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1 ANUÁRIO DO GEDIM, 2002 Anuário 2002 Serviços urbanos, Cidade e cidadania Editora Lumen Juris Rio de Janeiro GEDIM GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA E DIREITOS NO MERCOSUL

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ANUÁRIO DO GEDIM, 2002

Anuário 2002

Serviços urbanos, Cidade e cidadania

Editora

Lumen Juris Rio de Janeiro

GEDIM GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA

E DIREITOS NO MERCOSUL

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ANUÁRIO DO GEDIM, 2002

COMITÊ EDITORIAL Prof. André-Jean Arnaud, Diretor do GEDIM, Editor Responsavel do Anuário Prof. José Gabriel Assis de Almeida, Uni-Rio Prof. Cesar Caldeira, Uni-Rio Prof. Emilio Dellasoppa, UERJ Profª Ester Kosowski, UFRJ Prof. Geraldo Tadeu Moreira Monteiro, UERJ COMITÊ CIENTÍFICO Prof. Sergio Adorno, USP Prof. Paulo Roberto de Almeida, IBRI Profª Nadia de Araujo, PUC/RJ Prof. Edmundo Lima de Arruda Jr., UFPr Dra Zoraia Saint’Clair Branco Bonelli, FESP-RJ Profª Wanda Capeller, Universidade das Ciências Sociais, Toulouse Prof. Aurelio Wander Chaves Bastos, Uni-Rio Prof. Celso Fernandes Campilongo, USP Prof. Maurício Brito de Carvalho, Uni-Rio Prof. Jacques Commaille, CNRS, GAPP, Paris Prof. Luiz Edson Fachin, UFPr Prof. Vincenzo Ferrari, Milan Profª Maria Teresa Wiltgen Tavares da Costa Fontoura, Uni-Rio Prof. Pierre Guibentif, Oñati IISJ & Lisbonne Profª Eliane Botelho Junqueira, PUC/RJ Prof. Dan Markus Kraft, PUC-MG Prof. Boaventura de Sousa Santos, Coimbra Prof. Alvaro Reinaldo de Souza, Uni-Rio Prof. José Geraldo de Souza Jr, UNB Profª Fanny Tabak, PUC/RJ Prof. Gunther Teubner, Frankfurt/Main Prof. Oscar Vilhena Vieira, PUC/SP

As opiniões emitidas pelos autores são de sua própria responsabilidade, e não comprometem o

Comitê Editorial do Anuário do GEDIM ou o Editor.

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ANUÁRIO DO GEDIM, 2002

Editorial Depois de A Soberania (1999), A Democracia (2000), Dez anos de

MERCOSUL (2001), temas respectivos do Anuário do GEDIM nos anos passados, consideramos que seria importante abrir este espaço para a produção de um grupo de pesquisadores dedicados ao estudo dos impactos da globalização econômica sobre os serviços públicos. Esta linha de pesquisa é coordenada a partir de São Paulo pelo professor Carlos Alberto Bello, a quem agradecemos, de nossa parte, pelo seu comprometimento, junto com os colegas do Centro do qual participa, no programa MOST da UNESCO.

Serviços urbanos, cidade e cidadania vem agora a público. O Anuário foi coordenado por Vera da Silva Telles e Etienne Henry, que asseguram, ademais, ambos, uma ligação permanente entre Brasil e Europa, conferindo assim uma dimensão comparativa precisosa às análises aqui apresentadas.

Toda escolha temática implica o risco do "parti-pris". E este foi, aqui, o de articular a questão do serviço público à questão da cidade e da cidadania. E há boas razões nesta escolha. De um lado, é o que permite confrontar, para nosso grande proveito, as reflexões aqui apresentadas com o que Vera Telles chama de “realidades urbanas emergentes”. De outro, se é verdade que o processo de globalização atinge os indivíduos, é antes de mais nada na sua condição de cidadania.

Através da temática deste dossiê, os autores abordam um conjunto de temas fundamentais, cuja atualidade é particularmente viva pelas questões e desafios que nos são apresentados: a brutal redefinição das distinções entre o público e o privado, a regulação dos mercados, a preservação dos próprios serviços públicos, a capacidade da lei em regular questões de insegurança e, para além disso, a questão das novas normatividades …

O outro grande interesse dos textos reunidos neste Anuário consiste no fato de que é o fruto, desta vez, da concepção de sociólogos, e que os seus responsáveis trouxeram, com muita felicidade, a participação de

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autores vindos de horizontes disciplinares diversos, convergindo desta forma com a tradição do GEDIM.

Por todas estas razões, pelo interesse e prazer que terá o leitor ao descobrir as páginas que seguem, e ainda pela competência e rigor com que foi preparado este volume, agradecemos os responsáveis por esta publicação.

André-JeanArnaud Diretor du GEDIM/MOST-UNESCO

Domaine Saint Louis & Copacabana, março 2002. Lembramos que maiores informações sobre as pesquisas, as

atividades e as publicações do GEDIM podem ser encontradas no site internet :

http://www.unesco.org/most/projects.htm http://www.unesco.org/most/globalisation/Networks_projects.htm

(clicar em : GEDIM)

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Índice

Editorial, André-Jean Arnaud Cidade e cidadania: interrogações sobre realidades urbanas

emergentes, Vera da Silva Telles (USP,CENEDIC)

PRIMEIRA PARTE DOSSIÊ « CIDADE, SERVIÇOS E CIDADANIA » Organizadores: Vera da Silva Telles e Étienne Henry

Introdução, Vera da Silva Telles e Etienne Henry Público e privado na oferta de infra-estrutura urbana no Brasil,

Ricardo Toledo Silva Desafios da transição para o mercado regulado no setor de

saneamento, Marcelo Coutinho Vargas Neoliberalismo com autoritarismo: desafios para os direitos da

cidadania nos serviços públicos, Carlos Alberto Bello Regulação urbana e gestão dos transportes: modelos e impasses

brasileiros, Etienne Henry Assaltos a passageiros de ônibus no Rio de Janeiro: um estudo

sócio-jurídico, César Caldeira

SEGUNDA PARTE ESTADO, PRIVATIZAÇÕES

E REGULAÇÕES DE SERVIÇOS URBANOS: PERSPECTIVAS EM DEBATE

Reforma administrativa brasileira sob o impacto da globalização: uma (re)construção da distinção entre o público e o privado no

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âmbito da Reforma Administrativa gerencial, Maria Tereza Fonseca Dias

O serviço público de transporte coletivo de passageiros, Marcos Juruena Villela Souto

TERCEIRA PARTE RESENHAS

Otilia Arantes, Carlos Veiner, Ermínia Maricato, Cidade do pensamento único – desmanchando consensos. Petropolis, Editora Vozes, 2000. (Por: Joana da Silva Barros)

Ronaldo Porto Macedo Jr. Carl Schmitt e a fundamentação do

direito. São Paulo: Max Limonad, 2001. (Por: Gilberto Barcovici)

Marcílio Toscano Franca Filho. Introdução ao Direito Comunitário.

São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. (Por: Fredys Orlando Sorto)

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Dossiê « CIDADE E CIDADANIA »

_______________

coordenado por

Vera da Silva Telles Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo

Centro de estudos dos direitos da cidadania – CENEDIC/USP

Étienne Henry Institut de recherche pour le développement – IRD

Centro de estudos dos direitos da cidadania – CENEDIC/USP

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Cidade e cidadania: interrogações sobre realidades urbanas emergentes(*)

Vera da Silva Telles (**)

Introdução O lugar das cidades e seus sentidos estão sendo redefinidos no atual

contexto de mundialização e globalização econômica, de reestruturação produtiva e mudanças nas formas de trabalho, de redefinição do papel Estado e retraimento da capacidade estruturante das instituições nacionais. No ponto de cruzamento de processos que engendram uma crescente disjunção entre espaços econômicos e espaços políticos, que desestabilizam práticas e procedimentos antes regulados nacionalmente e que, nos circuitos de uma economia globalizada, transbordam ou escapam dos enquadramentos estatais, as cidades e seus territórios passam a constituir uma referência central no debate contemporâneo sobre os rumos das sociedades nacionais.

É sabido que a passagem, aliás desigual conforme países e regiões, da acumulação fordista à acumulação flexível acentua as disparidades entre cidades e metrópoles, e redefine as redes urbanas e suas hierarquias nos espaços nacionais. São mudanças que redesenham os fluxos e circuitos da riqueza e das mercadorias, das populações e seus deslocamentos (migrações inter e intra-regionais) e altera as inter-relações das cidades e os espaços regionais e nacionais. Em um cenário no qual convergem a abertura dos mercados e a desregulação financeira, a privatização de serviços públicos e o esvaziamento das políticas nacionalmente centralizadas, as cidades tornam-se vetores poderosos de aceleração dos fluxos econômicos entre redes de empresa que disputam os mercados globais, ao mesmo tempo em que os espaços nacionais perdem sua anterior coerência e se enfraquecem as regulações das desigualdades, aprofundando distâncias e disparidades regionais e intra-urbanas (Veltz,1996). Por outro lado, a reestruturação produtiva e o

(*) Fruto de uma colaboração franco-brasileira nos quadros de um convênio CNPq-IRD, a versão original deste texto foi elaborada para um programa de investigação sediado no Centro de estudos dos direitos da cidadania, CENEDIC/USP e que deve se prolongar nos próximos três anos (2002-2004). A produção deste Anuário já é resultado desse trabalho, priorizando um dos temas contemplados: serviços urbanos e seus impactos nas novas realidades urbanas (**) Professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – CENEDIC

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esvaziamento das instituições nacionais e centralizadas de ordenamento das relações de trabalho (direitos sociais, sindicatos e instituições trabalhistas), fazem da cidade o palco da emergência de novas regulações – regulações descentralizadas, pluralizadas e territorializadas nas quais convergem a modernização produtiva e gerencial das empresas, as redes de subcontratação que se expandem em conexão com as circunstâncias das economias locais e as políticas de emprego que se diferenciam conforme as cidades e regiões urbanas (Lallement, 1999; Pecqueur, 1998). Finalmente, nessa redefinição dos nexos que articulam economia, territórios e poderes, as cidades se apresentam igualmente como o lócus de recomposições de espaços políticos (Le Galles, 1998). São espaços tencionados entre os imperativos do assim chamado empreendedorismo urbano (Harvey, 1996) e as exigências de equidade, sendo atravessados por um jogo redefinido de interesses em disputa e de atores institucionais e não institucionais, em que interferem as agências internacionais, suas diretivas e recursos para programas urbanos e também se fazem presentes e operantes associações locais de perfis diversos, compondo o multifacetado e ambivalente campo da gestão urbana.

Se é certo que esses macro processos compõem referências comuns no debate atual, nem por isso existe consenso quanto ao sentido das mudanças em curso. As polêmicas em torno das noções hoje em voga de globalização e global cities, de desenvolvimento local e governança urbana, armam um campo polissêmico de debate em que as interrogações sobre os rumos possíveis das sociedades nacionais se desdobram em formas nem sempre convergentes, quando não díspares e opostas, de descrever as realidades emergentes e interpretar suas evidências. Ao menos no Brasil, se esses processos já não são recentes, o debate ainda caminha de forma tateante no sentido de discernir os nexos que articulam reestruturações produtivas e reconfigurações espaciais, economia, território e sociedade, política e regulações econômicas. O fato é que estamos face a mudanças e acontecimentos que desafiam os parâmetros estabelecidos de análise e crítica social. A literatura especializada ainda se mantém, em grande parte, presa a seus campos disciplinares (economia ou sociologia do trabalho, urbanismo e sociologia urbana, políticas públicas e Estado) e seus instrumentos analíticos são como que transbordados por processos que desestabilizam as anteriores (e canônicas) divisões entre economia, sociedade e Estado. E sendo assim, ficamos como que desarmados diante de realidades urbanas nas quais vem sendo tramados os rumos da modernização econômica - modernização seletiva como notam vários analistas, que fragmenta o território nacional entre ilhas de dinamismo e regiões

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descartadas ou excluídas dos circuitos globalizados (Araújo, 2000), que sobrepõe novas clivagens e diferenciações sociais às conhecidas desigualdades de renda (Bogus & Taschner, 1999), que redefine a cartografia da pobreza urbana e amplifica a crise social nas grandes cidades, ao mesmo tempo em que os espaços urbanos são crescentemente atravessados por ilegalismos de todos os tipos, para não falar da violência e seus impactos diruptivos nas sociabilidades cotidianas.

Realidades multifacetadas e polimorfas, em que as mudanças em curso interagem com os legados históricos da sociedade brasileira que, também eles, se expressaram na “questão urbana” debatida nos anos 70, as cidades hoje estão encenando um feixe de problemas e questões que escapam a categorias e procedimentos conhecidos de interpretação. Compreender as novas configurações urbanas está, portanto, a exigir um empreendimento de conhecimento em que o necessário mergulho no universo das evidências empíricas seja acompanhado por uma construção cuidadosa de parâmetros e categorias de análise. Será preciso interrogar as novas realidades, fazendo a prova das indeterminações que a atravessam, sem domesticá-las em modelos prévios de explicação ou noções que, tal como a de globalização, operam como mitos explicativos que dão por assentado o que ainda exige um esforço de deciframento.

À distância, portanto, das noções prévias (e muitas vezes modelares) sobre a cidade e sua crise, sejam as formulações que constroem as (polêmicas) figuras da “cidade-mercado” disseminadas por Agências Internacionais, assessores urbanos e operadores políticos locais, sejam as várias versões sobre a “cidade partida” entre dualizações sociais e a fragmentação de seus espaços, será importante interrogar as evidências que dão plausibilidade a ambas as visões, procurando discernir os nexos que articulam cidade e mercado, bem como os processos que engendram exclusões e fragmentações urbanas. Mas trata-se também de identificar os poderes, tensões e conflitos que atravessam as realidades urbanas e que sugerem as possibilidades de uma regulação democrática dos processos em curso, de uma recomposição de atores e novas sociabilidades que acenam com a reinvenção policêntrica do sentido público da cidade. Ao revés das versões administradas de governança urbana, é importante restituir o político como modo de apreensão dos fenômenos urbanos e, por essa via, chegar à compreensão dos novos modos de regulação local. As estratégias heterogêneas e divergentes de atores diversos desenvolvem-se em espaços sujeitos a tendências de fragmentação urbana, porém perpassados por processos dos quais emergem os vetores potenciais de

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mudança. E sendo assim, ganham importância as práticas de confrontação e negociação nos espaços políticos municipais e em outras instâncias institucionais e políticas, e também nas dimensões mais cotidianas da vida urbana - as dimensões de citatinidade, se aceitarmos esse galicismo útil para diferenciar registros que interagem mas nem sempre se confundem com a questão mais geral da cidadania.

Mais do que questões pertinentes aos problemas de governabilidade no contexto de cidades em crise, são nesses espaços que se explicitam e ganham forma as tensões e campos de força engendrados em relações, a serem ainda melhor compreendidas, entre instituições, atores e territórios, entre política e mercado, entre espaços locais e nacionais, e suas inserções nos circuitos globalizados da economia. Para colocar em outros termos, o desafio é a apreensão da construção multiforme do campo político em escala local, colocando em perspectiva as tensões (e indeterminações) que atravessam a cidade em suas relações com a economia e as dinâmicas regionais nos circuitos nacionais e globais do mercado; com o mosaico institucional que articula os poderes locais com outras instâncias políticas, nacionais, supra e subnacionais; com os serviços materiais de base que operam a integração física dos espaços regionais e que são regidos por lógicas nacionais e internacionais; com os padrões de mobilidade e acesso à cidade e seus serviços, marcados pelo individualismo e privatização nas formas de vida, e novas dinâmicas na geometria de seus espaços internos; com ordenamentos urbanos (materiais, institucionais, jurídicos) em disjunção hoje renovada com dinâmicas societárias marcadas por velhas e novas formas de exclusão urbana, atravessadas por novas conflituosidades, mas também pela violência e os vários ilegalismos que, também eles, articulam a cidade com lugares e redes sociais em escalas variáveis, como é o caso do tráfico de drogas e o crime organizado.

É nessa chave que se poderá conjugar os termos cidade e cidadania, procurando discernir a possibilidades de construção de espaços públicos a partir de dispositivos de poderes locais multipolares de geometria variável, acenando com possibilidades de uma regulação democrática dos processos em curso.

O texto que segue tem por objetivo tão somente demarcar um campo de indagações e de questões a pautar um programa de investigação que articule campos disciplinares diversos em um empreendimento coletivo de conhecimento sobre as novas realidades urbanas, a recomposição de seus territórios, de seus espaços sociais e políticos, procurando discernir as linhas de força de possíveis rearticulações entre cidade, direitos e política.

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Interrogando as relações entre cidade e política

É, hoje, fato sabido (e demonstrado por inúmeras pesquisas) os

efeitos excludentes da mudanças em curso na economia e sociedade. Mas também é verdade que compreender a crise social hoje estampada nas grandes cidades é um desafio que nos interroga quanto aos critérios capazes de conferir inteligibilidade e sentido às novas realidades que vem sendo engendradas nesse processo.

São mudanças que deslocam, desativam e ao mesmo tempo reconfiguram campos políticos, relações de força, atores coletivos e suas formas de expressão, formas de conflito e suas arenas. Fazem surgir outras regras do jogo que produzem novas categorias de incluídos e excluídos, mas que também engendram campos de força que são também campos de possibilidades abertos a outros horizontes de pensamento e experimentação histórica.

De um lado, a reestruturação produtiva altera o cenário dos atores e redefine as condições da ação coletiva, reconfigura territórios e suas hierarquias no espaço nacional na lógica transnacional de cadeias produtivas que transborda (ou implode) as antigas definições nacionais, setoriais e categoriais de atividades econômicas e grupos sociais (e suas formas de representação), ao mesmo tempo que as formas de emprego são pulverizadas nas trilhas re-territorializadas das redes de subcontratação. A financeirização da economia penetra as relações sociais e desativa formas públicas de regulação social (Marques Pereira, 2000), do que é exemplo a importância crescente dos sistemas privados de seguro-saúde e previdência, nos termos de uma contratualização de serviços e relações que termina por transfigurar os direitos do cidadão em direitos do consumidor (Pautassi, 1999), ativando a lógica de um individualismo que, assim como ocorre em outras dimensões da vida social, conspira contra a capacidade coletiva de articular valores comuns, construir referências simbólicas de identidades e lugares partilhados, e imaginar instituições portadoras de futuro. No mesmo passo, na lógica de uma economia especulativa e transnacional, quebra-se o vínculo que antes articulava (real e simbolicamente) as relações entre produção e remuneração, entre trabalho e sentido, entre ética e riqueza. É nesse cenário que surgem as figuras de uma sociedade dilacerada entre a celebração de um individualismo empreendedor e sobretudo aquisitivo, e o fracasso dos que fazem a experiência do “individualismo negativo” (Castel, 1995) aos quais é destinada quando muito a filantropia e a ajuda assistencial.

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Por outro lado, a privatização dos serviços urbanos altera a produção dos espaços urbanos capturados pela lógica privada e privatizadora de capitais que circulam no mercado global, altera os modos de intervenção política, agora reduzidas à regulação dos mercados, não mais no registro de políticas públicas (Toledo, 1999). Ao lado do esvaziamento das instituições nacionais de organização do trabalho (direitos sociais, sistema de previdência), essa privatização significa a desmontagem dos principais instrumentos de construção e unificação do espaço nacional, subvertendo a anterior equação entre modernização e “questão nacional” que por décadas pautou os debates e embates políticos do país (e não só no Brasil, por suposto). Ao mesmo tempos, desloca-se o campo dos conflitos que acompanharam os processos de urbanização e nos quais o próprio sentido de bem público, na sua dimensão de universalidade, igualdade e justiça social, era atualizado nas diversas reivindicações vocalizadas por movimentos sociais diversos.

Finalmente, as múltiplas facetas das atuais reformas de descentralização reconfiguram o jogo dos interesses locais e políticos, acompanhando a própria recomposição territorial dos mercados, institui novos regimes de organização dos poderes públicos e suas competências e transfere para os níveis locais (municipais) a gestão dos problemas sociais agravados nos espaços das cidade. Configura-se assim um terreno político atravessado por toda sorte de ambivalências, entre, de um lado, “programas de combate à pobreza” que desativam o campo político da luta contra as desigualdades e esvazia o sentido político das formas coletivas de participação democrática local pela captura das diversas práticas associativas na lógica gestionária de programas sociais (Rivière d’Arc, 2000; Prévôt-Shapira, 1993, 2000) e, de outro, uma conflituosidade renovada de que são exemplo as ocupações urbanas que vem se generalizando em diversas cidades do país, e aberturas democráticas (mas nem por isso menos ambivalentes em seus formatos e dinâmicas internas) de gestão partilhada de fundos públicos e políticas sociais.

Compreender o sentido dessas mudanças significa um empreendimento de conhecimento que desafia categorias e procedimentos estabelecidos de interpretação pois “as transformações em curso não se situam em um domínio tradicional de análise (a indústria, a agricultura, a finança, os regimes políticos, a violência, a criminalidade, a descentralização, etc.), mas na junção de dois ou vários desses domínios. Por exemplo, as mutações financeiras têm conseqüências diretas nos status do trabalho; ou ainda, o tipo de mundialização das trocas modifica radicalmente o modo de gestão do

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território nacional; as transformações dos modos de circulação de bens e moeda estão em relação direta com a criminalização de alguns Estados; a precarização do trabalho impõe um novo modo de gestão política” (GREITD, 2000). É uma realidade multifacetada que exige a articulação entre campos de pesquisa diversos, fazendo da transversalidade de temas e questões, campos empíricos e disciplinas científicas, uma exigência prática para a produção de novos conhecimentos.

Nesse empreendimento, alguns pressupostos básicos devem ser

colocados. As mudanças em curso vêm sendo acompanhadas de aumento crescente de desigualdades e polarizações sociais, exclusões e fragmentação social, violência e degradação dos padrões de vida e sociabilidade nas cidades. Porém, nada disso pode ser tomado como efeitos necessários e inelutáveis dos processos em curso de globalização, reestruturação produtiva e redefinição do papel do Estado.

Primeiro: longe dessa espécie de repetição encantatória da globalização transformada em mito explicativo que dá por explicado o que ainda exige o trabalho de deciframento e que cristaliza em situação dada o que são processos abertos à indeterminação da história, “a globalização não é uma realidade predefinida, um lado inelutável, mas uma construção social e política que emerge, em relações de força e conflitos, a partir da diversidade de situações e de economias locais” (Preteceille, 1994), e também de uma pluralidade de processos (financeiros, industriais, mercantis, tecnológicos, culturais) não necessariamente convergentes e tampouco cumulativos, e muito menos sujeitos a uma lógica única e homogeneizadora (Preteceille, 1995).

Segundo: ao contrário das atuais versões despolitizadas de governança reduzida à gestão técnica e administrativa das injunções do mercado e seus imperativos, as atuais reconfigurações econômicas e societárias, políticas e jurídicas reabrem e colocam na ordem do dia a importância dos arranjos institucionais e a configuração dos atores, as instâncias do político e suas arenas, os novos jogos de poder e campos de litigiosidade, e novas formas de regulação que não são em si mesmas evidentes e cujo sentido ainda é preciso decifrar pela reflexão teórica (Comaille & Jobert, 1998).

Terceiro: ao revés da “problemática hoje dominante que restringe a questão social a um problema de ética e de governabilidade” (Marques Pereira, 1995) na suposição hoje transformada em senso comum de que é possível resolver a fratura social engendrada por um mercado selvagem através da gestão pragmática de programas sociais compensatórios, a situação atual recoloca em novos termos a relação entre direito e econômica, cidadania e trabalho. Se é verdade que o

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processos hoje em curso desestabilizam as formas institucionais da regulação econômica, isso não nos permite concluir que as formas de mise au travail das populações não mais definem o futuro das sociedades. Disso são evidência as várias situações de precariedade econômica, vulnerabilidade social e individualismo negativo que acompanham a desmontagem da mediação dos direitos coletivos, bem como as tendências já visíveis da refilantropização da pobreza que “trai a impotência do Estado em controlar uma sociedade cada vez mais complexa e heterogênea, remetendo a arranjos particulares o que as regulações coletivas não podem mais comandar” (Castel, 1995: 472).

São três questões que nos colocam frente à exigência de se compreender as relações entre cidade e política. É nesse ponto que se definem os eixos de uma interrogação quanto às variadas formas de regulação local construídas em campos políticos heterogêneos e multicentrados, que passam pelas institucionalidades da cidade, mas que as ultrapassam nas suas interconexões com o dinâmicas sociais diferenciadas, armando por isso mesmo um jogo complexo e multicentrado de práticas, estratégias e de relações convergentes ou conflitivas. E se isso importa é porque nesses campos políticos multicentrados são tramadas as relações entre política e mercado, entre obstruções mas também possibilidades para a invenção política de alternativas à lógica segregadora do movimento dos capitais que capturam a cidade nos circuitos mundializados da economia.

Cidade e cidadania: articulações

problemáticas Na definição dessa problemática de investigação há algumas

questões que circunscrevem desafios teóricos importantes de serem enfrentados.

A primeira questão diz respeito à noção de direitos e cidadania. Nesse caso, o desafio é reativar o seu sentido político e crítico face a um debate público em grande parte tomado por uma espécie de afirmação ritualística ou protocolar da exigência ética da cidadania mas que apenas confunde política e bons sentimentos, embaralha as diferenças entre direito e ajuda humanitária, entre cidadania e filantropia, e reativa ou reatualiza o que Topalov (1994) define como epistemologia da caridade, que fragmenta a análise social na descrição cientificamente fundada de cada grupo social (as várias figuras dos “excluídos”) alvo de políticas focalizadas. Não é demais aqui lembrar que os direitos não são

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uma resposta a um suposto mundo das necessidades e carências, e muito menos correspondem às proteções tutelares e humanitárias aos “deserdados da sorte”. Para além das garantias formais inscritas na lei, os direitos estabelecem e formalizam relações sociais, marcam fronteiras e limites no jogo conflituoso dos interesses, definem a medida das equivalência e as regras das reciprocidades no mundo social por referência a noções sempre em disputa e sempre reinventadas de bem comum e interesse público. Para colocar em termos formais: os direitos operam também como critérios pelos quais problematizar os dramas da existência em suas exigências de eqüidade e justiça, e isso significa um certo modo de tipificar a ordem das responsabilidades e obrigações (Ewald, 1986) em torno daquilo que para a sociedade aparece como problemático porque pertinente às regras da vida em sociedade. E isso significa um certo modo de figurar diferenças e desigualdades, e de conceber a ordem das equivalências que os princípios de igualdade e justiça supõem, porém como problema irredutível à equação jurídica da lei, pois pertinente ao terreno conflituoso e sempre problemático da vida social (Telles, 1999). Nessa dupla dimensão, simbólica e formal, a instituição e formalização de direitos dependem do político, essa atividade, como nos ensina Lefort (1983), de mettre en sens e mettre en forme o mundo social, construindo ao mesmo tempo os critérios de visibilidade e inteligibilidade de suas diferenças e oposições, e também ou sobretudo as referências partilhadas de um mundo comum.

Ainda: trata-se de estabelecer as diferenças entre direitos e norma reguladora face às atuais tendências de captura do direito pelo princípio gestionário, engendrando as figuras de um direito instável, factual, pragmático, inspirado pelas expertises e formulado no jogo de forças entre grupos de pressão rivais e que, nesses termos, dificilmente pode garantir a institucionalização das relações sociais (Ost, 1999: 295). Como diz Supiot (1994:216sq), entre norma e direito, é a qualificação jurídica e política de sujeitos de direito que faz a diferença, e com isso, a questão democrática de espaços públicos de representação e interlocução, bem como das mediações institucionais que permitem o processamento dos conflitos e a arbitragem dos litígios por referência aos princípios reguladores da igualdade e justiça. É a partir dessa diferença que se pode ter um critério para avaliar e problematizar reformas políticas que propõem (ou imaginam) uma sociedade reduzida a feixes de contratos, instáveis, flexíveis, mutantes. No que diz respeito ao mundo do trabalho, isso muda a questão da desafiliação tal como definida por Robert Castel (1995): o problema não concerne apenas populações que estão fora das relações reguladas pelos direitos, mas uma ordem jurídica que produz o que François Ost (1999) define como

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desinstitucionalização das relações sociais. Na atual reconfiguração das formas de trabalho, é o próprio jurídico que contribui com essa operação desinstituinte nas formas de uma normatividade flexível, feita de equilíbrios sempre provisórios e sempre instáveis, sujeita ao jogo bruto de forças e às injunções de circunstâncias sempre mutáveis -“o que está em jogo nas mutações do trabalho contemporâneo, são menos as modalidades concretas de seu exercício e de sua distribuição, do que sua natureza jurídica, sua relação com o direito” (Ost, 1999:308). Na formulação precisa do autor, é assim que se passa do status garantido pelos direitos do trabalho, para o contrato negociado caso a caso conforme as circunstâncias e do contrato para relações sociais liberadas parcial ou totalmente da mediação jurídica, desfazendo nesse mesmo passo o acesso ao espaço público que confere dignidade e reconhecimento social ao trabalhador, e o qualifica como sujeito de direito.

Mas isso também nos coloca face a uma outra ordem de questões e que diz respeito à noção de regulação. Sabemos que essa é uma noção que carrega uma polissemia de sentidos conforme os modelos teóricos das quais é derivada e os campos disciplinares nas quais é mobilizada como instrumento de análise. A importância que a noção vem tomando atualmente tem a ver com o fato de que circunscreve um campo de debate (e polêmica) em que são tematizadas as redefinições de fundo nas relações entre Estado, economia e sociedade, abrindo-se a um conjunto de indagações sobre os novos ordenamentos políticos, institucionais, jurídicos, sociais que vêm sendo engendrados nas trilhas das mudanças em curso. Não é o caso aqui de inventariar esse debate (Commaille & Jobert, 1998; Boyer & Saillard,1995). Mas, sim, de chamar a atenção para o fato de que a noção de regulação também transita nesse terreno ambivalente em que, face à extensão e predomínio da lógica do mercado, tendem a se embaralhar as diferenças entre norma e direito, e também entre gestão e política.

Para retomar a questão anterior, o princípio gestionário também vem capturando os espaços da política, tendendo a reduzí-la aos imperativos de uma gestão eficaz e coordenada dos recursos dos quais dependem a competitividade das cidades e territórios. Se entre norma e direito, é a qualificação dos sujeito de direito que faz a diferença, entre gestão e política a diferença está na construção da medida do bem público e interesse público. Questão clássica esta, porém inteiramente reaberta e hoje redefinida, já que a definição dessa medida não pode mais ser associada de modo exclusivo e unívoco à ordem estatal. É uma construção que circunscreve campos de conflito e é nela que também estão cifradas as possibilidades (e seus bloqueios) de uma recomposição

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policêntrica do político. Sendo assim, se a noção de regulação está no centro dos dilemas atuais, o desafio é, como dizem Commaille e Jobert (1999:22), “integrar a idéia de conflito, de antagonismos, de contradições, de rupturas e desigualdades em uma definição de regulação fortemente marcada, em sua origem, por uma concepção funcionalista que sugere uma visão pacificada do mundo social, elidindo a questão do poder e, sobretudo, ocultando o fato de que existem ganhadores e perdedores”; trata-se ademais da construção de uma noção de regulação que permita colocar em evidência “a confrontação das estratégias múltiplas desenvolvidas por atores sociais na sua heterogeneidade, das incompatibilidades entre universos diversos, como por exemplo, a economia em sua relação com o universo social ou o universo político.

Se a noção de regulação nos coloca frente a uma construção policêntrica de novos ordenamentos políticos, institucionais e jurídicos, se permite colocar em evidência as ambivalências inscritas nas relações entre as suas dimensões públicas e as circunstâncias sempre locais ou circunstanciadas das negociações, entre lei e convenção – ou, para evocar o título do livro de Ost & Van de Kerchove (1996), entre “droit negocié” e “droit imposé”, a cidade é o cenário em que essas questões se corporificam em estado prático. E nos colocam face ao desafio – teórico, e também político – de se discernir as possibilidades de recomposições dos espaços políticos que permitam reconstruir ou reinventar os parâmetros de uma regulação democrática capaz de introduzir medidas publicamente negociadas face aos princípios gestionários regidos pela lógica privada dos mercados e que hoje tendem a predominar nas formas de gestão urbana

O campo da cidade: um terreno de

investigação A cidade e sua crise

A crise social hoje estampada nos espaços urbanos, entre

precarização, desemprego e degradação de condições de vida, formas diversas violências e incivilidades corroendo padrões de sociabilidade, vem nos colocando problemas que escapam às referências interpretativas que, no correr dos anos 70 e 80 pautaram a crítica de políticas sociais e a elaboração de propostas alternativas (Ribeiro, 1993, 1996). É uma crise que acompanha a erosão das formas de regulação pública historicamente construídas entre a organização do trabalho e as

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proteções a ele indexadas, os serviços públicos como saúde e educação e que, junto com o acesso aos serviços urbanos, constituíram os vetores da mobilidade social e integração social em uma dinâmica marcada pelas desigualdades e segregações que foram tematizadas pelas teorias da reprodução social ou da espoliação urbana .

Mas ainda é preciso interrogar o sentido dessa erosão e os modos de seu engendramento, pois não se trata de vazio de norma e ordenamento social a evocar as imagens de anomia na suposição de uma ausência ou inadequação de instituições face a realidades sociais emergentes. O que parece, hoje, desafiar e superar os modelos clássicos de apreensão do social é a configuração de novas institucionalidades produzidas entre a materialidade da cidade e a organização da sociedade que a constitui, entre economia e novos ordenamentos jurídicos, entre a redefinição do papel regulador do Estado e suas relações com a sociedade, o jogo multiforme dos atores sociais e os processos de composição ou recomposição de espaços sociais fragmentados.

Ao invés de apresentar aqui proposições gerais sobre a cidade e sua crise, talvez seja mais profícuo interrogar algumas de suas dimensões problemáticas e a partir delas buscar os nexos que as articulam numa geometria variável de relações. É um modo de abordar a cidade que parte do pressuposto da transversalidade das questões que se apresentam, acenando por isso mesmo com a dialogia possível entre diversos campos empíricos de pesquisa. É a partir das interrogações múltiplas que as realidades urbanas emergentes suscitam, que essa transversalidade se apresenta como um modo de produção de conhecimento que não se atém às circunscrições de seus objetos empíricos, mas que se movimenta na transitividade das suas questões.

Novas realidades, novas indagações

(i) Precarização do trabalho e fragmentação da cidadania

Se é verdade que precarização do trabalho, informalização da economia e desemprego crescente compõem a realidade social das nossas cidades, a referência genérica a esses processos não é suficiente para o deciframento das novas configurações do trabalho e seus impactos nos espaços urbanos. A lógica globalizada da economia comanda reconfigurações diferenciadas do mundo do trabalho conforme as regiões do país. E é nisso que importa identificar e compreender as novas figuras de trabalho que vem se desenhando nas tramas de uma legalidade emergente, fragmentada e pulverizada (Telles, 2000): seja

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por conta da legalização da fraude trabalhista, que é possível identificar na nova lei que possibilita a formação de cooperativas profissionais (Krein, 1997); seja na multiplicação de formas de contrato em que a subtração dos direitos se apóia na desconstrução da figura jurídica do trabalho ou do trabalhador no quadro de formas de terceirização que confundem contrato de fornecimento de produtos ou serviços e contratação de trabalhadores, transfigurando relações trabalhistas em relações inter-empresariais regidas pelo direito comercial (Balcão, 2000); seja nas novas formas de trabalho precário engendradas nessa zona cinzenta que articula, como é o caso das cooperativas do Nordeste, lucrativos empreendimentos com base em mão de obra barata e sem custos trabalhistas, grupos comunitários, agências governamentais e também, em alguns casos, os representantes canônicos do mercado organizado – Federação das Indústrias, Senai e Sesi (Lima, 1997).

Novas questões e novas indagações podem ser colocadas: de um lado, quais as diferenças e convergências entre as realidades engendradas no contexto da desestruturação das formas clássicas de regulação do trabalho no que foi coração da indústria automobilística brasileira, como é o caso do ABC paulista, e os novos distritos industriais no Nordeste brasileiro que reconfiguram a tradicional pobreza regional nos fluxos de uma economia globalizada em um novo processo de proletarização através de unidades de produção terceirizada espalhadas em municípios diversos (Lima, 2000). Quais as formas de conflituosidade que emergem nessas novas realidades, quais as mediações institucionais e políticas que vem sendo construídas ou desconstruídas para o processamento dos conflitos? Quais atores e agentes reguladores que surgem nesses cenários? E sobretudo: quais as possibilidades que vem sendo experimentadas ou imaginadas para uma recomposição ou instituição de relações de direito e espaços públicos de cidadania?1

Sabemos que os problemas pertinentes ao trabalho e ao emprego dizem respeito a processos e políticas que ultrapassam em larga escala a jurisdição das cidades. Mas ainda será preciso conhecer melhor o lugar das cidades nas atuais reconfigurações do mundo do trabalho. O que hoje é proclamado e realizado em nome de políticas de combate à

1 Vale dizer que, em outros termos e outras condições, essa é questão de primeira grandeza no debate francês e nas experimentações hoje recorrentes, entre jurisprudência que acompanha novas litigiosidades no mundo do trabalho, e novas políticas de regulação dos empregos via incorporação de novos atores e mediações institucionais para além dos sindicatos - novas regulações que articulam autoridades públicas locais, empresas, associações, coletividades territoriais (Gambier e Vernière 1998, Cavestro e Lamotte 1999, Lamotte 1998, Nivolle 1999) em redes produtivas e redes sociais com inscrições territoriais identificáveis.

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pobreza e exclusão social, circunscreve um terreno multifacetado de reconfiguração das formas de trabalho, reconfiguração que é desenhada por novas formas de intervenção pública que acompanham, na outra ponta da (des)regulação do trabalho, a flexibilização da legislação trabalhista e formas diversas de trabalho precário nos circuitos das redes de subcontratação. Entre programas de qualificação de mão de obra, linhas de crédito para o estímulo ao emprego e auto-emprego, ou então do trabalho cooperativado, além de formas variadas de “Banco do Povo”, configura-se um nada desprezível elenco de instrumentos de políticas voltadas ao mercado de trabalho. A eficácia econômica desses programas é mais do que duvidosa. No entanto, eles circunscrevem um campo político que ainda precisa ser melhor compreendido. É o caso, portanto, de se interrogar pelas novas institucionalidades que vêm sendo construídas em torno dos “programas de geração de renda” ou de requalificação que vem se disseminando em várias cidades. Trata-se aqui de um terreno também atravessado por ambivalências de todos os tipos, em que nem sempre são nítidas as proximidades e diferenças entre “programas de combate à pobreza” e estratégias inclusivas de desenvolvimento local, entre a reconfiguração (ou invenção) de espaços de direitos e formas de trabalho precário travestidas sob o discurso edificante de defesa da cidadania.

Ainda: na medida em que se disseminam, é a própria questão do trabalho informal que se redefine por conta de mediações institucionais que de alguma forma introduzem, no próprio registro público em que operam, diferenciações importantes (a serem compreendidas) em relação a essa espécie de caixa preta que é o hoje crescente e espantosamente ampliado mercado informal. É todo um campo de indagações que fazem deslocar ou mesmo embaralhar as tradicionais separações disciplinares entre a sociologia do trabalho e a sociologia urbana, nos obrigando a repensar o lugar do trabalho nas atuais reconfigurações dos espaços urbanos, ao mesmo tempo em que se redefinem as clássicas polaridades entre o formal e o informal, o legal e o ilegal que sempre acompanharam a reflexão sobre as cidades (e a sociedade) brasileiras.

(ii) Municipalização e questão social

No quadro da descentralização e municipalização de políticas sociais, a atual redefinição do papel regulador do Estado vem se traduzindo, no que diz respeito aos desde sempre precários e limitados serviços sociais, em uma crescente transferência das responsabilidades públicas para a assim chamada comunidade, seja a família, sejam as

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organizações não-governamentais, sejam as organizações filantrópicas tradicionais e suas formas modernas, aí incluindo a chamada filantropia empresarial. É uma de gestão do social que tende a se realizar em um encapsulamento comunitário ao revés dos princípios universalistas da igualdade e da justiça social. E isso projeta as organizações da sociedade civil construídas nos últimos anos, aí incluindo o que muitos chamam de novas formas de associativismo identificadas com esse universo tão amplo quanto heterogêneo (e nebuloso quanto às suas características) que são as organizações não-governamentais, no centro mesmo dos desafios atuais. Pois o que está em pauta são precisamente as mediações democráticas, sem as quais a dinâmica associativa sobre a qual essa sociedade civil se estruturou corre o risco de um retraimento comunitário, encapsulado na particularidade de grupos sociais diversos. É esse retraimento e esse encapsulamento que conferem – ou podem conferir – plausibilidade a novas formas de gestão da pobreza, entre a administração técnica das necessidades sociais (mas afinal, o que são essas necessidades? e quem as define?) e discurso humanitário da filantropia que faz apelo a um sentido de solidariedade constitutivo dessa trama associativa, mas bloqueia a sua dimensão política e a reduz aos termos estritos da responsabilidade moral. Nesse caso, o desafio diz respeito às mediações políticas entre o mundo social e o universo público dos direitos e da cidadania. É por esse ângulo que será preciso decifrar as possibilidades descortinadas no horizonte das experiências e experimentos democráticos que, continuam a acontecer em várias regiões do país. Pois, no fio da navalha em que transitam, entre a cidadania e a filantropia, suas promessas dependem grandemente da refundação da política e da própria noção de direitos e cidadania, porém nos termos que o mundo que o mundo contemporâneo está a exigir (Telles, 1998).

É nesse registro que será importante abordar o tema da parceria Estado-sociedade civil e a questão do assim chamado Terceiro Setor. Qual a diferença que faz a diferença entre a nova filantropia e cidadania? Como essas diferenças aparecem e são engendradas em diversos lugares? Peso de tradições de “longue durée” ancoradas em história local ou regional? Peso diferenciado dos organismos internacionais conforme regiões do país? Diferentes articulações do nacional e local (por exemplo, importância dos fundos sociais nacionais no nordeste brasileiro) e diferentes articulações das elites locais com estruturas do poder federal? Perfil dos movimentos sociais na região? Peso das igrejas?

No atual cenário de municipalização das políticas sociais e de “refilantropização da questão social” (Yazbek, 1995), será preciso

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averiguar o sentido da presença crescente de ONGs e de renovadas formas de filantropia, perpassada em boa medida por diretivas e recursos de agências multilaterais. Conformam uma peculiar situação de poderes públicos como que transbordados (por cima e por baixo) em suas prerrogativas clássicas na formulação e implementação de programas sociais. Entre a dimensão universalizante das políticas públicas que afetam o conjunto da cidade (urbanismo, transportes, moradia, saúde, etc.) e a fragmentação das “repúblicas locais” (Vianna, 2001) em que atuam essas diversas organizações, vai-se conformando um novo jogo de atores, institucionais e não institucionais, numa disputa acirrada (se bem que bem nem sempre visível) entre formas públicas e privadas de regulação urbana. Nesta disputa também pesam empreendedores privados (e a lógica do mercado) e não estão ausentes a ação de máfias locais. Essas experiências terão ainda que ser confrontadas com uma conflituosidade renovada que perpassa a vida das cidades, sejam as ocupações urbanas que vem se multiplicando em diversos lugares, sejam as articulações que se processam em torno de programas locais de habitação e a gestão de seus fundos de financiamento. Heterogêneos, ambivalentes quanto aos seus sentidos, transitando o tempo todo entre o insulamento em suas próprias demandas e lógicas comunitárias, e novas articulações e formas de associativismo, são movimentações sociais que transbordam as políticas de gestão da pobreza e armam outras tramas de relações em que se fazem presentes agentes sociais, ONGs, assessorias de perfil diverso e também sindicatos.

(iii) Acessibilidade social à cidade e serviços urbanos e novas

clivagens sociais

A privatização dos serviços urbanos e sua captura pela lógica de um capital globalizado transforma o cenário das cidades agora transformada em mercado e assim figurada em modelos de gestão urbana na busca de uma cidade competitiva e transformada ela própria em operador poderoso do processo de globalização e deslocalização (Veiner, 1998). Por um lado, “a acessibilidade aos serviços opera como critério de contrastes entre vetores de integração e fatores de exclusão” (Henry, 1999), criando novas clivagens e novas desigualdades. Por outro lado, a sua privatização altera a relação dos citadinos, agora transformados em consumidores, com o que antes era percebido como serviços públicos e, nesses termos reivindicados como direitos de cidadania. Na lógica de uma contratualização das relações entre Estado, prestadores de serviços

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e os seus beneficiários, altera-se (ou esvazia-se) o próprio sentido do serviço público tradicionalmente definido a partir dos critérios de universalidade, continuidade e igualdade, ao mesmo tempo em que se redefine a hierarquização dos interesses públicos e privados (Toledo, 1999; Henry, 1999). Altera-se o desenho das desigualdades e paisagem política dos atores e personagens, a dinâmica política que antes regia os movimentos sociais é redefinida, senão desativada, para dar lugar a novas configurações – e também novos campos de possibilidades – que precisam ainda ser melhor compreendidos. É nesse quadro que se coloca a interrogação sobre as possibilidades de recuperar (ou reinventar) para os serviços urbanos, o seu caráter público em contraposição à lógica privada do contrato civil e individual própria às relações de mercado (Toledo, 1999). Nessa relação, quais as possibilidades e obstruções para colocar em ação o princípio cidadão por oposição ao princípio gestionário da cidade-mercado (Tribillon, 1999) consagrado em certas concepções hoje correntes de governança urbana?2

Para colocar ainda em outros registros: quais articulações entre formas de gestão dos serviços e formas de gestão urbana? Quais os novos tensionamentos que aí se configuram em cenário no qual a maior autonomia dos governos locais e suas (problemáticas) prerrogativas na prestação de serviços (Arretche, 1999) são confrontadas com novas dinâmicas marcadas pela desmontagem das instituições e programas nacionais de desenvolvimento urbano e regional e a integração dos serviços no mercado mundial por via de sua privatização? (Toledo, 1999). De que maneira e por quais vias a privatização de serviços urbanos altera e reconfigura o espaço político das cidades, o jogo dos atores e seus espaços?

(iv) Mobilidades e recomposições urbanas

Metrópoles saturadas, congestionadas e poluídas, em meio à precariedade de soluções públicas face a problemas que se sobrepõem e vem se acumulando no correr de décadas de uma urbanização tão explosiva quanto excludente e que desenhou o cenário de cidades fracionadas entre circuitos da riqueza e os problemas sociais que crescem na mesma velocidade da expansão desordenada de suas periferias. Imagens conhecidas, que evocam um sólido estoque de conhecimentos e de interpretações já consagradas sobre “os 50 anos de urbanização” (Faria, 1992). No entanto, por trás de problemas que

2 A respeito, ver o número do Les Annales de la Recherche Urbaine sobre “Gouvernances”, 1998

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parecem apenas repor ou amplificar uma crise urbana que vem de longe, seguindo os rumos contraditórios da modernização brasileira, há questões que escapam a respostas simples e que nos abrem ao mesmo tempo outras vias para interrogar a cidade. O fato é que entre o legado de uma urbanização desordenada e as novas configurações espaciais que vem se desenhando nos últimos tempos, pouco se sabe das práticas urbanas, dos padrões de mobilidade cotidiana, os modos de deslocamentos entre os espaços da cidade e as condições (e obstruções) de acesso seus serviços e lugares. E a questão não é nada trivial, pois seguir o traçado desses deslocamentos é também um modo de descrever a dinâmica de produção dos espaços urbanos e a trama de relações sociais neles inscritas. E são certas linearidades (reais ou supostas) que parecem hoje desestabilizadas, ou talvez fracionadas em outras lógicas, heterogêneas entre si, que tornam menos evidente os trajetos antes previsíveis das periferias ao centro, entre moradia e trabalho, entre a vida doméstica e os lugares de consumo ou lazer – trajetos e trajetórias que de alguma forma traduziam dinâmicas espaciais e temporais de uma cidade regida pela centralidade de um universo econômico fordista.

O fato é que pesquisas recentes mostram que apesar do aumento dos meios de transporte individual e a expansão da rede de transporte coletivo, os deslocamentos intra-urbanos vem diminuindo desde o início dos anos 80 – é uma situação de mobilidade em declínio ou, talvez, mobilidade estancada que encontra paralelos apenas em outras metrópoles latino-americanas (Buenos Aires e México) e contradiz tendências conhecidas nos países do capitalismo central, por exemplo em Paris (Henry & Hubert, 2000). É possível supor que seja uma situação em alguma medida relacionada com as conturbações da vida em uma cidade na qual os meios de transporte individual vem ganhando, nessa mesma época, evidente predominância em relação ao transporte coletivo, com todas as seqüelas conhecidas de poluição, congestionamentos, degradação do meio urbano, inseguranças, para não falar de uma quase impossibilidade de gestão das cidades e seus territórios. Mas a relação entre mobilidade e meios de transporte não é tão simples como essa situação poderia supor. É uma situação que intriga. Ao menos numa cidade como São Paulo, a predominância do uso dos meios individuais de transporte corresponde ao mesmo período em que se reestrutura a oferta de transporte por ônibus e se expande a rede de transporte coletivo, aí incluindo o metrô (Henry & Zioni, 1999)3 – a passagem dos meios coletivos aos individuais é massivo,

3 “Nos 8 mil quilômetros quadrados da área metropolitana paulista, o modo dominante era o ônibus em 1977, com 40% das viagens: virou marcha a pé, estimada atualmente em 34% (após um pico de 36% em 1987), enquanto o primeiro modal caiu para 25%. Logo, o predomínio dos modais

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recorta todas camadas sociais, fazendo uso dos automóveis, motos ou bicicletas, dos meios “alternativos” e semi-coletivos de transporte como são os lotações e peruas fretadas e, ainda, a marcha-a-pé. Ainda: o crescimento dos meios individuais de transporte não garante as condições da mobilidade urbana – seja qual for o parâmetro para medir os deslocamentos cotidianas (número, tempo ou distância percorrida cotidianamente), estes vem diminuindo, mas também sob lógica diferenciadas conforme os grupos sociais. Ao contrário do que se poderia supor, não há uma relação evidente entre queda mobilidade, crise econômica e diminuição dos rendimentos familiares, o que sugere uma crescente individualização das formas de vida e usos da cidade e seus espaços por parte de grupos sociais crescentemente confinados entre espaços hiper qualificados e zonas residenciais fechadas. Quanto aos demais, os que não têm acesso aos automóveis, ainda será preciso conhecer as estratégias cotidianas, individuais e familiares, face a condições de vida degradadas na convergência entre a precariedade dos serviços urbanos, violência urbana e encolhimentos dos empregos, mas também reconfigurações espaciais da cidade acompanhando novas centralidades que cortam e recortam as várias regiões da cidade, desenhando uma nova geografia na concentração dos empregos disponíveis, centros de consumo e áreas de lazer. Mas isso também significa dizer que a mobilidade cotidiana e modos de deslocamentos (e escolhas dos meios de transporte) articulam e diferenciam-se conforme os grupos sociais e situações sócio-econômicas (inscritas no espaço da cidade) com a mobilidade residencial (e estratégias familiares), bem como a relação dos indivíduos no mercado de trabalho e a mobilidade sócio-profissional. Três formas de mobilidade que se articulam, conformando estratégias de inserção no universo urbano que desenham os problemas da cidadania de uma forma bem mais dinâmica que as clássicas análises de segregação e desigualdades urbanas, pois nas formas de mobilidade inscrevem-se negociações e disputas por posições sociais nos novos espaços urbanos e econômicas.

São essas evoluções aparentemente contraditórias nos atuais padrões de mobilidade urbana que abrem novas vias para compreender a dinâmica espacial e social das cidades, entre tendências de fragmentação, mas também dinâmicas sócio-econômicas que modificam constantemente a configuração de seus espaços, atividades e

individuais é hoje certo, com a marcha juntand0-se ao automóvel particular, que subiu de 29% em 1977 para 32% do total das viagens metropolitans em 1997 (incluindo-se o táxi). Ou seja, menos da metade dos deslocamentos diários se dá por meios coletivos numa metrópole de massa individualizante na qual o transporte participa do corporatismo...”(Brasileiro, Henry&Tuma, 1999:178-179).

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redes sociais. Será preciso repensar as relações entre formas de acesso à cidade e meios de transporte; o modo como, entre um e outro, se inscrevem práticas urbanas, formas de vida e também estratégias locais que concernem direta ou indiretamente a uma mobilidade em constante negociação, passando por escolhas dos locais de moradia e dos modos de deslocamentos cotidianos – “nessa dinâmica de adaptação e de emergência de novas mobilidades, aparece toda uma gama de comportamentos sociais, da busca ativa de integração ao conflito, passando pela adaptação passiva”. É um modo de interrogar a cidade que permite “restaurar o fenômeno urbano em toda sua complexidade e suas contradições pois é possível aí encontrar respostas alternativas às questões hoje colocadas, da sociabilidade, da violência e da solidariedade” (Henry, 2000). Por outro lado, as recomposições urbanas remetem às lógicas territoriais de distribuição dos serviços, de modo que em torno das mobilidades (e as negociações cotidianas que elas implicam), projetam-se também questões centrais das (difíceis) relações entre cidade e cidadania, na convergência das atuais redefinições do público e privado e os processos globais que atravessam as regiões metropolitanas.

(v) Desigualdades e novas clivagens sociais

Se é no cenário das cidades que inscrevem-se novas desigualdades e clivagens sociais, também é verdade que modelos bipolares de análise pautadas pelas noções de dualização social não dão conta de realidades cada vez mais complexas e heterogêneas. E terminam por produzir uma imagem desfocada do mundo social, impedindo ver processos que exigem outros parâmetros para serem avaliados e outras medidas para pensar a invenção política necessária para fazer face não a dualizações e encapsulamentos comunitários (que não existem) mas sim à disjunção ou dessimetria (essa sim problemática), sobretudo entre jovens dos bairros pauperizados da cidade, entre integração econômica, integração política e integração cultural (Hammouche, 1997, 1998). É nessa disjunção que se tem o registro das dimensões societárias das atuais mudanças no mercado de trabalho (e suas exclusões) em uma sociedade que cria ao mesmo tempo uma crescente e diversificada rede de integração nos circuitos dos bens culturais e simbólicos. É uma sociedade atravessada processos societários inéditos e novas formas de subjetivação, construção de identidades e formas de sociabilidade (Ascher & Godard, 1999), além de novos padrões de mobilidade e acesso aos espaços urbanos e seus serviços, novas redes de sociabilidade entre a dinâmica familiar, os espaços de lazer e consumo,

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igrejas e também o hoje crescente mundo das ilegalidades tecido entre formas diversas de criminalidade e o tráfico de drogas (Peralva, 1996; Salama, 1999).

Mas isso também significa dizer que a clássica discussão sobre pobreza e desigualdade social (e seus indicadores) fica deslocada diante de realidades que escapam às categorias pelas quais essas noções são definidas. De um lado, as conhecidas clivagens entre trabalho (associado aos direitos sociais) e pobreza (fora do sistema de proteção social) ou entre trabalho formal e o dito trabalho informal, são deslocadas ou embaralhadas seja pelos rumos das atuais reconfigurações do mercado de trabalho, seja pelo surgimento de novas clivagens ao mesmo tempo econômicas, sociais e também simbólicas que ainda precisam se melhor compreendidas (Telles, 2000). Por outro lado, ao mesmo tempo em que a sociedade de consumo (e a lógica do mercado) parece se espraiar por todos os cantos, inclusive em territórios tradicionalmente considerados como lugares paradigmáticos da pobreza desvalida, como as favelas do Rio de Janeiro (Valladares, 2000), as pesquisas vem indicando uma crescente fragmentação (Santos 1990) dos espaços sociais (Vidal L., 1993) engendrada entre (i) as novas clivagens do mercado de trabalho (e suas exclusões), (ii) a crescente privatização das formas de vida urbana nas grandes cidades (formas de moradia, espaços de lazer, serviços privados de saúde, de segurança, etc.) e (iii) o esvaziamento das referências (reais e simbólicas) de um destino comum que, sob o registro do ideário ou imaginário do progresso, foi historicamente associado ao Estado e às formas de integração urbana através do mercado e serviços públicos.

É nesse quadro que a indagação sobre a cidade abre-se a um conjunto de novas perguntas: de que forma as atuais reconfigurações do trabalho e também da produção e gestão dos serviços urbanos afetam padrões de mobilidade e acesso aos espaços urbanos? Em que medida as novas clivagens e diferenciações nos usos da cidade e de seus espaços altera o próprio sentido da cidade (e seu imaginário), redefine as relações entre “a casa e a rua” (Da Matta), desloca critérios de identidade, princípios de solidariedade e formas de sociabilidade (Henry & Sachs-Jeantet, 1993)? De que forma a violência cotidiana e as várias ilegalidades na trama urbana afetam sociabilidades e formas de vida (Telles, 2000)? De que modo as interações ou diferenciações territoriais afetam ou redefinem modos de socialização e de estruturação das identidades? Que outras formas de sociabilidade e critérios de identidade vem sendo engendradas entre o novo individualismo (a ser ainda compreendido e melhor qualificado) e formas inéditas de associativismo e solidariedade? Ainda: quais as estratégias de

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acomodamento ou resistência face às circunstâncias do “viver em risco” (Kowarick, 2000) perpassadas pelas diversas vulnerabilidades sociais e a violência cotidiana?

***

Além não serem exaustivas, as questões aqui apresentadas estão

longe de contemplar todos os temas pertinentes às novas realidades urbanas e seus territórios. No entanto, mostram que a complexidade dos processos envolvidos exigem novos modos de produção de conhecimento. É nesse sentido que se coloca a exigência da transversalidade como método de abordagem de campos empíricos diversos, buscando dessa forma superar a atual fragmentação da análise social, muitas vezes encapsulada na avaliação de dados setoriais e processos sociais localizados. Trata-se, portanto, de uma abordagem que busca articular temas e questões normalmente tratadas em domínios separados de análise.

Essa transversalidade é o recurso necessário se queremos compreender as novas formas de regulação urbana, colocando em perspectiva as tensões e relações de força que atravessam a cidade em suas relações com a economia e as dinâmicas regionais nos circuitos nacionais e globais do mercado; com os serviços urbanos e seus impactos na dinâmica societária; com o mosaico institucional que articula os poderes locais com outras instâncias nacionais, supra e subnacionais; com dinâmicas societárias perpassadas por novas desigualdades e novas conflituosidades, mas também pela violência urbana e ilegalismos diversos.

Para retomar uma questão anterior, se a noção de regulação tematiza, sob perspectivas diversas, a disjunção entre espaços econômicos, políticos e sociais sob o impacto conjugado da globalização econômica e reestruturação produtiva, do esvaziamento ou retraimento das instituições estatais e da redefinição do papel regulador do direito, da recomposição da geometria dos poderes e dos interesses, resta ainda compreender a inscrição dessas mudanças nas configurações societárias que vêm se desenhando no cenário contemporâneo. E é nesse sentido que cobra importância a renovação de uma perspectiva sociológica, não mais circunscrita a um campo disciplinar canônico, que se abra ao diálogo com as demais disciplinas em um empreendimento partilhado de conhecimento. É disso que depende, hoje, o discernimento dos campos de possíveis e de experimentação política que estão se delineando nas dobras de antigas e novas configurações, suas

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temporalidades e zonas de fricção, e que circunscrevem as linhas de força que atravessam nosso presente.

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Serviços urbanos, cidade e cidadania

Vera da Silva Telles* Etienne Henry**

Que relações existem entre cidade, serviços e os cidadãos?4 A

pergunta pode parecer sem sentido para aqueles que se encerram em uma forma privatizada de vida e para os quais as fronteiras da cidade e seus espaços têm o estrito diâmetro de práticas seletivas de consumo. Mas a questão torna-se espinhosa quando se tenta compreender os processos sociais contidos nestas três noções. As relações que articulam cidade, serviços e cidadania são, hoje, cada vez menos lisíveis em um cenário no qual as políticas urbanas cedem lugar a práticas de gestão de problemas localizados. Junto com a desmontagem dos instrumentos públicos de intervenção estatal, abre-se espaço para o predomínio de lógicas setoriais regidas pelos critérios privados da economia e para micro regulações nos territórios urbanos em uma combinação ainda pouco conhecida de práticas formais e informais, permeadas por novos ilegalismos e formas de violência. O desafio analítico, portanto, não é de pouca monta. Mílton Santos propõe a noção de "território usado", postulando a necessidade de articular, e não contrapor, as lógicas que constituem o espaço habitado, as suas redes e a democracia. No entanto, a literatura atualmente produzida por urbanistas, engenheiros, economistas e juristas raramente caminha nessa direção. Sem desmerecer as contribuições destas disciplinas e sem a pretensão de entrar exaustivamente nos seus conteúdos, propomos aqui um enfoque social que procura, antes de mais nada, as interfaces entre estes conhecimentos, tentando uma análise transversal.

Nos tempos do urbanismo modernista, os vínculos entre essas três noções pareciam óbvios na prometéica tentativa de articular as funções essenciais da cidade: moradia, trabalho, lazer e circulação. Sob esta ótica, o moderno Plano Piloto de uma Brasília idealizada certamente se choca com a desmedida de uma São Paulo pós-fordista. A racionalista organização dos serviços em Curitiba se distancia do espontaneismo e

* Professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – CENEDIC / USP. ** Diretor de pesquisa no Institut de recherche pour le développement - IRD e pesquisador visitante junto ao Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania – CENEDIC / USP. 4 A elaboração deste dossiê faz parte de um projeto de pesquisa de maior alcance sobre "Cidade e Cidadania" desenvolvido no CENEDIC/USP, nos quadros de um convênio de cooperação científica franco-brasileira CNPq-IRD.

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do clientelismo que ainda domina em cidades do interior. E a cidadania parece menos conturbada em Porto Alegre do que em Salvador, se compararmos os processos organizativos de ambas as cidades. No entanto, hoje, há quem questione a própria pertinência da noção de cidade, por conta da fragmentação de seus espaços, acompanhando os processos de desmaterialização e desterritorialização da economia em cadeias produtivas globalizadas. As idealizadas funções de uma cidade eficientemente organizada para a produção e eqüitativamente acessível para os variados segmentos da sua população são confrontadas com importantes deseconomias produzidas pelo gigantismo metropolitano e com os altos índices de segregação sócio-espacial, e esbarram com a lógica financeira e mercantil que toma posse das múltiplas facetas da vida urbana.

O deslocamento e a pulverização do espaço industrial, junto com o crescimento das atividades terciárias de primeira, segunda e terceira ordem, redefinem as relações entre os cidadãos, o trabalho e a cidade. A privatização da cidade reduz, ou mesmo nega, o espaço público de expressão de interesses coletivos e da cidadania. O cidadão transfigura-se em consumidor e cliente potencial das crescentes atividades promovidas nos âmbitos comercial, cultural e para tudo o mais que concerne suas necessidades básicas de educação, saúde, habitação, transporte, comunicações, eletricidade, água, saneamento básico e ambiental. Progressivamente, estas atividades, antes garantidas por empresas públicas e por capitais produtivos, financeiros e desvalorizados (vide a pequena produção artesanal de serviços), transformam-se em fonte de lucro e de capital valorizado nos circuitos globalizados da economia. Passam do direito civil ao direito comercial, do direito administrativo ao direito concessionário, negando, nesse percurso, os direitos sociais.

Se existem forças de resistência e alternativas a essa privatização crescente e a essa lógica de mercantilização e individualização da vida urbana, é questão que exigirá um trabalho investigativo de envergadura, buscando as relações de força e os campos de possibilidade que permitam recuperar o sentido público da cidade e seus territórios. Por ora, centramos nossa atenção em alguns dos serviços urbanos que, antes definidos como bens de consumo coletivo derivados das necessidades de "reprodução coletiva da força de trabalho", estão hoje no centro das crises e redefinições das sociedades situadas na periferia do capitalismo.

Parte substantiva do programa de privatização ferreamente aplicado na Argentina e em andamento no Brasil refere-se aos serviços públicos (dois terços dos ativos leiloados pelo Estado até o momento atual), seguindo as diretrizes do famoso "consenso de Washington" de ajuste

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econômico e reforma política. Os processos em curso desde 1990 em ritmos desiguais nas diversas regiões do país, de descentralização, privatização e desregulação de serviços urbanos têm impactos societários e desdobramentos políticos no campo dos direitos e da cidadania. No entanto, uns e outros não têm sido suficientemente enfatizados no debate público atual. A rigor, esse é um debate em grande parte regido pela pauta da reforma do Estado e seus "imperativos", pela crise fiscal ou então pela suposta oposição entre ineficiência do Estado e virtudes do setor privado. Entre uma ênfase e outra, o que desaparece desse debate – e da própria cena pública – são os impactos desses processos nas novas configurações urbano-regionais do território, para não falar da redefinição do campo político de formulação e exercício de direitos.

Vale lembrar que as relações entre o urbano, a moradia e os serviços públicos estiveram no centro dos debates e embates dos anos 1970 e meados dos 1980. Sem a pretensão de uma recomposição da história recente do país, é preciso dizer que é por referência a este período que podemos ter uma medida para avaliar o sentido e radicalidade das mudanças em curso. Questões ligadas à habitação e serviços urbanos configuravam o terreno em que se dava o conflitivo encontro entre Estado autoritário e maiorias urbanas. As chamadas “contradições urbanas” conformavam a face conflitiva do longo ciclo do chamado desenvolvimento por substituição de importações. Boa parte das políticas urbanas e dos movimentos sociais daquelas décadas lidavam com as carências de moradia, equipamento, infra-estrutura e serviços, acompanhando os processos de urbanização e de industrialização. Volumosos recursos procedentes do trabalho assalariado através do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS, foram centralizados em organismos paraestatais, como o Banco Nacional de Habitação – BNH, e seletivamente redistribuídos em programas habitacionais, de infra-estrutura de água, saneamento e eletrificação, se bem que com resultados duvidosos e insuficientes para as populações submetidas à “espoliação urbana” nas periferias das cidades. Quanto aos transportes públicos, os escassos recursos centralizados pela Empresa Brasileira de Transportes Urbanos – EBTU, desdobraram-se em acirradas mobilizações e revoltas urbanas já em meados dos anos 1970.

O fato é que a questão urbana foi tematizada e figurada politicamente pelos movimentos sociais que ocuparam o cenário urbano do país (assim como no Chile, na Colômbia, no Peru ou no México). Para ir além e colocar a questão em outro registro, é importante também dizer que as relações entre cidade e serviços urbanos estruturaram parte considerável do imaginário do progresso e modernização identificado,

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em boa medida, com o “direito à cidade”. Foi esse um imaginário alimentado pela forte intervenção do Estado no correr das décadas, no sentido da ampliação das bases produtivas do país e unificação do território nacional. No Brasil, desde os anos 1930, os serviços públicos foram historicamente identificados com os interesses nacionais e constituíram em peça central no mito do progresso e modernização capitaneado por um Estado empreendedor, legitimando sua intervenção na economia e na sociedade. Distinta é a experiência francesa de montagem de serviços públicos como clef de voûte da construção do mito republicano, corporificando as noções de bem comum e os ideais de equidade e solidariedade. Ou a anglo-saxã da common law que assentou as bases de uma regulação pública dos serviços que buscava arbitrar entre as exigências de eficiência do mercado e os critérios de universalidade dos serviços.

Herdando parcialmente ambas essas concepções, em uma combinação desigual conforme as conjunturas políticas entre os procedimentos de regulação mercantil à norte-americana e o instituto da tutela estatal apoiado no direito administrativo de inspiração francesa, a estruturação dos serviços urbanos no Brasil esteve no centro do ciclo desenvolvimentista. E configurou um campo de tensões em que tanto as exigências da acumulação capitalista quanto a pressão popular levaram à ampliação da cobertura das infra-estruturas nas cidades. Em que pese as clivagens e desigualdades regionais e infra-regionais que acompanharam essas décadas, entre os anos 1960 e o final da década de 1980 algumas empresas paraestatais dotadas de importantes recursos financeiros promoveram um salto considerável da oferta, aliás como em outros países de América Latina. No âmbito das cidades, a ampliação dos serviços de saneamento, de energia elétrica e de transportes foi palmilhada por conflitos sociais e negociações dos moradores com os poderes locais e empresas públicas. Mesmo nos anos duros dos governos militares, a implantação de rede de saneamento e energia elétrica em assentamentos irregulares (favelas, por exemplo) foi conquistada e a aplicação de tarifas sociais firmou-se como princípio de política urbana. Em termos gerais, a prática de subsídios cruzados e de tarifação social permitia alguma medida de equalização social e regional, seguindo o princípio de universalidade constitutivo do caráter público desses serviços.

Mais recentemente, os debates e embates em torno de uma necessária reforma urbana para garantir os princípios de equidade e justiça social desdobraram-se em conquistas importantes consagradas na carta constitucional de 1988, afirmando a autonomia municipal e os princípios definidores das funções sociais da cidade. O acesso aos

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serviços passaran então a compor o elenco dos direitos urbanos, junto com o direito à saúde, à educação, à cultura, e também o escopo dos direitos difusos pertinentes ao meio ambiente e à qualidade de vida. Referência jurídica e referência de valor, essas prescrições constitucionais têm se revelado importantes na resolução de conflitos urbanos, sobretudo em áreas de assentamento irregular, na perspectiva de integrar esses territórios no campo da legalidade e assegurar condições dignas de vida associadas ao direito ao abastecimento de água e coleta de esgotos em sua interdependência com o direito à saúde, ao meio ambiente e à moradia.

Certamente, essas referências são insuficientes e estão longe de dar conta das complicações e contradições da história recente do país. Mas são importantes para indicar um parâmetro a partir do qual definir as questões em pauta no cenário atual. Vistos pelo ângulo das cidades e do ordenamento territorial, dos problemas do desenvolvimento urbano e regional, a questão dos serviços urbanos ganha uma outra escala e uma outra medida para ser avaliada, não estritamente como atividade econômica a ser regulada nos termos estritos e restritos de agências setoriais, mas como questões pertinentes aos interesses públicos que afetam toda uma coletividade.

De partida, o lugar das cidades e os seus sentidos são redefinidos no atual contexto de reestruturação econômica nos circuitos de uma economia globalizada, de privatização de serviços públicos e esvaziamento da capacidade estruturante das instituições estatais. Os serviços privatizados, em um contexto de liberalização dos mercados, tornaram-se um poderoso vetor da globalização dos capitais, afetando profundamente o cenário das cidades agora transformada em mercado e assim figurada em modelos de gestão urbana na busca de vantagens competitivas no território nacional (junto com a chamada "guerra fiscal" pela qual alguns estados oferecem vantagens às firmas estrangeiras, à revelia do pacto federativo).

Os impactos sociais e urbanos são consideráveis. De um lado, às clássicas carências de cobertura que afetam as regiões mais distantes das cidades (e do país), sobrepõem-se novas desigualdades e novas formas de segregação regidas pela lógica mercantil que passou a reger serviços agora privatizados e conectados aos circuitos de uma economia globalizada. Em um quadro de aumento de desemprego, de flexibilização das relações de trabalho, de precarização do emprego e crescente vulnerabilidade social, os aumentos das tarifas e os índices crescentes de inadimplência mostram o impacto dos serviços urbanos nas vidas cotidianas e seus territórios. Ao mesmo tempo, são desativados os procedimentos clássicos de negociação com os poderes

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públicos em torno de critérios de uma sempre difícil equidade na oferta desses serviços. A questão da acessibilidade – constitutiva do próprio sentido público da cidade e dos serviços – é, assim, inteiramente redefinida. De uma lógica política própria à gestão pública dos serviços urbanos passa-se a uma situação em que é o próprio mercado que comanda as condições de acesso, desfigurando o “direito à cidade” na fratura entre consumidores mais ou menos solváveis. Em termos gerais, a sua privatização altera a relação dos cidadãos, agora transformados em consumidores, com o que antes era percebido como serviços públicos e, nesses termos, reivindicados. Na lógica de uma contratualização das relações entre Estado, prestadores de serviços e os seus beneficiários, altera-se (ou esvazia-se) o próprio sentido do serviço público tradicionalmente definido a partir dos critérios de universalidade, continuidade e igualdade, ao mesmo tempo em que se redefine a hierarquização dos interesses públicos e privados.

Por outro lado, como iremos ver nos artigos que compõem este dossiê, ao mesmo tempo em que os serviços em rede têm uma inscrição territorial que afeta e interage com as outras dimensões do mundo urbano – transportes, habitação, meio ambiente e qualidade de vida de uma maneira geral – o predomínio de lógicas setoriais regidas pelos critérios privados da economia termina por erodir as próprias condições de possibilidade de uma política urbana integrada. E anula a exeqüibilidade dos direitos urbanos consagrados no texto constitucional de 1988, dando lugar à práticas fragmentadas de gestão social de problemas localizados. Finalmente, na conjugação entre as novas prerrogativas e favorecimento aos agentes privados e a lógica globalizada de empresas que operam no sentido de diversificar suas atividades e ramificações econômicas, se redefine o lugar dos serviços em rede na produção da cidade e seus espaços. Ao revés dos princípios de justiça social e equidade urbana, os serviços urbanos terminam por operar como um poderoso vetor de domínio privado de territórios urbanos, criando novas clivagens e novas desigualdades.

É nesse quadro que se coloca a interrogação sobre as possibilidades de se recuperar (ou reinventar) para os serviços urbanos, o seu caráter público em contraposição à lógica privada do contrato civil própria das relações de mercado. Nessa relação, quais as possibilidades e obstruções para colocar em ação o princípio cidadão por oposição ao princípio gestionário da cidade-mercado consagrado nas concepções hoje correntes de governança urbana? Ainda: quais articulações entre formas de gestão dos serviços e formas de gestão urbana? Quais os novos tensionamentos que aí se configuram em um cenário no qual a maior autonomia dos governos locais é confrontada com novas

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dinâmicas marcadas pela integração dos serviços urbanos no mercado mundial, ao mesmo tempo em que são desativados os instrumentos de desenvolvimento urbano e regional? De que maneira e por quais vias a privatização dos serviços urbanos altera e reconfigura o espaço político das cidades, o jogo dos atores e seus espaços? São essas algumas das questões que perpassam os textos que compõem este Anuário5.

* * * No artigo que abre este dossiê, "Público e privado na infra-estrutura

urbana no Brasil", Ricardo Toledo Silva situa o lugar e importância dos serviços em rede nas dinâmicas urbanas e regionais; é por esse ângulo que problematiza o sentido da privatização hoje em curso no país. A rigor, a questão parte dos elementos definidores do serviços em rede (contemplando aqui água, saneamento e energia), a começar do seu duplo papel de condição geral para a produção econômica e para a reprodução social. Daí a tensão constitutiva da própria definição dos serviços urbanos entre os critérios de rentabilidade e eficácia econômica, de um lado e, de outro, os imperativos de equidade nas condições de acesso e universalização da oferta. No entanto, nos rumos atuais de privatização e atuação das agências reguladoras, e à revelia de preceitos constitucionais, a dimensão pública dos serviços é negada por conta de seu enquadramento como atividade econômica nos termos da reforma gerencial do Estado definida em 1995. Na prática, isso significa a construção de “novas estruturas reguladoras que – diferentemente do sentido ‘providência’ do Estado regulador intervencionista – vão mediar relações de contrato civil entre partes privadas e não mais regular a aplicação do contrato social onde se definem os direitos individuais e coletivos de todos”. E se traduz no fato de que “a regulação setorial que sucede o desmonte da estrutura institucional do Estado desenvolvimentista tem suas competências definidas predominantemente sobre matérias relativas à prestação comercial de serviços e muito pouco no que respeita à universalização da oferta essencial”.

E isso tem implicações nada triviais no cenário nacional. Instrumento básico de política urbana e regional, essa dimensão também definidora da natureza pública desses serviços é desfeita nos termos de

5 Outros textos sobre a problemática dos serviços urbanos têm sido produzidos pelos autores, em particular os que acompanharam trabalhos de envergadura, como o acordo Capes-Cofecub sobre "Modos brasileiros e franceses de gestão dos serviços urbanos", o ateliê sobre Serviços urbanos Colóquio Brasil 2000 (França, outubro de 2000), o programa Pronex (CNPq) sobre Grandes metrópoles do Mercosul, etc. Nesta introdução outros textos foram referência importante, em particular o artigo de autoria de Nelson Saúle Jr., "O saneamento ambiental como um direito humano: paradigma para o marco legal da política de saneamento urbano".

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uma regulação estritamente setorial regida pelos critérios privados da economia. Em um cenário de eliminação das regulações urbanas e desmonte dos instrumentos de planejamento regional e urbano, a gestão dos serviços passa de uma lógica política para uma outra puramente comercial. A própria política urbana é desqualificada e opera-se o redirecionamento para uma atuação gerencial voltada prioritariamente à aceleração da atividade econômica em geral e imobiliária em particular. Por outro lado, se as redes de serviços sempre serviram como operador de equalização regional e ordenamento do território nacional, a tendência que agora se configura é a de uma oferta fragmentada nos diversos territórios, resultante do desmembramento geográfico dos grandes sistemas de abrangência regional, desmembramento este conduzido pela vigência de critérios estritamente financeiros e comerciais na gestão e oferta dos serviços urbanos. O resultado não poderia ser outro que não o aumento das disparidades e desigualdades regionais.

Mas é também pelo lado das novas realidades urbanas que vem se configurando no cenário atual que se explicitam os impasses e desafios de uma regulação pública que responda às exigências de justiça social e equidade urbana. De um lado, a infra-estrutura dos serviços em rede tem impactos consideráveis no meio ambiente natural e construído. Paradigmáticas neste sentido, são as suas interações com as formas de “consumo ou apropriação de recursos, como no caso das hidroelétricas, da água de abastecimento público, do gás natural, que concorrem pelo uso das águas superficiais ou subterrâneas cuja prerrogativa de decisão sobre prioridades pertence à sociedade”.

Por outro lado, as condições de uso e acesso aos serviços urbanos são alteradas em um quadro de aumento do desemprego urbano e pulverização dos empregos em um novo tecido econômico que se estrutura entre as tradicionais atividades do mercado informal e as modernas cadeias de subcontratação e terceirização. As anteriores diferenciações e hierarquizações entre usos produtivos e usos domésticos, entre necessidades econômicas e necessidades sociais no que diz respeito ao acesso aos serviços urbanos, são subvertidas quando não embaralhadas em uma nova configuração dos espaços urbanos que fazem diluir as antigas separações entre centro e periferia, entre moradia e trabalho, próprias da “cidade fordista” regida pela concentração industrial e distribuição desigual de seus serviços na lógica do que então se convencionou chamar de “urbanização por expansão periférica”.

Finalmente – e talvez o mais importante de ser aqui notado, na lógica de capitais globalizados em disputa pelos mercados emergentes, as prestadoras privadas de serviços urbanos tendem a operar em

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diferentes escopos de rede (por exemplo, energia elétrica e telecomunicações, abastecimento de água e limpeza urbana) configurando situações de monopólio que escapam duplamente ao âmbito das agências reguladoras, seja porque sua atuação extrapola amplamente a jurisdição de cada um delas tomadas isoladamente, seja porque não se enquadram nas tipificações clássicas do direito de concorrência. Em um cenário de desregulação econômica e desmonte dos instrumentos públicos de regulação urbana, isso significa a possibilidade de um domínio territorial cujos efeitos “podem ser determinantes na criação de áreas privilegiadas e na dominação de um mercado de produção da cidade, que mais do que a dominação sobre segmentos específicos da economia, afeta a vida de toda a coletividade”. Exemplo evidente disso é a relação entre oferta de serviços e empreendimentos imobiliários, que, se não é propriamente um processo novo, ganha hoje uma nova dimensão e uma outra escala já perceptíveis na paisagem urbana de uma cidade como São Paulo (e das grandes metrópoles no mundo atual), com a formação de áreas privilegiadas – as novas centralidades em que se concentram as atividades mais sofisticadas do capital globalizado (serviços, tecnologia, informação), configurando formas privadas de apropriação de serviços em rede e novos padrões de desigualdade nas suas condições de acesso.

Face a este conjunto complexo e multifacetado de questões, é que se coloca as exigências de uma regulação política que resgate o sentido público dos serviços urbanos. Como enfatiza Silva, “a regulação setorial … não tem como controlar todos os processos de captura privada dos benefícios, que se potencializam e diversificam com os avanços da tecnologia e a hegemonia dos mercados”. Isso envolve ou deveria envolver uma articulação sistêmica com as outras estruturas de regulação que dizem respeito diretamente aos serviços urbanos, ou seja, as instituições voltadas à defesa do direito da concorrência, à defesa dos direitos do consumidor e de proteção do meio ambiente. Ainda, “no caso particular da infra-estrutura urbana é importante incluir também os sistemas municipais ou regionais (regiões metropolitanas, aglomerações urbanas, microrregiões) de planejamento e gestão”. Essa “concepção multi-setorial do sistema regulador” exige a presença e o fortalecimento do Estado para garantir uma regulação pública exercida em nome do interesse público. Como diz Silva ao final de seu artigo, “a regulação do marco regulatório, das consultorias estrangeiras, da estanqueidade setorial, da supervalorização das relações comerciais e dos contratos específicos têm em comum com a regulação pública pouco mais do que o radical do infeliz neologismo que lhe dá o nome".

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As dimensões políticas envolvidas nos processos em curso de privatização dos serviços urbanos é também questão tratada por Marcelo Vargas em seu artigo sobre os “Desafios da transição para o mercado regulado no setor de saneamento”. Ao contrário do que ocorreu nos casos da telefonia e eletricidade, a privatização do setor de saneamento e esgotamento sanitário caminha em ritmo lento, vem encontrando resistências políticas consideráveis e segue estratégias diferenciadas nas diversas regiões do país. Porém, é essa mesma excepcionalidade do setor que permite explicitar um leque de questões que vão muito além das falaciosas contraposições entre Estado e mercado.

O projeto de privatização no setor de saneamento urbano inscreve-se em um complicado cenário em que se combinam, numa geometria variável conforme os estados e municípios, a descentralização política e as novas prerrogativas dos municípios definidas na Constituição de 1988, a crise fiscal do Estado e a asfixia financeira das companhias estaduais de saneamento, e a abertura legal para a abertura para a participação de operadores privados no setor. Se é verdade que “o Brasil representa um imenso mercado para as companhias transnacionais na área de saneamento básico e serviços urbanos” e que companhias francesas, norte-americanas e da península ibérica já estão atuando no setor de saneamento básico no país através de consórcios com empresas nacionais, também é verdade que as estratégias de privatização conformam um acirrado e nem sempre resolvido conflito entre estados e municípios em torno da polêmica e controvertida titularidade dos serviços e as correspondentes prerrogativas nos contratos de concessão com as operadoras privadas.

