chimpanzé o menor

desenvolvimento cultural”.

Vigora considerável desacordo entre os psicólogos das diferentes escolas

acerca da interpretação teórica das descobertas de Koehler. A massa de literatura

crítica a que estes estudos deram origem representa uma grande variedade de

pontos de vista o que torna tanto mais significativo o ninguém contestar os fatos ou a

dedução que mais particularmente nos interessa: a independência entre as ações do

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chimpanzé e a linguagem. Isto é admitido de boa mente, mesmo pelos psicólogos

que, como Thorndyke e Borovski. nada veem nas ações do chimpanzé para lá dos

mecanismos instintuais e da aprendizagem por “tentativas e erros”, “nada mais,

salvo o já conhecido processo de formação de hábitos” e pelos introspeccionistas

que fogem a rebaixar o intelecto ao nível do comportamento dos macacos, mesmo

dos mais avançados. Buehler diz com muito acerto que as ações dos chimpanzés

não têm qualquer relação com a linguagem; e que, no homem, o pensamento

mobilizado pela utilização dos utensílios (Werkzeugdenken) também tem uma

relação muito mais tênue com a linguagem e com os conceitos do que qualquer

outra forma de pensamento.

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REFERENCIAIS

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para uma reflexão crítica. Em L.Banks-Leite (Org.). Percursos piagetianos (pp.207-

223). São Paulo: Cortez.

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epistemologias de Vygotsky y de Piaget. Em E. Serrat, S. Aznar, (Org.). Piaget y

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Dongo Montoya, A. O. (1998a, set./out.). L’image mental et la construction de la

pensée chez l’enfant. Bulletin de Psychologie, 51(5), 529-535.

Dongo Montoya, A. O. (1998b). Representação imagética e construção do

conhecimento na criança. Tese (Livre Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 1, p.

119-127, jan./abr. 2006. Docência). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade

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Dongo Montoya, A. O. (2005). Piaget: imagem mental e construção do

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Piaget, J. (1969). A explicação em Psicologia e o paralelismo psico-fisiológico. Em P.

Fraisse, J. Piaget. Tratado de Psicologia Experimental. (Vol.1) (pp.121-152) Rio de

Janeiro: Forense.

Piaget, J. (1978). A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem

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Piaget, J. (1999). O pensamento e a linguagem na criança. São Paulo:Martins

Fontes.

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uma proposta de intervenção educacional. Tese de Doutorado Não-Publicada.

Programa de Pós-Graduação em Educação Especial, Universidade Estadual

Paulista Júlio de Mesquita Filho, Marília.

Rodrigues, B. I. (2000). Desenvolvimento da noção temporal por meio da narrativa

oral segundo a teoria piagetiana. Dissertação de Mestrado Não-Publicada. Programa

de Pós-Graduação em Ensino-Aprendizagem, Universidade Estadual Paulista Júlio

de Mesquita Filho, Marília.

Vygotsky, L. S. (1991). Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes.

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LEITURA COMPLEMENTAR

Nome do autor: Shirlei Aparecida Doretto

Disponível em: http://www. encontrosdevista.c om.br/ Ar tig o s/09_

Shirlei_Ap_Doretto_e_Adriana_Beloti_Concep%C3%A7%C3%B5es_de_linguagem_

e_conceitos_correlatos.pdf

Data de acesso: 24/07/2016

CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM E CONCEITOS CORRELATOS: A INFLUÊNCIA

NO TRATO DA LÍNGUA E DA LINGUAGEM

RESUMO

Quando se trata de educação pela linguagem, devemos considerar as diferentes concepções que

permearam e permeiam o ensino de Língua Portuguesa e os documentos oficiais que retratam as

principais tendências linguísticas de cada período e orientam, oficialmente, o trabalho com a

linguagem nas escolas. Assim, tendo como sustentação teórica as discussões de Antunes (2003),

Possenti (1996), Travaglia (1996), Geraldi (2004), Bakhtin/Volochínov (2006), entre outros,

objetivamos, neste artigo, discutir a respeito das concepções de linguagem e os conceitos

subjacentes a cada uma delas e, ainda, apresentar um quadro síntese de conceitos relacionados a

essas concepções, a fim de ilustrar nossas discussões. Nesse sentido, faremos, primeiramente, uma

contextualização da história do ensino de Língua Portuguesa no Brasil, a fim de relacionar esse

percurso histórico às LDBs n. 4024/61, 5692/71 e 9394/96 e às correntes linguísticas predominantes

em cada momento. Em seguida, discorreremos sobre as concepções de linguagem e os conceitos

relacionados com cada tendência. Por fim, apresentaremos, de maneira sintética e

metodologicamente simples, um quadro síntese de tais noções. Acreditamos que discutir esse tema é

importante, pois seu reflexo está presente em todas as práticas pedagógicas, as quais resultam das

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opções teórica e metodológica adotadas para sustentar o desenvolvimento das atividades

relacionadas à língua e à linguagem.

PALAVRAS-CHAVE: Concepção de linguagem; ensino de Língua Portuguesa;

sociointeracionismo.

INTRODUÇÃO

Considerar que a linguagem está presente, de maneira geral, em toda nossa

vida, isto é, que nos constituímos como sujeitos na e pela linguagem, leva-nos a

refletir sobre as diferentes concepções que nortearam e norteiam o ensino. Quando

pensamos, ainda, no trabalho com a Língua Portuguesa, além da própria concepção

de ensino e aprendizagem, a concepção de linguagem é de suma importância, uma

vez que seu reflexo está presente em outros conceitos relacionados à educação,

como, por exemplo, os de língua, gramática, sujeito, texto e sentido, leitura,

produção textual, oralidade, variedade linguística, norma, entre outros, tornando-se,

assim, um dos principais norteadores do trabalho docente. Isso porque o objeto de

trabalho e estudo dessa disciplina é justamente a linguagem, em suas mais variadas

possibilidades de manifestação.

