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APOSTILA DE PSICOLOGIA GERAL - BOCK, A. M. M. A Psicologia ou as Psicologias. In: ______. Psicologias – uma introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 15-30. PSICOLOGIAS “De psicólogo e louco todo mundo tem um pouco” O ditado não é bem esse (“de médico e de louco todo mundo tem um pouco”), mas serve perfeitamente para ilustrar que as pessoas, em geral, têm a “sua psicologia”; seja para vender um produto, conquistar alguém, para entender as pessoas... Será essa a psicologia dos psicólogos? Certamente não. A psicologia usada no cotidiano pelas pessoas em geral é denominada psicologia do senso comum. Não deixa de ser uma psicologia, mas denota um domínio, mesmo que pequeno e superficial, do conhecimento acumulado pela Psicologia científica. É a Psicologia científica que vamos estudar, antes disso vamos entender a relação de ciência/senso comum. Os acontecimentos do dia-a-dia denunciam, a todo tempo, que estamos vivos; e a ciência procura compreender, elucidar e alterar esse cotidiano, a partir de seu estudo sistemático. Fazendo ciência, baseamo-nos na realidade cotidiana e pensamos sobre ela. Afastamo-nos, abstraímo-nos, dela para refletir e conhecer além de suas aparências, transformando-a em objeto de investigação. Ocorre que, mesmo o mais especializado dos cientistas, quando sai de seu laboratório, está submetido à dinâmica do cotidiano e, assim, vai também acumulando conhecimento intuitivo, espontâneo, de tentativas e erros. Para atravessar uma rua movimentada, por exemplo, não precisamos usar uma máquina de calcular ou uma fita métrica, sabemos perfeitamente medir a distância e a velocidade do automóvel que vem em nossa direção.

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APOSTILA DE PSICOLOGIA GERAL

- BOCK, A. M. M. A Psicologia ou as Psicologias. In: ______. Psicologias – uma introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 15-30.

PSICOLOGIAS

“De psicólogo e louco todo mundo tem um pouco”

O ditado não é bem esse (“de médico e de louco todo mundo tem um pouco”), mas serve perfeitamente para ilustrar que as pessoas, em geral, têm a “sua psicologia”; seja para vender um produto, conquistar alguém, para entender as pessoas...

Será essa a psicologia dos psicólogos?

Certamente não. A psicologia usada no cotidiano pelas pessoas em geral é denominada psicologia do senso comum. Não deixa de ser uma psicologia, mas denota um domínio, mesmo que pequeno e superficial, do conhecimento acumulado pela Psicologia científica.

É a Psicologia científica que vamos estudar, antes disso vamos entender a relação de ciência/senso comum.

Os acontecimentos do dia-a-dia denunciam, a todo tempo, que estamos vivos; e a ciência procura compreender, elucidar e alterar esse cotidiano, a partir de seu estudo sistemático.

Fazendo ciência, baseamo-nos na realidade cotidiana e pensamos sobre ela. Afastamo-nos, abstraímo-nos, dela para refletir e conhecer além de suas aparências, transformando-a em objeto de investigação.

Ocorre que, mesmo o mais especializado dos cientistas, quando sai de seu laboratório, está submetido à dinâmica do cotidiano e, assim, vai também acumulando conhecimento intuitivo, espontâneo, de tentativas e erros.

Para atravessar uma rua movimentada, por exemplo, não precisamos usar uma máquina de calcular ou uma fita métrica, sabemos perfeitamente medir a distância e a velocidade do automóvel que vem em nossa direção.

A esse tipo de conhecimento que vamos acumulando chamamos senso comum.

A necessidade desse conhecimento espontâneo parece-nos óbvia. Imagine termos que descobrir diariamente que as coisas tendem a cair e não a subir, que para fazer um aparelho funcionar precisamos de eletricidade, que um automóvel em velocidade vai se aproximar rapidamente de nós...

O senso comum, na produção desse tipo de conhecimento, percorre um caminho que vai do hábito à tradição, a qual, quando estabelecida, passa de geração para geração.

É nessa tentativa de facilitar o dia-a-dia que o senso comum produz suas próprias “teorias”.

O conhecimento do senso comum, além de sua produção característica, acaba por se apropriar, de uma maneira muito singular, de conhecimentos produzidos pelos outros setores da produção do saber humano. O senso comum mistura e recicla esses outros

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saberes, muito mais especializados, e os reduz a um tipo de teoria simplificada, produzindo uma determinada visão-de-mundo.

É claro que isso não ocorre muito rapidamente e nunca um conhecimento mais sofisticado e especializado é absorvido totalmente.

Quando utilizamos termos como ‘rapaz complexado’, ‘menina histérica’, estamos usando termos da Psicologia científica. Não nos preocupamos em defini-los e nem por isso deixamos de ser entendidos pelo outro. Podemos até estarmos próximos do conceito científico, mas, na maioria das vezes, nem o sabemos.

Por sua vez, somente esse tipo de conhecimento não seria suficiente para as exigências de desenvolvimento da humanidade. Somente esse tipo de conhecimento intuitivo seria pouco para o domínio da natureza. Os gregos, por volta do séc 4 a.C. já dominavam complicados cálculos matemáticos. Podemos destacar que esse tipo de conhecimento foi se especializando cada vez mais, até conseguir levar o homem à Lua. A este tipo de conhecimento denominamos ciência.

Contudo, essas não são as únicas formas de conhecimento que o homem possui para descobrir e interpretar a realidade. Podemos, ainda, ressaltar a filosofia, a partir das especulações sobre a origem e o significado da existência humana; a religião, que formula um conjunto de pensamentos sobre a origem do homem, seus mistérios, princípios morais; a arte, conhecimento que traduz emoção e sensibilidade.

Agora podemos enfocar a Psicologia científica, começando a delimitar melhor o que vem a ser ciência.

A ciência pode ser definida como o conjunto de conhecimentos sobre fatos e aspectos da realidade (objeto de estudo), expresso por meio de linguagem precisa e rigorosa. Para tanto, esses conhecimentos são obtidos de forma sistemática e controlada para possibilitar a verificação de sua validade e permitir sua continuidade e avanço (seja negando, reafirmando ou descobrindo novos aspectos).

Além disso, a ciência aspira à objetividade. Suas conclusões devem ser passíveis de verificação e isentas de emoção para tornarem-se válidas para todos.

Assim, esse conjunto de características, possibilita denominarmos de científico um conjunto de conhecimentos.

A partir daí, qual, então, é o objeto de estudo da Psicologia?

Como ciência humana, a Psicologia estuda o homem. No entanto, isso não a especifica, uma vez que a Antropologia, a Economia, a Sociologia, também estudam o homem.

Se perguntarmos a um psicólogo comportamentalista, ele dirá que o objeto da psicologia é o comportamento humano; se perguntarmos a um psicanalista ele dirá que é o inconsciente. Outros dirão que é a consciência humana, e outros, a personalidade.

Essa diversidade de objetos é explicada pelo fato de este campo do conhecimento ter-se constituído como área científica somente recentemente (final do século 19), a despeito de existir há muito tempo na Filosofia enquanto preocupação humana.

Outro fato importante que contribui para dificultar tal definição de objeto é que o cientista, o pesquisador, se confunde com o objeto a ser pesquisado.

Sendo assim, a concepção de homem que o pesquisador traz consigo influencia, inevitavelmente, a sua pesquisa em Psicologia.

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Para o filósofo francês, Rousseau, por exemplo, o homem nasce puro e a sociedade o corrompe; cabendo ao filósofo reencontrar essa pureza perdida.

Outros, no entanto, vêem o homem como ser abstrato, com características definidas e que não mudam, a despeito das condições sociais a que estejam submetidos.

Nós, professores desse curso, vemos o homem como ser datado, determinado pelas condições históricas e sociais que o cercam.

Conforme a concepção de homem adotada, teremos uma concepção de objeto que combine com ela. No caso da Psicologia, esta ciência estuda os “diversos homens” concebidos pelo conjunto social, caracterizando-se por uma diversidade de objetos de estudo.

A superação de tal impasse levará a uma Psicologia que enquadre esse homem como ser concreto e multideterminado. Esse é o papel de uma ciência crítica, da compreensão, da comunicação e do encontro do homem com o mundo em que vive, já que o homem que compreende a História também compreende a si mesmo, e o homem que compreende a si mesmo pode compreender o engendramento do mundo e criar novas rotas e utopias.

Assim, podemos dizer que não existe uma Psicologia, mas Ciências Psicológicas embrionárias e em desenvolvimento.

De qualquer maneira, a forma particular e específica de contribuição da Psicologia para a compreensão da totalidade da vida humana é o estudo da subjetividade. Logo, a matéria prima da psicologia é o homem em todas as suas expressões, as visíveis (nosso comportamento) e as invisíveis (nossos sentimentos), as singulares (porque somos o que somos) e as genéricas (porque somos todos assim) – é o homem-corpo, homem-pensamento, homem-afeto, homem-ação e tudo isso está sintetizado no termo subjetividade.

A subjetividade é o mundo das idéias, significados e emoções construído internamente pelo sujeito a partir de suas relações sociais, de suas vivências e de sua constituição biológica; é, também, fonte de suas manifestações afetivas e comportamentais.

A subjetividade é a maneira de sentir, pensar, fantasiar, sonhar, amar e fazer de cada um. É o que constitui o nosso modo de ser.

Entretanto, a síntese que a subjetividade representa não é inata ao indivíduo. Ele a constrói aos poucos, apropriando-se do material do mundo social e cultural, e faz isso ao mesmo tempo em que atua sobre este mundo, ou seja, é ativo na sua construção. Criando e transformando o mundo (externo), o homem constrói e transforma a si próprio.

De um certo modo, podemos dizer que a subjetividade não só é fabricada, produzida, moldada, mas também automoldável, ou seja, o homem pode promover novas formas de subjetividade recusando a massificação que exclui e estigmatiza o diferente, a aceitação social condicionada ao consumo, a medicalização do sofrimento...

Nesse sentido, cada homem pode participar na construção do seu destino e da sua coletividade.

Assim, estudar a subjetividade é tentar compreender novos modos de ser, cuja fabricação é social e histórica.

O movimento e a transformação são os elementos básicos desse processo, como expressa pertinentemente o escritor Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas:

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“O importante e bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam”.

- BOCK, A. M. M. A evolução da Ciência Psicológica. In: ______. Psicologias – uma introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 31-44.

A HISTÓRIA DA PSICOLOGIA

Para compreender a diversidade com que a Psicologia se apresenta hoje, é indispensável recuperar sua história. A história de sua construção está ligada, em cada momento histórico, às exigências de conhecimento da humanidade, às demais áreas do conhecimento humano e aos novos desafios colocados pela realidade econômica e social e pela insaciável necessidade do homem de compreender a si mesmo.

É entre os filósofos gregos que surge a primeira tentativa de sistematizar uma Psicologia. O próprio termo vem do grego psyque, que significa alma, e de logos, que significa razão. Portanto, etimologicamente, psicologia significa “estudo da alma”.

O filósofo grego Platão (427-347 a.C.), discípulo de Sócrates, postulava a imortalidade da alma e a concebia separada do corpo; por outro lado, Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, afirmava a mortalidade da alma e sua relação de pertencimento ao corpo.

E foram esses filósofos que influenciaram Santo Agostinho (354-430) e São Tomás de Aquino (1225-1274) já na época da era cristã. Falar de Psicologia nesse período é relacioná-la ao conhecimento religioso, já que, ao lado do poder econômico e político, a Igreja Católica também monopolizava o saber e, conseqüentemente, o estudo do psiquismo.

Santo Agostinho também fazia a cisão entre alma e corpo, mas considerava a alma uma prova de manifestação divina no homem.

São Tomás de Aquino - vivendo num período que prenunciava a ruptura da Igreja Católica, o aparecimento do Protestantismo e numa época que se preparava para a transição para o capitalismo - considera que o homem, na sua essência, busca a perfeição através de sua existência, afirmando que a busca de perfeição pelo homem seria a busca de Deus.

Mas é na Renascença, com o filósofo René Descartes (1596-1659) que é postulada a separação entre mente e corpo, o que permitirá o avanço da ciência com o estudo do corpo humano morto.

No século 19, com o crescimento da nova ordem econômica: o capitalismo, faz-se necessário ainda mais o avanço da ciência, que deve dar respostas e soluções práticas no campo da técnica.

Em meados desse século, os problemas e temas da Psicologia até então estudados por filósofos, passam a ser também investigados pelas especialidades da Medicina: Fisiologia, Neuroanatomia e Neurofisiologia, o que, aos poucos, vai lhe dando o status de ciência.

A psicologia científica nasce quando, de acordo com os padrões de ciência do século 19, wilhelm Wundt (1832-1926) preconiza a Psicologia "sem alma". O conhecimento

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tido como científico passa então a ser aquele produzido em laboratórios, com o uso de instrumentos de observação e medição.

Embora a Psicologia científica tenha nascido na Alemanha, é nos Estados Unidos que ela encontra campo para um rápido crescimento, resultado do grande avanço econômico que colocou os Estados Unidos na vanguarda do sistema capitalista. É ali que se constituem três escolas – Associacionismo, Estruturalismo e Funcionalismo – substituídas, no século 20, por novas teorias.

Funcionalismo: para a escola funcionalista, importa responder “o que fazem os homens” e “por que fazem”. Para responder a isto, W. James elege a consciência como o centro de suas preocupações e busca a compreensão de seu funcionamento, na medida em que o homem a usa para adaptar-se ao meio.

Estruturalismo: está preocupado com a compreensão do mesmo fenômeno que o Funcionalismo: a consciência. Mas, diferentemente, irá estudá-la em seus aspectos estruturais, isto é, os estados elementares da consciência como estrutura do sistema nervoso central.

Associacinismo: seu principal representante é Edward L. Thondike, e sua importância está em ter sido o formulador de uma primeira teoria de aprendizagem na Psicologia. O termo Associacionismo origina-se da concepção de que a aprendizagem se dá por um processo de associação das idéias – das mais simples às mais complexas. Assim, para aprender uma coisa complexa, a pessoa precisaria primeiro aprender as idéias mais simples, que a ela estariam associadas. Torndike formulou a Lei do Efeito, que seria de grande utilidade para a Psicologia Comportamentalista. De acordo com essa lei, todo o comportamento de um organismo vivo tende a se repetir, se nós o recompensarmos (efeito) assim que ele o emitir. Por outro lado, o comportamento tenderá a não acontecer se o organismo for castigado (efeito) após sua ocorrência. E, pela Lei do Efeito, o organismo irá associar essas situações com outras semelhantes.

As três mais importantes tendências teóricas da psicologia neste século são consideradas por inúmeros autores como sendo o Behaviorismo, a Gestalt e a Psicanálise.

O Behaviorismo, que nasce com Watson e tem um desenvolvimento grande nos Estados Unidos, em função de suas aplicações práticas, tornou-se importante por ter definido o fato psicológico, de modo concreto, a partir da noção de comportamento.

A Gestalt, que tem seu berço na Europa, surge como uma negação da fragmentação das ações e processos humanos, realizada pelas tendências da psicologia científica do século 19., postulando a necessidade de se compreender o homem como uma totalidade. A Gestalt é a tendência teórica mais ligada à filosofia.   

A Psicanálise, que nasce com Freud, na Áustria, a partir da prática médica, recupera para a psicologia a importância da afetividade e postula o inconsciente como objeto de estudo, quebrando a tradição da psicologia como ciência da consciência e da razão.

- BOCK, A. M. M. O Behaviorismo. In: ______. Psicologias – uma introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p.45-58.

BEHAVIORISMO

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O termo Behaviorismo foi inaugurado pelo americano John B. Watson, em 1913. O termo inglês behavior significa “comportamento”; por isso, para denominar essa tendência teórica, usamos Bahaviorismo e, também, Comportamentalismo, Teoria Comportamental, Análise Experimental do Comportamento, Análise do Comportamento.

Watson, postulando o comportamento como objeto da Psicologia, dava a esta ciência a consistência que os psicólogos da época vinham buscando: um objeto observável, mensurável, cujos experimentos poderiam ser reproduzidos em diferentes condições e sujeitos. Essas características foram importantes para que a Psicologia alcançasse o status de ciência, rompendo definitivamente com a sua tradição filosófica.

Watson buscava a construção de uma Psicologia sem alma e sem mente, livre de conceitos mentalistas e de métodos subjetivos, e que tivesse a capacidade de prever e controlar.

Apesar de colocar o “comportamento” como objeto da Psicologia, o Behaviorismo foi, desde Watson, modificando o sentido do termo. Hoje, não se entende comportamento como uma ação isolada de um sujeito, mas, sim, como uma interação entre aquilo que o sujeito faz e o ambiente onde o seu “fazer” acontece. Portanto, o Behaviorismo dedica-se ao estudo das interações entre o indivíduo e o ambiente, entre as ações do indivíduo (suas respostas) e o ambiente (as estimulações). É o homem tomado como produto e produtor das interações.

O mais importante dos behavioristas que sucedem Watson é B. F. Skinner (1904-1990).

A base da corrente skinneriana está na formula cão do comportamento operante. Antes, vamos definir comportamento reflexo ou respondente.

Comportamento respondente ou reflexo é o que usualmente chamamos de não-voluntário e inclui as respostas eliciadas (produzidas) por estímulos antecedentes do ambiente. Como exemplo, podemos citar a contração das pupilas (resposta incondicionada) sob a incidência de luz forte (estímulo incondicionado).

Interações desse tipo também podem ser provocadas por estímulos que, originalmente, não eliciavam respostas em determinado organismo. Quando tais estímulos são temporalmente pareados com estímulos eliciadores podem, em certas condições, eliciar respostas semelhante às destes. A essas novas interações chamamos também de reflexos, que agora são condicionados (aprendidos) devido a uma história de pareamento, o qual levou o organismo a responder a estímulos que antes não respondia.

Reflexos Condicionados

A noção de reflexo condicionado foi construída por obra do acaso. Para estudar as glândulas digestivas de cães, Pavlov inventou um método de exposição cirúrgica no qual as secreções digestivas, como a saliva, poderiam ser coletadas, observadas e medidas fora do corpo do animal. Para estimular a produção de saliva, colocava comida na boca do animal, que era mantido acordado. Entretanto, com o tempo, começou a notar que os Càes tendiam a salivar mesmo antes de terem o contato direto do alimento (estímulo) com a boca. Percebeu que o animal salivava quando via a pessoa que costumava trazer a comida para a sala de cirurgia ou, mesmo, em outros momentos, quando ouvia seus passos. Pavlov considerou que se isso ocorria era porque esses outros estímulos (a visão do assistente, os sons de seus passos) tinham sido associados à ingestão de alimento. Depois de alguns estudos definiu como reflexo incondicionado ou inato uma resposta reflexa a um determinado estímulo, sem que

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tivesse sido, portanto, necessário um período especial de aprendizagem prévia (salivar com a comida na boca). Salivar diante da visão do assistente ou de seus passos, ou mesmo, diante da visão do próprio alimento não é uma resposta inata mas que tem que ser aprendida. Chamou-a de reflexo condicionado porque dependia de uma conexão entre a visão da comida e sua subseqüente ingestão, ou a ela estava condicionada.

Um experimento típico que realizava era o seguinte: Apresentava o estímulo condicionado ao animal (uma luz acesa por exemplo). Imediatamente apresentava o estímulo não condicionado ( a comida). Depois de sucessivas experimentações pareando luz e comida, o animal salivava diante da luz sem a presença do alimento. O animal estava, então, condicionado a responder diante de estímulos não condicionados (como a luz). Concluiu que o reforço era necessário para que a aprendizagem ocorresse.

Pavlov e seus associados estudaram, na formação da resposta condicionada, fenômenos correlatos como o reforço, a extinção, a generalização, a discriminação e o condicionamento de ordem superior, todos termos muito conhecidos na Psicologia atual.

Skinner começou o estudo do comportamento pelo comportamento respondente e no desenvolvimento do seu trabalho teorizou sobre um outro tipo de relação do indivíduo com seu ambiente, a qual viria a ser nova unidade de análise de sua ciência: o comportamento operante.

Comportamento operante é o comportamento voluntário e abrange uma quantidade muito maior da atividade humana – desde os comportamentos do bebê de balbuciar, até os comportamentos mais sofisticados que o adulto apresenta. O comportamento operante diz Keller “inclui todos os movimentos de um organismo dos quais se possa dizer que, em algum momento, têm um efeito sobre ou fazem algo ao mundo em redor. O comportamento operante opera sobre o mundo, por assim dizer, quer direta, quer indiretamente”. Ler este texto, namorar, tocar violão... são todos exemplos de comportamento operante. O condicionamento do comportamento operante tem seus fundamentos na Lei de Efeito, de Thorndike.

A idéia é de que a aprendizagem de uma ação apropriada ou operante pode ser reforçada – fortalecida – se a ação for seguida de uma conseqüência agradável. Isto aumenta a probabilidade da ação ocorrer novamente. No condicionamento operante, o reforçamento pode ser positivo ou negativo. Se positivo, a ação é diretamente recompensada, aumenta a probabilidade futura da resposta que o produz, se negativo, ela é indiretamente recompensada pela remoção ou afastamento de algo desagradável, aumenta a probabilidade da resposta que o remove ou atenua.

Outros processos foram sendo formulados pela análise Experimental do comportamento, como a extinção e a punição.

Extinção é um procedimento no qual uma resposta deixa abruptamente de ser reforçada. Como conseqüência, a resposta diminuirá de freqüência e até mesmo poderá deixar de ser emitida.

O tempo necessário para que a resposta deixe de ser emitida dependerá da história e do valor do reforço envolvido.

Punição é outro procedimento importante que envolve a conseqüenciação de uma resposta quando há apresentação de um estímulo aversivo ou remoção de um reforçador positivo presente.

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Os dados de pesquisa mostram que a supressão do comportamento punido só é definitiva se a punição for extremamente intensa, isto porque as razões que levaram à ação – que se pune – não são alteradas com a punição.

Punir ações leva à supressão temporária de resposta sem, contudo, alterar a motivação.

- BOCK, A. M. M. A Gestalt. In: ______. Psicologias – uma introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 59-69.

GESTALT

A Psicologia da Gestalt é uma das tendências teóricas mais coerentes e coesas da história da Psicologia. Seus articuladores preocuparam-se em construir não só uma teoria consistente, mas também uma base metodológica forte, que garantisse a consistência teórica.

Gestalt é um termo alemão de difícil tradução, o mais próximo em português seria forma ou configuração.

Iniciou-se com estudos de Ernst Mach (1838-1916), físico, e Christian Von Ehrenfels (1859-1932), filósofo e psicólogo, e teve continuidade com Max Wertheimer (1880-1943), Wolfgang Köhler (1887-1967) e Kurt Koffka (1886-1941).

Os estudos iniciaram pela percepção e sensação do movimento. Os gestaltistas estavam preocupados em compreender quais os processos psicológicos envolvidos na ilusão de ótica, quando o estímulo físico é percebido pelo sujeito como uma forma diferente da que ele tem na realidade.

Ex.: a sensação de movimento que temos no cinema, ao passo que uma fita cinematográfica é composta de fotogramas estáticos.

A percepção é o ponto de partida e também um dos temas centrais dessa teoria.os experimentos com percepção levaram os teóricos da Gestalt ao questionamento de um princípio implícito na teoria behaviorista – que há relação de causa e efeito entre o estímulo e a resposta – porque para os gestaltistas, entre o estímulo que o meio fornece e a resposta do indivíduo, encontra-se o processo de percepção. O que o indivíduo percebe e como percebe são achados importantes para a compreensão do comportamento humano.

Tanto a Gestalt como o Behaviorismo definem a Psicologia como a ciência que estuda o comportamento. No entanto, assumem diferentes posições diante do mesmo objeto.

A Gestalt critica o Behaviorismo por considerar que o comportamento, quando estudado de maneira isolada de um contexto mais amplo, pode perder seu significado (o seu entendimento) para o psicólogo.

Os gestaltistas levam em consideração as condições que alteram a percepção do estímulo.

A maneira como percebemos um estímulo irá desencadear nosso comportamento.

Se ocorrer, por exemplo, de cumprimentarmos uma pessoa à distância e ao chegarmos mais perto depararmos com um atônito desconhecido, vamos interpretar que

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cometemos um ‘erro’ de percepção. No entanto, no momento em que confundimos a pessoa, estávamos “de fato” cumprimentando um amigo.

A nossa percepção do estímulo em determinadas condições ambientais é mediatizada pela forma como interpretamos o conteúdo percebido.

Se nos elementos percebidos não há equilíbrio, simetria, estabilidade e simplicidade, não alcançaremos a boa-forma, que supera a ilusão de ótica.

Uma boa-forma permite a relação figura-fundo, sua separação. Quando isso não ocorre, torna-se difícil distinguir o que é figura e o que é fundo, como nos exemplos abaixo:

O conjunto de estímulos determinantes do comportamento é denominado meio ou meio ambiental. São conhecidos dois tipos de meios: meio geográfico e meio comportamental.

O meio geográfico é o meio enquanto tal, o meio físico em termos objetivos.

O meio comportamental é o meio resultante da interação do indivíduo com o meio físico e implica a interpretação desse meio através das forças que regem a percepção (equilíbrio, simetria, estabilidade e simplicidade).

No exemplo do cumprimento, a pessoa cumprimentada era um desconhecido, se só tivéssemos acesso ao meio geográfico. No entanto, no momento de um encontro casual (no trânsito em movimento, por exemplo) fomos levados a uma interpretação diferente da realidade, confundindo com uma pessoa conhecida. Esta interpretação subjetiva, particular, da realidade, criada por nossa mente, é o meio comportamental. Logo, naturalmente, nosso comportamento é desencadeado pela percepção do meio comportamental.

Ainda com esse exemplo, podemos destacar que houve também uma tendência a estabelecer a unidade das semelhanças entre as duas pessoas, mais que suas diferenças. Essa tendência a juntar os elementos é o que a Gestalt denomina de força do campo psicológico.

O campo psicológico é entendido como um campo de força que nos leva a procurar a boa-forma. Tem a tendência que garante a busca da melhor forma possível em situações que não estão muito estruturadas.

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Ocorre de acordo com os princípios da proximidade, semelhança e fechamento.

Kurt Lewin (1890-1947), que trabalhou durante dez anos com Wertheimer, Koffka e Köhler, parte da teoria da Gestalt para, ainda, construir um novo e genuíno conhecimento: a Teoria de Campo.

O principal conceito de Lewin é o do espaço vital, que ele define como “a totalidade dos fatos que determinam o comportamento do indivíduo num certo momento”; e concebe como campo psicológico, o que nos interessa, como o espaço de vida considerado dinamicamente, onde se levam em conta não somente o indivíduo e o meio, mas também a totalidade dos fatos coexistentes e mutuamente interdependentes: a

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percepção, mas também as características da personalidade do indivíduo, componentes emocionais ligados ao grupo e à própria situação vivida, assim como a situações passadas e que estejam ligadas ao acontecimento, na forma em que são representadas no espaço de vida atual do indivíduo.

- BOCK, A. M. M. A Psicanálise. In: ______. Psicologias – uma introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 70-84.

PSICANÁLISE

As teorias científicas são produtos históricos criados por homens concretos, que vivem o seu tempo e contribuem ou alteram o desenvolvimento do conhecimento.

Sigmund Freud (1856-1939) foi um médico vienense que alterou, radicalmente, o modo de pensar a vida psíquica.

Ousou colocar os “processos misteriosos” do psiquismo: as fantasias, os sonhos, os esquecimentos, a interioridade do homem, como problemas científicos.

A investigação sistemática desses problemas levou à criação da Psicanálise.

O termo psicanálise é usado para se referir a uma teoria, a um método de investigação e a uma prática profissional.

Freud publicou uma extensa obra relatando suas descobertas e formulando leis gerais sobre a estrutura e o funcionamento da psique humana.

A psicanálise, enquanto método de investigação, caracteriza-se pelo método interpretativo, que busca o significado oculto daquilo que é manifesto por meio de ações e palavras ou pelas produções imaginárias, como os sonhos, os delírios, as associações livres, os atos falhos.

A prática profissional refere-se à forma de tratamento – a Análise – que busca o autoconhecimento ou a cura, que ocorre através desse autoconhecimento.

Atualmente, é utilizada como base para psicoterapias, aconselhamento, orientação; é aplicada em trabalho com grupos, instituições.

Especializado em Psiquiatria, Freud clinicava utilizando a sugestão hipnótica (e conseqüente liberação das reações emotivas associadas ao evento traumático) como principal instrumento de trabalho na eliminação dos sintomas dos distúrbios nervosos.

Aos poucos, abandonou a hipnose e desenvolveu a técnica da ‘concentração’, na qual a rememoração sistemática era feita por meio da conversação normal.

Por fim, abandona as perguntas e a direção da sessão para se confiar por completo à fala desordenada do paciente.

Passou a observar que, muitas vezes, os pacientes ficavam embaraçados ou envergonhados com algumas idéias ou imagens que lhes ocorriam. A essa força psíquica que se opunha a tornar consciente, a revelar um pensamento, Freud denominou resistência.

E chamou de repressão o processo psíquico que visa encobrir, fazer desaparecer da consciência, uma idéia ou representação insuportável e dolorosa que está na origem do sintoma.

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Esses conteúdos psíquicos localizam-se no inconsciente.

Antes, definiremos o sintoma: é uma produção, quer seja um comportamento, quer seja um pensamento, resultante de um conflito psíquico entre o desejo e os mecanismos de defesa. O sintoma, ao mesmo que sinaliza, busca encobrir um conflito, substituir a satisfação do desejo. Ele é ou pode ser o ponto de partida da investigação psicanalítica na tentativa de tentar descobrir os processos psíquicos encobertos que determinam sua formação. Os sintomas da paciente Ana O. eram a paralisia e os distúrbios do pensamento. Hoje, o sintoma da colega da sala de aula é recusar-se a comer.

Em 1900, no livro A interpretação dos sonhos, Freud apresenta a primeira concepção sobre a estrutura e funcionamento da personalidade. Essa teoria refere-se à existência de três sistemas ou instâncias psíquicas:

Inconsciente: exprime o “conjunto dos conteúdos não presentes no campo atual da consciência”. É constituído por conteúdos reprimidos, que não têm acesso aos sistemas pré-consciente/consciente, pela ação de censuras internas. Estes conteúdos podem ter sido conscientes, em algum momento, e ter sido reprimidos, isto é, “foram” para o inconsciente, ou podem ser genuinamente inconscientes. O inconsciente é um sistema do aparelho psíquico regido por leis próprias de funcionamento. Por exemplo, é atemporal, não existem as noções de passado e presente.

Pré-consciente: sistema onde permanecem conteúdos acessíveis à consciência.

Consciente: sistema que recebe ao mesmo tempo as informações do mundo interior e exterior. Destacam-se os fenômenos da percepção, atenção, raciocínio.

A Descoberta da Sexualidade Infantil

Freud, em suas investigações na prática clínica sobre as causas e funcionamento das neuroses, descobriu que a grande maioria de pensamentos e desejos reprimidos referiam-se a conflitos de ordem sexual, localizados nos primeiros anos de vida dos indivíduos, isto é, que na vida infantil estavam as experiências de caráter traumático, reprimidas, que configuravam como origem dos sintomas atuais, e confirmava-se, desta forma, que as ocorrências destes períodos da vida deixam marcas profundas na estruturação da pessoa. As descobertas colocam a sexualidade no centro da vida psíquica, e é postulada a existência da sexualidade infantil. Estas afirmações tiveram profundas repercussões na sociedade puritana da época, pela concepção vigente da infância como “inocente”.

Os principais aspectos destas descobertas são:

A função sexual existe desde o princípio da vida, logo após o nascimento, e não só a partir da puberdade como afirmavam as idéias dominantes.

