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APARECIDA MARIA ABRANCHES Nacionalismo e Democracia no Pensamento de Guerreiro Ramos Tese apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutora em Ciências Humanas: Ciência Política, sob a orientação do Prof. Dr. Marcelo Jasmin. RIO DE JANEIRO 2006

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APARECIDA MARIA ABRANCHES

Nacionalismo e Democracia no Pensamento de Guerreiro Ramos

Tese apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutora em Ciências Humanas: Ciência Política, sob a orientação do Prof. Dr. Marcelo Jasmin.

RIO DE JANEIRO 2006

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Abranches, Aparecida Maria (9.8.1969) Nacionalismo e Democracia no Pensamento de Guerreiro Ramos Rio de Janeiro – IUPERJ, 2006. Tese: Doutorado em Ciências Humanas: Ciência Política. IUPERJ I. Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ II. Nacionalismo – Democracia – Pensamento Social Brasileiro

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APARECIDA MARIA ABRANCHES

NACIONALISMO E DEMOCRACIA NO PENSAMENTO DE GUERREIRO RAMOS

Tese apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutora em Ciências Humanas: Ciência Política.

BANCA EXAMINADORA: MARCELO JASMIN (ORIENTADOR)

CÉSAR GUIMARÃES

HELENA BOMENY

MARCOS CHOR MAIO

MARIA ALICE REZENDE CARVALHO

RIO DE JANEIRO 2006

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Índice

INTRODUÇÃO

1

CAPÍTULO 1 – AS CRÍTICAS AO ISEB: SEUS LIMITES E A PROPOSTA DE UM OUTRO ENFOQUE 5 1.1. Capitalismo, Estado e intelectuais na crítica ao ISEB 5 1.2. Os limites da crítica 12 1.3. O nacionalismo na perspectiva contemporânea 17 1.4. Estado, sociedade e nacionalismo 21 CAPÍTULO 2 – DILEMAS DO CONCEITO DE NAÇÃO NO CONTEXTO DE INSTITUCIONALIZAÇÃO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS NO BRASIL 30 2.1. A crítica epistemológica ao nacionalismo 30 2.2. A sociologia paulista e a questão da identidade nacional 41 2.3. A sociologia, a antropologia e os seus objetos 45 2.4. Sociologia, sociedade industrial e representações do Brasil 47 2.5. Antropologia: folclore e identidade nacional 55 2.6. Sociologia, “descoberta” da sociedade brasileira e cidadania 62 CAPÍTULO 3 – O SOCIÓLOGO EM “MANGAS DE CAMISA” 71 3.1. O contexto da crítica de Guerreiro Ramos à sociologia acadêmica 71 3.2. O sociólogo em habitus 72 3.3. Quadro histórico da formação: o burocrata e o intelectual 75 3.4. Guerreiro e a industrialização 85 CAPÍTULO 4 – NACIONALISMO E IDEOLOGIA 97

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4.1. O nacionalismo e populismo 97 4.2. Nacionalismo: uma teoria da sociedade brasileira 103 4.3. “País com povo” e “país sem povo” 108 4.4. Ciência e ideologia 121 4.5. Os pressupostos filosóficos e sociológicos da redução sociológica 127 CAPÍTULO 5 – O PENSAMENTO SOCIAL E POLÍTICO BRASILEIRO NA PERSPECTIVA DE GUERREIRO RAMOS 134 5.1. Por uma sociologia dinâmica 134 5.2. As imagens da nação no pensamento social brasileiro 136 5.3. Visões homogêneas e pessimistas 137 5.4. Visões heterogêneas e otimistas 147 5.5. Espaço, tempo e história nacional 149 CAPÍTULO 6 – DUAS DIGRESSÕES SOBRE NACIONALISMO E DEMOCRACIA 156 6.1. Primeira digressão: as ciências sociais em uma era de nacionalismos 156 6.2. Segunda digressão: Estado, sociedade e democracia na historiografia do pensamento político brasileiro após a década de 1970 166 CONCLUSÃO 174 BIBLIOGRAFIA 180

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Resumo

O objetivo desta tese é analisar o nacionalismo nos anos 1950, no Brasil, como

um fenômeno histórico associado a processos de democratização social e política. A

análise é desenvolvida tomando como referência básica os escritos de Guerreiro Ramos,

membro até 1958 do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), fundado em

1955. A criação do Instituto teve como principal finalidade formular a ideologia

nacional-desenvolvimentista. Retomo nesta tese algumas das principais críticas feitas ao

ISEB em fins das décadas de 1970 e 1980, e proponho um enfoque alternativo ao modo

como essas críticas compreenderam o nacionalismo de um ponto de vista

exclusivamente econômico. Com base na literatura contemporânea sobre nacionalismo,

proponho uma leitura que considere o papel do Estado e o das narrativas nacionais

como constitutivos dos processos históricos de construção dos Estados nacionais e,

conseqüentemente, das sociedades democráticas integradas.

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Agradecimentos

Agradeço ao meu orientador Marcelo Jasmin por suas sugestões valiosas, pelo

apoio e incentivo. Sua confiança foi indispensável para me dar a determinação

necessária para realizar este trabalho. Aos coordenadores e professores do IUPERJ, em

especial Luiz Werneck Vianna e Ricardo Benzaquen. Ao professor César Guimarães,

pela sabedoria, generosidade, eterna sede de conhecimento e, por conseguinte, “frescor

das idéias”, tudo o que faz dele um grande mestre. No IUPERJ, pude contar com o

companheirismo dos meus colegas de curso Felícia Picanço, Marcelo Maciel, Marlise

Matos, Andréia e Jairo, Robert Wegner, Vânia, Kleber de Deus; e das funcionárias

Simone, Bia, Solange, Ângela, Valéria, Lia e Dona Lina, que ficarão para sempre em

minha lembrança.

Agradeço também aos professores da UERJ, que foram muito importantes na

minha formação nas ciências sociais, em especial Cléia Schiavo, Luis Rodolfo Vilhena,

Valter Sinder, Noeli Corrêa de Melo. À professora Helena Bomeny, com muito carinho,

pela pessoa que é e pela orientadora que foi para mim na graduação, a quem eu devo os

meus primeiros passos na reflexão sobre o pensamento de Guerreiro Ramos.

Ao Marcos Chor Maio, que, a partir da minha entrada no mestrado, muito

contribuiu para que eu desse seqüência à reflexão iniciada na graduação. O estímulo à

participação em seminários sobre Guerreiro Ramos, sem dúvida, ajudou a manter em

mim o entusiasmo pelo pensamento desse autor.

Agradeço ao Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, em particular

aos meus colegas Sarah Teles, Vladimir Lombardo, Simone Dubeux, Elielma Machado,

Ana Fernanda Coelho, Solange Luçan, Sonia Travassos e Mirane Girão; e, ainda, o

carinho de Mônica, Mercedez e Helenice. Agradeço aos meus amigos desde os tempos

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da UERJ, cuja amizade tenho o prazer de desfrutar nos dias de hoje na PUC: Luiz

Fernando Almeida Pereira, Ronaldo Castro, Paulo Jorge Ribeiro e José Mauro Freitas.

Sou muito grata à atenção e carinho dos meus grandes amigos, Rosi Marques

Machado e Paulo D’Ávila. A presença de ambos nesse processo foi particularmente

importante pelo estímulo intelectual, o que adveio, freqüentemente, por meio de

calorosas discussões e interesse sincero por este trabalho. Aos dois, meu grande carinho.

Aos amigos que a vida generosamente trouxe para mim: Cristina, Aninha e

Paulo Bahia. E ainda a duas pessoas que comprovam que a amizade resiste ao tempo e a

tudo: Maria Helena, cuja força, alegria e capacidade de sonhar fez e faz com que exista

um mundo para além das ciências sociais; e a minha “irmãzinha” Débora de Castro

Barros, por sua lealdade, dedicação e paciência ao longo desse processo. Finalmente, a

Romana, pela amizade e apoio.

Agradeço à minha família: minha mãe Joventina de Oliveira Abranches, sem

dúvida a pessoa mais importante no processo que me trouxe desde as primeiras letras

até este momento, e minhas irmãs Arlene, Elaine e Eliane.

Finalmente, agradeço ao CNPq pela bolsa concedida, o que tornou possível a

realização desta tese.

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Para meu pai Geraldino Abranches (in memoriam)

e meu irmão Gideon de Oliveira Abranches (in memoriam)

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Eu estava esparramado na rede, Jeca urbanóide de papo pro ar

Me bateu a pergunta meio a esmo: na verdade, o Brasil o que será?

O Brasil é o homem que tem sede ou o que vive da seca do sertão?

Ou será que o Brasil dos dois é o mesmo, o que vai e o que vem na contramão?

O Brasil é um caboclo sem dinheiro procurando o doutor nalgum lugar?

Ou será o professor Darcy Ribeiro que fugiu do hospital pra se tratar?

A gente é torto, igual Garrincha e Aleijadinho... ninguém precisa consertar

Se não der certo, a gente se vira sozinho

Decerto, então, nada vai dar

O Brasil é o que tem talher de prata ou aquele que só come com a mão?

Ou será que o Brasil é o que não come, o Brasil gordo na contradição?

O Brasil que bate tambor de lata ou que bate carteira na estação?

O Brasil é o lixo que consome ou tem nele o maná da criação?

Brasil, Mauro Silva, Dunga e Zinho, que é Brasil zero a zero e campeão,

Ou o Brasil que parou pelo caminho... Zico, Sócrates, Júnior e Falcão?

O Brasil é uma foto do Betinho ou um vídeo da Favela Naval?

São os trens da alegria de Brasília ou os trens de subúrbio da Central?

Brasil-Globo de Roberto Marinho? Brasil-bairro: garotos-candeal?

Quem vê do Vidigal o mar e as ilhas ou quem das ilhas vê o Vidigal?

O Brasil alagado, palafita? Seco açude sangrado, chapadão?

Ou será que é uma avenida paulista? Qual a cara da cara da nação?

(Celso Viáfora e Vicente Barreto)

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Introdução

O nacionalismo, formulado como teoria da sociedade brasileira e ideologia

desenvolvimentista pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros – ISEB, na década de

1950,1 foi objeto de vários estudos críticos entre os fins da década de 1970 e de 1980.

Na oportunidade que tive de ler alguns desses estudos para a realização da minha

dissertação de mestrado, chamou-me a atenção o fato de as críticas focalizarem o

nacionalismo de um ponto de vista exclusivamente econômico, desconsiderando o que,

para mim, constitui um fenômeno político mais amplo, associado a processos de

democratização social e política.

Nesta tese, analiso o nacionalismo a partir dos escritos de um dos intelectuais

daquele instituto, Guerreiro Ramos, procurando apreender a teoria da sociedade

brasileira, na qual um discurso de apelo nacionalista teria se justificado na época.

Considero que as críticas, cujos principais aspectos analiso no Capítulo 1, teriam

submetido a teoria histórica da sociedade brasileira, formulada pelo ISEB, aos seus

próprios parâmetros de correção científica. Esses parâmetros seriam dois: um, oriundo

dos anos 1970, e outro, que teria orientado uma teoria da modernização da sociedade

brasileira nos anos 1950.

Nos anos 1970, os estudos, envolvidos em um contexto de contestação ao

regime militar, teriam encontrado no marxismo de Althusser uma perspectiva para a

crítica ao Estado na sociedade capitalista. A compreensão do Estado como instrumento

das classes dominantes orientou uma crítica do nacionalismo como ideologia que teria

1 O ISEB foi fundado em 1955, no Rio de Janeiro, reunindo um grupo de intelectuais com o propósito de elaborar a teoria do nacional-desenvolvimentismo, com a qual se pretendia dar continuidade, no governo de Juscelino Kubitschek, à política de industrialização substitutiva de importações do governo de Getúlio Vargas. Dentre seus membros se destacam: Roland Corbisier, Álvaro Vieira Pinto, Cândido Mendes, Hélio Jaguaribe, Nélson Werneck Sodré, Guerreiro Ramos, entre outros.

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Introdução

como principal finalidade escamotear os conflitos de classes. O argumento principal era

de que o ISEB fora patrocinado pelo Estado, e a ideologia formulada por ele nasceu em

conluio com os interesses do Estado, que, por sua vez, é visto como funcionário da

burguesia. Desse ponto de vista, acredito que os estudos tiveram como objetivo uma

crítica política ao nacionalismo, o qual, os críticos acreditam, teria contribuído para o

desfecho de 1964. Com base na perspectiva marxista, o nacionalismo seria uma mística

deliberada em favor da classe dominante.

Os estudos, no entanto, não pretenderam desqualificar o nacionalismo apenas

como ideologia falsificadora da realidade, mas também como teoria incorreta da

sociedade brasileira. A incorreção da teoria adviria do modelo de análise histórica

baseada na idéia de uma temporalidade brasileira específica, que encontra na tese da

dualidade básica o seu principal fundamento. Essa dimensão dos estudos, denomino-a

crítica epistemológica, que se fundamenta em um modelo de compreensão do processo

de modernização brasileira que animou o debate metodológico no contexto da

institucionalização das ciências sociais no Brasil. Esse modelo é fornecido pela teoria da

modernização, baseado na idéia de atraso e moderno, ou de tradição versus

modernidade. No Capítulo 2, procedo à análise de como Florestan Fernandes sugere ter

sido esta a compreensão que orientou a fixação de um padrão de cientificidade

considerado válido para os estudos sobre a modernização da sociedade brasileira.

Considero as duas perspectivas – a política e a epistemológica, ou a marxista e a

da teoria da modernização – como responsáveis por uma compreensão que reduz o

nacionalismo do ISEB a uma explicação exclusivamente econômica. A primeira se

fundamenta na idéia de modo de produção capitalista, cuja infra-estrutura econômica

explicaria fenômenos culturais e políticos como determinados. A segunda, por sua vez,

toma a sociedade urbano-industrial como parâmetro de compreensão do conteúdo

racional dos fenômenos culturais e políticos. Desse modo, na medida em que o ISEB

incorporava modelos de análise que não se esgotavam nos quadros, seja no modo de

produção capitalista, seja no da sociedade urbano-industrial, produziria uma teoria

incorreta e irracional, visto que seus formuladores não se pautavam exclusivamente pelo

que a empiria histórica indicava como sendo o estágio mais avançado do conhecimento

humano.

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Introdução

No Capítulo 1, proponho uma via alternativa para o estudo do nacionalismo. A

literatura recente tem questionado o porquê das teorias sociais clássicas e de autores de

orientação marxista e liberal terem dificuldade de lidar com o tema do nacionalismo.

Dos estudos recentes, três aspectos me pareceram centrais para a dificuldade em se

analisar o nacionalismo como um fenômeno histórico, associado a processos de

democratização social e política. Primeiro, um entendimento da modernidade como

processo que se desdobra de mudanças ocorridas na forma de produção:

industrialização, divisão do trabalho, estrutura de classes e racionalização burocrática.

Essas mudanças, ocorridas na Europa a partir do século XVIII, teriam fornecido o

modelo de racionalidade que caracterizaria a modernidade política, social e econômica.

Segundo, a desconsideração da busca do Estado nacional por lealdades entre os súditos

em um contexto de deslocamento da soberania dinástica para a do povo. Não é

considerado o fato de que a busca de lealdade teria levado o Estado, na Europa, a uma

aproximação com a população interna por meio de símbolos, especialmente as histórias

nacionais. E, ainda, está ausente uma compreensão do Estado como entidade que se

altera em um contexto de democratização eleitoral e de conflitos sociais. Como terceiro

aspecto, aponto o descrédito a que é relegada a formulação das narrativas históricas

nacionais, as quais, embora podendo ser patrocinadas ou utilizadas pelo Estado, gozam

de independência em face dele, como obra de intelectuais.

Esses três elementos estão presentes nas críticas ao ISEB. Primeiro, a empiria

que os críticos consideram válida para a formulação da teoria correta, a teoria da

modernização. Segundo, uma compreensão essencialista do Estado, como desprovido de

razões próprias para buscar lealdade entre os cidadãos e, terceiro, uma desqualificação

de narrativas históricas nacionais. O ISEB teria incorrido nos três equívocos, todos eles

decorrentes do modo como produziu uma teoria histórica da sociedade brasileira.

A partir do Capítulo 3, passo à análise do pensamento de Guerreiro Ramos. No

terceiro, analiso sua formação intelectual, a fim de perceber como ocorre sua

aproximação com a sociologia, a economia e o Estado, resultando, destes dois últimos, a

defesa que fará da política substitutiva de importações do governo Vargas. Nesse

capítulo, em que trabalho com textos da década de 1940 até 1951, observo que a

recepção e o uso das teorias sociais clássicas e contemporâneas ocorre em um ambiente

em que o Estado é percebido por ele como instrumento de democratização e solução da

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Introdução

pobreza. Com o estudo da pobreza, Guerreiro vai alcançando uma visão macro da

sociedade brasileira em termos de desigualdades regionais, e daí a questão da

industrialização como tarefa urgente para a obra de integração territorial e social.

No Capítulo 4, analiso a teoria da sociedade brasileira, a partir da análise de

Guerreiro da história política do Brasil. O que considero ser uma teoria está diluído em

vários textos escritos, principalmente, depois de 1955 até início da década de 1960.

Ainda nesse capítulo analiso a relação que, para o autor, haveria entre ideologia e

ciência e o modo como fundamenta a defesa de uma sociologia militante e nacional.

O Capítulo 5 é dedicado ao estudo do pensamento social e político brasileiro.

Procuro analisar qual o critério de seleção que permite ao autor identificar estudos que

teriam contribuído para uma compreensão nacional e “autêntica” da sociedade

brasileira, e outros que ele qualifica como alienados. Com base no próprio critério de

seleção que Guerreiro utiliza, procuro compreender como ele constrói o conceito de

nação derivando dela o que seria uma temporalidade brasileira. Minha conclusão é de

que Guerreiro, a partir da idéia de espaço, pode chegar a um conceito de nação que

compreende a história, a mudança, portanto, o próprio processo de modernização, que

evita a dicotomia atraso versus moderno. Desse modo, acredito que encontramos nesse

sociólogo uma alternativa ao modelo que orientou o estudo da modernização da

sociologia paulista. Termino o capítulo concluindo sobre o que para Guerreiro seria o

atraso brasileiro.

O Capítulo 6 constitui-se em duas digressões sobre o nacionalismo. Na primeira,

procuro entender o cenário histórico externo que, no Brasil, ensejou um modelo de

ciências sociais proclamado como universalista e outro, intitulado nacionalista, e por

que os dois se apresentaram como antagônicos quando, na verdade, eram ambos

partícipes de uma mesma constelação histórica mundial. Na segunda, faço uma breve

revisão da historiografia do pensamento social e político brasileiro a partir da década de

1970. Questiono o fato de que a experiência e os ideais de democracia do final daquela

década e da de 1980 nortearam uma forma de estudo do pensamento político brasileiro

que irá dividir os autores em autoritários e não autoritários. Contraponho a esses estudos

críticos o que considero ter sido a experiência da igualdade e da liberdade, como dois

momentos na consolidação das democracias atuais.

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Capítulo 1

As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

Partindo da compreensão de que a crítica elaborada ao ISEB, nos anos 1970,

envolve aspectos epistemológicos e políticos, neste capítulo focalizarei a dimensão

política. Essa dimensão se relaciona diretamente à perspectiva marxista. É tendo a teoria

de Marx como suporte teórico que os críticos identificam no nacionalismo isebiano uma

ideologia falsificadora da luta de classes. Por isso, na primeira seção, apresentarei os

termos em que essa crítica se desenvolve, ou seja, os seus principais temas: capitalismo,

Estado e ideologia.

Na seção seguinte, apresentarei a crítica da crítica dos anos 1970 ao ISEB,

utilizando outros referenciais teóricos que, acredito, permitem ampliar a própria

compreensão do fenômeno do nacionalismo de uma maneira geral, e, particularmente,

do nacionalismo isebiano.

1.1. Capitalismo, Estado e intelectuais na crítica ao ISEB

Os principais temas que fundamentaram a crítica ao ISEB formam o triângulo

Estado, capitalismo e ideologia. Esse tripé constitui uma espécie de síntese da crítica

cujas principais formulações encontram-se no estudo de Caio Navarro de Toledo, ISEB:

fábrica de ideologias (1978), e em Maria Sylvia Carvalho Franco, O tempo das ilusões

(1978). Considero que nesses dois trabalhos residem os fundamentos teóricos da crítica

mais ampla, a qual se estende às análises de Marilena Chauí (1983) sobre o pensamento

autoritário, que, segundo a autora, teria na idéia de nação a principal fonte de

estruturação e justificação –, e aos estudos de Carlos Guilherme Mota (1977) e

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

Francisco Weffort (1978). Comum a todas as análises, a crítica ao nacionalismo se

fundamenta na perspectiva marxista do capitalismo como modo de produção que

desencadeia a divisão e os conflitos de classes típicos da ordem burguesa.

De acordo com essas análises, o nacionalismo é visto como uma ideologia que

confere protagonismo ao Estado, que, em sua relação com a sociedade civil, a interpela

como povo sem consideração dos conflitos; estes, no contexto de uma sociedade

capitalista, se polarizam entre os interesses da burguesia e os do proletariado. O

nacionalismo, desse modo, teria nas idéias de Estado e de povo os elementos-chave de

um discurso baseado na nação, endereçado aos membros da sociedade como nacionais,

postulando, portanto, uma identidade comum, mais do que as divisões sociais.

O que importa aos críticos é desvendar os interesses que estariam por trás do

nacionalismo que o ISEB teria “inventado”. É por meio da crítica teórica que tais

interesses são revelados, e é à luz destes que Estado e povo são identificados no

discurso nacionalista isebiano como entidades abstratas. Assim, Estado e povo

aparecem como peças de uma retórica política, cujo significado histórico não pode ser

deduzido delas próprias, mas da infra-estrutura social que, de fato, as explicaria.

Atentando para o que considera ser a infra-estrutura social dos anos 1950, a

crítica teórica dos anos 1970 visa a esclarecer as incongruências conceituais do

nacionalismo, ancorada na perspectiva econômica que a matriz marxista lhe fornece. O

ponto, talvez, mais elucidativo da articulação entre crítica teórica e política e a

perspectiva econômica é o que diz respeito à abordagem do conceito de alienação,

bastante utilizado pelos isebianos. Franco (1978) aponta a utilização desse conceito

como instrumento por meio do qual fora produzido o “artifício” da diluição do conflito

de classes.

Em sua análise sobre o pensamento de Álvaro Vieira Pinto, Franco destaca o

fato de que a alienação é explicada em função do conceito de trabalho, constituindo-se

este, nas palavras do filósofo do ISEB, a expressão da “essência humana”. A mística

produzida por esse raciocínio se explicaria no complemento: “...mas para que assim seja

é preciso que na trama dos vínculos sociais estabelecidos pelos indivíduos uns com os

outros, tendo por base o esforço coletivo executado sobre a natureza, se conserve

íntegro o caráter humano próprio do ímpeto criador com que o homem explora o mundo

natural” (Álvaro Vieira Pinto, apud Franco, 1978, p. 166). O que é aí evidenciado,

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

segundo a autora, é a ausência de “outras mediações do modo de produção”, na medida

em que é postulada uma relação direta dos indivíduos com a natureza. As relações de

classes desapareceriam nesse raciocínio, mediante a distorção do conceito de trabalho, o

qual é “arrancado do seu elemento de dominação e focalizado como nexo abstrato entre

sujeito e ‘realidade’, anulando-se a rede constituída de relações de produção” (Franco,

1978, p. 167).

Ausente a perspectiva de classe, o que informa o fenômeno da alienação, agora

com Caio Navarro de Toledo, é o binômio metrópole versus periferia. Esse binômio

desencadeia a reflexão filosófica com a qual a alienação é explicada em termos de

“dialética da dominação e da servidão (senhor × escravo)”. Descendo do nível abstrato

dessa dialética, Roland Corbisier teria revelado a intencionalidade que preside toda a

reflexão filosófica:

“Para não permanecer nessa dialética abstrata (...), Roland Corbisier vai identificar a economia da complementaridade que caracteriza as relações concretas entre metrópole e colônia com as descrições acima...

Desta forma, o desenvolvimento econômico surge no horizonte representando, simultaneamente, a ruptura com o subdesenvolvimento, a conquista da autonomia e realização ou ‘recuperação do ser histórico da comunidade (de que o apartara o sistema colonial)’.” (Toledo, 1978, p. 72)

A regência econômica na análise tanto da política oficial quanto do nacionalismo

é marcante no estudo de Toledo. O Estado é compreendido como comandado por

interesses exclusivamente econômicos, ou melhor, dos “grupos hegemônicos”. Esta

parece ser a visão de Estado que rege toda a análise do nacionalismo e das ações

políticas do Estado. Quanto ao nacionalismo, na medida em que é produto das “agências

de racionalização”, portanto, a serviço do “Estado empregado”, tem sua análise

condicionada pelo que seriam os interesses da classe dominante. Como se pode observar

logo na apresentação que Toledo faz de seu objeto de estudo:

“Triste sina a do ISEB: personagens secundários da vida política brasileira foram os principais protagonistas nos atos de criação e de extinção da Instituição em meados dos anos 50 e 60.

João Café Filho e Paschoal Ranieri Mazzili, presidentes por ‘forças das circunstâncias’ decisivas das direções do processo

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

político brasileiro nestes últimos vinte anos –, através do decretos que assinavam, nada mais faziam do que assumir os papéis de ‘agentes’ de decisões que eram reclamadas e impostas por (novos) grupos hegemônicos. Na criação, pela necessidade de o Estado providenciar agências que racionalizassem o surto de desenvolvimento do País; na extinção, pela consolidação das forças político-militares, que julgavam a existência do ISEB como um ‘desserviço à nação’.” (Toledo, 1978, p. 31)

O trabalho de Toledo, que certamente é a principal referência da crítica nos anos

1970, orienta-se em uma direção: o ISEB teve por fim “fabricar” uma ideologia. A

ideologia no pensamento isebiano não decorreria, simplesmente, das insuficiências

teóricas de modelos como, por exemplo, o da dualidade, mas da própria vontade de

produzir uma ideologia. Para Franco, não haveria ingenuidade na ideologia, mas

“truques”, com uma finalidade bem precisa. Todo o empenho de Toledo em ISEB:

fábrica de ideologia está em desvendar, passo a passo, como aquele “coquetel

filosófico”2 se articula em favor do capital. De acordo com Franco, o trabalho de

Toledo tem o mérito de apresentar as principais orientações do pensamento isebiano que

teriam culminado em uma “síntese conservadora” das representações em que se dividia

a classe dominante do período. Nessa linha de avaliação, a autora conclui o seguinte:

“Com grande penetração, o autor de ISEB: fábrica de ideologias expôs como se articulam, no discurso dos isebianos, o privilégio outorgado à consciência como motor do desenvolvimento, a ambição de fundamentar sua atividade no conhecimento cientifico e a intenção programática, ligada a uma concepção determinada do Estado.” (Franco, 1978)

Essas articulações indicam o modo como a ideologia no pensamento isebiano é

focalizada. Toledo apresenta várias “ausências” nos escritos do ISEB, tais como os

conceitos de modo de produção, de contradições de classes (classe dominante versus

classe dominada, trabalho versus capital). Essas ausências seriam indicações do terreno

abstrato em que os isebianos se moviam. Assim, para esse autor, o empirismo que os

isebianos desejavam garantir com a lei das fases (ou seja, com a história), situando aí as

classes sociais, se revelaria, sob o escrutínio da crítica, pura abstração. O abstracionismo

das fases se mostraria na própria ideologia que os isebianos procuravam promover. 2 A expressão “coquetel filosófico” é de Michel Debrun, em crítica ao ISEB (1962).

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

Toledo aponta o método das linhas diretrizes, que, de acordo com Guerreiro

Ramos, seria captado mediante o encadeamento das fases. A linha diretriz indica a

“direção em que se orienta a evolução da cultura” (Toledo, 1978, p. 39). O

abstracionismo desse raciocínio se revelaria no fato de que “a fase nunca será formulada

a priori, mas a posteriori, a partir da observação empírica dos fatos” (Toledo, 1978, p.

40). Em Hélio Jaguaribe, esclarecer-se-ia por que os fatos deveriam ser julgados a

posteriori. A fase mais adiantada da sociedade brasileira, a “fase da transformação,

caracterizada pela energética e acentuada propensão ao desenvolvimento”, se

caracterizaria pela maior representatividade ideológica, por isso corresponderia também

à de maior autenticidade,3 favorecendo a formulação da ideologia autêntica, aquela

capaz de apontar o sentido do desenvolvimento. Na interpretação de Toledo, a fase de

maior representatividade é aquela na qual os interesses coincidem, na qual “os setores

dominantes de todas as classes sociais têm os mesmos interesses situacionais (a

transformação social), e esses interesses situacionais, por sua vez, coincidem com as

necessidades objetivas de todo o País (a expansão das suas forças materiais de

produção)” (Toledo, 1978, p. 42).

Para Franco, o problema nesse esquema das fases é que com ele a história é

entendida em termos do desenvolvimento da consciência, como movimento da Razão.

O momento mais avançado corresponde ao de maior autenticidade ideológica.

Identificando a mesma teleologia em Vieira Pinto, a autora indica em que sentido o

idealismo apontava:

“Este autor, em contrapartida do ‘não-ser’ das sociedades atrasadas, mas portadoras das virtualidades do futuro e lugar de uma ideologia transformadora, indica o imobilismo das sociedades avançadas, que parecem já ter chegado ao fim, onde o sistema se completou e o pensamento descansa. Se (...) Álvaro Vieira Pinto, como os demais membros do ISEB, é herdeiro da instrumentalização da ratio e se o desenvolvimento é entendido como implantação da ordem capitalista, não será difícil

3 Na definição de Hélio Jaguaribe, citada por Toledo, “é representativa a ideologia que constitui a formulação correspondente aos interesses situacionais de classe ou grupo que a sustentam” (p. 40), e são autênticas as ideologias que, “sejam quais forem os interesses situacionais que representam, formulem, para a comunidade como um todo, critérios e diretrizes que a encaminham no sentido de seu processo faseológico, ou seja, que permitam o melhor aproveitamento das condições naturais da comunidade, em função dos valores predominantes na civilização a que pertence” (Toledo, 1978, p. 41).

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

compreender, em suas proposições, o que significa esse repouso das sociedades avançadas.” (Franco, 1978, p. 157)

Portanto, para os críticos, o problema do esquema faseológico é a eliminação do

sentido marxista de contradição de classes e, por conseguinte, a aceitação do modo de

produção capitalista como o “repouso das sociedades avançadas” no que isso signifique

a realização da história. Desse modo, na medida em que os interesses da burguesia

industrial, da classe média e proletariado urbanos são vistos como coincidentes,

portanto, os mais representativos, Hélio Jaguaribe teria diluído aí a contradição classe

dominante versus classe dominada. Diluída essa contradição como motor da história,

esta passa a depender de uma vanguarda esclarecida que se encarregaria de formular a

ideologia do desenvolvimento.

Nesse sentido, para Franco, a condição para que o intelectual apareça como

“consciência privilegiada da realidade” é o “empirismo pobre” em que a realidade

aparece parcelada. A realidade é, então, produzida como condição de legitimação do

sujeito cognoscente, que se encarrega de apontar a direção e formular a ideologia

autêntica:

“‘A ideologia é necessária porque se tornou possível constituí-la.’ Daí, dessa noção de possibilidade contida no real, faz-se o giro para a subjetividade: surge a figura da consciência que identifica na realidade suas tendências de desenvolvimento, formula a ideologia capaz de levá-las a bom termo, mantendo as transformações nesses limites dados.” (Franco, 1978, pp. 162-3)

Dessa necessidade de erigir o sujeito a partir da realidade é que, para Franco,

resultaria a “distorção do idealismo”:

“Estranhamente, nessa mesma operação em que se erige o sujeito como sede de conhecimento e prática, sua liberdade é afogada pela necessidade dos fatos. Isto liquida, é claro, qualquer aproximação com um idealismo conseqüente, de acordo com o qual os fins da prática humana não podem ser derivados do conhecimento empírico e onde, portanto, ciência, ética e política estão nitidamente distinguidos.” (Franco, 1978, p. 163)

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

Desse mesmo empirismo abstrato é que se erigiria a idéia de nação. A crítica ao

autoritarismo dos autores se desdobra da crítica ao idealismo da cisão entre sujeito e

objeto. O povo, como produto de um discurso sobre ele, não existiria concretamente.

Uma vez diluída a contradição real, classe dominante versus classe dominada, a

realidade de onde se procurava extrair a consciência das massas se reduzia a uma ilusão.

Daí que a relação entre intelectual e povo seria uma relação de exterioridade e

autoritária. Pode-se deduzir desse raciocínio a crítica de Weffort (1978) ao “populismo

teórico” e que considera absurda a idéia de povo-comunidade da formulação isebiana:

“O equívoco original está na concepção de povo: os nacionalistas, mesmo os mais radicais, falaram sempre em nome do povo, em nome da comunidade nacional. Por certo nunca se propuseram, nem o poderiam, representar o povo atual, concreto, contraditório, pois isto seria levar a uma prática absurda a idéia inconsciente do povo comunidade.” (Weffort, 1978, p. 37)

Se o conceito de classe aparece, por um lado, como uma ausência, cuja presença

teria evitado os “equívocos” em que os isebianos incorreram, por outro, configura-se

como conseqüência necessária do idealismo e do historicismo de que partiram. Para

Toledo, não houve enfrentamento do “problema teórico” das classes, preferindo-se ficar

no nível das polarizações, como setores modernos versus setores arcaicos.

Apesar da crítica feita ao ISEB, Toledo reconhece o “estado extremamente

precário dos estudos sociológicos brasileiros e, por conseguinte, do seu elevado grau de

comprometimento ideológico (...) na época” (Toledo, 1978, p. 121). Se havia um

comprometimento nos anos 1950, ele não parece ser menor nos anos 1970, pois, ao que

tudo indica, o próprio Toledo e os demais críticos parecem se encontrar bastante

comprometidos em uma luta ideológica contra o regime militar, e, conseqüentemente,

contra o Estado autoritário.

Por isso penso que a questão de cunho econômico ressaltada por Toledo – que

apareceria no pensamento do ISEB em termos de setores modernos versus setores

arcaicos, sobrepondo-se ao que seria a contradição fundamental classe dominante versus

classe dominada – não se desvincula do idealismo identificado desde o início do seu

estudo. Todo o empenho de Toledo consiste em desvendar o autoritarismo do

pensamento isebiano manifestado pelo idealismo. Dessa forma, a análise é comandada,

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

desde o início, por uma certeza: a de que o pensamento isebiano teve por fim “fabricar

uma ideologia”.

O sentido dessa crítica só pode ser entendido caso também se entenda que, para

ela, o ISEB e a tradição de pensamento à qual se filiaria se autotraduzem como

encarnação do Estado. O Estado visto como esfera universal, como realizador da

história e como locus da razão.4

Nesse sentido, toda a crítica ao intelectualismo do ISEB parece ser um

desdobramento da crítica marxista ao Estado burguês, o que se desdobra, no caso

brasileiro, a uma crítica ao Estado autoritário, que, não esqueçamos, no pós-1964,

acrescenta mais um adjetivo: o Estado autoritário militar. Então, portanto, a crítica ao

ISEB parece ser, antes de mais nada, uma crítica a e uma negação propriamente dita do

Estado. O empenho na exorcização do Estado privou a crítica de um fator fundamental

para a compreensão do nacionalismo. Além disso, ao descartar a historiografia proposta

pelo ISEB, a crítica privou-se também de compreender o papel da elaboração das

histórias nacionais na construção do Estado-nação, e com ele os intelectuais que as

formularam. Mas sobre isso tratarei na próxima seção.

1.2. Os limites da crítica

Uma das críticas que faço aos estudos críticos é que neles o nacionalismo não é

focalizado como um fenômeno histórico relacionado às particularidades históricas,

geográficas, culturais e sociais que podem ensejá-lo de formas distintas em diferentes

partes do globo e épocas. Ou seja, visto que sua análise é presa de uma dinâmica

econômica entendida por si só como a principal estruturadora do mundo social e

político, o nacionalismo (qualquer nacionalismo) teria sempre o mesmo significado

político: o de servir aos interesses da classe economicamente dominante.

A meu ver, trata-se de uma visão que, não exclusiva da crítica, conforme

veremos, pressupõe uma racionalidade onipresente, a qual é entendida como única 4 A Apresentação de Adauto Novaes do livro de Marilena Chauí sobre os conceitos de nacional e popular na cultura brasileira exprime bem a visão crítica que a autora tem do Estado nesse trabalho. Escreve o autor: “Presos nas teias das concepções clássicas de um Estado Universal, os autores de tais projetos de cultura sonham com a criação de um indivíduo que seja ao mesmo tempo a síntese da particularidade cultural com a universalidade de seu discurso. (...) o Estado, poder transcendente, não é apenas o lugar da obediência e da coesão da sociedade; mais que isso torna-se o único lugar possível de realização do indivíduo” (Chauí, 1983, p. 7).

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

garantia da inteligibilidade histórica, desde que o correto redutor de racionalidade seja

utilizado. Esse redutor é o que é oferecido pela produção da vida material, de cuja

dinâmica é inferida a dupla classe dominante e classe dominada. Estas, por sua vez,

esclarecem o tipo de interesse que ratifica como racionais as ações humanas. É a

racionalidade imediatamente ditada pelas condições de produção, incluídas as relações e

as forças produtivas. Desse modo, o redutor último da práxis é a economia. Com base

nessa perspectiva, só duas ideologias são racionais e, portanto, as únicas capazes de

esclarecer a racionalidade que há no mundo moderno: liberalismo e socialismo.

Dessa forma, outras manifestações ideológicas, uma vez que excluídas delas está

a racionalidade, serão focalizadas indistintamente a partir de outro redutor, desta vez o

da irracionalidade. Temos então fascismo, nacionalismo, fundamentalismos,

terrorismos, etc. Tudo isso se equivale, não dispondo o pensamento social de

instrumentos que possam analisá-los e identificar suas diferenças.

No que diz respeito ao nacionalismo, sob a rubrica da irracionalidade, fica difícil

analisar as diferenças entre eles. A literatura contemporânea, na medida em que o elege

como um objeto per se de análise, sem submeter sua análise a critérios extrínsecos a ele,

abre caminho para uma compreensão do nacionalismo como um fenômeno plural.

Por meio dessa pluralidade, descortinam-se também outras motivações humanas

não exclusivamente econômicas. Renato Ortiz (1981; 1985), por exemplo, chama

atenção para a temática racial e a da violência nos nacionalismos das ex-colônias

africanas depois da Segunda Guerra Mundial. Parta Chatergee (1993) destaca um

nacionalismo cultural na Índia, com base no qual fora possível a resistência à

dominação inglesa. João Trajano Sento-Sé (1999), em uma articulação entre bildung e

nacionalismo, identifica este como “projeto civilizador”, que abarca desde diferentes

campos de saber à construção de símbolos, os quais concorrem para a elaboração de um

“patrimônio comum dos membros de uma mesma sociedade” (Sento-Sé, 1999, p. 112).

Norbert Elias (1997) vai identificá-lo na Alemanha do final do século XIX como ponto

de chegada de um processo iniciado em fins do século XVIII, em que um grupo social

elabora sua auto-imagem, criando um domínio cultural próprio, em vista das

desigualdades percebidas no campo político e social. Com Lizt temos a formulação de

um nacionalismo econômico baseada na percepção de assimetrias de poder entre a

Alemanha e as nações capitalistas mais desenvolvidas (Snyder, 1978).

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

Se o reducionismo econômico impede de considerar relevantes outras

motivações de nacionalismos, ele também tende a obscurecer o papel do Estado nos

processos de construção da tessitura social que torna possível a democracia política.

Hobsbawm (2002), ao analisar o conceito de nação e o fenômeno do nacionalismo no

período entre 1830 e 1880 na Europa, destaca, junto com determinantes econômicos do

nacionalismo, a necessidade de legitimação do Estado moderno junto ao público

membro do território sob sua jurisdição. Trata-se de um contexto em que a presença do

Estado na vida cotidiana era fato incontestável, presença essa atestada por cartórios,

correio, pela educação primária obrigatória e censos regulares, tudo facilitado pela

revolução nos transportes e comunicações. Nesse contexto, em que a maquinaria estatal

se impõe diária e diretamente na vida dos cidadãos, sem o auxílio de padrões

tradicionais de garantia de lealdade e ainda tendo contra si a rivalidade de novos

movimentos sociais (liberalismo, nacionalismo e movimentos operários), ao Estado

“tornava-se imperativo inculcar novas formas de lealdade cívica” (Hobsbawm, 2002, p.

106).

O problema da “coesão sociopolítica” não foi percebido apenas pelas elites

dirigentes, mas, segundo Hobsbawm, constituiu a agenda de estudos da sociologia

política nas últimas décadas do século XIX. A inculcação de um padrão novo de

lealdade não significava criar seres sociais passivos, longe disso, pois requeria um

sentimento de pertença e de identificação com o Estado. Daí a criação de uma espécie

de religiosidade cívica capaz de envolver os cidadãos nas batalhas do Estado. Distinto

do nacionalismo, o “patriotismo estatal” fora estimulado por meio do envolvimento dos

cidadãos nos seus assuntos. A eleitorização da política e o fornecimento de uma

“paisagem institucional e processual”, por meio das funções do “Estado-cidadão”, eram

eficazes na promoção do sentimento patriótico. Eram eficazes, mas não suficientes. O

patriotismo estatal tinha relações genéticas com a idéia de soberania popular, o Estado

exercendo poder em nome do povo. Enquanto relacionadas à idéia de soberania popular,

questões como etnicidade, terra natal, origem comum, língua comum eram aspectos

secundários à cidadania. No entanto, à medida que a disputa por lealdade por parte de

socialistas, liberais e nacionalistas5 desafiava o Estado como único depositário da

5 O autor refere-se aos nacionalismos que não se identificavam com o Estado e nem dele precisavam. Dentre as forças rivais, Hobsbawm refere-se ao nacionalismo como a mais poderosa.

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

lealdade cívica, este passava a acionar componentes emocionais. Terra comum,

histórias, batalhas, bandeira, língua são alguns dos recursos com os quais foi possível a

criação de uma “comunidade imaginada”.

Interessa-me nessa análise de Hobsbawm a distinção entre o patriotismo estatal e

o nacionalismo. O nacionalismo não se confunde com o Estado, embora possa ser

mobilizado por ele. O nacionalismo pode ser lido tanto em sua função política estatal

quanto em sua função econômica, no contexto da emergente sociedade industrial.6

Ao isolar analiticamente o patriotismo estatal, Hobsbawm ressalta o componente

político do Estado como distinto do econômico. A autoridade central, em um contexto

de igualização, passa a depender da adesão voluntária dos cidadãos comuns, o que

desencadeia uma ação política de promoção do envolvimento e de uma aproximação

mais afetiva entre eles. Nesse processo tanto canais institucionais, como extensão de

direitos políticos, quanto as vias mais simbólicas são criados.

Para mim, essa maneira de proceder do Estado em sociedades em processo de

democratização não é contemplada pela crítica ao nacionalismo isebiano. Conforme

apresentarei em outros capítulos, esse elemento foi considerado por Guerreiro Ramos e

compõe junto com outros elementos a sua agenda nacionalista. Parece-me razoável

dizer que a crítica, ao postular uma identificação entre a intelligentzia isebiana e o

Estado, não distingue o que é mais uma compreensão dos nacionalistas sobre o papel do

Estado em contextos de democratização daquilo que seria uma identificação pessoal

com o Estado. É possível que o Estado tenha sido visto pelos nacionalistas como um

lugar privilegiado de ação discursiva e política para eles próprios, e até mesmo de

enriquecimento do prestígio pessoal, porém isso não pode ofuscar uma compreensão de

como o Estado é teorizado como peça fundamental na democratização política pelos

nacionalistas.

Além dessa aproximação do Estado com relação ao público, outro ponto que

destaco na crítica é o modo como a historiografia do nacionalismo é submetida ao

critério econômico. Do mesmo modo que o fenômeno nacionalismo e o Estado, também

a análise da história que informa o historicismo isebiano é submetida ao critério

econômico. Vejamos como isso ocorre. Para isso, vou retomar alguns trechos da análise

de Toledo citados anteriormente.

6 Esta é a perspectiva de Ernst Gellner, da qual tratarei mais adiante.

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

A regência econômica na análise da compreensão histórica dos isebianos é

garantida pela observação de Toledo de que “a fase nunca será formulada a priori, mas

a posteriori, a partir da observação empírica dos fatos”. A (má) intencionalidade se

revela no fato de que a fase mais adiantada da sociedade brasileira, “caracterizada pela

enérgica e acentuada propensão ao desenvolvimento”, se caracterizaria pela maior

representatividade ideológica, favorecendo, portanto, a formulação da ideologia

autêntica: a do desenvolvimento. Essa fase, a última, seria a mais representativa, porque

nela os interesses seriam coincidentes e, portanto, o nacionalismo poderia dirigir-se a

um povo, apontando-lhe a diretriz.

Para além do brilhantismo que essa leitura encerra, ela só se sustenta, porém, na

condição da eliminação do movimento histórico pressuposto na historiografia que está

sendo elaborada pelos isebianos. Ou seja, os críticos, ao desqualificarem as categorias e

pressupostos da filosofia histórica, só podem ler o projeto historiográfico isebiano

segundo critérios conceituais externos a este. Trata-se do conceito marxista de modo de

produção capitalista com sua infra e superestrutura. De acordo com esse modelo, o

pensamento manifesto na teoria histórica é tratado como reflexo superestrutural da

infra-estrutura do modo de produção capitalista. Na medida em que os isebianos operam

com a idéia de povo e nação, então da perspectiva da contradição básica, a historiografia

que acolhe esses conceitos só pode ser uma ilusão, uma falsificação ideológica.

No trecho da obra de Álvaro Vieira Pinto criticado por Franco (1978), aquele em

que o autor postula a relação entre homem e natureza, está a indicação de uma via

antropológica para o estudo da história. Segundo minha compreensão do estudo de

Norma Côrtes (2003) sobre o pensamento de Vieira Pinto, mais do que a história deste

ou daquele período, deste ou daquele fenômeno, Vieira Pinto propunha uma via

historiográfica para o estudo da história como processo que postula a ação humana

criadora.

Evidentemente, não é meu propósito analisar a compreensão da historicidade em

Álvaro Vieira Pinto. O que quero ressaltar, ao chamar atenção para Vieira Pinto, é a

autonomia negada pelos críticos do pensar a partir de uma outra perspectiva que não

seja a que eles consideram mais adequada. O ISEB operou com um modo de pensar a

história, ou com diferentes modos, em um contexto em que outros modos também

estavam sendo construídos. Tanto na sociologia como na ciência política, na

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

antropologia, na economia ou na história, a sociedade brasileira, naquele momento,

animava uma investigação do passado e um modo de pensar o passado, válido para

pensar o presente e projetar e buscar futuros possíveis. Estou considerando a

historiografia, não só a isebiana, como um dos elementos constitutivos de formação do

Estado nacional. Portanto, considero essa historiografia como projeto independente de

uma razão de Estado ou de uma razão econômica, embora possa servir a esses

propósitos.

Por fim, considero que a crítica, ao se ancorar em uma perspectiva econômica

(nitidamente marxista, mas que também pode ser compreendida à luz da idéia de

sociedade industrial), submete três elementos que, em uma análise do nacionalismo,

merecem ser destacados. Trata-se dos conceitos de nação e de Estado, e das narrativas

históricas elaboradas por uma intelligentzia. A possibilidade de uma via alternativa às

análises dos críticos advém de estudos mais recentes sobre o fenômeno, nos quais esses

três fatores são centrais. A seguir, passo à apresentação das teorias que abordam esses

temas e, à luz delas, analisarei os limites da crítica dos anos 1970 ao fenômeno

nacionalismo, para a partir disso propor um outro enfoque sobre o nacionalismo

isebiano.

1.3. O nacionalismo na perspectiva contemporânea

Benedict Anderson (1998) chama atenção para a ausência de análises mais

consistentes do nacionalismo em autores de orientação marxista e liberal. A ausência

seria ainda mais intrigante quando se observa que as principais guerras travadas no

próprio mundo comunista foram guerras nacionais.7 O fato é que, em ambas as

perspectivas, o nacionalismo seria menos objeto de análise do que a constatação

indesejável de um fenômeno que, segundo Anderson, tem moldado os processos de

nation building desde o final do século XVIII.

De acordo com Anderson, nas visões clássicas as dificuldades em analisar o

nacionalismo decorrem da rejeição de que a nacionalidade per se possa ser agente de

motivação e sustentação desses processos de construção nacional. Partindo dessa

7 Anderson refere-se às guerras do Vietnã, Camboja e China ocorridas em fins da década de 1970. Enquanto estas se definiram como nacionais, as guerras de 1950 e 1960 podiam ser explicadas pelas ideologias socialista e liberal.

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

rejeição, o nacionalismo é, então, enquadrado como anomalia, como surto, cuja

explicação escapa aos instrumentos teóricos das ciências sociais. Para Seton Watson,

autor de orientação liberal, o nacionalismo não seria passível de uma “definição

científica”. Para o marxista Tom Nairm, a “teoria do nacionalismo representa um

fracasso histórico do marxismo” (Anderson, 1998, p. 3). Infelizmente, para Anderson,

esse tom de lamento não tem significado um confronto com o tema, mas uma omissão.

Anderson propõe uma teoria do nacionalismo que possa desvendá-lo como

artefato cultural, social e político, ou seja, uma teoria que possa ser aplicada à

compreensão de outros nacionalismos ocorridos, ou em ocorrência, em contextos sociais

e históricos distanciados daqueles que lhe deram origem em fins do século XVIII e no

decorrer do século XIX nos continentes americano e europeu.

Em sua teoria, Anderson procura escapar de uma interpretação do nacionalismo

que o trate como produto de intenções deliberadas e exclusivamente políticas que se

impõem exteriormente a um público. O autor evita uma compreensão do nacionalismo

que o considere como “mascaramento” e “falsidade”, e não como “imaginação” e

“criação”. Sua teoria baseia-se na idéia de nação como “comunidade imaginada” por

aqueles que a ela se sentem pertencer por meio de códigos culturais, como a linguagem

falada e escrita. Tais códigos, especialmente a linguagem escrita dos romances e jornais,

funcionariam como acessos a um mundo imaginado como habitado por outros que são

iguais.

Revisando a literatura clássica da sociologia, Montserrat Guibernau (1997)

apresenta um argumento que ajuda a tanto esclarecer a ausência de um tratamento

sistemático do nacionalismo naqueles textos como entender o porquê de se compreendê-

lo como um fenômeno anômalo. A autora observa que, ao privilegiar questões que mais

de perto julgavam-se relacionadas com a ordem social e econômica emergentes no final

do século XVIII, conceitos como lutas de classe, divisão do trabalho e racionalização

alcançaram, nas reflexões de Marx, Durkheim e Weber, status privilegiado na

formulação de uma teoria geral da sociedade, que procurava iluminar tanto o presente

quanto os processos por que passaram as sociedades desde os seus primórdios. Embora

se possa identificar nesses autores clássicos uma preocupação com o tema da

nacionalidade, suas concepções teriam falhado em vista do caráter paradigmático que a

noção de industrialização assume na compreensão da maneira como os indivíduos

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

definem suas identidades no mundo moderno. Dessa forma, o nacionalismo é descurado

como provedor de identidade, ganhando relevo o modo como o trabalho é organizado, a

divisão de classes e as formas racionalizadas de ordenamento político e econômico.

Podemos deduzir, da análise de Guibernau, que uma reflexão que identifica no

desenvolvimento e transformações sociais um processo contínuo de racionalização se

desdobra em um entendimento acerca das motivações humanas como algo que se

cristaliza nas estruturas e instituições sociais originadas desse processo. Ou seja, a

sociedade industrial constitui ela mesma em parâmetro na definição do que seja a

consciência dos homens e dos motivos que os animam na vida social e política. Daí que

sentimentos relacionados à noção de pátria, língua, valores, etc. – matérias-primas do

nacionalismo – sejam relegados como irracionais.

