apostila africanidades

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http://www.midiaetnia.com.br SUMÁRIO Mídia Etnia Educação e Comunicação – apresentação p. 1 Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana p. 3 Resolução do CNE – Conselho Nacional de Educação p.21 Os Valores Civilizatórios Africanos e a Desconstrução de uma África Inventada pelo Ocidente. – Prof. Marcelo Fontana p.24 Irmandades Negras: estratégias de resistência e solidariedade – Prof.of. Dra.Ant Aparecida Quintão dos Santos Cezerilo p.34 Práticas educomunicativas e Teorias interdisciplinares no combate ao racismo. Profa. Dra. Rosangela Malachias p.47 Racismo e Branquitude: Representações na Telenovela “Da Cor do Pecado. Profa. Dra. Luciene Cecília Barbosa p.57 A DIFÍCIL TAREFA DE DEFINIR QUEM É NEGRO NO BRASIL – Entrevista concedida Prof. Dr. Kabengele Munaga à Revista do IEA-USP - ESTUDOS AVANÇADOS. p.67 Cinema em sala de aula – Trabalhando com animação/ficção – Profa. Dra. Sandra Santos p.74 Go Down Moses! Profa. Dra. Sandra Santos p.84

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SUMÁRIO

Mídia Etnia Educação e Comunicação – apresentação

p. 1

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana

p. 3

Resolução do CNE – Conselho Nacional de Educação p.21 Os Valores Civilizatórios Africanos e a Desconstrução de uma África Inventada pelo Ocidente. – Prof. Marcelo Fontana

p.24

Irmandades Negras: estratégias de resistência e solidariedade – Prof.of. Dra.Antonia Aparecida Quintão dos Santos Cezerilo

p.34

Práticas educomunicativas e Teorias interdisciplinares no combate ao racismo. Profa. Dra. Rosangela Malachias

p.47

Racismo e Branquitude: Representações na Telenovela “Da Cor do Pecado. Profa. Dra. Luciene Cecília Barbosa

p.57

A DIFÍCIL TAREFA DE DEFINIR QUEM É NEGRO NO BRASIL – Entrevista concedida pelo Prof. Dr. Kabengele Munaga à Revista do IEA-USP - ESTUDOS AVANÇADOS.

p.67

Cinema em sala de aula – Trabalhando com animação/ficção – Profa. Dra. Sandra Santos

p.74

Go Down Moses! Profa. Dra. Sandra Santos

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APRESENTAÇÃO Mídia Etnia é uma empresa idealizada por jornalistas, Mulheres Negras,

doutoras pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, que atuam como pesquisadoras acadêmicas no estudo midiático das Intersecções entre Raça/Etnia, Gênero e Classe. Nasceu em 2003 como GME – Grupo Mídia Etnia iniciando atividades de pesquisa e intervenção no campo das Ciências da Comunicação. Na sua breve história de vida elaborou e desempenhou ações marcantes, que prosseguem na contemporaneidade, a partir da junção entre teoria e a intervenção qualificada. São elas:

O I SIME – Seminário Internacional Mídia e Etnia, que trouxe para o Brasil, entre os dias 24 e 25 de maio de 2004, profissionais e acadêmicos da mídia norteamericana para debates e intercâmbio de conhecimento sobre a inclusão da população negra na mídia. Apoio: CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico; SESC-SP; Secretaria de Estado da Cultura; Consulado Geral dos Estados Unidos.

A co-organização do 1º. Congresso Internacional África Brasil, realizado pelo NCE-ECA-USP, em outubro de 2005, com a presença de jornalistas de diferentes países africanos e europeus.

Participação no Comitê estadual de Saúde da População Negra para a escolha de material publicitário direcionado à prevenção das DST/AIDS no país, 2005.

Edição da Revista Mídia Etnia – A Imagem dos Negros nos Meios de Comunicação – ISSN 1808-7353, tiragem 30 mil exemplares, distribuídos no Brasil e também no exterior. Parceiros: Cone - Coordenadoria de Assuntos da População Negra, órgão da Secretaria Municipal de Participação e Parceria da Prefeitura do Município de São Paulo.

Elaboração do curso e DVD Negras Imagens Mídia e Artes na Educação Infantil – Implementação da Lei 10.639/03, numa parceria com o NEINB-USP Núcleo de Apoio à Pesquisa e Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro da Universidade de São Paulo para a Formação de Professores(as) da Rede Municipal de São Paulo (2006).

A convite do CEERT – Centro de Estudos das Relações do Trabalho e Desigualdades ministra a Oficina Mídia e Discriminação durante a 3ª. Edição do Prêmio Educar para a Igualdade Racial –2006.

Em 2007 organiza e coordena a viagem Etnoturística ao Quilombo Campinho da Independência, Paraty, RJ, tendo como primeiro grupo estudantes dos Estados

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Unidos, afroamericanas alunas do Programa RDDS - Raça Desenvolvimento e Desigualdade Social Brasil e Estados Unidos (USP – UFBa – Howard University – Vanderbilt University). Parceria: CCInt-FEA. Comissão de Cooperação Internacional da Faculdade de Economia Administração e Contabilidade da USP.

Em 2008 vence o Pregão eletrônico para a execução do Projeto Baobá, Curso de Formação de Professores para aplicação da Lei 10.639/03, realizado pela Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto/Secretaria Municipal de Educação com verba do MEC – ocorrido entre outubro de 2007 e maio de 2008.

A parceria com instituições, pesquisadores, docentes e estudantes dos Estados Unidos se amplia nos anos 2008 e 2009.

Em 2010 promove a formação docente no município de São Bernardo do Campo, com apoio da Secretaria Municipal de Educação e equipe do CENFORPE – Centro de Formação de Professores de SBC.

(*) A pintura abaixo (óleo s/ tela) Negras Imagens que ilustra o site (www.midiaetnia.com.br),

bem como a logomarca da empresa foram idealizadas pela artista plástica Zulmira Gomes Leite (Zul+).

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

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CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO

INTERESSADO: Conselho Nacional de Educação UF: DF ASSUNTO: Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana RELATORES: Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (Relatora), Carlos Roberto Jamil Cury, Francisca Novantino, Marília Ancona-Lopez PROCESSO N.º: 23001.000215/2002-96 PARECER N.º: CNE/CP 003/2004

COLEGIADO: CP

APROVADO EM: 10/3/2004

I – RELATÓRIO

Este Parecer visa a atender os propósitos expressos na Indicação CNE/CP 06/2002, bem como regulamentar a alteração trazida à Lei 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, pela Lei 10639/2003 que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica. Desta forma, busca cumprir o estabelecido na Constituição Federal nos seus Art. 5, I, Art. 210, Art. 206,I, § 1° do Art. 242, Art. 215 e Art. 216, bem como nos Art. 26, 26 A e 79B na Lei 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que asseguram o direito à igualdade de condições de vida e de cidadania, assim como garantem igual direito às histórias e culturas que compõem a nação brasileira, além do direito de acesso às diferentes fontes da cultura nacional a todos brasileiros.

Junta-se a preceitos analógicos aos Art. 26 e 26A da LDB, como os das Constituições Estaduais da Bahia (Art. 275, IV e 288), do Rio de (Art. 306), de Alagoas (Art. 253), assim como de Leis Orgânicas tais como a de Recife (Art. 138), de Belo Horizonte (Art. 182, VI), a do Rio de (Art. 321, VIII), além de leis ordinárias, como lei Municipal nº 7685, de 17 de de 1994, de Belém, a Lei Municipal nº 2251, de 30 de novembro de 1994, de Aracaju e Lei Municipal nº 11.973, de 4 de de 1996, de São Paulo.(1)

Junta-se também ao disposto no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei

8096, de 13 de junho de 1990), bem como no Plano Nacional de Educação (Lei 10172, de 9 de de 2001).

Todos estes dispositivos legais, bem como reivindicações e propostas do Movimento Negro ao longo do século XX, apontam para a necessidade de diretrizes que

(1) Belém – Lei Municipal nº 7.6985, de 17 de de 1994, que “Dispõe sobre a inclusão, no currículo escolar da Rede Municipal de Ensino, na disciplina História, de conteúdo relativo ao estudo da Raça Negra na formação sócio-cultural brasileira e dá outras providências” Aracaju – Lei Municipal nº 2.251, de 30 de novembro de 1994, que “Dispõe sobre a inclusão, no currículo escolar da rede municipal de ensino de 1º e 2º graus, conteúdos programáticos relativos ao estudo da Raça Negra na formação sócio-cultural brasileira e dá outras providências São Paulo – Lei Municipal nº 11.973, de 4 de de 1996, que “Dispõe sobre a introdução nos currículos das escolas municipais de 1º e 2º graus de estudos contra a discriminação”

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orientem a formulação de projetos empenhados na valorização da história e cultura dos afro-brasileiros e dos africanos, assim como comprometidos com a de educação de relações étnico-raciais positivas, a que tais conteúdos devem conduzir.

Destina-se o parecer aos administradores dos sistemas de ensino, de mantenedoras de estabelecimentos de ensino, aos estabelecimentos de ensino, seus professores e a todos implicados na elaboração, execução, avaliação de programas de interesse educacional, de planos institucionais, pedagógicos e de ensino. Destina-se também às famílias dos estudantes, a eles próprios e a todos os cidadãos comprometidos com a educação dos brasileiros, para nele buscarem orientações, quando pretenderem dialogar com os sistemas de ensino, escolas e educadores, no que diz respeito às relações étnico-raciais, ao reconhecimento e valorização da história e cultura dos afro-brasileiros, à diversidade da nação brasileira, ao igual direito à educação de qualidade, isto é, não apenas direito ao estudo, mas também à formação para a cidadania responsável pela construção de uma sociedade justa e democrática.

Em vista disso, foi feita consulta sobre as questões objeto deste parecer, por

meio de questionário encaminhado a grupos do Movimento Negro, a militantes individualmente, aos Conselhos Estaduais e Municipais de Educação, a professores que vêm desenvolvendo trabalhos que abordam a questão racial, a pais de alunos, enfim a cidadãos empenhados com a construção de uma sociedade justa, independentemente de seu pertencimento racial. Encaminharam-se em torno de 1000 questionários e o responderam individualmente ou em grupo 250 mulheres e homens, entre crianças e adultos, com diferentes níveis de escolarização. Suas respostas mostraram a importância de se tratarem problemas, dificuldades, dúvidas, antes mesmo de o parecer traçar orientações, indicações, normas. Questões introdutórias

O parecer procura oferecer uma resposta, entre outras, na área da educação, à demanda da população afrodescendente, no sentido de políticas de ações afirmativas, isto é, de políticas de reparações, e de reconhecimento e valorização de sua história, cultura, identidade. Trata, ele, de política curricular, fundada em dimensões históricas, sociais, antropológicas oriundas da realidade brasileira, e busca combater ao racismo e a discriminações que atingem particularmente os negros. Nesta perspectiva, propõe à divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial - descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos – para interagirem na construção de uma nação democrática, em que todos igualmente tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada.

É importante salientar que tais políticas têm como meta o direito dos negros se reconhecerem na cultura nacional, expressarem visões de mundo próprias, manifestarem com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos. É necessário sublinhar que tais políticas têm também como meta o direito dos negros, assim como de todos cidadãos brasileiros, cursarem cada um dos níveis de ensino, em escolas devidamente instaladas e equipadas, orientados por professores qualificados para o

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ensino das diferentes áreas de conhecimentos; com formação para lidar com as tensas relações produzidas pelo racismo e discriminações, sensíveis e capazes de conduzir a reeducação das relações entre diferentes grupos étnico-raciais, ou seja, entre descendentes de africanos, de europeus, de asiáticos, e povos indígenas. Estas condições materiais das escolas e de formação de professores são indispensáveis para uma educação de qualidade, para todos, assim como o é o reconhecimento e valorização da história, cultura e identidade dos descendentes de africanos. Políticas de Reparações, de Reconhecimento e Valorização, de Ações Afirmativas

A demanda por reparações visa a que o Estado e a sociedade tomem medidas para ressarcir, os descendentes de africanos negros, dos danos psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos sob o regime escravista, bem como em virtude das políticas explícitas ou tácitas de branqueamento da população, de manutenção de privilégios exclusivos para grupos com poder de governar e de influir na formulação de políticas, no pós-abolição. Visa também a que tais medidas se concretizem em iniciativas de combate ao racismo e a toda sorte de discriminações.

Cabe ao Estado promover e incentivar políticas de reparações, no que cumpre ao disposto na Constituição Federal, Art. 205, que assinala o dever do Estado de garantir indistintamente, por meio da educação, iguais direitos para o pleno desenvolvimento de todos e de cada um, enquanto pessoa, cidadão ou profissional. Sem a intervenção do Estado, os postos à margem, entre eles os afro-brasileiros, dificilmente, e as estatísticas o mostram sem deixar dúvidas, romperão o sistema meritocrático que agrava desigualdades e gera injustiça, ao reger-se por critérios de exclusão, fundados em preconceitos e manutenção de privilégios para os sempre privilegiados.

Políticas de reparações voltadas para a educação dos negros devem oferecer garantias, a essa população, de ingresso, permanência e sucesso na educação escolar, de valorização do patrimônio histórico-cultural afro-brasileiro, de aquisição das competências e dos conhecimentos tidos como indispensáveis para continuidade nos estudos, de condições para alcançar todos os requisitos tendo em vista a conclusão de cada um dos níveis de ensino, bem como para atuar como cidadãos responsáveis e participantes, além de desempenharem com qualificação uma profissão.

A demanda da comunidade afro-brasileira por reconhecimento, valorização e afirmação de direitos, no que diz respeito à educação, passou a ser particularmente apoiada com a promulgação da Lei 10639/2003, que alterou a Lei 9394/1996, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas.

Reconhecimento implica justiça e iguais direitos sociais, civis, culturais e econômicos, bem como valorização da diversidade daquilo que distingue os negros dos outros grupos que compõem a população brasileira. E isto requer mudança nos discursos, raciocínios, lógicas, gestos, posturas, modo de tratar as pessoas negras. Requer também que se conheça a sua história e cultura apresentadas, explicadas,

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buscando-se especificamente desconstruir o mito da democracia racial na sociedade brasileira; mito este que difunde a crença de que, se os negros não atingem os mesmos patamares que os não negros, é por falta de competência ou de interesse, desconsiderando as desigualdades seculares que a estrutura social hierárquica cria com prejuízos para os negros.

Reconhecimento requer a adoção de políticas educacionais e de estratégias pedagógicas de valorização da diversidade, a fim de superar a desigualdade étnico-racial presente na educação escolar brasileira, nos diferentes níveis de ensino.

Reconhecer exige que se questionem relações étnico-raciais baseadas em preconceitos que desqualificam os negros e salientam estereótipos depreciativos, palavras e atitudes que, velada ou explicitamente violentas, expressam sentimentos de superioridade em relação aos negros, próprios de uma sociedade hierárquica e desigual.

Reconhecer é também valorizar, divulgar e respeitar os processos históricos de resistência negra desencadeados pelos africanos escravizados no Brasil e por seus descendentes na contemporaneidade, desde as formas individuais até as coletivas.

Reconhecer exige a valorização e respeito às pessoas negras, a sua descendência africana, sua cultura e história. Significa buscar compreender seus valores e lutas, ser sensível ao sofrimento causado por tantas formas de desqualificação: apelidos depreciativos, brincadeiras, piadas de mau gosto sugerindo incapacidade, ridicularizando seus traços físicos, a textura de seus cabelos, fazendo pouco das religiões de raiz africana. Implica criar condições para que os estudantes negros não sejam rejeitados em virtude da cor da sua pele, menosprezados em virtude de antepassados seus terem sido explorados como escravos, não sejam desencorajados de prosseguir estudos, de estudar questões que dizem respeito à comunidade negra.

Reconhecer exige que os estabelecimentos de ensino, freqüentados em sua maioria por população negra, contem com instalações e equipamentos sólidos, atualizados, com professores competentes no domínio dos conteúdos de ensino, comprometidos com a educação de negros e brancos, no sentido de que venham a relacionar-se com respeito, sendo capazes de corrigir posturas, atitudes e palavras que impliquem desrespeito e discriminação.

Políticas de reparações e de reconhecimento formarão programas de ações afirmativas, isto é, conjuntos de ações políticas dirigidas à correção de desigualdades raciais e sociais, orientadas para oferta de tratamento diferenciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e mantidas por estrutura social excludente e discriminatória. Ações afirmativas atendem ao determinado pelo Programa Nacional de Direitos Humanos1, bem como a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, com o objetivo de combate ao racismo e a discriminações, tais como: a Convenção da 1 Ministério da Justiça. Programa Nacional de Direitos Humanos. Brasília, 1996

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UNESCO de 1960, direcionada ao combate ao racismo em todas as formas de ensino, bem como a Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Discriminações Correlatas de 2001.

Assim sendo, sistemas de ensino e estabelecimentos de diferentes níveis converterão as demandas dos afro-brasileiros em políticas públicas de Estado ou institucionais, ao tomarem decisões e iniciativas com vistas a reparações, reconhecimento e valorização da história e cultura dos afro-brasileiros, à constituição de programas de ações afirmativas, medidas estas coerentes com um projeto de escola, de educação, de formação de cidadãos que explicitamente se esbocem nas relações pedagógicas cotidianas. Medidas que, convêm, sejam compartilhadas pelos sistemas de ensino, estabelecimentos, processos de formação de professores, comunidade, professores, alunos e seus pais.

Medidas que repudiam, como prevê a Constituição Federal em seu Art.3º, IV, o “preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” e reconhecem que todos são portadores de singularidade irredutível e que a formação escolar tem de estar atenta para o desenvolvimento de suas personalidades (Art.208, IV). Educação das relações étnico-raciais

O sucesso das políticas públicas de Estado, institucionais e pedagógicas visando reparações, reconhecimento e valorização da identidade, da cultura e da história dos negros brasileiros depende necessariamente de condições físicas, materiais, intelectuais, afetivas favoráveis para o ensino e para aprendizagens; em outras palavras, todos os alunos negros e não negros, bem como seus professores precisam sentir-se valorizados e apoiados. Depende também, de maneira decisiva, da reeducação das relações entre negros e brancos, o que aqui estamos designando como relações étnico-raciais. Depende, ainda, de trabalho conjunto, de articulação entre processos educativos escolares, políticas públicas, movimentos sociais, visto que as mudanças éticas, culturais, pedagógicas e políticas nas relações étnico-raciais não se limitam à escola.

É importante destacar que se entende por raça a construção social forjada nas tensas relações entre brancos e negros, muitas vezes simuladas como harmoniosas, nada tendo a ver com o conceito biológico de raça cunhado no século XVIII e hoje sobejamente superado. Cabe esclarecer que o termo raça é utilizado com freqüência nas relações sociais brasileiras, para informar como determinadas características físicas, como cor de pele, tipo de cabelo, entre outras, influenciam, interferem e até mesmo determinam o destino e o lugar social dos sujeitos no interior da sociedade brasileira.

Contudo, o termo foi ressignificado pelo Movimento Negro que, em várias

situações, o utiliza com um sentido político e de valorização do legado deixado pelos africanos. É importante também explicar que o emprego do termo étnico, na expressão

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étnico-racial, serve para marcar que essas relações tensas devidas a diferenças na cor da pele e traços fisionômicos o são também devido à raiz cultural plantada na ancestralidade africana, que difere em visão de mundo, valores e princípios das de origem indígena, européia e asiática.

Convivem, no Brasil, de maneira tensa, a cultura e o padrão estético negro e africano e um padrão estético e cultural branco europeu. Porém, a presença da cultura negra e o fato de 45% da população brasileira ser composta de negros (de acordo com o censo do IBGE) não têm sido suficientes para eliminar ideologias, desigualdades e estereótipos racistas. Ainda persiste em nosso país um imaginário étnico-racial que privilegia a brancura e valoriza principalmente as raízes européias da sua cultura, ignorando ou pouco valorizando as outras, que são a indígena, a africana, a asiática.

Os diferentes grupos, em sua diversidade, que constituem o Movimento Negro brasileiro, têm comprovado o quanto é dura a experiência dos negros de ter julgados negativamente seu comportamento, idéias e intenções antes mesmo de abrirem a boca ou tomarem qualquer iniciativa. Têm, eles, insistido no quanto é alienante a experiência de fingir ser o que não é para ser reconhecido, de quão dolorosa pode ser a experiência de deixar-se assimilar por uma visão de mundo, que pretende impor-se como superior e por isso universal e que obriga a negarem a da tradição do seu povo.

Se não é fácil ser descendente de seres humanos escravizados e forçados à condição de objetos utilitários ou a semoventes, também é difícil descobrir-se descendente dos escravizadores, temer, embora veladamente, revanche dos que, por cinco séculos, têm sido desprezados e massacrados.

Para reeducar as relações étnico-raciais no Brasil é necessário fazer emergir as dores e medos que têm sido gerados. É preciso entender que o sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade impostas a outros. E então decidir que sociedade queremos construir daqui para frente.

Como bem salientou Frantz Fanon3, os descendentes dos mercadores de escravos, dos senhores de ontem, não têm, hoje, de assumir culpa pelas desumanidades provocadas por seus antepassados. No entanto, têm eles a responsabilidade moral e política de combater o racismo, as discriminações e juntamente com os que vêm sendo mantidos à margem, os negros, construir relações raciais e sociais sadias, em que todos cresçam e se realizem enquanto seres humanos e cidadãos. Não fossem por estas razões, eles a teriam de assumir, pelo fato de usufruírem do muito que o trabalho escravo possibilitou ao país.

Assim sendo, a educação das relações étnico-raciais impõe aprendizagens entre brancos e negros, trocas de conhecimentos, quebra de desconfianças, projeto conjunto para construção de uma sociedade, justa, igual, equânime.

Combater o racismo, trabalhar pelo fim da desigualdade social e racial, 3 FRANTZ, Fanon. Os Condenados da Terra. 2.ed. Rio de , Civilização Brasileira, 1979.

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empreender reeducação das relações étnico-raciais não são tarefas exclusivas da escola. As formas de discriminação de qualquer natureza, não têm o seu nascedouro na escola, porém o racismo, as desigualdades e discriminações correntes na sociedade perpassam por ali. Para que as instituições de ensino desempenhem a contento o papel de educar, é necessário que se constituam em espaço democrático de produção e divulgação de conhecimentos e de posturas que visam a uma sociedade justa. A escola tem papel preponderante para eliminação das discriminações e para emancipação dos grupos discriminados, ao proporcionar acesso aos conhecimentos científicos, a registros culturais diferenciados, à conquista de racionalidade que rege as relações sociais e raciais, a conhecimentos avançados, indispensáveis para consolidação e concerto das nações como espaços democráticos e igualitários.

Para obter êxito, a escola e seus professores não podem improvisar. Têm que desfazer mentalidade racista e discriminadora secular, superando o etnocentrismo europeu, reestruturando relações étnico-raciais e sociais, desalienando processos pedagógicos. Isto não pode ficar reduzido a palavras e a raciocínios desvinculados da experiência de ser inferiorizados vivida pelos negros, tampouco das baixas classificações que lhe são atribuídas nas escalas de desigualdades sociais, econômicas, educativas e políticas.

Diálogo com estudos que analisam criticam estas realidades e fazem propostas, bem como com grupos do Movimento Negro, presentes nas diferentes regiões e estados, assim como inúmeras cidades, são imprescindíveis para que se vençam discrepâncias entre o que se sabe e a realidade, se compreendam concepções e ações, uns dos outros, se elabore projeto comum de combate ao racismo e a discriminações.

Temos, pois, pedagogias de combate ao racismo e a discriminações por criar. É claro que há experiências de professores e de algumas escolas, ainda isoladas, que muito vão ajudar.

Para empreender a construção dessas pedagogias, é fundamental que se desfaçam alguns equívocos. Um deles diz respeito à preocupação de professores no sentido de designar ou não seus alunos negros como negros ou como pretos, sem ofensas.

Em primeiro lugar, é importante esclarecer que ser negro no Brasil não se limita às características físicas. Trata-se, também, de uma escolha política. Por isso, o é quem assim se define. Em segundo lugar, cabe lembrar que preto é um dos quesitos utilizados pelo IBGE para classificar, ao lado dos outros – branco, pardo, indígena - a cor da população brasileira. Pesquisadores de diferentes áreas, inclusive da educação, para fins de seus estudos, agregam dados relativos a pretos e pardos sob a categoria negros, já que ambos reúnem, conforme alerta o Movimento Negro, aqueles que reconhecem sua ascendência africana.

É importante tomar conhecimento da complexidade que envolve o processo de construção da identidade negra em nosso país. Processo esse, marcado por uma sociedade que, para discriminar os negros, utiliza-se tanto da desvalorização da cultura

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de matriz africana assim como dos aspectos físicos herdados pelos descendentes de africanos. Nesse processo complexo, é possível, no Brasil, que algumas pessoas de tez clara e traços físicos europeus, em virtude de o pai ou a mãe ser negro(a), se designarem negros; que outros, com traços físicos africanos, se digam brancos. É preciso lembrar que o termo negro começou a ser usado pelos senhores para designar pejorativamente os escravizados e este sentido negativo da palavra se estende até hoje. Contudo, o Movimento Negro ressignificou esse termo dando-lhe um sentido político e positivo. Lembremos os motes muito utilizados no final dos anos 1970 e no decorrer dos anos 1980, 1990: Negro é lindo! Negra, cor da raça brasileira! Negro que te quero negro! 100% Negro! Não deixe sua cor passar em branco! Este último utilizado na campanha do censo de 1990.

Outro equívoco a enfrentar é a afirmação de que os negros se discriminam entre si e que são racistas também. Esta constatação tem de ser analisada no quadro da ideologia do branqueamento que divulga a idéia e o sentimento de que as pessoas brancas seriam mais humanas, teriam inteligência superior e por isso teriam o direito de comandar e de dizer o que é bom para todos. Cabe lembrar que no pós-abolição foram formuladas políticas que visavam o branqueamento da população, pela eliminação simbólica e material da presença dos negros. Nesse sentido, é possível que pessoas negras sejam influenciadas pela ideologia do branqueamento e, assim, tendam a reproduzir o preconceito do qual são vítimas. O racismo imprime marcas negativas na subjetividade dos negros e também na dos que os discriminam.

Mais um equívoco a superar é a crença de que a discussão sobre a questão racial se limita ao Movimento Negro e a estudiosos do tema e não à escola. A escola enquanto instituição social responsável por assegurar o direito da educação a todo e qualquer cidadão, deverá se posicionar politicamente, como já vimos, contra toda e qualquer forma de discriminação. A luta pela superação do racismo e da discriminação racial é, pois, tarefa de todo e qualquer educador, independentemente do seu pertencimento étnico-racial, crença religiosa ou posição política. O racismo, segundo o Artigo 5O da Constituição Brasileira, é crime inafiançável e isso se aplica a todos os cidadãos e instituições, inclusive, a escola.