O período de desenvolvimento da sexualidade é longo e complexo até chegar à sexualidade adulta, onde as funções de reprodução e de obtenção do prazer podem estar associadas, tanto no homem como na mulher. Esta afirmação contrariava as idéias predominantes de que o sexo estava associado, exclusivamente, à reprodução.

A libido, nas palavras de Freud, é “a energia dos instintos sexuais e só deles”.

No processo de desenvolvimento psicossocial, o indivíduo tem, nos primeiros tempos de vida, a função sexual ligada à sobrevivência, e, portanto o prazer é encontrado no próprio corpo. O corpo é erotizado, isto é, as excitações sexuais estão localizadas em

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partes do corpo, e há um desenvolvimento progressivo que levou Freud a postular as fases do desenvolvimento sexual em:

Fase oral: do nascimento a 1 ano de vida. A zona de erotização é a boca.

Fase anal: de 2 a 3 anos, o tronco inferior torna-se mais sensitivo, a zona de erotização é o ânus.

Fase fálica: de 3 a 5 anos, a parte genital se encontra desenvolvida, a zona de erotização é o órgão sexual.

Período de latência: de 5 a 12 anos, é uma espécie de período de intervalo na evolução da sexualidade.

Fase genital: de 12 aos 18 anos e depois, ocorrem as mudanças posteriores dos órgãos genitais. O objeto de erotização ou de desejo não está mais no próprio corpo, mas em um objeto externo ao indivíduo.

Entre 1920 e 1923, Freud remodela a teoria do aparelho psíquico e introduz os conceitos de Id, Ego e Superego para referir-se aos três sistemas da personalidade.

O id constitui o reservatório da energia psíquica, é onde se “localizam” as pulsões: a de vida e a de morte. As características atribuídas ao sistema inconsciente, na primeira teoria, são nesta teoria, atribuídas ao id. É regido pelo princípio do prazer.

O ego é o sistema que estabelece o equilíbrio entre as exigências do id, as exigências da realidade e as “ordens” do superego. Procura “dar conta” dos interesses da pessoa. É regido pelo princípio da realidade, que, com o princípio do prazer, rege o funcionamento psíquico. É um regulador, na medida em que altera o princípio do prazer para buscar a satisfação considerando as condições objetivas da realidade. As funções básicas do ego são: percepção, memória, sentimentos, pensamento.

O superego origina-se com o complexo de Édipo, a partir da internalização das proibições, dos limites e da autoridade. A moral, os ideais são funções do superego. O conteúdo do superego refere-se a exigências sociais e culturais. Está voltado para a nossa consciência moral. Sua preocupação é decidir se alguma coisa é certa ou errada, para que a pessoa possa agir de acordo com os padrões da sociedade.

É importante considerar que esses sistemas não existem enquanto uma estrutura vazia, mas são sempre habitados pelo conjunto de experiências pessoais e particulares de cada um, que se constitui como sujeito em sua relação com o outro e em determinadas circunstâncias sociais. Isso significa que, para compreender alguém, é necessário resgatar sua história pessoal, que está ligada à história de seus grupos e da sociedade em que vive.

É importante percebermos o homem em todas suas dimensões: visíveis (comportamento); invisíveis (sentimentos); singulares (de cada um); genéricas (de todos). Homem-corpo, homem-pensamento, homem-afeto, homem-ação. Produto e produtor das subjetividades.

O homem é um ser sócio-histórico. O homem não pode ser concebido como ser natural, porque ele é um produto histórico, nem pode ser estudado como ser isolado, porque se torna humano em função de ser social, nem pode ser concebido como ser abstrato, porque é o conjunto de suas relações sociais.

O homem é multideterminado: pelo suporte biológico; pelo trabalho e utilização de instrumentos; pela linguagem; pelas relações sociais e por sua subjetividade.

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- BOCK, A. M. M. Psicologias em Construção. In: ______. Psicologias – uma introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 85-96.

PSICOLOGIAS EM CONSTRUÇÃO

As tendências teóricas apresentadas, Behaviorismo, Gestalt e Psicanálise, constituíram-se em matrizes do desenvolvimento da ciência psicológica, propiciando o surgimento de inúmeras abordagens da Psicologia contemporâneas: Behaviorismo Radical (B. F. Skinner), Behaviorismo Cognitivista (A. Bandura), Psicologia Existencialista, Existencialismo (Martin Heiddeger), Gestalt Terapia (Pearls), Psicologia Analítica (Carl G.Jung), a Reichiana (W. Reich), Psicanálise Kleiniana (Melanie Klein) e a Lacaniana (J. Lacan), que deram continuidade à teoria freudiana.

Podemos perceber que a Psicologia não ficou estagnada no tempo. Pelo contrário: desenvolveu-se e, ao desenvolver-se, construiu abordagens que deram prosseguimento às já existentes, retomando conhecimentos antigos e superando-os. Enfim, a Psicologia é uma ciência em constante processo de construção.

Agora, abordaremos uma vertente teórica que surgiu no início do século 20 e ficou restrita ao Leste europeu até os anos 60, quando explodiria na Europa e nos Estados Unidos como uma nova possibilidade teórica. Estamos falando da Psicologia Sócio-Histórica, que chegou ao Brasil nos anos 80 através da Psicologia Social e da Psicologia da Educação, ganhando importância rapidamente.

Vigotski e a Psicologia Sócio-Histórica

Esta vertente teórica nasceu na ex-União Soviética, embalada pela Revolução de 1917 e pela teoria marxista. No Ocidente, a teoria Sócio-Histórica ganharia importância nos anos 70, tornando-se referência para a Psicologia do Desenvolvimento, a Psicologia Social e para a Educação.

Tendo como referência esta nova abordagem teórica formulada por Vigotski, buscava-se construir uma Psicologia que superasse as tradições positivistas e estudasse o homem e seu mundo psíquico como uma construção histórica e social da humanidade. Para Vigotski, o mundo psíquico que temos hoje não foi nem será sempre assim, pois sua caracterização está diretamente ligada ao mundo material e às formas de vida que os homens vão construindo no decorrer da história da humanidade.

Vigotski morreu muito cedo e não pôde completar sua obra, mas deixou alguns princípios aos seus seguidores:

A compreensão das funções superiores do homem não pode ser alcançada pela psicologia animal, pois os animais não têm vida social e cultural.

As funções superiores do homem não podem ser vistas apenas como resultado da maturação de um organismo que já possui, em potencial, tais capacidades.

A linguagem e o pensamento humano têm origem social. A cultura faz parte do desenvolvimento humano e deve ser integrada ao estudo e à explicação das funções superiores.

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A consciência e o comportamento são aspectos integrados de uma unidade, não podendo ser isolados pela Psicologia.

Vigotski desenvolveu, também, uma estrutura teórica marxista para a Psicologia:

Todos os fenômenos devem ser estudados como processos em permanente movimento e transformação.

O homem constitui-se e se transforma ao atuar sobre a natureza com sua atividade e seus instrumentos.

Não se pode construir qualquer conhecimento a partir do aparente, pois não se captam as determinações que são constitutivas do objeto. Ao contrário, é preciso rastrear a evolução dos fenômenos, pois estão em sua gênese e em seu movimento as explicações para sua aparência atual.

A mudança individual tem sua raiz nas condições sociais de vida. Assim, não é a consciência do homem que determina as formas de vida, mas é a vida que se tem que determina a consciência.

O desafio de Vigotski foi assumido por outros teóricos, entre eles Luria e Leontiev, seus parceiros de trabalho. Sua obra ficou, por muitos anos, restrita à ex-União Soviética. Hoje, na Europa, nos Estados Unidos e em países do Terceiro Mundo, como o Brasil, Vigotski vem sendo estudado e utilizado, principalmente, nas áreas de Psicologia da Educação e Psicologia Social. No Brasil, essas duas áreas foram influenciadas pela obra de Vigotski na década de 80 - na Educação, através das teorias construtivistas da aprendizagem, principalmente a partir da influência de Emília Ferreiro; na Psicologia Social, pela atuação da professora Silvia Lane, que contribuiu significativamente para a construção de uma Psicologia Social crítica, permitindo que, ao se pensar o psiquismo humano, se falasse das condições sociais que são constitutivas deste mundo psicológico.

Hoje, Vigotski é um autor conhecido e seu pensamento é fundamento da corrente denominada Psicologia Sócio-Histórica ou Psicologia de Orientação Sócio-Cultural.

A Psicologia Sócio-Histórica, no Brasil, tem se constituído, fundamentalmente, pela crítica à visão liberal de homem que traz idéias como:

O homem visto como ser autônomo, responsável pelo seu próprio processo de individuação.

Uma relação de antagonismo entre o homem e a sociedade, em que esta faz eterna oposição aos anseios que seriam naturais do homem.

Uma visão de fenômeno psicológico, na qual este é tomado como uma entidade abstrata que tem, por natureza, características positivas que só não se manifestam se sofrerem impedimentos do mundo material e social. O fenômeno psicológico, visto como enclausurado no homem, é concebido como um verdadeiro eu.

A Psicologia Sócio-Histórica entende que essas concepções liberais construíram uma ciência na qual o mundo psicológico foi completamente deslocado do campo social e material. Esse mundo psicológico passou, então, a ser definido de maneira abstrata, como algo que já estivesse dentro do homem, pronto para se desenvolver - semelhante à semente que germina. Esta visão liberal naturalizou o mundo psicológico, abolindo, da Psicologia, as reflexões sobre o mundo social.

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No Brasil, os teóricos da Psicologia Sócio-Histórica buscam construir uma concepção alternativa à liberal. Retomaremos um pouco essas reflexões a partir de algumas idéias fundamentais.

Não existe natureza humana

Não existe uma essência eterna e universal do homem, que no decorrer de sua vida se atualiza, gerando suas potencialidades e faculdades. Tal idéia de natureza humana tem sido utilizada como fundamento da maioria das correntes psicológicas e faz, na verdade, um trabalho de ocultamento das condições sociais, que são determinantes das individualidades.

Esta idéia está ligada à visão de indivíduo autônomo, que também não é aceita na Psicologia Sócio-Histórica. O indivíduo é construído ao longo de sua vida a partir de sua intervenção no meio (sua atividade instrumental) e da relação com os outros homens. Somos únicos, mas não autônomos no sentido de termos um desenvolvimento independente ou já previsto pela semente de homem que carregamos.

Existe a condição humana

A concepção de homem da Psicologia Sócio-Histórica pode ser assim sintetizada: o homem é um ser ativo, social e histórico. É essa a sua condição humana. O homem constrói sua existência a partir de uma ação sobre a realidade, que tem, por objetivo, satisfazer suas necessidades.

Mas essa ação e essas necessidades têm uma característica fundamental: são sociais e produzidas historicamente em sociedade.

As necessidades básicas do homem não são apenas biológicas; elas, ao surgirem, são imediatamente socializadas. Por exemplo, os hábitos alimentares e o comportamento sexual do homem são formas sociais e não naturais de satisfazer necessidades biológicas.

Através da atividade, o homem produz o necessário para satisfazer essas necessidades. A atividade de cada indivíduo, ou seja, sua ação particular, é determinada e definida pela forma como a sociedade se organiza para o trabalho. Entendido corno a transformação da natureza para a produção da existência humana, o trabalho só é possível em sociedade. É um processo pelo qual o homem estabelece, ao mesmo tempo, relação com a natureza e com os outros homens; essas relações determinam-se reciprocamente. Portanto, o trabalho só pode ser entendido dentro de relações sociais determinadas. São essas relações que definem o lugar de cada indivíduo e a sua atividade. Por isso, quando se diz que o homem é um ser ativo, diz-se, ao mesmo tempo, que ele é um ser social.

A ação do homem sobre a realidade que, obrigatoriamente, ocorre em sociedade, é um processo histórico. É uma ação de transformação da natureza que leva à transformação do próprio homem. Quando produz os bens necessários à satisfação de suas necessidades, o homem estabelece novos parâmetros na sua relação com a natureza, o que gera novas necessidades, que também, por sua vez, deverão ser satisfeitas. As relações sociais, nas quais ocorre esse processo, modificam-se à medida que se desenvolvem as necessidades humanas e a produção que visa satisfazê-Ias. É um processo de transformação constante das necessidades e da atividade dos homens e das relações que estes estabelecem entre si para a produção de sua existência. Esse movimento tem por base a contradição: o desenvolvimento das necessidades humanas

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e das formas de satisfazê-Ias, ao mesmo tempo em que só são possíveis diante de determinadas relações sociais, provocam a necessidade de transformação dessas mesmas relações e condicionam o aparecimento de novas relações sociais. Esse processo histórico é construído pelo homem e é esse processo histórico que constrói o homem. Assim, o homem é um ser ativo, social e histórico.

O homem é criado pelo homem

Não há uma natureza humana pronta, nem mesmo aptidões prontas. A "aptidão" do homem está, justamente, no fato de poder desenvolver várias aptidões. Esse desenvolvimento se dá na relação com os outros homens através do contato com a cultura já constituída e das atividades que realiza neste meio.

Os objetos produzidos pelos homens materializam a história e cristalizam as "aptidões" desenvolvidas pelas gerações anteriores. Quando os manuseia e deles se apropria, o homem desenvolve atividades que reproduzem os traços essenciais das atividades acumuladas e cristalizadas nos objetos. A criança que aprende a manusear um lápis está, de alguma forma, submetida à forma, à consistência, às possibilidades e aos limites do lápis. Isso envolve não apenas uma questão "física", material, mas, necessariamente, uma condição social e histórica do uso e significado do lápis. As habilidades humanas, que utilizam o lápis como seu instrumento, estão cristalizadas na forma, na consistência e nas possibilidades do lápis, bem como nos seus limites e significados. Nas relações com os outros homens ocorre a "descristalização" destas possibilidades - a "mágica" acontece - e, do lápis, o pequeno homem retira suas habilidades de rabiscar, escrever e desenhar, colocando-se, assim, no "patamar" da história, tornando-se capaz de recuperá-Ia e transformá-Ia. Portanto, é do instrumento e das relações sociais, nas quais esse instrumento é utilizado, que o homem retira suas possibilidades humanas.

Esse processo acontece com todas as suas aptidões. O homem, ao nascer, é candidato à humanidade e a adquire no processo de apropriação do mundo. Nesse processo, converte o mundo externo em um mundo interno e desenvolve, de forma singular, sua individualidade.

Assim, através da mediação das relações sociais e das atividades que desenvolve, o homem se individualiza, torna-se homem, desenvolve suas possibilidades e significa seu mundo.

A linguagem é instrumento fundamental nesse processo e, como instrumento, também é produzida social e historicamente, e dela também o homem deve se apropriar.

A linguagem materializa e dá forma a uma das aptidões humanas: a capacidade de representar a realidade. Juntamente çom a atividade, o homem desenvolve o pensamento. Através da linguagem, o pensamento objetiva-se, permitindo a comunicação das significações e o seu desenvolvimento.

Mas o pensamento humano, historicamente transforma-se em algo mais complexo, justamente por representar, cada vez melhor, a complexidade da vida humana em sociedade. Transforma-se em consciência. A linguagem é instrumento essencial na construção da consciência, na construção de um mundo interno, psicológico. Permite a representação não só da realidade imediata, mas das mediações que ocorrem na relação do homem com essa realidade. Assim, a linguagem apreende e materializa o mundo de significações, que é construído no processo social e histórico.

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Quando se apropria da linguagem enquanto instrumento, o indivíduo tem acesso a um mundo de significações historicamente produzido. Além disso, a linguagem também é instrumento de mediação na apropriação de outros instrumentos. Por isso, quando se torna indivíduo - o que só ocorre socialmente - o homem apropria-se de todos os significados sociais. Mas, por ser ativo, também atribui significados, ou seja, apropria-se da história, apreende o mundo, atribuindo-lhe um sentido pessoal construído a partir de sua atividade, de suas relações e dos significados aprendidos. Esse processo de apropriação do mundo social permite o desenvolvimento da consciência no homem.

O homem concreto é objeto de estudo da Psicologia

A Psicologia deve buscar compreender o indivíduo como ser determinado histórica e socialmente. Esse indivíduo jamais poderá ser compreendido senão por suas relações e vínculos sociais, pela

sua inserção em uma determinada sociedade, em um momento histórico específico.

O homem existe, age e pensa de certa maneira porque existe em um dado momento e local, vivendo determinadas relações.

A consciência humana revela as determinações sociais e históricas do homem - não diretamente, de maneira imediata, porque não é assim, mecanicamente, que se processa a consciência.

As mediações devem ser desvendadas, pois passam pelas formas de atividade e relações sociais, pelos significados atribuídos nesse processo a toda realidade na qual vivem os homens. É necessário conhecer além da aparência, buscando a essência deste processo, que revela o movimento de transformação constante a partir da contradição, entendida como princípio fundamental do movimento da realidade.

Assim, para conhecer o homem é preciso situá-Io em um momento histórico, identificar as determinações e desvendá-Ias. Para entender o movimento contraditório da totalidade na qual se encontram os indivíduos, deve-se partir do geral para o particular para o processo individual de relação entre atividade e consciência. É necessário perceber o singular e seu movimento como parte do movimento geral e, ao revelar essas mediações, compreender não só o geral, mas o particular. É dessa forma que o indivíduo deve ser entendido pela Psicologia fundamentada no materialismo histórico e dialético.

Subjetividade social e subjetividade individual

Nesta teoria, os fenômenos sociais não são externos aos indivíduos nem são fenômenos que acontecem na sociedade e pouco têm a ver com cada um de nós. Os fenômenos sociais estão, de forma simultânea, dentro e fora dos indivíduos, isto é, estão na subjetividade individual e na subjetividade social.

A subjetividade deve ser compreendida como "um sistema integrador do interno e do externo, tanto em sua dimensão social, como individual, que por sua gênese é também social... A subjetividade não é interna nem externa: ela supõe outra representação teórica na qual o interno e o externo deixam de ser dimensões excludentes e se convertem em dimensões constitutivas de uma nova qualidade do ser: o subjetivo. Como dimensões da subjetividade ambos (o interno e o externo) se integram e desintegram de múltiplas formas no curso de seu desenvolvimento, no processo dentro

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do qual o que era interno pode converter-se em externo e vice-versa". (Gonzales Rey, 1997)

A subjetividade individual representa a constituição da história de relações sociais do sujeito concreto dentro de um sistema individual. O indivíduo, ao viver relações sociais determinadas e experiências determinadas em uma cultura que tem idéias e valores próprios, vai se constituindo, ou seja, vai construindo sentido para as experiências que vivencia. Este espaço pessoal dos sentidos que atribuímos ao mundo se configura como a subjetividade individual.

A subjetividade social, conforme Gonzalez Rey (1997), é exatamente a aresta subjetiva da constituição da sociedade. Refere-se "ao sistema integral de configurações subjetivas (grupais ou individuais), que se articulam nos distintos níveis da vida social..."

Assim, para a Psicologia Sócio-Histórica, não há como se saber de um indivíduo sem que se conheça seu mundo. Para compreender o que cada um de nós sente e pensa, e como cada um de nós age, é preciso conhecer o mundo social no qual estamos imersos e do qual somos construtores; é preciso investigar os valores sociais, as formas de relação e de produção da sobrevivência de nosso mundo, e as formas de ser de nosso tempo.

Para facilitar a compreensão dessas noções básicas da Psicologia Sócio-Histórica; sugerimos-lhe que reflita sobre o que sente, pensa e como age, identificando em seu mundo social os espaços nos quais estas formas se configuram, pois, com certeza, é nelas que você busca a matéria-prima para construir sua forma particular de ser. Mesmo sem perceber, você as reforça ou reconstrói diariamente, atuando para que elas se mantenham. Há um movimento constante que vai de você para o mundo social e que lhe vem deste mesmo mundo. O instrumento básico para esta relação é a linguagem.

Para a teoria Sócio-Histórica, os fenômenos do mundo psíquico não são naturais do mundo psíquico, mas fenômenos que vão se constituindo conforme o homem atua no mundo e se relaciona com os outros homens. O mundo social deixa de ser visto como um espaço de oposição a nossas vontades e impulsos, passando a ser visto como o lugar no qual nosso mundo psicológico se constitui.

- BOCK, A. M. M. A Psicologia social. In: ______. Psicologias – uma introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 135-149.

A PSICOLOGIA SOCIAL

Psicologia Social é a área da Psicologia que procura estudar a interação social. A interação social, a interdependência entre os indivíduos, o encontro social são os objetos investigados por essa área da Psicologia. Dessa perspectiva os principais conceitos são: a percepção social,; a comunicação; as atitudes; a mudança de atitudes; o processo de socialização; os grupos sociais e os papéis sociais.

Percepção Social

Percebemos-nos uns aos outros. E percebemos não só a presença do outro mas o conjunto de características que se apresenta, o que nos possibilita “ter uma impressão” dele. A partir dos nossos contatos com o mundo vamos organizando informações em

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nossa cognição (organização do conhecimento no nível da consciência), é esta organização que nos permitirá compreender ou categorizar um novo fato. A percepção é um processo que vai desde a recepção do estímulo pelos órgãos dos sentidos até a atribuição de significado ao estímulo.

Comunicação

A comunicação é um processo que envolve codificação (formação de um sistema de códigos) e decodificação (a forma de procurar entender a codificação) de mensagens. Estas mensagens permitem uma troca de informações entre os indivíduos. A comunicação não é constituída apenas de código verbal. Também utilizamos para comunicação expressões do rosto, gestos, movimentos, desenhos e sinais.

Atitudes

A partir da percepção do meio social e dos outros, o indivíduo vai organizando estas informações, relacionando-as com afetos (positivos/negativos) e desenvolvendo uma predisposição para agir (favorável ou desfavoravelmente) em relação às pessoas e aos objetos presentes no meio social. As informações com forte carga afetiva, que predispõem o indivíduo para uma determinada ação (comportamento), damos o nome de atitudes. Diferentemente do senso comum, para a Psicologia Social, nós não tomamos atitudes (comportamento, ação), nós desenvolvemos atitudes (crenças, valores, opiniões) em relação aos objetos do meio social.

Mudança De Atitudes

As atitudes podem ser modificadas a partir de novas informações, novos afetos, ou novos comportamentos ou situações. Podemos ainda mudar uma atitude quando somos obrigados a nos comportar em desacordo com ela.

Processo De Socialização

Nossas atitudes são importantes, pois elas de certa forma norteiam nosso comportamentos. Ainda há influencia dos motivos, interesses e necessidades com que nos apresentamos na situação. A formação de nossas crenças, valores e significados dá-se por meio da socialização. Nesse processo, o indivíduo ao tornar-se membro de um determinado conjunto seus códigos, suas normas e regras básicas de relacionamento, apropriando-se de um conjunto de conhecimentos acumulados por este conjunto.

Grupos Sociais

Os grupos sociais são pequenas organizações de indivíduos que, possuindo objetivos em comuns, desenvolvem ações na direção desses objetivos. Para garantir esta organização possuem normas, formas de pressionar seus integrantes para que se conformem à normas; um funcionamento determinado, com tarefas e funções distribuídas entre seus membros, formas de cooperação e de competição, apresentam aspectos que atraem os indivíduos, impedindo que abandonem o grupo.

Papéis Sociais

Os papéis sociais nos permite compreender a situação social, pois são referências para a nossa percepção do outro, ao mesmo tempo que são referências para nosso próprio comportamento. A prender os nossos papéis sociais é, na realidade, aprender o conjunto de rituais que nossa sociedade criou.

Críticas A Psicologia Social

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Até o momento foi apresentada uma Psicologia descritiva que procura organizar e dar nomes aos processos observáveis que ocorrem nas interações sociais. A psicologia Social tradicional pensa o homem como um ser que reage às estimulações externas, atribui-lhes significado e se comporta. O homem é um ser no espaço social. É uma psicologia que parte de uma noção estreita do social. Este é considerado apenas como a relação entre as pessoas, a interação social, e não como um conjunto de produções humanas capazes de, ao mesmo tempo em que vão construindo a realidade social, construir também o indivíduo. Esta concepção será a referência para a construção da nova Psicologia Social.

Uma Nova Psicologia Social

A nova Psicologia Social concebe o homem como um ser se natureza social. O homem é um ser social que constrói a si próprio, ao mesmo tempo que constrói, com outros homens, a sociedade e sua história. A nova Psicologia Social desvincula-se da tradição norte-americana de ciência pragmática, com intenções de prever o comportamento e manipula-lo, optando por uma ciência que, ao melhorar a compreensão que se tem da realidade social e humana, permita ao homem transformá-la. A nova Psicologia irá propor como conceitos básico de análise, a atividade, a consciência e a identidade.

Atividade

É a unidade básica fundamental da vida do sujeito material. É por meio da atividade que o homem se apropria do mundo, ou seja, é a atividade que propicia a transição daquilo que está fora do homem para dentro dele. A atividade humana é a base do conhecimento e do pensamento do homem. Aqui está se considerando que os indivíduos apresentam uma necessidade de manter uma relação ativa com o mundo externo, transformando-o. Ao fazer isso, estamos construindo a nós mesmos.

Consciência

A consciência humana expressa a forma como o homem se relaciona com o mundo objetivo. O homem apresenta seu modo de reagir ao mundo objetivo: ele o compreende, isto é, transforma-o em idéias e imagens e estabelece relações entre essas informações, de modo a compreender o que se produz na realidade ambiente. A consciência é um certo saber., que não se limita ao saber lógico, inclui o saber das emoções, e sentimentos do homem, o saber dos desejos. A consciência do homem é produto das relações sociais que os homens estabelecem. O homem encontra um mundo de objetos e significados já construídos pelos outros homens. Nas relações sociais, ele se apropria desse mundo cultural e desenvolve o sentido pessoal. Produz, assim uma compreensão sobre o mundo, sobre si mesmo e sobre os outros.

Identidade

Se a consciência está em movimento, se o homem, conseqüentemente, está em movimento, a consciência que desenvolve sobre o “eu mesmo” não poderia estar parada. Estamos nos transformando a cada momento, a cada nova relação com o mundo social. Identidade é a denominação dada às representações que o indivíduo desenvolve a respeito de si mesmo, a partir de suas vivências. A identidade é a síntese pessoal sobre si mesmo, incluindo dados pessoais (cor, idade, sexo), biografia, atributos que os outros lhe conferem, permitindo uma representação a respeito de si. Este conceito supera a compreensão do homem enquanto conjunto de papéis, de valores, habilidades, de atitudes, etc, pois compreende todos estes aspectos

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integrados, o homem como totalidade. A identidade do indivíduo é um processo continuo de seu “estar sendo” no mundo.

- LANE, S. T. M. A Psicologia Social e uma nova concepção de homem para a Psicologia. In: LANE, S. T. M., GODO, W. (Orgs.) Psicologia Social – O homem em movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1999, p. 10-19.

PSICOLOGIA SOCIAL E UMA NOVA CONCEPÇÃO DE HOMEM PARA A PSICOLOGIA

A relação entre a Psicologia e a Psicologia Social deve ser entendida em sua perspectiva histórica, quando na década de 50 se iniciam sistematizações em termos da Psicologia Social, dentro das duas tendências predominantes: uma, na tradição pragmática dos Estados Unidos, visando alterar e/ou criar atitudes, interferir nas relações grupais para harmonizá-las e assim garantir a produtividade do grupo – é uma atuação que se caracteriza pela euforia de uma intervenção que minimizaria conflitos, tornando os homens “felizes” reconstrutores da humanidade que acabava de sair da destruição de uma Segunda Guerra Mundial. A outra tendência, que também procura conhecimentos que evitem novas catástrofes mundiais, segue a tradição filosófica européia, com raízes na fenomenologia, buscando modelos científicos totalizantes, como Lewin e sua teoria de Campo.

A euforia deste ramo científico denominado Psicologia Social dura relativamente pouco, pois sua eficácia ecomeça a ser questionada em meados da década de 60, quando as análises críticas apontavam para uma “crise” do conhecimento psicossocial que não conseguia intervir nem explicar, muito menos prever comportamentos sociais.

Na França, a tradição psicanalítica é retomada com toda a veemência após o movimento de 68, e sob sua ótica é feita uma crítica à psicologia social norte-americana como uma ciência ideológica, reprodutora dos interesses da classe dominante, e produto de condições histórias específicas, o que invalida a transposição tal e qual deste conhecimento para outros países, em outras condições históricos-sociais. Esse movimento também tem suas repercussões na Inglaterra, onde Israel e Täjfell analisam a “crise” sob o ponto de vista epistemológico com os diferentes pressupostos que embasam o conhecimento científico – é a crítica ao positivismo, que em nome da objetividade perde o ser humano.

Na América Latina, Terceiro Mundo, dependente econômica e culturalmente, a Psicologia Social oscila entre o pragmatismo norte-americano e a visão abrangente de um homem que só era compreendido filosófica ou sociologicamente – ou seja, um homem abstrato. É somente a partir do final da década de 70, começo de 80, que psicólogos brasileiros começam a fazer suas críticas, procurando novos rumos para uma Psicologia Social que atendesse à nossa realidade.

O primeiro passo para a superação da crise foi constatar a tradição biológica da Psicologia, em que o indivíduo era considerado um organismo que interage no meio físico, sendo que os processos psicológicos (o que ocorre “dentro” dele) são assumidos como causa, ou uma das causas que explicam o seu comportamento. Ou seja, para compreender o indivíduo bastaria conhecer o que ocorre “dentro dele”, quando ele se defronta com estímulos do meio.

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Porém o homem fala, pensa, aprende e ensina, transforma a natureza; o homem é cultura, é história. Este homem biológico não sobrevive por si e nem é uma espécie que se reproduz tal e qual, com variações decorrentes de clima, alimentação, etc. O seu organismo é uma infra-estrutura que permite o desenvolvimento de uma superestrutura que é social e, portanto, histórica. Deve, então, ser visto como um produto histórico-social.

Não discutimos as validades das leis de aprendizagem; é indiscutível que o reforço aumenta a probabilidade de ocorrência do comportamento, assim como a punição extingue comportamentos, porém a questão se coloca é por que se apreende certas coisas e outras são extintas, por que objetos são considerados reforçadores e outros punidores? Em outras palavras, em que condições sociais ocorre a aprendizagem e o que ela significa no conjunto das relações sociais que definem concretamente o indivíduo na sociedade em que ele vive.

A ideologia nas ciências humanas

A afirmativa de que o positivismo, na procura da objetividade dos fatos, perdera o ser humano decorreu de uma análise crítica do conhecimento minucioso enquanto descrição de comportamentos que, no entanto, não dava conta do ser humano agente de mudança, sujeito da história. O homem ou era socialmente determinado ou era causa de si mesmo: sociologismo vs biologismo? Se por um lado a psicanálise enfatizava a história do indivíduo, a sociologia recuperava, através do materialismo histórico, a especificidade de uma totalidade histórica concreta na análise de cada sociedade. Portanto, caberia à Psicologia Social recuperar o indivíduo na intersecção de sua história com a história de sua sociedade – apenas este conhecimento nos permitiria compreender o homem enquanto produtor da história.

Na tradição e no entusiasmo de descrever o homem enquanto um sistema nervoso complexo que o permitia dominar e transformar a natureza, criando condições sui-generis para a sobrevivência da espécie, os psicólogos se esqueceram de que este homem, junto com outros, ao transformar a natureza, se transformava ao longo da história.

As psicologias tradicionais, apesar de suas contribuições para descrever a materialidade do organismo humano, pouco contribuem para entendermos o pensamento humano e seu desenvolvimento através das relações entre os homens, para compreendermos o homem criativo, transformador – sujeito da história social de seu grupo.

Se a Psicologia apenas descrever o que é observado ou enfocar o indivíduo como causa e efeito de sua individualidade, ela terá uma ação conservadora, estatizante – ideológica – quaisquer que sejam as práticas decorrentes. Se o homem não for visto como produto e produtor, não só de sua história pessoal mas da história de sua sociedade, a Psicologia estará apenas reproduzindo condições necessárias para impedir a emergência das contradições e a transformação social.