Esse ponto relativo à compreensão da racionalidade que caracteriza os homens

no mundo moderno é retomado por Craig Calhoum (1995). Em uma crítica à literatura

política que condena movimentos sociais organizados em torno de considerações de

identidade como formas pré-políticas de participação, o autor retoma a idéia de

nacionalidade como uma espécie de identidade fundadora que teria moldado, no século

XIX, a noção de espaço público como hospedeiro da cidadania. A literatura política

contemporânea, de vertente liberal e marxista, em um esquecimento desse momento

fundador, elabora uma explicação sobre as motivações que impelem os homens à

participação e à luta política com base na noção de interesse. Desse modo, negligencia o

fato de que um apelo com base em identidades comuns foi necessário na organização

política do mundo moderno. No que concerne aos marxistas, Calhoum observa que a

criação de modernas políticas de classes funda-se na interpelação dos homens em sua

condição de trabalhadores como identidade que ultrapassa diversos ramos específicos de

atividades, de religião, de região, de gênero, etc.

Embora me pareça que, no seu estudo, Calhoum esteja mais interessado em

ressaltar um certo formalismo do pensamento político ao delimitar as condições em que

demandas sociais podem ser consideradas dignas ou de interesse público, excluindo

outras, o autor sugere o modo com que o nacionalismo tem sido tratado pelo

pensamento político. Assim como movimentos reivindicativos baseados em

considerações de gênero e etnia são tratados como temas de interesse privado,

pertencentes à ordem do natural e não do público, a nacionalidade também recebe o

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

mesmo destino. Problemático nesta perspectiva é que ela opera com o esquecimento de

dois fatos pretéritos. Primeiro, que a idéia de nação esteve subjacente às narrativas sobre

a modernidade, incluindo aí o próprio discurso sobre a democracia:

“Modern history has been constructed first and foremost as national histories (...). The settled, established democracies of the world are – to a worrying extent – those countries where long process of national integration preceded the establishment of democratic political institutions.” (Calhoum, 1995, p. 233-4)

O segundo fato, e o que mais diretamente orienta a crítica do autor, é quanto ao

caráter nada natural da idéia de nação. Em uma passagem em que discute com

Huntington, Calhoum observa que

“(...) the conditions for democracy were created in Western Europe by bloody repression and forced cultural assimilation, by projects of centralizing political power and state bulding that show few signs of being part of a civilization destined to support democracy, e and by a history of military conflicts whitin as well as between state as disaustrous as anywhere”. (Calhoum, 1995, p. 234)

Este ponto é importante porque nos remete ao nacionalismo como um “artefato”

político, no dizer de Benedict Anderson. As sociedades democráticas integradas

pressupuseram a centralização política e o uso da violência, o que significa, também, o

modo como o Estado nacional foi construído.

Destaco nessas análises a atenção dos autores para três aspectos não

considerados pelos estudos que levam às conclusões sobre a anormalidade do

nacionalismo. Trata-se, em primeiro lugar, da aceitação do regime de racionalidade das

sociedades industriais como definidor da identidade e motivações dos indivíduos.

Guibernau (1997) enfatiza esse aspecto vinculando-o à ausência de análises mais

consistentes do nacionalismo nos estudos dos clássicos da sociologia. Essa talvez seja a

razão pela qual os autores mencionados por Anderson procurem entender o

nacionalismo à luz do liberalismo e do socialismo. Da mesma forma, Calhoum sugere

um certo racionalismo, baseado em uma compreensão mais econômica de interesse, das

teorias liberal, socialista e democrática. Em segundo lugar, trata-se de uma omissão

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

quanto ao papel ativo do Estado, violento e pacífico, no processo de construção de

sociedades nacionais integradas, e, em terceiro, de um descarte das narrativas sobre a

nação e das histórias culturais nesse processo.

A não-consideração desses três aspectos também está presente na crítica ao

nacionalismo teorizado no Brasil. Com relação ao primeiro, o do regime de

racionalidade, ele é tácito na perspectiva materialista que informa a crítica; sobre o

segundo, baseado na compreensão de que a forma de produção que caracteriza a

sociedade moderna é, por si só, pedagoga política dos indivíduos, o Estado configura-se

como inimigo, a ser mais combatido do que conquistado em um processo de luta

política; e quanto ao terceiro, as narrativas sobre a nacionalidade e a historiografia são

rejeitadas sob o rótulo de inventivas e mistificações.

Na seção que se segue, analiso, na perspectiva de dois autores, Ernest Gellner

(1983; 1996) e Imanuel Wallerstein (1995), a relação entre Estado e sociedade na

compreensão do nacionalismo. Com o primeiro autor, um modelo de análise calcado nas

mudanças estruturais da sociedade confere à sociedade preeminência na compreensão

do nacionalismo. Com Wallerstein, destaca-se a importância do Estado no contexto de

acomodação das ideologias socialista, liberal e conservadora em partidos políticos e o

reconhecimento do Estado como uma estrutura que deveria ser conquistada, e não

combatida.

1.4. Estado, sociedade e nacionalismo

O estudo de Gellner (1993; 1996) sobre o advento do nacionalismo baseia-se em

uma teoria denominada por ele materialista. A teoria é desenvolvida a partir de um

modelo que diferencia dois tipos ideais de sociedade: a agroletrada e a industrial. O

nacionalismo seria favorecido pela segunda, ao mesmo tempo que para esta o

nacionalismo também se tornaria imprescindível, pelo menos no início, no trânsito de

um tipo social para o outro.

Baseada em uma tecnologia estável e controlada por um estrato social

dominante, a sociedade agroletrada não estimula o crescimento econômico, do qual a

distribuição desigual do status social não depende. Muito pelo contrário, o equilíbrio

social se mantém em virtude de a reduzida capacidade da tecnologia demandar uma

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

mão-de-obra especializada. Essa sociedade é marcada pela heterogeneidade social, que

é tanto vertical como lateral. O isolamento entre as comunidades mantém a distância

cultural entre elas. A escolarização restrita reforça a distância social, dividindo as

pessoas pelo tipo de cultura que possuem: a cultura superior – adquirida por meio da

escolarização – e a inferior – desenvolvida nas práticas diárias.

Nessa sociedade agroletrada, as condições para o nacionalismo não existem, por

causa da heterogeneidade social, que a perpassa por inteiro. A organização política é de

dois tipos exclusivos e combinados. De um lado, a cidade-Estado, conduzindo-se

politicamente de forma autônoma, e, de outro, o domínio de grandes territórios, com

forças concentradas em um ponto específico. O que importa nesse modelo é que nele

não há forças sociais, econômicas e políticas capazes de promover a fusão entre a

cultura e o Estado.

A sociedade industrial baseia-se na inovação tecnológica e crescimento

econômico contínuo. O crescimento econômico “é o primeiro princípio de legitimação

desse tipo de sociedade” (Gellner, 1996, p. 115). O nacionalismo é o segundo princípio.

O trabalho físico cede lugar ao trabalho especializado, que exige e cria uma “cultura

operacional” capacitadora do manejo de instrumentos de trabalho sofisticados. Portanto,

na sociedade industrial, a educação deve ser universalizada, inibindo a proliferação de

subculturas internas. A cultura difundida é a superior, adquirida na escola. Supera-se,

portanto, o abismo entre cultura superior e inferior. O acesso a essa cultura passa a ser o

bem mais desejado, uma vez que é por meio dela que se adquire aceitabilidade social,

política e moral. O Estado se encarrega dos custos da universalização, constituindo-se

este o seu principal papel na promoção da homogeneidade cultural necessária ao

nacionalismo.

Além da homogeneidade cultural, a social também é promovida. Na medida em

que o crescimento econômico ou “afluência crescente” é o primeiro princípio de

legitimação, essa sociedade investe continuamente em inovação tecnológica e, também

de forma contínua, transforma a sua estrutura ocupacional. Esse fator tem impacto

direto na mobilidade ascencional dos indivíduos, que pelo mérito podem vir a ocupar os

cargos mais elevados da sociedade. Da instabilidade ocupacional resulta então outro

fator de promoção da homogeneidade: a igualdade social formal.

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

O estudo de Gellner sugere que o conhecimento da política como uma das

esferas da atividade humana parece ter gozado de relativa tranqüilidade e estabilidade

no trânsito das sociedades agroletradas para a modernidade. Tal conhecimento pôde se

desenvolver em um cenário social ocupado por comunidades locais, auto-reprodutoras,

fechadas, distanciadas das atividades de uma autoridade política central.

Nesse ponto, é possível associar a abordagem de Gellner sobre a sociedade

agroletrada com a análise de Nobert Elias (1997). Conforme observado por este autor, o

Estado moderno se desenvolveu seguindo uma lógica e interesses próprios

independentemente dos interesses dos governados. Recortado tal como estava da vida

social mais ampla, o Estado forneceu os ingredientes necessários à delimitação do

objeto da teoria política, que vai encontrar em Maquiavel o seu principal formulador.

A partir de Elias, pode-se dizer que, desde O Príncipe, a conquista de territórios

e a realização de interesses próprios com o uso legítimo da coerção são aceitos como

núcleo do que se entende ser a atividade exclusiva do Estado. No entanto, sob o impacto

da divisão orgânica do trabalho exigida pela industrialização, à medida que as antigas

comunidades locais vão sendo dissolvidas, vai se criando um espaço social mais

homogêneo. Assim, a distância entre governantes e governados vai diminuindo,

exigindo aproximação do Estado com o público. Com isso, os conteúdos próprios que

caracterizavam a atividade política vão se ampliando. A conquista tem como alvo não

apenas territórios alhures, mas também seres sociais, que já não dispõem dos códigos de

conduta e de crenças que a antiga conformação social fornecia. Trata-se da emergência

do Estado nacional moderno.

Voltando a Gellner, para este, o Estado moderno passaria a ter como atividade

mais importante a organização de um sistema universal de educação. O papel do Estado

na universalização do saber é entendido pelo autor como funcional a uma sociedade

marcada pela mudança e inovação contínuas, que não permite mais a acomodação das

pessoas a papéis ocupacionais estáveis. Com a democratização do saber, estariam

asseguradas as condições sociais e culturais necessárias para que homens e mulheres se

identificassem como pertencentes a uma comunidade comum. Com isso, Gellner afirma

que nações não existem por si mesmas, é o nacionalismo que lhes dá origem, na medida

em que condições são propiciadas para ele pela industrialização.

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

Problemático nessa visão de Gellner é que as características propriamente novas

assumidas pelo Estado são explicadas em função do novo regime de produção e de

trocas. Da mesma forma, o nacionalismo é dependente dessa condição, constituindo-se

no elo ideológico entre Estado e sociedade. Se desejarmos delimitar a esfera própria da

política nessa concepção iremos encontrá-la tão-somente nos elementos tradicionais

apontados por Maquiavel. As categorias e conceitos relativos à emergência do público

são fornecidos pelas exigências do mundo econômico, tais como as noções de liberdade

e igualdade. Desse modo, se procurarmos pensar o papel próprio da política estatal na

promoção da sociedade integrada, esse papel só pode ser esclarecido em virtude das

demandas do mundo econômico, excluindo as políticas das quais o próprio

nacionalismo faz parte.8 O desenvolvimento político como portador de uma lógica

própria nesse processo é difícil de se apreender. É a própria noção de desenvolvimento

político como distinto do desenvolvimento econômico com suas repercussões no mundo

social que está em jogo.

Portanto, na medida em que novos conteúdos emanados pela vida social só

podem ser explicados por critérios selecionados no mundo econômico, sendo a

economia entendida aí como o único fator dinâmico, a concepção maquiavélica de

Estado projetada na concepção mesma do que seja a atividade política tende a ser

reificada como algo que não participa do e nem é alterado pelo desenvolvimento

político da sociedade. A evolução, a mudança, a transformação, enfim, qualquer que

seja a dinâmica é vista como prerrogativa do mundo econômico, enquanto o Estado e

sua política permanecem essencialmente os mesmos. Disso decorre que, nas concepções

que operam com a dicotomia sociedade versus Estado, este aparece como elemento

estranho, uma figura quase mitológica, que na sua relação com o público interno atua,

na melhor das hipóteses, como guardião da segurança e da propriedade – tal como

Hobbes concebeu –, e, na pior das hipóteses, como protetor dos interesses da classe

dominante.

Observa-se que a perspectiva de Gellner acaba despolitizando a política naquilo

que diz respeito ao seu papel na constituição de uma esfera pública, na medida em que o

que lhe seria próprio fornecido na época – a universalização do saber – é atribuído à

8 Sobre as demandas políticas que inclinaram o Estado a uma atenção para com o público interno a território específico, já fiz referencia ao estudo de Hobsbawm (2002). Outra referência que questiona esse ponto em Gellner é Jonh Breuly (1996).

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

dinâmica social impulsionada pela industrialização. De acordo com essa ótica, o

nacionalismo também é despolitizado, na medida em que atuaria como uma espécie de

empresário cultural do Estado a serviço da ordem industrial.

O ponto ausente na perspectiva de Gellner – e que para mim responde pela

despolitização do Estado e do nacionalismo – é o que diz respeito ao modo como o

universo democrático foi construído e discursado. A análise de Wallerstein (1995) sobre

o modo como ideologias, como o socialismo e liberalismo, se firmaram é bastante

profícua para melhor compreendermos a questão. De acordo com esse autor, tais

ideologias não podem ser pensadas sem que se considerem as mudanças ocorridas na

vida política pós-Revolução Francesa, em que uma concepção de normalidade política

fundada na legitimidade do governante se desloca em favor da de soberania popular.

Essa mudança de padrão impôs aos pretendentes ao governo toda uma estratégia de

conquista e de mobilização popular que implicou a organização de partidos, a

preparação de uma agenda política e a elaboração de um discurso compreensível às

massas; um discurso que, portanto, interpelasse à maneira como elas se sentiam como

realidades humanas e sociais concretas.

Contudo, a organização na forma de partidos e de uma agenda política não foi

produto deliberado, racionalizado, exclusivo das cabeças de lideranças políticas.

Wallernstein observa que só após o fracasso de 1848 os socialistas descobriram que não

poderiam contar com uma rebelião espontânea dos trabalhadores. Além disso,

descobriram que as estruturas estatais eram suficientemente fortes e eficazes na

repressão dos levantes. Só então, depois de 1848, os socialistas “começaram seriamente

a se organizar em partidos, sindicatos e a organizar os trabalhadores”, e a conquista do

Estado passou a se constituir em estratégia para a transformação social. Os

acontecimentos daquele ano também despertaram os conservadores, só que para o fato

de que uma revolução era possível. O temor se lhes mostra imperativa a necessidade de

se construir uma sociedade mais integrada. Do lado liberal, a estratégia para conter a

rebelião foi fazer concessões às classes trabalhadoras, permitindo-lhes alguma

participação no poder e na riqueza excedente.

A análise de Wallerstein sugere que, na medida em que a idéia de soberania

popular se torna fato na concepção política moderna, as ideologias em disputas se

organizam em vista da conquista de um mundo social conturbado, que nega qualquer

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

afirmativa de que a industrialização e os seus desdobramentos em formas

administrativas racionalizadas sejam por si sós criadores de condições que tornem

possível uma homogeneização social, via sistema educacional ou qualquer outra

iniciativa do Estado.

Se pensarmos no caso da França sob o governo de Luís Filipe, nenhuma

iniciativa política que visasse à integração da nação parecia estar nos horizontes das

elites políticas.9 Esse é um ponto que atraiu a atenção de Tocqueville (1991), ao atribuir

como uma das causas das rebeliões de 1848 a ausência de canais políticos capazes de

incorporar o povo. Naquele mundo político em que o país estava dividido em “duas

zonas desiguais”, observa, “o que mais faltava sobretudo no período final era a vida

política propriamente dita. Ela não podia nascer nem se manter no círculo legal que a

Constituição havia traçado; a antiga aristocracia estava vencida, o povo estava excluído”

(Tocqueville, 1991, p. 39). Tratava-se de um cenário em que os partidos não podiam

“guerrear” devido à demasiada confiança do rei nas engrenagens do Estado, longamente

construído ainda no Antigo Regime. Sobre isso, Tocqueville comenta:

“Muito orgulhoso das vantagens que tinha obtido do engenhoso mecanismo, o rei Luís Filipe estava convencido de que, mesmo que não pusesse sua mão sobre esse belo instrumento, como fizera Luís XVIII, e o deixasse funcionar segundo suas regras, estaria ao abrigo de todos os perigos.” (Tocqueville, 1991, p. 41)

É baseado nesse diagnóstico que faz Tocqueville de uma sociedade dividida em

duas zonas desiguais que se pode direcionar a análise de Wallerstein para a linguagem

que está sendo mobilizada naquele cenário. Embora Wallerstein não se refira ao

nacionalismo, mas sim aos partidos e às ideologias como organizadores do mundo

político, pode-se perceber que o discurso que está sendo mobilizado gira em torno da

igualdade. Igualdade esta com vistas a criar um sentimento de solidariedade como

condição mesma da afirmação dos partidos. E se pensarmos, por exemplo, no Manifesto

Comunista, quando Marx faz notar que os socialistas não devem ser acusados de desejar

9 Apesar da falta de iniciativa no que diz respeito à criação dos canais políticos, tal como observado por Tocqueville, a observação de Wallerstein sobre a auto-intitulação de Luís Filipe como “Rei dos Franceses” é sugestiva para a compreensão da relação entre governante e uma nação específica, no caso, os franceses.

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

a abolição da propriedade privada porque ela já está abolida para 99% da população,

veremos que o discurso é endereçado a um “povo”.

Conforme Wallerstein explicita, a modulação política, tanto do Estado como da

sociedade, supôs demandas e discursos de caráter político definidos pela idéia de

igualdade. Emergentes em um contexto em que a idéia de soberania popular se afirma

como fonte da legitimidade política, as ideologias conservadora, liberal e socialista,

originalmente, têm em comum a hostilidade ao Estado como instituição contra qual a

sociedade devia ser protegida.

A questão que estava na base dessa oposição era se o Estado de fato refletiria a

vontade popular, que, segundo Wallerstein, constituiu-se na base existencial da

antinomia Estado versus sociedade. Contudo, o que se observa no processo é um reforço

das estruturas estatais, na medida em que o Estado vai se firmando para cada uma das

ideologias como meio eficiente na realização de suas agendas específicas e para a

conquista do poder. Para os socialistas, tornava-se claro que a conquista do Estado era o

“primeiro passo” na busca de fins de longo prazo. Além disso, enquanto a conquista não

ocorria, “a constant pressure for state intervention to regulate conditions of the

Workplace, the stabilishment by state of income transfer structures, and both the

legalization and the legitimation by the state of working class organizational activities”

(Wallerstein, 1995, p. 99), o que resultava no reforço do Estado. Para os conservadores,

a intervenção estatal se mostrava necessária em face de possíveis rupturas da ordem

social. Para os liberais, o risco de uma sociedade deixada ao arbítrio individual,

podendo gerar associações coercitivas da iniciativa e liberdade individuais, demandava

o poder regulatório do Estado no sentido de prevenir tais tendências. Ao lado desse

fortalecimento do Estado, a disputa entre as três posições as inclinava cada vez mais

para um discurso interpelador da vontade popular soberana com base na nacionalidade.

Em sua análise, Wallerstein apresenta Estado e sociedade como instâncias

relacionadas de um mesmo processo histórico que vão se alterando de acordo com as

demandas sociais e políticas dos atores que dinamizam esse processo. Em contraste com

essa perspectiva temos a de Gellner, que acaba por conduzir a uma compreensão do

período estruturada também pela relação Estado e sociedade, porém como esferas bem

nítidas e autônomas, de forma que se o Estado se altera é tão-somente com vistas a se

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

tornar mais funcional à economia. Desse modo, Gellner acaba se silenciando sobre as

demandas políticas que inclinam o Estado a uma relação para com o público interno.

Como podemos deduzir da análise de Wallernstein, o estudo da política

moderna, se preso a uma concepção de Estado versus sociedade, tende a manter essas

duas esferas em uma relação de estranhamento, impedindo que a alteração política de

seus conteúdos seja discernida. As ideologias, segundo esse autor, são oriundas da

sociedade moderna, identificando-se, primeiro, como expressões politizadas da

sociedade contra o Estado, mas que, ao mesmo tempo, passam a depender da estrutura

estatal na consecução de seus fins. Nesse movimento, os objetivos estatais também

sofrem alterações na sua relação com a sociedade.

Além da perspectiva marxista, que informa a crítica ao Estado nos estudos sobre

o ISEB, penso que essa crítica também é herdeira de uma tradição intelectual, cuja

compreensão sociológica do Brasil já nasce fundada no antagonismo sociedade ×

Estado. Tomo como marco histórico dessa tradição o ensaio de Paulo Prado, Retrato do

Brasil (1998), publicado pela primeira vez em 1926.

Nesse trabalho, ao lado das reflexões sobre a natureza tropical e a miscigenação,

que teriam contribuído para o aguçamento da cobiça, há uma visão negativa do Estado

português. Esse Estado aparece como devorador insaciável, que sangrava a colônia com

toda sorte de impostos, torrados em construções suntuosas, em tecidos de seda e lã, que

ele não produzia. Era um parasita da colônia, das bandeiras e da mineração, consumido

pela sede de ouro e pela inércia. No Post-scriptum, Prado reitera essa imagem negativa:

“O poder público, pacientemente, esperou os frutos da riqueza semeada. E logo em seguida criou o imposto, como os governadores do século XVIII e a metrópole estúpida, na loucura do Ouro, criaram os quintos, os dízimos, as dízimas, as quintas, a capitação e a derrama. Nesse afã, porém, a administração pública faliu, não podendo acompanhar o movimento progressista, ora lento, ora impetuoso. E assoberbado, num afobamento tonto, ficou atrás: é quase um empecilho e um trambolho.” (Prado, 1998, p. 201)

Em contraste com o Estado, no Brasil, desde os tempos das bandeiras, tudo se

devia à iniciativa privada, “que ergueu plantações, que estendeu pela terra virgem os

trilhos de caminho de ferro, que encheu de gado as grandes pastagens, que fundou

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Capítulo 1 – As críticas ao ISEB: seus limites e a proposta de um outro enfoque

cidades, organizou companhias e importou o conforto da vida material” (Prado, 1998, p.

201). Temos com Paulo Prado uma nítida oposição entre Estado e sociedade, em que

esta aparece quase se regendo a si própria, mas estorvada por um Estado não apenas

ineficiente, mas também devorador.

Essa visão negativa do Estado receberá, no contexto da institucionalização das

ciências sociais, fundamentação sociológica. No próximo capítulo analisarei como se dá

essa fundamentação, que, a meu ver, responde pela segunda dimensão que apontei na

crítica: a epistemológica.

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Capítulo 2

Dilemas do conceito de nação

no contexto de institucionalização

das ciências sociais no Brasil

2.1. A crítica epistemológica ao nacionalismo

No primeiro capítulo, destaquei, na crítica dos anos 1970, uma das duas

dimensões que, para mim, a caracteriza. Trata-se do que considero ser o seu aspecto

propriamente político. Essa dimensão política fundamenta-se na perspectiva marxista

que informa uma compreensão da sociedade moderna como capitalista. No que diz

respeito a esse caráter político, considero que a crítica expressa suas próprias

insatisfações no contexto do regime militar, de maneira que, ao eleger o ISEB como

objeto de estudo acadêmico, o elege também como um veículo da crítica ao Estado

autoritário militar, entendido primeiramente como Estado burguês.

Ao mobilizar conceitos marxistas, acredito que os críticos encontram um amparo

conceitual adequado para a crítica ao Estado. Com os conceitos de relações sociais de

produção e as duas classes sociais que essas relações engendram na sociedade

capitalista, a crítica pode identificar o que Marx, na Ideologia Alemã (1989), aponta

como sendo o momento histórico em que “a consciência pode de fato imaginar que é

algo mais do que a consciência da prática existente, que ela representa realmente algo,

sem representar algo real” (Marx, 1989, p. 27). Este é o momento, segundo Marx, em

que a divisão do trabalho alcança um tal nível de desenvolvimento que, com a

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

propriedade privada, passa a implicar a contradição entre o “interesse isolado ou da

família isolada e o interesse coletivo de todos os indivíduos que mantêm relação entre

si” (Marx, 1989, p. 29). Dessa forma, o interesse coletivo passa a assumir, na qualidade

de Estado, uma forma independente, e torna possível ao Estado se apresentar como ente

universal ou como comunidade ilusória, destacada dos indivíduos reais. Com esse

aporte teórico, os críticos se encontram em condições de isolar o Estado como objeto de

análise, e aquilo que seria o seu “aparelho ideológico”: o ISEB.

Ao desenvolver as análises nessa direção, os estudos têm eles próprios caráter

político e ideológico. Ao criticarem o pensamento do ISEB, é contra o Estado que se

dirigem principalmente, como Estado burguês, em primeiro lugar, e como autoritário

militar, em segundo.

Neste capítulo, analisarei o que considero ser uma segunda dimensão da crítica

que diz respeito à epistemologia. Se, por um lado, com os conceitos marxistas, podemos

identificar a crítica política, por outro, eles não parecem suficientes para a compreensão

da crítica epistemológica, que tem como alvo o conceito de nação.

O fundamento da crítica epistemológica adviria da teoria da modernização,

fundada na idéia de tradição e modernidade como tipos de sociedade que se excluem

mutuamente. Proponho que a teoria da modernização foi congênita à organização do

campo da sociologia no Brasil, organização esta coincidente com a percepção de uma

sociedade em trânsito para o moderno, que seria verificado a partir das transformações

estruturais em ocorrência desde, mais ou menos, a década de 1930. Essa perspectiva, a

da transição, teria orientado tanto a sociologia de Florestan Fernandes quanto a de

Guerreiro Ramos. Ou, melhor dizendo, o modo de compreensão do moderno entre os

cientistas sociais em São Paulo e os do Rio de Janeiro. Porém, embora a percepção da

sociedade em trânsito tenha sido a principal referência empírica histórica a informar

uma teoria da modernização brasileira, o modo como a teoria da modernização foi

aplicada internamente ocorreu de maneiras distintas, resultando em “dois padrões do

trabalho sociológico”.

Conforme nota Lúcia Lippi de Oliveira (1995), com Guerreiro Ramos e

Florestan Fernandes, dois padrões do trabalho sociológico foram propostos nos anos

1950. Não cabe, neste momento, explicitar as diferenças entre os dois padrões, mas em

resumo é possível. Os dois modelos se contrapunham no que diz respeito ao que seria

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

uma sociologia universal, neutra, seguindo os padrões da sociologia durkheimiana e

uma sociologia nacional e comprometida. O primeiro modelo é defendido por Florestan

Fernandes e o segundo por Guerreiro Ramos.

O que desejo analisar neste capítulo é como a partir da idéia de modernização

esses dois padrões – o universal e o nacionalista – puderam ser elaborados. A análise

que faço da teoria da modernização nesses dois autores é orientada pelo estudo e pela

crítica de Bendix (1996) à teoria da modernização tal como ela vinha sendo aplicada no

contexto em que escreve.10 O problema central que orienta a análise desse autor diz

respeito à impossibilidade de a teoria da modernização convencional poder iluminar os

processos de modernização por que passam as sociedades “seguidoras” dos modelos de

modernização política e econômica, fornecidos pelas transformações ocorridas nesses

campos, na França e na Inglaterra, respectivamente, a partir do século XVIII.

A limitação da teoria da modernização convencional, entre outros fatores,

adviria do fato de se trabalhar com a idéia de tradição e modernidade como tipos de

sociedade mutuamente excludentes, como estruturas que podiam ser identificadas a

partir de determinadas características dependentes e inter-relacionadas em cada um dos

modelos. Um outro fator seria o de pensar as mudanças como intrínsecas à sociedade

em que o fenômeno ocorre, desconsiderando o cenário externo do qual as sociedades

“seguidoras” participam, e mesmo aquelas que passaram a fornecer o modelo do que é

modernização. Trabalhando com um modelo de compreensão dual, escreve Bendix:

“O problema é geral. Todas as sociedades complexas têm uma estrutura interna e um cenário externo. Do mesmo modo, todas as sociedades complexas possuem uma estrutura formal de autoridade governamental que difere e é relativamente independente de formações de grupos que emergem da organização social e econômica da sociedade. (...)” (Bendix, 1996, p. 368)

À luz das críticas de Bendix, identifico nos dois padrões assinalados supra a

mesma compreensão da modernização em termos de tradição e modernidade. Porém,

enquanto o modelo fornecido por Florestan Fernandes se aproxima mais do modelo

10 O livro de Bendix é de 1964. O autor apresenta uma tradição de pensamento vinculado à teoria da modernização que viria desde Adam Fergunson, passando por Marx, Durkheim até Talcot Parsons, entre outros.

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

observado por Bendix, ou seja, o de tratar tradição e modernidade como tipos sociais

mutuamente excludentes, o de Guerreiro evita essa abordagem. A razão adviria

exatamente de que neste autor a modernização é analisada considerando-se o cenário

externo, o qual é remontado à forma de ingresso do Brasil na comunidade internacional

pela via do comércio. Dessa entrada resultará uma compreensão do Brasil que o

configura nos anos 1950 como internamente dual, um setor moderno e outro atrasado,

mas também múltiplo. A multiplicidade diz respeito aos graus distintos de

desenvolvimento regional, e é por meio dela que Guerreiro apreende a própria dualidade

mais como categoria compreensiva do padrão de desenvolvimento, que no Brasil teria

ensejado uma coleção de temporalidades distintas. Desse modo, a dualidade em

Guerreiro, o atraso e o moderno, são categorias que não se excluem temporal e

espacialmente, sendo ela condutora de um escrutínio da história brasileira.

No modelo de Florestan, os indicadores do moderno e o lugar onde eles se

manifestam promovem um corte histórico no mesmo momento em que o moderno é

identificado. Haveria um antes e um depois na história brasileira, os quais são

compreendidos em termos de dois tipos de sociedade mutuamente excludentes. O

passado, com seu correspondente tipo social, indicaria o fator que lá determinaria o

atraso. Amparada pelo conhecimento desse fator, a sociologia poderia indicar no

moderno o fator principal de modernização, e a partir dele indicar a via da

modernização. Desse modo, o elemento principal de modernização é oriundo do

complexo de características identificadas como modernas, as quais não estariam

presentes na configuração anterior. Porém, como veremos, a sociologia em São Paulo

não poderá prescindir de um ator que conduza o processo de modernização. O

“inovador” é apreendido do próprio complexo social que indica o moderno. O demiurgo

será o intelectual que porta o “saber racional”, característica principal do moderno, o

que se traduziria na educação escolarizada.

Essa análise é apresentada mais adiante. O que desejo, a partir dessa indicação

de como o ente modernizador é identificado pelo tipo de sociologia da modernização

presente no estudo de Florestan, é o modo como esta teoria serve de parâmetro ao que é

entendido como ciência pela crítica e com base no que é considerado ciência

desqualifica o pensamento do ISEB como ideologia.

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

Como veremos mais adiante, a compreensão da sociedade brasileira em termos

de tradição e moderno identifica, no primeiro tipo, o modelo de Estado patrimonialista,

formado em um complexo de relações familísticas. Comprometido com uma ordem

social em que o domínio doméstico é predominante, não é do Estado que a idéia de

público poderá florescer no Brasil. É com a urbanização e a implantação de cursos

superiores que a idéia de público começa a germinar. É do contexto da cidade e da

universidade que a crítica ao complexo escravocrata, incluindo o Estado, começa. O

pensamento crítico é entendido como racional, e dessa racionalidade participam a

própria crítica ao Estado e a orientação para um tipo de sociedade entendida como

moderna. O que se verifica é que, dado o seu alinhamento com a cidade, o pensamento

racional já nasce comprometido com a construção de uma ordem civil, na qual estaria

excluído o Estado como condutor do processo.

O que quero deduzir disso é que a teoria da modernização que informa esse

modo de analisar a sociedade brasileira, informa também o que seria ciência. A ciência

seria um tipo de saber que nasce, além de sem ter nenhum comprometimento com o

Estado, como seu crítico. Por isso, penso que a crítica epistemológica ao ISEB não se

fundamenta na teoria marxista, mas na teoria da modernização da sociologia paulista

dos anos 1950. Então, ao se referir ao nacionalismo como ideologia, o que seria essa

ideologia é compreendido em termos de falsificação da ciência, visto que o que informa

a idéia de ciência é a idéia de sociedade civil, o que, por sua vez, é deduzido da ordem

urbano-industrial.

A continuidade em relação aos anos 1950 na crítica pode ser observada na

insistência com que o conceito de nação é alvejado. Noto na crítica que, ao mesmo

tempo que o conceito de nação é o seu alvo, porque aparece para ela como fabricação

ideológica do ISEB, ele, o conceito, parece também fundamentar a crítica, desfrutando

da mesma dignidade cognitiva dos conceitos marxistas, como referencial empírico

interno ao pensamento estudado como explicativo de uma determinada compreensão do

Estado. Ou seja, se a concepção marxista, por meio do conceito de relações sociais de

produção, fornece o conceito de contradições de classe como fundamento empírico de

compreensão do Estado na sociedade capitalista, uma outra teoria, a do ISEB, oferece o

conceito de nação, com o que dilui a contradição entre classes.

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

Entendo que o conceito de nação fundamente a crítica pelo fato mesmo de que a

crítica, ao mobilizar os conceitos marxistas, se estrutura indicando a ausência deles na

reflexão do ISEB. Ou seja, ela analisa o pensamento por aquilo que não estava lá: o

conceito de luta de classes. No entanto, indica, também, o que estava lá: o conceito de

nação, no qual a contradição estaria diluída. Os estudos críticos são bastante profícuos

quando, ao procurarem identificar o fundamento empírico da reflexão do ISEB, a nação,

na intenção de desqualificá-lo como empiria fabricada, ilusória, acabam por sinalizar a

presença de um conceito que parece ter sido bastante eficiente na produção de uma

teoria sobre o Brasil e ter tido grande poder de mobilização política e cultural.

Renato Ortiz (1985), ao comentar a crítica, com a qual ele concorda, de Franco a

Álvaro Vieira Pinto, chama atenção para a grande popularidade do pensamento do ISEB

na esfera cultural, o que o teria transformado, nas palavras do autor, em uma espécie de

“religiosidade popular”. Dentre os diversos movimentos políticos e intelectuais nos

quais os conceitos do ISEB se difundiram, Ortiz chama atenção para influência isebiana

no teatro e no cinema, sobre o que faz a seguinte observação:

“É suficiente ler os textos de Guarnieri e Boal sobre o teatro nacional para se perceber o quanto eles devem aos conceitos de cultura alienada, de popular e de nacional. Fala-se assim na necessidade de se implantar um ‘teatro nacional’ em contraposição a um ‘teatro alienado’, cujo modelo seria o Teatro Brasileiro de Comédia; em algumas passagens, figuras de expressão do ISEB são explicitamente citadas no texto.” (Ortiz, 1985, p. 48)

Como se pode notar na observação de Ortiz, a gama de conceitos que se

difundiram está intimamente ligada ao conceito de nação, ou seja, é dependente desse

conceito central. Desse modo, podemos dizer que a precariedade do fundamento

empírico da teoria isebiana não era tão precária assim. Devemos nos lembrar, no

entanto, de que a crítica, ao deslindar a centralidade da nação no pensamento isebiano,

como um conceito no qual, para ela, se sustentara uma teoria do Estado como ente

universal, não parte imediatamente do conceito de nação, mas do modo como ele fora

formulado. Portanto, a crítica se dirige a uma teoria, não ao fenômeno nacionalismo.

Para Toledo e Franco, os isebianos puderam chegar à formulação dessa idéia por

meio de uma compreensão da história em termos de fases. Com base na sucessão

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

dialética das fases é que teria sido possível ao ISEB formular a teoria das ideologias

representativas e autênticas, residindo aí o golpe de mestre contra o conceito de luta de

classes, dando lugar ao de nação. Portanto, o grande mérito do estudo de Toledo foi o de

ter chegado ao cerne do modo como a idéia de nação foi formulada conceitualmente. O

fato de ter sido esse o grande mérito, com o que concordo, me sugere que aos críticos

não importa o fato de que a questão nacional tenha povoado o cenário político e

intelectual dos anos 1950, e desde antes. Se isso não importa é porque o foco da crítica

não é o nacionalismo do ISEB como um fenômeno histórico, melhor dizendo, da

ideologia do ISEB como ela mesma expressando os sentimentos políticos e culturais da

época. Desse modo, se o pensamento do ISEB não interessa como sendo ele mesmo

fenômeno da empiria histórica em que atua, então parece que o ISEB é focalizado como

algo que “sobrevoa” aquele contexto. O caráter de sobrevoante, para mim, deriva do

fato de se tratar de uma teoria, o que é o alvo da crítica epistemológica; daí o a priori da

crítica ser informado por outra teoria, a teoria da modernização, que mencionei

anteriormente.

Evidentemente que se minha observação quanto ao caráter interessado da crítica

relativamente ao Estado autoritário militar da sua própria época está correta, então um

ponto de partida já estaria garantido pela própria compreensão política do Estado como

autoritário. A condição de sobrevoante do ISEB seria explicada pela própria

compreensão que se tem do Estado em relação à sociedade. No entanto, fiz notar na

introdução deste capítulo como os críticos buscam legitimar a crítica ao ISEB e,

conseqüentemente, ao Estado partindo de uma determinada compreensão da teoria de

Marx. Ou seja, busca-se uma fundamentação teórica para a crítica política ao Estado.

Portanto, o a priori histórico da análise, a visão do Estado no regime autoritário militar,

se neutralizaria na cientificidade dos conceitos mobilizados.

Podemos questionar, contudo, a capacidade de legitimação da teoria como ela é

utilizada pela crítica em um trabalho que tem como objeto um fenômeno historicamente

datado, em um contexto em que as ações políticas são adjetivadas exatamente pelo

conceito que a crítica quer mostrar, que é falso. A meu ver, os conceitos marxistas não

têm eles mesmos, na crítica, força teórica autolegitimadora no que diz respeito ao

estudo do objeto histórico em questão: o nacionalismo. Para mim eles se legitimam

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

como fundamentos teóricos de uma crítica política ao Estado burguês em geral, mas não

de uma crítica epistemológica ao pensamento do ISEB.

Para que os conceitos marxistas se autolegitimassem como científicos na crítica

ao ISEB, os críticos teriam de estar dispostos a um maior enfrentamento com a empiria

histórica da época em que os isebianos escrevem, em vez de só demonstrar ausências

conceituais nos seus textos. Teriam de demonstrar as lutas de classes se desenvolvendo

de forma racional na direção da destruição do Estado burguês, e com isso questionar o

nacionalismo isebiano. Ou então enfrentar o fato de que o adjetivo nacional não

complementou apenas o engajamento e discurso político do ISEB, mas também outras

formas de engajamento político.11 Teriam de explicar o nacionalismo e a sua incidência

em processos de modernização política, econômica e social. Resumindo, a

autolegitimação das categorias marxistas deveria advir de uma legitimação histórica, o

que, me parece, reclamaria uma compreensão do Brasil-nação na sua relação com outras

nações capitalistas ou mais adiantadas. Esse enfrentamento com a empiria histórica

tornaria mais plausíveis para a crítica termos como imperialismo, antinação e

subdesenvolvimento, que povoam os escritos isebianos e da época. Creio que posso

dizer, em termos marxistas, que os críticos se detiveram na superestrutura ideológica,

nos fatores que, segundo Marx, a constituem, Estado e representações ideológicas.

Quanto ao nexo lógico-histórico entre infra e superestrutura, a crítica parece deixar a

resposta para a autoridade da teoria, deduzindo do conceito de modo de produção

capitalista as bases econômicas da superestrutura política e ideológica brasileira. Ou

seja, a infra-estrutura de um país economicamente dependente é desprezada. De modo

que o que me parece informar a crítica é o modelo de uma sociedade na qual a

revolução burguesa já teria ocorrido.

Não divago sem rumo quando apresento esse raciocínio sobre a infra e

superestrutura na crítica. Tenho um objetivo bastante preciso, que é o de destacar que,

11 Ao comentar a crítica de Caio Navarro ao misticismo do par nação e antinação no pensamento isebiano, Bolívar Lamounier observa que, nos anos 1950, “para muitos... o jargão nacionalista significava justamente o oposto da alegada mistificação. Significava crítica ao status quo; significava tomada de consciência de inúmeros problemas, entre os quais o da desigualdade, quer ou não percebida em termos de estrutura de classes; e, sobretudo significava abertura política, abertura de um espaço maior para a participação” (Lamounier, 1978, p. 156). Nélson Werneck Sodré (1978), assim como Lamounier, também cobra da crítica uma referência mais exata da época. Além desses autores, para uma visão mais panorâmica do debate político envolvendo a questão nacional, ver Luiz Werneck Vianna (1988) e César Guimarães (2001).

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

dentre os componentes da superestrutura, há um que parece ter função determinante em

relação aos demais na crítica. Trata-se da própria teoria ou ideologia, como queira,

nacionalista, ou seja, das idéias. A ênfase no caráter de mito ou de falsificação das

idéias nacionalistas é de tal forma insistente que me faz pensar que ela atua, para os

críticos, como uma espécie de profecia, que, uma vez pronunciada, se auto-realiza. Ela

se realizaria começando pelo próprio direcionamento da economia pelo Estado, por

meio da política desenvolvimentista. O paradoxo da crítica reside no fato de que se, por

um lado, ela procura se legitimar com base na afirmação de que somos capitalistas, por

outro parece temer que o capitalismo dependa do voluntarismo do Estado e das idéias.

Mas, por que o nacionalismo parece tão temível para a crítica? Se há uma consciência

proletária, provavelmente estaria imune à contaminação ideológica do nacionalismo.

Mas se, ao mesmo tempo, entende-se que há consciência de classe e risco de

contaminação, então há um paradoxo, e esse paradoxo deve ser respondido, então, pelo

fato de que, para os críticos, o nacionalismo teria buscado respaldo na ciência, se

apresentado como ciência. Lembremos que Maria Sylvia Carvalho Franco alerta para o

fato de que, ao se definir como “...Centro de Estudos que recorre à sociologia, à história,

à economia e à política... [o] pensamento do ISEB caracteriza-se a si mesmo como

ideologia e se nutre da grande fonte de verdade moderna: a ciência” (grifo meu, pp.

154-5).

É recorrente a ênfase na idéia de Razão, de ratio, como sendo o revestimento

lógico-científico com que o ISEB teria se apresentado ao público. O que parece pautar a

crítica e o próprio pensamento questionado por ela é a relação entre ciência e ideologia.

O problemático no ISEB não seria, então, o ter-se proclamado nacionalista, mas o ter

tentado produzir uma “mística” de neutralidade científica para o discurso nacionalista

baseado na idéia de nação. Ou seja, o ISEB formulou uma teoria errada, que não era

ciência. Com base em que se pode afirmar que aquela teoria não era científica, mas um

simulacro de ciência? Com base no modelo vitorioso no debate sobre as ciências sociais

nos anos 1950. Uma ciência social que nasce como instrumento da sociedade civil e

como crítica ao Estado é que orientaria a idéia de ciência correta em face da qual um

pensamento que se apresenta como científico, mas que não descura do papel do Estado

na construção de uma boa sociedade, só poderia ser falsificador.

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

É considerando essa dimensão epistemológica como constituinte da crítica que

penso que uma análise do nacionalismo no contexto da institucionalização das ciências

sociais seja importante. Um aprofundamento na análise sobre os dois padrões propostos

naquele contexto não tem por objetivo, nesta tese, reiterar a clássica querela entre Rio e

São Paulo, mas analisar como duas representações de Brasil estão sendo ali formuladas

e as suas conseqüências políticas posteriores. Penso poder seguir a sugestão de Gláucia

Villas Bôas e Eduardo Jardim (1982) sobre a importância do que eles consideram ser,

no estudo que empreendem sobre o modernismo e o desenvolvimento, o exame da

“constituição histórico-política dos conceitos que sustentam seja a problemática

modernista, seja a problemática do desenvolvimento” (Villas Boas; Jardim, 1982, p. 1).

Os autores questionam o fato de que, no Brasil, os críticos da ordem capitalista e do

imperialismo teriam “subtraído do campo da crítica os instrumentos que utilizam”. Ao

se proceder desse modo, não se estaria considerando que

“A expansão do mundo capitalista constitui, também, a expansão de um regime de racionalidade que lhe é inerente. Em outros termos, aquilo que aparece na história das ciências como universalização do campo do saber científico precisaria ser analisado como uma das faces do processo da expansão capitalista.” (Villas Boas; Jardim, 1982, p. 3)12

No sentido desse raciocínio, o primeiro objetivo na minha análise será focalizar

na proposta dos dois padrões assinalados por Oliveira o modo como duas representações

conceituais e históricas de Brasil estão sendo elaboradas: sociedade e nação. Restrinjo-

me, neste capítulo, à análise dessas representações no campo da sociologia e da

antropologia. Ao terminar, proponho que a representação da Antropologia não esgota

toda a compreensão que se teve do conceito de nação, e sugiro uma segunda

compreensão, que será objeto na continuação da tese. Como segundo objetivo, juntarei a

essas duas representações a formulação sociológica dos conceitos de sociedade e

nação.13 Um terceiro será analisar como, subjacentes a esses dois conceitos, há duas

12 Nesta mesma linha de raciocínio, Mariza Peirano lembra a recomendação de Norbert Elias sobre a importância de se averiguarem os aspectos ideológicos das teorias sociais, em particular o próprio conceito de sociedades complexas no contexto em que ele foi gerado (Antropologia no plural). 13 Esforço-me para distinguir o que chamo de representação e conceito, pois, pelo primeiro termo, entendo uma apreensão mais intuitiva e afetiva da vida coletiva brasileira no passado e no presente. Pelo segundo, a representação é elaborada na forma conceitual, sendo essa forma constitutiva da construção de

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

concepções de história: uma que analisa as transformações estruturais da sociedade

brasileira desde os anos 1920, mais ou menos em uma linha de continuidade histórica

com o passado, e outra que identifica nessas transformações rupturas radicais. O quarto

objetivo será analisar como, juntamente a uma concepção da convivência coletiva

brasileira em termos de sociedade, também uma idéia de Estado como antagônico à

sociedade foi produzida. Neste ponto, destaco que, aquilo que inicialmente foi

elaborado como conceito sociológico, sociedade, passa a ter também uma conotação

política, isto é, a sociedade como um ente do qual o Estado é um inimigo, devendo ser

combatido.

Com esta análise da maneira como o Estado passa a ser conceituado pela

sociologia nos anos 1950, pretendo lançar luz sobre a forma dupla com que a crítica nos

anos 1970 se refere ao Estado. Com o aporte da teoria marxista, o Estado é criticado

como burguês ou Estado capitalista, e com o aporte de uma determinada compreensão

do Estado produzida pela sociologia nos anos 1950, ele é focalizado como autoritário.

Desse modo, com a análise marxista, a crítica dos anos 1970 mobiliza um arcabouço

conceitual próprio à época, especialmente o marxismo de Althusser; com a análise

sociológica, a crítica continua um modelo de compreensão do Estado como autoritário e

guardião de interesses de elites tradicionais. Com esta análise do Estado será possível

entender melhor o alinhamento entre a visão que se tem dele e o conceito de nação e a

concepção de história que lhe dá suporte na crítica. Por fim, o quinto objetivo será

destacar o segundo fator que teria impedido, conforme apontei no primeiro capítulo, a

crítica de compreender o fenômeno do nacionalismo: o regime de racionalidade das

instituições da sociedade moderna projetado nas motivações individuais.

No encaminhamento das análises a que me proponho neste capítulo, opto por

analisar o processo de institucionalização das ciências sociais nos anos 1950 em termos

de um debate que teve no seu centro uma representação do Brasil como nação. Isto é,

embora tenha como fim distinguir representações e conceitos distintos, sociedade e

um campo de saber, no caso o da sociologia, e que diz respeito ao próprio processo de institucionalização das ciências sociais. Acredito que essa distinção seja importante para entendermos a aproximação que Werneck Vianna (1997) faz entre os sociólogos da USP e os isebianos, ao identificá-los como mannheimianos, ou seja, como uma intelligentzia que visa a produzir uma “síntese” da sociedade brasileira e generalizar os conhecimentos adquiridos ao público. Conforme penso, numa representação mais intuitiva e afetiva já estaria uma predisposição política e ideológica ligada a uma concepção idealizada da sociedade que se deseja ter. Essa predisposição política inicial é, posteriormente, generalizada ao público na forma de conceitos científicos.

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

nação, procuro colher a própria elaboração dessas idéias em um cenário mais amplo, em

que a preocupação com a identidade nacional e com a independência intelectual foi

regente. Por isso, iniciarei esta reflexão com um texto de Richard Morse sobre o

contexto da sociologia paulista e seus dilemas em face das peculiaridades de uma

sociedade em processo rápido de modernização social e econômica.

2.2. A sociologia paulista e a questão da identidade nacional

Richard Morse (1978) apresenta de maneira instigante um panorama histórico do

desenvolvimento do pensamento social e político no Brasil. Ultrapassando marcos que

designam datas, locais e concepções acerca dos padrões que legitimam a atividade

científica, o autor reúne autores cujas reflexões sobre a sociedade brasileira foram

orientadas pela idéia de identidade nacional. A análise dos escritos por Morse é

orientada pelo que ele denomina “móveis culturais e históricos”, presentes na

elaboração da realidade social.

Na resposta que procura dar à questão da proeminência da economia em

Manchester e da sociologia em São Paulo, cuja comparação é tornada possível pela

exposição das duas cidades aos efeitos da industrialização recebidos como choque por

suas respectivas elites intelectuais, o autor avisa, desde logo, que seu ponto de partida

não é a práxis, mas ingredientes culturais e históricos que, conforme se deduz da

seguinte passagem, orientam o pensamento e a ação:

“Por que a economia se tornou proeminente em Manchester e a sociologia em São Paulo, se podemos atribuir uma semente de sabedoria sintomática à designação das nossas ‘escolas’? Logo descobrimos que a questão depende menos do tema da práxis do que da maneira como a elaboração da realidade social propicia elementos para o controle intelectual. A economia e a sociologia não devem ser tratadas aqui como especialidades curriculares ou como ‘disciplinas’, mas como matrizes para uma ampla gama de conhecimentos da ‘questão social’.” (Morse, 1978, p. 34)

A práxis não deve constituir o ponto de partida em razão de não ser ela o melhor

caminho na compreensão da diferença de que se incumbe o autor demonstrar. Tal

caminho, pode-se deduzir, poderia levar a uma conclusão depreciativa da atividade

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

intelectual, em princípio paulista, diante do fenômeno da industrialização e das

exigências que impõem as atividades cognitiva e interventora. No âmbito restrito da

matéria tratada por Morse, o impacto da industrialização em Manchester descobriu, ao

olhar de um Engels e de um Tocqueville, uma sociedade rachada, dividida em classes,

cenário que abre uma agenda de estudos sobre a cidade diretamente subordinados a um

propósito racionalizador desempenhado pelos estudos estatísticos. Fundamental ao

pragmatismo de que se revestiu a atividade cognitiva foi o fato de os intelectuais não

terem de se debruçar sobre o tema da nacionalidade, pois, nas palavras de Morse,

“...os ingleses partilharam uma visão implícita de uma sociedade nacional inclusiva que se expandiu por séculos, criando as instituições, os acordos legais, as filosofias sociais, a liderança e os símbolos nacionais convincentes que cada momento histórico exigia. Sob as pressões modernas da industrialização, alguns pegaram as deixas de communitas imaginárias, de eras passadas, outros colocavam sua fé no racionalismo reparador, outros ainda sentiram o grande dinamismo da transformação histórica em curso. Mas todos partilhavam da imagem de uma sociedade nacional coerente que persistia através dos tempos.” (Morse, 1978, p. 36)

Podemos dizer, então, que a imagem de uma sociedade nacional por longo

tempo integrada fazia recair o espanto diante dos efeitos da ordem urbano-industrial

sobre a cidade, ao mesmo tempo que fornecia o ponto de apoio para projetos

reintegradores.14

No Brasil, o impacto da industrialização produzia efeitos distintos na imaginação

intelectual. Desenvolvendo uma interpretação que o texto de Morse torna possível,

pode-se afirmar que, enquanto na Inglaterra a industrialização fazia sentir seus efeitos

desorganizadores através da cidade, do urbano, evidenciando esse espaço e os

fenômenos a ele relacionados como universo empírico do labor intelectual, no Brasil,

ela se faz perceber através de um espaço muito mais amplo do que o da cidade. Trata-se

do próprio território nacional. De um modo geral, na Europa, autores como Tocqueville,

Engels, Marx e Durkheim puderam produzir uma imagem das fissuras entre seres

humanos em termos societários, como classe e individualismo, sem vinculá-las à

14 De acordo com Bendix (1996), uma razão para que os intelectuais Europeus percebessem a mudança social como interna decorreria da relativa integridade das nações européias.