Outro equívoco a esclarecer é de que o racismo, o mito da democracia racial e a ideologia do branqueamento só atingem os negros. Enquanto processos estruturantes e constituintes da formação histórica e social brasileira, estes estão arraigados no imaginário social e atingem negros, brancos e outros grupos étnico-raciais. As formas, os níveis e os resultados desses processos incidem de maneira diferente sobre os diversos sujeitos e interpõem diferentes dificuldades nas suas trajetórias de vida, escolares e sociais. Por isso a construção de estratégias educacionais que visem o combate ao racismo é uma tarefa de todos os educadores, independentemente do seu pertencimento étnico-racial.

Pedagogias de combate ao racismo e a discriminações elaboradas com o objetivo de educação das relações étnico/raciais positivas têm como objetivo fortalecer entre os negros e despertar entre os brancos a consciência negra. Entre os negros poderão oferecer conhecimentos e segurança para orgulharem-se da sua origem

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africana; para os brancos poderão permitir que identifiquem as influências, a contribuição, a participação e a importância da história e da cultura dos negros no seu jeito de ser, viver, de se relacionar com as outras pessoas, notadamente as negras. Também farão parte de um processo de reconhecimento, por parte do Estado, da sociedade e da escola, da dívida social que têm em relação ao segmento negro da população, possibilitando uma tomada de posição explícita contra o racismo e a discriminação racial e a construção de ações afirmativas nos diferentes níveis de ensino da educação brasileira.

Tais pedagogias precisam estar atentas para que todos, negros e não negros, além de ter acesso a conhecimentos básicos tidos como fundamentais para a vida integrada à sociedade, exercício profissional competente, recebam formação que os capacite para forjar novas relações étnico-raciais. Para tanto, há necessidade, como já vimos, de professores qualificados para o ensino das diferente áreas de conhecimentos e além disso sensíveis e capazes de direcionar positivamente as relações entre pessoas de diferentes pertencimento étnico-racial, no sentido do respeito e da correção de posturas, atitudes, palavras preconceituosas. Daí a necessidade de se insistir e investir para que os professores, além de sólida formação na área específica de atuação, recebam formação que os capacite não só a compreender a importância das questões relacionadas à diversidade étnico-racial, mas a lidar positivamente com elas e sobretudo criar estratégias pedagógicas que possam auxiliar a reeducá-las.

Até aqui apresentaram-se orientações que justificam e fundamentam as determinações de caráter normativo que seguem. História e Cultura Afro-Brasileira e Africana – Determinações

A obrigatoriedade de inclusão de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos da Educação Básico trata-se de decisão política, com fortes repercussões pedagógicas, inclusive na formação de professores. Com esta medida, reconhece-se que, além de garantir vagas para negros nos bancos escolares, é preciso valorizar devidamente a história e cultura de seu povo, buscando reparar danos, que se repetem há cinco séculos, a sua identidade e a direitos seus. A relevância do estudo de temas decorrentes da história e cultura afro-brasileira e africana não se restringem à população negra, ao contrário dizem respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educar-se enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma nação democrática.

É importante destacar que não se trata de mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz européia por um africano, mas de ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira. Nesta perspectiva, cabe às escolas incluir no contexto dos estudos e atividades que proporciona diariamente também as contribuições histórico-culturais dos povos indígenas e dos descendentes de asiáticos, além das de raiz africana e européia. É preciso ter clareza que o Art. 26A acrescido à Lei 9394/1996 provoca bem mais do que inclusão de novos conteúdos, exige que se repensem relações étnico-raciais, sociais,

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pedagógicas, procedimentos de ensino, condições oferecidas para aprendizagem, objetivos tácitos e explícitos da educação oferecida pelas escolas.

A autonomia dos estabelecimentos de ensino para compor os projetos pedagógicos, no cumprimento do exigido pelo Art. 26A da Lei 9394/1996, permite que se valham da colaboração das comunidades a que a escola serve, do apoio direto ou indireto de estudiosos e do Movimento Negro, com os quais estabelecerão canais de comunicação, encontrarão formas próprias de incluir nas vivências promovidas pela escola, inclusive em conteúdos de disciplinas, as temáticas em questão. Caberá aos sistemas de ensino, às mantenedoras, à coordenação pedagógica dos estabelecimentos de ensino e aos professores com base neste parecer, estabelecer conteúdos de ensino, unidades de estudos, projetos e programas, abrangendo os diferentes componentes curriculares. Caberá, aos administradores dos sistemas de ensino e das mantenedoras prover as escolas, seus professores e alunos de material bibliográfico e de outros materiais didáticos, além de acompanhar os trabalhos desenvolvidos, a fim de evitar que questões tão complexas, muito pouco tratadas, tanto na formação inicial como continuada de professores, sejam abordadas de maneira resumida, incompleta, com erros.

Em outras palavras, aos estabelecimentos de ensino está sendo atribuída responsabilidade de acabar com o modo falso e reduzido de tratar a contribuição dos africanos escravizados e de seus descendentes para a construção da nação brasileira; de fiscalizar para que, no seu interior,os alunos negros deixem de sofrer os primeiros e continuados atos de racismo de que são vítimas. Sem dúvidas, assumir estas responsabilidades implica compromisso com o entorno sócio-cultural da escola, da comunidade onde esta se encontra e a que serve, compromisso com a formação de cidadãos atuantes e democráticos, capazes de compreender as relações sociais e étnico-raciais de que participam e ajudam a manter e/ou a reelaborar, capazes de decodificar palavras, fatos, situações a partir de diferentes perspectivas, de desempenhar-se em áreas de competências que lhes permitam continuar e aprofundar estudos em diferentes níveis de formação.

Precisa o Brasil, país multi-étnico e pluricultural, de organizações escolares em que todos se vejam incluídos, em que lhes seja garantido o direito de aprender e de ampliar conhecimentos, sem ser obrigados a negar a si mesmos, ao grupo étnico/racial a que pertencem, a adotar costumes, idéias, comportamentos que lhes são adversos. E estes certamente serão indicadores da qualidade da educação que estará sendo oferecida pelos estabelecimentos de ensino de diferentes níveis.

Para conduzir suas ações, os sistemas de ensino, os estabelecimentos, os professores terão como referência, entre outros pertinentes às bases filosóficas e pedagógicas que assumem, os princípios a seguir explicitados. CONSCIÊNCIA POLÍTICA E HISTÓRICA DA DIVERSIDADE Este princípio deve conduzir:

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à igualdade básica de pessoa humana como sujeito de direitos; à compreensão de que a sociedade é formada por pessoas que pertencem a grupos

étnico-raciais distintos, que possuem cultura e história próprias, igualmente valiosas e que em conjunto constroem, na nação brasileira, sua história;

ao conhecimento e à valorização da história dos povos africanos e da cultura afro-brasileira na construção histórica e cultural brasileira;

à superação da indiferença, injustiça e desqualificação com que os negros, os povos indígenas e também as classes populares às quais os negros, no geral, pertencem, são comumente tratados;

à desconstrução, por meio de questionamentos e análises críticas, objetivando eliminar conceitos, idéias, comportamentos veiculados pela ideologia do branqueamento, pelo mito da democracia racial, que tanto mal fazem a negros e brancos;

à busca, da parte de pessoas, em particular de professores não familiarizados com a análise das relações étnico-raciais e sociais com o estudo de história e cultura afro-brasileira e africana, de informações e subsídios que lhes permitam formular concepções não baseadas em preconceitos e construir ações respeitosas;

ao diálogo, via fundamental para entendimento entre diferentes, com a finalidade de negociações, tendo em vista objetivos comuns; visando a uma sociedade justa.

FORTALECIMENTO DE IDENTIDADES E DE DIREITOS O princípio deve orientar para: o desencadeamento de processo de afirmação de identidades, de historicidade

negada ou distorcida; o rompimento com imagens negativas forjadas por diferentes meios de

comunicação, contra os negros e os povos indígenas; o esclarecimentos a respeito de equívocos quanto a uma identidade humana

universal; o combate à privação e violação de direitos; a ampliação do acesso a informações sobre a diversidade da nação brasileira e

sobre a recriação das identidades, provocada por relações étnico-raciais. as excelentes condições de formação e de instrução que precisam ser oferecidas,

nos diferentes níveis e modalidades de ensino, em todos os estabelecimentos, inclusive os localizados nas chamadas periferias urbanas e nas zonas rurais.

AÇÕES EDUCATIVAS DE COMBATE AO RACISMO E A DISCRIMINAÇÕES O princípio encaminha para: a conexão dos objetivos, estratégias de ensino e atividades com a experiência de

vida dos alunos e professores, valorizando aprendizagens vinculadas às suas relações com pessoas negras, brancas, mestiças, assim como as vinculadas às relações entre negros, indígenas e brancos no conjunto da sociedade;

a crítica pelos coordenadores pedagógicos, orientadores educacionais, professores, das representações dos negros e de outras minorias nos textos, materiais didáticos,

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bem como providências para corrigi-las; condições para professores, alunos pensarem, decidirem, agirem, assumindo

responsabilidade por relações étnico-raciais positivas, enfrentando e superando discordâncias, conflitos, contestações, valorizando os contrastes das diferenças;

valorização da oralidade, da corporeidade e da arte por exemplo como a dança, marcas da cultura de raiz africana, ao lado da escrita e da leitura;

educação patrimonial, aprendizado a partir do patrimônio cultural afro-brasileiro, visando preservá-lo e difundi-lo;

o cuidado para que se dê um sentido construtivo à participação dos diferentes grupos sociais, étnico-raciais na construção da nação brasileira, aos elos culturais e históricos entre diferentes grupos étnico-raciais, às alianças sociais;

participação de grupos do Movimento Negro, e de grupos culturais negros, bem como da comunidade em que se insere a escola, sob a coordenação dos professores, na elaboração de projetos político-pedagógicos que contemplem a diversidade étnico-racial.

Estes princípios e seus desdobramentos mostram exigências de mudança de

mentalidade, de maneiras de pensar e agir dos indivíduos em particular, assim como das instituições e de suas tradições culturais. É neste sentido que se fazem as seguintes determinações:

- O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, evitando-se distorções, envolverá articulação entre passado, presente e futuro no âmbito de experiências, construções e pensamentos produzidos em diferentes circunstâncias e realidades do povo negro. É meio privilegiado para a educação das relações étnico-raciais e têm por objetivos o reconhecimento e valorização da identidade, história e cultura dos afro-brasileiros, garantia de seus direitos de cidadãos, reconhecimento e igual valorização das raízes africanas da nação brasileira, ao lado das indígenas, européias, asiáticas.

O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana se farão por diferentes

meios, em atividades curriculares ou não, em que: - se explicite, busque compreender e interpretar, na perspectiva de quem o formule, diferentes formas de expressão e de organização de raciocínios e pensamentos de raiz da cultura africana; - promovam-se oportunidades de diálogo em que se conheçam, se ponham em comunicação diferentes sistemas simbólicos e estruturas conceituais, bem como se busquem formas de convivência respeitosa, além da construção de projeto de sociedade em que todos se sintam encorajados a expor, defender sua especificidade étnico-racial e a buscar garantias para que todos o façam; - sejam incentivadas atividades em que pessoas – estudantes, professores, servidores, integrantes da comunidade externa aos estabelecimentos de ensino – de diferentes culturas interatuem e se interpretem reciprocamente, respeitando os valores, visões de mundo, raciocínios e pensamentos de cada um.

O ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a educação das relações

étnico-raciais, tal como explicita o presente parecer, se desenvolverão no cotidiano das escolas, nos diferentes níveis e modalidades de ensino, como conteúdo de

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disciplinas2 particularmente Educação Artística, Literatura e História do Brasil, sem prejuízo das demais3, em atividades curriculares ou não, trabalhos em salas de aula, nos laboratórios de ciências e de informática, na utilização de sala de leitura, biblioteca, brinquedoteca, áreas de recreação, quadra de esportes e outros ambientes escolares.

O ensino de História Afro-Brasileira abrangerá, entre outros conteúdos, iniciativas e

organizações negras, incluindo a história de quilombos, a começar pelo de Palmares, e de remanescentes de quilombos, que têm contribuído para o desenvolvimento de comunidades, bairros, localidades, municípios, regiões (Exemplos: associações negras recreativas, culturais, educativas, artísticas, de assistência, de pesquisa, irmandades religiosas, grupos do Movimento Negro). Será dado destaque a acontecimentos, realizações próprios de cada região, localidade.

Datas significativas para cada região e localidade serão devidamente assinaladas. O

13 de maio, Dia Nacional de Luta contra o Racismo, será tratado como o dia de denúncia das repercussões das políticas de eliminação física e simbólica da população afro-brasileira no pós-abolição, e de divulgação dos significados da Lei áurea para os negros. No 20 de novembro será celebrado o Dia Nacional da Consciência Negra, entendendo-se consciência negra nos termos explicitados anteriormente neste parecer. Entre outras datas de significado histórico e político deverá ser assinalado o 21 de março, dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial.

Em História da África, tratada em perspectiva positiva, não só de denúncia da

miséria e discriminações que atingem o continente, nos tópicos pertinentes se fará articuladamente com a história dos afrodescendentes no Brasil e serão abordados temas relativos: - ao papel dos anciãos e dos griots como guardiãos da memória histórica; - à história da ancestralidade e religiosidade africana; - aos núbios e aos egípcios, como civilizações que contribuíram decisivamente para o desenvolvimento da humanidade; - às civilizações e organizações políticas pré-coloniais, como os reinos do Mali, do Congo e do Zimbabwe; - ao tráfico e à escravidão do ponto de vista dos escravizados; - ao papel dos europeus, dos asiáticos e também de africanos no tráfico; - à ocupação colonial na perspectiva dos africanos; - às lutas pela independência política dos países africanos; - às ações em prol da união africana em nossos dias, bem como o papel da União Africana, para tanto; - às relações entre as culturas e as histórias dos povos do continente africano e os da diáspora; - à formação compulsória da diáspora, vida e existência cultural e histórica dos africanos e seus descendentes fora da África; - à diversidade da diáspora, hoje,

2 § 2°, Art. 26A, Lei 9394/1996 : Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.

3 Neste sentido ver obra que pode ser solicitada ao MEC: MUNANGA, Kabengele, org. Superando o Racismo na Escola. Brasília, Ministário da Educação, 2001.

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nas Américas, Caribe, Europa, Ásia; - aos acordos políticos, econômicos, educacionais e culturais entre África, Brasil e outros países do diáspora.

O ensino de Cultura Afro-Brasileira destacará o jeito próprio de ser, viver e pensar

manifestado tanto no dia a dia, quanto em celebrações como congadas, moçambiques, ensaios, maracatus, rodas de samba, entre outras

O ensino de Cultura Africana abrangerá: - as contribuições do Egito para a ciência e

filosofia ocidentais; - as universidades africanas Tambkotu, Gao, Djene que floresciam no século XVI; - as tecnologias de agricultura, de beneficiamento de cultivos, de mineração e de edificações trazidas pelos escravizados, bem como a produção científica, artística (artes plásticas, literatura, música, dança, teatro) política, na atualidade .

O ensino de História e de Cultura Afro-Brasileira, far-se-á por diferentes meios,

inclusive a realização de projetos de diferente natureza, no decorrer do ano letivo, com vistas à divulgação e estudo da participação dos africanos e de seus descendentes em episódios da história do Brasil, na construção econômica, social e cultural da nação, destacando-se a atuação de negros em diferentes áreas do conhecimento, de atuação profissional, de criação tecnológica e artística, de luta social (tais como:Zumbi, Luiza Nahim, Aleijadinho, Padre Maurício, Luiz Gama, Cruz e Souza, João Cândido, André Rebouças, Teodoro Sampaio, José Correia Leite, Solano Trindade, Antonieta de Barros, Edison Carneiro, Lélia Gonzáles, Beatriz Nascimento, Milton Santos, Guerreiro Ramos, Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Henrique Antunes Cunha, Tereza Santos, Emmanuel Araújo, Cuti, Alzira Rufino, Inaicyra Falcão dos Santos, entre outros).

O ensino de História e Cultura Africana se fará por diferentes meios, inclusive a

realização de projetos de diferente natureza, no decorrer do ano letivo, com vistas à divulgação e estudo da participação dos africanos e de seus descendentes na diáspora, em episódios da história mundial, na construção econômica, social e cultural das nações do continente africano e da diáspora, destacando-se a atuação de negros em diferentes áreas do conhecimento, de atuação profissional, de criação tecnológica e artística, de luta social (entre outros: rainha Nzinga, Toussaint-Louverture, Martin Luther King, Malcon X, Marcus Garvey, Aimé Cesaire, Léopold Senghor, Mariama Bâ, Amílcar Cabral, Cheik Anta Diop, Steve Biko, Nelson Mandela, Aminata Traoré, Christiane Taubira).

Para tanto, os sistemas de ensino e os estabelecimentos de Educação Básica, nos

níveis de Educação Infantil, Educação Fundamental, Educação Média, Educação de Jovens e Adultos, Educação Superior, precisarão providenciar: Registro da história não contada dos negros brasileiros, tais como em

remanescentes de quilombos, comunidades e territórios negros urbanos e rurais. Apoio sistemático aos professores, para elaboração de planos, projetos, seleção de

conteúdos e métodos de ensino, cujo foco seja História e Cultura Afro-Brasileira e

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Africana e a Educação das Relações Énico-Raciais. Mapeamento e divulgação de experiências pedagógicas de escolas,

estabelecimentos de ensino superior, secretarias de educação, assim como levantamento das principais dúvidas e dificuldades dos professores em relação ao trabalho com a questão racial na escola, e encaminhamento de medidas para resolvê-las, feitos pela administração dos sistemas de ensino e por Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros.

Articulação entre os sistemas de ensino, estabelecimentos de ensino superior,

centros de pesquisa, Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, escolas, comunidade e movimentos sociais, visando a formação de professores para a diversidade étnico/racial.

Instalação, nos diferentes sistemas de ensino, de grupo de trabalho para discutir e

coordenar planejamento e execução da formação de professores para atender ao disposto neste parecer quanto à Educação das Relações Étnico-Raciais e ao determinado nos Art. 26 e 26A da Lei 9394/1996, com o apoio do Sistema Nacional de Formação Continuada e Certificação de Professores do MEC.

Introdução, nos cursos de formação de professores e de outros profissionais da

educação, de análises das relações sociais e raciais, no Brasil; de conceitos e de suas bases teóricas, tais como racismo, discriminações, intolerância, preconceito, estereótipo, raça, etnia, cultura, classe social, diversidade, diferença, multiculturalismo; de práticas pedagógicas, de materiais e de textos didáticos, na perspectiva da reeducação das relações étnico-raciais e do ensino e aprendizagem da História e cultura dos Afro-brasileiros e dos Africanos.

Inclusão de discussão da questão racial como parte integrante da matriz curricular,

tanto dos cursos de licenciatura para Educação Infantil, os anos iniciais e finais do Educação Fundamental, Educação Média, Educação de Jovens e Adultos, como de processos de formação continuada de professores, inclusive de docentes no ensino superior.

Inclusão, respeitada a autonomia dos estabelecimentos do Ensino Superior, nos

conteúdos de disciplinas e em atividades curriculares dos cursos que ministra, de Educação das Relações Étnico-Raciais, de conhecimentos de matriz africana e/ou que dizem respeito a população negra Por exemplo: - em Medicina , entre outras questões estudo da anemia falciforme, da problemática da pressão alta; - em Matemática, contribuições de raiz africana, identificadas e descritas pela Etno-Matematica; em Filosofia, estudo da filosofia tradicional africana e de contribuições de filósofos africanos e afrodescendentes da atualidade.

Inclusão de bibliografia relativa à história e cultura afro-brasileira e africana às

relações étnico-raciais, aos problemas desencadeados pelo racismo e por outras discriminações, à pedagogia anti-racista nos programas de concursos públicos para admissão de professores.

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Inclusão, em documentos normativos e de planejamento dos estabelecimentos de

ensino de todos os níveis - estatutos, regimentos, planos pedagógicos, planos de ensino - de objetivos explícitos, assim como de procedimentos para sua consecução, visando ao combate ao racismo, a discriminações, ao reconhecimento, valorização e respeito das histórias e culturas afro-brasileira e africana.

Previsão, nos fins, responsabilidades e tarefas dos conselhos escolares e de outros

órgão colegiados, do exame e encaminhamento de solução para situações de racismo e de discriminações, buscando-se criar situações educativas em que as vítimas recebam apoio requerido para superar o sofrimento, os agressores, orientação para que compreendam a dimensão do que praticaram e ambos, educação para o reconhecimento, valorização e respeito mútuos.

Inclusão de personagens negros, assim como de outros grupos étnico-raciais, em

cartazes e outras ilustrações sobre qualquer tema abordado na escola, a não ser quando tratar de manifestações culturais próprias de um determinado grupo étnico-racial.

Organização de centros de documentação, bibliotecas, midiotecas, museus,

exposições em que se divulguem valores, pensamentos, jeitos de ser e viver dos diferentes grupos étnico-raciais brasileiros, particularmentedos afrodescendentes.

Identificação, com o apoio dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, de fontes de

conhecimentos de origem africana, a fim de selecionarem-se conteúdos e procedimentos de ensino e de aprendizagens.

Incentivo, pelos sistemas de ensino, a pesquisas sobre processos educativos

orientados por valores, visões de mundo, conhecimentos afro-brasileiros e indígenas, com o objetivo de ampliação e fortalecimento de bases teóricas para a educação brasileira.

Identificação, coleta, compilação de informações sobre a população negra, com

vistas à formulação de políticas públicas de Estado, comunitárias e institucionais. Edição de livros e de materiais didáticos, para diferentes níveis e modalidades de

ensino, que atendam ao disposto neste parecer, em cumprimento ao disposto no Art. 26A da LDB, e para tanto abordem a pluralidade cultural e a diversidade étnico-racial da nação brasileira, corrijam distorções e equívocos em obras já publicadas sobre a história, a cultura, a identidade dos afrodescendentes, sob o incentivo e supervisão dos programas de difusão de livros educacionais do MEC - Programa Nacional do Livro Didático e Programa Nacional de Bibliotecas Escolares ( PNBE).

Divulgação, pelos sistemas de ensino e mantenedoras, com o apoio dos Núcleos de

Estudos Afro-Brasileiros, de uma bibliografia afro-brasileira e de outros materiais

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como mapas da diáspora, de África, de quilombos brasileiros, fotografias de territórios negros urbanos e rurais, reprodução de obras de arte afro-brasileira e africana a serem distribuídos nas escolas de sua rede, com vistas à formação de professores e alunos para o combate à discriminação e ao racismo.

Oferta de Educação Fundamental em áreas de remanescentes de quilombos,

contando as escolas com professores e pessoal administrativo que se disponham a conhecer física e culturalmente a comunidade e a formar-se para trabalhar com suas especificidades.

Garantia, pelos sistemas de ensino e entidades mantenedoras, de condições

humanas, materiais e financeiras para execução de projetos com o objetivo de Educação das Relações Étnico-raciais e estudo de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, assim como organização de serviços e atividades que controlem, avaliem e redimensionem sua consecução, que exerçam fiscalização das políticas adotadas e providenciem correção de distorções.

Realização, pelos sistemas de ensino federal, estadual e municipal, de atividades

periódicas, com a participação das redes das escolas públicas e privadas, de exposição, avaliação e divulgação dos êxitos e dificuldades do ensino e aprendizagens de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e da Educação das Relações Étnico-Raciais; assim como comunicação detalhada dos resultados obtidos ao Ministério da Educação, à Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, ao Conselho Nacional de Educação, e aos respectivos conselhos Estaduais e Municipais de Educação, para que encaminhem providências, quando for o caso.

Inclusão, nos instrumentos de avaliação das condições de funcionamento de

estabelecimentos de ensino de todos os níveis, nos aspectos relativos ao currículo, atendimento aos alunos, de quesitos que avaliem a implantação e execução do estabelecido neste parecer.

Disponibilização deste parecer na sua íntegra para os professores de todos os níveis de ensino, responsáveis pelo ensino de diferentes disciplinas e atividades educacionais, assim como para outros profissionais interessados a fim de que possam estudar, interpretar as orientações, enriquecer, executar as determinações aqui feitas e avaliar seu próprio trabalho e resultados obtidos por seus alunos, considerando princípios e critérios apontados.

Obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Afro-Brasileiras, Educação das Relações Étnico-Raciais e os Conselhos de Educação

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Diretrizes são dimensões normativas, reguladoras de caminhos, embora não fechadas a que historicamente possam, a partir das determinações iniciais, tomar novos rumos. Diretrizes não visam a desencadear ações uniformes, todavia, objetivam oferecer referências e critérios para que se implantem ações, as avaliem e reformulem no que e quando necessário.

Estas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, na medida em que procedem de ditames constitucionais e de marcos legais nacionais, na medida em que se referem ao resgate de uma comunidade que povoou e construiu a nação brasileira, atingem o âmago do pacto federativo. Nessa medida, cabe aos conselhos de Educação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios aclimatar tais diretrizes, dentro do regime de colaboração e da autonomia de entes federativos, a seus respectivos sistemas, dando ênfase à importância de os planejamentos valorizarem, sem omitir outras regiões, a participação dos afrodescendentes, do período escravista a nossos dias, na sociedade, economia, política, cultura da região e da localidade; definindo medidas urgentes para formação de professores; incentivando o desenvolvimento de pesquisas bem como envolvimento comunitário. A esses órgãos normativos cabe, pois, a tarefa de adequar o proposto neste parecer à realidade de cada sistema de ensino. E, a partir daí, deverá ser competência dos órgãos executores - administrações de cada sistema de ensino, das escolas - definir estratégias que, quando postas em ação, viabilizarão o cumprimento efetivo da Lei de Diretrizes e Bases que estabelece a formação básica comum, o respeito aos valores culturais, como princípios constitucionais da educação tanto quanto da dignidade da pessoa humana (inciso III do art. 1), garantindo-se a promoção do bem de todos, sem preconceitos (inciso IV do Art. 3) a prevalência dos direitos humanos (inciso II do art. 4) e repúdio ao racismo (inciso VIII do art. 4).

Cumprir a Lei é, pois, responsabilidade de todos e não apenas do professor em sala de aula. Exige-se, assim, um comprometimento solidário dos vários elos do sistema de ensino brasileiro, tendo-se como ponto de partida o presente parecer que junto com outras diretrizes e pareceres e resoluções, têm o papel articulador e coordenador da organização da educação nacional.

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Brasília-DF, 10 de março de 2004.

CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO PROJETO DE RESOLUÇÃO

Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais

e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana

O Presidente da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de

Educação, tendo em vista o disposto no Art. 9º, do § 2º, alínea “C”, da Lei nº 9.131, de 25 de novembro de 1995, e com fundamento no Parecer CNE/CP 003/2004, de 10 de março de 2004, peça indispensável do conjunto das presentes Diretrizes Curriculares Nacionais, homologado pelo Ministro da Educação em de 2004, RESOLVE Art. 1° - A presente Resolução institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a serem observadas pelas instituições de ensino de Educação Básica, nos níveis de Educação Infantil, Educação Fundamental, bem como Educação Média, Educação de Jovens e Adultos e Educação Superior em especial no que se refere à formação inicial e continuada de professores, necessariamente quanto à Educação das Relações Étnico-Raciais; e por aquelas de Educação Básica, nos termos da Lei 9394/96, reformulada por forma da Lei 10639/2003, no que diz respeito ao ensino sistemático de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, em especial em conteúdos de Educação Artística, Literatura e História do Brasil. Art. 2° - As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africanas se constituem de orientações, princípios, fundamentos para o planejamento, execução e avaliação da Educação das Relações Étnico-Raciais e do Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Art. 3° As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana têm por meta a educação de cidadãos atuantes no seio da sociedade brasileira que é multicultural e pluriétnica, capazes de, por meio de relações étnico-sociais positivas, construirem uma nação democrática. §1° A Educação das Relações Étnico-Raciais tem por objetivo a divulgação e produção de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto ao seu pertencimento étnico-racial - descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos – capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, ter igualmente respeitados seus direitos, valorizada sua identidade e assim participem da consolidação da democracia brasileira.

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§2º O Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, meio privilegiado para a educação das relações étnico-raciais, tem por objetivo o reconhecimento e valorização da identidade, história e cultura dos afro-brasileiros, garantia de seus direitos de cidadãos, reconhecimento e igual valorização das raízes africanas da nação brasileira, ao lado das indígenas, européias, asiáticas. Art. 4° Os conteúdos, competências, atitudes e valores a serem aprendidos com a Educação das Relações Étnico-Raciais e o estudo de História e Cultura Afro-Brasileira, bem como de História e Cultura Africana, serão estabelecidos pelos estabelecimentos de ensino e seus professores, com o apoio e supervisão dos sistemas de ensino, entidades mantenedoras e coordenações pedagógicas, atendidas as indicações, recomendações, diretrizes explicitadas no Parecer CNE/CP 003/2004. Art. 5° Os sistemas e os estabelecimentos de ensino poderão estabelecer canais de comunicação com grupos do Movimento Negro, grupos culturais negros, instituições formadoras de professores, núcleos de estudos e pesquisas, como os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, com a finalidade de buscar subsídios e trocar experiências para planos institucionais, planos pedagógicos, planos e projetos de ensino. Art. 6º Os sistemas de ensino, as entidades mantenedoras incentivarão e criarão condições materiais e financeiras, assim como proverão as escolas, seus professores e alunos de material bibliográfico e de outros materiais didáticos necessários para a educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana; as coordenações pedagógicas promoverão o aprofundamento de estudos, para que os professores concebam e desenvolvam unidades de estudos, projetos e programas, abrangendo os diferentes componentes curriculares. Art. 7º As instituições de ensino superior, respeitada a autonomia que lhe é devida, incluírão nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos diferentes cursos que ministram, a educação Étnico-Raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos afrodescendentes,n os termos explicitados no Parecer CNE/CP 003/2004. Art. 8° Os sistemas de ensino tomarão providências para que seja respeitado o direito de também alunos afrodescendentes freqüentarem estabelecimentos de ensino que contem com instalações e equipamentos sólidos, atualizados, com professores competentes no domínio dos conteúdos de ensino, comprometidos com a educação de negros e não negros, no sentido de que venham a relacionar-se com respeito, sendo capazes de corrigir posturas, atitudes, palavras que impliquem desreipeito e discriminação. Art. 9° Nos fins, responsabilidades e tarefas dos órgãos colegiados dos estabelecimentos de ensino, será previsto o exame e encaminhamento de solução para situações de discriminação, buscando-se criar situações educativas para o reconhecimento, valorização e respeito da diversidade.

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§ Unico: As situações de racismo serão tratadas como crimes imprescritíveis e inafiançáveis, conforme prevê o Art. 5º, XLII da Constituição Federal/1998. Art. 10° Os estabelecimentos de ensino de diferentes níveis, com o apoio e supervisão dos sistemas de ensino desenvolverão a Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, obedecendo as diretrizes do Parecer CNE/CP 003/2004, o que será considerado na avaliação de suas condições de funcionamento. Art. 11º Os sistemas de ensino incentivarão pesquisas sobre processos educativos orientados por valores, visões de mundo, conhecimentos afro-brasileiros, ao lado de pesquisas de mesma natureza junto aos povos indígenas, com o objetivo de ampliação e fortalecimento de bases teóricas para a educação brasileira. Art. 12º Os sistemas de ensino orientarão e supervisionarão para que a edição de livros e de outros materiais didáticos atendam ao disposto no Parecer CNE/CP 003/2004, no comprimento da legislação em vigor. Art. 13º Aos conselhos de Educação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios caberá aclimatar as Diretrizes Curriculares Nacionais instituídas por esta Resolução, dentro do regime de colaboração e da autonomia de entes federativos e seus respectivos sistemas. Art. 14º Os sistemas de ensino promoverão junto com ampla divulgação do Parecer CNE/CP 003/2004 e dessa Resolução, atividades periódicas, com a participação das redes das escolas públicas e privadas, de exposição, avaliação e divulgação dos êxitos e dificuldades do ensino e aprendizagens de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e da Educação das Relações Étnico-raciais; assim como comunicarão, de forma detalhada, os resultados obtidos ao Ministério da Educação e Cultura, à Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, ao Conselho Nacional de Educação, e aos respectivos conselhos estaduais e municipais de Educação, para que encaminhem providências, que forem requeridas. Art. 15º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.

Brasília(DF), 10 de março.de.2004.

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Os Valores Civilizatórios Africanos e a Desconstrução de uma África Inventada pelo Ocidente. (*)Marcelo Fontana é Bacharel e Licenciado em História pela FFLCH/USP - - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Especialista em História da África; Professor da Rede Municipal de Ensino da Cidade de São Paulo. e consultor convidado do grupo Mídia Etnia Educação e Comunicação Ltda.

Professor Marcelo Fontana(*)

“(...) o intelectual colonizado que decide combater as mentiras colonialistas o fará em escala continental. O passado é valorizado. A cultura, que é arrancada do passado para ser desdobrada em todo o seu esplendor, não é a do seu país. O colonialismo, que não matizou os seus esforços, não deixou de afirmar que o negro é um selvagem e o negro, para ele, não era nem o angolano nem o nigeriano. Ele falava a língua negra. Para o colonialismo, o vasto continente era um antro de selvagens, uma região infestada de superstições e fanatismo, digna de desprezo, carregada de maldições divinas, lugar de antropófagos, lugar de negros. A condenação do colonialismo é continental. A afirmação, pelo colonialismo, de que a noite humana caracterizou o período ante-colonial diz respeito ao conjunto do continente africano. Os esforços do colonizado para reabilitar-se e escapar à mordida colonial se inscrevem logicamente na mesma perspectiva que a do colonialismo. O intelectual colonizado, que foi muito longe na cultura ocidental e que decide proclamar a existência de uma cultura, não o faz nunca em nome de Angola ou do Daomé. A cultura que é afirmada é a cultura africana. O negro nunca oi tão negro quanto a partir do momento em que foi dominado pelo branco, quando decide provar a sua cultura, fazer obra de cultura, percebe que a história lhe impõe um terreno preciso, que a história lhe indica uma via precisa e que deve manifestar uma cultura negra. (...)” (Franz Fanon – Os Condenados da Terra p.245)

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UMA ÁFRICA INVENTADA PELO OCIDENTE A SUA PRESENÇA NOS CURRÍCULOS ESCOLARES

Nem sempre existiu uma idéia de continente africano, e tanto o conceito de África como os termos sempregados para designá-lo sofreram muitos câmbios no tempo e no espaço. As categorias de africano e de África foram, em diferentes épocas e sociedades permanentemente ressignificados e ainda hoje devem ser lidos como signos abertos, permanentemente (re)construídos na liminaridade por diferentes atores sociais, sejam eles africanos ou não. Ou seja, a própria construção do conceito de África incorporou as tensões e as estereotipias elaboradas de modo desigual por atores desiguais durante um processo extremamente desigual da colonização.

Inicialmente e durante a maior parte deste processo, as idéias de África, Etiópia, Guiné e Sudão foram categorias construídas por estrangeiros e, sobretudo, por um olhar estrangeiro que buscava no outro as imagens do bárbaro, do estranho, do exótico, do selvagem e do primitivo; imagens que refletem uma assimetria que vai sendo aprofundada no decorrer dos séculos: a comparação entre um primeiro conjunto de povos que progressivamente se reconhecem em torno dos conceitos de Cristandade, Europa e Ocidente, proclamando a si mesmos civilizados, e um segundo conjunto de povos que passam a ser reconhecidos como inferiores, primitivos e desprovidos de cultura por este mesmo conjunto de povos que definem a si mesmos como o modelo de civilização e progresso. Os feitos coloniais não foram obra do acaso, mas demonstram um esforço permanente dos atores coloniais em (re)fundar uma versão de África, se apropriando de termos e idéias forjados sobre o continente negro desde a época greco-romana.

A própria invenção do termo ‘África’ parece estar situada no mundo greco-romano. Entre os gregos antigos, o termo ‘África’ jamais existiu, sendo os romanos os primeiros a empregá-lo. Após a conquista romana de Cartago (146 a.C), as novas terras conquistadas se tornaram a Africae vetus, posteriormente denominada Africae proconsularis (46 a.C) com a incorporação de parcelas da Numidia, da Lybia e da Tripolitania.

O espaço denominado por gregos e romanos como África pertencia às partes do mundo conhecidas como “civilizadas”, ou seja, como parte do “Orbis terrarum”, e se aproximava, grosso modo, ao espaço hoje ocupado pelo país denominado Tunísia. O Egito, a Líbia e a Mauritânia também designavam parcelas do mundo greco-romano, mas não eram conhecidos como África. Em contraposição a este conjunto de terras conhecidas e reconhecidas como civilização, a maioria dos territórios do continente africano era conhecida como Aethiopia sub-Aegypto e pertencia às partes do mundo consideradas pelos antigos como bárbaras e designadas como “Terra Ignota” ou “Terra

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Incógnita”. No final da Antigüidade Clássica, Cláudio Ptolomeu (II d,C) e Macróbio (Vd.C),

promoveram uma sistematização das concepções espaciais do seu tempo, elaborando dois modelos cartográficos que influenciaram profundamente a cartografia e o imaginário ocidentais: Os mapas ptolomaicos, em forma de leque invertido, praticamente eram desconhecidos pela Cristandade ocidental. Eram “norteados” (o norte era a parte superior do mapa), e freqüentemente designavam por África uma realidade semicontinental que, às vezes, correspondia a atual África do norte. Sua organização em paralelos e meridianos forneceria a base para a elaboração dos “portulanos” (mapas portugueses) a partir do século XIII.

Já os mapas macrobianos, conhecidos como “mapas em T” ou “discários”, eram “orientados” (o leste era a parte superior do mapa) e predominaram entre os cristãos e mulçumanos durante toda a era medieval. Os macrobianos medievais, diferentemente dos seus similares antigos, apresentavam apenas um disco com a “Orbis terrarum”, não representando num outro discário a Terra ignota” ou “Terra incógnita”. Também influenciados pelos trabalhos de Ptolomeu e Macróbio, outro “povo do livro” – os árabes – contrapunham o Billad el-Bidan (“a terra dos homens brancos”) e o Machrek (“jóia do Oriente”), berços da civilização mulçumana, ao Billad el-Sudan (“a terra dos homens negros”) e ao Maghreb (“jóia do Ocidente”).

Durante o medievo europeu, o nascimento da Cristandade redesenhou o imaginário das terras conhecidas e desconhecidas, a partir da fusão da cartografia ptolomaica-macrobiana e da cosmologia cristã. Europa, Ásia e África – seja nos mapas ptolomaicos, seja nos mapas macrobianos – aparecem explicitamente associadas ao pós-dilúvio bíblico e a descendência dos filhos e netos de Noé; respectivamente, a Jafet, a Sem e a Cam. A Cam foram associados os povos de cor negra, lábios grossos e cabelos crespos, destinados por uma suposta maldição bíblica a serem escravizados. Os descendentes de Cam passam a ser identificados com os habitantes de Africae e da Aethiopia. No final da era medieval européia, os escritos de viajantes, cronistas e pensadores árabes e cristãos já consideravam os povos negros como bárbaros e pagãos irredutíveis que possuíam na pele e na aparência física as marcas ou estigmas que autorizariam a sua escravização.

No século XV, as encíclicas papais Dum Diversas e Romanus Pontifex autorizavam a escravidão de islâmicos, pagãos e dos povos “pretos”. Expressão do espírito da época da expansão comercial e marítima européia, as encíclicas papais foram uma resposta ao contato desigual da Cristandade com outras civilizações. É nesse contexto que uma nova cartografia começa a se desenvolver, e o conceito de Africae passa a designar uma área, ainda imprecisa, mas muito mais ampla do que nos tempos antigos e

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medievais. O termo ‘África’ passa a concorrer com os termos Guiné e Aethiopia para designer em escalas muitas vezes sobrepostas, terras, povos e sociedades que começam a ser melhor conhecidos pelos exploradores europeus, e sangrados pelo criminoso tráfico transatlântico de escravos. Ou seja, data do início dos tempos modernos a interpenetração dos conceitos de Africae e Aethiopia: enquanto o primeiro, seguindo a tendência medieval, se descola do universo das regiões conhecidas e civilizadas e passa a se identificar com a “terra de Cam”, de bárbaros e pagãos pecaminosos destinados a escravidão, o segundo, sem perder sua associação com a barbárie e a selvageria, passa a indicar cada vez mais as terras interiores do continente negro, ainda desconhecidas.

Foi exatamente a força do trato negreiro que decidiu o destino do termo Africae. Assiste-se, a partir do século XVII, à suplantação das expressões Aethiopia e Guiné pela idéia continental de África, à medida que a imagem do continente negro confunde-se com a de um imenso mercado e reservatório de escravos.

Nos séculos XVIII e XIX, os estereótipos erigidos pela Modernidade em torno da idéia de África terminaram por se somar ao darwinismo social e as teorias raciológicas, que animavam a ação colonizadora de exploradores, conquistadores, missionários e administradores coloniais na partilha dos territórios africanos pelas potências capitalistas européias. Os africanos foram associados à “infância da humanidade”: a “raça” negra seria o mais grosseiro e primitivo estágio do homem. Por contraposição, o homem branco europeu corresponderia ao estágio superior da humanidade, apto a “civilizar” e tutelar os demais povos. Bárbaros, selvagens, pagãos e representantes dos estágios mais primitivos da humanidade, os africanos seriam desprovidos de civilização e o continente africano de qualquer forma de história. No século XIX, o filósofo Friedrich Hegel afirmava tranqüilamente que “a África não é uma pa rte histórica do mundo. Não tem movimentos, progressos a mostrar, movimentos históricos própri s dela”. Tal ponderação não expressa apenas uma das mais bem acabadas concepções européias, no apogeu do imperialismo, sobre uma idéia continental de África, mas expressa muito mais intensamente a invenção de uma África periférica por uma civilização que ainda hoje se pretende universal.

DESPERTAR O CURRÍCULO PARA OS VALORES CIVILIZATÓRIOS AFRICANOS Os currículos escolares ainda refletem profundamente o esquecimento a que os

historiadores da burguesia relegaram as sociedades africanas. A engenhosa operação de esquecer e invisibilizar o continente negro perpetua-se através da manutenção da África periférica em nossos currículos escolares. O papel estratégico dessa noção de África periférica é silenciar e impedir a manifestação de uma África a partir de dentro. A

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desconstrução desse prolongado e persistente silêncio deve partir da constatação do fato de África ter sido o palco da evolução biológica dos hominídeos, e do aparecimento da humanidade anatomicamente moderna e das primeiras culturas humanas. Isto não apenas credencia o continente africano como o berço da humanidade e das primeiras civilizações humanas, mas também como o berço das primeiras narrativas humanas que costumamos denominar de história. É nesse sentido que podemos entender a atividade dos griots (denominados djeli, “sangue”, em bambara). Apesar de descritos por viajantes e colonizadores europeus como um misto de animadores públicos e contadores de histórias, comparados com os menestréis e bardos medievais, as atividades desenvolvidas por estes grupos, nas sociedades africanas, consistiam tanto na preservação da memória social de impérios, reinos, povos e linhagens de parentesco, quanto na exortação dos viventes à emulação do comportamento dos antepassados, desempenhando um papel social que os aproxima muito mais dos historiadores e diplomatas do que dos bardos e menestréis. Assim sendo, falar de África significa reconhecer e valorizar a palavra africana. Longe de se restringir à oralidade, a palavra africana é um dos elementos fundamentais de todas as civilizações negro africanas. Considerada sagrada, a palavra é o elemento divino compartilhado com o humano que diferencia a humanidade dos demais seres criados, colocando os homens no centro de toda a criação.

Está, portanto, presente tanto nas narrativas orais quanto na arte tradicional, na gestualística, no próprio modo africano de ser e estar no mundo, ou seja, na cosmovisão africana. A valorização da palavra africana não pode ocorrer quando dissociamos as narrativas orais tradicionais da cosmovisão que as sustenta. Portanto, a primeira tarefa consiste em dar voz aos africanos na sua maneira africana de falar e ler o mundo. Isso possibilita a desconstrução de um currículo eurocêntrico, ao deslocar os povos africanos da condição de observados (objetos da história) para a de observadores (sujeitos da história). É necessário arrancar de um passado silenciado toda a orça de histórias e culturas votadas ao esquecimento por aqueles que as desprezam. A segunda tarefa consiste em problematizar os elementos constitutivos da cosmovisão africana no contexto das diferentes sociedades presentes no continente. E, neste terreno, não podemos generalizar: não existem uma África e uma humanidade africana genéricas. Ao lado de uma diversidade de símbolos, idiomas, religiões, organizações sociais e políticas, de costumes e práticas encontramos a presença de traços civilizatórios comuns: a importância da família extensa e da economia aldeã, a centralidade da ancestralidade, a crença em forças vitais e a valorização da palavra como a sua manifestação por excelência, o papel determinante do sagrado na organização da sociedade e do poder.

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A terceira e última tarefa, talvez a mais árdua de todas, consiste em historicizar os valores civilizatórios africanos. Ou seja: sendo a cosmovisão um traço comum ao homem negro e elemento estruturante presente nos impérios, reinos e sociedades africanas de ontem e de hoje, cabe indagar por quais mecanismos e processos históricos e sociais tais valores civilizatórios foram elaborados e se tornaram o elemento fundamentais nestas sociedades e como continuam operantes ainda hoje.

Por mais diversas que sejam as histórias e tradições mandinga, yoruba, fulani ou dos povos bantufalantes, a presença dos mesmos valores civilizatórios africanos em todas elas indica que a milenar presença humana manifestada pela diversidade de povos no continente neg o os construiu em conjunto: seja a partir de matrizes comuns mais antigas, como parece ser o caso das sociedades iniciáticas relacionadas aos caçadores; seja a partir de matrizes diferentes que convergiram entre si, como parece ser o caso da organização da economia aldeã e das tradições metalúrgicas negroafricanas apontadas pela arqueologia; ou ainda a partir de matrizes por enquanto ainda difíceis de precisar, como parece ser o caso do papel central desempenhado pelas concepções de mundo invisível/visível, de forças vitais e do preexistente na organização da ancestralidade em seus aspectos mítico e histórico.

CONCLUSÃO

Muitos foram os avanços e os ganhos obtidos a partir da promulgação de Lei 10.639/03. Não apenas a nossa indignação contra a discriminação e o racismo ganhou respaldo legal, mas nossa escuta e nosso olhar também se tornaram mais sensíveis para as diferenças. Os educadores cada vez mais estão empenhados na valorização da diversidade e no combate ao racismo e às práticas discriminatórias. Contudo, é ainda muito f rte a presença de uma história eurocêntrica que condena à invisibilidade e ao esquecimento a história da África, desconsiderando a importância da matriz africana na formação da sociedade brasileira.

Afinal, são muitos os vínculos que ligam os dois lados do Atlântico que tanto separou como uniu povos. Em nossas práticas de educadores, essa história eurocêntrica se tem traduzido num currículo que desconsidera o fato de a cultura e a história serem produzidas por diferentes grupos sociais. Privilegiando a Europa e o espaço ocidental, não nos damos conta de que não apenas precisamos, mas devemos contar a história a partir de outros pontos de vista. Isso não significa simplesmente adicionar, ao currículo já existente, elementos da história e da cultura africana e afro-brasileira; significa rever esse currículo e colocar em discussão os seus pressupostos mais íntimos, desconstruindo as idéias, conceitos, valores e renças que o animam: os dispositivos de disciplinarização e assujeitamento, o darwinismo social, o consumismo, o sexismo e o

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racismo forjado pelas teorias raciológicas do século XIX, produzidas pelo homem burguês, heterossexual, branco e europeu para o seu autoenaltecimento.

Este deve ser o espírito que deve animar a nossa busca e as nossas pesquisas, muito necessárias para a construção de um currículo que valorize a diversidade. Trata-se, portanto, de dar visibilidade, reconhecer e valorizar outras narrativas e os múltiplos sujeitos presentes na escola, na comunidade, na sociedade. É dentro desse contexto que é necessário colocar em foco e no centro do currículo escolar as experiências africanas e afro-brasileiras como história e cultura.

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QUADRO CRONOLÓGICO PARA UMA HISTÓRIA AFROCENTRADA

cronologia

As civilizações paleolíticas caracterizadas por uma liderança incontestável da África.

c.c. 4.000.000 – 12.000 a. C

A neolitização da África e seus desdobramentos(crescimento demográfico, migrações, etc...).Formação de economias aldeãs.

c.c. 12.000 – 4.000 a.C

O metalítico africano. Desenvolvimento daseconomias aldeãs e das linhagens de parentesco.

c.c. 4.000 a.C – 1.000 d.C

A formação de reinos e impérios a partir dassociedades organizadas em linhagens de parentesco.

c.c. 4.000 a.C – século XVI

A formação de um Atlântico Negro a partir dos primeiros contatos europeus, do tráfico negreiro e da diáspora africana

Séculos XV ao XIX

A ocupação européia e os movimentos de resistência e libertação.

Século XIX até o pós - IIªGuerra Mundial

A independência e seus problemas. Do pós - IIª Guerra Mundial até hoje

DIFERENTES PERSPECTIVAS PARA UMA HISTÓRIA DA ÁFRICA

PERSPECTIVA EUROCÊNTRICA

1. ÁFRICA: UM ESPAÇO A-HISTÓRICO.

2. ÁFRICA: UM CONTINENTE SEM FONTES HISTÓRICAS.

3. ÁFRICA: UMA HISTÓRIA DITADA PELO DIFUSIONISMO CULTURAL.

4. ÁFRICA: UMA REALIDADE ESTÁTICA.

PERSPECTIVA NÃO -EUROCÊNTRICA

1. ÁFRICA : BERÇO DA HUMANIDADE. A ANTERIORIDADE AFRICANA.

2. ÁFRICA: A IMPORTÂNCIA DA PALAVRA.

3. ÁFRICA: ESPAÇO DE PROCESSOS AUTÓCTONES.

4. ÁFRICA: UMA REALIDADE DINÂMICA E COMPLEXA.

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BIBLIOGRAFIA BÁSICA Obras Gerais e Manuais FAGE, J.D. – História da África. Lisboa, Portugal. Edições 70, 1988. KI-ZERBO, Joseph – História da África Negra. Volumes I e II. Portugal. Publicações

Europa-América, 1972. OLIVER, Roland – A Experiência Africana: da Pré-História aos Dias Atuais. Rio de

Janeiro, RJ. Jorge Zahar Editores, 1994. SILVA, Alberto da Costa e – A Enxada e a Lança: a África antes dos Portugueses.

Rio de Janeiro, RJ. Nova Fronteira, 1996. SOUZA, Marina de Mello e – África e Brasil Africano. São Paulo, SP. Ática Editora,

2006. Obras Específicas FANON, Frantz – Os condenados da Terra. Juiz de Fora, MG. Editora UFJF, 2005. FLORENTINO, Manolo - Em Costas Negras. Uma História do Tráfico de Escravos

entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo, SP. Cia das Letras, 1997. GLASCOW, Roy – Nzinga. São Paulo, SP. Editora Perspectiva, 1982.

DIFERENTES PERSPECTIVAS PARA UMA HISTÓRIA DA ÁFRICA

PERSPECTIVA EUROCÊNTRICA

5. ÁFRICA: UM CONTINENTE ISOLADO

6. ÁFRICA: UM CONTINENTE PRIMITIVO E DESPROVIDO DE CIVILIZAÇÕES.

7. ÁFRICA: UM SUBPRODUTO DO MUNDO ISLÂMICO.

8. ÁFRICA: UM CONTINENTE DE ESCRAVOS.

PERSPECTIVA NÃO -EUROCÊNTRICA

5. ÁFRICA: UM CONTINENTE CONECTADO COM O MUNDO.

6. ÁFRICA: BERÇO DE CIVILIZAÇÕES.

7. ÁFRICA: UM CONTINENTE ABERTO CAPAZ DE GRANDES SÍNTESE E ADAPTAÇÕES CULTURAIS.

8. ÁFRICA: UM CONTINENTE DE HISTÓRIA MILENAR, ONDEA ESCRAVIDÃO MERCANTIL, A COLONIZAÇÃO E A DESCOLONIZAÇÃO SÃO OS CAPÍTULOS MAIS RECENTES.

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KI-ZERBO, Joseph - História Geral da África. Volume I – Metodologia e Pré-História da África. São Paulo, SP. Ática Editora/UNESCO, 1982.

KLEIN, Herbert S. – O Tráfico de Escravos no Atlântico. Ribeirão Preto, SP – FUNPEC Editores, 2004.

LEITE, Fábio Rubens da Rocha – A Questão Ancestral: África Negra. São Paulo, SP. Casa das, Áfricas, 2008.

LOVEJOY, Paul E. – A Escravidão na África: uma História de suas Transformações. Rio de Janeiro, RJ. Civilização Brasileira, 2002.

MEILLASSOUX, Claude – Antropologia da Escravidão: o Ventre do Ferro e do Dinheiro. Rio de Janeiro, RJ. Jorge Zahar Editores, 1995.

MOKHTAR, G. - História Geral da África. Volume II – A África Antiga. São Paulo, SP. Ática Editora/UNESCO, 1983.

MUNANGA, Kabengele – Os Basanga de Shaba. Um Grupo Étnico do Zaire: Ensaio de Antropologia Social. São Paulo, SP. FFLCH/USP, 1986.

NIANE, Djibril Tamsir – História Geral da África. Volume IV – A África do Século XII ao XVI. São Paulo, SP. Ática Editora/UNESCO, 1988.