A psicologia social e o materialismo histórico

Se o positivismo, ao enfrentar a contradição entre objetividade e subjetividade, perdeu o ser humano, produto e produtor da História, se tornou necessário recuperar o subjetivismo enquanto materialidade psicológica. A dualidade físico x psíquico implica

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uma concepção idealista do ser humano, na velha tradição animística da psicologia, ou então caímos num organicismo onde homem e computador são imagem e semelhança um do outro. Nenhuma das duas tendências dá conta de explicar o homem criativo e transformador.

É dentro do materialismo histórico e da lógica dialética que vamos encontrar os pressupostos epistemológicos para a reconstrução de um conhecimento que atenda à realidade social e ao cotidiano de cada indivíduo e que permita uma intervenção efetiva na rede de relações sociais que define cada indivíduo – objeto da Psicologia Social.

Definições, conceitos e constructos que geram teorias abstratas em anda contribuem para uma prática psicossocial. Para conhecer o indivíduo deve-se perceber que o homem não sobrevive a não ser em relação com outros homens, portanto a dicotomia Indivíduo x Grupo é falsa – desde seu nascimento o homem está inserido num grupo social.

O resgate deste fato permite ao psicólogo social se aprofundar na análise do indivíduo concreto, considerando a imbricação entre relações grupais, linguagem, pensamento e ações na definição de características fundamentais para a análise psicossocial.

A personalidade é vista então como categoria, decorrente do princípio de que o homem, ao agir, transformando o seu meio se transforma, criando características próprias que se tornam esperadas pelo seu grupo no desenvolver de suas atividades e de suas relações com outros indivíduos.

Na especificidade psicossocial também se deve analisar as relações grupais enquanto mediadas pelas instituições sociais e como tal exercendo uma mediação ideológica na atribuição de papéis sociais e representações decorrentes de atividades e relações sociais tidas como “adequadas, corretas, esperadas”, etc.

Desta forma, a análise do processo grupal nos permite captar a dialética indivíduo-grupo, quando o indivíduo e o grupo se tornam agentes da história social, membros indissociáveis da totalidade histórica que os produziu e a qual eles transformam por suas atividades, também indissociáveis.

- BRAGHIROLLI, E. M., PEREIRA, S., RIZZON, L. A. O indivíduo no meio social. In: ______. Temas de Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 11-36.

O INDIVÍDUO NO MEIO SOCIAL

Personalidade: Formação e Desenvolvimento

O vocábulo personalidade se origina de persona ou personare, que na língua latina significava “soar através”, expressão que se referia à máscara que os atores do antigo teatro grego utilizavam para caracterizar as personagens que representavam. Assim, no senso comum permanece a idéia de que personalidade é aquilo que é refletido, que é mostrado por meio dos papéis sociais que as pessoas desempenham.

Hoje, a maioria dos psicólogos entende personalidade como conjunto dos traços e características singulares, típicas de uma pessoa e que distinguem-na das demais. A personalidade abrange necessariamente a constituição física, com seus caracteres morfológicos e físico-químicos, que se alicerçam nas disposições herdadas. Abrange

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também todos os modos de interação entre as pessoas e o mundo: seus hábitos, valores e capacidades; suas aspirações; seus modos de experimentar os afetos; suas maneiras habituais de se comportar no cenário social. A personalidade é muito mais do que aquilo que é refletido por meio dos nossos comportamentos. Diz respeito à totalidade daquilo que somos, não apenas do que somos hoje, mas do que fomos ontem e do que aspiramos ser no futuro.

A Psicologia tem a convicção de que a personalidade é uma totalidade sincrética, resultante da ação dos fatores genéticos e dos fatores ambientais. Sabe-se que é sobre o alicerce biológico, das disposições herdadas, que irão se plasmar as estruturas orgânicas. A ação continuada do meio, durante a vida intra-uterina desde o momento da concepção, bem como ao longo do processo de desenvolvimento de uma pessoa, vai depender das características de qualidade da composição genética. É com esta composição que vai dar a interação com o meio para a configuração de uma personalidade única.

Uma questão que se coloca hoje é o que, precisamente, se deve à estrutura genética e o que se deve à influência ambiental. Talvez tanto os progressos da genética, como os das investigações psicológicas possam, em um futuro, esclarecer esta questão. Entretanto, já não há mais dúvida no sentido de que tanto a hereditariedade como o meio são decisivos para a formação da personalidade; não há como negar ou reduzir a participação de um ou de outro fator. A personalidade só se constituirá a partir das interações que ocorrerem entre a criança e o seu meio próximo.

Formação de Impressões

A impressão que formamos de outra pessoa é, em geral, o resumo de todas as observações ou dados que pudemos reunir sobre ela. Observamos seu comportamento verbal e não-verbal, mas não de forma isolada. Levamos em consideração as circunstâncias em que o comportamento ocorreu. Isso nos permite julgar a respeito das causas do comportamento observado, se ele deve ser atribuído a características ou intenções internas da pessoa, ou circunstâncias externas, do meio ambiente. Exemplo:

Ao observarmos um indivíduo debruçado sobre a vitrine de uma joalheria, cujos vidros acabou de quebrar, julgamos que se trata de um ladrão e talvez procuremos avisar a polícia. Se, no entanto, formos informados de que ele tropeçou numa pedra e caiu para dentro da vitrine, nossa percepção a respeito dele muda radicalmente.

Algumas fontes de erro na Percepção Social

O Estado do Percebedor

Muitos estudos demonstraram que as necessidades, os sentimentos, expectativas, etc., do percebedor influem nas suas percepções, podendo torna-las enganosas ou menos precisas. As pessoas tendem a projetar seus próprios sentimentos, intenções, valores, etc., nos outros, bem como ser mais sensíveis a determinadas características devido ao seu estado emocional num determinado momento.

Teoria Implícita de Personalidade

Atribui-se a uma pessoa um determinado traço de personalidade ao se inferir que seu comportamento deriva de determinada intenção ou intenções. No entanto, a percepção da pessoa não para aí. Em geral, a partir deste traço atribuído, faz-se inferência de muitos outros, a respeito dos quais não se tem informação. A maioria das pessoas tem

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uma “teoria implícita” a respeito da personalidade humana, isto é, um conjunto de crenças a respeito de como determinados traços se conjugam. Por exemplo, ao inferir que determinada pessoa é inteligente, é possível que lhe sejam também atribuídas características de competente, criativa, ativa, e outros traços que não estão necessariamente relacionados.

Apesar de cada um de nós poder ter sua teoria implícita de personalidade, também existem aquelas compartilhadas por indivíduos de uma mesma cultura e que vão se construir nos estereótipos.

Estereótipos

Uma constatação a respeito da teoria implícita de personalidade é o fato dela existir e ser largamente compartilhada, a respeito de grupos étnicos (negros, japoneses, alemães, etc.), profissionais (advogados, psicólogos, médicos), e de outros grupos. É o que se denomina de estereótipo.

Estereótipo trata-se de uma supergeneralização de uma característica para toda uma categoria ou grupo de pessoas, generalização cuja inadequação será mais facilmente reconhecida quanto mais o percebedor conhecer o grupo ou categoria de pessoas percebidas. O estereótipo aproxima-se de uma generalização defeituosa que provavelmente se vincula aos sistemas de crenças e valores dominantes.

Efeito das Expectativas

As pessoas são capazes de identificar quais as expectativas que os outros tem a seu respeito. E elas será particularmente importantes se forem as dos pais, ou as de professores de uma criança. A tendência da criança, e dos adultos também, é a de corresponder às expectativas (mesmo as negativas), criando o que se chama de “profecia auto-realizadora”. Nas palavra de Sawrey e Telford (1976, p.42), “dando a uma pessoa um rótulo, freqüentemente forçamo-la a viver de acordo com ele...”.

- CIAMPA, A. C. Identidade. In: LANE, S. T. M., GODO, W. (Orgs.) Psicologia Social – O homem em movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1999, p. 58-75.

IDENTIDADE

Quem é você? É uma pergunta que freqüentemente nos fazem e que às vezes fazemos a nós mesmos.

Quando queremos conhecer a identidade de alguém, quando nosso objetivo é saber quem alguém é, nossa dificuldade consiste apenas em obter as informações necessárias, tomando essas informações das mais variadas fontes. Assim, obter as informações necessárias é uma questão prática: quais as informações significativas, quais as fontes confiáveis, de forma a obter as informações, como interpretar e analisar essas informações, etc.

A forma mais simples, habitual e inicial de fornecer essas informações é fornecer o nome, um substantivo; se olharmos o dicionário, veremos que substantivo é a palavra que designa o ser, que nomeia o ser. Nós nos identificamos com esse nome, que nos identifica num conjunto de outros seres, que indica nossa singularidade: nosso nome próprio.

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A não ser em casos excepcionais, o primeiro grupo social do qual fazemos parte é a família, exatamente quem nos dá nosso nome. Nosso primeiro nome nos diferencia de nossos familiares, enquanto o último nos iguala a eles. Diferença e igualdade. É uma primeira noção de identidade.

Sucessivamente, vamos nos diferenciando e nos igualando conforme os vários grupos sociais de que fazemos parte: brasileiro, igual a outros brasileiros, diferente dos outros estrangeiros; homem ou mulher, entre outros.

O conhecimento de si é dado pelo reconhecimento recíproco dos indivíduos identificados através de um determinado grupo social que existe objetivamente, com sua história, suas tradições, suas normas, seus interesses, etc.

Um grupo pode existir objetivamente, por exemplo, em uma classe social, mas seus componentes podem não se identificar enquanto membro, e nem se reconhecerem reciprocamente. É fácil, parece, perceber as conseqüências de tal fato, seja para o indivíduo, seja para o grupo social.

Para compreendermos melhor a idéia de ser a identidade constituída pelos grupos de que fazemos parte, faz-se necessário refletirmos como um grupo existe objetivamente: através das relações que estabelecem seus membros entre si e com o meio onde vivem, isto é, pela sua prática, pelo seu agir. Estamos constatando talvez uma obviedade: nós somos nossas ações, nós nos fazemos pela prática.

Até aqui estamos tratando a identidade como um “dado” a ser pesquisado, como um produto preexistente a ser conhecido, deixando de lado a questão fundamental de saber como se dá esse dado, como se produz esse produto. A resposta à pergunta “quem sou eu?” é uma representação da identidade. Então, torna-se necessário partir da representação, como um produto, para analisar o próprio processo de produção.

Dizer que a identidade de uma pessoa é um fenômeno social e não natural é aceitável pela grande maioria dos cientistas sociais. Por exemplo, antes de nascer, o nascituro já é representado como filho de alguém e essa representação prévia o constitui efetivamente, objetivamente, como “filho”, membro de uma determinada família.

É verdade que não basta a representação prévia. O nascituro, uma vez nascido, constituir-se-á como filho na medida em que as relações nas quais esteja envolvido concretamente confirmem essa representação através de comportamentos que reforcem sua conduta como filho e assim por diante.

Contudo, é na medida em que é pressuposta a identificação da criança como filho (e dos adultos em questão como pais) que os comportamentos vão ocorrer, caracterizando a relação paterno-filial.

Desta forma, a identidade do filho, se de um lado é conseqüência das relações que se dão, de outro – com anterioridade – é uma condição dessas relações. Ou seja, é pressuposta uma identidade que é re-posta a cada momento, sob pena de esses objetos sociais “filho”, “pais”, “família”, etc., deixarem de existir objetivamente.

Isto introduz uma complexidade que deve ser considerada aqui. Uma vez que a identidade pressuposta é resposta, ela é vista como dada – e não como se dando num contínuo processo de identificação. Daí a expectativa generalizada de que alguém deve agir de acordo com o que é (e conseqüentemente ser tratado como tal).

A posição de mim me identifica, discriminando-me como dotado de certos atributos que me dão uma identidade considerada formalmente como atemporal. A re-posição da

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identidade deixa de ser vista como uma sucessão temporal, passando a ser vista como simples manifestação de um ser idêntico a si-mesmo na sua permanência e estabilidade. A mesmice de mim é pressuposta como dada permanentemente e não como reposição de uma identidade que uma vez foi posta.

Dessa forma, cada posição minha me determina, fazendo com que minha existência concreta seja a unidade da multiplicidade, que se realizada pelo desenvolvimento dessas determinações.

Em cada momento de minha existência, embora eu seja uma totalidade, manifesta-se uma parte de mim como desdobramento das múltiplas determinações a que estou sujeito. Quando estou frente a meu filho, relaciono-me como pai; com meu pai, como filho; e assim por diante. Contudo, meu filho não me vê apenas como pai, nem meu pai apenas como filho; nem eu compareço frente aos outros como portador de um único papel, mas sim o como o representante de mim, com todas minhas determinações que me tornam um indivíduo concreto. Desta forma, estabelece-se uma intrincada rede de representações que permeia todas as relações, onde cada identidade reflete outra identidade, desaparecendo qualquer possibilidade de se estabelecer um fundamento originário para cada uma delas.

As atividades de indivíduos identificados são normatizadas tendo em vista manter a estrutura social, vale dizer, conservar as identidades produzidas, paralisando o processo de identificação pela re-posição de identidades sobreposta, que um dia foram postas. Assim, a identidade que se constitui no produto de um permanente processo de identificação aparece como um dado e não como um dar-se constante que expressa o movimento social.

A análise teórica feita até aqui inverte totalmente a noção tradicional que se tem de identidade, ou seja, “o que é, é”. Mas, o que é “ser o que é?”

Vejamos um exemplo clássico: uma semente já contém em si uma pequena plantinha, a planta plenamente desenvolvida e seus frutos, de onde sairão novas sementes. Então, ser semente é ser semente, mas não só a mesma semente, como também a plantinha, a planta desenvolvida, o fruto e a nova semente, uma multiplicidade que, naturalmente, já está contida na semente e que se concretiza pela transformação em fruto.

E para o homem: o que é para o ser humano ser o que é? A história do homem é a contínua hominização do homem, a partir do momento em que este, diferenciando-se do animal, produz suas condições de existência, produzindo-se a si mesmo conseqüentemente. De um lado, portanto, o homem não está limitado no seu vir-a-ser por um fim preestabelecido (como a semente); de outro, não está liberado das condições históricas em que vive, de modo que seu vir-a-ser fosse uma indeterminação absoluta.

A primeira constatação acima – de que o vir-a-ser do homem não pode se confundir com o de uma semente – deve servir para questionar toda e qualquer concepção fatalista, mecanicista, de um destino inexorá vel, seja nas suas formas mais supersticiosas (“sou pobre porque Deus quer”, “nasceu para ser criminoso”, etc), seja em formas mais sofisticadas de teorias pseudocientíficas (por exemplo, em certas versões de teorias de personalidade).

A segunda constatação – de que o homem não está liberado de suas condições históricas – nos coloca um problema e uma tarefa.

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O problema consiste em que não é possível dissociar o estudo de identidade do indivíduo do da sociedade. As possibilidades de diferentes configurações de identidade estão relacionadas com as diferentes configurações da ordem social. É no contexto histórico e social em que o homem vive que decorrem suas determinações e, conseqüentemente, emergem as possibilidades ou impossibilidades, os modos e as alternativas de identidade.

Acredito que, além de outros, dois fatores podem impedir que o sujeito se engaje na produção de sua própria história e da história da sociedade. O primeiro é ter uma atitude, de um lado intelectual, frente à questão da relação indivíduo e sociedade, semelhante àquela que nos leva a discutir quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha: o que prevalece, primeiro a sociedade ou primeiro o indivíduo? De outro lado, uma atitude prática, semelhante à do asno indeciso entre dois montes de feno, permanecendo no imobilismo: o que atacar primeiro, o indivíduo ou a sociedade?

O segundo fator é uma concepção de identidade como permanência, como estabilidade; mais que uma simples concepção abstrata, é vivermos privilegiando a permanência e a estabilidade, e patologizando a crise e a contradição, a mudança e a transformação. Assim, como que estancamos o movimento, escamoteamos a contradição, impedimos a superação dialética.

- MOSCOVICI, F. Desenvolvimento interpessoal – Treinamento em grupo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997, p. 32-52, 96-166.

DESENVOLVIMENTO INTERPESSOAL

Eu e os Outros

"Como trabalhar bem com outros? Como entender os outros e fazer-se entender? Por que os outros não conseguem ver o que eu vejo, como eu vejo, por que não percebem a clareza de minhas intenções e ações? Por que os outros interpretam erroneamente meus atos e palavras e complicam tudo? Por que não podemos ser objetivos no trabalho e deixar problemas pessoais de fora? Vamos ser práticos, e deixar as emoções e sentimentos de lado..."

Quem já não pensou assim, alguma vez, em algum momento ou situação?

Desde sempre, a convivência humana é difícil e desafiante. Escritores e poetas, através dos tempos, têm abordado a problemática do relacionamento humano. Sartre, em sua admirável peça teatral Huis Clos, faz a famosa afirmação: "O inferno são os outros..."

Estaremos realmente condenados a sofrer com os outros? Ou podemos ter esperanças de alcançar uma convivência razoavelmente satisfatória e produtiva?

Pessoas convivem e trabalham com pessoas e portam-se como pessoas, isto é, reagem às outras pessoas com as quais entram em contato: comunicam-se, simpatizam e sentem atrações, antipatizam e sentem aversões, aproximam-se, afastam-se, entram em conflito, competem, colaboram, desenvolvem afeto.

Essas interferências ou reações, voluntárias ou involuntárias, intencionais ou inintencionais, constituem o processo de interação humana, em que cada pessoa na presença de outra pessoa não fica indiferente a essa situação de presença

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estimuladora. O processo de interação humana é complexo e ocorre permanentemente entre pessoas, sob forma de comportamentos manifestos e não-manifestos, verbais e não-verbais, pensamentos, sentimentos, reações mentais e/ou físico-corporais.

Assim, um olhar, um sorriso, um gesto, uma postura corporal, um deslocamento físico de aproximação ou afastamento constituem formas não-verbais de interação entre pessoas. Mesmo quando alguém vira as costas ou fica em silêncio, isto também é interação - e tem um significado, pois comunica algo aos outros. O fato de 'sentir' a presença dos outros já é interação.

A forma de interação humana mais freqüente e usual, contudo, é representada pelo processo amplo de comunicação, seja verbal ou não-verbal.

A primeira impressão

O contato inicial entre pessoas gera a chamada primeira impressão, o impacto que cada um causa ao outro. Essa primeira impressão está condicionada a um conjunto de fatores psicológicos da experiência anterior de cada pessoa, suas expectativas e motivação no momento e a própria situação do encontro.

Primeiras impressões poderão ser muito diferentes se certos preconceitos prevalecerem ou não, se as predisposições do momento forem favoráveis ou não à aceitação de diferenças no outro e se o contexto for formal ou informal, de trabalho neutro ou de ansiedade e poder assimétrico, tal como, por exemplo, uma entrevista para solicitar emprego, ou promoção, ou outras vantagens.

Quando a primeira impressão é positiva de ambos os lados, haverá uma tendência a estabelecer relações de simpatia e aproximação que facilitarão o relacionamento interpessoal e as atividades em comum. No caso de assimetria de percepções iniciais, isto é, impacto positivo de um lado, mas sem reciprocidade, o relacionamento tende a ser difícil, tenso, exigindo um esforço de ambas as partes para um conhecimento maior que possa modificar aquela primeira impressão.

Quantas vezes geramos e recebemos primeiras impressões errôneas que nos trazem dificuldades e aborrecimentos desnecessários, porque não nos dispomos a rever e, portanto, confirmar ou modificar aquela impressão. Quando isto acontece, naturalmente, ao longo de uma convivência forçada, como na situação de trabalho, por exemplo, percebemos, então, quanto tempo precioso e quanta energia perdemos por não tomar a iniciativa de procurar conhecer melhor o outro e examinar as próprias atitudes e preconceitos, com o fito de desfazer impressões negativas não-realísticas.

É muito cômodo jogar a culpa no outro pela situação equívoca, mas a realidade mostra a nossa parcela de responsabilidade nos eventos interpessoais. Não há processos unilaterais na interação humana: tudo que acontece no relacionamento interpessoal decorre de duas fontes: eu e outro(s).

Relações Interpessoais

As relações interpessoais desenvolvem-se em decorrência do processo de interação.

À medida que as atividades e interações prosseguem, os sentimentos despertados podem ser diferentes dos indicados inicialmente e então, inevitavelmente, os sentimentos influenciarão as interações e as próprias atividades.

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Esse ciclo 'atividades-interações-sentimentos' não se relaciona diretamente com a competência técnica de cada pessoa. Profissionais competentes individualmente podem render muito abaixo de sua capacidade por influência do grupo e da situação de trabalho.

Quando uma pessoa começa a participar de um grupo, há uma base interna de diferenças que englobam conhecimentos, informações, opiniões, preconceitos, atitudes, experiência anterior, gostos, crenças, valores e estilo comportamental, o que traz inevitáveis diferenças de percepções, opiniões, sentimentos em relação a cada situação compartilhada. Essas diferenças passam a constituir um repertório novo: o daquela pessoa naquele grupo. Como essas diferenças são encaradas e tratadas determina a modalidade de relacionamento entre membros do grupo, colegas de trabalho, superiores e subordinados.

Por exemplo: se no grupo há respeito pela opinião do outro, se a idéia de cada um é ouvida, e

discutida, estabelece-se uma modalidade de relacionamento diferente daquela em que não há respeito pela opinião do outro, quando idéias e sentimentos não são ouvidos, ou ignorados, quando não há troca de informações. A maneira de lidar com diferenças individuais cria um certo clima entre as pessoas e tem forte influência sobre toda a vida em grupo, principalmente nos processos de comunicação, no relacionamento interpessoal, no comportamento organizacional e na produtividade.

Se as diferenças são aceitas e tratadas em aberto, a comunicação flui fácil, em dupla direção, as pessoas ouvem as outras, falam o que pensam e sentem, e têm possibilidades de dar e receber feedback. Se as diferenças são negadas e suprimidas, a comunicação torna-se falha, incompleta, insuficiente, com bloqueios e barreiras, distorções e 'fofocas'. As pessoas não falam o que gostariam de falar, nem ouvem as outras, só captam o que reforça sua imagem das outras e da situação.

O relacionamento interpessoal pode tornar-se e manter-se harmonioso e prazeroso, permitindo trabalho cooperativo, em equipe, com integração de esforços, conjugando as energias, conhecimentos e experiências para um produto maior que a soma das partes, ou seja, a tão buscada sinergia.

Ou então tender a tornar-se muito tenso, conflitivo, levando à desintegração de esforços, à divisão de energias e crescente deterioração do desempenho grupal para um estado de entropia do sistema e final dissolução do grupo.

Relações interpessoais e clima de grupo influenciam-se recíproca e circularmente, caracterizando um ambiente agradável e estimulante, ou desagradável e averso, ou neutro e monótono. Cada modalidade traz satisfações ou insatisfações pessoais e grupais.

A liderança e a participação eficaz em grupo dependem essencialmente da competência interpessoal do líder e dos membros. O trabalho em equipe só terá expressão real e verdadeira se e quando os membros do grupo desenvolverem sua competência interpessoal, o que Ihes permitirá alcançar a tão desejada e propalada sinergia, em seus esforços colaborativos, para obter muito mais que a simples soma das competências técnicas individuais como resultado conjunto do grupo.

Funcionamento e desenvolvimento do grupo

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Quando se deseja estudar um grupo em funcionamento e compreender a seqüência de eventos, as modalidades de interação e suas conseqüências, faz-se mister identificar os componentes relevantes dos processos de grupo.

Visualizando-se o grupo como um campo de forças, em que umas concorrem para movimentos de progresso do grupo e outras para dificuldades ou retrocesso, algumas delas ressaltam no funcionamento grupal. São elas: objetivos, motivação, comunicação, processo decisório, relacionamento, liderança e inovação.

Objetivos

Há um objetivo comum a todos os membros do grupo?

Até que ponto este objetivo é suficientemente claro, compreendido e aceito por todos?

Até que ponto os objetivos individuais são compatíveis com o coletivo e entre si?

Motivação

Qual o nível de interesse e entusiasmo pelas atividades do grupo?

Quanta energia individual é canalizada para o grupo?

Quanto tempo é efetivamente devotado ao grupo (em termos de freqüência, permanência, ausências, atrasos, saídas antecipadas)?

Qual o nível de envolvimento real nos problemas e preocupações do grupo?

Até que ponto há participação plena e dedicação espontânea nos processo de grupo?

Comunicação

Quais as modalidades mais características de comunicação no grupo?

Todos falam livremente ou há bloqueio e receio de falar?

Há espontaneidade nas colocações ou cautela deliberada?

Qual o nível de distorção na recepção das mensagens?

Há troca de feedback, aberto e direto?

Processo decisório

Como são tomadas as decisões no grupo?

Com que freqüência as decisões são unilaterais, por imposição de quem detém o poder?

É comum a decisão por votação, em que a maioria expressa sua vontade?

Quantas vezes o processo decisório é alcançado por consenso, permitindo que todos se posicionem, com respeito mútuo?

Qual a modalidade de tomada de decisão mais característica do grupo?

Relacionamento

As relações entre os membros são harmoniosas, propícias à cooperação?

As relações harmoniosas são apenas superficiais, de aparente cordialidade, ou permitem real integração de esforços e efetividade que levem à coesão do grupo?

As relações mostram-se conflitantes e indicam competição, clara ou velada, entre os membros?

Até que ponto essas relações conflitivas tendem ao agravamento, podendo conduzir o grupo à desintegração?

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Liderança

Como é exercida a liderança? Quem a exerce? Em que circunstâncias?

Quais os estilos de liderança mais usuais no grupo?

Quais as relações entre líderes e liderados?

Como se distribui o poder no grupo?

Inovação

As atividades do grupo caracterizam-se pela rotina?

Como são recebidas idéias novas, sugestões de mudanças nos procedimentos?

Até que ponto estimula-se e exercita-se a criatividade no grupo?

Todos esses componentes influem decisivamente para a definição de normas de funcionamento e concomitante estabelecimento do clima do grupo.

As pessoas que compõem o grupo trazem seus valores, sua filosofia e orientação de vida. A interação permite conhecimento mútuo e identificação de alguns pontos comuns que servirão de base para a elaboração de normas coletivas, tácitas e explícitas, na dinâmica do grupo, Resultante da interação entre os membros, a cultura grupal reúne os produtos materiais e não-materiais desse processo, tais como objetos, documentos, obras de arte, conhecimentos, vocabulário próprio, experiências, sentimentos, atitudes, preconceitos, valores e normas de conduta.

O clima de grupo, por sua vez, tem uma relação circular com os componentes do funcionamento e da cultura grupal, influenciando-os e sendo por eles influenciado constantemente. O clima de grupo, por analogia, pode ser comparado ao clima geográfico. Refere-se às condições atmosféricas do espaço psicossocial e que afetam os membros do grupo durante o tempo em que nele permanecem.

Em qualquer região do globo terrestre, podem ser observadas condições meteorológicas variáveis de temperatura, pressão, ventos, umidade, chuvas, sol, nuvens, tempo bom, tempo instável, tempestades etc.

Em qualquer grupo, da mesma forma, podem ser observadas condições variáveis de calor humano, tensão, movimentos, equilíbrio, restrições, alegria, insegurança, crises. Estas condições, em conjunto, formam a 'atmosfera', responsável pelo que os membros do grupo sentem a seu respeito.

O clima do grupo pode variar desde sentimentos de bem-estar e satisfação até mal-estar e insatisfação, passando por gradações de tensão, estresse, entusiasmo, prazer, frustração e depressão.

Cultura e clima de grupo passam a caracterizar, então, o próprio ambiente total e a imagem do grupo. Todos esses fatores concorrem para a qualidade do comportamento ou desempenho grupal num determinado período.

A energia mobilizada nos comportamentos individuais pode direcionar- se para resultantes ao longo de um contínuo. Este estende-se desde o extremo da divisão de forças, representada pela individualização de esforços e resultados, até o outro extremo do total dinâmico maior que a soma das parcelas, representado pela sinergia grupal.

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Um grupo começa, funciona durante algum tempo, modifica-se em sua estrutura e dinâmica e continua, modificando-se gradativamente, em maior ou menor grau e velocidade, ou fragmenta-se terminando como grupo original ou dando origem a outros grupos.

Participação no grupo

Pensar nos membros de um grupo desempenhando apenas duas funções distintas: liderança e participação é usual e enganoso. Primeiramente a liderança não pode ser assim tão marcada e continuamente ser desempenhada apenas por um membro do grupo. Outros membros podem assumir uma liderança informal, de acordo com as diferentes situações por que passa o grupo em seus processos de interação. Em segundo lugar, a função de membro do grupo significando não líder poderia dar a impressão de um comportamento não-diferenciado comum a todos os componentes do grupo, excluído o líder que tem um papel caracterizado.

Na realidade, a vida em grupo passa por várias fases e, em cada uma delas, os membros atuam de forma diferenciada: em relação à etapa de vida do grupo e em relação aos demais membros. Dependendo do tipo de grupo (informal, formal, de trabalho, social, de treinamento etc.) e da fase em que cada um se encontra, haverá certas funções a serem executadas por seus componentes. Algumas funções são mais genéricas que outras, existindo em todos os grupos, e são desempenhadas pelos membros para que o grupo possa mover-se ou progredir em direção às suas metas.

O processo de interação humana exige que cada participante um determinado desempenho, o qual variará em função da dinâmica de sua personalidade e da dinâmica grupal na situação-momento ou contexto-tempo. No plano interpessoal, o indivíduo reagirá em função de suas necessidades motivacionais, sentimentos, crenças e valores, normas interiorizadas, atitudes, habilidades específicas e capacidade de julgamento realistico. Personalidade, grupo e contexto não podem ser ignorados na apreciação do papel desempenhado por membros de um grupo, em diversas circunstâncias.

Estilos de liderança

Psicólogos sociais e especialistas de dinâmica de grupo indicam dois níveis de interação no grupo: o nível da tarefa e o nível socioemocional. Os dois estilos de liderança são: orientado para controle/tarefa e orientado para participação/manutenção e fortalecimento do próprio grupo.

Ao nível sócioemocional

Entre as funções de manutenção do grupo destacam-se as seguintes como construtivas ou facilitadoras:

Conciliador: busca um denominador comum; quando em conflito, aceita rever sua posição e acompanhar o grupo para não chegar a impasses.

Mediador: resolve as divergências entre outros membros, alivia as tensões nos momentos mais difíceis através de brincadeiras oportunas.

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Animador: demonstra afeto e solidariedade aos outros membros do grupo, bem como compreensão e aceitação dos outros pontos de vista, idéias e sugestões, concordando, recomendando, elogiando as contribuições dos outros.

Ouvinte interessado: acompanha atentamente a atividade do grupo e aceita as idéias dos outros, servindo de auditório e apoio nas discussões e decisões do grupo.

Papéis não-construtivos

Estes papéis dificultam a tarefa do grupo, criando obstáculos. Estes papéis correspondem a necessidades individualistas, motivações de cunho pessoal, problemas de personalidade ou até falhas na estruturação ou da dinâmica do grupo. Entre estes papéis figuram os que seguem:

O dominador: procura afirmar sua autoridade ou superioridade, dando ordens incisivas, interrompendo os demais, manipulando o grupo ou sob forma de adulação, afirmação de status superior.

O dependente: busca ajuda, sob forma de simpatia dos outros membros do grupo, mostrando insegurança, autodepreciação, carência de apoio.

O criador de obstáculos: discorda-se e opõe-se sem razões, mantendo-se negativo até a radicalização, obstruindo o processo do grupo após uma decisão já atingida.

O agressivo: ataca o grupo ou assunto ratado, fazendo ironia ou brincadeiras agressivas, mosra desaprovação dos valores, atos e sentimentos dos outros.

O vaidoso: procura chamar a atenção sobre sua pessoa sobre várias maneiras, contando realizações pessoais e agindo de forma diferente, para afirmar sua superioridade e vantagens em relação aos outros.