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

geografia nacional. No Brasil, observa-se que a imagem das cisões sociais provocadas

pela industrialização projeta-se sobre o território ora recortando-o com categorias

culturais e étnicas, ora com categorias políticas, em que se sobressai a relação entre

poder central e poder local, ora em termos das diferenças econômicas e culturais

regionais. Em comum a essas abordagens o fato de que, simultaneamente a elas, a

imagem do Brasil como nação se descortina. Daí que, em vez de classes e indivíduos, as

categorias recorrentes no pensamento social e político brasileiro serão a de povo, cultura

popular, cultura de folk freqüentemente acompanhadas de outra de caráter político-

geográfico, a de nação, especialmente a nação cultural e a nação política.

Apoiado no que seriam os móveis culturais e históricos do pensamento social

brasileiro, Morse reúne autores como Sílvio Romero, José Veríssimo, Paulo Prado,

Alberto Torres, Oliveira Vianna, atando-os à continuidade que estabelece entre a pauta

de estudos aberta pelo modernismo e a sociologia paulista dos anos 1950. Comum a

todos o tema persistente da identidade nacional. Comentando a crítica de George

Gurvitch à deficiência dos sociólogos brasileiros quanto à “exploração da cidade de São

Paulo como um laboratório social único”, Morse sugere que tal deficiência deveria ser

creditada à desconfiança que os sociólogos brasileiros teriam da eficácia dos

conhecimentos transmitidos pelos professores estrangeiros na compreensão da realidade

nacional. Daí que a pauta modernista ainda se faria presente nos temas substantivos a

serem pesquisados, o que tornava indispensável um “ponto de apoio cognitivo” para que

os estudos sociológicos não fossem “um simples mimetismo”. Corrobora o autor o

balanço crítico que Florestan Fernandes faz da sua experiência na USP (1977), em que

lembra a reação dos estudantes ao caráter colonialista impresso nas atitudes pedagógicas

dos professores estrangeiros, cujos ensinamentos se distanciavam em muito da realidade

local. Segundo o autor, ao intelectual brasileiro impunha a tarefa de redefinição do

ensino universitário, a fim de que ele se adequasse ao estudante brasileiro. Desse modo,

podemos dizer que uma preocupação com a independência intelectual em relação ao que

seria uma dominação espiritual pelas nações desenvolvidas constituiu um dos ideais que

nortearam a construção das ciências sociais nos anos 1950.15

15 Ao escrever “um dos ideais”, tenho em mente uma outra preocupação que regeu as ciências sociais, trata-se da democratização da sociedade brasileira. Sobre esse ponto, escreverei mais adiante, em princípio, analisando como essa questão esteve diretamente associada às preocupações com o método de Florestan Fernandes.

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

Ressalto na análise de Morse a identificação do tema da identidade nacional

como um fio condutor que permite estabelecer uma continuidade entre o presente e o

passado do pensamento social brasileiro nos anos 1950. Ao contrário de uma outra

matriz de estudos do pensamento social e político, a institucional, que enfatiza uma

ruptura, identificando uma fase “fase ensaísta” e a “fase científica”, Santos (1978)16

Considerando o modo como essa matriz trata o passado das idéias, mais importante é

que, com Morse, podemos identificar esse tema exatamente em um espaço institucional

que serviu e ainda serve de parâmetro à indicação daquela ruptura, e, concluindo, ao

apontar a questão da identidade nacional em um contexto em que as motivações

imediatas dos estudos sociais são entendidas como advindas da dinâmica dos interesses

e do conflito, permite-nos repensar o tema da identidade nacional nos anos 1950.

O texto de Morse me faz pensar na análise de Montserrat Guibernau sobre a

ausência de uma análise sistemática do nacionalismo nos escritos dos clássicos da

sociologia. Apesar dessa ausência, a autora mostra como a questão nacional teria

permeado as reflexões de Durkheim, Marx e Weber. Preocupações com temas como

Estado, religião e patriotismo assinalariam a presença do fenômeno no contexto das

reflexões daqueles autores. O que Guibernau parece sugerir é a latência do fenômeno

nacionalismo como um objeto de estudo, mas que permaneceu dessa forma em virtude

de outros fenômenos se apresentarem mais claramente como novidade, ou seja, o

advento da sociedade de classes, a divisão do trabalho e formas burocráticas de

racionalização política e econômica. Conforme deduzo das observações da autora, o

estudo do nacionalismo requereria uma compreensão mais integrada de todos esses

aspectos mais aqueles que ficaram diluídos nos temas principais considerados

sociológicos: Estado, religião e patriotismo. Um outro aspecto ainda mencionado pela

autora é o passado mais longo das nações modernas, cujas raízes históricas se

encontrariam na constituição de lealdades grupais proporcionadas pelo sentimento de

exclusão, o que teria levado à “comparação com o estrangeiro’”, sendo isso mais um

ingrediente da imaginação da nação.

16 Segundo essa matriz, “o período científico das ciências sociais no Brasil se inicia com a criação de cursos superiores, a importação de professores estrangeiros e a introdução das técnicas de investigação de campo...” (Santos, 1978, p. 26). O autor questiona essa compreensão da história da produção intelectual brasileira devido ao desprezo a que ela relega toda a produção anterior a 1930, e, portanto, tornando-a irrelevante para “o progresso da ciência”.

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

Baseada na análise da autora, penso que o nacionalismo se insinuava no contexto

da elaboração do pensamento social como sendo ele mesmo um tipo de objeto que

poderia ter ensejado uma disciplina específica em relação a outras constitutivas do

campo mais amplo das ciências sociais, como a sociologia, a ciência política e a

antropologia. Tal disciplina ou campo de saber abarcaria cada um dos conteúdos que

fundamentam cada um desses campos de saber, como sociedades complexas, cultura,

Estado e classe política. Na medida em que o próprio objeto informaria a forma

epistemológica de abordá-lo, isto é, um fenômeno que a si mesmo se designa como

forma particular de sociabilidade e de relacionamento com outras formas, teria de

abarcar ainda a história e a geografia. Mas o nacionalismo não foi, no século XIX,

objeto de uma reflexão totalizadora desse tipo. Talvez esteja sendo com a literatura

recente sobre o fenômeno.

No entanto, se o nacionalismo não constituiu uma disciplina específica, uma

compreensão mais elaborada dele me parece ter sido possível pelas condições históricas

e sociais que propiciaram o surgimento da antropologia. Essa disciplina teria se formado

a partir de temas que o pensamento sociológico em formação não abarcaria por não

serem identificados como próprios de uma nova ordem social. Desse modo, penso que a

constituição quase simultânea desses dois campos de saber na Europa é ela mesma

expressiva de dois tipos de representação social convivendo de modo ambivalente. O

texto de Morse também me parece sugerir essa ambivalência. Por isso, no que se segue,

tentarei aprofundar a análise do contexto analisado por Morse a partir da constituição

desses dois campos no Brasil. Antes, porém, farei uma breve exposição de como teria

sido a elaboração da reflexão sociológica e antropológica na Europa tomando como

base um texto de Anthony Giddens (1984) sobre o contexto de surgimento da

sociologia.

2.3. A sociologia, a antropologia e os seus objetos

De acordo com Giddens (1984), a sociologia deriva sua especificidade da

relação que mantém com o alvorecer da ordem urbano-industrial, enquanto a

antropologia, de uma reflexão que tem como objeto culturas estranhas àquele universo.

À sociologia caberia investigar fenômenos sociais vinculados à civilização industrial,

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

cuja universalidade, derivada da sua incontestável marcha triunfante no mundo,

imprime nos objetos oferecidos por ela o mesmo caráter. Daí a possibilidade de a

sociologia dispor de um arcabouço de conceitos e técnicas de investigação homogêneos

e universais. A antropologia, por sua vez, refletiria no plano nacional a vocação que lhe

traz ao mundo europeu, isto é, incumbir-se do conhecimento de formas de interação

social e de mentalidades não afetadas pelas transformações econômicas, sociais e

políticas do Ocidente.

Não se pode desvincular dessas duas formas de conhecimento a dialética entre

uma nova ordem social, cujo dinamismo impõe e promete seu triunfo no mundo, e

“outras ordens” destinadas ao desaparecimento. Assim é que a antropologia, ainda que

produto do mesmo fenômeno histórico com o qual antagoniza, constrói a sua identidade

a partir de fenômenos sociais totais entendidos como particulares em relação a uma

ordem mundial que promete tornar-se única. Desse modo, a antropologia na Europa só é

fenômeno endógeno no que diz respeito aos móveis sociais, políticos e econômicos que

nutrem nela a imaginação de outros mundos. Porém, os objetos que a estruturam como

forma de saber são encontrados alhures.

Pode-se dizer que as expansões colonialistas do final do século XIX, ao

promoverem o “encontro” entre uma forma de existência social, entendida como o ápice

das realizações humanas, e outras, vistas em uma perspectiva etnocêntrica, põem em

operação formas de classificação já elaboradas pelo pensamento europeu na

compreensão das mudanças estruturais sofridas internamente. Refiro-me a conceitos

como tradição ou tradicionalismo, solidariedade mecânica, comunidade, pré-

capitalismo, formulados para a melhor compreensão do que fora o passado daquelas

nações. Tais conceitos expressariam a idéia de uma experiência social tida como

intocada, preexistente ao mundo urbano-industrial e civilizado. Acredito que essas

imagens produzidas internamente contribuíram para a compreensão de formas sociais

extra-européias e, mais que isso, forneceram o arcabouço conceitual da antropologia, e,

junto com o particularismo das sociedades estudadas, corroboram a definição e

delimitação do campo dessa disciplina.

O ponto que interessa focalizar aqui é como essa definição abrangente das duas

disciplinas informou a delimitação dos campos da sociologia e da antropologia no

Brasil; como a maneira de designar as duas disciplinas no seu nascedouro histórico

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

parece ter incidido diretamente sobre o seccionamento de objetos na definição das duas

disciplinas no Brasil. Além disso, como dessa delimitação derivaram-se formas distintas

de representação da sociedade brasileira pelas ciências sociais. No que se segue, tomo

como ilustração dois cientistas sociais: uma antropóloga, Maria Isaura Pereira de

Queiroz, e um sociólogo, Florestan Fernandes. Os textos analisados têm em comum o

caráter historiográfico. Conforme será visto, ambos propõem não uma história das duas

disciplinas isoladamente, mas das ciências sociais. No entanto, observa-se que

perspectivas distintas orientam o projeto, de modo que acabam sendo afirmadas duas

identidades disciplinares, cujas particularidades têm estreita relação com os objetos

eleitos e com a finalidade que orienta os estudos. Não cabe aqui analisar as relações

entre sociologia e antropologia no curso de suas respectivas elaborações e construções

na história das ciências sociais brasileiras. O objetivo na análise dos autores é tão-

somente mostrar como de alguma forma as duas disciplinas repõem no nosso cenário

intelectual as duas vocações assinaladas anteriormente. E, ao fazerem isso, nos

permitem visualizar, no período que compreende as décadas de 1930 a 1950, a

convivência conflituosa de duas representações do Brasil. De um lado, uma visão que

abandona o passado e busca no presente tanto as condições do pensamento quanto o

devir da sociedade que se deseja. De outro, uma imagem da nação que vai buscar no

passado a existência tanto de um pensamento quanto de um ser brasileiro.

2.4. Sociologia, sociedade industrial e representações do Brasil

Florestan Fernandes (1977)17 associa o desenvolvimento da sociologia, na

Europa, a dois condicionamentos: um, manifesto na própria vida social, consagra um

modo racional de compreensão da existência humana, e outro, relativo à criação de

instituições de pesquisa, em que tem lugar a elaboração de padrões que devem reger a

atividade científica e orientar maneiras de intervenção na realidade social. Os dois, no

entanto, seriam dependentes da formação de uma ordem social diferenciada e

estratificada, na qual se verifica uma divisão social do trabalho capaz de concentrar nas

mãos de indivíduos especializados as atividades intelectuais.

17 “Ciência e Sociedade na Evolução Social do Brasil”, texto que estou analisando, foi originalmente publicado pela Revista Brasiliense (São Paulo, jul.-ago. 1956, no 6, pp. 46-58) e A Etnologia e a Sociologia no Brasil (São Paulo: Anhambi, 1958).

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

No Brasil, uma mentalidade sociológica só teria se tornado possível a partir da

desagregação do sistema escravocrata, o qual, na caracterização do autor, aparece como

um complexo de tradicionalismo e conservantismo que obliterava qualquer exercício

intelectual transcendente à ordem senhorial. Só para fins do século XIX é que

transformações ocorridas nas esferas econômica, política e cultural passam a favorecer a

formação de uma mentalidade que, doravante, se desenvolveria até o estágio em que a

sociologia se encontrava na década de 1950. Florestan identifica o surgimento dos

suportes sociais da nova mentalidade no decorrer do século XIX. A partir da vinda da

família real para o Brasil, as necessidades administrativas e aquelas relacionadas à

expansão econômica teriam pressionado no sentido da educação de um maior número

de pessoas, o que levou à criação de escolas superiores e de “núcleos urbanos de

atividade intelectual”. Por outro lado, a própria expansão da ordem social escravocrata e

o interesse em manter a influência política pelo senhor rural exigiu o deslocamento das

atenções deste para o mundo urbano. Com isso, Florestan identifica na formação de

centros urbanos o elemento mais auspicioso para o desenvolvimento do saber racional.

Enquanto na Europa o pensamento social se desenvolveu paralelamente às

transformações ligadas à passagem da desagregação do feudalismo à Revolução

Industrial, estando, portanto, estruturalmente vinculado à existência social e material

daqueles povos, no Brasil a interdependência entre o pensamento e mudanças estruturais

não seria perceptível. O autor reafirma a desvinculação entre as condições reais e

materiais de existência e a produção intelectual, a qual seria nutrida e recebida “pré-

formada” dos centros intelectuais europeus. Ressalta, porém, como isso teria favorecido

uma identidade engajada aos intelectuais brasileiros, que exerceriam aqui influências

“culturalmente criadoras” antes que “estruturais”.

Desse breve resumo quero destacar dois elementos. Em primeiro lugar, o

direcionamento da análise histórica de Florestan para o florescimento dos centros

urbanos. Se, por um lado, é realçada a ausência de condições materiais e sociais mais

amplas, ou estruturais, como suporte do pensamento, por outro a cidade vai aparecendo

como sendo capaz de fornecer o terreno que teria permitido o desenvolvimento do saber

racional. Em segundo lugar, a atenção dada às instituições de ensino voltadas para a

formação técnica e intelectual. Desses dois elementos destacam-se dois pares

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

dicotômicos que estruturam a análise: cidade versus campo e saber racional versus saber

não racional.

A respeito desta última dicotomia, Florestan parece sugerir como saber não racional

aquele praticado pelo clero no complexo escravocrata. Embora o catolicismo tenha

significado uma oportunidade para inculcar um tipo de conhecimento racional, isto é,

independente daquele emanado da ordem social escravocrata, ele foi abrangido por essa

mesma ordem. As razões se deviam ao fato de os problemas emergidos da escravidão

para os princípios cristãos não serem resolvidos dentro da “ordem eclesiástica colonial”,

e, também, devido à solidariedade da igreja com os interesses colonizadores do Reino.

Desse modo, a Igreja acabava por reafirmar uma mentalidade formada no âmbito das

relações domésticas.

Por saber racional, então, podemos entender que Florestan identifica aquele que

seria tanto capaz de promover uma percepção do público como espaço distinto do

espaço doméstico quanto a emancipação de valores culturais e sociais e formas de

administrar oriundos do domínio doméstico. Da análise do que seja o saber racional e o

não racional, temos então mais uma dicotomia: privado versus público. Cidade,

instituições de ensino e espaço público aparecem alinhados como categorias que vão

indicando a maneira como Florestan compreende as condições que permitirão o

florescimento do saber sociológico. Das três categorias, porém, uma configura o ideal a

ser alcançado por uma intelligentzia criadora: o público. Este seria o elemento ausente

no decorrer do anos analisados. A explicação do porquê da ausência é a mesma que

explica a submissão dos princípios cristãos à ordem senhorial. Os domínios doméstico e

rural seriam suficientemente absorventes, de modo a comprometer possíveis princípios

universalistas de ordenação social. A vida política é compreendida como

patrimonialista, de modo que o Estado é descartado da possibilidade de vir a

desempenhar qualquer papel de emancipação. Esse papel vai ser atribuído às

instituições técnicas e educacionais que, conforme o texto sugere, são congênitas à

formação da ordem urbana com os problemas que impõem e do saber racional.

Embora Florestan Fernandes ressalte a falta de interdependência entre a

produção intelectual e as transformações materiais e sociais, destacando o papel da

intelligentzia na condução de tais mudanças, algum tipo de condicionamento empírico

lhe é imprescindível. Este será encontrado no florescimento da cidade. É dispensável

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

escrever sobre a importância que a cidade, especialmente a de São Paulo, teve na

produção de seus intelectuais. É por meio da experiência da vida citadina, com o frenesi

e estupor causados e registrados por Paulo Prado (1998), que uma imaginação da vida

moderna advém aos homens e mulheres que puderam experimentar o que Morse chama

de ruptura abrupta com o mundo agrário. As greves e o ir e vir de trabalhadores, tudo

isso forneceu ingredientes para uma dedução daquilo que os livros e as viagens diziam

ser a sociedade moderna. Os que vivem em uma grande cidade sabem que, mais do que

um lugar geográfico, ela é onírica, propicia o sonho e a imaginação de outros mundos e

de outras épocas por meio dos seus museus, agências de viagens, jornais e revistas

estampados nas bancas, turistas, etc. Talvez parte disso tudo ainda não existisse no

início do século XX nas cidades brasileiras, mas não é o que importa. O que importa

assinalar é como para uma parcela importante de intelectuais brasileiros, para os quais a

cidade foi tão crucial para a produção intelectual, esse ambiente de sonho deve ter

favorecido um desprendimento cognitivo em relação a uma empiria puramente

geográfica. Como escrevi anteriormente, uma concepção mais abstrata, desprendida de

uma determinada espacialidade, vai se formando.18

A análise de Florestan Fernandes começa indicando contrastes sociais baseados

em categorias geográficas. No início do texto analisado, como vimos, o autor utiliza o

recurso campo versus cidade. É em relação à idéia de campo ou rural, categorias

indicativas do atraso, que a cidade aparece sinalizando um devir, um futuro

supostamente melhor e racional. Mais adiante no mesmo texto, porém, a cidade aparece

18 Chama-me atenção o fato de que, nos estudos sobre a vida coletiva brasileira de um Euclides da Cunha ou Oliveira Vianna, a geografia fornece o ponto de partida para a compreensão de hábitos e modos de vida das populações. Categorias como litoral, sertão, corte e província são utilizadas como recursos teóricos na busca de uma explicação histórico-sociológica do Brasil. Essa observação pode ser significativa por duas razões. Primeiramente, pelo fato de indicar uma continuidade entre esses estudos ensaístas, e a compreensão mais geográfica da configuração social brasileira da análise de Florestan Fernandes. Em segundo, como, apesar da continuidade, uma ruptura com o padrão de análise dos ensaístas – com o deslocamento da análise da diversidade regional para a cidade industrial – acelera o processo intelectual de compreensão do moderno estribado nas formas de relações sociais próprias do mundo industrial. Com isso, facilita uma compreensão da vida coletiva brasileira em termos de sociedade, a qual é projetada para a coletividade inteira como devir necessário. Parece-me que, enquanto um tipo de análise, que tem como referência empírica a diversidade regional, facilita uma compreensão que vincula tradição e moderno, um outro tipo, que reduz a diversidade às categorias rural e urbano, ou campo e cidade, promove com essa fissura uma ruptura temporal radical, como a de atraso e moderno. Com o primeiro tipo de análise, o dos ensaístas, o conceito de nação me parece mais apropriado para abranger uma totalidade social mais complexa delimitada pelo território nacional. Com o segundo, uma parte expressiva dos residentes do território nacional, com seus hábitos e modos de vida, é relegada como atraso ou resíduo no terreno da teoria que os conceitos de rural e urbano estruturam. Essa breve digressão será mais bem esclarecida a seguir.

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

já prescindindo de um oposto geográfico, passando a ser ela referência de si mesma e

em relação à qual uma outra representação do atraso vai ser elaborada.

Trata-se do momento do texto em que Florestan dirige-se diretamente à cidade

de São Paulo nos anos 1950. A cidade já não aparece apenas como um lugar destacado

do mundo rural capaz de propiciar um afastamento dos influxos da vida doméstica no

pensamento e nas atitudes políticas. Ela é o lugar onde mudanças de caráter estrutural

estão ocorrendo. Trata-se do processo “adiantado” de industrialização, graças ao qual

uma “nova mentalidade” estaria em formação. A idéia de industrialização configura

como a que permite tanto extrapolar da representação da cidade como um lugar onde se

vive de determinada forma para uma representação mais abrangente da coletividade

inteira. Com a industrialização estariam presentes, também, as condições que

permitiriam o florescimento da sociologia. Trata-se de uma perspetiva que designa, para

a ciência social, condições sociais e culturais entendidas como próprias da ordem

urbano-industrial.

Tal compreensão, todavia, não parece ser sem problemas em um contexto

híbrido, em que passado e presente, atraso e moderno, irracionalidade e racionalidade

convivem. É o que veremos na próxima citação. A cidade vai apresentar um outro tipo

de problema, que será focalizado tanto como um obstáculo ao saber racional como

objeto de estudo e entrave a ser superado pela sociologia. A partir dessa análise, quero

também sublinhar como a apreciação daqueles problemas permite a construção de outra

dicotomia, desta vez descolada da empiria geográfica e apresentada como mais abstrata

e abrangente no que diz respeito à vida coletiva brasileira. Trata-se da dicotomia

folclore e civilização, que se desdobram em duas representações da sociedade brasileira,

a sociológica e antropológica Escreve Florestan Fernandes:

“o irracional continua a possuir, sem dúvida, grande importância na vida cotidiana dos indivíduos. A magia de origem folclórica continua a existir e a ser praticada, crenças religiosas ou mágico-religiosas, que apelam para o misticismo e valores exóticos, encontram campo propício para desenvolvimento graças às inseguranças subjetivas, desencadeadas pelas incertezas morais e fricções sociais do mundo urbano”. (Fernandes,1977a, p. 22)

No entanto, deduzo que tal mentalidade deveria ser considerada sobrevivência,

resíduo, já que, “...no fundo, a civilização que se vincula a este mundo é, por

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

necessidades internas, a civilização por excelência da tecnologia racional, da ciência e

do pensamento racional” (Fernandes, 1977, p. 22). No Brasil daqueles tempos, a

sociologia, além de técnica de conhecimento e solução dos problemas do mundo

urbano-industrial, era também um projeto de modernização. Florestan reconhece que os

suportes sociais que lhe permitiam desenvolver-se só existiam “em determinadas

regiões, nas quais a industrialização acelera a desagregação da antiga ordem tradicional

e patrimonialista e precipita o processo de desenvolvimento das classes sociais”

(Fernandes, 1977, pp. 23-4).

Observa-se que Florestan, ao tomar o pensamento como indicador do atraso e do

moderno, supondo estarem subjacentes a ele formas sociais específicas correspondentes,

é coerente com a perspectiva adotada na análise que busca a relação entre conteúdo do

pensamento e estrutura social.19 Porém, essa forma acaba indicando uma limitação do

pensamento racional ou científico, na medida em que só lhe seria possível abarcar as

formas sociais que lhe dão suporte, ou seja, aquelas em que a civilização já tivesse

penetrado e formado demandas.

Tomando como suporte dessa mentalidade nova a cidade de São Paulo, com os

problemas que ela gera em termos de exigência de uma intervenção técnica, o

pensamento racional coincidiria com a formação de um saber técnico premido pelas

necessidades da cidade. Desse modo, o racional se encontra “no plano dos serviços

públicos, no das construções e da engenharia, na medicina, etc.” (Fernandes, 1977, p.

22). Vê-se que, nessa análise, a racionalidade do pensamento – que tem como condição

a racionalidade do contexto, a qual é definida pelo tipo de exigência que faz ao

conhecimento ou à ciência – só pode ser técnica. Técnica no sentido de que a

racionalidade do saber se define exatamente pela sua capacidade de intervenção e de

atendimento às demandas do contexto urbano-industrial. Nesse sentido, as ciências

sociais só poderiam ser tidas como forma de saber racional na medida em que fossem

capazes de atender às necessidades emergidas com a industrialização e urbanização. As

19 Aplica-se à analise de Florestan, que busca correspondência entre o conteúdo do pensamento e o contexto ao qual se vincula, a classificação de Santos das matrizes que teriam orientado uma historiografia do pensamento social e político brasileiro. Nesse caso, tratar-se-ia da “matriz sociológica”, que segundo Santos “entende-se a análise que se desenvolve tomando como parâmetro características da estrutura econômico-social, quer, como no caso de Fernandes agora mesmo citado, para explicar variações ocorridas sobretudo no conteúdo das preocupações dos investigadores sociais, como decorrência de modificações processadas na estrutura sócio econômica, quer, em casos extremos, para

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

preocupações de Florestan com a educação revelam o modo como a sociologia deveria

intervir naquele contexto, solução que parece necessária à superação da mentalidade

atrasada.

Um ponto a ser destacado é a forma como uma compreensão da sociologia vai

sendo elaborada, e, conseqüentemente, os seus conceitos. Ao tomar a cidade industrial

como referência, uma concepção de ciência social vai sendo enformada pelo tipo de

racionalidade que a ordem urbano-industrial promove. É desse tipo de racionalidade que

é possível estruturar uma concepção do moderno com base nas categorias rural e urbano

ou campo e cidade. As primeiras, como suporte do pensamento não racional e

indicativas do atraso; e as segundas, como suporte do pensamento racional e do

moderno. O racional se confunde com o próprio mundo industrial e com as exigências

feitas ao saber e à ciência. Desse modo, a sociologia se nutre das condições fornecidas

pelo mundo industrial.

À medida que a cidade vai se transformando em referência de si mesma,

prescindindo do seu oposto – o rural –, ou seja, à medida que vai se tornando parâmetro

de um modo de vida ideal – o moderno –, ela vai se libertando de seus contornos

geográficos e erigindo-se à condição de modo de vida mais abrangente a ser projetado

sobre a coletividade inteira. Já que ela expressa o modo como “a civilização se vincula a

este mundo”, então já não é simplesmente a cidade, lugar onde se vive de determinada

maneira, é a própria sociedade. Um tipo de convivência social que vincula os indivíduos

pela divisão do trabalho, que os agrega nos centros urbanos e que requer uma formação

cultural mais especializada fornecida pela escola e pelas universidades. De dado

empírico, a sociedade adquire também caráter de conceito totalizante, com o qual a

sociologia pode explicar a realidade social brasileira, identificando desajustes estruturais

que estariam atrasando a realização do moderno.

À medida que a idéia de cidade, como conceito que, inicialmente, orienta uma

compreensão do que seja o moderno, vai prescindindo do recorte geográfico e

adquirindo configuração abrangente, ela vai fornecendo também uma compreensão

histórica da sociedade brasileira, ou seja, do processo que a traria do atraso para o

moderno. Dessa forma, o atraso passa a prescindir do seu lugar geográfico – o mundo

rural –, identificando-se apenas como passado, uma espécie de correspondente ao

deduzir os atributos ou dimensões do pensamento social dos atributos e dimensões do processo social”

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

feudalismo europeu desagregado pela ordem industrial. É nesse sentido temporal que

podemos compreender o modo como Florestan Fernandes se refere à mentalidade

folclórica como o “irracional” que “continua a possuir... grande importância na vida

cotidiana dos indivíduos” (grifo meu). A mentalidade folclórica é apresentada como

resíduo. Sua presença na cidade industrial requer um tipo de entendimento que apele à

idéia de civilização, conceito utilizado pelo autor como conceito histórico, indicativo de

processo.

Tem-se, então, a passagem de uma compreensão geográfica – rural e urbano –

para uma mais abstrata, ancorada na idéia de tempo. De acordo com essa idéia de

tempo, informada pelos índices de civilização fornecidos pela cidade industrial, o tempo

da sociedade brasileira é deduzido do tempo das sociedades industriais, estas indicando

o ponto mais adiantado da escala evolutiva civilizatória. Por isso talvez a urgência do

saber técnico e de uma sociologia que promova a remoção dos entraves ao moderno

ainda existentes e presentes naqueles anos.

Quero chamar a atenção, nesta análise, primeiramente, para o fato de que o

conceito de sociedade é deduzido da percepção que tem o autor da cidade industrial, e

como esse conceito se torna suficientemente abrangente da diversidade de modos de

vida na sociedade brasileira, diluindo essa diversidade na redução folclore versus

civilização, o que significa dois tipos de mentalidade. Em segundo lugar, a

temporalidade brasileira é informada pelo próprio conceito de sociedade que, por sua

vez, é deduzido do modo de vida urbano-industrial. Decorre disso a ausência de uma

preocupação com que seria uma temporalidade brasileira, e junto com essa ausência

também um lugar para a indagação a respeito de uma especificidade brasileira, o que é

fundamental para se pensar a vida coletiva do Brasil em termos de nação. E, por último,

uma questão: o que aconteceu com as categorias rural e urbano? Será que essa dualidade

poderia tão facilmente ser reduzida ao dualismo pensamento racional e não racional?

E será que esta seria passível de ser resolvida apenas com a eliminação da

mentalidade mágica e folclórica por processos de educação especializada? Quem seriam

os agentes desse processo? Quem financiaria a universalização da educação

escolarizada? Decerto, me parece que uma parte do País real desaparece na teoria de

(Santos, 1978, p. 27).

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

Florestan Fernandes na medida em que ele sugere deduzir o País do laboratório que fora

a cidade de São Paulo. Penso poder encontrar essas respostas em outras teorias.

Uma delas é a fornecida pela antropologia. Abordarei a constituição desse

campo de saber das ciências sociais partindo do que considero ser um impasse da

sociologia em relação ao que Florestan Fernandes chama de mentalidade folclórica.

Procuro analisar como a antropologia, na medida em que encontra seu objeto próprio

naquilo que a sociologia descarta como resíduo, abre caminho para se pensar uma

temporalidade brasileira ancorada na idéia de identidade nacional.

2.5. Antropologia: folclore e identidade nacional

Na sociologia de Florestan Fernandes, as formas “mágicas” de origem folclórica

de pensamento, consideradas irracionais, parecem não caber no repertório de objetos da

sociologia. À medida que condiciona os objetos da sociologia à capacidade de eles

expressarem “concepções secularizadas da existência”, acaba limitando-os às agências

técnicas, nas quais tais concepções já se fariam presentes. Desse modo, o cotidiano de

uma sociedade, percebida em transição para o moderno, parece não encontrar, na

sociologia, conceitos e técnicas adequados à sua compreensão. Se é assim, então me

parece que há todo um repertório de questões a reclamar outro tipo de teorização. A

partir desse ponto, considero importante introduzir o modo como a antropologia vai se

relacionar com a sociologia. Desenvolverei esse ponto tomando por base o estudo de

Gláucia Villas Boas, A vocação das ciências sociais (1945/1964), um estudo da sua

produção em livro (1992).

Os dados de Gláucia Villas Bôas (1992) sobre a produção em livro das Ciências

sociais no período de 1945 a 1960 sugerem dificuldades da sociologia no período de

1945 a 1955 no cumprimento de uma agenda de estudos definida pela civilização

urbano-industrial. A autora seleciona os livros a partir de dois critérios: “obras sobre a

disciplina” e “temas específicos”. Chamo a atenção aqui para o segundo critério, o qual

é composto dos seguintes temas: a) mudança social, industrialização e desenvolvimento;

b) meio rural; c) mobilidade histórica e social; d) meio urbano; c) religião; e d)

educação. Deve-se observar que os dados registram, no período de 1945 a 1955, apenas

um livro sobre o tema da letra a e nenhum sobre o tema da letra d. Situação diversa é

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

registrada no período de 1955 a 1966, quando os dois temas somam, juntos, 28 obras

(20 sobre a e oito sobre d). Esses dados são significativos porque indicam um

descompasso entre objetos tidos como próprios da sociologia, por se referirem às

condições advindas com a industrialização e urbanização, e a circunstância social a que

se pretende aplicá-la no contexto de 1945 a 1955. O cotidiano só irá favorecer a

atividade cognitiva designada própria da sociologia a partir de 1955, quando é intenso o

processo de urbanização e industrialização.

Ainda tomando como referência o estudo de Villas Bôas, situação diversa

configura as realizações da antropologia. Esta conta com 70 obras no período de 1945 a

1955, e 71 no transcurso de 1956 a 1966. Os temas abrangidos são: tradições

populares,20 grupos étnicos específicos, formação étnico-cultural, religiões afro-

brasileiras e cultura rural. Se comparadas as produções da sociologia e da antropologia,

observa-se que o cotidiano considerado místico e folclórico por Florestan Fernandes,

que parece estar fora do alcance da sociologia, encontra na antropologia acolhida

favorável.

Partindo do estudo de Maria Isaura Pereira de Queiroz, que ilustra um passado

mais longo nas ciências sociais brasileiras, remontando-o às pesquisas etnográficas

realizadas pelo Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Brasileiro, fundado em

1838, Gláucia Villas Bôas identifica nos temas da antropologia daquele período uma

reatualização dos temas tradicionais que constituíram o campo desta no Brasil. Esses

temas tradicionais estariam vinculados a uma preocupação com a brasilidade. De acordo

com Maria Isaura Pereira de Queiroz (1989), de 1840 a 1870, as pesquisas etnográficas

têm como objeto os índios brasileiros, cujo objetivo seria “afirmar que os brasileiros

eram os legítimos filhos da terra, muito mais do que gente de além-mar: o selvagem era

a marca da brasilidade” (Queiróz,1989, p. 380). Essa preocupação com o nacional se

estende pelo final do século XIX e ao longo do XX sob outros enfoques:

“Novas questões começaram a ser estudadas no Brasil por volta de 1870. A variedade de traços culturais existentes na sociedade brasileira – hábitos arcaicos provenientes de Portugal, costumes

20 Sob a rubrica “tradições populares” da pesquisa de Villas Bôas, Vilhena (1997) identifica os estudos sobre o folclore, os quais constituíam a maioria (48) em um total de 141 títulos publicados no período de 1945 a 1964. O autor chama a atenção para a proximidade entre a antropologia e o folclore, que naquele período era marginalizado do repertório de temas estudados pelas ciências sociais.

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

africanos, práticas indígenas –, encontrados no cotidiano de todas as camadas sociais, independentemente de sua origem étnica, compunha uma miscelânea que contrastava com a homogeneidade que os letrados brasileiros julgavam existir nos países europeus e na civilização ocidental. A sociedade e a cultura do país passavam a constituir o foco de atenção para os estudos que foram se avolumando com o correr do tempo e ainda hoje compõem o objeto preferencial dos cientistas sociais.” (Queiróz, 1989, p. 380)

Importa ressaltar, nessa maneira como o campo da antropologia é constituído,

primeiro, como uma busca de compreensão do nacional consubstancia o

desenvolvimento desse saber; segundo, como ela constrói uma maneira própria de

compreensão do nacional, na medida em que irá nutrir-se de temas não comprometidos

com a civilização urbano-industrial; e terceiro, como o tema da nacionalidade vai

delimitando o campo e os objetos que lhe são considerados próprios. Como visto supra,

Maria Isaura remonta a história das ciências sociais aos estudos etnográficos, os quais

têm como alvo os aborígenes e a afirmação da brasilidade. Sucede a essa fase outras

interligadas pela preocupação com a brasilidade. Na segunda fase assinalada pela

autora, de 1870 até por volta da década de 1920, o interesse pelo que é próprio à

sociedade brasileira é motivado pela dúvida quanto à “possibilidade de existir um ‘ser

brasileiro’”. Estudos de Nina Rodrigues, especialmente, revelariam “um profundo

preconceito racial e cultural, que se voltava, especialmente, contra o africano, cuja

presença no cotidiano da sociedade brasileira era muito mais forte do que a do indígena”

(Queiróz, 1989, p. 380). A partir das décadas de 1920 e 1930, o preconceito racial cede

diante de uma visão positiva quanto à existência de um ser brasileiro e a mestiçagem é

aceita e proclamada.

Observa-se que esse modo de compreensão das duas disciplinas acaba indicando

um corte entre dois campos: o da sociologia e o da antropologia. Esse corte é definido

mais pelos objetos que suscitam a tarefa de conhecer do que pela epistemologia das

duas disciplinas. Nota-se, que nos dois casos, noções de distância e de proximidade

entre o objeto e formas cognitivas são também fundamentais na estruturação da história

dos dois campos, o que permite também indicar as possibilidades da existência do saber.

No caso da antropologia, a distância é fundamental, o que pode ser explicado pela

maneira própria como ela se constitui na Europa em vista do estranhamento entre o

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

mundo europeu e os outros mundos. Quanto à sociologia, a exigência é a de um

parentesco entre o objeto e as formas de pensá-lo e investigá-lo estribado em

condicionamentos históricos análogos.

Observa-se que essas duas trajetórias das ciências sociais no Brasil apresentadas

pelos dois autores conduzem a um seccionamento da sociedade brasileira naquele

período. De um lado, uma realidade favorável ao conhecimento em virtude mesmo do

que, de um outro ponto de vista (o da sociologia), é a permanência do tradicional. De

outro, o não-tradicional, ou moderno, mas que acaba se revelando não existente ou pelo

menos com uma existência precária, malogrando o projeto da sociologia. Nesse

seccionamento pode-se identificar a produção, pelas ciências sociais, de duas imagens

do Brasil: de um lado, o país tradicional expressado pela mentalidade folclórica, e, de

outro, o Brasil moderno, representado pela cidade, urbanização e constituição de centros

de ensino e pesquisa e de agências de planejamento.

Interessante notar nesse seccionamento uma redefinição da perspectiva dualista

que orientou o ensaísmo de Sílvio Romero e Euclides da Cunha. Redefinição porque,

enquanto nesses autores a dualidade, manifesta na obra, expressa a geografia nacional,

por meio de formas concretas e particulares de experiência social, agora se trata de uma

dualidade que organiza o saber científico, ou douto. É como se a dualidade se

desprendesse da sua materialidade e passasse a consubstanciar uma forma de

representação douta do país. A dualidade migra da empiria para o pensamento. Mas,

nesse nível, de acordo com a historiografia, ela não se manifesta como constitutiva da

elaboração das formas de conhecimento da sociedade brasileira pelas ciências sociais.

Isso porque, na história sobre o processo de afirmação desse saber, registra-se também o

processo de autonomização de cada um dos seus campos. Ao solucionarem-se os

impasses com que as ciências sociais se defrontam nos anos 1940 e 1950, definindo-se

os campos em função da pertinência dos objetos, soluciona-se também o hibridismo de

uma realidade social em que os limites entre o que é entendido como tradicional e

moderno são tênues. Na medida em que cada uma das duas disciplinas constrói seu

campo a partir de uma das faces da dualidade, esta desaparece da realidade,

configurando-se cada uma delas um mundo exclusivo. De um lado, o mundo da

antropologia; de outro, o da sociologia. Ou, de um lado, a nação, dispondo de um tempo

longo de existência, e, de outro, a sociedade, de configuração recente.

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

Penso que à medida que as visões da antropologia e da sociologia se excluem, então

os dois mundos representados por cada uma delas parecem reclamar uma síntese, ou

melhor, uma visão mais abrangente que articule tradição e modernidade, que resgate a

história e o hibridismo de uma sociedade em transição. Seria um tipo de compreensão

dos entes sociais capaz de se dirigir a eles como ingressos numa ordem societária que

lhes exige um novo tipo de educação, a escolarizada e técnica, um tipo de mentalidade

mais calculista nas relações de trabalho e ao mesmo tempo como tendo um longo

passado a lhes fornecer uma identidade.

Uma teoria desse tipo mais totalizante teria de dispor de um conceito

suficientemente amplo que pudesse congregar passado e presente, ou estruturas sociais

distintas em convivência tensa. Com Florestan Fernandes, procurei mostrar como o

próprio conceito de urbano, ao servir de amparo a uma compreensão da história

brasileira como ruptura, acaba por deduzir dele mesmo uma concepção totalizante do

que seria a sociedade, excluindo dele as “inconveniências” das sobrevivências culturais.

Formulado o conceito de sociedade a partir das condições urbano-industriais, ele mesmo

passa a informar a historiografia empírica e intelectual21 que indica o passado e o

presente. A antropologia, ao acolher tais inconveniências, acaba por conferir à variável

temporal uma independência em relação ao espaço, podendo, com isso, focalizar os

dilemas da identidade nacional do ponto de vista de uma história mais longa. Interessa-

me, como promissor para minha própria análise do nacionalismo, que esses dois campos

de saber, ao se instituírem, forneçam duas formas de representação histórica, uma que

parte da geografia, rural e urbano, e outra que tem como ponto de partida a maneira

como os brasileiros elaboram sua identidade baseada em critérios étnicos e culturais, e

21 No seu artigo, Queiróz (1989) questiona uma historiografia do pensamento social latino-americano, em geral, e o brasileiro, em particular, que enfatiza o caráter imitador do pensamento nos países subdesenvolvidos. No Brasil, esses estudos, que tendem a admitir “uma total falta de criatividade dos países subordinados”, relegariam como irrelevantes a produção intelectual anterior à década de 1950. É contra essa perspectiva que a autora remonta o pensamento social brasileiro às pesquisas etnográficas e publicações realizadas pelo Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico Brasileiro. O interessante na perspectiva que orienta a autora, que vai buscar nos estudos “socioantropológicos” o que não seria pura imitação do pensamento no país subdesenvolvido, é a preocupação com uma especificidade do pensamento, a qual está diretamente relacionada com o resgate de uma história brasileira. De uma história mais longa, não demarcada por uma ruptura relacionada com a instauração da ordem urbano-industrial. Dessa forma, o pensamento do passado parece consubstanciar uma reflexão mais ampla da autora sobre a identidade nacional. Com isso, ela sugere que um tipo de historiografia do pensamento social brasileiro, que não se orienta exclusivamente pela condição urbano-industrial, pode evidenciar uma preocupação mais ancestral com o processo de formação da identidade nacional, a qual estaria presente na antropologia no processo de institucionalização das ciências sociais.

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

que remonta, portanto, ao momento em que as raças se encontram, o que transcende o

modo espacial de convivência.

Espaço e tempo, portanto, são categorias que me parecem centrais para investigar

qual outro conceito, além de sociedade e identidade nacional, estaria sendo elaborado

naqueles anos. Ou seja, um conceito capaz de conjugar identidade nacional e uma

representação do moderno fornecido pelo complexo urbano-industrial e, portanto, capaz

de dar conta da ambivalência notada por Richard Morse.

Tal conceito terá de ser capaz de fundamentar, também, uma compreensão de quais

instâncias poderiam promover um sentimento de público amplamente difundido,

calcado tanto na pedagogia civilizadora das instituições da sociedade moderna – como a

escola e as agências técnicas – como no sentimento do que é comum àqueles a quem o

público pode-se referir como tal. A idéia de público, para que assim seja percebida,

supõe que os indivíduos se percebam como iguais, como portadores de direitos comuns,

com base em algum liame social que os iguale. Nas sociedades democráticas, esse liame

é fornecido pela própria idéia de cidadania, o que significa também ser cidadão de um

Estado. Conforme nota Hobsbawm (2002) na Europa, a condição de sentir-se cidadão

foi promovida pelo patriotismo estatal, em virtude da sua busca de novas formas de

lealdade. No entanto, em um contexto em que movimentos sociais, como o

nacionalismo, e o socialismo rivalizavam com ele na disputa por lealdade, coube ao

Estado mobilizar os sentimentos referentes a um passado comum mais distante para que

a idéia de cidadania pudesse ser mais profundamente sentida como um valor dos

próprios cidadãos. Ou seja, uma identidade nacional teve de ser elaborada, no que

ocorre a aproximação do patriotismo estatal com o nacionalismo.

Na análise do pensamento de Florestan Fernandes aqui realizada, vimos que, na

promoção do público, o Estado é descartado em vista da própria compreensão que o

autor tem do comprometimento do Estado com a ordem tradicional. A promoção do

público parece ser tarefa da escola, das agências técnicas e da própria sociologia. Mas

podemos nos perguntar quem financiaria esses empreendimentos. Gellner escreve que,

mesmo em uma sociedade que deriva sua pujança econômica do investimento privado,

coube ao Estado o financiamento da educação em massa. Então, parece-me que uma

atenção ao Estado brasileiro – como ente que procura modificar-se internamente na

forma de racionalização da sua burocracia e na forma de uma maior penetração na vida

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

cotidiana dos indivíduos – deveria ser considerada como constitutiva do processo de

modernização da sociedade inteira. A antropologia, por sua vez, parece estar mais

preocupada com a questão cultural, realizando, de forma sistemática, como saber

especializado, as pesquisas que os nacionalistas na Europa fizeram na intenção da luta

política, seja contra os Estados, ainda dinásticos, e o Estado estrangeiro, seja contra

antigos privilégios baseados em desigualdades tradicionalmente legítimas.

Por isso, então, penso que um conceito mais abrangente terá de ser capaz de

fornecer uma compreensão do que é entendido nos anos 1950 como sociedade moderna,

isto é, urbana e industrial; como sociedade depositária de uma identidade nacional há

longo tempo em construção; e, ainda, do papel do Estado como agente histórico atuando

na intenção do interesse próprio na busca de lealdades políticas de novo tipo. Esse

conceito comporta, assim, três dimensões do fato histórico-social nos anos 1950: a

sociedade complexa, o seu passado cultural e a esfera política. Esse conceito é o de

nação. Nos capítulos 4 e 5, nação será analisada como conceito sociológico, não apenas

como fundamento de uma ideologia política, a do nacionalismo. Como já escrevi, o

ISEB produziu também uma teoria da sociedade brasileira capaz de iluminar o presente

nos anos 1950. De fato, foi protagonista de uma luta ideológica, mas elaborou também

uma teoria sobre o Brasil, na qual industrialização, Estado e história são conjugados. Tal

teoria teve como fundamento o conceito de nação, o qual, como observam bem os

críticos, não deriva imediatamente da empiria histórica dos anos 1950, mas de uma

determinada compreensão da história entendida como sucessão de fases.

O meu propósito até aqui foi analisar como uma determinada representação de

nação foi elaborada em relação à idéia de sociedade no contexto da institucionalização

das ciências sociais. Gostaria agora de utilizar essa mesma discussão do método e

objetos da sociologia e da antropologia para realçar os sentimentos em relação à

cidadania que envolveu o debate nas ciências sociais. Com isso, desejo dimensionar um

pouco mais aquele contexto para além do âmbito das ciências sociais, para tentar dar

conta tanto do que as ciências sociais significaram em termos dos anseios democráticos

da época quanto da maneira como o pensamento de Guerreiro Ramos participa dessas

aspirações da época. Embora a institucionalização das ciências sociais como parte de

um projeto mais amplo de democratização social não se restrinja à experiência da qual

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

Florestan Fernandes participa,22 creio que uma análise que articule a compreensão que

teve o sociólogo do método científico e o modo como ele próprio analisa a sua trajetória

pessoal e intelectual ofereça um quadro bem amplo do cenário social encontrado pela

institucionalização.

2.6. Sociologia, “descoberta” da sociedade brasileira e cidadania

Somente de um ponto de vista típico-ideal que se podem delimitar tão

claramente os limites de cada uma das disciplinas em função dos objetos naquele

período. A escassa produção da sociologia demonstrada na tese de Gláucia Villas Bôas

não deve ser vista como sugestão da inatividade dessa disciplina, mas dos dilemas que

ela enfrenta na conformação entre a sua epistemologia e a realidade social com que se

defronta. Richard Morse, ao mencionar a reclamação de George Gurvitch da sociologia

paulista, não está sugerindo tal inatividade, mas o debruçar-se sobre uma temática

destoante dos propósitos que a traz ao mundo. O que Richard Morse qualifica como

temas de “fascinação primitiva”, identificando neles uma preocupação com a identidade

nacional, pode ser o que Maria Arminda do Nascimento Arruda caracteriza como

“objeto de estudo nitidamente antropológico”, ao se referir aos estudos de Florestan

Fernandes: A organização social dos Tupinambá (tese de mestrado defendida em 1947)

e A função social da guerra na sociedade tupinambá (tese de doutorado defendida em

1951). Com base nesses estudos, Maria Arminda faz comentários acerca da relação

entre sociologia e antropologia naquele momento das ciências sociais:

“...a investigação sociológica das sociedades indígenas, realizada por Florestan Fernandes, expressa um momento característico das ciências sociais no Brasil, onde as distinções entre sociologia e antropologia encontram-se nubladas”. (Arruda, 1995, p. 147)

Se o objeto não assegura a distinção entre os campos, caberá ao método tal

tarefa: “...as distinções dizem respeito ao modo como se interpreta e se analisa o objeto.

O que significa, explicitamente, a maneira de sua construção” (Arruda, 1995, p. 148). A

discussão sobre o método apropriado, preciso, é inseparável dessa fase de

22 Sobre isso, ver Oliveira (1995) e Vianna (1997).

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

institucionalização e legitimação das ciências sociais, em especial da sociologia. Maria

Arminda observa uma “obsessão teórico-metodológica” na personalidade intelectual de

Florestan Fernandes:

“A obsessão teórico-metodológica, da mesma forma, ganha relevo, a partir da natureza do empreendimento: tratava-se de atribuir legitimidade acadêmica à disciplina sociológica. Florestan, ao viver à condição peculiar de scholar, buscou realizar a tarefa que coube a Durkheim e a seus discípulos na França: assentar as bases da sociologia acadêmica. A ênfase na importância da teoria segue a lógica do grupo francês. Inclusive o estilo da exposição onde encontra-se ausente a erudição de tipo literário, deslocada pela preocupação categorial, guarda parentesco com as ações do mestre francês e de sua entourage. Ao impor novos padrões de feitura das obras e transmiti-los aos seus discípulos, Florestan Fernandes criou a maneira acadêmica de reflexão, rompendo os modelos do passado.” (Arruda, 1995, p. 144)

É por intermédio dessa preocupação com o método que se pode apreender a

segunda condição da sociologia apontada por Florestan: a existência de “um complexo

suporte institucional e estrutural”, o qual nas sociedades européias e americana se

formou paralelamente ao desenvolvimento da sociedade capitalista (Fernandes, 1977b,

p. 25). Como se verá mais adiante, a elaboração e observação de métodos rigorosos é

consubstancial à institucionalização das ciências sociais. Ainda que a sociologia apareça

capitaneando esse processo, observa-se que o método configura-se como uma solução

para os impasses quanto a delimitação dos campos. O método ganha força

universalizante, capaz de se impor ao particularismo dos objetos que, por sua vez,

ameaçam projetar-se sobre as diferentes disciplinas.

Por ora é importante especular sobre o significado das preocupações com o

método não apenas como esforço de legitimação da sociologia, mas também como

preocupação consubstancial a uma compreensão do que seja o moderno e do empenho

de modernização do país.

Destaca-se na citação anterior o desejo de rompimento com o tipo de reflexão

realizado no passado. Trata-se do rompimento com o estilo ensaístico e literário que

caracterizou as chamadas “grandes interpretações do Brasil”. Para Florestan Fernandes,

a mudança de estilo permitida pela observação do rigor científico significava a

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

superação de um tipo de escrita comprometido com uma “visão estamental da cultura”

(apud Arruda, 1995, p. 133). De acordo com o que Santos (1978) denomina “matriz

institucional”, assenta-se aí a perspectiva que designa uma ruptura entre o passado não

científico das reflexões sobre a sociedade e a fase que inaugura a perspectiva científica

ou institucional. Mas essa ênfase no método e no rigor contra a visão estamental pode

ser vista, também, de um outro ângulo, se se considera a importância que a universidade

tem na vida pessoal e profissional de Florestan. Pode-se deduzir que a defesa de uma

reflexão estribada na ciência, para além do rigor, significava também a defesa da

democratização quanto ao acesso à atividade intelectual. A existência de um espaço

legítimo de elaboração dos cânones científicos e, conseqüentemente, de legitimação da

atividade intelectual permitiria a formação de uma comunidade cujos membros se

distinguiriam pelo mérito acadêmico. O talento, não o privilégio, constituiria o acesso à

atividade intelectual.

Façamos uma incursão pelos caminhos que levam Florestan à defesa do método

e à perspectiva institucional e sociológica pelo ângulo apontado anteriormente. O texto

utilizado é a sua autobiografia.