SERRANO, Carlos – Os Senhores da Terra e os Homens do Mar: Antropologia Social de um Reino Africano. São Paulo, SP. FFLCH/USP, 1983.

THORNTON, John Kelly – A África e os Africanos na Formação do Mundo Atlântico (1400 –1800). Rio de Janeiro, RJ. Elsevier, 2004.

Coletânea de Fontes Primárias COQUERY-VIDROVITCH, Catherine (org) – A Descoberta de África. Lisboa,

Portugal. Edições 70, 2004. Coletânea de Fontes Orais Transcritas FROBENIUS, Leo – A Gênese Africana: Contos, Mitos e Lendas da África. São

Paulo, SP. Landy Editora, 2005. NIANE, Djibril Tamsir – Sundjata ou A Epopéia Mandinga. São Paulo, SP. Ática

Editora, 1982. PINGUILLY, Yves – Contos e Lendas da África. São Paulo, SP. Cia das Letras,

2005. Musicografia DIABATE, Toumani – Jarabi. Brasil. Videolar, 2001. KEITA, Salif – Ko – yan. U.S.A. Mango, 1989. KOUYATÉ, Bassi – Mali: Chants de Griot Bambara. Paris, França. Buda Musique,

sem data.

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Irmandades Negras: estratégias de resistência e solidariedade Antonia Aparecida Quintão dos Santos Cezerilo(1)

(1) A autora é historiadora, doutora pela Universidade de São Paulo. Professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisadora do NEINB-USP.

Introdução “Desde o descobrimento das Minas até o tempo do indiscreto e inconsiderado

estabelecimento das Irmandades de Pretos e Pardos, eram este indivíduos humildes e moderados; Os pretos não ousavam levantar os olhos ou responder com tom mais alto a seus senhores nem ainda a qualquer branco; Os pardos tinham por grande honra quando algum branco se servia deles e louvava o seu préstimo.

Todos reconheciam a humildade e o abatimento da sua condição e o respeito que deviam aos brancos. Nos exercícios da Religião eles ouviam a Santa Doutrina com muita devoção, edificavam-se em ouvir os sermões e assistir os ofícios Divinos, tinham a maior veneração aos párocos beijando-lhes as mãos. Esta educação os continha. Ela devia continuar como a mais justa para a perfeição católica, e a mais precisa e útil para o equilíbrio e conservação da ordem civil.

Porém, depois que se estabeleceram as ditas Irmandades animaram-se do espírito de intriga, revestiramse de arrogância, e mudaram a humildade e abatimento que lhes é próprio em soberba e desaforo. Insultam os Brancos, desprezam os Párocos; arrogam-se isenções e privilégios, tem da sua parte as justiças, porque todos os escrivães e oficiais das Auditorias são senhores de uns e apaniguados de outros… As Irmandades dos pretos e pardos são as mais arrogantes, soberbas e descomedidas, já porque muitos dos pardos são abundantes e dotados de préstimos com que adquirem a benevolência e proteção de pessoas poderosas, já porque muitos dos pretos tem a proteção e assistência de seus senhores que fazem timbre e ponto de honra de

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sustentar e defender as pretensões das irmandades em que os seus escravos são irmãos, de sorte que estes indivíduos destituídos por sua condição de figurarem ou terem autoridade alguma, se consideram em uma grande figura quando se alinham...”[2]

O estudo do universo religioso dos africanos da diáspora, daqueles que foram arrancados a força da sua terra e trazidos para a América Portuguesa, nos revela a maneira como se inseriram na sociedade brasileira e o produto, a síntese desse encontro, que não é homogêneo, nem uniforme, mas marcado por inúmeras tensões e contradições.

Quando a religião é transportada para a América, ela é reconstituída de uma maneira diferente, fragmentária, de acordo com a realidade encontrada. Não há mais família, nem relação de parentesco. Não há mais liberdade.

No catolicismo colonial brasileiro podemos distinguir dois aspectos: o catolicismo na prática do culto oficial da Igreja, principalmente os ritos sacramentais, e o catolicismo efetivamente vivido pelo povo. De um lado, os ritos sacramentais foram impostos, pois todos os africanos deveriam ser batizados nas costas da África ou ao chegarem ao Brasil, tendo ainda a obrigatoriedade de assistir as missas dominicais (frequentemente essas exigências eram desrespeitadas pelos senhores).

De outro lado, a religião católica praticada pelo povo, sem nenhuma obrigatoriedade expressa, mas presente nas casas dos senhores de engenho, em seus oratórios, nos nichos das ruas, nas procissões, nas imagens dos santos.

I - As Irmandades Religiosas: estrutura de funcionamento. O catolicismo tradicional foi implantado com a colonização portuguesa e apresentava

como aspectos principais o seu caráter leigo, social e familiar. Leigo porque a direção e organização das associações religiosas mais importantes, como as irmandades, estavam nas mãos dos leigos. Social e familiar porque havia uma estreita interpenetração da religião com vida social e familiar.[3]

A religião era o núcleo de convivência da sociedade. Festa e manifestações religiosas constituíam uma forma de reunião social. As procissões e festas religiosas quebravam a monotonia e a rotina da vida diária, sendo muitas vezes uma das poucas oportunidades para o povo se distrair e divertir. [4]

As irmandades eram instituições regidas por um estatuto, o compromisso, que deveria ser confirmado pelas autoridades eclesiásticas e pelos monarcas. Nele estavam contidos os objetivos da irmandade, o seu funcionamento, as obrigações de seus membros, assim como os direitos adquiridos ao se tornarem membros dessas associações.

A principal característica das irmandades neste período era a sua autonomia.

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Através da Mesa Administrativa procuravam gerir todos os seus negócios e decidiam sobre todas as questões internas e externas.

A mais famosa dentre as inúmeras irmandades de pretos é a de Nossa Senhora do Rosário. Desde os século XV e XVI era sob essa inovação que em Portugal se congregavam os homens negros. Segundo Augusto de Lima Júnior, as imagens de santos negros foram introduzidas em Portugal por volta do século XI. [5]

No Brasil, os negros tinham como patronos Santa Efigênia, São Benedito, Santo Antonio de Catagerona, São Gonçalo e Santo Onofre, todos considerados santos negros e que, por isso mesmo, gozavam de grande popularidade. São Benedito é o mais popular dentre os santos negros e o seu culto, desenvolvido na Europa, alcançou imensa aceitação no Brasil, inclusive entre população branca. [6]. No entanto, a devoção à Nossa Senhora do Rosário supera todas as demais. Seu culto foi divulgado pelos dominicanos, que também popularizaram a recitação do terço.

A irmandade dos negros dessa devoção surgiu em Portugal de uma transformação gradativa das irmandades de brancos. O aparecimento dessas associações foi duramente criticado pelos irmãos do Rosário dos brancos que acusaram os dominicanos por terem permitido que os negros tivessem uma irmandade inteiramente de sua gente.

Essas associações, além das atividades religiosas que se manifestavam na organização de procissões, festas, coroação de reis e rainhas, também exerciam atribuições de caráter social como: ajuda aos necessitados, assistência aos doentes, visita aos prisioneiros, concessão de dotes, proteção contra os maltratos de seus senhores e ajuda para a compra da carta de alforria:

No entanto, uma das atribuições mais lembradas nos capítulos dos estatutos ou compromissos das irmandades refere-se a garantia de um enterro para os escravos, frequentemente abandonados por seus senhores nas portas das igrejas ou nas praias para que fossem levados pela maré da tarde:

“Em falecendo algum nosso irmão ou irmã ou algum dos seus filhos menores e vindo sepultar-se ou nesta nossa igreja ou alguma desta povoação e indo na nossa tumba se tocará o sino e todos os irmãos que morarem na povoação e seus arredores, sendo avisados pelo Procurador se ajuntarão na nossa igreja, para que saiam em ordem acompanhando a cruz e guião com suas opas brancas e tochas ou velas nas mãos e pela rua irão todos com muita compostura e modéstia até a parte onde estiver o corpo do irmão ou irmã defunta e daí irão com a mesma ordem até a igreja donde se fôr sepultar.”(Constituição 8ª -Compromisso da Irmandade de N.Sra. do Rosários dos Homens pretos da Freguesia de Sto. Antonio do Cabo, Bispado de Pernambuco).

Os brancos eram aceitos nas irmandades, porém, estas tomavam várias medidas

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para estabelecer o seu campo de atuação. “Nesta irmandade se admitirão homens e mulheres brancos porém, não terão voto

na irmandade, não se intrometerão nas suas determinações, não poderão ser eleitos para servirem na Mesa, e ainda que queiram a sua custa fazer alguma de nossas festas não rejeitaremos, porém a assistência ou presidência dela será de nossos oficiais pretos.” (Constituição l5a.- Compromisso da Irmandade de N.Sra. do Rosário dos homens pretos da Freguesia de Sto. Antonio do Cabo, Bispado de Pernambuco.)

A função de escrivão e tesoureiro eram, em algumas irmandades, exercidas pelos brancos. A pobreza e o analfabetismo de boa parte da população negra fundamentam essa exigência. No entanto, no final do século XVIII, havia pretos e mulatos capazes para exercerem estas tarefas:

“ É o ofício de tesoureiro de muita consideração na Irmandade, e assim queremos que sirva sempre esta ocupação um homem branco, o qual a Mesa elegerá na eleição que se fizer e havendo algum que seja irmão desta Santa Irmandade, sendo pessoa capaz, esta preferirá em primeiro lugar.” (Capítulo 9º - Compromisso da Irm. de Santo Elesbão e Santa Efigênia da cidade do Rio de Janeiro, l767)

É importante destacar a presença das mulheres, que participavam da mesa administrativa, exercendo inclusive a função de escrivã.

“ Dos oficiais que haverão nesta irmandade: um juiz, um escrivão, dois procuradores, doze mordomos (seis criolos e seis angolas), uma juíza também de Mesa, uma escrivã, e doze irmãs ou mordomas, e destas também serão seis criolas e seis angolas. O juiz e escrivão sempre será um deles forro e outro cativo, o mesmo se guardará com a juíza e escrivã.(Constituição 6a.- Compromisso da Irmandade de N.Sra. do Rosário dos Pretos de Sto. Antonio do Cabo, Pernambuco, l767 )

As irmandades formadas por africanos apresentavam algumas especificidades: “Todo o irmão ou irmã da nação de Angola, que por seus merecimentos a Irmandade

eleger para Rei, ou Rainha de Nossa Senhora, se elegerão em pessoas isentas de cativeiro, só sim servirão os sujeitos, não havendo libertos, ou forem esses insuficientes de ocuparem o dito cargo, porque destes a incapacidade faz perder os méritos do dito cargo. Serão obrigados tanto o Rei, como a Rainha a darem de estipêndio cada um ano quatro mil réis, e serão os ditos obrigados a convocar as suas nações para tirarem esmolas para as obras de Nossa Senhora todas as vezes que pela Mesa determinar-se-lhe.”(Cap.IX - Compromisso da Irmandade de Nossa Sra. do Rosário, Bispado de Pernambuco - l785).

Viajantes estrangeiros que visitavam o Brasil nesse período ficavam admirados com a pompa e cerimônia das festas organizadas pelas irmandades, que possibilitavam aos escravos momentos de lazer, de diversão, e de convívio social.

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“Porquanto vimos que a experiência tem mostrado que um estado de folia nas irmandades pretas serve de muita felicidade assim para os ânimos dos irmãos, como para acudirem de novo muitos de fora, queremos que haja um estado de Imperador, Imperatriz, Príncipe e Princesa, somente com a diferença que o Imperador e mais pertencentes ao seu cargo hão de ser por triênio” (Capº 29- Compromisso da Irm. de Santa Efigênia e Santo Elesbão, Bispado do Rio de Janeiro,l767).

No compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios do Rio de Janeiro, composta por africanos da Costa da Mina, observamos os irmãos assumindo a promessa de não executarem danças com gestos obscenos ou indecentes nas festividades de N.Sra.do Rosário, o que significa que a Pastoral contra festas ilícitas promulgadas em l747 pelo bispo do Rio de Janeiro, Frei Antonio de Desterro, havia sido insuficiente para coibir tais “abusos”.

“...uma pastoral por se fazerem alguns ajuntamentos de pessoas de um e outro sexo, com pretexto de se festejar a Maria Santíssima ou outra alguma imagem, ornando para isso altares com músicas e instrumentos e outras pompas, e que depois destas ações se empregavam as ditas pessoas de um e outro sexo em bailes batuques, saraus, divertimentos totalmente alheios ao louvor de Deus e sua Mãe Santíssima, concorrendo muita gente, sendo isto ocasião de escândalo parecendo estes obséquios com os que os gentios faziam a seus falsos deuses, misturados de ações indecentes e escandalosas. Declaramos semelhante exercício por perigoso, contrário aos bons costumes e aplauso de N.Sra. ou de qualquer outro santo e como tal ilícito. Pelo que mandamos com pena de excomunhão que se proiba semelhantes ajuntamentos, festejos e batuques, e na mesma pena incorrerão todas as pessoas que assistirem a eles ou concorrerem com música, casa ou outra alguma cooperação.”[7]

Em Recife, por ocasião das festividades da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, dançava-se o maracatu, que demonstra o encontro entre índios e negros na região, e que também causava suspeitas nas autoridades eclesiásticas. Na Mesa administrativa desta irmandade predominavam os negros e negras forras, que desenvolviam atividades econômicas e investiam boa parte de seus rendimentos nas cerimônias religiosas, sendo frequentemente eleitos para rei e rainha do Congo. É importante destacar que os compromissos não revelavam todas as atividades das irmandades envolvidas em muitos segredos e silêncios:

“...e se quiser o Imperador fazer alguma Mesa ou convocação de parentes, assim irmãos como não irmãos, para alguma determinação do seu estado, lhe concederá o juiz com a sua Mesa o fazê-la no nosso consistório sem impedimento algum, para não convocar tanta gente em sua casa que faz suspeita entre a vizinhança.”(Acrescentamento do capítulo 3º - Irmandade de Santo Elesbão e Santa

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Efigênia, Bispado do Rio de Janeiro, l767). Algumas irmandades eram bastante procuradas por negros e pardos que queriam

ingressar como irmãos, e as mais requisitadas e prestigiadas costumavam ser também as mais exigentes e seletivas quanto a quem admitiam como membro. Crimes e vícios eram comumente mencionados como motivo para remoção do cargo ou expulsão da confraria. O envolvimento em roubos ou fomento de discórdia também poderiam levá-los a exclusão, a menos que se arrependessem.

Geralmente cabia ao juiz fazer a punição aos faltosos, que costumavam ter três chances para se arrependerem. A penalidade para essas ofensas era comumente algumas preces ou trabalhos de caridade.

Eram também excluídos aqueles irmãos que, tendo condições, não pagavam as taxas exigidas pela irmandade, não compareciam aos enterros, não participavam das atividades religiosas, desobedeciam as normas do compromisso, pertubavam as reuniões da Mesa, faziam exigências injustas, tentavam interferer nos resultados das eleicões, traziam prejuízos a irmandade e revelavam os segredos discutidos nas reuniões da Mesa.

Outro aspecto a ser destacado é que uma mesma irmandade podia hospedar outras duas ou três, que colocavam seus santos nos altares laterais. Isso se observou principalmente na Irmandade do Rosário, por ser a mais rica, a mais poderosa e a mais numerosa na sociedade colonial. Essa organizacão interna se revelava sobretudo nos capítulos ou artigos que descreviam as procissões ou os enterros.

Assim temos que nas procissões ou enterros realizados pela Irmandade de N.Sra. do Rosário da vila de Goiânia, bispado de Pernambuco, saíam inicialmente a Irmandade do Senhor Jesus dos Martírios, por ser a mais recente, atrás dela a Irmandade de Santo Antonio de Catagerona, em terceiro lugar a Irmandade de São Benedito, e finalmente a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário. Prevalecia, portanto, o critério da antiguidade.

No que se refere a organização econômica temos que as irmandades possuíam várias fontes de renda: taxas de admissão, contribuições dos oficiais das festas, as esmolas que eram pedidas por irmãos devidamente autorizados, os anuais, as doações dos benfeitores, os aluguéis de propriedades e de terras.

A construção de prédios bem equipados e ornamentados, revela a importância das igrejas para os negros, enquanto símbolo de prestígio e espaço de vivência religiosa e social.

As festas religiosas, os pomposos funerais, o socorro aos irmãos mais necessitados também eram indicativos da habilidade das irmandades para gerenciar os seus bens. Para isso cercavam-se de vários cuidados e estabeleciam várias normas para regular a

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atividade do tesoureiro e do procurador: “...assentamos que os ditos Procuradores ou outro qualquer nosso Irmão, ainda que

seja o Juiz da Mesa, não tenha em sua mão dinheiro algum da Irmandade, porque todo entregará em Mesa, dando dele conta, para se lançar no cofre de que se fará assento no livro da receita, nem do dinheiro algum poderão dispor uma quantia maior de dez tostões, sem ser com o consentimento da Mesa, do nosso escrivão e do procurador. E também enquanto a nossa igreja não estiver de toda acabada e paramentada, senão emprestará, nem dará a juro dinheiro algum da Irmandade. E a Mesa que assim o não observer pagará de suas bolsas a dita quantia que tiver emprestado ou dado a juros, e além disso satisfarão mais a Irmandade de condenação, trinta e dois mil réis.(Constituição l3ª - Irmandade de Nossa Sra. do Rosário, bispado de Pernambuco, l767).

De todos os gastos das irmandades, o que mais causava polêmicas e conflitos era o pagamento aos párocos, devido aos excessos que então se verificava, sobretudo referente as conhecenças. A taxação das conhecenças era um direito próprio dos párocos, visando à sustentação de sua dignidade sacerdotal e se traduzia em tributo pecuniário cobrado aos paroquianos por ocasião da desobriga quaresmal. Variavam de acordo com as dioceses e incidiam sobre as pessoas que cumpriam o preceito da confissão ou da comunhão anual da páscoa. Eram frequentes também as acusações dos párocos às irmandades. Primeiro, porque empregavam seus recursos nas suas próprias capelas e igrejas, recusando-se a auxiliar com as despesas dos ofícios religiosos das matrizes. E ainda, porque celebravam suas festas e ofícios sem a autoridade e a assistência dos párocos, impedindo-os de receber os emolumentos e desfrutar das regalias da sua posição hierárquica. É importante destacar que nem todas as fontes de rendas e despesas eram mencionadas pelas irmandades. O auxílio dado aos irmãos mais necessitados, a ajuda aos doentes, o alimento que se levava ao presos raramente são mencionados nos capítulos dos compromissos.

O valor da taxa de admissão e outras contribuições pagas pelos irmãos, variavam de acordo com a cor do admitido. Os irmãos brancos eram obrigados a contribuir com uma quantia mais elevada que os pardos e negros. Essa mesma distinção não se verificava em relação ao sexo dos irmãos. Homems e mulheres pagavam a mesma importância, revelando uma certa igualdade e prestígio das mulheres nessas associações. A presença feminina marcante é um dado importante para a caracterização das irmandades negras e pardas, indicando um contraste com as associações de brancos, cuja predominância parece ter sido sempre masculina.

O ingresso nas irmandades representava reconhecimento social, possibilidade de contatos, e uma tentativa de contornar os preconceitos sociais e raciais que caracteriza

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a sociedade brasileira. O número de missas rezadas pelas almas dos irmãos mortos variavam de 02 a 50, e era indício da situação financeira das irmandades; as mais ricas estabeleciam um maior número de sufrágios. A Irmandade das Almas da Vila de Nossa Sra. dos Remédios de Paraty, bispado do Rio de Janeiro, fêz em l78l uma representação ao Rei, pedindo autorização para dobrar o valor cobrado para a entrada e para os anuais, a fim de cobrirem as despesas que se faziam com as missas celebradas pelos irmãos falecidos, que de dez tinham dobrado para vinte. Neste mesmo documento solicitam a aprovação real, para a decisão que haviam tomado, de não receberem irmãos que excedessem a quarenta anos de idade, sem que dessem uma esmola a arbítrio da Mesa.

Além do custo das missas, havia a taxa a ser paga pelo aluguel do esquife, caso a irmandade não o tivesse, o pagamento para a abertura das covas e para o capelão da irmandade. Ficava também estabelecido nos compromissos, que mesmo aquele que não pertencesse a irmandade poderia ser enterrado por ela, desde que pagasse uma taxa mais elevada, determinada nos compromissos, e se dispusesse a ser conduzido por negros; “Em querendo algum irmão por seu falecimento que o seu corpo seja conduzido na tumba da nossa Irmandade, não haverá dúvida alguma, senão em não ser conduzido por irmãos de superiores cor, e sim será pelos nossos irmãos conduzidos.” (Capº 39 - Irm. de N.Sra. do Rosário, Bispado de Pernambuco, l783)

Em l740 um grupo de africanos, originários de Moçambique, da Costa da Mina, da Ilha de São Tomé e de Cabo Verde, homens e mulheres, alguns libertos, outros escravos, solicitaram ao bispo D. Antonio de Guadalupe licença para instituirem a sua irmandade, sob a invocação de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Antes de lhes autorizar, consultou o vigário da Candelária, que manifestou a sua preocupação com a multiplicidade dessas associações, já que os minas também tinham erigido a sua irmandade do Menino Jesus, na capela de São Domingos, congregando mais de setenta irmãos e irmãs.

II - O papel das mulheres Desde os últimos anos do século XVIII, observa-se o costume de os membros das

irmandades participarem simultaneamente de várias associações. As mulheres, principalmente, ingressavam em diversas irmandades.

Se nas associações mineiras, desde os últimos anos dos setecentos, o crescente aumento de mulheresindicava uma maior estabilidade social, a presença das mulheres nas irmandades paulistas do final do séculoXIX demonstra sua participação ativa e marcante na vida política e social. O primeiro compromisso da Irmandade do Rosário prevê a entrada de mulheres, mas ao mesmo tempo faz algumas restrições:

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“O Juiz e o escrivão desta Irmandade terá cuidado de ver as pessoas que admite por irmão, principalmente as mulheres, se são honestas e capazes, e os homens de procedimento e trato bom”(Capítulo 17º).

O artigo 13º do Compromisso estabelecia no seu parágrafo único, que as irmãs de mesa, em razão de seu sexo, eram impedidas de prestar outros serviços à irmandade, por isso, ficavam incumbidas de pagar uma jóia de dez mil réis e de vestir um anjo para acompanhar a procissão que, no dia da festa da padroeira, percorria as ruas da cidade.

Ajudar a organizar as festas e arrecadar esmolas eram as atribuições oficiais das mulheres nas irmandades, contudo, temos exemplos como o de Rufina Maria do Ó, que participava ao mesmo tempo, da Irmandade do Rosário, da Irmandade de São Benedito e, ainda, da Irmandade de Santa Efigênia e Santo Elesbão, associações nas quais os caifazes [8] tiveram uma efetiva participação.

Rufina Maria do Ó: mulher negra. Rufina alistou-se como irmã simples na Irmandade de São Benedito, no dia 19 de

agosto de 1872. Pagou a jóia de 640 réis e, neste mesmo ano, foi eleita rainha para as festividades de Nossa Senhora do Rosário, conforme está registrado no livro de assentamento de irmãs libertas. Em 1884 passou deste para o livro de assentamento de irmãs, pagando o seu anual até 1891.

Em 1876 Rufina foi eleita irmã de mesa na Irmandade de Santa Efigênia e Santo Elesbão, conforme consta no Livro de Atas desta irmandade. Novamente foi eleita irmã de mesa para o ano de 1888, quando o conflito entre esta Irmandade e o vigário José de Camargo Barros havia se intensificado tanto que o próprio Antonio Bento chegou a participar de algumas reuniões à convite dos irmãos de Santa Efigênia.

Desde 1879 havia ingressado também na Irmandade de N. Sra. do Rosário, sendo eleita irmã de mesa para o ano de 1884. Em 1892 foi eleita Juíza da irmandade, em sessão realizada no dia 18 de dezembro. A presença de Rufina Maria do Ó em diversas irmandades negras não é um caso isolado. Posteriormente citarei outros exemplos. O que, no entanto, chama a atenção é observar o grande trânsito de irmãos, de uma irmandade para outra e o papel desempenhado por alguns, que atuavam como contacto ou ponte de ligação entre essas associações.

Ainda podemos encontrar referência à Rufina na ata da sessão extraordinária, realizada no dia 14 de outubro de 1894 na Irmandade do Rosário. Nesta sessão, o irmão Hilário Moraes Torres, fala sobre a suspensão às irmãs mesárias e sobre a irmã Rufina, à qual faz uma censura, citando o parágrafo 13 do artigo 7º, Capítulo 2º. Segundo este parágrafo cabe à Mesa Administrativa exercer uma rigorosa vigilância sobre os empregados da irmandade e suspendê-los quando remissos no cumprimento

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de seus deveres. É muito difícil, à partir dessas informações tão reduzidas, saber com clareza as

razões dessas suspensões. No entanto, é muito provável que Rufina Maria do Ó, como tantas outras irmãs, que permanecem anônimas, fizeram pelas irmandades muito mais que arrecadar esmolas e vestir um anjo para acompanhar a procissão no dia da festa da padroeira. Podemos levantar a hipótese de que, além do sentimento religioso, outros objetivos motivaram essas negras escravas ou libertas a participarem tão ativamente dessas irmandades.

Quero ainda destacar que as irmãs escravas, quando se tornavam libertas, passavam do livro de cativas para o livro de libertas e, posteriormente, para o livro de assentamento de irmãs, conforme revela a documentação referente à irmandade de São Benedito.

a) Florisbela Thereza de Jesus vem do livro de escravos e alistou-se como irmã de Mesa perpétua no dia 17 de abril de 1867.

b) Luiza, que foi da casa do finado Major Francisco José de Azevedo e passou das fls. 288 do Livro de Cativas, no qual consta que está pago seus anuais até 1864.

c) Rita Maria do Espírito Santo, irmã desde muito tempo, tinha assento no Livro de Cativas e passa para este, por ser atualmente livre, aos 10 de junho de 1859, em que pagou o anual.

Outras irmãs, registradas inicialmente no Livro de Libertas (Livro nº 3), passavam deste para o Livro de Assentamento das Irmãs.

a) Florisbela Augusta de Oliveira Mendes passou do Livro nº 3, fl. 175, como irmã de mesa perpétua em 1884. Ingressou também como irmã de mesa perpétua no Livro de Cativas (nº 3) aos 12 de maio de 1861,tendo pago de entrada 2.000 réis.

b) Maria Gertrudes Cavalheiro, passa do Livro nº 3 fl. 179, como irmã simples em 1884. De acordo como o Livro nº 3, alistou-se como irmã simples a 23 de outubro de 1872 tendo pago a quantia de 640 réis.

c) Maria Cândida Cerqueira Leme passa do Livro nº 3 fl. 177, como irmã de mesa perpétua em 1884. De acordo com o Livro nº 3 entrou como irmã simples aos 19 de maio de 186l tendo pago a entrada de 640 réis, tendo passado a irmã de mesa perpétua em 1862 quando pagou a quantia de 2.000 réis.