O reivindicador: manifesta-se como porta voz de outros, subgrupos ou classes, revelando seus verdadeiros interesses pessoais, preconceitos e dificuldades.

O confessante: usa o grupo como platéia ou assistência ara extravasar seus sentimentos, suas preocupações pessoais, que nada tem a ver com a disposição ou orientação do grupo na situação momento.

O ‘gozador’: aparentemente agradável, evidencia, entretanto, seu completo afastamento do grupo podendo exibir atitudes cínicas, desagradáveis, indiferente a preocupação e ao trabalho do grupo, se diverte com as dificuldades e os esforços dos outros.

Esta classificação dos papéis funcionais do grupo em construtivos e não construtivos, conforme esquema apresentado, não pode ser rigidamente aplicada. Um determinado papel não pode ser julgado em termos absolutos, pois a interação não se faz no vácuo.

A competência interpessoal dos membros do grupo é desenvolvida à medida que eles se conscientizam da variedade de papéis exigidos para o desempenho global do grupo e se sensibilizam para o que é mais apropriado às necessidades especiais do grupo e de seus membros num determinado momento da vida do grupo.

Energia no grupo: tensão e conflito interpessoal

As pessoas são diferentes na maneira de perceber, pensar, sentir e agir. As diferenças individuais são inevitáveis e, portanto, inevitáveis com suas conseqüentes influencias na dinâmica interpessoal. As diferenças entre as pessoas não podem ser consideradas

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apenas como boas ou más. Algumas vezes trazem benefícios ao grupo, outras vezes, trazem prejuízos. As diferenças individuais podem ser consideradas desejáveis e valiosas, pois propiciam riqueza de possibilidades, de opções para melhores, e piores maneiras de reagir a qualquer situação ou problema. Num trabalho em grupo, as diferenças individuais trazem naturalmente diferenças de opinião, expressas em discordâncias quanto a aspectos de percepção de tarefa, metas, meios ou procedimentos. Essas discordâncias podem levar a discussões, tensões, insatisfações, conflito aberto, ativando emoções mais ou menos intensos eu afetam a objetividade, transformando o clima emocional do grupo.

O conflito em si não é patológico nem destrutivo. De um ponto de vista amplo, o conflito pode ter muitas funções positivas. Ele previne a estagnação decorrente do equilíbrio constante da concordância, estimula o interesse e a curiosidade pelo desafio da oposição, descobre problemas e demanda sua solução. Funciona como raiz apara mudanças pessoais, grupais e sociais.

- BOCK, A. M. M. Psicologia Institucional e Processo Grupal. In: ______. Psicologias – uma introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p. 215-228.

PSICOLOGIA INSTITUCIONAL E PROCESSO GRUPAL

A vida em grupo faz parte do nosso cotidiano, o tempo todo nos relacionamos com outras pessoas, seja a família, amigos, vizinhos ou colegas de trabalho. Mesmo quando estamos sozinhos temos como referência o outro. Dificilmente encontraremos uma pessoa que viva completamente isolada e mesmo que alguém viva assim ela levará para seu exílio suas lembranças, seus conhecimentos e sua cultura. Em qualquer circunstancia humana encontraremos determinantes sociais, o que faz com que toda a psicologia seja no fundo uma Psicologia Social.

Toda nossa vida há uma certa regularidade que inclui regras e convenções combinadas entres as pessoas e que são necessárias para a vida em grupo. Qualquer instituição necessita de pessoas que serão encarregadas de diferentes tarefas e terão que seguir regras para que tudo possa funcionar regularmente. Este tipo de regularidade é normatizada pela vida em grupo e é chamada de institucionalização. Geralmente o termo instituição é utilizado para se designar o local onde se presta um determinado serviço (hospitais, abrigos) ou também para designar organizações sociais como, por exemplo, a família, o casamento. Entretanto, aqui, o termo instituição se refere a um valor ou regra social que é reproduzida no cotidiano como sendo uma verdade e que serve como um guia de comportamento e de padrão ético para as pessoas. Para se compreender a Psicologia Institucional é preciso primeiramente conhecer o processo de institucionalização que ocorre na sociedade.

A Construção Social da Realidade e o Processo de Institucionalização

De acordo com Beger e Luckmann o processo de institucionalização começa com o estabelecimento de regularidades comportamentais. As pessoas vão descobrindo aos poucos a forma mais rápida, simples e econômica de desempenhar as tarefas cotidianas. Por exemplo, um grupo social que vive da pesca vai estabelecer formas

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práticas que garanta maior eficiência na realização da tarefa. Quando uma dessas formas se repete muitas vezes pode-se dizer que um hábito se estabelece e se for por razões concretas, com o passar do tempo e das gerações pode transforma-se em tradição. Com o decorrer do tempo as bases concretas não são mais questionadas. Quando se passam muitas gerações e a regra estabelecida perde sua referência de origem (grupo de antepassados), dizemos que esta regra foi institucionalizada.

Instituições, Organizações e Grupo

As mais diversas instituições são reproduzidas na nossas relações sociais cotidianas, mas quase não percebemos, pois atravessa de forma invisível todo tipo de organização social. Só percebemos e recorremos claramente a essas regras quando são quebradas. Se a instituição é o corpo de regras e valores, a organização é a base concreta da sociedade. As organizações que podem ser Igreja, um Ministério como o da Saúde ou até mesmo uma creche, representam o aparato que reproduz as instituições no cotidiano. A instituições sociais são mantidas e reproduzidas nas organizações. O grupo completa a dinâmica de construção social da realidade, é o lugar onde a instituição de realiza. O grupo é o sujeito que reproduz, e em outros momentos, reformula tais regras. É o sujeito que também é ora controlado e submetido as regras e valores, e ora é o sujeito da transformação, da rebeldia e da produção do novo.

Instituição Organização Grupo

(abstrato) (materialização) (realização)

A Importância do Estudo dos Grupos na Psicologia

Os primeiros estudos realizados sobre grupos foram realizadas no final do século XIX pela então denominada psicologia de massas ou psicologia das multidões. Estes pesquisadores foram influenciados pela Revolução Francesa1. Os pesquisadores se perguntavam o que teria mobilizado tamanho contingente humano. No campo da Psicologia se perguntava o que levaria uma multidão a seguir a orientação de um líder mesmo que fosse preciso colocar em risco a própria vida.

A Dinâmica dos Grupos

O grupo se caracteriza pela reunião de um número de pessoas , com um determinado objetivo, compartilhado por todos os membros e que podem desempenhar diferentes papéis para a execução desse objetivo.

Quando convivemos com um grupo independente da nossa escolha, como é o caso quando entramos na escola, na universidade ou um curso, chamamos de solidariedade mecânica. Neste caso, a afiliação a um grupo independe da nossa vontade no que diz respeito à escolha dos seus integrantes. A solidariedade orgânica é a forma de convívio na qual nos filiamos a um grupo porque escolhemos nossos pares. Nos grupos que

1 A revolução Francesa espalhou uma vaga revolucionária que atingiu toda a Europa, principalmente a Alemanha, ecoando até mesmo na América Latina, com lutas de libertação nacional, como a que ocorreu no Peru. A revolução Francesa aboliu a servidão e os direitos feudais, proclamando os princípios universais de "Liberdade, Igualdade e Fraternidade” (Liberté, Egalité, Fraternité), frase de autoria de Jean Nicolas Pache.

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predominam a solidariedade mecânica, geralmente se formam subgrupos que se caracterizam pela solidariedade orgânica.

Grupos Operativos

O francês Pichon-Rivière desenvolveu uma abordagem de trabalho em grupo, a qual denominou de “grupos operativos”. Os grupos operativos trabalham na dialética do ensinar-aprender; o trabalho em grupo proporciona uma interação entre as pessoas, onde elas tanto aprendem como também são sujeitos do saber, mesmo que apenas pelo fato da sua experiência de vida; dessa forma, ao mesmo tempo que aprendem, ensinam também.

O Processo Grupal

Um processo grupal se reconfigura a cada momento, não existindo grupo abstrato. Silvia Lane detecta categorias de produção grupal, que define como:

1. Categoria de produção – produção das satisfações de necessidades do grupo está relacionada com a produção das relações grupais. A realização dos objetivos do grupo e o seu produto final tem a influência subjetiva da dinâmica do grupo. Mas também sofre influência das relações concretas possíveis numa determinada sociedade.

2. Categoria de dominação – os grupos tendem a reproduzir as formas sociais de dominação. Mesmo um grupo democrático tende a reproduzir algumas hierarquias comum ao modo de produção dominante.

3. Categoria grupo-sujeito – de acordo com Lourau, trata-se do nível de resistência à mudança apresentada pelo grupo. Grupos que possuem menor resistência à autocrítica com capacidade de crescimento por meio da mudança, são considerados grupos-sujeitos. Os grupos que se submetem cegamente às normas institucionais apresentado dificuldade para mudança são os grupos-sujeitados.

- LANE, S. T. M. O processo grupal. In: LANE, S. T. M., GODO, W. (Orgs.) Psicologia Social – O homem em movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1999, p. 78-98.

O PROCESSO GRUPAL

Para a Psicologia Social, o grupo não é mais considerado como dicotômico em relação ao indivíduo (indivíduo sozinho x indivíduo em grupo), mas sim como condição necessária para conhecer as determinações sociais que agem sobre o indivíduo, bem como a sua ação como sujeito histórico, partindo do pressuposto que toda ação transformadora da sociedade só pode ocorrer quando indivíduos se agrupam.

Tradicionalmente, os estudos sobre pequenos grupos estão vinculados à teoria de K. Lewin, que os analisa em termos de espaço topológico e de sistemas de forças, procurando captar a dinâmica que ocorre quando pessoas estabelecem uma interdependência. É nessa tradição que conceitos como de coesão, liderança, pressão de grupo foram sendo desenvolvidos em base de observações e experimentos. Tem-se assim descrições de processos grupais que permitem apenas a reprodução, através da aprendizagem de grupos produtivos para o sistema social mais amplo.

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Pudemos observar que os estudos sobre pequenos grupos nesta abordagem tem implícitos valores que visam reproduzir os de individualismo, de harmonia e de manutenção. A função do grupo é definir papéis e, conseqüentemente, a identidade social dos indivíduos; é garantir a sua produtividade social. O grupo coeso, estruturado, é um grupo ideal, acabado, como se os indivíduos envolvidos estacionassem e os processos de interação pudessem se tornar circulares. Em outras palavras, o grupo é visto como a-histórico numa sociedade também a-histórica. A única perspectiva história se refere, no máximo, à história da aprendizagem de cada indivíduo com os outros que constituem o grupo.

As teorias de grupo tem uma postura tradicional onde sua função seria apenas a de definir papéis e, conseqüentemente, a identidade social dos indivíduos e garantir a sua produtividade, pela harmonia e manutenção das relações apreendidas na convivência. Por outro lado, temos teorias modernas que enfatizam o caráter mediatório do grupo entre indivíduos e a sociedade enfatizando o processo pelo qual o grupo se produz; são abordagens que consideram as determinantes sociais mais amplas, necessariamente presentes nas relações grupais.

A partir dessas teorias mais modernas, levantamos algumas premissas para conhecer o grupo, ou seja: 1) o significado da existência e da ação grupal só pode ser encontrado dentro de uma perspectiva histórica que considere a sua inserção na sociedade, com suas determinações econômicas, institucionais e ideológicas; 2) o próprio grupo só poderá ser conhecido enquanto um processo histórico, e neste sentido talvez fosse mais correto falarmos em processo grupal, em vez de grupo.

Destas premissas decorre que todo e qualquer grupo exerce uma função histórica de manter ou transformar as relações sociais desenvolvidas em decorrência das relações de produção, e, sob este aspecto, o grupo, tanto na sua forma de organização como nas suas ações, reproduz ideologia, que, sem um enfoque histórico, não é captada. É a partir da análise dialética que se pode captar o grupo enquanto processo e, inserido numa totalidade maior, levar ao conhecimento dos aspectos concretos desse fato social.

A relação homem-meio implica a construção recíproca do homem e do seu meio, ou seja, o ser humano deve ser visto como produto de sua relação com o ambiente e o ambiente como produto humano, sendo, então, basicamente social. O ambiente, visto como produto humano, se desenvolve a partir da necessidade de sobrevivência, que implica o trabalho e a conseqüente transformação da natureza; a satisfação destas necessidades geram outras necessidades, que vão tornando as relações de produção gradativamente mais complexas. O desenvolvimento da sociedade humana se dá a partir do trabalho vivo, que produz bens e a conseqüente acumulação de bens (capital), e a necessidade do trabalho assalariado; em última análise, a formação de classes sociais. Logo, as relações de produção geram a estrutura da sociedade, inclusive as determinações sócio-culturais, que fazem a mediação entre o homem e o ambiente.

O indivíduo, na sua relação com o ambiente social, interioriza o mundo como realidade concreta, subjetiva, na medida em que é pertinente ao indivíduo em questão, e que por sua vez se exterioriza em seus comportamentos. Esta interiorização-exteriorização obedece a uma dialética em que a percepção do mundo se faz de acordo com o que já foi interiorizado, e a exteriorização do sujeito no mundo se faz conforme sua percepção das coisas existentes.

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É a partir dessa visão que podemos pensar a institucionalização dos sujeitos. Por exemplo, o dirigente e o funcionário devem agir de acordo com as normas estabelecidas, e assim por diante. Essas tipificações são elaboradas no curso da história da instituição, daí só se pode compreender qualquer instituição se aprendermos o processo histórico no qual ela foi produzida. Também é importante ressaltar o fato de que, quanto mais solidificados e definidos forem esses padrões, mais eficiente se torna o controle da sociedade sobre os indivíduos que desempenham esses papéis.

O estabelecimento de papéis a serem desempenhados leva à sua cristalização, como, por exemplo, o papel da mulher enquanto formas de ser e agir. Essa cristalização faz com que os papéis sejam vistos como tendo uma realidade própria, exterior aos indivíduos que têm de se submeter a eles, incorporando-os. Desta forma, o mundo social e o institucional é visto como uma realidade objetiva, concreta, esquecendo-se que essa objetividade é produzida e construída pelo próprio homem.

Cabe à Psicologia aprender como se dá esta internalização da realidade concreta e como ela faz a mediação na determinação dos comportamentos do indivíduo.

A introdução do homem na sociedade é realizada pela socialização, inicialmente a primária e depois a secundária. Na nossa sociedade, a socialização primária ocorre dentro da família, e os aspectos internalizados serão aqueles decorrentes da inserção da família numa classe social, através da percepção que seus pais possuem do mundo, e do próprio caráter institucional da família. A socialização secundária decorre da própria complexidade existente nas relações de produção, levando o indivíduo a internalizar as funções mais específicas das instituições, as subdivisões do mundo concreto e as representações ideológicas da sociedade, de forma a incorporar uma visão de mundo que o mantenha “ajustado” e, conseqüentemente, alienado das determinações concretas que definem suas relações sociais.

Podemos então verificar que toda análise que se fizer do indivíduo terá de se remeter ao grupo a que ele pertence, à classe social, enfocando a relação dialética homem-sociedade, atentando para diversos momentos dessa relação.

- BOCK, A. M. M. As faces da violência. In: ______. Psicologias – uma introdução ao estudo de Psicologia. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p.330-345.

AS FACES DA VIOLÊNCIA

Agressividade e Violência: o Enfoque Psicológico

Geralmente avaliamos a agressividade exclusivamente por suas manifestações comportamentais, consideramos uma pessoa “boazinha” como não agressiva, como não tendo nenhuma hostilidade dentro de si, nenhum impulso destrutivo na sua relação com as coisas e com os outros.

È necessário compreender que a agressividade é um impulso que pode voltar-se para fora (heteroagressão) ou para dentro (auto-agressão). Mas ela constitui a vida psíquica, fazendo parte do binômio amor/ódio, pulsão de vida/pulsão de morte. A agressividade está relacionada com atividades de pensamento, imaginação ou de ação verbal e não-verbal. Ágüem considerado não-agressivo pode ter fantasias destrutivas, ou sua agressividade se manifestar pela ironia, pela omissão de ajuda. A gressividade não se

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caracteriza exclusivamente pela humilhação, constrangimento, ou destruição do outro, pela ação verbal ou física sobre o mundo.

A educação, os mecanismos sociais da lei e da tradição buscam o controle dessa agressividade. Desde criança o ser humano aprende a reprimir e a não expressa-la de modo descontrolado. A agressividade é constitutiva do ser humano e, ao mesmo tempo, a cultura, a vida social possui papel importante no controle da agressividade.

A violência é o uso desejado da agressividade, com fins destrutivos. Este desejo pode ser:

Voluntário (intencional), racional (premeditaado) e consciente, ou

Involuntário, irracional (violência como objeto substituto, por exemplo, por ódio ao chefe, o indivíduo bate no filho) e inconsciente.

A agressividade está na constituição da violência mas não é o único fator que a explica. É necessário compreender como a organização socialestimula, legitima e mantém diferentes modalidades de violência. A violência não se configura somente como prática de delitos e criminalidade. Mas existem outras formas que geralmente não reconhecemos como praticas de violência e que estão no cotidiano. A violência na família, na escola, no trabalho, na polícia, das ruas, do atendimento precário à saúde, etc.

A Violência e suas Modalidades

A Violência na Família

Na nossa sciedade ainda há a prevalência de um modelo familiar que se caracteriza pela autoridade paterna e, poratnto, pela submissão dos filhos e da mulher, e pela repressão da sexualidade, principalmente a feminina. A família possui um lugar mitificado em função de cuidado e proteção, existem muitas outras formas de violência além da física e da sexual; há o abandono, a negligência, a violência psicológica, isto é, condições que comprometem o desenvolvimento saudável da criança e do jovem.

A Violência na Escola

A escola pretende ser a continuidade do processo de socialização, iniciado pela família. No processo educativo os valores, expectativas e práticas são semelhantes. A violência manifesta-se de forma sutil na relação das crianças e dos jovens com os conteúdos a serem aprendidos, que podem não ter significado para sua vida; na sua relação com professores, que se caracteriza por práticas autoritárias e sem espaço para o diálogo, para a crítica; na relação com práticas disciplinares que buscam a sujeição do educando, a submissão, a docilidade, a obediência e o conformismo. A maior violência exercida pela escola é quando ela usa seu poder sobre as crianças e os jovens para impedi-los de pensar, o que os tornam meros reprodutores de conhecimentos.

Violência na Rua

A violência nas ruas é um problema que afeta principalmente os centros urbanos. A rua, como espaço social do lúdico,, do encontro, da convivência, torna´se espaço da insegurança, do medo, da vioLência pelo “bandido”, pela polícia e mesmo pelo cidadão comum.

A Violência e as Drogas

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O uso de drogas deve ser entendido como um processo de autodestruição do indivíduo. A droga deve ser entendida em seu amplo espectro, desde as socialmente permitidas, como o tabaco e o álcool, até aquelas não permitidas, como a maconha, a heroína, a cocaína, e mesmo, os psicofármacos. Os “buracos” afetivos, a insegurança, a não-comunicação com o mundo dos adultos são os principais responsáveis pelo uso de drogas, muitas vezes com a iilusão de que está destruindo valores fundamentais da sociedade.

Violência e Criminalidade

É importante distinguir três aspectos ou conceitos ligados a esta questão: transgressão, infração e deliquência.

O Transgressor

Em todos os grupos existem normas e valores que regulam a relação entre as pessoas no seu interior e, conseqüentemente, todas as pessoas, alguma vez transgrediram essas normas. Sempre que ocorre uma transgreção, existe uma conseqüência para o transgressor: que pode ser advertido, ser exposto afim de reconhecer a importância da norma, ou mesmo ser expulso do grupo. É sempre mais fácil o conformismo com às normas quando se conhece seu significado e concorda-se com elas. Quando o indivíduo transgride uma norma, não significa que ele se caracterize como infrator ou delinqüente.

O Infrator

O infrator é aquele que transgrediu uma norma ou alguma lei tipificada no código penal ou no sistema de leis de uma determinada sociedade. O infrator é aquele que cometeu uma infração e que será punido por isso, isto é, terá uma pena também prevista em lei e aplicada pelo juiz.

O Delinqüente

A delinqüência é uma identidade atribuída e internalizada pelo indivíduo a partir da prática de um ou vários delitos (crimes). M. Foucault, em seu livro Vigiar e Punir, coloca que essa identidade começa a se formar/forjar a partir do momento que o infrator entra no sistema carcerário. A instituição na qual o indivíduo é isolado do convívio social e que tem a função social de regeneração e recuperação é aquela que caba por atribuir-lhe esta identidade que passa a “funcionar” como um rótulo. Uma marca que irá carregar posteriormente à sua saída e que irá dificultar sua integração social.

Atualmente, não é necessário o internamento no sistema carcerário para que inicie a construção da identidade delinqüente. Crianças e jovens, cuja condição de vida é a pobreza passam a ser vistos não como crianças e jovens, mas como perigosos ou potencialmente perigosos. Esta visão fundamenta-se numa visão falseada da realidade em que a pobreza é associada à criminalidade. Esta visão também cumpre a função de desviar a atenção da opinião pública de outros tipos de crimes cometidos pelas classes média e alta.

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- SOUZA, L. Ações coletivas: das massas criminalizadas e patologizadas aos movimentos sociais pós-modernos. In: SOUZA, L., FREITAS, M. F. Q., RODRIGUES, M. M. P. (Orgs.). Psicologia – Reflexões (im)pertinentes. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998, p. 25-45.

AÇÕES COLETIVAS: DAS MASSAS CRIMINALIZADAS E PATOLOGIZADAS AOS MOVIMENTOS SOCIAIS PÓS-MODERNOS

O presente capítulo tem como objetivo traçar uma trajetória das principais categorias de ações coletivas e tratamentos teóricos que receberam as multidões, procurando destacar o papel dos julgamentos de valor.

As primeiras contribuições para o debate relacionado às multidões podem ser identificadas nas obras de Le Bom, Tarde e de Ortega Y Gasset, escritas entre o final do século XIX e início do século XX, que se assemelhavam mais a obras literárias do que científicas ou filosóficas. O fenômeno das massas certamente não é novo na história. Alguns dos registros históricos mais importantes registram que em certos períodos foi necessária a coordenação da força de centenas ou milhares de homens para a construção de monumentos, muralhas e cidades na Antiguidade. A associação de centenas ou milhares de homens já constituía então o que primariamente se convencionou designar por massa, nesses casos geralmente pacíficas.

Apesar de as existência desde nossa pré-história, com episódios nem sempre pacíficos, até o século XVIII as massas chamaram pouca atenção dos estudiosos. Foi somente no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX que as massas, principalmente na forma de protestos, chamaram atenção sobre si e tornaram-se objeto de reflexão e de teorização, nem sempre científicas. O irromper das massas durante o século XIX introduziu elementos perturbadores na vida social, visíveis nas primeiras obras, que traziam uma análise das massas sob os pontos de vista jurídico, criminal e patológico.

Essa análise era influenciada pelas teses de Lombroso, cuja teoria sobre a origem da criminalidade tinha grande aceitação da época. Essencialmente propunha a existência de predisposições hereditárias que se manifestariam sob a forma de tendências para a ação criminosa.

A inquietação natural produzida pelo surgimento do fenômeno das massas desencadeou várias tentativas de defini-la.

Moscovici aponta pelo menos três tendências definidoras. Em uma delas as multidões eram compostas de criminosos, homens irados e destrutivos. Outra concebia as multidões como a expressão coletiva da loucura. A última considerava as massas como sendo constituídas predominantemente de indivíduos colocados à margem da sociedade, portanto de indivíduos associais, que lutavam contra e ameaçavam as instituições.

Le Bom preocupou-se principalmente com as transformações individuais que ocorrem na situação de multidão, não estabelecendo, aparentemente, discriminação de classe, por considerar que qualquer indivíduo, por mais preparado que fosse, ao entrar numa situação de massa ficaria fora do controle. Em função das características indicadas, não havia a possibilidade de as massas estabelecerem seus próprios objetivos,

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necessitando de um líder externo que as dirigisse, obviamente um líder oriundo das elites.

Na análise de Tarde pode-se identificar uma valorização positiva exagerada do indivíduo e das ações individuais, em oposição à extrema negatividade imposta às multidões. Destituía de importância as possíveis idéias inerentes aos movimentos de massa em direção a uma sociedade melhor ou um novo mundo. As multidões que se originam, de acordo com Tarde, nas hordas, encontram prazer na destruição e são inferiores em inteligência e moralidade. Mesmo movimentos com caráter nitidamente político, como o anarquismo, eram compostos, de acordo com ele, por um amontoado de malfeitores, apesar da existência de evidências em contrário que, naturalmente, são analisadas como exceções.

Segundo Tarde, as multidões, apesar de seu intrínseco potencial de violência, eram consideradas vulneráveis à ação das forças repressivas pois diante de sua ação logo se dispersavam.

Embora se encontre algumas variações quando à concepção do homem-massa e ao caráter de submissão ou não das massas entre esses autores do final do século XIX, o núcleo central das idéias explicitadas é o mesmo, ou seja, o combate político das idéias socialistas.

As idéias vigentes à época de Ortega y Gasset se refletem em algumas de suas afirmações sobre as massas, a maior parte delas carregadas de características negativas: as massas são indóceis, pouco inteligentes, não possuem limites para os seus desejos, buscando apenas usufruir dos benefícios da civilização, exigindo tais benefícios como direitos naturais. A forma de ação das massas, a ação direta e violenta, de casual e infrequente torna-se normal, institucionalizando a ação direta como norma reconhecida.

De acordo com essa obra – que também é uma oposição clara às idéias socialistas, que se fortaleciam principalmente entre as classes trabalhadores, e em favor do liberalismo – os homens comuns não estavam preparados para ascender a cargos políticos de direção. A grande massa estaria apenas preocupada com o consumo desenfreado de bens produzidos pela sociedade, não tendo se preparado para a tomada de decisões políticas que afetam a totalidade social.

Os membros das elites, ilustrados e bem preparados, é que estariam destinados a comandar a contento os destinos da sociedade, e não os indivíduos comuns que, indóceis e indomáveis, se recusavam a obedecer aos membros das elites políticas.

A constante referência a características socialmente indesejáveis das massas (patologias, loucura, criminosos, associais, etc.), objetivaram desqualificar aqueles que compunham os movimentos de massa destituindo-os de importância social e política.

Só no final do século XX que começou a aparecer a existência de diferentes modos de analisar as multidões e seus líderes, os quais se encontram na dependência da situação de classe.

Entretanto, as críticas formuladas à maneira como os movimentos de massa foram analisadas na passagem para o século XX não foram suficientes para mudar o enfoque a eles dirigidos. Hoje tais movimentos, na forma de protestos populares de variado tipo, não são analisados de maneira muito diferente pelas autoridades constituídas. A versão oficial sobre ocorrências recentes de quebra-quebras e saques aponta geralmente para a existência de uma massa de ignorantes liderada por malfeitores e arruaceiros de

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tendências ou facções radicais de partidos, excluindo a possibilidade de serem realização de integrantes das classes trabalhadoras, e demonstrando a insistente permanência da visão tradicional que enfatiza supostas características irracionais e/ou criminosas. Dadas a negatividade destas características e sua distância da realidade, seria de se esperar que o enfoque tradicional sobre as massas fosse ultrapassado por enfoques mais realistas.

As transformações sociais e políticas operadas durante um século foram insuficientes para suprimir as multidões da história. A idéia de que as formas espontâneas de multidão ou protesto seriam naturalmente substituídas por formas artificiais e organizadas e melhores, na forma de partidos ou sindicatos não se concretizou. De maneira intermitente, as multidões marcam presença nas sociedades contemporâneas demonstrando sua força através da ação direta.

Algumas proposições de alguns historiadores contribuíram de modo significativo para a destruição de algumas idéias sobre as multidões, presentes nos escritos iniciais sobre a temática. Vários foram os mitos questionados pelos seus estudos: o prazer de provocar tumultos, considerado intrínseco às multidões, a ausência de crenças/ideologias, a criminalização e /ou patologização de seus componentes, a sede de sangue e a preferência por ações violentas e, por último, a necessidade de uma liderança externa, cuja origem preferencialmente seria a elite.

As turbas geralmente eram constituídas pelo povo pobre, usualmente designado por “o povinho”, trabalhadores originários de bairros densos e antigos, que se manifestavam, não pelo “prazer de provocar tumultos”, mas porque pretendiam com isso conseguir alguma mudança, geralmente econômica. Nesse sentido, as turbas não eram constituídas de um aglomerado casual de pessoas, e muito menos pela escória social, como bandidos, prostitutas e lupemproletariado. A associação entre crime e revolta era esporádica e não constante como algumas abordagens procuram demonstrar.

Outro aspecto contido na abordagem tradicional sobre as multidões e que é questionado é a forma de ação. Embora o modo de ação das multidões pré-industriais fosse a ação direta e violenta, em alguns casos com ataques armados e barricadas, havia outras formas, pacíficas, de manifestação que, no entanto, não deixavam de impressionar e alarmar as autoridades. As manifestações súbitas e violentas tendiam, em função de circunstância da época, a ser mais eficazes do que as de longa duração e, portanto, se fortaleciam. A “(...) famosa “sede de sangue” da multidão é uma lenda, baseada nuns poucos incidentes cuidadosamente escolhidos (...)” (Rude, 1991:274), quer serviram de fundamento para as clássicas teorizações sobre as multidões. Existem indicadores de que os confrontos da época resultaram, geralmente, em mais mortes do lado dos insurgentes e amotinados, revelando que a ação violenta não partia caracteristicamente do povo.

Os movimentos tradicionais possuíam como fundamento de suas lutas a exploração econômica. Sua expressão política se dava através dos partidos políticos, especialmente os operários ou de esquerda, que tinham como doutrina filosófica o marxismo-leninismo. Os novos movimentos sociais, ao contrário, não se fundam apenas sobre reivindicações econômicas e uma de suas características mais marcantes é o afastamento dos partidos, abrindo espaço para propostas de autogestão.

Os conflitos situados no setor do trabalho deslocaram-se para as coletividades e, embora não tenham desaparecido completamente, deixaram de ocupar o papel central. A oposição passou a ser conduzida por grupos cada vez mais abrangentes,

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descaracterizando-se como oposição genuinamente operária. Como exemplos de movimentos desse tipo, podemos indicar os de negros, homossexuais, mulheres, ecológicos, entre outros.

O surgimento de novas áreas de conflito nas sociedades capitalistas pós-industriais, cuja característica é a integração das estruturas políticas, econômicas e culturais. “Os conflitos sociais saem do tradicional sistema econômico-industrial para as áreas culturais: eles afetam a identidade pessoal, o tempo e o espaço na vida cotidiana, a motivação e os padrões culturais da ação individual” (Mellucci, 1989:58), sendo os atores sociais não mais definidos pela casse social na medida em que os conflitos são necessariamente ampliados.

- SOUZA, L. O linchamento sob uma perspectiva psicossocial: identidade social e representação de justiça. In: CAMINO, L., MENANDRO, P. R. M. (Orgs.). A sociedade na perspectiva da psicologia: questões teóricas e metodológicas. Coletâneas ANPEPP (13), Rio de Janeiro: ANPEPP, 1996, p. 47-69.

O LINCHAMENTO SOB UMA PERSPECTIVA PSICOSSOCIAL: IDENTIDADE SOCIAL E REPRESENTAÇÃO DE JUSTIÇA

Alguns fenômenos importantes da realidade brasileira têm sido historicamente negligenciados pela psicologia social, tendo sido tomados como objeto relevante de estudo apenas em meados da década de 80. Uma destas categorias de fenômenos refere-se aos movimentos sociais e ações coletivas. Só recentemente têm surgido trabalhos com enfoque sócio-psicológico e, dada sua recenticidade, não é surpreendente que as explicações e testes teóricos sejam ainda tateantes, algumas vezes buscando articulações aparentemente incompatíveis.