Discutir as concepções de linguagem e os conceitos subjacentes a tais

concepções, embora sejam constantemente abordados por diversos outros

trabalhos, é relevante, pois nosso principal objetivo, neste texto, é apresentar um

quadro síntese de conceitos relacionados às concepções de linguagem, a fim de

ilustrar nossas discussões, considerando que o tema permeia todo o trabalho com a

linguagem e afeta, diretamente, as possibilidades e os resultados dos processos de

ensino e de aprendizagem de língua. O quadro não se limita aos conceitos de

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gramática, língua e linguagem. Nosso esforço foi no sentido de ampliar essas

noções.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) estabeleceu, nas últimas

quatro décadas, o norte para o trabalho com a Língua Portuguesa nas escolas

brasileiras. Assim, cada Lei desse período, pela concepção de linguagem que

apresentava, dava os encaminhamentos principais para esse trabalho. As

concepções teóricas e metodológicas de cada documento norteador estão

diretamente relacionadas às tendências pedagógicas e correntes linguísticas, as

quais embasam o estudo e o trabalho com a linguagem.

Para tratarmos, especificamente, das concepções de linguagem, julgamos ser

necessário, primeiramente, oferecer uma contextualização da história do ensino de

Língua Portuguesa no Brasil. Acreditamos ser relevante essa abordagem porque

esse percurso histórico está diretamente relacionado às correntes linguísticas e sua

identificação contribui para compreender as mudanças em relação às concepções

de língua e linguagem, que são, justamente, os objetos de estudo e trabalho da

disciplina de Língua Portuguesa (LP).

Nesse sentido, apresentaremos, inicialmente, norteado pelas DCEs do

Paraná (2008), um histórico do ensino de LP no Brasil, relacionado às LDBs e às

correntes linguísticas predominantes em cada período. Em seguida, discorreremos

sobre as concepções de linguagem e os conceitos relacionados a cada tendência.

Nosso principal objetivo neste texto, o quadro síntese de tais noções, será

apresentado ao final dessa seção, de maneira sintética, sistematizada e

metodologicamente simples.

26

O ENSINO DE LP NO BRASIL

Os caminhos percorridos pelo ensino de LP no Brasil tiveram início com a

educação jesuítica, cujo objetivo era “alfabetizar” e “catequizar” os indígenas. O

trabalho educacional daquele período estava atrelado à concepção de linguagem

como expressão do pensamento. O ensino de LP limitava-se às escolas de ler e

escrever, mantidas pelos jesuítas. Nos cursos chamados secundários, eram

estudados gramática latina, retórica e grandes autores clássicos.

Durante o período colonial, a língua mais utilizada no Brasil era o Tupi.

Depois, dada a interação dos colonizados e colonizadores, passou-se a ter a Língua

Geral (o Tupi-Guarani). Somente com a expulsão dos jesuítas em 1759, pelo

Marquês de Pombal, é que a Língua Portuguesa se tornou o idioma oficial do Brasil

e, então, obrigatório o seu ensino. Essa mudança também revolucionou a educação

brasileira, entretanto, os objetivos escolares continuavam os mesmos: hierarquizar e

elitizar ainda mais a sociedade, pois havia um privilégio ao ensino destinado à

burguesia, ou seja, predomínio da norma culta, da língua usada pelos clássicos. A

disciplina de LP só foi introduzida nos currículos escolares brasileiros nas últimas

décadas do século XIX, sendo ensinada segundo os moldes do ensino do Latim:

fragmentando-se na gramática, retórica e poética.

Nos anos 1960, com a LDB n. 4024/61, o foco principal do ensino de LP

estava na gramática prescritiva ou tradicional, mantendo a tradição da gramática, da

retórica e da poética. Quando trata da educação primária, por exemplo, a referida

Lei, inclusive, afirma que o objetivo, entre outros, é desenvolver o raciocínio e

27

atividades de expressão da criança e proporcionar sua integração nos meios físico e

social. Assim, há o predomínio, ainda, da concepção de linguagem como expressão

do pensamento. Em relação ao nível “formação do magistério”, a tônica estava no

desenvolvimento de conhecimentos técnicos relativos à educação infantil. Nessa

década, acreditava-se que valorizar a criatividade seria suficiente para desenvolver a

eficiência da comunicação e da expressão do aluno. O predomínio da gramática

prescritiva ainda era visto como adequado, já que grande parte dos alunos que

frequentavam a escola era oriunda das camadas mais privilegiadas da sociedade,

isto é, falava uma variedade linguística próxima da considerada como língua padrão,

a língua de prestígio do período. Além disso, as concepções de mundo e de língua

desses estudantes eram próximas daquelas apresentadas nos materiais didáticos.

Em síntese, o objetivo e o foco estavam na ortografia, vista como o conhecimento

que levaria o aluno a desenvolver competências linguísticas.

Ainda na década de 60, com o predomínio da gramática prescritiva e com

certa “democratização” do ensino, que levou estudantes de outras classes sociais à

escola, houve, também, um conflito entre a linguagem ensinada na escola, que é a

norma das classes privilegiadas, e a linguagem das camadas populares, quando se

desconsiderava a oralidade e as variedades linguísticas, por exemplo. De acordo

com Soares (1986), o ensino era baseado no reconhecimento da língua considerada

como legítima, aquela que segue as regras da norma culta.