Oriundo da classe social baixa, cujo universo, na São Paulo dos anos 1920, é

descrito como um mundo social à parte, praticamente invisível à elite da cidade, a

universidade revelou-se a Florestan Fernandes um lugar onde o talento se impõe em um

mundo habitado por “tubarões e sardinhas”. É na universidade, também inóspita ao

“cheiro da ralé”, que os preconceitos de classe cedem diante do jovem talentoso, cioso e

crítico dos ensinamentos que lhe permitiam olhar com novas lentes um mundo cujos

compartimentos só se revelam através de “frestas”. Florestan se ufanava da universidade

que encontrara? Não.

Iniciado no saber sociológico na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,

Florestan desde logo se percebe novamente confinado. Entre a universidade e o mundo

que desde cedo conhecera havia uma imensa distância. Incomoda-se, então, com os

limites impostos à eficácia do saber adquirido, limites estes que impunham o risco de

substituir-se um “provincianismo cultural” por um “artificialismo intelectual” vazio. A

universidade promovia um novo modo de pensar, mas não lograva conhecer a realidade,

também condição de emancipação do pensamento em face do saber transplantado. Isso

tornava precário aquele ensino. Na metade dos anos 1940, Florestan testemunha

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

tentativas cegas de superação do colonialismo cultural, o que, em parte, se devia à auto-

satisfação que o prestígio conferido pela universidade permitia. Em meio às

circunstâncias que favorecem o seu sucesso pessoal, uma deixa entrever o ufanismo

reinante no meio universitário. Chama-lhe atenção a repercussão própria que adquire

por meio dos artigos publicados na revista Sociologia, em O Estado de S. Paulo e na

Folha da Manhã, o que lhe conferia “prestígio de letrado”. A repercussão se devia a

“uma certa densidade e uma certa intensidade na comunicação do ‘público’ com o

‘escritor’” (Fernandes, 1977, pp. 164-5), o que fazia crer que as “proezas da Europa”

poderiam ser realizadas aqui através dos “monstrinhos sagrados da ciência”. Florestan

sugere uma das razões de tanto sucesso e engano: o público da universidade era a

própria universidade.

A memória de Florestan sugere que o confinamento da universidade era ele

próprio causa e efeito da distância que mantinha com a sociedade. De um lado, a

impermeabilidade da sociedade e, conseqüentemente, a ausência de pressão sobre a

atividade intelectual. De outro, a auto-satisfação de uma elite letrada comprazida pelo

prestígio, impedida de se perceber mera repetidora das luzes européias.

Se a universidade era causa e efeito dessa distância, caberia também ser ela

causa e efeito da aproximação. A mudança do efeito deveria vir pela percepção e crítica

dos limites do saber transplantado, a partir dos “choques” com a realidade circundante:

“Todo ensino transplantado é, forçosamente, precário. No processo de aprender e transformar-se, o colonizado ignora a natureza do drama. Todavia, quando ele procura, por uma razão ou por outra, explorar praticamente os conhecimentos, as técnicas e instituições transplantados, se estabelecem os choques com a realidade e termina o ‘sono letárgico’. Aí a implantação passa a ser vista sem os óculos cor-de-rosa dos agentes externos da operação: os limites mostram se ela contém algum êxito ou se deve ser abandonada.” (Fernandes, 1977, p. 165)

A partir dessas linhas, que parecem exortar: “Transponhamos o muro!”, se

inicia, talvez, aquela obsessão pelo método, apontada por Maria Arminda. Neste ponto,

também o início da polêmica que iria marcar essa fase da institucionalização das

ciências sociais: aquela entre Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes. No horizonte da

ênfase no método e no rigor científico estavam em mira dois objetivos. Primeiramente,

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

construir o campo das ciências sociais no Brasil, o que pressupunha um certo grau de

independência com relação ao saber adquirido. Essa independência se lhe afigurava

inextrincavelmente ligada à pesquisa, o que permitiria tanto a aplicação do saber quanto

uma personalidade própria à sociologia no Brasil, em virtude da especificidade das

temáticas a serem abordadas. A pesquisa, por sua vez, pressupunha e promovia a

institucionalização do papel de sociólogo. Como se observa na citação a seguir, a

universidade, por meio das atividades de ensino e pesquisa, adquire um papel central na

moldagem de um padrão (por que não dizer?) “nacional” da ciência social no Brasil:

“O que impediu que essa acomodação se desse não foi a pressão externa da sociedade e da história, às quais seria possível adaptar um novo tipo de inércia cultural, mas a compulsão dos papéis intelectuais institucionalizados, que nos obrigava a ‘dizer algo’, seja para o estudante, na salas de aula, seja para os especialistas e o público, através da pesquisa. E esse algo tinha de ser dito segundo certo padrões, muito altos, que nos encadeava ao processo de ensino e de pesquisa como ele se desenrolava no exterior, nos centros de investigação dos quais importamos nossos modelos.” (Fernandes, 1977, pp. 167-8)

O outro objetivo, e o que mais de perto interessa aqui, é o descobrimento da

sociedade brasileira. Como se pode observar por meio do seu descontentamento com o

ensino da sociologia, ela não lograva aproximar universidade e sociedade. A pesquisa

seria o meio pelo qual isso seria possível. Na resposta que dá, em 1958, às críticas de

Guerreiro Ramos ao estudo dos “detalhes da vida social”, Florestan ressalta a

importância desses estudos tanto no desenvolvimento da ciência quanto no

conhecimento da realidade nacional:

“Além disso é preciso atentar para o significado da investigação dos ‘detalhes da vida social’ num país como o Brasil. A sociedade brasileira caracteriza-se pelo fato de congregar regiões que apresentam graus diferentes de desenvolvimento interno, seja econômico, seja sócio-cultural. Por isso, a escolha conveniente e o estudo intensivo de ‘detalhes’ típicos de certas regiões representam uma alternativa realmente segura de conhecimento das ‘estruturas nacionais e regionais’.” (Fernandes, 1977, p. 69)

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

Desta breve incursão nas reflexões de Florestan sobre esse período da

institucionalização das ciências sociais ressaltam-se algumas considerações a respeito

da relação entre essa época e a sociedade brasileira naquele contexto. Em primeiro

lugar, a universidade como lugar de realização de aspirações democráticas, o que,

segundo a experiência pessoal do sociólogo paulista, é representado pela possibilidade

de acesso à atividade intelectual por meio do mérito. Além disso, essa possibilidade

seria tanto mais “real” na medida em que padrões para o exercício intelectual fossem

definidos através da teoria e do método. Em segundo, a relação entre o debate sobre o

método e o que chamo de “redescobrimento” da sociedade brasileira, o que significa,

em Florestan Fernandes, o conhecimento do universo popular por meio dos estudos de

comunidade.

Foi sobre questões de método que o debate entre Guerreiro Ramos e Florestan

Fernandes ocorreu. A última citação que fiz é uma resposta de Florestan à crítica de

Guerreiro Ramos à sociologia acadêmica. Em 1953, entre os dias 10 e 17 de junho,

ocorreu o II Congresso Latino-Americano de Sociologia, onde Guerreiro apresentou

sete recomendações, todas rejeitadas. Dentre elas, destaco duas às quais Florestan se

refere:

“No estádio atual de desenvolvimento das nações latino-americanas e em face de suas necessidades cada vez maiores de investimentos em bens de produção, é desaconselhável aplicar recursos na prática de pesquisa sobre minudências da vida social, devendo-se estimular a formulação de interpretações genéricas dos aspectos global e parciais das estruturas nacionais e regionais.” (Ramos, 1956, pp. 77-8)

“É francamente desaconselhável que o trabalho sociológico, direta ou indiretamente, contribua para a persistência nas nações latino-americanas, de estilo de comportamento de caráter pré-letrado. Ao contrário, no que concerne às nações indígenas ou afro-americanas, os sociólogos devem aplicar-se no estudo e na proposição de mecanismos de integração social que apressem a incorporação desses contingentes humanos na atual estrutura econômica dos países latino-americanos.” (Ramos, 1956, p. 78)

A despeito das divergências sobre o método mais adequado à compreensão da

sociedade brasileira, considero mais importante a aproximação entre eles no que diz

respeito à compreensão que ambos têm da sociologia como instrumento de

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

democratização. Por vias distintas, é bem verdade. Como observa Vianna (1997), em

Florestan Fernandes encontramos uma compreensão em que “a luta contra o

subdesenvolvimento e o atraso dependeria menos de uma modernização econômica

induzida pelo Estado do que de uma reforma da sociedade promovida por um sistema

educacional democrático” (Vianna, 1997, p. 191). Descrente de um Estado com raízes

patrimoniais, o caminho para a modernização teria de ser o da “reforma da sociedade

civil”. Guerreiro Ramos alinha-se mais à alternativa oposta, que “confiaria a quebra do

padrão e subdesenvolvimento ao Estado e à modernização conduzida por ele” (Vianna,

1997, p. 192).

Além desse envolvimento da sociologia pela questão da democratização, uma

preocupação com o nacional e uma maneira própria de aplicação da sociologia estão

presentes em ambos. Como escrevi antes, uma crítica às transplantações de forma

acrítica também é feita por Florestan Fernandes. Do mesmo modo, uma compreensão

sobre uma distância cultural e social entre as classes sociais no Brasil também é

percebida como entrave ao moderno. Para Guerreiro Ramos, uma “substituição de

importações” no campo cultural seria, talvez, o fator mais decisivo na superação do

subdesenvolvimento. O caráter de importador acrítico de idéias estrangeiras é objeto por

excelência dos seus estudos sobre o pensamento social e político brasileiro, conforme

veremos mais adiante.

Uma outra proximidade, que como as assinaladas anteriormente pode ser

entendida no contexto de uma sociedade em transição para o moderno, é a que diz

respeito ao caráter “mannheimiano” com que os paulistas percebiam o papel do

intelectual e a destinação social dos produtos das ciências sociais. Em São Paulo, as

ciências sociais, orientadas por um ideal “mertoniano” de comunidade científica, terão

de ser “combinadas”, como observa Vianna, com a sociologia do conhecimento e dos

intelectuais de Mannheim. De acordo com a concepção de Merton, a comunidade

científica, dispondo de autonomia em relação a outros valores do mundo social,

disponibilizaria o conhecimento produzido “aos atores sociais e políticos sobre o que

era obscuro e irracional na vida em sociedade, viabilizando uma ação racional para o

equacionamento e eventual solução de determinados problemas da coexistência

humana” (Vianna, 1997, p. 186). A condição para que tal comunicação ocorresse era

que houvesse uma relação de homologia entre “ciência e representação política e

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

social”. Não era assim que a estrutura social e política era percebida pelos intelectuais

paulistas, ou seja, como portadora de representações civis e políticas confiáveis. Daí

que, conforme nota Vianna, a comunidade científica deve intervir, mediada por uma

“síntese total” procedente das diversas sínteses e formulada pela ciência social. Desse

modo, a comunidade mertoniana se conduziria de modo mannheimianno tanto no que

diz respeito à produção da “síntese total” quanto no modo como concebe seu papel

como intelligentzia. A intervenção seria no sentido da reforma da sociedade civil por

meio da educação, não em aliança com o Estado.

Se, conforme podemos deduzir da análise de Vianna, a sociologia do

conhecimento de Mannheinn levou a sociologia em São Paulo a um descredenciamento

de atores políticos e sociais de um papel modernizador, propondo, como compreendo,

uma total reinvenção da sociedade brasileira por meio da educação orientada pelas

ciências sociais, o mesmo não ocorre com o “mannheimianismo” de Guerreiro Ramos.

Certamente, ele credita à produção de sínteses totalizantes e a uma atitude militante dos

intelectuais um fator decisivo à modernização política e social. Porém, como veremos, a

recepção do pensamento de Mannheim por Guerreiro é condicionada pelo modo como

compreende a formação histórica brasileira pela “dualidade básica”.23 Com essa

compreensão, Guerreiro vai, além de remontar a modernidade brasileira a um passado

mais distante daquele que informa a ciência social em São Paulo, poder encontrar na

estrutura social atores políticos e sociais confiáveis no processo de modernização. Entre

esses atores, como partidos, cientistas sociais, economistas, trabalhadores, empresários,

Exército e estudantes, estaria o próprio Estado. O papel da sociologia seria o de

esclarecer esses atores quanto ao sentido da modernização, sendo então imprescindível

uma teoria capaz de produzir uma síntese histórico-social da existência coletiva

brasileira.

No próximo capítulo, passo à análise do pensamento de Guerreiro Ramos. Neste

capítulo, estarei mais interessada em analisar o processo de formação intelectual do

23 O conceito de dualidade básica, formulado por Ignácio Rangel, e o modo como Guerreiro vai desenvolvendo uma percepção do país em termos de dualidade serão analisados a partir do final do terceiro capítulo. Ao utilizar o termo condicionado, não quero dizer, com isso, que Guerreiro, ao tomar conhecimento de Mannheim ou, mais precisamente, da sociologia do conhecimento, já tivesse bem claro para si a idéia de dualidade. Seria condicionado mais no sentido da relação que Guerreiro vai estabelecendo entre o modo como vai compreendendo a formação histórica brasileira e a recepção do pensamento de Mannheim. Podemos dizer que o modo como Guerreiro recepciona a sociologia do

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Capítulo 2 – Dilemas do conceito de nação no contexto de institucionalização das ciências sociais

sociólogo que vai resultar nos seus escritos na década de 1950, especialmente a partir de

1955, no ISEB. Como veremos, trata-se de um pensamento que vai se desenvolver

dentro do Estado, em uma de suas agências, o Departamento Nacional da Criança, e

depois no DASP. É nesse contexto, em que o pensamento se desenvolve em

proximidade com o Estado, que Guerreiro vai poder perceber uma dinâmica de

modernização política e social interna a esse aparelho político. Desse modo, uma

compreensão positiva quanto ao papel do Estado, como participante do processo de

modernização, vai ser desenvolvida “em ato” e defendida nos anos 1950.

Em suma, para concluir, as duas concepções, a da sociologia e seu método e a da

sociedade brasileira, representadas em Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos, devem

ser vistas não como excludentes entre si, mas como maneiras distintas de se

compreender a modernização brasileira, possíveis em um mesmo cenário histórico,

aquele em que a democratização passa a se constituir na principal questão do

pensamento social. A diferença seria quanto às vias pelas quais ela poderia ocorrer, e da

reflexão sobre essas vias resultou a rica produção intelectual dos anos 1950.

conhecimento é interpretado por ele próprio à luz dessa mesma sociologia, ou seja, como histórica e socialmente (melhor seria, nacionalmente) condicionada.

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Capítulo 3

O sociólogo em “mangas de camisa”

3.1. O contexto da crítica de Guerreiro Ramos à sociologia acadêmica

Podemos dizer que o Guerreiro Ramos mais conhecido pela história do

pensamento social brasileiro é aquele dos escritos polêmicos, nos quais questiona a

produção sociológica acadêmica e reivindica uma sociologia nacional. Em obras como

A Cartilha do Aprendiz de Sociólogo (1956)24 e A Redução Sociológica (1965),

Guerreiro Ramos demarca uma das arenas em que exerceu sua militância em favor do

nacionalismo. Essa arena – a da sociologia ou ciências sociais –, por sua vez, esteve

circunscrita a um espaço institucional onde atividades relacionadas a pesquisas e ensino

eram desenvolvidas. Trata-se do ISEB – Instituto Superior de Estudos brasileiros, criado

em 1955.

O ISEB teve origem na iniciativa de intelectuais que, em agosto de 1952,

passaram a se reunir no Parque de Itatiaia com o objetivo de discutir sobre problemas

nacionais, bem como elaborar um projeto de desenvolvimento para o Brasil.25 Alguns

dos organizadores do grupo eram diretamente ligados à administração Vargas, o que já

indica as relações estreitas que o grupo pretendia manter com o governo e o papel que

desejava desempenhar nas decisões governamentais. O grupo se dissolveu em 1953, e 24 “A Cartilha do Aprendiz de Sociólogo” foi publicada em Introdução Crítica à Sociologia Brasileira (1956), e A Redução Sociológica foi publicada originalmente em 1958. 25 Os intelectuais do ISEB se autoconceberam como intelligentzia na acepção oferecida por Mannheim. Para este, a possibilidade de a intelligentzia se constituir como ator político acima das classes sociais estaria diretamente ligada à condição que a vida moderna oferecia de que se formasse esse estrato social independente. Isso porque ela permitiria o alargamento da área de recrutamento desse grupo social. Um traço marcante na concepção de Mannheim é a heterogeneidade social da intelligentzia. O vínculo que lhe

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

foi criado o IBESP – Instituto Brasileiro de Economia e Política, que deu seqüência aos

propósitos que levaram à primeira reunião, isto é, à elaboração da ideologia do

desenvolvimento. No sentido de difundir suas idéias e propósitos, foi criada a revista

Cadernos do Nosso Tempo, que teve seu primeiro número em 1954. Com a morte de

Vargas, diante de quem o grupo desfrutava de prestígio, segundo Alzira Abreu (1975),

os membros do IBESP ficaram temerosos de perder sua posição, e procuraram, então,

estreitar laços e apresentar a idéia de criar um centro de altos estudos sobre a sociedade

brasileira ao novo ministro da Educação, Cândido Motta Filho. Depois de muitas

conversas, o ministro saiu convencido de que faltavam, no cenário intelectual brasileiro,

instituições capazes de desenvolver estudos diretamente ligados à “realidade brasileira”

e destinados à formação de “quadros técnicos e de dirigentes do país” (Abreu, 1975, p.

106). Assim, em 14 de julho de 1955 foi baixado o decreto que fundou o ISEB, o qual

passou a estar diretamente subordinado ao Ministério da Educação e da Cultura.

O ISEB foi estruturado em vista do propósito que levou à sua criação, ou seja, a

formação de quadros técnicos. Para isso, suas atividades consistiam no oferecimento de

um curso regular com duração de um ano, destinado a pessoas portadoras de diploma

universitário e que desempenhassem papel relevante em organizações públicas e

privadas. Além do curso regular, o instituto incumbia-se de realizar conferências,

oferecer cursos extraordinários e publicar.

As disciplinas que compunham o curso regular eram economia, filosofia,

sociologia e história. Guerreiro Ramos era o sociólogo do grupo de professores, e pode-

se dizer que é por meio de suas atividades desde o IBESP que ele ganha visibilidade

como intelectual das ciências sociais diante da comunidade que vinha, então,

simultaneamente, se firmando nesse campo de saber e, assim, firmando-o também.

3.2. O sociólogo em habitus

Em A Redução Sociológica, Guerreiro Ramos propõe que se distinga a

“sociologia em hábito” da “sociologia em ato”.26 Ao utilizar essa distinção na crítica

daria uma identidade seria tão-somente sociológico: “a educação que os enlaça de modo surpreendente” (Mannheim, 1972). 26 A palavra habitus é atribuída a Aristóteles, e significa uma “aptidão inata, ou adquirida pelo treinamento”. A sociologia nacionalmente engajada exigiria do sociólogo essa capacidade do habitus, o que lhe permitiria “utilizar sociologicamente o conhecimento sociológico” (Ramos, 1963, p. 129).

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

que faz à sociologia acadêmica, procura diferenciar o que considera ser o cientista social

meramente “alfabetizado em sociologia” (Ramos, 1965, p. 129) daquele que, além da

formação escolar, teria corroborado sua formação com a experiência.

A idéia de saber em hábito parece expressar bem a avaliação do sociólogo da sua

própria trajetória intelectual. Credenciado com um diploma universitário em ciências

sociais, obtido na Faculdade Nacional de Filosofia, em 1942, Guerreiro Ramos parece

ter dado pouca ou nenhuma importância à educação formal recebida naquele

estabelecimento. É o que ele sugere em entrevista concedida a Lucia Lippi e Alzira

Abreu (1995), quando se refere aos professores de forma nada lisonjeira. Seu

treinamento intelectual parece ter vindo mesmo a partir das atividades que desenvolveu

no Departamento Nacional da Criança (DNC), para onde foi indicado em 1943 e onde

desenvolveu estudos sobre mortalidade infantil, puericultura e medicina popular. No

final desse mesmo ano, Guerreiro foi nomeado técnico de administração do

Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), onde, segundo ele:

“Analisava projetos de organização de departamentos, como o Departamento de

Agricultura, de penitenciárias, ia para as repartições e dava nova forma, pois eles

precisavam se reorganizar” (Oliveira, 1995, p. 146).

Durante a época no DASP, Guerreiro também escreveu vários artigos na seção

“Bibliografia” da Revista do Serviço Público, entre os anos 1946 e 1949. Por meio

desses artigos, podemos acompanhar como vai se dando a sua aproximação com os

pensadores clássicos e contemporâneos das ciências sociais, como Marx, Weber,

Durkheim, Karl Mannheim, Donald Pierson, entre outros. Nesses artigos, os quais

possuem um caráter mais de divulgação do pensamento dos autores, percebemos a

figura de um sociólogo que procura consolidar a sua formação por uma via quase

autodidata. É por essa época que Guerreiro escreve O Processo da Sociologia no Brasil,

que será publicado em 1953. Nesse livro, ele analisa criticamente a sociologia no Brasil

e desenvolve conceitos como de transplantação e autenticidade, que constituirão a base

da história crítica que realizará do pensamento social e político brasileiros, do Visconde

de Uruguai até os seus dias.

O saber que vai se desenvolvendo em hábito ganha maior impulso a partir de

1951, quando Guerreiro participa da equipe de assessores do governo Getúlio Vargas na

Casa Civil. Segundo suas próprias palavras, é nessa época que ele pode ver “o governo

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

mais diretamente” e “compreender o governo do Brasil” (Oliveira, 1995, p. 147). Na

assessoria, trabalhou junto com aqueles que foram alguns dos principais economistas da

linha nacional desenvolvimentista: Rômulo de Almeida, que era o chefe da assessoria

econômica, Jesus Soares Pereira e Inácio Rangel (Bielschowsky, 2000, p. 127).

Ao comentar sua participação no Teatro Experimental do Negro, enfatiza o

papel que a prática exerceu na sua produção teórica:

“Na minha vida profissional, aliás, em certo sentido, a prática precedeu a teoria. A nova teoria sobre relações de raça no Brasil, que consegui fazer vitoriosa em nosso meio, representa a indução de uma ‘práxis’. O Teatro Experimental do Negro me possibilitou a ‘práxis’ do ‘problema’ e depois dela cheguei à teoria. O mesmo aconteceu com os meus estudos sobre mortalidade infantil e sobre problemas administrativos, econômicos e políticos do país. Quem não age, quem não participa do processo societário não compreende a sociedade.” (Ramos, 1956, p. 210)27

A aproximação com o governo, o contato com os economistas e com o nacional-

desenvolvimentismo constituirão os ingredientes finais de um pensamento que,

doravante, vai atuar na arena das ciências sociais, conclamando a uma atitude engajada

e comprometida com a causa do nacionalismo. A partir dessa época – 1951 –, em que o

grupo de Itatiaia começa a se reunir, datam as publicações dos estudos críticos do

pensamento social brasileiro, por meio dos quais Guerreiro resgata o pensamento do

passado.

27 O engajamento político na militância negra constitui um dos modos com que Guerreiro Ramos vai desenvolvendo uma reflexão mais ampla sobre a sociedade brasileira. De acordo com Marcos Chor Maio (1997), os primeiros escritos de Guerreiro sobre as questões raciais datam de 1946. Nas reflexões dessa época, podemos perceber uma compreensão sociológica das relações raciais no Brasil, pois Guerreiro identifica um preconceito de classe, o qual, segundo ele, é compreendido à luz de “nossa formação histórica”. A partir de 1949, Guerreiro se engaja na militância do Teatro Experimental do Negro (TEN), movimento cultural criado em 1948 por Abdias Nascimento. Nesse período, o “problema do negro” será abordado considerando-se quatro aspectos: o preconceito de cor; as diferenças regionais; as de classe e a divisão rural versus urbano (Maio, 1985, p. 275). Maio sugere uma relação entre a militância no TEN e a influência de intelectuais das colônias africanas e antilhanas, empenhadas no movimento de descolonização, no pensamento de Guerreiro Ramos. No capítulo 4 desta tese, destaco como as idéias de diferenças regionais, de rural versus urbano ao lado das idéias dos intelectuais africanos foram fundamentais tanto na compreensão que Guerreiro tem do Brasil como nação como o que ele entende serem as atitudes política e cognitiva necessárias à autodeterminação nacional.

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

3.3. Quadro histórico da formação: o burocrata e o intelectual

A formação de um pensamento que, a partir de 1953, se expressa bem nas

recomendações apresentadas no II Congresso Latino-Americano de Sociologia, das

quais resultou A Cartilha do Aprendiz de Sociólogo, deve ser compreendida no interior

de uma constelação que podemos qualificar como histórica. Primeiro, as iniciativas

voltadas para a racionalização administrativa do Estado brasileiro sob o Estado Novo;

segundo, os conflitos sociais da primeira metade do século XX, que, segundo Arrigh

(1997), colocaram em pauta preocupações com o “homem comum”; terceiro, a

constituição do campo das ciências sociais como instrumento de democratização; e

quarto, a formulação da teoria econômica do subdesenvolvimento.

Nesta seção vou analisar dois textos que considero importantes no foco que

quero lançar sobre quatro aspectos. O primeiro desses aspectos trata da recepção da

sociologia por Guerreiro Ramos: como ele compreende o papel desse saber como

instrumento da democracia e de ampliação dos direitos de cidadania, e como que, com

a abordagem sociológica de dois problemas – o da mortalidade infantil e o da

delinqüência juvenil –, ele tanto chama a atenção para uma concepção vigente das

causas das desigualdades sociais como reelabora essa concepção, no sentido de

redirecionar as políticas públicas voltadas para os referidos problemas. O segundo

aspecto diz respeito ao processo de formação intelectual de Guerreiro como sociólogo

por meio do exercício prático desse saber. Nesse ponto lançarei luz sobre a farta

literatura sociológica utilizada por ele e a influência da sociologia americana nesse

processo de formação. O terceiro é o que se refere ao papel de Guerreiro como um

construtor e formador do campo da sociologia no Brasil, contribuindo, ainda que fora

da universidade, para a divulgação e aceitação social desse saber em um contexto em

que as questões sociais eram tratadas de um ponto de vista biológico ou racial. O

quarto aspecto, por sua vez, relaciona-se ao modo como Guerreiro alcança uma

compreensão positiva do Estado como instrumento de democratização.

Os textos são Aspectos Sociológicos da Puericultura (1944), e O Problema da

Mortalidade Infantil (1951a). Embora publicados em datas relativamente distantes

uma da outra – o que é significativo, por indicar a incorporação de mais conteúdos e

preocupações no desenvolvimento do pensamento do autor –, esses textos esclarecem

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

como, a partir de uma questão efetiva, Guerreiro foi elaborando uma concepção da

sociologia como saber engajado e comprometido com o que, mais adiante, poderemos

entender melhor serem as questões nacionais na sua concepção.

Aspectos Sociológicos da Puericultura foi escrito com finalidades didáticas

para médicos e estudantes que buscavam especialização em puericultura nos cursos do

DNC28. A intenção do texto, segundo Guerreiro, era a de aproximar os estudantes da

“nova mentalidade sociológica” e “chamar a atenção dos médicos para os problemas

importantes que estão sendo debatidos na esfera da sociologia” (Ramos, 1944, p. 9).

Nessas frases de abertura já se anunciam tanto uma nova sensibilidade no tratamento

de uma questão que até então vinha sendo focalizada de um ponto de vista

exclusivamente médico e higienista, como o caráter de novidade da sociologia no

âmbito de saberes mais longamente consolidados no Brasil, como a medicina, que

seria a principal matriz explicativa do caráter social das doenças. Na nota prévia ao

texto, Gastão de Figueiredo, diretor da Divisão de Cooperação Federal do DNC,

refere-se do seguinte modo ao trabalho:

“Foi muito feliz o autor quando acentuou a íntima conexão da sociologia com a puericultura, cujo conhecimento facilitará a solução de inúmeros casos, tantas vezes demorada porque geralmente as medidas suscitadas não excediam o âmbito restrito da medicina ou da higiene. A persistência nessa orientação é contraproducente e não encontra apoio na evolução dos conhecimentos atuais.” (Ramos, 1944, p. 6)

Em seguida, Guerreiro identifica ainda outra conexão entre o trabalho do DNC,

a abordagem sociológica e a democracia. Ao estabelecer essa conexão, ele indica o

ambiente ideológico em que a reflexão vai prosseguir. Referindo-se ao DNC como uma

das “mais importantes agências da democracia brasileira”, escreve o seguinte:

“Mais do que uma ideologia, a democracia é um serviço que se instaura. Deixou de ser simplesmente uma idéia querida ou uma vaga aspiração. É uma fase de desenvolvimento da consciência

28 Em sua análise sobre a política social voltada para a criança no primeiro governo Vargas, Cristina M. Oliveira Fonseca (1993) afirma que a preocupação com a criança, com a mortalidade infantil, com o menor abandonado e com a delinqüência juvenil estava associada à “idéia do ‘homem novo’ que daria origem a uma nova nação”. Nesse sentido, escreve Fonseca: “Proteger a criança, defender seus direitos, significava por extensão resguardar a própria nação” (Fonseca, 1993, pp. 101-2).

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

humana. É algo a que a maioria dos homens se converteu. Sua discussão, portanto, não é apenas filosófica. É também de ordem tecnológica. De certo modo, ela é um problema de engenharia social. É um serviço que deve ser planejado de maneira a transformar os direitos concedidos teoricamente ao homem comum, em realidades efetivas, ou melhor, em deveres.” (Ramos, 1944, p. 10)

Esse pequeno trecho chama a atenção para alguns aspectos relacionados ao

ambiente político no qual a sociologia é convidada a colaborar. Trata-se do seu caráter

de instrumento técnico de planificação da sociedade e do conteúdo democrático

presente nos projetos de planificação social e política. De acordo com minhas

observações, o conceito de planificação é central nas clivagens entre intelectuais da

década de 1950. Assim como o conceito de nação foi visto como exprimindo uma

inclinação autoritária ou anti-societal, creio que a opção pela palavra planificação e o

seu uso recorrente também contribuem para reforçar uma imagem autoritária daqueles

que a mobilizaram. Guerreiro Ramos, nesse mesmo texto, sugere as dificuldades

ideológicas com que o conceito se defronta, e também procura esclarecer o sentido no

qual o utiliza:

“A palavra planificação sugere muitas desconfianças. Imaginam alguns que a planificação é sinônimo de tirania. Outros, ao contrário, acreditam-na essencialmente democrática. Mas nem aqueles e estes sabem que a planificação é ‘política e moralmente neutra’. Em si mesma não é má e nem boa. É uma tecnologia social que pode ser usada para fins maus ou bons. Há vários métodos de planificar. E o dilema não é planejar a sociedade ou deixá-la entregue a si mesma. O dilema consiste em achar ou não um método democrático de planificação.” (Ramos, 1944, pp. 11-2)29

29 Conforme observa César Guimarães (2001), o pós-guerra ensejou um conjunto de “idéias-força” como: desenvolvimento, descolonização, nacionalismo e, as sinônimas, planejamento, plano e programa. A idéia de plano – ou planificação, tal como usado por Guerreiro – consagrava-se à medida que nela o caráter ideológico dos caminhos que o desenvolvimento poderia seguir, capitalismo ou socialismo, esmaecia-se. Articulado com a idéia de desenvolvimento, Guimarães acentua, “o ‘planejamento do desenvolvimento’ adquire notável implicação na economia política do pós-guerra, pois empresta substância econômica a um fenômeno político” (Guimarães, 2001, p. 158). No texto de Guerreiro de 1946, o significado do termo planificação não me parece estar, ainda, associado à idéia de desenvolvimento econômico, mas de democracia. Uma compreensão econômica da planificação será, a meu ver, resultado de um processo de estudo e reflexão da sociedade brasileira para o qual as suas atividades no DASP e no DNC contribuíram muito. Incluídos nesse processo, pode-se identificar ainda os estudos do pensamento social brasileiro e as atividades no TEN, onde, conforme observei em nota anterior, Guerreiro teria entrado em contato com as

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

Baseado em Mannheim, Guerreiro identifica na própria palavra planificação

propriedades cognitivas da sociologia. A planificação não consistiria apenas em um

instrumento político apropriado pelo Estado e suas agências, mas também em um

conceito resultante de uma forma de se conceber a vida em sociedade em um

determinado momento do seu desenvolvimento histórico. Essa forma de concepção

seria aquela em que a sociedade aparece como dotada de uma estrutura lógica, cujos

princípios poderiam ser apreendidos pelo investigador social. Tais princípios

consistiriam em um “sistema de forças atuantes em uma sociedade”, os quais, uma vez

descobertos, propiciariam “inventar as instituições novas capazes de pôr em

funcionamento a estrutura social” (Ramos, 1944, p. 13).

A planificação, segundo Guerreiro, deveria ser entendida (i) como um dado das

sociedades contemporâneas, ou de um determinado estágio de seu desenvolvimento; (ii)

sua condição de dado associa-se também à qualidade de “problema da época atual”,

outra forma de enquadrar a planificação; (iii) e ela poderia ser entendida como uma

solução, isto é, quando passa a ser uma técnica social e política. Para compreender a

condição de dado e de problema, Guerreiro recorre a uma concepção de mudança social

fundada na idéia de processo social. No texto em questão, o processo é definido como

“a série de etapas de desenvolvimento de um fenômeno”. O processo social é pensado

em analogia com fenômenos naturais e biológicos, como o processo de crescimento de

uma planta ou de um bebê.

Em princípio, as observações que estou fazendo sobre processo social podem

parecer inócuas, mas, como se verá no decorrer desta tese, essa é uma idéia central para

compreendermos a concepção dinâmica de nação de Guerreiro Ramos. No tema

específico de que me ocupo aqui, a idéia de processo está sendo reivindicada como

fundamento epistemológico de uma ciência social, cujo domínio específico está sendo

construído não só nas ciências sociais no Brasil, mas no mundo.30 Pode-se dizer que a

idéias dos nacionalistas africanos. De todas essas atividades, teria resultado uma articulação das “idéias-força” do pós-guerra no pensamento de Guerreiro Ramos em sua fase isebiana. 30 Uma das críticas que Guerreiro irá fazer às ciências sociais acadêmicas a partir de A Cartilha do Aprendiz de Sociólogo até A Redução Sociológica se refere ao que ele considera ser uma compreensão não dinâmica da realidade brasileira. Isso se deveria à importação de teorias sociológicas americanas, especialmente do “funcionalismo”. Percebo uma relação entre a crítica de Guerreiro Ramos e a que faz Norbert Elias ao que considera ser uma crise das ciências sociais. Na introdução à edição de 1968 de O Processo Civilizador (1990), o autor sugere uma crise por que estariam passando as teorias sociais baseadas na idéia de processo. A crise se revelaria no contexto de afirmação das teorias funcionalistas, em especial a de Parsons. Segundo o autor, verificar-se-ia uma época em que as teorias sociológicas que

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

analogia com os fenômenos naturais e biológicos tem a ver com uma preocupação

quanto ao fundamento científico da própria sociologia. Conforme vimos na citação

sobre as desconfianças em relação à planificação, Guerreiro ressalta o seu caráter

neutro, nem bom nem mal, ou seja, passível de uma inferência não valorativa. O

processo social seria, então, ele mesmo uma lei histórica e social irrefutável, e que

poderia ser tomado como uma constante na análise de qualquer fenômeno social em

determinadas épocas.

Desse modo, Guerreiro pretende demonstrar que a planificação é a resultante de

um longo processo histórico. Em um texto de 1946, “Notas sobre Planificação Social”,

o autor explica esse processo recorrendo a Mannheim e, além deste, aos clássicos como

Comte, Durkheim, Hegel, Marx e Weber, os quais teriam contribuído para a

compreensão da planificação como uma “etapa da evolução social”. Baseado nesses

autores, Guerreiro compreende que a “civilização ocidental” teria passado por quatro

estágios ou fases, que descrevo repetindo suas palavras: a) a fase da solidariedade da

horda; b) a fase da solidariedade estamental; c) a fase da competição individual; e d) a

fase da solidariedade superindividual, ou da planificação. Não vou me deter em cada

uma delas, bastando assinalar que esse esquema marca um compasso em que a

sociedade evolui em uma direção na qual a diferenciação social vai ficando cada vez

mais acentuada e, com isso, acarretando problemas de desorganização social em vista

do enfraquecimento da comunidade sobre os indivíduos. Nota-se aí a influência de

Durkheim sobre Guerreiro, cujo pensamento é objeto de um artigo na Revista do

Serviço Público, no número de outubro e novembro de 1946.31

Guerreiro deriva desse processo de diferenciação social as possibilidades

mesmas de que a planificação pudesse vir a ser um instrumento de democratização sem

estar em contradição com a dinâmica interna desse processo. Para isso, ele ressalta o

“princípio da competição”. Tal princípio, além de expressar a liberação dos indivíduos

de pertencimentos sociais fixos, como família, estamentos e condições derivadas do

nascimento, colocaria em evidência o fato de que “a ordem social, à luz do novo

procuravam “modelos de desenvolvimento social a longo prazo” estavam sendo substituídas por outras, que “se interessam principalmente por modelos de sociedades em estado de repouso e imutabilidade” (Elias, 1990, p. 224). 31 Todos os artigos de 1946 foram orientados pela idéia de planificação.

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

princípio (a competição), não é algo estabelecido de uma vez por todas, mas uma ordem

precária que pode ser incessantemente modificada” (Ramos, 1946, p. 164).

Essa forma de ver a sociedade como uma “ordem precária” e em modificação

induzida ou espontânea vai orientar a maneira como Guerreiro vai tratar tanto do

problema da mortalidade infantil e da delinqüência como da possibilidade da

planificação como instrumento de democracia. No que diz respeito ao primeiro assunto,

o princípio da competição será corroborado pela idéia de interação social, com o que

Guerreiro reelabora uma maneira de pensar aqueles problemas fundada em

determinações biológicas ou hereditárias, e as focaliza em termos de circunstâncias

sociais de convívio. Abordarei esse ponto mais adiante. Por ora, vou continuar no tema

da planificação.

A idéia de uma “ordem precária” não apenas possibilita a planificação, como a

exige. Com base nas análises de Durkheim, Guerreiro chega à idéia da planificação

como uma exigência do seu tempo; com Weber, ele chega a ela como algo que foi

engendrado pelo processo histórico. Neste caso, ele se vale do conceito de

racionalização, colocando-o em interação com a idéia de competição, o que produz um

resultado interessante. Vejamos como ele articula esses dois conceitos em uma longa

passagem:

“O protestantismo forneceu aos pioneiros da Renascença os materiais intelectuais para a racionalização do espírito aquisitivo.

O princípio do estamento foi substituído pelo princípio da competição. As relações humanas foram submetidas ao cálculo. Na esfera econômica acreditava-se que a ordem resultaria da livre concorrência. E, de fato, numa sociedade de pequenos patrões e em que a máquina ainda não tinha substituído o trabalho humano, era legítimo admitir que os mais aptos fossem os mais bem-sucedidos.

Entretanto, em nossa época, este princípio não funciona mais. Atingimos uma fase de extrema concentração do poder econômico, e do poder militar. A organização econômica, em forma de monopólio, destruiu as condições básicas da competição e, de modo semelhante, o aparecimento das novas armas de guerra, de que é representativa a bomba atômica, tornou-se sem sentido a contribuição individual mesmo na guerra. Na época da revolução francesa, cada indivíduo valia um fusil; hoje porém, com uma bomba de alguns quilos, se pode destruir uma cidade inteira.

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

Entramos já numa nova etapa da civilização ocidental. Estamos vivendo já numa sociedade planificada. A produção da cultura, o divertimento, a opinião pública não são esferas livres, mas setores deliberadamente manipulados.

Por conseguinte, é incontestável a existência do problema da planificação. O que nos interessa é saber agora que espécie de planificação é necessária realizar, tendo-se em vista as necessidades da democracia.” (Ramos, 1946, pp. 164-5)

Se, por um lado, o princípio da competição pode ser visto como algo positivo e

negativo, simultaneamente, naquilo em que ele indica, ou seja, tanto a liberação dos

homens quanto a desorganização social, respectivamente, por outro, a racionalização

também pode ser vista de dois ângulos. Em primeiro lugar, o seu aspecto negativo

devido ao fato de ela eliminar a própria competição, ensejando os monopólios e o

controle das mentes; e, em segundo, ela pode servir de instrumento benéfico em

proveito da própria competição e, portanto, das condições da sociedade democrática.

Em suma, a planificação seria um dado histórico, um problema e uma solução. Além

dessas três características, ela seria também um instrumento cognitivo, uma vez que

inerente ao processo de sua construção conceitual estaria a apreensão da sociedade em

termos de estrutura, de um complexo em que todas as suas partes estão relacionadas.

Ao que parece, a idéia de planificação é congênita à maneira de Guerreiro pensar

a sociologia como um saber de intervenção na realidade. Dessa forma de pensar é

inseparável o lugar de onde o seu pensamento é elaborado, ou seja, do Estado ou de uma

de suas agências destinadas à formulação de políticas públicas, o DNC. Isso não quer

dizer que, à maneira como os críticos costumam encaminhar a análise sobre os

condicionamentos sociais do pensamento, o conteúdo das idéias deva ser visto como

determinado unilateralmente por esse lugar de onde se fala. No caso de Guerreiro e o

DNC, defrontamo-nos com uma situação em que pensamento e contexto são

reciprocamente influenciados. As idéias de processo e de dinâmica, tão caras a

Guerreiro, podem ser flagradas no acompanhamento da elaboração de seu próprio

pensamento. Nesse processo, observamos: a dinâmica no interior de uma determinada

instituição, o Estado, em virtude mesmo da sua capacidade de incorporar novos saberes

ou novas racionalidades; a dinâmica intelectual de Guerreiro, que é impulsionada para

uma determinada direção em virtude mesmo da lógica que anima o Estado naquele

momento; a dinâmica dos conceitos e do patrimônio intelectual, na medida em que, por

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

meio da recepção e da leitura que Guerreiro faz deles, estes vão migrando para outros

contextos, para diferentes situações, fertilizando e sendo fertilizados por essa troca.

Se nesse período, desde o término do curso de ciências sociais até os anos 1950

– quando vamos encontrar Guerreiro Ramos participando de congressos de sociologia –,

ele não dispôs de um espaço objetivo onde pudesse contribuir diretamente para a

institucionalização acadêmica das ciências sociais no Brasil: a universidade; e se não

pôde desenvolver-se como sociólogo no convívio da “comunidade mertoniana”,

podemos afirmar que é no DNC que o sociólogo encontra lugar tanto para a firmação da

perspectiva sociológica quanto de sua formação pessoal. Ao lermos os artigos sobre

puericultura e aqueles publicados na Revista do Serviço Público, deparamo-nos com um

autor que, ao mesmo tempo que utiliza uma farta bibliografia para corroborar a

abordagem sociológica de questões específicas, também parece estar em processo de

aprendizagem. É um autor que parece estar aplicando imediatamente o que acabou de

ler. Considero digno de nota o uso de manuais de sociologia no texto de 1944, por meio

dos quais Guerreiro entra em contato com autores e conceitos clássicos da sociologia,

como tipos ideais e fatos sociais.32 O contato direto com obras de Durkheim e Weber só

ocorre por volta de 1946, ano em que publica uma resenha sobre cada um dos autores.

Ao lermos esses artigos, temos a impressão de um homem solitário, esgrimando

sozinho em um contexto não apenas institucional, mas também discursivo, pouco

permeável tanto a um sociólogo quanto à sociologia. É o que ele sugere em A

Mortalidade Infantil no Brasil, ao propor uma abordagem histórica e circunstanciada da

mortalidade infantil, em vez de uma perspectiva exclusivamente médica. Nesse

trabalho, Guerreiro chama a atenção para o viés racial presente nessa forma de

enquadrar o problema, conforme se lê na citação a seguir:

“Vale registrar, porém, que esta concepção social da mortalidade parece não estar sendo acolhida pela nossa administração federal. Porque, se o contrário acontecesse, outra deveria ser a sua conduta, em face dos problemas de saúde do país.

É uma concepção médica ou eugênica que dá forma à estrutura dos serviços sanitários do nosso país.

No que diz respeito, por exemplo, à mortalidade infantil, está em vigência, entre nós, uma concepção segundo a qual ela não

32 Os manuais citados são: Reuter and Hart – Introduction to sociology e Wiese and becker – sytematic sociology.

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

decorreria não tanto de condições sociológicas ou econômicas, mas da ‘falta de vigor físico e da escassa capacidade hereditária dos indivíduos.Segundo esta concepção, haveria em toda sociedade indivíduos pertinentes a dois estoques biológicos diferenciados: o estoque dos que são possuidores de boa capacidade hereditária e o estoque dos débeis e dos fracos, entre os quais a morte faz, de preferência, a sua colheita. O problema resultaria, assim, de uma diferença biológica qualitativa entre os membros da sociedade. Conseqüentemente, ou por dever filantrópico, ou para resolvê-los efetivamente por processos eugênicos, seriam necessários serviços médicos de vária natureza: posto de puericultura, lactário, hospital infantil e outros. A solução é médica. É perfeitamente lógico o raciocínio.” (Ramos, 1951a, p. 6)33

Tal visão, segundo Guerreiro, resultava em uma percepção da desigualdade

social como determinada por fatores biológicos e hereditários, incapaz de diagnosticar

corretamente, portanto, as causas sociais tanto da desigualdade quanto da mortalidade

infantil. Nesse texto, que é de 1951, Guerreiro já encaminha sua análise no sentido da

defesa da industrialização, na medida em que focaliza o problema inserindo-o em uma

análise mais ampla da estrutura econômica, renda nacional e níveis de consumo popular.

Esse ponto será abordado mais adiante. Por ora quero explorar na citação o que ela nos

permite pensar sobre o Guerreiro Ramos arquiteto, co-fundador e divulgador das

ciências sociais. Além disso, ressaltar também o papel que as ciências sociais

desempenham na modulação de um olhar para a desigualdade entre os homens em

termos de causalidade social.

No texto de 1944, Guerreiro nada sugere sobre a maneira como mais tarde irá

enquadrar os problemas de saúde infantil e delinqüência juvenil, isto é, como problemas

também relacionados à estrutura econômica. O texto se prende ao objetivo de oferecer

instrumentos conceituais para uma abordagem sociológica desses problemas. É por

meio dos conceitos, idéias e autores que são mobilizados pelo sociólogo que nos

deparamos com a forte influência que a Escola de Chicago exerceu sobre o pensamento

de Guerreiro Ramos. Nos escritos dos anos 1950, nenhuma referência positiva da Escola

33 Guerreiro destaca positivamente os médicos puericultores da recente geração: Dr. Olinto de Oliveira e o Dr. Pedro de Alcântara.

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

de Chicago (pelo menos nenhuma que me tenha chamado a atenção) é mencionada.34

Ao contrário, as críticas que ele faz ao que chama de estudos de minudências sugerem

uma rejeição à aplicação da sociologia americana às questões brasileiras. No entanto,

depois de eu já ter lido seus textos e refletido bastante sobre o pensamento que os

orienta, em especial a concepção de história, a impressão que tenho é que a Escola de

Chicago teve uma influência muito mais marcante do que o que é possível perceber nos

escritos dos anos 1950.

Uma idéia que me parece central é a de processo social. Nesse texto de 1944, o

conceito de processo é utilizado no sentido de situar os problemas de mortalidade e de

delinqüência em uma perspectiva histórico-espacial. No caso da delinqüência, o

processo de que se parte é do próprio crescimento da criança, no qual está implicado o

tipo de ambiente onde ela cresce, os contatos ou interações estabelecidos com os pais,

na escola, etc. No caso da mortalidade, são consideradas as condições extra-uterinas

envolvidas em todo o período de gestação. Com isso, Guerreiro sugere aos médicos e

futuros técnicos o enfoque no ambiente social e geográfico que estariam facilitando as

patologias.

Baseado na teoria dos quatro desejos fundamentais de Thomas e nos de

formação da personalidade de Ernest Burguess e de Summer, Guerreiro distingue

analiticamente os processos biológico e social na construção da personalidade social. A

análise da interação dos dois processos permitiria ao sociólogo distinguir o indivíduo da

pessoa. Ao nascer, o ser humano é apenas um indivíduo. Somente ao ingressar na

comunidade e adquirir os hábitos, costumes desta é que ele se torna uma pessoa. Na

realidade, segundo Guerreiro, indivíduo e pessoa são inseparáveis. A junção desses dois

elementos forma o que ele considera ser a personalidade.

Na minha opinião, a leitura dessas teorias condicionou a recepção da filosofia

que na Redução Sociológica são utilizadas para formulação do método sociológico ali

proposto. Vejo relação, por exemplo, entre as idéias de ecologia e a idéia de mundo de

Heidegger, passando pelo modo como ele vai dos enfoques territorialistas de Oliveira

Vianna, Euclides da Cunha e à literatura regionalista. Vejo também relação entre a

concepção de formação da personalidade de Burguess e de Summer e o modo como

34 No Capítulo 5, identifico uma relação entre o enfoque ecológico da sociologia americana e o regionalismo, ambos, para mim centrais ao modo como Guerreiro vai elaborar uma compreensão geográfica da nação.

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

Guerreiro vai trabalhar com as idéias de povos naturais e históricos de Hegel. O papel

dessas teorias filosóficas no pensamento de Guerreiro será analisado no quarto e quinto

capítulos. No que se segue, dou prosseguimento à análise desse período da formação do

habitus, focalizando agora o modo como o autor vai se aproximando de uma

compreensão mais econômica dos problemas sociais brasileiros.

3.4. Guerreiro e a industrialização

É procurando responder aos desafios que as atividades desenvolvidas no

Departamento Nacional da Criança e no DASP impõem que os problemas sociais,

aqueles relacionados à administração pública, e a questão da industrialização vão se

imbricar, desembocando na defesa do nacional-desenvolvimentismo. Podemos perceber

que até por volta de 1947 a 1948 os conteúdos dos seus escritos revelam um caráter

mais epistemológico, em que prepondera uma preocupação em se delimitar o campo

específico da sociologia em relação ao discurso biológico.

Nos artigos publicados na Revista do Serviço Público em 1949, uma abordagem

de cunho mais econômico das condições sanitárias dos pobres é registrada. Nesses

artigos, Guerreiro utiliza pesquisas realizadas por agências privadas, como o Serviço

Social da Indústria (SESI), pelo Conselho Econômico da Confederação Nacional da

Indústria e por vários sociólogos a respeito das condições de vida e de consumo das

classes populares. Enquanto nos artigos anteriores a 1949 a análise dos segmentos

populares se limita ao universo mental desse grupo social, nos escritos posteriores

Guerreiro vai se aproximando de uma concepção mais estrutural do problema da

pobreza e suas conseqüências no trato das doenças. Doravante, os conceitos de cultura e

de folk vão perdendo relevo como categorias explicativas dos hábitos populares, e ganha

destaque o conceito de classes.

O conceito de classe é informado não pela concepção marxista, mas pela escala

de consumo e administração dos orçamentos familiares. Os autores citados são Frédéric

Le Play, Maurice Halbawachs e Max Scheller, dentre outros, aos quais é atribuído o

estabelecimento de vínculos entre o universo mental e as condições econômicas de

existência. Grande parte dos autores citados e pesquisas mencionadas é ligada a

agências internacionais, como o Bureau International du Travail (BIT). Esses estudos,

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

sobretudo o das agências, revelam um grande interesse em definir de modo não abstrato

o que é a pobreza, o que remete à estrutura econômica, uma vez que os métodos

utilizados inquirem sobre as condições de vida das “massas”.

Com base nesses estudos, em artigo de outubro de 1949, “As classes Sociais e a

Saúde das Massas” em que transparece um tom conclusivo, Guerreiro estabelece a

relação entre mortalidade infantil, classe social, cultura e estrutura econômica. Nas

palavras seguintes, podemos observar como o autor parece fechar uma parte da sua

formação, a qual já conteria todos os aspectos que doravante vão orientar os escritos nos

anos 1950. Vejamos:

“Se a mortalidade, geral e infantil, a mortalidade por tuberculose, a sífilis, a lepra e outras doenças se correlacionam de maneira positiva com as classes de baixo poder aquisitivo, torna-se evidente que é na medida em que se transforma a estrutura das classes sociais ou, como diz o Dr. Pedro de Alcântara, que se promove a homogeneização da riqueza espiritual e material que se resolvem estes problemas. Quer dizer, no tratamento deve ser dada primazia às medidas indiretas que são as sociais. À luz deste raciocínio acertado, a organização sanitária de um país como o Brasil é um aparato mais inócuo do que eficiente, cujas ‘atividades têm sido mais ou menos inúteis’, como afirma, com a autoridade de diretor do Serviço Nacional de Peste e de delegado do Brasil à conferência de Organização de Saúde da ONU de Genebra, o ilustre médico, Dr. Almir de Castro.