No interior desta categoria de ocorrências freqüentemente encontraremos mobilizações tão díspares como a luta contra o desemprego, em que há uma tentativa pacífica de organização e institucionalização das reivindicações, e os quebra-quebras e linchamentos, em que o confronto se estabelece através de uma violência direta e imediata.

A análise apressada das ocorrências, principalmente as do segundo tipo mencionado, tem levado a uma série de equívocos. Apesar dessas teorias equivocadas terem sido editadas entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, em condições bastante diferenciadas das que estamos vivendo neste final de século, as “explicações” pseudo-científicas ali cristalizadas, construídas basicamente através de observações cotidianas, continuam circulando, atendendo a propósitos claramente ideológicos.

É dominante naquelas análises sobre comportamento das massas, a atribuição de características negativas que visaram desde sempre destituir as mobilizações de seu caráter político, atribuindo-as ora a um estado patológico, ora a um estado criminal. A ênfase na mobilização coletiva através da emoção em oposição a suposta racionalidade presente no comportamento individual, e a ênfase na ação violenta como ação característica das massas só poderiam culminar na sua classificação como essencialmente composta por criminosos. A associação com patologias foi também inevitável.

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Uma análise sobre linchamentos também foi feita segundo essa tradição. Ressuscitando a antiga visão sobre as massas e analisando o comportamento de potenciais linchadores em uma ocorrência no campo de concentração, estes são chamados de irracionais e decorrentes de “psicose coletiva transitória”. Curiosamente, no relato do caso analisado, o linchamento foi impedido pelo surgimento de um líder externo, que foi considerado como sendo uma pessoa bem integrada, acentuadamente livre de sintomas neuróticos e acostumado ao papel de líder em sua ocupação.

Trabalhos desenvolvidos recentemente no Brasil demonstram a existência de lideranças genuínas e de objetivos claros no movimento, bem como seu crescente grau de organização e sua vinculação à rede de poder das localidades onde os linchamentos ocorrem.

Nestes estudos prefere-se analisar tais fenômenos na esfera da cidadania e, portanto, dos direitos, e encará-los usualmente como estratégias de protesto e de confronto com o judiciário. Inserir os linchamentos em tal esfera pode ser fundamental para resgatar o seu pleno sentido político. Uma característica relevante de tais estudos está relacionada à ênfase dada ao conhecimento de variáveis psicológicas que, queiramos ou não, sempre estarão implicadas na participação individual em situações de conflito inter-grupal.

Considerando a necessidade de fornecer elementos para melhor compreensão dos linchamentos que ocorrem no Brasil, o presente trabalho objetivou identificar as representações sociais de justiça presentes em moradores de uma comunidade onde ocorreu um linchamento organizado.

Objetivando ultrapassar as possíveis limitações inerentes a um estudo que tivesse como base exclusiva notícias jornalísticas, optamos por uma estratégia que possibilidade uma cobertura mais profunda do fenômeno: o Estudo de Caso. Somente um estudo em profundidade, no cotidiano da comunidade onde o linchamento ocorreu, poderia revelar parte da tessitura subjetiva ali presente e o seu sentido político-pedagógico. A revelação das condições em que ocorreu – os motivos, as redes de relações que se estabeleceram entre os participantes, a representação de justiça subjacente, a delimitação de ingroups e outgroups, os estereótipos e crenças compartilhados, as estratégias de ação, etc. – podem certamente nos proporcionar, no mínimo, julgamentos com maior significação científica.

A escolha do caso recaiu numa ocorrência que aconteceu no início de 1990, em uma pequena cidade do interior de um estado, cujo principal motivo desencadeador foi o assassinato de um taxista bastante conhecido e respeitado na localidade.

Foram feitas análises dos processos judiciais, dos registros de inquérito instaurados na Delegacia de Polícia local, das notícias e reportagens jornalísticas sobre o caso, entrevistas com os moradores, entre outros.

As entrevistas continham quatro núcleos básicos: a) sobre a cidade: opinião geral sobre a cidade e seus moradores, sobre criminalidade e as razões para os crimes que ali ocorreram, etc.; b) sobre o assassinato do taxista: opinião sobre o assassinato, sobre o efeito produzido pelo assassinato na comunidade, características do taxista em relação à comunidade; c) sobre o linchamento: opinião sobre as razões para a ocorrência do linchamento, comentários que circularam na cidade antes e depois do linchamento, avaliação que se faz sobre a ocorrência, entre outros; d) sobre justiça: percepções e crenças sobre justiça, avaliação que faz do funcionamento do aparelho judiciário, etc.

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Síntese dos principais resultados

- A representação que os moradores possuem sobre o linchamento e suas conseqüências, bem como em relação ao comportamento dos linchadores, estão ancorados nas representações que possuem sobre justiça enquanto princípio abstrato, nas crenças sobre a possibilidade concreta de se aplicar de maneira justa as regras presentes nos códigos legais e na avaliação que faz sobre o funcionamento do judiciário.

- Embora tenha sido predominante a representação de justiça enquanto aplicação da lei aos que cometeram “mal feitos”, a crença de que não é possível fazer justiça baseia-se no conhecimento derivado de casos concretos onde, na maior parte das vezes, os preceitos legais não são aplicados adequadamente.

- O judiciário é visto principalmente como um instrumento a serviço do poder político e econômico. Aqueles que possuem poder econômico conseguem se esquivar das punições previstas nos códigos legais, seja através da contratação de bons advogados de defesa, hábeis na produção de provas atenuantes, seja através do suborno direto de membros do júri. Alguns outros elementos que compõem a representação são a morosidade na conclusão de processos, a aplicação de penas brandas para crimes considerados hediondos e a facilidade em obter o abrandamento de penas e a liberdade. É inevitável a associação entre aparelho judiciário e corrupção.

- Apesar da predominância da associação do poder judiciário com interesses econômicos e de classe, parte dos entrevistados reafirmou a importância de se acreditar que a justiça possa ser aplicada conforme as prescrições dos códigos legais.

- Considerando-se a hipótese de envolvimento futuro em uma situação de conflito onde fosse necessária a intervenção de autoridades policiais ou judiciárias, enquanto uma parte dos entrevistados mostrou-se predisposta a procurar tais serviços, a maior parte deles preferia resolver de outra maneira, apenas procurando o judiciário em último caso ou quando o prejuízo fosse grande.

- A maioria dos moradores entrevistados manifestou dúvidas quanto à punição dos linchadores. Alguns deles, no entanto, manifestaram a certeza de que a punição não ocorrerá, demonstrando inclusive o conhecimento das dificuldades legais em se punir “crimes de multidão”. Outros ainda manifestaram-se contrários à punição dos suspeitos de participação no linchamento por medo de represália ou de revolta, ou ainda porque seria pouco eficaz.

- Os moradores entrevistados, mesmo tendo conhecimento sobre os principais articuladores e participantes, pois isso é público, não se dispõem a fazer denúncia ou testemunhar contra eles, muitas vezes se esquivando porque não viram direito quem de fato estava participando, ou porque concordam com o linchamento, ou ainda porque numa multidão é muito difícil saber quem foi que participou de fato e quem apenas assistiu.

- Sobre a predisposição individual em participar de um linchamento, parte dos entrevistados acredita que não participaria de um linchamento por não ter coragem suficiente para isso, enquanto outros indicaram uma predisposição a participar caso alguém de sua família fosse vítima de violência.

- O conhecimento de casos concretos, onde o princípio de justiça não é aplicado corretamente, de acordo com a visão dos entrevistados, torna possível o

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estabelecimento de uma vinculação entre o judiciário e o poder político-econômico e interesses de classe. A avaliação que os moradores fazem é que a justiça só existe para o pobre, certamente no sentido de que o pobre é que está mais sujeito à aplicação das penalidades. As leis como garantias de direitos não estão em pauta quando se discute o princípio de justiça. Esta representação não impede, no entanto, a existência de uma posição favorável a um rigor maior da lei.

- A representação de justiça é bastante flexível e os elementos nela contidos são aparentemente contraditórios e dependentes das circunstâncias. Para que se julgue que houve justiça concorrem não apenas o princípio de reparação do dano e o dano propriamente dito. Destacam-se como muito importantes, e talvez até principais, as características das vítimas e dos autores.

- Do ponto de vista dos entrevistados não parece ser difícil acomodar um princípio geral fundado no direito à vida com uma posição favorável ao linchamento, ou à pena de morte, e ainda com uma previsão de participação caso um familiar seu fosse vítima de atos violentos. Do mesmo modo pode-se encontrar uma ligação entre a defesa veemente da aplicação da lei a todos, e não apenas aos pobres, e a defesa, também veemente, de que em um caso específico a referida lei não deveria ser aplicada. Entre uma concepção de que o linchamento é uma ocorrência “bárbara” e lamentável, tanto do ponto de vista legal como humano, e uma percepção que acentua seus aspectos positivos. Entre a descrença no aparelho judiciário e a tendência a recorrer a seus serviços quando necessário, mesmo que exclusivamente em casos graves.

- Poucos foram os moradores que exteriorizaram uma representação exclusivamente positiva do linchamento. A situação de entrevista, que implica interação face-a-face, pode ter colocado certos limites à livre expressão das representações que os moradores possuem em relação a uma ocorrência deste tipo. No entanto, o apoio dado à ocorrência e as justificações apresentadas para o comportamento dos participantes, permitem extrairmos a conclusão de que houve aprovação generalizada. Aprovação esta decorrente de uma representação retributiva, cujo substrato lógico é a idéia de equivalência absoluta entre os delitos e as penas.

Conclusões

Um evento como o linchamento, representado como negativo, possui também aspectos positivos, apresentando flutuações contraditórias entre os seus elementos.

A representação negativa do linchamento não corresponde, como seria esperado, uma alta expectativa de punição aos participantes e uma predisposição dos moradores em denunciá-los ou testemunhar contra eles. Alguns inclusive manifestam uma posição favorável a que punições não venham a ocorrer. Não encontramos correspondência ainda entre as representações e o apoio que a comunidade deu aos participantes do linchamento, manifestado em comentários cujo conteúdo visou minimizar sua participação ou apresentar justificações para isso ter ocorrido.

A representação de justiça enquanto “aplicação da lei” não encontra correspondência no tratamento que parte da comunidade deu aos suspeitos do assassinato, permitindo que fossem executados “à margem da lei” em frente ao fórum local, à frente de juízes e promotores, e quem sabe, de outras autoridades. Esta constatação demonstra que a representação não age isoladamente, encontrando-se freqüentemente associada a

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outras representações, como por exemplo, aquelas relacionadas ao crime cometido e aos seus autores.

Alguns autores têm indicado a existência de um processo que promove a justificação da violência cometida contra determinados grupos sociais. A violência cometida não é uma ação reprovável em si mesma, a reprovação depende diretamente de quem (ou que grupo) ela atingirá e de se considerar sua fonte legítima. É neste sentido que as classes populares, apesar de vulneráveis tanto aos atos arbitrários da polícia quanto de bandidos, tendem a ver como legítimas apenas as ações dos primeiros.

Se o grupo sujeito à violência é representado como sendo constituído de outsiders a legitimação e a conseqüente justificação ocorrem quase que automaticamente. Ao invadir a penitenciária do Carandiru, em São Paulo, a ação policial conseguiu apoio de parte significativa da população porque o massacre foi cometido contra presos, um grupo que, por si só, justificaria qualquer tipo de violência. É também sobre esse enfoque que são discutidas as dificuldades que se apresentam para o fortalecimento da campanha pelos direitos humanos, freqüentemente associada aos direitos de bandidos.

O caso analisado explicitou uma identidade que é compartilhada pelos moradores. Segundo Tajfel, identidade social refere-se ao sentimento de pertencimento: “(...) o conhecimento que ele tem de que pertence a determinados grupos sociais, juntamente com o significado emocional e de valor que ele atribui a essa pertença só podem ser definidos através dos efeitos das categorizações sociais que dividem o meio social de um indivíduo no seu próprio grupo e em outros” (1983:294).

O que identifica os moradores, objetiva e subjetivamente, é o fato de serem moradores – muitos deles desde o nascimento – de uma determinada localidade. Esta noção compartilhada de pertencimento, adquirida no processo de desenvolvimento de cada um de seus moradores, fornce por sua vez uma série de critérios de julgamento e uma visão específica sobre a realidade social.

Verificamos que a cidade é representada positivamente pelos moradores entrevistados. Quando falam sobre a cidade, ressaltam, na maior parte das vezes, os seus aspectos positivos. Os municípios próximos, no entanto, são representados negativamente, caracterizando o processo de categorização social, evidenciando a existência de in e outgroups e, portanto, de categorias sociais avaliadas de maneira diferenciada.

Outro aspecto que coloca em evidência este processo de preservar a identidade positiva do ingroup refere-se à avaliação que os entrevistados fazem sobre a evolução da criminalidade no local. Embora identifiquem um aumento no número de crimes cometidos na localidade, alguns atribuem a autoria a “gente de fora”, de “outras cidades” ou de “outros estados”. O levantamento realizado na delegacia local, no entanto, evidenciou que os autores são moradores da localidade e predominantemente trabalhadores rurais, indicando os limites psicológicos relativos aos in e outgroups.

O taxista assassinado era membro do ingroup e os moradores ressaltaram apenas as suas qualidades, através de adjetivações positivas. Ao mesmo tempo, verificamos também que acentuaram as atrocidades cometidas contra ele por membros de um outgroup. Desnecessário dizer que as características de brutalidade do assassino foram, pelo processo natural de acentuação das diferentes, imputadas aos seus supostos autores.

No processo de organização do movimento, o grupo que participou do linchamento acabou se constituindo em um outgroup. Evidência em favor dessa análise é que

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quando se tratou de analisar o linchamento os entrevistados consideraram os principais participantes como um grupo à aparte, diferente dos outros moradores do local. Não foram “os moradores” da localidade que lincharam, foi apenas um pequeno grupo, que se diferenciou por possuir características incompatíveis com as da “gente boa” do lugar.

O que não podemos deixar de enfatizar é que a identidade, tanto dos moradores quanto dos linchadores, é socialmente compartilhada. É este compartilhamento que explica, pelo menos em parte, a avaliação positiva que os moradores fazem dos linchadores em determinados momentos. São considerados honestos, trabalhadores, responsáveis e são respeitados pelos moradores. O fato de terem participado do linchamento parece ser considerado circunstancial e não faltaram razões para isso. Mas naquela situação, apesar de serem moradores, eles procuraram se diferenciar dos “outros” moradores do local.

A vida não é um valor universal, como valor ele encontra-se na dependência de quem é o possuidor da vida. A vida de um bandido de “dentro” tem um valor diferente daquela do “de fora”, do mesmo modo que a vida de um morador tem valor maior do que a de um estranho e, maior ainda, que a de um “bandido estranho”.

O pouco valor dado à vida das vítimas dos linchamentos, bem como a solidariedade e o apoio dado aos linchadores nas mais diferentes formas, decorrem das afiliações grupais e identidades sociais em confronto em situações de conflito intergrupal. A desumanização das vítimas em confronto com as características da “gente boa” do local só pode ter a função de justificação para ações socialmente condenáveis. A despersonalizaão e a desumanização de membros de determinados grupos, infelizmente, não é um fenômeno raro. Os exemplos históricos de conflitos bélicos e perseguições onde tais processos estiveram, e estão presentes, são certamente inumeráveis.

A análise sobre os linchamentos norte-americanos, em que predominaram os motivos relacionados ao rompimento de tabus sexuais raciais, é um claro exemplo de conflito intergrupal, onde se pode identificar o embate entre identidades antagônicas e o processo de acentuação das diferenças mencionadas.

Enfim, as exigências impostas pela necessidade de convivência cotidiana com os linchadores produziram acomodações que, embora possam ser percebidas como ilógicas ou contraditórias, são elementos fundamentais para o restabelecimento das condições mínimas para a “boa convivência” entre os pacatos moradores da localidade e os participantes do linchamento. Contraditoriamente isto pode significar, a longo prazo, o submetimento a uma ordenação de poder que nada tem a ver com relações civilizadas e a conseqüente realimentação de uma cultura, que hoje observamos no Brasil, onde o extermínio de determinados outgroups é justificado sob os mais diferentes argumentos.

- GUARESCHI, N. M. F., WEBER, A., COMUNELLO, L. M., NARDINI, M. Discussões sobre violência: trabalhando a produção de sentido. Psicologia: Reflexão e Crítica, 19 (1), 122-130, 2006.

DISCUSSÕES SOBRE VIOLÊNCIA: TRABALHANDO A PRODUÇÃO DE SENTIDO

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Pode-se dizer que a violência, em suas manifestações plurais na sociedade contemporânea, é constituída a partir de uma perspectiva individualista. Wieviorka (1997) apresenta duas faces complementares e, eventualmente opostas, do individualismo. Por um lado, o indivíduo quer participar da modernidade, do que ela oferece, de seus fluxos de consumo, de seus meios de comunicação e das demandas de um consumo de massa cujo espetáculo está globalizado; por outro, quer ser reconhecido como sujeito, construir sua existência e não ser tão dependente de papéis e funções. Produzir e não somente reproduzir-se (Wieviorka, 1997).

Essas duas facetas mantêm, hoje, uma estreita relação com a violência. Podemos pensar nos atores das violências instrumentais, aqueles que se engajam em motivações econômicas, querendo o dinheiro para consumir e comprar para si ou para os seus. E, em um outro modo bem distinto, a violência pode assumir, também, um caráter ilimitado, não-instrumental, relacionado a um desejo frustrado de aceder aos frutos da modernidade.

Assim, a violência traz a marca de uma subjetividade arrebentada, esmagada, frustrada. O ator que não pode existir enquanto tal é a voz do sujeito não-reconhecido, prisioneiro da massa. Nessa perspectiva, ''a violência é suscetível de emergir na interação ou no choque das subjetividades negadas ou destruídas'' (Wieviorka, 1997).

Para problematizar a violência no âmbito das Políticas Sociais, mais precisamente as formas de intervenções que buscam combatê-la, consideramos necessário utilizar algumas perspectivas de autores que discutem a violência nesta área. Abramovay et al. (2002) citam, pelo menos, três dessas perspectivas. A primeira se refere à violência direta, relacionada aos atos físicos resultantes, com prejuízo deliberado, ou seja, quando alguém sofre algum tipo de dano físico, a partir de um contato corporal. A segunda diz respeito à violência indireta, que envolve todos os tipos de ação coercitiva ou agressiva, resultando em prejuízo psicológico ou emocional, quando, por exemplo, o sujeito é destituído de possibilidades de reação. Por fim, a violência simbólica, relações de poder que se estabelecem por meio de instituições, cerceando a ''livre ação, pensamento e consciência dos indivíduos''.

A partir desse percurso da produção de conhecimento acerca da violência, entende-se a violência sob o ponto de vista de um contexto social, cultural e político. Essas articulações têm particular relevância na forma como entendemos as identidades, como fluidas, descontínuas e constituídas pelas diferenças e pelas relações de poder, em redes discursivas, as quais constituem saberes que podem objetivar formas de violência e de ser violento.

Para tanto, buscamos compreender como esses homens, situados em um contexto cultural e social particular, produzem sentidos relacionados à violência que passam a subjetivá-los e a constituir suas identidades.

Trabalhamos com a noção de identidades, constituídas nos jogos de saberes e poderes que se estabelecem entre diferentes marcadores identitários: raça, classe, sexualidade, gênero. As identidades não podem ser pensadas fora dos sistemas de significação nos quais adquirem sentido e nem podem ser pensadas como estáveis.

Sobre o Contexto da Pesquisa e da Metodologia

Para desenvolvermos esta pesquisa, integramo-nos a uma ONG que trabalha instituindo propostas eficazes, inibidoras e interventivas de fatores desencadeantes da

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violência. Uma das atividades desta ONG, que atua na região metropolitana do Estado do Rio Grande do Sul, é o grupo denominado ''Agressores Anônimos'', do qual participamos durante mais de dois anos na condição de observadores participantes. Segundo a proposta desta organização, os procedimentos de intervenção grupal visam a prevenção da violência, sendo entendidos como condição de possibilidade para a diminuição das situações de risco e da reincidência da agressão.

Os participantes que compunham os grupos de discussão foram encaminhados, inicialmente, pelo Sistema Judiciário, advindos do Fórum, do Conselho Tutelar ou, ainda, da Delegacia de Polícia da Região, devido a queixas sobre algum envolvimento em situação de agressão e/ou risco. Os participantes, em geral, são moradores de comunidades carentes, de baixa renda, com baixo nível de instrução devido a dificuldades de acesso à escola1, convivem em condições precárias, em relação à moradia, ao trabalho (ou falta deste), à falta de recursos ou possibilidades para o lazer. Alguns deles estão desempregados, outros são autônomos, carpinteiros, metalúrgicos, etc. Esse contexto, atravessado por diversos vetores sociais, culturais, econômicos e políticos, remete a uma situação de desigualdade e desvantagem na articulação de recursos materiais e simbólicos no que diz respeito à possibilidade de mobilidade social.

As Relações Familiares...

A violência é associada a diversos vetores que, constantemente, se interpelam nos discursos desses sujeitos, sendo, assim, objetivada de várias maneiras, desde uma forma de cuidado através da repreensão de atos considerados errados, até uma maneira de buscar o diálogo e novos modos de ser e pensar. Nesse sentido, a família é referenciada em modelos tradicionais, nos quais as figuras parentais têm papéis definidos na manutenção de determinadas relações, por exemplo nas relações de respeito e autoridade.

No contexto das relações familiares, os atos de agressão são, por vezes, associados como formas de cuidado, objetivando atos violentos como uma forma de expressar carinho e cuidado, pois, a agressão, aqui, é tida como prevenção e correção do que se considera certo ou errado em relação a determinadas práticas. Esta questão acerca das relações na família, que envolvem carinho e respeito, também está associada à importância dos modelos a serem seguidos.

Em geral, os discursos que constituem as Políticas Sociais vêm ao encontro de algumas práticas da Psicologia que objetivam a questão da agressão e da violência como algo do indivíduo, de sua essência, procurando explicá-las através de traços de personalidade e de diagnósticos clínicos. Em outros casos, procura-se localizar a violência no espaço das relações familiares. Assim, este saber trata o indivíduo como dissociado de seu contexto social, cultural e político, legitimando o que pertence à esfera pública e o que pertence à esfera privada. Passa, assim, não só a adotar e a trabalhar somente dentro de uma perspectiva, de uma lógica do privado mas, sobretudo, a compreender o sujeito, ou melhor, tudo aquilo que é do sujeito e que este apresenta e produz, como tendo sua origem no privado, no individual, no familiar. Ao encerrarmos a violência em um espaço doméstico, familiar, privado, retira-se seu caráter político-social, encarcerando-a em um ''terreno facilmente psicologizante, familiarizante, intimizante'', sendo um direito de todo cidadão – independente de hierarquia social, gênero, raça, etc, até mesmo da forma de violência sofrida – ser atendido pelo Estado (Coimbra, 2002, p.82).

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Ainda no espaço familiar, a violência é associada à destituição, às diversas impossibilidades existentes. Estes aspectos aparecem quando homens choram ao falar sobre filhos e filhas, embora tenham sido afastados deles e delas por tê-los agredido. Essas situações os colocam diante do Judiciário, em processos de destituição da guarda dos filhos, por causa da prática de atos considerados agressivos.

Desta forma, a busca do diálogo é compreendido como uma estratégia possível de reverter processos de acusação, à medida que os sujeitos se mostram disponíveis a conversar, explicar e justificar seus atos. Algumas falas postulam que ''bater não resolve nada dentro de casa'', mas que quando sofrem tentativas de destituição de voz (Ex.: quando a mulher lhes manda ''calar a boca'') acabam partindo para a agressão: ''me sinto um lixo'', pois ''continua a última palavra sendo dela..''. Assim, a destituição da palavra acaba por gerar atos violentos, assim como o desconforto causado pela impossibilidade de escuta: ''Ninguém me escuta'' - que aparece relacionado a um sentimento de desvalorização. Porém, cabe, aqui, um questionamento: será que essa destituição de palavra é feita só pela sua mulher? Ou será que é somente contra ela que ele pode reagir assim? Essa destituição ocorre num âmbito muito maior (Ex.: destituição de cidadania) e envolve questões propriamente sociais e políticas mais do que familiares.

Outra situação que emerge dos discursos dos participantes se refere à falta de recursos devido à baixa renda. Esta é associada às relações familiares e à questão das relações de gênero, pois, na maioria dos casos, o homem é visto como mantenedor dos recursos financeiros da família: ''..porque, poxa vida, eu não posso, eu não fabrico dinheiro, eu tenho que trabalhar pra ganhar dinheiro. Elas dizem 'Te vira', pô, peraí, por que vocês também não se viram. Aí é pior né, quando eu peço alguma coisa pra elas, aí elas acham ruim, quer dizer... eu não posso pedir e agredir de tudo que é forma, eu não posso pedir nada...''.

A questão financeira também aparece juntamente com as cobranças que existem no espaço da família. O aspecto de cobrança é visto como algo que torna o espaço familiar um espaço de opressão. Assim, pode-se pensar que estes homens compreendem a violência como algo que pertence ao espaço individual, intrafamiliar. Em momento algum, eles a localizam no espaço público, isto é, eles não atribuem seus atos violentos ao fato de estarem desempregados e terem poucas possibilidades de manter o sustento de sua família, mas referem que agrediram por que o outro os provocou, e não por toda destituição de poder e de ascensão social que se apresenta no espaço público.

Apesar de muitas das pressões exercidas nessas famílias serem extrafamiliares, os conflitos e os problemas são cristalizados como uma expressão exclusiva de tensão familiar, um problema de relacionamento; ou algo que se refere unicamente à família ou ao relacionamento afetivo. Essa via unívoca de significação da família como foco de tensões que em si são extrafamiliares, acaba literalmente explodindo em atos violentos contra os membros da mesma, agora identificados como irritantes e agravadores de tensões.

O Diálogo (falta)...

No momento em que se parte de uma perspectiva essencialista e biológica para dar conta da questão da violência, acaba-se por ignorar a diversidade de possibilidades de expressão do sujeito, suas diferenças culturais, sociais, econômicas, sexuais, geográficas, etc., engessando formas de ser e pensar. Pensar o ser humano através de

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seus vetores existenciais complexos é um desafio que se nos impõe, pois lidar com a alteridade, com a diferença ou com o outro nunca é uma tarefa fácil.

Na tentativa de contornar situações desagradáveis, o diálogo é enunciado como uma possibilidade de resolução, sendo ao mesmo tempo objetivado como algo difícil e complicado. Por mais que a maior parte das tentativas anteriores para o estabelecimento de algum tipo de diálogo tenham sido frustradas, ainda permanece a concepção do diálogo como possibilidade de resolução. O fato de o diálogo aparecer configurado desta maneira mostra a influência do discurso''normalizante'' da Psicologia sobre o senso comum. Pode-se, aqui, pensar sobre as influências que se refletem de diversas formas, como nas novelas, programas de televisão, jornais populares, ...

Estas tentativas frustradas são ilustradas em falas como ''bota água em cima da fogueira sempre'' (frente a uma tentativa de conversar), e ''tento conversar, mas dizem: já tá puxando o saco''. Essas situações demonstram o quanto as tentativas de estabelecer diálogos são tomadas como fracassadas.

Os discursos acerca do diálogo enunciam a dificuldade de os sujeitos resolverem seus problemas através do diálogo e, por vezes, essa dificuldade é atribuída às problemáticas conjugais.

A dificuldade que o diálogo representa acaba fazendo com que evitem estas situações, o que proporciona um afastamento nas relações familiares. Nesse contexto, tensões e conflitos se tornam condições de possibilidade para a ocorrência de atos violentos: ''Eu não posso reclamar, muitas vezes eu tava errado... eu sempre achei que dava para sentar e conversar... mas com ela não dá'', associando as relações familiares à falta de controle.

As Agressões...

Conforme Almeida (2002, p.46), ''a violência no Brasil não existe como estado, mas como processo, como produto de relações históricas''. Por isso, é necessário entender as particularidades que tornam possíveis a emergência de determinadas formas de violência e criminalidade, discutir o inventário hierarquizado da violência e o grau de reprovação social que lhe é atribuído. A cultura da violência torna-se a base na qual se constroem formas de sociabilidade dominantes na contemporaneidade, ou seja, existe uma luta cotidiana na busca de diferentes modos de lidar e viver com a violência.

No discurso regulador da psicologia, comportamentos violentos são relacionados a uma estruturação específica da personalidade: a estrutura perversa, que não se autoflagela ou culpa por questionar e levar a cabo formas de subverter estruturas vigentes ''cegamente'' (ou seja, sem muitos propósitos políticos). Essas formas de subversão são, muitas vezes, codificadas como comportamentos violentos, e entendidas como inerentes ao indivíduo. O sujeito, com essa estruturação, é percebido como essencialmente agressivo. Tais comportamentos para esse discurso normalizante, não ocorrem por alguma insatisfação social, política ou econômica, mas, sim, por instâncias internas que não se adaptaram à ''realidade'', um Édipo mal-resolvido, uma família desestruturada, um ego demasiadamente narcísico. Ou seja, o que o indivíduo precisa para não se produzir psiquicamente agressivo neste discurso é uma família nuclear tipicamente burguesa, mesmo na favela.

O ato de agressão aparece relacionado a questões de autoridade quando a submissão torna-se presente nas relações familiares: ''às vezes até baixo a cabeça para ela''.

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Em geral, dificilmente os homens consideram-se agressores, embora alguém os reconheça dessa forma, pois foram encaminhados ao grupo devido a uma queixa de agressão: ''Eu não faço nada!''; ''Eu acho que eu errei, que eu até fui correto demais''. Assim, atribuem valores para o que seja certo ou errado em seu cotidiano, para a violência que, em alguns momentos, aparece banalizada. Ao mesmo tempo, a delegacia, enquanto espaço de controle e normatividade, é vista como infame: ''Vir na delegacia é um vexame para mim''. A violência, então, aparece colada a julgamentos de valor e autoridade, pois praticar um ato violento pode ser entendido como exercer poder sobre o outro.

As Drogas...

Determinadas práticas cotidianas são consideradas fatores estressantes que podem levar ao ato de violência, por exemplo, a ausência de diálogo, a noção de justiça e a falta de controle. Esta última aparece associada, principalmente, a situações que consideram injustas e ao uso de drogas (maconha e bebidas alcoólicas). A respeito disso, demonstram preocupação com o uso de drogas dentro da família, em função de suas conseqüências como o afastamento nas relações familiares, ou prejuízos no trabalho.

Estabelece-se uma relação entre a violência e a impossibilidade de controle em situações de abuso de drogas. Ao emergir a temática das drogas, alguns dos participantes que as usaram e que as significam dentro de discursos hegemônicos sobre o mal da droga, falam o quanto o vício influencia em suas vidas e o quão difícil é abandoná-lo. Ainda em relação ao fato de como significam esses discursos sobre as drogas, os participantes relatam os meios que utilizam para não recair: ''tem que achar alguma coisa pra fazer''. A bebida está, muitas vezes, associada ao uso de outras substâncias como tranqüilizantes: ''tomava uma ou duas cervejas para conseguir dormir'', vistas igualmente com estratégia para suportar o frio e as condições físicas no trabalho. O uso é associado à inquietação, à impossibilidade de estar ''parado'': ''Eu não consigo ficar dentro de casa vendo TV, quietinho...'', cuja solução encontrada é ir para o bar beber.

Por vezes, alguns discursos enunciam as drogas como única fonte de prazer, quando suas falas trazem que nenhuma atividade lhes é prazerosa sem o uso da bebida. Em outro momento, enunciam o uso de álcool como uma prática do cotidiano, corriqueira, que passou a se tornar rotina e que não se consegue mais ficar sem.