Entre tentativas bem sucedidas ou frustradas ou então resistências e obstáculos diversos à transferência da prestação do serviço a companhias privadas, estão em jogo, de um lado, a crise fiscal que compromete a capacidade de investimento dos poderes estaduais municipais e, de outro, os volumosos recursos, em disputa, auferidos pelas companhias estaduais de saneamento básico. Em pauta nessas disputas está a capacidade desse serviço de gerar receitas para os municípios, seja para viabilizar investimentos no setor, seja para transferência de recursos para outros setores da administração direta municipal, seja ainda, principalmente no caso das regiões metropolitanas, para viabilizar investimentos e saneamento nos municípios menores e deficitários. É isso o que se depreende da análise empreendida por Vargas dos processos de municipalização e privatização dos serviços de saneamento, à luz de alguns casos ilustrativos.

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Campo de disputas e controvérsias, em que não estão ausentes acirradas batalhas judiciais entre municípios concedentes e concessionárias estaduais, o setor de saneamento configura um intrincado jogo de atores formado por vereadores e prefeitos interessados no controle do serviço, companhias estaduais e governadores, operadores políticos e, em alguns casos, sindicato dos trabalhadores do setor e organizações da sociedade civil. E tem sido também pródigo na formulação de propostas diversas e divergentes envolvendo questões fundamentais para a política urbana e o futuro das cidades.

Já na primeira metade da década de 1990, frente ao esfacelamento dos instrumentos de financiamento público e às exigências de um reordenamento institucional do setor, profissionais da área e organizações representativas abriram um vivo debate e formularam propostas alternativas à privatização em nome do caráter essencial dos serviços, seu impacto na saúde pública e meio ambiente, e também dos limites do mercado para garantir uma universalização da oferta que exige pesados investimentos nas regiões mais pobres do país. Essas organizações chegaram a compor o comitê de execução do Programa de Modernização do Setor de Saneamento iniciado em 1994. Porém, “tais entidades foram excluídas do comitê, no início do ano seguinte, supostamente por exigência do Banco Mundial”. Mais recentemente, “face às batalhas judiciais em torno da titularidade dos serviços envolvendo processos de municipalização ou privatização do setor, especialmente nas capitais e regiões metropolitanas, foram elaboradas diversas propostas e projetos de lei visando regulamentar a cooperação intergovernamental em saneamento básico no país, cada qual refletindo projetos e interesses divergentes de segmentos distintos”.

Se a indefinição do marco regulatório permanece, nesse campo de debate e disputas estão em jogo questões estratégicas que envolvem a influência de fatores ecológicos e espaciais na organização técnica e administrativa dos serviços, bem como as exigências de “uma integração dos serviços locais em unidades territoriais de planejamento e gestão mais abrangentes, que se manifesta principalmente nas bacias mais urbanizadas e industrializadas”. Essa é, a rigor, a questão central, já que a “chamada flexibilização institucional implica a fragmentação da oferta de serviços outrora integrados em sistemas mais abrangentes que garantiam a viabilidade econômica dos sistemas menores e o acesso da população de baixa renda através dos subsídio cruzado e tarifação progressiva ou social”. O novo modelo, enfatiza ainda Vargas, “conteria o risco de dumping social que se associa ao interesse exclusivo do capital privado pelas regiões e segmentos mais rentáveis, deixando para

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os governos o ônus de arcarem sozinhos com o atendimento de áreas e populações mais pobres”.

À luz das questões discutidas por Carlos Alberto Bello no artigo

intitulado "Neoliberalismo com autoritarismo: desafios para os direitos da cidadania nos serviços públicos", seria possível dizer que as dimensões políticas e a complexidade envolvida na organização institucional de prestação dos serviços urbanos são neutralizadas, ou mesmo ocultadas, na agenda política do atual governo, obstando por isso mesmo um debate público conseqüente sobre o lugar desses serviços nos rumos futuros da economia nacional. Na convergência entre as injunções do capitalismo financeirizado e as circunstâncias internas da crise financeira e política do Estado aberta na década de 1980, as reformas políticas levadas a cabo em nome dos imperativos mercantis significaram concretamente uma peculiar privatização do próprio Estado por via da eliminação das mediações públicas de expressão de interesses e explicitação de conflitos. Neste sentido, diz Bello, “a hegemonia neoliberal realiza-se por via de uma espécie de ocultação das regulações estatais produzidas através de mecanismos informais de interação, nem como de traços peculiares à atual fase do capitalismo – a profunda instabilidade econômica, a formação de oligopólios mundiais e a coesão monopólica do capital frente aos pleitos dos demais segmentos sociais”. E desdobra-se numa “subjetividade antipública” que retira ou esvazia de legitimidade qualquer consideração em nome de interesses públicos face aos imperativos supostamente inelutáveis do mercado em uma economia globalizada.

Ao contrário do que se diz correntemente, é essa configuração, enfatiza o autor, que termina por conferir ao Estado um amplo grau de discricionariedade para regular a competição intercapitalista, ou seja, “para eleger ou abrir caminhos para que determinados segmentos sejam beneficiados ou não pela regulação estatal, em formas e intensidades diferenciadas”. É este o cenário político em que vem se dando a abertura da economia ao livre movimento dos capitais globalizados, a privatização dos serviços públicos e a montagem das agências reguladoras.

Tomando a telefonia como exemplo, Bello mostra as limitações e falácias nas metas definidas de universalização, as dimensões perversas da política tarifária adotada, a evidente captura da Agência nacional de telecomunicações – ANATEL pelo jogo dos interesses privados, muito longe das funções de regulação pública que deveria em princípio exercer, obstando em muitos sentidos as possibilidades de uma atuação eficaz dos atuais institutos de defesa dos direitos do consumidor.

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Quanto a estes, no Código de defesa do consumidor (1990) e em particular nos PROCONs (Delegacias de defesa do consumidor dos governos estaduais), faltam dispositivos legais e também disposição política para uma tematização mais ampla da relação empresa-consumidor, de sua desigualdade constitutiva e dos campos possíveis de intervenção em nome do bem-estar dos cidadãos, em questões pertinentes seja às tarifas, seja às metas de universalização. De um lado e de outro, configura-se uma situação de ausência, ou mesmo obstrução, para a constituição de esferas públicas de discussão que a definição democrática dos parâmetros de um interesse público a ser garantido na prestação desses serviços. E se isso é importante, mais ainda é um necessário debate sobre o lugar dos serviços públicos em alternativas de desenvolvimento econômico que contemple os critérios de equidade, justiça social e qualidade de vida.

As relações entre serviços públicos e as transformações do

capitalismo urbano é questão discutida por Etienne Henry no artigo "Regulação urbana e gerenciamento dos transportes: modelos e impasses brasileiros". Tratando dos transportes públicos, a discussão situa-se, porém, em um outro campo de indagações. Estruturado em grande medida pela combinação entre empresas privadas e regulação pública sob modalidades e formatos institucionais diferenciados conforme as conjunturas políticas e as diversas cidades do país, os transportes públicos mostram que “as formas de regulação da cidade e dos seus serviços evoluem com a história do capitalismo urbano … pondo em foco as evoluções societárias e setoriais que afetam a história local".

O setor escapa parcialmente das grandes privatizações e dos embates políticos envolvidos nas infra-estruturas de energia, água, saneamento e comunicações. Historicamente circunscritos ao âmbito municipal, os transportes coletivos sempre foram basicamente assumidos pela iniciativa privada, sendo que os procedimentos da regulação pública terminaram por favorecer um intenso processo de concentração capitalista, com nítidas tendências ao monopólio. Diferente da lógica dominante dos demais países da América Latina em que prevalece a reciclagem de capital desvalorizado através do chamado transporte informal, a experiência brasileira também se distancia dos países do capitalismo central caracterizados por pesados investimentos em redes de metrôs urbanos e regionais. No Brasil, os sistemas de metrô e trens urbanos mal chegam a constituir redes abrangentes nos sistemas de transportes urbanos e metropolitanos que seguem, até hoje, amplamente dominados pelas empresas de ônibus. Os modos coletivos

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rodoviários constituem, assim, a principal cena da regulação dos transportes.

Menos evidente do que nos demais serviços, os sistemas de transportes constituem redes de serviços, junto com as redes viárias, com uma articulação mais orgânica do que física, mais gestionária do que técnica. Heterogêneos pois compostos de vários modos interagindo e conflitando permanentemente, são constantemente atravessadas por um perverso jogo de poder, político ou financeiro, entre regulador e regulado. Além disso, interesses coletivos e individuais permeiam as redes de transporte na acirrada disputa entre formas individuais e coletivas de deslocamento cotidiano. É sabido que a motorização individual, em crescimento exponencial no Brasil, é o mais importante elemento explicativo da crise do transporte que, sob diversas formas, se manifesta em todas as cidades do mundo ocidental. No caso brasileiro, poderosos interesses nacionais e internacionais ocultam-se por trás da opção rodoviária que prevalece na organização das redes de transporte coletivo e individual, muito distante de uma perspectiva integradora intermodal tal como está se desenvolvendo em países europeus.

Num jogo intrincado conformado por empresários individuais tensionados entre patrimonialismo familiar e gerenciamento moderno, por poderes públicos que mal chegaram a formular uma política nacional de transportes, e atores políticos locais, produziu-se um pacto sui generis entre operadores privados e poderes públicos, amparados nas fórmulas de permissão precária ou de concessão constantemente renovadas e que hoje se tenta submeter às regras de licitação pública. Em etapa ulterior, deu-se a consolidação de grandes grupos de alcance local, regional e nacional que passaram a dominar parte substantiva dos sistemas de transportes urbanos. Impulsionados pela indústria automobilística e as firmas internacionais de produção e exportação de ônibus e caminhões, empreenderam um poderoso processo de expansão de suas atividades, seja pela sua verticalização, seja pela diversificação setorial, seja ainda pela sua diversificação horizontal na direção de outras atividades econômicas. Estes grupos alimentaram o sindicalismo patronal e formaram lobbies poderosos, pressionado os poderes públicos federais para influenciar os parâmetros políticos e econômicos que determinam a atividade do setor, numa lógica corporativa que se desdobra em nítidas tendências ao monopólio e captura dos mercados.

Quanto às formas de regulação, os transportes foram um dos principais vetores da urbanização das cidades brasileiras, primeiro através das redes privadas e estrangeiras de bondes associadas a capitais imobiliários e articuladas a empresas de eletricidade; depois, a oferta de ônibus foi um fator importante no crescimento periférico das cidades,

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viabilizando os processos legais e clandestinos de assentamento nas regiões mais distantes e fora do alcance dos demais serviços urbanos. A partir dos anos 1950, o predomínio do transporte rodoviário esteve no centro das estratégias de industrialização baseadas do setor automobilístico, com prioridade às redes rodoviárias, investimento municipal limitado, fraca intervenção reguladora sobre os operadores e uma política de delegação do serviço a empresas e grupos privados. No período de regulação centralizada, os governos militares deram ênfase ao plano nacional rodoviário financiado por impostos sobre combustíveis, montaram um Sistema Nacional de Transportes Urbanos e criaram organismos de planejamento e investimentos públicos. No entanto, essa política de transporte urbano, além de carecer de fundos adequados de investimento, não se articulou com políticas urbanas e se manteve distanciada dos municípios. Aplicada de forma desigual nas diversas regiões do país, essa política terminou por favorecer o processo de concentração e modernização das empresas privadas de ônibus. E esteve longe de atender às necessidades da mobilidade cotidiana em cidades em processos acelerados de crescimento populacional, acompanhando o intenso movimento de desenvolvimento e concentração industrial nas regiões metropolitanas.

Após a Constituição de 1988, a “municipalização dos transportes” e os variados experimentos de regulação pública em diversas cidades, além de herdarem os problemas dos períodos anteriores, já se confrontam com os impactos da liberação dos mercados e da reestruturação econômica, e o desemprego em massa que se segue. Entram em cena as numerosas modalidades de transporte semi-coletivo, operadas por “desempregados”, “informais”, “clandestinos” e outros “perueiros”, em disputa acirrada com as empresas de ônibus e confrontos igualmente agudos com os poderes municipais. Na prática, entre a perda de rentabilidade das empresas e a fuga de capitais para outros setores, a presença das “peruas” e das “kombis", “vans” e “sprinters” estaria operando uma desregulação de fato do setor com impactos consideráveis nas condições da mobilidade cotidiana. Como enfatiza Henry, “a regulação dos transportes está diretamente ligada a dois outros domínios de regulação, da moradia e do urbanismo de um lado e, de outro, do trabalho e do emprego. No entanto, nesses dois domínios, as reestruturações econômicas e territoriais em curso, junto com a politização da gestão urbana, induzem mutações de envergadura”. Se a organização do transporte urbano deu-se em um esquema de concentração monopolista em sinergia com os processos de desenvolvimento e concentração industrial, e se ambos estão hoje bloqueados, quais as novas formas de mobilidade estão se configurando

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no cenário atual? E quais modalidades de regulação integradas e multisetoriais estão hoje sendo exigidas face a novos padrões de vida urbana?

A rigor, no caso dos transportes, os desafios da cidadania inscrevem-se por inteiro nas condições da mobilidade cotidiana e seus bloqueios em cidades congestionadas, saturadas, poluídas e inseguras. São essas condições que estão hoje no centro de perplexidades e indagações sobre as relações entre as novas configurações urbanas, práticas cotidianas e as condições de acesso à cidade, seus serviços e seus espaços.

Vista pelo ângulo das práticas urbana e das condições de mobilidade

e acesso à cidade e seus espaços, a questão dos transportes permite explicitar o sentido dos serviços urbanos nos seus usos e suas interações com práticas cotidianas e dinâmicas sociais. Na perspectiva dos cidadãos, os serviços urbanos e suas formas de regulação abrem-se a um outro leque de questões pertinentes às difíceis relações entre cidade e cidadania. E nesta ótica, direitos e regulações públicas inscrevem-se no jogo das relações sociais e nos campos de força que se configuram nos espaços e territórios da cidade.

É nesse sentido que cobra importância as questões tratadas por César Caldeira em seu estudo sobre “Assaltos a passageiros de ônibus no Rio de Janeiro: um estudo sócio-jurídico”. Somando-se às tradicionais desventuras dos deslocamentos cotidianos comentados anteriormente, “os assaltos em ônibus passaram a ser um risco cotidiano e inerente ao uso desse transporte coletivo”. Duplo problema, duplo desafio: de um lado, a violência que afeta os passageiros parece configurar algo como uma terra de ninguém na qual são elididas as responsabilidades envolvidas e a exigência de uma necessária formulação de direitos e garantia. Mas é nisso que também se explicitam os efeitos perversos da prevalência de critérios estritamente privados na gestão dos transportes públicos.

No caso estudado, a cidade do Rio de Janeiro, os assaltos afetam principalmente usuários de transporte intermunicipal e suburbano. Como enfatiza Caldeira, “assaltos a passageiros de coletivos constituem uma prática delituosa particularmente odiosa e injusta porque atinge os setores de trabalhadores empobrecidos por um sistema de economia privada, que irá usar de suas regras e instituições jurídicas para impossibilitá-los ao menos de obter o ressarcimento de suas perdas e danos. O ônus da vitimização é todo do usuário. A empresa transportadora […] é exonerada de responsabilidade por suas atividades que criam riscos e vulnerabilidades à segurança dos passageiros”. Por

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outro lado, há evidências, diz o autor, de um peculiar acordo entre empresas de transportes e redes criminosas, em particular de narcotraficantes para assegurar que assaltos e roubos não configurem riscos financeiros para as empresas e seus empregados. Assim, “o risco e as perdas são deslocadas para o usuário que passa a conviver diariamente com a incerteza quanto à sua incolumidade física ou moral”.

No entanto, nos últimos tempos vem se dando um nítido crescimento da litigiosidade em torno do problema, manifesto em um crescente número de ações nos Tribunais para a reparação de danos. Fenômeno recente e ainda restrito, esse aumento não deixa de ser significativo e indica uma mudança importante na percepção social dos riscos, acompanhando o aumento mais do que expressivo dos casos de violência contra os usuários de ônibus. Altera-se o reconhecimento público do problema e os “roubos em ônibus passaram a ser percebidos como um risco cotidiano e inerente no uso desse transporte coletivo". Estaríamos testemunhando um processo de “construção social da realidade que faz possível ascender as demandas singulares e atomizadas de responsabilização de danos ao plano de um ‘problema social’”. É isso que se inscreve no aumento de “demandas sociais de regulação através de políticas governamentais de segurança pública”. Para além das exigências de maior repressão e prevenção, o fenômeno coloca a questão fundamental da definição das responsabilidades envolvidas. Em outras palavras, o tratamento jurídico do problema concerne dimensões importantes da regulação pública da atividade do transporte coletivo. É nesse sentido que Caldeira examina os casos judiciais e a divergência jurisprudencial nos Tribunais do Rio de Janeiro quanto à reparação dos danos. Se é certo que ainda predomina amplamente a prática judicial de não responsabilizar nem o Estado, nem a empresa transportadora, as posições contrárias que definem a violência como risco inerente à atividade do transportador, é indicativa de novos patamares possíveis para a regulação jurídica do transporte coletivo.

Do ponto de vista das questões tratadas no conjunto deste dossiê, vale notar a importância de um princípio de regulação pública que opera em um terreno diretamente afeito aos direitos e à cidadania, O problema da violência nos transportes está a indicar uma exigência de regulação que vai além, muito além, dos estritos termos do contrato civil que impera nas agências reguladoras dos serviços em rede discutidas anteriormente e que tampouco se esgota nos termos estritos do direito privado e da responsabilidade civil. Como afirma Caldeira, “o direito precisa ser interpretado e aplicado a partir dos princípios que se

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encontram, de maneira expressa ou latente, no ordenamento jurídico. A inviolabilidade da vida, a integridade física e moral da pessoa humana, a incolumidade do passageiro são princípios que devem nortear, no transporte coletivo, a reparação de danos orientada pela ética e pelo interesse público”. E é nesse sentido que se coloca a exigência, ao mesmo tempo jurídica e ética, de “detectar os setores e problemas que, sob o impacto da sociabilidade violenta, imponham ‘responsabilidades especiais’ que precisam ser ponderadas dentro do campo da responsabilidade civil”.

* * * Com diversidade de enfoques e diferentes campos empíricos de

referência, são evidentes as preocupações comuns que atravessam os textos apresentados neste Anuário. A discussão aqui realizada sobre os serviços urbanos está longe de ser completa. Não contempla áreas fundamentais como é o caso da coleta de lixo ou a política habitacional, tampouco serviços como saúde e educação, campo de conflitos urbanos recorrentes e terreno de invenção política igualmente importante na prática de fóruns públicos, de conselhos e procedimentos de gestão partilhada de fundos públicos pertinentes a esses e outros serviços. Mais recentemente, políticas de emprego e renda vêm se configurando como um terreno de experimentação política significativa face à crescente exclusão social que campeia nas cidades brasileiras.

Ao concentrar aqui a discussão nos serviços em rede, procurou-se trabalhar com uma visão ampliada da própria noção de rede. Além de suas dimensões materiais e técnicas (evidentes nos casos de energia, água, saneamento e telecomunicações), as redes também se configuram no plano administrativo, gerencial, político e institucional. É o que se evidencia nos transportes por via de um muito peculiar cruzamento entre diversas sub-redes de transportes coletivos e individuais e que deveriam, em princípio, compor uma rede multi-modal integrada. Por outro lado, o desmembramento dos sistemas abrangentes e articulados de redes de saneamento, energia e telecomunicações, induzido pelas privatizações em curso, pode desembocar em uma fragmentação que, se efetivada, haverá de erodir os princípios unificadores que sustentam a própria noção de serviço urbano e viabilizam a administração política da cidade.

As redes urbanas, sejam quais forem as suas configurações materiais e institucionais, compõem as bases sobre a quais se dão os atuais processos de construção e reconfiguração do território urbano. Mas compõem igualmente o cenário de articulações políticas e conflitos em torno de tentativas de ampliação democrática da cidadania na cidade. Se é verdade que testemunhamos hoje o retraimento do Estado,

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nem por isso a operação das redes pode se reduzir a agências reguladoras montadas ad hoc ou mesmo ex post às privatizações e cujo funcionamento se distancia muito do modelo anglo-saxão no qual se inspiram. Tampouco o exercício da cidadania encerra-se no nosso frágil Código de defesa do direito do consumidor. Na dinâmica social e política do Brasil atual, as articulações, aliás também em rede, de agentes sociais envolvidos nas múltiplas facetas do direito à cidade também compõem o campo dos serviços urbanos e dos direitos sociais.

Assim como em outros países sob o impacto da agenda neoliberal, a conjuntura brasileira é marcada pela abdicação de políticas urbanas capazes de promover o ordenamento territorial e o planejamento das cidades, de tal forma que, hoje, os espaços urbanos são crescentemente capturados por capitais globalizados que dominam os mercados de produção e consumo das cidades. No entanto, práticas urbanas diversas vêm demarcando um campo de possibilidades em que se inscrevem alternativas à essa via mercantil desorganizadora do espaço urbano. Conquista dos movimentos e articulações por uma reforma urbana democrática, a Constituição de 1988 consagra um capítulo sobre Política urbana (Título VII, Cap. II), resumido a dois artigos: um, que define o objetivo de “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes" (artigo 182) e outro que permite a aquisição legal de terrenos com até 250m2 “usufrutuados por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição” (artigo 183). É pouco, certamente. No entanto, desde então muitos esforços e intensa atuação junto aos poderes legislativos e executivos foram necessários para uma regulamentação ampla desse capítulo institucional. O resultado, treze anos depois, configurou-se na recente aprovação do Estatuto da Cidade (Lei 10.257 de 10 de julho de 2001).

Celebrada como uma importante conquista popular, nos seus cinco capítulos esta lei (1°) define as diretrizes gerais do estatuto da cidade, (2°) dispõe sobre os instrumentos de política urbana, (3°) estabelece a obrigatoriedade e os principais conteúdos do Plano Diretor de cada cidade, (4°) estabelece os princípios da gestão democrática da cidade e (5°) define as disposições gerais do direito de preempção. Estabelecido nas formas legais, o Estatuto da Cidade define um novo campo de interação entre poderes públicos e sociedade civil que contempla, entre outros temas, os serviços urbanos:

- garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações (Cap. I Art. 2 inc. I);

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- oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às caraterísticas locais (Cap. I Art. 2 inc. V);

- [compete à União] instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos locais (Cap. I Art. 3 Inc. IV).

E ainda: - Os organismos gestores das regiões metropolitanas e aglomerações

urbanas incluirão obrigatória e significativa participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania (Cap. V Art. 45).

Junto com os processos organizativos da população nos movimentos e conselhos sociais, nos fóruns de cidadania de alcance local, municipal ou regional, e mais recentemente, na prática do Orçamento Participativo em diversas cidades brasileiras, as novas normas reguladoras abrem um campo de possibilidades cujo destino depende fundamentalmente das práticas urbanas. De partida, as diretrizes do novo Estatuto da Cidade confrontam-se de forma evidente com as lógicas setoriais de serviços urbanos discutidas nos textos desse dossiê. Nos primeiros debates públicos sobre o novo texto legal, já se formularam propostas de constituição de um Fundo nacional para o desenvolvimento urbano ou de fundos especiais para habitação, saneamento e transportes, entre outros. Nesse caso, o Estatuto da Cidade dá amparo legal a proposições e reivindicações que vêm sendo formuladas desde o final dos anos 1980. Outras propostas dizem respeito à criação ou consolidação das regiões metropolitanas (cerca de 20, abrangendo 40% da população urbana) nas quais se inscrevem as redes econômicas e de serviços, ao mesmo tempo em que coloca a urgência de se definir recursos e instrumentos para arbitrar as disputas e complicadas questões envolvidas nas prerrogativas dos poderes municipal, estadual e federal.

Neste encontro entre lei, direitos e sociedade, explicita-se a importância de se recolocar a análise dos serviços urbanos no centro das relações entre cidade e cidadania, das práticas urbanas e das redes societárias que as sustentam. Mas essa é uma articulação que também evidencia a dimensão simbólica da cidadania, sendo o “direito à cidade”, como já dizia Henri Lefèvre, um mito que incita à criatividade social.

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Público e privado na oferta de infra-estrutura urbana no brasil

Ricardo Toledo Silva6 Resumo – Este capítulo trata das formas de domínio público e

privado sobre as redes de infra-estrutura e serviços a elas associados. A privatização da infra-estrutura, que se impôs como política predominante na maioria dos países capitalistas avançados e emergentes nas décadas de 1980 e 90, é vista como parte de um processo mais amplo de reforma gerencial do Estado, no qual mais do que recepcionar agentes executores privados, o setor público passa ele mesmo a ser gerenciado segundo uma lógica privada. Enfatiza-se o caráter normativo e sistemático do processo de privatização associado ao ajuste econômico dos países capitalistas periféricos, no sentido de transferir para a esfera privada não só o domínio material sobre os serviços, mas principalmente o domínio normativo. A construção desse raciocínio se faz com base em reflexões teóricas e em evidências empíricas que mostram não ter sido o desmonte dos controles típicos do Estado intervencionista correspondido por um amadurecimento de novos instrumentos que associassem a eficiência da administração gerencial ao necessário controle público da coisa pública. A expectativa que se tem depositado sobre os chamados “marcos regulatórios” setoriais, predominantemente afetos a aspectos econômicos das concessões, parece exagerada quanto às reais perspectivas que possam ter na salvaguarda do interesse público.

A regulação pública da infra-estrutura e dos serviços em rede abrange um complexo institucional mais amplo que os novos instrumentos setoriais de regulação. Esses serviços têm papel central na criação de novas oportunidades de desenvolvimento urbano e regional e – como tal – interferem diretamente sobre o ambiente natural e construído que constitui patrimônio de todos. Isso justifica sua pertinência aos sistemas reguladores de meio ambiente e de política urbana. Por suas características peculiares de gerar espaços urbanos e regionais privilegiados, criam também novas categorias de dominação econômica privada ainda mal caracterizadas – mas nem por isso pouco importantes – de formação de monopólios de serviços múltiplos, o que os remete para a regulação de defesa da concorrência. Finalmente, dado o caráter predominantemente comercial dos instrumentos de regulação

6 Arquiteto e Urbanista. Professor Titular do Departamento de Tecnologia da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Informações Urbanas – INFURB, da mesma Universidade.

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setorial que se formam sob a égide da privatização, o sistema regulador que na prática tem respondido pelos interesses dos usuários é o de direitos do consumidor. A tudo isso soma-se a maior complexidade de determinação dos pisos de demanda essencial para os serviços, em função das novas necessidades criadas pelo trabalho doméstico de uma crescente parcela da população excluída do emprego formal. Nesses termos uma nova regulação pública sobre a infra-estrutura e os serviços em rede apenas se afigura possível na perspectiva de um amplo e articulado controle social sobre os diferentes sistemas institucionais mencionados, o que reconduz o debate para o âmbito dos direitos sociais e de sua inserção no conjunto do aparelho de Estado. O debate e a participação eventualmente restritos à formalidade dos “marcos regulatórios” setoriais implica abrir mão da dimensão pública dos serviços e de seus desdobramentos maiores nas esferas social, urbanística e ambiental.

Fundamentos da organização institucional dos serviços no Brasil

A estrutura de oferta da infra-estrutura pública e dos serviços dela dependentes é determinada pelos sistemas de financiamento, de desenvolvimento tecnológico e de organização institucional que os condicionam. Estes três sistemas são interdependentes e as decisões tomadas no âmbito de qualquer um deles inevitavelmente tem impacto sobre os demais. Em princípio não há uma relação hierárquica entre eles, dado que cada um – teoricamente – é vinculado a uma área decisória de poder na estrutura governamental: o de financiamento à área econômica, o tecnológico à área setorial do serviço (energia, telecomunicações, etc.) e o institucional à administração do Estado. Na prática, entretanto, a estrutura de oferta dos serviços de infra-estrutura no Brasil tem sido predominantemente determinada a partir das estratégias de financiamento, subordinando os sistemas tecnológico e institucional à lógica econômica. Isto vale tanto para os modelos de oferta para-estatal, que teve seu apogeu nos anos de regime autoritário, como para os de oferta estatal direta que se delineavam ao longo das décadas de 1940 e 50, bem assim para os de oferta privada anteriores à década de 1930 e posteriores à de 1990.

À exceção de um breve lapso entre a entrada em vigor do Código de Águas, em 1934, e a Constituição do Estado Novo de 1937, a institucionalização dos serviços públicos no Brasil sempre foi construída a partir da estrutura de financiamento. Isso faz com que sobrevivência do quadro institucional dependa da viabilidade financeira

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do modelo particular a que se refere e em caso de falência deste, perde-se também aquele. Essa tendência, no Brasil, foi muito acentuada após a vigência do decreto lei 200 de 1967 7. Essa precedência da lógica de financiamento difere substancialmente do caso dos processos de institucionalização que tiveram lugar em países capitalistas avançados, nos quais os princípios doutrinários do Estado de direito precederam a casuística econômico financeira.

É emblemático o exemplo dos EUA, que tem nas origens de seus sistemas reguladores uma nítida precedência de princípios doutrinários, abertamente refratários à racionalidade econômica que procurava se impor. Em estudo comparativo entre os sistemas de regulação econômica britânico e norte-americano, desde seus fundamentos, Neale (1960) enfatiza a intransigência dos tribunais americanos na defesa dos princípios éticos da democracia em causas que envolviam práticas de monopólio e diferentes formas de abuso do poder econômico. O Tribunal Supremo dos Estados Unidos, nas primeiras décadas do Século XX, manifestou-se em diversas oportunidades de forma claramente antagônica ao pensamento econômico da época, que advogava a racionalidade de práticas de monopólio em nome de possíveis ganhos de escala e de escopo. Essa intransigência influenciou decisivamente a formação da cultura reguladora dos serviços públicos naquele país, vigente até a reforma neo-conservadora iniciada pelo Governo Reagan na década de 1980. Este caráter ético da regulação americana é ainda mais significativo quando consideradas as raízes privatistas da cultura daquele país, abordadas na seção seguinte deste capítulo.

No caso brasileiro a base doutrinária do Código de Águas (Decreto 24643/ 34), detalhadamente comentada por Alfredo Valladão em sua exposição de motivos, procurou aproveitar o melhor e mais atual da cultura reguladora americana da época, incorporando princípios de democratização de acesso e de intervencionismo estatal típicos do new deal de Roosevelt. A sociedade brasileira passava então por mudanças profundas e a definição de domínio público sobre os bens e serviços que se afiguravam essenciais ao fortalecimento da nova economia urbana se alinhava com os princípios liberais das recentes revoluções de 1930 e 1932. No Código de Águas, pela primeira vez se estabeleciam normas de conduta sobre o conteúdo dos serviços e sua função social, assim como se estabeleciam limites à apropriação de lucros por parte dos concessionários.

7 O decreto lei 200 determinou o conteúdo da reforma administrativa que viria a privilegiar as entidades da administração indireta – em particular, as empresas estatais – como principal braço executivo do Governo. Mais adiante, neste capítulo, seu conteúdo é abordado em maior detalhe.

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Em sua formulação original o Código de Águas previa uma transferência significativa de competência reguladora aos estados, em particular para os que na época detinham clara dianteira na capacidade de geração hidrelétrica: São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. O Código inovava ao associar o instituto da concessão – típico do direito administrativo de inspiração francesa – à regulação pela taxa de retorno, originária do sistema das comissões reguladoras americanas. Por esse motivo alguns autores, como Mukai (1995) reconhecem no Código de Águas um caráter híbrido. Em sua formulação original ressalta, sobretudo, o equilíbrio entre os princípios gerais de ética e de racionalidade econômica, passando pela preocupação em desenvolver tecnologia nacional na área, conforme determinações explícitas sobre a composição de corpo técnico das empresas concessionárias. Por isso a afirmação anterior de que por um breve lapso, nos anos imediatamente sucessivos à entrada em vigor do Código, houve um equilíbrio entre os sistemas institucional, tecnológico e econômico-financeiro, contrastando com a hegemonia da lógica econômica que – a despeito da eventual troca de sinais – no Brasil tem caracterizado tanto os movimentos estatizantes como os privatizantes.

Com a Constituição de 1937, baixada pelo regime ditatorial do Estado Novo, o Código perdeu muito de seu caráter descentralizado – no que respeita a transferência de competência aos estados – e de sua autonomia institucional relativamente aos esquemas de financiamento. A ênfase que já tinha no uso energético das águas a partir da inclusão do Livro III, ao longo do processo de elaboração, tornou-se ainda maior com a centralização da política energética no Estado Novo, em detrimento da eficácia de dispositivos que regulavam outros usos da água.

Em que pese as limitações apontadas, o Código de Águas foi elemento determinante de toda a cultura de regulação e controle dos serviços públicos em rede no Brasil, ao longo de quase 60 anos. A aplicação da taxa de retorno como forma de equilíbrio financeiro das concessões consagrou-se em praticamente todos os campos da infra-estrutura e dos serviços em rede, assim como as formas de controle de processo associadas a essa modalidade de regulação. É próprio desta que os controles do poder concedente sobre o concessionário se façam mediante acompanhamento contínuo de suas ações, uma vez que a remuneração da concessão deriva das despesas de investimento e custeio realizadas na prestação do serviço. Este acompanhamento contínuo difere dos controles associados ao regime de regulação pelo preço, que teoricamente prescinde da avaliação de processo – ações empreendidas pelo concessionário – em favor da avaliação de

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resultados, sem entrar no mérito relativo aos meios empregados para atingi-los.

À parte possíveis vantagens e desvantagens de cada um desses dois modos básicos de regulação econômica, é importante reconhecer que eles condicionam as formas de acompanhamento técnico dos serviços e que, no Brasil, todo o aparelhamento da máquina pública se deu sobre a cultura do acompanhamento contínuo. E isso tem implicações sérias quando as regras desse jogo são alteradas com base exclusiva em uma motivação econômica, sem que a administração do Estado tenha se preparado para exercer novas formas de controle.

Um outro aspecto importante na relação entre os sistemas institucional, tecnológico e econômico definidores da estrutura de oferta dos serviços diz respeito às finalidades destes, como parte das condições gerais para a produção econômica ou para a reprodução social. Todo sistema de infra-estrutura e serviços públicos dele derivados tem o duplo caráter de condição geral para a produção econômica e para a reprodução social. Essas categorias são baseadas na teoria marxista e existe uma vasta literatura analítica a respeito, que ora contrapõe os ambientes construídos para a produção e para o consumo (Harvey 1978) e ora contrapõe os processos de acumulação capitalista e legitimação política (O’Connor 1973). Para efeito de nossa análise não interessa aprofundar no refinamento teórico sobre essas categorias, mas entender que existe uma dualidade básica de papéis que as capacidades de infra-estrutura cumprem nos sistemas regionais e urbanos por onde se estendem. Ambos papéis são funcionais para o processo capitalista: a condição geral para produção – uso das capacidades instaladas diretamente no processo produtivo – determina os horizontes de acumulação tangíveis em face da tecnologia disponível naquele momento; a condição geral para reprodução social determina quanto das necessidades básicas do trabalhador será pago diretamente pelo empregador na forma de salário e quanto delas será absorvido pela sociedade na forma de serviços prestados. Alguns autores chamam essa parcela absorvida pela sociedade na forma de serviços, de salário indireto.

No processo de formação da oferta dos serviços públicos em rede no Brasil, sempre foi clara a precedência conferida pelo Estado à provisão de condições gerais diretamente relacionadas à produção capitalista. A lógica do desenvolvimento se impunha como mote principal da expansão da oferta de infra-estrutura e inspirava os modelos de financiamento que – a reboque – determinavam o desenho institucional de cada sistema setorial. Esta visão prevaleceu ao longo dos conturbados anos 40 e 50, quando se alternavam e combinavam

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modelos de organização da oferta de corte estatal e privado, assim como a partir dos anos 60, quando passava a prevalecer o modelo de oferta para-estatal, baseado nas empresas estatais ou de economia mista. O caso do setor elétrico é bastante elucidativo sobre esse processo e sua evolução mostra as dualidades de precedência da produção econômica sobre a reprodução social e da limitação tênue que se estabelece entre atividade econômica e serviço público.

As normas institucionais e as políticas governamentais que se consolidavam no período que vai do fim do Estado Novo (1945) à acelerada expansão da atividade industrial da década de 1950, convergiam para um modelo de prestação de serviços mais e mais baseado na constituição e presença de entidades estatais. Esse movimento resultou de uma combinação de tendências que variavam da liberalização da regulação existente (com vistas a estimular o investimento privado) à ampla nacionalização dos serviços. Durante o Governo Dutra (1946 - 50) a orientação era mais pela primeira, em especial no que respeita à política tarifária, da qual se pretendia eliminar os condicionantes de remuneração pelo custo e os limites a taxa de retorno. No Governo Vargas (constitucional, de 1951 a 54), a balança pendeu mais para o lado da nacionalização, no âmbito de um ideário nacionalista e desenvolvimentista segundo o qual caberia ao Estado prover as condições estratégicas para o desenvolvimento econômico. No Governo Kubitschek (1956-60) consolidou-se a opção por fortalecer o Estado e suas entidades na provisão da infra-estrutura, sem tanta ênfase no ideário nacionalista do início da década. Na divisão de papéis da política de industrialização de Kubitschek, o encolhimento da participação privada - especialmente estrangeira - na produção e gestão da infra-estrutura pública, seria largamente compensada por um papel proeminente no novo perfil da indústria de transformação, que passava a abrigar a produção de bens de consumo duráveis. Mas mesmo no Governo JK, a aceitação dessas teses foi longe de consensual: a emissão do decreto-lei 41019, em 1957, teve lugar como um posicionamento do Executivo8 para por fim aos debates que se arrastavam no Congresso Nacional sobre o projeto de lei 1898, de 1956, que em essência eliminaria a obrigatoriedade de reversão dos ativos das grandes

8 O decreto-lei 41019, de 1957, chamado Regulamento dos Serviços de Energia Elétrica, foi uma das peças reguladoras chave do setor de energia elétrica, pois na prática, era a única regulamentação abrangente e orgânica do disposto no Código de Águas. Essa regulamentação, prevista quando da emissão do Código em 1934, tardou mais de 20 anos, a despeito do grande número de regulamentos parciais emitidos nesse período. O decreto-lei 41019 foi emitido com 191 artigos, disciplinando procedimentos técnicos e administrativos relativos à prestação dos serviços de eletricidade, ao aproveitamento energético dos cursos d'água, às concessão e autorização e às categorias de consumidores.

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empresas estrangeiras ao Estado, conforme previsto no Código das Águas e nos contratos de concessão (Gomes 1986 p 42 e 43).

A despeito do descenso, o conceito de oferta estatal da infra-estrutura se consolidava no Governo JK para o setor de energia elétrica e estabelecia princípios de gestão para-estatal que pouco mais tarde prevaleceriam também em outros setores. Sua estratégia de ação incorporava princípios do Plano Nacional de Eletrificação, de 1954, quanto a expansão da oferta estatal em geração e transmissão, convivendo com as concessionárias privadas na distribuição. Essa convivência teria contribuído para um relativo arrefecimento dos embates entre as correntes privatista e nacionalista, viabilizando a expansão e a institucionalização da presença estatal no setor.

Os problemas de compatibilização tecnológica e integração de sistemas, que se avolumaram com a expansão de oferta das décadas de 1930 a 50, somente viriam a ser resolvidos a partir da afirmação do modelo de empresas estatais. As normas relativas a equalização de freqüência, por exemplo, editadas no decreto-lei 852 de 1938, somente viriam a ser aplicadas muito mais tarde. Em 1942, o próprio governo reconhecia as dificuldades para a padronização de freqüências, prorrogando por tempo indeterminado o prazo para sua unificação (Centro da Memória da Eletricidade 1988, p 88). Os principais elementos do modelo técnico e gerencial do setor de energia elétrica que se consolidava ao longo da década de 1950 poderiam ser resumidos em:

a) viabilização econômico financeira a partir da destinação de receita tributária vinculada (imposto único) e, mais tarde, com a prática de política tarifária realista, no que respeita os grandes agregados regionais dos serviços;

b) viabilização tecnológica baseada nas crescentes interligação, padronização e integração entre sistemas, permitindo que áreas a princípio inviáveis fossem cobertas mediante a prática de subsídios cruzados. Esses princípios já estavam presentes no Plano Nacional de Eletricidade, de autoria do CNAEE (1946) e eram baseados na concepção de regiões auto-suficientes em recursos energéticos, a partir das quais se criariam os sistemas interligados regionais (Centro da Memória da Eletricidade 1988, p 92);

c) realização de investimentos estatais maciços nos segmentos de geração e transmissão de energia elétrica.

No âmbito setorial, a consolidação do modelo de oferta estatal em grandes sistemas regionais interligados é marcada pela criação da

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Eletrobrás, em 1962. É a partir desse evento que o modelo concebido ao longo da década de 1950, de intervenção do Estado no planejamento e na administração dos serviços, afirma-se como hegemônico. A Eletrobrás formava uma holding que viria a absorver as empresas estatais federais até então formadas e as que mais tarde se constituiriam. Esse conceito de holding já estava presente no Plano de Eletrificação de Minas Gerais, de 1950, e seria aplicado sobre empresas de economia mista formadas no estado. Nesse sentido, a estrutura da Cemig, na forma de companhia holding estatal, constitui o primeiro precedente do que mais tarde se afirmaria como modelo de gestão nacional, centralizado na Eletrobrás.

Isso contribuiu para que o modelo gerencial que preside o sistema elétrico brasileiro desde a criação da Eletrobrás tenha se dirigido para um arcabouço institucional bastante centralizado, em que as ações dos estados e de suas entidades são coordenadas e reguladas pela esfera federal. Não se pode deixar de lado, ao analisar esse processo, os condicionantes técnicos que contribuem para essa estrutura: a geração de base hídrica, em unidades cada vez maiores, e a viabilização de equalizações tarifárias por grandes agregados regionais.

A fase de consolidação do sistema Eletrobrás e os grandes saltos na expansão de capacidade ofertada vêm ocorrer sob a égide de um regime autoritário, que teve como uma de suas principais características no plano administrativo, a supervalorização das estruturas executivas indiretas e o esvaziamento das funções públicas na regulação dos serviços. A reforma administrativa que se seguiu ao decreto-lei 200, de 1967 teve como uma de suas principais características a transferência maciça de atribuições executivas do Estado para empresas estatais. No caso do setor de energia elétrica, as bases desse modelo já estavam lançadas desde a criação da Eletrobrás, que teve sua concepção original anterior à emissão do DL 200/67. No entanto, sua estrutura não foi infensa à profunda mudança de eixo que aquela reforma encerrava.

A concepção original procurava trazer o conjunto das decisões sobre oferta e a própria gestão dessa oferta para dentro da esfera estatal, em nome da eficácia da ação pública e sem uma distinção clara de regime operativo das entidades estatais de direito público e de direito privado. Sob a égide do DL 200, os sistemas passaram a ser orientados em direção à eficiência, à auto-sustentação financeira e à ampliação da participação privada na formação de suas bases físicas. Essa mudança de rumo foi refletida na própria organização interna da Eletrobrás, que passou a contar com uma diretoria de gestão empresarial, encarregada de supervisionar as empresas do sistema, e com uma diretoria de coordenação, encarregada de coordenar assuntos setoriais.

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Mas o impacto mais profundo da reorganização levada a efeito a partir do DL 200 se fez presente, no setor de energia elétrica e nos demais, pela ênfase à subordinação da estrutura institucional aos instrumentos de financiamento e pela crescente absorção, por parte das entidades executivas centrais, de atribuições típicas de regulação dos sistemas. Em que pese a preservação formal de competências reguladoras na estrutura da Administração Direta, a centralização dos instrumentos econômicos e das funções de planejamento setorial nas empresas centrais dos sistemas acabou por promover a transferência de fato, para estas, de importantes parcelas do poder de regulação e controle que de direito pertenceria à Administração Direta.

Além do sistema Eletrobrás, cuja criação antecede o decreto-lei 200/67, definiram-se a partir deste outros modelos setoriais de regulação análogos ao do setor elétrico no que tange a estrutura hierárquica e administrativa centrada em poderosas entidades executivas. Nas telecomunicações, formou-se o sistema Telebrás, que à semelhança da Eletrobrás constituiu-se como empresa holding, coordenando o conjunto de operadores regionais – neste caso formado por subsidiárias daquela e não por eventuais concessionárias estaduais, como no caso do setor elétrico. No setor de saneamento o modelo de gestão para-estatal envolveu a formação das companhias estaduais de saneamento básico, que se reportavam ao poderoso Sistema Financeiro do Saneamento – SFS – centralizado no BNH. Em comum, o deslocamento do eixo de regulação e controle para a entidade central responsável pela execução dos esquemas de financiamento setorial e o esvaziamento da administração pública direta em suas capacidades de planejar, regular e fiscalizar os serviços.

Todas as tentativas de reestruturação institucional levadas a efeito posteriormente à vigência do modelo de oferta estatal têm esbarrado na incompatibilidade entre os procedimentos de operação setorial que permaneceram, a despeito do esgotamento das fontes originais de financiamento, e os instrumentos anacrônicos de política, regulação e controle exercidos por um poder público esvaziado de suas funções típicas de Estado. E aqui emerge o desdobramento mais grave do modelo de organização das atividades estatais que sucedeu o DL 200/67: o ordenamento institucional não sobrevive ao esgotamento da equação econômico financeira da qual tornou-se simbioticamente dependente. Por outro lado também não se presta a um retorno para os órgãos setoriais da Administração Direta, pois estes foram debilitados pela própria força dos sistemas para-estatais, que a si avocaram de fato o exercício de uma regulação pública que por direito não lhes pertencia.

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É neste estado de esvaziamento institucional que se processa uma re-regulação predominantemente comercial dos serviços, sob a égide privatista do neo-liberalismo. As motivações políticas desse modelo têm origem mais recente nos marcantes movimentos neo-conservadores que tiveram lugar no centro do capitalismo mundial entre fins dos anos 1970 início dos 90: os governos Thatcher / Major na Grã-Bretanha e Reagan / Bush nos EUA. O privatismo neo-conservador assumido como bandeira política desses países não demorou a impor-se como modelo hegemônico à periferia do capitalismo, assumido como diretriz central das agências de desenvolvimento nas políticas de ajuste econômico.

Privatização da infra-estrutura como postura política

Da análise precedente sobre a evolução da infra-estrutura e dos serviços em rede no Brasil, fica claro que o acesso público a estes é função de uma trama complexa de relações institucionais, econômicas, tecnológicas e políticas. Sob o conceito genérico de privatização se tem designado diferentes alternativas de afastamento do Estado da provisão dos serviços, associadas ao processo de ajuste econômico que compreende a ortodoxia monetária e a abertura dos mercados financeiros internos a investimentos estrangeiros. Um resumo esquemático e aproximado das medidas que geralmente integram as políticas de ajuste em distintos países da periferia capitalista é dado pelas diretrizes básicas do “Consenso de Washington”, conforme expressão cunhada no final dos anos 80 por John Williamson, então membro do Institute for International Economics. As medidas associadas ao “Consenso” referem-se a um pacote de dez itens vistos pelo Governo do EUA e pelas agências internacionais com sede em Washington – dentre elas o FMI, o BIRD e o BID – como elementos necessários de um primeiro estágio de reforma política, a integrarem as disposições relativas ao ajuste econômico determinadas pelo FMI. Os dez pontos são:

“... • Disciplina fiscal: critérios estritos para limitar o déficit orçamentário. • Prioridades de gasto público: deixando de lado os subsídios e as

despesas com a administração, para concentrar-se em ‘campos mais carentes com alto retorno econômico e potencial para melhorar a distribuição de renda, como educação e saúde básicas e infra-estrutura’.

• Reforma fiscal: ampliação da base fiscal e corte dos marginal tax rates.

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• Liberalização financeira: taxas de juros determinadas preferencialmente pelo mercado.

• Taxas de câmbio: orientadas a induzir o rápido crescimento de exportações não tradicionais.

• Liberalização do comércio: tarifas e não cotas; redução das tarifas para cerca de 10% em um prazo de 10 anos.

• Investimento estrangeiro direto: fim das barreiras e equiparação com as empresas nacionais.

• Privatização: empresas estatais devem ser privatizadas. • Desregulação: eliminação da regulação que impeça a entrada de

novas empresas ou restrinjam a competição, limitando a regulação remanescente a critérios de Segurança, proteção ambiental, ou supervisão preventiva de instituições financeiras.

• Direitos de propriedade: direitos assegurados sem custo excessivo, inclusive para o setor informal.”

(Williamson – The political economy of policy reform, em Martin 2000:05, tradução livre) Nesse contexto a privatização dos serviços públicos não pode ser

vista como mero arranjo gerencial isolado, mas como parte de uma política maior, que envolve uma redistribuição de poder entre agentes estatais e privados na definição de prioridades e critérios. Esse posicionamento das agências internacionais, que resulta em um receituário bastante estrito aplicado essencialmente aos países chamados emergentes, tem raízes em mudanças importantes que então se processavam no centro do sistema capitalista mundial. Nos países anglo-saxões, em fins da década de 1970, o neo-conservadorismo de Thatcher na Grã-Bretanha e de Reagan nos EUA determinou uma reversão do intervencionismo estatal keynesiano aos ideais privatistas (Barnekov 1989). Essa reversão tem uma dimensão mais abrangente que o mero uso instrumental da forma gerencial privada no setor público; ela sinaliza uma nova organização política, na qual os agentes privados passam a ter novamente uma presença direta nos núcleos de poder político.

“... Para os defensores [da privatização], qualquer lista de iniciativas privatizantes será sempre incompleta, uma vez que a privatização reflete uma orientação política geral, mais que um conjunto finito de alternativas setoriais. (...) [Para eles] a superioridade do setor privado é mais do que uma hipótese operacional a ser testada por meio de experimentos com diferentes arranjos na relação público / privado para a produção e distribuição de bens e serviços. Mais que isso, é um imperativo normativo que emerge da tradição privatista e liga cada iniciativa específica de privatização a uma preferência política sistemática pelas

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instituições de mercado no processo decisório e na execução das políticas públicas.”

(Barnekov 1989 p. 4, tradução livre). Nos países anglo-saxões a volta a uma abordagem privatista para os

serviços públicos, trazida pelos governos Thatcher e Reagan, corresponde a uma revalorização política da iniciativa privada que nas culturas britânica e norte-americana sempre foi considerada o motor principal da economia e o principal elemento de coesão social. O componente estranho e excepcional, naqueles casos, foi a ingerência ampliada do Estado na oferta dos serviços públicos, que se deu a partir do entre-guerras nos EUA e a partir do fim da Segunda Guerra na Inglaterra. Mas essa tradição privatista na organização da oferta não é igualmente predominante em países avançados da Europa continental, como França e Alemanha9, e em países de cultura ibérica, incluindo a maioria da América Latina.

Tanto em Portugal e Espanha como nos países ibero-americanos, o Estado teve papel central na formação dos capitais e na estruturação das condições gerais para a produção. No Brasil essa relação entre Estado e elites econômicas foi bem caracterizada por Faoro (1989) sob o conceito de patrimonialismo. Este, se por um lado envolve uma apropriação privada da coisa pública formalmente identificada com a valorização da propriedade privada na base da ordem social, por outro nada tem a ver com as raízes empreendedoras do privatismo anglo-saxão. E o problema do privatismo dos anos 90, quando diretamente transferido do contexto anglo-saxão para países de passado patrimonialista, parece estar no perigo de que, ao eliminar-se as salvaguardas burocráticas que garantiam – ao menos no plano formal – o controle público do Estado, se desperte não para um privatismo empreendedor do tipo anglo-saxão, mas para uma reedição do velho patrimonialismo que nunca chegou a ser totalmente superado.

A privatização como processo amplo de valorização das forças de mercado abrange uma gama extensa de alternativas específicas, que não necessariamente envolvem uma transferência de propriedade de ativos. Na discussão que se polariza em torno de políticas “privatizantes” x “estatizantes” é comum a argumentação, por parte dos defensores das primeiras, de que muitos dos processos de concessão não constituem privatização, uma vez que os ativos permanecem sob propriedade estatal, ou a ela serão revertidos ao final da concessão. Por outro lado,

9 Ainda que nos países europeus continentais se tenham formado, quando da generalização da oferta dos serviços, fortes grupos de capital privado dedicados à construção da infra-estrutura pública (por exemplo Lyonnaise e Generale des Eaux na França; AEG e Siemens na Alemanha), a estrutura da oferta como um todo sempre foi controlada pelo Estado.

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da parte dos contrários à privatização, também são freqüentes os exageros na consideração de eventuais práticas privatizantes, ao considerar como tal quaisquer iniciativas de colaboração entre público e privado. Da definição acima citada é fundamental ressaltar, no contexto do privatismo, o caráter sistemático e normativo da inserção privada no processo decisório público.

Quando consideradas essas duas dimensões – normativa e sistemática – é possível enxergar com maior clareza o peso específico de cada modalidade de ação tomada como privatizante. O instituto da concessão, por exemplo, pode ser utilizado – como tem sido ao longo de décadas no Brasil – no contexto de políticas predominantemente estatais e regidas por normas administrativas que reservam ao Estado o poder de planejar, controlar e fiscalizar sua execução em nome do interesse público. Neste caso a transferência de responsabilidades limita-se ao plano operacional e não envolve uma participação nem sistemática e nem normativa dos agentes privados no processo decisório da política pública. O mesmo se aplica a diferentes formas de contratação de serviços privados e a uma grande variedade de iniciativas de cooperação – por exemplo em pesquisa e desenvolvimento tecnológico – que não implicam necessariamente no envolvimento normativo e sistemático da parte privada no processo decisório.

Por outro lado, práticas que envolvem pouco de uma participação privada direta na execução podem ser sistematicamente submetidas à ação normativa de agentes privados e, como tal, incorporarem sua lógica na coisa pública. Isto ocorre na maioria dos casos em que serviços públicos ofertados pelo Estado procuram emular a ação privada em busca de maior eficiência e aprovação. Embora não exista uma inserção direta do agente privado naquele serviço em particular, existe a assunção, da parte do Estado, de valores e de uma lógica de oferta típicos da ação privada. A perda do caráter público do serviço, em casos como esse, pode ser ilustrada mediante o exemplo recorrente – em vários países latino-americanos – de experiências de melhoria de atendimento nos sistemas de saúde10. Ao incorporar práticas privadas de avaliação de satisfação dos usuários em substituição à avaliação de eficácia pública, os serviços granjeiam um melhor nível de aceitação e nem por isso cumprem melhor seus objetivos finais na melhoria de saúde pública. Muitas vezes as reações positivas dos usuários dizem respeito a melhorias na fase de pré-atendimento (espera, cadastro,

10 Os casos que dão origem ao exemplo citado foram analisados pelo autor com relação a estruturas governamentais de avaliação no Brasil, no Chile e na Argentina, como parte do projeto BRA 97/039 - FORTALECIMENTO DA FUNÇÃO AVALIAÇÃO NA AMÉRICA DO SUL, coordenado pelo IPEA, do qual participou.

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distribuição), sem correspondente melhora na eficácia do serviço quanto a seus objetivos finais.

Mas o principal elemento da privatização dos serviços públicos, no que respeita a incorporação sistemática e normativa de procedimentos privados de gestão, está no processo de financiamento. Uma das principais características do Estado regulador – no sentido de providência ou desenvolvimentismo, que precede a re-regulação neoliberal – é a criação de fundos públicos destinados ao financiamento de longo prazo de suas ações setoriais. Esses fundos, em geral formados por uma combinação de recursos orçamentários e de receitas para-fiscais – como por exemplo o FGTS – são marcados por duas características principais: (i) são restritivos quanto às taxas de retorno admissíveis tanto na captação como no empréstimo, o que lhes confere relativa independência das flutuações do mercado financeiro privado; (ii) constituem poderoso instrumento de controle – da parte do Estado – sobre os agentes executores, ao permitir que se condicione o acesso a eles a padrões de desempenho exigíveis pelo concedente estatal. Esta formulação, genérica como apresentada, se aplica à grande maioria dos modelos de gestão de infra-estrutura e serviços públicos vigentes em países tanto centrais como periféricos sob a égide do intervencionismo estatal.

Independentemente das particularidades que distinguem os vários sistemas específicos de financiamento e gestão que se formaram sob a égide do intervencionismo estatal, o ponto comum era sempre a o reconhecimento de uma taxa de retorno para o investimento público inferior às praticadas nos negócios privados11. Longe de significar menor eficiência do investimento público, o uso de uma taxa de retorno sistematicamente inferior em seu financiamento era uma condição de estabilidade e de viabilidade para o longo prazo de amortização exigido pela infra-estrutura pública em geral. Em seus estudos pioneiros sobre a regulamentação e o financiamento dos serviços públicos Mello (1933, 1940) resgatava da doutrina americana da regulação pública os fundamentos da taxa de retorno diferenciada, que consideravam a perspectiva de retorno mais modesto da parte dos operadores dos serviços uma justa compensação pelo fato de se beneficiarem da existência de um mercado cativo.

Quando o financiamento passa para esfera do mercado, elimina-se a diferenciação entre a taxa de retorno pública e o retorno financeiro no

11 Maiores detalhes sobre a diferenciação entre taxas de retorno pública e privada podem ser analisados na obra de James e Lee (1971), então considerada referência básica na literatura técnica de planejamento de usos múltiplos (aproveitamentos para abastecimento público, geração hidrelétrica, irrigação, controle de inundações, etc.) de recursos hídricos.

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mercado privado e, com isso, a oferta dos serviços públicos passa a ser pautada pelas mesmas contingências que determinam a oferta de bens e serviços de mercado em geral. Além disso, a perda de domínio do Estado sobre a concessão do financiamento e sobre a determinação de suas condições de acesso, lhe retira grande parte do poder regulador de fato. As novas estruturas reguladoras que se formam sob a égide do financiamento privado dos serviços partem de uma limitação básica com respeito ao modelo anterior, pela ausência de instrumentos de controle financeiro substantivo, sem que se tenham estabelecido ainda medidas alternativas de eficácia equivalente. Teoricamente a construção de um sistema regulador independente do financiamento pode conferir maior estabilidade à estrutura institucional, por não ser susceptível de colapso quando da exaustão do modelo financeiro, mas na prática este é um predicado que ainda não se faz notar.

Uma outra dimensão importante da assunção de princípios privados de gestão na condução de políticas públicas é a quase eliminação do planejamento como função do Estado. Na área de política urbana e ramificações setoriais a ela associadas esse esvaziamento da função planejadora é patente. A indução de processos de desenvolvimento sobre os sistemas de cidades, com vistas à diminuição dos desequilíbrios regionais, e o planejamento metropolitano foram áreas de ação do Estado que em vários países foram virtualmente extintas. No projeto neo-conservador da Grã-Bretanha foram notórios os casos do fechamento do Greater London Council – instância decisória superior do planejamento e da gestão metropolitana da região de Londres e de esvaziamento de competências das local authorities; no caso dos EUA, quase ao mesmo tempo, se extinguiram os programas de melhoria de áreas urbanas deterioradas a cargo do Housing and Urban Development Department (Ministério da Habitação e do Desenvolvimento Urbano) daquele país. Estabelecido o exemplo por parte do núcleo central do capitalismo, no início da década de 1980, não demorou para que os governos capitalistas periféricos também extinguissem ou esvaziassem o correspondente a essas competências em seus países. O mesmo não se aplica à maioria dos países da Europa continental, que imprimiram um ritmo muito mais lento em seus processos nacionais de diminuição do Estado de Bem-Estar.

No lugar do planejamento se estabelece, na política urbana, um conceito de gestão que prescinde do plano de longo prazo e concentra sua capacidade gerencial em projetos estratégicos de parceria entre agentes públicos e privados. Estes projetos são sempre circunscritos a áreas específicas de intervenção e, como regra, buscam um tratamento especial relativamente às normas e posturas urbanísticas vigentes, tendo

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em vista uma aceleração da atividade econômica em geral e imobiliária em particular. Juntamente com essa visão mais casuística da gestão vem uma tendência ao afrouxamento ou à eliminação das regulações urbanas, coerentemente com o movimento mais amplo de desregulação do Estado intervencionista.

É importante notar que o processo privatizante, visto como incorporação sistemática e normativa de padrões privados na gestão pública, não implica em si mesmo a pré-determinação de maior ou menor centralização de competências (ver Wolman 1988). No caso do Reino Unido, os investimentos públicos do Estado providência se faziam principalmente por iniciativa das administrações regionais e locais e por isso foram as instâncias sub-nacionais do Estado as que sofreram maior esvaziamento. No caso dos EUA a maioria dos programas governamentais de interesse social pertencia à esfera federal e esta foi a mais visada na reforma conservadora de Reagan. De maneira geral, tanto nesses países como nos que a seguir aderiram às diretrizes do “Consenso de Washington”, houve uma desqualificação da política urbana em escalas nacional ou regional e, em escala local, o re-direcionamento para uma atuação predominantemente gerencial, reduzindo ao mínimo os compromissos que implicassem qualquer forma de intervencionismo estatal.

No Brasil, o processo de esvaziamento das políticas urbanas e setoriais, na segunda metade da década de 1980, foi paradoxalmente associado a uma valorização das competências municipais estabelecida pela Constituição de 1988. A esta somava-se uma ambígua identificação, por parte de diferentes correntes políticas, do instrumento planejamento com o planejamento autoritário do Estado antidemocrático até pouco antes no poder. Dessa forma, o desmonte dos instrumentos de planejamento regional e urbano nacionais se deu sem que fosse contestado por quaisquer correntes políticas à esquerda ou à direita, em que pese o subjacente alinhamento dessas medidas com o receituário ortodoxo das políticas de ajuste. Quanto às políticas setoriais de infra-estrutura e serviços públicos associados, o processo de restruturação teve lugar um pouco mais tarde, já de forma mais nitidamente identificada com os objetivos privatistas da política de ajuste.

Tanto no caso da política urbana como no das estruturas setoriais de oferta estatal de serviços a reforma reguladora, iniciada nos primeiros anos da década de 1990, determinou o desmonte de instrumentos de controle público típicos do Estado burocrático sem que se tenham instituído outros mais aderentes à cultura gerencial que se pretendia implantar na gestão pública. As primeiras privatizações de serviços em

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rede operadas sob a égide do Programa Nacional de Desestatização antecederam o estabelecimento das respectivas estruturas reguladoras setoriais, sendo as metas de investimentos e os padrões de serviços quase que exclusivamente regulados pelos termos de cada contrato de concessão. Esta é uma característica comum a diversos países latino-americanos que promoveram a privatização de serviços sem que se definisse minimamente as novas estruturas reguladoras setoriais, sendo o mais notório o caso da Argentina, que promoveu a maior privatização de serviços públicos até então realizada em qualquer país – os serviços de água e esgoto da cidade de Buenos Aires – antes de se estabelecer as competências reguladoras pertinentes.

O início do processo de privatização do setor de energia elétrica no Brasil – casos da Escelsa no Espírito Santo e da Light no Rio de Janeiro, em 1995 – também se deu antes que se estabelecesse uma nova estrutura setorial de regulação. A ANEEL, que passaria a responder formalmente pela regulação das concessionárias privatizadas, viria a ser criada apenas em dezembro de 1996, nos termos da lei No 9.427. As concessões de serviços de saneamento já concedidas a operadores privados até o período em que este texto é fechado (julho de 2001) também carecem de estrutura reguladora específica, uma vez que projetos de lei complementar federal regulamentando as competências da União, dos estados e dos municípios sobre a matéria ainda tramitam no Congresso Nacional. Ao mesmo tempo, os instrumentos de regulação e controle associados ao modelo de oferta estatal e às competências típicas do Estado burocrático que se pretende em reforma, estão em grande parte derrogados, uma vez que sua eficácia é determinada pela possibilidade de aplicação de incentivos e sanções financeiras. Hoje, com a desativação das linhas de financiamento público à infra-estrutura, ficam esvaziados os instrumentos tradicionais de regulação burocrática pelo acesso ao crédito.

O vazio regulador que se cria não fica desocupado, abre-se espaço para uma auto-regulação dos agentes privados na qual o interesse público dificilmente é considerado. É exatamente nesse espaço institucional que ressurgem velhos hábitos do patrimonialismo, em lugar do idealizado privatismo empreendedor que se imaginava transferir da cultura anglo-saxã. A recentemente eclodida crise na oferta de energia elétrica no Brasil deixa claro, a partir dos atos praticados pela administração federal em nome da gestão da crise, que as salvaguardas mais fortes até agora estabelecidas na transição reguladora, dizem respeito mais ao interesse dos capitais privados do

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que do público titular e usuário dos serviços públicos12. A vergonhosa especulação que se abriu no Mercado Atacadista de Energia, com o beneplácito das autoridades setoriais, para a venda a preços astronômicos de excedentes contratados por grandes consumidores no mercado regulado13 ou, ainda na área de energia, a possibilidade de privatização de gigantescos potenciais hidrelétricos repassando aos adquirentes privados perspectivas de lucros futuros extraordinários mediante equiparação tarifária com os custos marginais da energia proveniente de geração térmica14, são sinais claros de uma grande sintonia entre a parcial re-regulação até agora procedida e a captura privada de benefícios. Esta justaposição entre os atos da Administração e o interesse privado não revelam outra coisa que não o velho patrimonialismo, ainda que agora acompanhado de uma retórica mais sofisticada e poliglota.

Reforma do Estado e eficácia social dos serviços públicos

Em que pesem as brechas que a conturbada reforma reguladora que se processa no Brasil tem até agora aberto a renovadas práticas patrimonialistas, não seria razoável atribuir sua existência a uma intencionalidade inerente à doutrina de reforma gerencial do Estado. Ao contrário, a proposta de reforma gerencial do Estado no Brasil, consolidada em um Plano Diretor voltado à restruturação da administração pública (Brasil, PR 1995), é voltada para um segundo

12 Uma das mais flagrantes assimetrias de tratamento presente na sucessão de medidas provisórias emitidas pelo Governo Federal com vistas a controlar a crise de oferta, é a garantia de recomposição financeira dos contratos de concessão, via aumento de tarifas, dada aos distribuidores privados de energia em face de suas perdas financeiras com o racionamento. A um tempo em que a maioria dos agentes estatais e privados da sociedade, especialmente o público em geral, são obrigados a contribuir com cotas não desprezíveis de sacrifício para contornar os efeitos da crise, estabelece-se para um segmento privilegiado da atividade econômica – as distribuidoras de energia elétrica – uma garantia de ressarcimento pleno de seus possíveis prejuízos. 13 Notícias amplamente divulgadas pela imprensa têm dado conta de uma nova forma de especulação financeira surgida com a crise de energia elétrica, que consiste na venda de excedentes de energia que os grandes consumidores – nos segmentos de siderurgia, mineração e outros – compram no mercado regulado. A operação tem rendido lucros especulativos próximos a 1000% (compra a aproximadamente R$ 60,00 o MWh e venda em torno de R$ 600,00) a indústrias que se vêem estimuladas a reduzir a produção para aquém das limitações impostas pelo racionamento, com vistas ao lucro especulativo na manipulação de “excedentes” artificialmente disponibilizados. 14 Em energia elétrica como em qualquer outro serviço em rede, as tarifas refletem o custo marginal de produção do serviço. Como a expansão de capacidade é hoje predominantemente centrada na produção termelétrica – cujo custo marginal do MWh gerado é maior que o da produção hidrelétrica já instalada – o comprador da capacidade hidrelétrica já amortizada poderá realizar lucros extraordinários de grande magnitude, nos próximos anos, ao ofertar energia de base hídrica em um mercado cujos preços serão regulados pela oferta de base térmica. Análise recente do Prof. Luiz Carlos Bresser Pereira, mostrando essa tendência, foi recentemente divulgada pelo jornal “Gazeta Mercantil”.

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estágio de superação dessas práticas, reconhecendo ter a organização burocrática do Estado, a ser substituída pela nova organização gerencial, cumprido com sucesso o primeiro estágio. Os controles burocráticos, as rotinas administrativas, a cultura do serviço público valorizando a impessoalidade e a generalidade dos procedimentos, são reconhecidos como etapas necessárias à “desprivatização” do Estado anteriormente capturado. Mas o Estado burocrático como um todo já não mais teria condições de responder às reais necessidades da sociedade, para o que se aplicariam então os princípios do Estado gerencial.

“... A administração pública gerencial constitui um avanço, e até um certo ponto um rompimento com a administração pública burocrática. Isso não significa, entretanto, que negue todos os seus princípios. Pelo contrário, a administração pública gerencial está apoiada na anterior, da qual conserva, embora flexibilizando, alguns dos seus princípios fundamentais, como a admissão segundo rígidos critérios de mérito, a existência de um sistema estruturado e universal de remuneração, as carreiras, a avaliação constante de desempenho, o treinamento sistemático. A diferença fundamental está na forma de controle, que deixa de basear-se nos processos para concentrar-se nos resultados, e não na rigorosa profissionalização da administração pública, que continua um princípio fundamental.

Na administração pública gerencial a estratégia volta-se: (1) para a definição precisa dos objetivos que o administrador público deverá atingir em sua unidade; (2) para a garantia de autonomia do administrador na gestão dos recursos humanos, materiais e financeiros que lhe forem colocados à disposição para que possa atingir os objetivos contratados; e (3) para o controle ou cobrança a posteriori dos resultados. Adicionalmente, pratica-se a competição administrada no interior do próprio Estado, quando há a possibilidade de estabelecer concorrência entre unidades internas. No plano da estrutura organizacional, a descentralização e a redução dos níveis hierárquicos tornam-se essenciais. Em suma, afirma-se que a administração pública deve ser permeável à maior participação dos agentes privados e/ou das organizações da sociedade civil e deslocar a ênfase dos procedimentos (meios) para os resultados (fins).” (Brasil, PR 1995 cap 2).

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A reforma gerencial do Estado antecede, na prática, suas formulações teóricas mais recentes. Possivelmente a expressão “reforma gerencial” tenha se introduzido de forma explícita e recorrente no jargão das agências de desenvolvimento a partir das experiências da Nova Zelândia e da Grã-Bretanha em meados da década de 1980. Mas o conceito é mais antigo e, no Brasil, teve antecedentes importantes na reforma administrativa de fins da década de 1960, formalmente sintetizada no decreto-lei 200 de 1967. A valorização das entidades da administração indireta – em particular as empresas estatais e as sociedades de economia mista – na execução das políticas estatais, promove uma autonomia administrativa aos setores chave do desenvolvimento que, em princípio, atendem plenamente aos desígnios estratégicos da reforma gerencial nos termos propostos pelo PR em 1995. O que então difere aquele modelo de organização da “nova” administração pública gerencial assumida pelo Brasil a partir da segunda metade da década de 1990? Para fazer essa distinção torna-se necessário buscar as conexões externas deste processo de reforma em particular com a onda reformadora que se articula mundialmente entre os países capitalistas centrais desde a década de 1980.

O processo de reforma do Estado que tem tido lugar na maioria dos países capitalistas nesse período caracteriza-se, segundo Kettl (2000: I, adaptação e tradução livres) por seis atributos centrais:

- Produtividade. Entendida no sentido estrito de quantidade de serviço ofertado por recurso (de imposto) empregado. Desafios na oferta de serviços ampliados a partir de orçamentos reduzidos.

- Orientação ao mercado. Associada à ruptura das patologias de ineficiência da burocracia governamental mediante incentivos de mercado. Essa orientação tanto se traduz na adoção de extensos programas de privatização como na associação entre Estado e entidades não governamentais na prestação de serviços públicos. A base comum destas medidas é a substituição dos mecanismos tradicionais de comando e controle por estratégias de mercado, dessa maneira mudando a mentalidade dos gerentes de programas.

- Orientação ao serviço. Mudança de orientação quanto à organização do processo decisório, mudando o eixo do lado da oferta (associada à prática administrativa pública) para o lado da demanda (os cidadãos, vistos como clientes finais do serviço). As iniciativas nesta linha tanto podem ser de criação de competição real na oferta dos serviços como na emulação de condições competitivas por parte da oferta estatal. Em ambos os casos reforça-se a lógica de valorização das prioridades definidas pelo lado da demanda.

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- Descentralização. Entendida, de maneira geral, como transferência de responsabilidades da jurisdição mais ampla (federal, estadual) para a jurisdição mais restrita de governo. Em estados federados essa descentralização implica na transferência de poder político; em estados unitários, na delegação de competências administrativas. Também é incluída no conceito de descentralização a transferência de competências executivas internamente aos órgãos e entidades da administração pública, no Brasil mais conhecida como “desconcentração”, conferindo maiores autonomia e incentivos aos gerentes diretamente responsáveis pelos resultados dos programas para que respondam às necessidades dos cidadãos.

- Valorização do papel regulador do Estado. Nos textos em língua inglesa o termo que designa essa valorização é a função “policy”, contraposta à de provedor de serviço. Mediante exercício de seu papel regulador o Estado passa a situar-se predominantemente no papel de comprador dos serviços prestados por terceiros e não mais de fornecedor desses mesmos serviços. Os governos que adotam esta política voltam-se ao aumento de eficiência a partir de uma melhoria em seu poder de compra de serviços, em contraposição à oferta direta destes.

- Responsabilização sobre resultados. No sentido de melhorar a capacidade do governo em entregar o que promete. São promovidas alterações substanciais no conceito de responsabilização (accountability), agora centrado em resultados e conseqüências da ação, mais que em seus procedimentos e estruturas.

Esses atributos trazem as rotinas da administração estatal para mais

próximo às de administração privada, particularmente pela introdução de processos orientados para o mercado e para a competição, em substituição às práticas fortemente hierarquizadas e de base estrita em procedimentos.

Na tabela que segue, são resumidos os principais instrumentos aplicados nos processos de reforma de países selecionados.

Tabela 1. Dimensões das reformas da administração pública, por tipo, 1980-96. (Ketll 2000:34, tradução livre)

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Westminster15 Nórdicos América Instrumentos

estratégicos de reforma

Reino Unido

Nova Zelândia

Dinamarca Suécia Finlândia Estados Unidos

Privatização Alto Alto Baixo Baixo Baixo Baixo* Uso de

mecanismos de mercado

Alto Alto Baixo Médio Médio Baixo

Descentralização Médio Médio Médio Médio-alto

Médio Alto

Orientação a resultados

Alto Alto Médio Médio Alto Baixo

Restruturação tradicional

Baixo Baixo Médio Alto Alto Médio

Intensidade do processo de

implementação

Médio-alto

Alto Baixo Médio-baixo

Médio-baixo

Médio

Fontes [originais]: Cristopher Pollitt e outros – Trajectories and Options: an international perspective on the implementation of Finnish Public Management Reform (Helsinki: Ministry of Finance, 1997); Swedish Agency for Administrative Development, in Statskontoret – The Swedish Central Government in Transition (Stokholm, 1998), p. 80; análise do autor [Kettl 2000] sobre o Governo federal dos EUA.

(*) Altos níveis de contratação de serviços de terceiros. Kettl (1999, 2000) mostra que a partir dos princípios gerais do

managerialism e dos instrumentos estratégicos de reforma aplicados, se montaram basicamente três linhas estratégicas de reforma, que embora concorram para objetivos convergentes, têm conflitos entre si. Essas linhas são resumidas como:

i) “deixar o administrador administrar”; ii) “fazer o administrador administrar”; iii) reengenharia dos negócios. Na primeira linha, “deixar o administrador administrar” significa

transferir poder da administração pública tradicional para o gerente, de maneira a “ neutralizar qualquer restrição que possa ser feita à flexibilidade do administrador” (Kettl 1999:84). Já a Segunda linha, de “fazer o administrador administrar” , embora envolva a retirada de entraves que possam estar prejudicando sua eficiência, consiste basicamente em uma mudança – e não em uma retirada – das restrições que pesam sobre o administrador e supõe cumprimento estrito de objetivos impostos de fora, com enfrentamento de dura concorrência de

15 A tradição “Westminster” de administração pública refere-se à burocracia especializada e bem formada dos países que, a parte a própria Grã-Bretanha, mantém a mesma cultura de gestão, como Austrália, Nova Zelândia e Canadá.

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mercado (idem:85). No que respeita a terceira linha, de reengenharia de negócios, envolve mudanças mais drásticas, em uma ação semelhante à segunda, acrescida porém de “... um supernível de controle, orientado pelo mercado, aos órgãos da administração pública”. (Kettl 1999:85).

A implantação das reformas baseadas no managerialism, em diferentes países, tem sido reconhecida como fator de ganho de eficiência e de maior responsabilização (accountability) dos administradores públicos. No entanto, alguns problemas importantes têm emergido na relação entre esse foco gerencial e a capacidade do Estado em formular e redirecionar políticas públicas. A cobrança de resultados dos gestores de programas não chega a dar conta, como regra, das conseqüências finais da ação no âmbito das políticas públicas. Estudo da OCDE sobre o impacto das reformas na percepção de altos funcionários dos governos britânico, canadense e norte-americano (Ingraham, Murlis e Peters 1999) mostra que nos dois primeiros – integrantes por excelência da tradição Westminster de administração pública – há um temor objetivo de que os ganhos na cultura gerencial estejam se realizando às expensas de uma perda de capacidade de formulação de políticas. Em particular no caso do Canadá, os altos funcionários entrevistados apontam para os perigos de longo prazo, quando as novas gerações que estão sendo formadas com ênfase na cultura gerencial assumirem os postos mais altos da administração pública e que nesta posição venham a submeter – de forma indevida – o planejamento estatal à lógica de mercado. Já no caso dos EUA, onde as reformas da NPR enfatizaram a administração por resultados em todos os níveis de governo, o estudo indica que a receptividade à cultura gerencial mostrou-se elevada e, o que é mais importante, percebida como um reforço – e não como uma ameaça – à função pública do servidor.

A parte as diferenças culturais de fundo entre a tradição Westminster de profissionalismo do setor público e o pragmatismo americano, é provável que as diferentes percepções detectadas no estudo da OCDE tenham a ver também com o nível de inserção efetiva do mercado no processo político. Nos casos do Reino Unido e do Canadá, as reformas que tiveram curso ao longo dos anos 80 e grande parte dos 90 foram determinadas por governos conservadores que promoveram maciços programas de privatização e efetiva aproximação do mercado à estrutura decisória de governo. No caso dos EUA, as reformas do governo conservador da década de 80 envolveram relativamente muito menos privatizações – foram mais centradas no

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processo de desregulação – e a seguir a ação da NPR, empreendida pelo Governo Democrata, tem se caracterizado mais pela emulação de uma lógica de mercado na ação governamental do que em uma ampliação da interferência direta daquele nesta. Nas palavras de Kettl (2000:15, tradução livre), as reformas nos EUA “... foram focalizadas mais na mudança de comportamento dos burocratas do que na transformação das bases da estrutura e dos processos governamentais”. Esta é uma diferença importante, que nos remete à definição já citada do mesmo autor acerca das linhas reformadoras de “fazer o administrador administrar” (casos do Canadá e do Reino Unido) e de “deixar o administrador administrar” (caso dos EUA).

Um outro atributo importante da reforma nos EUA é o fato de que o processo praticamente não envolve importação de modelos e práticas de outros países. A cultura gerencial não é em absoluto uma novidade na administração pública americana e as agências executivas autônomas, responsáveis por parte significativa das atribuições de governo, já estavam consolidadas na estrutura de Estado daquele país muito antes de que as reformas atuais fossem implantadas. Não existe, no caso dos EUA, o teste simultâneo de novos procedimentos e de nova estrutura. Para todos os demais países, a absorção de práticas gerenciais na administração pública tende a envolver transferências externas, com os todos os problemas que isso causa ao conjunto das instituições do Estado.

Essa transferência faz com que a partir um mesmo substrato comum de valorização da gestão que tem caracterizado a reforma do Estado nas últimas duas décadas, tenha origem uma grande variedade de práticas que implicam diferentes escalas de valores e parâmetros de medida relativas a seu sucesso. A forma como os mesmos princípios de reforma gerencial são absorvidos – por exemplo – na França, que tem uma larga experiência de desenvolvimento profissional da burocracia estatal com grau de autonomia ainda maior que a dos países da tradição Westminster, mostra uma tentativa de conciliação entre o existente e o inovador que certamente inspira lições importantes para a reforma nos países latino-americanos. Naquele país, o Conseil d’État criou um Conselho Nacional de Avaliação encarregado de, juntamente com a área de planejamento (o Commissariat Général du Plan) aplicar o disposto no Decreto 98-1048 de 18 de novembro de 1998 que instituiu o sistema de avaliação de políticas públicas (França, CIRE 1999). É importante observar que o foco do sistema de avaliação da França é sobre as políticas públicas – e não sobre programas – em que pese a adoção de

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princípios de reforma gerencial semelhantes aos dos países anglo-saxões e escandinavos.

No que respeita os países capitalistas periféricos, é absolutamente central o papel que têm desempenhado as agências internacionais de desenvolvimento, como o BIRD e – no caso da América Latina em particular – o BID, na promoção da reforma gerencial de corte anglo-saxão.

Desde início dos anos 80 o BIRD tem recomendado e incentivado os países clientes a reduzir a intervenção e os controles diretos sobre a economia e a abandonar políticas protecionistas e de substituição a importações. Isso envolvia reformas de políticas públicas para uma orientação ao mercado e a abertura comercial e financeira ao exterior. No início desse período essa orientação envolvia como contrapartida uma redução do Estado e uma eliminação da regulamentação que se alegava impeditiva do crescimento econômico. A partir do início dos anos 90 o BIRD passa a reconhecer que apenas a eliminação de regulamentos e a abertura ao mercado nãos são suficientes para garantir o objetivo de crescimento econômico e passa a propugnar pela ampliação da transparência e da responsabilização (accountability) na ação pública. Nas palavras de Nelson (1999:44, tradução livre)

“Nos anos 80 era verdade que o BIRD (e a comunidade financeira internacional em geral) estava convencido de que sabia como promover e restaurar o desenvolvimento sustentável nos países devedores. Mais que isso, era amplamente aceito que as comunidades internacionais financeira e de desenvolvimento poderiam incentivar os países a seguir políticas adequadas e a adotar as reformas necessárias mediante o condicionamento de ajuda a condições específicas de reforma. No final da década de 1980, cerca de ¼ dos empréstimos do BIRD eram canalizados por meio dos chamados empréstimos policy based, que conectavam segmentos de ajuda a ações específicas a terem lugar em prazos pré-determinados. Mesmo naquela época, alguns observadores questionavam se a ajuda condicional seria eficaz para alterar políticas e comportamento dos governantes. Pesquisas aprofundadas que tiveram lugar ao longo da década de 1990 conduziram à convicção crescente de que a condicionalidade tinha um impacto muito pequeno. Mais que isso, de que a ajuda na ausência de políticas bem estruturadas tinham pouco ou nenhum impacto, enquanto a ajuda combinada com políticas bem concebidas poderiam de fato promover o crescimento e reduzir a pobreza”.