A menos que se adote a desmoralizada concepção biologista ou darwinista do processo social, como a de certo médico espanhol que afirma que a maioria dos indivíduos das classes inferiores são tarados e que os membros de classe superior aí estão por serem biologicamente os mais indicados para as suas funções, a menos que se adote tal teoria, os dados da biometria e da sociologia diferencial demonstram à saciedade, que a melhoria do padrão sanitário das massas deriva da elevação econômica e cultural da maior parte da população.” (Ramos, 1949, p. 40)

Nas críticas ao ISEB, aponta-se a ausência de uma perspectiva de classes. É

cobrada a concepção marxista desse fato social. Os autores das críticas não reconhecem

como válido o modelo “tricotômico”, isto é, que vê a distribuição dos contingentes

sociais em três classes. Para eles, a idéia de “classe média” é inócua, ou então suspeita,

e põe sob suspeita os seus utilizadores. De acordo com o que li da produção sociológica

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

nos anos 1950, não encontro nenhuma abordagem do mundo social que o enquadre de

acordo com a perspectiva marxista de classe, a não ser de forma mais doutrinária do que

pragmática. Na sociologia realizada em São Paulo, comunidade constitui a categoria

básica de conhecimento do universo popular. Em Guerreiro Ramos, bem como em

outros escritos isebianos, a categoria com que eles procuram compreender o mundo

social de um ponto de vista micro é a de classe, mas dentro do modelo tricotômico. Com

base no acompanhamento que fazemos aqui do desenvolvimento da perspectiva

sociológica no pensamento de Guerreiro Ramos, podemos notar que a exigência que se

faz em relação à ausência do conceito de classe marxista é anacrônica. Anacronismo

que tem por conseqüência desconsiderar as leituras, modos e objetos de pensar

disponíveis naquele contexto.

Como podemos observar, entre a sociologia de Guerreiro e a defesa que ele fará

da política nacional desenvolvimentista há um crescendo que pode ser acompanhado

pela dinâmica do seu pensamento. Uma compreensão mais econômica de um problema,

inicialmente entendido como ecológico e cultural, é alcançada. Dessa compreensão, o

autor chega a uma perspectiva de classe e, a partir dela, à de estrutura social, que é

basicamente informada pela compreensão da estrutura econômica. Esta vista como

subdesenvolvida, o que se evidenciaria pelo baixo nível de renda per capta no país.

O alcance a que o pensamento de Guerreiro chega de uma percepção econômica

dos problemas estruturais do país deve ser compreendido em um cenário em que a

economia como saber acadêmico também vai se firmando. Segundo Bielschowsky, é só

a partir de 1960 que o ensino da economia como saber científico se organiza. Antes

“não apenas eram poucos e de má qualidade os cursos de economia no Brasil, como

pareciam, também, estar desprovidos de orientação teórica definida” (Bielschowsky,

2000, p. 7).

No entanto, é ao período que se inicia em 1930 que o autor remonta o

surgimento de uma percepção mais específica do campo econômico e sua relação com

uma teoria da sociedade brasileira. Independentemente dos matizes ideológicos e

teóricos que vão orientar as preocupações econômicas, um pensamento econômico

brasileiro se delineia junto às mudanças das instituições políticas desencadeadas pela

crise da década de 1930. Segundo o autor, “a centralização de poder comandada por

Vargas gerou um conjunto de agências planejadoras, como o Departamento

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

Administrativo do Serviço Público, o Conselho Federal do Comércio Exterior, o

Conselho Nacional do Petróleo, o Conselho de Águas e Energia e tantas outras”

(Bielschowsky, 2000, p. 127). É no âmbito dessas instituições que o problema do

desenvolvimento industrial acaba por dar maior realce – bem como a exige – à reflexão

econômica como parte integrante e significativa de uma compreensão global da

sociedade brasileira e de sua história.

Em nível acadêmico, a história do pensamento econômico teve como suporte

instituições como a Universidade do Brasil e a Fundação Getulio Vargas, esta criada em

1944, onde Eugênio Gudin e Otávio Gouvêia de Bulhões “lograram formar uma sólida

divisão de pesquisas econômicas, que, em 1950, ganhou o nome de Instituto Brasileiro

de Economia (IBRE)” (Bielschowsky, 2000, p 38). Além dessas instituições de ensino e

pesquisa, outras diretamente ligadas ao comércio acolheram e estimularam a reflexão

econômica. Trata-se do Conselho Nacional de Economia, Confederação Nacional do

Comércio, Associação Comercial de São Paulo e Federação do Comércio de São Paulo.

Ressalta-se, ainda, a importância das publicações como veículos de debate e de

divulgação da relevância da economia.

Creio que uma análise setorializada da história do pensamento sociológico no

Brasil, ou seja, aquela que se detém exclusivamente na produção acadêmica, acaba por

mutilar essa mesma história, na medida em que a exclui de um universo mais amplo do

qual ela é uma parte e o qual traduz. O estudo de Bielschowsky – visto que se trata de

uma história do pensamento econômico – nos mostra que não se pode escrever a história

econômica brasileira considerando-se apenas o desenvolvimento de uma infra-estrutura

despojada de espírito. Ao focalizar o pensamento, o que significa também dizer a

história da afirmação social de uma competência científica, o autor mostra como a

economia é parte significativa nos esforços de compreensão, explicação e modernização

da sociedade brasileira nos anos que vão de 1930 à década de 1960. Voltemos a

Guerreiro Ramos.

O sociólogo faz uma análise da estrutura econômica brasileira em “O Problema

da Mortalidade Infantil no Brasil”, no qual destaca a relação entre a mortalidade infantil

e a renda nacional. Sem deixar de assinalar o fato da alta concentração de renda no país

como um fator da desigualdade social, ele esclarece que, dado o nível da renda nacional,

ainda que ela fosse igualmente distribuída por todas as famílias com uma média de

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

cinco membros, a parte que caberia a cada uma delas não seria suficiente para a

subsistência física (p. 11). Outro fator agravante da estrutura econômica seria a

desigualdade regional. Segundo os dados que utiliza, só o Estado de São Paulo e o

Distrito Federal responderiam por 65% da renda nacional, cabendo o restante aos

demais Estados.

Guerreiro revela um pessimismo em relação à possibilidade de superação de

níveis tão altos de desigualdade econômica. Na justificativa desse pessimismo, podemos

visualizar uma sugestão do capitalismo brasileiro induzido. Ele observa que, no Brasil,

“as profundas desigualdades de poder aquisitivo não parecem passageiras”, devido à

incipiência do capitalismo brasileiro. Nas suas palavras, seríamos

“um país de pequena renda e de capitais insuficientes para desenvolver a economia nacional na medida das necessidades da população brasileira. É ingênuo pensar num distributivismo avançado. Por muito tempo o desenvolvimento do país terá de ser obtido à custa do pauperismo ou de baixos salários”. (Ramos, 1951a, p. 13)

Há algo de irônico nesta última frase. Esse tom laissez-faire destoa do

voluntarismo que permeia todo o pensamento de Guerreiro Ramos. Se há uma ironia,

porém, é porque ele parece estar chamando a atenção para o fato de que a superação da

desigualdade social não poderia ser esperada de um movimento espontâneo, vindo de

baixo para cima. Isso porque, com base nos seus estudos sobre orçamento familiar, a

pobreza tende a perpetuar-se a si mesma. Seguindo uma perspectiva materialista da

cultura, Guerreiro destaca como a formação de uma mentalidade mais cosmopolita e

mais prospectiva estaria diretamente condicionada pela renda familiar, ou seja, pela

situação material. Utilizando estudos sobre a pobreza, ele observa o seguinte:

“O nível de pobreza – diz Comish – permite apenas manter juntos o corpo e a alma. Nele nem a mais prudente utilização da renda disponível permite satisfazer as necessidades da família média. A menor emergência expõe os indivíduos à caridade pública ou à dependência.

O nível mínimo de subsistência permite manter satisfatoriamente a vida física, embora seja insuficiente para permitir a satisfação das necessidades sociais. Implica, ainda, uma condição precária de existência.” (Ramos, 1951a, p. 14)

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

Conforto, atividades recreativas e educacionais estavam ausentes dos gastos da

família média brasileira, o que significava uma mediocrização das aspirações a níveis de

vida mais elevados e, conseqüentemente, a ausência da formação de uma pressão

popular para a aquisição de bens além daqueles necessários à subsistência física. A

pobreza material e cultural se retroalimentavam, donde podemos perceber o pessimismo

de Guerreiro Ramos.

Esse texto é escrito no contexto de iniciativas governamentais que visavam à

melhoria das condições da saúde dos brasileiros. Procurava-se atacar o problema com a

instalação de postos de saúde e de puericultura e, dessa forma, restringindo o problema

a uma solução médica e administrativa. Guerreiro chama a atenção para as limitações

daquelas iniciativas, porque entre elas e a mentalidade popular haveria um enorme

abismo, que as tornaria ineficientes. Segundo ele: “Os consultórios, o posto de

puericultura e outras unidades sanitárias só se fixam eficientemente quando as

populações estão suficientemente esclarecidas, possuem determinados hábitos de vida e

já gozam de poder aquisitivo para se manterem num nível de vida mínimo” (Ramos,

1951a, p. 39).

O mesmo raciocínio se aplica à crítica que ele faz às recomendações de um

sociólogo americano para a solução do problema escolar brasileiro em A Cartilha.

Recomendava-se que no Brasil fossem instaladas escolas secundárias em todos os

municípios proporcionalmente ao número de pessoas, como nos Estados Unidos.

Segundo Guerreiro, só em um ato de loucura tal medida poderia ser adotada, pois, além

do fato de que não haveria professores em número suficiente, “como manter nas escolas

secundárias uma população de adolescentes cuja psicologia e cuja situação econômica

se constituiriam em fatores impeditivos da escolaridade?” (Ramos, 1956, pág. 99). A

crítica à soluções importadas para os problemas brasileiros articula-se com a crítica ao

pensamento transplantado.

Assinaladas a cultura da pobreza, a concentração de renda e a baixíssima renda

per capita, Guerreiro aponta o baixo nível de produção, que agravaria ainda mais a

pobreza no Brasil. De acordo com os dados que utiliza, a produção agrícola per capita

manifestava “nítida tendência para decrescer”. Dentro desse quadro, que representa uma

visão global da sociedade brasileira, a mortalidade infantil seria perfeitamente normal,

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

visto que seria “uma espécie de mecanismo regulador por meio do qual a população

equilibra seus recursos com as suas necessidades” (Ramos, 1951a, p. 23).

A conclusão sobre a normalidade da mortalidade é um desalento. Na verdade, a

imagem que Guerreiro tem da situação global do Brasil é de que ela tenderia para pior.

Cada um dos fatores se reforçariam: a distância cultural interna, a mentalidade popular

(que no caso da mortalidade infantil a justificava como sendo a vontade de Deus) –

incapaz de pressionar por padrões de vida mais elevados –, a estrutura econômica cada

vez mais encolhida e políticas sociais dispendiosas e ineficazes.

As avaliações negativas que Guerreiro Ramos faz das medidas administrativas e

da adoção de práticas que foram eficientes em outros lugares participam do rol das

críticas mais amplas que Guerreiro faz às transplantações. Essas críticas, que vão a

partir de 1953 orientar os estudos críticos do pensamento social e político brasileiro, em

que denuncia o distanciamento entre esse pensamento e a realidade brasileira, aparece

em Problema da Mortalidade Infantil como uma crítica à administração pública. Aliás,

é dessa forma que ele inicia o texto. Ele assinala que o problema originário da

administração pública no Brasil, isto é, da sua ineficiência, é que ela teria precedido à

sociedade. Isso fez com que fosse congênito à formação política brasileira “o vício de

adotar para os seus problemas soluções prontas”. Em A Cartilha é reiterada essa

observação e ampliada para o contexto latino-americano:

“Em todos os países latino-americanos se registra uma contradição entre a vida comunitária e as instituições, as quais, em sua maioria, têm sido recebidas acabadas, resultante mais de um processo revolutivo do que evolutivo.” (Ramos, 1956, p. 83)

A defesa de um capitalismo brasileiro induzido segue junto com a crítica que

Guerreiro Ramos faz à sociologia acadêmica. Em “A Cartilha do Aprendiz de

Sociólogo”, a recomendação de um maior empenho dos sociólogos na aceleração do

desenvolvimento econômico baseia-se no julgamento desfavorável que ele faz do modo

como as teorias sociais eram importadas, contribuindo, com isso, de forma

insatisfatória, para o desenvolvimento material e cultural brasileiro. Ele assinala a

estreita relação que haveria entre o comportamento das elites letradas em face das

teorias estrangeiras e a paralisia estrutural brasileira. A cultura popular se constituía em

um fator de inércia, bem como a cultura erudita. Ambas se fechavam sobre si mesmas

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

mantendo o abismo entre as classes sociais, as quais conviveriam em uma relação de

estranhamento.

É importante assinalar esse aspecto da distância cultural interna como reforço da

compreensão que Guerreiro tinha do nacionalismo. Se compararmos a ênfase do autor

no distanciamento cultural como uma conseqüência parcial do subdesenvolvimento

econômico com as teorias recentes sobre os nacionalismos europeus, observaremos que

o autor não está distante da compreensão do nacionalismo como fenômeno cultural e

político e que é congênito à formação das sociedades industriais.

Embora em uma perspectiva crítica do nacionalismo, como um artifício criado

pelas elites industriais, vimos como Gellner nos esclarece um pouco sobre o significado

cultural desse fenômeno. Para esse autor, na sociedade agrária, o saber era

especializado, concentrado em elites letradas, horizontalmente interligadas, distantes

das comunidades locais, auto-reprodutoras e verticalmente separadas entre si. Na

sociedade industrial, em virtude da divisão do trabalho exigida pelo desenvolvimento

econômico contínuo, há uma expropriação do saber concentrado nas antigas elites pelo

Estado, o qual passa a se encarregar da universalização do conhecimento. Esse papel do

Estado, na organização de um sistema nacional de educação seria funcional a uma

sociedade marcada pela mudança e inovação contínuas, o que não permitiria mais às

pessoas a acomodação a papéis sociais estáveis.

De fato, essa explicação de Gellner não se aplica inteiramente à análise de

Guerreiro Ramos. Conforme vimos anteriormente, Guerreiro chega mesmo a criticar

medidas como estas, a da implantação indiscriminada de escolas secundárias. Porém, o

que deve ser ressaltado na análise de Gellner é o fato de que a configuração da nação

exige certa homogeneidade interna e aproximação entre as classes.

Como podemos observar no pensamento de Guerreiro, o elemento cultural goza

de uma relativa autonomia em face da economia. Essa autonomia se manifesta mesmo

na compreensão que o sociólogo tem dele como fator de inércia e de paralisia. A cultura

letrada e a cultura popular, cada uma a seu modo, principalmente por causa do

distanciamento entre elas, contribuiriam para a estagnação do país. Se como fator de

inércia o elemento cultural contribuiria para a paralisia estrutural, é possível deduzir

que, ao se tornar mais dinâmico, mais engajado, no que diz respeito aos cientistas

sociais, ele poderia assumir um papel ativo no desenvolvimento nacional. É essa relativa

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

independência que permite a Guerreiro direcionar a crítica a elites culturais e

acadêmicas, na medida em que elas reproduziriam nos estudos sociais uma atitude de

alheamento e estranhamento da realidade local. Tal alheamento seria pernicioso, visto

que impediria uma relação mais afetiva com a comunidade interna e, conseqüentemente,

uma ação mais engajada com vistas ao desenvolvimento cultural, social, político e

econômico.

Pode-se dizer que, para Guerreiro, na falta de condições materiais – no caso, a

configuração mesma de uma sociedade industrial –, um sentimento de nacionalidade

teria de ser despertado mais, ou antes, entre os intelectuais do que no Estado. Tal

sentimento adviria de uma experiência de pertença (e por que não de amor?) à nação, o

que seria proporcionado pela própria sociologia dos estudos “sinceros” da realidade

local, e não “obnubilados” pelo desejo de prestígio conferido pela mera erudição nas

teorias importadas.

O sentimento de pertença é um tema que atravessa o estudo sobre o

nacionalismo de Benedict Anderson em Comunidades Imaginadas. O autor acredita que

a comunidade nacional é ela própria uma imaginação daqueles que a ela se imaginam

pertencer, e que, por isso, a realidade da nação só pode ser apreendida em termos das

representações que os homens têm de si como membros de um grupamento humano

com o qual partilham crenças e valores comuns. Ao definir a nação como comunidade

imaginada, Anderson abre caminho para pensar o nacionalismo como algo que não

existe apenas na imaginação dos governantes, mas como artefato cultural construído

graças à capacidade que as pessoas têm de se imaginar como pertencentes a uma

comunidade, ou seja, a partir de um conjunto de crenças e valores identificados em

códigos reais como, por exemplo, a linguagem escrita e falada. Os nacionalismos nos

países colonizados teriam sido possíveis graças ao aparecimento de uma intelligentzia

que, por meio do romance e da poesia, puderam disseminar o sentimento de pertencer a

uma comunidade habitada por outros desconhecidos, mas iguais.

É interessante identificar uma relação entre a ênfase de Anderson no papel dos

intelectuais e a de Guerreiro. Anderson toma como ponto de partida de sua análise os

grandes sistemas religiosos como promotores do sentimento de pertença. Religiões,

como islamismo e cristianismo, teriam dado significado ao sentimento de contingência e

de fatalidade das pessoas. As religiões são artefatos culturais cujos artífices são homens

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

que pensam, que elaboram em um registro transcendental uma compreensão da vida e

da maneira como se deve viver. Constituem, em suma, uma intelligentzia.

A análise do conteúdo das idéias orienta a análise de Guerreiro da formação da

política brasileira. Vimos que, ao proceder ao estudo da forma como o Estado brasileiro

fora organizado, o autor destaca a imitação de mecanismos administrativos oriundos das

nações européias. Entretanto, a explicação histórica do conteúdo das idéias que

Guerreiro fará se tornará possível com o livro de Inácio Rangel: A Dualidade Básica da

Economia Brasileira, de 1953, sobre isso tratarei no próximo capítulo.

Como veremos, a literatura regionalista tem grande importância para Guerreiro,

pois, podemos deduzir, por meio da linguagem escrita promoveria uma imaginação da

comunidade nacional. Dessa autonomia relativa que a cultura assume no pensamento de

Guerreiro, podemos concluir sobre o papel que os intelectuais deveriam desempenhar

tanto no desenvolvimento da estrutura econômica brasileira como na promoção de um

sentimento nacional. Mas, para isso, eles teriam de romper a cisão interna que a

separava da população local. Na verdade, o sentimento nacional teria de ser ele mesmo

anterior ao desenvolvimento da estrutura econômica naquelas condições.

Guerreiro identifica no “sonambulismo” em que viviam os intelectuais

brasileiros, e igualmente nas idéias orientadoras das políticas públicas, um “transplante

literal” das teorias importadas. Ele escreve sobre isso na primeira recomendação feita no

Congresso de Sociologia:

“As soluções dos problemas sociais dos países latino-americanos devem ser propostas tendo em vista as condições efetivas de suas estruturas nacionais e regionais, sendo desaconselhável a transplantação literal de medidas adotadas em países plenamente desenvolvidos.” (Ramos, 1956, p. 83)

A prática de transplantações literais teria relação direta com a formação histórica

brasileira. De um lado, uma elite administrativa e intelectual, cultivada no exterior; de

outro, a ausência de povo. Segundo ele:

“O colonizador, no Brasil, não encontrou povo, como encontrou no México, no Peru, na Índia. Encontrou uma espécie de ‘material etnográfico’, uma espécie de ‘matéria inorgânica’, de que dispôs segundo seus propósitos. Operou em espaço

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

historicamente vazio, que passou a ser ocupado por portugueses e africanos, os contingentes fundamentais formativos da nossa população, uns e outros alienígenas.” (Ramos, 1956, p. 86)

Só a partir de 1822 é que teria surgido o “problema nacional” brasileiro. Com a

Independência, impunha-se às elites políticas a reforma das instituições que haviam sido

instaladas pelos portugueses. É dessa formação histórica que decorreria a formação

mental das elites, fornecendo o seguinte panorama:

“(...) de um lado, a massa de brasileiros sem hábitos de autogoverno, secularmente submetida ao discricionarismo de potentados e reguletes locais; de outro lado, uma camada letrada, provida de idéias apanhadas em livros de língua inglesa e francesa, uma elite livresca e superfetada que se caracterizou por uma atitude exemplarista, segundo a qual a resolução dos nossos problemas estaria garantida pela instalação, entre nós, das instituições vigentes nos países líderes da época: Inglaterra, França, Estados Unidos”. (Ramos, 1956, p. 87)

Esse distanciamento impediria que, nos dias em que Guerreiro Ramos escrevia,

se compreendessem os problemas estruturais que afetavam a vida dos brasileiros. Além

disso, impediria a percepção de que, a despeito da ausência de coordenação e

planejamento, um capitalismo brasileiro e uma cultura popular estavam se

desenvolvendo. Porém, esse desenvolvimento teria de ser “acelerado”. Por isso,

Guerreiro compreende que as transplantações em si não são más. As transplantações

literais teriam um efeito predatório visto que reproduziriam relações de dominação entre

países. Alternativa às transplantações literais e predatórias seriam as “acelerativas”,

pois, visando à aceleração do desenvolvimento interno, “são obrigadas a adotar medidas

observadas em países plenamente desenvolvidos” (Ramos, 1956, p. 88). Dentre as

transplantações acelerativas são destacadas “as máquinas, os processos fabris de alto

rendimento, certas formas especializadas de instrução e educação”.

A crítica às transplantações e ao pensamento social e político brasileiro requer

análise mais detalhada. A exposição desses estudos críticos precisa estar situada no

contexto da compreensão mais ampla de Guerreiro da formação histórica da sociedade

brasileira e da sua configuração nos anos 1950. No próximo capítulo, inicio a análise

dos textos escritos a partir de 1953 e, mais precisamente, aqueles da fase isebiana,

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Capítulo 3 – O sociólogo em “mangas de camisa”

encerrada em 1958. O ponto central será apresentar o nacionalismo não apenas como

uma tática política, mas como uma teoria da sociedade brasileira, teoria essa que

constituiu, também, uma das narrativas históricas sobre essa sociedade naquela época.

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Capítulo 4

Nacionalismo e ideologia

4.1. Nacionalismo e populismo

O nacionalismo político como ideologia formulada pelo ISEB constitui objeto da

crítica de Francisco Weffort em O Populismo na Política Brasileira (1978). Nesse

trabalho, o autor questiona a validade da distinção que os ideólogos nacionalistas

estabeleceram entre o populismo e o nacionalismo. Segundo Weffort, o ponto forte do

argumento consistiria na identificação do populismo como um fenômeno pré-político,

destituído de conteúdo político e, por isso, não ideológico. Para os nacionalistas, o

nacionalismo seria um fenômeno distinto e mais avançado, por nele já se poder delinear

uma política baseada em princípios orientada pelo que seriam os interesses gerais do

povo. Partindo do pressuposto de que o populismo foi uma constante na política

brasileira de 1945 a 1964, o nacionalismo é considerado por Weffort apenas como uma

forma mais rebuscada e elaborada do populismo. Nos dois fenômenos, o vínculo entre

massa e líder caracteriza a relação política, mantendo-se, portanto, nas duas formas o

que os nacionalistas desqualificavam no populismo, ou seja, um apelo com base na

“demagogia, emocionalidade, verbiagem social, etc.” (Weffort, 1978, p. 25).

Segundo Weffort, o equívoco original do nacionalismo residiria no apelo ao

povo, que apenas repunha com outro termo o suporte social do populismo: a massa. Se

uma diferença havia, esta residiria no simples fato de que, enquanto se pode falar do

populismo como um fenômeno espontâneo, verificado em diferentes pontos do país e

resultado do encontro entre interesses de grupos sociais e uma liderança carismática, o

nacionalismo nasce dentro do Estado.

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

“O reformismo nacionalista também foi espontaneísta, porém em forma mais elaborada. Diferentemente do populismo, expressão tópica da ascensão das massas e da sua incorporação ao regime, o nacionalismo foi sua expressão global, e emerge, portanto, diretamente ao nível do Estado. Ele corresponde, neste período que se inicia com o segundo governo Vargas, a grupos políticos, tecnocráticos e militares situados no aparelho do Estado ou diretamente associados a ele e que tratam de definir uma estratégia para o Estado em face dos problemas criados ou enfrentados pelo desenvolvimento industrial e urbano do País. A ideologia nasce, pois, dentro do Estado ou em associação com ele, embora pretendendo traduzir interesses gerais de todo o povo. A política nacionalista expiou de várias formas o pecado original da ideologia.” (Weffort, 1978, p. 40)

Considerados os aspectos mencionados por Weffort, ou seja, do nacionalismo

como uma tática política e que manipula um ingrediente emocional, não há como, de

fato, acredito, distinguir os dois fenômenos. No entanto, na medida em que sua análise

privilegia tão-somente o caráter prático ou tático da ideologia nacionalista, isto é, como

um movimento que pretendeu mobilizar amplos setores da sociedade com base em um

discurso que faz apelo a alianças, ela deixa de lado o conteúdo propriamente teórico do

nacionalismo. Sua caracterização do nacionalismo não considera aquilo em que este se

pretendeu como uma teoria social e política normativa, que buscava salientar, na

estrutura social, mudanças que estariam tendo um impacto renovador no

comportamento político da sociedade e que poderiam ensejar, também, uma

epistemologia da ciência política distinta daquela que orientava e possibilitava a análise

do populismo.

Desejar encontrar na realidade os suportes que permitam o estabelecimento de

uma teoria e de um campo de saber talvez seja o elemento contrafactual do

nacionalismo e, portanto, não apreendido pelo estudo de Weffort. É cada vez mais claro

para mim que não se pode pretender uma compreensão dos anos que se seguem à

redemocratização até 1960 sem que se considere o fato de se tratar de um período que

poderíamos qualificar como “heróico”, de forte impulso criativo e de invenção.

O desejo de modernização não se revela apenas em políticas efetivas de

desenvolvimento econômico, social e na criação de cursos universitários, mas também

na construção de teorias e de epistemologias que parecem pretender, às vezes, antecipar-

se a um moderno efetivo e real. Idealismo e realidade se imbricam de tal forma que me

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

parece injusto apontar equívocos teóricos por meio do diagnóstico baseados em fatos

supostamente mais observáveis. Em um balanço das elites intelectuais que se formam

em torno do projeto universitário que conduz à institucionalização das ciências sociais,

podemos dizer que se trata não apenas do erguimento de edifícios, organização de

departamentos e definição de métodos de pesquisas e objetos, mas também de uma

ressemantização da própria experiência social como condição para um arcabouço

conceitual renovado. Muitos dos conceitos parecem mais eficazes na prefiguração de

um futuro desejado do que na explicação ou compreensão da própria época.

De certa forma, as narrativas sobre o Brasil nos anos 1950 tendem a apontar o

que deveria ser superado nas formas de pensar e agir então vigentes. Florestan

Fernandes vai desde as formas folclóricas da mentalidade popular, do estilo ensaístico

da produção intelectual, à maneira como as elites políticas se comportam em face do

poder estatal, indicando-os como entraves mentais do moderno. Guerreiro Ramos, por

sua vez, tem como objeto preferencial as maneiras de pensar e de se pensar das elites,

fossem elas econômicas, intelectuais ou políticas (as quais se caracterizariam por uma

relação de estranhamento com o outro interno), considerando estas maneiras de pensar

os empecilhos a ser superados.

Arriscando-me a uma interpretação pessoal dessa época, diria que o que está em

mira e (por que não?) em processo é uma revolução do pensar, a qual se impõe como

urgente em virtude de uma constelação histórica mundial em mudança acelerada, e da

qual o país estaria em condições objetivas de participar, até certo ponto. Esse “até certo

ponto” a que me refiro é aquele relativo à reconfiguração da ordem econômica mundial,

a qual, até a década de 1930, apoiava-se na certeza da vocação natural de cada país

como o fator que legitimaria e autorizaria uma forma específica de ingresso na divisão

internacional do trabalho.

Se uma alteração no modo de pensar tal ingresso foi estimulada por fatores mais

externos do que internos, provocando mudanças tanto no pensamento econômico

brasileiro como nas políticas econômicas efetivas, o mesmo não se poderia esperar do

que diz respeito a um impacto mais contundente nas maneiras de pensar tradicionais das

elites mais bem favorecidas econômica e culturalmente, bem como da camada popular.

Só para mencionar um aspecto da mentalidade referido ao consumo, Celso Furtado

(2000) escreve que uma das conclusões a que chegou na sua teoria do

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

subdesenvolvimento foi a do mimetismo cultural refletido nos padrões de consumo da

elite brasileira.

Desenvolvendo uma explicação estrutural desse fato já sabido pelos economistas

“conservadores”, como Eugênio Gudin, Furtado observa que o mimetismo poderia ser

entendido em um quadro histórico em que o aumento de produtividade proporcionado

pelo comércio internacional acarretou o aumento de renda nos países de economia

agrária. O problema é que a universalização dos fatores – aumento de produtividade do

trabalho e inovação tecnológica – que conjuntamente contribuíram para a riqueza

mundial se restringiu eficazmente ao primeiro. As técnicas produtivas se

universalizaram apenas no setor de transporte, sendo nula a universalização no que diz

respeito às diretamente ligadas à produção. O resultado foi a combinação de uma

economia sem capacidade para o estímulo de um mercado interno para bens

diversificados e de consumo massificado, ao lado de uma forte concentração de renda

no setor favorecido pelo comércio internacional: o setor agrário.

A essa combinação de fatores se juntava outra universalização: a de padrões de

consumo praticados nos países pioneiros da industrialização. À medida que as camadas

sociais internas mais bem favorecidas adotavam tais padrões, estavam contribuindo para

o subdesenvolvimento brasileiro. Essa constatação permitiu a Furtado introduzir uma

variável cultural na compreensão do subdesenvolvimento. Nas suas palavras:

“Essas reflexões me levaram à convicção de que a permanência do subdesenvolvimento se deve à ação de fatores de natureza cultural. A adoção pelas classes dominantes dos padrões de consumo dos países muito superiores aos nossos explica a elevada concentração de renda, a persistência da heterogeneidade social e a forma de inserção no comércio internacional.” (Furtado, 2000, p. 60)

A observação retrospectiva de Furtado corrobora a impressão que os escritos de

Guerreiro nos deixam daqueles anos. Trata-se do fato de que o aspecto sociológico mais

dramático, e ao qual o nacionalismo foi sensível, é a ausência de solidariedade nacional,

expressa no distanciamento entre as classes sociais. De certo, a distância pode ser

enquadrada em termos de desigualdades regionais e sociais, reduzidas ao seu

denominador comum, que é a desigualdade econômica, como podemos observar nos

diagnósticos de Guerreiro Ramos e de outros.

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

Já vimos que todo o período abrangido pela década de 1940 é de construção de

instituições e formulação de políticas públicas sensíveis à desigualdade. A convivência

de dois mundos que se excluem, e, mais, praticamente não se tocam, é descrita de modo

dramático por Florestan Fernandes. Contudo, o conceito de desigualdade econômica me

parece um tanto insuficiente para entendermos o tipo de diagnóstico da sociedade e

apelo a ela que caracteriza o nacionalismo. De fato, posto que nisso consiste a crítica de

Weffort, o nacionalismo como ideologia mobiliza um conteúdo emocional, que

interpela as consciências, visando ao despertar de um sentimento simpático e afetivo de

pertencimento. Em Guerreiro Ramos, parece-me bastante claro que o alvo da

interpelação ideológica são os intelectuais e as elites políticas. São ácidas suas críticas

aos consumidores de idéias, teorias e soluções políticas importadas.

Embora tais atitudes de importação cultural sejam creditadas, como veremos, à

maneira como se dá a nossa formação histórica e a configuração do mundo pós-Segunda

Guerra como “sistema mundial”, em que o intercâmbio cultural se torna fato estrutural,

Guerreiro Ramos imputa o elemento de responsabilidade pessoal na maneira de as elites

se conduzirem em face do destino nacional. É na convocação da responsabilidade ou da

intervenção consciente dos homens que consiste a ideologia no nacionalismo em

Guerreiro Ramos. Em Maquiavel, A Política e o Estado Moderno (1980), Antônio

Gramsci faz uma observação que, acredito, ajuda a compreender o significado desse

apelo que Guerreiro faz às elites. Escreve Gramsci: “Fala-se de capitães sem exército,

mas, na realidade, é mais fácil formar um exército do que capitães.” Estou convencida

de que o nacionalismo, ao menos aquele de Guerreiro, se destinava à formação de

capitães, visto que o diagnóstico que a teorização sobre a sociedade brasileira lhe

permite alcançar é de que o Brasil “já” era um país com “povo”, faltando a conversão

das elites à nação.

Por isso defendo que o nacionalismo que os escritos de Guerreiro nos permitem

compreender deve ser analisado como um fenômeno de pedagogia coletiva, de discurso

que visa à formação de uma “vontade nacional”, já que a nação existe, mas falta a

vontade. Nisso ele transcende os partidos e opera como um discurso de fundação. Nesse

caso, ele não se confunde com o episódio de uma variável histórica particular, no caso, a

história política. Ele se anuncia como “fenômeno social total”, e que pretende expressar

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

a sociedade como “fato social total”, isto é, uma realidade econômica, cultural, jurídica,

política, estética, etc.

Como pretendo demonstrar, no pensamento de Guerreiro Ramos, ideologia

política e ciência social se confundem, embora não seja impossível detectar o limiar

entre os dois projetos: o ideológico e o científico. Para que alcancemos uma melhor

compreensão do nacionalismo isebiano, é preciso que descartemos como falso

problema, na medida em que o conflito entre ciência e ideologia não é um problema

para os nacionalistas. Novamente, enfatizo que o problema para a crítica era a fusão

entre esses dois aspectos. A compreensão da imbricação entre ideologia e ciência e da

identificação nítida de cada uma das duas no nacionalismo de Guerreiro Ramos depende

da capacidade ou boa vontade de entendermos como a junção e separação das duas

estão implicadas na concepção que tem o autor da configuração histórica da sociedade

brasileira nos anos em que formula a teoria e ideologia nacionalista, isto é, a partir de

1955. A ideologia decorre da teoria.

Assim, penso que o nacionalismo deve ser compreendido como um fenômeno

mais amplo, conforme escrevi, não apenas como um episódio de uma variável histórica

particular, no caso, a história política. Sem dúvida, como observa Weffort, o

nacionalismo pretendeu-se um momento superior ao populismo, como o da política

ideológica. Encontramos essa reflexão em Guerreiro Ramos (1961), quando este

apresenta uma sucessão de “tipos políticos” que iria desde o que ele chama política de

clã, passando pela modalidade oligárquica, pela populista, pela dos grupos de interesse,

até a ideológica, nos seus dias. No entanto, o que talvez não seja relevante para a análise

de Weffort é o intuito mais descritivo na identificação desses vários e diferentes

momentos da evolução política brasileira, e que tem como objetivo procurar,

simultaneamente, tanto assinalar proximidades, como fato histórico, entre o populismo e

o nacionalismo, como diferenças sutis entre eles. Essas diferenças estariam menos nas

performances das políticas populistas e nacionalistas do que na infra-estrutura social

que molda a psicologia do eleitorado.

De fato, o nacionalismo foi uma tática política malograda. Mas, como não se

tratou apenas de uma tática política, podemos considerá-lo como uma narrativa sobre a

vida política no Brasil dos anos 1950, na qual se supõe encontrar ingredientes capazes

de apontar para um devir possível. Esse caráter de narrativa científica é, sem dúvida, o

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

que recrudesce a crítica contra o ISEB. Não apenas o fato de terem seus formuladores

expressado uma razão de Estado, mas também o fato de terem pretendido uma razão

científica. Ao fazerem isso, teriam ideologizado a própria ciência e, portanto,

introduzido a irracionalidade do mundo lá onde ela jamais poderia penetrar. Por isso

mesmo, as críticas terão de “expulsá-la” do campo de onde é possível um discurso sobre

a política, devolvendo-lhe ao mundo da política efetiva e de suas vocalizações. Daí que

o nacionalismo político desaparece diluído naquela que seria a única forma

manifestamente moderna de política até 1964, isto é, aquela em que seria possível

detectar uma percepção pública na ação política das lideranças: o populismo. Talvez um

compromisso demasiado forte com os fatos seja exatamente o que impede uma melhor

compreensão do que foi o nacionalismo naquilo em que todos os seus formuladores do

ISEB parecem ter sido unânimes, ou seja, do nacionalismo como um projeto, ancorado

em uma teoria da sociedade brasileira.

4.2. Nacionalismo: uma teoria da sociedade brasileira

O objetivo deste capítulo é focalizar o nacionalismo de Guerreiro Ramos como

uma teoria da sociedade brasileira e como ideologia militante. Como ideologia, ele é

dirigido principalmente às elites políticas partidárias e aos cientistas sociais. Em um

contexto social e político em que as elites parecem-lhe distanciadas da realidade

nacional, Guerreiro, na minha opinião, parece estar mais preocupado com a alienação

das elites do que com a dos homens comuns em relação à vida social brasileira. Como já

observei antes, talvez o fator que mais estivesse impedindo a obra de concretização do

Estado nacional fosse, para Guerreiro, um distanciamento cultural e intelectual interno,

entre elite e povo. Nas suas críticas ao pensamento social brasileiro – que, segundo ele,

praticava as transplantações literais –, o alheamento é sugerido em virtude do fascínio

pelas teorias estrangeiras, o que talvez significasse um fascínio pelo próprio estrangeiro.

Dessa forma, uma compreensão da sociedade brasileira em um momento em que

mudanças fundamentais na sua estrutura política e social estariam ocorrendo requereria,

antes de tudo, uma espécie de conversão nacionalista capaz de despertar um interesse

apaixonado pela nação. Esse interesse deveria levar os cientistas sociais a conhecer,

primeiramente, a história, a estrutura social e regional da nação, para que então

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

pudessem, com esse conhecimento, selecionar teorias conforme as conveniências de um

projeto político e social para o Brasil.

Em “Princípios do Povo Brasileiro”, publicado em O Problema Nacional do

Brasil (1960), Guerreiro Ramos distingue seis tipos de nacionalismo: o nacionalismo

ingênuo, o nacionalismo utópico, o nacionalismo de cúpula, o nacionalismo de cátedra,

o nacionalismo de circunstância e o nacionalismo como ciência. O tipo de nacionalismo

proposto é o último. É o nacionalismo dos chamados “povos-proletários”, para os quais

o que nas nações desenvolvidas já seria presente, para eles seria futuro. Por essa

condição periférica, esses povos seriam os “portadores do ponto de vista da comunidade

humana universal”. Daí que a ciência encontraria nesses povos o seu posto mais

avançado historicamente. E essa ciência seria o nacionalismo, como “ponto de vista dos

povos proletários”. Eis como Guerreiro a descreve:

“Como ciência, o nacionalismo só pode ser expresso à guisa de conjunto de princípios gerais de uma atitude metódica destinada a habilitar a transpor conhecimentos e fatos de uma perspectiva para outra, a relativizar o adquirido, a bombardear com perguntas e argüições todo produto da ação humana.” (Ramos, 1960, p. 255)

Para essa análise, do nacionalismo como ideologia e ciência e como teoria da

sociedade brasileira, utilizarei vários textos escritos entre 1955 e 1961. Não me

prenderei a uma ordem cronológica, visto que nesses textos há sobreposições de temas e

de formas de análise, mas que não estão organizados de forma sistemática. São textos

militantes, na sua maioria, dirigidos a públicos de conferências, a leitores de livros e

jornais. Minha tarefa será principalmente identificar a teoria ou narrativa da sociedade

brasileira que Guerreiro está produzindo, e como, por meio dessa teoria, ele chega a

uma compreensão do Brasil como nação.

Se no capítulo 2 minha atenção esteve principalmente voltada para a teoria da

sociedade brasileira em Florestan Fernandes, na sua preocupação com a questão da

modernização, neste me interessa investigar como Guerreiro produziu uma teoria em

vista da mesma preocupação que orientou o sociólogo paulista. E, mais importante,

investigar como o conceito de nação é elaborado por este autor, em que e como ele se

diferencia do de sociedade.

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

Para essa tarefa, vou iniciar a análise pelo livro A Crise do Poder no Brasil

(1961). Há duas análises nesse livro que abrem uma via para uma compreensão mais

interna do pensamento do autor a respeito da sua teorização da sociedade brasileira na

movimentada década de 1950. Trata-se da tipologia das práticas políticas vigentes no

país e do seu diagnóstico do que seria uma crise de poder em vista do resultado da

eleição presidencial em 1960.

A tipologia apresentada permite, de início, chamar a atenção para o modo como

o nacionalismo é apresentado por Guerreiro Ramos como uma “exigência”, o que me

parece significar um apelo dirigido às lideranças partidárias para que elas ajustem seus

programas a uma realidade política nova. Essa novidade seria atestada pelo populismo.

Vejamos como ele apresenta a tipologia:

“Os conceitos ‘puros’ de política de clã, política de oligarquia, política populista, política de grupos de pressão e política ideológica tendem a ser momentos sucessivos da nossa evolução. Todavia, ao surgir no país um tipo de política, os que lhe são historicamente inferiores não desaparecem necessariamente, continuam em vigência em determinadas áreas, em determinadas esferas da vida nacional com diferentes graus de intensidade. Pode-se afirmar que, atualmente, se registram no Brasil todos aqueles tipos de política. Nos meios rurais é máxima a vigência da política de clã e da política de oligarquia e mínima, por exemplo, a da política ideológica. Prevalece a equação ideológica, ao se focalizarem questões de âmbito nacional. Quanto menos gerais e mais locais os assuntos, mais provável a incidência da política de tipo histórico inferior.” (Ramos, 1961, p. 67)

Há muitos elementos que podem ser explorados nessa citação; por isso, em

outros momentos deste texto me reportarei a ela. No momento, quero apenas destacar a

sucessão histórica das formas políticas e, com outra citação que se faz necessária, como

Guerreiro analisa o populismo em relação às formas historicamente inferiores e em

relação a outras que lhe sucederiam. Sobre o populismo, ele escreve:

“O populismo é um avanço em relação à política de clã e à política de oligarquia. Esta superioridade decorre de sua infra-estrutura peculiar. Corresponde a um momento da evolução econômica em que a industrialização, perdendo o caráter marginal e ocasional, vai se constituindo em processo

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

consistente. Mas é claro que as primeiras gerações dos centros urbano-industriais ainda não podem apresentar aquela mentalidade classista que costuma caracterizar as gerações de trabalhadores providos de longa tradição de lutas. O populismo é uma ideologia pequeno-burguesa que polariza a massa obreira nos períodos iniciais da industrialização em que as diferentes classes ainda não se configuraram e apenas despontam, de maneira rudimentar. Em tais condições, a debilidade relativa do incipiente sistema produtivo não permite que as categorias dos trabalhadores tomem parte nas lutas políticas em obediência a programas próprios ou diferenciados. Ao contrário, justapõem-se num agregado sincrético, que pode ser considerado como o povo em estado embrionário. Esses contingentes recém-egressos dos campos ainda não dominaram o idioma ideológico. Seu escasso ou nulo enquadramento e treino partidário, sua tímida consciência de direitos, eis o que os torna incapazes de exercer influência pedagógica em seus líderes, os quais, por isso mesmo, não precisam de um libertarismo superficial em suas maneiras de ação. Com as suas diferentes qualificações, constitui expressão do populismo no Brasil o varguismo, e em suas coordenadas movimentam-se até agora os líderes João Goulart, Jânio Quadros, Tenório Cavalcanti (...).” (Ramos, 1961, pp. 56-7)

Destaco nessa citação o modo como o populismo é enquadrado. Em primeiro

lugar, como expressão política dominante; em segundo, como fenômeno relacionado a

uma infra-estrutura social determinada. Esta é configuradora da ordem urbano-

industrial, e que é distinta daquela em que têm lugar as formas clânicas e oligárquicas.

Sob tal apreciação, o populismo é menos objeto de avaliação valorativa do que como,

simultaneamente, fato a ser constatado e categoria compreensiva de uma constelação

histórica em formação. Tal constelação é a que diz respeito a um momento da evolução

econômica, em que a industrialização é a sua principal dinamizadora. A industrialização

acarreta mudanças qualitativas referentes a psicologia, modos de vida urbano e

definição das classes sociais.

O enquadramento do populismo como forma política dominante é atestado na

parte final da citação. São destacados nomes de lideranças expressivas da política

populista então atuantes. Atesta ainda esse enfoque do populismo como forma política

dominante o modo como a “política ideológica” é apresentada. Esta seria a “exigência

fundamental da presente fase do Brasil” (p. 60). Enfatizo a palavra “exigência” por duas

razões. Ela remete a uma compreensão da política ideológica menos como um fato do

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

que como possibilidade na época, e como um programa dentro do discurso nacionalista.

A política ideológica não se confunde com o nacionalismo. É um fenômeno da realidade

política que o nacionalismo, como teoria, vislumbra como possível de suceder à forma

então dominante: o populismo.

Em A Crise do Poder no Brasil, Guerreiro interpela dois tipos de atores sociais:

as lideranças partidárias e os cientistas sociais. Dos primeiros, reclama organização e

definição de programas;35 dos segundos, uma sociologia política reformulada (p. 46). O

nacionalismo, então, transcende tanto o fenômeno da política partidária quanto as

ciências sociais. O nacionalismo de Guerreiro Ramos é apresentado, ao mesmo tempo,

como militância junto às elites políticas e intelectuais e como teoria da sociedade

brasileira com a qual justifica o próprio apelo que está sendo feito a esses grupos. As

duas propostas são encaminhadas acompanhadas de análise política e sociológica, nas

quais diagnostica a crise política que estaria exigindo a ação dos partidos e da ciência

social.

Em A Crise do Poder no Brasil, as análises política e sociológica se entrecruzam

de tal modo que, como assinalei, encontro nesse livro a melhor forma de entrada para a

compreensão da maneira como o autor estrutura a sua concepção do país e da sua

trajetória histórica, o que pode ser identificado em outras obras. Nessas obras, são

utilizadas categorias de compreensão histórica que há algum tempo vinham sendo

elaboradas. Em virtude disso, o objetivo principal na análise de alguns dos textos

reunidos é identificar a estrutura de pensamento do autor e como ela informa a

compreensão histórica e atual da sociedade brasileira. Uma vez feito isso, estaremos em

condições de melhor compreender o próprio nacionalismo, não apenas no pensamento

35 Em “O Controle Ideológico da Programação Econômica”, escrito em 1958 e publicado em O Problema Nacional do Brasil (1960), Guerreiro reclama representatividade dos partidos políticos, o que seria indispensável ao processo de desenvolvimento econômico, visto terem se tornado “eminentemente políticas as soluções dos problemas econômicos nacionais”. Ele explica o que seria “a plena representatividade” do aparelho partidário: “Ela se concretizaria quando nossas instituições político-partidárias funcionassem de tal maneira que permitissem à comunidade tornar-se verdadeiro sujeito do acontecer histórico-social” (p. 217). A plena representatividade era urgente em um contexto em que “As cúpulas da atual organização partidária (...) controlam discricionariamente, segundo os seus restritos interesses, o lançamento dos candidatos às funções públicas. Quer-se dizer: elas pretendem fazer os representantes que desejam e nem sempre aqueles legitimamente formados pela revelação pública de suas capacidades” (pp. 217-8). Outro fator que contribuiria para a política de cúpula seria “o modo como se processam as eleições que pelo seu caráter oneroso, em termos monetários, não favorece a candidatura a postos legislativos de pessoas de recursos modestos, beneficiando mais aqueles que dispõem de meios materiais, embora muitas vezes destituídos de autenticidade, ou de escassa idoneidade ideológica” (p. 218).

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

de Guerreiro, mas como um fenômeno intelectual e político coerente com o modo como

a época era interpretada pelo autor.

4.3. “País com povo” e “país sem povo”

As categorias “país com povo” e “país sem povo” são centrais no diagnóstico do

que seria a crise do poder. É por meio delas que o autor procura identificar o caráter

estrutural do drama político, captando a coexistência tensa entre dois tipos sociais, cujo

antagonismo ter-se-ia revelado no limite no contexto das eleições, e do seu desfecho,

para a Presidência da República em outubro de 1960. A sinalização imediata da crise

estrutural mais funda é oferecida pelos partidos políticos. A análise dos partidos é

instrumental tanto para localizar o problema político específico quanto para aprofundar

a compreensão da natureza estrutural da crise política. No processo eleitoral que leva à

vitória de Jânio Quadros, o problema dos partidos se manifesta. Na análise da relação

entre os candidatos e seus vices com os partidos com os quais concorreram, detecta-se a

fragilidade das agremiações. Eis como o problema é exposto.

“Nos dias atuais, o sistema partidário formado no após-guerra chegou a um momento crítico. A última campanha sucessorial e os resultados do recente pleito de 3 de outubro de 1960 mostra que a nossa vigente organização partidária não reflete as qualificações do eleitorado. Visivelmente as direções dos três grandes partidos, o PSB, o PTB e a UDN, não foram capazes de encaminhar a sucessão nos termos que lhe convinham. Os candidatos, Marechal Lott e Jânio Quadros, são personalidades cujo lançamento na vida pública ocorreu à revelia dos grandes partidos. O segundo tem feito questão de assinalar que está acima dos partidos e, na campanha, quando reconheceu alguma ligação partidária, declarou-se militante do PTB, justamente o partido que apoiava o seu principal adversário. O candidato à vice-presidência da República, João Goulart, líder do PTB, companheiro de chapa do Marechal Lott, nem por isso deixou de ser também apresentado aos eleitores, notadamente em São Paulo, pelos clubes jan-jan, ou seja, como companheiro de chapa de Jânio Quadros. Por outro lado, o Marechal Lott foi originariamente candidato à Presidência da República por entidades extrapartidárias e jamais militou em qualquer partido.” (Ramos, 1961, pp. 77-8)

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

Desse quadro em que as eleições transcorreram, Guerreiro identifica o

desajustamento dos partidos tradicionais à realidade social e política. Na conclusão,

escreve que, “nas eleições passadas, patenteou-se que grande número dos eleitores não

votou partidariamente, votou com suas próprias preferências”. O desenquadramento dos

partidos estaria ensejando um tipo extraordinário de política: o bonapartismo. O

bonapartismo caracteriza uma situação em que, pela ausência de mediação partidária

entre o governo e o povo, o governante interpela diretamente os governados. Tal

situação acarreta prejuízos à livre organização da sociedade civil, visto que “o

bonapartismo suspende a força política das classes sociais e as transforma, por assim

dizer, em suplicantes diante do Estado” (Ramos, 1961, p. 37).

Notemos que Guerreiro Ramos identifica no bonapartismo a mesma relação

entre governante e governado que Francisco Weffort afirma fazer a promoção do

nacionalismo. É interessante que Weffort reclame do nacionalismo o fato de não terem

seus ideólogos proposto um reforço dos partidos, exatamente o que Guerreiro faz aqui.

Mas importa menos a crítica do que o diagnóstico, segundo o qual se assistia ao

enfraquecimento de organizações sociais intermediárias. De certo, esse é o ponto em

que me parece distinguirem-se as análises de ambos. Guerreiro põe acento no

robustecimento de condutas políticas personalistas ao lado do enfraquecimento das

instituições políticas, inclusive a do Estado. Weffort ressalta o fortalecimento do Estado

e a conduta autoritária. Mas o diagnóstico é o mesmo. Só que, em vez de conclamar

pela organização da classe trabalhadora, Guerreiro propõe uma solução de organização

política. Trata-se da organização dos partidos políticos. O fato de a tessitura social

apresentar-se cindida por interesses já configuraria elemento de pedagogia política,

cabendo aos partidos ajustarem-se, ideológica e organizacionalmente, a uma ordem

social em mudança.

Interessado em avançar a análise política rumo à compreensão sociológica,

importa, para Guerreiro, salientar o que de positivo se revelava naquele momento: o

aparecimento do povo. Tanto a inexpressividade dos partidos como o bonapartismo

estariam a confirmar a existência de povo. O fenômeno auspicioso, tanto para um

redirecionamento das organizações quanto para a sociologia política, é a emergência do

povo como categoria política. Essa emergência sinalizava uma mudança histórica, que

caberia à sociologia investigar. A novidade – o aparecimento do povo –, acarretando

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

atitudes políticas distintas por parte das elites políticas, é detectada na tipologia, já

citada, com a qual se identifica a forma política dominante em diferentes épocas.