Considerações Finais

A participação desses homens nos grupos, que compreendemos como um espaço de escuta, de troca, mais do que um processo de intervenção, propicia-lhes pensarem sobre si mesmos e sobre as situações que vivenciam de modo diferenciado, produzindo sentidos sobre as diferentes práticas que possibilitam significar cotidianos, advindos dos discursos pelos quais são constantemente interpelados: ''onde foi que eu comecei com o erro e onde é que eu posso acabar? É isso que eu queria saber''.

Esse espaço para a reflexão pode produzir mudanças na forma como os homens são subjetivados pela agressão, no momento em que passam a ter a oportunidade de significar os discursos que os colocam como homens agressores de diferentes maneiras. Isso acontece quando se mostram dispostos à troca de experiências e à participação de um espaço no qual possam pensar questões acerca da violência: ''Tudo é bom para gente refletir...''.

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Os homens produzem sentidos sobre violência que remetem aos discursos que enunciam o ambiente familiar como algo muitas vezes estressante, opressor e, por conta disso, o acontecimento dos atos agressivos são considerados um meio para resolverem essas situações. Apesar do diálogo ter sido discutido como uma estratégia passível de ser utilizada para contornar atos violentos, são reincidentes as tentativas frustradas para estabelecê-lo. Muitas vezes, antes do ato agressivo, tentam parar, respirar fundo, se controlar: ''... eu já tentei até contar até 10...''. Essas experiências de vida reveladas nos encontros podem ser encaradas como possibilidades de os participantes passarem a se subjetivar de outras formas, construindo outros modos de ser e se pensar enquanto sujeitos e não só como homens agressores. Porém, ao mesmo tempo em que possuem esta possibilidade, relatam ausência de perspectivas futuras: ''ah... vai indo... por enquanto eu não tenho (projetos para o futuro)'', dizem que pretendem, em algum momento de suas vidas, satisfazer suas realizações pessoais: ''O meu objetivo sempre foi ter uma casinha, com os móveis novinhos, um carro na garagem, e quando estivesse tudo certo, eu queria colocar uma mochila nas costas e viajar...''.

Por fim, vemos o fato de esses homens, considerados agressores, terem um espaço para refletirem sobre si mesmos – de uma forma que não ocorra discriminação e que não sejam reconhecidos, nem por eles mesmos nem pelas práticas psicológicas e pelas Políticas Sociais como possuidores de uma ''identidade agressiva'', nesse espaço propiciado para problematizar as intervenções realizadas pelo Sistema Jurídico. Enquanto se pensam, constituem-se performativamente em si e para si, e acabam reterritorializando as interpelações dos discursos que os codificam como os ''exteriorizados'' (exteriores à normalidade e ao padrão), discursos que os essencializam e os descontextualizam, enclausurando suas questões em terrenos mais deterministas e familiaristas.

- RAMOS, S., MUSUMECI, L. A PM e as abordagens nas ruas da cidade. In: ______. Elemento suspeito – abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2005, p. 21-55.

A PM E AS ABORDAGENS NAS RUAS DA CIDADE

Policiamento Ostensivo: Normas e Ambigüidades

Para compreendera lógica e os procedimentos das abordagens policiais é necessário, antes de mais nada, conhecer as modalidades de policiamento ostensivo previstas nas atribuições da Polícia Militar do Rio de Janeiro.

A atuação do policiamento ostensivo se divide em três grandes categorias: ordinário, complementar e extraordinário, cada um deles podendo englobar uma ou mais modalidades de intervenção policia.

O Policiamento Ostensivo Ordinário (POO) é aquele realizado rotineiramente pelas unidades da PM que têm circunscrição territorial e pode ser motorizado, a pé, a cavalo, ou fixo em cabines, destacamentos e outros, englobando também a patrulha normal do trânsito.

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O Policiamento Ostensivo Complementar (POC) envolve operações planejadas com o propósito de dinamizar o policiamento ordinário, seja no aspecto preventivo ou repressivo. As Operações de Ações Preventivas (A-Prev), consiste na intensificação da presença policial em locais, dias ou horários críticos, visando não só desestimular a prática de delitos como infundir uma sensação psicológica de segurança na população. Também se incluem nessas operações a intensificação de orientação do trânsito urbano (OpTran 1) em momentos especiais, como festas populares, manifestações de rua, etc. Já o aspecto repressivo do POC é contemplado sobretudo pelas Operações de Ação Repressiva (A-Rep), que por sua vez, podem ser de quatro tipos: vasculhamento (A-Rep 1); busca e captura (A-Rep 2); revista (A-Rep 3); cerco (A-Rep 4).

Finalmente, o Policiamento Ostensivo Extraordinário (POE) diz respeito à manutenção da ordem e da segurança em eventos especiais, jogos esportivos, visita de dignitários, desfiles cívicos, etc.

As experiências de abordagens vividas pelos cidadãos e registradas nessa pesquisa correspondem a diferentes tipos de estratégia de policiamento, ainda que as mais freqüentes se relacionem às operações de ação repressiva 3 (A-Rep 3), as chamadas blitzes de veículos particulares e coletivos (80% das experiências). 20% dos casos foram pessoas paradas enquanto andavam a pé na rua.

Nas entrevistas realizadas com 18 policias militares de diferentes unidades, notava-se certa hesitação ou ambigüidade na definição do objetivo principal das abordagens para revista de veículo, alguns afirmando que era para aumentar a sensação de segurança da população, enquanto outros falavam que era para apreender drogas e parar pessoas suspeitas. Os locais, horários e duração das operações são definidos segundo uma estratégia de ocupação de vias com maior incidência de crimes.

Além dos diferentes tipos de policiamento ostensivo, é fundamental considerar a natureza e a qualidade dos contatos entre a polícia e a população, que varia muito não só entre distintas situações de abordagem (em carro ou a pé, por exemplo), como entre as áreas da cidade onde essas abordagens se realizam.

Pesquisa feita por Minayo et al. (1999), analisando um grupo focal com policiais civis, identificou em torno dessa temática um discurso cheio de ambigüidades. Por um lado os policiais manifestavam profunda hostilidade em relação aos jovens da Zona Sul (“se você pega um garoto desses e leva pra delegacia, o pai chega lá com dois, três advogados”, p. 178). Mas, por outro, vendo na violência o resultado de determinantes sociais, como pobreza e desestruturação familiar, atribuíram aos jovens pobres das favelas uma “índole” para o crime, o que os tornaria inimigos “naturais” da polícia.

Nessa nossa pesquisa, mais de um entrevistado negou existir tratamento pouco cuidadoso nas favelas ou hostilidade da população às “entradas” da polícia nos morros. Entretanto, a menção à favela como uma “área perigosa” ou “de risco” apareceu numerosas vezes durante as entrevistas, bem como a idéia de que o trabalho de polícia nessas áreas se caracterizam pelo “combate” aos traficantes de drogas. Um entrevistado definiu em poucas palavras a premissa que nortearia a atuação da PM em favelas:

“A diferença é que no morro todos são suspeitos. Até uma menina de 12 anos é suspeita, pois nós vimos uma portanto um fuzil, mesmo sabendo que tem gente boa lá.” (Praça de BPM da Zona Sul).

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Isso nos remete a um outros aspecto fundamental das relações entre policiais e cidadãos, examinado aqui do ângulo dos primeiros: que critérios, junto com ou além do território de atuação, orientam a suspeita policial? Em outras palavras, quem é suspeito para a polícia e por quê?

As entrevistas revelaram que, para um policial, talvez não haja pergunta mais difícil de responder do que esta: “O que leva um policial a considerar uma pessoa suspeita?”. Algumas falas ilustram a dificuldade:

“Vai depender muito da área. São tantos fatores, que não vale a pena enumerar, porque um fator entra dentro do outro..” (Oficicial da BMP do subúrbio).

“Olha só: a abordagem é uma situação muito discutível porque a abordagem é uma coisa subjetiva. Às vezes uma coisa pode ser suspeita pra mim, mas pode não ser suspeita para outra pessoa, vai depender do ponto de vista. Por exemplo, quando se faz uma abordagem dentro de um ônibus, quais são os elementos que vão levar a pessoa a ser abordada? A pessoa que está olhando para fora do ônibus, está de cabeça baixa, fingindo que está dormindo. Na rua, uma camisa grande pode estar escondendo arma, é uma coisa que já vai chamando a atenção. Aquele policial que está trabalhando no morro há muito tempo, ele tem mais condições de visualizar aquilo.” (Oficial de BPM do Centro).

A metáfora do espelho (“a polícia como espelho da sociedade”) é acionada no plano discursivo toda vez que o policial reconhece que as definições “elemento suspeito” tendem a coincidir com estereótipos negativos relacionados à idade, gênero, classe social, raça/cor e local de moradia, sendo a idéia do espelho particularmente cara a um pensamento progressista dentro da polícia.

A referência à faixa etária – isolada ou combinada com outras variáveis – foi unânime entre os policiais entrevistados. Sem exceção, todos admitiram que jovens do sexo masculino, especialmente em grupo, chamam a atenção do policial.

“Depende do local onde está sendo realizada a abordagem. Por exemplo, se eu estou fazendo uma abordagem dentro de uma comunidade carenta, eu já posso com tranqüilidade começar a partir dos oito anos. Porque, a partir dos oito anos, eles estão sendo utilizados...” (Oficial da BPM de subúrbio).

“Geralmente do sexo masculino, pessoas próximas ao local que existe comércio de drogas. Por exemplo, 3:00 da madrugada, próximo ao morro do Juramento, parado ou transitando com volume, com uma bolsa, é um suspeito em potencial para a gente. Se for carro, principalmente se tiverem mais de três num carro. Se tiver um, relativamente é menos suspeito. Carro novo. Carro novo chama bastante atenção. Ou táxi. Idade jovial, faixa de 25 anos.” (Praça de BPM de subúrbio).

No esquadrinhamento dos traços que conformam candidatos à suspeita, revela-se que há baixo índice de abordagem de mulheres e baixíssima freqüência de revistas em caso de abordagem.

“A gente está até tentando colocar isso como mentalidade de trabalho, a revista aos pertences da mulher. Não a revista à mulher em si, porque o nosso Código de Processo Penal diz que a revista na mulher será feita preferencialmente por outra mulher, para evitar constrangimento. Agora, nada impede que o policial faça a revista dos pertences, se ele tiver uma fundada suspeita, mas ele não faz.” (Oficial de BPM de subúrbio).

“Veículo com mulheres, principalmente jovens, elas acham engraçado: “ah, meu Deus, estou tomando uma dura”. “Bom dia, senhorita, queira desembarcar, desligar o veículo,

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apresentar sua identidade, CNH...” “O que é CNH?” “Carteira Nacional de Habilitação.” “O carro é do meu pai.” A gente revista o carro, pede desculpa, ela vai embora satisfeita, sem problema nenhum.” (Oficial de BPM do subúrbio).

A difusão e a universalidade da norma segundo a qual “um policial não pode revistar mulher” surpreende num contexto em que os rompimentos de regras e adaptações ao contexto são consideradas justificáveis pela “guerra contra o tráfico e o crime”.

Em trabalho feito por Minayo et al (1999), foram encontradas evidências de que jovens do sexo feminino são usualmente desrespeitadas por policias. Mas como, nesse caso, os depoimentos colhidos eram todos de jovens infratoras, a divergência em relação aos resultados da nossa pesquisa pode indicar que as mulheres são tratadas diferencialmente em situações ordinárias de policiamento ostensivo e em contextos específicos de relação com a polícia, sobretudo quando já estejam marcadas pelos estigmas de pertencimento ao mundo do desvio ou do crime.

Entre os detalhes que levariam um policial a considerar uma pessoa suspeita surgiram indícios de que idade, gênero, cor, classe social e geografia se combinam ainda a outras variáveis – como vestuário, comportamento, situação, etc – gerando apreensões mais sutis, incorporadas à experiência policial e nem sempre fáceis de descrever.

“Vestimenta é importante, tatuagem não. Por exemplo, tem feito um calor muito grande esses dias. Por que motivo uma pessoa está dentro de uma loja com casaco?” (Oficial de BPM de subúrbio).

“Vamos colocar mais aí apresentação pessoal, maneira como a pessoa está vestida, se condiz com o veículo que está dirigindo, a idade da pessoa que está dirigindo se condiz com aquele veículo.” (Oficial de BPM da Zona Sul).

Qualquer aproximação ao espinhoso tema do racismo policial esbarra de saída num paradoxo: a PM, que segundo a opinião popular age de forma discriminatória contra os negros, é uma instituição com forte presença de negros em seus quadros, não só nos escalões inferiores (praças) como no oficialato e até em altos postos de comando. Ao invés de isso abrir uma porta ao debate franco sobre os temas de raça e do racismo, serve freqüentemente de pretexto para contorná-lo.

Estudos apontam que “a admissão do racismo na prática policial é de tal forma problemática que chega a ser menos penoso, para alguns oficiais superiores, reconhecer e enfrentar outros temas tabus, como a homofobia e a misoginia” (Ramos, 2002, p. 8).

“Veja bem, tudo isso é muito conceitual. Em primeiro lugar, a nossa população é basicamente mestiça. Por exemplo, eu me definira como negro, como pardo ou como moreno? Vai muito do que as pessoas conceituam como negro ou branco. Por outro lado a gente já observa o seguinte, isso já é um dado estatístico, as nossas penitenciárias são predominantemente constituídas de negros. Se isso tem alguma coisa de cultural, não sei. Mas, com certeza, 90% da massa carcerária é constituída de negros” (Oficial de BPM de subúrbio).

“Falam assim: ‘O senhor me abordou porque sou preto. Branquinho, lourinho o senhor não aborda’. Isso já foi mais comum, homem em dia não vejo tanto” (Praça de BPM de subúrbio).

“Se o suspeito é brando, ele vai ser revistado, se ele é negro vai ser revistado. É muito comum as pessoas: ‘Só está revistando porque é preto’. Mas, aí quando revista o brando: ‘Pô, vai me revistar? Tem tanto negão no ônibus’”(Oficial de BPM da Zona Sul).

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Não foi possível perceber em nossa pesquisa sequer uma remota conexão entre “cor” ou “raça” dos policiais entrevistados e suas opiniões sobre os temas raciais levantados ou sobre outros assuntos, como favelas ou juventude. O que as entrevistas reforçaram foi a hipótese de que a identidade racial na PM é subalterna à identidade policial, ou seja, de que a diferença entre “brancos” e “negros” se dissolve em dicotomias identitárias mais importantes e totalizantes: “policiais” versus “bandidos”, “militares” versus “civis”, ou mesmo “policiais” versus “não-policiais”.

Ao perguntarmos aos policiais de distintas patentes e de vários batalhões quais eram as reações da população às abordagens, encontramos tamanha convergência das respostas que nos pareceu estar ouvindo, não o fruto de experiências pessoas, e sim um bordão institucional, aprendido e repetido nos cursos de formação.

“A pessoa pára numa operação A-Rep 3, mas ela não quer a polícia para si, ela quer para os outros. Então, se ela vê uma ou duas pessoas sendo abordadas, com a mão no muro, ela acha muito bom, mas se mais na frente ela for parada, com certeza, ela vai execrar aquela atuação policial” (Major de BPM de subúrbio).

Vale notar que os poucos registros de boas lembranças que as pessoas que foram paradas mencionaram foram educação, gentileza ou profissionalismo dos policiais, sentimento pessoal de segurança e obtenção de auxílio, conselho ou orientação – o que também converge com a opinião de alguns policiais de que as abordagens nem sempre são mal recebidas, podendo se constituir, ao contrário, em ocasiões de contato positivo entre a polícia e os cidadãos.

Quando os policiais foram perguntados sobre o que mais gostavam numa A-Rep, eles responderam que afora a gratidão, prevalece o cumprimento das funções específicas desse tipo de operação: apreensão de armas, drogas e veículos roubados/furtados.

- RAMOS, S., MUSUMECI, L. Os jovens e a polícia. In: ______. Elemento suspeito – abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2005, p. 71-100.

OS JOVENS E A POLÍCIA

Vários estudos com jovens apontam a existência de uma importante tensão na relação entre juventude e polícia. A pesquisa “Jovens do Rio” com oitocentos indivíduos entre 15 e 24 anos, realizada na cidade em 2001, observou que as violências que os jovens do sexo masculino mais temem são bala perdida (31,1%), assalto (31,6%) e violência policial (16,8%). Outra pesquisa, também no Rio, coordenada por Minayo et al (1999), ouviu 1220 jovens de 14 a 20 anos e concluiu que existe: a) alto grau de medo e desconfiança dos jovens em relação à polícia, independentemente de classe social e de local de moradia; b) alto grau de desrespeito, grosseria, humilhação, ameaças de morte e prática de morte injustificada dos policiais em relação aos jovens; c) experiências de extorsão de dinheiro e objetos; d) experiência de flagrante forjado; e) avaliação pelos jovens de que policiais freqüentemente usam álcool e drogas.

Nosso levantamento quantitativo junto à população carioca, realizado em 2003, mostrou que, de todos os grupos considerados, o segmento jovem é aquele que expressa as piores avaliações da polícia. Foram registrados nesse segmento as maiores

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freqüências de avaliações negativas da PM quanto a respeito ao cidadão, violência, corrupção e racismo, assim como as menores porcentagens de avaliações positivas sobre a utilidade ou eficácia das abordagens policiais.

Para essa pesquisa, foram realizados grupos focais com adolescentes – um grupo na Zona Oeste e um na Zona Sul – e dois grupos com estudantes universitários. No grupo da Zona Oeste havia predominância de jovens pobres e negros, e no da Zona Sul, adolescentes brancos e de classe média. Dos grupos universitários, um continha apenas negros, e outro negros e brancos. No total dos 4 grupos, participaram 24 rapazes e 28 moças.

Para os participantes dos grupos focais, ser jovem é um fator-chave na experiência de ser considerado suspeito pela polícia. “Juventude” se combina com características que afetam a probabilidade e a qualidade de uma abordagem policial. Uma delas é o gênero, pois o fato de ser mulher constitui um atenuante. Em todos os grupos focais foi identificado um tratamento diferenciado da polícia em relação às jovens. A diferença mais importante é a revista corporal.

Alguns jovens associam o fato de serem menos parados ao fato de estarem acompanhados por mulheres, sejam namoradas, amigas ou irmãs, especialmente quando são abordados em seus carros.

A idade (ter menos de 18 anos, ou mais) foi outro fator identificado como capaz de alterar a relação com a polícia. As experiências dos jovens de 14 a 18 anos moradores da Zona Oeste indicam que freqüentemente os policiais, logo no início da abordagem, perguntam “você é de menor?”, o que talvez indique uma preocupação em não desrespeitar o Estatuto da Criança e do Adolescente. Para os moradores das áreas mais pobres e socialmente consideradas violentas, o “ser de menor” não os isenta da suspeita de praticar delitos (tráfico, uso de drogas, roubos, pichação), mas pode indicar aos policiais a necessidade de seguir (ou contornar) certas exigências da lei. Neste sentido, do ponto de vista dos adolescentes, dizer “sou de menor” aciona uma estratégia que pode evitar maior violência.

Uma terceira característica apontada como atenuante de risco de abordagem ou capaz de mudar a qualidade do tratamento da polícia é ser identificado como estudante. Estar de uniforme, indo ou votando da escola, diminui as chances de ser considerado suspeito.

Quando questionados sobre o que é mais suspeito, um jovem pobre andando na Zona Sul ou uma pessoa rica andando perto da favela, os grupos responderam que ambos são suspeitos, embora por motivos diferentes: um jovem negro e pobre andando a pé em bairro de classe média é visto pela polícia como provável assaltante ou traficante, tornando-se candidato a uma abordagem violenta, enquanto um jovem branco com aparência de classe média, em um carro, dentro ou próximo de uma favela, é visto como possível usuário adquirindo drogas e torna-se candidato à extorsão.

Quando questionados quais os locais e horários em que um jovem, sobretudo um jovem negro, é particularmente suspeito, as respostas foram: num ônibus (todos os grupos); nas agências bancárias (grupo de universitários negros); nos shoppings (grupo de adolescente das Zonas Oeste e Sul); nos supermercados, principalmente se estiverem com mochila (grupo de adolescentes da Zona Oeste).

A relação entre ser suspeito e ser negro ocupou boa parte dos debates nos grupos focais.

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“(...) dependendo do jeito que ele está vestido. Se ele está vestido como eu estou vestido (com uniforme escolar)... por exemplo, eu sou negro, eu estou lá no bairro de classe médica, estou passando e eles não vão suspeitar nada de mim. Posso ser o filho da empregada, posso ser alguma coisa de alguém. Agora, se eu estiver todo esculachado.. aí eles chamam a segurança” (Adolescente da Zona Oeste).

A cor foi uma característica que apareceu em quase todos os desenhos produzidos, e as experiências de abordagens policiais associadas ao fato de o jovem ser negro foram abundantes. Diversas vezes a cor foi identificada como a característica “irredutível” (“que não dá para tirar”) e por isso diferenciada de vestimenta, corte de cabelo, objetos ou mesmo atitude. Outras vezes o tratamento verbal dispensado pela polícia aos jovens negros (“vai saindo, negão”; “encosta, negão”) foi visto como óbvio indicador da existência de racismo na prática policial.

No ranking de classificação de características que levam uma pessoa a ser suspeita pela polícia, “ser negro” aparece no topo da hierarquia das condições consideradas mais suspeitas nos dois grupos universitários.

Quando indagados se havia diferenças entre policiais negros e brancos, ou se os policiais negros eram mais, ou menos, racistas que os policiais brancos, prevaleceu a opinião de que a cor da polícia não influi no tratamento dispensado numa abordagem. Para os policiais, segundo esses jovens, mais importante que a cor ou a raça é a cultura da corporação, que opera como identificador mais forte.

“Acho que não tem nenhuma (entre um policial branco e um policial negro). A dupla que me abordou era um branco e um negro. Eles agiram exatamente da mesma forma. Policial é farda. A cor dos caras é a farda. Se tem preconceito, está na farda” (Adolescente da Zona Sul).

Sobre as abordagens sofridas, os jovens da Zona Sul afirmam que teria como objetivo principal encontrar drogas e extorquir o dinheiro do usuário, e aquelas que ocorrem mais frequentemente com jovens pobres, em bairros de periferia ou nas favelas, é porque o jovem é suspeito de ser traficante ou assaltante e é percebido pelo policial como potencialmente perigoso, podendo chegar a ser vítima de “esculacho”, isto é, de violência física e humilhações.

Também surgiu nos grupos a percepção de que os próprios policiais atuantes na Zona Sul ou em favelas, em bairros ricos ou pobres, teriam características diferentes.

“Não vai botar um (policial) matador no posto e Copacabana. Só vai botar um matador para trabalhar no Complexo do Alemão” (Jovem do grupo de negros e brancos universitários).

As avaliações dos contatos com a polícia valem-se ainda de uma memória familiar ou social, composta de experiências vividas por parentes e outras pessoas conhecidas. Essa memória traça igualmente uma nítida divisão de classe, reforçando a idéia de que as pessoas da Zona Sul e de classe média, mesmo que sujeitas à coação e à extorsão, têm mais chances de se saírem bem nas abordagens policiais.

A força representada pela posso de algum parente rico ou “poderoso” também pode, eventualmente, ser mobilizada por jovens pobres da Zona Oeste para alterar o curso da abordagem policial.

Além de idade, gênero, cor e classe social, enfatizaram-se também elementos relativos à aparência e, secundariamente, à atitude, para explicar as razões de abordagens freqüentes.

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- TAVARES, G. M., SOUZA, L., MENANDRO, P. R. M., TRINDADE, Z. A. Concepções de Policiais Militares sobre categorias sociais que são alvo do trabalho policial. Revista de Psicologia UFF, 16 (1), p, 77-95, 2004.

CONCEPÇÕES DE POLICIAIS MILITARES SOBRE CATEGORIAS SOCIAIS QUE SÃO ALVO DO TRABALHO POLICIAL

Ao investigar a percepção de Policiais Militares do Estado do ES em relação às pessoas que são alvo mais freqüente do seu trabalho, na tentativa de conhecer possíveis diferenças no tratamento adotado em relação a segmentos populacionais diversos; Menandro et al (2004) conclui que os policiais entrevistados em suas pesquisas reproduzem a idéia de que o delito é um comportamento característico das pessoas de baixa renda. Tal estereótipo de criminoso reflete as formas de abordagens policiais diferenciadas quanto à atuação em bairros de camadas sociais diversas.

Os estereótipos e preconceitos a partir do qual o policial vê os cidadãos também podem determinar o tratamento dispensado a estes. Cardia (1997) em estudo sobre a imagem de policias no Rio de Janeiro e São Paulo, verificou a imagem da polícia como negativa, avaliada como ineficiente, corrupta, violenta e que provoca medo, especialmente, entre jovens negros. Tal quadro e interpretado pela autora como uma resposta á ação agressiva freqüente da polícia (dados da pesquisa PNAD, in Cárdia, 1997).

Nesta pesquisa realizada por Cárdia (1997), os resultados com entrevistas coma comunidade apontam para uma brutalidade maior da polícia dirigida a alguns grupos, o que é confirmado em entrevistas com os próprios policiais. A autora assinala que para esses entrevistados, os grupos das camadas empobrecidas da sociedade não possuem os mesmos direitos das pessoas de classes mais altas, justificando, os maus tratos como uma adaptação dos policiais a uma exigência do meio.

Interessado em caracterizar a motivação para o ingresso na polícia) e em conhecer melhor as concepções policiais militares da cidade de Vitória(ES) sobre as relações da policia com a sociedade; o policiamento diferenciado m função de status sócio-econômico; as categorias mais frequentemente associadas à suspeição ao crime, Menandro (Ibid) entrevistou 33 policiais militares do quadro de Praça do 1º Batalhão da policia Militar do Espírito Santo(PMES) que trabalham no policiamento ostensivo (PO). A participação na pesquisa foi voluntária, não ocorrendo nenhuma interferência dos oficiais superiores no processo de escolha dos participantes.

Os resultados da pesquisa indicaram que o fator mais determinante para o ingresso na PM foi a falta de opção de emprego e/ou vantagens de carreira militar dado que 60% dos entrevistados deram essa resposta à pergunta. Este resultado, segundo o autor, em conjunto com a presença da categoria “influência familiar”, suscita a reflexão da problemática de uma profissão tão particular como a de policial.

Entretanto a presença da categoria “vocação’ e “altruísmo” demonstra também que há aqueles que optam pela profissão policial por desejo espontâneo ou por acreditarem que podem ajudar a manter o bem estar social.

Quanto à categoria o policial militar e a sua relação com a sociedade, a grande maioria dos pesquisados (72,7%) acredita que a sociedade não reconhece a importância do trabalho da PM. O resultado obtido, em conjunto com a mencionada, “escolha forçada”

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da profissão, pode apontar ausência de motivação do policial para o serviço, já que, além de não ter feito a opção pelo trabalho que de fato gostaria de realizar, também não a vê reconhecida como importante uma atividade tensa e perigosa. Quando perguntado acerca de que tipo de pessoa dá mais valor ao trabalho da PM, a resposta mais freqüente foi “pessoas carentes” (36,4%). É muito provável, segundo Menandro, que tal resposta relaciona-se com as atividades de prestação de serviços que a PM realiza, e que atendem, principalmente, aquele segmento populacional.

Na categoria “lugares com maior índice de criminalidade” foram computados respostas como: “ pessoas com pouca renda”, “baixa são mais violentas”, “maior fluxo de trafico de drogas”, “prostituição”, “alcoólatras”, “local de maior incidência de fatores criminógenos”; “maior foco de assaltantes”, “melhor abrigam os delinqüentes”, “concentração de pessoas de menor poder econômico e menos informadas”, “os meliantes procuram os bairros carentes para morar”, entre outras.

Para a categoria “questões sócio-econômicas” foram incluídas as respostas que mencionam fatores tais como desemprego; necessidade de assistência social; falta de apoio político e de condição de pagar segurança, entre outras. E a categoria “policiamento maior nos bairros com maior índice de criminalidade abrigou os seguintes tipos de respostas: nos bairros carentes há uma incidência maior de crime contra pessoa e nos bairros mais ricos crimes contra o patrimônio”; “bairros carentes onde se encontra maior número de marginais/bairro ricos: os mais visados, devido ao poder aquisitivo”.

Nota-se que as respostas demonstram claramente se associar à idéia de que ambos os bairros devem ser policiados, embora com objetivos muito diferentes: os ricos para serem protegidos e os pobres para serem vigiados. A partir das respostas expostas acima é notável a ligação que a maioria dos policiais pesquisados estabelece entre pobreza e criminalidade.

A polícia representa o resultado da rede de forças políticas existente na própria sociedade. No Brasil, a polícia foi criada no século XVIII, para atender a um modelo de sociedade extremamente autocrático, autoritário e dirigido por uma pequena classe dominante. A polícia foi desenvolvida para proteger essa pequena classe dominante da classe de excluídos. Historicamente, o modelo de polícia constituído utilizava somente a força e a coragem irresponsável, condicionando suas práticas sobre o preconceito e o estigma.

Fragoso (1977) mostrou que apenas as pessoas das classes de baixa renda sofrem a ação do Direito Penal, através do aparato policial-judiciário, enchendo as prisões e produzindo, assim, o estereótipo de criminoso primordialmente referenciado nos habitantes de bairros empobrecidos. O autor aponta, também, que o Direito, tanto como qualquer outro mecanismo de controle social, é governado por preconceitos e estereótipos socialmente condicionados.

Thompson (1983) confirmando a tese citada acima, marca o fato das camadas populares constituírem, invariavelmente o alvo da ação policial, configurando-se como classe vigiada pela polícia em contraposição com classes de alta renda que constituem a classe protegida. Assim, a discriminação da justiça penal começa pela sua porta de entrada: o aparato policial. Segundo DaMatta (1997), para compreender a impunidade de pessoas de classe alta é importante levar em consideração a reorganização histórica da vida social brasileira, efetivada no rito do “sabe com quem está falando?”. Este representa a preocupação do sistema social com o “cada um no seu lugar”, isto é, ele

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reproduz a hierarquia e autoridade que atravessa as relações humanas na sociedade brasileira. Desse modo, o sabe com quem você está falando/ é utilizado no cotidiano para diferenciar as pessoas quanto à posição social. Na sua atuação, o policial vivencia tal situação com freqüência e acaba por reproduzí-la, alimentando esteriótipos e preconceitos gerados na desigualdade características de nossa sociedade.

Todavia, a visão crítica da polícia pôde ser observada em duas respostas à questão proposta e, ainda, em vários feitos por policiais nos DPMs pesquisados. As afirmações que aparecem nas entrevistas. As afirmações que aparecem nas entrevistas são: “nossa policia é uma policia para pobres é uma realidade irrefutável; em bairros pobres há menor grau de esclarecimento e pessoas mais humildes; em bairros ricos por serem supostamente mais esclarecidos são mais arrogantes, donos da razão, mas eu queria dizer também que existe a policia para ricos, mas por conveniência ela não atua como deve e infelizmente, vejo com muita tristeza e vergonha que a polícia é uma ferramenta de repressão ao pobre. Só mudaremos este quadro com política séria de educação.

- LEON, R. B., CARNEIRO, L. P., CRUZ, J. M. O apoio dos cidadãos à ação extrajudicial da polícia no Brasil, em El Salvador e na Venezuela. In: PANDOLFI, D. C., CARVALHO, J. M., CARNEIRO, L. P. GRYNSZPAN M. (Orgs.). Cidadania, Justiça e Violência. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1999, p. 117-127.

O APOIO DOS CIDADÃOS À AÇÃO EXTRAJUDICIAL DA POLICIA NO BRASIL, EM EL SALVADOR E NA VENEZUELA

Na pesquisa realizada, em que se procurou conhecer a opinião da população acerca do respeito à integridade física das pessoas detidas, mais precisamente sobre o uso de torturas que ameacem esta integridade. Foi feita a pergunta: “Em alguns casos se justifica que a polícia torture os suspeitos para obter informações?”