Para os alunos pertencentes às classes dominantes, essa “didática do

reconhecimento” tem, como efeito, o aperfeiçoamento do conhecimento [...],

que já possuem, da língua “legítima”; para os alunos pertencentes às

camadas populares, essa “didática do reconhecimento” não ultrapassa seus

28

próprios limites, porque, na aprendizagem da língua, reconhecer não leva a

conhecer. Em outras palavras: a escola leva os alunos pertencentes às

camadas populares a reconhecer que existe uma maneira de falar e

escrever considerada “legítima”, diferente daquela que dominam, mas não

os leva a conhecer essa maneira de falar e escrever, isto é, a saber produzi-

la e consumi-la. (SOARES, 1986, p. 63).

A partir da década de 70, com a LDB n. 5692/71, que vincula o ensino à

qualificação para o trabalho, sustentado por uma pedagogia tecnicista, o ensino de

LP pauta-se na concepção de linguagem como instrumento de comunicação, cujo

objeto é a língua como código, tendo um viés mais pragmático e utilitário em

detrimento do aprimoramento das capacidades linguísticas do falante. Essa

mudança se deu a partir dos estudos de Ferdinand de Saussure, que estabeleceu a

dicotomia língua x fala, dedicando-se ao estudo da língua e concebendo-a como

estrutura, passível de descrição. Nessa época e por essa concepção de língua, a

Teoria da Comunicação, enunciada por Roman Jakobson, estruturalista

funcionalista,4 também passou a sustentar o ensino de LP nas escolas.

Embora tenha havido mudança, o ensino de LP ainda continuou, de certa

forma, elitizado, pois persistia o ensino da gramática prescritiva, priorizando as

descrições sintáticas e morfológicas, as atividades que enfatizavam ações

repetitivas e paradigmáticas e as produções textuais baseadas nas tipologias:

narração, dissertação e descrição. Dessa forma, cristalizou-se, pelo fato de

prevalecer uma tendência gramatical positivista, a chamada gramática descritiva.

Nas correntes linguísticas, esse período é chamado de estruturalismo, o qual é

dividido em funcionalismo, tendo como principais representantes Sapir, Halliday,

Bühler, Jakbson e Troubetskoï, e formalismo, com Bloomfield, Haris e Chomsky

29

como principais nomes dessa tendência dos estudos linguísticos. Ambas as

vertentes, funcionalista e formalista, são estruturalistas, ou seja, priorizam o estudo

da estrutura linguística, procedendo à descrição dos elementos: fonemas –

morfemas – palavras – frases – discursos. A diferença é que a primeira preocupa-se,

também, com a função (daí os principais representantes difundirem as chamadas

teorias das funções da linguagem) e a segunda dedica-se, especialmente, à forma.

A partir dos anos 1980, com a difusão de novas tendências linguísticas, como a

Sociolinguística, a Pragmática (já a partir dos anos 60/70), a Análise de Discurso, a

Semântica e a Linguística Textual, reunidas as três últimas sob o rótulo de

linguísticas discursivas, o ensino de LP passa a ser questionado e repensado,

refletindo-se sobre a eficácia do ensino gramatical, apenas, da forma como vinha

sendo trabalhado. Entretanto, os Livros Didáticos (LD), um dos principais

instrumentos de trabalho dos professores, continuavam materializando a concepção

tradicional de ensino. Todas essas correntes linguísticas contribuem, então, para

uma mudança na concepção de linguagem e, portanto, no norte para o trabalho com

a LP nas escolas. A linguagem passa a ser vista como sendo social e de caráter

dialógico, interacional. Nesse sentido, os textos são considerados polifônicos, a

língua não é mais usada apenas para a comunicação, mas, também, para

estabelecer os processos de interação.

Assim, a partir dos anos 1980, período já bastante rico em produções relativas

à linguagem, em especial com as contribuições de Mikhail Bakhtin/Volochínov aos

estudos da linguagem (com textos como Marxismo e Filosofia da Linguagem e

Estética da Criação Verbal) e, especificamente, a partir da década de 90, com a LDB

n. 9394/96, o foco de estudo da disciplina de LP passou a ser uma gramática

30

internalizada, com base no texto, refletindo uma concepção de linguagem como

processo de interação.

Feita essa retomada do ensino de LP no Brasil, a qual nos dá condições de

relacionar o processo pelo qual essa disciplina passou às LDBs e às correntes

linguísticas de cada período, discorreremos, a partir de agora, sobre as três

concepções de linguagem que sustentam o trabalho com esse objeto de ensino e,

consequentemente, sobre os conceitos subjacentes a cada concepção.

AS CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM E OS CONCEITOS RELACIONADOS: A

INFLUÊNCIA NO TRATO DA LINGUAGEM

Nossa base teórica para as discussões a serem empreendidas a partir deste

momento são, destacadamente, os trabalhos de João Wanderley Geraldi, Luiz

Carlos Cagliari, Luiz Carlos Travaglia, Alba Maria Perfeito, Sírio Possenti, Marilurdes

Zanini e Mikhail Bakhtin/Volochínov.

Mikhail Bakhtin/Volochínov, em sua obra Marxismo e Filosofia da Linguagem

(2006), no capítulo 5 (Língua, fala e enunciação), discorre, primeiramente, sobre

duas noções que podemos relacionar às concepções de linguagem: subjetivismo

individualista e objetivismo abstrato, as quais não rejeita totalmente, mas

resinificadas, explicando todo o desenvolvimento dessas concepções até explicitar o

posicionamento que defende: uma teoria enunciativo-discursiva de linguagem,

concebendo-a como processo de interação.