Baseado no conceito de solidariedade mecânica de Dukheim, Guerreiro sugere

dois tipos sociais fundamentais que dariam apoio às diferentes modalidades políticas

(Ramos, 1961, p. 60). As formas clânicas e oligárquicas teriam suporte em um modelo

social formado por semelhanças, enquanto a divisão do trabalho ensejaria as

modalidades em que o povo se faria notar. A época em que o populismo era a forma

dominante atestaria um momento transitivo para aquela em que o eleitorado se

conduziria de forma mais autônoma. A caracterização dos dois tipos sociais e as atitudes

políticas correspondentes são também amparadas pelas observações de Gilberto Amado,

após a revolução de 1930, sobre a psicologia popular, e pela variação nos números das

eleições na história eleitoral brasileira. Segundo Gilberto Amado, “a extrema

uniformidade de opiniões políticas corresponde à extrema uniformidade de opiniões das

elites dirigentes” (Ramos, 1961, p. 60). Os números das eleições durante a República

Velha informavam que a maioria dos presidentes fora eleita com mais de 90% dos

votos, com escassas exceções, que assinalavam “momentos de agudas crises na

sociedade brasileira”, em que os eleitores demonstravam resistência às pressões. A

partir de 1945, Guerreiro identifica nos percentuais menores de voto dos presidentes

eleitos o que chama de “gritante progresso subjetivo das massas” (idem, pp. 63-4).

Em A Redução Sociológica (1965), o que é esse progresso subjetivo das massas

é explicado nos termos da configuração de uma estrutura social que habilitaria a

capacidade projetiva dos indivíduos, à qual estaria associada um potencial conflitivo.

Trata-se do que o autor denomina a “consciência crítica” no nível da vida ordinária. São

três os fatores da consciência crítica no Brasil: a industrialização, a urbanização e a

alteração do consumo popular.

É peculiar o modo como a industrialização é abordada. Embora seja uma

exigência da época, e dada a sua “envergadura”, que “contribui para caracterizar como

nova a atual etapa de nossa evolução histórico-social”, a industrialização é fato antigo.

Ela fora estimulada pelo setor exportador, o qual possibilitou a prática de pagamentos e,

conseqüentemente, “um movimento interno de transações econômicas de que se

beneficiava significativa parcela da camada popular” (Ramos, 1965, p. 67). A produção

mercantil interna continua em um crescendo, e se incrementa a partir de 1850. Ele

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

observa que, exceto nas décadas iniciais do século XVI, a importação jamais fora a

principal fonte de satisfação de necessidades internas, servindo como suplemento da

produção interna. Uma conseqüência importante dessas transações econômicas foi o

impacto desintegrador sobre as unidades domésticas, o que sugere o aparecimento de

uma vida urbana.

Com essa análise da evolução econômica, Guerreiro quer salientar o “dinamismo

interno” da economia e da vida comunitária brasileira, o qual teria como aliado um

“fator externo”: a exportação. Nessa análise, já está em aplicação o método redutor

defendido em A Redução Sociológica. O objetivo é apreender a história nacional,

desembaraçada de elementos externos que para ela contribuíram. Outro objetivo é

apreender o que, em outro capítulo da Redução Sociológica, o autor denomina a “linha

diretriz”,36 ou seja, a continuidade histórica manifesta em um vetor que aponta para o

futuro do embrião da nação. Outro aspecto, parece-me, é mostrar como uma disposição

para o consumo era fator endógeno, de maneira que a industrialização, na época em que

o autor escreve, se apresentava como um fato a exigir tratamento político e

organizacional e a promover a capacidade projetiva nos empresários, nos políticos e

consumidores em relação ao futuro nacional.

A urbanização, conseqüência da industrialização, assinalava a incorporação de

mais brasileiros a um “círculo de intensas (e tensas) relações”, especialmente

econômicas. Seus efeitos psicológicos incidiam sobre a capacidade de cálculo,

estimulada pela dependência cada vez maior da compra dos bens necessários à vida, na

medida em que os indivíduos saíam da esfera da produção para o autoconsumo,

tornando-se “essencialmente compradores”. As relações que a urbanização produz

“estimulam o individualismo, a competição, a capacidade de iniciativa, o interesse pelos

padrões superiores de existência” (Ramos, 1965, p. 74). Outro fator agregado à

industrialização e à urbanização podia ser verificado na diversificação da pauta do

consumo popular. A “simplicidade” do consumo, antes restrito a bens vegetativos

(alimentação, casa e roupa), passava a conviver com consumos mais sofisticados.

Seriam essas as condições que, no Brasil, estariam permitindo a generalização da

consciência política. Segundo Guerreiro, a sociedade que a urbanização forma é a que

tem “maior conteúdo político que a de rurícolas”, acrescentando: “Não é por acaso que

36 No quinto capítulo analiso como o autor trabalha com essa idéia de “linha diretriz”.

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

a consciência política se vem incrementando nos últimos anos. Está se formando entre

nós a categoria de verdadeiro povo, graças àquela incorporação. Não tem precedentes o

grau de politização que revelam as massas atuais do Brasil” (Ramos, 1965, p. 73).

Dessas considerações sobre os efeitos sociológicos dos três fatores, salientam-se

dois aspectos importantes. Primeiro, a análise da transformação estrutural baseada nas

categorias rural e urbano. Deduzo essas categorias do fato de Guerreiro referir-se ao

agrupamento social com menor conteúdo político como “rurícola”. Segundo, como tais

categorias informam sobre a experiência de tempo que estaria modificando

qualitativamente a psicologia do eleitorado.

Os quadros de referência histórica são rural e urbano, categorias espaciais

condicionantes de experiências distintas do tempo. No plano rural, os povos vivem em

uma condição “natural”, em que a relação com a natureza é imediata. Aí o tempo é

lento, uma vez que regulado pelo ritmo da natureza e não por pressões que só a

competição e o desejo por padrões mais elevados de vida podem promover. O rurícola,

escreve,

“tem de ser, portanto, um indivíduo pouco tenso em suas relações com objetos e outros indivíduos, uma vez que estas são, em larga margem, ajustadas à maneira habitual como os fenômenos naturais transcorrem. Em segundo lugar, a pequenez relativa das coletividades rurais, em vez de estimular acentuada diferenciação dos indivíduos, de diversificar seus objetivos e sua motivação, levando-os a adotar condutas fortemente competitivas, integra-os de modo profundo em grupos dotados de vigorosa consciência coletiva”. (Ramos, 1965, pp. 73-4)

Além do comportamento acomodado, entre as populações rurais não há lugar

para a experiência da individualidade e, portanto, de atitudes mais livres em relação aos

modos de agir sancionados pela tradição. Em relação à política, essa situação definiria

atitudes eleitoras tuteladas pela elite política. As categorias rural e urbano são centrais

na tipologia política. Vejamos como essa relação aparece na análise das condições que

possibilitariam a política populista em A Crise do Poder no Brasil:

“Mas a diversificação econômica do país, o crescimento da população e, em particular, das aglomerações urbanas são fatores que progressivamente enfraquecem as oligarquias. Nos

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

centros mais desenvolvidos surge uma população que, pela natureza de suas atividades, não carece da proteção dos chefes oligárquicos. À diferença dos trabalhadores do campo, que asseguram largamente sua subsistência do consumo direto da produção natural, os trabalhadores urbanos vivem da remuneração de suas atividades. Para os primeiros têm grande força coesiva os vínculos de localidade. O solo adquire, todavia, outra significação para os trabalhadores urbanos, não os prende e torna-se-lhes algo abstrato. O que os modela crescentemente é a natureza social de suas atividades, que os leva a transcender o lugar da localidade, da residência. O teor social da existência dos trabalhadores urbanos é mais rico do que o da vida camponesa, eleva a sua consciência. Gradativamente compreendem que o atendimento de suas reivindicações depende da escala em que passam a influenciar os governantes. O Estado começa a se lhes mostrar menos como o botim de oligarcas e seus protegidos do que como órgão de categorias sociais. Procuram estabelecer com os chefes políticos um vínculo distinto do que relaciona o oligarca com os seus clientes. Vêem no chefe político um homem identificado com os seus problemas e não pessoa a quem devem fidelidade e obediência.” (Ramos, 1961, p. 54)

Do exposto até aqui, quero destacar o modo como as categorias rural e urbano

informam uma compreensão da estrutura social brasileira nos anos 1950. Até aqui, a

teoria de Guerreiro em nada difere daquela apresentada por Florestan Fernandes, da

qual tratei no Capítulo 2. Ambos trabalham com as mesmas categorias para indicar o

sentido da modernização, a qual se estriba nas condições da ordem urbano-industrial.

Contudo, há mais um elemento na compreensão de Guerreiro que, se explorado,

modificará sensivelmente o significado das duas categorias, rural e urbano,

relativamente ao significado que, em particular, a segunda tem no pensamento de

Florestan Fernandes. Trata-se da idéia de diversidade regional. Para esclarecer melhor

essa diferença, retomo a conclusão a que cheguei sobre a relação entre a ordem urbano-

industrial e o conceito de sociedade em Florestan Fernandes.

Tal como já observei, há um momento em que a análise de Florestan sobre a

estrutura social brasileira prescinde da dicotomia rural e urbano, tomando a última como

referência para uma compreensão mais totalizante da sociedade brasileira. É com

referência à cidade como lugar da indústria e do tipo de trabalho vinculado a ela que a

totalidade social brasileira é pensada. À medida que a cidade passa a significar a própria

sociedade, ela passa a absorver, como sobrevivência histórica, o que antes era

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

apresentado como destacado dela, a mentalidade tradicional ou folclórica, antes

vinculada ao rural. Desse modo, é essa mentalidade que deve ser superada como entrave

ao moderno. O tradicionalismo ou atraso configura-se como resíduo em um contexto

civilizacional formado pela ordem urbano-industrial.

Ao prescindir das categorias rural e urbano, passando a focalizar o problema

mais em torno de dois tipos de mentalidade – o irracional e o racional –, Florestan acaba

por não enfatizar os problemas das diferenças regionais no que diz respeito à

desigualdade econômica entre elas. Nesse ponto é que Guerreiro concentra a sua crítica

aos estudos de comunidade, (des)qualificando-os como “detalhes da vida social”.

Florestan rebate essa crítica, observando que a importância desses estudos estaria no

fato de eles contribuírem para a explicação dos diferentes graus de desenvolvimento

entre as regiões, porém tudo isso partindo dos tipos de mentalidade,37 enquanto

Guerreiro se orienta pela idéia de desenvolvimento econômico desigual, o que

explicaria a subjetividade, hábitos e costumes.38

Aqui, interessa-me o fato de que o conceito de região não tenha sido tão

importante para a reflexão de Florestan quanto teve para o pensamento de Guerreiro

Ramos. Em Florestan Fernandes, a categoria de maior peso para a teoria é a sociedade

urbano-industrial.39 Com isso, sua compreensão totalizante da sociedade brasileira não

parte da idéia de território nacional, mas do próprio ideal da civilização industrial, ou

37 Cf. citação no Capítulo 2, p. 66. 38 O modo como Guerreiro Ramos alcança uma compreensão mais econômica dos fenômenos culturais já foi destacado no Capítulo 3, e ainda será retomado no próximo capítulo, em que analisarei como o autor vai migrando de uma compreensão da mentalidade popular para uma percepção econômica. Além de A Cartilha, a análise das desigualdades regionais pode ser encontrada em “Estrutura Atual e Perspectivas da Sociedade Brasileira (2a parte)”, publicado em O Problema Nacional do Brasil (1960). Nesse texto, o autor reclama como urgente o estudo das disparidades econômicas entre as regiões, acentuando o que seria a “descapitalização dos Estados do Norte”, ou “a expoliação das populações setentrionais pelo Sul”. 39 É dessa categoria urbano-industrial que Florestan deduz os dois tipos de mentalidade, racional e irracional, este último associado a idéia de folclore. Ao usar o termo folclore, estou designando uma compreensão do problema do atraso brasileiro em Florestan em termos mentais ou psicoculturais. No Capítulo 2 apresentei em uma citação como, sob essa rubrica, estão sendo designadas tradições populares, e o que o autor denomina pensamento mágico, apresentado como formas irracionais de pensamento. Parece-me que esta é, também, a forma de enquadramento do problema da incorporação do negro na sociedade de classes no estudo desse autor. Jessé de Souza (2003), em sua análise de Integração do Negro na Sociedade de Classes, chama a atenção para a importância que Florestan dá à organização psicossocial do negro, que, em virtude da sua situação de ex-escravo, o impediria de ingressar na ordem capitalista. Da mesma forma, Maria Arminda (1995) chama a atenção para o que nesse estudo de Florestan é interpretado como “um descompasso entre a ordem social (mais sincronizada com as alterações da estrutura econômica) e a ordem racial (de ajustamento mais lento às mudanças). Por essa razão, a ordem racial permaneceu atrasada, ‘como um resíduo do antigo regime, e só poderá ser eliminada, no futuro, pelos efeitos indiretos da normalização progressiva do estilo democrático de vida e da ordem social correspondente” (Arruda, 1995, p. 151).

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

seja, do que se entende por sociedade moderna. Em Guerreiro Ramos, a idéia de

diferenças regionais é fundamental para sua compreensão do que seria o atraso

brasileiro, manifesto nos hábitos de consumo, de medicação, de concepção da morte,

enfim, de diferenças culturais da população brasileira.

Com a questão das diferenças regionais, quero destacar ainda um outro ponto. A

idéia de região em Guerreiro nos remete a um outro tipo de síntese da sociedade

brasileira. Uma síntese que eu chamaria de territorialista. Vejamos como, nas tipologias,

ele faz uso sociológico da compreensão macroestrutural com base no território. Para

isso, vou repetir um trecho da citação:

“Pode-se afirmar que, atualmente, se registram no Brasil todos aqueles tipos de política. Nos meios rurais é máxima a vigência da política de clã e da política de oligarquia e mínima, por exemplo, a da política ideológica. Prevalece a equação ideológica ao se focalizarem questões de âmbito nacional. Quanto mais gerais e locais os assuntos, mais provável a incidência da política de tipo histórico inferior.” (Ramos, 1961, p. 67)

Esse trecho nos permite identificar algo mais que uma perspectiva evolucionista

na mudança de comportamento político. Notemos que, ao esclarecer sobre o caráter

típico ideal das modalidades políticas, Guerreiro chama a atenção para a vigência de

todas elas e, conforme a explicação baseada em Durkheim, como apontei antes, ele as

reduz a dois modos de apreensão básicos. No conjunto, os tipos políticos são

apresentados como sucessão histórica – formas passadas e atuais; ao mesmo tempo, são

todos formas políticas do presente – todas as formas são registradas atualmente –, e

podem ser reduzidos a uma dualidade: rural e urbano.40

Entendo o modo de pensar de Guerreiro como tridimensional. É um modo de

pensar histórico, antropológico e sociológico, equivalente ao que Wrigth Mills (apud

Giddens, 1984) chama de imaginação sociológica. As três dimensões – continuidade

temporal; diversidade, que, por sua vez, encerra temporalidades diversas; e

configuração no presente: rural e urbano – são todos aspectos de um mesmo fenômeno,

40 A relação entre dualidade, multiplicidade ou diversidade regional e o modo como nos integramos na economia mundial são detalhadas por Guerreiro em “A Problemática da Realidade Brasileira”, texto originalmente apresentado em conferência no ISEB em 1955, e publicado em O Problema Nacional do Brasil (1960).

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

o qual deve ser apreendido como “totalidade”. A história política é parte da totalidade, e

como parte contém as informações genéticas, à maneira de um DNA, da totalidade

inteira. Por isso, podemos abrir caminho através da história política e tentar encontrar,

por meio dela, o conceito suficientemente abrangente e abstrato que permitirá a

Guerreiro Ramos pensar a sociedade brasileira em termos das três dimensões: histórica,

múltipla e dual.

Das três, a compreensão da dimensão histórica é dependente do entendimento

das outras duas. Podemos dizer que da dualidade rural e urbano, característica mais

evidente da configuração social da época, chega-se a uma compreensão da diversidade

regional, e desta a uma compreensão da especificidade histórica brasileira. Em vários

textos, Guerreiro identifica a diversidade regional como a presença no Brasil da

“contemporaneidade do não coetâneo”, o que significa dizer a coexistência de várias

fases por que passara a civilização. Ignácio Rangel refere-se a esse fato, que no seu

pensamento o conduz ao que considera ser a lei básica da economia brasileira, da

seguinte forma: “que o Brasil é um país no qual se pode estudar a história universal

simplesmente viajando do litoral para o interior. Trata-se de que, no Brasil, as várias

etapas por que a civilização passara podiam ser encontradas”.41 Conforme a exposição

desse fato por Rangel, podemos perceber nas categorias litoral e sertão o modo como se

adentra no problema da desintegração e isolamento entre as regiões do país. É por meio

dessas categorias formuladas por Euclides da Cunha que, segundo Guerreiro Ramos, se

pode ter uma primeira percepção do que seria a especificidade da formação histórica

Brasileira.42 Mas, segundo ele, coube a Inácio Rangel desenvolver o argumento lógico e

histórico da dualidade como “lei estrutural básica” da nossa formação social. É à luz da

idéia de dualidade que Guerreiro Ramos realiza as críticas iniciais ao caráter

transplantado em boa parte dos estudos brasileiros e das idéias que orientaram a

construção do aparelho político e administrativo. Decorre dessa situação o que ele

identifica como sendo a heteronomia na sociedade brasileira e relacionado a essa

41 Citando trecho da obra de Rangel, essa simultaneidade é atestada pelo fato de que, no Brasil, “temos, diz Rangel, o comunismo primitivo nas tribos selvagens, certas formas mais ou menos dissimuladas de escravidão, nas áreas pioneiras, onde, sob a aparência das dívidas, se compram e vendem, não raro, os próprios homens; temos o feudalismo, sob diversas formas, um pouco por todo o país; temos o capitalismo em todas as suas etapas: mercantil, industrial, financeira. Por cima de tudo isso, temos o capitalismo de Estado que, do ponto de vista formal, pode ser confundido com o socialismo” (“A Problemática da Realidade Brasileira”. In: O Problema Nacional do Brasil, 1960, p. 89). 42 Guerreiro atribui também a Silvio Romero a percepção da dualidade.

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

característica estrutural da nossa formação: a alienação, o amorfismo e a

inautenticidade.43

Podemos dizer que, até o estudo de Ignácio Rangel,44 Guerreiro teria ancorado

suas críticas em uma visão mais impressionista da dualidade. A explicação lógica e

histórica da dualidade, como característica da nossa formação decorrente do modo como

o país se integra no mundo por via do comércio internacional, só veio a ser clarificada,

como ele admite, com o estudo de Ignácio Rangel. Na apresentação do livro de Rangel,

Guerreiro ressalta o modo como o “método histórico” é utilizado, o qual fora

fundamental na “originalidade” do estudo. Comparando esse método com o manejo da

história por autores marxistas, assinala nestes três deficiências, das quais destaco as

duas últimas. Os autores marxistas

“tenderam a aplicar aqui de modo mecânico, não apenas as conclusões, mas também as categorias dos estudos marxistas realizados na Europa, o que levava a ver analogia entre formação do capitalismo brasileiro e dos países europeus, dispensando-os de um esforço de dinamização do método histórico. Finalmente, em virtude dessa inconsistência, foram de certo míopes em relação às especificidades históricas do processo brasileiro, as quais só se poderiam revelar se menos passiva e mais crítica tivesse sido a assimilação da doutrina marxista”. (Ramos, 1957, p. 4)

O que deve ser destacado e indagado é o fato de que a descoberta da

especificidade da economia brasileira é ela mesma condicionada pela noção de que há

uma especificidade. É a própria noção da dualidade que preside a descoberta dela como

lei estrutural básica da economia e dos fatos culturais e políticos. Isso se deve ao modo

como nos integramos, desde a Colônia, à economia internacional, por meio do

43 Sobre isso, o autor escreve: “Mas a lei da dualidade, como disse, pode ser generalizada para todos os aspectos da vida brasileira. Tanto coletiva como individualmente, temos sempre um repertório de posturas expressamente pra inglês ver. Pra inglês ver é, em grande parte, o nosso aparato institucional. Todavia, observe-se que o caráter transplantado das instituições brasileiras só à luz da lei da dualidade se explica objetivamente” (“A Problemática da Realidade Brasileira”. In: O Problema Nacional do Brasil, 1960, p. 90). A heteronomia significa imitação de idéias e comportamentos do outro estrangeiro, incluindo aí até os hábitos de consumo imitados das nações mais desenvolvidas. Da heteronomia decorrem a alienação, que ele define como o antônimo de autodeterminação, e a inautenticidade, que significa o fato de o país “pautar-se econômica, política, social e culturalmente por normas que não permitem a atualização de suas possibilidades e que vigoram à custa de contínuo deficit de seu ser” (p. 96). 44 Para uma análise mais detalhada da teoria de Ignácio Rangel sobre a dualidade básica, ver Bielschowsky (2000) e Guimarães (1998).

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

comércio. Essa dualidade básica, segundo Guerreiro Ramos, é que explicaria não só a

nossa história, mas também a configuração das classes sociais no Brasil. A explicação

das classes, na época em que escreve, por sua vez, é dependente da dualidade rural e

urbano, que seria o desdobramento histórico-sociológico da principal dualidade.

Em O Problema Nacional do Brasil (1960),45 o autor retoma a análise de Rangel

e a aplica à compreensão da situação das classes sociais no Brasil. Segundo Guerreiro,

em virtude do modo como nos integramos à economia mundial, verificou-se, desde

antes da Independência, uma aliança entre proprietários rurais e comerciantes. Essa

aliança teria impedido o antagonismo de interesses entre a classe comercial e o

latifúndio, como ocorrera na Europa entre burguesia mercantil e senhores feudais. Ela

teria protagonizado os principais eventos políticos que levaram o Brasil à emancipação

política. Constituíam-se, então, os interesses latifundiários e mercantis a dominar a vida

política até os dias em que escreve.

Ao lado dessa vigorosa aliança é que vinha se formando a burguesia industrial.

Ao lado, ou seja, não como conseqüência da transformação de comerciantes em

burgueses industriais, como na Europa. Esse fato – o de não ter a burguesia industrial se

originado da classe dos comerciantes, permanecendo estes aliados ao latifúndio –

caracterizaria o Brasil pela simultaneidade de fases históricas diferentes. Nisso

consistiria a dificuldade de uma revolução burguesa, devido à dependência do setor

industrial das classes econômicas mais antigas.

Outro fator a impedir a revolução burguesa seria o fato de o capitalismo

industrial no Brasil surgir em um momento de expansão do capitalismo “cêntrico”. Com

a expansão econômica, financeira e técnica, o capital estrangeiro estaria inibindo a

iniciativa e a consciência de classe dos industriais brasileiros, o que os impedia de se

conduzirem como protagonistas no processo de desenvolvimento econômico.

Outro fator, ainda, a impedir um maior arrojo da burguesia industrial é o ter ela,

no seu nascimento, se defrontado com um proletariado já institucionalizado e

legalmente reconhecido. Isso teria sido decorrência da formação industrial tardia no

Brasil, o que provocou um “acavalamento dos papéis históricos da burguesia nacional e

do proletariado”. Essa situação explicaria a timidez da burguesia, que seria levada a

45 O texto é “Nacionalismo, Ideologia dos Povos Periféricos”, seção “Princípios do Povo Brasileiro”, conferência realizada na Faculdade Nacional de Filosofia, em março de 1959, a convite do Diretório Acadêmico.

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

“frear-se ou não se lançar em iniciativas arrojadas, temerosa de perder em curto prazo as

vantagens de que desfrutava” (Ramos, 1960, p. 237).

Apesar desse “acavalamento” entre os dois atores históricos, Guerreiro Ramos

identifica, no proletariado urbano, a “classe mais avançada, porque portadora de mais

vigorosa consciência dos seus interesses do que as outras”. Nesse ponto, ele distingue o

proletariado urbano do rural, descrevendo este da seguinte forma:

“Os trabalhadores do campo, nas condições prevalecentes, são contrapeso das lutas trabalhistas urbanas, oferecendo, como eleitores conduzidos e cidadãos pouco iniciados na consciência dos direitos civis, a base social de que necessitam as seções capitalistas mais antigas para manter as prerrogativas do poder que ainda possuem.” (Ramos, 1961, pp. 237-8)

Os dois tipos de proletariado são contrastados como “suportes de tendências

distintas”: o latifúndio mercantil e a burguesia industrial. No meio social em que residia

o proletariado rural é que ainda seriam vigentes as formas clânicas e oligáquicas de

política, enquanto o meio urbano sustentaria os tipos populistas em trânsito para o que

seria a “política ideológica”, referente a uma ordem política, econômica e social

competitiva. Só com o desenvolvimento econômico é que as relações sociais do campo

seriam desagregadas, o que dependeria da força do proletariado urbano, aliado à

burguesia industrial e a parte da classe média. Apesar de nascida fora do mundo das

atividades produtivas e em grande parte parasitária, Guerreiro escreve que “expressiva

margem da nossa classe média, tendo mantido continuamente estreitas relações com o

povo, esposa tendências progressistas e é aliada natural dos trabalhadores” (Ramos,

1960, p. 239).

Finalizando esse ponto, notemos que a dualidade interna, rural e urbano, é

explicada por outro tipo de dualidade, a histórica, que remonta ao modo como

começamos a existir como nação por meio da forma do nosso ingresso na economia

mundial. É com esse início que a história nacional do Brasil se realiza. História formada

pela relação de dependência com nações mais adiantadas econômica e politicamente,

relação esta que, uma vez explicada com o auxílio das ciências sociais, incluída aí a

ciência econômica, poderia ser superada. Daí a grande importância que as ciências

sociais teriam na emancipação daquela situação, e a convocação que Guerreiro faz aos

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

intelectuais para uma atitude militante e interessada, o que significava atitude

desalienada, em suma, convertida aos propósitos de autodeterminação nacional.

A idéia de povo pode ser entendida, também, a partir do diagnóstico de uma

sociedade vista como internamente desarticulada. Essa desarticulação seria verificada

entre as regiões do país, entre as classes sociais, entre elite e pessoas comuns, ricos e

pobres, tipos e comportamentos políticos díspares e entre fases históricas diferentes, que

se apresentam em coexistência simultânea. Na definição do autor: “O povo é um

conjunto de núcleos populacionais articulados entre si pela divisão do trabalho,

participantes de uma mesma tradição e afetados de uma mesma consciência coletiva de

ideais e de fins.” No Brasil, o povo seria uma ficção

“a que recorriam os grupos e as classes dirigentes para dar ao país forma aparente de nação. Esses grupos e classes herdaram do colonizador europeu vasto território dotado de unidade administrativa e lingüística, mas habitado por populações dispersas e isoladas que não se articulavam entre si suficientemente para formar um povo”. ( Ramos, 1960, p. 229)

Nesse sentido é que a idéia de povo aparece como símbolo, como recurso

ideológico, afetivo, que apela à emoção, a fim de ensejar uma solidariedade nacional,

sem o que o processo de construção da nação não se efetivaria, e mais adiado seria o

projeto de emancipação da dependência. Por isso, a ideologia que orientaria a ação com

vistas à emancipação teria de ser o nacionalismo.

O nacionalismo é ideologia, mas também se apresenta como ciência, como teoria

social, política, econômica, histórica do Brasil. Como bem diz Maria Silvia Carvalho

Franco, “o pensamento do ISEB caracteriza-se a si mesmo como ideologia e se nutre da

grande fonte de verdade moderna: a ciência”. Mas, que tipo de ciência? Trata-se de uma

ciência social comprometida com o que entende ser a realidade nacional. O primeiro

passo para tal ciência seria a organização do seu arcabouço conceitual, que deveria ser

elaborado a partir da realidade social imediata, na qual se deseja interferir. Em “A

Problemática da Realidade Nacional” (1960) e A Redução Sociológica, Guerreiro

apresenta uma discussão epistemológica e metodológica em que defende quais seriam

os fundamentos metodológicos e normativos de uma sociologia militante. O tema da

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

próxima seção será analisar a relação entre ciência e ideologia no pensamento do autor,

e como a sociologia do conhecimento esclareceria essa aliança.

4.4. Ciência e ideologia

Ao discutir métodos e orientações da ciência, Guerreiro Ramos se posiciona a

favor de uma sociologia que não exclua dela a ideologia. Ciência e política aparecem

como vocações que não se excluem. A reflexão sobre esse tema já aparece em artigo

sobre Max Weber publicado na Revista do Departamento de Administração do Serviço

Público – Dasp (1946). Neste autor, Guerreiro destaca como a reunião da sensibilidade

política com a científica resultou em uma “compreensão militante do seu tempo”:

“A sociologia de Max Weber não é uma construção acadêmica, mas é fruto de uma nítida vocação política e também de um acendrado escrúpulo científico, para transpor o abismo em que a sociedade do seu tempo, que é o nosso, parecia afundar-se.” (1946, p. 129)

Guerreiro destaca o caráter “militante”46 da sociologia weberiana, referindo-se

ao contexto de sua elaboração. Tratava-se de uma:

“(...) época em que os objetivos da sociedade e aqueles da personalidade particular de cada homem parecem contraditórios, época, portanto, eticamente descaracterizada, de onde está banida, por ser desnecessária e inconseqüente, a eloqüência do heroísmo humano”. (1946, p. 30)47

46 Esse tipo de pensamento militante caracterizaria um modelo de intelligentzia distinto do modelo russo. Este, de “caráter cismático”, leva a identificar como essencial à intelligentzia a atitude subversiva e anárquica. Guerreiro rejeita este tipo, definido assim por Ares Pon, afirmando que o que caracteriza a intelligentzia é a militância e o “pensar independente”, o pensar, mencionando Mannheim, “que se esforça por ser liberto do ponto de vista exclusivo de uma classe” (1946, p. 186). Nesse sentido, exemplares desse modelo foram o “círculo weberiano”, na Alemanha, e a “sociedade fabiana”, na Inglaterra, que apontaram alternativas e caminhos sem cismas políticos e sociais. 47 A sociologia de Max Weber também teria sido influenciada pelo problema nacional, interpretado nos mesmos termos em que interpreta o problema nacional brasileiro: “Max Weber, uma da figuras mais completas de sociólogo, jamais se distraiu em seus estudos e em sua vida prática do problema nacional alemão. É significativo que sua lição inaugural em 1894 na Universidade de Freibugim-Breisgau se intitulasse: O Estado Nacional e a Política Alemã. Neste trabalho tratava da imaturidade da burguesia alemã, que naquele momento o sociólogo julgava inapta a exercer a liderança política da nação. Weber percebia que a burguesia nascente de seu país, ao contrário dos junkers em declínio, era dominante, mas não dirigente, e, de sua parte, procurava influir para a configuração do que chamava Machtstaat, de um Estado a serviço da nação alemã como um todo e não tributário de uma classe” (1946, p. 188).

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

Em “Ideologia e Segurança Nacional”,48 essa relação é fundamentada pela

sociologia do conhecimento. Essa modalidade do conhecimento sociológica conferiria

um status legítimo à ideologia, como sendo ela própria ciência, uma ciência que

“procura explicar a gênese das idéias”. Refutando a idéia negativa de ideologia “como

equivalente a formas inidôneas de pensamento”, Guerreiro defende que:

“No estudo da gênese do pensamento e das condutas, a análise sociológica operou o que se pode considerar como verdadeira revolução copérnica, ao descobrir a origem social de nossas idéias e de nossos motivos. O homem é um ser social e historicamente constituído. Não existe, para ele, a possibilidade de debruçar-se sobre a realidade social, como se fosse um Eu puro, incondicionado, liberto de influências circunstanciais. Essa ilusão do realismo é hoje insustentável perante a argüição da ciência e da filosofia – o que constitui um escândalo para a consciência ingênua dos que consideram certos e absolutos os modos de ser e de pensar do seu grupo, e errados e extravagantes os dos grupos estranhos. O homem não está cindido da realidade histórico-social. O indivíduo e a sociedade constituem uma realidade social.” (Guerreiro, 1960, p. 43)

Em “A Problemática da Realidade Brasileira” (1956), Guerreiro Ramos

contrapõe a sociologia do conhecimento à sociologia academicamente praticada, nas

suas palavras, de origem durkheimiana e americana. Seria em torno de dois padrões de

ciência que a “realidade social é atualmente ‘questão disputada’”, e que, segundo ele,

seria uma categoria mais pressuposta do que explícita entre os sociólogos”. O uso

“corrente” do conceito de sociedade conduziria a uma visão “coisificada” da sociedade

brasileira, o que significava considerar a sociedade como um dado, como “realidade

social produzida” e não “em produção”. Eis os termos com que ele explica a diferença

entre esses dois tratamentos:

“Ainda vigoram, em nossos dias, correntes que, implícita ou explicitamente, admitem uma noção empírica da realidade social considerando-a como algo ‘coisificado’, objetivado, exterior ao homem. A essa atitude, sem dúvida, corresponde uma redução da perspectiva à sociedade produzida, isto é, aos aspectos objetivos da realidade social, aos aspectos em que se no apresenta externamente, em seu revestimento empírico. É certo

48 Conferência realizada no ISEB em 1957 e publicada em O Problema Nacional do Brasil (1960).

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

que essa realidade nos é dada diretamente, na forma empírica de seus ingredientes, na qual se incluem não só seus elementos visíveis, sua base geográfica, sua população, etc. como outros elementos igualmente concretos, porém menos materiais como as atitudes, os símbolos, as condutas padronizadas. Todos esses elementos nos são dados empiricamente, sem dúvida. Todavia não se alcança satisfatoriamente a realidade social enquanto se pretende reduzi-la a tais ingredientes.

(...) Esses ingredientes, na verdade, constituem a realidade social

produzida. Existe, porém, a realidade social em produção, em particípio presente, e que em última análise se reduz à mediação. Os ingredientes empíricos da realidade se dinamizam pela mediação do homem... A realidade social, como diz Heller, é efetividade humana, realidade efetuada pelo homem.” (Ramos, 1960, p. 80)

A sociologia de Durkheim, sistematizada em As Regras do Método Sociológico,

concebe os fatos sociais como neutros, desconsiderando as intencionalidades humanas.

As regras propostas por Durkheim, junto com a antropologia americana, se traduziriam,

no Brasil, em estudos que se reduziriam a “mera coleção de fatos, de estudos

monográficos, ‘surveys locais’”, que não contribuiriam para uma compreensão da

totalidade social e para percebê-la em processo.

A sociologia do conhecimento, em Guerreiro, deveria ser aplicada ao estudo

tanto do conhecimento da vida cotidiana quanto do conhecimento da totalidade social.

Com o primeiro tipo de aplicação, a sociologia poderia compreender as transformações

que estariam ocorrendo na psicologia popular, manifesta no modo como o eleitorado

vinha se comportando. Com o segundo, os fatores que estariam ensejando tais

modificações, como a industrialização e suas conseqüências: urbanização e alteração no

consumo popular. Além disso, com a compreensão da totalidade social na fase histórica

em que se encontrava, poder-se-iam compreender, também, os entraves ideológicos ao

desfecho do processo histórico, os quais se deveriam à dualidade decorrente da forma de

intercâmbio com as nações mais economicamente adiantadas. Dessa forma, tanto as

atitudes e pensamentos autodeterminativos quanto os alienados também poderiam ser

compreendidos. Com o esclarecimento das condições sociais do pensamento, as quais

são sempre ideológicas, “autênticas” ou “inautênticas”, a sociologia do conhecimento

auxiliaria na formulação da ideologia nacional.

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

O método sociológico é proposto em A Redução Sociológica (1965), e é

inspirado na fenomenologia, na filosofia da existência e na sociologia do conhecimento.

Ao mesmo tempo que Guerreiro apresenta o método, procura fundamentá-lo nas

próprias condições objetivas e subjetivas em transformação das sociedades periféricas e

daquelas emergentes do colonialismo. No Brasil, o fato auspicioso para o método da

redução sociológica seria a configuração da “consciência crítica” da nossa realidade. A

consciência crítica, segundo o autor, “surge quando um ser humano ou grupo social

reflete sobre os fatores que determinam a sua personalidade histórica e se conduz diante

deles como sujeito” (Ramos, 1965, p. 61).

No Brasil, a consciência crítica seria fenômeno de massas em virtude da

industrialização e suas conseqüências. Nas nações asiáticas e africanas, a aspiração à

história, apesar de elas não terem ultrapassado a condição colonial, confirmaria a

propagação da consciência crítica. Nas conferências de Bandoeng (1955), do Cairo

(1957) e de Acra e Tânger (1958), essas nações apresentaram pontos de vista próprios, e

o “propósito de pautarem suas ações segundo normas derivadas de projetos autônomos

de existência” (Ramos, 1965, p. 61).

Os fatos relacionados aos nacionalismos naquelas nações é que estariam

despertando o interesse pela fenomenologia e pela filosofia da existência, que

tematizam o “histórico”. Essas filosofias poderiam responder à indagações sobre a

natureza da transformação histórica por que passam essas populações, de uma posição

passiva a uma autodeterminativa. Essas indagações repunham no cenário intelectual, a

divisão dos povos em naturais e históricos. De acordo com Hegel:

“A existência propriamente de um povo começa quando este povo se eleva à consciência (...). Para o filósofo, seria a história uma camada ôntica superposta à natureza. Se o Oriente – pensa Hegel – carece de história, é porque aí ‘a individualidade não é pessoa’, está ‘dissolvida no objeto’ (...). Não importa que, nesta condição, encontrem-se ‘Estados, artes, ciências incipientes – tudo isso se acha no terreno da natureza.” (apud Ramos, 1965, p. 166)

A tomada de consciência assinala o ponto alto que se atinge da cultura quando,

“segundo Hegel, um povo ‘compreende o pensamento de sua vida e de seu Estado, a

ciência de suas leis, de seu direito e de sua moralidade” (Ramos, 1965, p. 166). É nessa

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

capacidade de compreensão que reside a capacidade de emancipação em relação aos

objetos e às coisas. Quando esse desencaixe ocorre, “um grupo social põe entre si e as

coisas que o circundam o seu projeto de existência” (Ramos, 1965, p. 58).

Com a teoria do histórico de Arnold Toymbee, Guerreiro introduz uma

compreensão sociológica da liberação da consciência. Neste autor, a identificação das

pessoas com as coisas configura-se pela pressão dos costumes. Nessa perspectiva, o

tradicionalismo aparece como atributo dos povos naturais, e com ele estaria impedida a

emancipação da consciência (Ramos, 1965, p. 166).

Fazendo uso dessas categorias, povos históricos e naturais, Guerreiro deriva

deles a qualificação da consciência como crítica e ingênua. A consciência crítica é

compreendida como “personificação e conquista da liberdade”, fato entre os povos

históricos. A consciência ingênua seria “puro objeto de determinações exteriores”. A

qualificação da consciência como ingênua pode ser compreendida, também, à luz do

mesmo tipo de adjetivação dada a um tipo de nacionalismo, distinto daqueles

observados nas colônias insurgentes. Comparando os nacionalismos em O Problema

Nacional do Brasil, ele escreve:

“O nacionalismo ingênuo é o mais incipiente. Consiste numa reação elementar da auto-exaltação do grupo, próximo do fenômeno que os sociólogos denominam etnocentrismo. Todo grupo, uma família, uma associação, uma tribo, uma nação, tende a reforçar os seus laços de coesão interna, discriminando acriticamente os estranhos e afirmando enfaticamente os caracteres próprios. Há certamente um nacionalismo ingênuo que, em sua expressão limite, poderia ser resumido na fórmula: ‘tudo que é brasileiro é bom, tudo que é estrangeiro é mau...’.” (Ramos, 1960, p. 245)

Nesse tipo de nacionalismo, identificam-se as mesmas inclinações para que uma

comunidade, pressionada pela tradição, se feche sobre si mesma. Assim como ele

corresponde à consciência ingênua, o nacionalismo preconizado pelo autor corresponde

à consciência crítica. Seria o tipo verificado nas colônias afro-asiáticas:

“Mas a reação ao colonialismo que hoje se verifica no meio afro-asiático é quanto ao caráter, distinta das anteriores. É reação ao colonialismo considerado como sistema, é a reação mediante a qual esses povos fazem uma reivindicação cujo

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

conteúdo não é parcial, mas infinito, universal. É que pretendem ser, eles também, sujeitos de um destino próprio. Nas sociedades coloniais apareceram hoje quadros novos, empenhados num esforço de repensar a cultura universal na perspectiva da auto-afirmação dos seus respectivos povos. Não é um comportamento romântico que levaria esses povos ao enclausuramento, a se apegarem a seus costumes sob alegação, realmente suicida, de preservá-los em sua pureza; é antes uma atitude que não exclui o diálogo; pois contém a consciência de que, para ser historicamente válida, a auto-afirmação dos povos deve confluir para o estuário de todas as culturas da humanidade. Tal é a perspectiva em que se acham semelhantes quadros.” (Ramos, 1965, p. 62)

A partir da caracterização da consciência e do nacionalismo ingênuos,

identificamos o nacionalismo de Guerreiro Ramos em uma perspectiva universalista. A

consciência crítica é cosmopolita, mas é no nível nacional que ela é primeiramente

possível. A condição universal do ser é a nação. Ao defender uma sociologia nacional,

Guerreiro tem consciência de que, postas nesses termos, suas teses suscitavam uma

reação de desqualificação do que entendia por ciência. Percebe-se, na maneira como

distingue o nacionalismo ingênuo do crítico, uma defesa contra uma desqualificação das

suas idéias e, ao mesmo tempo, uma atitude ofensiva contra o que se acreditaria ser uma

atitude cosmopolita em matéria de ciência. O par “povos naturais e povos históricos”

pode ser entendido como expressando mais uma forma da dualidade que configuraria a

realidade brasileira. De um lado, um Brasil que não fez o ingresso no histórico e que, no

nível da consciência, seria “puro objeto das determinações exteriores”. Corresponderia à

parte da produção de conhecimento, que, supondo a neutralidade do conhecimento,

creditando a esse caráter o seu universalismo, nada mais faria do que ser determinado

pelo ser histórico de outra nação. E de outro, o Brasil que, a seu ver, estaria fazendo sua

entrada no histórico, sendo para isso necessário uma autoconsciência nacional, para a

qual a atitude cognitiva da redução sociológica seria necessária.

Por isso, A Redução Sociológica é dirigida, principalmente (é assim que

entendo), aos sociólogos, na forma de discussão metodológica e epistemológica sobre a

produção de conhecimento do mundo social. O objetivo principal nesse estudo é provar

o caráter intencional da consciência e o seu enraizamento histórico e social circunscrito

a uma realidade social mais imediata, que é a nação. A análise da natureza da

consciência e do modo com ela vem a se constituir no que é, ou seja, como consciência,

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

é estribada nas reflexões ou “descobertas”, como o autor diz, da fenomenologia e da

sociologia do conhecimento.

4.5. Os pressupostos filosóficos e sociológicos da redução sociológica

Em Hurssel e Heidegger, Guerreiro Ramos encontra o que denomina os

pressupostos filosóficos da redução sociológica. Ele credita a redução ao método

filosófico de Hurssel, que “procura levar o sujeito a uma experiência transcendental em

que somente pode ocorrer o defrontar-se do eu puro com o objeto puro” (Ramos, 1965,

p. 96). São três as reduções a que se deve proceder: a histórica, a eidética e a

transcendental. É com esta terceira que a consciência se revela intencional, como

“consciência de”, como “essencialmente referida ao objeto”. É nessa descoberta de

Hurssel que, me parece, Guerreiro está principalmente interessado, com vistas a provar

o caráter condicionado de todo conhecimento, a começar pelo objeto particular ao qual

ela se refere, e com isso defender sua tese do conhecimento como ideologia.

Com Heidegger, a consciência que, em Hurssel, se situa em um nível

transcendental adquire um condicionamento mais objetivo. A consciência, segundo

Heidegger, pressupõe a idéia de mundo:

“Coube a Martin Heidegger mostrar, com particular realce, que a epoché implica o problema do mundo. O eu e os objetos estão na história e assim a ‘vivência intencional’ que os liga verifica-se no mundo. Para Heidegger, o sujeito jamais é um ‘eu puro’ ‘transcendental’; ao contrário, é um ser no mundo.” (Ramos, 1965, p. 97)

Com Heidegger, Guerreiro quer fazer a passagem do idealismo filosófico para a

sociologia e descobrir as circunstâncias concretas e existenciais da consciência que, em

Hurssel, se revela intencional. O sujeito de Heidegger é o homem do dia-a-dia, do

cotidiano, em sua condição primordial no mundo social. Para ele: “Em qualquer

momento de sua existência, o homem está no mundo ‘preocupado com suas tarefas,

absorvido por seus interesses’ em familiaridade com o complexo de objetos que o

circundam” (Ramos, 1965, p. 97).

O conhecimento que se tem do mundo, imerso na cotidianidade, é, no entanto,

um conhecimento “ateórico e pré-ontológico”. O modo de alcançar o conhecimento

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

teórico é a eliminação do ponto de vista cotidiano. Guerreiro exemplifica essa

eliminação escrevendo que é o que ocorre quando se considera o martelo “suspendendo

o seu significado referencial, que é o de martelar”. Podemos dizer que, além de

martelar, a reflexão teórica indaga sobre o “para quê” da utilidade de martelar. Com

isso, aparece, com Heidegger, uma outra acepção da palavra intencionalidade, o para

quê:

“Desde já se torna evidente que, no domínio da redução sociológica, há duas acepções da palavra intencionalidade, estritamente ligadas, para as quais se deve estar sempre alerta. Numa acepção, usa-se a palavra para esclarecer que a consciência está sempre referida aos objetos. (...) Na outra acepção, a palavra designa o conteúdo significativo ou referencial dos objetos no mundo, o para quê.” (Ramos, 1965, p. 99)

Reside nessa segunda acepção da palavra intencionalidade a crítica que

Guerreiro faz, em A Problemática da Realidade Brasileira, do modo como a sociedade

seria tratada de modo positivista. A sociedade tratada como “algo coisificado”,

descurando-se da atividade humana criadora nela interveniente. O mundo, segundo

Heidegger,

“é mais existente que as coisas perceptíveis, com as quais podemos contar, no meio das quais nos acreditamos em casa (atmosfera de vida) quotidiana. Mas o mundo não é, jamais, um objeto que se encontra diante de nós. É o que é, sempre não-objetivo. Não sendo nem um objeto, nem uma coisa, não é porém um termo abstrato. O mundo é mais concreto que todo objeto concreto, porque é em realidade nele e a partir dele que tudo que aparece e tudo que é presente surge e se coordena. O mundo é o não-objetivo do qual nós dependemos...”. (apud Ramos, 1965, p. 99)

Com Hurssel e Heidegger, a filosofia se mostra fundamental para a defesa do

caráter interessado do conhecimento, o que decorre mesmo da estrutura da consciência,

do modo como ela vem a ser o que é: consciência. Com Heidegger, Guerreiro procura

fundamentar sua defesa do caráter condicionado da consciência, na medida em que ela

implica a idéia de mundo. O mundo, por sua vez, não se resume a uma coleção de

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

objetos definidos apenas pela sua utilidade nem só pela sua função em um organismo

social. Os objetos se integram em uma “totalidade mundo” dotada de sentido, em que

eles, além da função, veiculam um “para quê”, o que os vincula à consciência que deles

se utiliza, de modo que consciência e objeto estão reciprocamente relacionados e são

mutuamente determinados.

Essa idéia de mundo de Heidegger integra o que Guerreiro entende por

totalidade histórico-social. A totalidade implica a consciência, nas suas duas acepções,

relacionando consciência e objeto e a reciprocidade entre eles. Podemos dizer que os

objetos, o modo como estão relacionados com a consciência, fornecem um conteúdo

materialista à consciência, mas não determinam o uso que se faz da utilidade que eles

possuem, pois o uso é prerrogativa do sujeito na sua relação com outros sujeitos.

A consciência, como sempre intencional, e os objetos requerem também

delimitação histórica, pois têm de ser entendidos como historicamente condicionados.

Então, além da totalidade como mundo, a totalidade deve ser compreendida como

histórica. A história, por sua vez, exige delimitação, o que, segundo Guerreiro, é

preocupação das ciências sociais, desde Vico. Guerreiro designa a delimitação histórica

pelo conceito de “fases”. Cada fase histórica compreende uma totalidade, em que “tudo

que acontece em determinado momento da sociedade adquire o seu exato sentido”.

Baseado em Hegel e em Marx, a totalidade designa cada uma das grandes seções

históricas, como “combinação de fatores”. Marx, na sua fase materialista, buscou uma

compreensão histórica relacionando as condições da vida material com as idéias. Mas

Guerreiro evita uma compreensão da totalidade em que um fator determina os demais.

Por isso, ele encontra no estudo de Marcel Mauss sobre o potlatch uma contribuição

mais adequada para o modo como a totalidade deve ser compreendida. O antropólogo,

por meio de estudo empírico, descobre a totalidade como “fenômeno social total”, como

fenômeno, “simultaneamente, econômico, jurídico, estético, militar, político, etc.”

(Ramos, 1965, p. 142). Disto ele conclui que a fase é uma totalidade histórico-social,

cujas partes estão dialeticamente relacionadas.

É o caráter dialético da relação entre os vários fatores que congregam a

totalidade que fornece a esta uma dinâmica histórica, podendo a sociologia identificar

seções no processo civilizatório. A preocupação com o seccionamento histórico é

atribuída a Vico, Condorcet, Augusto Comte, Hebert Spencer e Morgan, além de Hegel,

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

Marx, Mannheim, etc. Apesar das divergências entre os autores, Guerreiro destaca o

fato de ser comum a todos eles o entendimento de que “a cada uma das unidades do

processo histórico-social corresponde um conjunto de características que só

desaparecem pela superveniência de outra unidade, à qual corresponderão outras

características” (Ramos, 1965, p. 142).

O “método faseológico”, segundo Franz Carl Müller, permitiria determinar,

“mediante o confronto de fases, a direção em que se orienta a evolução da cultura... em

captar a linha diretriz...” (Ramos, 1965, p. 143). Desejando tornar mais concretas as

idéias de fase e de linha diretriz, Guerreiro recorre à idéia de “agregado vital”, de

Alfredo Weber. O agregado vital corresponde aos “aspectos organizacionais da

convivência humana e ao domínio prático da natureza” (Ramos, 1965, p. 144).

Alterações na base material do agregado vital, decorrentes da “racionalização, em geral,

e, em particular, do progresso técnico, fazem-se, necessariamente, acompanhar de

‘mudanças sociológicas’”. As fases corresponderiam aos períodos de transformação do

agregado vital. A situação histórica de cada fase seria identificada por meio de

comparação:

“A delimitação das fases é obtida de modo comparativo. Uma sociedade cuja estrutura se fundamenta no latifúndio está comparativamente em fase inferior àquela cuja estrutura se baseia na economia de mercado. A fase não é, portanto, uma categoria lógica, a priori. É caracterizada a posteriori, pela observação empírica dos fatos selecionados em diferentes sociedades, e tomando-se uma ou um conjunto delas como termo de comparação.” (Ramos, 1965, p. 145)

Com o conceito de totalidade, como fenômeno ao qual se integra a consciência

relacionada ao conjunto dos objetos materiais e culturais – a qual também é definida

pela sua historicidade –, Guerreiro reúne todos os elementos para corroborar a idéia de

contexto histórico-social pressuposto pela sociologia do conhecimento como

condicionador das idéias. Esse é o fundamento dessa modalidade de sociologia que,

segundo Guerreiro, por isso mesmo, “já se fundamenta numa conduta eminentemente

redutora”.

A sociologia do conhecimento teria sua origem na fenomenologia. Autores como

Max Scheler, Alfred Vierkandt, S. Kracauer, Theodor Litt, Teodor Geiger, Gerda

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

Walther, Edith Stern, Alfred Schutz, Georg Gurvitch, Jules Monnerot e Luís Recasens

Siches teriam se iniciado nessa modalidade de análise a partir da fenomenologia do

social. Esta, segundo Hurssel, consistiria no estudo do “modo de ser do social”, que,

mediante sua descrição, se chegaria à sua “essência”, ou seu “eidos”. Porém, a redução

sociológica de Guerreiro, a despeito de ser tributária da origem fenomenológica da

sociologia do conhecimento, não se confunde com a fenomenologia do social, pois não

se trata de uma ciência eidética do social. A redução, segundo Guerreiro,

“Funda-se numa atitude metódica interessada em descobrir as implicações referenciais, de natureza histórico-social, de toda sorte de produção intelectual e em referir essa produção ao contexto em que se verifica, para apreender exaustivamente o seu significado.” (Ramos, 1965, p. 105)

Porém, se Hurssel se limitou a fazer uma fenomenologia do social, ele também

admitiu haver “tantas ciências eidéticas (fenomenologias regionais) quantos sejam os

objetos das diversas disciplinas”, sendo necessário à fenomenologia do social

compreendê-las. Foi seguindo esse caminho aberto por Hurssel que os autores citados se

constituíram nos precursores da sociologia do conhecimento, praticando o método

redutor a diferentes disciplinas e seus respectivos objetos. Guerreiro vai seguindo uma

escala por meio da análise da contribuição de alguns deles, até chegar à definição sobre

o que denomina redução sociológica.