Com relação à questão sobre o apoio à ação extrajudicial verifica-se que no Rio de Janeiro cerca de 14,8% do grupo de entrevistados está “de acordo” que a polícia tem direito a invadir a casa sem ordem judicial; cerca de 16,5% diz que a polícia tem direito a deter jovens por seu aspecto físico e cerca de 12,5% diz que a polícia tem direito de torturar para obter informação. Estão”muito de acordo” com relação à inc]vasão a casa sem ordem judicial cerca de 7,5%; com relação a deter jovens por seu aspecto físico cerca de 8,7% e com relação à tortura para obtenção de informação cerca de 4,1% estão “muito de acordo”.

No Rio de Janeiro a classe média e a classe alta tendem a estar de acordo com esta medida, enquanto a classe baixa em desacordo. O apoio que uma parte da comunidade confere às ações extrajudiciais da polícia constitui um questionamento ao estado de direito muito superior ao representado pela ação extrajudicial propriamente dita. A polícia pode exceder-se ou atuar fora das atribuições que a lei lhe outorga, mas isto não representa um risco tão grande à democracia e a legitimidade se não tivesse o apoio dos cidadãos.

Quando se aborda este tema, pode-se sempre ver surgir a seguinte questão: por que dar tanta importância aos direitos dos delinqüentes quando estes sistematicamente violam os direitos do cidadão? A resposta é unívoca do ponto de vista ético, pois são cidadãos como os outros, não o são menos. Mas há também uma resposta prática: a

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violência é interação social. Se a polícia incrementa a violência, a delinqüência fará o mesmo; se o delinqüente não acreditar que tem uma saída legal e não-violenta, tomará o caminho de uma violência maior.

A ação extrajudicial pode ser um meio para reforçar o processo de exclusão social. Deter jovens simplesmente por seu aspecto físico é um mecanismo de estigmatização social, pois ocorre que os excluídos sociais são considerados delinqüentes pelo simples fato de serem pobres, mal vestidos, por terem pele escura ou por serem índios.

Ainda não são conhecidas políticas desenhadas com o objetivo de reverter a tendência ao apoio à ação extrajudicial entre os cidadãos, capazes de lhes mostrar as conseqüências negativas no curto e no médio prazo. Ao mesmo tempo é inegável a extrema necessidade de aperfeiçoamento dos sistemas de proteção aos cidadãos, uma melhor intervenção policial, mais ajustada ao direito, que lhes permita sentirem-se protegidos.

- BERGONCHEA, J. L. P., GUIMARÃES, L. B., GOMES, M. L., ABREU, S. R. A transição de uma polícia de controle para uma polícia cidadã. São Paulo em Perspectiva, 18 (1), p. 119-131, 2004.

A TRANSIÇÃO DE UMA POLÍCIA DE CONTROLE PARA UMA POLÍCIA CIDADÃ

O processo de redemocratização do Brasil, a partir da década de 80, vem provocando nas instituições públicas, em especial nas corporações policiais, transformações decorrentes do questionamento da sociedade brasileira sobre a real função pública que devem assumir diante do Estado Democrático de Direito.

No início dos anos 90, as corporações policiais, cujas práticas históricas foram enrijecidas pelo período ditatorial, começaram um processo de rompimento do modelo histórico do sistema policial, em decorrência das transformações em andamento na sociedade brasileira, em especial o crescimento das práticas democráticas e o fortalecimento da cidadania. O descompasso entre as mudanças sociais e políticas e a prática policial produz uma crise nas polícias brasileiras, que não é uma crise de dentro da corporação para fora, mas sim o inverso, da relação sociedade-Estado, em conseqüência da falta de sintonia entre o avanço social e a prática policial, ampliada pela ausência de um processo dinâmico e otimizado que faça funcionar um sistema de segurança pública para a realidade brasileira.

É possível ter uma polícia diferente numa sociedade democrática? A concretização dessa possibilidade passa por alguns eixos. Primeiro, por mudanças nas políticas de qualificação profissional, por um programa de modernização e por processos de mudanças estruturais e culturais que discutam questões centrais para a polícia: as relações com a comunidade, contemplando a espacialidade das cidades; a mediação de conflitos do cotidiano como o principal papel de sua atuação; e o instrumental técnico e valorativo do uso da força e da arma de fogo. São eixos fundamentais na revisão da função da polícia. No modelo tradicional, a força tem sido o primeiro e quase único instrumento de intervenção, sendo usada freqüentemente da forma não profissional, desqualificada e inconseqüente, não poucas vezes à margem da legalidade. É possível, portanto, ter um outro modelo de polícia, desde que passe a centrar sua função na garantia e efetivação dos direitos fundamentais dos cidadãos e

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na interação com a comunidade, estabelecendo a mediação e a negociação como instrumento principal; uma polícia altamente preparada para a eventual utilização da força e para a decisão de usá-la. Tudo isso tendo como base políticas públicas que privilegiem investimentos na qualificação, na modernização e nas mudanças estruturais e culturais adequadas.

O Problema da Segurança Pública e a Insegurança Coletiva: Causas Sociais da Violência e da Criminalidade

O grande problema é justamente descrever ou conceituar a segurança pública. Hoje a percepção coletiva considera a segurança pública centrada somente na atividade da polícia e, por mais que se pretenda montar uma polícia cidadã, somente haverá sucesso se for redefinida e ampliada a conceituação da segurança pública. A segurança pública é um processo sistêmico e otimizado que envolve um conjunto de ações públicas e comunitárias, visando assegurar a proteção do indivíduo e da coletividade e a aplicação da justiça na punição, recuperação e tratamento dos que violam a lei, garantindo direitos e cidadania a todos.

A polícia cidadã, sintonizada e apoiada pelos anseios da comunidade, só terá sucesso se estiver voltada para a recuperação de quem ela prende, pois, caso contrário, será simplesmente uma polícia formadora de bandido, quer dizer, ela vai recrutar bandido, vai marginalizar ainda mais. É necessário incluir, nesta análise, todo o sistema de persecução penal e de política social. Esta é a tarefa que precisa ser desenvolvida.

Qual é o modelo que a sociedade quer? É uma polícia “linha dura”? É um Judiciário “duro”, com altas penas? É uma prisão de segurança máxima? Em relação a crianças e adolescentes também medidas de endurecimento das ações repressivas? Existe, na verdade, um aumento da criminalidade em todo o mundo, por razões estruturais, assim como há um senso comum pedindo uma polícia repressiva. A discussão pública e a tendência política brasileira têm apontado como soluções salvadoras o endurecimento da repressão, especialmente quando ocorrem crimes violentos, que assumem amplos espaços na mídia, influenciando a formação da opinião pública. O cidadão faz a seguinte pergunta: qual é o papel da polícia no momento em que estão em crise o emprego, a família e a escola? Quer dizer, estão em crise as instituições de controle social informal que funcionavam há 20 anos: será que a polícia hoje só pode seguir o modelo de uma polícia, digamos, do tipo tolerância zero? Estaremos condenados a tal? Ou é possível pensar, em um país como o Brasil, outro tipo de policiamento, outra técnica policial, outro tipo de trabalho policial? Porque essa é a grande ignorância vigente na sociedade brasileira: o que significa o trabalho policial?

Atualmente a polícia, na sua cultura histórica, só trabalha com um instrumento que é a reação pela força; qualquer conflito e dificuldade são resolvidos pela força. Há muita dificuldade de trabalhar com as situações cuja responsabilidade e culpabilidade não estão bem definidas. Geralmente, em todo o conflito em que a polícia intervém, a tendência é criminalizar a conduta, nem que seja por desacato ou desrespeito, efetivando a solução pelo uso da força e pela prisão.

A Questão Policial na Agenda Política: O Modelo de Polícia em Discussão

A polícia representa o resultado da correlação de forças políticas existente na própria sociedade. No Brasil, a polícia foi criada no século XVIII, para atender a um modelo de

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sociedade extremamente autocrático, autoritário e dirigido por uma pequena classe dominante. A polícia foi desenvolvida para proteger essa pequena classe dominante, da grande classe de excluídos, sendo que foi nessa perspectiva seu desenvolvimento histórico. Uma polícia para servir de barreira física entre os ditos “bons” e “maus” da sociedade. Uma polícia que precisava somente de vigor físico e da coragem inconseqüente; uma polícia que atuava com grande influência de estigmas e de preconceitos.

Entende-se que o sistema de segurança tem de ser sistêmico, rápido, um processo que envolva não só atividades preventivas ou de contenção: precisa ter um início, que é a prevenção, e um final, que é recuperar e tratar os autores do delito, pois, caso contrário, eles voltarão ao crime, e o objetivo é não dar essa oportunidade de reincidência ou aliciamento pelo crime. Nesse sistema não apenas a polícia é a responsável, o Judiciário, o Ministério Público e a sociedade em geral têm que participar do debate deste tema. É possível ter uma polícia mais eficiente, diferente da atual, que está repartida ao meio: uma trabalha só com a parte investigativa; outra só com a parte pericial; outra só com a parte ostensiva, encasteladas em seus corporativismos. É necessário um trabalho de conjunto e de integração. Há duas dimensões nesta questão: existe a polícia mais preventiva, que amplia seu campo de atuação, sendo uma polícia das obrigações positivas; e há, também, a polícia mais de controle social, com campo de atuação restrito, voltada para obrigações negativas.

O policial precisará ter uma outra visão de seu objeto de trabalho, uma outra compreensão e, principalmente, ter capacidade e habilidade de estar reconhecendo e compreendendo a diversidade social. Há muita dificuldade de trabalhar com as situações hoje, cuja responsabilidade e culpabilidade não estão bem definidas. Atualmente a polícia, na sua cultura histórica, algumas vezes trabalha com um instrumento, que é a ação-reação, utilizando-se da força; qualquer conflito deve ser resolvido pela força, e isto deve ser questionado.

Dilemas do Ofício de Polícia

O crescente índice de violência e da criminalidade leva, no âmbito das organizações policiais, a um verdadeiro “jogo de empurra” de responsabilidades. Os dilemas das polícias fundam-se em uma separação: a polícia de investigação diz que o problema é da prevenção; a polícia de prevenção diz que o problema é da investigação; uma está estratificada em relação à outra.

É necessário investir em uma concepção de polícia cidadã, que é um conceito que se desdobra numa série de dimensões. Por exemplo, a questão da participação comunitária, que inexiste na polícia tradicional, uma vez que ela não foi concebida para isto, é um fator permanente na polícia cidadã, pela aproximação de seus integrantes à população e pelo comprometimento com a segurança pública no local de trabalho, surgindo aí o policiamento comunitário. No tocante ao uso da arma e da força, a polícia tradicional age mais no impulso de defesa e reação, tendo alto grau de liberdade para agir, muitas vezes, sem critérios bem definidos, enquanto na polícia cidadã é preciso ter

um treinamento prático mais apurado, envolvendo emoções e efeitos, que determine padrões limitados de ação que partem de princípios estabelecidos por normas internacionais, acordadas entre países.

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Uma polícia cidadã tem de estar presente em todos os bairros, na forma real ou potencial, atuando com ênfase na prevenção dos delitos, especialmente naqueles locais de maior vulnerabilidade social e de elevado nível de conflitualidade. É claro que isso é muito complexo e depende da visão de mundo. A polícia tradicional parte do princípio de que existe dois mundos: o do bem e o do mal. A polícia de controle (tradicional) parte com essa visão, ou seja, o traficante é o traficante e o cidadão é o cidadão, por exemplo.

Controle Social Legítimo de uma Polícia Cidadã

Somente nos últimos anos, com casos de violência mais graves, iniciou-se uma discussão nacional na qual apareceram debates sobre a participação da sociedade, polícia comunitária, controles sociais. O controle social da polícia é uma garantia constitucional. A polícia, que tem legalmente o dever do uso da força e das armas, necessita de um olhar controlador pela sociedade. Isso é o início da passagem da polícia que controla para a polícia que é controlada. É possível imaginar como deveria ser a transformação de uma polícia que controla para uma polícia cidadã, em alguns pontos de sua estrutura e funcionamento: a logística atual da polícia de controle é pesada, enquanto a da polícia cidadã é leve; a formação da polícia de controle é boa, mas é etnocêntrica, não integrada, e a da polícia cidadã é mais interativa, unificada; a disciplina na polícia de controle é autoritária, centrada nas atitudes inadequadas, na apresentação, na uniformização de policiais, enquanto na polícia cidadã deve estar baseada na ampla defesa do policial, na possibilidade de ter o contraditório e também centrada na conduta operacional asséptica à corrupção, por exemplo, a hierarquia, na primeira, tem muitos graus (soldado, cabo, sargento, subtenente, tenente, capitão, major, tenente-coronel, coronel), o que, na polícia cidadã, precisa ser adaptado, ou seja, deveria ter os níveis adequados à ação que produz.

A polícia atual prende para investigar, enquanto a polícia cidadã deveria investigar para prender, seria uma polícia mais inteligente. A polícia de controle usa técnicas de troca de favores, de alcagüete, com dinheiro para pagar os informantes, e a polícia cidadã usa outra tecnologia, como a escuta judicial, técnicas de prova científicas (DNA), que possibilitam um avanço muito forte na perícia. Os bancos de dados são separados na atual organização policial. A polícia cidadã teria um banco unificado ou bancos inter-relacionados. Também sobre essa questão dos bancos de dados e a produção das estatísticas, na polícia de controle o uso das informações segue a regra do segredo, de não repassar informações, de deixar escondido, de não ter a transparência. Já a polícia cidadã colocaria a base de dados disponível, socializada, permitindo o acesso de estudiosos e pesquisadores. Essa cultura do segredo precisa ser redefinida e instalada nas organizações a fim de não representar uma dimensão de poder.

Na polícia de controle, a polícia é o poder, enquanto na polícia cidadã, a polícia é serviço. As políticas de segurança pública, na polícia de controle, são isoladas e o político não interfere. Portanto, a concepção de que só a polícia tem que resolver a política de segurança pública e que esse assunto é de responsabilidade dos técnicos deve perder força para uma nova estratégia, em que a comunidade cada vez mais assuma sua participação, discutindo o assunto, apropriando-se e exercendo o controle social sobre as ações públicas de segurança e das políticas de segurança pública.

A Construção de uma Polícia Cidadã

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A polícia cidadã é uma concepção de polícia que problematiza a segurança, discute sua complexidade e divide responsabilidades. O consumo e o tráfico da droga são práticas comuns de todas as classes sociais e, portanto, é falsa a divisão entre o bem e o mal. Não pode-se dizer: “olha, eu estou do lado dos de bem”, como se os homens de bem não fossem o lado mal da sociedade também, como se a sociedade tivesse isolado os de bem de um lado e os de mal do outro. A sociedade é complexa, e a ilegalidade ou infração é perpassada por todas as classes e os níveis. Na preparação de uma aula para Guarda Municipal, o capitão afirmou: “não, a gente faz abordagem e hoje a gente

tem que abordar também os caras de colarinho, de gravata, eles assaltam bancos também”. Então, o que ele quer dizer com isso? Ele quer dizer que tem uma cultura que

precisa ser mudada, ou seja, que bandido não é só o cara que está mal arrumado, o negro, o homossexual ou travesti ou o cara de vila ou o que está com a roupa suja. É preciso ter interdisciplinaridade, multiagencialidade, visão solidária de responsabilidades, bem como visão da própria competência das polícias, que precisam ser solidárias e compartilhadas e não divididas.

O modelo atual é, ainda predominantemente intimidatório e carregado de proteção corporativa. Parte do processo de compreensão dos policiais é o reconhecimento de que intervir no movimento social não é o mesmo que estar intervindo na criminalidade. A partir desse entendimento, a polícia terá uma perspectiva de que ela precisa reestabelecer a ordem e cumprir a ordem judicial, mas tem de preservar as pessoas que estão ali e reconhecer que o movimento possui certa legitimidade, fazendo o processo de mediação. Se fizermos isto, estaremos encaminhando soluções que trarão menos processos de enfrentamento ou de violência. Com este objetivo, passou-se para um procedimento de negociação e mediação do conflito com os movimentos sociais. Os processos de mediação exigem maior tempo para sua implementação. É possível uma polícia tratar da questão dos movimentos sociais de uma forma diferente, e nisso, a Brigada Militar agregou muito nos quatro últimos anos.

Há experiências promissoras e apropriadas na polícia. A Brigada Militar começou um processo interno de formação, tanto operacional como técnico, que sedimentou conteúdos, para além de mudanças de governos políticos. Do ponto de vista da democracia, é importante no sentido que estamos conseguindo verificar que existe a constituição de um corpo de funcionários do Estado e não apenas de funcionários de Governo. Hoje a Brigada tem como padrão de referência, na ação policial dos movimentos sociais, o acompanhamento, a negociação e a mediação. Existe, ainda, envolvimento da Justiça, do Ministério Público e de todos os outros setores, para que eles também participem na resolução do problema. Os conceitos estão mudando.

A relação com a comunidade precisa ser trabalhada em todas as variáveis, trabalhar a mobilização comunitária, outros processos de intervenções nas áreas sociais que venham interferir na melhoria da vida em coletividade. A própria gestão e o sistema precisam ser sincronizados, quer dizer, não se compreende mais, no atual modelo, que as polícias tenham um banco de dados cada uma e que um não conversa com o outro e não conseguem se complementar. Outro obstáculo consiste na inexistência de áreas de responsabilidades que sejam coincidentes para todos os organismos do sistema de persecução penal e também para a divisão política e comunitária dos municípios.

Defendemos a construção de um aparelho policial completo, que tenha suas divisões investigativa, pericial e ostensiva, além de forças especiais para atuar somente nos momentos de crise; também uma polícia municipal para aumentar os efetivos de

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patrulhamento comunitário e determinar responsabilidades ao Executivo municipal na segurança de sua comunidade. A polícia estadual, do jeito que está retratada, só incentiva o corporativismo, a corrupção, a omissão, a falta de responsabilidade com o local de trabalho e as dificuldades na elucidação dos ilícitos. Temos uma polícia investigativa que, apesar de trabalhar a civil, está sendo empregada ostensivamente com fardamento preto e viaturas padronizadas, enquanto a outra, que deveria ser preventiva, continua atuando dentro de estratégias militares e ações puramente repressivas.

- AMADOR, F. S., SPODE, C. B. Por um programa preventivo em saúde mental do trabalhador na Brigada Militar. Psicologia: Ciência e Profissão, 22 (3), p. 54-61, 2002.

POR UM PROGRAMA PREVENTIVO EM SAÚDE MENTAL DO TRABALHADOR NA BRIGADA MILITAR

As pesquisas sobre as relações saúde mental e trabalho junto a diferentes categorias profissionais são bastante recentes no cenário científico. Em nível mundial, a França, um dos países precursores no tema, vem, desde o final da II Guerra Mundial, desenvolvendo projetos nesse sentido, sobretudo a partir das contribuições da chamada “psiquiatria social” (Lima, 1998a), enquanto no Brasil, apenas a partir dos anos 80 tais estudos vêm tomando impulso. Conseqüentemente, os programas preventivos e promotores de saúde mental dos trabalhadores em nosso país são, pode-se dizer, ainda incipientes.

Dejours (1999) discute a questão relativa às práticas discursivas do neoliberalismo, e esclarece que o objetivo principal, então, não é mais promover a direção e a gestão, mas desqualificar as preocupações com o trabalho, tanto no plano econômico, quanto nos planos social e psicológico. Tal desqualificação encontra-se estreitamente vinculada à indiferença pelo sofrimento psíquico dos que trabalham, abrindo caminho à falta de reação coletiva diante da adversidade social.

Dadas as características das práticas discursivas vigentes na esfera empresarial, os projetos abordando as relações saúde mental e trabalho vêm sendo desenvolvidos principalmente nas universidades, nos sindicatos e nos diferentes espaços construídos no seio dos movimentos sociais. São ações que visam desde a desenvolver recursos para melhor lidar com o estresse até programas de pesquisa-ação que se centram na compreensão, com o grupo de trabalhadores, do impacto do trabalho na subjetividade e na constituição de seu sofrimento psíquico.

Quando se trata do trabalho policial, especialmente na esfera da Brigada Militar, vemo-nos diante de algumas considerações a fazer, já que no presente artigo argumentamos sobre a importância de um programa preventivo em saúde mental junto a essa categoria, bem como tecemos considerações a respeito dos caminhos a percorrer para consolidar uma prática nesse sentido. Para tanto, fundamentamo-nos em nossa experiência junto à Brigada Militar, construída a partir de nossa vivência enquanto grupo de pesquisadoras na Universidade de Santa Cruz do Sul/RS.1

 

Por onde vem sendo estudada a relação trabalho-saúde junto às polícias

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O tema trabalho e saúde entre policiais vem ocupando lugar de destaque tanto no âmbito da organização policial quanto das universidades brasileiras. De um lado, movido pela peculiaridade da função, a qual possui uma série de características evidentemente “perigosas” do ponto de vista da saúde física e psíquica, tal como o contexto diário de risco; de outro, pelo momento histórico vivido pela sociedade a partir do chamado período de abertura democrática, no qual se coloca em discussão a prática das polícias, entre outros assuntos, antes condenados ao silêncio.

Também em outros países, o tema das polícias tem despertado interesse. Pelacchi (1999), policial argentino, ao abordar as estratégias policiais nas sociedades contemporâneas afirma que o problema da segurança pública é de todos os setores comprometidos, incluindo a polícia e demais segmentos correlatos. A polícia é resultante de uma série de normas que dão sustentação à sua existência, sendo importante para seu bom funcionamento fazer adequações na legislação penal, processual e contravencional, assim como implementar serviços ou programas sociais, de saúde e educacionais. O autor argumenta sobre a importância de os policiais terem adequadas condições de trabalho e equipamentos, sobre a importância de um bom recrutamento e boa educação e formação posterior assim como de uma boa remuneração e plano de carreira confiável.

Vários estudos a partir da perspectiva do estresse vêm sendo realizados, analisando os impactos do trabalho sobre a saúde dos policiais. O conteúdo violento do trabalho policial, o contato rotineiro com a morte e a violência e a constante pressão das responsabilidades são considerados elementos do cotidiano de trabalho causadores de danos à saúde dos policiais (Amir, 1995). Da mesma forma, também vêm sendo estudadas as diferenças de gênero nas exposição das fontes de estresse ocupacional entre policiais, revelando que as mulheres sofrem estressores adicionais no trabalho (Brown & Fielding, 1993).

Outros estudos se dedicam ao comportamento violento dos policiais relacionado a situações de trabalho sem, no entanto, se ocuparem dos aspectos psicodinâmicos implicados. Pesquisas baseadas nas teorias que prevêem a formação de grupos como elemento diminuidor da inibição dos membros e do aumento da probabilidade de agressão destacam que o nível de violência individual dos policiais em atividades específicas varia de acordo com a natureza da atividade, o grau de ansiedade associado a essa atividade, o índice de policiais presentes e o número de espectadores (Wilson & Brewer, 1993).

Propõe que os casos de violência policial, entre outras transgressões disciplinares, de adoecimento físico e psíquico e até mesmo de suicídio, sejam analisados não somente desde o ponto de vista quantitativo, mas também desde a perspectiva qualitativa, ou seja, que tais fatos, além de contabilizados, possam ser interpretados. Tal interpretação, segundo a autora, deve ser promovida, acima de tudo, entre os próprios policiais, para que estes possam, através da inteligibilidade de seu sofrimento no trabalho, chegar à transformação de seu fazer na permanente busca de uma polícia de qualidade.

Na Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), com bastante freqüência constata-se comportamento explosivo entre policiais, como um sintoma de fundo nos mais variados quadros clínicos. Em decorrência, a Diretoria de Saúde realizou uma pesquisa documental na Junta Central de Saúde da PMMG sobre os motivos que levam à

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reforma de policiais, com o objetivo de obter indicadores epidemiológicos sobre a saúde mental na instituição.

Averiguou-se que, no período compreendido entre janeiro de 1994 e novembro de 1996, os transtornos mentais (notadamente as psicoses e o alcoolismo) constituíram o principal fator causal, seguidos por lesões e envenenamentos, e, na terceira posição por doenças do aparelho circulatório (hipertensão e suas conseqüências) e doenças do sistema nervoso e dos órgãos dos sentidos. Além disso, foi constatada a presença pequena, mas constante, dos diagnósticos de Transtorno Explosivo da Personalidade e de Transtorno da Personalidade Emocionalmente Instável como causas de reforma.

Ao ingressarem na polícia militar, os sujeitos são concitados a se destituírem de valores e crenças para incorporarem os valores preconizados pelos regulamentos da instituição. Inicialmente, sentem o impacto das regras na convivência social intramuros, onde as relações perdem a naturalidade e se revestem de medo, de receio do erro e de tudo que ele pode acarretar. Sustentam as autoras que a formação do policial militar é perpassada por um ideal de homem, que, por conseguinte, se estrutura em princípios rígidos. Além dos ideais difundidos, a padronização das condutas, comportamentos, atos e fardamentos tende a dificultar a expressão do que é individual e singular. Apontam ainda para o fato de que estudos vêm demonstrando a ação intimidativa que o grupo exerce sobre os indivíduos, sendo a limitação da liberdade um dos principais fenômenos verificados. No caso dos policiais militares, existe uma pressão muito grande sobre o indivíduo visando à coesão do grupo, sendo o Regulamento Disciplinar, o Código Penal Militar e todos os documentos doutrinários e normativos os principais meios para tal.

Segundo as autoras, estudos apontam para a significativa incidência de suicídio entre os componentes de corporações militares, mostrando índices diferenciados e maiores do que os apresentados pela população civil. Ao analisar essa situação, apontam como uma das possíveis causas o fato de que a morte faz parte do cotidiano do policial militar, o que pode levar à sua banalização. Dessa forma, ao banalizá-la, colocam a possibilidade de que o indivíduo, frente a situações de perda ou que envolvam sofrimento, a veja como uma saída rápida para a infelicidade. Um outro fator estaria relacionado às questões relativas ao funcionamento grupal, uma vez que este faz com que os interesses individuais raramente sejam considerados, produzindo efeitos na vida mental do indivíduo, colocando em questão o valor relativo de cada um.

As conclusões do estudo apontam para a existência de pressões e desafios nas esferas da organização prescrita do trabalho policial e do trabalho policial no cotidiano. Pressões e desafios que impõem rigorosos limites à expressão da subjetividade dos policiais no trabalho, oferecendo-lhes escassas possibilidades para encaminhar seu sofrimento de forma criativa2 . Conforme a autora, como tentativas de gerenciamento do sofrimento psíquico decorrente da experiência laboral, os policiais, coletivamente, recorrem a mecanismos defensivos, visando à tentativa de clivagem entre corpo, pensamento e psiquismo, de maneira a continuar trabalhando nos limites entre a descompensação psíquica e a saúde mental. A violência policial aparece como parte desses mecanismos, expressando o sofrimento psíquico dos policiais, constituído no território de violência da organização do trabalho.

Desafios para a consolidação de um Programa Sistemático de Prevenção e de Promoção de Saúde Mental do Trabalhador na Brigada Militar

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A seguir, propomos alguns caminhos na intenção de contribuir para a consolidação de programas preventivos e promotores de saúde mental do trabalhador – com base na Psicodinâmica do Trabalho - no âmbito das polícias.

Inicialmente destacamos que o caminho metodológico abordado implica um deslocamento: centrar-se na normalidade e não na loucura e abordar, mais precisamente, o que se define como normalidade sofrente (Dejours, 1996). Tal deslocamento impõe, como conseqüência, uma reviravolta nos pressupostos médico-psiquiátricos ainda bastante vigentes nas ações empreendidas pelos profissionais de saúde no que se refere às questões da saúde dos trabalhadores.

Além disto, para desenvolver ações em saúde do trabalhador na perspectiva da Psicodinâmica do Trabalho, é preciso aceitar a dimensão do sofrimento humano dos policiais e abordá-la cotidianamente criando um espaço no qual são expressas as fragilidades humanas dos agentes da Segurança Pública. Essa não parece ser uma tarefa fácil para nenhuma categoria profissional exatamente pela utilização dos mecanismos defensivos construídos coletivamente pelos trabalhadores para conjurarem seu sofrimento, os quais, conforme Dejours (1999), favorecem a alienação. Tratando-se da categoria dos policiais, outro aspecto parece ainda reforçar essa dificuldade: trata-se do discurso viril e da construção imaginária de figuras superpoderosas (Amador, 1999a), amparo permanente das estratégias defensivas dessa categoria que acaba por descartar, freqüentemente, toda a possibilidade de reconhecimento de dificuldades tanto no plano da saúde física como, e sobretudo, da saúde psíquica.

Um segundo aspecto importante a considerar é o fato de que o sofrimento psíquico é o objeto da pesquisa-ação em saúde, proposta em Psicodinâmica do Trabalho. Sofrimento este que, para ser transformado, pressupõe que os sujeitos elaborem suas vivências laborais para, desse modo, propor e conduzir transformações na esfera da organização do trabalho.

Assim, entendendo que a metodologia em questão implica que os policiais possam pensar sua situação em relação ao trabalho negociando com seu universo prescritivo de maneira a “subvertê-lo” criativa e saudavelmente, parece-nos que a prescrição minuciosa, característica da organização do trabalho policial, representa, em certa medida, um obstáculo a esta proposta. Minuciosidade esta cujo cumprimento se ampara em um extenso e rigoroso Regulamento Disciplinar.

O que se visa é a possibilidade de os trabalhadores pensarem sua situação em relação ao trabalho e as conseqüências dessa relação fora do espaço laboral, tendo na palavra o mediador privilegiado das relações intersubjetivas (Dejours, 1988), é pela possibilidade de seu exercício que se configura a chance de inteligibilidade do sofrimento. Para tanto, faz-se necessário repensar a estrutura que cinde os que pensam dos que executam, no trabalho, ainda fortemente presente na organização policial apesar dos movimentos em direção à democratização do espaço policial.

Inicialmente, chamamos a atenção para a importância de reconhecer que o trabalho tanto pode conduzir as pessoas à saúde como à doença e além disso, que o sofrimento, enquanto categoria interme-diária entre as duas, é condição inexorável dos sujeitos que trabalham, exigindo não que se busque eliminá-lo, mas sim, transformá-lo.

Como conseqüência, é necessário admitir que tal sofrimento está diretamente relacionado ao fazer da polícia e, portanto, à qualidade que esse fazer apresenta. Partindo do exposto, é necessário que a Organização da Polícia Militar encare a sua

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responsabilidade com a saúde dos policiais-trabalhadores, já que se trata de uma importante questão de saúde pública, não apenas porque o sofrimento psíquico decorrente do exercício laboral atinge uma categoria profissional inteira, como também porque seus efeitos atingem ampla e gravemente toda a sociedade.

Assim, entendemos que são necessários esforços no sentido de garantir a viabilidade de ações promotoras e preventivas em saúde mental do trabalhador na Brigada Militar mediante algumas iniciativas: a primeira que destacamos refere-se a dar continuidade ao processo de democratização na Polícia Militar, o qual, para ser verdadeiramente efetivo, pressupõe a restauração do direito à palavra no contexto do trabalho; a segunda diz respeito ao investimento na contratação de profissionais das áreas das ciências humanas e da saúde que possam atuar junto às Companhias aproximando-se, desse modo, do cotidiano dos policiais e, por fim, chamamos a atenção para a importância do estabelecimento de políticas públicas em saúde e segurança que amparem programas sistemáticos em saúde do trabalhador junto aos espaços de trabalho policial, oportunizando o repensar permanente dos agentes da segurança pública acerca de sua relação com o trabalho.

- SPODE, C. B., MERLO, A. R. C. Trabalho Policial e Saúde Mental: Uma Pesquisa junto aos capitães da Polícia Militar. Psicologia: Reflexão e Crítica, 19 (3), p. 362-370, 2006.