Muitas irmãs, por questão de devoção ou para pagar promessa, preocupavam-se em alistar seus filhos nas irmandades. A iniciativa partia das mães, não constando no livro de registro o nome dos pais.

a) Amélia Emydia da Luz (2 anos de idade), filha de Francelina Maria da Luz, alistou-se no dia 30 de abril de l866, como irmã simples e pagou 640 réis.

b) Benedita Emydia da Luz, filha de Francelina Maria da Luz, alistou-se no dia 24 de

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abril de l867, como irmã simples e pagou 640 réis. Faleceu em 1870. c) Lidia do Carmo Guedes, menor de 2 anos, filha de Marciana, alistou-se a 28 de

maio de 1871, como irmã simples e pagou a jóia de 640 réis. Faleceu em 1872. d) Adelina Eugênia da Silva, menor, filha de Custódia Francisca da Silva, assentou

por promessa como irmã de mesa perpétua em junho de 1863, e deu de jóia a entrada de 2.000 réis.

Finalmente quero recuperar o nome de mais algumas irmãs que, como Rufina participaram ativamente em mais de uma irmandade de negros nas últimas décadas do século XIX: Silvana Maria do Rosário, Rita Maria do Bonfim, Maria do Carmo Baptista, Marciana do Carmo Guedes, Athanásia Umbelina Xavier, Florência Maria das Dores,Virgínia Benedita do Espírito Santo, Maria Rita dos Santos.

III - A Irmandade da Boa Morte A fundação da Irmandade da Boa Morte na cidade de Cachoeira, estado da Bahia,

em 1820, não poderia deixar de ser mencionada nesta pesquisa, pois também se constitui numa das mais admiráveis formas de resistência ao regime escravista.

Constituída por mulheres negras e mestiças, escravas e libertas, seus objetivos principais eram a compra da carta de alforria para a libertação de seus filhos, maridos, netos e agregados, ou ajudar a darlhes fuga encaminhando-os para o Quilombo do Malaquias, em Terra Vermelha, zona rural da cidade de Cachoeira e a preservação dos rituais das religiões de matrizes africanas expressamente proibidos durante a escravidão. A Irmandade da Boa Morte, cujos rituais de origem africana permanecem secretos até os dias de hoje, foi responsável pela fundação da primeira Casa de Candomblé Keto no Brasil.

Estas mulheres negras procuraram se organizar dentro dos limites impostos pela escravidão e, atráves da Irmandade da Boa Morte, criaram um feminismo negro em busca da liberdade e da preservação da sua cultura e da identidade. A compra de cartas de alforrias para várias mulheres era o resultado de muita luta e de um grande esforço coletivo para eliminar uma série de flagelos e sofrimentos que eram impostos a estas: a exploração do trabalho nas lavouras, os castigos, as mutilações, o açoite, os abusos e a violência sexual. [9]

A criação dessa Irmandade demonstra o poder de organização política, do associativismo e a grande solidariedade dos africanos e negros brasileiros, que viria a se manifestar em outras iniciativas nos séculos seguintes. Com o fim da escravidão, as mulheres negras continuam a exercer um papel fundamental na estruturação de suas comunidades, na sobrevivência de sua prole e na reconstrução de sua própria autoestima enquanto pessoas detentoras de direitos.

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Considerações finais: No final do século XIX generaliza-se o costume do próprio escravo ou escrava

encarregar-se dos pagamentos da taxa da inscrição e dos anuais. Sobre isso manisfesta-se o Compromisso do Rosário ao se referir às funções do procurador:

“Também terá cuidado de saber de que modo vivem os irmãos, as irmãs, e o dinheiro de suas esmolas com que se assentaram, e do mais que der cada ano, de que modo o ganham, porque deve ser dado de bom grado, ou de seu trabalho como Deus manda”. (Capº 8º). As mulheres não inscritas nas irmandades podiam dispor de alguns direitos através de seus maridos:

“Todas as vezes que morrer a mulher de algum irmão ou filho os acompanhará a Irmandade como todo o aparato, e se lhe dará sepultura, e lhe mandarão dizer as sete missas pela alma da dita mulher” (Capº 15º).

A presença das mulheres nas irmandades refletia as modificações sociais e econômicas que dava-lhes a possibilidade de se tornarem livres através da compra da carta de alforria.

Outras ainda, ao inscreverem seus filhos nessas associações ou mesmo ao pagarem a taxa referente ao ingresso nas irmandades como irmãs de mesa perpétua, evidenciam que era possível não apenas garantir a sobrevivência como também fazer uma pequena economia.

Quanto a Irmandade do Rosário de São Paulo temos que em 1903, a Câmara Municipal declarou de “utilidade pública” o local onde se situava a Igreja do Rosário e esta foi transferida para o Largo do Paissandú, apesar dos protestos dos moradores que tentaram embargar as obras.

Para que não restasse nenhum vestígio da presença da irmandade, nem mesmo o nome foi preservado. Em janeiro de 1905, o Largo do Rosário dos Pretos, como era conhecido, passou a denominar-se Praça Antônio Prado.

Em 1940 o prefeito de São Paulo, Francisco Prestes Maia propôs a demolição da Igreja do Rosário, baseado em três objetivos principais: o primeiro de ordem estética, ou seja, harmonizar a praça com as novas construções do local. O segundo: melhorar a circulação de trânsito com o alargamento da Avenida e a terceira justificativa: transformar a praça num local digno de receber o monumento ao Duque de Caxias. As negociações foram abandonadas com o falecimento do presidente da comissão pró-monumento.

Outros canais de participação política e vivência religiosa foram criados e conquistados pelos negros. Mas a irmandade de N. Sra. do Rosário permanece ainda hoje como um símbolo de resistência e esperança, tal qual a Irmandade da Boa Morte,

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de São Benedito, de Santa Efigênia e tantas outras, que espalhadas pelo país, continuam figurando como exemplos de nossos mais valiosos e importantes patrimônios culturais.

NOTAS [1] Doutora pela Universidade de São Paulo. [2] Trecho da Representação dos vigários das Igrejas Coladas de Minas Gerais. AHU. 05/03/1794. [3] AZZI, Riolando, “Elementos para a história do catolicismo no Brasil” in Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 36, 141. [4] CARDOSO, Manoel da Silveira. “As Irmandades da antiga Bahia”. In Revista de História. Vol. LXVII, nº 95, p. 241. [5] SCARANO, Julita. Devoção e Escravidão: A irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Diamantino no século XVIII. (col. Brasiliana, 357) p. 08. [6] Cf. SCARANO, Julita. Op.Cit., p. 18. [7] Lisboa, AHU, Caixa 149, Rio de Janeiro, Doc. nº 69, 16/06/1781. [8] Podemos dizer que, se num primeiro momento o movimento abolicionista paulista limitava-se uma ação parlamentar, a segunda etapa, que se inicia na década de l880 é marcada por uma campanha que conta com a adesão de vários segmentos sociais e que passa a exercer uma ação direta para acabar com a escravidão. Estes ficaram conhecidos como caifazes, em associação com a passagem do evangelho de São João em que sentencia Caifaz: “Vós nada sabeis, não compreendeis que convém que um homem morra pelo povo, para que o povo todo não pereça? (Jo. 11,50). E entregou Jesus a Pilatos”. A ação revolucionária dos caifazes deve ser vista a partir de um duplo aspecto: A desorganização do trabalho escravo, que incluía todo o processo de fuga (do incitamento à chegada ao Quilombo do Jabaquara em Santos) e a inserção do negro fugido no mercado de trabalho. A dinâmica e a complementariedade entre esses dois aspectos é que dá um caráter inovador ao movimento dos caifazes. [9] BENEDITO, Deise. Delírios, delitos & penas. As leis do morro e as mulheres in Afirma – Revista Negra – on line, 05 de março de 2004.

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Práticas educomunicativas e Teorias interdisciplinares no combate ao racismo.*

Rosangela Malachias 1 A autora é Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Fellow Ryoichi Sasakawa (Japão), consultora acadêmica do Programa Raça, Desenvolvimento e Desigualdade Social – Brasil Estados Unidos (USP-UFBA-Howard University – Vanderbilt University) e co-fundadora do Grupo Mídia e Etnia, oriundo do CCA-ECA-USP. A lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003 determina a obrigatoriedade do ensino de história da África e cultura afro-brasileira nos níveis fundamental e médio em todo o país. Este fato tem ampliado a demanda por experiências que atendam essas temáticas. Com este artigo esperamos compartilhar, com um número maior de educadores, algumas conceituações que têm embasado nossas palestras e oficinas, que, em geral, apoiam-se na História, na Comunicação e no campo da Educação.

Palavras-chave: teoria-prática, interdisciplinaridade, educomunicação, transdisciplinaridade, transculturação, movimentos negros.

Toda a prática educativa deve ser respaldada pelo conhecimento oriundo da reflexão crítica. Ao propormos e realizarmos encontros2 pedagógicos que objetivam o estudo das relações raciais entre brancos e negros no Brasil e sua visibilidade na mídia, servimo-nos de uma bibliografia interdisciplinar. Acreditamos que, ao narrar fatos históricos decorrentes das ações dos movimentos negros3, poderemos contribuir para a propagação de um conhecimento ainda novo, capaz de reverter preconceitos e propiciar autoestima às crianças e jovens negros(as).

Desse modo, teoria e prática seguem juntas, dinamicamente. A oposição entre ambas é uma questão filosófica4 inesgotável porque polariza idéias, conceitos: espírito/matéria; sonho/realidade; razão/emoção.

E assumir o compromisso da intervenção nos causa insegurança, muito mais intense que a modéstia, pois nossas idéias e ações devem ser explicitadas e, portanto, sujeitas à crítica. Surge, então, o auto questionamento: “quem sou eu para filosofar?” Felizmente a resposta é dada por um filósofo, propositor de uma nova concepção da história, da filosofia da práxis5 e da cultura.

É preciso destruir o preconceito muito difundido de que a filosofia é qualquer coisa de

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muito difícil pelo fato de ser atividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de filósofos profissionais e sistemáticos. É preciso, portanto, demonstrar preliminarmente que todos os homens são “filósofos”, definindo os limites e as caracterísitcas desta “filosofia espontânea”, “própria de toda a gente”... (Gramsci: 1978, 21).

Mais tranqüila, decido incluir-me nessa categoria, toda a gente, que pensa, sonha, trabalha e se observa e se percebe como um ser capaz de refletir e propor mudanças. O ato de filosofar espontaneamente nos leva a tomar consciência do nosso existir e, portanto, do nosso papel na história. Por isso, a proposição de “novas concepções de mundo” acontece, em geral, no campo das idéias; por isso, talvez, essas “concepções” concretizadas na prática ou na produção epistemológica sejam uma forma específica de intervenção.

Gramsci (1978, 56) explica que há uma adesão entre teoria e prática, pois toda ação é o resultado de vontades diversas, com diverso grau de intensidade, de consciência, de homogeneidade, com todo o complexo de vontade coletiva, é claro que também a teoria correspondente e implícita será uma combinação de crenças e pontos de vista igualmente desarticulados e heterogêneos.

A consciência como um estado de compreensão da realidade é também questionável em sua manifestação, que pode ser fragmentada, influenciada e referendada por ideologias, aqui compreendidas tanto pelo conjunto de idéias emanadas pela classe dominante, quanto as idéias elaboradas no campo da ciência, da resistência política e cultural de grupos excluídos como práxis à transformação.

Entendemos a práxis como a união que se deve estabelecer entre o que se faz (prática) e o que se pensa acerca do que se faz (teoria) (Gadotti: 1991, 155). Ao tentarmos elaborar uma teoria sobre uma determinada prática, estamos identificando e aproximando elementos fundamentais a essa concretização, ao mesmo tempo em que a teoria fornece o sentido, a coerência, além de acelerar o processo histórico de transformação. (Gramsci, 56).

Este artigo tenta, portanto, relatar como a tomada de consciência do meu pertencimento a grupos histórica e internacionalmente excluídos – as mulheres/a população negra - associada à práxis da vida, do estudo, do trabalho, do viver social impulsionou-me a refletir sobre a adoção de uma metodologia, que instrumentalizasse as proposições práticas junto a educadores com elementos teóricos suficientes à possíveis intervenções anti-racistas em sala de aula e demais espaços sociais.

Oliveira (2001, 17-18) discorre sobre os caminhos de construção da pesquisa em ciências humanas. Ao tratar a importância do método, ele nos dá um alerta de que, além de um caminho a percorrer, o método é a segurança de que nossa proposição

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venha a ser interpretada com coerência. Para tanto, Oliveira recorre à imaginação sociológica de Wright Mills, que defende a adoção de uma sólida fundamentação teórica para que o pesquisador seja autor de sua “própria teoria, de seu próprio método”. Outra referência “sólida”, a qual Oliveira recorre é Marilena Chauí. A filósofa defende uma aproximação maior entre as diferentes áreas do conhecimento, sobretudo quando a pesquisa se dá nas ciências humanas, pois a busca de resultados completos e satisfatórios levam o(a) pesquisador(a) ao caminho da interdisciplinaridade.

Para a melhor compreensão deste artigo, vamos, resumidamente, definir os conceitos com os quais trabalhamos.

A interdisciplinaridade deve ser entendida como caminho viável à prática educativa, pois ela aproxima e, por vezes, ultrapassa diferentes disciplinas, que se utilizam de temas geradores, comuns, aprofundados em cada quadro de referência da pesquisa disciplinar. Desse modo, a obrigatoriedade do ensino de história da África e da cultura afrobrasileira nas escolas, possibilita o exercício interdisciplinar entre fatos históricos, geográfícos, lingüísticos, artísticos e até matemáticos, referentes ao tema gerador.

A transdisciplinaridade, por sua vez, tem sido um ideal a ser alcançado, visto que não apenas promove a aproximação de fronteiras disciplinares, como também as ultrapassa, explora, aprofunda, sem hierarquizações valorativas, respeitando e preservando identidades políticas, culturais, étnicas e de gênero. O conceito transdisciplinar compreende uma visão holística do mundo, que percebe a interdependência da natureza. Portanto, quando tratamos de relações raciais, consideramos pertinente a busca do conhecimento produzido por grupos étnicos que, historicamente, foram alijados6 do poder.

Como tal conhecimento é ainda novo para a maioria dos educadores, dentre os quais me incluo, aliamos à perspectiva transdisciplinar, outro conceito importante, o da transculturação7, que se refere ao choque étnico-cultural entre indígenas, europeus e africanos ocorrido nas Américas e Caribe durante o processo colonizatório. A transculturação provocou dor, assimilação, resistência e reelaborações ocorridas ao longo dos séculos, em especial, pelos africanos e afrodescendentes, cujo legado compõe e enriquece a cultura brasileira e internacional: arquitetura, escultura, música, culinária, capoeira, candomblé, irmandades, danças, poesia…

Didática: sugerindo passos8 Falar de racismo, discriminação e preconceito racial no Brasil não é algo tão simples,

considerando a crença no mito da democracia racial, ainda presente na mentalidade de muitos brasileiros. Falar de práticas racistas na escola também não é fácil, porque o

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tema obriga um olhar interiorizado de cada indivíduo agente educativo, que precisa assumir suas limitações e dificuldades no relacionamento com a diferença.

Por isso sugerimos, como caminho didático ao enfrentamento das relações raciais, o exercício dos quatro pilares da educação abaixo comentados.

Aprender a conhecer a diferença e a cultura de outros grupos, sem hierarquizações e preconceitos.

Aprender a conviver exercitando a tolerância e o respeito intercultural. Aprender a fazer promovendo aulas, exercícios, oficinas, seminários que

contemplem o conhecimento bibliográfico alusivo à cultura e história da população negra no Brasil e no mundo.

Aprender a ser reconhecendo em si as posturas preconceituosas em relação aos negros, mulheres, homossexuais, nordestinos, pobres... E, a partir dessa auto crítica agir, cotidianamente, em prol da superação. O aprender a ser é um exercício pessoal necessário que contagia a coletividade em nosso entorno.

Outro conceito que empregamos como técnica metodológica em nossas oficinas é a educomunicação, que pode ser definida como a análise crítica da mídia (conjunto dos meios de comunicação) seguida de propostas criativas de novas linguagens midiáticas expressas e/ou impresssas em veículos comunicacionais alternativos (jornais murais, internet, blogs, sites, fanzines, filmes etc) que podem ser elaborados na escola.

O poder midiático na propagação de mensagens é inegável. Por isso, se essas mensagens são mediadas com reflexão, podem reverter estereótipos e auxiliar na elaboração de novas mentalidades.

História, Comunicação e Educação

Quando a mídia (conjunto dos meios de comunicação) abre espaço para questões

alusivas à população negra (índices que mensuram a desigualdade socio-econômica, níveis de violência, mobilizações reivindicativas em tono das cotas nas universidades e mercado de trabalho), de uma forma geral, as pessoas não fazem idéia de que tamanha

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visibilidade é recente e decorre de um processo histórico de militância. A prática educomunicativa obriga os educadores a observarem a ação dos indivíduos

contextualizada histórica e dinamicamente9. Fatos ocorridos no passado podem, muitas vezes, explicar o presente. Dessa forma, ao se estudar as relações étnico-raciais no Brasil, a escravidão10 surge como evento imprescindível para a compreensão das desigualdades hoje explicitadas nas pesquisas que mensuram o IDH – Índice de Desenvolvimento Humano da população.

Uma cronologia dos estudos étnico-raciais produzidos por autores brancos como Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, Gilberto Freire, Roger Bastide, Florestan Fernandes, Otávio Ianni, Emília Viotti da Costa, Fernando Henrique Cardoso, Sidney Chaloub, Fúlvia Rosemberg dentre outros deve ser feita. Ela indicará as rupturas ocorridas no período final do século XIX, quando Nina Rodrigues e Vianna, influenciados pelos estudos racistas produzidos na Europa, contrapunham-se à miscigenação considerada, por eles, fator de “degenerescência”. Freire, ao contrário, num viés culturalista verá harmonia no encontro cultural entre indígenas, europeus e africanos. Sua obra internacionalmente famosa – Casa Grande e Senzala – será responsável pelo fortalecimento do mito da democracia racial brasileira. Após a Segunda Guerra, a Unesco promove uma pesquisa internacional sobre o racismo, objetivando rechaçar as idéias racistas que culminaram com o holocausto judeu

No Brasil, Bastide e Florestan Fernandes são escolhidos pelo francês Jean Claude Levis- Strauss, que era o coordenador geral desse trabalho, para pesquisar o Preconceito Racial em São Paulo. Este estudo, datado dos anos 50, coloca em dúvida o mito freireano e abre espaço para a chamada Escola Paulista (Ianni, Cardoso, Viotti da Costa) que, nas décadas de 60 e 70, reestuda o sistema escravista, demonstrando o quanto o Brasil construiu suas riquezas com o trabalho compulsório dos negros.

Assim como as organizações negras anteriores como a Imprensa Negra (1910- 1947), a FBN – Frente Negra Brasileira (1930) e o TEN - Teatro Experimental do Negro (1944), nasce, nos anos 70, o Movimento Negro Unificado, instituição que rapidamente se torna nacional, nasce com o intuito de combater o racismo11. Alguns de seus fundadores alcançam a universidade influenciando e sensibilizando os pesquisadores brancos a revisarem12 e/ou a promoverem estudos voltados às relações raciais.

Os poucos intelectuais negros que acessavam a universidade também produzem conhecimento, propiciando uma nova problemática metodológica – ser sujeito do próprio estudo. Lélia Gonzales é referência obrigatória e inclui-se nesse grupo. Filósofa, jornalista, mestre e doutora em antropologia, ela teoriza sobre a identidade negra aprofundando questões políticas e culturais dos negros no Brasil, Estados Unidos, África e Caribe. Gonzales também é pioneira na percepção e reflexão das

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especificidades referentes às mulheres negras, num momento em que as feministas internacionais iniciavam seus estudos sobre gênero e suas pautas reivindicativas.

A partir dos anos 80, as pesquisas quantitativas produzidas pelo IBGE sobre educação13, mercado de trabalho, nível de renda passam a revelar índices de cor, que favorecem a identificação das carências que afetam os afro-brasileiros (pretos e pardos) e respaldam a proposição de políticas públicas.

Cabe ressaltar que 1988, ano do Centenário da Abolição, é ilustrativo aos estudos da mídia impressa pois observa-se a preocupação e ao mesmo tempo o despreparo (Ferreira:1992) dos jornalistas para falar sobre a população negra. O período também evidencia um enfoque cultural majoritário, visto que prioriza shows e programações comemorativas14 ao centenário da abolição. Na década seqüente, ao contrário, observa-se um enfoque de caráter mais político-reivindicativo, sobretudo pelo debate15, ainda novo no Brasil, sobre Ações Afirmativas e cotas para negros na universidade e na mídia.

Considerações finais A lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003 que obriga as escolas a ensinarem a história da

África e da cultura afro-brasileira não é, como alguns pensam, um ato arbitrário e preconceituoso. A lei é fruto das ações anteriormente narradas e ao ser implementada possibilita também o estudo e a valorização dos povos indígenas, como os negros, oprimidos e expropriados no processo histórico colonizador e transcultural.

Os conceitos apresentados neste artigo são alternativas às pessoas que, preocupadas com o respaldo teórico de suas prática, poderão encontrar subsídios nas diferentes fronteiras disciplinares apresentadas pela inter e pela transdisciplinaridade. A mídia, poder inegável de profusão de mensagens, idéias e valores, deve ser criticamente mediada, pois é um caminho obrigatório, ao menos aos estudos comunicacionais, para a reversão e combate de estereótipos. A educomunicação é, portanto, uma perspectiva ao exercício cotidiano dos pilares da educação, ou seja, à disposição individual e coletiva ao aprendizado constante, tornando verossímel a construção de uma sociedade equânime e igualitária em direitos e deveres. Bibliografia ANDREWS, George Reid – Ação Afirmativa: Um modelo para o Brasil. In: Multiculturalismo e Racismo - uma comparação Brasil e Estados Unidos. Jessé Souza (Org.), Brasília, Paralelo 15, 1997. BOURDIEU, Pierre – Sociologia – org. Renato Ortiz, São Paulo, Ática, 1983.

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8 Trecho extraído do artigo Movimentos Negros: passado e presente. Resistências e conquistas, de nossa autoria, redigido nos meses de julho e agosto de 2004, no prelo. 9 Embora citemos eventos ocorridos no Brasil e na cidade de São Paulo, os leitores devem considerar uma necessária visão histórica internacionalizada, que inclui as teorias racistas do século XIX (Gobineau); o movimento literário dos jovens negros africanos e caribenhos, que estudavam na França denominado Negritude (final do séc.XIX, início do XX); o Pan-africanismo liderado por WEB Du Bois (Inglaterra), Marcus Garvey (EUA); a luta pelos direitos civis nos EUA, na década de 60, pautada pelo discurso pacifista de Martin Luther King Jr e pelo discurso dos Black Panters e Malcomn X, em prol da luta armada. 10 Em nossos encontros optamos por apresentar o que chamamos de “dimensão trágica do tráfico” ou “Holocausto negro” – uma tabela que demonstra o número de negros apresados e trazidos para o Brasil durante os séculos XVI a XIX. Segundo o historiador Alencastro (1988) (8.330.000 de africanos foram trazidos para o Brasil. Apenas 2.000.000 sobreviveram). Ver: Pinski – A escravidão no Brasil, São Paulo, Ed. Contexto, 1988. 11 Vale ressaltar que a Imprensa Negra paulista e a Frente Negra Brasileira, contemporâneas no início do século XX propagavam um discurso político em prol da integração do negro à sociedade brasileira. O Teatro Experimental do Negro (ver foto acima), fundado por Solano Trindade (foto à esq.) e Abdias Nascimento (centralizado como protagonista na foto da peça “O Filho Pródigo”, acima), denunciava o racismo e buscava a valorização do negro utilizando de uma linguagem inovadora – teatral. O Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial e Violência Policial nasce em 1978, após o assassinato pela polícia paulistana do jovem negro Robson da Luz. Sem antecedentes criminais, Robson somava a crescente lista de suspeitos, em geral negros. O MNU adota um discurso socialista, em prol de uma sociedade sem classes. Com o fim da ditadura militar, em 1985, milhares de organizações negras espalham-se pelo país. 12 Os historiadores Sidney Chaloub e Sílvia Lara, brancos, promovem estudos revisionistas da história. Ambos compunham um grupo da Unicamp preocupado em observar e centralizar as ações produzidas pelos sujeitos da história – negros(as) escravizados(as) que em atos cotidianos revelavam sua resistência. Além de atuarem na universidade, ambos apresentaram seus trabalhos a instituições e militantes do movimento negro, para que pudessem se apropriar desse conhecimento, em geral invisibilizado na escola. 13 Rosemberg (1988) coordena pesquisa da Fundação Carlos Chagas sobre O Negro e a Educação, aplicando dados do IBGE e Pesquisas Nacionais de Audiência Domiciliar (PNADs). 14 O paradoxo das comemorações oficiais em torno do Centenário da Abolição era a postura do Movimento Negro que, inspirado nas ações do MNU, transformou o dia 13 de maio em Dia de Denúncia contra o Racismo. Portanto, um dia de reflexão e não de comemoração da história brasileira. 15 Consideramos este debate unilateral, visto que articulistas favoráveis às ações afirmativas e às políticas de cotas são minoritários em comparação aos contrários. Esta opinião baseia-se num monitoramento pessoal do jornal Folha de S.Paulo, feito desde 2000. Embora a Folha tenha pautado matérias no Caderno Cotidiano explicitando dados de desigualdade entre brancos e negros, seus editoriais são explícitos na discordância da implementação de cotas raciais. No que se refere à implementação de ações afirmativas na mídia, tanto o Jornal da Tarde, quando o jornal o Estado de S. Paulo apresentaram matérias, em 2001, contrárias à obrigatoriedade de inclusão de 25% negros nos programas televisivos e mensagens publicitárias, conforme defendia o então deputado (hoje Senador) Paulo Paim do PT-RS. (Ver: Malachias, 2002).