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Um dos problemas associados ao condicionamento de ajudas específicas a reformas setoriais é o fato de que na maior parte dos casos aquelas são negociadas basicamente com as autoridades financeiras, com pouca ou nenhuma participação das áreas de governo responsáveis pelas políticas das quais se exigiria um envolvimento pró-ativo. Isto é particularmente verdade para os casos de ajudas de emergência em situações de crise – quase sempre decorrentes do próprio ajuste – voltadas a reduzir os impactos imediatos das turbulências da economia sobre os grupos mais vulneráveis.

Essa fragilidade do condicionamento setorial – e do intervencionismo dos anos 80 – determinou uma postura mais flexível do Banco em relação a seus clientes, no sentido de apoiar reformas amplas e de ser mais receptivo a propostas específicas dos próprios países interessados. Estas reformas não são condicionadas a fórmulas rígidas, mas associadas a processos que contemplem os princípios básicos de transparência, responsabilização e sustentabilidade. Alguns dos principais desdobramentos dessa orientação estão organizados nas definições da estrutura de desenvolvimento integrado – comprehensive development framework. Para Nelson (1999) esta postura mais comprometida com as políticas sociais e com a capacitação do Estado pode ser entendida como parte de uma “segunda geração” do ajuste, enquanto outros autores (Martin 2000) a entendem como uma política “pós-Consenso” [de Washington].

No que respeita o desempenho e a avaliação da ação do Estado, a adoção de princípios mais gerais e de condutas mais flexíveis com relação aos países clientes obriga à aplicação de critérios e procedimentos também mais amplos e menos rígidos que os empregados anteriormente. As ações do BIRD ao longo dos anos 60 e 70 caracterizaram-se por ser predominantemente dirigidas a grandes investimentos integrantes da cultura do bricks and mortar (tijolo e argamassa) referida por Nelson (1990) como determinante de uma sistemática de avaliação centrada na supervisão técnica de projetos. Na fase seguinte, do intervencionismo dos anos 80, a estrutura de avaliação evoluiu para um sistema mais complexo abrangente de indicadores chave, agora contemplando – a par da eficiência dos projetos – a conformidade a componentes de reforma institucional vinculados às ações setoriais. Na cultura de capacitação dos estados nacionais e valorização do combate à pobreza como objeto de um conjunto de ações de dimensão de todo o governo – e não mais de cada setor – os indicadores de eficiência e eficácia devem ser mais complexos e menos

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padronizados e isso cria desafios importantes para a área de avaliação do Banco – OED – em grande parte inéditos. Especialmente porque os resultados de reformas amplas de Estado não são mensuráveis tão diretamente quanto os de projetos específicos ou componentes isolados de reforma setorial.

A avaliação passa a ser entendida, na perspectiva dos programas de assistência a países, como um elemento central de garantia de eficácia. A função avaliação integra-se como parte do processo de desenvolvimento institucional e reforma do Estado nos países beneficiários e o BIRD, nas palavras do diretor geral do OED (o departamento de avaliação do Banco), vê três razões centrais para que a qualidade da capacitação local para avaliação seja considerada hoje um componente decisivo para o sucesso da assistência a países (Picciotto em BIRD OED 1999b:04, tradução livre): • Toda a comunidade [internacional] de assistência ao

desenvolvimento volta-se hoje à gestão baseada em resultados seja na escala de projeto, de país ou global. E toda a experiência das diferentes agências de desenvolvimento converge para a lição comum de que sem uma capacidade institucional enraizada [em cada país ou área de intervenção] os componentes de monitoramento e avaliação dos projetos são meros exercícios em papel, sem qualquer outro valor.

• No âmbito dos próprios países beneficiários a avaliação tem surgido como demanda crescente, à medida que as estratégias de país tornam-se mais participativas e envolvem um espectro ampliado de parceiros.

• Quando se desenvolvem as coalizões institucionais de apoio ao desenvolvimento em cada país, é muito difícil assegurar a coerência da assistência mediante instrumentos de coordenação centralizados na sede da agência. O país é o centro da parceria e a avaliação deve ser localizada o mais perto possível do campo de ação. Nesses termos, o desenvolvimento de capacidade avaliação implica

– mais do que transferir habilidades específicas em avaliação – inserir as estruturas, os sistemas e os processos de avaliação no contexto das novas estratégias de reforma do setor público (Picciotto em BIRD OED 1999b:04, tradução livre).

Esse objetivo de inserção institucional mais ampla da função avaliação envolve desafios importantes ainda não resolvidos em países de grande tradição em avaliação e controles internos, como os EUA. A convergência de conceitos entre os sistemas de avaliação de

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desempenho em diversos níveis – projetos, programas e políticas – entre si e com os sistemas de eficiência financeira e controle são ainda metas não preenchidas mesmo nesses países. Mackay (em BIRD OED 1999b) alerta para o fato de que vários tipos de instrumentos de avaliação são utilizados por especialistas de diferentes áreas com diferentes conotações conceituais. Economistas envolvidos na avaliação de projetos, cientistas sociais na avaliação de políticas e auditores na avaliação e controle de orçamento se utilizam de procedimentos de avaliação ex ante, de progresso / formativa, ex post / cumulativa, de auditoria financeira e de auditoria econômica com conotações conceituais distintas, dando origem a confusões sobre o alcance e os objetos envolvidos. Do conjunto de cinco países analisados no documento de referência sobre desempenho do setor público16, Mackay destaca a busca de vínculos e pontos comuns nas seguintes áreas (BIRD OED 1999b:xi, tradução livre): • gestão financeira dos orçamentos, incluindo relatórios financeiros e

auditoria; • relações fiscais inter-governamentais, na medida em que abranjam

um foco no desempenho; • comercialização e distribuição de serviços públicos pelo setor

privado. Para o setor privado ter sucesso na prestação de serviços públicos, os governos devem ter claro entendimento sobre os objetivos do programa e devem promover acompanhamento de desempenho ex ante, de progresso e ex post.

• formulação de padrões de prestação de serviço pelas agências reguladoras e monitoramento da efetiva observância desses padrões;

• reforma do serviço público, incluindo gerenciamento e avaliação de desempenho do pessoal e reconhecendo que o desempenho individual é refletido, até certo ponto, no desempenho do projeto ou programa;

• assessoria à política de serviço público, abrangendo resultados de avaliação existentes ou procurando estabelecer novos;

• participação e “voz” da sociedade civil, incorporando as percepções e as expectativas dos cidadãos comuns relativamente ao desempenho do governo;

• esforços anti-corrupção, em especial na melhoria dos sistemas de gestão financeira e de relato de desempenho, com o fortalecimento

16 Austrália, Canadá, Chile, Indonésia, Zimbabwe.

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de entidades de controle e o preenchimento de metas de maior transparência em políticas públicas e sua execução. Do ponto de vista do BIRD, a orientação geral às ações de

capacitação para avaliação de desempenho nos países beneficiários, envolvendo diferentes instrumentos e usuários, inclui quatro pontos fundamentais (Gray em BIRD OED 1999b:99, tradução livre): • Foco nas instituições, no sentido de juntar os ponto de vista de oferta

e demanda, diferentemente da antiga capacitação específica, definida pelo lado da oferta. O foco na instituição implica considerar como a capacidade é desenvolvida, como é utilizada e se é utilizada. O treinamento e a formação de capacidade específica são importantes, mas eles não conduzem a nada se não houver demanda efetiva para a avaliação no sistema institucional do país.

• Enfrentar o desafio de tornar funcionais estruturas de setor público [hoje] sem responsabilização, capacitação e controles claros. Esse desafio pode ser enfrentado mediante três mecanismos definidos no Relatório Anual de Desenvolvimento de 1998, quais sejam reformar a hierarquia dentro do governo, mediante novas regras de controle e gestão; ouvir a voz do público e da sociedade civil sobre o desempenho do governo, e; [implantar] mecanismos de competição e constestação da posição do governo, seja com relação a outras partes [ou esferas] do governo, seja com relação ao setor privado. Cada uma dessas três abordagens envolve suas contrapartidas na composição de agentes de avaliação: a primeira, o próprio governo; a segunda, as ONG e entidades da sociedade civil em geral; a terceira, a avaliação e seleção do mercado.

• O terceiro é o tema dos instrumentos. Cada uma das formas de assistência do Banco pode envolver diferentes instrumentos em benefício da reforma do setor público. Os empréstimos de curto prazo para ajuste têm um baixo potencial de transformação devido ao curto prazo, em que pese terem um grande alavancagem. Os empréstimos de assistência técnica e os projetos de investimentos têm menor alavancagem. O Banco hoje concentra-se na idéia de empréstimos de maior prazo e com maior transferência de recursos, com desembolsos amarrados não às compras [de insumos] mas a [componentes de] reforma do setor público. Um tipo de empréstimo nessa linha é o PERL – public expenditure reform loan no qual todo o sistema gerenciamento do gasto público fica submetido ao escrutínio e aberto à reforma.

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• O quarto diz respeito aos estímulos internos do BIRD no sentido de incentivar a capacidade de avaliação, orientada a uma maior eficácia do desenvolvimento [nos países beneficiários]. Do conjunto de instrumentos e diretrizes relativas a avaliação

emergem diferentes papéis, critérios e instrumentos. Tendo em vista definir os atributos e os campos de aplicação específicos de cada instrumento, o BIRD propõe uma matriz de complementaridade na qual ordena os sistemas de gerenciamento baseado em resultados, auditoria interna e avaliação conforme segue (McAllister em BIRD OED 1999b:109, tradução livre).

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Tabela 2 Papéis complementares do gerenciamento baseado em

resultados, da auditoria interna e da avaliação.

Atributos definidores Gerenciamento

baseado em resultados Auditoria interna Avaliação

Responsabilidade Gerente do programa Corporação Central / corporação

Foco Resultados de desenvolvimento e

operacionais

Processos de gestão e resultados

operacionais

Resultados do processo

(intencionais ou não)

Envolve todos os

agentes interessados,

inclusive clientes e outros

financiadores Objetivos principais Esclarecer objetivos do

programa

Ligar atividades do programas e projetos e respectivos recursos a

metas

Auxiliar os gerentes a entender Quando seus programas estão tendo

sucesso ou não, sinalizando possíveis

problemas de gestão ou na concepção básica ou

disseminação

Auxiliar os gerentes a entender

que resultados foram ou não

atingidos e porque; e se os recursos

foram gastos como previsto

Propor melhorias

operacionais e administrativas

Auxiliar os gerentes a entender porque e como os resultados da ação

foram ou não atingidos

Fazer

recomendações para melhorias em

políticas, programas e

projetos

Escopo típico Monitorar operações do programa ou projeto e

os níveis de serviço [prestados]

Relatar o

desenvolvimento aos gerentes e alertá-los

para os problemas que requerem ação

[corretiva]

Examinar como os sistemas de

gerenciamento e suas práticas funcionam

Detectar e

controlar riscos

Procurara alternativas mais

Questionar a lógica e os

objetivos da ação

Determinar o sucesso em

alcançar resultados

Procurar meios mais econômicos

de atingir os

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Monitorar a efetividade de custo da gestão e da

disseminação

econômicas de gerenciar e disseminar

programas e projetos

resultados do programa

Cobertura/ Freqüência

Fornece avaliações de progresso de programas

e projetos

Conforme solicitação, analisa

programas, projetos e sistemas

selecionados

Conforme solicitação, avalia

políticas, programas e

projetos chave. Elementos comuns Informação atualizada, relevante e baseada em evidência

[empírica].

Voltando ao caso da nova reforma gerencial do Estado no Brasil dos anos 90, da forma como conceituada em seu documento oficial de referência (Brasil, PR 1995), fica clara assunção de valores básicos do managerialism anglo-saxão, inclusive quanto à importância da função avaliadora, mas ressalta a omissão quanto à multiplicidade de sistemas reguladores que em conjunto controlariam a administração gerencial do Estado. As menções à regulação de funções públicas transferidas do Estado a agentes privados são lacônicas e genéricas, não se vislumbrando quais seriam os instrumentos de controle social efetivamente desenvolvidos sob a égide da reforma, apesar de a retórica da participação social ser recorrente na argumentação em defesa dos agentes “não estatais”.

O Plano (Brasil, PR 1995) faz uma distinção nítida entre os escopos de reforma do Estado e do aparelho de Estado. Embora alinhada com os objetivos mais amplos da reforma do Estado como um todo, a reforma do aparelho tem um alcance mais restrito e diz respeito essencialmente à eficiência das atividades consideradas “exclusivas de Estado” a partir de uma divisão funcional de atribuições em quatro grandes setores como segue:

“... NÚCLEO ESTRATÉGICO. Corresponde ao governo, em

sentido lato. É o setor que define as leis e as políticas públicas, e cobra o seu cumprimento. É, portanto, o setor onde as decisões estratégicas são tomadas. Corresponde aos Poderes Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público e, no Poder Executivo, ao Presidente da República, aos ministros e aos seus auxiliares e assessores diretos, responsáveis pelo planejamento e formulação das políticas públicas.

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ATIVIDADES EXCLUSIVAS. É o setor em que são prestados serviços que só o Estado pode realizar. São serviços em que se exerce o poder extroverso do Estado - o poder de regulamentar, fiscalizar, fomentar. Como exemplos temos: a cobrança e fiscalização dos impostos, a polícia, a previdência social básica, o serviço de desemprego, a fiscalização do cumprimento de normas sanitárias, o serviço de trânsito, a compra de serviços de saúde pelo Estado, o controle do meio ambiente, o subsídio à educação básica, o serviço de emissão de passaportes, etc.

SERVIÇOS NÃO-EXCLUSIVOS. Corresponde ao setor onde o Estado atua simultaneamente com outras organizações públicas não-estatais e privadas. As instituições desse setor não possuem o poder de Estado. Este, entretanto, está presente porque os serviços envolvem direitos humanos fundamentais, como os da educação e da saúde, ou porque possuem "economias externas" relevantes, na medida que produzem ganhos que não podem ser apropriados por esses serviços através do mercado. As economias produzidas imediatamente se espalham para o resto da sociedade, não podendo ser transformadas em lucros. São exemplos desse setor: as universidades, os hospitais, os centros de pesquisa e os museus.

PRODUÇÃO DE BENS E SERVIÇOS PARA O MERCADO. Corresponde à área de atuação das empresas. É caracterizado pelas atividades econômicas voltadas para o lucro que ainda permanecem no aparelho do Estado como, por exemplo, as do setor de infra-estrutura. Estão no Estado seja porque faltou capital ao setor privado para realizar o investimento, seja porque são atividades naturalmente monopolistas, nas quais o controle via mercado não é possível, tornando-se necessária, no caso de privatização, a regulamentação rígida.” (Brasil, PR 1995 sec 5.1) Os serviços públicos baseados nas redes de infra-estrutura

pertenceriam, de acordo com as categorias definidas acima, ao conjunto de atividades de “produção de bens e serviços para o mercado”. Na definição desta categoria é feita referência explícita à infra-estrutura e a seu caracter monopolista, ressalvando-se a necessidade de “regulamentação rígida” em função desse caráter. O enquadramento é discutível quando considerado o caráter essencial desses serviços à população e inconstitucional quando se recorda o disposto no art. 175 da Constituição Federal, que estabelece a incumbência de sua prestação ao Estado, diretamente ou em regime de concessão. Os serviços públicos não se confundem com a atividade econômica

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independentemente da personalidade jurídica da entidade a que eventualmente o poder público venha outorgar sua prestação. Isto é o que estabelece a Constituição e esta é a inserção institucional dos serviços públicos no Brasil, explicitada desde a vigência do Código de Águas de 1934. A menção à “regulamentação rígida” é nitidamente associada ao caráter de monopólio natural dos serviços e não a seu caráter público, o que conduz à conclusão lógica de que, caso a estrutura monopolista das redes possa vir a ser superada mediante avanço tecnológico, o “controle via mercado” se mostraria suficiente.

Este erro de enquadramento não parece ser apenas uma mera questão de redação do Plano (Brasil, PR 1995), mas orientação política deliberada ao processo de re-regulação dos serviços públicos em rede no Brasil. A regulação setorial que sucede o desmonte da estrutura institucional do Estado desenvolvimentista17 tem suas competências definidas predominantemente sobre matérias relativas à prestação comercial dos serviços e muito pouco no que respeita a universalização da oferta essencial. A lei 8987/95, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, não menciona uma vez sequer o conceito de serviço público essencial e nem especifica as condições de necessária eqüidade de acesso aos serviços. A maioria de seu conteúdo é dedicado a aspectos comerciais e econômicos dos contratos de concessão e as poucas menções a qualidade e universalidade concentram-se no art. 6º, que define em caráter geral os requisitos de um serviço adequado.

“... Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de

serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

§ 1º Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.

§ 2º A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço.

17 Neste caso referimo-nos ao sistema regulador formal, mantido na estrutura da Administração Direta, e à grande estrutura reguladora de fato que se havia transferido para as empresas estatais que capitaneavam os sistemas setoriais, como Telebrás, Eletrobrás e, no caso do saneamento, a Carteira de Operações de Saneamento do BNH.

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§ 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:

I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,

II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.”

(lei 8987 de 13 de fevereiro de 1995) A lei remete para as “normas pertinentes” e para os contratos de

concessão as definições relativas a requisitos de pleno atendimento aos usuários. Essa flexibilidade na formulação de requisitos básicos de serviço público dá margem a importantes diferenciações entre os sistemas reguladores setoriais que se definem. No caso da energia elétrica as competências estabelecidas para a ANEEL reproduzem, no que respeita o caráter essencial dos serviços, a mesma abordagem genérica da lei das concessões. Em particular fixa apenas a obrigatoriedade de notificação prévia – de 15 dias – no caso de corte de fornecimento por inadimplência a serviços essenciais (lei 9.427/96, art. 17). No caso da ANATEL, a criação da agência reguladora foi determinada no âmbito da Lei Geral de Telecomunicações (9.472, de 16 de julho de 1997), que em seus artigos iniciais estabelece os deveres do poder público com relação às telecomunicações. Entre eles refere-se explicitamente às garantias de acesso aos serviços, a tarifas e preços razoáveis e em condições adequadas a toda a população (art. 2º inc. I) e à criação de condições para que o desenvolvimento do setor seja harmônico com as metas de desenvolvimento social do País (art. 2º inc. V). Em seu artigo 3º estabelece uma lista ampla de direitos dos usuários, para cujo exercício não se aplica – como pré-condição – o pagamento de tarifas.

Sem entrar em mais detalhe sobre cada um dos dois casos e no mérito de suas práticas recentes, fica muito clara a assimetria de tratamento dado à função pública do serviço em cada um desses sistemas reguladores. Sendo ambos produto de uma mesma reforma gerencial do Estado e orientados pelos mesmos princípios gerais de efetividade que a fundamentam, seria de se esperar um grau de compromisso semelhante em relação aos deveres de Estado envolvidos. No entanto a consideração da infra-estrutura e dos serviços a ela relacionados essencialmente como atividade econômica, ainda que sujeita a regulação, parece deixar margem a enormes indefinições. Estas acabam por remeter ao arbítrio de cada setor, segundo o equilíbrio específico de interesses públicos e privados que se articulem

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politicamente no âmbito de cada um deles, a salvaguarda do interesse dos usuários.

Nos termos definidos pelo Plano da Reforma (Brasil, PR 1995) relativamente às categorias de funções exercidas ou reguladas pelo Estado, seria mais razoável enquadrar a infra-estrutura e os serviços públicos em rede como serviços não exclusivos, para cuja prestação concorrem agentes estatais e privados. Caso assim o fosse – não só no texto do Plano de Reforma, mas na condução política do processo de privatização – é provável que os arcabouços institucionais de regulação setorial tivessem um tratamento uniforme, mais identificado com o caráter público dos serviços e menos com sua dimensão de atividade econômica. A parte o correto enquadramento setorial, é importante recordar que a estrutura de regulação aplicável à infra-estrutura e aos serviços públicos não se esgota no âmbito setorial. No processo de restruturação institucional que se desenvolve no Brasil, são identificadas pelo menos mais três grandes sistemas de regulação que dizem respeito à infra-estrutura e serviços conexos (São Paulo, Assembléia Legislativa 1999 p. 34):

“...

- sistema voltado para a garantia da concorrência, que opera basicamente no nível federal, (...);

- sistema de defesa dos direitos dos consumidores, com órgãos situados na esfera estadual (...), além de base jurídica definida em nível nacional no Código de Defesa do Consumidor; e

- sistema de defesa do meio ambiente, com órgãos federais (...) e estaduais (...).”

No caso particular da infra-estrutura urbana é importante incluir também os sistemas municipais ou regionais (regiões metropolitanas, aglomerações urbanas, microrregiões) de planejamento e gestão. A regulação setorial, mesmo que imbuída dos mais legítimos propósitos de garantir o caráter público dos serviços, não tem como controlar todos os processos de captura privada dos benefícios, que se potencializam e diversificam com os avanços da tecnologia e a hegemonia dos mercados. Essa inclusão de múltiplos sistemas em uma estrutura de regulação pública é retomada mais adiante neste capítulo, após discussão sobre os limites da regulação setorial na próxima seção.

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Limites da regulação setorial A regulação dos serviços públicos está longe de ser, no Brasil, um

conceito preciso. São comuns as afirmações, por parte de operadores privados, que o processo de privatização não se completa devido à falta de um “marco regulatório”. Essa expressão, importada diretamente da documentação em espanhol produzida pelas agências internacionais de desenvolvimento, é utilizada predominantemente no sentido de regras claras para a organização dos mercados, com vistas a uma demarcação clara de direitos e deveres dos agentes privados dispostos a investir no setor. Na construção desse raciocínio são também comuns as afirmações de que o Brasil não teria experiência em regulação, o que tem ensejado a contratação de consultorias estrangeiras para montar o chamado “marco regulatório”. As “modelagens” produzidas por consultorias estrangeiras têm contemplado, como regra, apenas os aspectos formais e comerciais de gestão de contratos de concessão e pouco têm a ver com um conceito mais amplo de regulação pública, exercida em nome do interesse público.

Chama atenção, como processo elucidativo dessa divergência acerca da regulação, o caso do setor saneamento, até agora carente de uma estrutura reguladora definida. Esse setor, dentre as diferentes modalidades de infra-estrutura, foi o primeiro a sofrer um processo de desregulação, antes ainda da onda reformadora privatista dos anos 90. Em 1986, com a extinção do BNH, desmontava-se a principal estrutura reguladora que controlava a ação das empresas estaduais de saneamento básico, responsáveis pela prestação de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário na maioria das cidades brasileiras18. Mediante imposição de condições específicas ao financiamento, o BNH – por meio da Carteira de Operações de Saneamento – estabelecia padrões de prestação de serviços, estabelecia taxas de retorno a investimentos do setor e acompanhava sistematicamente o desempenho das companhias a partir de indicadores padronizados. Extinto o BNH, a gestão dos recursos do Sistema Financeiro do Saneamento passou a ser feita pela Caixa Econômica Federal, mas esta não herdou do Banco nem as prerrogativas e nem a capacitação técnica para continuar exercendo a função reguladora daquele. Teoricamente a regulação passaria a ser exercida pelos órgãos da administração direta investidos dessa

18 Fora as companhias estaduais de saneamento também era significativa, mas em escala bastante mais reduzida, a presença dos serviços municipais autônomos, que não concederam seus serviços às concessionárias estaduais. Estes não eram regulados pelo BNH e por isso até 1985 – quando da revisão do Sistema Financeiro do Saneamento – tiveram acesso negado aos recursos do PLANASA, que congregava as principais linhas de financiamento federal do setor, pouco antes da extinção do BNH.

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competência, inicialmente a Secretaria de Saneamento do Ministério do Desenvolvimento Urbano e seus sucessores19. Mas desde a primeira secretaria de saneamento e em todos os órgãos da administração direta que a sucederam, ficou clara a necessidade de estabelecer um sistema regulador mais estável, possivelmente na administração indireta, em face da complexidade do setor e da instabilidade institucional que essa área sofria na esfera da administração direta (ver última nota). Em 1993, por iniciativa do Programa de Modernização do Setor Saneamento20, iniciava-se um trabalho de diagnóstico e propostas institucionais que envolveu entidades técnicas, setoriais e universitárias de todo o país, que resultou em uma série de 18 volumes publicados contendo o mais profundo diagnóstico do setor jamais realizado e, em seu primeiro volume (INFURB 1995), continha os fundamentos de uma nova institucionalização pública para o setor.

A proposta de institucionalização, em linhas gerais, partia do reconhecimento do estado da arte do setor quanto a suas estruturas institucional e tecnológica e propunha um processo gradual de envolvimento de agentes privados na prestação dos serviços, com o cuidado de não perder a capacidade instalada e a capilaridade de cobertura já atingida às custas de pesados investimentos públicos efetuados sob a égide do PLANASA21. Um dos aspectos cruciais apontados naquela proposta era o fato de que a organização dos serviços em escala estadual, promovida pelo PLANASA, não poderia ser abruptamente desmontada, sob pena de elevado custo social. A lógica de conexão econômica e operacional dos serviços no modelo do PLANASA era fortemente baseada na prática de subsídios cruzados, mediante a qual as áreas de cobertura financeiramente viáveis gerariam excedentes destinados à cobertura de áreas onde a receita tarifária não fosse suficiente para cobrir o custo pleno dos serviços. Esta foi a principal justificativa para a organização das companhias estaduais e

19 O Ministério do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, criado em 1985, passou a Ministério da Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente em 1987, a Ministério da Habitação e do bem estar Social em 1988, foi extinto em 1989 e recriado em 1990 como Ministério da Ação Social. Em 1995, já no primeiro mandato do Governo Cardoso, a área de política urbana foi recomposta em uma Secretaria de Política Urbana no Ministério de Planejamento e Gestão, que no segundo Governo Cardoso, iniciado em 1999 foi transformada em uma Secretaria Especial ligada à Presidência da República. Todas essas mudanças contribuíram para o enorme esvaziamento da política de saneamento. 20 PMSS – projeto de cooperação internacional, firmado entre o PNUD e o Governo do Brasil, para modernização institucional do setor saneamento. O projeto foi inicialmente coordenado pelo IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, onde se localizava sua UGP e depois passou a vincular-se ao Departamento de Saneamento que se formara na SEPURB, já na área de Planejamento do governo. 21 Plano Nacional de Saneamento Básico, integrante do Sistema Financeiro do Saneamento.

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para a definição de estruturas operacionais que extrapolavam as jurisdições municipais. Em vários estados, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, a extensão dos serviços a municípios do interior foi inteiramente baseada nos excedentes gerados nas respectivas capitais. Essa concepção implicou não só um modelo gerencial de compensação de receitas, mas também condicionou a estrutura tecnológica de prestação dos serviços e por isso a dificuldade de reversão apontada naqueles estudos. Eram elementos vitais da estrutura institucional de regulação e controle dos serviços de saneamento, nos termos da proposta trabalhada pelo INFURB (1995) para o PMSS, os seguintes:

i) a separação nítida entre a titularidade e a operacionalidade dos serviços;

ii) a integração intra-setorial e inter-setorial; iii) a articulação inter-governamental; iv) o controle social; v) normas claras sobre essencialidade, qualidade, aproveitamento

de recursos naturais, desempenho operacional, controle econômico e outras matérias relacionadas com a prestação dos serviços;

vi) os instrumentos de fiscalização; vii) o poder para obrigar a observância da regulação por todos os

agentes; ix) o livre fluxo de informações sobre o saneamento e sobre os

serviços; viii) a flexibilidade das formas de prestação dos serviços; x) a descentralização da prestação dos serviços.

Essa estrutura seria coordenada, em âmbito nacional, por uma entidade autárquica federal, denominada Conselho Nacional de Saneamento, que reuniria em sua estrutura um colegiado de ampla representatividade e uma linha operativa suficiente para exercer as funções previstas. Esta entidade constituiria a instância administrativa máxima de regulação, controle e coordenação executiva do saneamento em todo o território nacional.

Constituiriam objeto de trabalhos normativos das entidades reguladoras, de acordo com sua esfera de competência22, dentre outros:

a) os parâmetros e critérios de essencialidade dos serviços;

b) os parâmetros e critérios de qualidade dos serviços;

c) as medidas de conservação dos recursos naturais, em especial da água de abastecimento público;

22 O sistema previa uma articulação de competências federal, estadual e municipal de acordo com as características operacionais e o alcance jurisdicional de cada sistema.

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d) os indicadores e critérios de avaliação do desempenho operacional dos serviços;

e) o disciplinamento econômico dos serviços, particularizando no que couber a legislação de defesa da ordem econômica;

f) os regimes de concessão, permissão, autorização e outros;

g) as formas de contabilização de receitas e despesas de operação, de investimentos, de pessoal, de custos financeiros e outros;

h) a política tarifária, incluindo as formas de destinação de subsídios aos usuários pobres, os limites e as bases de cálculo admissíveis;

i) os critérios para acesso a recursos subsidiados para atendimento essencial;

j) os elementos de aprovação de projetos;

k) a caracterização de infrações à regulação vigente;

l) a fixação de medidas punitivas a infrações.

No curso do processo de formulação das propostas do INFURB para

o PMSS, o PLC 199 já tramitava no Congresso Nacional. O conteúdo do projeto havia sido amplamente debatido entre as entidades setoriais e refletia uma posição de consenso entre elas. Um dos efeitos negativos do Planasa foi a exclusão dos municípios que não aderiram às empresas estaduais - mediante concessão - do acesso ao crédito, o que deu margem a profundas divergências entre as entidades municipais autônomas e as companhias estaduais.

No processo de discussão do PLC 199 essas divergências foram enfrentadas e o texto - que estava longe de ser perfeito - tinha o mérito de propor instrumentos eficazes para sua superação. Por isso foi importante que o PMSS, de uma posição inicialmente muito crítica ao PLC 199, evoluísse para uma posição de acolhida e de soma de esforços com as entidades que negociaram aquele projeto, inclusive mediante sua inclusão no conselho diretor do PMSS.

Do ponto de vista técnico e metodológico, várias adaptações e ampliações deveriam ser feitas na lei. Estas alterações contariam com a boa vontade das entidades do setor desde que não representassem um bloqueio à tramitação do projeto no Congresso e fossem introduzidas no âmbito de outros instrumentos que viessem a revogar parcialmente a lei

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eventualmente promulgada a partir do PLC 199. Uma vez que o projeto já estava em fase de aprovação no Senado, seria impossível a alteração de seu texto original ou a inclusão de emendas em seu corpo. Seriam todavia aceitáveis, politicamente, vetos parciais ao projeto quando remetido à sanção presidencial, com vistas à compatibilização com os instrumentos que estavam sendo debatidos (e, em sua maioria, bem aceitos).

Quatro dias após a posse do primeiro Governo Cardoso, em janeiro de 1995, as entidades do setor foram surpreendidas com o veto integral ao PLC 199, fundamentado em parecer sumário do Ministro da Fazenda, que considerava a criação do Conselho Nacional de Saneamento "contrária ao interesse público". Além do impacto negativo dessa atitude sobre as entidades representativas do setor, os trabalhos de formulação do sistema de regulação e controle desenvolvidos no âmbito do PMSS também sofreram o impacto do veto. Uma vez que as propostas de ordenamento foram desenvolvidas de modo a justapor-se ao conteúdo do PLC 199, grande parte de seus instrumentos específicos ficou prejudicada.

O veto integral – motivado fundamentalmente pelo rechaço ao fundo nacional de saneamento básico que integrava o projeto – teve como conseqüência uma polarização de posições e um esvaziamento dos amplos debates que caracterizaram as etapas iniciais de elaboração da proposta do PMSS. Na área de saneamento da Secretaria Nacional de Política Urbana, porém, os trabalhos de aprofundamento técnico e institucional da proposta de reestruturação do setor continuavam, a despeito da enorme desconfiança que o veto gerou entre os agentes do setor.

Quando os processos de privatização dos setores de energia elétrica e telecomunicações já estavam mais adiantados, ao final do primeiro Governo Cardoso, as atenções dos investidores privados, da mídia e da área econômica do governo voltaram-se para o saneamento, que se afigurava como a próxima área promissora com grande potencial de atração a investimentos privados. Foi então que, na linha dos demais setores que foram objeto do Programa Nacional de Desestatização, o setor saneamento também viria a ser objeto de uma consultoria privada para estabelecimento do “marco regulatório”, por encomenda do BNDES. Sem entrar no mérito do conteúdo da proposta reguladora elaborada pela consultoria privada – até hoje não tornado público pelos demandantes – o que deixou perplexas as entidades participantes do enorme esforço de sistematização consubstanciado na série “Modernização do Setor Saneamento” é que todo esse trabalho foi simplesmente ignorado para fins de elaboração da proposta reguladora

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do PND. E aí surge uma ilustração clara relativamente à ambigüidade do conceito de regulação levantada no início desta seção.

A proposta reguladora do PMSS, independentemente das lacunas e dos problemas que tivesse, tinha como enfoque fundamental para a regulação o conceito de regulação pública em seu sentido mais amplo, de salvaguarda do interesse público. O conceito de regulação subjacente às propostas de “marco regulatório” encomendadas a consultorias privadas é voltado predominantemente à regulação do contrato de concessão e das relações que a partir dele se estabelecem entre poder concedente e concessionária. Mais do que uma particularização de enfoque, essa visão restrita de regulação envolve uma mudança importante de pertinência dos serviços públicos entre as obrigações do Estado e de responsabilização da sociedade em seu todo com respeito aos cidadãos mais pobres e vulneráveis. Existe uma diferença conceitual profunda entre a regulação pública do Estado de bem-estar e a regulação comercial ou “econômica” – em sentido estrito – do Estado neoliberal.

Na regulação “econômica” do fim do Século XX, originada no âmbito das reformas privatizantes do Governo Thatcher na Grã Bretanha e pela “desregulação” do Governo Reagan, procura-se submeter a regulação ela mesma a uma lógica econômica. Passa-se a considerar os custos e benefícios da regulação (Swann 1988; Washington Post 1995) e, no contexto da volta do privatismo, desregular tudo o que for possível23. Mas essa desregulação não pode ser vista como um simples movimento de retirada de regulamentos públicos sobre atividades em particular. Trata-se de uma retirada da regulação que definia compromissos do Estado de bem-estar. Nesse sentido o conceito de Estado regulador confunde-se com o de Estado de bem-estar ou – no caso dos países capitalistas periféricos – com o de Estado desenvolvimentista, no sentido de que ele (Estado) regula a promoção do bem-estar ou desenvolvimento. Nas palavras do Prof. Boaventura Souza Santos

“... A expansão da capacidade reguladora do Estado nas sociedades

capitalistas assumiu duas formas principais: o Estado Providência no

23 Importante observar que a análise de custos e benefícios não é uma técnica neutra. A aplicação de seus procedimentos em diferentes âmbitos de contabilização e a ponderação de custos e benefícios não diretamente expressos pelo preço de mercado dos bens e serviços envolvidos – como é o caso da regulação – podem conduzir a resultados muito diferenciados entre si. Se, por exemplo, o benefício de uma regulação ambiental for considerado no horizonte temporal de uma ou duas décadas, provavelmente resultará inferior a custos representados pela perda de dinamismo econômico. No entanto se considerada em um horizonte maior, que abrange compromissos com as gerações futuras, pode mostrar benefício líquido positivo.

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centro do sistema mundial e o Estado desenvolvimentista na periferia e semiperiferia do sistema mundial. À medida que estatizou a regulação, o Estado fez dela um campo de luta política e nessa medida ele próprio se politizou. Tal como a cidadania se constituiu a partir do trabalho, a democracia esteve desde início vinculada à socialização da economia. Ou seja, a tensão entre capitalismo e democracia é constitutiva do Estado moderno, e a legitimidade deste, maior ou menor, esteve sempre vinculada ao modo mais ou menos equilibrado como resolveu essa tensão.”

(Santos 1998, p. 7). Portanto quando se fala em desregulação no contexto das políticas

de liberalização econômica dos anos 80 e 90, está-se falando da retirada das regulações relacionadas ao contrato social, que na periferia do capitalismo – como mostrado por Santos (1998) – foi executado e afiançado pelo Estado desenvolvimentista. Existe porém um outro movimento, no sentido de estabelecer uma nova regulação a mediar as relações comerciais entre os agentes da economia, à qual vários autores referem-se como “re-regulação”. Trata-se de construir novas estruturas reguladoras que – diferentemente do sentido “providência” do Estado regulador intervencionista – vão mediar relações de contrato civil entre partes privadas e não mais regular a aplicação do contrato social onde se definem os direitos individuais e coletivos de todos. A este conjunto de medidas constituído, por um lado, pela retirada da regulação explícita ou implícita associada ao Estado intervencionista e, por outro, pela construção de uma nova estrutura reguladora de corte predominantemente comercial e centrada na contratualidade civil – em contraposição ao contrato social amplo – se tem chamado genericamente reforma reguladora. Para seus defensores, esta nova regulação tem como principais qualidades o fato de ser explícita e de restringir-se ao mínimo necessário para cobrir falhas de mercado, de acordo com a máxima de “competição onde possível, regulação onde necessário” (Kay e Vickers 1988 p. 224, tradução livre).

A terminologia empregada na retórica neo-conservadora e largamente repercutida pela mídia sobre a regulação dos serviços públicos tem dado origem a enormes mal entendidos. No processo de criação de novas estruturas reguladoras de corte setorial e escopo predominantemente comercial, a ambigüidade dos objetivos declarados quer fazer crer ser esta a verdadeira regulação que resgataria os serviços a favor do interesse público, na pretensão de passar a regular relação até então objeto de um vazio regulamentar. Nada mais falso, pois na verdade a regulação setorial das agências, dos contratos, das relações bi-

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laterais entre prestadores e consumidores de serviços públicos, típicos da reforma reguladora neo-conservadora, constituem uma estrutura normativa mais restrita que a da regulação pública ampla que presidia o Estado desenvolvimentista. Os sistemas de oferta de infra-estrutura formados no Brasil a partir da década de 1930, paulatinamente nacionalizados ao longo das décadas de 1940 e 50 e consolidados sob um modelo de execução privilegiada por empresas estatais ou de economia mista a partir da vigência do decreto-lei 200 de 1967, constituíram estruturas altamente reguladas, ainda que não se identificassem com designações explícitas e separadas do conjunto das normas e procedimentos administrativos os institutos relacionados à regulação setorial em sentido estrito.

O conceito de “regulação independente”, freqüentemente evocado no sentido de institutos menos vulneráveis à ação política do governo, é também ambíguo. Se por um lado o estatuto de formação das agências reguladoras de fato confere mandatos a seus dirigentes e impede sua cassação por ato unilateral do governo, por outro não estabelece salvaguardas explícitas contra a ingerência de agentes privados poderosos em sua gestão. O modelo das agências reguladoras é originário das organizações institucionais norte-americana e britânica, fundadas no privatismo como tradição política mais expressiva e no controle da sociedade exercido mediante institutos do direito consuetudinário. Independentemente dos problemas vividos por eles mesmos na assunção de procedimentos de mercado na gestão das políticas públicas (Hula 1988; Kettl 2000), a reforma reguladora do Estado gerencial não implicou nenhuma mudança radical na organização básica das instituições do Estado. Este não é o caso de países como o Brasil, onde o controle público da ação governamental funda-se nos institutos do direito administrativo e a tradição política do patrimonialismo ainda se faz presente mesmo após várias décadas de gestão burocrática da coisa pública. Aqui a reforma reguladora, por introduzir figuras institucionais alheias à tradição administrativa do país, implica abrir mão de institutos típicos do Estado burocrático sem que se tenham amadurecido novas alternativas de controle público. E nesse vazio de controles reside a vulnerabilidade das agências reguladoras setoriais a agentes privados poderosos, o que as torna na prática muito menos “independentes” do que faz crer a retórica do gerencialismo.

As agências reguladoras setoriais quando inseridas na organização institucional anglo-saxã apresentam uma grande variação de objetivos específicos e de intensidade no intervencionismo que exercem sobre as atividades reguladas. A reforma gerencial do Estado associada tanto ao

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projeto neo-conservador da desregulação como aos desígnios mais recentes da “terceira via” social democrata da regulação mais eficiente não chegou a alterar por inteiro e por igual o complexo regulador de origem. Existe diferenciações importantes entre as várias agências e comissões e é sempre importante lembrar que, no caso dos EUA, tanto a regulação ampla do Estado providência, como a re-regulação comercial do neo-conservadorismo de Reagan e da agenda republicana de 1995 para o Congresso são executadas em última instância pelas mesmas entidades específicas.

Um estudo recente promovido pelo NARUC – National Association of Regulatory Utilities Commissions – relativo às diferentes formas de organização e níveis de autonomia decisória das entidades reguladoras de serviços de abastecimento de água nos EUA (Williams et al. 1998) definiu uma escala baseada no papel reativo ou pró-ativo das entidades que, ao final, identifica-se com a intensidade do compromisso de cada uma delas com respeito ao caráter público dos serviços. Trata-se de uma escala de escopo das agências reguladoras, que varia desde um nível simplesmente reativo e de suporte aos usuários até um nível de responsabilidade abrangente sobre a política de abastecimento de água na jurisdição correspondente.

“...

1. A Comissão [entidade reguladora] atende, conforme regulamentos, a solicitações de serviço encaminhadas pela companhia e pelos usuários.

2. A Comissão [entidade reguladora] acompanha por iniciativa própria os serviços das companhias reguladas.

3. A Comissão [entidade reguladora] supervisiona a operação das companhias reguladas, inclusive eficiência nas atividades de operação e planejamento.

4. A Comissão [entidade reguladora] é ativa em [todos os] assuntos ligados à indústria privada da água, inclusive legislação, estrutura da indústria e padrões de qualidade de outras agências.

5. A Comissão [entidade reguladora] é ativa em todos os assuntos relacionados com o abastecimento de água e não se limita ao [escopo dos] serviços ofertados pelas companhias hoje reguladas. ...” (Williams et al 1998, p 5. Tradução livre).

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Há uma consideração cumulativa de requisitos, segundo a qual um determinado nível de desempenho não pode ser atingido sem que o anterior tenha sido preenchido. O NARUC reconhece que o grau mais abrangente de atuação, em modo pró-ativo, é condição necessária para que as entidades reguladoras cumpram seu papel de garantir o caráter público dos serviços. No entanto, mostra que quanto mais alto o nível na escala apontada, mais recursos e capacitação são necessários. Em correspondência à abrangência dos escopos contemplados, são definidas três categorias de capacitação e recursos requeridos.

A primeira, que abrange entidades predominantemente reativas e centradas em questões tarifárias, demandaria basicamente capacitações em auditoria financeira e fiscal, com envolvimento leve no acompanhamento de qualidade. A segunda corresponde a entidades que se envolvem com a operação dos serviços regulados e demandam capacitação adicional em operação e gestão dos serviços, com vistas a apoiar tecnicamente as companhias. A terceira corresponde a uma regulação pró-ativa abrangente, em que a entidade se envolve não só com os negócios dos serviços regulados mas com tudo o que envolve direta ou indiretamente a política de abastecimento de água. Requer, adicionalmente às exigências das categorias 1 e 2, capacitações em planejamento de longo prazo, acompanhamento amplo do estado da arte da indústria fora de sua jurisdição, monitoramento da demanda e promoção de iniciativas legislativas, em articulação com outros reguladores.

As entidades reguladoras criadas sob a égide da re-regulação neo-conservadora dos anos 80 e 90 no Brasil e outros países latino-americanos dificilmente atingiriam, na escala de autonomia e alcance de escopo proposta pelo NARUC, mais do que o nível 2. Não é apenas um problema da forma como foram estabelecidos seus estatutos, mas é uma questão de pertinência das agências no conjunto do sistema regulador público. A relação desta regulação com os institutos tradicionais do Estado burocrático é falha, pois aos princípios básicos de controle de resultados, típicos do Estado gerencial e de suas novas estruturas reguladoras de corte comercial, contrapõe-se uma cultura burocrática apenas aparelhada para controlar procedimentos. Por outro lado a retórica ambígua do governo e dos formadores de opinião no sentido de atribuir mais alcance do que o que efetivamente pode ter a regulação setorial no modelo que emerge, acaba por gerar confusão e prejudicar o avanço de novas articulações institucionais que possam vir a resgatar um sentido mais amplo de controle público sobre os serviços.

Na concepção de Estado gerencial aplicada ao processo de reforma dos países capitalistas avançados, a regulação pública não se esgota no

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âmbito dos institutos setoriais; ao contrário, o encolhimento do escopo regulador setorial ensejaria a pertinência dos serviços em rede a outros sistemas reguladores. É só na periferia do sistema capitalista que o processo de reforma fica centrado setorialmente na desregulação do bem-estar e na re-regulação comercial, sem que se desenvolvam as articulações sistêmicas com os âmbitos de regulação supra-setorial. E é exatamente nos países periféricos que a regulação ampla se impõe como necessidade básica de garantia do caráter público dos serviços, pois nestes, diferentemente dos países capitalistas avançados, a privatização se dá sobre redes que ainda não atingiram a maturidade de atendimento universal às necessidades básicas da população.

Elementos para uma regulação supra-setorial dos serviços As redes de infra-estrutura e serviços delas derivados envolvem

inúmeros desdobramentos sobre a estrutura urbana e regional e sobre a eqüidade social. São desdobramentos complexos, que envolvem a ação de múltiplos agentes estranhos a cada um dos setores de infra-estrutura e que por isso não são passíveis de controle no âmbito setorial em si mesmo. Esses desdobramentos são tanto mais significativos quanto maior for a escassez relativa dos serviços e, por conseqüência, maior a disputa pelo acesso a eles.

Todas as redes de infra-estrutura têm um duplo caráter de servir, por um lado, às condições gerais de produção econômica e, por outro, às necessidades de reprodução social. Em qualquer sociedade, porém, não existe consumo sem produção e por isso os desígnios da produção econômica antecedem os da reprodução social. Nos países capitalistas mais avançados, a oferta de serviços para a produção expandiu-se rapidamente e logo, em um processo histórico mais breve que os dos países mais pobres, os excedentes de oferta se mostraram suficientes para satisfazer toda a demanda social. A história dos serviços de energia elétrica e gás nos EUA, como mostra Rose (1995), é marcada por uma expansão acelerada de oferta para o consumo, que estabeleceu uma relação de mútuo crescimento – e muitas vezes de ligação comercial – com a indústria de eletrodomésticos. Nem sempre essa expansão inclui os grupos mais pobres: o próprio Rose (1995) mostra que na estrutura tarifária dos serviços ofertados na área de Denver, nos anos 30, havia um deliberado direcionamento da oferta à área mais ricas, aptas a consumir os equipamentos cuja indústria se associava às companhias energéticas na expansão do mercado. No entanto, passado o período inicial de cobertura diferenciada às áreas mais ricas, nos EUA e nos demais países capitalistas avançados, a oferta das redes de infra-estrutura e serviços públicos passou a cobrir indistintamente áreas ricas e pobres, atingindo um estágio de universalização do acesso. É nesse

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estágio, já amadurecido, que se processaram a privatização britânica e a desregulação americana dos anos 80.

Quando transposto para os países capitalistas periféricos, o binômio privatização / desregulação encontra um quadro muito distinto. Em que pese os avanços notórios de capacidade e cobertura logrados sob o modelo de oferta estatal24, estes não foram suficientes para garantir universalidade de acesso e os grupos excluídos desse acesso são aqueles mais pobres e vulneráveis. Por outro lado, o desmonte dos esquemas de financiamento estatal muito antes que se criasse uma estrutura receptiva aos investimentos privados tem provocado restrições de oferta já não mais circunscritas aos grupos de menor renda, mas que atingem também os estratos médios e altos da sociedade. É nesse quadro de escassez e de disputa por novas capacidades que se processa a privatização dos setores de infra-estrutura.

A este juntam-se ainda dois processos associados à desregulação da economia em geral, que sagravam a tensão distributiva das novas capacidades. O primeiro diz respeito ao aumento do desemprego urbano e a novas demandas essenciais com vistas à reinserção na atividade econômica. O segundo diz respeito à combinação da oferta privada de serviços com a especulação imobiliária, criando áreas privilegiadas de acesso. Ambos esses processos são discutidos em maior detalhe em outros trabalhos (Silva 2000a,b), mas de forma esquemática se dão como explicado a seguir.

A relação entre desemprego urbano e necessidade de acesso à infra-estrutura se dá basicamente pela ruptura dos padrões de trabalho da indústria, segundo os quais a capacidade de serviços públicos que cada trabalhador consumia para exercer sua atividade econômica se dava essencialmente no local de trabalho. Dessa maneira, aquilo que o trabalhador necessitava de acesso à infra-estrutura em seu local de moradia restringia-se às necessidades de reprodução social. Com base nessas necessidades foram estabelecidos, nos diferentes setores, padrões mínimos de consumo essencial que corresponderiam à satisfação das necessidades básicas de saúde, higiene, segurança e outras, sempre relacionadas a uma função de consumo das famílias. Em água, por exemplo, convencionou-se a necessidade de um consumo mínimo diário

24 Diferentemente do discurso neoliberal incorporado ao senso comum, a oferta estatal no Brasil foi eficiente e promoveu expansões inéditas de capacidade. No setor de energia elétrica, por exemplo, a capacidade instalada de aproximadamente 4000 MW em meados da década de 1950 multiplicou-se por 15 nas três décadas seguintes, sob o sistema Eletrobrás; as coberturas urbanas de água e de esgoto, de respectivamente 45% e 20% em fins da década de 1960 saltaram para cerca de 85% e 40% sob o PLANASA até fins dos anos 80. A se considerar a vigorosa expansão de população urbana no período, essa ampliação de cobertura envolve saltos gigantesco em capacidades absolutas.

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de 50 litros por pessoa para satisfazer as necessidades elementares de sobrevivência e higiene e de aproximadamente 80 litros para um nível básico de salubridade e conforto do lar (ver INFURB 1995). Outros padrões foram estabelecidos para energia elétrica, coleta de lixo, comunicações e outros, sempre baseados nas necessidades básicas de consumo. Em nenhum desses casos pensou-se que em uma situação de diminuição drástica do emprego formal urbano, os trabalhadores começariam a ter que se utilizar do acesso doméstico à infra-estrutura para exercer atividades remuneradas. Isso é o que se dá quando as confecções descentralizam sua produção e compram peças semi-elaboradas de trabalhadores autônomos, ou quando a população de menor renda presta uma extensa gama de serviços autônomos aos grupos mais abastados ou exerce por conta própria atividades de apoio ao setor formal. A quantificação desta nova demanda ainda é desconhecida.Trabalhos de pesquisa hoje em curso no Núcleo de Pesquisa em Informações Urbanas da USP, em colaboração com o Instituto de Pós Graduação em Planejamento Urbano e Regional – IPPUR da UFRJ, procura detectar a magnitude dessa demanda nas principais metróples brasileiras25.

A relação entre oferta desregulada e articulação com empreendimentos imobiliários na criação de espaços privilegiados na cidade, não é um processo novo, mas reaviva-se sob a égide da liberalização generalizada da economia e relaxamento dos instrumentos burocráticos de controle. Um dos precedentes mais notórios dessa combinação de interesses foi a participação da antiga Light de São Paulo nos empreendimentos imobiliários que nas primeiras décadas do Século XX deram origem aos bairros Jardins, os mais nobres da cidade, a partir da oferta combinada de bondes elétricos, operados pela concessionária de energia. Hoje são comuns as participações cruzadas de empreendimentos privados de infra-estrutura e desenvolvimento imobiliário na criação de áreas privilegiadas como, no caso de São Paulo, o eixo formado pela Av. Berrini,e sua continuação pela Chácara Santo Antônio na zona sul da Capital. O poder indutor da infra-estrutura ou o condão desta em criar novos valores imobiliários é objeto de controvérsia na literatura especializada. Como argumenta Offner (2000), é discutível a relação de causalidade entre a valorização imobiliária e a oferta de infra-estrutura, pois esta pode ser subseqüente àquela. No entanto o próprio autor reconhece, que independentemente

25 “Acesso a Infra-estrutura Urbana e Desigualdades Sociais em Metrópoles Brasileiras. Relações com a produtividade do trabalho”. Projeto de pesquisa no âmbito da rede METRÓPOLES: DESIGUALDADES E GOVERNANÇA URBANA RIO DE JANEIRO, SÃO PAULO, BELO HORIZONTE E PORTO ALEGRE, integrante do PRONEX, coordenado pelo primeiro.

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da ordem que determina os processos, a concentração das melhores ofertas em áreas mais valorizadas tem um papel central na definição de desigualdade de acesso às capacidades de infra-estrutura. Na mesma linha argumenta Graham (2000) sobre a formação de áreas “premium” nas cidades, onde se concentram formas privadas e diferenciadas de apropriação dos serviços em rede, principalmente os mais sofisticados na área de tecnologia de informação.

A leitura e interpretação desses processos não é tarefa trivial. Quando os sistemas estão em suas fases iniciais de implantação, a identidade de áreas servidas ou não servidas se faz de forma relativamente simples, segundo um critério de ter ou não ter, de estar coberta ou não. À medida que os sistemas vão se espalhando pela mancha urbana para atingir diferentes áreas, fica muito difícil estabelecer as condições de acesso de cada área, pois aparentemente existe uma universalização de cobertura. Na realidade, entretanto, continua a existir uma grande diferenciação de qualidade e quantidade de acesso, para cujo controle se requerem sistemas de informação e acompanhamento mais complexos que os anteriores. Exemplo disso pode ser tomado a partir das metas de universalização dos serviços de telefonia fixa: se fixadas de forma geral, indiscriminada no território, podem ser atingidas de forma relativamente fácil mediante o atendimento redundante a usuários já conectados a partir da oferta de segundas, terceiras ou mais conexões em um mesmo endereço. Essa multiplicação de conexões redundantes aumenta a média de atendimento na área operacional como um todo mas não implica que se tenha atendido a demanda mais desprovida, que se concentra na periferia da rede, e para cujo atendimento seriam necessários pesados investimentos na expansão da rede física. O mesmo se pode afirmar com relação a índices médios de interrupção de fornecimento e outros apropriados em escala geográfica de toda a área operacional, que ao fim mascaram as desigualdades de acesso no interior da área.

Em um país marcado pela concentração de renda como o Brasil, é natural que tais desequilíbrios se agravem no contexto de uma oferta desregulada. Desregulada não quanto à formalidade dos contratos de concessão e direitos e obrigações comerciais, mas quanto ao caráter público dos serviços. E para o resgate dessa dimensão reguladora é indispensável que se considere – a par dos instrumentos setoriais de regulação – os múltiplos sistemas institucionais que podem em seu conjunto resgatar o controle público sobre os serviços.

Autores que abordam a reforma reguladora na Europa e nos Estados Unidos, em textos organizados e editados por Majone (1988) em obra pioneira sobre o entendimento desse processo, convergem em sua

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maioria para a identificação de duas pertinências adicionais à setorial, no processo de re-regulação dos serviços públicos: (i)

aos sistemas de defesa da concorrência; (ii) aos sistemas de regulação ambiental. No caso dos países europeus a pertinência a esses dois sistemas é simultaneamente remetida para o âmbito da regulação comunitária européia. Em trabalho anterior (Silva 1999) trabalhamos a hipótese de que teoricamente seria possível ter uma pertinência reguladora análoga também para o caso do Mercosul, desde que as normas nacionais de defesa da concorrência e de proteção ambiental fossem harmonizadas a diretrizes comuns. Por ora, entretanto, essa possibilidade ainda não se afigura realizável, pois nem mesmo no plano nacional existe articulação entre os sistemas reguladores setoriais e aqueles dois grandes sistemas supra-setoriais.

A pertinência dos serviços públicos em rede aos sistemas de defesa da concorrência é matéria bastante controvertida. Conforme mostra Neale (1960) a criação mesma das agências e comissões reguladoras setoriais de serviços públicos partiu do reconhecimento de que tais serviços, por constituírem necessariamente estruturas de monopólio, não seriam passíveis de enquadramento nos sistemas de defesa da concorrência. Ainda que ao longo da história reguladora americana e britânica do Século XX anterior à reforma dos anos 80 tenha havido casos marcantes de intervenção do sistema antitruste em práticas de abuso do poder econômico por parte de prestadores privados de serviços26, não se verificava até então uma inserção sistemática no sentido de cobrar competitividade em relação ao serviço regulado como tal.

A privatização britânica dos serviços públicos iniciada na segunda metade da década de 1980 teve como base organizacional a restruturação tecnológica dos serviços. Diferentemente da cultura reguladora de serviços públicos reconhecidos como monopólios e como tal passíveis de controle estrito, a proposta neo-conservadora britânica tinha como pressuposto que a restruturação tecnológica implicaria a transformação dos serviços em atividades competitivas, especialmente mediante separação vertical de escopos funcionais27. Com base nesse

26 Por exemplo, Smith v. Ilinois Bell Telephone Company (em A. Kahn 1970 – The Economics of Regulation apud Silva 1999), como caso de empresa regulada de serviço telefônico que obtinha lucros extraordinários com a fabricação e venda dos materiais e equipamentos (inclusive aparelhos telefônicos) relacionados ao serviço e que foi obrigada a incluir esses lucros extraordinários na margem de retorno regulada. 27 A “desverticalização” dos serviços consiste na separação técnica e gerencial das fases de produção central de capacidades (geração de energia, produção de água, tratamento de esgoto), de distribuição arterial (transmissão de energia, rede adutora) e de distribuição capilar, criando condições para que diferentes operadores compitam entre si pela prestação do serviço no segmento.

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pressuposto a regulação setorial seria sensivelmente reduzida e os serviços passariam a ter pertinência – como atividades competitivas que seriam – ao sistema de defesa da concorrência. Ocorre que as reformas tecnológicas necessárias a transformar os serviços em competitivos demandariam muito mais tempo e muito mais dinheiro do que imaginado pelos idealizadores desse processo (Bishop e Kay 1988). Diante dessas limitações o governo decidiu privatizar monopólios inteiros, com a mesma estrutura tecnológica vigente sob o regime de oferta estatal, remetendo a restruturação tecnológica para o futuro.

Com um desenho regulador mais leve, voltado para estruturas teoricamente competitivas, as novas agências setoriais britânicas não se mostraram aptas a controlar os monopólios privados que de fato se formaram a partir da privatização plena de estruturas verticais herdadas do modelo de oferta estatal. Os relatos de Davis e Flanders (1995) sobre o caso do gás, de Weyman-Jones (1995) sobre o setor elétrico e de Rees e Vickers sobre o regime de remuneração pelo preço, todos relativos à realidade dos serviços britânicos nos primeiros anos da década de 1990, não deixam dúvidas quanto à insuficiência da regulação setorial no período. Foram recorrentes as intervenções do sistema de defesa da concorrência – naquele país representados pelos Monopoly and Mergers Commission e pelo Office for Fair Trading – não como suporte a uma pretendida competitividade lograda pela privatização, mas como socorro à insuficiência dos reguladores setoriais diante de flagrantes abusos cometidos pelos novos operadores privados. Mas mesmo os instrumentos da regulação antitruste não se mostraram suficientes para controlar novas formas de dominação que se estabelecem quando prestadores de serviços operando diferentes escopos de redes – por exemplo, energia elétrica e telecomunicações, ou abastecimento de água e limpeza urbana – resolvem praticar subsídios cruzados internos, a partir dos quais viabilizam sua entrada em segmentos competitivos às custas da super-exploração dos segmentos cativos

Análises de pesquisadores ligados ao Institute of Fiscal Studies britânico (Bishop, Mayer e Kay, 1995a e 1995b; Bishop e Kay, 1988); sobre o processo de regulação daquele país nos anos 80 e 90 mostram que quando ocorre diversificação de escopo, a missão do regulador setorial é fortemente dificultada. A dificuldade decorre principalmente do fato que a empresa prestadora de serviços de vários escopos tenderá a subsidiar sua entrada em nichos competitivos de mercado às expensas da renda extraordinária auferida na exploração dos segmentos em que tem mercado cativo. E o regulador setorial – limitado por definição ao escopo estritamente afeto a sua competência – é desprovido de instrumentos de controle que impeçam essa prática. Dessa maneira, a

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empresa tende a uma dominação horizontal de mercado, em uma porção definida de território, dentro da qual tende a eliminar a competição em todos os serviços públicos para os quais se habilita.

Esse tipo de monopólio, não coberto pela competência do regulador setorial, também não é tipificado na esfera dos sistemas de defesa da concorrência. Estes têm como prática inibir a concentração de mercados específicos e os processos de verticalização, que se traduzem na dominação de diferentes elos de uma mesma cadeia produtiva. Mas a formação de monopólios sobre serviços urbanos ou regionais de múltiplas funções públicas não caracteriza nenhuma dessas duas situações: do ponto de vista de cada escopo isolado não chega a ter dominação de mercado, pois esta é caracterizada segundo grandes agregados macro-regionais ou mesmo em nível nacional; do ponto de vista da cadeia produtiva, a dominação também não se verifica, pois o mercado cativo se forma sob funções paralelas e de escopo diversificado. Define-se uma forma particular de abuso comercial até agora muito pouco considerada na estruturação dos sistemas setoriais e, menos ainda, nas competências de entidades regionais e locais responsáveis pelo desempenho do conjunto dos serviços públicos em sua s jurisdições. As políticas regionais e urbanas têm ignorado, na formulação de seus objetivos e instrumentos, o enorme domínio que poderão ter as empresas privadas de infra-estrutura sobre a estruturação das cidades, a justiça social e a qualidade de vida urbana.

Aí destaca-se a pertinência dos serviços públicos e das formas particulares de regulação e controle que se aplicam à esfera da política urbana. De fato existe uma possibilidade de domínio territorial sobre a cidade e a região, da parte de agentes privados, que não é enquadrável nas formas tradicionais de dominação de mercados controlada pelos sistemas de defesa da concorrência. Mas seus efeitos podem ser determinantes na criação de áreas privilegiadas e na dominação de um “mercado” de produção da cidade, que mais do que a dominação sobre segmentos específicos da economia, afeta a vida de toda a coletividade urbana. De maneira análoga define-se a pertinência da infra-estrutura e dos serviços em rede ao sistema de regulação ambiental, dado que a maioria deles envolve interações e impactos relevantes com o meio ambiente natural e construído. As interações se dão pelas vertentes (i) do consumo ou apropriação de recursos, como no caso das hidrelétricas, da água de abastecimento público, do gás natural, que concorrem pelo uso de águas superficiais ou subterrâneas cuja prerrogativa de decisão sobre prioridades pertence à sociedade; (ii) da poluição do meio físico, como no caso do esgotamento sanitário, da disposição de resíduos sólidos, da emissão de gases poluentes, da poluição difusa urbana; (iii)

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da ação indireta sobre o agravamento de fenômenos naturais que envolvem grandes impactos ambientais e elevados custos sociais, como o agravamento dos picos de inundação em decorrência da pavimentação viária e redução das capacidades de absorção do solo.

No que respeita a pertinência ao sistema de direitos do consumidor, a história recente dos serviços públicos no Brasil é enfática e auto-explicativa quanto ao papel insubstituível que este tem no complexo regulador desses serviços. Como visto nas referências anteriores às recém criadas estruturas reguladoras setoriais, as salvaguardas a direitos dos usuários nelas previstas são bastante parciais e de discutível eficácia. As recentes afrontas a direitos dos consumidores perpetradas pela Câmara de Gestão da Crise de Energia – conhecida como “Ministério do Apagão” deixa claro o quanto indispensável é a o sistema de direitos do consumidor. Diante da truculência das medidas estabelecidas pela MP 2148-1 de 22 de maio de 2001, foi o sistema de defesa do consumidor que assumiu o papel de defesa do interesse público. A ANEEL, que teoricamente estaria investida de poder para defender o interesse dos usuários, foi praticamente suspensa de suas funções com a criação da plenipotenciária Câmara de Gestão da Crise. À parte a flagrante inadequação das medidas tomadas pelo governo na gestão da crise, ao ter optado por intimidar a população ao invés de conclamar por sua colaboração solidária, a criação mesma da “Câmara de Gestão” arrasa a frágil estabilidade institucional do sistema regulador que se forma. A ANEEL ficou na prática desautorizada e a mensagem subjacente às instáveis e autoritárias medidas tomadas pelos gestores setoriais “ad hoc” é de que, quando o problema é sério, o que vale são as velhas práticas autoritárias. O modelo de regulação setorial que se pretendia estável e independente, no caso da energia elétrica representado pela ANEEL, mostrou ser apenas aplicável para a navegação em águas calmas. Esse dano institucional, causado pela aplicação de instrumentos de exceção para a gestão da crise, provavelmente terá efeitos de longo prazo mais deletérios que a própria escassez. De qualquer maneira, ressalta da crise e da tímida presença dos interesses dos usuários no desenho original da entidade reguladora setorial que, mais do que antes, os usuários de serviços públicos devem se apoiar no sistema de direitos de consumidor.

A exploração das potencialidades de uma estrutura sistêmica de regulação, que inclua os instrumentos de regulação setorial, ambiental, de defesa da concorrência, de direitos do consumidor e de política urbana parece ser a única saída promissora no sentido de se resgatar um sentido de regulação pública no complexo institucional que interage com a infra-estrutura e os serviços públicos. O excesso de expectativa

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sobre as potencialidades da regulação setorial foi provavelmente um dos principais equívocos da concepção institucional proposta para o setor saneamento nos estudos promovidos pelo PMSS (INFURB 1995) e essa é uma lição importante a se aprender na articulação das forças comprometidas com o interesse público. Essa concepção multi-setorial do sistema regulador é consentânea com o desenvolvimento de uma administração pública gerencial, no que respeita seus princípios básicos de efetividade da ação pública. O fortalecimento do Estado em suas funções típicas é uma garantia à aceitação social da reforma gerencial e essa posição é hoje defendida pelas correntes mais progressistas das agências de desenvolvimento (por exemplo, Kliksberg 2000). A experiência dos países capitalistas avançados, em seus processos internos de restruturação institucional, mostra que esse fortalecimento é uma função do conjunto das estruturas reguladoras públicas e não de cada setor em particular. A regulação do “marco regulatório”, das consultorias estrangeiras, da estanqueidade setorial, da supervalorização das relações comerciais e dos contratos específicos tem em comum com a regulação pública pouco mais que o radical do infeliz neologismo que lhe dá nome.

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Desafios da transição para o mercado regulado no setor de saneamento∗

Marcelo Coutinho Vargas**

O modelo de organização e gerenciamento dos serviços de

abastecimento de água e esgotamento sanitário das cidades brasileiras vêm sendo redefinido ao longo da última década, quando avançaram as políticas de descentralização, "privatização" e reordenamento do aparato jurídico e administrativo de regulação do setor28. As mudanças em curso, que podem ser caracterizadas como a transição de um modelo de serviço público estatal centralizado para um modelo descentralizado e “flexível”, com prestadores públicos e privados disputando um mercado ao mesmo tempo “aberto” e “regulado”, estão presentes também noutros serviços industriais de utilidade pública, refletindo o alinhamento do governo F. H. Cardoso com as teses neoliberais da reforma do Estado, da privatização e desregulamentação da economia (que já vinham sendo adotadas pelo presidente Collor desde 1990)29.

∗ Versão revista e ampliada de texto apresentado no seminário Services Urbains, bresiliens e français, realizado em Paris, de 16 a 20 de outubro de 2000, no âmbito da Semaine Brésil 2000 , promovida pela Maison des Sciences de L'Homme. Registro meus agradecimentos à FAPESP, que apoiu minha participação naquele evento através do processo nº 99/11261-0. ** Universidade Federal de São Carlos, Depto. de Ciências Sociais - Via Washington Luís, km 235 - C.P. 676 - 13565-905 - São Carlos, SP, Brazil - email: [email protected] 28 O termo "privatização" recobre diferentes modalidades de relação entre os setores público e o privado na provisão dos serviços de infra-estrutura. No sentido estrito, refere-se à situação na qual a propriedade das instalações é alienada ao capital privado juntamente com o direito de exploração dos serviços. Esta via não possui base legal no Brasil, pois nossa Constituição Federal (art. 175) reconhece apenas duas modalidades de prestação de serviços públicos por entidades privadas: a concessão e a permissão. A primeira consiste na alienação do direito de exploração dos serviços ou de parte deles, mediante licitação e contrato, durante um período de tempo suficientemente grande para que o concessionário possa investir e recuperar os investimentos, após o qual as instalações retornam ao poder público concedente. A segunda consiste na remuneração de um agente privado para explorar segmentos limitados de um serviço por períodos de tempo mais curtos, sem compromissos de investimento por parte da entidade permissionária. Enfim, a venda parcial do controle acionário de empresas públicas ou a terceirização de atividades também podem ser consideradas modalidades de privatização (sentido amplo). O texto se concentra nos processos de concessão dos serviços de água e saneamento. 29 O rótulo neoliberal não é reconhecido pelo governo Cardoso, cujo discurso sobre a Reforma do Estado, elaborado pelo ex-ministro Bresser, se apresenta como Social-Liberal. Porém, embora recuse a tese neoliberal do Estado mínimo, defende vigorosamente as demais: a desregulamentação e a abertura da economia; a flexibilização do mercado de trabalho; e a redução do tamanho do Estado, através de programas de privatização, de terceirização e "publicização" (transferência para o "setor público não-estatal") de serviços que não constituam atividades exclusivas do Estado. Não fazendo parte deste conjunto, a infra-estrutura e os serviços industriais de utilidade pública

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Porém, o ritmo lento e o alcance limitado das mudanças em curso na área de saneamento em relação a outros setores (eletricidade, telefonia, etc.), como se verá adiante, demonstram que as tendências descentralizadoras e privatizantes têm enfrentado a resistência de interesses consolidados e de “tradições” políticas arraigadas na história deste setor, as quais terão de ser melhor consideradas na análise e na condução dos processos de mudança.

Além de examinar as tendências de reestruturação do setor em curso, avaliar seu alcance e direção, o objetivo deste texto é analisar quais são os principais obstáculos, os riscos e as oportunidades envolvidos. Para melhor compreender as questões colocadas sobre as tendências atuais, no entanto, é preciso recuperar as origens da organização setorial vigente, através de uma breve abordagem histórica.

1. Raízes da organização atual: a herança do PLANASA As mudanças institucionais observadas atualmente na

administração dos serviços de água e esgotos no país têm origem na crise do modelo centralizado de gestão do setor que prevaleceu sob o regime militar, entre 1968 e 1986. Neste período foi elaborado e implantado o Plano Nacional de Saneamento (PLANASA), que representou uma ruptura com a longa tradição de gestão local e descentralizada do setor no páis. Até então, a grande maioria os serviços de água e saneamento era gerida por organismos municipais; as exceções ficavam por conta das capitais dos Estados, cujos serviços foram assumidos pelos respectivos governos estaduais, ou ainda, das cidades menores e mais pobres, que desde a década de 40 tiveram redes de água e esgotos implantadas e operadas com o apoio do governo federal, através do SESP30. Os serviços de água e esgotos eram então concebidos e valorizados como sendo de competência estritamente municipal, enquanto o setor privado vinha sendo mantido afastado da gestão operacional desde a década de 5031. O PLANASA rompe com a

deveriam ser objeto de concessão, restando ao Estado um papel meramente regulador nestes setores (BRESSER PEREIRA, 1997). 30 O Serviço Especial de Saúde Pública, criado em 1942, atuou principalmente nas regiões Norte e Nordeste, na implantação e operação de redes de água e esgotos para posterior transferência aos municípios. No início dos anos 90, foi reformado, transformando-se na Fundação Nacional de Saúde. 31 As companhias privadas, associadas ao capital estrangeiro, estiveram presentes na implantação das primeiras redes de água e esgotos nas principais cidades brasileiras, entre o final do século XIX e o início do XX. Mas a gestão privada, orientada para o atendimento exclusivo da demanda solvável e a remuneração do capital investido, não conseguiu estender os serviços à maioria da população e melhorar as condições sanitárias das cidades, de modo que as redes foram sendo encampadas pelos governos municipais e estaduais (nas capitais) já nas primeiras décadas do século passado, sob influência do movimento higienista. A partir de 1930, o capital privado tende a

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tradição municipal nesta área, julgada muito vulnerável ao clientelismo populista. Utiliza-se de medidas autoritárias para retirar dos municípios suas prerrogativas na matéria, e concentrar as decisões estratégicas de política setorial na esfera federal (planejamento, financiamento, política tarifária), transferindo a execução dos serviços para empresas de economia mista criadas pelos Estados, as quais se tornariam concessionárias dos serviços de água e esgotos da maioria dos municípios brasileiros32.

As “medidas autoritárias” foram duas: por um lado, os contratos de concessão típicos do PLANASA implicavam que o município signatário renunciasse às suas prerrogativas de poder concedente dos serviços, notadamente na fixação e reajuste de tarifas; por outro, o município que não assinasse tais contratos com as concessionárias estaduais era excluído do Sistema Financeiro de Saneamento do BNH, criado em 1968, que passou a concentrar praticamente a totalidade dos recursos financeiros da União, dos Estados e das agências internacionais de desenvolvimento destinados ao setor, especialmente o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS)33.

Buscando viabilizar a expansão e a universalização do acesso aos serviços através de uma política tarifária ao mesmo tempo “realista” e redistributiva, que permitiria a recuperação integral dos custos dos serviços e o subsídio cruzado dos sistemas deficitários e dos consumidores de baixa renda, o PLANASA foi relativamente bem sucedido na ampliação da taxa de cobertura em água potável, que passou de 51,2% da população urbana em 1970 para 74% em 1980. Quanto ao esgotamento sanitário, o plano também apresentou um desempenho positivo, porém mais modesto, pois a taxa de cobertura passou de 20,2% a 35%, no mesmo período. Mas o sistema entrou em colapso em 1986, sob o impacto da recessão, da inadimplência dos mutuários e do alto grau de endividamento das empresas de saneamento, que levaram à falência o BNH, cujas funções de agente central dos sistemas financeiros de habitação e saneamento foram transferidas à Caixa Econômica Federal. Entre as causas estruturais da

transferir-se gradativamente da gestão operacional para as atividades de construção, fornecimento de materiais e prestação de serviços especializados ao setor (VARGAS,1998). 32 As compahias estaduais são responsáveis pelos serviços de água de cerca de 70% da população urbana e dos municípios brasileiros. No esgotamento sanitário, são responsáveis pelos servicos de aproximadamente 20% dos municípios e 55% da população urbana (PEDROSA & PEREIRA, 2000). 33 Criado em 1966 para socorrer os trabalhadores que perderam o emprego, o FGTS é formado pelo recolhimento obrigatório de 8% do salário dos empregados do setor privado. Gerida pelo BNH, esta poupança compulsória só podia ser aplicada inicialmente na área de habitação. A partir de 1969, passa a ter grande parte de seus recursos destinada ao saneamento.

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crise do sistema PLANASA, precipitada pela recessão, foram elencadas a falta de transparência e de "responsabilidade social" (accountability ) das empresas, cuja gestão centralizada permaneceu desvinculada de todo controle por parte dos usuários e dos poderes públicos locais, ao mesmo tempo em que subordinava-se a interesses privados associados a grandes obras de alto custo, prioridade discutível e retorno demorado, ou ainda, a uma política tarifária federal contencionista, condicionada por objetivos extra-setoriais (controle da inflação).

2. Democratização, descentralização e reenquadramento institucional do setor

O colapso do sistema PLANASA, em meio a uma conjuntura recessiva, de descontrole inflacionário e aumento exponencial da dívida pública, gera uma crise institucional e financeira no setor de saneamento que coincide com o avanço da redemocratização. Neste contexto, as entidades representativas dos organismos e profissionais do setor, como a ASSEMAE, a AESBE e a ABES34, entre outras, passaram a debater entre si, e a discutir com a sociedade e o governo federal, a criação de um novo modelo de organização institucional para o saneamento urbano.

De fato, com o fim do regime militar e a promulgação da Constituição Federal de 1988, o novo quadro político e institucional do país passa a caracterizar-se pela rejeição ao antigo centralismo e a crescente valorização de iniciativas visando à descentralização político-administrativa e fiscal, as quais asseguram mais recursos tributários e maior poder decisório a Estados e Municípios. Não obstante as hesitações e os conflitos de interesse que marcam este processo de reconstrução do pacto federativo, ainda hoje inacabado, observa-se no governo e na administração federal uma nova disposição a buscar modelos gerenciais inovadores, visando descentralizar e ao mesmo tempo integrar o planejamento, o financiamento e a implementação de políticas públicas estratégicas nas três esferas de governo35. Assim, a descentralização, a "flexibilização" institucional e a desregulamentação, que implicam a abertura deste campo para a atuação de uma pluralidade de prestadores de serviço (empresas privadas, consórcios intermunicipais, entre outros, ao lado das autarquias municipais e companhias estaduais) em ambiente

34 Respectivamente: Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento; Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais e Associação Bras. de Engenharia Sanitária e Ambiental 35 Para uma visão geral do processo de descentralização das políticas públicas federais que leva em conta condicionantes políticos, além de especificidades regionais e setoriais, ver ARRETCHE (1999).

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concorrencial, são três diretrizes básicas que vêm sendo propostas pelo governo federal para a área de saneamento desde 1990. Apesar da instabilidade dos órgãos responsáveis pela política nacional do setor, criados e extintos sucessivamente desde então, tais diretrizes têm permanecido no centro do discurso e das propostas emanadas do governo federal36.

No que diz respeito à descentralização, trata-se de uma diretriz que pode seguir diferentes orientações, tanto no discurso quanto na prática das políticas públicas, como a democratização e flexibilização do processo decisório ("desconcentração"), ou a transferência de atribuições, programas ou funções dos níveis de governo mais abrangentes para os menos abrangentes (estadualização ou municipalização), que caracteriza a descentralização estrito senso. No caso específico do setor, as iniciativas descentralizantes se deram em diferentes planos, em momentos diversos.

Primeiramente, a desconcentração e a descentralização do setor manifestou-se na busca de democratização do Sistema Financeiro do Saneamento, através de três medidas: 1) a liberação de recursos do sistema para as prefeituras dos municípios que gerem os próprios serviços de saneamento sob condições equivalentes às oferecidas às companhias estaduais (ocorrida em 1985, com o sistema ainda na alçada do BNH); 2) a reestruturação do Conselho Curador do FGTS, cuja composição e atribuições foram ampliadas pelo Decreto nº 99.684/9037; e 3) a criação, em meados de 1995, de um programa federal transferindo a colegiados estaduais, com representação paritária do Estado e dos municípios, as decisões referentes à alocação dos recursos deste fundo no respectivo território 38. A despeito do poder atribuído a tais colegiados (efetivamente criados em todos os Estados) para decidir as prioridades estaduais neste campo, as exigências cada vez mais rigorosas da CEF e da área econômica do governo federal com relação ao grau de endividamento dos tomadores de empréstimos acabaram barrando, na prática, o acesso das companhias estaduais e prefeituras a estes recursos, como se discute mais detalhadamente adiante, no item 3.2.1.

36 Ver, por exemplo MAS (1990), MBES/PNUD (1994), MPO/IPEA (1995) 37 Através deste decreto, o conselho passou a contar com representantes do governo federal, do patronato e dos trabalhadores, e a decidir os principais critérios de aplicação dos recursos, como a repartição destes entre estados e regiões, entre saneamento e habitação. 38 Trata-se de um subprograma do Programa Nacional de Descentralização, criado pelo Decreto nº 1.044, de 14 de janeiro de 1994, que identificou 14 áreas a serem objeto de descentralização administrativa, entre as quais, a saúde, o saneamento básico e o meio ambiente.

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Por outro lado, a descentralização também se deu no plano da política tarifária, com a revogação do Decreto nº 82.587/78, que impunha parâmetros gerais para as tarifas das companhias estaduais de saneamento e centralizava as decisões sobre reajustes na esfera federal. Ocorrida em 1991, a revogação deste decreto significou uma nova autonomia para fixarem suas tarifas em função das próprias necessidades (mediante autorização do executivo estadual).

Enfim, a via da descentralização através da "municipalização" dos serviços (i.e.: da retomada das concessões pelos municípios concedentes) permaneceu fora da agenda da União e dos governos estaduais, sendo vista como uma dupla ameaça, seja ao projeto federal de privatização do setor através da venda das concessionárias estaduais, seja à viabilidade econômica dos pequenos municípios concedentes cujos serviços deficitários são custeados pelos subsídios cruzados do sistema estadual39. Contudo, diante da atual asfixia financeira das companhias estaduais e do interesse político e econômico das prefeituras, essa tem sido, atualmente, uma das principais vias do processo em curso reestruturação do setor, como se analisa no próximo item

Com relação ao reordenamento institucional, que envolve tanto a desregulamentação como a construção de um novo marco regulatório para o setor, a principal iniciativa do governo federal para formulação de um novo modelo de organização dos serviços foi o Programa de Modernização do Setor Saneamento (PMSS), idealizado no governo Collor. Contando com recursos do Banco Mundial, o PMSS só foi efetivamente iniciado em 1994, no governo Itamar Franco. Dos 500 milhões de dólares de investimentos previstos para a primeira fase do programa (dividos meio a meio entre o Bird e a contrapartida federal), oito milhões seriam destinados à elaboração de estudos e propostas de reordenamento institucional do setor, enquanto o restante seria investido no desenvolvimento operacional das companhias estaduais de saneamento da Bahia, do Espírito Santo e Mato Grosso do Sul, no intuito de prepará-las para a privatização (COSTA, 1998). Com relação ao primeiro aspecto, as propostas do PMSS orientaram-se para a meta de universalização dos serviços de água e esgotamento sanitário até 2010, que exigiria investimentos da ordem de R$ 40 bilhões. A estratégia para alcançá-la repousaria sobre o aumento do investimento privado e da eficiência global do setor, mediante a ampliação das

39 A própria ASSEMAE manifestou-se contra a municipalização generalizada, advertindo para a diversidade de condições técnicas e financeiras dos municípios brasileiros, cuja grande maioria teria de ser capacitada, através de esforços federais e estaduais, para gerir os serviços do setor. (PNUD/MBES,1994: 188-89).

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concessões ao capital privado, novas regras contratuais e mecanismos concorrenciais de mercado. Como princípio básico de um novo marco regulatório a ser elaborado para o setor, o PMSS defende a separação de funções entre entidades reguladoras (necessariamente públicas) e prestadoras de serviços (preferencialmente privadas).

Paralelamente às propostas discutidas dentro do PMSS, no âmbito da sociedade civil, a crise institucional do setor mobilizou diversas organizações representativas da área para debater um nova política nacional de saneamento, resultando no Projeto de Lei 199/93. Este propunha a criação de um Sistema Nacional de Saneamento, articulando entidades setoriais municipais, estaduais e privadas, além de um Fundo e de um Conselho Nacional, com funções deliberativas e participação paritária da sociedade civil. Apesar do amplo apoio das organizações representativas do setor e de ter sido aprovado no Congresso, o PL 199 foi vetado integralmente pelo presidente Cardoso, logo no início de seu primeiro mandato. Ficava patente que o presidente e seus aliados tinham outro projeto de reordenamento do setor, de cunho liberal e privatizante, que conflitava com os interesses e o posicionamento ideológico da maior parte das corporações profissionais do saneamento.