Partilhamos, aqui, do posicionamento de Bakhtin/Volochínov por entendermos

o interacionismo como social e dialético e, também, por admitirmos que as

31

atividades humanas organizam-se a partir da linguagem, caracterizando o

interacionismo, então, como sociodiscursivo, conforme pondera Bronckart:

Decorre da abordagem desenvolvida que a linguagem humana se

apresenta, inicialmente, como uma produção interativa associada às

atividades sociais, sendo ela o instrumento pelo qual os interactantes,

intencionalmente, emitem pretensões à validade relativas às propriedades

do meio em que essa atividade se desenvolve. A linguagem é, portanto,

primariamente, uma característica da atividade social humana, cuja função

maior é de ordem comunicativa ou pragmática (BRONCKART, 2003, p. 34).

No que se refere à primeira vertente, o subjetivismo individualista, a

linguagem está associada à constituição de um sujeito único, centro e controlador de

todo o dizer, ou seja, é encarada como expressão do pensamento consciente e,

assim, a teoria dessa corrente prega que “quem não escreve bem é porque não

pensa bem”. Acreditamos que essa concepção não contemple todas as

características da língua, pois está associada ao subjetivismo psicológico, que

pressupõe um mundo criado a partir de uma consciência autônoma, de um único

sujeito detentor de todo o conhecimento. Embora a linguagem seja, também,

“expressão do pensamento”, ela exterioriza-se a partir da linguagem externa, isto é,

da interação verbal. Segundo Bakhtin (2006), “não é a atividade mental que organiza

a expressão, mas, ao contrário, é a expressão que organiza a atividade mental, que

a modela e determina a sua orientação” (p. 116, grifos do autor).

Conforme afirmamos acima, essa concepção permeia a LDB n. 4024/61, a

qual argumenta que “conhecer língua materna, muito mais que se valer de termos

sofisticados pela erudição, era conhecer as normas que regiam a língua. Assim,

32

conhecer língua significava dominar a gramática da língua: sua história e suas

normas” (ZANINI, 1999, p. 80). A prática docente priorizava o ensino de conceitos

básicos e normativos da gramática da língua materna, voltados para o domínio da

metalinguagem, isto é, partindo-se das regras para se chegar aos exemplos.

A concepção de gramática dessa tendência é a gramática prescritiva ou

tradicional (GT): conjunto de regras que devem ser seguidas, que corresponde ao

conjunto de todas as regras e normas impostas para falar e escrever bem, de acordo

com a norma culta, com os clássicos. É um depósito imutável de regras gramaticais.

Assim, é insensível à realidade, pois não considera os contextos de uso. A função

da língua, então, é exteriorizar um pensamento, ou seja, materializá-lo gráfica ou

fonicamente, com o predomínio do eu. Ler, nessa perspectiva, é reconhecer o

pensamento do autor do texto, ou seja, decodificar imediatamente os sinais

linguísticos que devem ser transparentes para o leitor. “A leitura é vista, também,

tradicional e prioritariamente, como extração de sentidos, fixados pelo autor do texto

ou por um leitor autorizado” (PERFEITO, 2005, p. 31). Logo, o texto apresenta,

sempre, um único sentido possível, já dado, pronto e acabado.

“O sujeito é psicológico, individual, dono de sua vontade e de suas ações”

(KOCH, 2003, p. 13). A linguagem é considerada dom e, portanto, o sujeito pode

controlar o êxito e a boa comunicação. Decorrente da própria concepção de

linguagem, produzir textos é colocar o pensamento em forma de linguagem e seguir

as regras impostas pela gramática prescritiva, buscando, além da perfeição

gramatical, a coerência entre os aspectos lógicos e sintáticos. O trabalho com a

oralidade quase não acontece, pois ela é considerada como idêntica à escrita.

33

Ressaltamos, entretanto, que entendemos a oralidade e a escrita como

relacionadas, cada uma com sua especificidade, tendo como diferença a recepção:

a fala acontece em “situação de copresença”, enquanto na escrita a “recepção é

adiada” (ANTUNES, 2003, p. 51). Exclui também as variedades linguísticas, pois

tudo o que foge à norma culta é considerado errado e deficiente. Pelo fato de as

variedades linguísticas acontecerem na linguagem em uso, em funcionamento, e

essa perspectiva não ser considerada, as variedades também não são vistas como

possíveis de acontecerem. As principais atividades são os questionamentos acerca

de conceitos e definições dados pela GT (o que é verbo; o que o autor quis dizer;

escreva corretamente; classifique as palavras...).

A segunda perspectiva abordada por Bakhtin/Volochínov toma a linguagem

como instrumento de comunicação, ou seja, liga-se aos pressupostos do objetivismo

abstrato, cuja teoria defende que a linguagem é apenas transmissão autômata de

mensagens de um emissor a um receptor, ambos isolados social e historicamente. A

nossa negação a essa linha, adotada de forma única e exclusiva, justifica-se por não

acreditarmos que os indivíduos encaixem-se em situações de comunicação e

estruturas prontas, fixas e sempre definidas, tampouco, se adequem a uma estrutura

idealista.

Essa concepção de linguagem está contida na LDB n. 5692/71, que passa a

nortear o ensino de LP a partir da década de 70. Por essa vertente, a linguagem é

entendida como meio objetivo para a comunicação e a “língua é vista como um

código, ou seja, como um conjunto de signos que se combinam segundo regras, e

que é capaz de transmitir uma mensagem, informações de um emissor a um

34

receptor” (TRAVAGLIA, 1996, p. 22). Além disso, a linguagem é tomada como

pronta e acabada, exterior ao indivíduo. A língua é estudada isolada do seu uso,

sem considerar os interlocutores, a situação e o momento histórico. É uma visão de

língua inseparável de sua forma. Essa perspectiva “deixava clara uma concepção de

linguagem que previa um sujeito capaz de internalizar o saber, que estava fora dele,

por meio da repetição, de exercícios que estimulassem a resposta, de forma que ele

seguisse o modelo” (ZANINI, 1999, p. 81).