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Imagens: Poeta, teatrólogo, artista plástico, Solano Trindade. In: http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://vidraguas.com.br/wordpress/wp-content/uploads/20080724solanotrindade.jpg&imgrefurl=http://vidraguas.com.br/wordpress/2009/02/08/&usg=__vEwV9vFwB-o-Z_aL7Q8j_TF10_o=&h=440&w=287&sz=32&hl=pt-BR&start=0&sig2=0tM2t1Xw5Isv3z1GShwAfg&zoom=1&tbnid=CLSH1UNqw6EOqM:&tbnh=150&tbnw=135&ei=JdyxTKy7IYX7lwellJ3dBQ&prev=/images%3Fq%3Dteatro%2Bexperimental%2Bdo%2Bnegro%26um%3D1%26hl%3Dpt-BR%26sa%3DX%26biw%3D1280%26bih%3D591%26tbs%3Disch:10%2C102&um=1&itbs=1&iact=hc&vpx=750&vpy=109&dur=3242&hovh=278&hovw=181&tx=85&ty=303&oei=3duxTLH0I8XflgePp7nlDw&esq=8&page=1&ndsp=19&ved=1t:429,r:9,s:0&biw=1280&bih=591 Foto do elenco do TEN – Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias do Nascimento, Ruth de Souza, Solano Trindade e outros. Imagem da peça “O Filho Pródigo”de Lúcio Cardoso, Teatro Ginástico, RJ, 1947. Fonte: http://3.bp.blogspot.com/_vHqx-gfcCww/R1lykWvmzXI/AAAAAAAAAG4/2Bna-1DertE/s400/teatro%2Bexperimental%2Bo%2Bnegro.bmp

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Racismo e Branquitude: Representações na Telenovela “Da Cor do Pecado”1

Luciene Cecília Barbosa *

A autora é mestre e doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. Co-fundadora do GME – Grupo Mídia Etnia.

Introdução Enquanto uma classe normalmente só pede informação à televisão, porque vai buscar em

outra parte o entretenimento e a cultura, no esporte, no livro e no concerto, outras classes pedem tudo isso só à televisão2.

Os estudos comprovam que a telenovela, muito mais que entretenimento, é um

espaço de informação que propicia reflexões sobre temas polêmicos da sociedade, como homossexualidade, racismo, drogas e violência, entre outros. A telenovela brasileira, por exemplo, tem características específicas, o que a diferencia do modelo tradicional no qual muitos autores limitam-se à fantasia e ao melodrama. Os dramaturgos brasileiros vão além e, por intermédio da telenovela, têm trazido à tona discussões sobre muitos conflitos sociais presentes no cotidiano, os quais fazem parte da realidade brasileira.

A importância da telenovela no cotidiano das pessoas é um fato consolidado. Justifica-se, portanto, a pertinência de tantos estudos relacionados a esse gênero ficcional, parte integrante da cultura e da história brasileira. Este texto pretende focalizar, ainda que, de maneira restrita, o universo das relações raciais presentes no cotidiano e representados na ficção, por meio da telenovela “Da Cor do Pecado”.

A discussão sobre as relações raciais tem conquistado espaço nos meios de comunicação, na televisão, na publicidade, enfim, na mídia, e, ainda que de maneira restrita, os negros vêm conquistando seu espaço. Nas telenovelas, por exemplo, embora timidamente, o negro tem marcado sua presença, e situações típicas de relações interraciais, como miscigenação, racismo, discriminação, preconceito,

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branqueamento e branquitude, têm sido representadas e, algumas vezes, discutidas.

Pretendo neste trabalho analisar situações de racismo e branquitude retratadas na telenovela “Da Cor do Pecado”, do autor João Emanuel Carneiro, exibida pela Rede Globo, de janeiro a agosto de 2004, às dezenove horas. Nesta reflexão utilizaremos a definição de racismo baseada na crença da hierarquia entre as supostas raças humanas. Biologicamente, hierarquia racial inexiste, no entanto, no imaginário coletivo, a idéia persiste.

O racismo seria teoricamente uma ideologia essencialista que postula a divisão da humanidade em grandes grupos chamados raças contrastadas que têm características físicas hereditárias comuns, sendo estas últimas suportes das características psicológicas, morais, intelectuais e estéticas e se situam numa escala de valores desiguais. Visto deste ponto de vista, o racismo é uma crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural.3

Na perspectiva deste trabalho, branquitude pode ser entendida a partir da representação do branco como modelo universal de humanidade. Frankenberg 4

define branquitude a partir do significado de ser branco, num universo racializado: “um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê aos outros e a si mesmo; uma posição de poder não nomeada, vivenciada em uma geografia social de raça como um lugar confortável e do qual se pode atribuir ao outro aquilo que não atribui a si mesmo”.

A branquitude, enquanto "lugar" de sujeitos sociais, proporciona uma situação de conforto, onde a individualidade e a hierarquia racial nunca são questionadas, ou verbalizadas.

Diante da interação ou relação com outros grupos: de negros, indígenas ou descendentes de asiáticos, os considerados brancos tendem a ver mais as condições do outro do que a sua própria condição de classe, gênero ou idade. Ser branco é ser racialmente neutro, transparente. A autora exemplifica:

Ao grupo de descendentes de asiáticos – japoneses, chineses, coreanos – os quais são chamados a responder pelo estereótipo da inteligência e do sucesso profissional. Se um falha, alguém sempre vai se lembrar de que “japoneses” são superinteligentes e bem sucedidos. Então, por que você falhou?”. Mas, se uma pessoa estiver estacionando o carro em lugar proibido, alguém pode sempre lembrar que “só negros fariam isso!”.

Entretanto, entre brancos, falhar nas expectativas que se formam em torno de alguém ou cometer uma infração de trânsito levará um palavrão pelas costas, que poderá, no máximo ofender a mãe preposta para estas ocasiões, mas jamais o conjunto dos brancos, o grupo

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racial ao qual pertence. A expectativa para os três sujeitos é determinada pela sua racialidade, mais apenas dois são racializados – o japonês e o negro. O branco preserva sua individualidade.5

Esteréotipos na Telenovela

É comum na telenovela o negro aparecer de forma estereotipada. “Isto é, colhem-seaspectos do real já recortados e confeccionados pela cultura”6. O processo de estereotipia apodera-se da vida mental dos indivíduos. São os estereótipos, arraigados na culturabrasileira, construídos ainda na época da escravidão, baseados em teorias racistas, que perpetuam até os dias atuais, que estão presentes no imaginário da sociedade, e podem ser identificados também na ficção.

A telenovela é, pois, a narrativa que veicula representações da sociedade brasileira, nela

são atualizadas crenças e valores que constituem o imaginário dessa sociedade. Ao persistir retratando o negro como subalterno, a telenovela traz, para o mundo da ficção, um aspecto da realidade da situação social da pessoa negra, mas também revela um imaginário, um universo simbólico que não modernizou as relações interétnicas na nossa sociedade 7.

As situações polêmicas envolvendo negros e brancos, algumas vezes, saem da

telenovela para continuar no mundo real. Temas como miscigenação, racismo, preconceito, branqueamento e branquitude, mesmo que, não intencionalmente, têm sido retratados por alguns autores. Pode-se destacar, neste caso, uma das mais polêmicas telenovelas a abordar, até hoje, a questão do racismo abertamente: “Pátria Minha”, de Gilberto Braga, que foi ao ar em 1994, pela Rede Globo. A atitude do personagem vivido por Tarcísio Meira (branco), em “Pátria Minha”, um homem autoritário e preconceituoso, rendeu na vida real problemas para a emissora e para o autor da obra teledramatúrgica, pois as cenas vividas por Raul Pelegrini (Tarcísio Meira) e seu jardineiro, o rapaz negro Kennedy (Alexandre Moreno), chocaram o País. O personagem de Tarcísio Meira afirma em seu discurso que existe uma hierarquia entre o cérebro do negro e do branco, ou seja, o negro seria inferior ao branco. Tal comportamento é característico do racista, pois a personagem apodera-se de diferenças biológicas e físicas para forjar uma suposta hierarquia racial.

Comportamentos como o do personagem Raul Pellegrini estão também presentes for a da ficção. Podemos encontrar uma série de trabalhos, ditos

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científicos, pautados em teorias racistas que hierarquizam a raça humana. Coincidentemente, na mesma época em que as cenas de “Pátria Minha” foram ao ar, em 1994, havia sido publicado o polêmico livro Bell Curve, nos Estados Unidos, pelos professores norte-americanos Charles Murray e Richard Hernstein. A obra provocou uma polêmica mundial, pois os autores postulam a inferioridade do negro em relação ao branco, alegando, em defesa dessa tese, a realização de um teste de QI (Quociente de Inteligência), cujos resultados, segundo eles, evidenciam que os afroamericanos são menos inteligentes que os descendentes de europeus.

Diante dos fatos pode-se constatar que há uma propagação da ausência de uma memória positiva em relação ao negro, perpetuando-se, cada vez mais, uma memória (coletiva) replete de dados incorretos. Tal afirmação reforça-se nas palavras de Le Goff 8 quando aborda a relação entre memória e poder.

A memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva.

As instituições como a família, escola e religião, enfim, a sociedade, encarregam-se de transmitir os valores que já estão formulados e perpetuados, de geração a geração. A propagação dos estereótipos negativos em relação ao negro está presente na História, arraigados na cultura brasileira e se disseminam de várias formas.

As crenças embasadas e defendidas pelas teorias racistas perpetuam as relações humanas, até hoje. É importante ressaltar que, cientificamente, a biologia desconhece a hierarquização das chamadas “raças humanas”, não obstante, sociologicamente, no imaginário coletivo da sociedade, a hierarquia racial permanece.

Da Cor do Pecado?

Meados de 2003. As revistas e os cadernos especializados em televisão dos grandes veículos de comunicação da mídia impressa começam a noticiar que, pela primeira vez, a Rede Globo teria uma protagonista negra em um dos seus folhetins. A “novidade” causou impacto na mídia.

Muito antes de a telenovela – assinada por João Emanuel Carneiro, com supervisão de Silvio de Abreu – estrear, a polêmica estava lançada. Não apenas pelo feito inovador de ter uma atriz negra, Taís Araújo, como protagonista de uma

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trama global, mas também pelo título da obra teledramatúrgica: “Da Cor do Pecado”.

Vamos iniciar a nossa reflexão pelo título “Da Cor do Pecado”, que nos dá margem a levantar algumas hipóteses, mesmo que, nesta reflexão, não seja possível explorar todas as possibilidades de leituras que o título da trama fornece. Para aqueles que possuem o mínimo de criticidade em relação à temática racial brasileira, uma das idéias difundidas culturalmente a que o título remete é o da relação da mulher negra como objeto da sensualidade, da lascívia.

A figura representaria um dos sete pecados capitais: a luxúria. Note-se que o título da trama não é um questionamento e sim uma afirmação, o que nos leva a refletir: Por que este título, no momento em que pela primeira vez na emissora, líder mundial em produção de telenovela, está estreando uma negra como personagem principal?

Podemos ainda nos direcionar para uma segunda possibilidade de leitura, que também relaciona o ser negro ao pecado, a transgressão. Na Bíblia Sagrada o pecado aparece como transgressão a Deus, que representa, segundo a tradição judaico-cristã, o bem. Quem peca está do lado antagônico de Deus. É importante ressaltar que uma das teorias que justifica o racismo é baseada numa passagem bíblica do livro de Gênesis. Segundo o nono capítulo de Gênesis: Cam, filho mais novo de Noé, desrespeitou seu pai ao vê-lo despido e fez comentários “maldosos” sobre a sua nudez com seus irmãos, por este motivo foi amaldiçoado. Munanga9

comenta a relação do racismo com este mito. A primeira origem do racismo deriva do mito bíblico de Noé, ancestrais das três raças:

Jafé(ancestral da raça branca), Sem (ancestral da raça amarela e Cam (ancestral da raça negra).

Segundo o nono capítulo de Gênesis, o patriarca Noé, depois de conduzir por muito tempo sua arca nas águas do dilúvio encontrou finalmente um oásis. Estendeu sua tenda para descansar, com seus três filhos. Depois de tomar algumas taças de vinho, ele se deita numa posição indecente. Cam, ao encontrar seu pai naquela postura, fez, junto aos seus irmãos Jafé e Sem, comentários desrespeitosos sobre seu pai. Foi assim que Noé, ao ser informado pelos dois filhos descontentes da risada não lisongeira de Cam, amaldiçoou este último dizendo: seus filhos serão os últimos a serem escravizados pelos filhos de seus irmãos. Os calvinistas se baseiam sobre esse mito para justificar e legitimar o racismo antinegro.

A telenovela “Da Cor do Pecado”, por exemplo, a partir do título, já suscitou debates. A protagonista da trama, Taís Araújo, é Preta de Souza, uma moça negra,

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nascida no Maranhão, estado do nordeste brasileiro, vendedora de ervas, portadora de dignidade e honestidade, qualidades estas admiradas e respeitadas no ser humano.

Bárbara Campos Sodré, a personagem vivida por Giovanna Antonelli, é a antagonista da trama. Dona da falta de escrúpulos é desonesta e mau caráter. Tantos “pecados” são redimidos, em parte, pela virtude de ser branca, rica e bela, de acordo com os padrões estabelecidos na nossa sociedade. Os privilégios a colocam acima de qualquer suspeita.

Vivemos numa sociedade multirracial e a “cor” denota privilégios. Os meios de comunicação de massa confirmam esta constatação. A televisão, por exemplo, pode ser vista, como o “espelho” que melhor reflete o imaginário da sociedade brasileira. O que se mostra e se cultua na mídia como belo são os padrões cada vez mais distantes do brasileiro e próximos do ideal europeu.

Embora o autor tenha dito em entrevistas, no início da telenovela, que não iria discutir a questão racial, não foi isso que observamos no decorrer da trama. A telenovela “Da Cor do Pecado” gerou várias discussões, fora da ficção, sobre o racismo. O tema foi pauta na mídia impressa e nos programas televisivos.

É importante salientar que não é possível falar em relações raciais tomando como ponto de partida apenas o comportamento do negro. É preciso entender e considerar também o sentimento do branco, pois, se existe o discriminado, é óbvio que existe o discriminador.

Apesar disso, há poucos registros de estudos dando a ambos, negros e brancos, a mesma importância no processo de superação da desigualdade racial.

Historicamente, foi introjetada no negro a idéia de inferioridade, e, em contrapartida, o branco “europeu” foi colocado como modelo universal da raça humana. Esta concepção, durante muito tempo, foi difundida e reforçada em estudos ditos científicos. (...) o homem europeu ganhou, em força e identidade, uma espécie de identidade substituta, clandestina, subterrânea, colocando-se como o “homem universal” em comparação como os povos não-europeus.

O olhar do europeu transformou os não-europeus em um diferente e, muitas vezes, ameaçador Outro. Este Outro, construído pelo europeu, tem muito mais a ver com o europeu do que consigo próprio10.

Pretendo analisar em que se pauta o sentimento de superioridade do branco presente na nossa cultura, e, que, por sua vez, se encontra bem representado na telenovela “Da Cor do Pecado”.

Ressalto que o autor não está alheio às influências históricas e culturais do meio

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em que vive. Isto explica, em parte, o fato de a trama representar tão bem, através de falas e diálogos de seus personagens, comportamentos regidos pelos sentimentos de racismo e branquitude. O autor colhe situações do mundo real e as representa através da ficção. Há uma relação entre a criação das personagens, seus discursos, seus modos de pensar e a realidade na qual está inserido. Em Couceiro de Lima11 e Barbosa12 essa idéia é enfatizada por autores como Aguinaldo Silva, Silvio de Abreu e Yves Dumont, entre outros. Pallottini13 comenta sobre esta relação entre a ficção e o ponto de vista do autor:

Ao organizar os elementos ficcionais, o autor está comunicando ao público seu ponto de

vista sobre determinados temas, além de simplesmente contar uma história. Mesmo no caso

que não transpareça uma tese evidente – e esses casos talvez sejam a maioria – o autor, de

qualquer forma, se coloca, diz qual é a sua visão a respeito do problema enfocado. Especialmente em relação à telenovela “Da Cor do Pecado”, pretendo dar um

enfoque maior às personagens Afonso Lambertini (Lima Duarte), o empresário bem sucedido e Bárbara Campos Sodré (Giovanna Antonelli), noiva de Paco Lambertini (Reinaldo Gianechinni), herdeiro do grupo Lambertini. Embora, provavelmente, o autor não tenha se debruçado nem se pautado em teorias antropológicas, sociológicas e históricas para construer o enredo teledramatúrgico, estes elementos estão presentes na sua trama, pois fazem parte do imaginário coletivo brasileiro.

Bárbara é uma moça branca, carioca, de uma classe média falida, que, a qualquer custo, quer tirar vantagem do dinheiro de seu noivo Paco, supostamente o único herdeiro do empresário Afonso Lambertini. Paco acaba desaparecendo num acidente de helicóptero logo no início da trama. Bárbara, grávida de outro homem, afirma que o filho que está esperando é neto de Afonso. O experiente empresário nem desconfia de que a moça está lhe aplicando um golpe.

Embora outras personagens tenham esboçado comportamento racista, como é o caso de Afonso Lambertini, o racismo de forma mais “agressiva” aparece nas ações da personagem Bárbara, a vilã da história. Este é um recorte nada novo nas telenovelas. O racismo exacerbado é sempre relacionado ao mau caráter, a figura que representa o mal na trama. É como se a prática racista tivesse relação direta somente com as pessoas de reputação duvidosa.

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Afonso Lambertini, por sua vez, representa o tipo de racismo “à brasileira”. Ele se esforça para ter uma aproximação com Preta, mãe de Raí de Souza (Sérgio Malheiros), garoto por quem nutre grande carinho e simpatia, pelo fato do menino ter salvo sua vida em uma situação de perigo, quando quase foi atingido por um tiro. Raí é seu neto biológico, embora ele não o reconheça como tal. Afonso é a personagem na qual, também, podemos encontrar a representação de racismo, pois, pelas diferenças biológicas e características físicas, ele faz o julgamento de valores éticos e morais dos negros que estão a sua volta.

A personagem de Taís Araújo, Preta, tem sido vítima de todas as armações de Bárbara e do seu comparsa Tony (Guilherme Weber), que trabalha no Grupo Lambertini. Os dois, porém, saem ilesos, pois contam com o privilégio de serem considerados inocentes até que se prove o contrário. Preta, ao contrário, é sempre suspeita em potencial. A personagem de Afonso (Lima Duarte) faz uma relação entre as características biológicas de Preta e um possível caráter duvidoso, o que é enfatizado, inclusive, em algumas de suas falas.

Assistimos, nesse caso, a uma manifestação do racismo. É válido destacar que este tipo de comportamento e olhar explícitos em “Da Cor do Pecado” caracterizam os princípios das teorias racistas que regem a sociedade fora do âmbito da ficção. Bárbara está acima das desconfianças de Afonso Lambertini, ocupa um lugar privilegiado. Ao contrário do que acontece com Preta, “cujas origens a condenam”. Bárbara é branca, o que a coloca numa suposta situação superior. Nem mesmo quando a vilã aparecia falida, pobre, no início da trama, esta condição representava para Afonso perigo ou motivo para desconfiar da índole da nora. O empresário não duvida de que o garoto Otávio (Felipe Latge), seja seu neto. Por outro lado, em relação a Raí, seu verdadeiro neto, ele alimenta dúvidas. Preta, ao que a trama revela, vai ser sempre suspeita até que consiga provar sua inocência. Não se trata apenas do papel da mocinha sofrida da história. A postura e o discurso das personagens em questão apontam para uma realidade presente também fora da ficção: o racismo.

Saindo do âmbito da ficção e trazendo a reflexão para a vida real, pode-se dizer que em se tratando de crimes, na maioria das vezes, o que acontece é que: o branco até provar que é culpado é considerado inocente. O negro, ao contrário: até provar que é inocente é considerado culpado. Basta recordar o caso do dentista negro recém-formado, Flávio Ferreira Sant’Ana, assassinado na Zona Norte de São Paulo, em 03 de fevereiro de 2004. De suspeito, foi transformado em culpado e

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morto, sem tempo de reagir ou provar sua inocência. Na telenovela, para Afonso, Preta tem relação direta com os estereótipos

negativos difundidos em relação ao negro. Muitas vezes, ele justifica o “comportamento” de Preta, fazendo comentários como: “o que se pode esperar de uma pessoa como ela? Eles são assim mesmo...”. A maneira de pensar do empresário se consolida quando aponta Tony, branco, para ocupar uma importante função em sua empresa. Todos esperavam que o cargo fosse ser oferecido a Felipe Garcia (Rocco Pitanga), mas o racismo não permitiu, pois o rapaz é negro.

É comum o negro não ser considerado um indivíduo, e sim a representação coletiva de um grupo marcado por uma estereotipia negativa. É isso que se vivencia no mundo real e é representado na ficção. De forma consciente ou não, a reprodução dos estereótipos e, conseqüentemente, o racismo e a branquitude estão presentes na televisão.

A representação do branco como padrão universal de humanidade, sua invisibilidade e neutralidade racial – a branquitude – garante-lhe um lugar “privilegiado” na sociedade. O negro, em contraposição, é reduzido a uma coletividade sobre a qual se faz relação de traços fenotípicos com estereótipos sociais e morais, culminando no racismo. “As conseqüências são inevitáveis: a neutralidade de cor/raça protege o indivíduo branco do preconceito e da discriminação racial na mesma medida em que a visibilidade do negro o torna um alvo preferencial de descargas de frustrações impostas pela vida social” 14.

Em seu artigo “Portas de Vidro”, Piza15 comenta sobre a representação do negro por esta coletividade, e, em contrapartida, explica a neutralidade racial do branco: (...) o lugar do negro é o seu grupo como um todo e do branco é o de sua individualidade. Um negro representa todos os negros. Um branco é uma unidade representativa apenas de si mesmo. Não se trata, portanto, da invisibilidade da cor, mas da intensa visibilidade da cor e de outros traços fenotípicos aliados a estereótipossociais e morais, para uns, e a neutralidade racial, para outros.

Fazendo uma conexão entre ficção e realidade, pode-se encontrar na telenovela “Da Cor do Pecado”, na personagem de Afonso Lambertini, através de suas ações e seus discursos, o comportamento racista pautado na sua branquitude. Não por acaso, quando sumiu um documento importante na empresa Lambertini, o primeiro suspeito foi seu empregado negro, Felipe, mas o autor do roubo foi Tony, branco, longe de ser considerado suspeito. O intrigante, neste caso, que, mesmo depois de encontrar o documento na pasta de Tony, Afonso o manteve no cargo, sob a

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explicação que este se casaria com Bárbara e seria o padrasto de seu suposto neto. Afonso até tentou rever seus “pré-conceitos”, movido pelo amor que nutria por

Raí, filho de Preta. A personagem de Lima Duarte até lembrou a Bárbara – durante um dos ataques racistas em que ela vincula o negro a sujeira, com frases do tipo “esta neguinha é suja” – que racismo no Brasil é crime. Mas, traído por seu imaginário, tem demonstrado práticas racistas.

Bárbara é mau caráter, desonesta, mas se aproveita da invisibilidade garantida por sua branquitude para garantir seus privilégios. Um deles é o fato de nunca ser a primeira suspeita.

A vilã projeta todas as mazelas da sua personalidade em Preta. Afonso, por sua vez, embora se esforce para ter atitudes nobres, tentando se aproximar de Preta, e desvincular a imagem da moça sobre o que pensa a respeito dos negros, parece não conseguir. A primeira vítima de suas desconfianças sempre é o negro.

Analisando a telenovela “Da Cor do Pecado”, podemos dizer que as situações de racismo e branquitude são bem representadas por Bárbara e Afonso Lambertini. Constatamos que ambos se valem da invisibilidade e neutralidade do branco e da suposta hierarquização racial para justificarem e explicarem, ainda que, mais sutilmente, no caso de Afonso, seus comportamentos em relação à Preta. Diante da relação que podemos estabelecer entre ficção e realidade, pensando na discussão e no debate sobre relações raciais, somos instigados a pensar: “o que significa de fato ser negro e o que significa ser branco em nossa sociedade? A maior parte dos estudos sobre questões raciais responde à primeira parte da pergunta. Já sobre a segunda parte da questão há um silêncio, embora haja resposta. Como salienta BENTO, o silêncio e a neutralidade do branco o coloca numa situação bastante confortável no âmbito das discussões sobre relações raciais. Destaforma, não discutimos as diferentes dimensões de privilégios que implicam diretamente na vida dos negros e dos brancos.

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A DIFÍCIL TAREFA DE DEFINIR QUEM É NEGRO NO BRASIL

ESTUDOS AVANÇADOS 18 (50), 2004 51

PARA O ANTROPÓLOGO Kabengele Munanga, professor-titular da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, não é fácil definir quem é negro no Brasil. Em entrevista concedida a ESTUDOS AVANÇADOS, no ultimo dia 13 de fevereiro, ele classifica a questão como “problemática”, sobretudo quando se discutem políticas de ação afirmativa, como cotas para negros em universidades públicas.“Com os estudos da genética, por meio da biologia molecular, mostrando que muitos brasileiros aparentemente brancos trazem marcadores genéticos africanos, cada um pode se dizer um afro-descendente. Trata-se de uma decisão política”, afirma.

Kabengele Munanga é atualmente vice-diretor do Centro de Estudos Africanos e do Museu de Arte Contemporânea da USP. Nasceu em 19 de novembro de 1942 no antigo Zaire, onde recebeu sua educação primária e secundária. Sua educação superior ocorreu em seu país natal, de 1964 a 1969. Foi o primeiro antropólogo formado na então Université Officielle du Congo, em Ciências Sociais (Antropologia Social e Cultural).

No mesmo ano em que se graduou, recebeu uma bolsa do governo belga, como pesquisador no Museu Real da África Central, em Tervuren e como aluno do programa de pós-graduação na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. Essa bolsa foi interrompida em 1971, por questões políticas, antes da conclusão de seu doutorado. Em julho de 1975, veio ao Brasil com uma bolsa da USP, a fim de continuar seus estudos. Defendeu sua tese em 1977. No mesmo ano, voltou a seu país, mas não conseguiu permanecer lá por muito tempo. Regressou ao Brasil em 1979, para trabalhar na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Em 1980, iniciou a segunda fase de sua carreira na USP. Em 2002, o governo brasileiro concedeu a Kabengele Munanga o diploma de sua admissão na Ordem do Mérito Cultural, na classe de Comendador.

Kabengele Munanga – Parece simples definir quem é negro no Brasil. Mas, num país que desenvolveu o desejo de branqueamento, não é fácil apresentar uma definição de quem é negro ou não. Há pessoas negras que introjetaram o ideal de

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branqueamento e não se consideram como negras. Assim, a questão da identidade do negro é um processo doloroso. Os conceitos de negro e de branco têm um fundamento etno-semântico, político e ideológico, mas não um conteúdo biológico. Politicamente, os que atuam nos movimentos negros organizados qualificam como negra qualquer pessoa que tenha essa aparência. É uma qualificação política que se aproxima da definição norte-americana. Nos EUA não existe pardo, mulato ou mestiço e qualquer descendente de negro pode simplesmente se apresentar como negro. Portanto, por mais que tenha uma aparência de branco, a pessoa pode se declarar como negro.

No contexto atual, no Brasil a questão é problemática, porque, quando se colocam em foco políticas de ações afirmativas – cotas, por exemplo –, o conceito de negro torna-se complexo. Entra em jogo também o conceito de afro-descendente, forjado pelos próprios negros na busca da unidade com os mestiços.