De fato, as principais entidades representativas do setor têm se manifestado publicamente contrárias à sua "privatização", seja nos respectivos informativos e documentos, na imprensa nacional ou nos seminários e congressos anuais que promovem. Os argumentos apresentados pela ABES e a ASSEMAE geralmente enfocam o caráter essencial dos serviços em questão, por seu impacto na saúde pública e no meio ambiente, e as "falhas do mercado" para garantir a necessária universalização, que exigiria investimentos para beneficiar regiões e populações mais pobres, com menor capacidade de pagamento40. No caso da AESBE, que tem se utilizado dos mesmos argumentos, a posição da entidade que congrega as companhias estaduais de saneamento reflete seu temor da concorrência com as grandes grupos internacionais do setor na disputa pela concessão dos serviços municipais.

As divergências entre os projetos de modernização do saneamento do governo federal e das entidades representativas do setor também se manifestaram no âmbito do PMSS. Tais entidades haviam se mobilizado desde cedo para participar da elaboração do programa, cujo componente institucional vinha sendo dirigido exclusivamente pelo

40A posição contrária à privatização do saneamento assumida pela ABES em seu 20º Congresso, em maio de 1999, foi defendida pelo presidente da entidade na coluna Tendências & Debates do Jornal Folha de São Paulo em 29 de janeiro de 2000. O presidente da ASSEMAE manifestou posição semelhante no mesmo espaço na edição de 4 de fevereiro do mesmo ano.

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Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). A reivindicada ampliação do debate sobre a modernização do saneamento foi atendida em meados de 1994, quando a ABES, a ASSEMAE e a AESBE passaram a integrar o Comitê de Direção do Programa. Porém, tais entidades foram excluídas deste comitê, no início do ano seguinte, supostamente por exigência do Banco Mundial. Mais uma vez, o governo Cardoso demonstrava fidelidade absoluta ao projeto de modernização "neoliberal" do setor, favorável ao aumento da concorrência e da participação do capital privado na operação dos serviços e contrário à preservação dos monopólios estatais.

Mas, a despeito das propostas liberalizantes do PMSS, do reformismo do governo federal e das reivindicações de democratização da sociedade civil, a herança autoritária do PLANASA ainda pesa sobre o setor, pois boa parte dos contratos de concessão assinados entre os municípios e as companhias estaduais de saneamento, cujas cláusulas não reconhecem prerrogativas básicas do poder concedente, ainda permanece ou tende a permanecer em vigor. De fato, o prazo fixado para as concessões (geralemente, 20 a 30 anos) já chegou ou se aproxima do fim em grande parte dos municípios, na maioria dos Estados, o que faria supor um crescimento acelerado da "municipalização" ou, mais precisamente, uma tendência à retomada dos serviços pelos municípios descontentes com a concessão, seja para administrá-los diretamente, seja para renegociar a concessão com outros operadores. Todavia, as caraterísticas autoritárias dos contratos de concessão em vigor, que protegem os interesses das concessionárias estaduais em detrimento do poder municipal concedente (notadamente em termos de indenizações e de prestação de contas sobre investimentos), dificultam este caminho. Assim, no início dos anos 90, alguns municípios (Carazinho, Novo Hamburgo, Muriaé, Paraíba do Sul, entre outros) foram obrigados a entrar na justiça para não renovar o contrato de concessão com as companhias estaduais41. Noutros casos, mais recentes, foram as companhias estaduais que tomaram a iniciativa de entrar na justiça contra a retomada dos serviços locais pelas prefeituras, como ocorreu entre a SANESUL (MS) e os municípios de Três Lagoas e Corumbá42.

Mais raros têm sido os casos de retomada dos serviços concedidos por rescisão unilateral do contrato de concessão por parte do município.

41 Casos citados por (PEIXOTO, 1994). Em muitos contratos há claúsulas que garantem a renovação automática da concessão, caso o contrato não seja formalmente denunciado seis meses antes do seu término. 42 Casos noticiados no portal Saneamento Básico, o Site!, em 23/10/2000.

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Foi o que ocorreu em Diadema, na região metropolitana de São Paulo, no início de 1995, após dois anos de negociações com a concessionária estadual. Bem documentada e fundamentada juridicamente, a rescisão do contrato serviu de exemplo para a cidade vizinha de Mauá, que também antecipou a retomada dos serviços concedidos à SABESP alguns meses depois43. A proposta (cumprida) de reduzir a tarifa dos serviços foi utilizada para ganhar apoio da população usuária. Para contornar as dificuldades da indenização à concessionária pelos investimentos não amortizados, que tem sido utilizada como instrumento de intimidação aos municípios que pretendam rescindir ou não renovar os contratos, as prefeituras de ambas as cidades se valeram do artigo 293 da Constituição Paulista de 1989, que prevê prazo de até 25 anos para ressarcimento da indenização, após auditoria conjunta da Secretaria da Fazenda do Estado e do Município.

A existência do dispositivo constitucional acima não significa, porém, qualquer garantia de sucesso nos processos de retomada antecipada dos serviços através de rescisão unilateral do contrato por iniciativa das prefeituras, já que os direitos legítimos da concessionária também devem ser garantidos. É o que demonstram as tentativas frustradas recentes de dois municípios paulistas: Presidente Prudente e Avaré. No primeiro caso, ao assumir o cargo, em janeiro de 2001, o prefeito enviou para a Câmara de Vereadores um projeto de lei propondo a criação em 90 dias de um Departamento Municipal de Água e Esgotos para substituir a SABESP, cujo contrato com a da prefeitura se encerraria somente em 2008. O prefeito foi truculento e precipitado nas negociações, e a SABESP obteve liminar da Justiça para continuar atuando no município até 2008. No caso de Avaré, o município retomou o serviço de esgotamento sanitário da SABESP no final de 1999, depois que a Justiça determinou a suspensão da cobrança de coleta de esgoto a pedido da Câmara de Vereadores. Depois da fracassada tentativa da Prefeitura de assumir o serviço, que resultou na queda na qualidade e no colapso do sistema, o prefeito eleito e o antecessor decidiram, ainda durante o período de transição, devolver o serviço à autarquia44.

De qualquer modo, não há dúvida de que a nova ordem constitucional que emergiu da democracia fortalece as prerrogativas dos municípios como poder concedente dos serviços de interesse local, favorecendo a "municipalização" do saneamento. Favorece igualmente a "privatização", através da concessão total ou parcial dos serviços a operadores privados. De fato, a Constituição Federal de 1988 determina

43 Para uma análise detalhada da “municipalização” em Diadema, ver VARGAS (1996: 396-422) 44 Casos noticiados no portal Saneamento Básico, o Site!, em janeiro e fevereiro de 2001

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em seu artigo 175 que "incumbe ao Poder Público, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos". Além da obrigatoriedade de licitação para novos contratos, o artigo determina a necessidade de regulamentação por lei de aspectos contratuais fundamentais como condições de fiscalização, caducidade, rescisão e direitos dos usuários. Promulgada em 17/02/95, a Lei Federal n° 8987 passou a regulamentar a concessão de serviços públicos dentro do novo espírito de equilíbrio de direitos e deveres entre concedente e concessionário, abrindo caminho para a participação de operadoras privadas no setor45. No entanto, o lento avanço dos dois processos mais significativos de reestruturação do setor, a "municipalização" e a "privatização" dos serviços, tem sido refreado justamente pela ausência de um marco regulatório mais amplo e coerente, como veremos adiante46.

3. Reestruturação do setor: tendências e obstáculos Na ausência de dados gerais exaustivos, que demandariam uma

pesquisa coletiva de fôlego, busca-se a seguir aprofundar a análise dos processos de municipalização e privatização dos serviços de saneamento, e dos obstáculos que se colocam ao desenvolvimento destes, à luz de alguns casos ilustrativos. Naturalmente, o caráter fragmentário e disperso das informações impede uma análise mais aprofundada de cada caso 47.

3.1. "Municipalização" e poder concedente: os serviços em disputa

Além dos casos mencionados acima, a municipalização ou retomada dos serviços de saneamento pelos municípios concedentes tem sido alvo de verdadeiras batalhas judiciais entre estes e as concessionárias estaduais. Mais do que isso, o interesse dos prefeitos e vereadores pela retomada dos serviços, e a resistência que lhes opõem as companhias e alguns governadores, têm gerado conflitos políticos notáveis, de que são exemplo algumas capitais. Os casos descritos a seguir, que abrangem

45 A chamada "Lei das Concessões", cuja tramitação no Congresso iniciou-se em 1990, nasceu de um projeto de lei de autoria do então senador Fernando Henrique Cardoso,. 46 A "estadualização" (i.e., o aumento das concessões às companhias estaduais de saneamento) não parece uma tendência forte na conjuntura atual, já que boa parte dessas empresas, além estarem inadimplentes e terem sua imagem desgastada junto a prefeitos, vereadores e usuários, é candidata à privatização. Isso não impede que algumas companhias tenham conseguido obter novas concessões, muitas vezes sem terem enfrentado concorrentes em processos abertos de licitação. É o caso da SABESP, que atraiu 28 novos municípios em 1997, doze decorrentes de emancipação. 47A maior parte das informações fornecidas abaixo sobre processos de "municipalização" e "privatização" dos serviços de água e esgotos do país foram extraídas do portal Saneamento Básico, o Site!, através de acompanhamento diário pelo autor desde janeiro de 2000.

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experiências frustradas e bem sucedidas de municipalização, motivadas por razões variáveis, buscam examinar diferentes problemas envolvidos no processo.

De um modo geral, pode-se dizer que a crise fiscal do Estado, que também atinge os municípios, e a atual incapacidade de investimento da maior parte das companhias estaduais (v. próximo item) são os principais fatores que impelem os prefeitos e vereadores a se interessarem pela retomada dos serviços, seja para administrá-los diretamente, seja para renegociar a concessão com outros operadores. Se bem gerenciados, os serviços de saneamento, especialmente nas cidades de grande e médio porte, podem ser superavitários e gerar receita própria para investimentos no setor. Fazendo parte da administração direta municipal, podem ter a receita tarifária transferida para outros departamentos ou setores da prefeitura. Finalmente, podem gerar receita extra-orçamentária para o município mediante concessão onerosa ao capital privado, na qual o concessionário paga um direito de entrada pela exploração dos serviços. Estas possibilidades estão por trás dos processos bem sucedidos ou frustrados de municipalização examinados abaixo.

A questão da falta de investimentos e da baixa qualidade dos serviços prestados pela concessionária estadual foram as principais razões que motivaram a municipalização dos serviços em Novo Hamburgo (RS), Paranaguá (PR) e, mais recentemente, Barra do Bugres (MT).

No caso de Novo Hamburgo, citado anteriormente, após oito anos de batalha judicial para não renovar o contrato de concessão com a CORSAN, a prefeitura conseguiu retomar os serviços em dezembro de 1998. Desde então, a Companhia Municipal de Saneamento (COMUSA) investiu cerca de R$ 8 milhões na melhoria dos serviços de água, que apresentavam descontinuidade no abastecimento durante o verão, prejudicando as zonas mais altas da cidade. A COMUSA aumentou a capacidade de reservação de água do município em 51%, ampliou a produção e modernizou o sistema de tratamento. Tendo acabado com a falta de água no verão, hoje fornece água tratada para as cidades vizinhas de Estância Velha e Portão, cuja distribuição é realizada pela concessionária estadual.

Em Paranaguá, cidade com cerca de 110 mil habitantes, a retomada dos serviços concedidos à SANEPAR (concessionária estadual do Paraná) foi apenas uma etapa para a "privatização" do setor. Quando o município recuperou a gestão dos serviços, em 1995, a cidade ainda não dispunha de rede coletora de esgotos. A prefeitura preparou então um processo licitatório para a concessão dos serviços de água e

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esgotamento sanitário, no qual exigia de todos os candidatos metas elevadas de investimento no último setor durante a vigência do contrato (28 anos). A licitação, que teve participação da SANEPAR, foi vencida pela companhia Águas de Paranaguá, formada por um consórcio entre as empresas Carioca Engenharia e Castilho. O contrato foi assinado em março de 1997, e prevê investimentos de R$ 57 milhões de reais ao longo do período. Com uma epidemia de cólera rondando a cidade desde meados de 2000, a empresa antecipou o calendário das obras referentes à estação de tratamento e à rede coletora de esgotos, que hoje atinge 32% dos domicílios urbanos.

Em Barra do Bugres (MT) o município conseguiu retomar os serviços de água e esgotos em fevereiro de 2001, depois negociações amigáveis com a concessionária estadual (SANEMAT)48. Havia queixas em relação à qualidade da água distribuída à população e à precariedade do sistema de coleta e tratamento de esgotos. A retomada dos serviços já deu ao município a oportunidade de investir R$800 mil na ampliação da ETA e na melhoria da distribuição de água em dois distritos municipais, através de empréstimo junto à CEF.

Por outro lado, a falta de transparência na relação entre geração de receita tarifária e investimentos, ligada à questão dos subsídios cruzados, juntamente com a desarticulação entre os investimentos da concessionária estadual e a política municipal de desenvolvimento urbano, têm levado os prefeitos de algumas capitais a debater e iniciar processos de municipalização dos serviços. É o caso de Belo Horizonte, Fortaleza e Recife 49. Embora a questão da municipalização também tenha estado presente nas capitais do Rio de Janeiro, Amazonas e Mato Grosso do Sul, o que estava em jogo nestes casos era muito mais diretamente a privatização das respectivas concessionárias estaduais, daí serem tratados na seção seguinte.

Na capital mineira, o processo iniciou-se com a aproximação do término do prazo de concessão dos serviços de água e esgotos à concessionária estadual (COPASA), de 30 anos, vencido em abril de 2000. Interessada na retomada dos serviços, a prefeitura de Belo Horizonte decidiu não renovar o contrato de concessão, mas prorrogá-lo por mais seis meses, para estudar melhor a alternativa da

48 Conforme se comenta no final deste item, a SANEMAT se encontra em processo de extinção, por iniciativa do governo estadual do Mato Grosso. 49Note-se que a atuação dos Estados em saneamento começou nas capitais, tendo se consolidado em todo o país, por volta de 1930. Foi reforçada durante o PLANASA, quando todas as capitais, exceto Porto Alegre, confiaram a gestão dos serviços às companhias estaduais. Na época, os prefeitos das capitais eram indicados pelos governadores que, por sua vez, eram nomeados pelo general presidente.

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"municipalização". A perspectiva de perder a concessão dos serviços da capital deixou a COPASA e o governador de Minas, Itamar Franco, apavorados. Afinal, a capital mineira responde por cerca de 40% da receita da concessionária e, juntamente com outros 135 municípios superavitários, de grande e médio porte, transfere recursos para viabilizar o saneamento de 462 municípios menores e deficitários, cujos serviços são operados pela companhia estadual, através de subsídio cruzado. De acordo com o presidente da COPASA, a municipalização poderia inviabilizar o abastecimento de água da região metropolitana da capital. Durante a prorrogação do contrato, a prefeitura de Belo Horizonte impôs uma série de condições para renovar a concessão, como o repasse ao município dos dados cadastrais sobre consumidores de água e a formação de uma comissão para discutir as bases da nova concessão. Mas a COPASA ignorou solenemente a prefeitura, evitando reunir-se com a comissão criada pelo prefeito.

Na proposta inicial do prefeito Célio de Castro, a COPASA poderia ser mantida como prestadora de serviços de saneamento ao município, mas caberia à prefeitura gerenciar o sistema, definindo a tarifa, as obras e os investimentos, mediante a criação de uma Superintendência Municipal para o setor. Parte da arrecadação seria alocada em um fundo estadual de saneamento, para manter o subsídio aos municípios carentes. O prefeito alega que, apesar do "lucro milionário" obtido pela estatal na capital mineira (estimado em cerca de R$ 10 milhões mensais), 20% da população não têm acesso ao esgotamento sanitário, e o tratamento de esgotos é praticamente inexistente.

Terminado o prazo de prorrogação do contrato, o impasse entre a prefeitura e o governo estadual ameaçava descambar para uma disputa judicial em torno da titularidade dos serviços. O governador estaria preparando a assinatura de um decreto transferindo ao governo do Estado o poder concedente sobre os serviços de água e esgotos de toda a região metropolitana, amparado na Constituição mineira, que estabelece competência estadual sobre os serviços do setor em regiões metropolitanas. Porém, tal decreto seria questionado na Justiça pela prefeitura, alegando sua inconstitucionalidade, uma vez que a Constituição Federal estabeleceria competência municipal sobre os serviços de saneamento50. Para evitar uma "guerra jurídica" neste campo, o prefeito de Belo Horizonte e o governador de Minas conseguiram chegar a um acordo que estabeceu uma trégua entre as partes. Em dezembro de 2000 foi assinado um protocolo de intenções

50 Como veremos no item 3.3, trata-se de uma questão controversa, a ser objeto de regulamentação por lei federal, que já está sendo debatida no Congresso Nacional.

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entre a Prefeito e a COPASA, estabelecendo princípios para um novo convênio de prestação de serviços a ser firmado entre a empresa e a prefeitura. Proclamado o "compartilhamento" dos serviços e a "parceria" entre prefeitura e COPASA, foi estabelecido que seria mantida a transferência de receita tarifária da capital para outros municípios, através de subsídio cruzado, mas em patamar inferior ao atual. Por outro lado, a COPASA se comprometeria a investir um percentual fixo desta receita na própria cidade, estabelecido inicialmente em 4%. Mas, após o vencimento do protocolo de intenções, no final de março de 2001, o prefeito reeleito passou a questionar esse percentual e pretende apresentar nova proposta ao governador. Ou seja: sem acordo, a "municipalização" continua em pauta.

Em Fortaleza, as discussões sobre a "municipalização" começaram em março deste ano, quando a prefeitura da capital notificou o Estado do Ceará de que não será renovado o contrato de concessão dos serviços de água e esgotos com a concessionária estadual (CAGECE), cujo vencimento se dará em 2002. Além de se queixar da falta de investimentos na capital, reivindicando participação nos ativos da empresa no município, o prefeito Juraci Magalhães (PMDB), que lidera a oposição ao governo estadual, parece apostar na municipalização como estratégia para barrar a controvertida privatização da CAGECE (v. próximo item). Para o presidente da empresa, no entanto, a perda da concessão dos serviços de Fortaleza representaria uma ameaça maior que a privatização da companhia, pois a cidade contribui com quase 80% do faturamento da empresa (ou onze dos R$ 14 milhões arrecadados mensalmente pela companhia), permitindo viabilizar investimentos em diversos municípios deficitários do interior. Considerando que a capital cearense é abastecida por açudes e rios situados fora do território municipal, o prefeito estuda a possibilidade de criação de um consórcio intermunicipal para viabilizar a administração conjunta dos serviços de água, esgotos e lixo na região metropolitana de Fortaleza. Para o presidente da CAGECE, se não quiser renovar a concessão, a prefeitura de Fortaleza terá de comprar os ativos da empresa na capital, pois a reversibilidade dos bens não estaria prevista no contrato. Na perspectiva do governo estadual, a solução do impasse passaria pela aprovação do projeto de lei federal em discussão no Congresso que prevê a transferência da titularidade dos serviços de saneamento dos municípios para o Estado nas regiões metropolitanas, conforme se comenta no item 3.3.

Em Recife, o debate sobre a "municipalização" do saneamento surgiu no inicío de 2001, com a eleição de João Paulo (PT) para a

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prefeitura da capital pernambucana. O prefeito anunciou que planeja encaminhar à Câmara Municipal um projeto de lei prevendo a gestão compartilhada dos serviços entre a prefeitura e a concessionária estadual (COMPESA), que se encontra em processo de privatização. A prefeitura criaria uma autarquia para administrar a distribuição de água e a implantação de esgotos nas Zonas Especiais de Interesse Social. Nas demais localidades, o serviço ficaria a cargo da COMPESA, sob supervisão da prefeitura. A insuficiência de investimentos por parte da concessionária estadual estaria por trás da iniciativa do prefeito: embora responda por cerca de 38% dos R$ 200 milhões de faturamento anual da empresa, a capital tem menos de 30% da população atendida por rede de esgotos, que não dispõe de sistema de tratamento, e ainda possue cerca de 100 mil habitantes sem acesso a água encanada. Como Recife depende de mananciais situados fora do território municipal, o prefeito propõe que a COMPESA, enquanto orgão gestor dos recursos hídricos, se encarregue da produção e venda de água potável por atacado à capital e outras cidades da região metropolitana, as quais ficariam responsáveis pela distribuição.

Fora da região metropolitana, outra cidade pernambucana ameaça antecipar a retomada dos serviços concedidos à concessionária estadual. Trata-se de Petrolina, cujo contrato de concessão, assinado em 1973, teve sua vigência fixada em 50 anos. O prefeito questiona a relação entre a receita tarifária arrecadada mensalmente na cidade (cerca de R$ 1 milhão) e os investimentos que recebe (R$ 300 mil por mês). Petrolina tem serviços superavitários que, juntamente com as 14 cidades da região metropolitana do Recife, contribuem com mais de 65% do faturamento da COMPESA, transferindo recursos para inúmeros municípios menores com serviços deficitários operados pela companhia. Tais municípios ficariam financeiramente desamparados caso a concessionária estadual perdesse a concessão dos serviços de Petrolina e Recife .

Finalmente, entre os processos frustrados e já encerrados de municipalização, cabe citar os casos de São Paulo e Santos, que apresentam como peculiaridade a ausência de contrato de concessão.

No que se refere à capital paulista, a intervenção do governo estadual é antiga. Começou em 1877, quando o Estado de São Paulo assumiu o papel de poder concedente na assinatura de um contrato de concessão com a recém fundada Companhia Cantareira de Água e Esgotos, uma empresa privada com capital e tecnologia ingleses. Continuou com o rompimento do contrato e a encampação das instalações da Cia. Cantareira em 1892, por alegada incapacidade de cumprir as metas de investimento, mediante a criação da Repartição de

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Águas e Esgotos da capital (RAE). A RAE seria transformada em 1954 no DAE, uma autarquia cujas atribuições se estendiam a Guarulhos e aos municípios do ABC. Posteriormente, a intervenção estadual prossegue com a criação da Companhia Metropolitana de Águas (COMASP) em 1968, e da Companhia Metropolitana de Saneamento (SANESP) em 1970, cujos serviços abrangiam o conjunto dos municípios da Grande São Paulo, exceto a capital. Nesta, os serviços ficaram a cargo da Superintendência de Água e Esgotos da Capital (SAEC), que veio substituir o antigo DAE. Finalmente, com a adesão do Estado de São Paulo ao PLANASA em 1973, todos esses órgãos e empresas da Grande São Paulo, além das companhias estaduais de saneamento da Baixada Santista e do Vale do Ribeira, se fundiram na SABESP, que tornou-se responsável pela gestão dos serviços de água e esgotos na capital e na maioria dos municípios da região metropolitana.

A despeito da longa história da intervenção do Estado nos serviços de saneamento da capital paulista, sem que jamais tenha sido firmado qualquer contrato com a prefeitura, o prefeito Celso Pitta tentou retomá-los e privatizá-los em meados de 1999, visando equacionar a questão da elevado endividamento municipal. Sua intenção era incluir a SABESP no Programa Municipal de Desestatização, para arrecadar recursos que permitiriam ao município renegociar sua dívida com juros mais baixos. Os serviços seriam objeto de concessão onerosa, que poderia render cerca de US$ 6 bilhões51. Mas, tendo que indenizar o Estado pelos investimentos não amortizados realizados ao longo desses anos todos, o prefeito desistiu da "privatização", tentando no início de 2000 negociar com o governador uma participação da prefeitura no lucro da estatal com a prestação de serviços ao município. Tal proposta foi prontamente rejeitada por Covas e o secretário estadual de Recursos Hídricos: não faria sentido a prefeitura cobrar por um direito que nunca exerceu, não tendo investido um centavo sequer nos serviços. Além disso, a atuação do Estado no saneamento da capital teria respaldo jurídico, pois a Constituição Federal faculta aos Estados o direito de intervir no planejamento, organização e execução de "funções públicas de interesse comum" em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões (art. 25, § 3o )52. No caso do saneamento da Grande São Paulo, essa norma traz amparo legal a uma situação de fato: os sistemas de abastecimento de água e esgotamento sanitário da capital estão

51 Conforme notícias "Privatização resolve dívida de SP, diz Miranda" e "Covas critica disputa pela água na cidade", publicadas na edição de 26/06/99 do jornal Folha de São Paulo. 52 Ver "Pitta desiste de privatizar Sabesp e tenta acordo", notícia publicada na edição de 21 de janeiro de 2001 do jornal O Estado de São Paulo.

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técnica, física e financeiramente integrados em dispositivos metropolitanos que atendem à maioria das cidades da aglomeração. A prefeitura de São Paulo acabou recuando, e a SABESP ficou fora da renegociação da dívida municipal.

O caso de Santos é semelhante ao da capital paulista. A intervenção do Estado nos serviços de água e esgotos da cidade que abriga o maior porto do país é também bastante antiga e não envolve contrato de concessão. Começou com os serviços de esgotamento sanitário e drenagem urbana, em 1903 53. O abastecimento de água potável foi mantido sob responsabilidade de uma companhia concessionária inglesa: a City of Santos Improvements Co., que permaneceu a frente deste serviço de 1897 até 1953. A partir desta data, os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário de Santos e de todas as demais cidades da Baixada Santista passaram a ser geridos por diferentes organismos estaduais, constituindo sistemas integrados que hoje se encontram a cargo da SABESP. Apesar da longa história de intervenção do governo estadual no saneamento da cidade e da instituição da região metropolitana de Santos, o prefeito Beto Mansur, anunciou em 1997, no início de seu mandato, a intenção de retomar e privatizar os serviços mediante concessão. Descontente com os serviços prestados e a falta de transparência por parte da estatal na divulgação de valores arrecadados e investidos na cidade, preparou e encaminhou à Câmara Municipal, no final de 1999, um projeto de lei autorizando o município a abrir um processo para a concessão do setor. A assinatura de um contrato de concessão, argumentava, obrigaria a companhia concessionária a cumprir metas de investimento, podendo inclusive reduzir tarifas. Porém, com as dificuldades jurídicas do processo, as indenizações a serem pagas à SABESP e a falta de apoio dos vereadores, Mansur acabou desistindo do projeto de municipalização/privatização após ter sido reeleito.

Finalmente, o caso da Companhia de Saneamento do Mato Grosso (SANEMAT) demonstra que a municipalização também pode resultar de uma iniciativa de desengajamento de um governo estadual obcecado pelo "ajuste fiscal". Desde de o início de seu governo, o governador Dante de Oliveira (PSDB) tem se empenhado para equacionar a questão da dívida pública do Estado, através de redução do funcionalismo

53 Entre o final do século XIX e início do XX, a cidade foi acometida por diversas epidemias, que vitimavam principalmente os marinheiros estrangeiros. O porto de Santos esteve sob ameaça de exclusão das rotas de inúmeras companhias de navegação, o que afetaria significativamente toda a economia paulista. Diante dessa situação, o governo estadual encomendou estudos e projetos, passando a intervir diretamente no setor com a criação da Comissão de Saneamento de Santos em 1903.

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público e de um amplo programa de privatização das companhias estaduais, incluindo os setores de eletricidade (CEMAT), telefonia (Telemat), entre outros. Desde 1997, diante do alto grau de endividamento da companhia, que perdeu capacidade de investimento, e das dificuldades institucionais para privatizá-la, decidiu "desativar" a SANEMAT por decreto. Era o início de um processo "remunicipalização" do saneamento do Mato Grosso, cujos objetivos seriam melhorar a qualidade e reduzir o custo dos serviços. O governo estadual passou a levantar a situação particular de cada município, definindo caso a caso, junto com as prefeituras, a melhor forma de repassar-lhes a administração dos serviços. Segundo o governo, as prefeituras teriam de optar entre a "terceirização", a "privatização" ou criação de um organismo municipal para administrar o setor. Para avançar neste processo,o governador encaminhou à Assembléia Legislativa do Estado, no final de 2000, um pedido de autorização para extinguir a CEMAT, cuja situação atual permanece indefinida54.

Os casos relatados acima demonstram que a "municipalização" é uma tendência forte na conjuntura atual, podendo estar a serviço da privatização ou, ao contrário, ser parte de uma estratégia para combatê-la. Pode ainda ter como objetivos e motivação a melhoria da qualidade dos serviços e uma melhor articulação do setor com a política municipal de desenvolvimento urbano. Além disso, mesmo que o processo não chegue às vias de fato, pode ser um caminho para forçar uma revisão da relação entre poder concedente e concessionárias estaduais em bases mais democráticas, transparentes e equilibradas, conforme as aspirações das prefeituras de Belo Horizonte e Recife. Contudo, a retomada da gestão e da operação dos serviços pelo poder municipal concedente tem enfrentado dificuldades jurídicas e forte resistência política nas capitais estaduais e regiões metropolitanas, onde afeta a viabilidade econômica dos sistemas integrados e gera controvérsia sobre a titularidade dos serviços.

54 Esse processo, que poderíamos chamar de "municipalização descendente", também tem ocorrido noutros estados, especialmente nas capitais. É o caso da SANACRE, concessionária de saneamento do Acre que devolveu a concessão dos serviços da capital ao município de Rio Branco e foi transformada numa autarquia. É também o caso da COSAMA, que foi extinta depois de devolver a concessão dos serviços a Manaus para viabilizar a sua privatização, e da CESAN (v. abaixo, itens 3.2.2 e 3.2.3).

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3.2. A "privatização" em marcha: ofensivas e resistências

Na falta de dados exaustivos para avaliar a extensão e o desempenho do processo de "privatização" do saneamento no Brasil, busca-se aqui, partindo de elementos de informação extraídos de fontes diversas (jornais, internet, SNIS55), traçar uma visão panorâmica da situação atual e potencial das operadoras privadas neste "mercado" para, em seguida, analisar alguns casos específicos de serviços municipais e companhias estaduais, privatizados ou em curso de privatização, que permitam ilustrar melhor as questões em jogo.

3.2.1. Panorâmica geral: mercado e investimentos

Desde que foi aprovada a Lei das Concessões em fevereiro de 1995, cerca de 30 municípios, predominantemente concentrados na região sudeste, assinaram contratos de concessão (total ou parcial) dos serviços de água e/ou esgotos a empresas privadas, amiúde associadas a grupos estrangeiros. Tais empresas atendem, atualmente, cerca de 5 milhões de usuários, ou menos de 5% da população urbana brasileira. Embora o número de cidades envolvidas seja pequeno, no universo dos 5.507 municípios brasileiros, a lista é bastante diversificada no que concerne às origens do processo e às características dos núcleos urbanos. Inclui tanto municípios de pequeno e médio porte que já detinham a gestão direta dos serviços, quanto municípios concedentes que os "municipalizaram" antes de privatizá-los; ou ainda, ex-concedentes cujos serviços tiveram a sua privatização induzida pelas concessionárias estaduais. Entre os últimos encontram-se duas capitais estaduais (Manaus e Campo Grande), além de concessões que envolvem um pequeno grupo de municípios associados a um único contrato da mesma concessionária. Por outro lado, nenhuma das 27 companhias estaduais de saneamento (incluso o DF) foi privatizada até o momento, embora o processo esteja sendo tentado ou discutido em ao menos sete delas, há bastante tempo 56. Nos principais contratos assinados e nas negociações em curso tem havido participação efetiva ou interesse manifesto de grande grupos internacionais.

De fato, considerando o tamanho e a concentração da população brasileira nas cidades, a magnitude dos déficits de atendimento, a

55 Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, elaborado pela Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano da Presidência da República (SEDU) no âmbito do PMSS 56 A lista inclui CEDAE (RJ), CESAN (ES), EMBASA (BA), COMPESA (PE), CAGECE (CE), CAERN (RN) e COSAMA (AM), conforme examinado de maneira mais detalhada no item 4.2.3.

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carência de investimentos públicos e a abertura recente do setor, o Brasil representa um imenso mercado para as companhias transnacionais que atuam na área de saneamento e serviços urbanos57. Se, com relação ao abastecimento de água, o país já conta com 90% dos domicílios urbanos ligados à rede geral (conforme dados preliminares do Censo 2000, IBGE), ainda há déficits de atendimento importantes nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (da ordem de 20 a 30% da população urbana). Além disso, há ampla margem para ganhos de produtividade, especialmente no que se refere ao controle de perdas58. No campo do esgotamento sanitário, a necessidade de investimentos é muito maior, uma vez que a taxa de atendimento, ainda segundo o Censo 2000, é de apenas 52,5% dos domicílios urbanos, enquanto o volume de esgotos que recebe tratamento é estimado em apenas 10% do total coletado.

Como já visto, o volume de investimentos necessários para universalizar os serviços de saneamento, dentro dos próximos dez anos, incluindo parcialmente a questão do tratamento de efluentes, foi estimado pelo PMSS em cerca de R$ 40 bilhões, o que corresponde a quatro vezes o faturamento anual de todo o setor no país. Por outro lado, esse montante equivale a um investimento anual global de R$ 4 bilhões, que está muito além da capacidade de investimento demontrada atualmente pelo setor, cuja principal fonte de financiamento ainda repousa no FGTS.

Ora, os créditos disponibilizados para o setor por este fundo têm sido sistematicamente reduzidos desde 1996, devido às draconianas restrições de endividamento que vêm sendo impostas às companhias estaduais e entidades municipais de saneamento pela política de ajuste fiscal do governo federal. Naquele ano, o Conselho Monetário Federal limitou a R$ 600 milhões o montante anual de novas operações a serem contratadas. A partir de 1998, sucessivas resoluções do Banco Central definiram normas que impedem, na prática, o acesso de órgãos públicos aos recursos do FGTS. Mais do que meras medidas de ajuste fiscal, tais restrições foram denunciadas como uma estratégia deliberada para forçar a privatização das companhias estaduais. O jornalista Luís

57 Ver "Mercado de saneamento brasileiro é um dos mais procurados pelos estrangeiros", notícia publicada no Jornal do Brasil em 08 de fevereiro de 2001. Já estão prestando serviços de saneamento no país, através de consórcios com empresas nacionais, companhias francesas, norte-americanas e da península ibérica, como veremos adiante. Companhias inglesas como a Thames Water também já abriram escritório no país para estudar e disputar o nosso mercado. 58 Segundo o SNIS, a média nacional de perdas físicas nos sistemas de abastecimento público de água atinge 40% do volume produzido. Somente cinco cidades têm perdas inferiores a 30%, nove desperdiçam de 30% a 69% e treze mais de 69% (SEDU,1998).

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Nassif, em um dos vários artigos que vem publicando sobre a reestruturação do setor em sua coluna na Folha de São Paulo, chamou tal estratégia de "critério Herodes de privatização", que consistiria em "paralisar investimentos e inviabilizar todas as companhias para privatizá-las, à custa do aumento da mortalidade infantil"59. Por outro lado, a paralisação dos investimentos no setor tornava-se alvo de investigações de procuradores do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro, enquanto a área econômica do governo sofria pressões do Ministério da Saúde para rever esta política60. Sob tais circunstâncias, no final de 2000, o governo federal decidiu abrir uma brecha na lei para disponibilizar R$1,8 bilhão para as companhias estaduais (cuja liberação efetiva permanece incerta); ou seja: menos da metade dos investimentos anuais previstos para universalizar os serviços em dez anos.

De modo geral, os investimentos em saneamento no país vêm declinando signficativamente ao longo das últimas décadas, não apenas por escolhas estratégicas de política setorial, mas também em função de problemas estruturais e conjunturais da economia brasileira que afetam a capacidade de investimento do setor público (recessão, hiperinflação, endividamento interno e externo, ajuste fiscal). Assim, segundo a superintendente de Infra-estrutura Urbana do BNDES, Terezinha Moreira, o investimento médio global no setor passou de 0,34% do PIB, na década de 70, para 0,28% nos anos 80 e 0,13% na década de 90.61 A ausência de correção monetária do FGTS, cujos ativos sofreram "expurgos" sucessivos por conta dos planos de estabilização monetária das últimas décadas, contribuiu significativamente para a queda dos investimentos62.

Diante do quadro de restrições ao investimento público no setor descrito acima, parcialmente criado por sua própria política econômica, o governo federal propõe a privatização das companhias estaduais e serviços municipais como solução para viabilizar a ampliação dos investimentos em saneamento. Porém, tais investimentos ainda se

59 "O mercado e o saneamento", Folha de São Paulo, caderno Dinheiro, 01/11/2000. 60 "Ministério público investiga saneamento", Gazeta Mercantil, 28/12/2000. Segundo esta matéria o investimento anual no setor foi reduzido em mais de R$1bilhão por ano desde 1998 por conta das restrições impostas às 27 concessionárias estaduais (incluso o DF). 61 Dados apresentados no 72º Encontro Nacional da Indústria da Construção Civil, realizado em Joinville (SC), em outubro de 2000, 62 No final de 2000, o Supremo Tribunal Federal obrigou o governo federal a reajustar as contas do FGTS, para recuperar as perdas impostas pelos Planos Verão e Collor. O valor da correção foi estimado em nada menos do que R$38 bilhoes de reais, cujo pagamento a médio e longo prazo será compartilhado entre o governo, as entidades patronais e os próprios trabalhadores.

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encontram muito aquém das necessidades do setor, tendo atingido apenas R$150 a R$ 200 milhôes em 2000, conforme estimativa do presidente da Associação Brasileira de Concessionárias de Água e Esgotos (ABCON), para quem esta cifra deve dobrar em 200163. Além disso, deve-se ressaltar que o investimento privado tem sido viabilizado em grande parte através de financiamento publico às companhias privadas, seja com recursos do próprio FGTS, seja com financiamentos do BNDES64.

O que se depreende do panorama acima é que existe uma clara ofensiva do governo federal para acelerar as privatizações na área de saneamento, que foi reforçada no segundo mandato do presidente Cardoso, com a criação da Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano da Presidência da República em 1999. Essa ofensiva tem sido dificultada pela ausência de um marco regulatório para o setor, cuja definição tem sido postergada por divergências de posição entre os interesses públicos e privados envolvidos, como se discute adiante (item 3.3). Antes de entrar nessa questão, porém, vale a pena examinar as estratégias e os interesses em jogo a partir de uma abordagem mais detalhada de alguns processos específicos de privatização, concluídos ou não, de serviços municipais e de companhias estaduais do setor.

3.2.2 . A privatização dos serviços municipais

Como já vimos, a privatização dos serviços municipais de água esgotos mediante concessão a empresas privadas tem seguido três caminhos principais, a saber: 1) a privatização precedida da "municipalização"; 2) a privatização de serviços que sempre estiveram sob gestão direta do município; e 3) a privatização de serviços de municípios concedentes negociada com a concessionária estadual por iniciativa do governo do Estado. Cada uma destas vias reflete estratégias diferenciadas dos principais atores envolvidos para atingir objetivos diversos. Por isso merecem ser examinados a partir da análise de alguns casos.

A via da privatização precedida de municipalização já foi examinada através do caso de Paranaguá, em que as mudanças no modo

63 "Saneamento: concessionárias deverão investir R$ 400 milhões no setor", notícia publicada no jornal Valor Econômico, em 14/02/2001. 64 O Conselho Curador do FGTS aprovou em 1997 a criação do Programa de Finaciamento a Concessionários Privados de Saneamento,que passou a disponibilizar recursos deste fundo para a iniciativa privado. Quanto ao BNDES, o banco dispõe de uma carteira de investimentos para a área de saneamento cujas aplicações, destinadas exclusivamente às concessionárias privadas ou ao financiamento da privatização das estaduais, atingiram R$ 718 milhões entre 1996 e 2000.

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de gestão dos serviços corresponderam a uma estratégia do município para equacionar o problema da falta de investimentos em esgotamento sanitário. Cabe acrescentar o caso de Mauá, município de aproximadamente 370 mil habitantes da Grande São Paulo que, a exemplo da vizinha Diadema, rescindiu unilateralmente o contrato de concessão que tinha firmado com a SABESP, e criou uma autarquia municipal de saneamento, a SAMA.

Como Diadema, e as cidades irmãs do ABC paulista, Mauá é uma cidade cujos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, apesar de adminstrados pelos próprios municípios, permanecem conectados a dispositivos supramunicipais de produção e adução de água, e de coleta, interceptação, transporte e tratamento de esgotos, ambos geridos pela SABESP na escala metropolitana. Em meados de 2000, a prefeitura, administrada pelo PT, preparou um projeto de concessão dos serviços de coleta e tratamento de esgotos, cuja viabilização se daria pela venda dos efluentes tratados ao pólo industrial de Capuava, para refrigeração e outros usos. A licitação deveria ocorrer no início do semestre seguinte. Mas as expectativas do município têm sido frustradas pelo desinteresse manifesto dos investidores potenciais, como a Suez Lyonnaise des Eaux, cujo diretor comercial em São Paulo, Yves Besse, criticou o projeto da SAMA. Para ele, a concessionária deveria operar todo o ciclo da água no município: da produção e distribuição à coleta e tratamento de esgotos, incluindo a produção e distribuição de água industrial para as empresas do Pólo de Capuava. A concessão dos esgotos sem a água seria inviável, pois "o filé mignon tem que compensar o abacaxi". Além disso, o executivo apontou outro inconveniente maior nos elevados "custos de transação" previstos no contrato, já que a concessionária teria de lidar diariamente com uma multiplicidade de atores: prefeitura, pólo industrial, agência reguladora municipal (prevista no contrato) e SABESP65. O caso revela que, nas regiões metropolitanas e áreas de conurbação existe um problema de escala apropriada de gestão que se reflete tanto na viabilidade econômico-financeira dos contratos, quanto nas estratégias e interesses comerciais dos grandes grupos privados do setor (assunto retomado e aprofundado em 3.3)66.

Com relação à privatização de serviços que sempre estiveram sob gestão municipal direta, o caso mais emblemático é o de Limeira, onde

65Afirmações contidas na notícia "Lyonnaise critica projeto da Sama", publicada no Diário do Grande ABC em 28/10/2000. 66 A própria SABESP, que não manifestou interesse pelo contrato da SAMA, também possui projetos próprios de distribuição e venda dos efluentes tratados na ETE do ABC para as indústrias da região, cuja viabilização se daria numa escala territorial mais abrangente.

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ocorreu a primeira “concessão plena” de uma cidade de médio porte (cerca de 250 mil habitantes) registrada no país. Os serviços de água e esgotos da cidade foram concedidos por um período de 30 anos a um consórcio formado pela construtora Odebrecht (50%) e a companhia Suez Lyonnaise des Eaux (50%), a empresa Águas de Limeira, que venceu a licitação e assinou contrato com a prefeitura em junho de 1995. O principal critério de seleção entre os concorrentes, além da capacidade técnica, foi o da menor tarifa, não havendo cobrança de direitos de exploração no contrato (concessão não onerosa). A empresa vencedora passaria a explorar os serviços sem qualquer despesa inicial, uma vez que a prefeitura assumiria as dívidas contratuais e o passivo trabalhista do antigo SAAE67, transformando-o em orgão fiscalizador, com corpo de funcionários drasticamente reduzido. Em contrapartida, foram previstas obrigações de resultado abrangentes para os primeiros cinco anos do contrato (ampliação da cobertura de água e esgotos para 95% e 80% da população urbana, respectivamente; incremento de 25% na produção de água; índice de micromedição superior a 90%; ampliação de reservatórios; redução no índice de perdas; obras diversas de tratamento de esgotos; etc.), além de metas de investimento elevadas, totalizando R$ 98,4 milhões até 2025 (valores de novembro de 1994)68. Porém, as expectativas de ambas as partes seriam frustradas por disputas judiciais em torno da legalidade do contrato e de sua revisão.

A concessão foi pouco debatida com as lideranças locais, que colocaram em dúvida o princípio da concessão não onerosa e a assunção do passivo trabalhista do antigo SAEE pela prefeitura. A própria lei de autorização foi irregularmente votada em regime de urgência na Câmara Municipal. Neste contexto, pouco depois da companhia ter assumido a operação dos serviços, o Ministério Público Estadual, acionado por vereadores da oposição, entrou com uma Ação Civil Pública na Justiça, questionando a legalidade do contrato e da lei autorizativa. Com o contrato sub judice, foram suspensas as autorizações para reajuste nas tarifas, que têm permanecido "congeladas" desde então. Em resposta a essa situação, a Águas de Limeira deixou de realizar investimentos programados, e entrou na Justiça com uma ação ordinária, reivindicando a atualização tarifária, prevista no contrato. Em janeiro de 2000, numa decisão de primeira instância, a Justiça deu ganho de causa ao Ministério Público,

67 Serviço Autônomo de Água e Esgotos. Designação da autarquia que cuidava do saneamento básico em Limeira, antes da concessão. 68Dados extraídos do website da ABCON (www.abcon.com.br), onde não há informações sobre a situação dos índices mencionados antes da concessão dos serviços à Águas de Limeira.

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determinando a anulação da concessão69. Mas a empresa recorreu, podendo permanecer na operação dos serviços enquanto seu recurso estiver sendo julgado. Meses depois, era a vez da Águas de Limeira obter ganho de causa no STJ, que concedeu-lhe, através de liminar, o direito de atualizar as tarifas imediatamente.

Sob tais circunstâncias, a prefeitura e a empresa passaram a negociar uma revisão do contrato que seria concluída somente em janeiro de 2001. Os termos do acordo firmado entre as partes autorizou a Águas de Limeira a reajustar suas tarifas em 63%, aplicados em três parcelas. Em troca, o operador privado assumirá parte da dívida do antigo SAAE (R$ 20 milhões de um total de R$ 64 milhões), além de repassar à autarquia municipal 9,5% da receita líquida de exploração dos serviços. O repasse será da ordem de R$250 mil mensais, que cobrem integralmente os custos de manutenção da autarquia, incluindo o pagamento de ex-funcionários aposentados. Além da garantia de reajuste tarifário anual, a empresa conseguiu estender o prazo de implementação das obras programadas. Terá de investir R$ 50 milhões em obras nos próximos seis anos, especialmente na área de tratamento de esgotos, a mais deficiente do município70. A prefeitura ainda obteve da empresa a criação de uma "tarifa popular", que deverá beneficiar até 5 mil pessoas carentes com uma redução de 50% na conta. A despeito de suas virtudes, o acordo não interfere na ação judicial em curso que, segundo o promotor responsável, não questiona a execução dos serviços, mas à legalidade do contrato e do edital de concorrência. Satisfeito com o acordo, o diretor-presidente da empresa parecia aliviado: "uma sentença final não levará menos do que dez anos", declarou, acrescentando que seria acatada em qualquer condição71.

A guerra judicial que ocorreu em Limeira não é um caso isolado. Levantamento feito pela ABCON revela que, em 1999, os contratos com interrupção ou atraso nos investimentos por conta de questionamentos na Justiça atingiam 30% da população atendida por concessionárias privadas. No ano anterior, a situação era ainda pior,

69 Embora tenha sido citado na ação civil como réu, não houve provas de que o ex-prefeito tenha praticado ato lesivo ao patrimônio público, resultando no seu enriquecimento ilícito. 70 Conforme dados divulgados pela empresa, 100% da população urbana de Limeira contam com água encanada e coleta de esgotos, mas somente 8% dos efluentes urbanos são tratados. O município seria responsável por 40% da carga poluidora lançada no rio Piracicaba. O compromisso assumido pela empresa é de tratar 80% do esgoto até 2004. V. "Acordo garante saneamento de Limeira", O Estado de São Paulo, 27/01/2001. 71 Ver "Águas de Limeira: acordo não interfere na ação que aponta irregularidades na concessão", Gazeta de Limeira, 01/02/2001 e "Tarifas da Águas de Limeira vão subir 63%", O Estado de São Paulo , 02/02/2001.

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pois o índice atingia 50% da população atendida por estas72. Geralmente relacionadas ao reajuste de tarifas e ao cronograma de investimentos, tais questionamentos se associam à alternância no poder municipal, quando uma nova administração questiona um contrato assinado pelo governo e a legislatura anterior. No entanto, mais do que batalhas de cunho político-eleitoral, as disputas judiciais em torno dos contratos revelam a ausência de cultura política e jurídico-administrativa dos eleitos sobre a regulação de monopólios privados pelo poder público, além da falta de um marco regulatório mais claro para o saneamento urbano, como se discute melhor em 3.3. Em todo caso, pode-se dizer que as disputas judiciais em torno dos contratos, e o decorrente atraso nos investimentos, em cidades como Limeira, influenciaram a decisão de muitos outros municípios paulistas de descartar ou desistir da privatização, como Biritiba-Mirim, Capivari, Cordeirópolis, Jaboticabal, Matão e Rio Claro, entre outros73.

É neste contexto que se insere a "terceria via" para a privatização do saneamento no país; sem dúvida, a mais "promissora" em termos de alcance e eficiência estratégica. Trata-se da privatização dos serviços de municípios concedentes induzida por iniciativa do governo e da concessionária estadual, tendo a concessão onerosa como moeda de troca. Foi esta via que levou à privatização dos serviços de água e esgotos das capitais do Amazonas e do Mato Grosso, entre outras cidades.

Em Manaus, a privatização do setor foi precedida de um movimento particular de "municipalização descendente". Os serviços da capital eram operados pela COSAMA, concessionária estadual do Amazonas que estava em processo de privatização, no bojo da renegociação da dívida do Estado com a União. Face às dificuldades institucionais envolvidas na questão da titularidade dos serviços, o governo estadual devolveu a concessão dos serviços da capital ao município, que criou a Manaus Saneamento, e extinguiu a COSAMA, substituindo-a por uma autarquia que permanece na administração dos serviços de água de diversas municípios concedentes do interior. Foi uma estratégia negociada com a prefeitura e o BNDES para privatizar os serviços de água e esgotos da capital amazonense, cuja população atinge cerca de 1,4 milhão de habitantes. Trata-se da maior privatização já ocorrida neste setor no páis.

72 Ver "Falta de regulação emperra novos investimentos", O Estado de São Paulo, 14/10/2000 73 Informações extraídas de SANEAMENTO E MUNICÍPIOS, informativo bimestral da ASSEMAE, números diversos, a partir de 1996, e de MALTA & PRESTES (1997).Os últimos informam que, no caso de Bititiba-Mirim, o contrato de concessão foi rescindido por incapacidade de investimento da concessionária privada, sendo a concessão transferida à SABESP.

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A licitação foi vencida em meados de 2000 pela Águas do Amazonas, um consórcio liderado pela Suez Lyonnaise des Eaux, que pagou R$ 194 milhões pelo direito de explorar os serviços de água e esgotos de Manaus por 30 anos, ou 5% de ágio sobre os R$ 180 milhões fixados como lance mínimo. O dinheiro foi dividido entre a prefeitura de Manaus e o governo do Estado, que usaria sua parcela para abatimento da dívida pública com a União. Deste montante, R$ 90 milhões foram financiados pelo BNDES. Cabe ressaltar que o passivo da companhia municipal foi descontado do valor pago, sendo assumido pela Águas do Amazonas. Para recuperar o investimento, a concessionária repassou estes gastos às tarifas, que foram substancialmente elevadas. Em contrapartida, a empresa assumiu compromissos de investir R$ 600 milhões ao longo do contrato, um terço nos primeiros 36 meses, devendo levar água potável para 95% da população até 2005, e tratar 30% dos esgotos até 2006.

No final de outubro de 2000, em operação semelhante, Campo Grande (MS), com cerca 650 mil habitantes, tornava-se a segunda capital estadual a optar pela concessão de seus serviços de água e esgotos a um operador privado. A licitação foi vencida pelo consórcio Águas da Guariroba S. A., que pagou R$ 65 milhões pela concessão dos servicos de água e esgotamento sanitário da cidade por 30 anos. Deste total, 40% seriam pagos à SANESUL a título de indenização pelos investimentos não amortizados efetuados pela concessionária do Estado de Mato Grosso do Sul nos serviços da capital durante os 20 anos em que estiveram sob sua gestão. O consórcio vencedor, formado pelas empresas Águas de Barcelona (50%), pela Cobel Engenharia (41%) e a própria SANESUL (9%), também assumiu dívidas de R$ 88 milhões dos governos estadual e municipal junto à CEF e o Banco Mundial, e comprometeu-se a investir R$271 milhões durante a concessão. Nestas condições, as tarifas da Águas da Guariroba foram substancialmente aumentadas sem autorização, gerando protestos da população junto ao PROCON. A empresa recuou e continua investindo no aumento da micromedição e do controle de perdas para evitar prejuízos.

Embora tenha funcionado eficazmente como moeda de troca entre o Estado e os municípios nos processos de privatização dos serviços de água e esgotos de Manaus e Campo Grande, entre outros, a concessão onerosa tende a repercutir negativamente sobre a capacidade de investimentos da concessionária e a gerar tarifas mais elevadas. A avidez de prefeitos e governadores por recursos para fazer face à crise fiscal pode levar, assim, a modelos estapafúrdios de venda de concessões. Como lembra Nassif, "não dá para maximizar todas as

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prioridades:...preço alto pela concessão, investimentos pesados e tarifas baixas"74. Considerando que as prioridades devem ser os investimentos na ampliação da cobertura e da qualidade dos serviços, com tarifas baixas, o projeto de lei 4.147, que estabelece diretrizes nacionais para a prestação de serviços de saneamento no páis, encaminhado pelo Executivo ao Congresso Nacional em março de 2001, prevê a proibição da concessão onerosa75. Seria fechar o caminho que, até o momento, tem propiciado as maiores privatizações existentes no setor...

3.2.3. A privatização das companhias estaduais

O caso mais antigo e interessante de tentativa de privatização das companhias estaduais de saneamento é o da CEDAE, do Rio de Janeiro, cujo desfecho repercutiu no encaminhamento do processo em outros Estados76.

Em 1995, o governador do Rio, Marcelo Alencar (PSDB), incluiu a empresa no Programa Estadual de Desestatização, tendo como objetivo principal reduzir a dívida pública do Estado e gerar recursos para investimentos. Como o projeto foi fortemente combatido pelos partidos de oposição, pelos funcionários da empresa, pelo sindicato e as organizações profissionais do setor, além de municípios que pretendiam retomar a gestão dos serviços concedidos à CEDAE, o governador preparou o terreno da privatização no plano institucional. Por um lado, conseguiu a aprovação da Lei Complementar nº 87/97, que redefine as atribuições do Estado e dos municípios na região metropolitana do Rio de Janeiro, considerando a água e o saneamento como serviços de interesse comum que compete ao Estado organizar e fornecer, seja diretamente, seja em regime de concessão ou permissão. Por outro, na mesma época, criou a Agência Reguladora dos Serviços Públicos do Estado (ASESP-RJ), mantendo controle sobre seu conselho deliberativo77. Com base nessa legislação, e na própria insatisfação dos municípios concedentes com a CEDAE, o governador "costurou" um acordo com as prefeituras da capital e de outras 13 cidades do Grande

74 Nassif, L. "O modelo do saneamento", artigo publicado no jornal Folha de São Paulo em 10/06/2000. 75 As diretrizes gerais deste projeto de lei são discutidas de maneira mais detalhada no item 3.3, juntamente com outras propostas de regulamentação do setor em debate no Congreso. 76 Para maiores detalhes sobre a tentativa de privatização da CEDAE, ver BRITTO (2000), de onde foram extraídas a maior parte das informações fornecidas a seguir. 77 O Conselho Deliberativo da ASESP-RJ é formado por cinco conselheiros nomeados pelo governador e aprovados pela Assembléia Legislativa do Estado. Os municípios e os usuários podem participar das reuniões do Conselho, mas não têm direito de voto (BRITTO, 2000).

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Rio para privatizar os serviços da companhia na metrópole, numa operação que renderia cerca de R$ 3,8 bilhões aos cofres do Estado. Para garantir o apoio do prefeito da capital, o governo estadual acenou com o pagamento de uma participação de R$ 300 milhões aos cofres municipais, não oferecendo nada aos demais. Os municípios de Niterói, Nilópolis, São João do Meriti e São Gonçalo recusaram-se a assinar o acordo. Os três primeiros estavam em processo de retomada dos serviços concedidos à CEDAE e preparavam a sua própria licitação para concedê-los a outras operadoras.

Nestas circunstâncias, a privatização da CEDAE deu origem a uma ampla batalha jurídica, na qual foram questionadas a constitucionalidade da lei complementar nº 87/97 e do próprio edital de concorrência para a venda da companhia. No primeiro caso, discutia-se a questão da titularidade dos serviços de saneamento, que pertenceria aos municípios; no segundo, a inclusão no edital dos serviços de Niterói, Nilópolis e São João do Meriti, que tinham organizado licitações para concessão dos próprios seviços antes da lei 87/97. Nesta batalha, em meados de 1998, o STJ deu ganho de causa aos opositores da privatização, suspendendo a venda da empresa. Paralelamente, a Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro aprovou uma lei que excluiu a CEDAE do Plano Estadual de Desestatização, em meio a um escândalo provocado pela descoberta da compra de votos no processo de aprovação da nova lei metropolitana. Para completar, o novo governador Garotinho, que assumiu o poder em 1999, comprometeu-se a manter a empresa sob controle do Estado. No final daquele ano, a CEDAE ainda sairia vencida na sua disputa judicial com a Prefeitura de Niterói pela concessão dos serviços do município, que foram concedidos sem ônus a um consórcio do grupo Águas do Brasil por 25 anos78.

Embora tenha fracassado na tentativa de privatização dos serviços de água e esgotos da Região Metropolitana do Rio, por tentar passar por cima dos municípios, o governo Alencar conseguiu bons resultados na privatização dos serviços de diversas cidades na região dos Lagos. Neste caso, o processo de licitação das concessões foi negociado entre o governo estadual, a CEDAE, as prefeituras e um consórcio intermunicipal dos municípios envolvidos, tendo havido partilha nos recursos obtidos com a concessão onerosa79. Em dezembro de 1997 foi

78 A cia. Águas do Brasil é a holding que detém atualmente uma das maiores fatias do mercado de concessões de saneamento no país, atuando como operadora dos serviços de água e esgotos de Niterói, Campos, Petrópolis, Araruama, Saquarema e Silva Jardim, totalizando aproximadamente 1,3 milhão de habitantes. 79As fontes consultadas não fornecem informações sobre os valores arrecadados no processo.

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assinado o primeiro contrato, através do qual os serviços de água e esgotos dos municípios de Araruama, Saquarema e Silva Jardim, (totalizando cerca de 210 mil habitantes) foram concedidos à empresa Águas do Juturnaíba, outro consórcio pertencente ao grupo Águas do Brasil, que se comprometeu a investir R$ 73 milhões na região durante os 25 anos do contrato. Em abril de 1998, foi a vez das cidades de Arraial do Cabo, Búzios, Cabo Frio, Iguaba e São Pedro da Aldeia, totalizando 240 mil habitantes, firmarem um contrato de concessão de igual duração com o consórcio PROLAGOS, formado pelas empresas Monteiro Aranha, EPAL, PLANUP e PEM, que planeja investir R$ 160 milhões na região. As metas de investimento de ambas as empresas foram recentemente renegociadas com a ASESP-RJ e as prefeituras, tendo sido revistas para cima80.

Depois de fracassar na tentativa de privatizar a CEDAE passando por cima dos municípios da região metropolitana, o governo do Rio de Janeiro mostrou o caminho da privatização negociada dos serviços municipais, usando a concessão onerosa como moeda de troca, o qual vem sendo seguido desde então pela COSAMA (Manaus), pela SANESUL (Campo Grande) e, mais recentemente, pela empresas estaduais da Bahia e de Pernambuco. Antes de comentar estes casos, que ainda se encontram na agenda de privatizações do BNDES, juntamente com a companhia estadual do Rio Grande do Norte, cabe analisar mais dois casos de privatização que saíram da agenda por força da resistência das lideranças políticas e sociais locais: o das companhias estaduais do Ceará (CAGECE) e Espírito Santo (CESAN).

No caso da CAGECE, o processo de privatização da companhia entrou em pauta em meados de 1997, no bojo da renegociação da dívida pública do Estado do Ceará com a União. O governador Tasso Jereissati (PSDB) assinou então diversos documentos, comprometendo-se com um Programa de Reestruturação e Ajuste Fiscal do Estado, que envolve diversas medidas de reforma administrativa e desestatização. Entre as últimas, o programa incluía a "reestruturação, saneamento e privatização da CAGECE", com apoio técnico da SEPURB e do Banco Mundial. Com relação à reestruturação da empresa, foi proposta uma inovação: a setorização dos sistemas de água e esgotamento sanitário da região metropolitana de Fortaleza, com a terceirização da prestação de 25% dos serviços da metrópole (ou o equivalente a 100 mil ligações de água e esgotos para uma população de cerca de 500 mil pessoas). A

80 A Empresa Portuguesa de Águas Livres (EPAL), que detém 7,5% das ações da Prolagos, solicitou ao Estado autorização para adquirir 100% da última. V. "Prolagos duplica recursos em saneamento básico para atender metas da concessão", Gazeta Mercantil Rio, 20/02/2001.

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medida foi efetivamente implementada no início de 199881. No âmbito deste programa foi criada ainda a Agência de Serviços Públicos Delegados do Ceará (ARCE), que deveria estabelecer um marco regulatório para o saneamento, entre outros setores.

Neste contexto, duas licitações para a venda da CAGECE foram realizadas sem sucesso desde 1998. A ausência de um marco regulatório definido para o setor e a resistência da oposição, especialmente em Fortaleza, foram as principais causas do fracasso da privatização. Foram ultizadas armas jurídico-legais de ambos os lados. Em meados de 1999, a Câmara Municipal de Fortaleza aprovou um decreto legislativo determinando a realização de um plebiscito sobre a privatização da CAGECE. Embora o plebiscito não tenha sido realizado, por ausência de recursos para custeá-lo, houve uma enorme campanha para promovê-lo, envolvendo entidades como Sindicatos de Trabalhadores do setor; OAB, CNBB, Associação Cearense de Imprensa, etc., a qual suscitou amplo debate sobre a questão em Fortaleza ao longo de 2000. No final deste ano, o governo estadual contra-atacou enviando à Assembléia Legislativa, durante convocação extraordinária, uma mensagem propondo um novo marco regulatório para o saneamento, dentro do qual a titularidade dos serviços na região metropolitana seria transferida para o Estado. Se aprovada, a medida permitiria ao governo estadual atuar como poder concedente na concessão dos serviços municipais da metrópole à iniciativa privada, mesmo sem apoio dos municípios envolvidos. Sob forte protesto da oposição, que o acusava de inconstitucionalidade, o projeto foi retirado da pauta da convocação extraordinária, gerando um contra-ataque do prefeito de Fortaleza no início de 2001. Além de notificar a CAGECE de sua intenção de não renovar o contrato de concessão, como já vimos, o prefeito encaminhou naquele momento um projeto de lei à Câmara Municipal de Fortaleza, que altera a Lei Orgânica do Município e veta a concessão dos serviços de água e esgotos da capital à iniciativa privada! Nestas circunstâncias, os próprios líderes do governo na Assembléia Legislativa descartaram a privatização da CAGECE dentro dos próximos quatro anos.

No caso da companhia estadual de saneamento do Espírito Santo (CESAN), a resistência à privatização da empresa não impediu o

81 A licitação foi vencida pela empresa bahiana Hidrosistem, que adminstra a região Floresta. O sistema de saneamento da metrópole seria ainda dividido em três outras áreas com serviços administrados por regionais da CAGECE. Os quatro setores teriam automia para administrar os serviços e cobrar tarifas em regime concorrencial. Não se sabe até que ponto esta regionalização da CAGECE foi efetivamente implantada, mas trata-se de uma experiência que merecia ser melhor divulgada e avaliada. V. "Cagece: idéia da privatização vem desde 1997", Diário do Nordeste, 05/04/2001

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avanço do processo através da "municipalização descendente". No final de 1996, o governo estadual assumiu com o BNDES o compromisso de vender o controle acionário da CESAN, visando diminuir a dívida pública do Estado e garantir apoio financeiro do Banco para o Programa de Despoluição dos Ecossistemas Litorâneos do Estado (Prodespol). Com o prazo das concessões começando a vencer em breve nos municípios da Grande Vitória, o governo estadual iniciou negociações com as prefeituras para viabilizar a privatização em meados de 1997. Houve intensa mobilização contra a proposta por parte da oposição parlamentar e das entidades representativas do setor, lideradas pela regional da ASSEMAE82. A despeito disso, as negociações avançaram em cinco municípios da região metropolitana. O Estado reconheceu-lhes a titularidade sobre os serviços de distribuição de água e coleta de esgotos, mantendo a produção de água e o tratamento de efluentes a cargo da CESAN. Com a gestão compartilhada do setor, o governo estadual pretendeu assegurar os recursos necessários para o aporte da contrapartida nacional ao Prodespol, parcialmente financiado pelo Banco Mundial. Neste processo, Vila Velha e Cariacica retomaram e concederam seus respectivo serviços de saneamento básico à iniciativa privada.

Finalmente, cabe comentar os processos de privatização das companhias estaduais da Bahia (EMBASA) e Pernambuco (COMPESA). O BNDES está envolvido nos dois processos, prestando apoio técnico e financeiro. No caso da Bahia, o banco organizou a licitação e contratou duas consultorias para avaliar o preço da EMBASA e a modelagem da agência reguladora estadual a ser criada para o setor. O grupo francês Saur já demonstrou interesse na compra da empresa, cujo leilão está marcado para setembro de 2001. A demora está ligada ao processo de negociação entre o governo estadual, a empresa e os municípios concedentes, que precisam autorizar a venda dos ativos da companhia referentes aos respectivos territórios. No final de abril deste ano, dos 340 municípios atendidos pela EMBASA, 250 (cerca de 75%) já haviam aderido à privatização. Neste ritmo, é provável que a empresa se torne a primeira concessionária estadual de saneamento a ser privatizada em bloco. Em Pernambuco, o BNDES

82 Em maio de 1998, um grupo composto pela Comissão de Saneamento da Assembléia Legislativa, CREA, Sindicatos dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente, Sindicato dos Engenheiros, CUT e movimento Cidadania pela Águas do Espírito Santo, realizou seis Conferências Municipais de Saneamento contra a privatização da CESAN, as quais antecederam a realização do 26a Assembleía Nacional da ASSEMAE, ocorrida em 1o de julho de 1998 em Vitória, igualmente dominada pelo tema. V. Saneamento e Municípios, informativo da ASSEMAE, nº 74, março/abril de 1998.

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contratou duas empresas de consultoria para preparar avaliação econômico-financeira e a modelagem de venda da COMPESA, que detém a concessão de 168 dos 184 municípios do Estado. Caberá a estas empresas elaborar um Plano de Metas juntamente com cada município, buscando definir necessidades de investimento e obter apoio para o processo. Porém, a privatização da companhia esbarra na resistência dos municípios maiores e mais rentáveis, como Recife, Petrolina, Cabo de Santo Agostinho, Olinda e Camaragibe, que se opõem à privatização da companhia. Os três primeiros pretendem cancelar a concessão à COMPESA, cujo contrato tem validade de 50 anos.

Há ainda uma modalidade de "privatização" que não foi discutida aqui, a qual, em princípio, só diz respeito às companhias estaduais mais rentáveis. Trata-se da abertura do capital das empresas, que ocorreu na SANEPAR e foi estudada para a SABESP. No caso da SANEPAR, em 1998 o Estado do Paraná vendeu 39% do capital votante da empresa a um consórcio liderado pelo grupo francês Vivendi, em associação com a contrutora Andrade Gutierrez, a companhia estadual de eletricidade (COPEL) e o Banco Opportunity. O mesmo modelo foi posteriormente adotado pela companhia do Estado do Tocantins (SANEATINS), que vendeu 35% de suas ações. No caso da SABESP, a companhia de São Paulo, que é uma das maiores empresas de saneamento do mundo, a abertura do capital para atrair um sócio estratégico vem sendo estudada pelo governo desde 1998. Mas, face à resistência dos funcionários da empresa, dos sindicatos e entidades representativas do setor, e diante da capacidade da empresa de captar recursos no exterior, a idéia vem perdendo força ultimamente83.

3.3. O marco regulatório ausente: principal obstáculo às mudanças

Como vimos acima, além da resistência das entidades organizadas do setor, e de forças políticas aliadas, a “privatização” dos serviços de água e esgotos tem enfrentado dificuldades institucionais. Conforme a tradição jurídica e administrativa consagrada no país desde a República Velha, que passou incólume pela ditadura militar, os serviços de saneamento são vistos como de competência municipal, de modo que apenas os poderes públicos municipais teriam o poder de decidir por sua concessão a empresas privadas. Esta limitação legal tem dificultado as

83 Com um faturamento anual de cerca de R$3,2 bilhões, a SABESP respondia por 37% da receita operacional das 27 companhias estaduai em 1998 (SEDU,1998). Em boa situação financeira, a empresa tem condições de captar recursos no mercado internacional, como ocorreu em outubro de 2000, quando obteve um empréstimo de US$ 100 milhões em operação liderada pelo Brasil Merchand Bank.

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tentativas de privatização de algumas empresas estaduais de saneamento, que se vêem impedidas de transferir a concessão dos serviços locais que gerenciam a seus eventuais compradores, sem o consentimento formal dos respectivos municípios.

Entretanto, a questão da competência municipal neste setor é controversa. Pois, ao contrário das constituições precedentes, a Constituição Federal promulgada em 1988 enquadra o saneamento básico como um setor em que prevalecem "competências comuns" ou "supletivas" entre os três níveis de governo da federação. Trata-se de uma mudança institucional que não foi compreendida por alguns segmentos organizados do setor, como a ASSEMAE, entre outros. Não há na lei fundamental atribuição explícita de competência ao município para implementação de programas e ações de saneamento básico, exceto nos casos em que os serviços se caracterizam como “de interesse local.” Ao contrário, a nova ordem constitucional permite que os municípios articulem-se com os Estados e a União para promover a integração vertical do setor. Por outro lado, aos municípios caberia desenvolver ações de integração horizontal (ou intersetorial) entre o saneamento e os demais serviços e infra-estruturas urbanas que se relacionam com o setor (drenagem de águas pluviais, sistema viário, política habitacional, etc.)84. Na realidade, a Constituição (art. 23, Inciso IX, parágrafo único) prevê que haja cooperação entre as três esferas de governo neste campo, a qual deverá ser orientada por normas estabelecidas em Lei Complementar.

Face às batalhas judiciais em torno da titularidade dos serviços, envolvendo processos de municipalização ou privatização do setor, especialmente nas capitais e regiões metropolitanas, foram elaboradas diversas propostas e projetos de lei visando regulamentar a cooperação intergovernamental em saneamento urbano no país, cada qual refletindo projetos e interesses divergentes de segmentos distintos.

A primeira iniciativa partiu do senador José Serra, autor do projeto de lei nº266/96, alvo de amplos ataques da ASSEMAE e dos partidos de oposição. O PL 266, que propunha a transferência para os Estados do poder concedente sobre os serviços de água e esgotos “que atendam a interesses comuns” de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e cidades conurbadas, foi erroneamente interpretado como uma tentativa de cassar a titularidade dos municípios sobre os serviços locais a fim de facilitar a sua privatização. Embora este projeto de lei apresentasse um inequívoco caráter centralizador e a abertura do setor ao capital privado

84 Essa interpretação é defendida no âmbito do Programa de Modernização do Setor Saneamento (MPO/IPEA, 1995: vol. 1), é também por BARAT (1996), entre outros.

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estivesse entre seus objetivos explícitos, o que o senador propunha não era uma intervenção estadual nas redes de água e esgotos das cidades que fazem parte de aglomerações urbanas, mas apenas a possibilidade dos Estados atuarem como poder concedente em relação aos sistemas integrados de água e saneamento cujos equipamentos e gestão já se encontram em seu poder em muitas destas aglomerações. Foi formulada uma segunda versão do projeto, menos centralizadora, que foi igualmente criticada pela ASSEMAE, pelos prefeitos da capitais e a oposição, sendo considerada inconstitucional na Comissão de Constituição de Justiça no início de 1998.

Enquanto o PL 266/96 passava por nova reformulação, o deputado cearense Adolfo Marinho (PSDB) apresentou à Câmara dos Deputados, em meados de 1999, um projeto de Lei Complementar (nº 72/99), propondo a titularidade compartilhada do serviços nas regiões metropolitanas: os Estados seriam titulares dos serviços de produção e adução de água potável, além do tratamento de esgotos, enquanto os municípios permaneceriam como titulares dos serviços de distribuição de água e coleta de esgotos. Por outro lado, em meados de 2000, os Secretários Estaduais de Recursos Hídricos e Saneamento, reunidos em um fórum, juntamente com a AESBE, apresentaram uma terceira proposta ao Palácio do Planalto, na qual a titularidade dos serviços seria plenamente exercida pelos Estados nas regiões metropolitanas e conurbações, sendo que as concessões seriam regulamentadas por lei complementar estadual. A primeira proposta tem sido apoiada pelo grupo de pequenas e médias construtoras nacionais, que tem conseguido penetrar neste mercado através de concessões municipais pulverizadas. A segunda interessa mais aos grandes grupos internacionais do setor, que preferem a concessão em grandes blocos de municípios, pois têm chances muito maiores de vencer as licitações. Ambas foram debatidas no âmbito de um grupo interministerial coordenado pelo Secretário Geral da Presidência, Aluízio Nunes Ferreira, encarregado de encaminhar um projeto de lei do Executivo para regulamentar a prestação de serviços do setor.

A proposta final do governo federal foi encaminhada ao Congresso em fevereiro de 2001, na forma do Projeto de lei nº 4147, que deveria ser apreciado em regime de urgência. Prevaleceu a tese dos governadores: o poder concedente ou a titularidade dos serviços nas regiões metropolitanas passaria integralmente aos Estados85, mas as

85O critério adotado para definir o poder concedente titular dos serviços no PL 4147 é a abrangência geográfica da prestação do serviço. Os municípios serãoos titulares onde todos os componentes da infra-estrutura - redes, estações de tratamento de água ou de esgotos, etc. - atenderem exclusivamente àquele município. Se pelo menos um dos componentes atender a mais

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decisões teriam que ser compartilhadas com os municípios afetados, que poderiam discutir metas de investimento, tarifas e qualidade dos serviços em conselhos deliberativos paritários. Se ocorrer a venda da companhia estadual de saneamento, todos os municípios titulares servidos por ela terão de decidir se querem permanecer com os serviços da empresa sob nova direção, ou se preferem prestar o serviço diretamente,ou ainda se preferem licitar a concessão para outra empresa. Nos dois últimos casos, o município teria de indenizar a antiga concessionária estadual pelos investimentos não amortizados. O PL 4147 regulamenta ainda outros aspectos do setor: proíbe a concessão onerosa dos serviços; estabelece limites para o reajuste anual de tarifas; cria um fundo de universalização composto por 3% da receita das concessionárias, além de uma taxa de regulação a ser recolhida à Agência Nacional de Águas, que passaria a credenciar entidades estaduais e municipais de regulação (v. abaixo). Os Estados teriam um prazo de quatro anos para criar leis próprias de saneamento em conformidade com a lei nacional. Diante das críticas que sofreu entre parlamentares da situação e da oposição, foi retirado o regime de urgência para tramitação do PL 4147 que, desde então já recebeu 209 emendas.

Pode-se concluir que a reestruturação do mercado dos serviços de água e esgotos do país, seja através da “municipalização” (retomada das concessões) ou da “privatização” (concessão a empresas privadas) está sendo freada por dificuldades jurídico-institucionais ligadas à ausência de um marco regulatório definido para o setor. De acordo com Gurevich (s/d), este marco deveria incluir os seguintes dispositivos legais: 1) uma Lei Complementar Federal, definindo atribuições e formas de cooperação entre União, Estados e Municípios no campo do saneamento, especialmente a questão da titularidade sobre os serviços nas regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões; 2) uma Lei Federal Ordinária, nos termos do artigo 21, inciso XX da Constituição Federal, estabelecendo diretrizes e normas gerais para o setor válidas para operadores públicos e privados em todo o território nacional; 3) a criação de uma Agência Nacional de Saneamento Básico, encarregada de fiscalizar o cumprimento da lei ordinária anterior e de dirimir conflitos entre o poder público e as concessionárias privadas; 4) Normas estaduais e municipais complementares; e 5) contratos de concessão específicos para cada empreendimento,

de uma cidade, oserviço será considerado de interesse comum, e não apenas local, e a titularidade passará aos Estados. Na prática, isso equivale a transferir ao Estado a titularidade dos serviços da maioria das cidades das regiões metropolitanas, que têm sistemas integrados de abastecimento de água e esgotamento sanitário.

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observando-se as diretrizes estabelecidas na legislação federal, estadual e municipal. O PL 4147 avança nessa direção, mas deixa a desejar no que se refere ao primeiro e ao segundo aspecto, pois mistura atribuições de legislação ordinária com outras referentes à legislação constitucional complementar.

4. Condicionamentos ecológicos das mudanças na gestão do saneamento urbano

Mas, juntamente com os aspectos institucionais e os interesses de mercado, é preciso considerar o peso e a influência de fatores ecológicos ou espaciais na organização técnica e administrativa dos serviços. Trata-se da tendência à integração dos serviços locais em unidades territoriais de planejamento e gestão mais abrangentes, que se manifesta principalmente nas bacias hidrográficas mais urbanizadas e industrializadas. Nestas bacias, especialmente nas regiões em que as cidades estão em processo avançado de conurbação, a poluição e/ou saturação dos mananciais mais próximos tornam necessário buscar novas fontes de abastecimento de água potável em áreas cada vez mais distantes, o que implica grandes investimentos em adução e tratamento que ultrapassam a capacidade financeira dos municípios isolados. Nestes casos, ocorre frequentemente uma espécie de "crise da oferta local", que só pode ser superada por uma articulação supra-local (envolvendo, sob diferentes arranjos institucionais, o governo estadual e/ou o conjunto dos municípios implicados) no sentido de financiar, organizar e gerir dispositivos supramunicipais de produção de água potável em grande escala, verticalmente integrados com as redes de distribuição dos municípios. O mesmo ocorre amiúde com o tratamento de esgotos em grandes aglomerados urbanos. Essa questão, aliás, extrapola os usos urbanos da água, e implica a necessidade de planejar a utilização racional dos recursos hídricos pelas diversas atividades humanas, de maneira integrada, na escala das bacias hidrográficas.

A redemocratização do país também trouxe mudanças substanciais neste campo. A Constituição de 1988 determinou que caberia à União criar um Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, definindo critérios para a outorga de direitos de uso. Diversos estados incluíram dispositivos semelhantes em sua respectiva Constituição, e tomaram a iniciativa de elaborar uma legislação própria nesta área86. O Estado de São Paulo foi o primeiro a apresentar um sistema integrado, descentralizado e participativo de gerenciamento dos recursos hídricos, baseado na adoção de bacias hidrográficas como unidade de

86 Para maiores detalhes sobre os recursos hídricos na Constituição Federal de 1988, ver POMPEU (1988)

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planejamento e gestão. O sistema, criado por lei em 1991, é formado por três elementos principais: a) um sistema de gestão participativo, composto por colegiados deliberativos de nível central e regional (Conselho Estadual de Recursos Hídricos e comitês de bacia), com representação paritária de municípios, organismos estaduais e entidades da sociedade civil com atribuições ou interesses na área de recursos hídricos; b) o Plano Estadual de Recursos Hídricos, aprovado por lei, que consolida e compatibiliza os “planos de bacia” deliberados pelos comitês; e c) o Fundo Estadual de Recursos Hídricos, que é formado principalmente pelos recursos advindos da cobrança pelo uso da água e se destina a financiar projetos, obras e ações previstas no plano estadual e nos planos de bacia.

O sistema paulista de recursos hídricos serviu de modelo para outros Estados e também para o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, criado em 1997 pela lei federal 9.433. Para coordenar a implantação do sistema e implementar a política nacional de recursos hídricos foi criada a Agência Nacional de Águas (ANA), através da lei 9984, de julho de 2000. Trata-se de uma autarquia sob regime especial, com autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente. Entre as atribuições principais da ANA estaria apoiar a criação de comitês de bacia nos rios de domínio federal, arrecadar e administrar os recursos da cobrança nestes rios87. Suas atividades devem ser custeadas por um aumento na compensação financeira paga pelo setor elétrico aos Estados e municípios com território inundado pelos reservatórios de usinas hidrelétircas. Até o momento, o principal projeto da ANA é reduzir a poluição orgânica dos rios, subsidiando o tratamento de esgotos pelas empresas de saneamento. Ao invés de financiar obras, a agência pagará pelos resultados, monitorando a quantidade e a qualidade dos efluentes tratados. Para tanto, pretende destinar 109 milhões de seu orçamento de 2001 (R$ 243 milhões) para "comprar" esgoto tratado das companhias de saneamento.

Porém, a dinamização dos sistemas estaduais e do sistema nacional de recursos hídricos, que ainda estão em curso de implantação, depende da aprovação de leis autorizando a cobrança pelo uso da água e a

87 O PL 4147 propõe um ampliação das atribuições da ANA, que passaria a credenciar agências estaduais e municipais de saneamento, cuja qualificação técnica, independência e autonomia administrativa e financeira condicionaria a liberação de créditos federais para o setor. Essa nova atribuição da ANA foi criticada pelos Secretários Estaduais de Saneamento e a Associação dos Advogados de Empresas Estaduais de Saneamento, que defendem uma agência reguladora nacional específica para o setor.

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diluição de efluentes, que enfrenta a resistência de alguns setores organizados (especialmente os agricultores).

5. A transição para o mercado regulado: riscos e oportunidades Qual é a direção e o sentido geral das mudanças descritas acima nos

serviços de água e esgotos das cidades brasileiras? Parece claro que o setor, a semelhança de outros serviços industriais de utilidade pública, passa por um processo inacabado de transição de um modelo centralizado e verticalmente integrado de prestação estatal de serviços, com autonomia limitada ou inexistente das funções reguladoras, para um modelo descentralizado e “flexível”, com prestadores públicos e privados disputando um mercado ao mesmo tempo “aberto” e “regulado”88. Porém, a permanência de uma tradição política e administrativa estatizante no setor, seja na vertente municipalista ou na centralizadora, associada ao caráter essencial dos serviços, faz com que as mudanças em direção ao novo modelo sejam mais lentas nesta área, dada a resistência de segmentos organizados da engenharia sanitária nacional e seus aliados.

Quais são os principais riscos e oportunidades contidos no novo modelo que está sendo construído? Que tendências podem ser inferidas, a partir de quais indícios?

Na questão das oportunidades, os aspectos potencialmente positivos do novo modelo são, primeiramente, a possibilidade de melhoria e ampliação da infra-estrutura com investimentos privados, numa época de recursos públicos escassos e comprometidos com o pagamento da dívidas; em segundo lugar, a “flexibilidade” do modelo, que permite a negociação de contratos adaptáveis às diferentes circunstâncias locais e regionais, prevendo obrigações de resultados (metas de investimento, ampliação e qualidade), mecanismos de fiscalização e penalidades por inadimplência.