Ele comenta rapidamente as contribuições dos autores alemães (Max Scheler,49

Alfred Vierkandt e Theodor Litt), e, dentre os de língua românica (Gurvitch, Monnerot

e Recansens), destaca, especialmente, os limites e as contribuições de Monnerot como

os que estariam mais próximos da redução sociológica. Monnerot faz uma “sociologia

da sociologia”, em que procura mostrar o condicionamento dos sistemas sociológicos

pela psicologia dos seus respectivos criadores. Um certo reducionismo psicológico me

parece ser o objeto da crítica de Guerreiro, e isso se deveria ao fato de ter escapado a

este autor “o problema da atitude redutora como instrumento metodológico da

sociologia nacional” (Ramos, 1965, p. 104). Apesar da crítica, Guerreiro, coerente com

seu método, dá uma justificativa existencial para a atitude de Monnerot. Ele fora

49 Segundo Berger e Luckmann (2004), foi Max Scheler quem forjou o termo “sociologia do conhecimento”, na década de 1920, na Alemanha.

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

impedido pela sua própria situação, em virtude de viver em uma sociedade já fundada.

Além dessa limitação, Monnerot também teria incorrido em um radicalismo relativista,

o que impede que a teoria social criada possa ter papel operante. Para que assim seja, a

sociologia tem de ter “algum conteúdo dogmático empiricamente justificado pelo fato

mesmo de que a realidade a que se refere é dotada de sentido” (Ramos, 1965, p. 104).

Contribuição importante de Monnerot, no entanto, encontra-se no conceito de

“condição humana situada e datada”. Notemos que o termo datada agrega um conteúdo

histórico à redução, juntamente com aquele conceito de mundo, fornecido por

Heidegger. O caráter valorativo e ideológico terá de considerar o lugar e o tempo da sua

produção. Segundo Monnerot: “A visão depende dos valores. Só a condição humana,

situada e datada, confere um sentido ao que vê” (apud Ramos, 1965, p. 105).

Mais próxima ainda da redução sociológica, como método que se aplica ao

estudo do pensamento nacional, estaria a teoria de Myrdal sobre a “inadequação da

teoria econômica dominante nos Estados Unidos e em países europeus”. Segundo

Guerreiro, tudo parecia indicar que, para esse autor, “há sempre um resíduo ideológico

nas ciências sociais (...). Não haveria teoria econômica ideologicamente neutra, o que

asseguraria qualidade científica é o seu ajustamento à realidade” (Ramos, 1965, p. 106).

Para Myrdal, haveria “elementos ideológicos infiltrados” em organizações como o

GATT e o Fundo Monetário Internacional, em prejuízo das nações periféricas. Myrdal

sustenta suas desconfianças e críticas no que seria uma “impossibilidade de o cientista

social libertar-se inteiramente do que chama ‘premissas de valor’”. Para ele: “Uma

‘ciência social desinteressada (...) ‘nunca existiu e por motivos lógicos não pode

existir”’ (Ramos, 1965, p. 107).

Por fim, Karl Mannheim e Hans Freyer, que teriam contribuído para pensar o

problema da cultura implicado na redução sociológica. Mannheim se situa entre os

especialistas de sua época que “submeteram as doutrinas sociológicas a uma reflexão

radical, na apreensão de cujo sentido sempre as referia ao seu substrato histórico e

cultural” (Ramos, 1965, p. 108). Hans Freyer, por sua vez, procedeu a um estudo da

“sociologia da sociologia”, considerando-a “como produto orgânico de certa cultura e

por isso não pode transferir-se simplesmente a outra cultura” (Ramos, 1965, p. 110).

É com base nesses antecedentes, nos quais fundamenta a redução sociológica,

que Guerreiro formula as quatro leis que deveriam ser seguidas pelo sociólogo

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Capítulo 4 – Nacionalismo e ideologia

brasileiro: a lei do comprometimento, a lei do caráter subsidiário da produção científica

estrangeira, a lei da universalidade dos enunciados gerais da ciência e a lei das fases.

Essas leis são endereçadas ao cientista social brasileiro, em uma espécie de

convocação militante à causa do nacionalismo. Ao formular essas leis e endereçá-las

aos sociólogos, Guerreiro o faz com base em um conhecimento oriundo da sua própria

prática da “sociologia da sociologia” aplicada ao estudo do pensamento social e político

brasileiros. É com base nesse estudo que ele faz a crítica ao caráter alienado e

descomprometido com a realidade nacional brasileira do pensamento social brasileiro.

No próximo capítulo, vou analisar o modo como Guerreiro procedeu nesses estudos e

como, a partir deles, pôde chegar às conclusões que lhe pareceram autorizar a

recomendação da redução sociológica e a observação daquelas leis.

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Capítulo 5

O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

5.1. Por uma sociologia dinâmica

A crítica de Guerreiro Ramos à sociologia acadêmica compõe um quadro

mais amplo de estudos do pensamento social e político brasileiros que remonta ao

início da década de 1950. Podemos dizer que, nesses estudos, o sociólogo já vinha

aplicando a sociologia do conhecimento, preconizada como epistemologia da

redução sociológica. Nesses estudos críticos, procura identificar o que seria a

alienação dos seus conteúdos, induzindo-a do modo como os textos traduziriam

uma maior ou menor compreensão da realidade brasileira. Uma compreensão mais

exata e, portanto, não alienada, seria a que captasse a dinâmica do processo

histórico brasileiro. O caráter dinâmico da realidade, como critério de avaliação da

“autenticidade” dos escritos, fica claro em três ensaios: “A Ideologia da Jeunesse

Dorée”, “A Ideologia da Ordem” e “O Inconsciente Sociológico”, publicados em A

Crise do Poder no Brasil (1961).

Nesses escritos, Guerreiro situa, de um lado, os intelectuais “abertos ao

novo sentido de época”; de outro, os conservadores de um tempo contraditado pela

realidade. Estes são denominados “ideólogos da ordem”, que carecem de uma

visão sociológica dinâmica social, avaliando-a em termos psicológicos e

espiritualistas. Nessa “família”, a da “ideologia da ordem”, Guerreiro identifica os

intelectuais católicos e integralistas, como Jackson de Figueiredo, Hamilton

Nogueira e Tristão de Ataíde. Confrontados com o ímpeto revolucionário de sua

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

época, manifestado por agitações sociais, julgavam-no à luz da “dialética do bem e

do mal”. Jackson Figueiredo, observa Guerreiro, “via um caráter ‘satânico’ nas

manifestações violentas, nas explosões belicosas do espírito revolucionário”.

Propunham, dessa forma, um reformismo moral, um “esclarecimento do espírito” e

o apelo à exemplaridade das tradições, no sentido de purgar a sociedade de seus

pecados. Enfim, as análises desses autores seriam orientadas pelo psicologismo e

alienação em relação à sociedade brasileira.

Na outra família estão os “sociólogos anônimos”, homens que não possuem

nem credenciais acadêmicas nem domínio das técnicas científicas. No entanto,

destacam-se pela objetividade com que interpretaram os acontecimentos na década

de 1930, identificando fatores sociológicos emergentes e condicionantes da

reconfiguração política, social e econômica em processo naquele período. Figuram

nesse grupo Martins de Almeida, Virgínio Santa Rosa e Azevedo Amaral.50 De um

modo geral, os três autores identificam a crise do seu tempo como “reflexos de

transformações que estavam se processando em nossas relações de produção e de

classe”. Martins de Almeida, em Brasil Errado, aponta, ainda, um descompasso

entre “a nossa organização político-partidária e as condições materiais do país”.

Virgínio Santa Rosa, em O Sentido do Tenentismo, diagnostica a diferenciação de

classes e o surgimento de uma pequena burguesia que “forçava a sua entrada nos

quadros políticos”. Quanto a Azevedo Amaral, ele destaca a identificação do

colapso dos preços do café como causa da crise, o que indicava a “volta do sentido

econômico da evolução do país”.

Essa análise da intelectualidade e o destaque conferido àqueles que

identificaram tendência de mudança progressiva na sociedade brasileira, bem como

suas causas, sem lhes serem refratários, corroboram a concepção de que a vocação

científica não exclui a vocação política. A própria forma de análise da realidade,

induzindo-a da dinâmica histórica e a positivando, torna o pensamento engajado e

comprometido e, portanto, fator de transformação histórica.

No que se segue, farei uma análise mais pormenorizada dos estudos de

Guerreiro sobre o pensamento social e político brasileiros. Nesta análise, além, do

50 Guerreiro cita no mesmo artigo outros nomes dessa galeria. São os autores João Ribeiro, Silvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, José Maria dos Santos, Caio Prado Júnior, Oliveira Vianna, entre outros.

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

critério temporal e histórico, que qualifica o pensamento como nacional ou

autêntico, desejo ainda demonstrar um outro critério de avaliação das obras. Trata-

se do critério espacial ou territorial. Proponho que a crítica de Guerreiro Ramos ao

que seria o mimetismo, a alienação, a inautenticidade e, decorrente de tudo isso,

um pensamento não engajado, está fundamentado em uma idéia de espaço

nacional, do qual deduz uma história nacional específica.

5.2. As imagens da nação no pensamento social brasileiro

Na expressiva galeria de autores visitados por Guerreiro a partir de 1951,

observamos que os critérios utilizados nas análises são pautados pelas imagens do

país que teriam sido produzidas pelas próprias interpretações. As imagens são

apreendidas em função dos contrastes entre elas. De um lado, as que indicariam um

país homogêneo e as que o apontariam como heterogêneo. De outro, aquelas que

diriam respeito ao ânimo dos autores em relação ao país: visões pessimistas e

otimistas. De acordo com o que se pode apreender de seus estudos, haveria uma

correspondência entre a perspectiva que considera o país como homogêneo e o

pessimismo, e outra entre a imagem heterogênea e o otimismo.

De acordo com minhas leituras, percebo que, para Guerreiro, as imagens

produzidas estão diretamente relacionadas ao modo como os autores procedem nas

suas interpretações. Ao formular a sua própria idéia de nação, é de um determinado

modo de interpretar que ele se utiliza. Modo este que ele identifica em algumas

interpretações e não em outras. Posto isso, o meu interesse é identificar quais os

critérios perseguidos por Guerreiro quando analisa os diferentes procedimentos

adotados pelos autores e, por conseguinte, tentar perceber qual desses critérios lhe

serve de parâmetro para qualificar umas interpretações e desqualificar outras, e que

orienta a sua própria formulação do conceito de nação.

Desse modo, na primeira parte, analisarei as interpretações que ele rejeita, o

que, acredito, me possibilitará identificar o critério que rege tais interpretações,

fornecendo, assim, melhores condições de focalizar, na segunda parte, o que ele

valoriza nos modos de proceder de Euclides da Cunha e Oliveira Vianna.

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

5.3. Visões homogêneas e pessimistas

Expressivas da correspondência entre a visão homogênea e o pessimismo

são as análises de obras em que predominaria uma interpretação do povo brasileiro

em termos de caráter nacional e de “inteléquias”. Guerreiro identifica essa

perspectiva em autores como Afonso Celso, Ronald de Carvalho, Paulo Prado,

Afonso Arinos de Mello Franco e Sérgio Buarque de Hollanda. Sobre as

interpretações desses autores, escreve:

“De um modo geral, essas interpretações se caracterizaram pelo fato de atribuírem ao povo brasileiro um caráter, uma vocação ou tendências ou inclinações fixas.” (Ramos, 1954, p. 86)

Além de imobilistas e homogêneas, essas visões tenderiam a acentuar

defeitos do povo brasileiro, como tristeza, cobiça, romantismo, dissipação, amor à

ostentação, cordialidade, etc. O caráter pessimista dessas visões é enfatizado em

outro texto em referência a Retrato do Brasil, de Paulo Prado, no qual anota:

“Tomo para modelo da visão alienada do Brasil uma obra de caráter parassociológico que teve extraordinária repercussão na época em que foi publicada. Trata-se de Retrato do Brasil (1928), de Paulo Prado, que exprime, de modo paroxístico, certo sado-masoquismo de nossas camadas letradas, para as quais o caráter do povo brasileiro está marcado de notas pejorativas. O brasileiro é povo triste, luxurioso, cobiçoso e romântico, para Paulo Prado; como para outros se caracteriza pelo servilismo e pelos maus costumes ou por características equivalentes.” (Ramos, 1956, p. 22)

Que tipo de procedimento estaria presente nessas interpretações que as

tornariam homogêneas, pessimistas e imobilistas? Podemos tentar responder a essa

questão indagando sobre o que nelas estaria ausente. Uma pista para a resposta

pode ser encontrada nas seguintes perguntas de Guerreiro de como se chegou

àquelas conclusões: “Por que se formam tais sentimentos e tais modos de ser? A

que condições objetivas se aliam?” (Ramos, 1954, p. 93). Com essas perguntas,

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

Guerreiro parece sugerir a ausência de uma referência ao contexto na produção

daquelas imagens.

Se se trata da ausência de uma referência ao contexto, podemos situar as

análises que Guerreiro faz desses autores específicos no âmbito da sua crítica mais

geral aos estudos sobre o Brasil. Esses estudos seriam pautados pela “alienação”,

pela cópia de autores estrangeiros, o que adviria tanto do estranhamento em

relação à sociedade brasileira quanto de seu reforço. Plenos de erudição, mas

ignorantes quanto à realidade nacional, faltaria aos autores exatamente esse

conhecimento.

No entanto, embora se possa compreender aquelas interpretações no âmbito

da crítica mais geral, creio haver algo peculiar na crítica à produção daquelas

imagens relacionado ao fato de que elas se remetem diretamente a uma

preocupação com o tema da identidade nacional. Uma perspectiva da

problematicidade específica das interpretações pode ser mais bem fornecida se

entendermos que, exceto a de Afonso Celso, as demais se situam no contexto da

preocupação modernista com o tema da identidade nacional.

Nos textos mencionados, não há nenhuma referência explícita ao

modernismo; entretanto, em texto de 1980, “A Inteligência Brasileira na Década de

1930, à luz da Perspectiva de 1980”, Guerreiro confere destaque ao movimento na

análise do pensamento social brasileiro dos anos de 1920 a 1945. Nesse texto,

embora o autor reitere o caráter “expatriado” das idéias modernistas, admite ter

sido um movimento de ruptura com a “mentalidade reinante, representativa da

rusticidade agrária do Brasil”, que “exprimiu assim o inconformismo dos que

almejam um Brasil mais urbano, bem como encorajou as pesquisas das condições

peculiares da formação brasileira” (Ramos, 1982, p. 534).

Ao destacar o encorajamento dos estudos sobre a sociedade brasileira, não

poderia escapar a Guerreiro um esforço de compreensão do Brasil distinto daqueles

que observa em autores cujo conhecimento do Brasil passaria primeiro pelas lentes

estrangeiras. Em O Processo da Sociologia no Brasil (1953), Guerreiro destaca

esse maior envolvimento com a realidade brasileira em Mário de Andrade:

“(...) A questão que importa é a do exercício funcional da literatura em que Mário de Andrade foi enexedível com

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

aquela generosidade, com aquela disposição para comprometer-se com o meio, ligar-se de norte a sul pelo artigo e pela carta, aos jovens carecentes de rumos e, sobretudo, com aquela renúncia à literatura mesma e ao esnobismo, pelo gosto do local e da vinculação. Ele foi no Brasil o caso raríssimo de um homem de letras emancipado da literatura.” (Ramos, 1953, pp. 35-6)

No entanto, ainda que orientado pela idéia de ruptura e mais inclinado à

realidade brasileira, o modernismo, na conclusão de Guerreiro, acaba por incorrer

em uma visão imobilista, discernindo mais o folclórico e o pitoresco.

Ora, se uma abordagem mais circunstanciada da sociedade brasileira não é

exatamente o que impediu tais visões imobilistas, o que seria então? Acredito que

uma resposta possa ser buscada na maneira como o tema da identidade nacional

entra na pauta modernista por meio da preocupação com o ingresso do país no

concerto das nações civilizadas.

Ao analisar o tema sob essa ótica, Gláucia Villas Boas e Eduardo Jardim,

em “Ritmo, Tempo e Luta no Processo de Conhecimento da Sociedade

Brasileira”(1982), introduzem a idéia de uma temporalidade brasileira que estaria

emergindo com os estudos da cultura popular. Tais estudos são vistos como

necessários quando, a partir de 1924, percebe-se que “a afirmação da

nacionalidade passa a constituir a mediação necessária para o acesso ao concerto

internacional” (Villas Bôas e Jardin, 1982, p. 6). Ainda de acordo com os autores,

“na tematização desta mediação – parte nacional – o modernismo elabora o que a

época costuma chamar ‘retratos-do-Brasil’”. Estes “buscam o conhecimento de um

substrato da vida nacional que existiria de forma subjacente e mais profundamente

do que o plano das aparências” (idem). No popular residiria a nacionalidade.

Um aspecto bastante interessante no texto é o que chama a atenção para a

relação de Mário de Andrade com a Antropologia de Levi-Bruhl, Tylor e Frazer no

entendimento do popular. Convém citar todo o parágrafo sobre as conseqüências

dessa Antropologia na concepção da temporalidade do popular:

“Através da leitura desta Antropologia que tinha por objetivo, seja em uma perspectiva evolucionista, seja na ótica de um Levi-Bruhl, elaborar uma concepção do elemento primitivo como momento de um processo

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

evolutivo que desembocaria no elemento civilizado ou como elemento diferente, mas cuja qualidade de diferença seria dada no contraste com o elemento civilizado, é, portanto do ponto de vista da racionalidade desta Antropologia, que Mário de Andrade busca elaborar o seu conceito de popular entendido, mais freqüentemente, como elemento folclórico.” (Villas Boas; Jardim, p. 7)

Sob essa perspectiva, o folclórico é afirmado como “sobrevivência do

passado”, mas que Mário de Andrade qualifica como “tradição móvel”, o que

permitiria “atualizar e verificar no presente um saber e práticas que a princípio

remontam a um passado indeterminado”. Grifei “passado indeterminado” porque é

exatamente este o ponto que me interessa para pensar o que Guerreiro Ramos pode

estar sinalizando como critério que lhe permite encontrar diferenças significativas

entre as diversas interpretações do Brasil.

Como visto, Guerreiro Ramos preza no modernismo exatamente a ruptura

com o passado, o que sugere que a sua própria perspectiva de leitura do movimento

é informada por uma idéia de tempo futuro. Além de informar a leitura dos autores,

sugere também que sua formulação da idéia de nação pressupõe, da mesma forma,

um critério temporal, cujo vetor privilegiado é aquele que aponta em direção ao

devir. No entanto, pode-se observar que, embora Guerreiro oriente sua reflexão

pela idéia de um futuro nacional – o qual estaria relacionado com as ofertas da

modernização econômica e social –, ele está preocupado com um presente que se

lhe afigura bastante problemático. Minha sugestão é a seguinte: em relação à

maneira como o presente é entendido por ele é que se seguirá o seu

questionamento da idéia de temporalidade introduzida pelo modernismo.

Em sua leitura do modernismo, vimos que Guerreiro preza a ruptura com o

passado, ressaltando, apesar disso, as imagens folclorizadas e imobilistas como

aspectos negativos. Isso parece sugerir que essas interpretações “falhariam”

exatamente quanto ao manejo do critério temporal utilizado nos estudos.

Problemático nessa “falha” me parece ser que, embora mobilizados por uma

perspectiva de tempo, na qual se detecta uma ruptura com o passado, os

modernistas deixariam obscurecidos certos aspectos da realidade que a Guerreiro é

exatamente o que importa iluminar.

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

Quais são esses aspectos? E em que medida a idéia de tempo que informa os

estudos modernistas os estaria ocultando? Além disso, a partir da visão de

Guerreiro Ramos, o que pode haver de problemático na relação entre a concepção

de identidade nacional e a noção de temporalidade brasileira introduzida pelo

modernismo?

No texto de 1980, há um parágrafo em que o autor menciona o que deixaria

de vir à luz tanto nos estudos modernistas quanto naqueles dos intelectuais

católicos. Neste trecho, o que há de problemático nas visões imobilistas se torna

manifesto na comparação que ele estabelece entre aquelas interpretações e a

literatura regionalista:

“No entanto, o imobilismo não empolga inteiramente a literatura regionalista dos anos 30, pois ganha tonalidade gorkiana, naqueles romancistas que denunciam ao país a pobreza e miséria de populações regionais, tais como José Américo, Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Jorge de Lima, Armando Fontes, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz, Marques Rebelo e outros.” (idem, 1980, p. 535)

A partir dessa citação, destaco o contraste entre visões produtoras de

imagens imobilistas do país e outras que permitem trazer à luz a pobreza e a

miséria. No regionalismo haveria um tipo de abordagem que propiciaria uma

compreensão do tempo presente, o qual, uma vez que encontra lugar na narrativa

sobre a sociedade brasileira, denuncia a própria realidade, e, mais que isso, uma

realidade que é problemática, uma realidade realmente “feia” (as aspas são

minhas).

Minha sugestão é que, no confronto entre os textos sobre o regionalismo e

sobre aqueles produtores de imagens imobilistas, dois critérios podem ser

destacados como orientadores tanto das concepções de identidade nacional, que

Guerreiro Ramos identifica nas obras, quanto da sua própria maneira de formular

essa idéia. São eles: o temporal e o espacial ou geográfico.

Sem dúvida, Guerreiro Ramos organiza o seu pensamento em termos

temporais, o que lhe torna possível identificar uma ruptura com o passado agrário e

oligárquico e, mesmo, projetar o futuro. No entanto, na medida em que procura não

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

descurar da sua formulação da identidade nacional a possibilidade da crítica ao

presente, é na idéia de espaço que ele encontra o próprio fundamento da crítica.

É essa possibilidade da crítica ao presente, contida na idéia de espaço, que,

segundo Guerreiro, parece estar ausente na perspectiva modernista. Ausência esta

que suscita uma indagação a respeito do que acontece com a idéia de espaço no

modernismo. Como vimos, além da idéia de ruptura, Guerreiro valoriza no

movimento o encorajamento “da pesquisa das condições peculiares da formação

brasileira”, o que, de certa forma, não permite enquadrar seus representantes entre

os intelectuais “estrangeiros” ao país. Desse modo, uma perspectiva de espaço

estaria presente na análise do popular pelo modernismo; porém, algo acontece com

a idéia de espaço que não tornaria o movimento, nas palavras do próprio Guerreiro,

“de todo consistente com o seu intento renovador”.

Proponho, neste momento, que pensemos essa questão explorando a

formulação da idéia de identidade nacional pelo modernismo a partir de um outro

ângulo. Sigo Richard Morse (1978), para quem o movimento pode ser entendido,

também, como uma reação ao sentimento de desvario provocado pela rápida e

surpreendente modernização da cidade de São Paulo nos anos 1920.

Para Morse, a busca das raízes nacionais na cultura popular significou uma

procura do “ser nacional”, com o que se intentou restabelecer o elo entre o

“tranqüilo passado agrário” e a “desvairada sociedade urbana”. Minha idéia é que,

além de procurar assegurar uma entrada autêntica no concerto das nações

modernas – tal como assinalado por Gláucia Villas Bôas e Eduardo Jardim –, a ida

à cultura popular também pode ser vista como uma reação ao fluxo dilacerante do

tempo industrial, também sentido como ameaçador das culturas nacionais.

Ao refletir sobre a reação dos modernismos europeus ao impacto

dissolvente do tempo industrial no espaço, David Harvey (1989) apresenta

interessante discussão a respeito de como a arquitetura, a pintura, a escrita, enfim,

a arte, fornecem espaços para a materialização e contenção do tempo, o que

qualifica como “espacialização do tempo”.

Acredito que o modernismo brasileiro, como um movimento estético,

também faria essa operação. Só que, ao contrário de retirar do passado a força para

o presente, é a idéia de um passado que retira sua força do presente, presente esse

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

fornecido pelo popular. A distância não apenas geográfica, mas também social e

cultural, existente entre os intelectuais e o popular também acabaria contribuindo

para um dimensionamento temporal dessa mesma distância, reforçando a idéia do

popular como sobrevivência. Ao contrário de Harvey, eu diria que, no caso do

modernismo brasileiro, em vez de uma “espacialização do tempo”, se processaria

uma “temporalização do espaço”, uma vez que o popular não se manifesta apenas

nos artefatos culturais que produz, mas também em determinados espaços da

geografia urbana e nacional.

Esse ponto relativo ao espaço popular concebido em termos temporais me

parece central na compreensão das razões que levam Guerreiro Ramos a apontar

limites à idéia de identidade nacional no modernismo. Uma vez que possamos

identificar tais razões, ou seja, o que e por que torna problemática a perspectiva de

tempo manejada pelo modernismo, creio podermos focalizar quais os critérios que

orientam a própria concepção de Guerreiro de nacionalidade, bem como o que o

permite distinguir concepções dinâmicas e estáticas nos autores estudados por ele.

Com base no que foi visto até aqui, pode-se apreender como problemático,

em primeiro lugar, o fato de que a temporalidade modernista tem seu vetor voltado

para trás; isto é, a nação vai ser buscada em um passado imemorial. Em Mário de

Andrade, o estudo do popular teria como fim a busca das raízes nacionais, do

tradicional supostamente manifesto na cultura popular. Portanto, a idéia de um

passado longínquo é que informaria o que é a nação, conforme indica Morse na

seguinte passagem:

“A ‘desvairada São Paulo’ dos primeiros versos de Mário de Andrade não era uma realidade econômica, mas uma arena para a busca do ser. Talvez não exatamente uma arena, pois a cidade e o ser se interpenetravam. Ao decompor o seu mundo, ao obliterar as fronteiras do ser, o poeta postulava a antiga questão de Montaigne: ‘Que sais-je?’. Na cascata de versos, ficção, estudos, crônicas e correspondência que se seguiu, Mário continuou firme na busca tanto de uma identidade do brasileiro quanto da sua própria. As artes, populares e intelectuais, eram uma fascinação constante, bem como a etnia, a linguagem e a fala.” (Morse, 1978, pp. 43-4)

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

Em segundo lugar, o problema residiria no fato de ser a tradição um invento

proporcionado por uma atitude de estranhamento do popular. Com relação a esse

aspecto, creio corroborar a crítica mais geral de Guerreiro aos intelectuais

brasileiros, desde Tobias Barreto até àqueles que, na sua época, dedicavam-se ao

estudo do negro. Estrangeiros em sua própria terra, os letrados nacionais tenderiam

a estranhar, folclorizando, os componentes humanos da nação.51 Desses dois

aspectos – a busca do passado e o estranhamento do popular – resultaria uma

perspectiva estagnada e homogênea da nação, visto que nessa forma de conceber a

identidade nacional estaria implicado um sacrifício do que, para Guerreiro Ramos,

constituiria o elemento dinâmico da sociedade brasileira: o povo, seja na sua

existência social, excluída do universo da cidadania, seja como alvo de políticas

mais amplas, entendidas como capazes de promover a inclusão social, econômica e

política.

Parece-me plausível afirmar que o problema na concepção modernista para

Guerreiro é a noção de tempo, em virtude, principalmente, da projeção que ela

realiza do tempo presente no passado, resultando no obscurecimento de um

presente problemático que ele percebe materializado nos diferentes espaços da

geografia nacional. Suponho, então, que Guerreiro encontre em outros autores

alternativas que permitam concepções de identidade nacional não conclusivas e

não estagnantes. Interpretações que propiciem um enquadramento da identidade

nacional como processo e que, como tal, sejam favoráveis à intervenção de

projetos políticos modernizadores.

Percebo como alternativas os estudos de Euclides da Cunha e de Oliveira

Vianna, nos quais Guerreiro privilegia a abordagem regionalista. Antes de

focalizar a leitura desses autores, acho conveniente ressaltar os móveis políticos e

intelectuais que levam Guerreiro Ramos ao estudo dos ensaístas nos anos 1950.

Além disso, é importante identificar distinções entre os pontos de partida de

Guerreiro Ramos e do modernismo a partir de seus respectivos momentos

históricos.

51 Há um trecho em que Guerreiro se refere ao distanciamento entre os intelectuais e o popular, que corrobora esta observação: “No Brasil, o homem culto e o homem do povo são espécies diferentes. A cultura de nossos homens de prol é, por assim dizer, uma espécie de sobremesa do país. Passa pelas alfândegas. Classifica-se na ordem dos enlatados ou das conversas.(...) “Daí o que venho chamando aqui de alienação, o desentendimento entre as camadas populares e as camadas cultas.” (Ramos, 1953, p. 34)

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

Em primeiro lugar, não encontramos em Guerreiro uma preocupação tão

acentuada, ou imediata, com o ingresso do Brasil no concerto das nações. Com

relação a isso, poderíamos dizer que ele – talvez por estar escrevendo sobre o tema

na década de 1950 – já partiria da visão do segundo momento do modernismo, no

qual se preconiza a necessidade da afirmação nacional. Além disso, não se pode

descurar o fato de que o nacional vai adquirindo contornos mais políticos,

extrapolando de um enquadramento acentuadamente cultural. Ao me referir a esse

contorno político, penso na democratização que se sucede ao fim do Estado Novo,

o que, não só para Guerreiro Ramos, mas para as ciências sociais, põe em pauta

preocupações com a incorporação ao universo da cidadania de segmentos sociais

excluídos. Penso que esse clima político, em que a silhueta de uma sociedade civil

vai se tornando mais nítida, contribuiu para direcionar a atenção dos intelectuais

mais para o interior da fronteira nacional.

Quanto a Guerreiro Ramos, minha premissa é que esse cenário político teve

impacto direto na maneira como ele veio a pensar o nacional a partir da idéia de

cultura popular nos anos 1950, conferindo-lhe um significado político. Contudo, o

clima político, por si só, não é suficiente para iluminar a maneira como uma

sensibilidade mais realista e menos estética do popular lhe é despertada; nem como

essa visão do popular modula sua compreensão da idéia de nação. Com base no

que escrevi até aqui, pode-se afirmar que o entendimento do autor da identidade

nacional se desenvolveu, em grande parte, por meio dos estudos de interpretação

do Brasil. Porém, o modo como os critérios que lhe permitem discernir dentre as

várias interpretações as que melhor convêm à compreensão da sociedade nos anos

1950, por sua vez, também, não advém exclusivamente dessas leituras.

Resgato para esta análise os estudos que Guerreiro Ramos realizou sobre o

universo mental popular na época em que foi professor e pesquisador no

Departamento Nacional da Criança. São desse período suas análises da mortalidade

infantil e delinqüência juvenil, nas quais procura introduzir uma perspectiva

sociológica na explicação de um fenômeno focalizado, até então, de um ponto de

vista exclusivamente médico e biológico. Nesses estudos, é possível observar

como a sociologia americana – em especial, a Escola de Chicago – o orienta em

direção a uma perspectiva mais espacial de problemas que ele busca investigar

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

como sociológicos. Seguindo Ernest Burgess e Robert Park, entre outros, Guerreiro

focaliza os ambientes rural e urbano como contribuintes na modulação de

mentalidades e comportamentos tidos como produtores de sociopatias.

Uma referência que me parece bastante interessante para estabelecer

possíveis nexos entre a sociologia americana e a leitura dos autores regionalistas

brasileiros é a que ele faz à descrição de Burgess de áreas urbanas distintas, da

qual resulta uma imagem da cidade como composta de cinco círculos concêntricos

– a extensão da cidade é configurada como que irradiando de um centro. Citando

Park, Guerreiro se utiliza de metáforas, como vegetais, plantas e solo, para

produzir uma imagem de movimento e de irradiação.

“Como os vegetais, observou Robert Park, os homens são de qualquer modo ligados ao solo. Agregam-se num determinado solo e dele rebentam como plantas, haurindo do ambiente que os cerca seus valores sociais.” (Ramos, 1944, p. 38)

Em texto de 1951, “Pauperismo e Medicina Popular”, Guerreiro faz uma

geografia da mortalidade infantil, relacionando o problema ao que qualifica como

“cultura de folk”, segundo ele, “uma característica da pobreza”. Nesse texto,

ressalto dois aspectos: primeiro, uma análise do popular que procura focalizar a

pobreza e a sua relação com a maneira de pensar popular, no caso, os

procedimentos curativos da medicina popular;52 segundo, a própria forma

cartográfica que utiliza para situar o problema da mortalidade infantil em uma

perspectiva nacional – as informações sobre as práticas medicinais são referidas às

diferentes regiões e estados brasileiros, como Paraíba, Bahia, Planalto Goiano,

Minas Gerais, Rio de Janeiro, etc.

Desses dois aspectos resulta um esquema de análise em que a cultura

popular, além de ser vista como nada venerável, perde a fluidez temporal com que

o modernismo a identifica. Ela se liga ao solo, à região, logo, enraíza-se no

52 Só para mencionar um dos casos, cito o seguinte, colhido pelo próprio autor: “Acredita-se na Bahia que dar de beber água do banho à criança é bom para torná-la mansa. O autor conheceu um caso de diarréia provocado por esta prática e que quase levou à morte um recém-nascido.” Dos que colhe em Namoros com a Medicina, de Mário de Andrade, eis alguns casos: “para curar talhos, esterco de jumento ou cataplasma de estrume fresco de vaca e azeite de cozinha; para tirar bicho de pé, pisar em bosta de porco, etc.”.

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

presente. É essa perspectiva geográfica que acredito advir da influência da

sociologia americana e dos próprios estudos mais substantivos, o que orienta suas

análises da idéia de nação em Euclides da Cunha e Oliveira Vianna, os quais passo

a analisar.

5.4. Visões heterogêneas e otimistas

Nas análises desses autores, não escapou a Guerreiro Ramos determinados

aspectos que tornam os outros autores alvos de crítica. Tal é o caso do que

considera “generalizações imanentistas”, presentes nas representações de tipos

humanos brasileiros, como o sertanejo, o matuto, o gaúcho, o mulato, o negro, o

mestiço, e o próprio povo brasileiro. Os equívocos são creditados à maneira como

o “nosso problema étnico” foi tratado, em geral, porque não souberam os autores

distinguir bem a “raça e a cultura”. Porém, acredito que é exatamente a distinção

entre o que nas obras é alvo de crítica e o que é destacado como positivo que torna

mais significativo apreender os critérios que permitem a Guerreiro identificar

concepções diferentes de identidade nacional.

Em O Regionalismo na Sociologia Brasileira (1954), Guerreiro Ramos

reafirma a sua rejeição de interpretações que resultem em afirmações conclusivas

sobre a nacionalidade, as quais teriam sido evitadas por autores como Sílvio

Romero, Euclides da Cunha e Oliveira Vianna:

“É costume entre nós falar de povo brasileiro como se fosse uma massa homogênea e única, distensa, com perfeita igualdade, através de uma vastíssima superfície de oito milhões de metros quadrados, e guardando por toda ela a mesma densidade social e a mesma unidade de composição e de estrutura.” (Ramos, 1954, p. 59)

As razões dessas visões seriam as seguintes:

“Dos que assim pensam nenhum se deu ao trabalho de desmontar as diversas peças e elementos, de que se compõe esse vasto organismo, para ver como ele se formou e como ele funciona. É natural que dele tenham apenas uma idéia vaga, ou uma idéia incompleta, ou uma idéia falsa. Levam em conta a unidade da raça, da civilização e da língua, e não

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

sei o que mais; mas, não querem levar em conta a diversidade dos habitats (e aqui se percebe a herança euclidiana), a sua ação durante três ou quatro séculos, as variações regionais no caldeamento dos elementos étnicos e, principalmente, a inegável diferença das pressões históricas e sociais sobre a massa nacional, quando exercidas ao norte, ao centro e ao sul.” (Ramos, 1954, p. 59)

Nesse texto, O Regionalismo na Sociologia Brasileira, Guerreiro Ramos

contrapõe um regionalismo mais recente, que identifica em Gilberto Freyre e nos

estudos sobre comunidade realizados por Donald Pierson, ao mais antigo, de

Euclides da Cunha. Nota-se que, ao apresentar os dois como tipos distintos,

Guerreiro está sugerindo que não é apenas a abordagem regional ou espacial que

evitaria as tais visões conclusivas da identidade nacional. O que a evitaria seria a

perspectiva que, desde o início, orientaria os estudos: a perspectiva nacional.

Dessa perspectiva é que resultaria uma análise comparativa das diversas regiões do

país. Teria sido graças ao panorama nacional, que orientou o trabalho de Euclides

da Cunha, que sua obra “nega, por exemplo, a existência de um tipo unívoco de

brasileiro”.

Além das diferenças psíquicas e sociais, as análises trariam à luz, também,

“diferentes histórias” da formação nacional, tal como em Populações Meridionais,

de Oliveira Vianna, que, “marcando o condicionamento ecológico e geográfico da

formação nacional”, pode perceber “três histórias diferentes’ encastoadas em três

habitats diferentes, gerando, por seu turno, três sociedades diferentes: a dos

sertões, no norte; a das matas, no centro-sul; e a dos pampas, no extremo sul”.

Sem deter-me mais na referência aos autores, passo às considerações que

me interessam na análise de Guerreiro. Em primeiro lugar, destaco a maneira como

a idéia de nação é valorizada como perspectiva que orienta esses autores. De fato,

ela é um ponto de partida, mas não encerra certezas prévias acerca do que é o

brasileiro. A idéia de nação é, antes, um norte dos estudos, mas um norte vazio,

sem conteúdo psíquico e histórico. A única certeza que ela parece oferecer é a que

é dada pelo mapa, pela cartografia. Em segundo lugar, o fato de que a

temporalidade brasileira, ou a sua historicidade, é uma dimensão que vai sendo

elaborada a partir da própria noção de geografia. Nenhuma imaginação de um

passado anterior à existência geográfica moldaria as conclusões dos autores acerca

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

do que é o nacional. Nos estudos próprios de Guerreiro, observamos que ele evita

remeter-se a um passado que remonte à colônia, à herança cultural e psíquica dos

colonizadores. Quando muito, essa remissão é feita para se pensar a origem de

formas de administrar, e pensar com “pensamentos prontos” e importados o Brasil.

Mas, no que diz respeito àquilo que lhe interessa como sendo a noção da formação

nacional, ganha relevo uma história que é elaborada a partir da própria existência

física da nação.

Pode-se dizer que a concepção de identidade nacional de Guerreiro Ramos é

orientada pela idéia de processo, do que ela vem sendo desde a sua existência real.

A crítica que faz aos demais autores reside no fato de se tentar apreendê-la a partir

de uma essência, de um caráter, que já estaria formado para sempre. Na idéia de

processo, tempo e espaço geográfico se cruzam. O tempo entendido como uma

temporalidade brasileira própria, uma vez que a história de que se pode falar é

aquela fornecida pela existência real geográfica.

Segundo minha própria interpretação de Euclides da Cunha e Oliveira

Vianna, observo que a própria forma de narrar desses autores indica a idéia de

movimento, de viagem. Em Euclides, isso é bastante explícito. Em Populações

Meridionais, chama a atenção como o movimento da história se confunde com o

movimento no espaço. Sem entrar na discussão sobre a validade das fontes do

autor, é interessante observar como ele parte do que seria o ambiente da cidade,

segue para o interior, onde encontra o domínio rural, chegando ao movimento das

bandeiras e deste à floração de vilas e cidades pelo interior do país.

Nos anos 1950, a tarefa de intelectuais e de políticos seria a de dar

continuidade a esse movimento, ou seja, ao processo de formação da identidade

nacional brasileira.

5.5. Espaço, tempo e história nacional

Esta análise me sugere que o conceito de espaço é central no modo como

Guerreiro Ramos concebe a nação como realidade dinâmica e portadora de uma

história própria. Para mim, dos espaços regionais, Guerreiro desdobra uma

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

compreensão do espaço nacional amplo que comporta as diversidades regionais

internas.

Como assinalei no Capítulo 4, o modo como Guerreiro Ramos pensa a

nação o leva a concebê-la como múltipla e dual. Essa característica, ao mesmo

tempo que informaria a “problemática” da realidade brasileira, também informaria

a “fase” em que a sociedade brasileira se encontrava na década de 1950. Essa

configuração, dual e múltipla, com seus respectivos tipos subjetivos, constituiria a

nação como totalidade histórica naquela época.

Deduzo disso que se a industrialização e o grau de desenvolvimento técnico

são assinalados como critérios objetivos de avaliação do sentido histórico, a “linha

diretriz”, a importância deles decorreria mais do imediatismo que proporcionam à

compreensão da mudança histórica e ao seu sentido. Do ponto de vista ideológico,

no sentido científico e político que Guerreiro dá a palavra ideologia, o mais

importante nesses fatores não seriam eles mesmos, mas as suas conseqüências – a

urbanização e as alterações no estilo de consumo. Em A Cartilha, Guerreiro

assinala a integração regional como uma das conseqüências da industrialização, do

que resultaria a integração das regiões e, com isso, podemos deduzir, a eliminação

da diversidade regional decorrente de desenvolvimentos econômicos e sociais

desiguais, e da dualidade da qual a diversidade decorre. Com isso, resultaria a

promoção de uma sociedade nacional subjetiva e culturalmente mais uniforme.

Dessa forma, na idéia de povo está pressuposta a integração territorial, o que

significa integração nacional.

A teoria da nação de Guerreiro, e da identidade nacional, decorre da

delimitação que ele realiza do espaço geográfico nacional como suporte de uma

configuração histórico-sociológica particular. Com sua defesa e análise do

nacionalismo, podemos dizer que ele participa da grande família de intelectuais

brasileiros preocupados com a questão da identidade nacional.53 No entanto, com a

circunscrição do tema ao espaço nacional, ele se distanciaria de uma interpretação

culturalista, baseada na idéia de herança ibérica.

Com Gilberto Freyre, em Casa-Grande & Senzala, e Sérgio Buarque de

Holanda, em Raízes do Brasil, a identidade nacional é pensada em termos de

53 Sobre essa extensa família, da qual o ISEB faz parte, veja Leite (1983).

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

herança, pressuposto aí o antecedente português. Com esses autores, aos quais se

junta Paulo Prado, em Retrato do Brasil, a história da formação da identidade

brasileira é remontada à Renascença. Guerreiro Ramos, com seu método redutor,

parece querer tirar dos “parênteses” esse passado mais longínquo e, com isso,

evitar uma compreensão da identidade nacional que promova interpretações dela

em termos de caráter nacional, decorrentes de caracteres psicoculturais, como

espírito de aventura, personalismo, luxúria, cobiça, etc. Além disso, delimita

temporalmente essa história ao próprio espaço que configurou a nação brasileira.

Ao utilizar o conceito de espaço, Guerreiro realiza um corte histórico, com

o qual, ao mesmo tempo que seria possível identificar uma história particular,

permitiria integrar essa mesma história na história mundial. Seria uma operação

análoga à que ele realiza quando constrói os tipos políticos no Brasil, referindo

cada um deles a uma configuração geográfica específica dentro da nação, o que o

impede de se referir aos tipos historicamente inferiores como sobrevivências.

Todos aqueles tipos estariam presentes na época em que vigora a política

populista, e cada um deles seria passível de explicação objetiva. A explicação seria

o tipo de organização espacial das regiões, ora populacionalmente rarefeito, ora

denso. Desta maneira, ao assinalar os tipos, representando diferentes épocas

históricas simultâneas, eles poderiam ser integrados a uma realidade mais

abrangente que os tornaria todos tipos do presente – a nação. Da mesma forma, ao

tipificar histórica e sociologicamente o Brasil, e explicar essa tipificação pela

dualidade básica da nossa formação, Guerreiro, ao mesmo tempo que identifica

uma particularidade, a integra em uma totalidade mais ampla – a totalidade mundo.

O corte espacial está implicado em um fato histórico, o Descobrimento do Brasil,

momento inaugural da nação. Sobre isso ele escreve em A Problemática da

Realidade Brasileira (1961): “Desde que o Brasil é revelado ao mundo pela

descoberta, passa a ser alcançado pela lei da dualidade.”

Essa maneira de pensar a história, a partir da “descoberta”, me parece

relacionada com as idéias de “povos naturais” e “povos históricos” de Hegel, que o

autor utiliza em A Redução Sociológica. Antes do Descobrimento, a possibilidade

de sermos históricos – o que significa também sermos povo –, já estaria contida no

espaço natural. A partir do Descobrimento, começamos a ingressar no histórico

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

através do modo como o europeu, civilizado, portador de história, se relacionaria

com a natureza, incluindo aí o índio, compreendido pela categoria “povos

naturais”. O espaço natural também condicionaria a atividade humana criadora do

colonizador.

Pensar o histórico a partir da descoberta introduz um elemento significativo

no modo como Guerreiro pensa a história nacional. Trata-se da idéia de relação

com o outro, que integra os povos naturais à história mundial ou à civilização. A

relação com o outro determinaria tanto o ingresso desses povos na história da

civilização quanto na história particular, nacional. A forma do ingresso

determinaria também o estilo das entradas nos dois âmbitos históricos. No caso do

Brasil, essa forma foi determinada pelo tipo de intercâmbio econômico, do qual

resulta a dualidade como a lei histórica básica da nossa formação histórica interna

e externa.

Penso que essa maneira de pensar a história a partir do Descobrimento e

pelo tipo de intercâmbio por meio do qual nos integramos ao mundo pode nos fazer

indagar sobre a concepção de atraso e moderno em Guerreiro Ramos.

Comecemos pensando sobre a relação entre modernidade e história no

pensamento de Guerreiro Ramos. Esses dois termos me parecem se equivaler, no

seu pensamento, no sentido de que a história é sempre moderna. Segundo a

tipologia “povos naturais” e “povos históricos”, os primeiros, por não serem

históricos, seriam, por isso, atrasados. No Brasil, a história começaria com a

descoberta, o que vem acompanhado da integração do espaço existente ao espaço

mundial. Então, a integração é que determina a entrada no histórico, e ser histórico

é ser moderno, posto que integrado à modernidade-mundo. Se a dualidade foi

determinada pelo modo como ingressamos na história, e se não era fenômeno

episódico da constelação histórica, iniciada na década de 1930, mas consubstancia

o modo de ser histórico do Brasil, então o país sempre foi atrasado e moderno,

sendo esta a maneira como sempre fomos modernos. O que estaria se desagregando

nos anos 1950 seria uma totalidade histórica mundial, ou “fase”, da qual

participaria não só o Brasil, mas outros países de formação colonial, guardadas as

diferenças entre eles. No Brasil, enquanto essa totalidade não apresentou sinais

evidentes de desagregação, ela foi o que deveria ser historicamente.

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

Penso que, sendo a história seccionada em termos de totalidade, o que

configura uma fase, então o passado não é indicativo de atraso. O passado é só o

que passou. Em uma maneira de pensar o passado como indicativo de atraso, este é

visto como sobrevivência em uma concepção evolutiva da história. O pensamento

de Guerreiro não comporta as sobrevivências, visto que trabalha com a idéia de

totalidade. Então, o que é o atraso?

Se pensarmos que ele pensa o moderno pela idéia de integração, então o

contrário do moderno seria o isolamento. Antes do Descobrimento, o que existia

no que seria o Brasil estava isolado do mundo, portanto, não existia. A idéia de

isolamento como algo negativo é sugerida em vários textos. Ela aparece no modo

como ele constrói a tipologia rural e urbano em A Crise do Poder no Brasil. No

urbano são destacadas aglomerações urbanas, relações sociais intensas, o grau da

integração proporcionado pela estrutura ocupacional, pelo mercado, pelas vias de

comunicação e transporte. Ao contrário, o tipo rural se caracteriza pela rarefação

demográfica, pela existência de núcleos populacionais fechados e desintegrados

entre si. Ao analisar a política de clã, eis o que ele escreve:

“A política de clã é, na verdade, característica de uma situação pré-política. Era dominante no Brasil colonial, em cujo território vicejava uma poeira de núcleos populacionais, mônadas fechadas e auto-suficientes, e tinha diferentes nomes, engenhos, fazendas, estâncias, currais.” (Ramos, 1961, p. 49)

Em Princípios do Povo Brasileiro (1960), o autor destaca o “nacionalismo

ingênuo”, que teria suporte na mesma tipicidade da forma rural. Tal nacionalismo

expressa uma forte solidariedade de grupo, fechado sobre si mesmo, o que leva a

atitudes etnocêntricas e xenófobas de exaltação própria e rejeição do outro. Ao

identificar o “amorfismo” como uma das características do Brasil naquela fase, em

A Problemática da Realidade Brasileira, ele se apóia em Alberto Torres e

Frabregat, para explicar o que determinaria essa situação:

“Haveria razão de caráter espacial que impede a sociedade brasileira, como as sul-americanas, de adquirir forma. Nossas noções de direito e filosofia reclamam ambientes

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

relativamente povoados, onde a natureza não constitui obstáculo às formas mais férteis de convivência humana e as regiões desta classe – diz Fabregat – são poucas na América do Sul.” (Ramos, 1960, p. 94)

Todas essas referências são negativas. Todas elas indicam o “não-ser” o

qual está vinculado ao isolamento. Todas essas situações deveriam ser superadas.

Então, o que indicaria o atraso seria o isolamento, determinante das maneiras

subjetivas de ser, que eram “alienadas”. O isolamento seria o fator interno a

impedir o Brasil de completar o processo histórico formador da nação, e, com isso,

dar outro sentido à forma de intercâmbio com outras nações. O atraso, no Brasil,

seria a incompletude do Estado nacional, o que reclamava como urgente a

integração política favorecida pela integração econômica, da qual decorreria a

integração social e cultural.

Entendo que, com a categoria espaço geográfico relacionada ao

Descobrimento, informando o que seria a história nacional, Guerreiro Ramos quer

apresentar a nação como realidade existente. O pressuposto de uma história e

ciência nacionais seria a afirmação da nação. Decorreria dessa afirmação o estudo

da sua configuração histórica e social específicas. Esse estudo, por sua vez,

orientado pelo conhecimento do modo como a nação faz seu ingresso no histórico,

desvendaria o que na nação em processo, seria o seu “não-ser”.54 Penso que o não-

ser da nação constituiria, também, o seu ser; portanto, conhecer o “não-ser” é,

simultaneamente, afirmá-lo e negá-lo.

O não-ser da nação consistiria na dualidade, na heteronomia, na alienação,

no amorfismo e na inautenticidade. Essa descrição da nação, segundo Guerreiro,

“se caracteriza pelo que nega, postula o seu contrário. Esse contrário é o nosso

projeto, em função do qual avaliamos a presente circunstância brasileira” (Ramos,

1961, p. 88).

Vemos nessa descrição a elaboração de mais uma dualidade. Com essa

descrição, temos um pólo, informado por categorias compreensivas induzidas da

realidade brasileira na época e que deveriam constituir o repertório da ciência 54 Em A Problemática da Realidade Brasileira, Guerreiro refere-se à nação como ambivalente. Seríamos e não seríamos ao mesmo tempo: “Somos e não somos ao mesmo tempo, no tocante à velha sociedade e à qual nos referimos” (p. 88).

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Capítulo 5 – O pensamento social e político brasileiro na perspectiva de Guerreiro Ramos

social nacional. Um outro pólo ideal deveria se constituir, pelo contrário, daquelas

características. Esse pólo seria um projeto, cujo engajamento decorreria da

compreensão correta ou autêntica da realidade brasileira: o projeto nacional.

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Capítulo 6

Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

6.1. Primeira digressão: as ciências sociais em uma era de nacionalismos

O argumento central desta tese é o de que o nacionalismo no Brasil dos anos

1950 teve, além de um significado econômico, um político. Como político, ele

expressou os ideais de democracia e de cidadania mais amplos advindos com as

transformações econômicas nos anos 1930 e, talvez, principalmente, com as mudanças

culturais, especialmente as manifestadas nas ciências sociais. Essas ciências, em

especial a sociologia, nascem com um propósito renovador, e o mesmo impulso, que as

leva a debater sobre seus objetos e métodos, as conduz a descobrir de uma maneira nova

a sociedade brasileira. Podemos dizer que antes dessa época vigorosa, as imagens da

sociedade ou da nação eram fornecidas pela natureza, pela cultura popular e pela doença

(Ventura, 1991; Lima, 1998). Sob o impacto das ciências sociais, uma compreensão

social e econômica desnaturaliza os determinismos e lança luz sobre a estrutura social

mais ampla, que confinava a maioria da população à condição de subalternidade

política, econômica e social.