O exemplo representativo desse período é a Teoria da Comunicação proposta

por Roman Jakobson, que postula, então, a partir dos seis elementos que

constituem o ato de comunicação, as seis funções da linguagem. Destacamos,

entretanto, que Jakobson considera apenas as seis funções de acordo com o foco

em um ou outro elemento desse processo comunicativo, sem considerar a função

performativa da linguagem, que é possível de ser estudada a partir da Teoria dos

Atos de Fala, enunciada por Austin e difundida por Searle, considerando o ato de

fala perlocucionário, isto é, a linguagem é usada, também, para fazer-fazer, como

uma forma de ação e não apenas de representação da realidade (exemplo do padre

que diz: “eu vos declaro marido e mulher”, esse enunciado não é usado apenas para

informar, mas para realizar um tipo de ação: diz e faz).

A gramática desse período é a descritiva: conjunto de regras que são

seguidas. Procede-se à “descrição da estrutura e funcionamento da língua, de sua

forma e função” (TRAVAGLIA, 1996, p. 27); corresponde ao conjunto de regras

sobre o funcionamento da língua nos mais diversos aspectos ou níveis (variedades),

baseado no que é consenso social; é uma produção em grupo, que descreve as

35

regras utilizadas pela sociedade, na qual cada sujeito, individualmente, busca o

código adequado à situação. A linguagem não é mais dom, mas competência. A

função da língua é transmitir informações (codificar), portanto, há o predomínio do

tu, pois o principal objetivo é usar a língua para estabelecer uma comunicação com

um receptor. A leitura5 é concebida como interpretação do código de comunicação,

como um produto pronto e acabado, signos linguísticos produzidos por um emissor a

serem decodificados por um receptor.

O sujeito, determinado e assujeitado pelo sistema, tem uma intenção e, ao

codificar sua mensagem, espera que seu receptor decodifique-a exatamente da

maneira que foi intencionalizada. Em relação à escrita, as produções decorrem de

atividades que servem como pretextos para escrever, sendo vista, portanto, como

consequência de outra atividade. Produzir textos, então, é seguir os modelos já

existentes, que se baseavam nas tipologias textuais: narração, descrição e

dissertação. A oralidade começa a ser considerada em uma abordagem sincrônica,

mas ainda há uma predominância da língua escrita. Nesse sentido, reconhece as

variedades linguísticas durante o uso da língua pelo falante. Esse reconhecimento,

entretanto, é apenas teórico, pois não é considerado como, de fato, possível, já que,

também, não considera as reais situações de uso da linguagem.

Nesse período, os Livros Didáticos ganham espaço e se tornam grandes

artefatos nos processos de ensino e de aprendizagem, por apresentarem exercícios

prontos de siga o modelo, complete, descrição de estrutura, forma, código, típicos da

gramática descritiva, predominante nessa tendência.

36

A partir dos anos 1980, com o avanço dos estudos sobre a linguagem, a

concepção desse objeto começa a ganhar nova configuração e, por isso, dar novos

caminhos e possibilidades para os processos de ensino e de aprendizagem de LP.

Pretendia-se, “que o professor assumisse uma postura mais coerente com os rumos

da própria história do País, uma postura de entender a gramática de forma

necessária e contextualizada. [...] O contexto passa a ser referência para que o uso

da língua, de certo e errado, passe a ser respeitado nas suas várias possibilidades,

atribuindo-lhe uma perspectiva de adequação e de inadequação” (ZANINI, 1999, p.

82). É na LDB n. 9394/96 que essa nova vertente se consolida e se oficializa. Esse

documento não bane a gramática, o conhecimento das normas que regem a Língua

Portuguesa, mas defende que haja condições para que todos os estudantes tenham

oportunidade de aproximação e apropriação da norma culta da língua.

Ressaltamos, nesse momento, que houve um período de interpretações

equivocadas a respeito dessa nova tendência linguística, entendendo-se que não se

deveria trabalhar e ensinar a gramática normativa nas escolas e, então, o trabalho

com a língua passou a acontecer apenas no nível dos “sentidos”, uma espécie de

“vale tudo”, qualquer interpretação. Não concordamos com esse posicionamento,

pois entendemos que a gramática normativa é extremamente necessária para as

leituras e compreensões possíveis dos diversos textos com os quais temos contato

no cotidiano, logo, a discussão deve girar em torno do como se trabalhar com os

elementos linguísticos relacionados aos discursivos e, assim, não pautar o ensino

apenas no tradicionalismo, mas usar as contribuições dessa vertente a favor do

desenvolvimento das competências e habilidades linguísticas e discursivas.

Portanto, gramática é necessário.

37

Para nós, a linguagem existe, sim, enquanto atividade e processo de

interação dos sujeitos sócio, histórico e ideologicamente constituídos, pressupondo,

então, transformação. Para Bakhtin/Volochínov (2006), há uma teoria enunciativo-

discursiva de linguagem, em oposição às duas correntes filosófico-linguísticas, o

subjetivismo individualista e o objetivismo abstrato. Ambas tomam a enunciação

monológica, sem considerar as relações sociais e culturais, como ponto de partida e,

por isso, são consideradas inadequadas, uma vez que:

[...] a verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema

abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada,

nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social

da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A

interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua

(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 127, grifos do autor).

Dessa forma, a linguagem como processo de interação é possibilitada pelos

enunciados. Logo, a língua aparece em contextos de enunciação definidos,

remetendo, sempre, a contextos ideológicos, o que corrobora o posicionamento de

que nenhuma palavra é neutra, mas sempre já carregada de sentido, tanto pelo

locutor quanto pelo interlocutor, caracterizando-se enquanto “ponte”: “a palavra está

sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. [...] A

língua, no seu uso prático, é inseparável de seu conteúdo ideológico ou relativo à

vida” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 99, grifos do autor).