Com os estudos da genética, por meio da biologia molecular, mostrando que muitos brasileiros aparentemente brancos trazem marcadores genéticos africanos, cada um pode se dizer um afro descendente. Trata-se de uma decisão política. Se um garoto, aparentemente branco, declara-se como negro e reivindicar seus direitos, num caso relacionado com as cotas, não há como contestar. O único jeito é submeter essa pessoa a um teste de DNA. Porém, isso não é aconselhável, porque, seguindo por tal caminho, todos os brasileiros deverão fazer testes. E o mesmo sucederia com afro-descendentes que têm marcadores genéticos europeus, porque muitos de nossos mestiços são euro-descendentes.

O problema das cotas

Kabengele Munanga – Por ocasião dos trezentos anos da morte de Zumbi dos Palmares, em 1995, começamos a discutir essa questão na USP, numa comissão criada pela reitoria. Os movimentos negros, principalmente o Núcleo da Consciência Negra, pleitearam o estabelecimento de cotas em nossa universidade. Contudo, afirmei que não poderíamos discutir o sistema de cotas sem antes fazer uma pesquisa preliminar em países que já têm experiência de cotas, como os EUA, o Canadá, a Austrália ou a Índia.

Naquela ocasião, apresentei essa proposta, mas ela não foi levada adiante. No entanto, na base de um levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), um órgão do governo federal, conclui-se que realmente há uma grande defasagem na escolaridade dos negros nas universidades brasileiras.

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Infelizmente, porém, começamos a enfrentar a questão pelas cotas, a partir da decisão do governador Anthony Garotinho, do Rio de Janeiro, que provocou uma confusão muito grande, quando estabeleceu cotas nas universidades estaduais.

No entanto, mesmo num país com tantas desigualdades, as políticas universalistas não resolvem o problema do negro. Para isso precisamos formular políticas específicas contra as desigualdades, mas o caminho não deve ser necessariamente por meio de cotas.

Essa discussão, todavia, é importante, porque antes nem se tocava no assunto. Escutei outro dia algo muito positivo quando alguém dizia que deveria haver cotas para pobres. Ora, antes ninguém apresentou esse ponto de vista. O que mais me surpreende é que jamais o movimento negro se disse contrário a cotas para brancos pobres.

A questão ainda está mal discutida, sendo formulada num tom passional, tanto pelos negros como pelos intelectuais. A questão não é a existência ou não das cotas. O fundamental é aumentar o contingente negro no ensino superior de boa qualidade, descobrindo os caminhos para que isso aconteça. Para mim, as cotas são uma medida transitória, para acelerar o processo. No entanto, julgo que não somente os negros, mas também os brancos pobres têm o direito às cotas. Se as cotas forem adotadas, devem ser cruzados critérios econômicos com critérios étnicos. Porque meus filhos não precisam de cotas, assim como outros negros da classe média.

Melhorar a escola pública

ESTUDOS AVANÇADOS – O sr. acha que a médio prazo a alternativa seria uma transformação mais profunda do ensino básico e secundário? Um número considerável de alunos negros faz o segundo grau em escolas públicas. Não falo deles como negros, mas sim como pobres. Será que as cotas não resolvem o problema porque o enfrentam no fim da linha, em vez de atacá-lo no começo?

Kabengele Munanga – Sim. Porém, vivo aqui há 28 anos e desde que cheguei escuto esse discurso. Mas nunca vi luta política e social alguma para a melhoria da escola pública. Só há o discurso. Mas o que fazer com a vítima? Esperar que isso aconteça por milagre, ou pressionar a sociedade através de uma proposta: como pelo menos cuidar da escola pública? A dúvida que tenho é a seguinte: num país onde a privatização do ensino é cada vez maior e no qual o lobby das escolas particulares é tão forte, só posso antever uma melhoria a longo prazo. Lembro-me

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de que o primeiro processo contra as propostas de cotas no Rio de Janeiro veio do sindicato das escolas privadas. Devido a essa tendência para a privatização das escolas públicas, não acredito numa rápida melhoria delas. A desigualdade social que existe há quatrocentos anos não pode ser resolvida por meio de políticas universalistas. É preciso, portanto, traçar políticas específicas para se encontrar uma solução.

A discriminação racial

A palavra “social” incomoda-me muito. Quando dizem que a questão do negro é uma questão social, o que quer dizer “social”? As relações de gênero são uma questão social; a discriminação contra o portador de deficiência é uma questão social; a discriminação contra o negro é uma questão social. Ora, o social tem nome e endereço. Não podemos diluir, retirar o nome, a religião e o sexo e aplicar uma solução química. O problema social tem de ser atacado especificamente. A discriminação racial precisa ser urgentemente enfrentada. Nós, negros, também temos problemas de alienação de nossa personalidade. Muitas vezes trabalhamos o problema na ponta do iceberg que é visível. Mas a base desse iceberg deixa de ser trabalhada. Estou aqui, como disse, há 28 anos. Vou a restaurantes utilizados pela classe média e a centros de alimentação nos shoppings. Encontro famílias brancas comendo (homem, mulher e filhos), mas dificilmente estão ali famílias negras. Há uma classe média negra, mas que se autodiscrimina e que é também discriminada.

Desafio vocês a me dizerem que encontraram quatro famílias negras em cinco restaurantes de classe média em São Paulo. Vejamos o meu caso: em meu segundo casamento (que é interracial) percebia aquelas “olhadas” – mulher branca, filhos negros do primeiro casamento e filhos mestiços do segundo. Ninguém me expulsava desses lugares, mas eu via as “olhadas”...

ESTUDOS AVANÇADOS – A USP está completando setenta anos e gostaria que o sr. falasse sobre as principais linhas de pesquisa sobre gênero e raça na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.

Kabengele Munanga – Até onde eu saiba não há uma linha de pesquisa sobre gênero e raça. Há um núcleo de estudo da mulher, dirigido pela professora Eva Blay. De vez em quando ela convida alguma jovem pesquisadora negra. Talvez exista uma explicação histórica para isso, porque normalmente quem estuda esse tema são as mulheres. Mas, não temos professoras negras de sociologia ou de antropologia na Universidade de São Paulo. Entrei nela em 1980, como professor, e

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nunca mais houve um outro professor negro no Departamento. Lembro-me do dia em que Florestan Fernandes recebeu o título de professor emérito e eu estava na fila para cumprimentá-lo. Eu não sabia que ele me conhecia. Por isso assustei-me quando ele me disse que estava muito contente com a minha presença naquela solenidade. Pois fora informado de que ali estava um negro que nem era brasileiro.

Um antropólogo em dois mundos

ESTUDOS AVANÇADOS – O sr. poderia descrever um pouco sua trajetória até chegar no Brasil?

Kabengele Munanga – Nasci no antigo Zaire, que hoje se chama República Democrática do Congo, numa aldeia no centro do país. Estudei num colégio interno de jesuítas e fiz graduação em Antropologia. Aliás, fui o primeiro antropólogo formado naquela universidade e o único aluno que teve aulas com professores franceses, belgas e americanos convidados, pois não havia ainda professores africanos na Universidade quando eu entrei Lá, nós acabávamos a graduação com um tipo de dissertação que se chamava Mémoire. O sistema belga dava o direito de se entrar diretamente no doutorado. Em razão disso, comecei o doutorado em Louvain, na Bélgica, em 1969. Dois anos depois, voltei para pesquisas de campo. Mas houve complicações políticas. Cortaram a bolsa e não pude fazer mais nada. Por coincidência, encontrei no Congo, em 1973, o professor Fernando Mourão, que ali estava realizando palestras sobre as contribuições africanas para a cultura brasileira. Conversamos e ele me disse que a USP possuía um projeto de cooperação com as universidades africanas e que nela eu poderia completar o doutorado. Cheguei aqui em 1975 e me inscrevi no doutorado, sob a orientação do professor João Batista Borges Pereira. Como eu estava bastante adiantado, em dois anos defendi minha tese. Trabalhei sobre o processo de mudanças socioeconômicas numa comunidade no sul do Congo. Voltei correndo à militância para colocar meus conhecimentos à disposição de meu país. Mas quando cheguei lá, tive de fugir para o Brasil. Quando houve a independência do meu país, o antigo Zaire (em 30 de junho de 1960), eu estava com dezoito anos. A Faculdade foi criada pela Bélgica, seis anos antes da independência, em conseqüência de pressões internacionais. Fui alfabetizado na minha língua materna, mas no fim do primeiro grau começou o ensino em francês. O resto do curso foi em francês. Isso porque, com mais de duzentas línguas, não era possível escolher uma para ser a língua nacional. Todos os alfabetizados falam francês.

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ESTUDOS AVANÇADOS – Alguma dessas línguas africanas é hegemônica? Kabengele Munanga – O suahili que é uma língua falada em muitos países

africanos, em parte do Zaire, Tanzânia, Burundi, Quênia e Uganda. ESTUDOS AVANÇADOS – Suahili tem alguma coisa a ver com o árabe? Kabengele Munanga – Cerca de vinte por cento do vocabulário, porque desde a

Antiguidade os árabes tiveram muita influência no continente, a partir do oceano Índico, além de terem sido responsáveis pelo tráfico oriental e transaariano (entre os anos de 600-1600). Mas a estrutura da língua é totalmente bantu (africana).

ESTUDOS AVANÇADOS – Muito obrigado.

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Trabalhando na sala de aula

Sandra Santos A autora é historiadora, jornalista e doutora pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do NEINB-USO e consultora-sócia do Mídia Etnia Educação e Comunicação.

A grande discussão entre os educadores brasileiros, desde 9 de janeiro de 2003, tem sido a necessidade de dar cumprimento à lei 10.639. Passados dez anos de sua assinatura, a maior dúvida, ainda, tem sido como desenvolver e aplicar, em sala de aula, seus preceitos. Professores e direção se perguntam – e aos ministrantes de cursos que visam discutir tal tema – como abordar o tal assunto: se através projetos temáticos inseridos nos cursos fundamental e médio; se em datas “comemorativas” (13 de maio e/ou 20 de novembro) devem ser privilegiadas; se parte do bimestre deve ser reservado para contemplar o tema “História e Cultura Afro-brasileira”.

Como pesquisadora e professora dos níveis fundamental II e médio – atualmente ministrando em escolas da rede pública estadual paulista – considero desaconselhável o isolamento/compartimentação do tema em determinadas épocas ou em momentos diferenciados do curso. Os docentes e direção devem vislumbrar o problema a ser vencido/o tema a ser abordado como cotidiano na sociedade e, portanto, nas escolas brasileiras também.

O Brasil é um país pluriétnico e multicultural, mas, nem por isso, apresenta um nível ótimo de tolerância entre os grupos sociais que o compõem. As manifestações racistas, de intolerância religiosa e animosidade cultural de todas as formas são uma constante nas ruas, nos meios de comunicação e, como não poderia deixar de acorrer, também nas escolas, no trato cotidiano entre seus frequentadores (professores, direção, estudantes e funcionários em geral).

Essas manifestações vão das simples palavras que, muitas vezes, circulam como apelidos “carinhosos” (Buiú; Tiziu; Micão; Japa-gay; Bolinho de Ovo) e frases “engraçadas” (amanhã é dia de branco; serviço de preto; quando não faz na entrada, faz na saída) até agressões físicas e morais mais sérias. Isso promove uma situação de

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risco permanente com a qual a população escolar não consegue lidar. A direção, muitas vezes, deixa passar por não saber lidar com a situação – “é melhor se comprometer o menos possível”.

Muitos, acredito, não sabem nem identificar a situação... assistem a infração como “algo normal do dia-a-dia” – foi socializado assim, reproduz assim... “É desse jeito desde que o mundo é mundo.” Ouvi isto uma vez, e mais: “quando o Cabral chegou já havia isso...” Ou será que trouxeram?

Penso, então, que no início deve haver a aceitação de que algo está errado. Depois, a conscientização de que algo deve ser feito para mudar. E, então, transformar a necessidade de mudança num trabalho cotidiano e consciente de reconstrução de atitudes; de escolha de palavras; de renúncia de preferências e distinções de alunos, que se faz e se incentiva entre os profissionais do magistério, por nota, por simpatia e outros inúmeros motivos admitidos, mas que poderiam ser traduzidos em origem social, étnica, etc.

A atitude cotidiana de reorganização de atitudes – visivelmente adotada – deve também ser incentivada nos discentes de maneira a favorecer o convívio no ambiente escolar. Mas o respeito não nasce por decreto, assim como também o preconceito e a discriminação que foram constru- ídos durante séculos de discursos, desvalorização e manipulação da História. Como valorizar o que se desconhece ou, pior, se conhece de maneira distorcida?

Considero importante que os professores não só aproveitem as necessidades e indicações do currículo, mas também criem oportunidades para a abordagem do tema buscando sempre abordar o passado, mas utilizando um diálogo permanente com a atualidade em que está inserido e seu aluno também.

A minha disciplina é História, talvez – segundo se acredita – campo fértil que favorece a adequação do trabalho. Mas o diálogo social não pode ser deixado de lado, como muitas vezes ocorre, por comodidade ou desconhecimento dos docentes, pois esta é uma prática que pode favorecer o desempenho de todos e ampliar o conhecimento. Cada professor, em sua especialidade(Geografia, Matemática, Ciências...), deve contribuir com o todo e também aprender, se aprimorando profissionalmente e como ser humano – um bom exemplo de tolerância e convivência a ser dado aos discentes.

História

Nota-se que, nos livros didáticos, os temas e períodos são abordados com parcialidade na medida em que os descendentes de europeus são representados privilegiadamente. É a famosa “história dos vencedores”. Até mesmo os personagens

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negros, mestiços, indígenas são “embranquecidos” para “participar” da História de um país que, ainda hoje, se constrói. Senão, vejamos: o levante dos Malês (início do século XIX, na Bahia) raramente é abordado pelo professor em sala de aula – muito menos aparece em livros didáticos; a chamada Balaiada (1838-1841, no Maranhão) dificilmente é ensinada como o que realmente foi: uma revolta popular por liberdade e, principalmente, fim da escravização de seres humanos no Brasil. O que dizer, então, da verdadeira história dos Lanceiros Negros da Guerra dos Farrapos (1835-1845, região sul do País)?

Os meios de Comunicação massivos também têm contribuído para a perpetuação da imagem de um Brasil majoritariamente branco e suas novelas de época mascaram a verdadeira História brasileira, na medida em que papéis de destaque são dados aos atores não-negros ou aparentemente mais condizentes com a imagem que se quer valorizar (o tipo europeu). O escravo é negro, mas se o nariz for mais afilado, melhor; se o cabelo for “bom” é preferível... Aparece “melhor” na tela. Recentemente, na novela “Sinhá Moça” (reprisada neste ano de 2010 pela Rede Globo de Televisão), o herói é o irmão do quilombo (um “sinhozinho” que abria as portas das senzalas para os escravos fugirem, como se o negro não fosse capaz de fazer isso por si mesmo, como se centenas de quilombos não tivessem se formado em território nacional desde a chegada dos primeiros escravizados...). Se personagens históricas, como Anita Garibaldi e Chiquinha Gonzaga, são afrodescedentes, porque atrizes brancas ganharam o papel? Ganharam do direito de representar a essência da resistência do povo brasileiro?

Numa aula de história, seja qual for a série, fundamental ou médio, é de suma importância reforçar essas questões ao longo de todo o curso. Se o que se reflete na sociedade atual é fruto de nossas escolhas do passado, a disciplina História deve se encarregar de informar que equívocos, esquecimentos, desvalorizações – propositais... que serviram e servem à manutenção de uma situação de privilégios construída e sustentada sobre uma camada de trabalhadores despossuídos – foram e são cometidos todos os dias, somos hoje frutos de escolhas, acertadas ou não, do passado… e é nosso dever o esforço de construir um futuro mais justo. Um dia faremos parte da História e nossas ações e escolhas serão julgadas, aproveitadas ou descartadas por outros... escolhas que os ajudarão a sobreviver ou apenas os cobrirão de vergonha e prejudicarão sua a caminha para o futuro.

O que apresento neste texto tenta, apenas, descrever uma experiência que deu certo numa escola pública de São Paulo-capital há alguns anos. Durante palestras e oficinas tenho procurado discuti-la com professores e aperfeiçoá-la para futuras aplicações. Um dos problemas acarretados por este trabalho é a necessidade da interdisciplinaridade.

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Digo “problema” porque, para ser aproveitado ao máximo, deve haver cumplicidade entre os professores envolvidos com as turmas que desenvolverão o trabalho. Claro que sei que desenvolver esta cumplicidade não tem sido fácil para nenhuma escola – salvo honrosas exceções, descritas em revistas especializadas.

Importante é aproveitar a necessidade que o jovem tem do novo, da descoberta, de ser valorizado e aprender com isso. A escola é um local em permanente erupção, pois abriga grande porcentagem deste material em ebulição – chamado adolescente – sempre em contraponto com um grupo já “pacificado” – administradores e docentes, muitos já passados da meia idade – que, muitas vezes, não se lembra mais como era ser jovem. Na escola da periferia, ainda, este grupo jovem é, em sua maioria, composta por afrodescendentes, a parte mais desprivilegiada da sociedade... o que favorece a junção da “fase natural” de contestação da mocidade, com a sensação

de discriminação o que contribui para baixar ainda mais a autoestima, situação desenvolvida ao longo de uma vida de invisibilidade social e abandono dos poderes públicos – inclusive, muitas vezes, refletida na própria escola pública.

Ser negro no Brasil é não se enxergar como bem-sucedido na mídia grande, não ser valorizado, desconhecer suas origens de lutas e glórias... é ser o escravo que aparece nas telenovelas e nos livros didáticos, aquele que nasceu para frequentar o que as elites, os brancos, não querem mais. Esses são os alunos que, infelizmente, estão em oposição à outra parte da Unidade Escolar: a direção, os professores e os funcionários que, de uma maneira geral, estão mais identificados com a parte que massacra, desconsidera e inutiliza as potencialidades do povo. Não digo que esta seja a absoluta verdade, sem nuances ou exceções, mas esta é, com certeza, a leitura que os jovens estudantes da periferia fazem da escola que frequentam. O professor é agente – ou pelo menos é visto assim e assim muitos se comportam – da sociedade repressora, branca, racista, oficial, elitista que discrimina, impossibilita, tolhe, massacra e impede manifestações.

Por outro lado, há a realidade das escolas particulares: a escola onde ministro aulas fica dois quarteirões de distância de uma instituição privada de ensino que também possui cursos fundamental e médio, além de pré-escola. Os horários de entrada e saída são diferenciados para evitar “encontros” desagradáveis entre os dois grupos de jovens: o “povo” da pública entra às 7h00 da manhã e a “elite” do particular inicia suas aulas à 7h15. Claro que os meninos da escola pública “percebem” que há uma estratégia para evitar o “contato” deles – futuros trabalhadores – com os outros – futuros patrões. Em sala de aula, as realidades afloram em rivalidades verbais e perguntas que, muitas vezes, não são respondidas a contento: por que somos diferentes?

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Literatura – Trabalhando Pai contra Mãe de Machado de Assis. Há muito adotei, em minhas salas de aula, a prática de “mostrar os dois lados” ou

mais, conforme o caso. Vejamos uma idéia simples: a linha do tempo é necessária, mas será que somente uma versão é possível? A mais difundida é a eurocêntrica, com os tradicionais períodos divididos em História Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea, com o “marco zero” posto no nascimento de Cristo. Mas e as outras possibilidades? Não estava acontecendo nada em outras partes do mundo? Na África? Na América? Outras civilizações tão grandes, importantes ou maiores e mais ricas do que as encontradas na Europa no mesmo período? Sempre dando oportunidade para que, quem quiser, expresse suas dúvidas e idéias.

Isto posto, gostaria de entrar no assunto propriamente dito, o alvo de minhas oficinas. Este trabalho pode ser adaptado de forma bastante livre e aproveitando o período que for necessário para o seu cotidiano escolar.

O tema é a Corte no Segundo Reinado. Período entre 1840 e 1889, respectivamente anos da coroação do jovem D. Pedro II, com a antecipação de sua maioridade jurídica, e a Proclamação da República, o adeus ao velho imperador. Para desenvolver este tema, é necessária a cumplicidade dos professores de Língua Portuguesa, Artes, Geografia, Sociologia. Eventualmente, os professores de exatas e biológicas também podem ser convidados a trabalhar num grande projeto que envolva estatísticas sobre a população e situação de saneamento, insalubridade e doenças existentes naqueles tempos.

Material necessário: 1) Dicionário da Língua Portuguesa; 2) Livros didáticos sobre os temas em questão (Escravidão). Considero importante

a utilização dos materiais fornecidos pelas escolas, mesmo que não sejam os ideais, justamente para questionar a qualidade e/ou a adequação para os esforços e necessidades dos docentes e discentes frente às exigências da Lei que aqui se aborda. Isto contribui para que o professor desconstrua a história “oficial” e questione as versões dos fatos: a verdade pode ser relativa e construída segundo o ponto de vista e o interesse de quem a escreve. Outras visões serão apresentadas nos livros de literatura adotados (ver abaixo). Mas isso também não descarta a necessidade de continuar lutando, reivindicando que sejam fornecidos livros didáticos e paradidáticos com a valorização devida aos povos que ajudaram a construir o Brasil. Negros e indígenas, além dos descendentes de europeus e orientais;

3) Livros de Literatura: ASSIS, José Maria Machado de. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro, Garnier,

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sd. (Conto: Pai contra mãe, publicado originalmente em 1905); ALENCAR, José. A pata da gazela. 15.ed. São Paulo, Ática, 1998 (novela publicada

originalmente em 1870). 4) Jornais e revistas atuais. 5) Livros Paradidáticos: São muito importantes, pois apresentam, geralmente, uma

iconografia interessante, imagens e textos da época abordada (descrições feitas por viajantes, charges realizadas por desenhistas brasileiros e estrangeiros em visita ao Brasil.) que podem ser úteis ao desenvolvimento desta trajetória de aprendizado e entendimento das relações sociais no Brasil (editoras que apresentam bons trabalhos: Ática e Scipione, por exemplo).

O trabalho é dividido em três fases: sensibilização, desenvolvimento, conclusão. A metodologia a ser utilizada corresponde às tradicionais aulas expositivas (o mínimo possível, necessárias para, apenas, delimitar a situação que o aluno deve analisar); às leituras, que serão dirigidas por objetivos claros; além de observação iconográfica (imagens; charges da época; fotografias, caricaturas, pinturas, etc). Comentários sobre o noticiário televisivo, o capítulo anterior da telenovela, por exemplo, podem se constituir num bom gancho para chamar a atenção dos alunos. Exercícios e questionários pré-elaborados pelos próprios alunos, a partir de leituras prévias de jornais, livros e revistas e posterior comentários das respostas em grupos, direcionados pelo docente.

Sensibilização para os assuntos que serão abordados

Nessa fase, o uso do dicionário será constante e a aula, preferencialmente, será dialogada. É a fase em que alguns conceitos (históricos, sociológicos) e parâmetros de trabalho (individual ou grupo; escrito ou cartazes; prazos etc) serão determinados. Os alunos terão um prazo para buscar o significado de palavras encontradas nos textos e que, porventura, não façam parte do vocabulário atual. Como, tanto Pai conta Mãe como A Pata da Gazela, são textos escritos há mais de um século surgirão palavras, expressões, utensílios e práticas (máscara de flandres, pataca, saraus, roda dos enjeitados, tigre...) que não fazem parte do cotidiano dos estudantes e suscitarão questionamentos e contrastes com a atualidade. Estas dúvidas serão respondidas, explicadas, mas não sem antes o exercício de uso do dicionário e outrso recursos de pesquisa.

O primeiro texto a ser lido é o de Machado de Assis, mais curto e, portanto, facilmente realizado em sala de aula, coletivamente, com pausas para explicações, discussões, comparações, buscas imediatas no dicionário e observações iconográficas. Isso deixará os discentes aptos a realizarem a leitura mais longa, José de Alencar,

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sozinhos. O contato/leitura de livros didáticos é importante para que os estudantes formem

uma base sobre o assunto estudado. Não descarto a “História Oficial” dessas publicações, como já informado acima, pois não se pode “desconstruir” um discurso que nunca foi construído nas cabeças, é necessário entender a raiz de certas crenças e o livro didático – por pior que seja – é a melhor solução (é barato, toda Escola Estadual recebe uma quantidade razoável de didáticos e paradidáticos todos os anos). Na realidade, esses livros tem sido subaproveitados – quando são. Muitos professores os utilizam apenas como fonte de cópias mal feitas e inexplicadas; é um “calaboca” que o professor dá às crianças mal comportadas – o que aumenta o desgosto dos discentes pela História. Manuseá-lo é importante; observar as ilustrações e ler os textos extras no final ou início de cada capítulo.

Desenvolvimento

O cenário histórico, como já informado, é a corte brasileira (Rio de Janeiro) durante o reinado de D. Pedro II. Um período visto como relativamente calmo e próspero para o País (será?), onde a burguesia e os profissionais liberais, formando uma camada cada vez maior conviviam ainda com os desmandos dos grandes latifundiários e a existência de uma numerosa população cativa. Nos interiores a insatisfação social gerando lutas fratricidas (Farrapos; Praieira; etc) e no cenário internacional a guerra brasileira contra o Paraguai. Como seria a vida de “gente comum” naquele período?

Primeiro, o que é “gente comum”? O que se fazia para sobreviver? Isso pode ser discutido em sala de aula com a atualidade servindo de parâmetro (o que cada um faz – brincadeiras, escola, trabalho; qual a profissão do pai e da mãe; como as pessoas, de diversas camadas sociais, são tratadas; governo; sociedade; polícia...)

Como a realidade (social, econômica, política) afeta a vida de famílias e indivíduos. Os livros escolhidos retratam dois grupos sociais/famílias, um da elite da sociedade outro da base social. Convivências, amizades, redes de solidariedade, preocupações e reações diferentes, num mesmo espaço geográfico, em períodos semelhantes: Machado de Assis informa que, escrevendo em 1905, está se referindo a 50 anos antes; enquanto José de Alencar escreve sobre seus contemporâneos e suas futilidades da alta sociedade.

Os personagens daquele longínquo século XIX vivenciam problemas econômicos, financeiros, politicos, raciais, sociais, discriminações e preconceitos... enfim pessoas “vivendo” – como nós mesmos e nossas famílias.

A literatura e o cinema são aliados importantes nesta fase, pois ajudam a “agarrar” a atenção do jovem para coisas que porventura tenham se perdido na leitura dos livros

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didáticos e paradidáticos propostos ou nas situações discutidas em sala de aula. Ajuda a entender a conjuntura afetando a vida do cidadão “comum”. Como a nossa vida, na atualidade, depende de diversos fatores – importante sempre fazer essa relação com a atualidade.