Porém, ambas as vantagens potenciais do modelo de prestação privada e descentralizada dos serviços estão sendo colocadas em xeque na prática. Por um lado, os principais investimentos das companhias privadas, seja na área de eletricidade, de telefonia ou de água e esgotos têm sido financiados não com recursos das próprias empresas, mas antes por empréstimos obtidos junto ao BNDES89. A abertura do setor ao capital estrangeiro não está resultando, grosso modo, no aumento de investimentos diretos, mas antes em transferências substanciais de capital nacional para grupos estrangeiros, a ponto de gerar preocupações

88 Para uma abordagem teoricamente instigante do sentido desta transição, que abrange diferentes setores dos serviços industriais de utilidade pública, ver SILVA (2000). 89 Ver dados apresentados por BIONDI (1999).

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com a desnacionalização da economia no âmbito do próprio BNDES (aumento da remessa de lucros, royalties e ordens de pagamento internacionais, com perdas de divisas e desequilíbrios na balança de pagamentos)90. Por outro lado, muitos contratos tem se revelado incompletos, e as metas de qualidade e investimento fixadas pelas agências reguladoras nacionais criadas para os setores de eletricidade e telefonia não tem sido alcançadas, conforme noticiado na grande imprensa. As próprias agências reguladoras tem se revelado despreparadas para cumprir suas funções, de modo que as organizações de defesa dos consumidores é que têm se mostrado mais ativas na aplicação de penalidades às empresas em episódios críticos de pane nos sistemas91. Pode-se argumentar que tudo isso são falhas de organismos e instrumentos de regulação muito novos, que serão aprimorados ao longo do tempo. Porém, existem riscos inerentes ao modelo descentralizado e privatizante de prestação de serviços públicos para o qual o país caminha, que merecem ser considerados com maior profundidade.

A chamada “flexibilidade institucional” implica a fragmentação da oferta de serviços outrora integrados em sistemas mais abrangentes, que garantiam a viabilidade econômica dos sistemas menores e o acesso da população de baixa renda através de subsídio cruzado e tarifação progressiva ou social. O novo modelo conteria um risco de dumping social que se associa ao interesse exclusivo do capital privado pelas regiões e segmentos mais rentáveis (cherry picking), deixando para os governos o ônus de arcarem sozinhos com o atendimento das áreas e populações mais pobres. Aliás, já se encontram no país indícios de dumping social nas áreas de telefonia e eletricidade, com corte de subsídios e aumento de tarifas para os serviços básicos e redução de tarifas para o alto consumo (chamadas internacionais e energia de alta tensão para grandes consumidores industriais)92.

90 Conforme entrevista de A. CALABI, presidente do BNDES, ao Jornal Folha de São Paulo em 12/09/99 91 Em 11/03/99, uma pane numa linha transmissora do sistema Furnas deixou dez Estados brasileiros sem energia por cerca de seis horas consecutivas, afetando quase a metade da população do país. O episódio ainda não foi esclarecido pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), encarregada da regulação do setor. Na telefonia, mudanças nas chamadas de longa distância no início de julho do mesmo ano, com a entrada de operadoras concorrentes no mercado, resultaram na impossibilidade de completar ligações interurbanas durante quatro dias consecutivos. A Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) revelou-se ineficaz na prevenção das falhas do sistema e na apuração das responsabilidades pelos distúrbios ocorridos. 92 As expressões foram extraídas de GRAHAM & MARVIN (1994), que analisaram os efeitos socialmente perversos da privatização e da desregulamentação dos serviços industriais de utilidade pública no Reino Unido. Uma análise mais abrangente desta questão no contexto europeu pode ser encontrada em COUTARD (2000). Na mesma linha, SILVA (2000) aponta indícios de dumping

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De modo geral, pode-se dizer que o governo federal e alguns governos de estados e municípios, sob pressão da crise fiscal, aderiram apressadamente às teses neoliberais de privatização e desregulamentação da economia, sem uma estratégia de longo prazo suficientemente debatida com a sociedade e os representantes de cada setor. Daí haver certo improviso na criação de instituições reguladoras dos serviços públicos privatizados, que permanecem incompletas e traduzem a importação e “aclimatação” de modelos estrangeiros de regulação, notadamente o anglo-americano, que vem sendo implantado numa área anteriormente influenciada pelo modelo francês de direito administrativo. Porém, ao contrário do que ocorreu na Argentina, a “mestiçagem” de modelos de regulação dos serviços de água e saneamento não resultou em ampla diversidade de atores e dispositivos institucionais de gerenciamento adaptados às circunstâncias políticas e sociais locais ou regionais, pois o processo de descentralização que vem ocorrendo no Brasil neste setor tem sido muito mais lento e gradativo do que o processo autoritário e radical iniciado naquele país em 198093. No caso da água, resta um longo caminho pela frente para criar instituições reguladoras descentralizadas, que sejam adaptadas aos diferentes contextos locais e regionais e permitam a participação dos poderes públicos, dos usuários, da sociedade civil organizada e das próprias empresas no processo de regulação.

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Neoliberalismo com autoritarismo: desafios para os direitos da cidadania nos serviços públicos

Carlos Alberto Bello94

O percurso escolhido para discutir os direitos da cidadania dos serviços públicos partiu da avaliação de que os sentidos dos processos de privatização e de posterior regulação desses serviços somente poderiam ser investigados após um prévio exame da peculiar combinação de neoliberalismo e autoritarismo que caracteriza o governo Fernando Henrique Cardoso. A adesão à ordem neoliberal mundial, as práticas discricionárias de um governo fortemente atuante na economia e as turbulências econômicas e políticas ocorridas no país sugeriram que a discussão acerca dos citados direitos deveria ser considerada fundamentalmente como uma expressão localizada de uma lógica geral de governo.

Além disso, cabe ressaltar que a discussão sobre a regulação estatal dos serviços públicos torna-se mais relevante do que o tema da privatização, na medida em que a autonomia das empresas ainda é pequena frente às diretrizes e práticas das agências reguladoras, notadamente na telefonia analisada neste artigo.

1. Hegemonia neoliberal, financeirização e imperialismo

A hegemonia neoliberal mundial, manifesta em nível ideológico e político (Anderson, 1995), certamente viria a produzir pressões sobre países como o Brasil, de porte econômico considerável e com expressiva presença de capitais estrangeiros em seu território.

O neoliberalismo enquanto ideologia visava fundamentalmente alterar a política interna em favor das lógicas de mercado, motivada pelas questões da inflação e do déficit público. Internacionalmente, o neoliberalismo aparecia basicamente através das orientações pró-mercado dos órgãos multilaterais (FMI, BID/BIRD), que pressionaram fortemente por certas políticas (como a abertura comercial e a privatização). Apesar da importância de tais órgãos para países

94 Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo, pesquisador do CENEDIC ([email protected]) da FFLCH/USP, membro do Instituto de Estudos dos Direitos, Política e Sociedade (IEDIS) e professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Agradeço aos membros do CENEDIC os comentários feitos a uma versão anterior desse texto.

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historicamente sujeitos a problemas de financiamento externo, a situação desses países antes da sua inserção na globalização financeira não era tão precária ao ponto de lhes ser tão difícil resistir às pressões daqueles órgãos, como era o caso do Brasil95.

Entretanto, há sólidas razões para crer que os países centrais pressionaram fortemente os países periféricos nessa direção. A dinâmica capitalista mundial desde os anos 90 – forte competitividade entre países em contexto de liberalização dos fluxos de capitais e de baixo crescimento econômico (Chesnais, 1996) – torna muito relevante a busca de novos espaços para a valorização do capital; um dos alvos mais evidentes eram os países periféricos algo industrializados, estruturados em torno de políticas assentadas em fundos públicos e em certa proteção ao mercado interno e às empresas nacionais.

Outro aspecto sumamente importante da dinâmica econômica atual é a financeirização; Chesnais (1998) chega a falar de um regime de acumulação mundializado sob dominância financeira. Além de estar estruturado mundialmente de forma fortemente hierarquizada (convergindo para o centro, os EUA, dado o seu domínio financeiro), esse regime caracteriza-se pela subordinação à dominação do capital financeiro, cujas propostas e exigências comandam a economia, face ao grau de concentração desse capital e ao fato de ele passar a gerir volumosos fundos de seguros e de aposentadorias, levando ao controle (ou à uma importância decisiva) sobre várias empresas produtivas e a uma posição de força frente aos elevados volumes de dívidas públicas, em contexto de uma forte instabilidade acoplada a uma ampla circulação internacional de capitais.

A terceira característica já foi mencionada – as baixas taxas de crescimento das economias centrais. Elas implicam na geração de excedentes em volumes inferiores aos exigidos pelo capital financeiro (alta rentabilidade em prazos curtos), uma contradição que se constitui no elemento mais estrutural das crises financeiras recorrentes dos anos 90.

O baixo crescimento e a queda na rentabilidade financeira nos países centrais96 resultam num excesso de liquidez internacional à procura de novas oportunidades de valorização (Prates, 1999). Nesta conjuntura, a dominância financeira mundial deve ter gerado pressões para a abertura de tais oportunidades nos mercados ditos emergentes.

95 Apesar da abertura ocorrida no período Collor, o país ainda não era muito vulnerável pois o déficit de transações correntes com o exterior era inferior a 1% do PIB em 1993/4. 96 A segunda decorrente da primeira e das crises de deflação da riqueza mobiliária e imobiliária – nos EUA a crise das junk bonds – ações de empresas pequenas e fracas- em 1989

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No caso brasileiro, nota-se, ainda antes do Plano Real (no 2º trimestre de 1994), que o estoque de capitais de curto prazo e dos investimentos em portfólio (ações e títulos) totalizavam U$ 17.3 bilhões, um grande crescimento frente ao U$ 1.9 bilhão do 2º trimestre de 1992 (Paula, 1999). Frise-se que nossa economia não dependia de tais recursos pois eles, somados aos empréstimos de médio e longo prazo (capitais que também buscavam valorização), levaram as reservas internacionais a saltarem de U$ 13.7 para U$ 40.1 bilhões naquele período. Isto assemelha-se aos períodos 1969/73 e 1976/78, quando o endividamento externo cresceu muito e levou a um aumento desnecessário das reservas, assegurando taxas de juros bastante convidativas aos petrodólares superabundantes (Davidoff, 1983).

Enquanto nos anos 70 o capital financeiro buscava “empurrar” empréstimos ao 3º Mundo, hoje (aliado ao capital produtivo que se financeirizou) visa ações depreciadas de empresas nacionais e títulos públicos e privados de alto juro, apreciando muito as privatizações (empresas de serviços públicos tendem a se valorizar devido à escassa concorrência em seus mercados). Além disso, políticas de valorização cambial lhe são altamente interessantes (já que seus ativos em moeda local valerão mais em dólares) mas têm consciência de que elas tendem a gerar crises. Assim, o capital financeiro usualmente demanda certas condições de déficit público, baixa inflação e estabilidade cambial, a fim de garantir a rentabilidade projetada para suas aplicações; não acidentalmente, tais são os objetivos principais das políticas neoliberais97.

Dessa forma, é bastante provável que os capitais financeiros e produtivos multinacionais tenham fomentado ações dos governos dos países centrais e dos órgãos multilaterais no sentido de incrementar os espaços de valorização no 3º Mundo, através da busca por apoios nas elites econômicas e políticas dos países periféricos. Dada a forte presença do capital estrangeiro no Brasil e a dependência do país frente aos mercados externos (os superávits comerciais eram essenciais para honrar os encargos da dívida externa), o poder de fogo (de sedução e de pressão) dos interesses externos lhes propiciava amplas condições de construir alianças internas para satisfazer suas demandas.

A primeira dimensão do imperialismo foi pressionar pela abertura dos mercados emergentes (financeiros e produtivos) aos fluxos internacionais. Ao exigir liberdade de movimentação, no contexto de

97 O menor déficit garantiria o pagamento da dívida pública e contribuiria para uma baixa inflação. Esta asseguraria o valor dos juros (fixados contratualmente) e dividendos em moeda nacional, cuja conversão em dólar seria garantida pela estabilidade cambial.

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uma dinâmica mundial altamente instável (inclusive nos países centrais98), adicionam nos países periféricos um componente altamente volátil a um quadro historicamente problemático quanto à geração de divisas. Como as pressões pela abertura comercial, outra faceta do imperialismo, vulnerabilizam ainda mais este quadro, tais países tornam-se reféns das percepções dos capitais externos.

Entretanto, a dimensão mais decisiva do imperialismo, referenciada principalmente à sua natureza financeira (embora envolva também os capitais produtivos – remessa de lucros e valor em dólar de seus investimentos), é a exigência de políticas macroeconômicas neoliberais citadas acima. A contenção do déficit público limita as ações dos governantes (notadamente na área social) e contribui para um menor crescimento econômico, o qual também decorre da busca por uma inflação mínima, através de elevadas taxas de juro. Mais relevante ainda é a exigência de estabilidade cambial pois, aliada à baixa competitividade aumentada pela abertura ao comércio exterior, incrementa muito a vulnerabilidade externa desses países.

Como até mesmo os poucos países periféricos capazes de gerar expressivos superávits comerciais também passaram por crises99, fica evidente que, partindo de uma situação problemática e estando sujeitos às oscilações do dólar e da economia mundial , tais países em algum momento voltarão a ser tratados como periféricos pelos capitais externos, que os abandonarão rumo ao porto bem mais seguro dos países centrais.

A ameaça, velada ou explícita, de reduzir os aportes externos sem os quais a economia brasileira dificilmente sairia da crise iniciada nos anos 80, expressa uma forma mais sutil de imperialismo, quando comparada às formas mais explícitas de imposição das normas neoliberais, como as novas regras da OMC (Rodada Uruguai, especialmente quanto aos direitos de propriedade intelectual) e os condicionamentos impostos pelos órgãos multilaterais (BID/BIRD/FMI).

Para discutir a implementação do programa neoliberal no capitalismo contemporâneo, é preciso atentar, como salientou Oliveira (1998), que o fundo público tornou-se imprescindível à reprodução do capital e da força de trabalho. Além da disputa por espaço econômico

98 Crises nos EUA (imóveis nos anos 80, bolsa em 1987, junk bonds em 1989 e Nasdaq – ações da nova economia - em 2000/1), na Europa (Sistema Monetário Europeu em 1992) e no Japão (1990 - imóveis e bolsa). 99 Os países do sudeste asiático sofreram com a valorização do dólar em 1997, levando a que suas exportações caíssem e suas dívidas subissem, provocando crise de confiança nos capitais financeiros.

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no âmbito internacional, o Estado tem sido fundamental na articulação e/ou no suprimento de recursos para infra-estrutura e para pesquisa e desenvolvimento, bem como para buscar regular a incerteza, tão exacerbada nesses tempos de elevada instabilidade econômica e financeira. O maior exemplo, e o mais emblemático da falácia dos mercados autoregulados, tem ocorrido no âmbito financeiro; a suposta racionalidade dos mercados financeiros liberalizados vem abaixo nas crises financeiras recorrentes, frente às quais os governos são chamados a intervir face ao risco de destruição da riqueza.

No entanto, o neoliberalismo não é apenas uma ideologia mistificadora, voltada a reduzir o escopo da ação estatal no âmbito social. De um lado, uma ampla queda dos gastos sociais somente se justifica no contexto de uma ampla desestatização da economia. De outro, a busca de oportunidades para a valorização do capital leva a burguesia a julgar que o incremento das condições gerais da produção (infra-estrutura) não depende mais de propriedade ou de forte regulação estatal. Em terceiro lugar, é necessário ressaltar que a hegemonia do capital financeiro exige uma drástica redução do déficit público, para reduzir os riscos financeiros e cambiais e para minimizar o âmbito de potenciais ações políticas que venham a ameaçar a rentabilidade ou a mobilidade do capital.

A ideologia neoliberal prega que quase toda a economia deve ser regida pelo mercado, sob o postulado que a concorrência global premia apenas a eficiência e a competência, sendo este um critério de legitimidade e justiça mercantil100. Visto como ineficiente (ingovernável pela multiplicidade de demandas a serem atendidas) e injusto (burocracias autônomas são capturadas pelos interesses econômicos que deveriam regular)101, o Estado deve agir subordinadamente à lógica do mercado, ou seja: é o mercado que define como e em que condições o Estado deve agir, sob pena de comprometer a eficiência e a justiça que o livre jogo do mercado garantiria. O orçamento público equilibrado é uma decorrência lógica; do mercado se deve tirar apenas o que é necessário para eliminar ou reparar carências

100 Autores neoliberais mais rigorosos, como Hayek (1976), admitem que a desigualdade de oportunidade é um grave problema; ele propõe forte ação estatal para “reduzir as desigualdades ao nível correspondente às diferenças inatas”, como se isto fosse possível num mundo eivado de multibilionários. 101 A crítica de Hayek às ações estatais no âmbito econômico está centrada na idéia de que a democracia não funciona, já que o poder legislativo e a opinião pública seriam incapazes de controlar a burocracia. Assim, é como se Hayek contrapusesse uma privatização democrática (concorrência no mercado) a uma privatização autoritária, voltada aos interesses dos grupos políticos e econômicos dominantes.

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ou problemas ocasionados pelas imperfeições do próprio mercado102. No limite extremo, se apenas o mercado pode nomear quando e para que o Estado se torna necessário, chega-se à destruição dos espaços públicos enquanto espaços de discussão e de conflito, de forma que eles seriam totalmente privatizados. E é nesse sentido que se pode dizer que a ideologia neoliberal tem um caráter totalitário.

Como o Estado continua sendo muito importante para a acumulação do capital, essa destruição dos espaços públicos também significa uma privatização do Estado, significando que o Estado deve somente atender aos interesses do capital julgados meritórios pelos governos, através de mecanismos informais de interação entre as elites econômicas e as elites políticas Desta forma, o totalitarismo neoliberal, do mercado ou da concorrência, expressão de processos ideológicos e sociais (Oliveira, 1999), transmuta-se em uma ditadura do capital expressa no âmbito do Estado. Nesse sentido, a hegemonia neoliberal realiza-se por via de uma espécie de ocultação das regulações estatais produzidas através de mecanismos informais de interação, bem como de traços peculiares à atual fase do capitalismo - a profunda instabilidade econômica, a formação de oligopólios mundiais e a coesão monopólica do capital frente aos pleitos dos demais segmentos sociais. Dessa maneira, trata-se de uma hegemonia assentada na desinformação dos cidadãos, não em um apoio esclarecido às reais práticas do Estado sob a doutrina neoliberal.

2. O governo Fernando Henrique Cardoso: Neoliberalismo e autoritarismo

Hegemonia neoliberal no Brasil

Para discutir o impacto das pressões internacionais pela adoção de políticas neoliberais, é preciso fazer uma breve retrospectiva da dinâmica econômico-política brasileira nas últimas décadas.

A era Vargas, geralmente denominada como processo de substituição de importações articulado pelo Estado, situou empresários nacionais, trabalhadores e outros segmentos sociais num mesmo campo que, não obstante os inúmeros conflitos e sua natureza autoritária e concentradora, pautou a economia brasileira de forma quase permanente entre 1930 e 1980.

102 Os melhores exemplos são o fornecimento de bens públicos (bens que o mercado não proveria adequadamente porque não gerariam lucro adequado, como rodovias) e a correção - ou a geração - de externalidades negativas (como poluição) - ou positivas (como alto nível de educação geral) – que também não seriam eliminadas ou geradas através dos sinais relativos à rentabilidade das atividades econômicas correspondentes.

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As crises desse processo foram recorrentes mas a economia e o sistema político não estavam sujeitos a processos democráticos capazes de regular, sejam os problemas e as incertezas econômicas, seja a competição política. Especialmente a partir dos anos 80, a privatização do Estado avançou, atravessando de alto a baixo governos cujo poder erodiu-se ao ponto de os planos anti-inflacionários fracassarem em menos de um ano.

Por outro lado, o processo de democratização avançou a partir dos anos 80 e atingiu seu auge em 1988, com a consagração constitucional de diversos direitos sociais. Como um projeto nacional alternativo (em torno da ligação entre os partidos de esquerda e os movimentos sociais) não alcançou força política significativa, continuava a predominar a erosão do processo anterior. Segmentos da burguesia e grupos políticos lutavam acirradamente por um fundo público que ficava cada vez menor, em função do aprofundamento da crise econômica, notadamente da crise financeira interna e externa.

Esta erosão aprofundava a crise do Estado, a qual também era exacerbada pelo escasso atendimento às demandas por direitos sociais cuja efetivação dependia de uma diametral mudança de orientação pois o redirecionamento dos fundos públicos e a democratização do processo tinham alto potencial disruptivo sobre a lógica do poder.

Embora no começo dos anos 90 o episódio da câmara setorial automotiva tenha significado um grande e inesperado aumento da capacidade política da classe trabalhadora brasileira, constituindo um fórum onde prevaleceram negociações tripartites, que geraram resultados socialmente apreciáveis, as demais câmaras setoriais não chegaram a acordos substantivos, facilitando a extinção da câmara automotiva no governo FHC, no qual predominava uma orientação neoliberal103.

Face a tal situação, é possível supor que o aumento da crise financeira e política do Estado, paralelamente à crise econômica nacional (inflação e recessão), tenha levado a uma reorientação política dos segmentos empresariais, até então pautados pelo processo desenvolvimentista. Ao invés de tentar reconstrui-lo, tais segmentos estariam apostando na associação da burguesia local com o capital estrangeiro e em processos de liberalização e privatização da economia, como sugere Sallum (1999). O processo constituinte (1987/8) teria representado uma derrota desse novo projeto, que começava a ganhar forma e se tornaria vitorioso quando Fernando Collor venceu as eleições em 1989. O impeachment de Collor não representou uma derrota desse

103 Para maiores detalhes, v. ARBIX (1996) e CARDOSO & COMIN (1995 ).

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projeto, embora o governo Itamar Franco não tenha aprofundado sua implementação.

Cabe então retomar a hipótese de que os governos dos países centrais e os órgãos multilaterais, impulsionados pelos capitais multinacionais, buscaram obter apoios internos à implementação da agenda neoliberal internacionalizante; no contexto discutido acima, ela teria grandes possibilidades de prosperar, uma vez que os segmentos empresariais atuantes no Brasil não vislumbravam como sair da crise sem a abolição do processo desenvolvimentista liderado pelo Estado.

A adesão ao neoliberalismo pode ser percebida ao observarmos como o empresariado estaria se posicionando frente à dívida pública. Embora possa ser entendida como meio de valorização dos capitais, é preciso salientar que ela é por natureza um elemento de contradição entre Estado e capital, por retirar o controle da burguesia sobre a valorização do capital, podendo transformá-la em campo de disputa política. . É claro que a dívida serviu para fomentar a acumulação de capital nos anos 70, para socializar as perdas da dívida externa e da inflação de 80 a 94 e para sustentar o valor da moeda no pós-real. Entretanto, na medida em que o Estado não consegue viabilizar o crescimento econômico sustentado e não incorpora mais demandas de um amplo conjunto de setores (nos anos 90, foram praticamente extintas as arenas corporativas de interlocução com o empresariado – Diniz, 2000), as funcionalidades supracitadas são cada vez menos percebidas pelo conjunto da burguesia que, por outro lado, esteve sujeita à alta inflação e às elevadas taxas de juro e cargas tributárias.

Ao atribui-las à dívida e ao déficit públicos, a burguesia convence-se do argumento neoliberal. Assim, ao não incorporar aquelas demandas, o discurso neoliberal poderia ser mera aparência apenas e tão somente para os segmentos da burguesia que ainda se nutrem da regulação estatal, que talvez estivessem acreditando ainda na velha máxima de que “fora do Estado não há salvação”.

A adesão empresarial ao neoliberalismo representa, no entanto, apenas uma faceta do que Oliveira (1999) chamou de subjetividade antipública, uma experiência de intranscendência dos próprios limites da classe, uma ausência de sentido seja de uma forma de empresa não privada, seja de convivência com outras classes (seu cotidiano torna-se fechado como reação à violência social difusa).

A difusão dessa subjetividade antipública para outros segmentos sociais, através dos meios de comunicação, apoia-se fundamentalmente na confluência de dois discursos pautados por lógicas de inevitabilidade. De um lado, a lógica do capital globalizado – e das crises que ele estaria nos exportando - estaria obrigando o encolhimento

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do Estado e dos direitos sociais, sob pena de não se contar com os capitais estrangeiros e de não se ter competitividade externa, além de demonstrar a inevitabilidade do desemprego tecnológico. É claro que tais processos estão muito afastados da experiência cotidiana das pessoas comuns; por isso, tais discursos são dirigidos às classes médias e aos formadores de opinião, visando constituir um consenso que se difunde para públicos mais amplos como expressão de discursos competentes.

O discurso da inevitável retração do Estado frente à globalização dificilmente teria prosperado se não estivesse acoplado a um discurso referenciado a múltiplas experiências de variados segmentos sociais. O histórico fracasso das ações produtivas, reguladoras e distributivas do Estado, exacerbado pela sua ampla falência ética, física e financeira iniciada nos anos 80, lastreou o discurso da impossibilidade de ações estatais virtuosas, difundindo uma subjetividade antipública para amplos segmentos sociais. Esse discurso dá maior plausibilidade à inevitabilidade do ajuste imposto pela globalização, já que somente um Estado potencialmente virtuoso poderia escolher outra rota aceitável, dadas inclusive as fortes pressões das políticas neoliberais ditadas pelos EUA.

Apesar dessa reiterada experiência, é preciso ressaltar que, em ambos os discursos, a insistência monocórdica dos meios de comunicação e a prevalência de um discurso hermético (economês altamente cifrado) descredenciam os cidadãos a participarem dos debates públicos, transformando as lógicas de inevitabilidade em consensos impostos.

Práticas discricionárias em meio às turbulências econômicas e políticas

Discutir a existência de uma ditadura do capital, enquanto manifestação adstrita ao âmbito político desse governo, sugere atentar para dois processos. De um lado, é evidente que a hegemonia neoliberal interna, as pressões externas e a expressiva internacionalização das atividades econômicas (globalização financeira e atuação das multinacionais) tem implicado uma redução da autonomia estatal nas últimas duas décadas, ainda mais para países de acentuada vulnerabilidade externa como o Brasil. Por outro lado, a própria hegemonia neoliberal aumenta a autonomia do Estado em uma série de outros âmbitos, quando elimina ou reduz a operação de espaços públicos que traziam demandas de diversos segmentos sociais ao Estado. Caberia então avaliar estas dimensões da autonomia do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) a partir da conhecida noção de que

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a reprodução do poder político depende de lógicas que escapam ao puro jogo das forças econômicas, no mínimo necessitando estar apoiada em votos das diversas classes sociais.

A difusão pública dos discursos apoiados nas lógicas de inevitabilidade e a crescente adesão empresarial à agenda neoliberal fortaleceram em muito uma substancial mudança política na direção neoliberal, ainda mais porque é possível supor que amplos segmentos do empresariado consideraram que a equipe econômica do governo FHC estava plenamente capacitada a implementar essa agenda. A atuação de FHC no Ministério da Fazenda, assessorado por quadros técnicos muito respeitados por aqueles segmentos (notadamente pelo capital financeiro internacional), como Pedro Malan e economistas da PUC/RJ (como Pérsio Arida e André Lara Resende), deve ter tornado plausível vislumbrar um novo modo de acumulação no Brasil, através da rearticulação do país à circulação internacional de capitais, da perspectiva de realizar a riqueza privada encapsulada na dívida pública (apesar dos juros elevados) e de uma reforma do Estado capaz de reduzir, controlar ou privatizar os gastos sociais, visando afastar a ameaça distributivista fortalecida nos anos 80.

Para reduzir a inflação, o governo FHC utilizou-se de uma âncora cambial; o risco de perda de mercado para as importações, especialmente no início do plano Real104, inibiria reajustes de preços dos produtos aqui fabricados. A solução externa era a única forma de obter êxito rápido (para poder vencer as eleições), porém não efêmero, na arbitragem das divergências entre os segmentos empresariais, devido à sua clássica incapacidade em se abrir para a política105, uma vez que as outras formas de combate à inflação — medidas recessivas ou controle de preços — resultam em impactos diferenciados sobre cada setor ou empresa, implicando decisões políticas sobre a distribuição dos ônus do ajuste.

A inflação caiu muito106 e houve crescimento econômico apreciável em 1995 e 1996 (5,9 e 4,2%), fatos que, além de gerarem grande prestígio popular, consolidaram o apoio do empresariado ao governo, considerando a viva memória sobre os inúmeros fracassos anteriores no combate à inflação e a perspectiva de uma ampla mudança política, dada a continuidade da coligação que apoiou a eleição de FHC.

104 Pois em junho de 1994 partiu-se de uma taxa cambial de 1 real para 0,85 dólar, abaixo da igualdade prevista no plano. 105 V. OLIVEIRA (1999). 106 De 24,7% em junho de 1994 para menos de 2% ao mês nos 12 meses seguintes.

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Quanto às relações entre a burguesia e o governo FHC, é importante salientar ainda a heterogeneidade e a fragmentação das estruturas de representação do empresariado, características que foram aprofundadas nas últimas décadas pela insatisfação com o desempenho das entidades corporativas (tipo Fiesp), pelo surgimento de entidades não setoriais (como o PNBE, o IEDI e os institutos liberais estaduais), pela redução das arenas corporativas nas quais atuavam as associações setoriais e, face a essa redução, pelo recente surgimento de lobbies no parlamento (Diniz, 2000). Na ausência de instituições com alto valor de agregação (processo que já ocorria quando as arenas corporativas atuavam) e de lideranças empresariais alternativas, face à perda de espaço das lideranças anteriores (especialmente devido à abertura da economia), pode-se supor que o governo FHC dispõe de um considerável grau de autonomia frente à burguesia, considerada enquanto ator político capaz de pautar o governo quanto à implementação de diretrizes econômicas.

É claro que esse governo não afrontaria o conjunto da burguesia porém detinha significativo poder para unilateralmente tomar medidas contundentes que a atingiram, como o aumento da carga fiscal ou as drásticas elevações das taxas de juros. Como se sabe, tais medidas atendem aos interesses dos capitais internacionais, frente aos quais a autonomia do governo é mínima, dada inclusive (para além das afinidades ideológicas e políticas) sua aposta na entrada desses capitais como meio de viabilizar um crescimento econômico sutentado.

O aspecto central – senão o mais importante – da autonomia do governo FHC está expresso no seu amplo controle sobre um conjunto de instrumentos, tais como órgãos de financiamento (bancos e fundos de pensão) e mecanismos afeitos à regulação do comércio exterior e ao processo de privatização. Apesar de esses instrumentos estarem em boa medida submetidos a uma lógica neoliberal, ainda assim eles permitem um amplo grau de discricionaridade pois são decisivos para regular a competição intercapitalista, vale dizer, para eleger ou abrir caminho para que determinados segmentos (ou empresas) sejam beneficiados ou não pela regulação estatal, em formas e intensidades diferenciadas.

Exemplificando, é claro que o governo não poderia retornar aos graus de proteção ao comércio exterior prevalecentes antes do governo Collor; no entanto, foi capaz de atuar seletivamente a partir de 1995, beneficiando segmentos como a indústria automobilística e o complexo vestuário e têxtil, dentre outros poucos. De outro lado, a autonomia era (e é) muito grande no BNDES e nos fundos de pensão, que participaram

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ativamente do processo de privatização aliando-se a certos grupos (como ao grupo Vicunha, de Benjamin Steinbruch107).

Com o respaldo do empresariado e ampla autonomia de ação, o governo FHC possuía condições para aprofundar uma tendência que se fortaleceu nos diversos governos pós regime militar, todos sujeitos a crises econômicas e políticas: a crescente institucionalização de estilos tecnocráticos de gestão, caracterizados pelo uso extensivo das medidas provisórias e pela concentração do processo decisório na alta cúpula tecnocrática, com elevada insularidade burocrática e predomínio de estilos coercitivos de implementação (Diniz, 2000). Para Eli Diniz, o governo FHC efetivamente passou a implementar a agenda neoliberal pois, ao contrário de Collor, soube constituir uma forte unidade na equipe de governo (pelo menos quanto à área econômica) e uma numerosa base parlamentar de apoio.

Em função disso, é interessante discutir se o governo FHC foi capaz de debelar (ao menos por algum tempo) o que Diniz (2000 e 1998) disse ser o caráter central da crise do Estado na Nova República – o contraste entre a hiperatividade decisória e a fraca capacidade de implementação, ou seja, de penetrar e coordenar a sociedade civil. A crise expressava-se na combinação do desmonte da antiga estrutura corporativa sem a criação de novas formas de articulação, revelando o divórcio entre Estado e sociedade.

A efetiva implementação da agenda neoliberal não parece ter eliminado este divórcio, tampouco criado novos meios de conectar a sociedade ao Estado. A remoção dos obstáculos a essa implementação, noutras palavras a efetividade do poder despótico do governo federal, parece ter sido alcançada através de dois processos.

No âmbito político-institucional, o êxito eleitoral e midiático do governo e o vasto apoio dos segmentos empresariais fizeram com que o governo FHC pudesse realizar uma ampla mudança fiscal (a concentração de poderes na União, via CPMF, a desvinculação das receitas – Fundo de Estabilização Fiscal - e a aprovação da Lei de Responsabilidade, além da geração de superávits primários para pagar encargos da dívida interna), eliminar as restrições às privatizações e à entrada de capital estrangeiro, privatizar os serviços públicos essenciais e comandar efetivamente as ações dos bancos e dos fundos de pensão estatais.

No âmbito da gestão econômica, as ações estatais, altamente relevantes quanto às transformações da economia brasileira, foram

107 Este grupo controla a CSN, a Light (Rio) e empresas de telefonia móvel (cedeu o controle sobre a Vale do Rio Doce); sem o apoio dos fundos públicos, dificilmente teria saído da área têxtil.

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comandadas exclusivamente por uma equipe estritamente ligada à presidência da República. Com base nos mesmos fatores que levaram ao sucesso no plano político-institucional, esse comando férreo fez com que os espaços de poder destinados aos demais grupos políticos que apoiavam o governo não comprometessem a concentração de poderes da equipe econômica, mesmo exprimindo formas clientelistas tão tradicionais na política brasileira.

Para não perder viabilidade eleitoral, dado o sucesso do governo, não se indispor junto a poderosos segmentos empresariais e não abrir mão de recursos públicos que, mesmo diminuídos, são importantes para a manutenção de seus poderes, os congressistas da base de apoio dificilmente poderiam deixar de consentir que o governo exercesse amplamente seu poder despótico, ou seja, fazer com que a sua prerrogativa legal (MP’s) gerasse efetivamente os resultados desejados nas esferas políticas, jurídicas e sociais.

A partir desse quadro, é necessário avaliar a dinâmica da economia e da política econômica sob esse governo, buscando analisar e qualificar o exercício de seu poder despótico. .

A dimensão econômica mais importante foi, desde o início do governo FHC, a forte vulnerabilidade das contas externas. Ela ficou cada vez mais evidente pois, mesmo depois da desvalorização do real em 1999, o país continua precisando anualmente de 4% do PIB para financiar o déficit externo mas exporta apenas 6% do PIB. Em função disso, os detentores de capitais internacionais sabem que o país depende das suas decisões voluntárias. Como a economia cresce pouco e as exportações mostraram um dinamismo modesto frente às importações108, é evidente que o cenário não é plenamente favorável à vinda desses fluxos voluntários, seja em termos de oportunidades de valorização, seja quanto à conversão de reais em dólares (o objetivo é a rentabilidade medida em dólar, independente do retorno ou não dos recursos aos países de origem). No início do Plano Real, os capitais especulativos, atraídos pelas altas taxas de juros, foram os “salvadores” da pátria; de 1997 em diante, os investimentos diretos externos (IDE) evitaram uma crise maior, atraídos pelas privatizações e pela existência de empresas nacionais baratas109.

Entretanto, a partir de 1997 a economia entrou em recessão (vide análise mais adiante), as crises políticas tornaram-se mais frequentes e as crises financeiras internacionais sucederam-se rapidamente (Sudeste

108 As primeiras cresceram 10% entre 1994/99 (de U$ 43.5 para U$ 48.0 bilhões) e as importações 54% (de U$ 33.0 para U$ 49.2 bilhões). 109 Para maiores detalhes das contas externas, v. Bacen. Quanto ao IDE, v. Gonçalves (2000).

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Asiático em 1997, Rússia em 1998). Sob tais turbulências, os capitais internacionais dificilmente poderiam ter clareza quando o alto risco de investir no Brasil, latente desde 1994, se tornaria intolerável, até mesmo frente às oportunidades mencionadas acima. Dessa forma, a desconfiança empresarial não caracterizou um ataque especulativo, revelador de uma suposta irracionalidade que vitimou o país mas sim uma defesa preventiva para a qual os capitais internacionais há muito tempo já vinham se preparando.

Ao liberalizar plenamente os movimentos dos capitais financeiros, a gestão da vulnerabilidade externa levou o governo a manter taxas de juros muito elevadas (inclusive por elas terem de embutir o risco de desvalorização cambial), a acelerar as privatizações, a realizar fortes ajustes fiscais (conforme a cartilha neoliberal110) e a não se preocupar com a aquisição das empresas nacionais pela transnacionais.

Do ponto de vista da atividade econômica interna, a situação torna-se complicada porque após 1995 passa a prevalecer um baixo crescimento econômico111, em grande medida consequência dos juros altos, do aumento de importações e da redução dos gastos públicos não-financeiros. A reestruturação produtiva tem se dado pela aquisição de máquinas importadas (baixas alíquotas de importação) e pelo uso de novas formas de gestão e de flexibilização da força de trabalho (causando desemprego e queda do consumo dos assalariados). A desnacionalização também contribui para o baixo crescimento pois tem sido dominada pela lógica da financeirização (comprar empresas baratas, fragilizadas pelo baixo crescimento, pela competição externa e pelos elevados custos financeiros), implicando baixo volume de investimentos em expansão da capacidade produtiva, logo escassa geração de emprego e renda. As empresas nacionais modernizam-se apenas para enfrentar a concorrência pois têm pouco fôlego para novos investimentos112.

Desta forma, após o êxito inicial do Plano Real (1994/5), o aumento da percepção sobre a vulnerabilidade externa e o baixo crescimento tendem a deprimir a taxa de lucro. O Estado é chamado a agir, inclusive porque tal contexto tende a reiterar decisões defensivas (redução dos empregos e dos investimentos) e assim reduzir ainda mais a rentabilidade do conjunto das empresas. Ao optar pelo forte ajuste

110 O neoliberalismo atribui ao déficit público a causação de um suposto excesso de demanda, o qual geraria inflação e déficit nas contas externas. 111 Em 1994 e 1995, o PIB cresceu 5.9 e 4.2%; daí em diante, as taxas de crescimento foram de 2.7, 3.6, menos 0.1 e 1.0% em 1999 (Bacen). 112 Par maiores detalhes, v. Gonçalves (1999).

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fiscal, o governo só pode atuar utilizando outros instrumentos, tais como seus bancos, fundos de pensão, mudanças nas barreiras tarifárias e não-tarifárias (para resguardar setores como automóveis, têxteis, brinquedos e eletrônicos, como ocorreu em 1995), fomento às exportações, proteção frente à instabilidade financeiro-cambial (títulos cambiais, Proer) e não cerceamento da guerra fiscal entre estados e municípios.

Exceto pelas mudanças naquelas barreiras, as demais medidas caracterizam uma financeirização da formação da taxa de lucro do setor produtivo; noutras palavras, a redução de custos (ou a obtenção de vantagens) financeiras através de ações estatais são decisivas frente aos fatores redutores de rentabilidade, sem que as medidas apontassem para um aumento do nível de atividade econômica. O incremento das fusões e aquisições (Gonçalves 2000) entre empresas expressa o lado especificamente privado dessa financeirização, já que elas geralmente eram motivadas pela existência de ações a preços relativamente baixos (frente aos lucros que geram ou podem gerar), devido à fragilidade das empresas nacionais ou à lógica prevalecente nas privatizações (o preço da ação tornava-se menor porque o risco Brasil assumido para estabelecer o preço implicava na avaliação dos lucros potenciais sob um juro elevado, reduzindo-os em termos de valor presente).

A financeirização da formação da taxa de lucro, ao não estar articulada diretamente a políticas de investimento ou de competitividade, expressa fundamentalmente uma transferência de riqueza sem a mediação de políticas reconhecidas publicamente. Trata-se de práticas discricionárias, das quais são exemplos a elevação das tarifas externas para poucos segmentos (como o automobilístico e têxtil/vestuário), o grande volume de empréstimos para os grupos vencedores dos leilões de privatização (BNDES, 2000) e o apoio dos fundos de pensão estatais a alguns desses grupos (como Vicunha e Telemar).

Como o núcleo decisório da área econômica tem estado bastante insulado do sistema político, essas práticas discricionárias expressam uma nova privatização do Estado. Ela não se caracteriza por uma lógica do tipo pluralista, como ocorreu na Era Vargas, quando prevaleciam as arenas corporativas, para as quais Diniz (1978) cunhou o termo pluralismo relativo de elites. Atualmente, a situação assemelha-se mais a um grupo dirigente coeso que exerce o poder de forma concentrada, através de arranjos dos quais nossa visão só alcança a ponta do iceberg, já que a ausência de publicização é um dos pré-requisitos para essa cavalar concentração de poder.

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Assim como o neoliberalismo é em grande medida mera ideologia, com o mundo real revelando a formação dos oligopólios mundiais (Chesnais, 1996), que agem como monopólios frente à regulação pública de cunho social ou democratizante (ao fomentarem a hegemonia neoliberal nos espaços públicos), o governo FHC, democrático do ponto de vista formal, passa a dispor de poderes monopólicos. Na ausência de outras alteridades sociais, dado o amplo encolhimento dos espaços públicos de interlocução (institucionais e midiáticos), a interação entre esses monopólios – o público e o privado - atuantes na área econômica expressa a forma concreta que assume a ditadura do capital no Brasil. Ela parte do afastamento das instituições da democracia representativa e se apoia em um expressivo totalitarismo social, manifesto na hegemonia neoliberal, embora esta de fato se caracterize mais como consenso imposto do que como compartilhamento dessas convicções por amplos segmentos sociais.

Tais ações estatais conflitam abertamente com a ideologia neoliberal professada por esse governo (tomo Gustavo Franco, 1999 e Bresser Pereira, 1998 como porta-vozes), já que ela preconiza o afastamento do Estado burocrático, ineficiente e capturado pelos interesses que deveria regular, tendo a concorrência como princípio regulador, dada a abertura e a globalização. Tais autores não mencionam estas ações enquanto medidas transitórias, necessárias até que as empresas devessem estar sujeitas apenas à concorrência. Sallum (1999) pelo menos ressalva a diferenciação dessa medidas frente a programa neoliberal, classificando-as como compensatórias113.

Transformações na economia e o empresariado

Através de suas diversas ações, o governo FHC provocou (ou permitiu) fortes transformações nas estruturas de poder econômico, quer do ponto de vista da propriedade (concentração e fusões e aquisições – F & A), seja do ponto de vista da nacionalidade (privatização e desnacionalização) das empresas. Discutir a importância e os sentidos dessas transformações é crucial para avaliar se existem ou podem existir fissuras nas relações entre as diversas frações do capital e o governo FHC, especialmente quanto a eventuais contraposições diante das práticas discricionárias que estão ocorrendo.

113 Sallum (1999) também diz que elas estavam inspiradas num ideário liberal-desenvolvimentista, questão que não será discutida nesse texto, já que não parece haver elementos para avaliar um tal confronto de posições dentro do governo.

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O aumento da presença e do poder dos capitais estrangeiros no Brasil tem sido uma das mais importantes transformações dos últimos anos. Conforme mostra Gonçalves (2000), as empresas de capital estrangeiro (ECE) incrementaram sua participação no valor bruto da produção – de 13.5 para 24.6% entre 1995/99 – e nas vendas das maiores empresas – dentre as 550 maiores, passaram de 33.3 para 43.5% do total entre 1995/98, período no qual concentraram 42.1% dos valores envolvidos nas privatizações. Houve ainda enorme incremento dos IDE pois o estoque de capitais estrangeiros acumulados até 1995 era de U$ 78 bilhões e de 1996 a 1999 os fluxos de IDE somaram U$ 74.7 bilhões (Lacerda, 2000), nos quais o predomínio do caráter financeirizado transparece no fato de 80% deles ter sido realizado através de F&A (metade para privatizações, metade para aquisição de empresas nacionais) e apenas 20% para investimentos em novas instalações (Gonçalves, 2000).

Dessa forma, não houve expressivos investimentos na expansão da capacidade produtiva, sendo que o fato de 73% dos IDE cujos setores foram identificados (cerca de U$ 42.3 bilhões)114 terem sido destinados aos serviços - pontificando as telecomunicações com U$ 11.9 bilhões, setor financeiro com U$ 10.7 bilhões e energia/gás com U$ 10.4 bilhões, indica a busca por setores onde as ECE podem exercer grande poder de mercado e demonstra que o objetivo central é vender ao mercado interno e não contribuir para uma nova inserção do país na divisão internacional do trabalho (tais serviços não são exportáveis); pelo contrário, o grande aumento das importações de alto valor agregado, notadamente para a telefonia fixa ou móvel, incrementa ainda mais a vulnerabilidade externa do país.

Cabe ressaltar que apenas na telefonia a privatização foi acompanhada de volumosos fluxos de novos investimentos; mais do que salientar a montagem de um aparato regulatório diferenciado (que exigiu estes investimentos), é crucial lembrar que havia uma enorme demanda reprimida por telefones no Brasil, o que significa que a oferta de telefones deveria crescer muito, independentemente daquele aparato. É importante lembrar ainda que o setor de infra-estrutura, ou seja, as ECE atuantes nesse setor (dada a contenção dos investimentos das estatais, face às metas de déficit público), recebeu 36.3% dos desembolsos do BNDES em 1998 e 1999 (total de R$ 20 bilhões),

114 Como 22.6% do IDE total foi destinado às holdings (empresa líder do grupo), sem discriminar os setores envolvidos, os 73% citados referem-se aos U$ 57.8 bilhões identificados. Para maiores detalhes, v. Lacerda (2000).

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pouco menos do que os 38.8% da indústria (BNDES, 2000), revelando como as ECE contaram com o apoio estatal para as privatizações.

Esse apoio, aliado ao impacto desfavorável da desnacionalização sobre a vulnerabilidade externa e o crescimento econômico, contrasta com as evidências de que o empresariado industrial nacional foi bastante afetado pela instabilidade financeira, pelo baixo crescimento da economia e pela sua menor capacidade de enfrentar a concorrência externa, processos que levaram a um grande aumento das importações e à transferência do controle de grande parte de suas empresas para grupos internacionais115.

Apesar disso, é importante salientar que as importações não debilitaram profundamente as indústrias aqui instaladas, exceto o setores de bens de capital e o insumos da cadeia química116. Aliás, como as importações passaram a serem destinadas quase que exclusivamente ao comércio intra-industrial (já que este passou de 76 para 98% do total das importações), os bens de consumo final foram pouco afetados, haja vista que os bens duráveis e não-duráveis tiveram um ganho de 21 e de 8% respectivamente (10% para o setor automobilístico), ao compararmos sua participação no valor bruto da produção em 1995 com a sua participação em1989.

Nesse sentido, cabe ressaltar que Veiga (2000) alude ao viés anti-exportador de nossa economia, devido à estrutura discriminatória de proteção, citando especialmente os setores automobilístico (favorecidos por tarifas, pelo regime automotivo pela guerra fiscal), eletro-eletrônico (além do primeiro e do último fator citado, beneficia-se com a Zona Franca de Manaus) e o complexo têxtil (além dos dois fatores citados acima, beneficia-se com créditos do BNDES).

Retomando a questão do empresariado como ator político, cabe atentar que Diniz (2000) atribui considerável importância às críticas do empresariado à política econômica, citando a Fiesp e o IEDI como entidades que reclamam a não retomada do desenvolvimento e a falta de políticas para fortalecer a indústria nacional frente à concorrência externa. Eli Diniz salienta que tais críticas tem sido impotentes porque o empresariado continua isolado da sociedade civil, especialmente dos trabalhadores (alude à histórica disposição de não ceder e à falta de

115 O coeficiente de penetração das importações na indústria passou de 4,3 para 15,6% entre 1989 e 1996 (Mercadante, 1996). A desnacionalização foi acentuada em diversos setores, como autopeças e eletrodomésticos (Gonçalves,1999). 116 A participação das importações no consumo aparente desses setores aumentou respectivamente de 25 para 40 e de 19 para 30% no período 1993/96, sendo que neste ano nenhum outro setor relevante revelou coeficientes superiores a 20%. Maiores detalhes em. Moreira & Corrêa (1997).

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responsabilização frente ao agravamento da crise social), e porque não há mais espaços para interlocução com as elites estatais.

No entanto, como as informações arroladas até aqui sugerem que a maioria dos segmentos industriais não foi fortemente prejudicada pelas importações, a maior transformação foi a desnacionalização. Como a maioria dos empresários nacionais recolheu-se à vida privada (muitos se concentraram nas atividades culturais, como José Mindlin da Metal Leve) ou veio a atuar fora da indústria, sua posição econômica predominante passou a ser a de rentista, secundada por outras alheias à indústria. Atentando somente para essas posições, pode-se supor que os ex-empresários industriais não estariam interessados em questionar incisivamente a política econômica; ao contrário, do ponto de vista do rentista há poucas críticas a fazer a este governo.

Apesar de as transformações estruturais não sugerirem a perspectiva da constituição de coalizões empresariais dispostas a mudar os rumos da política econômica, o baixo crescimento econômico e o forte impacto da crise financeira (riscos e efeitos das desvalorizações cambiais e dos altos juros), marcantes de 1998 para cá, provavelmente fizeram com que o empresariado esteja insatisfeito com a gestão FHC. O recente racionamento de energia elétrica certamente contribuiu muito nessa direção, já que não há justificativa política para tal descalabro; chegar à iminência da falta do serviço mais essencial à economia e à vida das pessoas revela apenas uma colossal falha de gestão.

Entretanto, as articulações de certos segmentos empresariais com o governo (notadamente através das lógicas de financeirização), o isolamento do empresariado frente à sociedade civil e a fragmentação de suas entidades de representação, além do risco de uma ascensão da esquerda, tornam difícil imaginar que possam se repetir fatos ocorridos no regime militar, quando Roberto Campos e Octávio Bulhões (em 1968) e Mário Henrique Simonsen (em 1979) deixaram o comando da política econômica por resistirem às pressões de um empresariado ávido por recursos públicos e por políticas favoráveis ao crescimento. Além das razões já expostas, é importante marcar outra diferença; amplos segmentos da burguesia e das elites estatais acreditavam na capacidade de o Estado liderar ou coordenar a busca pelo crescimento sustentado, em grande medida porque as arenas corporativas promoviam interlocuções que orientavam a formulação e a implementação de políticas industriais. Tais arenas foram extintas e é pouco provável encontrar outra equipe econômica tão refratária ao diálogo com amplos segmentos empresariais.

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Crise econômica e crise política do governo FHC

Aliando às dificuldades econômicas citadas o desemprego no âmbito social e a proliferação de escândalos no governo e no Congresso, pode-se avaliar que o balanço político do governo FHC tornou-se negativo, sobrepondo-se ao êxito na contenção da inflação, a única realização inequívoca do governo, que lhe garantiu a eleição e a reeleição.

Segue-se uma análise que busca articular as especificidades econômicas e políticas da crise do governo FHC. O incremento de diversas formas de regulação estatal a partir de 1997, face à crise externa e ao baixo crescimento econômico, reforçaram práticas discricionárias desse governo, como as decisões tecnocráticas unilaterais e altamente seletivas. Tais ações em grande medida não foram exitosas, já que não levaram à retomada do crescimento, a uma significativa redução dos impactos financeiros desfavoráveis ou à satisfação das demandas dos grupos políticos e econômicos, já que o fortíssimo ajuste fiscal,(especialmente após o acordo com o FMI (fim de 1998) e a desvalorização cambial de 1999117, impediu que muitos segmentos pudessem ser atendidos. Ao mesmo tempo, elas não foram capazes de reverter a queda de prestígio popular do governo.

A simultaneidade entre esta queda e as evidências de aumento do atendimento de demandas altamente seletivos, incrementaram as pressões por aumento da distribuição de recursos públicos. Como os compromissos governamentais com a contenção do déficit público tornaram-se bastante rígidos, os atores do sistema político, a um só tempo crescentemente subalternos e excluídos frente à tecnocracia econômica, parecem ter exigido maiores recompensas, atacando os rivais na disputa pelos recursos públicos e passando a adotar estratégias de crítica ao governo (como o ex-senador Antônio Carlos Magalhães com o fundo da pobreza e as denúncias sobre ações da Sudam e do Ministério dos Transportes), preparando-se inclusive para as próximas disputas eleitorais.

Os conflitos entre grupos políticos da base governamental, em meio à multiplicação de práticas discricionárias, aliados a algumas ações fiscalizadoras da imprensa e do ministério público, levaram a um grande aumento da visibilidade pública das denúncias de corrupção. Mesmo o caso Telemar (o grampo telefônico que levou à demissão de

117 Para se ter uma idéia, os superávits primários do governo (receitas menos gastos fiscais antes do pagamento dos encargos públicos) chegaram a 4% do PIB, valor aproximado ao déficit de transações correntes com o exterior.

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Luís Carlos e José Roberto Mendonça de Barros e de André Lara Resende), embora tenha ocorrido em 1998, já era um sinal de que havia divergências dentro da equipe econômica e da base política do governo, quanto aos agentes privados que deveriam ser favorecidos nos processos de privatização e quanto aos grupos dirigentes que comandariam tais processos.

A questão central que se coloca daqui para frente é se essa crise ética contribuirá para bloquear a continuidade no poder do atual grupo dirigente e, ainda mais importante, se haverá condições para reverter a perversa articulação que se formou entre a hegemonia neoliberal (expressão de um totalitarismo social) e as políticas discricionárias, cujo exercício caracteriza ações de um grupo dirigente muito coeso articulado a uma ditadura do capital.

3. Serviços públicos e os direitos da cidadania

Neoliberalismo e novas agências reguladoras

A enorme concentração de poderes na equipe econômica sob o governo FHC fez com que as concepções neoliberais predominassem amplamente no que se refere ao processo de privatização e de posterior regulação dos serviços públicos através das agências reguladoras.

O fundamento básico dessas concepções é fazer com que a concorrência seja o princípio regulador das atividades das empresas privadas, de forma que as agências reguladoras deveriam ter como principal tarefa tomar providências para que o maior número possível de concorrentes passasse a atuar no mercado. Assume-se o suposto de que a lógica da maximização de lucros própria do mercado haveria de tornar essas empresas altamente eficientes (produção ao menor custo). Em contraposição, as diversas possibilidades de injunções políticas sobre as empresas estatais (como seu uso para satisfazer interesses de grupos políticos, dos funcionários ou de empresas fornecedoras ou clientes) impediriam alcançar a máxima eficiência. A concorrência faria com que a maximização de lucros resultasse em preços mínimos (iguais ao custo marginal – custo adicional de se produzir uma unidade a mais do bem) e, portanto, em benefícios e máximo bem estar para os consumidores.

Entretanto, além de haver outras concepções acerca da concorrência no capitalismo contemporâneo (vide adiante), as características econômicas dos serviços públicos não se enquadram perfeitamente nessas definições (Passanezi,1998). Alcançar a maior eficiência possível pode implicar na existência de apenas um produtor – o

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chamado monopólio natural, que ocorre quando a escala mínima eficiente (volume de produção que minimiza os custos unitários) for tão grande ao ponto de não permitir a presença de outra empresa. Este é o caso típico da infra-estrutura de telefonia fixa. Não sendo o caso de monopólio natural, a necessidade de volumosos investimentos em ativos específicos (equipamentos ou instalações não utilizáveis em outro segmento produtivo) constitui-se em poderosa barreira à entrada, já que a empresa entrante se arriscaria a ter volumosas perdas – se não conquistar uma parcela razoável do mercado, não poderá recuperar grande parte dos investimentos vendendo tais ativos.

As discussões no âmbito da teoria econômica são bastante extensas sobre quais seriam as possibilidade de haver um adequado número de concorrentes na prestação dos serviços públicos. A questão chave, entretanto, é de natureza conceitual: como e com que intensidade as empresas concorrem entre si? Uma concepção diametralmente oposta ao neoliberalismo parte do princípio de que as grandes empresas reconhecem as forças dos rivais, de forma que um confronto ilimitado entre elas não só teria resultado incerto como poderia enfraquecer muito ou eliminar do mercado todos os que se confrontassem118 (Baran & Sweezy, 1978). Outra lógica concorrencial faz muito mais sentido: se um pequeno número de empresas atua num mercado no qual possam existir barreiras à entrada, assegurar que tais barreiras prevaleçam119 pode levar à constituição de um oligopólio. Ele poderia praticar preços que impedissem a entrada mas, ainda assim, obter elevadas taxas de lucro (pois não teria de arcar com os custos de uma empresa entrante, como operar em uma escala menor que a mais eficiente), combinando preços explicitamente (cartel) ou não – sinalizando-os publicamente e ajustando-os internamente ao oligopólio (Bain, 1956).

A virtual eliminação da concorrência em preço está sujeita a um relativo equilíbrio de forças entre os competidores pois mudanças tecnológicas aceleradas podem ensejar condutas mais agressivas (como no caso dos computadores atualmente). Estratégias de fusão ou aquisição também podem levar a tais condutas mas em princípio tendem mais a incrementar ou consolidar a eliminação da concorrência em preço (como no caso dos medicamentos mais sofisticados).

Sob o conceito de oligopólio, a concorrência está centrada na busca por inovações –que reduzem custos e permitem lançar novos produtos –

118 Numa guerra de preços, se algum concorrente não ganha expressiva parcela do mercado, acaba operando com prejuízo. 119 Por exemplo, praticando preços que só tornem uma empresa rentável se ela conquistar expressiva parcela do mercado, sem a qual não conseguiriam reduzir os custos unitários ao ponto de obter lucros satisfatórios.

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e por fidelização da clientela, através de estratégias de inovação e de marketing que visam consolidar a força das marcas. A concorrência é acirrada porém ela não garante benefícios aos consumidores e à sociedade em geral pois, além de a produção não ser maximizada e os preços não serem minimizados, a constituição de marcas poderosas não se traduz necessariamente em produtos mais úteis ou adequados aos desejos dos consumidores.

No caso dos serviços públicos, como necessariamente poucas empresas competirão numa determinada região (poucas atingirão a escala mínima eficiente), e como os investimentos em ativos específicos são muito volumosos, o oligopólio poderá a se estabelecer e a concorrência tenderá a ser pautada basicamente pela oferta de novos serviços, muitas vezes mais sofisticados.

Voltando ao caso brasileiro, as concepções neoliberais orientam as agências reguladoras de serviços públicos a buscar a ampliação do número de concorrentes; enquanto houver apenas uma prestadora ou as concorrentes tiverem uma escala produtiva pequena, as agências devem regular diretamente o mercado. Este é o caso até o momento na telefonia fixa e na geração e distribuição de energia elétrica. No entanto, como o governo, pautado por tais concepções, aposta na concorrência como princípio regulador no médio e longo prazo, discutir as possibilidades de constituição de oligopólios é fundamental para pensar o futuro próximo desses serviços no Brasil.

No momento atual, o caráter neoliberal da atuação das agências reguladoras deve ser buscado, portanto, na forma como elas monitoram e regulam as empresas e não numa política minimalista, que se limitaria a observar a concorrência no mercado. Dessa forma, trata-se de analisar como tais agências atuam frente aos interesses das empresas e às demandas dos diversos segmentos sociais quanto à prestação de serviços públicos.

É importante avaliar os significados atribuíveis aos direitos dos cidadãos aos serviços públicos, especialmente quanto à sua universalização, logo à sua essencialidade para todas as pessoas. Fiúza & Neri (1998) afirmam-se que os benefícios sociais da universalidade de acesso advém de três papéis vitais desempenhados pela telefonia: utilidade para conectar parentes e amigos distantes, meio para realizar atividades econômicas – consumo, produção (especialmente no setor de serviços) e acesso a trabalho - e meio de acesso à cidadania.

O primeiro e o último são os mais cruciais pois implicam respectivamente acesso à comunicação pelos cidadãos mais frágeis e isolados (idosos e mães que trabalham fora, por exemplo) e acesso a serviços emergenciais (bombeiros, ambulância). Quanto às atividades

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econômicas, uma questão cada vez mais crucial refere-se ao fato de que a privação do acesso ao telefone é um fator de crescente desigualdade, na medida em que a internet desempenha um papel cada vez mais relevante. Mesmo sem chegar a ela, o uso apenas do telefone tem se tornado cada vez mais importante para o acesso a bens e serviços, para a capacidade de atuar à distância e para tomar providências profissionais, aspectos decisivos para o aumento de bem estar, para incrementar possibilidades de acesso ao mercado de trabalho e para o aumento de produtividade das pessoas.

Além dessas dimensões da essencialidade, é importante salientar que os serviços públicos e a atuação das empresas prestadoras têm implicação direta para questões como o aumento de competitividade da economia (menores preços e maior qualidade desses insumos de uso difundido em todos os setores) e a proteção ao meio-ambiente (o suprimento de água e de energia elétrica, além de concorrerem pelo uso da água – o predomínio das hidrelétricas implica em problemas ambientais). Em função da presença cada vez mais maior das transnacionais nesses serviços, ganham relevância questões como o desenvolvimento tecnológico (aumento da competência nacional em bens de capital e eletroeletrônicos) e o crescimento da atividade econômica interna (menos importações e mais reinvestimento dos seus lucros).

Frente a este conjunto de questões, vem sendo aprofundada uma dinâmica iniciada nos anos 90 (governo Collor), através da aceleração de processos como a privatização, a desregulamentação da economia e a eliminação de mecanismos institucionais de política industrial ou econômica. Por outro lado, no governo FHC ganharam espaço aqui instituições criadas nos países centrais para regular a economia, como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica e as agências reguladoras de serviços públicos.

Em primeiro lugar, o caráter neoliberal transparece no fato de tais instituições não estarem encarregadas de implementar as políticas públicas levadas a cabo na época do dirigismo estatal (1930/80), como garantir a oferta de serviços essenciais a preços adequados e à frente da demanda (através de empresas estatais), controlar preços, fomentar o desenvolvimento regional ou setorial (inovação ou competitividade), bem como diversos outros objetivos como o desenvolvimento econômico e a geração de empregos. Ao invés de tais políticas serem re-significadas, no sentido de se tornarem meios para a efetivação de novos direitos sociais (substituindo as negociações intransparentes entre governos e empresas, até então prevalecentes), excluí-las das missões atribuíveis a tais instituições expressa a destituição de direitos e de

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espaços públicos de discussão e de negociação que poderiam surgir com o fim do regime autoritário.

É inegável que o processo de privatização e que a regulamentação da prestação dos serviços e da atuação das agências reguladoras foram implementados sem que as entidades da sociedade civil participassem do processo, tanto assim que o próprio termo agências reguladoras passou a frequentar os meios de comunicação somente após a sua criação. Foram utilizados apenas mecanismos da democracia formal (proposição pelo governo e aprovação pelo Congresso). Frise-se que o questionamento a tais mecanismos refere-se às formas concretas pelas quais elas operam no Brasil. No tema em questão (mas não apenas nele, dado o abuso da edição de medidas provisórias), a ausência de debates públicos no parlamento, não propiciando a participação de entidades sociais e o confronto de propostas alternativas, impediu qualquer democratização do processo. Assim, a aprovação do Congresso não poderia estar traduzindo apoios sociais suficientemente amplos para a profunda reestruturação dos serviços públicos, assunto muito recente e praticamente desconhecido pelos cidadãos.

Linhas gerais da atuação da Anatel

Fiúza & Neri (1998) apuraram que apenas 26% dos brasileiros (8% entre os situados abaixo da linha da pobreza) possuíam acessos individuais a telefone (doravante acessos) em 1995120. Supondo que nesse ano o número total de acessos (incluindo aqueles possuídos por empresas e entidades) era de 14.9 milhões121, chega-se a uma proporção de 2,633 pessoas atendidas por cada acesso. Nesta proporção, os 19.7 milhões de acessos adicionados de 1997 a setembro de 2000 (Anatel, 2001) teriam atendido mais 51.9 milhões de pessoas, totalizando 91.1 milhões.

Como tal contingente equivale a 53.7% da população do país em 2000 (OESP, 2001, com dados dos Censo Demográfico), o número total de acessos precisaria crescer 86% para alcançar a todos os brasileiros. Como nos contratos de concessão está prevista uma expansão de apenas 13.8% para 2001, e a Anatel não estipulou novas metas para os anos

120 Fiúza & Neri (1998) utilizaram dados da PNAD (1995) e ROCHA, Sônia (1993) – Poverty lines for Brazil: New estimates from recent empirical evidence, Rio de Janeiro: IPEA, apud Fiúza & Neri (1998). 121 Como só estavam disponíveis os dados de 1994 (13.3 milhões) e de 1997 (18.8 milhões) e como não houve privatização no período, o número de telefones em 1995 foi calculado supondo uma taxa de crescimento uniforme entre 1994 e 1997.

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seguintes, neste ano somente 60.2% das pessoas estariam dispondo de acessos individuais.

O crescimento do número de telefones frente a 1995 (260% somente até setembro de 2000) é muito significativo, porém a inexistência de compromissos visando uma maior universalização revela que o governo FHC não assumiu um compromisso nesse sentido. Isto fica patente no fato de não haver menção a algum estudo relacionando o nível das tarifas (habilitação mais assinatura mensal mais valor dos pulsos) a patamares de renda próximos ao salário mínimo, muito menos articulando esse serviço aos demais serviços públicos essenciais (água, energia elétrica e transportes, pelo menos).

O Plano Geral de Metas de Universalização (doravante plano), instituído pelo Decreto 2592 de 15/51998, define que a universalização consiste no acesso a todos os serviços (individual ou coletivamente), independentemente de localização ou condição econômica, bem como sua utilização em serviços essenciais de interesse público (como educação e saúde). Além desses serviços, a universalidade é especificada quanto ao acesso de deficientes físicos e a todas as localidades com mais de 100 habitantes (incluindo vilas ou aglomerações rurais).

Voltando aos números estimados acima, as pessoas não atendidas por acessos individuais em 2001 seriam cerca de 68.6 milhões. Frente à meta de instalação de 981.3 mil telefones públicos (TUP), haveria uma proporção de 70 pessoas por cada TUP, claramente insuficiente para fazer frente às múltiplas demandas a serem atendidas, especialmente quando a casos de urgência, quanto mais para realizar atividades econômicas. Aliás, esta proporção não precisa ser atingida pois as metas da Anatel para cada Estado são de um TUP para 133 habitantes em 2003 (1 para 125 em 2005).

Quanto às localidades pequenas e afastadas, o plano prevê implantação de acessos individuais em todas aquelas que possuem de 300 para 1000 habitantes até 2005 mas, além de não incluir localidades com menos de 100 habitantes, não discrimina proporções que garantam um acesso razoavelmente difundido122. Para as localidades com menos de 300 habitantes e para aquelas que ainda não dispunham de acessos individuais, o plano prevê que pelo menos um TUP esteja acessível 24 horas por dia, com capacidade plena 123. Trata-se apenas de um serviço

122 Não foi possível apurar qual o número mínimo desses acessos que seriam implantáveis segundo as condições tecnológicas atuais. Além disso, implantá-los não significa garantir um uso efetivo – as pessoas podem não ter condições de pagar. 123 Quer dizer, para originar e receber chamadas de longa distância nacional e internacional

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mínimo, mais uma vez sem proporções que garantam acessos difundidos, embora esteja previsto que pelo menos 50% dos TUP instalados devam estar disponíveis 24 horas e ter capacidade plena.

O plano prevê que em todas as localidades os TUP estejam distribuídos de maneira uniforme (pelo menos três por grupo de1000 habitantes) e que em todas as localidades com mais de 300 habitantes os TUP devam estar distantes entre si por no máximo 800, 500 e 300 metros (metas para 1999, 2001 e 2003). Tais obrigações apenas impedem que as empresas concentrem os TUP; assim, evita-se a exclusão de pessoas que morem ou trabalhem em pontos distantes dos centros das localidades. Um última observação sobre os TUP; como as metas de acessos individuais para todas as localidades acima de 300 habitantes deverão ser atingidas apenas dois anos após as metas correspondentes estipuladas para os TUP, nota-se que o empenho do governo na instalação dos últimos não foi muito diferenciado, não revelando que a universalização através deles estava sendo julgada prioritária.

Cabe acrescentar ainda que, para as regiões Norte e Nordeste, sabidamente as mais pobres do país, as metas de acesso individual foram de apenas 11.8 e 10.3 acessos por 100 habitantes, pouco mais da metade da média nacional (19.5) e de 1/3 do Estado de São Paulo. Aliás, essa desigualdade existe também nos TUP – 4.4 e 5.0 por 100 habitantes, frente a 5.8 e 7.3 respectivamente. Ao menos para os telefones públicos seria de se esperar uma priorização acentuada para as regiões Norte e Nordeste.

Ao que foi possível apurar, até o momento não feito aporte significativo de recursos públicos para o cumprimento das metas de universalização (expansão de 1999 a 2001 igual a 31.5% para acessos individuais e 37.6% para os TUP). Depois de três anos (desde a aprovação da Lei Geral de Telecomunicações em 1997), o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST) foi criado e ele deve receber um volume substancial de recursos, já que contará com parcela de faturamento das empresas (1% originalmente mas o percentual foi aumentado para 1.5 e 2%) e com 50% dos pagamentos pelas concessões (até 500 milhões de reais).

Voltado a apoiar o citado plano, o FUST tem como principais objetivos atender os segmentos mais carentes – localidades com menos de 100 habitantes, população de baixa renda e telefonia rural -, às instituições de ensino (inclusive internet) e a saúde, a órgãos públicos e às áreas remotas e estratégicas. Embora 30% dos recursos devam atender às áreas da Sudam e Sudene, a ênfase maior foi dada à educação e a menção à população de baixa renda é genérica, não especificando ou

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sugerindo uma meta de atendimento (como percentual de domicílios atendidos, por exemplo). O fato de haver transcorrido três anos até que o FUST fosse instituído, aliado às evidências até aqui discutidas, não permitem fazer prognósticos positivos sobre o uso dos recursos do fundo.

De qualquer forma, é inegável que ele poderia ser utilizado para que a universalização fosse planejada meticulosamente em termos públicos, e não deixada em certa medida por conta das empresas (que decidem como e para quem instalar a fim de cumprir as metas de expansão), incluindo a possibilidade de, ao se verificar lucros elevados nas empresas, aumentar o percentual de recolhimento (hoje de 1.5 a 2% do faturamento) em certos períodos para acelerar o atendimento das necessidades dos segmentos mais carentes, inclusive criando planos básicos mais baratos para permitir o uso efetivo por tais segmentos.

Discutindo o desempenho da Anatel e das empresas após a privatização, é preciso ressaltar inicialmente que foram eliminados graves problemas ocorridos à época das empresas estatais. Além do atendimento à enorme demanda reprimida (os acessos individuais instalados quase dobraram de 1997 a setembro de 200 – de 18.8 para 34.6 milhões) com prazo de entrega inferior a um mês (frente a mais de ano anteriormente), o custo da habilitação foi drasticamente reduzido (de 1.120 para 50 reais em média).

Entretanto, a própria Anatel afirma que o aumento do preço da assinatura mensal (de 0,44 para 14.11 reais em média) teria servido para compensar a queda no custo da habilitação. Nota-se que o acréscimo mensal no valor da assinatura igualaria este custo em 10 anos; supondo que a cobrança de pulsos locais cubra o custo de manutenção das linhas e dê lucro, a partir do décimo ano todo valor da assinatura seria convertido em lucro adicional para as empresas, de maneira que no longo prazo elas podem estar auferindo um lucro extraordinário.

Outra justificativa da Anatel para o aumento do preço da assinatura era a eliminação de um alegado subsídio pago por toda a população para os possuidores de telefone Além de a própria Anatel ter alegado que este aumento visava compensar a queda no preço da habilitação, não teria havido subsídio se o Estado não tivesse aportado recursos às empresas estatais, como parece ser o caso. O aspecto perverso era outro; tratava-se de um viés de privilégio de acesso aos segmentos de renda média e alta. Eles podiam desembolsar previamente montantes elevados que os demais não podiam; atualmente, parte deles pode arcar com o custo da habilitação pois ele passou a estar diluído em prazos mais longos, por estar embutido na assinatura mensal.

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A Anatel afirma que a conta média de telefone124 em setembro de 200 custava por volta de 46 reais, valor cerca de 50% menor em termos reais ao vigente em 1994125. Esta comparação não é plenamente satisfatória pois a cesta de consumo inclui apenas 1/36 do valor da habilitação (seu valor é diluído por 3 anos); como este valor era muito elevado em 1994, não foi adotado o melhor método para efetuar a comparação. Além disso, o grande aumento do número de acessos instalados (160% entre 199 4 e 2000) certamente gerou ganhos de escala através da redução dos custos unitários de instalação e de manutenção, custos que também devem ter caído devido à introdução de novas tecnologias (mais modernas do que as utilizadas pelas empresas estatais, cuja última renovação de equipamento deve ter ocorrido há muito tempo, face à sua crise financeira) e de novas formas de contratação (terceirização).

Aliás, a indexação do reajuste das tarifas à variação do IGP/DI (conforme o contrato de concessão da Telefonica de São Paulo) suscita outra série de questões. Em primeiro lugar, trata-se de um índice geral e não setorial de preços; como não é difícil criar uma cesta de bens representativa dos custo das empresas, a adoção de um índice geral (que combina gastos de todas as empresas e pessoas) não se justifica.

Em segundo lugar, os índices gerais de preços tem revelado uma variação superior aos índices de preços ao consumidor, uma vez que o baixo crescimento econômico e o desemprego tem impedido que as empresas repassem as variações de custo que sofrem (nos últimos anos, puxadas pelas desvalorizações cambiais, pelos preços do petróleo e pelas próprias tarifas públicas). Assim, sem estimar as variações de custo das empresas de telefonia, pode-se estar criando um privilégio frente às empresas dos demais setores, obrigadas a reduzir as margens de lucro para continuarem operando.

A Anatel se orgulha de ter realizado 247 consultas públicas entre maio de 1997 e setembro de 2000. Em 1999 e 2000, houve em média 11 contribuições para cada uma das 174 consultas realizadas, a maioria delas referentes às redes para serviços de valor adicionado (como internet) em 1999, à regulamentação da telefonia celular em 2000. Entretanto, como não houve debate público – o Conselho Diretor da Anatel apenas examina as contribuições e responde aos autores – e não ter sido informado quais contribuições foram incorporadas e como elas

124 Considerando uma cesta de consumo composta pela habilitação, assinatura, pulsos locais e ligações de longa distância nacional e internacional. 125 O valor nominal em 1994 era de 52 reais mas, corrigindo-o pelo IGP/DI como a Anatel fez, ele corresponderia a 93 reais em setembro de 2000.

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modificaram as proposições feitas pela agência, tais estatísticas não traduzem uma interação democrática com a Anatel. Aliás, a falta de menção a temas de maior interesse público (universalização do serviço ou tarifas) leva a conclusão semelhante..

O Conselho Consultivo da Anatel é composto por 12 membros, sendo 4 do Congresso, 2 indicados pelo governo, 2 por entidades de classe das prestadoras, 2 por entidades dos usuários e 2 por entidades da sociedade civil. Nota-se que apenas 1/3 dos membros (os últimos quatro) representam amplos segmentos da população em geral. Supondo que a Anatel atuasse no interesse das prestadoras, com anuência do governo e de sua base de apoio no Congresso, o Conselho Consultivo não aprovaria – talvez sequer divulgaria – críticas ou sugestões feitas pelos demais 4 membros. Esta possibilidade é ainda provável ao considerarmos que cabe à presidência da República indicar os membros do Conselho e que é a Anatel quem escolhe as entidades que indicarão seus representantes.

A Anatel menciona a existência de dois comitês estratégicos – um para universalização de serviços de telecomunicações e outro para defesa dos usuários. Além de não haver menção ao número ou ao teor das reuniões, o fato de tais comitês serem compostos por um grande número de pessoas sem indicação de representatividade ou de proporcionalidade interna não sugere que eles possam estar atuando de forma efetiva e autônoma.

Confrontar o discurso neoliberal sobre a captura do Estado pelos interesses regulados com o discurso sobre as novas agências reguladoras exprime um enorme paradoxo. Agora, afirma-se que agências possuem autonomia pois seus diretores são pessoas de ilibada reputação e porque possuem mandato. No entanto, considerando que o governo indica os diretores sem consultar entidades da sociedade, que o Senado apenas aprova os nomes, que os diretores não precisam cumprir um período de quarentena após deixarem a agência, que o governo controla seu orçamento (pode não liberar os recursos alegando necessidades do ajuste fiscal) e que apenas as empresas estão participando dos procedimentos da agência (os conselhos consultivos reúnem-se separadamente), não é praticamente inevitável esperar que tais diretores atendam fundamentalmente aos interesses do governo e/ou das empresas?

Tais considerações suscitam discutir qual o propósito das agências reguladoras sob o paradigma neoliberal. Além de mediarem interesses empresariais, face ao poder monopólico das prestadoras frente às demais empresas, uma outra função parece ser mais essencial. A vinculação de seus membros estritamente ao governo (monopólio da

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indicação) e a prescrição minuciosa dos poderes das agências e das leis que devem aplicar fazem com que as agências fiquem restritas a atuar como burocracia técnica frente à sociedade, uma vez que não podem debater quais são os interesses públicos e quais os modos de atendê-lo, de forma que a sociedade perde esse canal de interação. As agências ficam sujeitas apenas às leis (e contratos de concessão) e politicamente aos pleitos informais de membros do governo, que pode não renovar seus mandatos ou cortar orçamentos, por exemplo.

Ao mesmo tempo, as possibilidades de revisão extraordinária das tarifas (devido à alegação de ter ocorrido evento que rompa o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão) e/ou do aporte de recursos públicos para a cobertura de custos julgados elevados pelas empresas (quanto à universalização, por exemplo), ambos previstos nos contratos, criam oportunidades para que o governo e/ou a Anatel favoreçam as empresas, na lógica de interação entre monopólios, já discutida.

Desta forma, estariam sendo frustradas possibilidades institucionais de órgãos que poderiam representar uma mudança significativa na ação estatal pois são pautados por leis (dificultando decisões ad-hoc) e possuem uma autonomia potencial frente ao governo e ao poder econômico. Esta autonomia, se efetivada, descortinaria perspectivas de participação da sociedade civil e assim da institucionalização de procedimentos democráticos de regulação do poder econômico e também da difusão destas questões para públicos mais amplos, dificultando a imposição dos argumentos neoliberais no espaço público.

Perspectivas de democratização a partir da sociedade civil

Apesar da inegável ascensão dos direitos dos consumidores, devido ao Código de Defesa do Consumidor (de 1990), considerado avançado, e à atuação dos PROCON’s126, tanto a legislação quanto a atuação das entidades ligadas aos direitos dos consumidores parecem estar orientados principalmente pela concepção de defesa (proteção) frente a riscos (como prejuízos à saúde ou à segurança) e a frustrações de expectativas (fraude e propaganda enganosa) decorrentes das relações de consumo127.

Embora essa hipótese necessite ser melhor investigada, a relação empresa-consumidor não parece estar sendo tematizada amplamente, do

126 Delegacias de defesa do consumidor dos governos estaduais. 127 Esta concepção está expressa no comentário de LOPES (1997), acerca do Código de Defesa do Consumidor brasileiro.

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ponto de vista de como sua desigualdade constitutiva pode ser regulada e/ou limitada visando à promoção do aumento do bem estar dos consumidores. A concentração dos esforços das entidades em certos efeitos dessa desigualdade (basicamente os decorrentes da falta de informação sobre as reais propriedades dos bens adquiridos) deixa de problematizar muitos outros potenciais benefícios aos consumidores, como por exemplo preços mais baixos e maior qualidade ou variedade de produtos. Não se trata de omissão mas sim de uma atuação de cunho marcadamente jurídico, campo no qual os demais aspectos não podem ser contemplados devido à falta de dispositivo legal. Como este existe quanto às mensalidades escolares, por exemplo, as citadas entidades atuam incisivamente quanto aos reajustes dos preços.

Por outro lado, é possível supor que a atuação dos segmentos sociais que pleitearam direitos dos consumidores esteve menos voltada a articular seu campo específico ao conjunto dos direitos da cidadania, comparativamente à atuação da maioria dos movimentos sociais. Nesse sentido, Marilena Lazzarini, coordenadora executiva do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), disse que os objetivos primordiais do IDEC são: mudar a orientação dos juízes, promover ações judiciais e orientar legalmente os consumidores128, sendo que apenas o primeiro objetivo sugere práticas que possam ir além da defesa legal dos direitos já tipificados. Nessas condições, torna-se bastante difícil tematizar ampla e publicamente a desigualdade constitutiva da relação empresa-consumidor, já que ela requer uma atuação especificamente política (mobilização dos consumidores e um forte empenho na cena pública) para poder ser capaz de obter apoios sociais amplos, de influenciar os aplicadores da lei e de se contrapor às poderosas forças econômicas.

Quanto aos direitos dos cidadãos à universalização dos serviços públicos essenciais, cabe comentar que, não obstante a tematização da pobreza ter ganho grande visibilidade pública a partir do início da década de 90 (lembremos as mobilizações civis como a campanha da fome), o acesso a tais serviços não foi parte importante dessas discussões. No entanto, como as agências reguladoras setoriais passaram a ter obrigação legal de zelar por essa universalização, as entidades de defesa do consumidor, os PROCON’s e o Ministério Público têm atuado intensamente junto às agências, abrangendo o amplo escopo de questões que não são tratadas quando inexiste dispositivo legal apropriado. Entretanto, a concentração dos seus esforços junto às

128 Trata-se de uma exposição feita em 29/8/1997 na USP, no Congresso Estadual dos Sociólogos.

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agências revela uma grave limitação; como não há outro meio legal (exceto ações diretas de inconstitucionalidade ou ações civis públicas) para lutar por uma efetiva universalização, torna-se difícil poder contestar a interpretação das agências sobre os compromissos estabelecidos nos contratos de concessão.

Para que os diversos direitos dos cidadãos vinculados à prestação dos serviços públicos possam vir a ser efetivamente exercidos, sua regulação deve remeter a noções de interesse público compartilhadas por diversos segmentos sociais, o que requer a constituição de espaços públicos de interlocução, representação e negociação que difundam os diversos argumentos e interesses conflitantes citados há pouco129. Tais espaços públicos (como fóruns ou comissões não compostos apenas por membros do Estado) poderiam discutir como medir os interesses das empresas prestadoras e suas obrigações frente às demandas de direitos dos diversos usuários e dos excluídos, disputando então a pertinência, a relevância e a prioridade de cada demanda frente às demais.