De acordo com a terceira vertente, então, o ato de fala ou, ainda, a

enunciação, em si, não pode ser encarada como individual, unicamente do ponto de

vista da norma, mas, ao contrário, “a enunciação é de natureza social”

38

(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 113, grifos do autor), de relação dialógica e seu

elemento principal é a interação verbal. Além disso, toda palavra é ideológica e sua

materialização está diretamente relacionada à evolução ideológica: a “linguagem

não é o trabalho de um artesão, mas trabalho social e histórico” dos sujeitos e “dos

outros e é para os outros e com os outros que ela se constitui” e, ainda, “não há um

sujeito dado, pronto, que entra na interação, mas um sujeito se completando e se

construindo nas suas falas” (GERALDI, 1997, p. 6), ou seja, um sujeito histórico,

social e ideologicamente constituído, de cuja perspectiva partilhamos.

Assim, a linguagem é vista como processo de interação, a língua é usada não

apenas para a comunicação, mas, também, para estabelecer a interação social (agir

sobre, agir entre). O indivíduo realiza ações, atua sobre o interlocutor. Considera-se

os contextos social, histórico e ideológico. “A linguagem é pois um lugar de interação

humana, de interação comunicativa pela produção de efeitos de sentidos entre

interlocutores, em uma dada situação de comunicação e em um contexto sócio

histórico e ideológico” (TRAVAGLIA, 1996, p. 23). Logo, a língua não deixa de ser

expressão e comunicação, mas, além disso, passa a ser uma atividade

sociointerativa.

A gramática que marca essa terceira vertente é a internalizada: conjunto de

regras que o falante domina e utiliza para interagir com os demais interlocutores nas

situações reais de comunicação. Considera-se a gramática como contextualizada,

implicando em um ensino não normativista nem descritivista. Ela toma o texto como

objeto de estudo, considerando-o a partir dos gêneros discursivos. A função da

língua é realizar ações, agir sobre o outro e, dessa forma, o predomínio está nas

39

interações verbais sociais. “A leitura é, pois, uma atividade interativa altamente

complexa de produção de sentidos (KOCH; ELIAS, 2010, p. 11, grifos do autor).

Assim, ler é relacionar o texto com os diversos contextos que o cercam. Logo,

nenhum texto tem um único sentido possível, ao contrário, os sentidos são

coproduzidos pelos sujeitos leitores em cada situação de leitura, considerando os

contextos sociais, históricos e ideológicos, tanto da produção quanto da circulação e

da recepção. Não dizemos, com isso, que todas e quaisquer leituras sejam

possíveis. Não. Mas pode haver várias, de diferentes perspectivas, em determinados

textos e em determinadas condições de recepção. O texto sempre nos deixa as

“margens” possíveis de sua leitura, para interpretá-lo e compreendê-lo. Buscamos,

então, chegar à compreensão: além de decodificar e interpretar, compreender o

texto, agir sobre ele, estabelecer relações críticas sobre/com o conteúdo lido. De

acordo com Orlandi (1988, p. 115), portanto, uma leitura que chegue ao nível

compreensível, ou seja, quando há “atribuição de sentidos considerando o processo

de significação no contexto de situação, colocando-se em relação

enunciado/enunciação”.

O sujeito, visto como psicossocial, ativo na produção de sentidos, construído

na e pela linguagem, deixa de ser totalmente consciente e dono de sua vontade,

passando a ocupar posições sujeito determinadas conforme as formações

discursivas6 nas quais se insere em cada situação. Assim, a escrita é entendida

como trabalho, com reais necessidades para o aluno escrever. É um trabalho

consciente, com finalidade, interlocutores e gênero discursivo definidos. A oralidade,

nessa perspectiva, é tida como tão importante quanto a escrita, pois a adequação de

ambas depende da situação real de interação comunicativa. As variedades

40

linguísticas são consideradas e entendidas, levando-se em conta o contexto, os

objetivos e as circunstâncias (o que, para quem, para que, quando, onde... os textos

são produzidos). As atividades de estudo de LP consideram o funcionamento

textual, discursivo, pragmático, sintático e semântico dos textos, trabalham com a

produção dos efeitos de sentido, com o uso real da língua.

Após fazermos esses apontamentos acerca dos conceitos relacionados à

linguagem, temos condições de discutir, mais especificamente, sobre as implicações

que tais conceitos têm no ensino de LP. Como afirma Geraldi (2004, p. 45), “uma

diferente concepção de linguagem constrói não só uma nova metodologia, mas

principalmente um „novo conteúdo ‟de ensino”. Portanto, a discussão sobre tal

concepção é de fundamental importância e relevância para o trabalho de LP e sua

relação com os processos de ensino e de aprendizagem desse objeto é evidente e

intrínseca.

Na esteira dos postulados de Possenti (1996), em relação ao ensino de língua

na escola, necessitamos, inicialmente, questionar a concepção de língua em que

estão baseadas as práticas docentes e os livros didáticos, já que esse material é

muito presente nas salas de aula. Sabemos que, geralmente, o conceito utilizado por

esse material é aquele que toma a língua como algo uniforme, imutável e que

considera apenas uma das variedades linguísticas: a norma culta. Essa visão exclui

as outras formas de falar, não as considerando como adequadas ou inadequadas

aos contextos de uso, mas como erradas e deficientes, portanto, não pertencentes à

língua. Essa perspectiva interfere diretamente na prática de ensino dos professores

41

de LP, pois toda e qualquer variação é vista como desvio e aquele que fala de

maneira “diferente” falaria errado. Logo, extremamente elitista.