O ideal é que o docente leia o texto Pai contra Mãe junto com a sala e não se acanhe de parar a leitura em certos pontos para comentar, chamar a atenção para trechos que “combinam” com o que foi visto nos livros didáticos: escravidão; tratamento dado ao que é considerado “diferente”; a situação do pobre; as benesses da elite; as confraternizações; o espaço ocupado pelas pessoas; a alimentação ingerida, o tipo de trabalho ou falta dele... tudo isso gerando problemas que, por vezes, levam às revoltas, desentendimentos, subempregos, o papel da mulher, o estatuto da criança, guerras, greves... como ocorre na sociedade atual – que é fruto de tudo aquilo.

Haverá um questionário básico que o docente aplicará em sala de aula, dando um prazo para que seja respondido. O resultado deste trabalho será apurado numa “mesa redonda” com a participação dos alunos. Esse debate vai gerar o interesse de saber mais. Então, o docente proporá um trabalho maior, em grupos. Uma pesquisa extraclasse, com provável entrevista com familiares, vizinhos, descendentes de escravos... E importante é notar que tudo isso está gerando discussão, que criará mais curiosidade, que ocasionará mais pesquisa e a noção da importância de conhecer para intervir na realidade no entorno.

Conclusão

Todas as fases do trabalho serão, claro, avaliadas; porém o final das discussões deve produzir um material a ser apresentado a toda a escola. Um produto em que cada aluno deve enxergar sua colaboração e contribuição para tornar a escola um ambiente menos preconceituoso e mais plural; algo que continue gerando debates e necessidades de conhecimento, mas que, principalmente, realize mudanças no relacionamento dos seres humanos que convivem na comunidade, não só escolar, mas também na vizinhança em seu entorno.

A apresentação do trabalho poderá ser em forma de encenação, cartazes, música, dança. É importante que fiquem à vontade para utilizar quaisquer formas de expressão para informar o que aprenderam para os demais alunos. Poderá, inclusive, ser apresentado na semana cultural do 20 de novembro (mas sem a obrigatoriedade desta data). Atualmente tenho utilizado a semana do 31 de outubro (dia do Saci em oposição ao “raloin”).

Uma boa continuação para este trabalho, seria abordagem da Resistência Negra, formas de luta com ênfase na História dos Quilombos. Formação, lutas , manutenção,

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desenvolvimento ao longo dos séculos culminando com a atualidade das comunidades remanescentes quilombolas.

Bibliografia: * ALENCAR, José de. A pata da gazela (1870) e/ou Senhora (1874). São Paulo, Ática. (qualquer um dos dois deve ser, obrigatoriamente, lido antes do início do curso) CAVALLEIRO, Eliane. Racismo e Anti-racismo na educação: repensando nossa escola. São Paulo, Summus/Selo Negro, 2001. CASHMORE, Ellis; BANTON, Michael (et al.) Dicionário de relações étnicas e raciais. Trad. D. Kleve. São Paulo, Summus/Selo Negro, 2000. * MACHADO de ASSIS. Pai contra mãe in Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro, Garnier, sd. (imprescindível que se tenha o texto no dia da aula). MOURA, C. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo, EDUSP, 2004. SANTOS, Sandra. Herdeiros de Zumbi in Quilombos em São Paulo; tradições, direitos e lutes (vários autores). São Paulo, CCN/ITESP/Gov. Estado de São Paulo, 1998. pp. 72-80. SILVA, Eduardo. As Camélias do Leblon e a abolição da escravatura; uma investigação de História Cultural. São Paulo, Cia. das Letras, 2003. SCIPIONE, Editora. Coleção Crianças na História.

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Cinema em sala de aula – Trabalhando com animação/ficção Ficha Técnica: Título do filme: O Príncipe do Egito (The Prince of Egypt) Direção e roteiro: Brenda Chapman, Steve Hickner, Simon Wells Ano: 1998 Origem: Estados Unidos Duração: 98 minutos Sinopse A versão animada da vida do personagem bíblico Moisés, com ênfase em sua juventude até sua conversão e saída do Egito com o povo hebreu, auxilia o trabalho do docente que, ao ministrar aulas de História Antiga, necessita falar sobre a sociedade, política e traços da economia das primeiras grandes civilizações do planeta. Tomando o modelo Egípcio como parâmetro, é possível falar sobre o Modo de Produção Asiático, os recursos adotados para a manutenção dos primeiros povos a se sedentarizarem: obras hidráulicas, escravidão antiga, cultura e religiosidade (politeísmo e monoteísmo) como recursos de sobrevivência e espalhamento do ser humano pela terra. E lembre-se: Foi na ÁFRICA!

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Go down, Moses! Sandra Santos

A autora é historiadora, jornalista e doutora pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do NEINB-USO e consultora-sócia do Mídia Etnia Educação e Comunicação.

Estava feliz quando saí da sessão de estréia de “O Príncipe do Egito” (Prince of

Egypt, DreamWorks, 1998), num cinema do bairro paulistano do Tatuapé, naquela longínqua sexta-feira.

Foi há mais de uma década e eu estava com minha sobrinha de 8 anos. O porquê daquele sentimento não entendi na hora... um desenho comum. Corretíssimo, é claro, desenvolvido com competência pela, então, recém-constituída sociedade entre Steven Spielberg, Jeffrey Katzenberg e David Geffen para fazer frente às produções Disney, ainda toda poderosa e única reinante no mercado de animações da época. A música boa – sem aquele exagero que costuma provocar inquietação em crianças e bocejo nos adultos – pontua corretamente a história que se beneficiava do marketing bíblico, que sempre ajuda nestes casos.

Como alguém já disse, tudo está lá nas Sagradas Escrituras: aventura, sexo, magia, traição, heróis incansáveis e mocinhas espertas... tudo com aval das grandes congregações religiosas. E sempre há alguém disposto à transposição desses clássicos para a telona. Mas por que estava eu mais feliz do que quando assisti, por exemplo, Mulan (produção Disney do mesmo ano) só descobri depois, remexendo o baú de minhas memórias cinematográficas. Lembrei as diversas reconstituições bíblicas e da sociedade do Antigo Egito, cometidas pela sétima arte ao longo de seus mais de cem anos, e estavam lá Os Dez Mandamentos (Cecil B. de Mille, 1956) e Ben Hur (William Wyler, 1959), ambos com Charlton Heston no papel principal; além de Cleópatra (Joseph L. Mankiewicz, 1963) com Liz Taylor e seus improváveis olhos azuis para uma moradora da beira do Saara. Isso sem contar os inúmeros “jesuses cristos”... semitas brancos (?)1, inclusive dois de olhos claros (Jesus de Nazareth, Franco Zeffirelli de 1977, e Rei dos reis, Nicholas Ray de 1961). Então minha felicidade se justificou: nos personagens daquela animação, os desenhistas gastaram alguns tubos a mais de tinta escura para representar os egípcios – vizinhos dos etíopes na longínqua e mal conhecida África. Está certo que o Moisés da DreamWorks não é ainda nenhum

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protótipo de Denzel Washington, mas já representa passo à frente... No filme ninguém tinha olhos azuis e Ramsés era um negão legítimo – acho que vi um bem parecido jogando street ball no ultimo campeonato. E Zípora, com aquelas trancinhas – dreads ? – saindo pelas laterais do turbante? Que charme, mano! Pensei: quem sabe algum dia vejamos Morgan Freeman descendo Aquela Montanha com Aquelas Tábuas nos braços ou o Lázaro Ramos sendo crucificado (vamos, por favor, descontar a veia cômica do cara... estou tratando apenas de melanina). No início e no final, aliás muito no final – depois de todos os sete minutos de créditos, os diretores Brenda Chapman, Steve Hickner, Simon Wells informam suas intenções:

“E não se levantou mais, em Israel, “profeta algum como Moisés, a quem o Eterno apareceu face a face.” (Antigo Testamento – Deuteronômio – 34:10)

“A este enviou Deus como chefe e Libertador” (Novo Testamento – Atos – 7:35) “E menciona o relato de Moisés como citado no Livro. Ele foi, na verdade, um dos

escolhidos; ele foi um mensageiro e um profeta.” (O Sagrado AlCorão –Surah – 19:51)2 Durante todo o filme, portanto, devemos atentar para o detalhe, absolutamente

relevante, de que a produtora, que à época pertencia a judeus atuantes num mercado majoritariamente cristão (muitos até fundamentalistas...), pretendia fornecer entretenimento também para muçulmanos e demais habitantes do planeta – fossem gregos, troianos, egípcios, xintoístas, budistas, umbandistas ou ateus. Não existe caridade em Hollywood... O profeta Moisés é um herói de todos e quem apela para sua aventura invoca, em tom épico, o poder de divertir as famílias e lotar os cinemas.

Vamos nos lembrar também de que os negros hoje, nos EUA, perfazem uma parcela muito significativa do mercado consumidor de diversão e cultura. Se contarmos a população de origem hispânica, o segmento denominado “não-branco” aumenta. Mais: fora dos EUA e do circuito tradicional-ocidental há uma minoria dos que costumam ser identificados como caucasianos. Assim entendemos as intenções dos produtores que, aliás, entregam a interpretes negros (vários egressos da Motown) 3 a trilha sonora principal da película.

Outro fato histórico que merece menção é que a “Fuga do Egito”, a busca da “Terra Prometida”, constituiu uma sequência bíblica particularmente cara aos escravizados da América do Norte e seus descendentes e, até hoje, o blues “Let my people go” – gravado, ao longo do século XX, por diversos cantores da black music, como Ela Fitzgerald e Louis Armstrong – é um hit nas igrejas cristãs reformadas estadunidenses frequentadas por afroamericanos.

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Vamos ao filme É um musical muito bem arquitetado. Com pontuações musicais precisas e sempre

dentro do enredo. Aliás levou o Oscar de melhor canção por When you believe cantada, no evento de Los Angeles, por Mariah Carey e Withney Houston. As imagens também foram produzidas com esmero, algumas delas juntam-se a situações que os professores de História tentam transmitir a seus alunos e nem todo livro, didático ou paradidático, ajuda. Por isso, como professora, o tenho utilizado e sugerido como apoio em sala de aula.

A História básica todos sabem, aliás boa parte da humanidade conhece em detalhes: o líder judeu Moisés retira seu povo do Egito, da Terra da Escravidão, e o leva numa trajetória épica até a Terra Prometida, a Palestina. Está no Pentateuco4 e existem várias produções a respeito, mas aqui temos uma animação e isso marca o filme com descontração e quase afastamento do tom bíblico. Quem não tem conhecimento prévio do Êxodo poderá assisti-lo como a uma história qualquer de heróis, como Superman ou Homem-aranha. Exemplos: em A Múmia (The Mummy, Universal Pictures-EUA, 1999) aparecem as “pragas do Egito” e uma chuva de fogo; Jean Gray, personagem de X-Men 2 (X2: X-Men United, 20th Century Fox - EUA, 2003), também segura um lago inteirinho, com a força do pensamento, enquanto seus amigos escapam de uma inundação... e não falemos dos harry potters.

O Príncipe do Egito é dividido em duas partes. O tema principal da primeira é a juventude de Moisés; a amizade de Ramsés, que julgava ser seu legítimo irmão, sua vida fútil no palácio e o descompromisso com o povo, que julgava inferior, até sua tomada de consciência ao descobrir sua ascendência judaica e perceber que fazia parte da “escória” que aprendeu a desprezar desde criança, quando foi adotado pelo poder. “Apenas escravos” é uma expressão ouvida duas vezes, pronunciada pelo faraó-pai (primeira parte) e pelo faraó Ramsés (segunda parte), e encontra eco nas palavras de Moisés para Miriam, antes de sabê-la sua irmã: “vai pagar por sua insolência, escrava”. Zípora, quando aparece pela primeira vez, não passava de um objeto a ser usado e depois descartado, uma presa do deserto. Depois se saberá que é filha do sacerdote midianita5 Jetro e, portanto, também nobre, posto que as instituições políticas na Antiguidade estavam intimamente ligadas à religião. Mas, sequestrada e isolada dos seus, nada mais que uma escrava.

No período colonial brasileiro, um escravizado africano poderia ser, e vários foram, descendentes de reis e rainhas de África. A transformação do ser humano em mercadoria pode, aqui, ser tratado com a classe, bem como as diferenças entre a escravidão antiga e a escravidão mercantil (moderna). O Tráfico Transaariano (no

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período antigo e sustentado até mesmo até a contemporaneidade) e o Tráfico Transatlântico (no período moderno) possuem especificidades que devem ser abordadas em sala de aula. Notar e chamar a atenção dos alunos para o fato de que, apenas no período moderno, a escravização passa a ter uma marca racial (Moisés, filho de escravos, é confundido com um membro da família real... coisa impossível no Brasil colonial ou em qualquer outra parte da América que tenha recebido escravizados africanos sob jugo europeu).

A segunda parte do filme começa quando Moisés foge do Egito pela primeira vez, sozinho, após matar um feitor que maltratava um idoso. No deserto encontra um grupo de beduínos e sua futura família, aprende a trabalhar e valorizar as pessoas. Uma sequência interessante onde podemos observar as paisagens arenosas, as tempestades de vento, as pedras, as caravanas de camelos, os oásis e poços estrategicamente constituídos para descanso e abastecimento dos mercadores. É a hora de falar sobre os diversos povos que habitavam o deserto, nômades e semi-nômades, em contraste com a cultura sedentária representada pelos egípcios. Há um choque cultural, um período de readaptação (notar, no filme, o clipe que mostra isso). Armar tendas, pastorear rebanhos, economizar e valorizar a água escassa não eram situações que faziam parte da formação e do dia-a-dia de um jovem egípcio numa sociedade agrícola que produzia e armazenava excedentes, habitava construções fixas próximas a uma grande massa de água. As formas artísticas eram diferentes: enquanto afrescos decoravam as sólidas paredes de pedra dos grande templos e palácios egípcios, tapetes adornavam, com seus trançados exóticos, as tendas beduínas. Atentar para o fato de que a paisagem do deserto se modifica constantemente.

Aproveitando melhor o “lazer”

Para início de conversa, antes de assistir ao filme e iniciar o processo de análise de

seu conteúdo, é necessário situar os alunos historicamente. As primeiras civilizações do planeta se desenvolveram numa região denominada

Crescente Fértil, entre a Mesopotâmia (região entre os rios Eufrates e Tigre, onde hoje está o Iraque e o Irã) e o nordeste da África (ao longo do rio Nilo, hoje dividido entre Egito, Sudão e norte da Tanzânia e Oeste da Etiópia). Entre estes dois extremos está a Palestina (local de conflitos entre povos islâmicos e israelenses).

Oriente Médio. Regiões desérticas com oásis próximos de cursos de água. Neste momento é imprescindível a observação de mapas, o que se torna bom motivo para buscar a interdisciplinaridade, estabelecendo parcerias com colegas da Geografia e Artes. Inicialmente, isso pode ser trabalhado em sala de aula com mapas, livros

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didáticos e paradidáticos. Assim é possível ressaltar que duas civilizações que se desenvolveram na Antiguidade Histórica, a egípcia e a hebraica/judaica, continuam até hoje aparecendo no noticiário internacional por diversos motivos (políticos, econômicos, conflitos culturais...). Observar jornais, revistas e televisão ajudam os alunos a estabelecer relação e a perceber a necessidade do conhecimento histórico para entendimento das condições presentes.

Assistir a um filme em sala de aula – principalmente se for um “desenho animado” – pode parecer, para muitos alunos e professores, uma maneira de “matar” aula... Uma oportunidade de lazer. Mas é trabalho auxiliar do aprendizado e todos devem se conscientizar disso. Portanto, antes de ir à película, educadores e educandos realizarão uma pesquisa conjunta sobre o tema.

Por volta de 3000 a.C., aos poucos, as organizações sociais se tornam mais complexas. Os que antes viviam em pequenas comunidades nômades e seminômades passam por um processo de sedentarização motivada pelo domínio da agricultura. Núcleos populares cada vez maiores e mais complexos surgiram em função das novas necessidades geradas pelo conhecimento e domínio da agricultura, há a produção de excedentes, a necessidade de armazenagem, a valorização da segurança. É necessário mais que as tradicionais relações de parentesco e compadrio para garantir a sobrevivência do povo. A especialização das atividades e a divisão do trabalho, a organização social se torna mais complexa, surgem as hierarquias sociais. O poder político, religioso e das armas (exército, leis, normas, etc...) se impõem aos mais fracos, menos aptos – a maioria da população.

No Egito, o processo de centralização do poder se inicia por volta de 4000 a.C., quando grupos que já habitavam a região desde o período neolítico (pré-história) se organizam em nomos (comunidades que organizavam várias aldeias). O período dinástico (Império Egípcio) pode ser dividido em três períodos: Antigo Império (3200 a 2300 a.C., iniciado quando Menés, o primeiro faraó, centraliza o poder unificando os territórios do Alto Egito – ao sul, interior – e do Baixo Egito – ao norte, próximo ao delta em direção ao Mediterrâneo), Médio Império (2100 a 1580 a.C.) e Novo Império (1580 a 520 a.C., quando seu território foi ocupado pelos persas).

Os hebreus, por sua vez, eram originalmente nômades e viviam perto da cidade de Ur, na Mesopotâmia. Por volta de 2000 a.C. emigraram e se sedentarizaram na região da Palestina que era habitada pelos cananeus. Apesar de cortada pelo rio Jordão, Canaã era terra pouco fértil, pois a vazão do rio Jordão não permitia grandes obras de irrigação como ocorria no Egito e na Mesopotâmia. Os judeus, então, que eram pastores e, aos poucos, se tornaram agricultores, tiveram sua vida dificultada, o que motivou novamente seu deslocamento territorial. As tribos hebraicas, por volta de 1800

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a.C., vitimadas pela fome em razão de uma grande seca, migraram para o Egito – onde entraram na base da pirâmide social.

A cena inicial de O Príncipe do Egito impressiona: no tempo do chamado cativeiro egípcio (por volta de 1800 a 1300 a.C.), os hebreus trabalhavam em todo e qualquer serviço pesado e degradante e clamavam ao seu Deus por liberdade. Trabalhavam na construção de templos, palácios e pirâmides numa paisagem arenosa, o sol escaldante, os feitores estalando o chicote, a argamassa sendo pisada, os andaimes subindo... a imagem vai se afastando e se aproxima de uma vila (a periferia do lugar ou, como dizem os alunos, “a favela do povo daquela época”). Em meio a muita correria, soldados invadem casas em busca de crianças, enquanto uma família formada por mãe e três filhos (um deles bebê) se esgueira pelas vielas, se escondendo e fugindo em direção ao Rio... é o Nilo.

Importante fazer, aqui, os alunos notarem a exuberância de flora e fauna que habitava as adjacências desse rio. Na História, nos livros didáticos sempre, é comum dizer que o Egito foi uma dádiva do Nilo (expressão usada pela primeira vez por Heródoto, historiador grego ao se referir à região em destaque), mas é bom notar o trabalho humano despendido na construção dessa “dádiva”. O Nilo, periodicamente, transbordava deixando em sua passagem um humus fértil que possibilitava a manutenção da vida, as plantações e criações se beneficiavam disso. Mas coube à criatividade de uns e ao esforço físico de outros – até a morte, inclusive – a construção daquela civilização.

Diques foram construídos, para impedir que as cheias prejudicassem a vida destruindo as habitações, e canais de irrigação ao longo do Rio foram importantes para aproveitar, ao máximo, a oportunidade de produzir alimentos e criar animais6. Era uma sociedade de regadio, também chamada de hidráulica, como a mesopotâmica. Viviam num sistema denominado Modo de Produção Asiático, onde as terras – pertencentes ao Estado e controladas pelas elites – eram tratadas pela comunidade despossuída, ou seja, a maior parte da sociedade que, submetida aos interesses dos governantes, deveria pagar-lhes tributos em forma de trabalho e impostos. Esse regime de servidão coletiva era utilizado para tocar o trabalho na agricultura, no pastoreio e também nas grandes edificações que podiam levar décadas para serem concluídas.

Os escravos, em menor número, trabalhavam nas obras públicas – canais, templos, pirâmides – e tinham como origem os povos derrotados nas guerras ou pessoas que não tinham como pagar seus impostos e honrar seus compromissos. A população em geral habitava pequenas casas de junco ou madeira, equipadas com pouquíssimos mobiliários. Os mais ricos costumavam viver em habitações maiores, feitas de adobe, uma espécie de tijolo resultante da mistura do barro com areia e palha (no início da

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animação, os trabalhadores fazem isso, enquanto cantam, misturam com os pés água, areia e palha para as construções).

A comida era simples e saudável para os padrões da época, e até para os atuais: os egípcios se alimentavam à base de verduras, frutas e legumes, apreciavam lentilha, alface, grão de bico, cebola, alho, tâmara e fabricavam pães e cervejas, tudo fruto do plantio irrigado que realizavam ao longo do Nilo. Os que possuiam melhores condições financeiras complementavam as refeições com peixes e aves aquáticas.

Os egipcios usavam pouca roupa. É fácil imaginar o porquê vivendo o dia-a-dia à beira de um deserto... mais do que a vestimenta, eram as jóias e maquiagens que simbolizavam o respeito e a distinção social. Homens e mulheres faziam usos de adornos nos mais variados formatos. Festas e reuniões eram frequente e costumavam mobilizar os egipcios. Nas casas ricas era comum a realização de banquetes, onde um escravos se encarregavam de servir a comida, tocar músicas, dançar e presentear os convidados (no filme há dois exemplos: quando os jovens príncipes chegam atrasados para o banquete organizados pelos pais e quando Moisés retorna do deserto par exigir a liberdade de seu povo). A população também participava das várias festividades que aconteciam ao longo do ano, como as celebrações em homenagem aos deuses e as festas agrícolas para comemorar a semeadura ou da colheita, quando homens e mulheres comiam, bebiam, tocavam instrumentos e dançavam.

O Estado se confundia com o faraó que, ao mesmo tempo, era considerado rei e deus. Na animação, tanto o faraó pai quanto o seu herdeiro Ramsés dizem, em diferentes momentos, “Eu sou a estrela da manhã e da noite” ou “é verdade o que eu disser que é verdade”. As terras férteis pertenciam a ele que as distribuía entre os nobres da corte, sacerdotes e outros membros da pequena elite egípcia, como os escribas7 e chefes militares – gente que garantia a manutenção do poder da família real e fazia o braço do faraó se estender além de suas vistas controlando, pela força ou pelo discurso, o comércio, o pagamento de impostos e taxas, a organização do trabalho coletivo. A máquina do Estado também se encarregava de armazenar a produção excedente para, na época da seca, garantir uma ração mínima para que a população não perecesse.

No filme, a religiosidade egípcia é representada por dois personagens atrapalhados e até cruéis apesar de sua comicidade. O sacerdotes Hotep e Huy vivem no palácio, usufruem da corte e, principalmente, dão segurança ao faraó em suas decisões. O clipe em que cantam “nossos deuses podem mais” (versão brasileira de “Playing with the big boys now”) demonstra a técnica de reforço de um discurso que contribuiu muito para a manutenção da coesão e crença do povo egípcio durante tantos séculos em torno do soberano-deus.

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O Egito, monarquia teocrática, vivia politicamente da interdependência entre Estado e Religião. Os sacerdotes garantiam o discurso que apoiava o poder e, por sua vez, o rei garantia a força que sustentava a religião. O filme, porém, ao mostrar Hotep e Huy descaracteriza o verdadeiro papel dos sacerdotes no Antigo Egito. A medicina egípcia, famosa em todo o mundo antigo, muito se desenvolveu a partir de práticas religiosas8 como a mumificação9, assim se descobriu muito sobre anatomia humana. Os primeiros médicos eram os próprios sacerdotes, que investigavam sobre as doenças como um recado dos deuses aos homens e realizavam a cura com receitas, de caráter mágico ou sobrenatural, mas sempre acompanhada de alguma beberagem elaborada a partir de substâncias vegetais, animais ou minerais encontrados na região.

A farmacopéia egípcia se destacou muito. Para todos os tipos de doenças conhecidas na época os egípcios preparavam sedativos, laxantes, calmantes. Questões relativas à higiene pessoal ou à saúde pública também preocupavam os médicos do antigo Egito que, muitas vezes, enviados pelo faraó iam a regiões afastadas dos grandes centros para instruir os camponeses a respeito da importância de se tomar um banho diário ou recomendar que enterrassem os excrementos a fim de evitar doenças. Chegaram a ser construídas escolas de medicina e havia, inclusive, uma tendência à especialização: os “médicos do nariz”, os que se ocupavam das vias respiratórias; os “médicos das extremidades”, aqueles que tratavam do aparelho digestivo; etc...

A religião foi um dos aspectos mais importantes de toda a civilização egípcia. Já no início da sua organização, a população encarava os fatos da natureza – como as cheias do Nilo, as secas ou um ataque de animais, por exemplo – como algo místico. Era uma crença politeísta (vários deuses)10 e antropozoomórfica, isto é, os deuses eram representados por figuras meio humanas e meio animais, com forte vínculo com os diversos aspectos do cotidiano. Ao longo dos séculos, os egípcios acrescentaram milhares de divindades em seu panteão. Até mesmo figuras históricas podiam ser deificados pela população, como o arquiteto e médico Imhotep, considerado o deus dos escribas, da ciência e das artes.

Havia também Osíris, deus responsável pelo julgamento das pessoas depois da morte; sua irmã e esposa Ísis, protetora da magia e garantidora das colheitas anuais às margens do rio Nilo; Maat, deusa da lei, da justiça e da verdade; Hórus, o deus do céu e dos faraós e, um dos mais conhecidos, Amon que, chamado o “deus dos deuses”, era considerado o pai dos faraós. Finalizando, levantamos a questão do papel feminino na antiguidade egípcia. Das civilizações da Antiguidade era uma das que mais valorizaram a mulher, situação refletida na religiosidade onde observa-se, além das divindades já citadas acima, outras ligadas à dignidade, à fertilidade, ao amor, ao conhecimento, como a figura de Sechat, a senhora das bibliotecas.

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Na vida civil as mulheres também se destacavam como administradoras e sacerdotisas, escribas e comerciantes; algumas chegaram a ensinar medicina. Tinham direito de possuir escravos, propriedades e outros bens. Podiam, inclusive, escolher o marido independentemente da vontade dos pais e adotar crianças – situação interessnte para o nosso trabalho, pois foi a mulher do faraó no filme analisado (na versão bíblica, a filha) quem recolhe a criança-Moisés nas águas do Nilo e a leva para a família.

Outro fato importante é que um faraó chegava ao trono por meio de uma linhagem feminina: ao se casar com uma herdeira, ele conquistava o direito de se tornar faraó. Por isso, tornou-se comum, entre os governantes do Egito antigo, o casamento consaguíneo, até mesmo entre irmãos ou de pai e filha. Ainda assim, algumas mulheres chegaram a assumir a condição de faraó. Entre 1473 a.C. e 1458 a.C., por exemplo, o Egito foi comandado por Hatshepsut, que governou com plenos poderes.

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www.midiaetnia.com.br Uma Empresa fundada por Mulheres Negras Brasileiras.