O saldo mais salutar dessa disputa seria chegar a definições acerca da natureza e da abrangência de noções fundamentais como essencialidade, acesso universal, satisfação dos usuários, impulso à competitividade e direito de remuneração das empresas, dentre outras noções. Assim, estaria sendo evitada uma disputa travada exclusivamente na chave da barganha de interesses, a qual não institui parâmetros comuns que possam levar à construção de um conjunto de noções que expresse o interesse público. Instituí-los é crucial também para que os debates possam se difundir para além dos espaços públicos citados, possibilitando ampla discussão nos meios de comunicação e nas diversas associações da sociedade civil, de maneira que os debates possam suscitar manifestações públicas que reforcem ou contestem as posições hegemônicas nos espaços públicos institucionalizados.

É evidente que não há condições de atender rápida e satisfatoriamente às diversas demandas. Por exemplo, criar uma tarifa social para os mais pobres pode onerar os consumidores de classe média ou a competitividade das empresas. O sectarismo de certos movimentos ambientalistas, exigindo proteção total ao ambiente ao custo da retirada imediata de famílias das regiões de mananciais ou imediata interrupção das queimadas pré-plantio dos pequenos agricultores da Amazônia são exemplos de conflitos entre direitos já reconhecidos. No tema em pauta, a questão mais difícil é a universalização dos serviços, pois, mesmo que o governo aporte recursos e que as empresas sejam forçadas a buscá-la,

129 Essa noção de direito baseou-se em Paoli (1995) e em Telles & Paoli (2000), sendo que as interpretações que delas derivo em seguida são de minha exclusiva responsabilidade.

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decorreria muito tempo para que os investimentos necessários fossem realizados.

Nesse contexto, é importante lembrar (Oliveira 1991) que a democratização enquanto combinação do método democrático (regras processuais) com a existência de esferas públicas (dialética privatização do público - publicização do privado) pode resultar apenas num jogo de forças, se essa dialética não for orientada por algum parâmetro. democraticamente negociado e pactuado - Oliveira sugeriu a igualdade. Na conjuntura brasileira atual, será discutida a hipótese de que a busca do desenvolvimento pode orientar uma ampla correlação de forças voltada à constituição de uma lógica econômica sustentada e distributiva.

Cabe ressaltar de início que o governo FHC criou o Ministério do Desenvolvimento em 1998. Lembrando que à época se cogitava chamá-lo de Ministério da Produção, e atentando para as questões que o mobilizaram desde então, nota-se como a noção de desenvolvimento esteve ligada, na melhor das hipóteses, a políticas de competitividade ou de fomento às exportações ou à inovação, voltadas portanto exclusivamente às empresas.

Para Celso Furtado, superada a fase em que o Brasil se industrializou e aumentou sua renda per-capita, o problema central é entender porque estas mudanças não se traduziram na redução ou eliminação da heterogeneidade social do país, ao contrário do que ocorreu nas economias desenvolvidas (Furtado, 1998).

A questão central é que a demanda de mão de obra dos setores modernos não é suficiente para absorver os trabalhadores inseridos naquelas estruturas pois são utilizadas tecnologias altamente poupadoras de mão de obra, uma vez que a maior parte da produção desses setores visa a satisfazer o consumo das classes de alta renda, que mimetizam o padrão de consumo das classes abastadas dos países centrais. Como grande parte dessas tecnologias, assim como parcela importante dos bens de consumo, são importadas dos países centrais, há um agravamento da situação periférica no plano internacional, constituída basicamente através da deterioração dos termos de troca130 (Furtado, 1998;1961).Paralelamente, a elevada concentração de renda e de riqueza, causa e consequência da heterogeneidade social, leva a um volume de produção de bens de consumo para os assalariados que também demanda insuficiente mão de obra frente aos contingentes

130 Em função da tendência de aumento dos preços dos produtos feitos nos países centrais (bens de maior valor agregado inseridos sem estruturas de mercado oligopólicas) frente ao preços dos bens produzidos no 3º Mundo (bens de menor valor agregado, inseridos sem estruturas de mercado competitivas).

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situados nos setores atrasados. Para Furtado, o padrão de consumo das classes de alta renda é decisivo também por contribuir para uma baixa taxa de poupança, logo de investimento131.

Aliás, Oliveira (1975) salienta que o setor se serviços urbanos, incluindo boa parte da reprodução da força de trabalho (como as moradias), atendeu às crescentes demandas decorrentes da maior urbanização através de unidades econômicas muito pouco capitalizadas, muitas vezes produzindo quase que exclusivamente através do uso de força de trabalho. Embora tais unidades não desempenhem hoje papel tão relevante, é grande o número de trabalhadores nela ocupados. Dessa forma, vários processos reproduzem a heterogeneidade social, ao impedirem que os trabalhadores possuam condições para obter uma maior parcela da renda nacional.

Discutindo a superação do desenvolvimento nos tempos atuais, Furtado (1999) postula que três medidas são necessárias para superar o subdesenvolvimento, dentre elas que é preciso evitar a concentração do poder econômico e de mercado, para que seja possível incentivar o pleno uso do potencial produtivo, aumentar as oportunidades para a inovação e facilitar a reorientação do excedente. Cabe adicionar que esta concentração está associada à desnacionalização que aumenta a vulnerabilidade externa do Brasil e que ela fortalece as pressões dos grandes capitais sobre o Estado, das quais a guerra fiscal entre Estados e municípios e o aporte de recursos do BNDES a capitais externos são manifestações claras.

A reorientação do excedente é, em si mesma, a segunda e mais necessária medida preconizada por Furtado. Ela visa não reproduzir o padrão de consumo das classes de alta renda, para assim permitir que uma maior poupança possa ser canalizada para o investimento no capital humano e assim diminuir a desigualdade social. A última das três medidas é buscar diminuir a drenagem do potencial de investimento para o exterior, retomando a sempre atual questão da deterioração dos termos de troca.

Assim, nota-se que o enfoque analítico de Celso Furtado busca criar uma dinâmica econômica que articule crescimento sustentado da produção (e do investimento) com a distribuição de renda. Cabe ressaltar sua percepção sobre a importância da concentração do poder econômico, articulada às políticas neoliberais implementadas sob a ditadura do capital, numa conjuntura de crise internacional que impulsiona os países centrais a adotarem posturas imperialistas frente

131 O investimento privado não depende apenas da poupança porém esta mede a capacidade de obtenção de fundos adicionais para investir.

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ao 3º Mundo. O conjunto dessas poderosas forças deve ter ido uma das principais causas para Furtado (1999) afirmar que a superação do subdesenvolvimento nos tempos atuais exige o exercício de um forte vontade política apoiada em amplo consenso social.

O enfoque de Celso Furtado, aliado às demais discussões até aqui realizadas, sugerem perspectivas analíticas interessantes para discutir a efetivação dos direitos dos cidadãos aos serviços públicos, no bojo de medidas voltadas ao desenvolvimento. Estão em implementação diversos programas de garantia de renda mínima. Quando se discute a questão da eliminação da pobreza (absoluta ou não), o acesso a uma cesta básica de natureza alimentar é o eixo principal que orienta as propostas.

No entanto, o acesso a serviços públicos essenciais como transporte, energia elétrica, água, saneamento e comunicação é também absolutamente fundamental e pode ser objeto de políticas tão ou mais virtuosas do que os programas de renda mínima. Enquanto os três primeiros serviços citados estão praticamente universalizados, centrando a discussão no seu custo e qualidade, os dois últimos ainda precisam ser muito difundidos para a população mais pobre. Ao utilizar recursos públicos (do orçamento ou de taxas cobradas das prestadoras de serviços) para garantir a criação de infra-estrutura para os últimos, preços baixos e maior qualidade para todos, parte significativa do modesto orçamento daquela população estaria liberada para adquirir alimentos. Mais importante ainda, o acesso a esses serviços traz potenciais benefícios à saúde (saneamento especialmente), à educação (energia e comunicação) e à inserção econômica (comunicação), além de muitos outros benefícios que uma análise mais extensiva certamente apontaria.

É evidente que isso não basta para atingir a dimensão central do subdesenvolvimento – a eliminação da heterogeneidade social. Ela requer uma nova dinâmica de crescimento com distribuição de renda, para gerar transformações estruturais na relação capital-trabalho. Entretanto, parece óbvio que uma política fomentadora do crescimento da renda e do emprego na direção apontada poderia ter como um dos seus eixos principais a expansão da infra-estrutura, do acesso dos mais pobres e da qualidade dos serviços públicos. Articulando demandas dos trabalhadores e do empresariado (menor custo e maior qualidade aumentam a competitividade) e associando fortemente essa política a uma das questões atuais mais prementes (educação, via comunicação), há possibilidade de agregar apoios sociais bastante amplos para um forte investimento nessas áreas.

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Do ponto de vista da regulação pública, o fato de as empresas atuarem com pouca ou nenhuma concorrência frente a uma demanda que tende a crescer (especialmente nas comunicações, dada a expansão da internet e das televisões por assinatura) lhes possibilita acumular uma grande massa de lucros. Em função disso, uma política distributiva que os taxasse é recomendável, embora não seja possível prescindir de recursos orçamentários. O caso da FUST, já discutido, é um exemplo claro nessa direção.

Por outro lado, o crescente controle de grupos internacionais sobre as prestadoras de serviços públicos constitui-se numa ameaça não só a propostas desse tipo como ao bem estar dos consumidores já atendidos e às contas externas brasileiras. O risco de as empresas deixarem de reinvestir seus lucros aqui, recusarem o pagamento de taxas e/ou remeterem grandes volumes de dólares para fora do Brasil exigem reestruturar o enfoque de atuação das agências reguladoras, especialmente porque ela tenderia a ser mínima à medida em que ocorra a prevista existência de concorrência na oferta desses serviços.

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Regulação urbana e gestão dos transportes: modelos e impasses brasileiros

Etienne Henry(*)

Sob a síndrome da crise e da mudança dos modos de administração urbana, o transporte ocupa um lugar importante na dinâmica da cidade. A recente proliferação dos lotações (ou peruas, vans, kombis, etc., conforme as variadas denominações locais) na maior parte das metrópoles brasileiras constitui a expressão flagrante das transformações da regulação urbana. A imprensa faz ecoar os freqüentes choques entre lotações artesanais ditos informais ou clandestinos, empresas capitalistas de ônibus e poderes municipais – da disputa cotidiana pelos passageiros nas ruas às infrações aos códigos e normas estabelecidas e os acidentes de trânsito, passando pelos embates entre categorias diferentes de motoristas, até as violentas escaramuças contra as prefeituras (como nos casos de Belo Horizonte, São Paulo ou Campinas). Odiados pelos empresários mais sólidos, que atribuem a esta concorrência dita selvagem a queda de sua clientela, desacreditados pelos poderes públicos que vêem questionadas suas prerrogativas regulamentares, os lotações não são sempre, nem na prática nem nas pesquisas de opinião, desprezados pelos usuários sujeitos à degradação de suas condições de deslocamento cotidiano (desconforto, superlotação, duração do deslocamento e tempo de espera). Os passageiros são afetados pelo encarecimento das tarifas públicas, na medida em que, por exemplo, o custo do deslocamento casa-trabalho equivale à metade de seu salário, mesmo quando este custo recai sobre o empregador, o que acontece com freqüência. Os lotações podem, ainda, oferecer tarifas menos onerosas em trajetos curtos, sem respeitar as normas legais, que vão desde a legislação trabalhista e os impostos sobre atividades de produção e serviços até o direito de exploração sobre um serviço em particular. As tarifas dos transportes coletivos, específicas para cada modo de transporte em uma mesma circunscrição administrativa, se constituem em objeto de intensas negociações entre as empresas autorizadas e os poderes municipais, seguidas de lutas e pressões que chegam freqüentemente aos blekouts de

(*) IRD – Institut de recherche pour le développement e CENEDIC - Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania , USP. Tradução do original em francês por Cibele Saliba Rizek.

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empresários ou às greves dos trabalhadores por aumento de salário (como as recentes greves dos ônibus e do metrô que paralisaram sucessivamente a cidade de São Paulo e a de Brasília). Os objetivos de aumento da produção física, de melhora dos veículos e de qualidade do serviço, de extensão dos trajetos, assim como os de regularidade da oferta, dificilmmente se impõem ao requisito de rentabilidade financeira da atividade em ausência de subsídio direto. A crise da circulação urbana, com engarrafamentos contínuos provocados pelo crescimento do transporte individual, a expansão dos serviços prestados a domicílio e o aumento do tráfico de mercadorias, é assim um fator de degradação das condições dos transportes coletivos. O futuro das cidades é parcialmente tributário da capacidade de se enfrentar a crise dos transportes, crise que se manifesta diferentemente em cada cidade e em cada conjuntura: saturação de automóveis, pouco apreço pelos transportes coletivos, carências de infraestrutura e manutenção viária, degradação ambiental. As deseconomias urbanas constituem entraves tanto para a produção, o comercio e os serviços quanto para a mobilidade cotidiana. Em todos estes círculos viciosos, apenas mencionados aqui, o que poderia ser uma regulação virtuosa a ser realizada pelos poderes públicos? Regulação urbana e direito ao transporte As formas de regulação da cidade e dos serviços urbanos evoluem com a história do capitalismo urbano, de acordo com seus processos de desenvolvimento no centro e na periferia. Certamente, é possível evocar parâmetros gerais de uma evolução do mercado de infraestruturas e serviços urbanos, de um âmbito local ao global, assim como a progressiva incidência das companhias internacionais na prestação de serviços públicos. Mas a história local é duplamente condicionada pela evolução dos processos societários e das lógicas setoriais. Por um lado, a configuração dos serviços públicos locais, sob a forma de redes técnicas ou organizacionais, resulta de processos ligados às políticas econômicas e urbanas. Por outro, as lógicas setoriais predominam nos diversos ramos de cada tipo de serviço. Se estas duas determinações tendem a ser atenuadas nos países do centro, elas continuam importantes na periferia, onde os mercados de serviços são objeto de investimentos de capitais estrangeiros ou nacionais nas diferentes categorias de países (especialmente nos chamados “emergentes”) e nos tipos de serviço (telecomunicações, energia, água, saneamento, lixo, etc.). O transporte urbano escapa parcialmente à generalização e às principais evoluções dos modos de regulação urbana. No capitalismo central em que os transportes coletivos foram, durante muito tempo, explorados em sua

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maioria pelo setor público, os grupos econômicos multi-setoriais de serviços tendem a integrá-lo em dispositivos complexos que combinam meio ambiente urbano, obras públicas, telecomunicações, etc. Nos países da periferia, as empresas operadoras ou de engenharia, os produtores de equipamentos e outros setores vinculados ao transporte, direta ou indiretamente ligados a estes grupos, estão fortemente presentes na exploração e nos projetos dos sistemas de transporte de massa. Mas face às últimas décadas de endividamento externo destes países, a realização de projetos de transporte de massa se choca com os limites de financiamento e as soluções rodoviárias acabam por ficar em primeiro plano. Assim os produtores de automóveis exploram ativamente os mercados em expansão dos países emergentes, principalmente depois da abertura das economias nacionais. Entre estes dois extremos, e diferentemente dos países do centro em que se encontra em contínua regressão, o transporte por ônibus ou microônibus continua tendo uma grande importância nos países da periferia. Ele constitui a cena principal da regulação dos transportes, além da infraestrutura ferroviária e apesar dos financiamentos e intervenções urbanísticas que se voltam para os equipamentos viários necessários ao automóvel. No gerenciamento dos sistemas de transportes rodoviários urbanos, e no interior do jogo entre atores públicos e privados, a organização institucional dos prestadores de serviços públicos se torna essencial. O caso brasileiro é exemplar tanto quanto atípico, já que o país se afastou, e isso já há bastante tempo, do transporte urbano semicoletivo “à la América Latina”132, que se opõe frontalmente à concentração capitalista do setor de ônibus. O duplo jogo da iniciativa privada e da regulação pública fez emergir empresas de ônibus com caráter capitalista, com tendência ao monopólio. Pequenos transportadores que começaram suas carreiras há cinqüenta anos como exploradores artesanais se transformaram em capitães de grupos de envergadura nacional. A análise desta lógica particular foi objeto de um importante trabalho de pesquisa recentemente publicado133. Retomando alguns achados desta investigação e os resultados de uma comparação entre os modos brasileiro e francês de gestão dos transportes urbanos, ambos excepcionalmente

132 Figueroa, Oscar & Etienne Henry (1987). Les enjeux des transports dans les villes latino-américaines. Arcueil. Inrets, Synthèse n. 6, 93 pp. Henry, Etienne (1994). “Le défi des transports urbains : contrastes latino-américains et brésiliens”. Problémes d´Amérique latine, “La ville et l´Amérique latine”. Paris: Documentation Française n. 14 07-11/94: 217-234 133 Brasileiro, Anísio; Etienne Henry & Turma (1999). Viação Ilimitada, ônibus das cidades brasileiras. São Paulo. Cultura, 640 pp.

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marcados por uma administração municipal com delegação da operação ao setor privado134, nosso propósito se centra aqui na forte concentração capitalista do setor e em suas relações com os sucessivos modos de regulação. Esta é também uma maneira de constatar as especificidades dos processos capitalistas de produção de serviços nas cidades. Foi possível observar recentemente uma lógica similar de concentração na Argentina e na Colômbia e pode-se constatar sua importância em outros países da América Latina. A partir deste exemplo, chega-se a interrogações pertinentes sobre os modos e capacidades de regulação local. O leitmotiv – transporte: um dever do Estado, um direito do cidadão – que ainda se pode ler nos ônibus de São Paulo, remonta ao tempo em que se almejava regular a cidade e seus transportes em função da produção fordista e do bem estar social. Direito e dever eram duas categorias de âmbito mais sociológico do que jurídico. Mas a expressão ocultava um lado essencial do problema – os interesses envolvidos pelos benefícios industriais ou pela exploração dos sistemas. Este ocultamento torna-se importante na nova situação criada pela globalização da economia, pelo deslocamento das cadeias produtivas, pela crescente importância das atividades terciárias, pela reforma do Estado, pela mercantilização em grande escala dos serviços urbanos, pela flexibilização do emprego e crescimento do desemprego e da exclusão. O direito ao transporte, reafirmado, tem então um outro conteúdo ideológico e político. Estes interesses reaparecem em primeiro plano no contexto aberto pela privatização e sua arbitragem está no centro das atribuições dos poderes locais, federados ou não. Parodiando esta proclamação reiterada, poder-se-ia dizer que o transporte é um direito do Estado e um dever dos cidadãos. No âmbito central, o Estado Nacional se reserva o direito de não mais intervir nos transportes urbanos, refugiando-se na Constituição de 1988, isto é, o direito de ser bastante parcimonioso diante das imensas necessidades de investimento público, de transferir para os Estados as linhas urbanas de trem que escaparam da privatização do setor ferroviário nacional, de adiar a instalação de uma agência reguladora dos transportes e de abrir as portas à importação e à produção de todos os tipos de veículos de transporte semicoletivo. Os Estados têm o direito de priorizar seus investimentos na infraestrutura viária interna, de deixar os transportes clandestinos se desenvolverem ao lado das empresas intermunicipais regulamentadas e de não conferir a importância

134 Henry, Etienne (2000). Confrontation des modes brésilien et français de gestion des transports urbains. Semaine Brasil 2000, Séminaire Ville et citoyenneté. Paris: Ministère de la recherche (inédito). 35 pp.

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necessária ao desenvolvimento dos sistemas metropolitanos de transporte de massa. E as municipalidades têm o direito de articular seus magros recursos fiscais com as proposições que provêm da iniciativa privada internacional ou nacional, capitalista ou artesanal e de enfrentar os numerosos conflitos que agitam a cena dos transportes. Mais do que liberdade, o deslocamento cotidiano entre os centros de emprego que se espalham na metrópole e os espaços residenciais cada vez mais enclausurados é um dever fastidioso para quem tenta escapar do desemprego crescente ou se inserir nas atividades dominantes de uma economia urbana em profunda mutação. O processo histórico de concentração regulada das empresas de ônibus A formação do setor privado de empresas de ônibus urbanos135 inscreve-se no contexto do desenvolvimento capitalista e do crescimento das grandes aglomerações brasileiras pelo afluxo de populações imigrantes e, posteriormente, dos períodos de urbanização massiva que resultou de importantes correntes migratórias internas em direção às regiões e cidades mais dinâmicas. Nas suas origens e desde o começo do século XX, muitos dos pequenos transportadores cresceram à margem dos sistemas convencionais assentados nas companhias de bondes e nas empresas municipais. À semelhança da maior parte das cidades latino-americanas, a reprodução simples desta atividade artesanal apoiava-se na exploração de demandas insatisfeitas na periferia. Para chegar a atuar progressivamente no centro das cidades, foi preciso um mínimo de regulação da atividade destes pequenos artesãos, sujeitos a mudanças cíclicas de rentabilidade. Os poderes municipais outorgaram permissão de exploração precária por linha e disto resultou uma organização corporativa da exploração bem como sistemas baseados na multi-propriedade das frotas heterogêneas de veículos.

Do artesanato ao empresariado

A passagem para a pequena empresa supõe a posse de vários veículos, permitida no Brasil e interditada em outros paises pelas relações corporativas entre transportadores e autoridades públicas. Superando o artesanato, estas empresas se capitalizaram, interiorizaram suas relações salariais assim como um mínimo de atividades de manutenção e investimento. O forte

135 Henry, Etienne (1999). Os funis, um esquema analítico. Da produção simples do serviço à empresa capitalista. Viação ilimitada..., op. cit.: 373-400.

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crescimento da demanda, a elaboração de regulamentos municipais e a capitalização interna marcaram a passagem para a reprodução ampliada do setor, ao mesmo tempo em que os exploradores dos serviços de ônibus se configuravam como um novo ator dos sistemas de transporte urbanos. Depois dos anos 1930, estas empresas cresceram através da recondução ou transferência da permissão de exploração e aquisição de frotas de veículos e pela extensão das redes urbanas. A acumulação capitalista no setor traduziu-se na formação de empresas que atingiram uma centena de ônibus. Foi, então, necessário inovar os modos de gerenciamento interno que permitissem o crescimento da eficácia na prestação do serviço público bem como a rentabilidade financeira: estabilização de relações salariais, equipamentos de manutenção, controle da exploração e compatibilidade. Desde então, os ônibus, que substituíram os antigos bondes, suplantaram os microônibus, os empresários deslocaram os artesões e se transformaram na principal modalidade dos sistemas de transporte. A partir da década de 50, a concentração do capital passaria a prolongar este processo de evolução pela criação de economias de escala e algumas viações chegavam a atingir 800 ônibus136. Assim, ver-se-ia o tamanho médio das empresas passar de 40 ônibus nos anos 1960 para 85 em 1984 e 120 em 1992. A rentabilidade financeira do investimento feito por pequenos proprietários que se transformaram em médios proprietários e grandes empresários, acelerou seu reagrupamento para evitar riscos vinculados ao rendimento diferencial por linhas e zonas de exploração. As lógicas patrimonialistas guiaram a constituição das grandes sociedades, com as especificidades e contratempos das propriedades familiares. As legislações municipais em vigor exigiam tamanhos mínimos das frotas de veículos, impondo critérios técnicos para a outorga das permissões de exploração do serviço. As regulações aceleraram esta mutação de maneira mais ou menos acentuada de acordo com os governos locais. Renovação das frotas, instalação de empresas de manutenção, modernização dos métodos de gerenciamento, introdução da informática, diversificação dos tipos de serviços (transportes municipais, metropolitanos, fretados) marcaram a transformação das empresas capitalistas no principal ator dos sistemas de transporte urbano. Pôde-se então observar o exercício de tendências oligopolistas sobre o mercado, já que algumas metrópoles acabaram sendo exploradas essencialmente por dois ou três grupos empresariais ou algumas famílias de empresas que acabaram por se fazer presentes em inúmeras

136 Henry, Etienne (1999) “Onibucad, cadastramento tipológico e dinâmica de escala da viação”. Viação ilimitada..., op. cit.: 233-282.

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cidades. Os modos de regulação pública ratificaram a concentração capitalista do setor. Nas grandes metrópoles, o acesso ao mercado deste serviço público estava condicionado por um tamanho mínimo das frotas das empresas (que variavam entre 50 e 120 veículos). Os transportadores tradicionais eram, assim, eliminados do mercado e induzia-se a fusão dos capitais individuais. Desta forma, as parcelas do mercado anteriormente distribuídas pela lógica prebendária das permissões de exploração tornar-se-iam, pelo jogo das concessões, parte do capital das empresas que superavam seu caráter familiar. O conjunto de regulamentos e encargos exigiria a modernização das empresas (tamanho e idade dos veículos, métodos de gerenciamento) assim como um processo de seleção entre as empresas mais ou menos eficientes. A criação de corredores reservados, de faixas exclusivas para os ônibus, o incentivo à pesquisa tecnológica, o apoio financeiro para a compra de veículos, diferentes modos de remuneração que implicavam em uma cobertura parcial dos déficits de exploração e outras medidas tomadas pelo poder público certamente favoreceram a capitalização e a modernização das empresas exploradoras do serviço público. A importância do setor privado se explicitava na capacidade de investimento, face ao crescimento exponencial dos mercados resultante da urbanização massiva e da formação das metrópoles. Estimuladas pelos produtores de ônibus e sendo beneficiadas por créditos subsidiados pelo Estado, as viações continuaram a se concentrar pela absorção de exploradores menos sólidos. A concorrência interna ao setor somada às exigências regulamentares dos poderes públicos impulsionaram a modernização operacional na medida em que as frotas cresciam. Em seguida, as viações diversificaram suas razões sociais a fim de incorporar as parcelas do mercado tornadas disponíveis pelos sistemas de concessão. Atrás da diversidade das razões sociais e respondendo às normas regulamentares, as lógicas patrimoniais e os acordos entre prestadores de serviço levavam a uma organização oligopolista da oferta. Apesar de heterogêneo, este universo está profundamente marcado por um processo histórico de forte concentração capitalista. A partir de uma pesquisa realizada diretamente no setor, pudemos discernir oito tipos de empresas: individuais, artesanais, familiares, tradicionais, evolutivas, modernizantes, hegemonizantes e monopolizantes. Os quatro primeiros tipos, compostos por empresas que possuíam até 75 ônibus, representam 45% deste universo, mas apenas 13% da frota. Os dois tipos seguintes, em transição para novas formas de organização e de produtividade, correspondem a um terço das empresas e da frota com empresas que possuem até 200 ônibus. A partir

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deste limiar, um quinto das empresas absorvem a metade a frota. Os grupos se constituem sob iniciativa das viações hegemonizantes e monopolizantes, mas também estão presentes nas categorias inferiores. A base inicial dos grupos líderes repousa sobre 3% das empresas que concentram um quinto da frota; estas empresas se desenvolvem pela posse de ações, pelo investimento em veículos e garagens e modernização da gestão dentro das outras empresas.

Da empresa aos grupos Se, em 1998 algo como 2.800 empresas dividiam uma frota nacional de transporte municipal, intermunicipal e de fretamento estimada em 143.000 veículos, menos de 300 empresas controlavam três quartos deste total, concentrados nas 12 metrópoles que ultrapassavam um milhão de habitantes, nas capitais dos Estados e nas grandes cidades secundárias. Exceção feita aos grupos, a concorrência entre as empresas de transporte urbano em um mesmo mercado se exerce apenas na ocasião da renovação das concessões outorgadas pela licitação de serviços. Os grupos nascem e se redefinem a partir de um jogo complexo entre empreendedores individuais ou associados e poderes públicos ou atores políticos locais. Eles são originalmente de natureza familiar e respondem às lógicas da partilha patrimonial e de sucessão. Atuam, no início, em bases locais e se definiram primeiramente em um mercado metropolitano. Foi possível observar que três grupos chegaram a dominar o mercado de São Paulo, dois grupos o mercado do Rio de Janeiro e um no mercado de Curitiba, sendo que em Brasília duas empresas dividiram entre si a parcela essencial do mercado. Esta concentração oligopolista com tendência monopolista não intervém da mesma maneira nas diferentes metrópoles: Belo Horizonte137 e Salvador, por exemplo, conservaram uma oferta mais diversificada. Assim também as condições de rentabilidade variam no tempo e de uma cidade à outra de acordo com o ciclo econômico, sendo freqüentes as operações de compra e de venda das empresas. Não sendo permitido legalmente uma mesma empresa intervir numa mesma cidade em diversos tipos de serviço (municipal, intermunicipal, ou de fretamento), os empresários mais

137 Cançado, Vera; Marcus Vinícius Cruz, Moema Siqueira & Fernanda Watanabe (1999). Capacidade gerencial das empresas de ônibus frente ao órgão gestor em Belo Horizonte. Viação ilimitada..., op. cit.: 283-314.

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poderosos diversificaram suas sociedades em um mesmo espaço local e alguns grupos chegaram a desenvolver uma estratégia de implantação nacional. Em várias cidades brasileiras, pode-se observar cinco grupos de maior porte operarem, grupos estes cuja configuração evolutiva é mais ou menos oficialmente explícita. Cerca de 150 viações urbanas lhes são diretamente vinculadas e pelo menos o mesmo número estão diretamente subordinadas a eles. A título de exemplo, o mais importante destes grupos conseguiu reunir diretamente 45 empresas e uma frota de 15.000 ônibus. A geometria dos grupos é variável, de acordo com as condições locais de regulação e as condições diferenciais dos mercados, mas também segundo as histórias familiares de transmissão patrimonial e de associação com outros exploradores. Uma dezena de outros grupos é de porte regional, especialmente no Nordeste e Minas Gerais, onde os capitais são investidos em diversas empresas de transporte municipal e interurbano. Enfim, 50 grupos locais são de tamanho menor. Os acordos e conflitos entre estes grupos, de arquiteturas e atividades diferenciadas, são travados no terreno das relações entre as autoridades reguladoras e os agentes econômicos ligados ao setor.

Do mercado de transporte à economia local

A formação dos grupos de transporte urbano se explica pela sua

concentração vertical. Isto é particularmente evidente no Rio de Janeiro. Os

grandes grupos adquirem concessões junto aos fabricantes de ônibus,

ocupando assim uma posição de intermediários para a compra de veículos.

Eles organizam então a revenda dos veículos de segunda mão, atingidos pelo

limite da idade regulamentar ou para economizar nas atividades de

manutenção, incrementando os mercados das cidades secundárias. Obtêm

licenças exclusivas de manutenção; adquirem ações nas empresas de

carroceria e de produção de peças avulsas; compram postos de combustíveis;

e entram em relação direta com os organismos públicos e privados de crédito

e constituem bancos que atuam neste setor.

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Os grandes empresários ainda desenvolvem modelos de exploração

implantados nas viações que estão direta ou indiretamente vinculadas ao

grupo, de modo que o recurso às atividades à montante que eles controlam se

torna obrigatório e a influência dos grupos ultrapassa largamente o quadro

das empresas que os constituem. A concentração vertical das atividades

ligadas à exploração do serviço de ônibus lhes permite, assim, controlar as

empresas de que participam como acionários minoritários.

A diversificação da atividade dos grupos se produz em primeiro lugar no

setor dos transportes. Alguns investem em transporte aéreo, por aquisição ou

constituição de companhias nacionais. Os mais modestos se lançam no

serviço de táxis aéreos. Outros integram os consórcios para responder às

licitações por ocasião da privatização das redes de transportes ferroviários,

urbanos ou regionais, transportes fluviais ou no interior de projetos de

transportes de capacidade intermediária. Alguns grupos se constituem pela

associação de empresas urbanas e regionais de transporte rodoviário de

passageiros e de mercadorias. Outros saem das fronteiras nacionais e

investem nos sistemas de transporte estrangeiros ainda marcados pelo

artesanato e pela reprodução simples. Estas incursões no exterior podem

estar ligadas às estratégias dos fabricantes brasileiros de ônibus ou de

empresas de engenharia.

Paralelamente, os grupos de transporte urbano diversificam horizontalmente

suas atividades em hotelaria, na agroindústria, na criação de gado, na

propriedade de terras ou em telecomunicações. Esta diversificação de

investimentos tem por objetivo sobretudo proteger os grupos contra os riscos

comerciais na exploração das empresas de ônibus. Pode-se observar, por

outro lado, grupos de construção civil, de marketing ou de limpeza urbana

entrar no setor de transportes urbanos, em que os investimentos têm taxas de

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rendimento mais rápidas. O porte dos grupos de transporte urbano não pode

ser comparado com o dos grandes grupos industriais e comerciais brasileiros,

nem com o das grandes empresas de obras públicas ou de serviços. Mas, por

outro lado, esses grupos permaneceram ao largo das reestruturações em

curso e das estratégias de aquisição pelas companhias estrangeiras.

A influência dos grupos é particularmente grande no sindicalismo patronal,

legalmente constituído pela Confederação Nacional dos Transportes – CNT.

Reagrupados em federações locais e regionais, as empresas privadas de

transporte urbano formam, desde 1988, uma associação nacional – NTU,

filiada à CNT – que atua como lobby.

O modelo brasileiro e suas regulações nacionais e locais Desde o início, os transportes ocuparam um lugar importante no capitalismo brasileiro. Primeiro, através dos investimentos estrangeiros na montagem de uma rede ferroviária voltada para a exportação de matérias primas138. Em seguida os capitais estrangeiros moldaram a configuração dos sistemas urbanos com a instalação, no começo do século XX, de cerca de quarenta redes de bondes. O monopólio dos transportes configurava, então, para os capitais a ocasião de assumir o controle dos serviços de eletricidade e, conforme as oportunidades, de telefonia, de água ou de saneamento. Muitas vezes articulados com atividades e especulação imobiliária, tornaram-se, assim, importantes vetores de urbanização. O poder de regulação das autoridades públicas era mínimo, já que as concessões deixavam um campo de intervenção mais livre para os capitais que, definitivamente, conformaram as estruturas urbanas. Quando, a partir de 1930, as burguesias locais modernistas decidiram retomar em mãos os negócios urbanos, os conflitos entre as companhias estrangeiras com os poderes municipais e com os usuários levaram à nacionalização das companhias de bonde. O abandono das redes também se deve ao fato de que os investidores, sobretudo de origem inglesa e

138 Brasileiro, Anísio & Etienne Henry (1999). Secretaria de Viação, fabricação e promoção do sistema de ônibus brasileiro. Viação ilimitada..., op. cit.: 47-118.

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norteamericana, tinham um interesse maior nas redes elétricas e outras atividades de serviços mais rentáveis que o transporte. Sem recursos para efetivar a renovação e a extensão das redes, as novas companhias municipais acabaram, então, por escolher o ônibus. Na segunda metade do século XX, quando todas as redes de bonde estavam desmanteladas, o papel dos transportes no desenvolvimento econômico foi redefinido, conferindo um lugar primordial aos transportes rodoviários. A estratégia ferroviária urbana se reduziu à exploração dos trens de subúrbio herdados de uma rede nacional em declínio, e à implantação dos metrôs de São Paulo e Rio de Janeiro, cujas operações tiveram início na época do endividamento externo, além de três sistemas de trens urbanos em Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre.

A substituição de importações e a influência do modelo rodoviário

A estratégia de desenvolvimento por substituição de importações, configurada no segundo governo do Presidente Getúlio Vargas (1951-1954) e claramente explicitada no Plano de Metas do Governo Juscelino Kubitschek (1955-1958), priorizou a construção da infraestrutura rodoviária nacional, acompanhando a promoção de uma nova indústria automobilística liderada por empresas estrangeiras que se implantavam sob o controle do Estado. As soluções rodoviárias de transporte urbano foram então priorizadas. O impacto desta escolha se expressou nos investimentos em infraestrutura nacional, nos programas de administração das cidades baseados em eixos rodoviários e no declínio progressivo das infraestruturas ferroviárias. Também se traduziu no apoio ao desenvolvimento das empresas de ônibus e aos investimentos privados que se concentraram no setor. As montadoras de automóveis implantadas no Brasil nos anos sessenta, de acordo com as normas impostas pelo modelo de reinvestimento nacional (Ford, General Motors, Volkswagen, Mercedes-Benz e, posteriormente, a Fiat) escolheram o país para nele constituir uma base de produção nacional, cujo raio de ação se estendia sobre o conjunto da América Latina e mesmo além do continente. Se o modelo rodoviário visava principalmente o mercado de automóveis em expansão, ele também dizia respeito aos transportes coletivos (durante muito tempo atribuição quase exclusiva da Mercedes Benz do Brasil que produziu 87% dos ônibus até 1990, diversificando-se em seguida com a Volvo e a

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Volkswagen). A importância inegável da indústria brasileira de produção de ônibus (especialmente com os dois principais produtores de carroceria – Caio e Marcopolo) explica em parte porque os exploradores puderam desenvolver uma organização capitalista dos transportes urbanos. Os pequenos empreendedores foram impulsionados por esta lógica industrial. Eles precisavam crescer e modernizar suas frotas. Assim, a empresa brasileira de ônibus se consolidou como um subproduto da indústria automobilística, o que incluiu também a exportação de veículos brasileiros para a América do Sul, do Norte, para a África, etc. A promoção da industrialização nacional conduziu à transformação das capitais, nos Estados da federação, em aglomerações que deveriam constituir as bases de um novo modelo de acumulação. O rearranjo do território implicou no deslocamento da capital nacional do Rio de Janeiro para Brasília, cujo projeto partia de grandes eixos viários em torno dos quais se organizava a divisão funcional do espaço139. Contemplando seu estatuto de Distrito Federal, importantes recursos financeiros nacionais foram destinados a esta nova cidade modernista, ainda que nada fosse reservado ao transporte coletivo. Apesar das quadras planejadas com atividades dentro das unidades de vizinhança e dotadas de espaços para pedestres, o deslocamento na zona central (Plano Piloto) foi concebido exclusivamente em torno do automóvel, com largas avenidas, cruzamentos e vias em desnível. Dispostas em territórios muito distantes do centro, as não planejadas cidades satélite que rapidamente cercaram a capital foram ligadas ao centro por vias nas quais se desenvolveu uma importante oferta de ônibus. Levado ao seu extremo, este quadro de transportes é representativo de certa tendência dualista que acabou por se impor nas grandes cidades brasileiras: o automóvel nas áreas centrais para as classes médias e superiores e o ônibus para os habitantes das zonas periféricas para onde se dirigem as intensas correntes migratórias. As empresas de transporte cresceram rapidamente absorvendo a demanda de transporte dos trabalhadores, neste caso sobretudo da construção civil e de serviços, inteiramente dependentes do centro. Progressivamente, constituiu-se em Brasília uma poderosa oferta privada de transporte que serviria às cidades satélites, cujas viações pioneiras em seguida se concentraram em um duopólio que se irradiaria para o resto do país. Assim, a influência de Brasília sobre a organização brasileira do transporte urbano revelava sua importância no processo de passagem da empresa capitalista para o grupo monopolista.

139 Affonso Nazareno; Maurício Muniz & Etienne Henry (1999). Cidade modernista e duopólio privado no transporte coletivo em Brasília. Viação ilimitada..., op. cit.: 491-534.

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Este período de reestruturação do território nacional em torno da industrialização brasileira foi particularmente favorável à iniciativa privada no setor de transportes urbanos. Foi ela que assumiu a maior parcela da demanda por transportes coletivos, majoritários em um país com um, então, pequeno índice de motorização individual. Assistia-se a uma concentração das empresas favorecida, ainda, pela outorga de créditos públicos para o investimento em veículos e garagens e instalações fixas, investimento este que o Estado não estava em condições de realizar diretamente. A chamada “industrialização por substituição de importações no capitalismo dependente” tinha como base um tipo de regulação que associava estreitamente investimentos estrangeiros e nacionais na produção dos meios de transporte e na exploração dos serviços municipais, enquanto o Estado concentrava suas intervenções no desenvolvimento da infraestrutura rodoviária. Investimento público limitado e concentrado nos capitais nacionais, soberania municipal, prioridade para os investimentos rodoviários, fraca intervenção reguladora e financeira e delegação da parte essencial do serviço de transporte às empresas privadas em rápido processo de concentração no âmbito dos mercados locais e nacionais: não usuais em outros lugares, estas são as características que marcaram a especificidade desta experiência (com inúmeras variações locais), especialmente no que tange à organização dos transportes coletivos através da ação combinada que se estabeleceu entre poderes locais e empresas privadas. A partir dos anos sessenta, estas características conduziram a situações de crise, que se tentou contornar nos períodos seguintes. Esta crise derivou de um grave déficit da oferta face ao importante crescimento da demanda resultante das migrações populacionais em direção aos bolsões de emprego, em particular no sudeste do país.

A regulação estatal e o modelo brasileiro de empresa

O regime militar (1964-1983), ao definir como seu objetivo, em seu primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento, a industrialização por substituição de importações, se beneficiava de uma alta taxa de crescimento econômico, o que permitiu reconstruir a base financeira, institucional e social que acompanhava a concentração do capital, especialmente na construção civil e nos serviços. O “milagre brasileiro” (1968-74) estreitamente vinculado à produção automobilística, sem grande consideração pela sua incidência nas

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cidades, foi interrompido pelo choque do petróleo. Tentou-se remendá-lo com o Programa Pró-Álcool, como substituto da gasolina – cuja eficácia foi questionada assim como seus efeitos perversos sobre o desenvolvimento das regiões que foram transformadas em regiões produtoras de cana de açúcar... e para os automóveis que circulavam sobretudo nos tecidos urbanos. A partir desta ótica, formulou-se um Plano Nacional Rodoviário que se orientava para o desenvolvimento das vias de comunicação no âmbito nacional, financiado por um imposto sobre os combustíveis, em parte destinado aos melhoramentos viários das cidades, mais do que aos transportes urbanos. A centralização dos poderes, implícita nos planos e organismos setoriais, canalizou os investimentos privados para a construção civil e para os serviços (BNH para a habitação, PLANASA para a água e o saneamento, Eletrobrás para a energia elétrica). Na vontade de construção capitalista dirigida pelo Estado autoritário, esta nova política urbana, reagrupando localmente a intervenção destes organismos federais, conferia pouca importância aos transportes. Estes foram incluídos no segundo Plano Nacional de Desenvolvimento, por um Sistema Nacional de Transportes Urbanos (1975-90) e por um Fundo Nacional de Transportes Urbanos, mantido por quatro grandes programas sucessivos do Banco Mundial. O Ministério dos Transportes criou organismos especializados para o planejamento, a regulamentação e o investimento público: o GEIPOT para o conjunto dos transportes e para o planejamento, a Empresa Brasileira dos Transportes Urbanos – EBTU – para os grandes projetos de inovação tecnológica. Para além deste parcelamento setorial, os instrumentos nacionais de política urbana e de transportes estavam institucionalmente separados. Face ao crescimento exponencial das necessidades, a intervenção estatal se centrava mais na regulação dos sistemas locais de transporte e na criação ou a renovação rodoviária, do que sobre a responsabilidade direta dos transportes urbanos que repousava na iniciativa das viações. A constituição de bolsões de emprego e a dotação de infraestrutura necessária para o desenvolvimento do capitalismo nas cidades, tal como o desejo de controle nos moldes de uma política de “segurança nacional”, conduziu à estruturação das metrópoles no entorno dos mais importantes centros urbanos. Além do Distrito Federal, eram assim instauradas nove regiões metropolitanas cujos municípios conurbados ultrapassavam um milhão de habitantes (entre elas São Paulo e Rio de Janeiro que atingiam o patamar de dez milhões de habitantes), reunindo juntas mais de 40% da população nacional. Ultrapassando as competências das municipalidades e dos Estados, o Governo Federal se munia com os meios de intervenção nas metrópoles assim constituídas, especialmente em moradias, água e esgoto

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(Banco Nacional de Habitação – BNH) e nos serviços urbanos. A ação da EBTU assim como os recursos resultantes dos empréstimos exteriores dirigiram-se para as regiões metropolitanas: projetos de sistemas de transporte de massa, planejamento das redes, concepção dos corredores reservados e dos “trens de ônibus”, programa de tróleibus, etc. Os trens de subúrbio foram separados da rede ferroviária nacional pela criação da CBTU – Companhia Brasileira de Transportes Urbanos, cujas redes explorava diretamente. Paralelamente, o Banco de Desenvolvimento Econômico e Social criou um fundo nacional de apoio ao investimento em veículos, garagens e instalações fixas para as viações privadas de ônibus (e sua filial FINAME para a aquisição de veículos e instalações permanentes). Enfim, a formação de técnicos e de conhecimentos especializados pelo GEIPOT permitia dotar os poderes locais de instrumentos técnicos e legais para empreender um planejamento consistente dos transportes, regulamentando sua exploração, controlando sua gestão financeira e de exploração do serviço. O apoio federal a estas experiências locais ou modais deveria reforçar o poder das autoridades locais confrontadas com uma demanda crescente, além da simples operação das empresas públicas e da contratação de viações privadas. Este conjunto de organismos dispersos e medidas disparatadas e diversamente aplicadas nas Regiões Metropolitanas e nas cidades brasileiras representa a única política sistemática de transporte urbano aplicada no Brasil, orientada para a demanda crescente de transportes coletivos que provinha dos novos contingentes populacionais urbanizados. Baseada essencialmente no ônibus, ela favoreceu grandemente as viações, cujo processo de concentração e modernização se acelerou durante o regime militar. Entretanto, essa política jamais incluiu subvenções diretas aos usuários, como também não se libertou de seu condicionamento externo – o desenvolvimento da indústria automobilística, peça chave nos sucessivos planos de desenvolvimento nacional. O Estado central intervinha no setor de transportes coletivos pela regulamentação, engenharia, conhecimento especializado e inovação. Mas suas intervenções se centravam essencialmente nas empresas exploradoras do serviço, majoritariamente privadas, cujo poder acabou por se reforçar. Este regime foi particularmente favorável à acumulação no setor, que era uma das bases da estruturação metropolitana necessária à exploração capitalista, quando a regulação se centrava nas relações entre produção e reprodução. Este esforço de elaboração de uma política nacional de transportes urbanos

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acabou por se chocar com limites críticos, evidenciados pelas ações de protesto contra a degradação das condições de transporte urbano e pelos movimentos sociais dos anos 1970-80. As revoltas dos "quebra-quebra", com numerosas e históricas ações coletivas contra trens e ônibus marcariam de forma duradoura o conflito e a violência nos transportes coletivos. A reivindicação do direito ao transporte se remetia à questão da intervenção do poder público, neste caso do Estado central, cuja fragilidade foi amplamente denunciada. Em particular, a irregularidade e má qualidade dos serviços de trens urbanos, com evidentes impactos negativos sobre o acesso ao trabalho e ao emprego. Questionava-se também o financiamento da exploração das redes de transporte urbano assim como as tarifas. Serviço público e pressão social trouxeram, assim, os transportes coletivos para a cena política. A política de transportes entrou em contradição com o esgotamento do modelo de desenvolvimento substitutivo das importações e com o peso considerável do endividamento exterior, com o forte impulso inflacionário e com a estagnação do crescimento econômico. Deste modo, os já insuficientes recursos outorgados pelo Estado central aos transportes urbanos diminuíram drasticamente. Por certo, a resposta a tais movimentos sociais precisava de pesados investimentos, que vieram parcialmente apenas nas décadas seguintes. Mas a pressão social por um transporte eficaz e acessível à população trabalhadora ficou como um fantasma nas relações entre Estado e sociedade civil, mesmo em conjunturas de menor mobilização. É de salientar que, para além dos próprios objetivos setoriais, essas pressões expressam, num terreno propício à coletivização das práticas de consumo, uma série de reivindicações latentes ligadas também ao trabalho, às condições de vida, à democracia e à cidadania. Nesse sentido, as frágeis ou inoportunas respostas do Estado tendem a aumentar a tensão dessas aspirações, que logo se refletirão nas relações dos poderes municipais com a população, e não apenas nas conjunturas eleitorais onde o transporte sempre aparece como item central das campanhas e opera como potente diferenciador entre candidatos.

Crise e regulação municipal Na “década perdida” dos anos oitenta, a crise dos transportes urbanos estava inscrita no quadro da crise da economia brasileira, marcada pela inflação galopante e pela recessão e queda dos investimentos nacionais e estrangeiros. É dentro deste contexto que o retorno à democracia (1985) e a

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nova Constituição (1988) consagraram a soberania recuperada pelas prefeituras sobre os transportes e serviços urbanos. As novas autoridades puderam então exercer operações de controle sobre as empresas, em alguns casos através da expropriação temporária ou definitiva de algumas delas ou então através da criação das empresas municipais. Neste contexto, as empresas de transporte evitavam investir em novos veículos, apesar do acréscimo da demanda induzido pelo crescimento demográfico. Entretanto, depois de um período de confronto entre as municipalidades e as empresas exploradoras do serviço, encontrou-se um ponto de convergência em torno de uma concepção comum de monopólio de serviço público nos termos da “municipalização dos transportes”. Com fórmulas variadas nas diferentes cidades, diversas medidas permitiram avançar na direção deste objetivo consensual de consolidação da administração municipal dos transportes. Em 1986, uma lei federal estabeleceu um mecanismo de financiamento dos deslocamentos dos trabalhadores pelos empregadores: o vale-transporte. Introduzia-se assim um terceiro ator na parceria entre autoridades organizadoras e empresas exploradoras: os empregadores, que passaram a assumir parte dos custos de transportes de seus empregados. Note-se que esta medida, pertinente apenas às empresas com mais de dez assalariados, deixava de fora do campo regulatório a maior parte da população ativa. Por outro lado, a perenização desta fórmula produziu efeitos perversos, como a criação de uma quase moeda altamente rentável em um período de inflação muito alta, que chegava a taxas de 40% ao mês, e também a garantia de uma receita partilhada entre as empresas de ônibus independentemente de sua eficácia, ou ainda a confirmação de uma dinâmica mais especulativa que produtiva no setor. Depois, a revisão da estabilidade fiscal das municipalidades proporcionou uma ocasião propícia para buscar meios adicionais necessários para financiar a infraestrutura e cobrir os déficits de exploração. Um jogo de financiamento cruzado, pelo estabelecimento das Caixas de compensação entre as empresas de acordo com as linhas mais ou menos rentáveis que estas exploravam, também permitiu reencontrar, no seu conjunto, algum equilíbrio financeiro local. As municipalidades se muniram de órgões gestores dos transportes, distanciando-se progressivamente de sua exploração direta e as companhias públicas de ônibus tenderam a desaparecer quase completamente do panorama brasileiro. Municipalidades de tamanho respeitável facilitaram a organização dos mercados locais de transporte por ônibus, cuja exploração privada era outorgada pelos poderes locais na base de “permissões/concessões

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provisórias” constantemente renovadas. Quanto aos Estados, estes priorizaram a construção de vias interurbanas, tanto em relação às aglomerações quanto em relação às estradas regionais entre pólos de atividades econômicas. Assim, aproximadamente 700 municipalidades, com perímetros bastante extensos, passaram a dispor ao menos de uma viação urbana, irrigando também o meio rural nos casos menos urbanizados. Os outros núcleos urbanos são servidos por empresas interurbanas, sob a administração dos Estados da Federação, ou pelos serviços pouco regulamentados de transporte de pessoal. Na maior parte dos casos, estas municipalidades se consagram essencialmente à construção, renovação e manutenção das vias, a partir das receitas municipais ou de subvenções dos Estados. Perto de 150 municipalidades ultrapassam os 300.000 habitantes e concentram a parte essencial do mercado dos transportes coletivos. Quanto às empresas públicas diretamente exploradas pela prefeitura ou pelas administrações estaduais de competência metropolitana, foram mantidas apenas em algumas cidades (a Carris de Porto Alegre comparece como exceção, continuando a explorar uma parte da rede municipal, reorganizada de modo a acelerar a concentração das empresas privadas140) sem que elas tenham o monopólio de exploração. Na maioria das vezes, os prefeitos delegaram o serviço de transporte às viações concessionadas. Porém, limitado em um primeiro momento à regulação das tarifas, o poder das municipalidades se estendeu ao controle financeiro da exploração, à administração pública, à negociação da pauta de encargos e depois ao planejamento da rede. De acordo com o tamanho das cidades, o número de concessões pode beneficiar entre dez e cinqüenta viações. Suas receitas são geridas como “receita pública” pelo poder municipal ou pelos sindicatos das empresas que exploram o serviço. A receita é centralizada e depois redistribuída entre os operadores pelas Caixas de compensação. A organização municipal brasileira, com o poder de permitir a concorrência entre um pequeno número de empresas exploradoras, não chegou jamais a estabelecer um critério que restringisse um perímetro municipal a uma só empresa. Assim, redes e viações não coincidem, como acontece em outros contextos. Esta característica define o espaço de negociação entre um ente regulador único (se restrito à área municipal) e vários operadores, individuais ou organizados em oligopólio no mercado. Entre as administrações perenes e bem sucedidas, destaca-se a experiência

140 Costa, Beatriz; Luis Antonio Lindau, Christine Nodari, Luis Senna & Ivanice Veiga (1999). Ônibus e lotação, uma experiência de convívio regulamentado em Porto Alegre. Viação ilimitada..., op. cit.: 337-370.

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sempre muito citada, da cidade de Curitiba. Neste caso, o governo municipal construiu, a partir dos anos sessenta, um sisema de transporte coletivo integrado em uma rede única, em sintonia com as opções de desenvolvimento econômico e urbano desta rica capital do Estado do Paraná141. Sobre um traçado tecnicamente concebido em eixos centrais, de retornos, vias circulares e de serviços alimentadores, foram implantados sucessivamente os sistemas de transporte clássicos por ônibus, articulados e bi-articulados com plataformas de transferência e, depois, pontos de embarque-desembarque tubulares elevados, o que fez com que o todo prefigurasse um sistema de transporte de massa. Durante décadas, o desenvolvimento dos transportes coletivos mereceu prioridade absoluta, assim como os deslocamentos de pedestres no centro da cidade. O planejamento dos transportes é paralelo à densidade da habitação e à estruturação dos espaços industriais e de serviços. A mecânica desta rede não se limita à sua infraestrutura e aos veículos; ela é também uma rede institucional constituída pelas diferentes fórmulas criadas para dispor de um serviço inteiramente delegado à iniciativa privada (que se concentrou em nove empresas exploradoras). Trata-se também de uma dinâmica política alimentada pelos consultores locais e pelas empresas de planejamento urbano. A experiência é, enfim, inovadora pelas sinergias desencadeadas em relação ao ambiente e aos serviços urbanos. Um âmbito supramunicipal se impôs, de forma bastante direcionada, por meio da criação das Empresas metropolitanas de transporte urbano na época da EBTU. A experiência única de aplicação contínua deste planejamento metropolitano dos transportes é a de Recife142, onde nove municipalidades delegaram suas atribuições em matéria de transportes a uma única entidade gestora, regulamentando um sistema urbano e interurbano concedido a 19 empresas (exceção feita à empresa pública da cidade sujeita a sérios problemas de rentabilidade e investimento). Enfatizou-se então a rede metropolitana, reorganizada em grandes eixos que penetram e contornam o centro: dois grupos de empresas privadas se constituíram neste mercado e estenderam seu alcance regional para outras cidades do Nordeste. No esquema do Recife, a EMTU planeja, regulamenta e gerencia uma rede

141 Brasileiro, Anísio & Etienne Henry (1999). Pratiques émergentes de gestion des transports face aux défis de l'urbanisation : Curitiba dans l'expérience brésilienne. Lille 23-25/03/99, Carrefour du Predit. Paris: Ministère de l'Équipement. 44 p. 142 Brasileiro, Anísio (1999). Sucesso metropolitano no Recife e influências estatal e empresarial no Nordeste. Viação ilimitada..., op. cit.: 87-230. Ver também a versão francesa anterior e com maior desenvolvimento: Brasileiro, Anísio (1994). Curitiba et Recife dans l’expérience brésilienne d’organisation des transports. Arcueil : TTD Inrets/Codatu n° 9. 130 p.

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metropolitana há duas décadas. Este organismo supra-municipal preserva contudo as prerrogativas de algumas municipalidades para o serviço de transporte interno ao seu território. Estas prerrogativas são permissivas em relação ao desenvolvimento dos transportes semicoletivos de “kombis” que iriam, em um momento posterior, ultrapassar seu raio de ação local e entrar em concorrência com a oferta convencional. Uma experiência metropolitana também teve lugar em Belo Horizonte, com a criação da METROBEL, o que permitiu reconstruir uma rede radioconcêntrica. Entretanto, divergências políticas conduziram à dissolução da entidade metropolitana quando da municipalização, resultando na criação da agência municipal BHTrans. O nível relativamente fraco de concentração das empresas privadas (mais de cinqüenta) explica também este fracasso. Nas outras regiões metropolitanas, a criação das EMTU enfrentou conflitos entre as municipalidades, com os Estados e entre as empresas públicas e privadas de transportes urbanos ferroviários e rodoviários. Os Estados estão também munidos de instâncias de regulação metropolitana dos transportes interurbanos a fim de regulamentar as empresas de ônibus que intervêm nos diferentes territórios municipais. Este conjunto de iniciativas permitiu a resolução parcial da crise assim como a retomada do investimento público na manutenção e no gerenciamento do tráfico, e do investimento privado na exploração dos transportes por ônibus. Paradoxalmente, a municipalização conduziu a um reforço do poder dos exploradores privados, beneficiários indiretos do vale-transporte, instrumento de constituição da fidelidade da clientela. Ela acentuou sua concentração por ocasião das novas licitações e concessões de exploração do serviço. Ela incita os empresários a atenuar os déficits através de uma modernização dos métodos de gestão e lhes permite recuperar as parcelas de mercado anteriormente exploradas pelas companhias municipais. Deste modo, a forte concentração do setor coincide com a vontade centralizadora das autoridades gestoras, fazendo com que haja convergência entre os dois parceiros. Os grupos com maior capacidade de investimento modulam suas intervenções nas empresas de acordo com as tarifas e as condições de exploração que lhes são oferecidas pelas sucessivas direções municipais. Eles trazem um savoir faire técnico e gerencial e um pessoal qualificado mutável de uma empresa ou de uma cidade para outra. Os entendimentos entre empresários e, por vezes, com os poderes públicos, podem limitar a concorrência, para além das aberturas de licitação do serviço. Os empréstimos subsidiados outorgados pela FINAME garantem os investimentos privados. Enfim, o estabelecimento de um novo código de trânsito acabou se

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constituindo, para as municipalidades, na oportunidade de recuperação de suas competências em relação à circulação urbana – assim como das receitas que provêm das contravenções.

Influências neoliberais e contradições da

regulação

Diferentemente de outras experiências nacionais e de outros serviços urbanos, as cidades brasileiras se caracterizam, portanto, pelo fato de que, depois de um longo tempo e na maioria dos casos, de acordo com fórmulas variáveis, a exploração do serviço de transporte foi delegada a empreendedores privados, sob o império de médias e grandes empresas de ônibus. Assim, sua privatização não se encontra mais na ordem do dia. Mas a existência de grupos com tendência monopolista e de cartéis oligopolistas se contrapõe às tendências neoliberais de transparência e de concorrência mercantil. As empresas municipais, muitas vezes constituídas no momento da nacionalização dos bondes e das companhias estrangeiras, jamais dispuseram dos meios necessários para seu restabelecimento financeiro, mesmo depois de terem trocado os bondes pelos ônibus. Mais do que concorrentes do setor privado, elas acabaram por se responsabilizar pelas parcelas menos rentáveis do mercado, além de serem gestoras do conjunto da oferta, concedendo sua maior parte às viações privadas. A confusão entre as tarefas de administração dos sistemas e de exploração e a manutenção de uma parte da oferta em regime de propriedade pública implicava em subvenções diretas a este setor, o que terminaria por entrar em contradição com a liberalização dos mercados de serviços urbanos. A maior parte destas empresas públicas, de produtividade discutível e com pesados déficits de exploração, foi abandonada no período de liberalismo reinante. Caracterizado por uma forte regulamentação pelas autoridades locais e pela delegação dos serviços de transporte ao setor privado, o modo brasileiro de gestão do transporte coletivo levou a uma oferta muito concentrada por parte das empresas e dos grupos mais poderosos. As medidas adotadas, de inegável dimensão social, continuaram sendo paliativos originais para enfrentar a crise de financiamento dos transportes coletivos. De um lado, os empréstimos subsidiados outorgados pela FINAME garantem os investimentos privados. De outro, o vale-transporte e as caixas de compensação nivelam as diferenças de produtividade entre viações. No

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entanto, a perenização destas fórmulas produz efeitos perversos, sobretudo quando se assiste a uma baixa da freqüência dos transportes coletivos. Este declínio está ligado principalmente à crescente tendência ao transporte motorizado individual, que age diretamente na saturação das redes viárias. A motorização individual acaba por conduzir a uma outra forma de concorrência, que opõe as viações regulamentadas ao transporte semicoletivo irregular. As municipalidades assumiram diretamente as relações com as empresas prestadoras dos serviços públicos, em primeiro lugar por permissões provisórias ou precárias e, depois, pelas concessões com duração raramente limitada e quase sempre renovada, reforçando os mecanismos do monopólio na exploração de cada linha ou setor de atividade. Por sua vez, os Estados estão municiados com instâncias de administração metropolitana dos transportes interurbanos para regulamentar as empresas de ônibus que transitam nos diversos territórios municipais, porém mantendo as mesmas características monopolistas. Nos dois casos, a delegação do serviço deveria se conformar aos novos dispositivos legais de concessão dos serviços públicos (1993). Em relação ao transporte metropolitano, foi possível aplicar medidas legais que obrigam a concorrência entre no mínimo duas linhas em toda concessão do serviço de transporte. No entanto, esta medida não pôde ser aplicada no âmbito urbano, já que as municipalidades são, em princípio, responsáveis por organizar as licitações, no sentido de estimular a concorrência de mercado e selecionar, por uma duração determinada, as empresas concessionárias, em função de critérios técnicos e econômicos. Estas circunstâncias, combinadas à resistência das autoviações de ônibus urbanos, à frágil preparação dos órgãos municipais e à existência de contratos em vigor renovados pela municipalização, fizeram com que poucas cidades aplicassem esta medida de liberalização controlada do mercado. Belo Horizonte foi a primeira a submeter o conjunto do sistema de transporte urbano à abertura de novas licitações em 1997, depois de numerosas tergiversações e árduas negociações com o sindicato local de empresas de transporte urbano. A proposta de reorganização do mercado via licitação abriu a concorrência ao melhor ofertante de lotes de veículos operacionais disponíveis para a prestação do serviço, de acordo com a pauta de atribuições estabelecida pelo órgão gestor, a BHTrans. Pretendia-se assim, pela outorga de novas concessões limitadas a dez anos, permitir a chegada de novos ofertantes ao mercado, o orgão gestor pretendia suprimir os regimes de monopólio por linha, desenvolvendo a concorrência econômica e financeira e melhorando as condições de exercício de atividade, a produtividade e a qualidade do serviço.

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Em uma análise minuciosa da organização do mercado antes e depois da licitação e da seleção de empresas explotadoras do serviço, Siqueira e Cançado143 relativizam o impacto deste processo em um mercado com tendências oligopolistas. Poucas empresas entraram ou saíram do mercado, no interior do qual foi possível observar fusões entre empresas do mesmo grupo, formação de consórcios e um ganho de importância das viações independentes em um mercado dominado por relações familiares. Constatou-se apenas um leve aumento do tamanho médio das empresas, efeito indesejado de uma maior concentração. Entretanto, esta concentração não foi incompatível com o aumento de sua eficácia econômica, o que permitiu uma baixa dos custos de exploração do conjunto do sistema.

Os impasses da regulação Transportes coletivos e semicoletivos

A empresa capitalista de ônibus se desenvolveu no Brasil sobretudo na segunda metade do século XX, na base de uma tripla articulação entre os exploradores, os produtores de veículos e os poderes públicos. Os capitais investidos no setor tiveram, na maior parte das vezes, participação de companhias estrangeiras, de administrações públicas e de transportadores artesanais. A regulação dos transportes tinha por base a consolidação das empresas privadas de ônibus, cuja modernização e concentração desembocaram em situações de monopólio e de hegemonia de grupos locais, regionais e nacionais. Esta opção era coerente com a industrialização rápida e a urbanização intensa, traços marcantes do capitalismo brasileiro que já foi impulsado por uma política “desenvolvimentista”. A articulação entre os três agentes que produziram a viação brasileira de ônibus e seus grupos, diferente dos grupos econômicos que se constituíram nos setores da produção, do comércio, dos serviços e das finanças, implicava em um acordo que visava neutralizar e eliminar o setor concorrente constituído pela pequena produção do serviço de transporte. De fato, até a última década, o transporte semicoletivo e não regulamentado tinha se tornado marginal na maior parte dos

143 Cançado, Vera & Moema Siqueira (2000). Regulação e modernização no transporte por ônibus: o caso de Belo Horizonte (no prole).

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sistemas de transporte urbano. No entanto, a restruturação econômica e seus impactos sociais e urbanos tende, hoje, a modificar este equilíbrio. A oferta de transporte semicoletivo reaparece, agora, fora do esquema dominante de regulamentação e em concorrência com o setor capitalista, o que não significa, contudo, um retorno à reprodução simples da atividade em um novo ciclo de acumulação. Esta evolução pode ser traçada de modo exemplar nas modificações sucessivas da organização dos transportes em São Paulo144, pólo dominante do capitalismo industrial brasileiro e que, na etapa atual, continua a exercer seu poder de comando sobre a economia nacional e seu poder de articulação com o capital financeiro mundial. Os núcleos industriais originais se desenvolveram ao longo das linhas ferroviárias e dos bondes que organizavam a segregação espacial entre os centros de negócios e os bairros de elite, por um lado, e zonas industriais e regiões operárias, por outro. Nos primeiros, o automóvel apareceu a partir dos anos vinte e os planos urbanísticos consagraram sua importância entre as duas guerras mundiais. Para além destes bairros modernos, os transportes artesanais só se desenvolveriam a partir dos pólos urbano-industriais, servidos pela rede ferroviária. Estendendo-se pelas zonas semi-ruruais do sul e do leste, os bairros populares fizeram surgir as primeiras empresas de ônibus (e vice versa), que complementavam os bondes com os quais entrariam em concorrência no momento imediatamente posterior. O monopólio concedido à empresa anglo-canadense Light & Power Company para a exploração dos bondes desde 1905 foi substituído, em 1945, por um monpólio público quando da criação da Companhia Municipal de Transportes Coletivos – CMTC. Desejosa de se retirar da exploração dos transportes urbanos, depois da rejeição de um projeto de metrô apresentado à municipalidade que privilegiaria a opção pelo automóvel nas áreas centrais, a Light questionava o dualismo do sistema de transportes, a concorrência exercida pelos ônibus em pleno crescimento e a regulamentação tarifária que, sob pressão popular, não permitia que se compensassem os fundos investidos. Mas, sobretudo, ela se desenvolvia nos setores

144 Henry, Etienne & Silvana Zioni (1999). Ônibus na metrópole, articulações entre iniciativa privada e intervenção pública em São Paulo. Viação ilimitada..., op. cit.: 119-186

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de energia e saneamento, empreendendo obras importantes de energia hidráulica, como foi o caso da inversão do rio Tietê que teve pesadas conseqüências para as inundações que continuam, ainda hoje, a se repetir nos bairros próximos às suas margens e que, em conjunção com as do rio Pinheiros, se constituem nos eixos periféricos de circulação urbana. Paralelamente, uma companhia inglesa ligada à Light, a City, empreendeu a promoção fundiária e imobiliária que conduziria à construção de arranha-céus e à verticalização do espaço central de São Paulo, segundo um modelo de urbanização que se reproduz, hoje, na periferia da cidade. O modo segregador da urbanização de São Paulo que, entre 1891 e 1940 passou de 65.000 a 1.325.000 habitantes, sobretudo a partir da imigração européia e asiática, repousava em um desenvolvimento econômico claramente apoiado em uma organização da produção e do espaço, dos transportes e dos serviços sob a égide de capitais estrangeiros. Este foi o primeiro impasse da regulação que seria mal resolvido pela nacionalização da falida empresa de bondes. A partir da época da Light, o ciclo de acumulação capitalista tomou forma no setor de ônibus. O monopólio do transporte foi, então, partilhado entre uma importante empresa pública que combinava as funções de exploração parcial da rede e de regulação da delegação às viações privadas, cuja parcela de mercado cresceria de 20% a 70% em quatro décadas. Com efeito, a opção rodoviária marcou a segunda onda de industrialização e conduziu a novas implantações industriais ao longo dos eixos rodoviários do sul, para o leste e para fora da municipalidade, especialmente no novo complexo urbano industrial da região do ABCD (com um contingente operário residindo principalmente nas municipalidades de Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul e Diadema e que, com os municípios vizinhos, reúne hoje mais de dois milhões de habitantes), em grande parte com base na produção automobilística. O grande bolsão de emprego paulistano foi alimentado por numerosos contingentes migratórios provenientes do centro e do norte do país: em 1970, a metrópole ultrapassava os oito milhões de habitantes. Estas mudanças foram possibilitadas pelo desenvolvimento das viações de ônibus assegurando que, a partir dos velhos bairros

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populares e das novas cidades-dormitório, estendessem os serviços à periferia, em direção aos novos centros de atividades industriais. A amplitude dos fluxos pendulares cotidianos requeria um sistema de transporte de massa baseado essencialmente no sistema viário. Esta exigência conduziu, de um lado, a uma estruturação da oferta a partir da empresa pública, reforçando a concentração das empresas privadas e os grupos que se constituíram na cidade e na periferia da metrópole e, de outro lado, à eliminação das pequenas empresas. Paralelamente, a abertura de grandes avenidas e vias expressas acusava o deslocamento dos centros de negócios para a região Sul, assim como a criação de novos bairros residenciais a Sudoeste da cidade. Um esquema dualista regulava os transportes neste espaço urbano: crescimento do transporte motorizado individual nos bairros mais favorecidos e crescimento das viações privadas de ônibus nas zonas populares. Este esquema era tributário tanto do modo de crescimento urbano quanto da dinâmica industrial e financeira que dominava a organização do espaço metropolitano. Este é o segundo impasse do modo de regulação dos transportes e que seria igualmente mal resolvido pela construção tardia e lenta de um metrô que atinge apenas, nos dias atuais, 50 quilômetros em três linhas exploradas de modo muito eficaz porém amplamente saturadas. Este ciclo permitiu estruturar uma importante oferta privada de transporte já que, entre 1960 e 1990, o tamanho médio das viações da cidade de São Paulo passaria de 85 a 243 ônibus, com uma frota privada que crescia de 1.200 a 8.500 ônibus. Assim, 65% dos veículos pertenciam a viações com mais de 200 veículos; 22% a 7% das empresas monopolizadoras chegavam a ter 700 ônibus, a maioria pertencente a três grupos cujas viações atingiam o tamanho médio de 500 veículos. Nessas condições, a municipalidade poderia, em 1996, liquidar sua cinqüentenária empresa pública, a CMTC, herdada da nacionalização da Light e que chegou a contar com 3.500 ônibus. Desmantelando a rede de bondes, estruturando mais tarde uma oferta privada de 38 viações dispondo de 7.500 ônibus, a CMTC havia organizado o mercado, acelerado sua concentração oligopolista, racionalizado a rede em setores de exploração e modernizado a oferta de transporte: missão cumprida por uma articulação público/privado

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que, de modo exemplar, conseguiu acompanhar o crescimento de uma metrópole que atinge, hoje, os 17 milhões de habitantes. A municipalização do transporte em São Paulo também deveria permitir ao poder local se centrar nas suas funções de administração e de planejamento. A extinção da CMTC não pode ser vista como uma privatização propriamente dita, tal como acontece nos outros setores de onde o Estado retira seus ativos e estimula a entrada do capital privado na exploração direta do serviço (como nos setores de estradas, água, saneamento, ou telecomunicações). Neste caso, a municipalidade apenas deixou de atuar nos setores que antes explorava diretamente. As aberturas de licitações foram promulgadas por lotes, paralelamente ao planejamento de dezesseis corredores reservados aos ônibus, cuja construção seria confiada à iniciativa privada. O poder municipal pretendia assim favorecer a chegada de novos capitais ao setor e escapar da influência exercida pelos três grandes grupos de empresas que intervinham simultaneamente nas 38 zonas de exploração, tal como foram regulamentadas a partir de 1985. De fato, passava-se, então, a 50 empresas exploradoras e foi possível observar no mercado paulistano a chegada de outros empresários de transportes vindos de outros lugares (ABCD, Rio de Janeiro, Minas Gerais). Assim também, empresas de construção civil ou especializadas em limpeza urbana, atraídas pela rentabilidade financeira ou por projetos de infraestrutura de transportes, puderam fazer incursões sobre este mercado. Entretanto, vários destes recém-logo chegados se retiraram de uma atividade que requeria ao mesmo tempo um saber que eles não possuíam e uma capacidade de lidar tanto com os riscos conjunturais quanto com os rendimentos diferenciais entre as zonas. Pelo jogo de aquisição de empresas e de eliminação das mais tradicionais, a oferta de transporte de São Paulo se concentrou bastante e sua nova estrutura não difere fundamentalmente da anterior. Quanto à nova autoridade pública, exercida pela SPTrans, além de suas funções de regulação e de compensação tarifária, ela restringiu sua ação à elaboração do plano de corredores de ônibus que deveria atrair os investimentos privados e à elaboração de um sistema de transporte intermediário que associasse

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o investimento público e privado, ambos frustrados pela incapacidade de intervenção municipal. Este é o terceiro impasse do modo de regulação dos transportes em São Paulo. O último impasse se manifesta pelo retorno acelerado da oferta espontânea de transporte, especialmente depois da extinção da empresa pública. De fato, o recrudescimento do transporte semicoletivo apareceu antes desta medida, já que a partir de 1991 a política de abertura econômica permitiu a importação de microônibus explorados primeiramente pelo transporte escolar e nas zonas periurbanas ou por atividades de transporte fretado. Ao legislar sobre a atividade dos pequenos transportadores, as autoridades municipais, agora privadas da empresa pública, pretendiam estabelecer novos modos de negociação com os grandes grupos de exploradores do transporte coletivo. As portas estavam, assim, abertas a uma concorrência que evidenciaria a rigidez de uma oferta de ônibus sempre concentrada nas pesadas conexões entre as principais zonas de atividades econômicas e as de residência, em um equilíbrio instável calibrado nos fluxos de pico. Em seguida, esta oferta de transporte semicoletivo proliferou, sem que fosse possível estimar sua frota nem seu impacto negativo sobre o trânsito e a rentabilidade comercial das empresas de ônibus. Tal como vem ocorrendo, o desenvolvimento deste setor poderia conduzir a uma efetiva desregulação dos transportes, caso as empresas e os grupos persistam na situação dos últimos anos, de desinvestimento ou não renovação da frota. Os dois setores, cartelizados e corporativos, se atiram em uma concorrência obstinada que passa por violentos embates entre transportadores, motoristas e “clandestinos”, com greves e destruição de veículos, numa mesma lógica de disputa oligopólica do mercado e de enfrentamento político. Alguns processos de fundo alimentam esta dinâmica. De um lado, a violência exacerbada que domina a vida social de uma metrópole marcada por mutações que transformam os tradicionais contrastes sociais em antagonismos marcados pela exclusão, corrupção, criminalidade e narcotráfico. Por outro, as reestruturações econômicas que resultaram em um crescimento sem precedentes do desemprego (que passou de 1% a 18 % em vinte anos) e de assentamentos urbanos

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irregulares (a população das favelas se multiplicou, atingindo hoje 2 milhões de habitantes). Entre tantas outras, a atividade do transporte clandestino é um refúgio para um número crescente de trabalhadores privados de emprego. A regulação do transporte parece, então, estar em contradição com a desregulação do emprego, com a privatização dos serviços e com o encolhimento do Estado. As viações e grupos privados de transporte parecem assim ser o único recurso para remediá-la. Mas é também a capacidade de intervenção política que está em questão, pois o crescimento dos transportes semicoletivos se propagou em numerosas metrópoles brasileiras no curso dos últimos anos, sendo que algumas cidades souberam colocar em prática alguns mecanismos preventivos, inclusive na região metropolitana de São Paulo.

Transportes coletivos e individuais No correr de pelo menos cinco décadas, o automóvel esteve no centro das políticas urbanas e das políticas econômicas brasileiras. Contudo, sua difusão ainda é relativamente restrita, a julgar pelos dados do censo de 1990, segundo os quais a taxa de equipamento domiciliar nesse meio de transporte individual atingia apenas 30%, apesar desta cifra ser mais elevada nas zonas urbanas145. As políticas de transporte sempre refletiram uma certa ambigüidade: obras urbanas voltadas para o automóvel e subordinação dos transportes coletivos, que são majoritários, às empresas privadas. O desenvolvimento da indústria automobilística mundial, que se volta para os mercados promissores dos países emergentes e a abertura da economia brasileira, estão em vias de modificar esta situação. O regime automotivo instaurado nos anos cinqüenta pela proteção aos investimentos de um número limitado de montadoras submetidas a um forte controle nacional, transformou-se com a chegada de nove novos fabricantes ao Brasil, que desenvolvem a produtividade no setor (a produção automobilística dobrou em cinco anos), abaixando os custos e tendendo a difundir o automóvel para além dos circuitos tradicionais restritos às classes superiores e médio-altas. Esta evolução é particularmente clara em São Paulo, cidade na qual se

145 Henry, Etienne & Jean-Paul Hubert (2000). Enjeux territoriaux de la motorisation et contrastes de la mobilité. Démographie et demande de transport : villes du Nord et villes du Sud, ss. dir. de Bussière Yves & Jean-Loup Madre (no prole: Paris, Economica)

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concentram os maiores contingentes de população com poder de compra e acesso ao automóvel. Desde o Plano de Avenidas dos anos trinta, o modelo urbanístico da cidade confere um importante lugar ao automóvel. Apesar da ausência de dados precisos, estima-se que a frota de automóveis teria dobrado nos dez últimos anos, chegando a ultrapassar os cinco milhões de carros. O fato é que, em 1997, o automóvel se tornou o principal meio de deslocamento motorizado na região metropolitana (47%), mais do que o deslocamento por ônibus (38%). Em 1977, os ônibus superavam os automóveis em 15% e, em 1987, os dois modos de transporte já estavam em situação de igualdade quanto às formas de deslocamento intraurbano. No entanto, o nível de motorização individual registrado em 1997 ainda está longe dos países centrais, apesar das taxas de crescimento da frota veicular paulistana serem mais elevadas do que as experimentadas pelas cidades européias. Diferentemente destas, na capital paulista o transporte individual motorizado se desenvolve sobretudo no espaço central, congestionado e de circulação mal regulada. Paralelamente, observa-se um crescimento das viagens a pé (um terço dos deslocamentos de São Paulo), ao qual se sobrepõe a freqüência crescente (mal estimada) dos modos de transporte semicoletivos e das motocicletas. Neste contexto, as últimas estatísticas de evolução da demanda de transportes acusam uma clara queda da demanda por transportes coletivos, tanto para os sistemas ferroviários quanto, sobretudo, para os ônibus. As exigências, hoje mais que nunca, de desenvolver um extendido sistema de transporte de massa em uma metrópole desta envergadura demonstram os limites de uma política baseada essencialmente na opção rodoviária. Nenhum grupo de transportadores, por mais capitalista, concentrado e eficaz que seja, seria capaz de fazer recuar essa inexorável tendência à motorização própria sem os meios adequados de um sistema de transporte de massa.

As regulações urbanas e os transportes em questão Dizem que, ao sul do Equador, as leis universais se invertem. Ao sul do trópico de capricórnio, esta suposta inversão é particularmente aguda em São Paulo, já que este pólo moderno, industrializado e vinculado às inúmeras redes da economia terciária internacional e da América do Sul, apresenta uma mobilidade cotidiana inferior em 50% à dos países do Norte, além de estar em diminuição (de 1,5 deslocamento motorizado cotidiano por habitante em 1977 a 1,2 em 1997). Esta regressão fere os princípios gerais da economia da mobilidade, assim como a concentração capitalista das

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empresas de ônibus fere os da economia dos transportes. Ainda mais ao sul, tendências similares se desenvolvem em Buenos Aires. Já no hemisfério Norte, no que concerne à mobilidade, a cidade do México apresenta a mesma queda das taxas médias146. Se o crescimento demográfico destas metrópolis gigantescas parece se estabilizar, uma tal regressão indicaria que o crescimento vertiginoso das frotas de automóveis não compensa a queda drástica dos deslocamentos por transporte coletivo (inclusive no caso do México, cujo metrô atinge 200 quilômetros em 10 linhas). É preciso, portanto, buscar explicações complementares para estas tendências de evolução (ou de involução), para além do estrito domínio dos transportes. Há certamente um fenômeno de saturação, também recorrente em outros serviços como a água, o saneamento e a energia, que, apesar da generalização de suas taxas de cobertura, apresentam capacidades (provisão ou conectividade) abaixo das necessidades nas metrópoles aqui citadas. O mesmo também se verifica nos serviços de educação ou de saúde, acompanhando a degradação das condições de trabalho e emprego e o aumento dos níveis de pobreza nas metrópoles globalizadas do Sul. Há quem postule que a privatização dos serviços, sua internacionalização e a reforma do Estado poderiam minorar estas carências. Reservas e críticas se apresentam contra este otimismo liberal, que pareceria válido no que diz respeito a setores como o de telecomunicações. Entretanto, os transportes já são essencialmente privados há bastante tempo, sendo igualmente enquadrados por modos específicos de regulação. Apesar das concessões de exploração de alguns sistemas ferroviários e da entrada avassaladora das empresas automobilísticas, não há capitais internacionais interessados neste setor, ao contrário do que ocorreu na época dos bondes, e tampouco buscam se associar com os grupos de empresas de ônibus brasileiras. A gestão dos transportes está diretamente ligada a dois outros domínios da regulação, o da moradia e o do urbanismo, por um lado, e o do trabalho e do emprego, por outro. Porém, nestes dois campos, as reestruturações econômicas em curso e a politização da administração urbana induzem a mutações significativas em uma metrópole dividida entre sua integração nos circuitos financeiros internacionais e a orientação de suas funções de fornecedora da economia mundial de bens e serviços de segunda ordem. Os antigos contrastes sociais, anteriormente apreendidos em termos dualistas, aumentam e se diversificam a tal ponto que alguns acreditam que a

146 Henry, Etienne (1999). Contrastes de la motorización y de la movilidad en las megápolis. Codatu X, Mexico (inédito). 15 pp.