Para nós, a língua é produto de um trabalho social, histórico e ideológico de

determinada comunidade. Geraldi (2005) afirma que a:

[...] língua, enquanto produto desse trabalho social, enquanto fenômeno

sociológico e histórico, está sempre sendo retomada pela comunidade de

falantes. E ao retomar, retoma aquilo que está estabilizado e que se

desestabiliza na concretude do discurso, nos processos interativos de uso

dessa língua (p. 78).

Outro questionamento está vinculado à concepção de linguagem em que se

baseia o ensino de LP centrado nas gramáticas. Na gramática prescritiva, que é

ainda muito presente nas salas de aula, a linguagem é resumida à dimensão formal,

a um conjunto de regras e normas e a uma metalinguagem. Conforme Antunes

(2003), é possível observarmos um ensino de gramática “descontextualizada”,

“fragmentada”, “irrelevante”, “excêntrica”, “inflexível”, “voltada para a nomenclatura e

classificação” (p. 31-32). Não acreditamos que a gramática normativa não precise ou

não deva ser trabalhada na escola. Ao contrário. Defendemos que deve, sim, haver

um trabalho sustentado por essa gramática, pois, além de ser direito dos cidadãos

terem contato, conhecerem e aprenderem determinada variedade linguística, para o

desenvolvimento de um ensino sustentado pelas propostas dos gêneros discursivos

ou pela vertente da análise linguística, por exemplo, não nos basta apenas o

conhecimento superficial da língua, mas é necessário o conhecimento e o domínio

da gramática para termos condições de desenvolver um trabalho efetivo em relação

aos aspectos linguísticos e discursivos. Nesse sentido, o que deve estar em foco,

42

então, é a metodologia e a forma como a gramática será trabalhada, para que o

professor não considere apenas a possibilidade tradicional, como um fim em si

mesmo, mas vá além do tradicionalismo exclusivo.

Ainda segundo Possenti (1996), o objetivo da escola é ensinar o dialeto

padrão e qualquer outra hipótese seria um equívoco político e pedagógico. Porém, a

questão crucial é discutir como realizar tal ensino, sabendo que a gramática

prescritiva, pura e simplesmente, não é suficiente para se atingir o objetivo de

desenvolver competências e habilidades linguísticas e discursivas. Dessa forma,

afirma que uma distinção clara entre os três conceitos de gramática - prescritiva,

descritiva e internalizada - eliminará a ilusão de que gramática significa uma coisa só

ou que a língua é uma estrutura uniforme. Para o autor (1996, p. 86), “ensinar

gramática é ensinar a língua em toda sua variedade de usos, e ensinar regras é

ensinar o domínio do uso”. Assim, “aprender uma língua é aprender a dizer a mesma

coisa de muitas formas” (p. 92).

Sustentados, portanto, por uma concepção de linguagem como processo de

interação, teremos condições de transitar por todas as concepções e utilizar o que

se torna relevante a cada objeto e objetivo de ensino. Assim, o trabalho com a LP

que defendemos e propomos é fruto de nossas concepções de linguagem e língua

(sustentadas, principalmente, pelos estudos de Bakhtin) e de ensino de língua

(baseado em autores como Geraldi, Possenti, Travaglia, Antunes, entre outros). Um

trabalho que, relacionando o linguístico e o discursivo, trate a linguagem como

processo de interação, a língua em uso, enfim, que considere os sujeitos como

43

sócio, histórico e ideologicamente constituídos, que se constituem como tais na e

pela linguagem e se tornam reais nos e dos processos de ensino e aprendizagem.

Diante do exposto, esperamos ter deixado claro nosso posicionamento em

relação ao trabalho com a LP nas escolas e, em especial, a grande importância do

conhecimento das três concepções de linguagem para tal trabalho. Assim,

apresentamos abaixo o quadro síntese sobre nossas discussões, elaborado com

base em Geraldi (2004), Cagliari (1989), Travaglia (1996), Perfeito (2005), Possenti

(1996), Bakhtin/Volochínov (2006) e Koch (2003), entre outros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fazer parte das relações humanas, a linguagem, em suas diferentes

formas de manifestação, revela opções políticas e ideológicas e, também, na sala de

aula, opções teóricas e metodológicas. Assim, não só o conhecimento, mas também

a prática consciente dos postulados teóricos referentes a cada concepção

proporcionam o transitar entre elas, aproveitando, em relação ao ensino de língua,

as contribuições relevantes e significativas de cada concepção de linguagem. O

professor, então, não trabalhará somente com exercícios estruturais, mas com

diferentes atividades adequadas aos objetos, objetivos e circunstâncias. Além desse

saber transitar consciente, defendemos que resultados positivos aparecem desde

que haja a prevalência de uma perspectiva que leve em consideração o sujeito que

se constitui na e pelas relações verbo-sociais – a sociointeracionista, pois “não se

aprende por exercícios, mas por práticas significativas. [...] O domínio de uma

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língua, repito, é o resultado de práticas efetivas, significativas, contextualizadas”

(POSSENTI, 1996, p. 47, grifos do autor).

A fim, então, de contribuir com a reflexão sobre a prática docente,

apresentamos a tabela síntese de alguns conceitos relacionados aos processos de

ensino e de aprendizagem, mas não de todos, pois compartilhamos a opinião de que

as atividades relacionadas a tais práticas são impossíveis de se esgotarem em uma

discussão como a apresentada, dados nossos objetivos. Embora, também

acreditemos que ela possa se constituir em um momento de reflexão dessas

práticas, uma vez que constitui, de forma concreta e metodologicamente simples,

uma ilustração das opções teóricas e metodológicas de professores no decorrer das

últimas cinco décadas.

45

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, I. Aula de Português: encontro & interação. São Paulo: Parábola, 2003.

BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução Michel

Lahud e Yara Frateschi Vieira. 12ª ed. São Paulo: Hucitec, 2006.