De modos diferentes, de perspectivas teóricas distintas, uma imagem da

sociedade brasileira, como sociedade ou nação, foi produzida, participando dessa

imagem a dinâmica de uma sociedade urgente de mudanças. Urgência essa talvez mais

percebida devido ao “acavalamento”, usando a expressão de Guerreiro, de épocas

diferentes e conviventes em simultaneidade. Para uns, uma compreensão denominada

nacional da macroestrutura histórica e a do presente representariam um esforço mais

intensivo de conhecimento e de ação; para outros, eliminar o passado e iniciar o

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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

conhecimento e a ação pelo que se considerava o momento mais avançado do processo

histórico pareceu-lhes o caminho mais rápido de alcançar a sociedade dos sonhos.

Penso que as duas vias elaboradas e propostas na época e o porquê de elas se

apresentarem como mutuamente excludentes, como incompatíveis, podem ser

compreendidos à luz de um cenário histórico mais amplo, em que a questão social e um

certo tipo de nacionalismo se sobrepuseram em determinadas partes do mundo,

inclusive no Brasil. Arrigh, em O Longo Século XX (1996), nos esclarece sobre a

marcha do nacionalismo desde o século XVIII até o momento histórico, no pós-Segunda

Guerra, em que se registraria o “advento do homem comum”, trazido a público pelo

nacionalismo e pela questão social, época em que uma “dupla exclusão” sugere o modo

como as ciências sociais do século XX, a partir de fins da sua primeira metade, teriam

de reorganizar sua agenda de pesquisas. A seguir, farei uma breve análise seletiva do

texto do autor, recortando nele o tema do nacionalismo.

A questão nacional e a questão social: duas diretrizes das ciências sociais no Brasil

Identifico em Arrigh três fases do nacionalismo: um nacionalismo econômico;

um nacionalismo de proprietários, também identificado como fase de “democratização

do nacionalismo”; e um nacionalismo proletário.

A primeira fase é identificada no contexto de luta pela hegemonia econômica e

política na Inglaterra e França do século XVIII. Três fatores foram decisivos no modo

como essa fase de luta pela conquista de hegemonia se distinguiu das anteriores.55 Os

fatores foram: a colonização direta, a escravatura capitalista e o nacionalismo

econômico. Os dois primeiros, realizados de acordo com uma lógica capitalista

territorialista, relacionaram-se diretamente com a conquista do Atlântico. O último

significou a acumulação de excedentes advindos do comércio colonial e interestatal e a

gestão da economia nacional através de “ordens às burocracias estatais” e incentivos à

iniciativa privada no que esta passa a participar indiretamente da gestão do Estado e da

guerra. Dos dois mecanismos de gestão econômica, enfatizo o último e o modo como

ele foi mobilizado pela Inglaterra, a vencedora da rivalidade anglo-francesa. Além de

envolver os súditos indiretamente com atividades relacionadas à guerra e à gestão do

55 O autor refere-se à Espanha e à Holanda.

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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

Estado, comuns às duas, a Inglaterra, em virtude da posição geopolítica, pôde ampliar

os incentivos, tornando-os mais atrativos em termos de recompensa, por meio da

expansão colonial. Desse processo de gestão econômica, implicando reforço da

burocracia estatal, envolvimento dos súditos e empresa colonizadora, resultaram as

“novas comunidades nacionais”, tanto nas metrópoles, com a formação das classes

médias, como nas colônias.

A formação das comunidades nacionais dá ensejo à segunda fase do

nacionalismo, caracterizada pela democratização, o que significava aproximação entre

governantes e governados na gestão do Estado. Notemos como Arrigh parte do

princípio de que governantes e governados são entidades separadas, sendo os primeiros,

como também ocorre na análise de Elias, enquadrados dentro de uma lógica política e

estatal própria no sentido de Maquiavel. Tal lógica, em Arrigh, é a do territorialismo. As

comunidades nacionais integradas, em termos de aproximação entre governantes e

governados, surgem no final do século XVIII, intensificando-se nos seguintes. Notemos

também que, com a noção de territorialismo como estratégia mobilizada pelo Estado

capitalista, o autor desvia a compreensão do nacionalismo como fenômeno que se

explica pela industrialização, como faz Gellner. Além disso, amplia o horizonte de

análise do nacionalismo no plural, ou seja, não apenas motivado e ativado por razões

oriundas da ordem urbano-industrial.

Essas comunidades nacionais deram origem a uma nova configuração de poder,

impulsionada por rebeliões multiplicadas a partir do “revanchismo” francês, que se

seguiu após a Revolução Francesa, contra o expansionismo inglês. As investidas

imperialistas e revanchistas de Napoleão foram acompanhadas de violações ao Sistema

de Vestfália, criado em 1648. Esse acordo postulava a autonomia dos Estados soberanos

dentro de um sistema de equilíbrio de poder e de direito internacional, e acima dos quais

não se admitia nenhuma autoridade, como no sistema medieval.

A França violou os princípios e normas de Vestfália, menosprezando os “direitos

absolutos dos governantes” e desrespeitando direitos, propriedade e liberdade de

comércio de civis mediante bloqueios e desapropriações. O resultado foi uma “escalada

de conflitos”, que deu origem a um “caos sistêmico”,56 do qual a Inglaterra tirou

56 Segundo Arrighi, “o ‘caos’ e o ‘caos sistêmico’, (...) referem-se a uma situação de falta total, aparentemente irremediável, de organização. Trata-se de uma situação que surge por haver uma escalada do conflito para além do limite dentro do qual ele desperta poderosas tendências contrárias, ou porque um

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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

proveito e, com isso, consolidou a hegemonia política em face dos demais Estados

soberanos. Desse modo, a Inglaterra atraiu para sua própria órbita de poder as “novas

comunidades nacionais e de proprietários”, um novo acordo, o Concerto das Nações

Européias, foi celebrado e baseado não mais nas “emoções pessoais dos monarcas”, mas

nos “interesses e ambições coletivas dessas comunidades nacionais” (Arrighi, 1996, p.

53). Apoiado nas comunidades nacionais de proprietários, o Concerto das Nações

funcionou como instrumento político do “imperialismo de livre comércio” comandado

pela Inglaterra.

Sob o imperialismo de livre comércio, os domínios do Ocidente no mundo não

ocidental se expandiram até o percentual de 85%, em 1914, de controle da “superfície

territorial do planeta”. Esse aumento dos domínios, juntamente com o imperialismo de

livre comércio, é um dos fatores que concorreram para a terceira fase do nacionalismo.

As conseqüências políticas da dupla dominação dava início à configuração de novo caos

sistêmico no século XX:

“Poderosos movimentos de protesto social haviam começado no mundo inteiro antes mesmo da eclosão da Primeira Guerra Mundial. Esses movimentos tinham como raízes – e almejavam subverter – a dupla exclusão na qual se baseava o imperialismo de livre comércio: dos povos não ocidentais, de um lado, e das massas não proprietárias, de outro.” (Arrighi, 1996, p. 63)

A razão das revoltas dos povos não ocidentais (as colônias não emancipadas

politicamente) fica evidente, como também o objetivo que será perseguido nos

movimentos nacionalistas: a autodeterminação e a luta antiimperialista. Com relação

aos não proprietários ocidentais, o despertar da consciência proletária se desenvolve, em

parte, em processo análogo ao que levou a formação das classes médias e proprietárias

entre o fim do século XVIII e metade do XIX. Nessa época, a iniciativa privada fora

envolvida na gestão do Estado e da guerra. No fim do século XIX e início do XX,

novamente são os esforços de guerra que explicam a ampliação da “socialização da

gestão do Estado e da guerra” com a industrialização dos armamentos. As atividades da novo conjunto de regras e normas de comportamento é imposto ou brota de um conjunto mais antigo de regras e normas, sem anulá-lo, ou por uma combinação dessas duas circunstâncias. À medida que aumenta o caos sistêmico, a demanda de ‘ordem’ – a velha ordem, uma nova ordem, qualquer ordem! – tende a se generalizar cada vez mais entre os governantes, os governados, ou ambos. Portanto, qualquer

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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

guerra, na medida em que utilizam “produtos mecânicos fabricados à máquina”,

envolvem trabalhos dos não proprietários, o que teria aumentado o poder dessa classe

em suas “lutas pela proteção estatal e subsistência” (Arrighi, 1996, pp. 63-6).

Decisiva nas rebeliões do século XX foi a Revolução Russa, da qual irradiaram

os ideais perseguidos tanto pelas colônias como pelas “massas não proprietárias”: a

autodeterminação dos povos e a “primazia dos direitos de subsistência sobre os direitos

de propriedade e de governo”. Por fim, a Segunda Guerra Mundial, que funcionou como

“uma cadeia de transmissão para a revolução social, que, durante e depois da guerra,

espalhou-se por todo o mundo ocidental sob a forma de movimentos nacionalistas de

libertação nacional” (Arrighi, 1996, p. 65). É essa época que alguns autores denominam

“o século do homem comum”, que Arrighi identifica como a da proletarização do

nacionalismo.

Um ponto a destacar em Arrighi é que, ao situar a história do capitalismo em

uma perspectiva territorialista, entendido este como lógica política própria do Estado

moderno europeu, o autor descortina uma paisagem mundial composta de comunidades

territoriais, cujas histórias particulares não se esgotam com a história do capitalismo. O

capitalismo figura como um aspecto, talvez o mais importante, na criação de um espaço

mundial plano, horizontal, a cuja superfície as nações emergem, integrando-se em uma

modernidade mundial, isto é, no tempo presente de e com outras nações. Essa

perspectiva territorialista, como lógica associada à do capitalismo, afasta uma

compreensão das mudanças sociais como processo interno às sociedades, em que a

modernização ocorre. Essa perspectiva permite situar sociedades em seus processos de

mudança no cenário externo reclamado por Bendix e, com isso, analisar as diferentes

sociedades ou nações em termos de dualidade.

Detendo-me estritamente no pensamento de Guerreiro Ramos e indiretamente na

reflexão de Ignácio Rangel, posso dizer que a história narrada por esses autores perfaz,

no plano nacional, a história de Arrighi. Como destaquei, uma perspectiva geográfico-

espacial orienta a história política de Guerreiro e, com base nela, ele faz o “diagnóstico”

da configuração política nos anos 1950. No trajeto historiográfico, 1822 é a primeira

data assinalada nos seus escritos, a independência política, época situada entre 1776 e

1848, quando, segundo Arrighi, ocorreu “completa transformação das relações Estado ou grupo de Estados que esteja em condições de atender a essa demanda sistêmica de ordem tem a

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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

governante-governado na totalidade das Américas e na maior parte da Europa” (Arrighi,

1996, p. 52).

Nesse contexto, que iria de fins do século XIX até aproximadamente 1930, de

acordo com Guerreiro, a estrutura de classes no Brasil se definiria em função da

propriedade latifundiária: de um lado, os proprietários, e, de outro, os não proprietários.

Em relação ao Concerto das Nações, não éramos atrasados, participávamos como nação

politicamente independente e fornecedora de matérias-primas. Enquanto tal situação

perdurou, não havia “povo” no Brasil, o que significava que as decisões políticas

estavam concentradas nas mãos das elites proprietárias e exportadoras e comandadas

por interesses externos.57 Com a crise econômica dos anos 1930, a pressão da produção

interna por bens de consumo importados mudou a direção histórica brasileira.

Essa análise – que para nós, hoje, é até banal – ilumina uma historiografia em

construção durante todo o período que se inicia por volta de 1930, e que tem seus

primeiros formuladores entre os economistas. O que chamo de economistas não são

necessariamente profissionais formados em faculdades de economia, as quais só passam

a surgir na década de 1940, mas pessoas que darão impulso à elaboração de uma análise

estrutural da formação histórica brasileira a partir de questionamentos de natureza

econômica. É no âmbito dessas reflexões que a crítica teórica às teorias econômicas

clássicas divulgadoras da divisão internacional do trabalho se transforma também em

crítica política ao imperialismo de livre comércio (Love, 1996; Bielschowsky, 2000).

A historiografia isebiana é estruturada pela idéia de “fase”. O ano 1930 marcaria

o início de uma nova fase da história brasileira. Desse período até 1950, quando os

isebianos estão escrevendo, o desafio histórico é encarado como aquele em que se

impunha a aceleração econômica por meio da industrialização, o que reclamava a

intervenção estatal, a formação de uma burguesia nacional e a incorporação política e

social dos trabalhadores; a industrialização é vista como meio pelo qual a incorporação oportunidade de se tornar mundialmente hegemônico” (Arrighi, 1996, p. 30). 57 Distinguindo as nações anteriormente emancipadas daquelas em processo de descolonização em termos do status que elas gozavam no sistema internacional, Arrigh escreve sobre as primeiras: “Ao mesmo tempo, as nações que se haviam transformado nas unidades componentes do sistema interestatal sob a hegemonia britânica eram, em geral, comunidades de proprietários, das quais as classes desprovidas de bens eram efetivamente excluídas. Assim o direito dos cidadãos proprietários de buscar a riqueza foi elevado, não apenas acima dos direitos absolutos do governo, mas também acima dos ancestrais direitos à vida das massas não proprietárias (cf. Polany, 1957). Tal como a democracia ateniense na Antigüidade, a democracia liberal no século XIX foi uma ‘oligarquia igualitária’, na qual ‘uma classe dominante de

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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

ocorreria. Notemos que essa fase é representada como uma constelação histórica

urgente de realizações de etapas, que o mundo desenvolvido já teria realizado algumas e

que estaria realizando outras; no conjunto, a industrialização doméstica, a formação da

burguesia industrial e do proletariado.

Podemos dizer que Arrighi, também situado em uma perspectiva histórica,

assinala em termos de fases correspondentes a ciclos de hegemonia a realização dessas

etapas. Primeiro, o nacionalismo econômico, significando isto gestão estatal da

economia. Depois, a formação da sociedade civil, ainda que restrita aos proprietários.

Sobre o componente industrial da classe de proprietários, Arrighi sugere sua

consolidação como decorrente de fatores não exclusivamente vinculados aos interesses

econômicos de civis. É o que deduzo do modo como se refere à Revolução Industrial,

como algo que “decolou sob o impacto das guerras revolucionárias e napoleônicas da

França” (Arrighi, 1996, p. 56). E, por fim, a ampliação de direitos aos excluídos, por

meio de lutas: massas sem propriedade e colônias.

Podemos acrescentar que, em meio a esse processo linear, houve nacionalismo

econômico, como no caso da Alemanha no final do século XIX, seguindo, no mesmo

país, o nacionalismo cultural dos românticos. Podemos nos lembrar, ainda, do

centralismo político dos federalistas; do industrialismo e territorialismo interno dos

americanos; do nacionalismo cultural na Índia (Chatergee, 2004); no Brasil, da chamada

geração de 1870 – com Silvio Romero, com o nacionalismo cultural que traz à cena a

questão da identidade cultural.

Na perspectiva seguida pelo ISEB, o caráter revolucionário da época que se

inicia, em 1930, é marcado principalmente pelo colapso do imperialismo de livre

comércio, que é a via que estimula as análises críticas econômicas às teorias liberais

clássicas nos países, que passam então a se compreender como subdesenvolvidos. A

partir desse marco é que a noção de imperialismo passa a informar uma atitude política

interna e externa baseada na idéia de nação. No caso do Brasil, nação politicamente

independente, seu ingresso no cenário de rebeliões internacionais não se daria do

mesmo modo das nações africanas. A revolução por aqui tinha um conteúdo mais

econômico, combinado com exigências de natureza social. Acumuladas em um mesmo

período histórico, as fases assinaladas por Arrigh configuram a nação como unidade cidadãos partilhava os direitos e os espólios do controle político’ (MacIver, 1932, p. 352)” (Arrighi, 1996,

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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

multidimensional de demandas, de exigências a reclamarem a presença do Estado, bem

como sua mudança. Como diz Guerreiro, a natureza do Estado, a direção imprimida às

suas atividades já não podiam mais ser determinadas por interesses dos proprietários

rurais e exportadores, mas pelos das classes emergentes, as quais entende como

solidárias em um mesmo projeto histórico.

Importa assinalar que, no período em que as ciências sociais estão sendo

elaboradas no Brasil, especialmente nos anos 1950, todas essas “realidades” sociais,

culturais, econômicas e políticas estão informando aquele projeto. Acredito que o fato

de uma parcela dessa intelectualidade ter se desenvolvido em um ambiente como o

paulistano, onde as contradições sociais decorrentes da industrialização se mostravam

mais agudas, favoreceu um olhar mais propenso a selecionar, na época, o conflito entre

as “massas não proprietárias” e os proprietários, o que inclinou esses intelectuais a uma

visão mais “universalista” de enquadramento dos conflitos, identificando-os como a

fase mais avançada do processo histórico.

Além disso, uma visão bastante crítica do passado brasileiro, como

obscurantista, patrimonialista e escravocrata, informava esses intelectuais paulistas o

que seria uma visão crítica do presente. Esse presente, em uma análise linear calcada na

idéia de atraso e moderno, se mostrava, nos anos 1950, híbrido. Do universo das classes

populares ao das elites dominantes dos vários setores – agrocomercial, financeiro e

industrial –, passado e moderno se misturavam de forma confusa e passível de enganar

mentes menos perspicazes ou de má-fé. Os intelectuais de São Paulo, de que nos fala

Florestan Fernandes nas suas memórias daquele tempo de fundação, se viam isolados do

passado e do presente, tendo à sua frente não apenas a tarefa de recriar o ambiente culto

da universidade, mas também a sociedade. Daí que o adjetivo nacional, na medida em

que nele está implicado uma recuperação, de algum modo afirmativa, do passado e uma

visão unitarista da coletividade, será rejeitado.

Um outro ponto que explica as duas direções é o fato de as ciências sociais

emergirem em um contexto de ditadura: o Estado Novo. Para uns, os nacionalistas, o

Estado novo era ele mesmo símbolo de novos tempos; para outros, a continuidade

obscurantista da nossa formação, que, como diz Fernandes em suas memórias, não

permitia reconhecer qualquer outra forma de atividade política além daquela que se

pp. 63-4).

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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

desenvolvia na sua órbita. Daí permanecer o recrutamento político restrito ao ambiente

das elites tradicionais o que reforçava ainda mais, na atitude política daqueles

intelectuais, a idéia da universidade e do pensamento como as cidadelas em que o ideal

democrático podia florescer.

Considero importante destacar a idéia de desenraizamento, cara a esses

intelectuais. É uma idéia que norteia a historiografia das ciências sociais e que enaltece

a experiência paulista. Sérgio Miceli, em uma análise dos condicionamentos

socioculturais a reger as ciências sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo, confirma um

desenraizamento que, para mim, se radica em uma concepção negativa do passado

político-social brasileiro. Eis como ele descreve os intelectuais em São Paulo e no Rio

de Janeiro, respectivamente:

“Em São Paulo, a hierarquia acadêmica que vai se constituindo nas duas primeiras décadas de funcionamento foi sendo modelada por docentes estrangeiros treinados nas regras e costumes da competição acadêmica européia (e francesa em particular), todos eles empenhados em instaurar um elenco de procedimentos, exigências e critérios acadêmicos de avaliação, titulação e promoção. O acesso às posições de comando e liderança esteve invariavelmente condicionado à produção e defesa de doutoramento, ao concurso para a livre-docência e à conquista da cátedra...” (Miceli, 1989, p. 81) “No Rio de Janeiro, nos dois empreendimentos universitários citados verifica-se uma corrida política em torno das posições disponíveis, logo convertidas em alvos de clientelismo, e rapidamente preenchida pelos docentes estrangeiros ‘acima de qualquer suspeita’ doutrinária, por jovens provincianos recém-chegados no Rio na cola de algum protetor ou mandachuva político e por docentes transferidos de cátedra de ensino jurídico, alguns desses tendo dado provas de serem intelectuais de primeira linha (Vítor Nunes Leal, por exemplo).” (Miceli, 1989, p. 82)

O que considero interessante na comparação dos dois modelos – o carioca e o

paulista – é o elogio dos estrangeiros em São Paulo, cuja autonomia maior desfrutada

naquele ambiente ter-lhes-ia permitido introduzir padrões mais civilizados de

recrutamento de competências. Além dos docentes, Miceli enfatiza ainda o fato de a

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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

clientela universitária paulista ser composta de descendentes de imigrantes e

“desenraizados”.

Outro ponto interessante é que a crítica que o autor faz às instituições políticas e

sociais brasileiras só lhe parece possível graças ao que seria um padrão mais civilizado e

democrático de convivência coletiva introduzido pelos estrangeiros em São Paulo. Em

decorrência dessa perspectiva, Miceli faz uma avaliação negativa das instituições

localizadas no Rio de Janeiro e de todo o saber produzido nessa cidade, o qual, segundo

essa visão, não teria sido capaz de formular uma reflexão sobre as instituições políticas

e sociais brasileiras menos comprometida com os interesses pessoais. Daí esse saber não

merecer crédito, posto que não científico.

No entanto, Miceli desconsidera o fato de que pensadores como Bernardo de

Vasconcelos, Visconde do Uruguai, Alberto Torres, Oliveira Vianna, entre outros,

vinham desde há muito tempo desenvolvendo uma reflexão sociológica que procurava

investigar o modo como as instituições políticas no Brasil vinham contribuindo para

uma cultura política personalista a permear todas as instituições sociais. O que o

pensamento desses autores nos diz é que um pensamento crítico às instituições

nacionais é concomitante à construção da ordem republicana no Brasil, portanto, trata-

se de um pensamento nacional e anterior à produção de conhecimento em que este se

profissionaliza na universidade. Miceli toma o conhecimento produzido em São Paulo

como um marco inaugural da preocupação com o que seria a construção de uma

sociedade moderna, republicana e democrática. Se, em vez de se referenciar por esse

marco institucional – a institucionalização das ciências sociais no Brasil –, Miceli

tivesse situado essa mesma institucionalização em um contexto mais amplo da história

política e social brasileira, possivelmente ele teria sido mais generoso tanto com o

pensamento anterior quanto com o produzido fora das universidades, pois poderia tê-los

compreendido como congênitos à construção da sociedade brasileira, republicana e

democrática, o que significa também dizer a construção do Estado-nação.

É dando continuidade ao pensamento nacional produzido pelos autores

desqualificados pela análise de Miceli que Guerreiro Ramos enraíza sua sociologia, seu

pensamento e a si mesmo. Por meio desses autores é que uma continuidade histórica vai

sendo apreendida em termos de uma dialética nacional envolvendo o pensamento crítico

interno e o que, em cada fase da nossa história, foi o status quo. De fato, como dizem os

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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

críticos, a premissa da qual os nacionalistas partem é a nação, supondo-a existente e

talvez mais importante, vendo-se a si próprios como nacionais.

6.2. Segunda digressão: Estado, sociedade e democracia no pensamento político

brasileiro após a década de 1970

Outro argumento desta tese foi de que a crítica dos anos 1970 configura um

cenário histórico e social de críticas ao Estado militar. Assim, se, por um lado, houve

uma crítica epistemológica, que dá continuidade ao debate que regeu a

institucionalização das ciências sociais, por outro, a ida ao ISEB faria parte de uma

crítica política específica, que teria na tematização do Estado autoritário, ao mesmo

tempo, uma retomada do espírito mannheimiano das ciências sociais em 1950 e o

impulso para uma historiografia do pensamento social e político brasileiro.

Creio não ser equivocado afirmar que a antinomia Estado e sociedade, presente

na crítica ao ISEB, estrutura também um dos modos como se escreveu a história do

pensamento social e político no Brasil. No contexto do regime militar, a clivagem

autoritarismo versus democracia, para mim, se constitui em um desdobramento e

reforço da dicotomia sociedade versus Estado, com as quais será possível uma

historiografia do chamado pensamento autoritário em contraposição àqueles que

divisaram a possibilidade da democracia.

Do período militar considero exemplar o artigo de Bolívar Lamounier e

Fernando Henrique Cardoso (1978b). Ao situarem a análise no período da década de

1940, dois estudos são destacados pelos autores, um como democrático e outro como

autoritário. Trata-se de Coronelismo, Enxada e Voto, de Vítor Nunes Leal, e Instituições

Políticas Brasileiras, de Oliveira Vianna. O primeiro, ao focalizar o estudo na dinâmica

eleitoral do período republicano, “teria ido à raiz da questão da possibilidade da

democracia no contexto sócio-político da época” (Lamounier; Cardoso, 1978b, p. 44).

Ao tomar os partidos políticos como universo político de sua análise, Vítor Nunes

estaria mais bem situado em vista mesmo da natureza do objeto – os partidos. Além

disso, seu estudo, ao detectar a impossibilidade do sistema representativo, teria

denunciado a funcionalidade daquelas agremiações para a expansão do Estado na vida

pública. Por outro lado, Oliveira Vianna já teria falhado ao tomar como premissa “o

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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

condicionamento histórico-cultural das instituições políticas brasileiras...”. Assim, os

autores citados concluem que, “por tara de origem, já que não somos citzens ingleses e

por razões sócio-culturais, pois jamais cultivamos a responsabilidade da ação conjunta

que as comunidades de aldeia poderiam ter gerado, considera Oliveira Vianna que as

instituições políticas brasileiras perpetuaram a forma cultural de uma relação entre o

povo-massa-inorganizado e amebóide – e uma direção autoritária” (Lamounier;

Cardoso, 1978b, p. 5). A sociologia de Oliveira Vianna seria mais uma ficção

justificadora do Estado autoritário.

É nessa mesma linha de argumentação que as críticas ao ISEB serão formuladas.

A crítica ao conteúdo autoritário do pensamento elaborado naquele instituto é deduzida

da relação entre pensamento e Estado. Maria Sylvia Carvalho Franco, ao sugerir uma

filiação entre o pensamento do ISEB e o Estado, descreve o intelectual como

“encarnação do demiurgo”, como “a consciência da realidade, dispondo de uma

atividade racional que organiza a história, dá corpo à nação, funda o poder” (Franco,

1978, p. 158). Para Carlos Guilherme Mota (1977), a ideologia nacionalista isebiana

teria rompido com os elementos críticos do nacionalismo da geração de 1940. Segundo

ele, em obras de autores como Mário Neme, Paulo Emílio Sales Gomes e Edgar da

Mata-Machado, a idéia de nação, indicativa do surgimento do “povo”, se estruturava

como crítica ao Estado Novo.

Além da crítica epistemológica e da que se volta para a relação entre pensamento

e Estado, sugiro que a crítica dos anos 1970 ao ISEB pode ser compreendida, também,

no contexto de um debate sobre a história política brasileira centrado na antinomia

estado versus sociedade. Segundo Fábio Wanderley Reis (1974), esse debate teria sido

reaberto por Simon Schwartzman em dois trabalhos – um de 1970 e o outro de 197358 –

, nos quais Nestor Duarte e Raymundo Faoro constituem ilustrações daquela antinomia.

Enquanto Nestor Duarte “salienta o poder da aristocracia rural e a autonomia dos

núcleos privados...”, Faoro, por sua vez, “vê no aparato estatal brasileiro a fortaleza de

um ‘estamento burocrático’ permanente, apontando sua independência com respeito à

estrutura social subjacente” (Reis, 1974, p. 48). Conforme salienta Reis, ao posicionar-

se ao lado de Faoro, Schwartzman acabou “reformulando o problema em termos de

58 Os dois trabalhos de Simon Schwartzman são o artigo “Representação e Cooptação Política no Brasil”, Dados, 7 (1970), e Regional Cleavages and Political Patrimonialism in Brasil, Tese de Doutorado (1973).

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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

‘representação’ (em que o aparato do estado se mostra como expressão de forças sociais

autônomas) versus ‘cooptação’ (em que o estado prevalece sobre as forças sociais),

procura ele interpretar toda a evolução brasileira até os dias atuais em termos de

predomínio continuado de tendências ‘cooptativas’ (...)” (Reis, 1974, p. 48).

Penso que contribuiu para esse debate, em que estado e sociedade se

antagonizam, uma compreensão da década de 1970 como aquela em que se teria

testemunhado o afloramento de condições institucionais e sociais do funcionamento da

ordem democrática. Bolívar Lamounier (1993), ao designar três grandes fases em que a

história do Brasil se desenvolveu no último século, aponta o período pós-1964 como a

fase “centrada na questão democrática”. A democracia entendida como sistema político,

e não apenas como sistema de idéias, se efetivaria com a “progressiva diferenciação e

autonomização de um subsistema representativo, isto é, de um conjunto de

procedimentos eleitorais, parlamentares e partidários que regulam a investidura de

pessoas privadas em posições de autoridade pública” (Lamounier, 1993, p. 98).

Podemos dizer que os aspectos institucionais ressaltados por Lamounier,

configurando a democracia como sistema político, compõem e organizam um cenário

em que forças sociais, vistas antes como politicamente inexpressivas, irrompem como

atores políticos. Ruth Cardoso (1984) destaca como os movimentos sociais urbanos

impunham uma revisão da forma clássica marxista de explicação dos processos de

transformação social do mundo capitalista. A contradição fundamental classe dominante

versus classe dominada cederia lugar a uma outra forma de manifestação de conflito

anunciada pelos movimentos sociais urbanos em relação ao Estado. Esses movimentos

seriam indicadores da organização de uma sociedade civil, levando a uma reflexão

acerca da possibilidade de uma ordem democrática efetiva.

Maria Hermínia Tavares de Almeida (1992) chama atenção para o caráter de

“marco no debate político da esquerda brasileira” no ensaio de Carlos Nélson Coutinho:

A Democracia como Valor Universal. O significado de divisor de águas na concepção

política da esquerda se dava em função da perspectiva negativa com que a democracia

era até então tratada. A democracia era vista como “instrumento político, um meio de

ascensão ao poder, nem sempre o mais acessível às forças populares e, seguramente, o

menos adequado à realização de seus supostos interesses históricos” (Almeida, 1992,

pp. 42-3). Citando Lechenner, a autora observa que essa visão positiva da democracia

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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

apontava “uma nova sensibilidade intelectual e política”, com a qual “a democracia

aparecia como ordem possível e desejável” (Almeida, 1992, pp. 42-3).

A autora destaca ainda a recepção de Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro,

naquela década. Publicado em 1958 pela primeira vez, e passando despercebido, o livro

foi “descoberto, celebrado e reeditado uma década e meia depois” (Almeida, 1992, p.

45). A recepção desse livro pode ser expressiva do modo como, a partir da década de

1970, o debate sobre a democracia vai se processar. Poderíamos dizer que o livro de

Faoro vai ao encontro de uma postura intelectual antiestatal, que via no Estado a origem

dos males brasileiros, e ainda animada pelo que seria o despertar da sociedade civil.

Segundo Maria Hermínia, “a democracia veio junto com a revisão crítica das

formulações sobre a natureza e as funções do Estado no processo de desenvolvimento”

(Almeida, 1992, p. 44). São ainda destacados pela autora: um artigo de Fernando

Henrique Cardoso, “A Questão do Estado no Brasil”; o livro de Florestan Fernandes, A

Revolução Burguesa no Brasil; e um artigo de Francisco Weffort, “Por que

Democracia”.

Acredito que o fato de a crítica ao ISEB se desenrolar nesse cenário, em que a

democracia e a idéia de sociedade civil se constituem na referência básica de uma

historiografia baseada na antinomia Estado versus sociedade, faz com que ela projete,

nos anos 1950, o ambiente político e social dos anos 1970. Com isso, a crítica dá um

salto sobre o que talvez tenha sido o momento histórico em que justamente as condições

institucionais para que a democracia se consolidasse fossem, ao mesmo tempo, objeto

de estudo e alvo de uma ação mais interventora na realidade por parte da intelligentzia e

do Estado.

Nos anos 1970, sob o fechamento do regime, a liberdade política talvez fosse um

valor mais desejado e urgente, uma vez que seria essa a condição para que as

reivindicações dos movimentos sociais pudessem se orientar para a realização da

igualdade social e política. Creio que, pela primazia que a liberdade política assume

nesse contexto, os críticos do ISEB se voltem para os anos 1950 e avaliem de forma

negativa a posição daquele Instituto em relação ao Estado. É possível pensar que essa

perspectiva se associe com a tendência apontada por Reis (1974), na sua crítica ao

debate centrado na antinomia Estado versus sociedade, em que a política brasileira

aparece como sempre autoritária. Nas palavras do autor:

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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

“O aspecto principal de nossa objeção, contudo, dirige-se a certo ingrediente das abordagens usualmente adotadas no debate sobre estado versus sociedade que leva os autores a procurarem por algo como uma essência da sociedade e da política brasileiras que se teria estabelecido em suas origens e se teria mostrado capaz de sobreviver de maneira antes misteriosa. Desde que dificilmente se poderiam negar as profundas transformações experimentadas pela sociedade brasileira tanto ao nível estrutural quanto ao nível de sua fachada institucional, tal essência tem que ser buscada numa fluida e evasiva ‘cultura política brasileira’ ou numa espécie de ‘caráter nacional brasileiro’.” (Reis, 1974, p. 52)

Nesse contexto do debate centrado na antinomia Estado versus sociedade, o

nacionalismo do ISEB é atacado pela crítica por seu caráter integracionista, ou seja, por

sua posição que não descartava o Estado na promoção de uma sociedade mais integrada.

De alguma forma, essa perspectiva isebiana ofusca a dimensão mais conflituosa do

processo social e, com isso, não dá realce a um tipo de demanda que valoriza mais a

liberdade do que a igualdade. Porém, quando lemos Guerreiro Ramos, percebemos que

o que mais faltava na década de 1950 era uma integração social e política que pudesse

dar como garantida a idéia de igualdade. Penso que o nacionalismo tinha em vista

exatamente acionar esse sentimento; por isso, em vez de um apelo que conclamasse a

uma atitude política antiestatal, pelo contrário, o nacionalismo via no Estado tanto o

instrumento como um elemento simbólico da igualdade, o que significaria,

primeiramente, sentimento de pertença a uma comunidade nacional.

Voltando aos autores do século XIX, podemos observar em que condições a

igualdade era tida como garantida, ensejando uma reflexão que vai valorizar a dimensão

da liberdade e da diferença.

Igualdade e liberdade: dois momentos da democracia

Encontramos em Stuart Mill e Alexis de Tocqueville as origens da concepção de

democracia que remete a arranjos políticos que lhe garantam a existência, como aquela

que Bolívar Lamounier identifica nos anos 1970. Stuart Mill desenvolve sua análise

defendendo a primazia da liberdade em um contexto histórico de crescente igualização

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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

social e política. Preocupado com uma experiência histórica em que maiorias afluem ao

cenário político, Mill associa o tema da liberdade política à defesa da diversidade de

opinião e de escolhas individuais existentes no mundo social. O predomínio do

princípio da liberdade sobre o da igualdade, nesse autor, pode ser explicado tanto pela

possibilidade da tirania da maioria como pela precaução liberal em relação ao arbítrio

do Estado na vida dos homens. Observa-se que, nessa concepção, a igualdade não se

apresenta como um valor e finalidade em si, mas a asseguração dos meios que tornem o

exercício da liberdade possível. Se seguirmos a aproximação entre o pensamento de

Mill e de Tocqueville no que diz respeito à constatação da democracia como um fato no

mundo moderno, e se entendermos que, assim como o conceito de liberdade, o de

igualdade é indissociável da democracia, poderemos concluir que, se a igualdade não é

um fim para esses autores, é porque para eles ela já está dada. Em A Democracia da

América há uma passagem que elucida bem essa compreensão em Tocqueville. Ele

escreve:

“Na maior parte das nações modernas, e em particular em todos os povos do continente europeu, o gosto e a idéia de liberdade só começaram a nascer e a se desenvolver no momento em que as condições começaram a igualar-se e em conseqüência dessa mesma igualdade.” (Tocqueville, 1987, p. 385)

Considero que é do ponto de vista em que a salvaguarda da liberdade é vista

como dependente da garantias institucionais, é que a democracia pode ser descrita como

“um conjunto de procedimentos eleitorais, parlamentares...”, como descreve Bolívar

Lamounier.

No entanto, a história da democracia na sociedade moderna não foi escrita

apenas por quem e para quem a igualdade já era um dado. É o caso do movimento de

idéias que leva à Revolução Francesa, do qual costumamos nos esquecer do lema

“fraternidade”, que replica uma ordem social fundada nas crenças das desigualdades

naturais. É o caso do nacionalismo alemão, que, de suas raízes no romantismo ao

nacionalismo econômico de Lizt, é impulsionado pela percepção da desigualdade

política e econômica entre nações. Nesses casos em que a desigualdade era o inimigo a

ser combatido, um apelo com base na igualdade, seja dirigido a um setor majoritário da

sociedade, seja à nação inteira, foi realizado como condição da ordem democrática.

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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

Rousseau é um caso exemplar de um pensamento democrático em que o estatuto da

igualdade tem precedência sobre o da liberdade. Ao partir do pressuposto de que a

condição primeira dos homens, a liberdade, fora perdida com a civilização, a conquista

da igualdade era condição necessária à restituição da liberdade. Em tais situações e

pensamento, conceitos como o de soberania popular, vontade geral, nação, povo

traduziram ideais de realização dessa condição básica que permitiria aos homens se

identificarem como iguais sob o manto dessas identidades genéricas. Ao relacionar

Revolução Francesa e nacionalismo, Montserrat Guibernau observa que “conceitos de

igualdade e solidariedade e, sobretudo, de soberania popular desempenharam um papel

fundamental no caminho para o nacionalismo” (Guibernau, 1997, p. 54).

Estamos diante de duas concepções de democracia que, sem negar uma das suas

duas dimensões – igualdade e liberdade –, se configuram distintas em virtude do

predomínio que uma terá sobre a outra. A liberdade predomina quando a igualdade

parece estabelecida; a igualdade, quando esta se afigura como ideal a ser realizado. O

primeiro caso nos expõe a uma concepção de democracia em que esta aparece como

uma engenharia política, estabelecendo métodos e fórmulas que garantam seu

funcionamento. O segundo remete a uma espécie de primeiro momento da experiência

democrática moderna.

Como vimos, a literatura recente sobre o nacionalismo tem focalizado

exatamente a relação entre a idéia de igualdade e sentimentos nacionais na origem dos

Estados nacionais desde a primeira metade do século XIX. A análise de Norbert Elias

(1997) sobre a “sociogênese” da formação do Estado nacional na Alemanha é exemplar

dessa coincidência. No momento em que um estrato social, a classe média, formada no

interior de uma sociedade política fundada na desigualdade, se constitui em classe

dominante, no apelo que dirige ao público interno com vista a uma nova estrutura de

poder, aciona sentimentos de igualdade por meio de símbolos verbais veiculadores de

“um nós imagem” e um “nós ideal”. É somente com crença na igualdade que se pode

definir o ethos nacionalista, tal como o faz Elias na seguinte passagem:

“Um ethos nacionalista subentende um sentido de solidariedade e obrigação, não apenas em relação a determinadas pessoas ou a uma única pessoa em posição de mando, mas também em relação a uma coletividade soberana que o próprio indivíduo forma com milhares ou milhões de outros indivíduos,

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Capítulo 6 – Duas digressões sobre nacionalismo e democracia

coletividade esta que está, hic et nunc, organizada num Estado – ou que, de acordo com as crenças das pessoas envolvidas, assim virá a estar no futuro – e o apego pelo qual é mediado, através de símbolos especiais, alguns dos quais podem ser pessoas. Esses símbolos e a coletividade que eles representam atraem para si fortes emoções positivas do tipo usualmente chamado ‘amor’... O amor de um indivíduo pela sua nação nunca é apenas amor por pessoas ou grupos de pessoas a que se refere como ‘eles’; também é o amor de uma coletividade a que o indivíduo se refere como ‘nós’. Seja o que mais possa ser, é também uma forma de amor-próprio.” (Elias, 1997, p. 143)

A conclusão a que chego sobre o nacionalismo dos anos 1950, para além do fato

de ter sido formulado como ideologia do desenvolvimentismo pelo ISEB, é que ele

traduziu, no Brasil, a formação de um ethos tal como Elias o descreve, ou seja, a

formação de um sentimento de solidariedade e obrigação para com a coletividade

inteira. As ciências sociais, na forma como elas são concebidas seja por Florestan

Fernandes, seja por Guerreiro, são uma expressão desse sentimento de amor e

comprometimento com a construção da nação. Especialmente em relação a Guerreiro

Ramos, talvez, o modo como ele insiste na crítica às várias elites, em particular, às

intelectuais, seja resultado da sua compreensão macro da sociedade brasileira, cujo

principal problema seria um estranhamento dessas elites em relação à história e às

paisagens social e geográfica que constituem o que ele entende ser a nação. Essa

compreensão confere um caráter particular ao que Guerreiro Ramos entende ser uma

sociologia comprometida e engajada.

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Conclusão

A análise desenvolvida nesta tese estruturou-se como um diálogo com a crítica

ao ISEB. Destaquei três fatores, que, à luz de estudos mais recentes, seja sobre o

nacionalismo, seja sobre a formação dos Estados nacionais, teriam sido negligenciados

pelas críticas. Esses fatores são: o papel do Estado na promoção de sociedades nacionais

integradas, a partir de sua aproximação com o público interno; a constituição da ordem

urbano-industrial, que teria tornado a teoria social clássica mais sensível aos aspectos

supostamente mais racionais relacionados à esfera econômica e, com isso, desprezado

aqueles de caráter mais afetivos e simbólicos, que dão suporte ao nacionalismo; e, por

último, a elaboração das narrativas nacionais no contexto de formação dos Estados

nacionais.

Dos três fatores, detive-me mais atentamente no segundo, por entender que é a

partir dos parâmetros fornecidos pela sociedade industrial que a crítica é norteada por

uma perspectiva mais econômica do nacionalismo. Essa perspectiva econômica dá

suporte tanto à crítica ideológica quanto à epistemológica. A crítica ideológica dirige-se

ao ISEB como aparelho ideológico do Estado, entendido este como Estado burguês,

conforme a compreensão marxista. A crítica epistemológica dirige-se ao que seria uma

incorreção científica, posto que, ao erigir a nação como categoria central no estudo da

sociedade brasileira, os intelectuais do ISEB teriam desprezado o conceito de sociedade

industrial ou de classes.

Do diálogo com a crítica, procurei identificar esses três fatores e a articulação

entre eles nos escritos de Guerreiro Ramos. A conclusão a que chego é que a atuação

desse isebiano como funcionário do Estado, no DNC e no DASP, lhe abriu uma

perspectiva de estudo da sociedade brasileira distinta daquela que estaria informando a

ciência social acadêmica.

No DNC, Guerreiro pôde aproximar-se de forma teórica e prática de problemas

relacionados à desigualdade social. Com as reflexões sobre mortalidade infantil e

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Conclusão

delinqüência juvenil, o isebiano alcança uma compreensão socioeconômica desses

fenômenos, inicialmente enquadrados de um ponto de vista cultural. O trabalho naquela

agência também torna-o sensível ao papel do Estado na solução daqueles problemas,

papel esse que assume a forma de uma maior penetração do aparelho estatal na vida

social, por meio de técnicos, médicos, sanitaristas e formulação de políticas públicas. A

importância que o Estado assume como agente de democratização social para o autor é

evidenciada na sua reflexão sobre a planificação.

Com os estudos sobre mortalidade infantil e delinqüência juvenil, Guerreiro

pôde ainda enquadrar essas questões em termos de diferenças regionais. Ele observa que

a mortalidade infantil, em determinadas regiões, estaria diretamente relacionada a

hábitos e crenças populares, sendo estes justificadores dos óbitos. Esses hábitos e

crenças, por sua vez, estariam relacionados ao isolamento das regiões.

Uma compreensão econômica tanto das patologias sociais quanto do universo

cultural que as envolve é alcançada por meio de estudos sobre o orçamento familiar. A

partir desses estudos, Guerreiro abre uma via de análise que lhe permite relacionar

subculturas regionais e pobreza e situá-las em um contexto econômico mais amplo. A

visão desse contexto lhe é fornecida pelas análises do tamanho e distribuição do PIB.

Quanto ao tamanho, ele é pequeno para as dimensões territoriais e demográficas do

país; quanto à distribuição, ele é desigual, concentrado nas regiões Sul e Sudeste.

A idéia de Estado planificador, a diversidade regional e a natureza econômica

dos problemas sociais são, a meu ver, os três ingredientes que vão orientar a sociologia

de Guerreiro a partir dos anos 1950. Dos três, o segundo constituirá a premissa empírica

a partir da qual ele formula a sua teoria histórica e nacional da sociedade brasileira. Esta

será articulada com uma preocupação pragmática que apela à economia política.

O público-alvo do discurso militante deveria restringir-se, segundo minha

compreensão, aos economistas, partidos e governo. Contudo, observamos que Guerreiro

dirige-se a um público mais amplo, incluindo nele, principalmente, os cientistas sociais.

A razão disso, sugiro, decorre de um desdobramento de sua reflexão sobre as

desigualdades regionais. Assim como haveria um distanciamento cultural e econômico

entre as regiões, haveria também um distanciamento entre o pensamento social

brasileiro e o “povo”. O povo, nesse caso, corresponderia à multidão dispersa pelo

território, nas diversas regiões.

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Conclusão

Esse distanciamento é percebido pelo autor por meio de suas leituras das teorias

e interpretações do Brasil, as quais ele (des)qualifica como alienados. Além disso, as

análises econômicas sobre o subdesenvolvimento da época corroboravam a tese da

alienação das elites, intelectuais ou não, ao apontar o padrão de consumo, consumo esse

suntuário, imitado dos países desenvolvidos pelas elites brasileiras.

Constatada a prática da imitação tanto cultural quanto material, Guerreiro retoma

a perspectiva cultural na sua análise sobre o comportamento das elites em relação à

nação. Uma compreensão materialista e histórica é proporcionada pela tese da dualidade

básica de Ignácio Rangel. Porém, a explicação histórico-materialista da dualidade não

elimina o problema cultural das elites. Daí que um discurso de caráter mais emocional e

afetivo é elaborado e endereçado às elites intelectuais, com vistas à sua conversão à

nação. Mas o discurso de conteúdo emocional não pode prescindir da racionalidade

conferida pela ciência e pela história. Guerreiro então formula uma teoria baseada na

idéia de nação. Com esse conceito, ele vai para o embate intelectual em fins dos anos

1950.

A Redução Sociológica é a obra mais expressiva da sociologia nacionalista de

Guerreiro Ramos. Nessa obra, a nação é apresentada como referência empírica,

espacial, cultural e histórica do pensamento “autêntico”, o que quer dizer nacional. Se

com a sociologia do conhecimento, nessa obra, Guerreiro procura legitimar suas

formulações perante a comunidade acadêmica, é na fenomenologia e na filosofia da

existência que ele encontra os suportes teóricos para a elaboração de uma concepção

dinâmica da nação.

Como vimos, de Hurssel e de Heidegger, Guerreiro traz as idéias de consciência

intencional e de mundo, para o qual a consciência se dirige e adquire seus conteúdos. A

idéia de mundo corresponde, na leitura de Guerreiro, à realidade imediata a partir da

qual a consciência se desenvolve. É dessas duas idéias que ele elabora tanto uma

compreensão da nação quanto da consciência nacional. Como escrevi no Capítulo 5, a

nação entendida, primeiramente, como espaço nos limites do território é o conceito com

o qual Guerreiro poderá apreender a sociedade brasileira como uma totalidade histórica

e social. A nação se lhe configura como categoria abrangente da diacronia e da

sincronia brasileiras.

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Conclusão

Com a diacronia, ele chama a atenção dos intelectuais para o que seria uma

história comum e particular, história essa que vincula gerações e contemporâneos. Com

sincronia, ele procura chamar atenção para as diferenças regionais e suas conseqüências

negativas que impediriam a constituição de um “verdadeiro povo”. É em um cenário

entendido como multifacetado que a idéia de nação pode ser também entendida como

recurso simbólico e cêntrico em relação às gerações passadas e vindouras e em relação

aos contemporâneos separados pelas classes sociais e pelas regiões.

Se, como observa Fábio Wanderley Reis (1974), o desenvolvimento político de

uma nação supõe uma etapa em que a institucionalização da autoridade tem de se

afirmar contra “focos particulares de solidariedade”, com Guerreiro Ramos, podemos

dizer que o nacionalismo, ao erigir a nação como centro de uma solidariedade comum,

encontra nessa idéia – a nação – o correspondente simbólico da autoridade legítima

representada pelo Estado moderno. Dessa forma, a nação tem como função fazer

convergir para ela os sentimentos dispersos nos “focos particulares de solidariedade”.

Concluo que a compreensão de Guerreiro da sociedade brasileira como nação

adveio-lhe da experiência no DNC, quando confrontado com a diversidade regional. A

nação se lhe configura como conceito suficientemente abrangente das diferenças

regionais, entendidas todas elas como nacionais e, portanto, objeto de uma política

nacional. A política nacional é algo a ser promovido pelo Estado. Por meio de uma

política nacional, o Estado assumiria, também, a função de aparelho integrador do corpo

nacional. Parece-me ser essa uma compreensão que Guerreiro tem do Estado, a de ente

integrador da nação, em vista das suas ações na direção da sociedade, ações essas que

tenderiam a desorganizar subculturas, modos de vida, crenças e hábitos tradicionais,

reorganizando-os em uma espécie de superfície plana, homogênea, a qual chamamos

modernamente de sociedade.

A eficácia do Estado, por sua vez, na sua ação integradora, adviria da

sensibilidade de técnicos e governantes à natureza econômica dos problemas sociais, os

quais também se constituiriam em obstáculos à maior penetração do Estado na

sociedade. Acredito que a secularização da sociedade por meio de hospitais e escolas,

por exemplo, é um fator importante para a dissolução de formas tradicionais de lealdade

política. Por isso, as iniciativas do Estado, como a do DNC, podem ser compreendidas

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Conclusão

como parte de uma estratégia mais ampla de legitimação da autoridade central

representada pelo Estado.

Como sugerido por Guerreiro, tais iniciativas poderiam ser fracassadas, na

medida em que o orçamento não comportaria aquelas despesas de integração. É nesse

sentido que a industrialização produziria efeitos positivos, podemos dizer tanto em

termos de tributos quanto em termos sociológicos, conforme aqueles apontados pelo

autor. Esses efeitos são a urbanização e a alteração do consumo popular, dos quais

decorreriam os efeitos políticos positivos para a consolidação da democracia, isto é, um

eleitorado mais livre das formas políticas tradicionais, clânicas e oligárquicas.

Nesta tese, ao partir do princípio de que os críticos do ISEB analisaram o

nacionalismo em uma perspectiva exclusivamente econômica, eu tinha em vista

explorar outros elementos que pudessem dar conta do fenômeno como inscrito em um

cenário social e político mais amplo. Ao fim deste trabalho, parece-me certo que esse

cenário era aquele em que se estaria assistindo a uma etapa do processo de consolidação

do estado nacional brasileiro. Entendo que essa etapa significava uma convergência

entre Estado e substrato social e cultural da nação. Dessa forma, o significado político

do nacionalismo, como teoria da sociedade brasileira e como ideologia, advém do fato

de ter procurado soldar o tecido social em torno de um símbolo: a nação. Com isso, o

nacionalismo procuraria promover uma sociedade ao menos, simbolicamente, mais

homogênea, como condição para que a democracia pudesse vigorar sem as ameaças de

golpe que, desde o pós-Estado Novo, vinham-na cercando, o que de fato aconteceu.

Em escrito mais recente, Caio Navarro de Toledo (2005) sugere uma

compreensão renovada do significado político do nacionalismo isebiano, compreensão

que corrobora as conclusões desta tese no que diz respeito à relação entre nacionalismo

e democracia. Segundo o autor, nas três fases em que a experiência do ISEB ocorreu, o

Instituto

“sempre esteve comprometido com a defesa das causas sociais, progressista e de natureza democrática. Seu ativo engajamento na defesa das reformas sociais, da soberania nacional e da ampliação da democracia política explica, assim, a fúria obscurantista configurada pelo golpe de 1964: destruição de arquivos, publicações e biblioteca do ISEB, instauração de extensos inquéritos político-militares (IPMs) sobre suas

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Conclusão

atividades e dura repressão física a alguns de seus intelectuais”. (Toledo, 2005, p. 8)

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