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regulação social se faz, hoje, pela violência expressa nas ações de vandalismo contra os ônibus, de iniciativa não dos usuários, como no período dos movimentos sociais, mas dos responsáveis pelos transportes clandestinos. Nestas mutações, estão certamente inscritas a flexibilização do emprego, a desestruturação do tecido industrial e suas conseqüências sobre os modos de vida cotidiana. Nessa fase de mudanças profundas e rumos ainda incertos, não é possível identificar as linhas de força que poderiam induzir a novas recomposições urbanas. Este é o legado que recai sobre as autoridades locais e sobre as municipalidades divididas entre os imperativos de disputa por capitais internacionais em metrópoles conectadas aos mercados mundiais e a construção de consensos sociais e de espaços públicos democráticos. Em que pese a desconcentração produtiva, a região metropolitana de São Paulo é responsável por parcela essencial do PIB brasileiro, concentra seu principal pólo industrial e, sobretudo, financeiro e terciário, mantendo, assim, sua hegemonia sobre o território nacional. Entretanto, não dispõe dos meios necessários para enfrentar os principais déficits em matéria de educação, saúde, segurança ou transporte. Sua rede de distribuição de eletricidade foi privatizada e há sinais de que tende a transferir para empresas multinacionais a coleta e tratamento do lixo, hoje concessionadas a grupos privados organizados de forma semelhante às viações de ônibus. As sucessivas e variadas tentativas de regular os transportes não chegaram a constituir uma evolução homogênea e linear. E os grupos de transporte urbano tiveram, assim, uma evolução tão acidental quanto a do capitalismo brasileiro. Os pequenos transportadores, muito freqüentemente antigos trabalhadores expulsos recentemente do mercado de trabalho, se outorgam o direito ao trabalho autônomo, infringindo os quadros de uma regulamentação flutuante e mal respeitada, e também o direito de desafiar as grandes empresas privadas que se desenvolveram à sombra do monopólio do serviço público. Servem, já há bastante tempo, as zonas periféricas com oferta de meios de transportes coletivos largamente deficitária. Mas, na última década, é possível observá-los nos grandes eixos de serviços e nas ligações entre subúrbios e, mais recentemente, nas áreas centrais das cidades. A imprensa denuncia as máfias locais que se constituíram em torno de alguns lotações clandestinos, e suas relações com atividades fraudulentas. Poucos dados sistemáticos ou estatísticas confiáveis permitem medir a amplitude e as dinâmicas heterogêneas deste setor, que acaba por se impor aos sistemas de transporte urbano brasileiros e tende a introduzir no setor uma desregulamentação da atividade. Chega-se então aos antípodos da afirmação do direito cidadão ao transporte e

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do dever estatal de fornecê-lo. Nosso propósito é, aqui, de assinalar a importância deste tema e de evidenciar objetos de estudos mais profundos nos serviços urbanos. Mas ao tratar das formas de regulação do transporte que chegaram a uma concentração oligopolistas das viações de ônibus urbano e seus avatares, pudemos ver alguns elementos que podem explicar, em parte, esse fenômeno. Ele pode ser premonitório de tendências monopolistas, contrárias tanto ao espírito liberal quanto à vocação social dos serviços públicos, já manifestas em outros setores urbanos.

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Assaltos a passageiros de ônibus no Rio de Janeiro:

um estudo sócio-jurídico(*)

Cesar Caldeira(**)

“A análise crítica do que existe assenta no pressuposto de que a existência não esgota as possibilidades

da existência e que portanto há alternativas susceptíveis de superar o que é criticável no que existe.

O desconforto, o inconformismo ou a indignação perante o que existe

suscita impulso para teorizar a sua superação”.

Boaventura de Souza Santos 147

1. Introdução A crescente violência nas relações sociais exige uma reavaliação da sua regulação jurídica. O reconhecimento público desse problema tem sido, até agora, predominantemente na área criminal 148 e cultural 149. Este artigo aponta para a necessidade de reexaminar a prática judicial na reparação de danos nos casos que envolvem violência contra a integridade física e moral 150 de passageiros do transporte coletivo realizado por ônibus 151.

(*) Uma versão ampliada deste texto foi publicada sob o título “Assaltos a passageiros de ônibus no Rio de Janeiro: o problema da reparação de danos”, na Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC, ano 1, vol. 4, out/dez 2000, pp. 125-179 (**) Professor de Direito da Universidade do Rio de Janeiro (UNI-RIO) e da Universidade Candido Mendes-Ipanema (UCAM-Ipanema). Mestre em Direito pela Yale University 147. SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000, p. 23. 148. Para um balanço recente da produção acadêmica nessa área, ler: ZALUAR, Alba. “Violência e crime”, O que ler na Ciência Social brasileira (1979-1995), vol. I, MICELI, Sérgio (org.), São Paulo: Editora Sumaré / ANPOCS, 1999, p. 13- 107. 149. Ler, por exemplo, a coletânea recente: PEREIRA, Carlos Alberto Messeder, et alli (orgs.) Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. 150. Para um estudo anterior que desenvolve esta linha de pesquisa sobre responsabilidade civil, ler: CALDEIRA, Cesar. “Caso do Carandiru: um estudo sóciojurídico - 2ª parte ”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 30, ab.-jun., 2000, p. 143-188. 151. O setor de transporte coletivo no Rio é dominado pelo ônibus. Nas décadas de 50 e 60, 70% dos deslocamentos urbanos eram feitos sobre trilhos (bondes e trens). Hoje, a população é

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A violência efetivada através de assaltos e roubos de passageiros de ônibus no Estado do Rio de Janeiro será abordada como um problema específico e setorial, dentro do campo da prática judicial em matéria de responsabilidade civil. Na primeira seção, o artigo evidencia que a violência cometida contra os usuários de ônibus aumentou de forma significativa ao ponto de fazer que o reconhecimento público do problema fosse alterado qualitativamente: os assaltos em ônibus passaram a ser um risco cotidiano e inerente ao uso desse transporte coletivo. Essa mudança na percepção social dos riscos152 no transporte coletivo, e a crescente tentativa de buscar indenizações judiciais pelos danos sofridos demandam uma nova abordagem para a resolução do problema jurídico. Ocorre uma construção social da realidade que faz possível ascender as demandas singulares e atomizadas de responsabilização por danos ao plano de um “problema social”. A segunda seção aborda a prática judicial no Rio de Janeiro nas ações indenizatórias por assaltos a passageiros no Tribunal de Justiça, e no extinto Tribunal de Alçada no período de 1975 até o primeiro semestre de 2000. Duas conclusões são apresentadas. Primeiro, a prática judicial dominante é de não responsabilizar nem o Estado, nem a empresa transportadora pelos danos causados às vítimas dos assaltos em ônibus. Esta tendência jurisprudencial dominante encontra-se na contramão das expectativas sociais da resolução judicial de um problema que é cada vez mais visto como um “problema social”. No entanto, os Tribunais continuam a vê-lo como episódios singulares e julgá-los a partir de uma abordagem jurídica que não considera nem as mudanças constitucionais e legislativas – como o Código de Defesa do Consumidor – nem a nova dimensão de risco que emerge com a crescente violência. Segundo, o artigo focaliza a divergência jurisprudencial que foi ao longo dos anos se formando em torno do problema. A posição dos desembargadores que responsabilizaram as

totalmente dependente dos ônibus, responsáveis por 90% das 8 milhões de viagens diárias realizadas na região metropolitana do Rio de Janeiro. No Rio circulam 245 linhas intermunicipais, que se somam às outras 446 que circulam só no município. A qualidade do serviço oferecido pelas empresas de ônibus é ruim. Engarrafamentos e poluição são causados pelos ônibus. O trânsito também é demorado: a velocidade média dos ônibus é de 16 km/h, metade da alcançada pelos trens. Segundo os especialistas, trens e metro deveriam ser os principais meios de transporte no Rio. O papel dos ônibus seria o de alimentar a rede sobre trilhos. Sobre o debate eleitoral a respeito do transporte coletivo, ler: “No Rio, interligação dos sistemas de transporte une candidatos a prefeito: principal problema é que ônibus transportam 90% dos passageiros”. O Globo, 3ª edição. Caderno O País, 20/08/2000, p. 4. 152. Sobre a percepção de riscos, ler: DOUGLAS, Mary. Risk acceptability according to the Social Sciences. New York: Russel Sage Foundation, 1985. Para um balanço bibliográfico sobre a temática do risco nas Ciências Sociais, ler: GUIVANT, Julia S. “A trajetória das análises de risco: da periferia ao centro da teoria social”, BIB – revista brasileira de informação bibliográfica em Ciências Sociais, nº 46. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/ANPOCS, 2º semestre, 1998, p. 3- 38.

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empresas transportadoras pelos danos causados às vítimas de assaltos em ônibus é analisada. Esta tendência ainda minoritária, mas em ascensão, será apontada como mais conforme a uma interpretação e aplicação da Constituição e da legislação. Será indicado, porém, que os desembargadores vem efetuando um “ajuste equitativo” socialmente desejado. Na terceira seção, serão apresentadas as decisões das Turmas Recursais do Juizados Especiais do Rio de Janeiro, que vêm responsabilizando as empresas transportadoras pelos danos causados às vítimas de assaltos em ônibus. Na conclusão, se argumenta que a questão da reparação de danos na problemática setorial e específica do transporte coletivo precisa ser reapreciada devido às mudanças ocorridas nas relações sociais sob o impacto da violência. A regulação jurídica e a prática judicial precisam dar respostas socialmente adequadas ao novo patamar de conflitualidade existente e aos riscos e danos decorrentes dessa situação prática. A responsabilidade do transportador não se origina exclusivamente dos eventos comumente verificados no exercício de sua atividade, mas de todos aqueles que se possa esperar como possíveis ou previsíveis de acontecer, dentro de um leque amplo de variáveis inerentes ao meio, interno e externo, em que trafega o coletivo. Em certas localidades o assalto e o roubo de passageiros de ônibus deve ser incluído como uma das hipóteses de risco do negócio. O direito precisa ser interpretado e aplicado a partir dos princípios153 que se encontram, de maneira expressa ou latente, no ordenamento jurídico. A inviolabilidade da vida, a integridade física e moral da pessoa humana, a incolumidade do passageiro são princípios que devem nortear, no transporte coletivo, a reparação de danos orientada pela ética e pelo interesse público. Nesse sentido, sugere-se que análises jurídicas sejam realizadas tendo em vista detectar os setores e os problemas que, sob o impacto da sociabilidade violenta, imponham “responsabilidades especiais”, que precisam ser ponderadas dentro do campo da responsabilidade civil.

153. Segundo Ronald Dworkin, o processo hermenêutico se fundamenta na concepção de “integridade” do direito. Ao justificar a importância desse ideal político – segundo o qual o Estado ou a comunidade devem atuar enquanto agentes morais, no sentido de que suas atividades precisam ser compatíveis com um conjunto de princípios – Dworkin escreve: “Integrity becomes a political ideal when we make the same demand of the state or community taken to be a moral agent, when we insist that the state act on a single, coherent set of principles even when its citizens are divided about what the right principles of justice and fairness really are. We assume, in both the individual and the political cases, that we can recognize other people´s acts as expressing a conception of fairness or justice or decency even when we do not endorse that conception ourselves. This ability is na important part of our more general ability to treat others with respect, and it is therefore a prerequisite of civilization.” DWORKIN, Ronald. Law´s Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986, p. 166.

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2. O roubo em coletivos como problema social

“O assalto, hoje, se insere nos riscos próprios do deslocamento.

É mais provável o passageiro ser assaltado, do que sofrer

danos decorrentes do próprio transporte.” Des. Mello Tavares, na Apelação Cível nº 3913/99.154

Assaltos a passageiros de ônibus são freqüentes, e as estatísticas indicam que é um problema crescente no transporte urbano, intermunicipal e interestadual. No estado do Rio de Janeiro, o risco do passageiro ser vitimado por roubo em coletivo é maior que o de ser acidentado. Segundo as estatísticas do Detran, em 1998, 828 ônibus estiveram envolvidos em acidentes de trânsito com vítimas; em 1999, as estatísticas indicam um total de 3.449 acidentes de trânsito com ônibus no Estado do Rio de Janeiro. As estatísticas oficiais sobre roubos em ônibus são mais altas. Em 1998, foram registradas 6774 ocorrências de assaltos em ônibus; em 1999, a estatística oficial se eleva para 7 683 ocorrências no Estado do Rio de Janeiro.

Ônibus envolvidos em acidentes de trânsito com vítimas

no Estado do Rio de Janeiro Capital Interior Rodovia Rodovia Total

Estadual Federal 1998 464 243 121 - 828 1999 1.901 895 372 281 3.449

Fonte: DETRAN/Rio, Secretaria de Segurança Pública.

154. Ementa completa: Responsabilidade civil. Assalto em ônibus. Dano ao passageiro. Responsabilidade da transportadora. Constituição Federal art. 37, § 6º. Súmula 187 do STF. Ação de indenização proposta por passageira, quando viajava em ônibus de propriedade da transportadora, por ter sido assaltada e baleada na cabeça. A responsabilidade contratual do transportador não é elidida por culpa de terceiro, contra o qual tem ação regressiva (súmula 187 do STF). O assalto, hoje, se insere nos riscos próprios do deslocamento. É mais provável o passageiro ser assaltado, do que sofrer danos decorrentes do próprio transporte. Afastada a hipótese de caso fortuito, posto que só é admissível quando se trata de eventos imprevisíveis, o que não é o caso. Recurso conhecido e provido.” Apelação Cível nº 3913/99. Décima Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Relator designado: Des. Mello Tavares. Decisão: por maioria. Voto vencido: Des. Mário Rangel. Julgamento: 15/04/1999. Registrado em: 01/09/1999.

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Estatísticas oficiais de assaltos de ônibus são extremamente precárias. Os números oficiais não revelam a “criminalidade real” – o número de assaltos efetivamente ocorridos – mas apenas a “criminalização” – o conjunto de ocorrências que foram registradas nas delegacias de polícia. O que o sistema penal institucionalizado capta é um percentual muito pequeno do que de fato acontece. Um número muito alto de assaltos ocorrem sem que as vítimas notifiquem à polícia pois estimam, com grande dose de realismo, que os assaltantes não serão presos, os objetos roubados não serão recuperados, e não será possível obter ressarcimento pelas suas perdas patrimoniais e pelos seus danos físicos e morais. Ainda assim, as estatísticas oficiais revelam que os assaltos a ônibus são um risco diário nas principais capitais brasileiras.

TABELA 1

ASSALTOS EM ÔNIBUS EM CAPITAIS BRASILEIRAS, 1998

Cidades Ocorrências % Mil Hab. São Paulo 12.905 1,3 Rio de Janeiro 6.774 1,2 Salvador 3.407 * 1,5 Recife 2.754 2,0 Vitória 1.170 4,3 Belo Horizonte 712 0,3 Fonte: Revista CNT, 1999. As estatísticas oficiais de roubo em ônibus no Estado do Rio de Janeiro de 1991 até 1999 evidenciam que esta prática delituosa está em notável ascensão.

TABELA 2

ASSALTOS EM COLETIVOS 1991-1999

ANO 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999

Número de ocorrências

4249 4810 4722 4759 5126 5480 6574 6774 7683

TOTAL (1991-99): 50 177 ASSALTOS

* Esta cifra é apenas da delegacia especializada em assaltos à ônibus em Salvador. Quando se agregam as ocorrências de outras delegacias de Salvador o número sobe para 4.745 assaltos de ônibus.

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Fonte: Secretaria de Estado de Segurança Pública – SESP, Subsecretaria de Planejamento Operacional, SsPop. Números compilados do Anuário Estatístico do Estado do Rio de Janeiro. Nos primeiros cinco meses do ano 2000, a polícia registrou 3.832 ocorrências de roubos em ônibus - em média 766 por mês ou 25 por dia. Nesse ritmo o Rio chegaria ao fim do ano com aproximadamente 10.000 roubos em coletivos155. É possível se verificar na tabela 3 a incidência territorial dos assaltos em ônibus no período 1997-98.

TABELA 3 ASSALTOS EM ÔNIBUS EM 1997-99 NO ESTADO

DO RIO DE JANEIRO OCORRÊNCIAS REGISTRADAS PELA POLÍCIA CIVIL

DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL

1997 1998 Total Capital Baixada Interior Total Capital Baixada Interior Niterói Nº de Ocorrências 6.574 3.553 1.203 1.818 6.774 3.779 1.186 350 1.422

Fonte: Secretaria de Estado de Segurança Pública - SESP, Subsecretaria de Planejamento Operacional - SsPOp. A tabela 4 indica quais foram os locais de maior incidência de assaltos de ônibus no Estado do Rio de Janeiro no ano de 1997, ilustrando que a distribuição da vitimização dos passageiros é bastante desigual .

155. Cf. Revista da CNT, edição julho/2000. Ver: http://cnt.org.br Após o caso do seqüestro no ônibus 174, no dia 12 de junho de 2000, as autoridades de segurança pública do Rio iniciaram um intensa atuação de rua através de “blitzes” policiais. Além de constituírem um transtorno e um cerceamento de locomoção nas vias públicas, as “blitzes” policiais são criticadas por serem pouco eficazes. Ler: “Seqüestrado diz ter passado por 4 blitzes”, O Globo, 14/08/2000, p.1. Porém, o clamor público recente contra os assaltos a passageiros de ônibus, com divulgação na mídia, mobilizou recursos policiais para esse problema. Talvez em conseqüência dessa atenção concentrada nesse problema houve uma redução nas “estatísticas oficiais” da Secretaria de Segurança Pública do Rio. Os roubos a coletivos foram reduzidos de 807, em junho, para 662, em julho de 2000. Cf. “Cresce roubo a residências: Barra da Tijuca e Jacarepaguá lideram estatísticas da Secretaria de Segurança”, Jornal do Brasil, caderno Cidade, 11/08/2000, p. 22.

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TABELA 4 ROUBOS EM COLETIVOS EM 1997

LOCAIS DE MAIOR INCIDÊNCIA Niterói, Icaraí ------- 874 Duque de Caxias ------- 756 Madureira, Marechal Hermes, Rocha Miranda- 718 São Gonçalo, Alcantara – 614 Nova Iguaçu, Belfort Roxo e Nilópolis ------------- 403 Méier e Engenho de Dentro 359 Bangu, Realengo e Vila Kennedy ----------------- 348 Tijuca, Vila Isabel e Grajaú ------------------- 323 Bonsucesso, Benfica - 256 Zona da Leopoldina --- 251 Fonte: Secretaria de Estado de Segurança Pública - SESP, Subsecretaria de Planejamento Operacional - SsPOp.

Essa prática criminosa vulnera preponderantemente usuários de transporte intermunicipal e suburbano que são trabalhadores de baixa renda, carentes de outras alternativas de transporte. Usando o ano de 1997 como referência constata-se que a zona sul da cidade do Rio – mais policiada devido à sua importância como área de turismo e por ter moradores de maior poder aquisitivo – é menos atingida por esse delito. Assaltos a passageiros de coletivos constituem uma prática delituosa particularmente odiosa e injusta porque atinge os setores de trabalhadores empobrecidos por um sistema de economia privada, que irá usar de suas regras e instituições jurídicas para impossibilitá-los ao menos de obter o ressarcimento por suas perdas e danos. O ônus da vitimização é todo do usuário. A empresa transportadora, conforme será analisado adiante, é exonerada de responsabilidade por suas atividades que criam riscos e vulnerabilidades à segurança dos passageiros. A análise da efetiva situação dos roubos em coletivos poderia ser feita se as autoridades públicas exigissem que os fiscais das empresas – os ostensivos e os secretos – revelassem o número de assaltos que ocorrem em cada linha, e descrevessem onde, como e com quantos delinqüentes foram praticados. A vitimização precisaria também ser acuradamente relatada: se houve somente perda de patrimônio do usuário, ou se o passageiro também sofreu dano físico além de moral. Nada disso é atualmente exigido pelas autoridades públicas. O encobrimento

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da vulnerabilidade do passageiro se propaga e políticas governamentais de caráter preventivo aos assaltos não são efetivadas. Ao contrário, o que se revela em entrevistas feitas e depoimentos obtidos156 é que no Rio de Janeiro existe um conluio crescente entre empresas de transporte e redes criminosas, notavelmente de narcotraficantes. Em regra, as associações de moradores são os mediadores entre os “donos do morro” (os traficantes de drogas) e as empresas de ônibus. Os acertos são feitos para evitar que os motoristas e trocadores sejam assaltados, e principalmente agredidos. Dessa maneira, as empresas reduzem as suas perdas financeiras, que aliás são geralmente repassadas aos seus empregados através de descontos, se forem além de um determinado montante. Em troca as empresas de ônibus prestam alguns serviços para a “comunidade”, como levar o pessoal do “movimento”, e seus amigos à praia, ou tornar disponível um ônibus, supostamente “fretado”, para que o pessoal do morro possa ir ao enterro de algum traficante. No que concerne aos assaltos aos passageiros, duas regras geralmente são fixadas nos acertos informais: 1. Não se permitir a concentração de assaltos em uma só linha quando há competição entre elas. Ou seja, os assaltos devem ser divididos de maneira mais ou menos equilibrada para que uma linha não seja tida pelos usuários como “mais visada” pelos assaltantes. Tal linha seria evitada pelos passageiros e diminuiria os lucros das empresas de transporte. 2. Os empregados da transportadora – motorista e trocador, principalmente - não devem se envolver na situação do assalto aos passageiros. Se violência excessiva for usada pelos assaltantes – o que ocorre mais freqüentemente com assaltos praticados por “pivetes” – a punição virá através dos “soldados” do tráfico de drogas. O objetivo mais notável desses acordos entre empresas transportadoras e redes criminosas é assegurar que os assaltos e roubos em ônibus não configurarão riscos financeiros substanciais para as empresas e que seus empregados não estarão muito vulneráveis com esta criminalidade crescente. O risco e as perdas são deslocadas para o usuário que passa a conviver quase diariamente com a incerteza quanto à sua incolumidade física e moral. O quadro é ainda mais odioso quando se verifica que muitos desses passageiros não têm qualquer alternativa de transporte adequada devido a sua baixa renda. Um debate público sobre a situação das vítimas de assaltos em coletivos, por outro lado, raramente consegue romper a barreira da indiferença dos

156. Estudos abrangentes e sistemáticos ainda não foram feitos ou, pelo menos, não foram suficientemente divulgados sobre este tema. O Autor conduziu várias entrevistas com autoridades da área de segurança pública, rodoviários, usuários vitimados, jornalistas e empresários de transporte para obter informações sobre o tema dos roubos em coletivos no Rio.

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empresários da mídia com o tema. Apenas em situações dramáticas, como o seqüestro ocorrido com o ônibus 174, no dia 12 de junho de 2000, a trezentos metros da Rede Globo, no Jardim Botânico, e durante uma reunião internacional de jornalistas na cidade, é que a imprensa cobre mais intensamente esses problemas. Além de notícias sobre esses episódios extraordinários, existem várias matérias jornalísticas sobre os perigos que estão presentes nas vias de acesso ao Rio157, mas são voltadas para o avanço da barbárie sobre os setores de classe média que estão cada vez mais vulneráveis à violência e criminalidade. Mesmo os pesquisadores raramente voltam suas pesquisas158 para esses assuntos que revelam a mais grosseira violação do direito à incolumidade da pessoa humana, em seu patrimônio e integridade física e moral. É, por fim, raro encontrar uma reportagem na grande imprensa que venha resumir o perfil do lucrativo negócio dos ônibus na cidade do Rio de Janeiro, como fez a revista VEJA na matéria “Os Barões do Transporte Urbano”:

“O transporte urbano no Rio é negócio de mais de 1 bilhão de reais por ano. Quase 80% da população carioca depende dos ônibus para se locomover. O poder político dos empresários é enorme. “Os políticos sempre querem ganhar com o lançamento de novas linhas de ônibus”, reconhece Barata (...) Cinquenta e cinco empresas controlam os ônibus da cidade. A maioria está nas mãos de apenas seis empresários que, nas décadas de 60 e 70, receberam as linhas de graça da prefeitura e ainda ganharam o direito de explorá-las sem pagar impostos (...)”.159

157. Ler, por exemplo: “Perigo ronda as vias de acesso ao Rio: assaltos, saques, balas perdidas e pedradas apavoram motoristas em mais de 60 pontos”, O Globo, 2ª edição, caderno Rio, 28/02/1999, p. 12. “Pelo menos 60 pontos de violência estão no caminho de cerca de 500 mil motoristas que trafegam diariamente por quatro principais acesso ao Rio – Linha Vermelha, Avenida Brasil, e rodovias Presidente Dutra (Rio- São Paulo) e Washington Luís (Rio-Petrópolis) – e uma importante via da cidade, a Linha Amarela”. 158. Existe um trabalho recente e importante sobre o impacto dos assaltos sobre os rodoviários: MACHADO, Eduardo Paes e LEVENSTEIN, Charles. “Assaltantes a bordo: violência ocupacional, tensão racial e (in) segurança no transporte coletivo de Salvador, Brasil”, mimeo, Caracas, 2000. Este trabalho foi apresentado na primeira reunião do Grupo Violencia y Sociedad, do CLACSO (Consejo LatinoAmericano de Ciencias Sociales), realizada em Caracas, Venezuela, entre 17 e 21 de janeiro de 2000. 159. Esta transcrição da matéria publicada na revista Veja, edição 1.531, de 28/01/1998, página 64 encontra-se no voto vencido do Juiz Ademir Paulo Pimentel, na Apelação Cível 8 972/97, da 8ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro, julgada em 18 de fevereiro de 1998. Observação: este caso não foi incluído no presente artigo pois versa sobre lesão em passageiro decorrente de pedra arremessada contra ônibus em via urbana.

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Em suma, a violência cometida contra os usuários de ônibus aumentou de forma significativa a ponto de fazer que o reconhecimento público do problema fosse alterado qualitativamente: os roubos em ônibus passaram a ser percebidos como um risco cotidiano e inerente ao uso desse transporte coletivo. Essa mudança na avaliação social dos riscos no transporte coletivo, e a crescente tentativa de buscar indenizações judiciais pelos danos sofridos, demandam uma nova abordagem para a resolução do problema jurídico. No Estado do Rio de Janeiro, ocorre uma construção social da realidade que faz possível ascender as demandas singulares e atomizadas de responsabilização por danos ao plano de um “problema social” 160. Face a esta modificação, que se dá nas relações sociais submetidas a um novo patamar de predação criminosa, as demandas sociais de regulação através de políticas governamentais de segurança pública aumentaram. Exige-se que haja mais prevenção e repressão aos assaltantes de ônibus pela polícia. Mas esta é apenas uma das importantes dimensões da questão que se apresenta na esfera pública. Nesse artigo dedicamos atenção à indagação: quem repara os danos causados às vítimas dos roubos em ônibus no Rio? A tese sustentada, no plano sociológico, nesse texto é a seguinte. Devido ao crescente reconhecimento público dos danos diariamente causados aos passageiros de ônibus pelos assaltantes no Rio, ocorre uma “repolitização dos riscos” 161. Em decorrência dessa percepção social do risco de violência durante a execução do contrato de transporte coletivo, torna-se indispensável rediscutir politicamente a responsabilidade da empresa transportadora pelos danos sofridos pelos roubos em ônibus. Eventualmente, a responsabilização da empresa transportadora pelos danos originados por assaltos precisará ser expressamente estipulada, através de regulamentação detalhada, pelo Estado. Enquanto esta regulamentação especial não triunfar politicamente em defesa da cidadania, o Judiciário terá um número crescente de “casos difíceis”

160. Sobre esta dinâmica sociológica, ler: GUILLEMARD, Anne-Marie. “Vues Rétrospectives sur le social et le juridique”, Normes juridiques et régulation sociale, CHAZEL, F. e COMMAILLE, J. (orgs.), Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1991, p. 225-29. 161. A expressão é de Raffaele de Giorgi. “Para afrontar as situações caracterizadas pelo risco, os sistemas sociais singulares são constrangidos a reestruturar os dispositivos que possuem, de maneira a sempre poder imputar um dano a uma decisão. E visto que o processo e imputação é sempre uma contínua repolitização dos riscos, é como se sabe, para a política arriscada tanto a situação que se decide, como a situação em que não se decide.” GIORGI, Raffaele. “O risco na sociedade contemporânea”, Direito, democracia e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris editor, 1998, p. 198-9.

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(“hard cases”, na expressão usada por Ronald Dworkin) para adjudicar. Esse artigo celebra o avanço que essas decisões judiciais constituem no Rio de Janeiro e analisa criticamente as mudanças na fundamentação dessas decisões.

2. Mapeamento de uma divergência jurisprudencial: como os Tribunais do Rio vêm decidindo nos casos de reparação de

danos por assaltos a passageiros de ônibus As estatísticas oficiais informam que 50177 assaltos a ônibus ocorreram no Estado do Rio de Janeiro entre 1991 e 1999. Conforme mencionado anteriormente, esses registros expressam uma parcela muito pequena da vitimização efetivamente sofrida pelos passageiros de ônibus. Além disso, cada assalto pode envolver várias vítimas. Mesmo assim, o número de ocorrências registradas serve como uma referência, ainda que precária, da situação em que se encontram os usuários desse meio de transporte. As vítimas desse delito deveriam, num Estado Democrático de Direito, buscar no Judiciário o ressarcimento pelo dano sofrido, principalmente nos casos em que sua integridade psico-física fosse atingida. Um exame do número de casos de reparação de danos que foram decididos pelo Tribunal de Alçada e pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro sugerem que pouquíssimas vítimas de assaltos tentaram obter justiça através dessas instituições. Contando-se todos os casos decididos no período 1991-1999, somando-se inclusive os embargos infringentes às apelações cíveis, foram encontradas 77 decisões judiciais em que se tentava obter ressarcimento de danos causados em assaltos a passageiros de ônibus. Dessas 77 decisões, 76 buscavam responsabilizar a empresa transportadora e uma tentava obter a indenização do Estado.

2.1 Mapeamento do Tribunal de Alçada: 1975- 2000

A tabela abaixo elenca um total de 37 decisões do Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro. Desse número, 21 decisões foram favoráveis à exoneração da responsabilidade da empresa transportadora por unanimidade, e 7, por maioria. Das 7 decisões por maioria, duas foram revertidas em condenações das empresas transportadoras nos embargos infringentes: uma por unanimidade (Apelação Cível nº 4912/93), e a outra, por maioria (Apelação Cível nº 4918/94). Por outro lado, o Tribunal de Alçada se decidiu 9 vezes por condenar a

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empresa transportadora a pagar indenizações pelos assaltos. Desse total, 4 decisões foram por unanimidade. Dentre as 5 decisões tomadas por maioria, 3 apelações foram revertidas a favor da empresa transportadora por ocasião dos embargos infringentes (Apelação Cível nº 9083/94; Apelação Cível nº 9197/96 e Apelação Cível nº 10221/96). Em resumo, existem 5 condenações importantes – sendo 4 por unanimidade – das empresas transportadoras no Tribunal de Alçada, no período 1975-97.

TABELA 5

2.2 Mapeamento das decisões do Tribunal de Justiça: 1975-2000

Foram documentadas 40 decisões em ações indenizatórias contra empresas transportadoras por assaltos a passageiros entre 1975 e o primeiro semestre

Decisão CÂMARAS CÍVEIS GRUPOS TOTAL a favor DE CÂMARAS da empresa? 1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª I II IV UN a favor 3 3 5 1 3 3 1 1 x x 1 21 Por Maioria x x x 1 1 2 x 1 x 1 1 7 a favor Por Maioria x x x x x 3 1 x 1 x x 5 contra UN contra 1 x x 1 x x x 1 1 x x 4 TOTAL 4 3 5 3 4 8 2 3 2 1 2 37 casos

Obs. UN indica decisão por unanimidade.

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de 2000 no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Desse total, 28 decisões foram tomadas entre fevereiro de 1998 e abril de 2000. Não foram encontradas ações antes de 1991. O crescimento de litigiosidade em torno desse problema é, portanto, rápido e muito recente. Provavelmente, este crescente número de ações nos Tribunais acompanha a tendência ascendente na prática desse delito. Porém, pode-se especular que a maior parte das ações nessa matéria foram encaminhadas para, primeiro, os Juizados de Pequenas Causas, e posteriormente, para os Juizados Especiais Cíveis. Lamentavelmente, não se encontrou qualquer estatística relevante que pudesse comprovar, ou não, essa hipótese162. A divergência de interpretação já se evidencia nas Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça. De 34 casos julgados, em cerca de um terço houve pelo menos um voto de desembargador contrário à exoneração da responsabilidade da empresa transportadora por assalto a passageiro. Mas se nenhuma empresa foi condenada unanimemente a indenizar. Nos Grupos de Câmaras Cíveis dos seis Embargos Infringentes, apenas um foi decidido por unanimidade a favor da empresa transportadora; e um foi julgado por maioria contra a transportadora.

3. Conclusões

“How can we grasp an established institutional and ideological settlement in a manner that acknowledges its transformative

possibilities, giving us power to make the future and freeing us superstition about the present?

Roberto Mangabeira Unger163

Duas questões distintas são abordadas nessas conclusões. A primeira refere-se à divergência jurisprudencial mapeada no extinto Tribunal de Alçada, e no atual Tribunal de Justiça, e entre ambos e os Juizados Especiais

162. Na próxima seção desse artigo serão indicadas as principais decisões das Turmas Recursais dos Juizados. 163. UNGER, Roberto Mangabeira. What should legal analysis become? London: Verso, 1996, p. 1. Numa tradução livre: “Como nós podemos compreender um acordo institucional e ideológico de uma maneira que reconheça suas possibilidades transformadoras, dando-nos poder para construir o futuro e livrando-nos da superstição sobre o presente?”

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Cíveis164. A segunda versa sobre o papel das ações indenizatórias face ao reconhecido problema social dos assaltos a passageiros de ônibus dentro de uma perspectiva de regulação jurídica da matéria165.

3.1 A divergência jurisprudencial: existe uma resposta judicial correta para a controvérsia?

A divergência jurisprudencial evidenciada nesse artigo, na seção 2, suscita a indagação seguinte: existe uma resposta judicial correta para a controvérsia encontrada? O cerne da questão está na aplicação da doutrina que afirma que o “caso fortuito externo” se equipara a caso fortuito, e exonera a responsabilidade da empresa transportadora por assalto ou roubo a passageiros de ônibus. Este estudo tentou demonstrar que esta doutrina não deve ser aplicada na situação atual do Rio de Janeiro no âmbito do transporte coletivo de

164. Os Juizados poderiam ser a instituição que maior acesso dariam às demandas de ressarcimento por assaltos a passageiros de ônibus. Infelizmente, é atualmente impossível conduzir um levantamento abrangente sobre a tendência decisória nos Juizados. O que foi possível obter foram algumas decisões das Turmas Recursais, que podem indicar a tendência das decisões, ao menos precariamente. No extinto Juizado de Pequenas Causas foi encontrado apenas um acórdão da 1ª Turma Recursal, Ementa 8: “Responsabilidade civil. Acidente de trânsito. Roubo a mão armada do veículo configura caso fortuito ou força maior. Exclusão da responsabilidade” (Proc. Nº 5.579/93. Juíza: Cláudia P.S. F. Arrábida). Ementário de Jurisprudência. Turmas Recursais. Juizados Especiais de Pequenas Causas e do Consumidor nº 03/94. Na pesquisa realizada foram encontradas duas decisões de Turmas Recursais dos Juizados Especiais Cíveis na comarca da capital do Rio de Janeiro. Ao contrário do que foi encontrado na época dos Juizados de Pequenas Causas , as duas decisões dos Juizados Especiais condenaram as empresas transportadoras. 165. Todo este trecho final do artigo foi acolhido pela 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro como fundamentação da decisão, por unanimidade, na Apelação 4013/00, julgada em 12 de setembro de 2000, relator: Des. Paulo Cesar Salomão. Ementa: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. FATO DE TERCEIRO. FORTUITO EXTERNO – INOCORRÊNCIA. MORTE NO INTERIOR DE COLETIVO DURANTE ASSALTO. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. No Rio de Janeiro, não se pode mais considerar fato imprevisível a ocorrência de assaltos nos coletivos, em virtude da sua prática rotineira. Fatos lamentáveis que poderiam ser evitados se as empresas, que auferem grandes lucros, colocassem dispositivos de segurança, fizessem seguro e dessem treinamento adequado aos seus funcionários, bem como exigissem das administrações públicas medidas concretas para impedir esses danos. Inocorre fortuito externo nesses fatos causados por terceiros durante o contrato de transporte, onde a Transportadora se obriga a transportar incólume o passageiro até o destino pelo qual pagou o preço da passagem. Sendo concessionária de serviço público, aplica-se o art .37, § 6º, da Constituição da República, que encampou a teoria do risco administrativo. Ademais, por força do disposto no art.175, Parágrafo Único, IV, da Constituição Federal c.c. o art.14, da Lei 8078/90 (CDC) a Transportadora responde independente da existência de culpa pela reparação dos danos causados aos consumidores quando da prestação de seus serviços. Provimento do recurso.

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ônibus. Mais ainda, que as decisões que expressam o crescente repúdio dos juizes e desembargadores – do extinto Tribunal de Alçada, e atualmente do Tribunal de Justiça – a esse formalismo doutrinário constituem respostas juridicamente adequadas e razoáveis ao efetivo problema apresentado ao Judiciário. O direito precisa ser interpretado e aplicado como um conjunto de normas orientadas por princípios jurídicos. A controvérsia focalizada neste estudo solicita uma análise sistemática que propicie a reconstrução dessa área temática – transporte coletivo –, do ponto de vista da doutrina, principalmente, devido à crescente violência e criminalidade que põem em risco a integridade física e moral dos passageiros. O valor fundamental que rege o nosso ordenamento jurídico é o da dignidade humana, alicerce do Estado Democrático de Direito. Amplo em suas repercussões, este valor se espraia através de princípios que estruturam as relações jurídicas a partir da Constituição. A inviolabilidade do direito à vida e a proteção constitucional à integridade física e moral do indivíduo têm amplas repercussões na conformação de todo o ordenamento jurídico. Direitos e deveres são previstos em inúmeros setores do ordenamento a partir do objetivo de prevenir riscos, reparar lesões e reprimir delitos às pessoas, e seus bens. A Constituição afirma como diretriz programática que a segurança pública é dever do Estado e, também, direito e responsabilidade de todos. As atividades e medidas tomadas nessa área visam a preservação da ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio. Cabe à atividade do Estado através das polícias a missão preponderante na efetivação desses objetivos. Mas é previsto que os cidadãos participarão da manutenção e colaboração com as autoridades na prevenção e repressão de delitos. Sem esse esforço partilhado entre as autoridades e os cidadãos é inexequível a ordem numa sociedade democrática. Numa complexa sociedade mercado, os espaços semi-públicos (como os “shoppings”, cinemas, caixas-de-saque eletrônico, e outros) crescem e impõem novos desafios à regulação jurídica, especialmente quando a violência e a criminalidade está atingindo freqüentemente esses espaços. O monopólio do controle da violência do Estado, nessas circunstâncias, deixa de ser exercido paulatinamente. É notável a partilha de responsabilidades na manutenção da segurança nesses espaços semi-públicos, através de seguranças particulares cujo contingente efetivo é várias vezes maior que o das forças de segurança pública. Esta tendência à partilha de responsabilidades na área de segurança pública também será estendida aos transportes coletivos, com o objetivo de assegurar a incolumidade dos

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usuários e de seus bens. No entanto, a regulação jurídica específica desses espaços semi-públicos, e dos transportes coletivos que estão presentes na controvérsia jurisprudencial, ainda precisa ser feita. Enquanto não for, uma parte dos problemas sociais que emergem nesses espaços terão que ser solucionados pelo Judiciário. Este é o momento em que “casos difíceis” são apresentados aos juízes e desembargadores. O problema ostensivo que se apresenta é a necessidade social de se repudiar – na controvérsia jurisprudencial em tela – uma doutrina (há excludente de responsabilidade da empresa transportadora quando ocorre “fortuito externo”, ou seja assalto) que não concretiza adequadamente os valores constitucionais. Para assegurar a incolumidade dos passageiros e de seus bens torna-se socialmente necessário que a empresa seja atuante, implementando medidas de segurança, devido à previsibilidade dos assaltos e roubos. Esta exigência social que vem sendo indicada pelos juízes e desembargadores nas decisões examinadas são constitucionalmente legítimas e não vulneram a lei. Há, inclusive, recente respaldo de duas importantes decisões, por unanimidade, do Superior Tribunal de Justiça 166 que firmam posição, em dois casos em que se discute diretamente – na fundamentação do recurso e na decisão do Tribunal –, a aplicação da doutrina da excludente do “fortuito externo” da responsabilidade civil da empresa transportadora. Eis as duas ementas:

Responsabilidade civil. Transporte coletivo. Assalto. Responsabilidade da empresa transportadora.

O assalto a cobrador de ônibus não é fato imprevisível nem alheio ao transporte coletivo, em zona de freqüentes roubos, razão pela qual não vulnera a lei a decisão que impõe à empresa a prova da excludente da responsabilidade da responsabilidade pela morte de um passageiro.

Precedente desta Quarta Turma (Resp nº 50.129/RJ, Rel. Ministro Torreão Braz).

Recurso exclusivamente pela alínea a não conhecido.” 167

166. As duas decisões foram publicadas no D.J. no mês de fevereiro de 2000. 167. Recurso Especial nº 175794-SP. Relator: Min. Relator: Min. Ruy Rosado de Aguiar. Decisão: por unanimidade. Recte Empresa de Transportes Andorinha S/ª Recdo: Maria Eugênia Zagato. Data do julgamento: 05/11/1998.

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Responsabilidade civil. Transporte coletivo. Assalto. Responsabilidade da empresa transportadora. Responde pelo resultado danoso a empresa cujo motorista pratica a ação em estado de necessidade, sob coação do assaltante, deixando a porta aberta do veículo que mantém em movimento, do que decorre a queda do passageiro.

Precedentes. Recurso não conhecido.” 168

Em síntese, na divergência jurisprudencial sobre a responsabilidade civil do transportador, por danos resultantes de crimes praticados no interior dos veículos, encontram-se os elementos seguintes. Primeiro, o encaminhamento e processamento de problemas e conflitos sociais – que ainda não foram regulamentados adequadamente por lei – para o Judiciário. Face a esse desafio, os juízes e desembargadores são chamados a reavaliar modelos jurídicos legais e modelos jurisdicionais 169 recebidos, e investir em esforços de crítica e superação da doutrina dominante que não responde mais adequadamente às circunstâncias e fatos sociais. Nas divergências interpretativas sobre esses “casos difíceis” se revelam as controvérsias sociais sobre concretização de valores fundamentais, e se descobre o viés redistributivo da reparação, ou não, dos danos causados. A alforria do transportador de sua obrigação de indenizar, através da aplicação mecânica da doutrina do “fortuito externo”, gera um dano injusto e não ressarcido, por um lado, e uma exoneração da responsabilidade em um empreendimento gerador de riscos e eventuais ônus para o usuário e, por outro lado, somente proveito para o empresário. Segundo, nessas controvérsias judiciais evidencia-se o problema institucional latente na discussão política: a juridificação das relações sociais está sendo efetivada pelo Judiciário, ao invés de pelo Legislativo e pelo Executivo. Terceiro, o estudo crítico realizado aponta para a adequação constitucional do paradigma jurisprudencial que vem sendo construído, pela corrente ainda minoritária de desembargadores no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

168. Recurso Especial nº 234.263 – Rio de Janeiro (1999/0092711-7). Relator: Min. Ruy Rosado de Aguiar. Decisão: por unanimidade. Recte: Transportes Santo Antonio Ltda. Recdo. Luiz Henrique Lopes da Silva. Data do julgamento: 02/12/1999. 169. A respeito dessas expressões ler: REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Editora Saraiva, 1994, p. 68-72.

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Este grupo se filia à doutrina que inclui o assalto a passageiro de ônibus entre os casos de “fortuito interno”, que é risco inerente à atividade do transportador, devido à sua enorme freqüência, fato este que retirou sua imprevisibilidade. Quarto, que a responsabilidade da empresa transportadora é objetiva, e regida pelo risco proveito. Não se discute, portanto, se o seu preposto age com culpa. Quinto, compete ao Estado a tarefa preponderante de preservar a integridade física e moral dos cidadãos. Mas isto não exonera o fornecedor de serviços, como o transporte coletivo de ônibus, de adotar medidas preventivas de preservação de risco.

3.2 O papel das ações indenizatórias na regulação jurídica

Apesar dos avanços recentes nas decisões do Tribunal de Justiça, se impõe reconhecer que a prática judicial dominante é de exonerar inteiramente a empresa transportadora de indenizações nos casos de assaltos a passageiros. A mudança jurisprudencial e doutrinária é por demais lenta para responder, em tempo socialmente, adequado aos reclamos de redirecionamento regulatório na matéria. De fato, através da doutrina do “fortuito externo” a prática judicial assegura a imunidade das poderosas empresas transportadoras à pressão por mudança até mesmo em estabelecimento de medidas de segurança. Este direito aplicado, de caráter corporativo-empresarial, não será rapidamente repudiado pelo próprio Judiciário que lentamente o ajudou a se consolidar. É nesse contexto histórico que se indaga: qual o papel das ações indenizatórias na regulação jurídica? A responsabilidade civil é parte do direito privado. A regulação, fiscalização e supervisão do transporte coletivo com o objetivo de reduzir danos é do âmbito do direito público. Como se pode relacionar ambos num Estado Regulamentador em que se reconhece como problema social a falta de regulação de espaços quase-públicos? O ponto de partida está no reconhecimento de que tanto ações cíveis de ressarcimento de danos quanto a legislação têm efeitos regulatórios. As ações indenizatórias regulam conduta indireta, e comumente, através do ônus financeiro da condenação. De maneira similar, a legislação pode regular a conduta, por um lado, ao estabelecer padrões e diretrizes, e por outro, através de multas, subsídios, e demais controles adminstrativos. As diferenças mais significativas estão, no entanto, em outra esfera: procedimentos de resolução de conflitos. A regulação administrativa usa fiscais para decidir os casos que

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estão previstos em regras genéricas; usa procedimentos técnicos – não judiciais – para avaliar informações; tenta evitar que o dano ocorra, ao invés de reparar o dano causado. O Judiciário trata cada ação indenizatória como um caso individual; e devido à multiplicidade das lides, possibilita a desigualdade de indenizações, a qual tende a ser minimizada nas multas administrativas. Em resumo, as diferenças principais referem-se a quem decide, quando, com que informação, de acordo com que procedimento, e com que alcance. Em tese, um esquema regulatório adequado pode usar as ações indenizatórias com um complemento à mecanismos de fiscalização administrativa. As ações constituiriam fundamentalmente um sistema de compensação movido pelas demandas dos particulares através do Judiciário. Os problemas na regulação jurídica dos transportes coletivos (e talvez de outros espaços quase-públicos) são, pelo menos, dois. Primeiro, os mecanismos de controle e fiscalização administrativa são ineficazes ou inexistentes. Segundo, ações indenizatórias não tem impacto agregado suficiente para resultar num controle efetivo sobre as atividades e espaços. Isto ocorre devido às tendências doutrinárias e jurisprudenciais que não incorporaram apropriadamente a dimensão constitucional de ética social e de interesse público na reparação de danos. Enfim, é indispensável se abrir um debate amplo sobre o que já se constitui como controvérsia nos Tribunais e nos Juizados. Numa época em que a política se contraiu, e se dissimula em controvérsias envoltas em discursos profissionais, cabe aos juristas se engajarem como assistentes técnicos do cidadão. Uma de suas tarefas mais importantes é a de repolitizar os novos riscos sociais – para que a controvérsia se abra ao debate público no qual os interesses corporativo-empresariais talvez não prevaleçam mais.

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ESTADO, PRIVATIZAÇÕES E REGULAÇÕES DE SERVIÇOS URBANOS:

PERSPECTIVAS EM DEBATE ___________________________

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O serviço público de transporte coletivo de passageiros*

Marcos Juruena Villela Souto** 1. Marco regulatório A era da globalização forçou a revisão de diversos conceitos em

matéria de administração pública, forçando, paulatinamente a substituição do Estado gestor pelo Estado regulador das atividades de interesse público, buscando, na medida do possível, que a eficiência no atendimento dos interesses públicos seja obtida através do aumento da competição e dos investimentos do setor privado; esta realidade não é nova no segmento dos transportes urbanos de passageiros.

A Constituição Federal trata da questão dos transportes, em especial, nos artigos 22, XI, (ao atribuir competência privativa à União para legislar sobre “trânsito e transportes”), 21, XII, c, d, e e XXI (ao cometer à União a função administrativa de prestar os serviços de transporte aéreo, aeroespacial, ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras e rodoviário interestadual e internacional, bem como para estabelecer princípios e diretrizes para o Sistema Nacional de Viação), no art. 30, V (ao atribuir aos municípios a prestação dos serviços de interesse local, aí entendido transporte coletivo de passageiros, que tem caráter essencial), reservando aos Estados a competência residual (art. 25, § 1º), em especial para o transporte intermunicipal; isso para não falar nas questões correlatas, como a integração regional, a proteção ao meio ambiente, as políticas urbanísticas, o tratamento adequado ao portador de deficiência.

Daí porque, dada a distribuição de competências inerente ao Princípio Federativo, o Sistema de Transporte de Passageiros reger-se-á conforme o disposto em lei, federal, estadual, municipal ou distrital, conforme a competência para a prestação do serviço (definida esta pela abrangência territorial das linhas), atendidas as disposições das normas gerais federais relativas a licitações, contratos administrativos, concessões e permissões de serviço público, bem como pelos respectivos atos de concessão, permissão, autorização e licença.

Entende-se como “Sistema de Transportes” a condução de passageiro, por auto-ônibus, comum e seletivo, por táxi e lotação, o

* O texto constará da 4ª edição, revista, atualizada e ampliada da obra Desestatização – privatização, concessões, terceirizações e regulação. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2001 (no prelo). ** Professor do Mestrado em Direito Empresarial da Universidade Cândido Mendes; Doutorando em Direito Econômico e Sociedade e Procurador do Estado do Rio de Janeiro.

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sistema viário, controle e organização do trânsito para efetivação do transporte coletivo, o mecanismo de custeio, fiscalização e regulação do transporte urbano e a respectiva estrutura operacional.

O Transporte Coletivo de Passageiro é um serviço público regular e contínuo, segundo condições, itinerário e horários previamente estabelecidos e com pontos de embarque e desembarque definidos, mediante pagamento individual de tarifas cujo valor é fixado pelo Poder Público.

O sistema pode comportar, ainda, o conceito de serviços especiais, como o serviço seletivo, que é aquele prestado, em horários e percursos pré-estabelecidos, em veículos dotados de maior conforto, lotação limitada e sujeito a tarifas especiais, que remunerem, inclusive os serviços adicionais consistentes, por exemplo, em refrigeração interior e outros que a autoridade pública estabeleça.

Cabe mencionar, pela relevância que o tema vem assumindo, o transporte coletivo privado de empregados e o que se convencionou chamar de transporte alternativo (adiante exposto).

Cite-se, também, o transporte escolar e social, dotado de características especiais de segurança e de acessibilidade, destinado ao atendimento de colégios e instituições de assistência social e o transporte de pessoas para passeios ou excursões esportivas ou turísticas, mediante pagamento de frete para determinado fim.

A atividade regulatória deve zelar para que os serviços de transporte de passageiros sejam prestados segundo regras objetivas de seleção que elejam os meios adequados e eliminem conflitos ou competições desleais entre as diversas modalidades enunciadas, e mediante articulação coordenada e planejada, que permita obter eficiência na prestação, satisfação das necessidades públicas e justa rentabilidade dos serviços. Confira-se a lição de HELY LOPES MEIRELLES170 sobre o tema:

"Todavia, sendo estáveis as permissões de transportes outorgadas pelo Estado, devem ser respeitados os direitos dos permissionários, principalmente o direito à justa retribuição pelos serviços prestados, coibindo-se, entre outras práticas nocivas, a concorrência ruinosa (...) decorrente da exploração desenfreada de linhas, com o enriquecimento de alguns permissionários e o empobrecimento de outros ou a ruina de todos eles.

170 Estudos e pareceres de direito público Vol. IV. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1982, pág. 180 e ss.

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Objetivando prevenir a concorrência ruinosa (...) fixa o critério para a aferição da necessidade de transporte com base no índice estatístico de utilização de veículos, em se tratando de região já servida. Observe-se que a concorrência singela não é vedada porque a permissão, por sua natureza, não confere exclusividade ao permissionário."

Os veículos destinados ao serviço público de transporte coletivo classificam-se, geralmente, em Auto-ônibus, Micro-ônibus, Auto-autolotações e Táxis171. O eventual uso de veículos destinados ao serviço público por empresas privadas não converte a atividade em serviço público, mas, se utilizado com os mesmos propósitos poderá ser reputado exercício ilegal da função pública.

O Plano de Transporte Coletivo, cuja aprovação compete ao Poder Público, estabelecerá normas reguladoras do emprego de cada uma das espécies de veículos, proporcionalidade relativa de volume de transporte entre as diversas espécies de veículos de transporte coletivo, a lotação mínima e máxima de passageiros sentados e de pé e os padrões de serviço172, de modo a assegurar continuidade e eficiência; seus objetivos são a satisfação dos interesses dos usuários, da política tarifária e a obrigação de manter serviço de transporte adequado (inclusive garantindo o acesso a pessoas portadoras de deficiência física nos locais da prestação de serviços), não sendo permitidas a concorrência ruinosa e outras práticas que coloquem em risco a estabilidade dos serviços ou contrariem o interesse da coletividade (conforme diretrizes emanadas do órgão regulador).

O Poder Público deverá, entre outras, realizar inspeções, vistorias e fiscalizações nos veículos de transporte, em seus diferentes regimes, receber e apreciar representações de usuários, no que se refere à prestação do serviço de transporte, sem prejuízo da competência do Órgão Regulador, analisar planilhas de custos para os cálculos tarifários e autorizar preços, assegurando aos operadores a justa remuneração que resguarde o equilíbrio econômico-financeiro.

Só poderão ser utilizados, para o serviço público de transporte coletivo de auto-ônibus, micro-ônibus e auto-lotações, veículos com

171 Taxis são veículos de passeio destinados ao transporte de no máximo quatro passageiros, dotados de taxímetro como meio exclusivo de aferição e cobrança dos serviços prestados, cuja remuneração se dará por tarifa aprovada pelo Poder Público. 172 Todo o veículo de transporte coletivo levará escrito, no interior, os limites de lotação de passageiros sentados e em pé, sendo proibido o excesso da lotação, cuja responsabilidade recairá objetivamente sobre o transportador. Os veículos deverão, ainda, possuir plaqueta ou adesivo que mencione o valor da tarifa e o troco máximo.

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chassis de tipo apropriado e carroceria confortável, de modelo aprovado pelo Poder Público, devendo ser mantidos em registro apropriado os dados relativos à manutenção, eficiência mecânica e vida média de sua frota, a fim de serem apurados os índices relativos que deverão intervir no cálculo da tarifa e preços de passagem.

Poderá ser determinada pelo Poder Público a retirada do tráfego de qualquer veículo que não esteja em bom estado de funcionamento, conservação ou asseio ou se constatada pela fiscalização alguma discordância ou deficiência relativa às características ou detalhes que tiveram sido aprovados.

Além dos veículos, também os condutores e cobradores estão submetidos às normas da autoridade competente, o que inclui o licenciamento e o cadastramento.

Para atender aos serviços de fiscalização, serão emitidos pelo Poder Público passes livres especiais, válidos nos veículos de transporte coletivo, para uso exclusivo das autoridades.

Sem prejuízo da cobrança dos impostos incidentes sobre a operação, ficam os titulares de concessão e permissão de serviço de transporte sujeitos às taxas de vistoria anual, por transferência de permissão, de permuta de veículos e à taxa de regulação (esta, sem natureza tributária).

As concessões e permissões de linhas de transporte coletivo serão objeto de prévia licitação, nos termos da legislação própria, julgada, via de regra, pelo menor valor da tarifa do serviço público a ser prestado, pela maior oferta, nos casos de pagamento ao Poder Público pela delegação ou pela combinação desses critérios, embora não seja raro o uso da melhor técnica (para não onerar a tarifa).

Por fim, o serviço de transporte de passageiros em automóvel de aluguel (taxi) a taxímetro será prestado, mediante o registro prévio no Poder Público, por motoristas autônomos (permissionários e auxiliares, cooperativas de permissionários autônomos ou por empresas comerciais exploradoras de serviços de transporte de aluguel).

O permissionário autônomo é o motorista profissional que, reconhecido pelo órgão competente, obtenha delegação do Poder Público para explorar o serviço de transporte de passageiro, de acordo com a legislação. O motorista auxiliar é o profissional que exerce sua atividade no serviço de transporte de passageiro em veículo de terceiro, seja este permissionário autônomo ou empresa173.

173 Os motoristas proprietários e auxiliares deverão portar crachá de identificação, com cores distintas, contendo as características do veículo em que está cadastrado, sendo certo que cada veículo não poderá ultrapassar o limite de motoristas auxiliares cadastrados e trabalhando no veículo. Todos os pontos deverão manter um número mínimo de carros no horário estabelecido em

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A empresa exploradora direta do serviço de transporte de passageiros a taxímetro é aquela cujos motoristas são contratados, na forma do que preceitua a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), observada a frota mínima de veículos.

2. A questão do transporte alternativo O transporte alternativo é uma atividade econômica desenvolvida

em regime de livre iniciativa, sem contemplar uma disciplina estatal definidora de direitos e obrigações para o transportador e para o transportado. Importa explicitar, aqui, que só a lei, como manifestação da vontade da sociedade, através de seus representantes no Poder Legislativo, pode retirar uma atividade do regime de livre iniciativa (fundamento da República – CF, art. 1º, IV) para convertê-la num serviço público, de iniciativa estatal.

Todavia, se particulares se organizam para transportar passageiros colhidos em pontos de ônibus, cobrando tarifas e competindo com as empresas prestadoras de serviços públicos, estão, de certa forma, executando um serviço público sem um ato regular de delegação, praticado na forma da lei.

Se é certo que a competição entre atividades em regime de livre iniciativa e atividades em regime de serviços públicos ou mesmo entre os modais de serviços de transportes é uma realidade que deve ser incentivada, não é menos exato que mesmo as atividades em regime de livre iniciativa estão sujeitas ao poder de polícia administrativa, através de um ato de consentimento (licença) e de atos de fiscalização; afinal, a razão de existência do poder de polícia estatal é, exatamente, o condicionamento da liberdade individual em prol do interesse coletivo.

Nesse sentido se firmou a jurisprudência do Eg. STF, conforme se vê do V. Acórdão, da lavra do eminente OCTAVIO GALLOTTI174:

"Transporte rodoviário interestadual de passageiros. Não pode ser dispensada, a título de proteção da livre iniciativa, a regular autorização, concessão ou permissão da União, para a sua exploração por empresa particular.

lei ou regulamento, sendo que os pontos de parada poderão ser utilizados por todos os permissionários segundo necessidades da própria estruturação urbana e obedecida a legislação de trânsito. 174 RE nº 214.382-1-CE, in Boletim de Licitações e Contratos nº 07/2000. São Paulo : NDJ, 2000, págs. 411/413.

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Recurso extraordinário provido por contrariedade ao disposto no art. 21, XII, e, da Constituição Federal."

Do corpo do V. Acórdão se extrai o seguinte ensinamento: "Decisiva, sim, ao que penso, na solução

da contenda, é a invocação do art. 21, XII, e, da Constituição, que subordina ao regime de autorização, concessão ou permissão federais, a exploração dos serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, quando não assumidos diretamente pela União.

Nesse campo reservado à atuação direta estatal ou de seus concessionários, permissionários, ou autorizados, não pode certamente atuar o particular, ao seu alvedrio, como admitido pelo acórdão a título de proteção da livre iniciativa ou concorrência, princípios que não encontram lugar na área reservada pela Constituição aos agentes da União ou seus delegados."

Há que se considerar, neste ato, a “necessidade do transporte”, de modo a não inviabilizar os prestadores do serviço pela “quebra de escala”.

No âmbito da competência federal para legislar sobre trânsito e transporte, foi editado o Código de Trânsito Brasileiro, que, em seu art. 231, VIII, prevê a infração de gravidade média, efetuar o “transporte remunerado de pessoas ou bens, quando não for licenciado para esse fim, salvo nos casos de força maior ou com permissão da autoridade competente”175.

175 A permissão de transporte alternativo no Estado do Rio de Janeiro - Em que pese a necessidade de lei, foi editado o Decreto nº 25.955, por força do qual ficou “instituído” o “serviço de transporte alternativo rodoviário intermunicipal de passageiros”, sob regime de permissão, destinado a suprir a deficiência do Sistema em razão da ausência ou insuficiência do serviço convencional. Cuidou o referido decreto de identificar as situações em que haveria concorrência desleal, por ultrapassar os limites da subsidiariedade. Não se frustrou, no entanto, o princípio licitatório, expressamente mencionado no art. 15, dispondo-se, nos demais dispositivos, sobre os direitos e deveres dos permissionários, em verdadeiro regulamento autônomo. A possibilidade de ir além, ou seja, atribuir permissões sem licitação para as linhas intermunicipais que não forem objeto de licitação é polêmica. Cabe ao administrador definir as linhas – que, como regra, devem ser licitadas. As linhas não licitadas devem estar submetidas a processo de afastamento da licitação, que exigem justo motivo, na forma do art. 26 da Lei nº 8.666/93. O serviço deveria ser disciplinado em lei e a permissão ser objeto de prévia licitação, sendo, no entanto, admitida a contratação direta a juízo da autoridade; há, inclusive, uma abertura na parte final do texto proibitivo do art. 231, VIII, da Lei nº 9.503/97 (“casos de força maior ou com permissão da autoridade competente”);

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3. Formas de Prestação do Serviço Público Os serviços públicos, como, de resto, as atividades administrativas

(que incluem, ao lado dos serviços, a polícia administrativa, o ordenamento econômico e o ordenamento social), podem ser prestados de forma centralizada ou descentralizada.

A descentralização, no entanto, é um princípio de Administração Pública, já positivado no direito brasileiro desde o Decreto-lei nº 200/67 (art. 6º), por força do qual as autoridades devem se deter no planejamento e no controle, liberando-se, na medida do possível, dos atos de execução.

A descentralização pode se dar através de outorga, mediante autorização em lei da transferência da titularidade de uma função estatal a outra pessoa jurídica integrante da Administração Pública, ou mediante delegação, atribuindo-se, por ato administrativo, apenas a execução de uma função cuja titularidade permanece estatal, cabendo ao delegante o planejamento e o controle da execução privada.

Em tempos de reforma do Estado, com vistas à redução do custo da máquina administrativa e à obtenção de uma maior eficiência no atendimento das necessidades da coletividade, a tendência tem sido de descentralização para particulares, o que não representa uma novidade no setor de transportes, tradicionalmente delegado a particulares através de concessões e permissões de serviços públicos (embora haja outras possibilidades além daquelas explicitadas no art. 175, CF e, nem por isso, são inconstitucionais).

4. Os direitos dos permissionários Aplica-se às permissões o disposto na Lei nº 8.987/95, em especial

quanto aos direitos e deveres dos permissionários e dos usuários; assim, em apertada síntese, o permissionário tem o dever de prestar serviço adequado e o direito de receber uma tarifa módica, porém suficiente para manter o equilíbrio entre os encargos e os benefícios. O investimento deve ser protegido contra surpresas violadoras do princípio da segurança jurídica.

A permissão deixou de ser ato unilateral e passou a ser definida como contrato de adesão, obrigatoriamente precedido de licitação, tendo sido editada norma de transição determinando a validade de todas as "concessões em caráter precário", as vencidas e as vigentes por prazo

embora não se recomende, trata-se de juízo privativo do administrador, devendo ser formalizada a contratação direta com uma justificativa e com uma ratificação publicada.

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indeterminado, que permaneceriam válidas por um prazo não inferior a vinte e quatro meses (Lei nº 8.987/95, art. 42, § 2º).

Daí surgiu um novo foco de discussões, posto que, como "norma de transição", não houve unanimidade em acatá-la como norma geral, obrigatória para todas as entidades da Federação, mas, quando muito, para a União Federal, que a editou.

Discussão à parte, vigora um princípio de presunção de constitucionalidade das leis, não havendo decisão judicial a respeito. A norma impõe um dever de licitar as concessões e permissões, dando, pois, aplicação aos princípios da isonomia e da eficiência. Todavia, a mudança da legislação não significa que, por conta da precariedade da permissão, se autorize que se prive o permissionário de discutir os motivos da revogação do ato de permissão, nem, muito menos, que se o faça sem indenizar o patrimônio não amortizado.

Tanto a permissão unilateral quanto a permissão contratual são precárias, e, como visto, podem ser desfeitas sem necessidade de autorização legislativa (aí está a precariedade). A jurisprudência do Eg. STF sobre a matéria não é diferente daquela orientação já fixada no verbete nº 473 da sua Súmula. Confira-se a ementa de acórdão prolatado pelo eminente Ministro ALFREDO BUZAID176:

" ADMINISTRATIVO. Regime de permissão. Sua alteração por decreto, substituindo a outorga de permissão pelo sistema de licitação.

O Sistema de Permissão, sendo de sua índole discricionário e precário, pode ser modificado a juízo da Administração. (...)"

Não se retira, no entanto, o direito de defesa ou de indenização dos prejuízos sofridos, conforme se vê da própria orientação do Eg. Supremo Tribunal Federal, pela pena do Ministro LAFAYETTE DE ANDRADA177:

" PREMISSÃO PARA EXPLORAÇÃO DE SERVIÇO DE TRANSPORTE COLETIVO. Serviço instalado e em funcionamento. Impossibilidade de anular-se a permissão, unilateralmente, sem forma nem figura de juízo. Recurso provido.

176 Julgamento em 19.04.83; 1ª Turma. Agravo Regimental nº 91568-SP, DJ 03.06.83 pag. 07881; ement. Vol. 01297-02 pág. 395; RTJ vol. 107-02, pág. 647. 177 Julgamento em 07.10.68, 1ª Turma. Recurso de Mandado de Segurança nº 18787-SP; DJ 25,.04.69, pág. 01635; ement. Vol 761-01 pag. 761; RTJ vol 49-03, pág. 689.

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O poder discricionário na avaliação da conveniência e oportunidade para a prática da revogação não é um “cheque em branco” ao administrador, já que o administrado, em especial, o parceiro da Administração, que investiu no atendimento do interesse público, não pode ser surpreendido com a perda arbitrária de seu negócio. Trata-se de dar aplicação ao princípio da segurança jurídica, hoje já positivado no direito brasileiro (art. 2º da Lei nº 9.784, de 19.01.99, que regula o “processo administrativo”).

DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO178 menciona o princípio da confiança legítima, noticiando ter sido ele desenvolvido pela doutrina alemã, posteriormente incorporado ao Direito Comunitário e fortemente afirmado na jurisprudência da Corte Européia, não só para segurança jurídica das partes nas relações, como pela informação positiva que passa aos investidores, valendo-se de reflexões valiosas de doutrinadores franceses.

RENÉ CHAPUS179 afirma que, embora não positivado no direito francês, já foi invocado pela jurisprudência do Conselho de Estado, que reconheceu a responsabilidade da Administração ao alterar bruscamente seu comportamento, ainda que com bases legais, “iludindo a confiança que o administrado podia manter legitimamente quanto à estabilidade da situação”.

Na mesma linha PIERRE DEVOLVÉ180 ressalta que o princípio não teria utilidade senão nas hipóteses nas quais o estado do direito atual não desse aos administrados, e particularmente aos operadores econômicos, uma segurança suficiente. Ele poderia servir assim notadamente no caso de modificação de um dispositivo jurídico contrariamente àquele que foi fixado para durar por certo tempo ou sem adoção de medidas transitórias.

Tal doutrina tem sido adotada pela jurisprudência posterior à Constituição de 1988, conforme se vê da orientação do Eg. STJ, em acórdão da lavra do Min. DEMÓCRITO REINALDO181:

“ I – Na aplicação das Súmulas 346 e 473 do STF, tanto a Suprema Corte, quanto este STJ, têm adotado, com cautela, a orientação jurisprudencial inserida nos seus

178 Parecer: Autonomia das relações fiscais . Do original, gentilmente oferecido para este estudo. 179 Droit Administratif General . Paris : Montchrestien, 13ª ed. Tomo I , 1999, pág. 97, apud Parecer: Autonomia das relações fiscais cit.. 180 Droit public de l´economie . Paris : Daloz, pag. 208 apud Parecer: Autonomia das relações fiscais cit.. 181 STJ, RMS n. 10.123, 1.Turma,, DJU 27.09.99, pág. 46.

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enunciados, firmando entendimento no sentido de que o Poder de a Administração pública anular ou revogar os seus próprios atos não é tão absoluto, como às vezes se supõe, eis que, em determinadas hipóteses, hão de ser inevitavelmente observados os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Isso para que não se venha a fomentar a prática do ato arbitrário ou a permitir o desfazimento de situações regularmente constituídas, sem a observância do devido processo legal ou de processo administrativo, quando cabível. II – O princípio de que a administração pode anular (ou revogar) os seus próprios atos, quando eivados de irregularidades, não inclui o desfazimento de situações constituídas com aparência de legalidade, sem observância do devido processo legal e ampla defesa. (...) ” .

Em sede específica de permissão de transporte coletivo de passageiros, o Eg. STJ182 reafirma tal posição, fixando o entendimento de que:

" Viola o princípio constitucional do devido processo legal a decisão de ministro de Estado que, em procedimento administrativo, revoga provimento por ele anteriormente deferido, e surpreende o permissionário de transporte coletivo de passageiro, com a extinção de direito previsto em lei".

Daí porque há, inclusive, quem sustente que a súbita retomada de um serviço público, sem indenização ou direito de defesa, representa uma “desapropriação indireta” do negócio183.

182 MS 5431/DF; DJ de 17.05.99, pag. 117. Relator designado para o acórdão Ministro Adhemar Maciel; decisão de 23.09.98. 183 sobre o tema ver BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio . Curso de Direito Administrativo. 11ª ed. São Paulo : Malheiros, 1999, pág. 329.

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5. Princípios dos Serviços Públicos aplicáveis ao transporte de passageiros

A definição de um serviço como público já pressupõe a existência de um interesse público legalmente reconhecido (CF, art. 70, em especial, os princípios da legitimidade e da legalidade); isto implica em dizer que a lei federal, estadual, municipal ou distrital que reconhecer um serviço como público no âmbito de sua competência já deve dispor sobre os parâmetros de sua prestação eficiente, de modo a atender à coletividade que legitimou a presença do Estado no setor.

Se o serviço admite prestação por particular, no regime de delegação, a Lei nº 8.987/95, ao tratar do “Serviço Adequado” o define como aquele que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade (modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço), generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.

Há, portanto, duas ordens de definição do serviço adequado, sendo importante frisar que a atividade deve ser definida como serviço público na forma da LEI, que, por sua vez, deve representar a vontade da sociedade como instrumento basilar do Estado Democrático de Direito. Não havendo LEI, a atividade econômica exercida em regime de livre iniciativa só pode ser acompanhada pelo Poder Público no âmbito da polícia administrativa e para a repressão ao abuso de poder econômico e da concorrência desleal.

É claro que o regulamento, a norma regulatória, o edital de licitação e o contrato de concessão ou permissão também podem (e devem) definir as condições de prestação do serviço adequado, o que, aliás, se situa no âmbito das prerrogativas da Administração em função da mutabilidade do interesse público; devem, no entanto, sempre assegurar a preservação do equilíbrio econômico-financeiro.

6. Direitos do Usuários e a Responsabilidade Civil e Administrativa

A mesma Lei nº 8987/95, ao tratar dos “direitos e obrigações dos Usuários” (art. 7º, que não exclui os direitos previstos na Lei nº 8.078, de 11.09.1990), prevê o direito ao recebimento do serviço adequado, informações para a defesa de interesses individuais ou coletivos e, em especial, a liberdade de escolha entre vários prestadores de serviços, quando for o caso, e, ainda assim, observadas as normas do poder concedente. Podem, ainda, denunciar as irregularidades e ilícitos de que tenham conhecimento.

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Para tanto, é necessário que a atividade seja definida como um serviço público, seguida de um ato de concessão ou permissão delegando sua exploração ao particular. As atividades em regime de livre iniciativa só asseguram direitos de consumidor (e não de usuário). 7. Características do contrato de concessão e

distinção para a permissão e para a autorização de serviço de transporte coletivo

de passageiro 7.1. Concessão

O contrato de concessão do serviço de transporte coletivo de passageiros deverá ser firmado com pessoa jurídica que preencha, entre outras exigências de natureza técnica, os requisitos indicados pelo órgãos competentes, em especial, de frota de ônibus que atenda às necessidades da linha, com a obrigação de renovação e atualização em número, capacidade de transporte e condições de tráfego, no prazo definido no instrumento, de modo a garantir a excelência dos serviços, sem prejuízo do equilíbrio econômico-financeiro garantido à concessionária, além de comprovação de disponibilidade de imóvel com instalações, equipamentos e pessoal necessário à prestação dos serviços, manutenção das condições normais de tráfego e garagem.

São cláusulas essenciais do contrato de concessão, entre outras presentes nas concessões, as relativas ao número das linhas, nome das linhas e número mínimo de ônibus exigidos, ao modo, forma, condições e prazo da prestação do serviço, aos critérios, indicadores, fórmulas e parâmetros da qualidade do serviço, ao preço do serviço e aos critérios e procedimentos para o reajuste e a revisão das tarifas, à forma de fiscalização dos ônibus, das instalações, dos equipamentos, dos métodos e práticas de execução do serviço, bem como a indicação dos órgãos competentes para exercê-la.

A concessionária fica obrigada a cumprir as normas vigentes que o Poder Concedente estabelecer com relação à operação do sistema, em especial no que diz respeito a tarifa, itinerário, horários, frota em operação, disposição, tamanho e cores de elementos informativos, treinamento de pessoal, fiscalização, gratuidades estabelecidas em Lei, e preservação ambiental.

Os horários e itinerários serão fixados em função das demandas de transportes, do interesse público, da segurança do tráfego e do equilíbrio econômico-financeiro da permissão ou conjunto das permissões,

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podendo ser alterados, aumentados ou diminuídos, a critério do Poder Concedente.

Isso implica em dizer que a introdução de sistemas alternativos, por ato oficial, pode representar a necessidade de revisão das tarifas pela quebra de escala. Se o ato não é oficial, mas o Poder Público se omite no dever de fiscalizar, a quebra de escala deve ser indenizada pelo prejuízo que causa ao concessionário ou permissionário.

O aumento ou a redução de frota de uma linha dependerá da análise das condições do transporte na região interessada a fim de ser mantida a viabilidade econômica da exploração das linhas existentes e o pleno atendimento ao usuário. Atendido o interesse público e mediante prévia aprovação do Poder Concedente, poderá ser determinada a alteração da designação, do número, do itinerário e dos pontos terminais de qualquer linha ou tráfego de transporte coletivo comum ou especial, respeitado o princípio de ser mantida a estabilidade financeira da prestação de serviço.

A transferência de linhas depende de expressa anuência do Poder Concedente e só poderá ser feita a pessoa jurídica que tenha por objeto social o serviço de transporte coletivo regular de passageiro de auto-ônibus, observado o disposto no art. 27 da Lei nº 8987/95.

O Poder Concedente poderá determinar a utilização de um percentual máximo da frota de cada empresa para atendimento de situações de emergência em áreas distintas daquelas em que operam.

A celebração do contrato de concessão de exploração dos serviços deverá ser precedida da instituição de seguro em favor de terceiros, por danos materiais por pessoa atingida no sinistro, em conformidade com os valores mínimos definidos pelo Órgão Regulador. As apólices correspondentes aos seguros deverão ser apresentadas, devidamente quitadas, ao Poder Concedente no início de cada exercício, antes do licenciamento dos veículos.

7.2. Permissão de serviços públicos

Até o advento da Constituição de 1988, a permissão era a fórmula mais comum de delegação dos serviços de transportes, atribuídas a particulares em caráter precário por ato administrativo unilateral; isto viabilizava sua atribuição sem licitação, porém, sem conferir maior segurança ao permissionário.

A matéria foi sempre discutida na doutrina, que reconheceu as chamadas permissões condicionadas ou permissões contratuais, que não se revestiriam da precariedade que caracterizava o ato unilateral de

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permissão, instituto esse reconhecido por HELY LOPES MEIRELLES184, com apoio em farta doutrina:

" Entre nós, Cretella Júnior, em substancioso estudo sobre as permissões de uso, acolhe a mesma doutrina, classificando-as em permissões simples e qualificadas, conforme o grau de precariedade (cf. Regime Jurídico das Permissões de Uso no Brasil, in RDA 101/24). Preferimos, entretanto, classificá-las em permissões puras e permissões condicionadas, para designar, respectivamente, as que não criam nenhum encargo para o permitente, possibilitando sua livre revogação, a qualquer tempo e em qualquer circunstância, e as que são outorgadas com determinadas condições, a serem observadas tanto pelo permissionário como pelo permitente, reduzindo, assim, o grau de precariedade e os limites da discricionariedade da Administração, mas sem perder a sua característica de ato negocial.

(...) Uma permissão condicionada é o que o

saudoso Prof. J. H. Meirelles Tereixa chamaria de "permissão de caráter contratual" (Permissão e Concessão de Serviço Público, in RDP 6/124). Assim, a permissão condicionada assemelha-se à concessão. Tem razão o eminente Prof. Miguel Reale, ao afirmar que "a permissão se constitui como se fora autorização e é exercida como se fora concessão" (Direito Administrativo - Pareceres e Estudos, Forense, 1969, p. 155)

(...) Ao abordar o mesmo assunto, a

propósito da legislação do Município de São Paulo, nas suas linhas básicas muito

184 Estudos e pareceres de direito público. Vol. V. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1982, págs. 114 e ss.

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semelhante à do Estado, Meirelles Texeira, em exaustivo estudo publicado nos volumes 6 e 7 da Revista de Direito Público, demonstra que, "sob o nomem juris de permissão, o Decreto 6.547 esquematizou, na realidade, uma figura contratual típica, muito próxima da concessão de serviços públicos", observando, com apoio em Trotabas, Wauthier e Marienhof, dentre outros, que: "Trata-se, portanto, de uma permissão de caráter contratual, o que aliás, não deve causar espécie, primeiro porque, como se viu, o vocábulo "permissão" é dos mais equívocos, servindo, na prática, para designar situações jurídicas as mais diversas, e em segundo lugar porque tais permissões contratuais não constituem nenhuma novidade, nem na doutrina, nem na legislação" ("Permissão e Concessão de Serviço Público", RDP 6/100)."

A essas permissões, definidas como "quase contratos", é que se aplica o art. 42, § 2º da Lei nº 8987/95, que trata das "concessões precárias". Tal norma repudiou as permissões de serviços públicos como ato unilateral, sejam as puras e simples, sejam as condicionadas; passaram ambos os modelos a ser definidos como “contratos de adesão”; buscou-se, pois, ampliar o controle, pela via da obrigatoriedade da prévia licitação.

Ocorre que a inovação gerou a perplexidade de se saber qual a distinção entre concessão e permissão de serviços públicos, se ambos, pela vontade do legislador, são definidos como contratos.

Embora haja pequenas diferenças notadas numa interpretação literal da norma – tais como a possibilidade de atribuição da permissão a pessoa física, a impossibilidade de utilização de tal instituto quando houver necessidade de obra pública vinculada à execução do serviço - o ponto central é a precariedade.

Sendo ambas contratos, não se admite contrato administrativo por prazo indeterminado, razão pela qual, se há prazo, a precariedade não está nesse elemento.

Também não se vislumbra a precariedade na possibilidade de desfazimento do vínculo a qualquer tempo, posto que a extinção unilateral dos contratos administrativos é uma de suas características mais marcantes.

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Na concessão há necessidade de autorização legislativa e indenização prévias ao passo que a permissão admite revogação – e não encampação ou rescisão – por ato unilateral do Poder Público; deve ser assegurado o direito à indenização, observada a regra geral – art. 79 da Lei nº 8.666/93 – de posterior comprovação dos prejuízos. Nesse sentido, frisa-se a orientação do Eg. Superior Tribunal de Justiça185:

" ADMINISTRATIVO. TRANSPORTE COLETIVO URBANO. PERMISSÃO: REVOGAÇÃO - POSTERIOR TRANSFERÊNCIA SEM LICITAÇÃO. A permissão dos serviços de transporte coletivo não pode ser resilida unilateralmente pela Administração Pública sem motivação fundada, e transferida imediatamente para outra empresa sem licitação regular."

Se é certo que uma permissão de serviço público anterior à Constituição de 1988 tem caráter precário e pode ser revogada, não é menos exato que para o desfazimento de tal ato seja desnecessário o direito de defesa ou que o permissionário não tenha direito a ser indenizado pelo patrimônio investido por determinação do Poder Público, bem como pelos prejuízos sofridos com a competição desleal não fiscalizada.

Não cabe falar que uma das diferenças entre concessão e permissão está na obrigatoriedade da licitação por concorrência para as concessões, ao passo que a lei nada dispõe sobre a modalidade de licitação aplicável às permissões. Isto porque, primeiramente, além da concorrência, a legislação que institui o Programa Nacional de Desestatização (Lei nº 9.491/97) bem como a Lei nº 9074/95 prevêem a possibilidade de adoção da modalidade de leilão; em segundo lugar, porque afora essas duas modalidades, nenhuma das outras é compatível com a licitação de serviços públicos.

7.3. Autorização de serviços públicos

A autorização é definida como um ato administrativo unilateral, discricionário e precário, incluído na categoria dos atos negociais ou receptícios, porque envolve uma provocação do interessado, a cuja aceitação fica condicionada a sua eficácia.

185 R.Esp. 90.955 - São Paulo, julgado em 12.09.96. Relator: Ministro ARI PARGENDLER,.

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Difere da licença, que também é formalizada por um alvará, porque esta é ato vinculado e definitivo, não podendo, em regra, ser negada nem desfeita pelo Poder Público se preenchidos os requisitos exigidos em lei para a sua outorga.

Quando envolve o uso de um bem público, assemelha-se à permissão de uso, que também é discricionária e precária, porque nesta ocorre um equilíbrio entre o interesse público e o privado, ao passo que na autorização predomina o interesse privado.

Ao outorgar um alvará de autorização, o Poder Público chancela um interesse privado desde que não afete, segundo seu juízo de conveniência e oportunidade (variável a qualquer tempo) o interesse da coletividade.

Se o interesse que predomina é o privado, não deve ser outorgada a autorização em hipóteses que violem direitos ou interesses de terceiros, o que, em matéria de serviços públicos, exigiria licitação e a definição de obrigações em termo circunstanciado que assegurasse um mínimo de direitos para o Poder Público, usuários e para o fornecedor do bem ou serviço.