BRONCKART, J-P. Atividade de Linguagem, Textos e Discursos: por um

interacionismo sócio discursivo. Tradução Anna Rachel Machado e Péricles Cunha.

São Paulo: EDUC, 2003.

CAGLIARI, L. C. Alfabetização e Linguística. São Paulo: _____, 1989.

GERALDI, J. W. Concepções de Linguagem e Ensino de Português. In: GERALDI,

João Wanderley (Org.). O texto na Sala de Aula. 3ª ed. São Paulo: Ática, 2004, pp.

39- 46.

____. In: XAVIER, A. C.; CORTEZ, S. (Orgs.). Conversas com Linguistas: virtudes e

controvérsias da linguística. 2ª impr. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

KOCH, I. G. V. Desvendando os Segredos do Texto. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2003.

KOCH, I. G. V.; ELIAS, V. M. Ler e Compreender: os sentidos do texto. 3ª ed., 3ª

reimpressão. São Paulo: Contexto, 2010.

PARANÁ, Secretaria de Estado da Educação. Diretrizes Curriculares da Educação

Básica: Língua Portuguesa. Curitiba, 2008.

46

PERFEITO, A. M. Concepções de Linguagem, Teorias Subjacentes e Ensino de

Língua Portuguesa. In: RITTER, L. C. R.; SANTOS, A. R. (Orgs.). Concepções de

Linguagem e Ensino de Língua Portuguesa. Coleção Formação de Professores

EAD, n. 18. Maringá: Eduem, 2005, v. 1, pp. 27- 79.

POSSENTI, S. Por que (não) Ensinar Gramática na Escola. Campinas, SP: ALB:

Mercado de Letras, 1996.

SOARES, M. Linguagem e Escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1986.

TRAVAGLIA, L. C. Gramática e Interação: uma proposta para o ensino de

gramática. São Paulo: Cortez, 1996.

ZANINI, M. Uma Visão Panorâmica da Teoria e da Prática do Ensino de Língua

Materna. In. Acta Scientiarum, 21(1), Maringá, 1999, pp. 79- 88.

47

LEITURA COMPLEMENTAR

Nome: Carolina R. Schirmer, Denise R. Fontoura e Magda L. Nunes

Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/jped/v80n2s0/v80n2Sa11.pdf

Data de acesso: 24/07/2016

DISTÚRBIOS DA AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM E DA APRENDIZAGEM

INTRODUÇÃO

Grande parte das queixas relatadas na clínica pediátrica, neurológica,

neuropsicológica e fonoaudiologia infantil refere-se a alterações no processo de

aprendizagem e/ou atraso na aquisição da linguagem.

Acredita-se que as dificuldades de aprendizagem estejam intimamente

relacionadas a história prévia de atraso na aquisição da linguagem. As dificuldades

de linguagem referem-se a alterações no processo de desenvolvimento da

expressão e recepção verbal e/ou escrita. Por isso, a necessidade de identificação

precoce dessas alterações no curso normal do desenvolvimento evita posteriores

consequências educacionais e sociais desfavoráveis.

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O objetivo deste estudo é instrumentalizar os profissionais da saúde, em

especial o pediatra, para que possam agir no diagnóstico e na prevenção primária

dos distúrbios de linguagem oral e escrita. Para tornar a leitura mais didática,

enfocamos inicialmente o processo normal de desenvolvimento da linguagem, as

causas neurobiológicas e ambientais dessas alterações, tentando relacioná-las com

suas implicações nas diversas fases do desenvolvimento. Ao final de cada tópico,

descreve-se uma breve abordagem terapêutica.

LINGUAGEM

A linguagem é um exemplo de função cortical superior, e seu

desenvolvimento se sustenta, por um lado, em uma estrutura anatomofuncional

geneticamente determinada e, por outro, em um estímulo verbal que depende do

ambiente.

Serve de veículo para a comunicação, ou seja, constitui um instrumento social

usado em interações visando à comunicação. Desta forma, deve ser considerada

mais como uma força dinâmica ou processo do que como um produto. Pode ser

definida como um sistema convencional de símbolos arbitrários que são combinados

de modo sistemático e orientado para armazenar e trocar informações.

DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM

Muito antes de começar a falar, a criança está habilitada a usar o olhar, a

expressão facial e o gesto para comunicar-se com os outros. Tem também

capacidade para discriminar precocemente os sons da fala. A aprendizagem do

código linguístico se baseia no conhecimento adquirido em relação a objetos, ações,

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locais, propriedades, etc. Resulta da interação complexa entre as capacidades

biológicas inatas e a estimulação ambiental e evolui de acordo com a progressão do

desenvolvimento neuropsicomotor.

Apesar de não estar completamente esclarecido o grau de eficácia com que a

linguagem é adquirida, sabe-se que as crianças de diferentes culturas parecem

seguir o mesmo percurso global de desenvolvimento da linguagem. Ainda antes de

nascer, elas iniciam a aprendizagem dos sons da sua língua nativa e desde os

primeiros meses distinguem-na de línguas estrangeiras.

CONCLUSÃO

Sabe-se que as causas de alterações de linguagem e de dificuldades de

aprendizagem podem ser variadas, apesar de existirem muitos estudos indicando

fatores neurológicos para tais problemas. Avanços na compreensão da

neurobiologia dos processos de desenvolvimento da linguagem e aprendizagem

certamente irão contribuir para uma melhoria na abordagem terapêutica desses

pacientes. A sistemática da investigação em busca do diagnóstico preciso pode

direcionar o profissional de saúde na escolha do melhor tratamento indicado para

cada caso.

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REFERÊNCIAS

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fonológicos desde el paradigma psicolingüístico del procesamiento del habla. Rev

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