TRABALHO POLICIAL E SAÚDE MENTAL: UMA PESQUISA JUNTO AOS CAPITÃES DA POLÍCIA MILITAR

Freqüentemente podemos ver a atuação dos policiais sendo veiculada pela mídia, ora mostrando ações de combate ao crime – colocando-os no lugar de heróis – ora mostrando-os como vilões, que se corrompem ou matam inocentes. O trabalho policial ocupa, portanto, um território de controvérsias, no qual se engendra uma realidade ainda pouco conhecida pela sociedade: a do policial trabalhador, cuja função é conter a violência, mas que, ao mesmo tempo, corre o risco de reproduzi-la e/ou de ser vítima dela.

Pensando o ofício policial a partir dessa perspectiva, não é difícil deduzir que se trata de uma categoria profissional bastante vulnerável à produção de sofrimento psíquico, uma vez que o exercício do trabalho é marcado por um cotidiano em que a tensão e os perigos estão sempre presentes.

Em se tratando especificamente dos trabalhadores da Polícia Militar, às exigências do contexto de risco permanente vivido nas ruas, somam-se àquelas relacionadas à forma como o trabalho está organizado, marcado por um alto rigor prescritivo e alicerçado em um sistema de disciplina e vigilância também permanentes.

No presente artigo relatamos pesquisa na qual buscou-se compreender as relações entre o trabalho dos Capitães da Brigada Militar – denominação que recebe a Polícia Militar no Estado do Rio Grande do Sul /Brasil – e a sua saúde mental. A escolha dos Capitães como sujeitos relaciona-se com a especificidade dos posto que ocupam, uma vez que na escala hierárquica situam-se como Oficiais Intermediários, o que significa que exercem funções de comando em relação aos Praças e Oficiais Subalternos

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(Tenentes) e estão, concomitantemente, subordinados aos Oficiais Superiores (Major, Tenente Coronel e Coronel).

Levando-se em conta que a realização das atividades não pode nunca estar separada dos aspectos relacionais imbricados na organização do trabalho, estar nesta posição de comando intermediário implica a configuração de uma série de situações nas quais as relações no trabalho exigem elaborações, arranjos, acordo, etc. Assim, na articulação entre a gestão da defasagem existente entre o prescrito e o real e as relações intersubjetivas no trabalho, emerge uma série de aspectos que podem ser tanto fonte de prazer, quanto fonte de sofrimento para esses sujeitos.

A saúde e o prazer no trabalho estão, dentro desta abordagem, justamente na possibilidade de que os sujeitos negociem com a organização prescrita do trabalho sua inscrição no domínio do trabalho real, ou seja, na possibilidade de criar. Isto porque, para Dejours (1997, p. 40), o real do trabalho é “aquilo que se faz conhecer por sua resistência ao domínio técnico e ao conhecimento científico”. Ele é aquilo que “escapa” e se torna um enigma a decifrar, sendo apreendido inicialmente sob a forma de uma experiência vivida. É a partir do desafio colocado pelo real do trabalho, que o sujeito acrescenta algo de inédito ao trabalho, algo de sua autoria, por intermédio de sua ação singular sobre a tarefa e sobre as rotinas já dadas pela organização prescrita. No entanto, é importante salientar que a inserção do sujeito entre o trabalho prescrito e o real é sempre conflitiva, e não se dá fora do contexto das relações sociais no trabalho. É nesse ponto que aparece outro elemento fundamental para que o sofrimento no trabalho ganhe sentido e se transforme em prazer e saúde: o reconhecimento.

Quando a organização do trabalho tornase rígida, dificultando ou barrando a expressão criativa e autonomia dos sujeitos, ou ainda, quando o reconhecimento não se faz presente, emerge o chamado sofrimento patogênico (Dejours, 1994). A Psicodinâmica do Trabalho, portanto, situa o trabalho como um território que tanto pode dar origem a processos de alienação e mesmo de descompensação psíquica, como pode ser fonte de saúde. Nesse sentido, muito mais do que a aplicação de conhecimento técnico, o trabalho implica mobilização subjetiva, a qual se compõe e encontra ressonância em sua inserção no coletivo de trabalho.

Resultados e Discussão

Foi possível identificar, a partir da análise documental, uma gama de prescrições e um sistema de punições e recompensas que incidem diretamente na execução do trabalho, nas relações que se estabelecem entre os policiais e também, de forma mais ampla, aos princípios que devem pautar a conduta destes, mesmo fora do ambiente de trabalho. O documento que se ocupa mais diretamente das questões

relativas ao cumprimento das prescrições e manutenção dos princípios da hierarquia e da disciplina é o Regulamento Disciplinar dos Servidores Militares (Decreto nº 41.067, 2001), e nele podemos encontrar 94 (noventa e quatro) tipos de transgressão, que estão classificadas quanto à sua natureza em leves, médias e graves, sendo todas passíveis de sanção disciplinar, variando seu grau de acordo com a natureza das faltas cometidas.

Em relação às prescrições para as relações entre os policiais, destaca-se que todo policial militar deve, segundo os preceitos da ética e do dever policial militar (Lei Complementar n. 10.990, 1997), cumprir rigorosamente as obrigações e as ordens;

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praticar a camaradagem e desenvolver permanentemente o espírito de cooperação; tratar os subordinados com dignidade e urbanidade; zelar pelo preparo moral, intelectual e físico, próprio e dos subordinados, tendo em vista o cumprimento da missão comum e ser justo e

imparcial no julgamento dos atos e na apreciação do mérito dos subordinados (Arts. 25 e 29). Estará incorrendo em transgressão todo subordinado que deixar de cumprimentar seu superior, ou deixar de prestar-lhe homenagem ou sinais regulamentares de consideração e respeito; assim como o superior hierárquico incorrerá, caso não responda ao cumprimento. Também poderá ser punido o policial militar que responder de maneira desrespeitosa, ofender, provocar ou desafiar com palavras, gestos ou ações ou travar luta corporal com seu superior, igual ou subordinado e ainda, o policial militar que censurar publicamente decisão legal tomada por superior hierárquico ou procurar desconsiderá-la (Decreto nº 41.067, 2001).

Após esta breve descrição do trabalho prescrito, apresentaremos a seguir alguns dos principais aspectos do trabalho cotidiano dos Capitães, juntamente com a análise dos elementos apontados pelos entrevistados como geradores de sofrimento e prazer no trabalho. Atividade Administrativa: Carga Excessiva de Trabalho, Responsabilidade e Autonomia Os Capitães participantes da pesquisa, como comandantes de Companhias ou Pelotões, tinham sob responsabilidade um efetivo que pode variar de 25 a 75 policiais. A atribuição de planejamento de policiamento desdobra-se em uma série de atividades, dentre elas, a realização de estatísticas para averiguar os locais mais propensos a ocorrências e o planejamento de cada um dos postos de policiamento da subárea sob seu comando. Em relação à gestão de recursos humanos, dentre as atividades envolvidas, está o planejamento das escalas de trabalho dos Praças para os quatro turnos de trabalho, a concessão de licenças e o gerenciamento das folgas e férias de seus subordinados.

Os Capitães também se envolvem com o controle, manutenção e distribuição e dos equipamentos de trabalho. Dentre as atividades administrativas, ganha destaque a presidência dos chamados Procedimentos, processos que visam investigar possíveis infrações disciplinares cometidas por policiais militares, e que englobam Inquéritos Técnicos, Sindicâncias Administrativas, Inquéritos Policiais Militares e Procedimentos Administrativos Disciplinares, cada um dos quais com formato e prazos são específico. Desde a elaboração até a conclusão dos Procedimentos, existe um formalismo bastante minucioso a ser cumprido. Por tratarem- se de processos oficiais, é necessária muita atenção para evitar erros ou omissão de dados, a qual, pode, inclusive, ser classificada como transgressão disciplinar e resultar em punição. Além disso, a condução de cada um dos Procedimentos exige que diversas atividades sejam executadas, tais como: encaminhamento de perícias junto aos setores competentes nos casos de Inquéritos Técnicos, envio de ofícios solicitando a presença dos acusados ou das testemunhas para serem ouvidos e a tomada dos depoimentos dos envolvidos.

Neste sentido, a presidência dos Procedimentos, foi considerada unanimemente pelos entrevistados, como a “a parte ruim e chata do trabalho”. As deficiências das condições de trabalho e o fato de dependerem de outras pessoas para realizá-los, como peritos (que muitas vezes demoram a entregar os laudos necessários ao andamento dos processos) e depoentes (que não raras vezes, deixam de comparecer no dia e horário estipulados) são fonte de pressão, visto que o atraso na entrega pode resultar em punição, pois dentre as transgressões de natureza média, listadas no RDSM, consta “deixar de encaminhar documentos no prazo legal”. Nas palavras de um Capitão: Não

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gosto de fazer sindicância, não gosto de fazer inquérito, não gosto de ouvir as pessoas em inquérito e sindicância. Por quê? Porque é um problema, porque ou não tem o computador, ou tu não tem horário, ou a pessoa que tu chamava não vem, aí... Sabe? E isso, junto com a parte operacional e até mesmo com outras questões administrativas, isso me causa um estresse tremendo. Eu não gosto de fazer procedimento. Não gosto mesmo. Assim, o grande número de atribuições no âmbito administrativo, sobretudo em função dos Procedimentos, faz com que, regularmente, os Capitães tenham que iniciar mais cedo ou estender o horário de trabalho para além das seis horas diárias estipuladas. Neste sentido, os entrevistados atribuem a elevada carga de trabalho o fato de tornar a sua profissão desgastante. A essa questão associa-se a disponibilidade permanente demandada pelo trabalho, em função das responsabilidades do cargo, sobretudo no que tange à execução do policiamento nas subáreas que estão sob comando dos Capitães. Trata-se de uma responsabilidade que não cessa mesmo quando eles não estão em horário de trabalho, a qual os faz não poderem “desligar nunca”, engendrando um estado de preocupação constante.

No entanto, é preciso lembrar que estes aspectos nem sempre são incompatíveis com o prazer que é obtido na relação estabelecida com o trabalho (Dejours & Jayet, 1994). Nesse sentido, os Capitães afirmam também que encontram grande satisfação na profissão de policiais militares, e mais especificamente no posto que ocupam. Dentre os fatores que trazem satisfação, está a percepção que têm da importância social do trabalho, a despeito das inúmeras críticas feitas em relação à atuação da polícia: Só nosso trabalho em si já é uma coisa gratificante, é um serviço que a gente ta prestando pra comunidade. Pensa bem, uma cidade sem policiamento, por exemplo? Se com policiamento já acontece muita coisa, então o nosso serviço é muito importante pra sociedade. Então só de a gente se sentir necessário, já e uma coisa gratificante pra gente. Esse “sentir-se útil”, se está vinculado ao objetivo mais amplo do trabalho, qual seja, a preservação da segurança pública, remete também à participação de cada um dos Capitães nesse processo, pelas atividades de concepção.

Lembramos que do ponto de vista da saúde mental, o engajamento subjetivo, pela mobilização da inteligência e da inventividade no trabalho é um aspecto de suma importância para garantir que este seja fonte de prazer (Dejours, 1992, 1997; Merlo, 2002). Ao mesmo tempo, ainda que muitas determinações que tenham de ser cumpridas, existe um espaço de autonomia que permite adapta-las e decidir sobre como serão realizadas, como pode ser visto na fala a seguir: Cada Oficial tem uma maneira de ser, uma maneira de tu levar. É como um dirigente, o treinador e os jogadores. Tem o dirigente que contrata o treinador, eu sou o treinador. Ele quer que o time atue de determinada forma e o treinador vai dar o seu toque pessoal e o soldado dentro de campo, o jogador. Tu chega e verifica qual a melhor maneira de tu fazer aquilo que foi solicitado pra ti fazer.

Assim, ainda que o trabalho dos Capitães seja permeado de pressões, é fonte de prazer, por ser tributário de uma utilidade social que lhe atribui um sentido e pela possibilidade de singularização no espaço de autonomia e criação que proporciona. Atividade Operacional: Risco, Sofrimento e Prazer A presença dos Capitães diretamente na atividade de policiamento se dá basicamente de duas formas: quando saem às ruas para coordenar, fiscalizar e suplementar efetivo do Policiamento Ostensivo, durante o turno diário de trabalho, ou então, para realização dos Serviços Externos de doze horas, que podem acontecer durante o dia, das sete da manhã às sete da noite, ou das sete da noite às sete da manhã. O trabalho nas ruas é referido

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pelos Capitães como uma “caixa de surpresas”, pois nunca sabem com que tipo de situações irão se deparar e neste sentido, afirmam que precisam estar preparados para as ocorrências mediante o conhecimento da legislação e dos procedimentos prescritos para serem adotados frente a elas. No entanto, afirmam que todas as ocorrências são diferentes. Em geral, trata-se de situações tensas e nas quais estão em jogo segurança e não raramente a vida de pessoas: a sua, a dos subordinados e da dos civis envolvidos, como na experiência relatada por um dos entrevistados: Foi quando eles (assaltantes que mantinham reféns) me exigiram eu entrar desarmado, o que eu fiz. Foi uma decisão que eu tive que tomar no momento. E na hora a gente quer resolver o problema, a gente tá preocupado com a vida das pessoas. Foi uma decisão que eu tive que tomar, simplesmente tirei minha arma da cintura, entreguei pro PM e entrei. Assim, as decisões tomadas não decorrem estritamente da execução de determinados procedimentos e não são os resultados de um diagnóstico exato sobre uma situação – o qual não pode ser obtido até mesmo em função do tempo mínimo em que têm de ser tomadas. São decisões que em muitos casos antecipam-se à racionalização, tomadas a partir da mobilização da subjetividade frente ao imprevisto e ao incerto (Dejours, 1997).

As Relações de Trabalho: Um Território de Contradições, a organização prescrita do trabalho policial militar com seu sistema de punições e recompensas tem no disciplinamento o seu elemento central. Assim, analisar as relações que se produzem entre trabalhadores nesta instituição exige levar em consideração que estas estão sempre permeadas pela hierarquia, pela disciplina e pelos mecanismos utilizados para sua produção e manutenção. Os Capitães, por ocuparem o posto de Oficial Intermediário, estão, concomitantemente, expostos a tais mecanismos e têm a incumbência e de fazê-los funcionar na convivência com seus subordinados. Cabe-lhes, além do planejamento e gestão, o papel de “olhar hierárquico” (Foucault, 2002, p. 143) sobre seus subordinados, fazendo a vigilância e a fiscalização do trabalho e da disciplina, sob pena de que eles próprios sejam punidos, caso deixem de comunicar quaisquer atos contrários a esta, deixem de tomar as providências cabíveis para que sejam investigados ou deixem de punir, dentro de sua competência, os transgressores.

É importante destacar que a vigilância da disciplina, apesar do componente hierárquico em função da organização piramidal, é prescrita entre todos os policiais, fazendo dos Capitães “fiscais perpetuamente fiscalizados” (Foucault, 2002, p. 148). A disciplina, portanto, constitui-se, tal como afirma Foucault (2002), em um poder múltiplo, que atua formando uma rede que controla continuamente também os que estão encarregados de controlar. Temos assim, uma polícia que atua como polícia de si mesma, mediante a prescrição para a denúncia. Embora não possamos esquecer que estamos nos reportando a trabalhadores que atuam na segurança pública e que, neste sentido, a vigilância objetiva o impedimento de transgressões que podem ser a prática de atos ilícitos e/ou criminosos, claramente incompatíveis com o trabalho na policial, é preciso lembrar também que este controle atua diretamente sobre o vínculo de confiança entre os trabalhadores.

- SOUZA, E. R., MINAYO, M. C. S. Policial, risco como profissão: morbimortalidade vinculada ao trabalho. Ciência e Saúde Coletiva, 10 (4), 917-928, 2005.

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POLICIAL, RISCO COMO PROFISSÃO: MORBIMORTALIDADE VINCULADA AO TRABALHO

Conceitos e contexto

As instituições policiais brasileiras (civis e militares), de um lado, derivam das corporações modernas da Europa Ocidental, forjadas na idéia de segurança pública como um serviço essencial prestado pelo Estado, concernente à garantia de direitos e ao assentamento da autoridade. De outro, foram criadas para controlar uma sociedade escravocrata, extremamente hierárquica e elitista. Desta forma, ao lado de seu papel modernizador que tirava o monopólio da violência da mão dos soberanos portugueses, sua existência efetivou a força repressora do Estado contra os escravos, os pobres livres e a população em geral. Sua atuação histórica acabou por instituir uma ética discriminatória na prática dos deveres estabelecidos pela autoridade das leis. Em resposta, a história mostra que, desde a origem, se explicitou uma aversão dos brasileiros às atividades policiais, aversão que permanece. Até hoje, o serviço de segurança pública no Rio de Janeiro é malvisto e malquisto pela população em geral e por motivos diversos: os cidadãos das classes média e abastada reclamam da insegurança e da ineficiência, uma vez que esperariam mais rigor e vigilância dos policiais em função da ordem burguesa; a população pobre e moradora dos bairros periféricos sente-se discriminada e maltratada por eles; e os delinqüentes os tratam como inimigo número um, buscando evadir-se de seu olhar ou mesmo confrontá-los, escudados exatamente na "má fama" que os acompanha.

A opinião pública negativa faz parte do ônus do trabalho policial, e em estudos recentes alguns autores mostram como esses servidores apresentam elevado grau de sofrimento no trabalho pela falta de reconhecimento social. O conceito negativo emitido sobre eles pelas várias camadas sociais está entranhado na cultura. Ele legitima e naturaliza a violência que os vitima muito mais do que a qualquer trabalhador, durante a jornada de trabalho ou nos tempos de folga em que, curiosamente, aumentam as ocorrências de lesões e traumas.

Todas as categorias aqui estudadas, policiais civis, militares e guardas municipais, atuam no conceito de Segurança Pública que abrange a garantia que o Estado oferece aos cidadãos, por meio de organizações próprias, contra todo o perigo que possa afetar a ordem social, em prejuízo da vida, da liberdade ou dos direitos de propriedade. A segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos. Embora seu conceito seja muito mais complexo do que o de policiamento, a segurança é transformada em mandato à instituição policial, de tal forma que a produção e a manutenção da ordem constituem a essência de sua missão e de seu processo de trabalho.

Os policiais e os guardas municipais do Rio de Janeiro são tratados como categorias que atuam sob elevado risco, entendendo-se essa noção sob as abordagens epidemiológica e social. Ou seja, essa noção diz respeito, ao mesmo tempo, à probabilidade das ocorrências de lesões, traumas e mortes e ao significado da escolha profissional que traz intrínseca o gosto pelo afrontamento e pela ousadia como opção e não como destino. Seja no sentido de perigo ou de escolha, o conceito de risco desempenha um papel estruturante das condições laborais, ambientais e relacionais para esse grupo social, uma vez que seus corpos estão permanentemente expostos e

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seus espíritos não descansam. Eles vivem o que se denomina de "risco de alta conseqüência". O exercício do trabalho de elevado risco se comprova pelas taxas de mortalidade e de morbidade por agressões de que são vítimas, dentro e fora das corporações, taxas essas muito mais elevadas que as da população em geral.  

Sobre a Guarda Municipal

A Guarda Municipal, em sua curta história, passou por um período de crescimento da vitimização, principalmente em 2003, de seus agentes que coincide com o acirramento de conflitos e turbulência envolvendo algumas áreas da cidade do Rio de Janeiro. Entre os eventos que redundaram em vitimização estão os conflitos com camelôs que negociam produtos contrabandeados e cargas roubadas. A omissão das autoridades quanto a ações para a contenção ou proibição da circulação de mercadorias ilegais por um lado, e por outro, a pressão da Guarda Municipal contra as infrações no comércio, fizeram crescer a resistência dos comerciantes informais. Contudo, os confrontos sempre encontraram os guardas despreparados e mal equipados, usando equipamentos de proteção apenas para a cabeça e o corpo. As ocorrências de vitimização evidenciaram a necessidade de protegê-los com colete, caneleira, joelheira e munhequeira.

No período de 1994 a 2004, morreram por todas as causas (doenças e causas externas) 65 (5,3%) guardas municipais e 1.150 (94,7%) foram feridos em acidentes típicos de trabalho. O número de feridos não letais aqui analisado representa o dos servidores em serviço. As agressões representaram 30,3% de todos os ferimentos decorrentes dos acidentes típicos de trabalho ou 26,6% de guardas feridos em relação ao total das vítimas. O acirramento dos conflitos teve um papel importante no crescimento da vitimização não letal, mas não em relação às mortes nas atividades profissionais. No período, a maioria dos óbitos ocorreu em folga (89,2%) e apenas 10,8% aconteceram em serviço.

Cerca de 29,5% do total dos guardas municipais, correspondendo a 10 mortos por projéteis de arma de fogo e 348 agredidos por pedras, paus e luta corporal, foram vitimados por causas externas no período. Do efetivo médio de guardas no período de 2001/2004, 1.110 (21,1%) entraram em benefício por acidente de trabalho e 2.347 (44,7%), por doença. Analisando as características de vitimização desses servidores nos anos de 1994 e 1995, Muniz & Soares (1998) identificaram como principais circunstâncias das lesões, traumas e mortes, a dinâmica conflituosa (60,5%), a dinâmica criminal (16,3%) e o acidente de trânsito (9,3%). A primeira correspondeu a 79,3% da vitimização em serviço: em 51,7% dos casos, os agentes encontravam-se em operação especial e, em 20,6%, estavam de sentinela ou fazendo policiamento.

Sobre os policiais militares

Observa-se que o número médio de oficiais com LTS cresceu 95,5% no período, enquanto o de praças mais que duplicou (108,3%). O número médio de praças com agravos que exigiram afastamento é mais de 20 vezes o de oficiais, representando cerca de 96% das LTS no período. São os praças que estão na linha de frente nos confrontos.

Mais relevante ainda é o crescimento geral e as diferenças entre as duas categorias no que concerne a Incapacitações Físicas Parciais (IFP): o número médio de oficiais com lesões e traumas cresceu 166,5% no período e o de praças, 227,5%. O número médio de praças, no início da série era cerca de 13 vezes maior que o de oficiais, passando a

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ser 16.8 vezes em 2004. Os praças configuram 93% dos incapacitados físicos retirados dos serviços ostensivos para realizar tarefas internas, no período. No ano de 1997, 50,2% das LTS e 42,8% das IFP foram provocadas por traumas; e 5,6% das LTS e 16,9% das IFP deveram-se a problemas psiquiátricos (Muniz & Soares, 1998). Em ambos os casos ressaltam-se os riscos e o estresse vivido no trabalho.

Dos 4.518 policias mortos e feridos por todas as causas, de 2000 a 2004, 56,1% foram vitimados durante as folgas, contra 43,9%, em serviço. Nesse período, a ação violenta representou 57,2% das causas de suas mortes e ferimentos, proporção que cresceu nos últimos dois anos, passando de 53,2% em 2002, para 63,7% e 67,1% em 2003 e 2004, respectivamente.

Do total de 758 policiais mortos, 173 (22,8%) estavam em serviço. Quando mortos em serviço por ação violenta, essa proporção é um pouco maior (26,4%). Os dados mostram um crescimento desde o ano de 2002 da proporção de óbitos em serviço por ação violenta, passando de 75% para 88%. O número de policiais que perderam a vida em serviço foi 2.5 vezes maior em 2004 quando comparado ao ano de 2000.

Se por um lado cresceu a vitimização dos policiais - de todas as três categorias - também é verdade que de 2003 para 2004 houve crescimento de 2,6% no número de ocorrências criminais no Rio de Janeiro: foram 536.163 em 2003 e 550.262 em 2004. Os delitos violentos não letais contra a pessoa cresceram 4,6%, passando de 5.054 para 5.286.

É importante também destacar que no conjunto dos óbitos por ação violenta morrem 2.8 vezes mais policiais militares em folga do que os que se encontram em serviço. No entanto, a importância da ação violenta tem maior magnitude na mortalidade desses últimos (ela representa 83,2% dos policiais que morreram em serviço, comparados aos 68,5% dos que morreram em folga).

Dos 3.760 policiais militares feridos (em serviço e em folga) 48,1% (ou 1.809 policiais) estavam em serviço. Desses que se encontravam em serviço, 1.054 (58,3%) foram atingidos em ação violenta, o que representa uma proporção maior do que a de 50,5% de feridos quando em folga pela mesma causa. No entanto, a ação violenta tem crescido proporcionalmente vitimizando também os policiais em folga. Em 2003 e 2004 ela é responsável por patamares acima dos 70% dos casos de ferimento de policiais. Em 2002 esse percentual era de cerca de 39%.

No Rio de Janeiro, dos policiais militares que morreram em serviço, 55,3% estavam trabalhando em policiamento geral, dos quais 41,4% faziam patrulhamento motorizado e de rotina; 29,2% exerciam policiamento dirigido (13,1% de radiopatrulha e de atendimento aos cidadãos e 12%, em operações especiais); 2,9% efetuavam investigação e diligência; 12,7% atuavam em outros tipos de serviços; e 10,4% estavam de sentinela ou plantão.

Sobre os policiais civis

As informações sobre a polícia civil dizem respeito às mortes e aos eventos não fatais causados por todas as condições e agravos, incluindo-se as doenças, os acidentes e as violências. Essas informações diferem das apresentadas sobre as duas outras categorias, por dificuldades objetivas de se obterem dados desagregados sobre causas externas para esse grupo.

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No período de 1994 a 2004 foram aposentados por laudo médico 594 policiais civis, envolvendo todas as causas geradoras de invalidez temporária e permanente, incluindo-se doenças e lesões provocadas por acidentes e violência.

Pelos motivos aludidos, as informações aqui analisadas não permitem a comparação entre as categorias. Morreram, por todas as causas, 147 policiais civis no período de 1998 a 2004, dos quais a grande maioria (120 policiais) encontrava-se de folga.

O ponto mais relevante das informações trazidas é a elevação das taxas de morte de policiais nos dois últimos anos, principalmente quando em folga. Para a cidade do Rio de Janeiro indicaram para os anos de 1994 e 1995 taxas de vitimização de 20,8 e 17,5 por mil policiais, respectivamente. Grande parte das informações estava classificada numa categoria denominada "ofensas". Em 1994 a taxa total de vitimização (mortos + feridos) foi de 20,8 por mil policiais civis, enquanto apenas a de ofensas não letais foi de 16,6/1.000. Em 1995 o valor encontrado para a taxa total de vitimização foi de 17,5/1.000 e de 14/1.000 para as lesões não letais. Nesses mesmos anos, a maior parcela dos óbitos correspondeu à de policiais em folga. Dentre os vitimados 53,1% eram detetives; 10,9% carcereiros; 18% não foram especificados quanto à função; 5% eram escrivães, 3,8% delegados e 8,4% exerciam outras funções. As circunstâncias da vitimização em serviço corresponderam à dinâmica criminal em 52% dos casos, sendo 13,3 por ação armada de suspeitos. Os acidentes de trânsito responderam por 22,7%, e a dinâmica conflituosa, a 18,7% dos traumas e lesões. As circunstâncias da vitimização dos que estavam em folga foram: dinâmica criminal (33,3% dos casos, sendo 28,8% a assaltos); acidentes de trânsito (28,8%) e dinâmica conflituosa (25,5%).

Conclusões

Durante a série estudada houve crescimento da vitimização nas três categorias estudadas, sobretudo considerando-se as lesões não fatais nos primeiros anos deste século, com relevância para 2003 e 2004. As principais causas de morte, lesões e traumas se devem a agressões e a acidentes de trânsito, o que coincide hoje com informações sobre a vitimização das populações trabalhadoras no Brasil na conjuntura atual. Porém, isso ocorre de forma muito mais insidiosa entre guardas municipais e policiais civis e militares do Rio de Janeiro.

Embora os servidores das três corporações conformem uma categoria específica de trabalhadores em elevado risco para mortes e morbidade por violências e acidentes, existem diferenciações internas entre os três grupos, o que corresponde, dentre outros motivos, ao processo de trabalho de cada um.

Merece atenção a vitimização dos agentes de segurança em suas folgas, tanto em acidentes de trânsito como por agressões. No caso dos confrontos, algumas evidências podem ser ressaltadas. Uma delas, contraditoriamente, se deve também ao trabalho. Elevado percentual de policiais tem um segundo emprego na área de segurança privada, continuando assim a usar o tempo livre com atividades de similar elevado risco. Outro motivo se deve à presença dos policiais, como cidadãos, em cenas de conflitos em bairros, em bares e em transportes quando, por via de sua função, acabam se envolvendo. Muitos, também, são vítimas de emboscadas de delinqüentes. Esse último motivo leva a que seja comum o fato de os policiais esconderem seus distintivos e profissão, visando diminuir as ameaças e ataques que lhes são impingidos. Não deve ser descartado também o fato de que, no ambiente de trabalho das corporações, esses

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agentes desfrutem de maior proteção grupal e de atenção e cuidados muito mais estruturados e padronizados tecnicamente.

Fica patente que, dentre os três grupos, a Polícia Militar é a que mais sofre agressões, apresentando taxas de mortalidade e de morbidade elevadíssimas. Esse privilégio negativo pode ser constatado, comparativamente, com dados para o ano de 2000. No Brasil, a taxa de mortalidade por homicídio na população geral foi de 26,7 por 100 mil habitantes e essa taxa na população masculina foi de 49,7. Na capital do Rio de Janeiro, os dados são mais elevados: 49,5/100.000 na população geral e 97,6/100.0000 na população masculina. As taxas de mortalidade por agressões e acidentes de trânsito entre agentes da segurança pública (das três categorias) são mais elevadas, menos na Guarda Municipal. Nessa, em 2001, a taxa de mortalidade foi de 55,31/100.000 guardas, abaixo da média masculina da população do Rio de Janeiro. No entanto, na Polícia Militar, em 2000, a taxa de mortalidade por agressões chegou a 356,23/100.000. Na polícia civil, essa taxa, considerando-se todas as causas, no mesmo ano foi de 206,80/100.000.

Portanto, comparativamente, a Polícia Militar apresenta taxas de mortalidade por violência 3.65 vezes maiores do que a da população masculina da cidade do Rio de Janeiro e 7.2 vezes a da população geral da cidade. Comparando-se com o Brasil, as taxas são 7,17 vezes as da população masculina e 13.34 vezes as da população geral. O risco de morte entre Policiais Militares é também maior do que entre os agentes dos outros órgãos de segurança aqui analisados: chega a ser 6.44 vezes o da Guarda Municipal e 1.72 vezes o da Polícia Civil.

Sob a perspectiva das internações hospitalares motivadas por agressão, em 2000 observou-se a taxa de 0,10/1.000 habitantes na população geral e 0,34/1.000 na população masculina do país. As taxas de lesões e traumas por agressões não fatais foram de 4,49/1.000 para a Guarda Municipal e de 9,29 para a Polícia Militar, nesse mesmo ano. Comparados com dados do Rio de Janeiro, a taxa de morbidade hospitalar da Polícia Militar em 2000 foi 92,90 vezes maior que a da população geral da cidade e 27.32 vezes a da população masculina do Brasil. Foi ainda 2.07 vezes maior do que a taxa da Guarda Municipal.

Encerrando esta reflexão, chama-se atenção para a necessidade de estudos e, principalmente, de propostas de ação que sejam efetivas e tornem os trabalhadores da segurança pública menos vulneráveis. A maioria das medidas para diminuir a vitimização passa por propostas de modernização dos seus processos de trabalho, das estratégias de sua atuação e dos equipamentos de produção dos serviços. Mas referem-se também a políticas que promovam a diminuição da criminalidade e a mudanças na cultura de oposição entre policiais e cidadãos. O campo de saúde do trabalhador hoje, para ser coerente com a realidade do mundo do trabalho, não pode se omitir de pensar nas categorias que atuam na segurança pública, um dos segmentos mais vulneráveis aos acidentes e à morte no trabalho.