Como o art. 175 da Lei Maior só se referiu à concessão e à permissão de serviço público, houve quem sustentasse que a autorização do serviço público não é mais admitida para Estados e Municípios (já que tratada apenas no art. 21, XII, CF, que cuida da competência administrativa federal).

Data venia desses entendimentos, nada impede que as Constituições Estaduais e Leis Orgânicas Municipais disponham sobre sua utilização, observados os princípios que regem a Administração Pública, já que a técnica de repartição de competências não enumerou os poderes dessas entidades, como o fez com a União.

O certo é que só se pode utilizar a autorização quando não houver predominância do interesse público sobre o particular; do contrário deve se firmar uma concessão ou permissão, submetidas ao princípio licitatório186.

186 A definição de autorização é polêmica. ODETE MEDAUAR - Concessão de serviço público. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1995, pág. 16. - trata a atribuição de serviços simples ao particular como forma de “autorização de serviço público” e não de permissão. Confira-se a lição, in verbis:“ Quanto à autorização, permanece sua formalização por ato administrativo discricionário e precário. Em geral, pela autorização se transferem a particulares serviços pouco complexos, nem sempre com remuneração por tarifas. É o caso da autorização para conservação de praças, jardins ou canteiros de avenidas, em troca da afixação de placa com nome da empresa.” A Lei nº 9.074/95 prevê autorização para a implantação de usinas termelétricas, de potência superior a 5.000 kW, destinadas a uso exclusivo do autoprodutor e para o aproveitamento de potenciais hidráulicos, de potência superior a 1.000 kW e igual ou inferior a 10.000 kW, destinados a uso exclusivo do autoprodutor, aí não compreendidas aquelas cuja fonte primária de energia é a nuclear. A Lei de Modernização dos Portos, em seu art. 4º, assegura ao interessado o

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Em matéria de serviços públicos de transporte de passageiros só se previu a concessão ou a permissão. Há, no entanto, uma previsão expressa de autorização. O Código de Trânsito Brasileiro estatui que os veículos especialmente destinados à condução coletiva de escolares somente poderão circular nas vias com autorização emitida pelo órgão ou entidade executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal, exigindo-se alguns requisitos para tanto, com vistas ao atendimento do dever de segurança187. Outra hipótese, citada por HELY LOPES MEIRELLES188, é no caso de "movimento extraordinário, em sábados, domingos e feriados", em caráter excepcional e provisório, cassável a qualquer tempo. No mais, reafirma o jurista a orientação de que não se generalizou a autorização como forma de outorga de linhas e horários definitivos.

7.4. As hipóteses que dispensam concessão, permissão ou autorização

Os serviços públicos, quando prestados por particulares, dependem de concessão ou permissão, previamente licitadas; o mesmo não se exige das atividades econômicas, desenvolvidas em regime de livre iniciativa, não sujeitas à autorização estatal, ressalvadas as hipóteses contempladas em lei (CF, art. 170, parágrafo único), embora sujeitas à licença e à fiscalização.

É o caso do fretamento, que independe de concessão ou permissão; é, pois, sujeito ao mero consentimento de polícia, por ato vinculado (licença) o transporte rodoviário de pessoas, realizado por operadoras de turismo no exercício dessa atividade ou de pessoa, em caráter privativo de organizações públicas ou privadas, ainda que em forma regular. O Poder Público não poderá negar o ato de licença para tais serviços após constatação em vistoria das condições dos veículos empregados, bem como da habilitação dos motoristas.

direito de construir, reformar, ampliar, melhorar, arrendar e explorar instalação portuária, dependendo de autorização do Ministério competente, quando se tratar de terminal de uso privativo, desde que fora da área do porto organizado, ou quando o interessado for titular do domínio útil do terreno, mesmo que situado dentro da área do porto organizado. Também aqui, a autorização deve ser precedida de consulta à autoridade aduaneira e ao poder público municipal e de aprovação do Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente - RIMA. A exploração da instalação portuária far-se-á sob a modalidade de uso público, restrita à área do porto organizado, ou de uso privativo, podendo este ser exclusivo, para movimentação de carga própria ou misto, para movimentação de carga própria e de terceiros. 187 Os serviços de transporte escolar serão prestados através do regime de autorização, para a qual as empresas, os estabelecimentos de ensino e as cooperativas deverão apresentar os documentos definidos em regulamento. 188 Estudos e pareceres de direito público cit. vol. VIII, 1982, págs. 141 e ss.

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Nesse conceito, no entanto, não se enquadra o chamado transporte alternativo, que desenvolve uma atividade de transporte coletivo irregular de passageiros, a merecer a repressão do Poder Público pela inexistência de delegação da função pública, na forma da lei, e pela concorrência desleal que exerce, podendo colocar em risco o passageiro (dada a clandestinidade desse transporte irregular) e o próprio serviço público (pela perda da escala, indispensável à viabilidade das concessionárias e permissionárias)189.

8. A regra geral da licitação da concessão ou permissão do serviço e a questão da

contratação direta 8.1. A licitação

A regra nas contratações públicas é sempre a licitação com critérios objetivos de julgamento, eleitos pelo administrador de acordo com sua discricionariedade, observados os critérios técnicos pertinentes, bem como o princípio da razoabilidade.

O edital de licitação conterá, especialmente, o objeto, metas e prazo da concessão ou permissão, a descrição das condições necessárias à prestação adequada do serviço e as linhas a serem operadas pelas concessionárias e permissionárias, com as respectivas condições

189 Tanto isso é certo que no Estado do Rio de Janeiro foi editada a Lei nº 2.890, de 08.01.1998, que, em seu artigo inaugural, veda a “operação de serviço de transporte de passageiros de característica intermunicipal, sob o regime de fretamento, por pessoas físicas, jurídicas ou cooperativas não registradas para esse fim no Departamento de Transportes Rodoviários do Estado do Rio de Janeiro – DETRO-RJ”; o art. 17 do mesmo diploma legal veda a operação de serviços de transportes coletivos de passageiros, regulares ou sob a forma de lotadas por Kombis, camionetas do tipo VAN, motocicletas ou similares”, prevendo a sanção de apreensão do veículo. Tentativas houve de revogar a citada Lei nº 2.890/98, como pode se ver do Projeto de Lei nº 770, de 04.10.2000, de autoria do Exmo. Sr. Deputado Estadual Paulo Ramos, que, inclusive, recebeu parecer contrário da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro em face de sua inconstitucionalidade formal (vício de iniciativa) - Parecer nº55/00-SNM, de 25.09.2000, em resposta ao Ofício GC/PL nº 368/2000. Depende, pois, do DETRO, nos termos da Lei nº 1221, de 06;11.1987, a competência para a concessão, permissão ou autorização do serviço, bem como para a apenação da ilegalidade - Registre-se que os agentes estaduais têm procurado reprimir as ilegalidades, sendo questionadas por ações mandamentais, respondidas pela Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, citando-se, como exemplo, o Processo nº 98.001.137267-8, impetrado contra o Comandante da Polícia Militar e contra o Presidente do DETRO, defendidos, com habitual brilhantismo, pelo Procurador do Estado MARIO AUGUSTO FIGUEIRA, em 04.11.1998.

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peculiares190, dando-se a seleção da proposta mais vantajosa por critérios objetivos.

Embora a hipótese mais comum de licitação de concessões e permissões de serviços públicos se dê pelo tipo de “menor tarifa” ou “maior valor pago ao Poder Público” pela delegação, o transporte de passageiros, destinado à população de baixa renda, tem sua tarifa definida por ato do Poder Público, não sendo posta em competição; para viabilizar sua modicidade, raros são os casos em que se cobra pela delegação, restando o critério da melhor técnica, que, para ser válida, frise-se, deve ser pautada por um julgamento objetivo (evitando-se margens a subjetivismos que afastam o princípio da impessoalidade e da eficiência para privilegiar um determinado competidor).

8.2. A contratação direta

A licitação só passou a ser obrigatória para os serviços públicos com a Constituição de 1988; antes dela, doutas vozes sustentavam a ausência de qualquer dever nesse sentido, conforme se vê do ensinamento de HELY LOPES MEIRELLES191:

" Em face dessas disposições, o Município paulista que não puder ou não desejar executar diretamente os serviços de transporte coletivo poderá delegá-los a particulares, mas sempre mediante concessão ou permissão, conforme lhe seja mais conviniente, atendidas, em qualquer

190 Na licitação, o objeto será a operação da linha de transporte coletivo que fará a ligação entre dois pontos, constante das especificações o itinerário de ida e volta, a quilometragem total, o veículo a ser utilizado, o número de veículos componentes da frota para a operação da linha, se a tarifa será modal (única), a idade da frota, o tempo de ciclo do investimento (igual à vida útil do veículo), a partir do qual será considerado recuperado (quando todos os custos da planilha, à exceção da Remuneração do Capital). A qualificação técnica será comprovada, mediante a indicação das instalações e do aparelhamento adequados e disponíveis para a realização do objeto da licitação, bem como a qualificação de cada um dos membros da equipe técnica que se responsabilizará pelos trabalhos. Para tanto, as licitantes deverão apresentar: a) Planta baixa do imóvel a ser utilizado para a guarda dos veículos (garagem), em tamanho compatível com o quantitativo da frota a ser alojada, nos termos do Projeto Básico, devendo ser atualizada sempre que houver alteração no espaço físico de guarda; b) Título de propriedade, locação ou de outra forma legal de uso do imóvel destinado à guarda e manutenção dos veículos, localizado neste Município, de forma a possibilitar o regular exercício da fiscalização do Departamento de Obras e Serviços Públicos; c) Alvará de Localização do Imóvel destinado à guarda e manutenção dos veículos e à administração da empresa; d) Qualificação dos membros da equipe técnica que será atestada, mediante apresentação do currículo dos respectivos membros, acompanhado dos certificados dos cursos técnicos especializados. 191 Estudos e pareceres cit. vol. V, 1982, págs. 114 e 127.

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caso, obrigatoriamente, as prescrições da Lei Orgânica e de outras normas legais cabíveis, federais, estaduais ou municipais.

Entretanto, nem sempre foi assim, pois, ao tempo da celebração do contrato de concessão em exame (21.2.57), o Código Nacional de Trânsito então vigente (Decreto-lei 3.651, de 25.9.41) condicionava o "serviço de transporte por veículos de uso coletivo" a mera "licença especial" da autoridade competente, ouvida a repartição de trânsito (art. 64). Para a "concessão da licença", o seu art. 656 classificava os transportes coletivos em municípios, intermunicipais e interestaduais, esclarecendo, no parágrafo único, que à União cabia a "concessão" para "os transportes coletivos nas estradas de jurisdição federal", restando aos Estados regular "a competência para outorga", nos demais casos.

(...) Em conseqüência dessas faltas e

omissões legais, o Município tinha a liberdade de avocar, ou não, os serviços de transporte coletivo, e fazendo-o, delegar sua execução a particulares, por qualquer forma, com ou sem prévia licitação, autorizando-os ainda a subcontratar com terceiros, como ocorreu na concessão em exame, tudo dependendo dos termos da regulamentação prevista no art. 16, §1º, V, da Lei Orgânica vigente. O que norteava a conduta das Prefeituras Municipais nesse setor era a lei da oferta e da procura: se havia muitos interessados na execução dos serviços, preferiam valer-se da licença especial prevista na legislação federal, ou da permissão, ambas unilaterais e precárias; em caso contrário, procuravam despertar o interesse dos particulares em condições de explorar o transporte coletivo nos moldes

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desejados, acenando-lhes com uma concessão a longo prazo, geralmente com possibilidade de prorrogação e até mesmo de subcontratação das linhas menos rendosas.

Atualmente, em que pese a dicção peremptória do art. 175, que “sempre” exige licitação, admite-se, excepcionalmente, que a contratação seja procedida diretamente, nos casos de dispensa e inexigibilidade previstos nos artigos 24 e 25 da Lei nº 8.666/93 compatíveis com o regime de concessão ou permissão. É o caso da urgência, da licitação deserta ou frustrada, para a declaração da dispensa. A inexigibilidade, por sua vez, envolve um juízo privativo do administrador, que, diante da situação concreta, opta pela não realização de procedimento licitatório se a competição não é viável.

Indispensável, também, que, em se optando pela contratação direta, sejam atendidos os requisitos previstos no artigo 26 parágrafo único da Lei nº 8.666/93, ou seja, a caracterização da situação (juízo privativo e de valoração subjetiva do administrador), a razão da escolha do fornecedor ou prestador de serviço e a justificativa do preço. Sem a presença destes requisitos a contratação é nula, podendo ensejar, inclusive, a responsabilidade penal do administrador (artigo 89 da Lei nº 8.666/93).

8.3. A prorrogação de prazo de concessões e permissões de transportes

Exceção ao dever de licitar pode se vislumbrar na legislação de transição que adotou um período de prorrogação das concessões e permissões vigentes (Lei nº 8.666/93, art. 122 - linhas aéreas; Lei nº 9.074/95, art. 19 - energia elétrica, e Decreto nº 2.521, de 20.03.1998, art. 98 - transporte rodoviário interestadual e internacional – doc. 11.1).

Embora o afastamento da licitação exigida pelo artigo 175, CF seja reputado inconstitucional, mister se faz registrar que o posicionamento das Casas Legislativas - dotado de presunção de constitucionalidade até decisão judicial em contrário - vem calcado no princípio do interesse público, voltado para a estabilidade de um serviço do qual dependem diariamente milhares de administrados. Daí porque o princípio licitatório não pode resultar na inteligência de que toda norma que o afaste seja inconstitucional.

Nesse sentido a lição de DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO192:

192 do original, não publicado, gentilmente oferecido para este trabalho. Notas do autor: 12 - soluciona-se, portanto, o problema de aplicação de preceitos conflitantes, pelo método da subsunção, recorrendo-se a silogismos, em que se procurará a exata continência do fato regrado na

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" Tem-se, pois, que, em regra, há mediatidade aplicativa e apenas eficácia dirimente dos princípios, como meio de se obter um ótimo de eficiência na realização concreta do valor nele contido, o que se obtém através de um processo de ponderação.

Assim, a ponderação consiste em um método jurídico de decidir, pelo qual, princípios em conflito, depois de identificados, recebem uma atribuição de pesos ou de graus de importância, para que se possibilite optar pela prevalência de um deles (12).

Com este conteúdo, a ponderação se apresenta como um método jurídico decisório oposto ao da subsunção, que é o método tradicional da dogmática jurídica clássica, o que, na lição, sempre irretocável, de Karl Larenz, se funda em silogismo, em que a premissa maior é o preceito (13).

Relata que esses dois princípios não apresentam idêntica natureza, uma vez que portam valores axiologicamente distintos, pois, o do interesse público, se enquadra entre os interesses substantivos, denominados, na classificação de Carl J. Friedrich, de interesses fundamentais (principled interests), isso porque se fundam na solidariedade social e apresentam forte carga emocional, ao passo que o da licitação, se situa entre os interesses formais, que seriam os interesses instrumentais (expediency interests), para aquele autor,

norma regrante prevalecente, uma vez que, nestes casos, os preceitos são sempre formulados condicionadamente, para serem aplicados apenas quando tal compreensão substantiva ocorra e, por isso, dando-se, em conseqüência, a exclusão de todos os preceitos colidentes que não satisfaçam tais condições de continência, sob critérios de conteúdo e de tempo. Porém, quando o conflito se estabelece entre princípios, de nada serve o método silogístico, exatamente pela ausência da necessária densidade de conteúdo, para que possam funcionar como premissas maiores, já que a norma principiológica não vem formulada condicionalmente, ou seja, não contém a tipificação de um fato concreto ao qual, uma vez verificado, se poderia aplicar. é, pois, o método da ponderação, aquele de que se pode valer para dirimir colidências entre normas principiológicas, uma vez que, não sendo condicionadas na sua formulação, necessitarão de ser condicionadas na sua aplicação, diante das variadas circunstâncias apresentadas pela realidade." (este conceito se formula a partir do desenvolvimento metodológico apresentado por José Maria Rodríguez de Santiago in La ponderación de bienes e intereses em el derecho administrativo, Madri, Marcial Pons, 2000, especialmente ps. 121 a 138. Karl Larenz, Metodologia de la ciencia del derecho, Barcelona, 1994, p. 226 (a tradução espanhola da 4ª ed. alemã).

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derivados preponderantemente da razão - C. J. Friedrich, Constitutional Government and Politics, Harper, 1937, ps. 292 a 295. Daí concluir que, na Ciência do Direito, o princípio do interesse público postula a primazia do que assim veio a ser positivado como público, sobre todo e qualquer outro interesse que não tenha sido, do mesmo modo, como tal formal e especificamente expresso no ordenamento jurídico, não importando em que outra categoria possa merecer enquadrar-se nas classificações metajurídicas e mesmo nas jurídicas substantivas (que distinguem os interesses individuais, particulares, fundamentais, coletivos, sociais, difusos, etc.). Em síntese, entre a licitação e o interesse público pela continuidade e estabilidade no serviço, este princípio, após um processo de ponderação, deve preponderar, por ser imediato193.

193 Extrai-se do corpo do valioso estudo: “Assentado que, por interesse público, se entende apenas uma categoria formal positiva, e, assim, se o tem como aquele que haja sido, como tal, especificamente definido em lei, inexiste primazia de interesse público genérico sobre qualquer outro, ainda porque, a própria constituição faz a declaração dos superiores direitos fundamentais, que só podem ser excepcionados por lei (v. art. 5º, IIi). Não obstante, embora seja tarefa peculiar do legislador definir especificamente o que venha a ser o interesse público para o direito, o que sempre deverá fazer dentro dos largos espaços abertos pelas partilhas materiais de competência administrativa da Constituição, a própria Carta se adianta em certos dispositivos e, desde logo, erige alguns interesses específicos à categoria de públicos. Ora, uma vez demonstrada essa inafastável necessidade jurídica de se especificar o que venha a ser o interesse público, seja em sede constitucional, o que, como se expôs, é mais raro; seja em sede legislativa, o que vem a ser a via ordinária para fazê-lo; e seja, até mesmo, em sede administrativa, quando se deva integrar aquele resíduo de especificação, que a lei delega ao administrador público nos casos de discricionariedade, esse cuidado se insere entre as garantias de legalidade protetoras do cidadão, e tem, como corolário, que a expressão genérica e abstrata do “interesse público” é apenas uma categoria metajurídica, e, como tal, sem dúvida apropriada aos discursos políticos e sociológicos, mas imprestável para fundamentar a criação de direitos e obrigações. A conclusão se impõe: a invocação genérica do interesse público não pode suportar um contencioso concentrado de constitucionalidade. A continuidade do serviço é um princípio substantivo que se retira do art. 175, IV, CF, que, indiscrepantemente, é assim tido pela doutrina pátria. Ora, na hipótese deste parecer, a existência de serviços públicos coletivos de transporte urbano de passageiros, que vêm sendo prestados por delegação, por 48 diferentes empresas, distribuídos em inúmeras linhas, para atender aos milhões de habitantes da cidade do rio de janeiro, notadamente aos estamentos de menor poder aquisitivo da população, por si só recomenda prudência e ponderação na transição dos modelos institucionais, como se pretende, para não sacrificar sua continuidade ante a necessidade de satisfazer-se uma formalidade que não existia quando foram delegados. Erros de avaliação, precipitação e soluções que não levem em conta tanto os aspectos públicos, como este, da continuidade, tanto quanto aspectos privados constitucionalmente também protegidos, como, por exemplo, o importantíssimo tema do “valor do investimento aplicado e o retorno do capital investido”, assim como ponderem toda uma vasta gama de aspectos administrativos da transição, que deverão ser estudados para lançar editais de novas concessões, neles incluída a capacidade da máquina administrativa e o tempo para fazer todos os levantamentos necessários, podem facilmente causar uma desagregação maciça e o tumulto dos serviços que estão sendo prestados, afrontando o que, no momento, é o mais importante dos princípios jurídicos pertinentes a serem preservados, por dizer respeito diretamente a seus usuários, que é o da continuidade do serviço público. Assim é que certos casos de necessidade pública, que repentinamente se agravam e podem facilmente se tornar de emergência pública, e até levar ao rompimento da ordem pública, como é

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quase sempre o caso de interrupção de transportes coletivos urbanos, nem por outro motivo considerados essenciais pela constituição, podem não se compatibilizar com o atendimento de procedimentos licitatórios, o que significa que, em certas hipóteses, não apenas existe, para o legislador ou para o administrador público, conforme o nível de decisão, a discricionariedade para afastá-los, como até o dever de fazê-los, seja pela contratação direta, seja pela prorrogação de delegações existentes, se for para evitar transtornos e paralisações irremediavelmente danosos ao interesse público. Resta claro que, tratando-se de casos singulares, a responsabilidade da decisão caberia ao administrador, não, porém, quando estão em jogo dezenas de delegações e a necessidade de conferir-se um tratamento isonômico primário, a partir do qual poderão ser feitas as distinções administrativas necessárias, e, sobretudo diante de tão relevante interesse público, impõe-se, como foi feito pioneira e exemplarmente pela própria esfera federal, dar um tratamento legislativo. E o foi, suficientemente abstrato e geral para, simultaneamente, afastar o risco da descontinuidade, que afetaria o interesse público, e o risco do desrespeito dos interesses das dezenas de delegatários que se encontram comprometidos com a continuidade do serviço, que afetaria grave e desnecessariamente os seus patrimônios. Do mesmo modo, e até como corolários, alinham-se outros importantes princípios atinentes aos serviços públicos que, em conjunto, podem e devem também ser ponderados para amplamente justificar decisões legislativas (ou mesmo administrativas, se este fosse o caso), para estabelecer prorrogações. É o caso dos princípios da regularidade, que significa que a execução não deverá apresentar degradação das características técnicas de sua prestação aos usuários, da modicidade, que recomenda que os preços dos serviços públicos devem ser administrados de modo a atender, concomitantemente, às exigências do mercado e à capacidade econômica de seus usuários (nota: novas licitações, promovidas sem as cautelas mencionadas, podem agravar o custo das tarifas, que já são elevadas, como se encontra na tabela anexada a fls. 91 dos autos da representação de inconstitucionalidade em comento, isso sem falar do risco de pesadas indenizações, a ameaçar o erário municipal.), inclusive o da eficiência e o da segurança, todos eles demandando, a seu modo, uma devida avaliação das circunstâncias e da natureza do próprio serviço prestado. Outra diferente linha de princípios, que devem ser levados em conta pelo legislador para justificar prorrogações e revalidações de delegações, como ocorre com os artigos inquinados da lei complementar municipal, se tomados em juízo de ponderação, concernem à reverência, devida pelo poder público, a certos valores sobressalentes da ordem jurídica, como aqueles incorporados nos princípios da propriedade privada, da boa fé do administrado e da segurança jurídica. Com efeito, o legislador complementar municipal não tinha diante de si apenas um vago e nebuloso interesse público geral, próprio a conotações metajurídicas ou a impetrações emulatórias, bem como, tampouco por certo não lhe movia a cômoda preocupação de aferrar-se à formalidade do princípio licitatório. Não quis, o legislador, ignorar olimpicamente e deixar sem regular toda a extensa trama de direitos subjetivos e, até, de justas expectativas de direito, criadas com as 48 delegações existentes, regularmente constituídas sob a vigência de outras regras e apresentando diferentes graus de comprometimento patrimonial dos delegatários, que totalizam, em conjunto, uma imensa frota de 7.725 veículos e o emprego garantido para nada menos que 45.272 trabalhadores, uma cifra que se multiplica, consideradas suas famílias e dependentes. Colhidos, tanto os serviços de transporte coletivos municipais quanto os seus inúmeros delegatários, no cipoal de meia centena de situações distintas, em suas relações com o poder público, o legislador municipal, ao regulá-las, não fez mais que ponderar a necessidade de se resguardar a segurança jurídica dessas relações estabelecidas e a boa fé dos administrados, para, no exercício de sua competência legislativa própria para dispor sobre as especificidades do serviço público de transporte deste município do rio de janeiro, proporcionar uma solução geral, conciliando, da melhor forma que lhe pareceu, a extensa gama de valores em jogo. Ora, se o legislador não o fez do melhor modo possível, sem dúvida, tem-se uma questão em aberto, mas não será uma questão jurídica, mas de política local de transportes, e, muito menos, será uma questão de constitucionalidade, abstratamente apreciável, como inadequadamente se pretendeu, mas de mérito da ação política. Por certo, todas as decisões, sejam legislativas ou administrativas, que levem ao afastamento da licitação, além de motivadas, devem ser demonstradamente razoáveis, no sentido de que se evidencie que a exceção ao princípio licitatório, estará proporcionalmente compensada com um superlativo atendimento dos usuários, em termos quantitativos, qualitativos ou em ambos, e, ainda, de segurança jurídica para as partes envolvidas.”

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9. Remuneração do transportador Nesse aspecto, mais uma distinção entre a atividade econômica de

transporte e o serviço público de transporte; é que aquela comporta livre fixação da remuneração do transportador, sujeita, apenas, à repressão por abuso de poder econômico, ao passo que esta é fixada contratualmente ou no termo de permissão, sendo denominada tarifa. Tal remuneração deve ser módica, porém compatível com os encargos dos concessionários e permissionários, de modo a manter uma relação equilibrada (e, por isso, viável).

As tarifas deverão constituir o limite máximo a ser cobrado pelas concessionárias ou permissionárias, ser diferenciadas em função das características técnicas e dos custos específicos relativos aos serviços prestados. Deverão respeitar a legislação disciplinadora da gratuidade na prestação, de acordo com o disposto nos contratos de concessão, incluídos tal gratuidade e o respectivo cadastramento como custos do serviço.

No prazo que a Lei federal permitir, a tarifa limite poderá ser reajustada, de acordo com os critérios contratuais ou com o termo de permissão, desde que seja aprovada pelo Órgão Regulador e seja dada ciência aos usuários com antecedência mínima.

O limite da tarifa sofrerá revisão, para mais ou para menos, sempre que ocorrer a criação, alteração ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, após a assinatura do contrato, quando comprovado seu impacto, salvo o imposto sobre a renda, e desde que seja aprovado pelo Órgão Regulador, dando-se prévia ciência aos usuários. A metodologia de revisão das tarifas levará em conta a necessidade de estímulo ao aumento da eficiência operacional através da composição de custos, considerada sua evolução efetiva e da produtividade das concessionárias ou permissionárias.

O "caso fortuito", a "força maior" e o "fato do príncipe" também são fundamentos para a revisão das tarifas; nesta última se inclui a introdução de novos agentes no cenário, bem como de novos custos e encargos na prestação do serviço, não considerados na composição da planilha.

Para fins de revisão, as concessionárias ou permissionárias apresentarão ao Órgão Regulador uma proposta de revisão das tarifas contratualmente fixadas, para vigorar subseqüentemente como tarifas limites, instruída com as informações que venham a ser exigidas pelo referido órgão. Caso haja descumprimento dos prazos conferidos em lei ou no contrato de concessão pelo Órgão Regulador, as concessionárias ou permissionárias poderão colocar em prática as condições constantes

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da respectiva proposta de reajuste ou revisão das tarifas. Pronunciando-se o Órgão Regulador fora do prazo a ela conferido, as concessionárias ou permissionárias estarão obrigadas a observar, a partir de então, as condições constantes do pronunciamento, operando-se as compensações necessárias, no prazo que lhes for determinado.

Caso o Órgão Regulador não aprove o valor da tarifa reajustada ou revisada proposto pela concessionária ou permissionária, deverá ser apresentada à concessionária ou permissionária a respectiva decisão, devidamente fundamentada, expondo de maneira clara e precisa as razões do indeferimento do pedido e indicando o valor correto do limite de reajuste ou revisão que poderá ser praticado.

Nada disso ocorre quando a atividade é desenvolvida em regime de livre iniciativa, que não se submete a controles de reajuste ou revisão, nem ao princípio da modicidade das tarifas (que exige o menor custo possível ao usuário); ao revés, admite-se o maior lucro possível, desde que não se defina, pela autoridade competente (CF, art. 173, § 4º e Lei nº 8.884/94), após o devido processo legal, como arbitrário.

10. Conclusões A regra atual para os serviços públicos é a busca da eficiência,

especialmente através da competição. No entanto, se é certo que uma permissão de serviço público anterior à Constituição de 1988 tem caráter precário e pode ser revogada, não é menos exato que para o desfazimento de tal ato seja desnecessário o direito de defesa ou que o permissionário não tenha direito a ser indenizado pelo patrimônio investido por determinação do Poder Público.

A indenização não se limitará, apenas, a esse ponto se tiver havido omissão lesiva do Poder Público, seja no dever de preservar o equilíbrio da permissão ou de pagar pelas obrigações adicionais impostas ao permissionário e omissão no dever de fiscalização do setor. Isto porque o que se convencionou chamar de transporte alternativo é, na verdade, uma atividade econômica privada, exercida em regime de livre iniciativa por particulares, só podendo ser submetida ao regime de serviço público com autorização em lei. Se, no entanto, essa atividade pretende se transformar num serviço público, deve ser desenvolvida na forma da LEI (princípio da legalidade). A omissão do poder público não tem o condão de legitimar a operação (que ameaça a integridade física e a segurança pessoal do transportado, e a concorrência desleal, que coloca em risco a viabilidade de concessionários e permissionários pela perda da escala de passageiros). Logo, a repressão tardia deve acarretar, para o Poder Público, o dever de indenizar os prejuízos sofridos pelas permissionárias enquanto sofreram a competição desleal.

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O interesse público e a continuidade do serviço são aspectos que podem até autorizar a preservação das empresas permissionárias, já que o princípio licitatório, sendo instrumental, uma vez ponderado com tais princípios (do interesse público e da continuidade) cede vez aos valores mais relevantes.

De acordo com a Constituição Federal de 1988, a concessão e permissão de serviços públicos dependem de licitação, na forma da LEI. A regra, contudo, não é absoluta (em que pese o advérbio “sempre” empregado no art. 175 da Lei Maior). A valoração “da inviabilidade de licitação” é um conceito jurídico indeterminado, privativo do administrador público, que deve se pautar pelo princípios do interesse público, da continuidade, da razoabilidade e da economicidade. Caberia, pois, à lei definir os contornos para a nova formatação do setor de transportes.

Em síntese, a competitividade no setor de transportes não se dá apenas através da licitação, mas, sendo um setor regulado, não se admite uma competição absoluta, como livre ingresso de agentes no mercado.

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REFORMA ADMINISTRATIVA BRASILEIRA SOB O IMPACTO DA GLOBALIZAÇÃO:

uma (re)construção da distinção entre o público e o privado no âmbito da Reforma Administrativa gerencial

Maria Tereza Fonseca Dias194 1. Introdução .............................................................................................................................. 272 2. Reforma administrativa brasileira sob o impacto da globalização ....................................... 273 3. A relação entre a administração pública e o cidadão: um desafio para o estado democrático de direito para além da reforma administrativa gerencial ..................................................................................................................................... 277

3.1 A administração pública e os paradigmas do direito ........................................................ 279 3.1.1 Concepções paradigmáticas do direito ...................................................................... 279

3.2 A administração pública no paradigma do direito formal burguês: consolidação da modernidade ................................................................................................ 281 3.3 O direito materializado do estado social e a administração pública: crise da modernidade .............................................................................................................. 285 3.4 A administração pública no estado democrático de direito: construindo um paradigma procedimental do direito ................................................................................. 291 3.5 O setor público não-estatal e a redescoberta da sociedade civil ....................................... 294

4. Conclusões ............................................................................................................................. 298 5. Referências bibliográficas ...................................................................................................... 301

1. INTRODUÇÃO

A reforma do Estado, na qual se inserem as propostas de reforma administrativa brasileira, é um fenômeno que tem ocorrido “em bloco”, contrariando, de certa forma, algumas tendências do direito pós-moderno, segundo as quais o direito, longe de ser homogêneo e universal, como no pensamento jurídico moderno, deve passar a aceitar a diferença e a diversidade e adaptar-se às peculiaridades locais (Boaventura SANTOS, 2000, Jürgen HABERMAS, 1997, Claus OFFE,

194 Bacharel em Direito pela UFMG. Mestranda em Direito Administrativo no Curso de Pós-Graduação da UFMG. Professora de Metodologia da Pesquisa Jurídica e Coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Estudos Monográficos do Instituto Metodista Izabela Hendrix. Professora Curso de Especialização em Administração Pública da Fundação João Pinheiro – Escola de Governo do Estado de Minas Gerais. Advogada.

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1987, José Eduardo FARIA,1993, André-Jean ARNAUD, 1998, Jacques CHEVALLIER, 1998a, 1998b).

Dentre as inúmeras propostas apresentadas, o programa de Reforma Administrativa gerencial introduzido pelo Governo Federal desde o surgimento do Conselho de Reforma do Estado - órgão colegiado instituído pelo Decreto n. 1.738, de 8 de dezembro de 1995, preconizou a necessidade de “... busca de parcerias na sociedade para gestão dos serviços sociais, de forma descentralizada e participativa.” (BRASIL, 1998:7)

Essa busca, entretanto, necessitaria do aporte teórico de “... reconceitualizar o público, para propiciar assim a sua revalorização e, inclusive, a sua delimitação com referência ao âmbito do privado.” (BRESSER PEREIRA;GRAU, 1999:7)

O exemplo mais significativo dos programas que seriam implementados para atingir a meta de redefinição dos espaços públicos e privados referiam-se à própria revisão das funções e da forma de atuação do Estado através de parcerias que seriam estabelecidas com “entidades públicas não-estatais”, denominadas Organizações Sociais.

O trabalho que se segue pretende refletir sobre duas questões primordiais: Em que medida é possível vislumbrar o impacto da globalização sobre alguns institutos da reforma administrativa gerencial brasileira? O programa de publicização proposto interfere numa (re)construção da relação entre a Administração Pública e o cidadão?

2. REFORMA ADMINISTRATIVA BRASILEIRA SOB O IMPACTO DA GLOBALIZAÇÃO

Os proponentes das reformas administrativas atuais - governos, estudiosos e técnicos reformistas - alegam que a “coincidência” de modelos semelhantes das reformas deve-se a um consenso em torno da melhor idéia do que seja administrar o Estado e que gravita na apregoada idéia da administração pública gerencial (OSBORNE, GAEBLE, 1998), e que esses modelos reformistas derivam de fenômenos ainda maiores como o da globalização e da formação de blocos econômicos em todo o mundo. Outros autores atribuem a identidade das reformas administrativas a uma “imposição” do FMI (Fundo Monetário Internacional), sobretudo àqueles países em desenvolvimento, dependentes de financiamentos e investimentos do Fundo, que seria o caso do Brasil195.

195 Essa “imposição” parece com maior nitidez após a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (BRASIL, 2000) visto que o Fundo sugeriu um programa de transparência fiscal para os países em desenvolvimento. Cf. POTTE, 2001.

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Analisando vários textos nacionais e estrangeiros, percebemos como são semelhantes os programas de reformas administrativas implementados ou propostos em alguns países ocidentais.

Em Portugal, por exemplo, o Relatório da Comissão para a Qualidade e Racionalização da Administração Pública elaborado em 1994 pela referida Comissão, no âmbito da secretaria de Estado da Modernização Administrativa, preconizou que as principais mudanças que devem ser operadas na administração pública portuguesa são: a) repensar as missões da administração; b) dinamizar novos modelos estruturais; c) desintervir; d) envolver a sociedade. Essas mudanças seriam feitas através de dois tipos de estratégias: controle das despesas públicas e privatizações. As quatro idéias-força que guiaram essa proposta da Comissão foram: a) reduzir (extinguindo, desburocratizando); b) privatizar (vendendo, dando, desregulando, incentivando a oferta privada); c) contratar serviços (adjudicando, concessionando); d) utilizar mecanismos de mercado (concorrendo dentro da Administração, cobrando serviços, aumentando a liberdade de escolha). Apresentando o conteúdo do programa governamental e analisando o relatório da Comissão, Maria João ESTORNINHO conclui que

“Na verdade, no modelo proposto nesse Relatório, a Administração Pública dedica-se a um número cada vez mais reduzido de tarefas, de carácter cada vez mais especializado e que, em última instância, se reconduzem maioritariamente a actividades de gestão, controlo e incentivo.” (1999:13)

Outros modelos de Reforma Administrativa, como o da Itália, descrito por RUSCIANO (s.t.), dos Estados Unidos, apresentado na obra de OSBORNE e GEABLER (1998), bem como o da Argentina, definidos por Carlos MENEM e Roberto DROMI (1997) são exemplos de programas semelhantes, baseados nos mesmos princípios anteriormente descritos196.

Como as demais propostas de reformas administrativas de diversos países, as recentes propostas brasileiras parecem se pautar sobre uma nova visão da distinção entre o público e o privado que apregoa a ampliação da esfera pública, não mais fazendo coincidir o público com o Estatal.

196 O site da OCDE (Organização Comunitária para o Desenvolvimento Econômico) – www.ocde.org, traz exemplos de reformas administrativas propostas por diversos países e que se assemelham em muitos aspectos à reforma administrativa gerencial brasileira.

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O modelo de Reforma Administrativa gerencial foi proposto, posto (e imposto?) pelo próprio Estado sem qualquer participação da sociedade. Como gestação interna do Poder Executivo, a Reforma Administrativa foi vislumbrada somente sob um único ângulo. Esse fato, desde já, inviabiliza o modelo proposto e incorre na mesma forma impositiva de instituição de reformas administrativas dos momentos anteriores da história reformista brasileira (DIAS, 1999).

Os modelos da reforma apresentados pelo Governo Federal são semelhantes àqueles implementados, primeiramente, pela Grã-Bretanha e pelos EUA, e posteriormente utilizadas na Nova Zelândia, na Austrália e na Suécia (BRESSER PEREIRA, 1999). Convidado a comentar o processo de Reforma Administrativa no Brasil, Claus OFFE (1999) esteve na Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais em março de 1998 e afirmou que a proximidade dos modelos de reforma no Brasil e na Alemanha também é evidente. A própria utilização da terminologia “agências executivas”, “agências reguladoras” refere-se à apropriação da idéia das agencies britânicas de prestação de serviço público.

Esses modelos foram transpostos para o Programa de Reforma Administrativa gerencial, apesar de possuirmos um contexto político, econômico e social totalmente diverso. LIMA JÚNIOR, por outro lado, afirma que algumas figuras instituídas pela Reforma gerencial, como as Organizações Sociais, “... provêm diretamente da Reforma Administrativa inglesa, implementada no governo Thatcher, que é, ainda, objeto de muita controvérsia.” (1998:20)

Alguns analistas da Reforma Administrativa gerencial questionam a própria viabilidade da implantação dessas reformas e acreditam que, na conjuntura atual, elas ainda não são capazes de produzir as mudanças necessárias para redesenhar o Estado. Segundo Sônia FLEURY,

“... a proposta da Reforma Administrativa não tem gerado, no interior do aparelho de Estado, a necessária base de apoio, que resultaria em melhor preparação de cada ministério ou órgão público para a implantação da reforma em seu âmbito.” (1997:196)

Antes mesmo das mudanças terem sido inseridas no texto constitucional, a implantação de vários programas da Reforma foram se dando através do uso de Medidas Provisórias. O projeto de criação das Organizações Sociais, por exemplo, foi instituído através de Medida Provisória (MP nº 1.591, de 9 de outubro de 1997) que apenas foi transformada em Lei, em 15 de maio de 1998. Um dos principais alvos

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da Reforma Administrativa gerencial é a alteração da sua estrutura administrativa em setores do Estado, majoritariamente concentrada no âmbito do Poder Executivo. Sendo a Medida Provisória de iniciativa exclusiva do Poder Executivo, como pode ele mesmo propor a alterar sua estrutura administrativa sem a “anuência” dos demais poderes do Estado, sobretudo do Poder Legislativo?

Esse tipo de tomada de decisão no âmbito de reformas administrativas “... não logra obter a mobilização necessária e a atenção prolongada dos atores políticos envolvidos[...]” (LIMA JÚNIOR,1998:23), como, de fato não obteve, pois as reformas administrativas brasileiras passaram sempre à margem do cidadão comum.

As doutrinas nas quais se basearem as diversas reformas administrativas brasileiras, como vimos, originaram-se em contextos sociais de outros países, com realidades e experiências históricas completamente diversas. Todos os comentaristas e participantes de comissões de Reformas Administrativas são também unânimes em reconhecer as limitações da utilização de experiências estrangeiras e as conseqüências negativas que essa utilização pode alcançar: “Nada mais natural, portanto, que, sob o impacto de nossa realidade histórica, as soluções importadas tivessem sofrido deformações e reinterpretações. Suscita-se a vitalidade mesma da cultura brasileira.” (VIANA apud DIAS, 1968:45)

Não se pode, assim, impor uma norma de conduta social que não esteja adequada ao contexto que a vai receber. Não sem razão as Reformas Administrativas brasileiras criaram duas realidades: uma nominal e outra real.

O fenômeno da globalização, nesse contexto, é um desafio paradigmático para as abordagem dominantes do início deste século, visto que tem como uma um suas maiores conseqüências a homogeneização da cultura “a partir de cima” mediante um processo de exclusão social – fato que notoriamente tem ocorrido com a reforma administrava, em diversos países. Na análise de Francisco López SEGREGA, Conselheiro Regional de Ciências Humanas e sociais da UNESCO para a América Latina e o Caribe, a globalização “... é um projeto ideológico neoconservador que, capitalizando o colapso do socialismo real, se apresenta como modelo único, sem alternativas viáveis, ou o fim da história.” (2000:253)

A globalização da economia difundiu a idéia de construção de uma “aldeia global” e, do ponto de vista dos Estados Nacionais, uma série de problemas e contradições surgem, visto que, de plano, o espaço político

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torna-se difuso, dificultando, ou até mesmo, impedindo, que as deliberações e os procedimentos democráticos sejam levados a cabo.

O fenômeno da globalização da economia desgastou as fronteiras nacionais e os limites territoriais através da difusão da idéia de que a soberania territorial tornou-se anacrônica em tempo de globalização197. Esse ideário resultou em que tornam-se menos claros os espaços inequívocos de participação em decisões e os mecanismos de legitimação das ações locais.

Ao contrário do que se apregoa, o Estado nacional é um pré-requisito para haver congruência entre os que decidem e as pessoas interessadas, os eleitos e os eleitores e, conseqüentemente, para a eficácia dos procedimentos democráticos. Lembra-nos o sociólogo português Boaventura de Sousa SANTOS, sobre as práticas transnacionais, que “... no nosso quotidiano raramente somos confrontados com o sistema mundial, e ao contrário, somos obsessivamente confrontados com o Estado, que ocupa as páginas de nossos jornais [...]” (1996:20)

Apesar da existência fática da globalização econômica sabemos como é difícil (senão impossível) estabelecer estruturas globais de sistemas de administração da coisa pública, sobretudo em razão das diferenças culturais entre as nações, visto que, a distância grande existente entre cidadãos e Estado (sistema político e administrativo) antes de ser geográfica, é cultural. Essa distância não permite congruência entre decisão, preocupação e controle por parte dos cidadãos, por outro.

Segundo a análise de Elmar ALTVATER a idéia de uma possível consolidação de um ‘estado mundial’ “... é uma idéia natimorta, e um sistema de governança global é apenas uma resposta fraca e contraditória aos desafios da globalização econômica” (2000:125)

A necessidade de reencontrar a eficiência na prestação dos serviços públicos, definir o âmbito de atuação da Administração Pública através da delimitação das atividades administrativas principais e daquelas tão somente instrumentais, criar sociedades de direito privado para atuar na práxis administrativa e chamar o cidadão a participar da gestão da coisa pública são os grandes desafios da reforma administrativa brasileira no momento atual.

3. A RELAÇÃO ENTRE A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E O CIDADÃO: UM DESAFIO PARA O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO PARA ALÉM DA REFORMA ADMINISTRATIVA

197 “... a globalização quer desgastar os limites territoriais, antes claros, do território do Estado, do poder da nação e do povo da nação” (ALTVATER, 2000:119).

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GERENCIAL No estudo da tensão entre as autonomias públicas e privadas

deparamo-nos com a Teoria discursiva do direito e da democracia de Jürgen HABERMAS (1997), segundo a qual público e privado não se opõem como domínios antitéticos mas, ao contrário, supõem-se de forma recíproca e em permanente tensão.

Essa Teoria, afirma HABERMAS (1997), explica a legitimidade do direito mediante procedimentos e pressupostos comunicativos que, eles próprios juridicamente institucionalizados, fundamentam a premissa de que os processos de elaboração e de aplicação do direito conduzem a resultados racionais.

O público e o privado, na teoria habermasiana, supõem-se de forma recíproca e em permanente tensão. Garantindo-se a comunicação dos sujeitos privados na esfera pública, não há como, a priori, definir o conteúdo do direito público ou do direito privado, que será o resultado desse processo de comunicação, ou seja, não está em discussão, na teoria habermasiana, a natureza “ontológica” do direito público e do direito privado, mas a forma procedimental da definição do conteúdo dessas esferas. É nesse sentido que HABERMAS afirma que:

“No lugar de um jogo de soma zero entre as iniciativas concorrentes dos atores privados e estatais nós temos as formas de comunicação mais ou menos intactas encontradas nas esferas públicas e privadas do mundo da vida, por um lado, e as que compreendem o sistema político, por outro.” (1997)

A autonomia privada é imprescindível à pública, pois a titularidade de direitos deve fundamentar-se numa condição de cidadania, que simultaneamente garanta a autonomia pública e a privada e, portanto, a titularidade de direitos públicos e privados para a persecução dos interesses individuais.

Ademais, a Teoria discursiva do direito e da democracia, de Jürgen HABERMAS (1997), ao lançar o olhar sobre a fundamentação do direito, ou melhor, como torná-lo legítimo através do discurso, parece ser o enfoque que melhor se coaduna com uma reflexão sobre a Reforma Administrativa gerencial, que se propôs a ampliar a esfera pública para além do aparato estatal.

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3.1 A Administração Pública e os paradigmas do Direito198

3.1.1 Concepções paradigmáticas do direito

O conceito de “paradigma” que hoje freqüentemente utilizamos para descrever os modelos de Estado e de direito originou-se da obra de Thomas Kuhn Metodologia das Ciências Sociais, que por sua vez adveio de seu clássico estudo sobre epistemologia da ciência intitulado A estrutura das revoluções científicas. O paradigma, na doutrina de KUHN (2000), tinha como objetivo específico demonstrar as rupturas que se processam no desenvolvimento do pensamento científico (revolução científica), ou seja, demonstrar que o conhecimento científico não se processa de forma linear, e que cada ruptura se manifesta através de conceitos e de simplificações tendencialmente hegemônicas em determinadas sociedades199. Nesse sentido khuniano, a formação de um novo paradigma é capaz de romper com o pensamento hegemônico anterior através da criação de um novo horizonte de conceitos e percepções consensualmente aceitas no âmbito da sociedade. A teoria dos paradigmas de Thomas KUHN (2000) descreve os momentos das revoluções científicas, ou seja, aqueles em que os paradigmas anteriores começam a ser combatidos sem que um novo tenha sido criado. O modelo do Estado Democrático de direito tem sido interpretado como um paradigma em fase de consolidação haja visto que ainda não tivemos a superação dos preceitos do paradigma do direito materializado do Estado social dentre os paradigmas do direito.

Na história do pensamento jurídico ocidental, alguns autores trabalharam com a noção de paradigma do direito sem atribuir-lhe essa denominação, como ocorreu com o pensador alemão, Franz Wieacker, em sua obra Introdução histórica do direito privado moderno cujo objetivo era “... expor o modelo social de uma dada ordem jurídica e como esse modelo se altera; o seu delineamento secreto, por assim dizer, que de início é ocultado pela continuidade literária, humanística e conceitualmente determinada da tradição científica.” (apud HABERMAS, 1997: cap. 9)

HABERMAS entende as visões paradigmáticas, como “... as imagens-modelo que uma determinada comunidade jurídica acolhe para a questão de como podem ser realizados o sistema de direitos e os

198 Cf. CARVALHO NETTO (2001); 4- O conceito de paradigma, p. 14-15. 199 Cf. ASSIS, 1993: 133-163.

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princípios do Estado de direito no contexto percebido de uma dada sociedade.” (1997)

Os paradigmas jurídicos podem ser descritos como o “pano de fundo”, ou segundo o entendimento do Professor Menelick de CARVALHO NETTO (2001) como o “pano de fundo compartilhado de silêncio” das compreensões acerca do sistema jurídico ao longo do tempo e através da percepção das mudanças processadas no direito e tornam possível os diagnósticos das situações das direções das ações a serem efetuadas. Segundo entende HABERMAS, eles também “... esclarecem o horizonte de uma dada sociedade à luz do projeto de realização do sistema de direitos.” (1997)

É interessante salientar que a discussão acerca dos paradigmas do direito adveio da necessidade do próprio direito privado justificar as suas referências à sociedade como um todo, ou seja, o seu surgimento a partir da sociedade e o seu funcionamento nela, sobretudo em razão das mudanças introduzidas pelo direito materializado do Estado social. Foi em razão desse contexto que “... a discussão acerca da correta compreensão paradigmática do direito tornou-se tópico explícito da dogmática jurídica.” (HABERMAS, 1997)

Para compreendermos as diferentes noções de direito público e privado operadas pela doutrina administrativista ao longo de sua formação e consolidação histórica, não podemos nos furtar da análise da referida dicotomia à luz dos paradigmas do direito.

Partiremos da classificação de HABERMAS (1997) segundo a qual podem ser delineados, desde a formação do direito na modernidade, três paradigmas do direito: (1) o direito formal burguês (ou modelo liberal do direito); (2) o direito materializado do Estado social; e (3) o Estado Democrático de direito, denominado pelo autor como o paradigma procedimental do direito.

Cada um desses paradigmas do direito será estudado para que sejam determinadas as relações entre os momentos evolutivos do sistema administrativo e as concepções atribuídas à distinção entre o público e o privado, para, ao final, tentarmos compreender o fenômeno da Reforma Administrativa gerencial à luz do paradigma do Estado democrático do direito.

Os paradigmas do direito procuram configurar certas formas de compreender-explicar o direito moderno, contrapondo-os a uma idéia de direito pré-moderno, que se caracterizava por ser uma ordem normativa “dada”, transcedental, a-temporal e universal, cujo conjunto de normas confundia-se com a religião, a moral e as tradições secularizadas. A ruptura com esta ordem fundou a modernidade e os paradigmas do direito que lhe sucederam.

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O Estado Democrático de direito foi o paradigma do direito adotado pela Constituição Federal de 1988, razão pela qual deve dirigir a hermenêutica que devemos fazer, não só do texto constitucional, como, ainda, da legislação infra-constitucional e do movimento de Reforma do aparelho do Estado. Como não existe qualquer consenso acerca dos horizontes conceituais e compreensivos do Estado Democrático de direito apresentaremos a proposta do paradigma procedimental do direito no esteio da Teoria discursiva do Direito e da democracia de HABERMAS (1997). 3.2 A Administração Pública no paradigma do

Direito formal burguês: consolidação da modernidade

O paradigma do direito formal burguês (também denominado modelo liberal do direito) pode ser considerado uma “conquista” contra o absolutismo monárquico dos reis, e resultado do liberalismo político e econômico e da ascendência da uma esfera pública burguesa. Possuía três características fundamentais:

a) submissão ao império da lei; b) divisão de poderes: legislativo, executivo e judiciário; c) enunciado e garantia dos direitos individuais.

Em Mudança estrutural na esfera pública HABERMAS (1984) entende que a esfera pública burguesa constituiu-se com base nos seguintes elementos:

• numa Administração Pública permanente e num exército permanente; • na permanência dos contratos no intercâmbio de mercadorias e de

notícias (bolsa, imprensa) que passou a corresponder a uma atividade estatal continuada;

• o setor privado eleva a reprodução da vida acima dos limites do poder doméstico privado, fazendo dela algo de interesse público. A referida zona de contato administrativo contínuo torna-se uma zona “crítica” também no sentido de que exige a crítica de um público pensante;

• a diferenciação entre Poder Legislativo e Poder Executivo é uma cópia da antítese entre regra e ação, de entendimento ordenador e vontade ativa;

• os direitos fundamentais garantem as esferas do público e do privado; as instituições e instrumentos do público por um lado (imprensa, partidos) e a base da autonomia privada (família e sociedade) por outro lado. Garantem, ainda, as funções das pessoas privadas: suas funções políticas enquanto cidadãos, bem como as suas funções econômicas enquanto donos de mercadorias; a função da comunicação individual, enquanto

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‘seres humanos’, através da inviolabilidade da correspondência, por exemplo;

• a consolidação do capitalismo industrial precisa contar com a continuidade, a segurança, a objetividade e o funcionamento da ordem jurídica no seio da Administração Pública e da justiça.

Dentre as características principais do paradigma do direito formal burguês, é importante compreendermos a noção de igualdade dos indivíduos perante a lei e a extensão desse princípio. Nesse paradigma, os indivíduos são iguais,

“... no sentido de todos se apresentarem agora como proprietários, no mínimo de si próprios, e, assim, formalmente, todos deverem ser iguais perante a lei, porque proprietários, sujeitos de direito, devendo-se pôr fim aos odiosos privilégios de nascimento.” (CARVALHO NETTO, 1999:104-105)

O processo de colonização do mundo da vida operado pelo sistema do direito inicia-se na formação do Estado Burguês com o princípio de que todos são iguais perante a lei, princípio segundo o qual “... o cidadão emancipa-se através do direito civil e da dominação legal” (GUSTIN, 1999:182) e sente-se liberado moral e eticamente dos processos de discussão pública.

Fundado nos ideais do liberalismo, o paradigma do direito formal burguês fez dos direitos fundamentais um status negativus, onde o respeito implica uma não ingerência do Estado, vinculando sua ação ao princípio da subsidiariedade: o Estado não deve intervir, por via legislativa ou administrativa, senão de maneira pontual nas relações sociais e o direito deve ser mantido nos limites estritos para garantir o respeito da esfera de autonomia privada dos sujeitos de direito. (RABAULT, 1997)

O sistema administrativo e conseqüentemente o direito que lhe rege, é consolidado sob a égide do modelo liberal, sobretudo na França, onde são criados os tribunais administrativos e, como fruto de sua ação, as normas de Direito Administrativo. Nesse período, a ação administrativa é vista como uma forma de intervenção na liberdade e na propriedade. Esse nascimento do Direito Administrativo, diz Maria João ESTORNINHO,

“... insere-se perfeitamente no contexto da ‘visão liberal do mundo’, assente na separação entre o Estado e a sociedade, por forma a garantir a propriedade e a intimidade, valores fundamentais

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que o liberalismo procura preservar a todo o custo.” (1999:31)

O direito público deveria assegurar, tão somente, o não retorno ao absolutismo mediante a limitação do Estado à lei e a adoção do princípio da separação dos poderes. Uma das preocupações do Direito Administrativo liberal foi criar um sistema de garantias ao particular em relação às atividades da Administração Pública executadas através do exercício de poderes autoritários. Lembra-nos David INGRAM que enquanto na sociedade feudal o público se via representando passivamente uma ordem política pré-ordenada por Deus, “... com o aparecimento do capitalismo surgiu uma vida pública de cidadãos privados que buscavam limitar a autoridade do Estado e afirmar o princípio da responsabilidade política.” (1993:23)

O sistema administrativo e conseqüentemente as normas jurídicas que o regula, formou-se e consolidou-se durante o período da modernidade fato que explica os diversos problemas que enfrenta no momento atual.

Ao empreender um aprofundado estudo sobre a evolução do Direito Administrativo, Odete MEDAUAR (1992) demonstra que, ao indicar a Lei do 28 pluviose do ano VIII (1800) como o ato de nascimento do Direito Administrativo, estamos lidando tão somente com a origem formal do Direito Administrativo200. De fato, como demonstra a referida autora, “...o Direito Administrativo não se formaria de imediato pela só edição da lei de 1800.” (MEDAUAR, 1992:11) Ele é fruto de um contexto de uma época que propiciou diversos elementos necessários a seu surgimento, tais como, a consolidação do Estado de direito (que impôs limites legais ao poder absoluto do rei) e a separação dos poderes (que distinguiu o exercício de funções no âmbito do Estado).

O Direito Administrativo, como produto da modernidade, apresentou-se como um corpo de regras específicas, derrogatórias do direito comum e a consolidação desse conjunto de regras, “com autonomia própria”, pode ser percebida à luz do paradigma do direito formal burguês.

Um grupo de doutrinadores entende que, nesse período, a Administração Pública, mesmo a despeito da criação das novas regras de Direito Administrativo, continua a se sujeitar ao direito privado (ESTORNINHO, 1999). É o que claramente se depreende da concepção de Félix MOREAUX, administrativista francês do início do século XX:

200 Caio TÁCITO, com base nas obras dos professores italianos Luigi Raggi e Francesco D’Alessio, aponta outro antecedente para o Direito Administrativo: o emprego pioneiro da referência “ato da administração”, na lei de 16 do fructidor do ano III (1796) e a inclusão do vocábulo “ato administrativo” no Repertório Merlin, em 1812. (1993:7)

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“Hoje [em contraposição ao direito autoritário e Absolutista] as coisas são outras. Nenhum jurista duvida que a ação administrativa seja realizada como a ação individual, de observar as regras.” (1909:3)

A maioria dos autores entendem, entretanto, que o Direito Administrativo se consolida como um direito de exceção ao direito comum (direito privado), com a preocupação de garantir formalmente a legalidade e assegurar a liberdade dos cidadãos, tendo assim se expressado Luis ROLLAND:

“O Direito Administrativo é um ramo do direito público. É então do Estado e das suas relações com os indivíduos que ele trata. Ele é constituído pelo conjunto de regras relativas à organização e ao funcionamento dos serviços públicos e às relações dele com os particulares.” (ROLLAND, 1928:1; tradução livre do francês)

A grande crítica que se fez ao paradigma do direito formal burguês, cuja superação é empreendida nos momentos posteriores da evolução dos paradigmas do direito, é ter se convertido em “Estado legal”, que Carl Schmitt denominou “Estado legislativo”, confundindo-se com mero enunciado legal e da lei.

Esse não era, entretanto, o paradigma do direito no qual os administrados exerciam qualquer papel diante das prerrogativas da Administração, uma vez que a sociedade política (o público) e a sociedade civil (o privado) eram vistas como esferas distintas. Na sociedade civil, as propriedades deveriam ser desenvolvidas o mais livremente possível mediante a garantia formal de todos perante a lei, visto que “A distinção entre o poder soberano e sua esfera e o poder dos indivíduos nas suas relações marca, assim, a distinção entre a esfera pública e privada e, por conseguinte, entre direito público e direito privado”. (FERRAZ JÚNIOR,1994:137)

Vejamos a conclusão de HABERMAS acerca da relação entre as autonomias públicas e a distinção entre o público e o privado no paradigma do direito formal burguês observado historicamente pelo autor na Alemanha:

“O refinamento dogmático, sob a premissa da separação do Estado da sociedade, prosseguiu com o suposto de o direito privado organizar e despolitizar a sociedade econômica impediu a intrusão do Estado, garantiu a liberdade negativa dos sujeitos jurídicos e assim o princípio da liberdade jurídica. O direito público, ao contrário, foi alocado por uma divisão de trabalho à esfera do

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Estado autoritário no sentido de se manter um freio sobre a Administração que operava sob checagens interventivas. Ao mesmo tempo, ao direito público cabia também garantir pela via da proteção jurídica ao indivíduo o status, a condição jurídico-positiva do cidadão.” (1997)

Não podemos deixar de ressaltar que alguns autores ainda consideram esse paradigma do direito o modelo de compreensão da Administração Pública, ou seja, a concepção clássica de Administração domina, em muitos aspectos, a prática e a doutrina, visto que, mesmo com a passagem do paradigma do direito formal burguês ao do direito materializado do Estado social, “... o sistema jurídico atual recai sobre uma consagração dos princípios do direito liberal pelo direito público [...] o direito positivo e a doutrina, em seu conjunto, vinculam-se às antigas concepções.” (FABER apud RABAULT, 1997:122) 3.3 O Direito materializado do Estado social e

a Administração Pública: crise da modernidade

Ultrapassado esse momento romântico da possibilidade de atuação meramente negativa do Estado e das conseqüências sociais e econômicas do paradigma do direito formal burguês (exploração do homem, acumulação de capital e revolução industrial), começa configurar-se o direito materializado do Estado social.

Sob a égide desse novo paradigma, os direitos fundamentais não são mais somente vistos como simples status negativus, garantidos por um direito à defesa do cidadão em relação à autoridade, mas igualmente como status positivus, garantidos por um direito à prestação por parte do Estado. (RABAULT, 1997)

A mudança de paradigma visou conciliar, portanto, dois elementos principais: a) o capitalismo e b) a consecução do bem estar social geral, que deram origem ao denominado Estado de bem-estar social (Welfare State). Esse modelo de direito e de Estado passou a se preocupar com a realização dos direitos fundamentais de caráter social na tentativa de criar uma situação de bem-estar geral que garantisse o desenvolvimento da pessoa humana, razão pela qual as funções da Administração Pública foram sendo, aos poucos, permanentemente alargadas. Alterações nas áreas do direito de propriedade e do contrato serviram como demonstração da materialização do direito formal burguês.

Se por um lado, surge daí a imagem de uma sociedade complexa que vai cada vez mais especificando seus sistemas de ação de forma a

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que os atores individuais passam a exercer uma posição marginal de “clientes”, por outro lado espera-se que a Administração Pública possa controlar normativamente as espectativas sociais através de uma atuação dirigente.

Vários autores (ESTORNINHO, 1999; BOBBIO, 1990; HABERMAS, 1984 e1997; FERRAZ JÚNIOR, 1994, VIEIRA, 1999; AVRITZER, 1993) reconhecem que o crescimento das estruturas administrativas revela uma interpenetração entre o Estado e a sociedade e, conseqüentemente, a interpenetração daquilo que se denominava público e privado no paradigma do direito formal burguês.

No direito materializado do Estado social, já que a separação entre Estado e sociedade é superada e o Estado interfere na ordem social provendo, distribuindo e administrando, a generalidade da norma como princípio já não pode mais ser mantida sem reservas. (HABERMAS,1984) O problema que decorre dessa expansão do Estado é uma contradição entre o fim (a igualdade) e os métodos (‘opressão” burocrática e administrativa) praticados pela Administração Pública. (HABERMAS, 1990a:116 livro)

No que diz respeito à relação entre a autonomia pública e a privada no Estado de bem-estar social esta não mais poderia ser concebida como uma relação de oposição, mas como um complexo de interferências recíprocas. HABERMAS chega a essa conclusão em virtude do fato de que após o advento da Constituição de Weimar “Não era mais possível ‘contrapor o direito privado como o reino da liberdade individual ao direito público como o âmbito no qual a coerção estatal tem curso.” (1997)

No Estado social, o direito privado, assim como o público, apresenta-se, agora, como mera convenção e a distinção entre eles é tão somente didática e não mais ontológica. Isso faz com que o Estado subsuma toda a dimensão do público, pois deve prover todos os serviços de segunda geração, tais como, saúde, educação, previdência, etc., além de garantir ordem e segurança, fomento, planejamento, dirigismo, prestação e cobertura de necessidades financeiras públicas. É no momento do direito materializado do Estado Social que o poder público foi convocado a disciplinar e a conter a atividade privada pois “O Estado moderno assumiu, nesta fase, sentido dinâmico, mediante a regulamentação, o controle ou o monopólio do comércio, da produção, do ensino, do transporte ou, até mesmo, da pesquisa científica.” (TÁCITO, 1993:8)

A atuação do Estado, não é ainda vista como composição de interesses entre a sociedade política e a sociedade civil, pois tornando o Estado toda a dimensão do público, ele,

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“... ao mesmo tempo que penetra mais profundamente na sociedade fá-lo através de soluções legislativas, institucionais e burocráticas que o afastam progressivamente dos cidadãos, aos quais, de resto, é pedida cada vez mais a obediência passiva em substituição da mobilização activa.” (SANTOS, 1996:86)201

Alguns administrativistas alemães citados por ESTORNINHO vislumbram uma nova configuração para a Administração Pública no Estado social, com a passagem da administração autoritária para a administração soberana consensual; a transformação da Administração Pública de persona superior (em relação ao particular) em sujeito paritário, bem como passa a ocorrer uma ofuscação da bipartição entre o direito público e o Privado (1999:44-45). Com todas essas alterações promovidas no interior da atividade administrativa,

“A natureza pública ou privada das situações depende [...] tanto das normas incidentes (regidas pelo princípio da soberania ou da autonomia privada) como das próprias realidades normadas (ou a necessidade social de uma impositividade última e inapelável ou a liberdade, conceitos, ambos, filosoficamente controvertidos).” (FERRAZ JÚNIOR, 1994:143)

O direito materializado do Estado social representa, como vimos, a crise da modernidade e o início de uma ruptura de vários preceitos que justificaram o surgimento dos princípios basilares do Direito Administrativo.

GARRIDO FALA (1962) é um dos autores preocupados com as alterações que vêm ocorrendo no âmbito do Direito Administrativo. Em sua conferência intitulada A flexibilidade do Direito Administrativo para superar a atual crise, proferida em 1962, o autor apresenta os princípios que fundamentaram uma etapa individualista do direito, considerados incompatíveis com o Direito Administrativo de sua época (a do direito materializado do Estado social), quais sejam:

1º) Igualdade perante a lei. O princípio inexiste, visto que o Direito Administrativo significa, em si mesmo considerado, o

201 “Na verdade, o alargamento desmesurado das tarefas

administrativas representa um risco agravado e permanente de interferência na esfera dos cidadãos, pelo que se compreende a importância vital que assume o tema das garantias do particular.” (ESTORNINHO, 1999:39)

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nascimento de um novo privilégio, que quebra não só com individualismo jurídico mas também com a igualdade jurídica.

2º) A abolição das entidades intermediárias entre indivíduo e Estado.202

3º) Propriedade e outros direitos subjetivos, vistos como absolutos, passam a ser relativizados;

4º) Autonomia da vontade para criar situações jurídicas

subjetivas. Ao invés das relações jurídicas serem regidas como num contrato

de adesão - segundo o qual as cláusulas que irão reger a relação são

redigidas previamente pensando-se na “relação-tipo” a que terão que ajustar-

se às situações concretas todavia por nascer - deverão ser substituídas pela

idéia de “ato-condição”.

GARRIDO FALA afirma, ainda, que a flexibilidade do Direito Administrativo deve ser reconhecida em virtude da estrutura dialética que lhe é inerente, fruto da integração, em sua estrutura normativa, de dois tipos de princípios: princípios autoritários e princípios liberais. Dentre os princípios liberais (ou anti-individualistas) do Direito Administrativo, compreendem-se: 1) a idéia de solidariedade social (lei da crescente interdependência social); 2) exigência normativa de um mínimo nacional de serviço público; 3) o fato de que os indivíduos integrantes de uma instituição colaboraram com seu bem comum, como ilustra o surgimento e a aplicação da Teoria da imprevisão no cumprimento dos contratos. Nesse sentido, “A característica do Direito Administrativo vem dada por significar um intento de tornar compatível a prerrogativa da Administração com um sistema de garantias para os direitos do particular.” (GARRIDO FALA, 1962:43)

No âmbito do Direito Administrativo, o paradigma do direito materializado do Estado social representa uma reação ao paradigma do direito formal burguês consolidado na modernidade e às fortes influências do Direito Civil na formação do Direito Administrativo.

Em primeiro lugar, essa reação é uma crítica à codificação do Direito Administrativo, bem como uma crítica à técnica logicista do Direito Civil. Assim, afirma GARRIDO FALA, demonstrando uma

202 Nesse sentido, HAURIOU chegou a afirmar que “O Estado tem

chegado a ser instituição das instituições, a maneira de Pantagruel ou Gargântua.” (apud GARRIDO FALA, 1962:48)

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concepção fortemente influenciada pela Escola de pensamento denominada Jurisprudência dos Interesses que “... a codificação exterior do Direito Administrativo falta, mas estamos no caminho de realizar uma interna, sem artigos, títulos e capítulos, mas com idéias, concepções racionais e princípios de direito.” (1962:78) Esses valores e princípios seriam determinados através dos interesses públicos objeto da defesa do Direito Administrativo, pois “... os litígios em direito público resolvem-se por referência a uma escala de valores, e esses valores determinam-se segundo os fins sociais em que se apóiam sua existência.” (GARRIDO FALA, 1962:84) Essa concepção faz com que o Direito Administrativo possa ser vislumbrado como contingente e não mais definitivamente pré-estabelecido, capaz de converter-se em realizador da justiça material.

A postura do citado administrativista visivelmente marcada pelos preceitos do paradigma do direito materializado do Estado social, per si, revelam as falhas apresentadas por esse paradigma, ou seja, os efeitos colaterais do Estado de bem-estar social. Dentre esses efeitos destaca-se a própria inviabilização da autonomia individual em nome da qual ele deveria cumprir as pré-condições de igual oportunidade de se utilizar as liberdades negativas. Isso se demonstra na

“... crescente ‘insensibilidade’ da burocracia estatal no que se refere às restrições da auto-determinação individual e de seus clientes – uma fraqueza do paradigma do bem-estar social simetricamente relacionada com a ‘cegueira social’ do direito formal burguês.” (HABERMAS, 1997:)

Isso fez com que o referido paradigma fosse denominado, por David INGRAM (1993), como o momento de “refeudalização da esfera pública”.

Percebemos claramente esse período de crise paradigmática do direito materializado do Estado social quando a doutrina parece “vacilar” na forma de percepção do fenômeno da distinção entre o público e o privado no seio do direito administrativo.

Dentre os elementos de “crise” do Direito Administrativo, relacionam-se todos aqueles pontos da própria crise da modernidade vistas na Introdução teórico-metodológica deste estudo: razão, progresso, unidade, sistematicidade, universalidade, legalidade, centralização da produção jurídica no Estado, individualismo jurídico e que dão suporte ao surgimento de novas relações entre Estado e sociedade, público e privado, direito e moral, direito e política, a personalidade jurídica do Estado, a separação de poderes, sistema

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administrativo e sistema político, Administração e Governo e o princípio da legalidade. (MEUDAUAR,1992)

Os últimos 40 anos do Direito Administrativo francês, analisados no belíssimo ensaio de Jacques CHEVALLIER (1998b) mostraram que ele passou por três fases: de consolidação (nos anos 60), de desestabilização (nos anos 70) e de refluxo do Direito Administrativo clássico (depois da segunda metade dos anos 80). Sem nos adentrarmos nas minúcias dos fenômenos que ocorreram na França nos últimos 40 anos, a crise do Direito Administrativo francês relaciona-se, em muito, com a definição das competências do Conselho de Estado e do Conselho Constitucional, visto que esse último tem retirado do primeiro diversas competências em matéria administrativa. Isso ocorreu diante do fato de que, mesmo após o advento da Constituição Francesa de 1958, que promoveu uma série de mudanças, sobretudo na forma de controle de legalidade, o Conselho de Estado, através da interpretação da Constituição (que possibilitou a aplicação de uma jurisprudência antiga em matéria de separação dos poderes), continuou a manter o Poder Executivo em posição subordinada ao Poder Legislativo em detrimento dos poderes regulamentares autônomos, fazendo prevalecer a hierarquia clássica entre lei e regulamento.

O Direito Administrativo é abalado, segundo CHEVALLIER (1998b) quando a autonomia do Conselho de Estado passa a ser ameaçada pelo Conselho Constitucional e quando passa a existir um juiz concorrente na análise das questões administrativas, uma verdadeira “guerra entre juízes”. Esse fenômeno acabou desencadeando, no Conselho de Estado, a necessidade de instituir modos alternativos de solução de conflitos (mediação, conciliação, arbitragem, transação) e a função de regulação, que é confiada às autoridades administrativas independentes, comporta, assim, uma dimensão parajurisdicional, visto que ela vai definir o melhor equilíbrio possível entre os interesses sociais. A adaptação do Direito Administrativo a essas mudanças, considerando, inclusive, aquelas apresentadas na consolidação do paradigma procedimental do direito, passa por um processo de reestruturação do conjunto das regras de Direito Administrativo de forma a tornar legítima a atuação da Administração Pública. Considerando a multiplicidade das normas existentes e do pluralismo na constituição do direito:

“... a norma torna-se, cada vez mais, produto de deliberação coletiva, à qual estão associados os representantes dos diversos interesses sociais, considerando os administrados; o Direito Administrativo tende, assim, a se

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‘procedimentalizar’, através do desenvolvimento crescente de um procedimento administrativo não contencioso que dá ao administrado a possibilidade de dar sua opinião [se faire entendre] e de adquirir um direito de deliberar [regard] sobre o conteúdo das decisões.” (CHEVALLIER, 1998b:1806)

Na evolução histórica do Direito Administrativo, lembra-nos Arnoldo WALD, no seu ensaio O direito em crise, que

“... enquanto o Direito Administrativo do século XIX caracterizou-se pelo seu caráter autoritário e pela possibilidade de predeterminação de todas as situações, num mundo considerado seguro e estável, a rápida evolução dos fatos tecnológicos e financeiros, as constantes modificações legais e a impossibilidade de qualquer previsão, a médio ou longo prazo, no plano econômico, exigiram uma reformulação do Direito Administrativo, que os estudiosos definiram em termos muito claros, como passando a ser um ‘direito Flexível’, na feliz expressão de Jean Carbonnier.” (WALD, 1985:242)

HABERMAS (1997) conclui que o paradigma do direito materializado do Estado social não garante a autonomia co-original pública e cívica de seus cidadãos, razão pela qual propõe a construção de uma nova forma de legitimar a ordem jurídica. Segundo o referido autor, essa seria a chave para uma compreensão procedimental do direito.

3.4 A Administração Pública no Estado democrático de Direito: construindo um

paradigma procedimental do Direito Do ponto de vista da Administração Pública, a crise do paradigma

do direito materializado do Estado social é atribuída a uma conjunção de causas, tais como a concentração do público no Estado, o crescimento desmesurado da Administração Pública, à sua ineficiência, ao aumento da burocracia e ao agravamento das contribuições exigidas dos cidadãos para suportar as despesas crescentes da máquina estatal, bem como ao aumento da corrupção – que tornou-se um fato corriqueiro das Administrações Públicas em todas as partes do mundo.

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O Estado Democrático de direito é entendido por muitos autores como uma síntese dialética dos momentos anteriores da evolução dos paradigmas de Estado. Trata-se de um conceito novo, apesar de colacionar preceitos do paradigma do direito formal burguês e do direito materializado do Estado social.

No Estado Democrático de direito é o princípio da soberania popular que impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa pública, participação que não se exaure na simples formação das instituições representativas. Deve haver, portanto, a presença do elemento popular na formação da vontade do Estado e da Administração Pública.

A esfera pública, nesse sentido, não pode mais se confundir com a esfera estatal mas deve consistir numa estrutura intermediária entre o sistema político, por um lado, e os setores privados do mundo da vida e os sistemas funcionais, por outro, segundo a perspectiva da teoria habermasiana. Essa nova conformação da esfera pública é dada no intuito de substituir a autonomia privada do indivíduo pela autonomia social dos participantes nos procedimentos.

O Estado Democrático de direito, portanto, envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo, através da pluralidade de idéias, culturas e etnias, da possibilidade de convivência de formas de organização e de interesses diferentes na sociedade.

E isso somente é possível, no seio da Teoria discursiva do Direito e da democracia através da ampliação do canais de comunicação pública e de uma visão procedimentalista na formação do direito.

A procedimentalidade na formação do direito é o elemento que lhe confere legitimidade e pressupõe que os destinatários de uma norma jurídica sejam partes componentes de sua elaboração e frutos de uma deliberação coletiva. O paradigma jurídico procedimentalista dirige a atenção do legislador para as condições de mobilização do direito, segundo conclui HABERMAS em Direito e democracia: entre faticidade e validade (1997).

A idéia de procedimentalidade na Teoria discursiva do Direito e da democracia de HABERMAS (1997) é o elemento prévio e fundante da legitimidade do direito. Nesse sentido:

“O direito legítimo encerra o círculo entre a autonomia de seus destinatários tratados igualitariamente e a autonomia pública dos cidadãos que, enquanto autores igualmente portadores de titularidade da ordem jurídica, devem decidir, em última instância, sobre os

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critérios de igualdade de tratamento.” (HABERMAS, 1997)

A compreensão procedimental do direito, em Habermas, pressupõe que uma ordem jurídica é legítima na medida em que ela assegura igualmente a autonomia co-original pública e cívica de seus cidadãos; relação que foi ocultada nos paradigmas do direito anteriores.

A relação entre o público e o privado é novamente colocada em xeque, pois:

“Associações da sociedade civil passam a representar o interesse público contra o Estado privatizado ou omisso. Os direitos de 1ª e 2ª geração ganham novo significado. Os de primeira são retomados como direitos (agora revestidos de uma conotação sobretudo processual) de participação no debate público que informa e conforma a soberania democrática de um novo paradigma, o paradigma do Estado Democrático de direito e seu direito participativo, pluralista e aberto.” (CARVALHO NETTO, 1999:108 - grifos acrescidos)

À medida, pois, que a esfera pública se amplia, a necessidade de legitimação do direito também se altera, ou seja, “... quanto mais o direito é arrolado como um meio de direção política e de planejamento social, maior é o ônus de legitimação que recai sobre a gênese democrática do direito.” (HABERMAS, 1997)

Diante de tudo o que foi exposto, HABERMAS (1997) propõe o paradigma procedimental do direito, que possui, dentre outros, os seguintes postulados:

• concebe o Estado Democrático de direito como um paradigma do direito que somente opera mediante o direito legítimo;

• pressupõe a institucionalização de procedimentos e pressupostos comunicativos para uma formação de vontade e de opinião discursivas que, por sua vez, habilita o exercício da autonomia política dos indivíduos;

• a realização dos direitos fundamentais é um processo que só assegura a autonomia privada dos cidadãos concomitantemente com a ativação de sua autonomia cívica;

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• o substrato social para a realização do sistema de direitos consiste nos fluxos de comunicação e nas interferências públicas que emergirem na sociedade civil e na esfera pública política203;

• os processos democráticos adquirem um peso diferenciado e um papel anteriormente negligenciado na realização do sistema de direitos;

• o paradigma procedimental é formal no sentido de que simplesmente postula as condições necessárias sob as quais os sujeitos de direito em seu papel de cidadãos podem alcançar um entendimento entre si acerca de quais são os seus problemas e de como eles devem ser resolvidos.

3.5 O setor público não-estatal e a redescoberta da sociedade civil

O surgimento do setor público não-estatal no âmbito da Reforma Administrativa gerencial integra a discussão acerca de um novo arranjo societário a ser dado aos principais sistemas sociais, quais sejam, o Estado e o mercado, e supõe que não se possa mais subsumir o público ao Estatal como ocorreu no período da modernidade e nos paradigmas do direito formal burguês e do direito materializado do Estado social.

O público não-estatal na concepção de Luiz Carlos BRESSER PEREIRA e Nuria Cunill GRAU e que fundamentou o ideário do Programa de Publicização foi definido como as “... organizações ou formas de controle ‘públicas’ porque voltadas ao interesse geral; são ‘não-estatais’ porque não fazem parte do aparato do Estado, seja por não utilizarem servidores públicos, seja por não coincidirem com os agentes políticos tradicionais." (1999:16)

O Estado e o mercado foram os sistemas sociais que fundamentaram, segundo a teoria habermasiana, a distinção clássica entre o público e o privado através das dimensões da participação e da opinião pública (na esfera pública) e na família (na esfera privada), como se depreende do esquema apresentado por Liszt VIEIRA (1999:227):

Sistema Mundo da vida

203 A esfera pública política na Teoria discursiva do direito e da democracia é entendida como uma “... instância de testes para os problemas que devem ser processados pelo sistema político porque não podem ser resolvidos em nenhum outro lugar.” (HABERMAS,1997:cap. 8)

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Público Estado Participação

Opinião pública

Privado Economia Família

O surgimento de um novo setor, ou seja, o denominado público não-estatal estaria sendo, a grosso modo, entendido como um locus além do Estado e do mercado.

A maioria dos teóricos têm denominado esse setor público não-estatal como sociedade civil, ou mais precisamente, como o renascimento ou a redescoberta da sociedade civil (HABERMAS, 1997; AVRITZER, 1993; VIEIRA, 1999).

A sociedade civil, afirma VIEIRA

“... tem a ver com processos de diferenciação entre Estado e mercado, direito privado e direito público. Ela identifica a vida ética e a construção de estruturas de solidariedade com a limitação da influência do mercado e do Estado sobre as formas interativas de organização social.” (1999:222)

No enfoque dado pela Teoria discursiva do direito e da democracia de Habermas a sociedade civil atua no espaço público enquanto arena de discurso, onde se realiza a interação intersubjetiva para a tomada de decisões coletivas e legitimadoras da ação estatal. Ela deve participar do Estado enquanto espaço de formação da opinião e da vontade coletiva, mas não enquanto espaço administrativo institucional, sob pena de se transformar em entidades paraestatais.

Essa concepção de sociedade civil também pode ser denominada como "novo associativismo", segundo a terminologia de AVRITZER (1997), um tipo de coletividade que não demanda diretamente ao Estado, mas influencia o sistema político e econômico colocando questões temáticas do Estado e ao mercado. Nesse sentido, a sociedade civil jamais passaria a integrar o sistema administrativo, visto que ela não almeja tomar o poder “... mas transformar a relação entre o Estado e a sociedade civil, consolidando nesta última a imagem da diferença, da

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diversidade, bem como a capacidade subjetiva dos indivíduos e dos grupos.” (VIEIRA, 1999:240)

O conceito de sociedade civil abarcaria uma série de outros entes que têm sido veiculados não só pelo movimento da Reforma Administrativa gerencial como por seus analistas, tais como terceiro setor, movimento social, organização não-governamental204, organizações públicas não-estatais (Opnes), entidades públicas não-estatais, entre outras.

Duas dimensões podem ser atribuídas às entidades da sociedade civil: seu papel no setor produtivo e a sua possibilidade de controle social, voltado para a conformação da vontade política e para a reivindicação de suas funções de crítica e controle do Estado.

Nos programas de reformas administrativas contemporâneos, ora é dado prevalência ao aspecto econômico, ora ao político na configuração dessas organizações. Entretanto, como bem observou o ex-Ministro da Administração e Reforma do Estado, a discussão acerca das entidades da sociedade civil “... aponta para a necessidade de reivindicar o tratamento público não-estatal simultaneamente em termos políticos e econômicos” (BRESSER PEREIRA; GRAU, 1999:38), no sentido de que às suas funções originais de interlocução política e organização popular, venha se agregar a de prestação de serviços sociais. Em síntese, deve-se tratar a atuação da sociedade civil sob um aspecto multidimensional e não meramente econômico, segundo as palavras de Listz VIEIRA:

“A questão social não pode mais ser enfrentada como subproduto da economia, pois esta não está preocupada com os que mais precisam de benefícios: os excluídos do sistema. É preciso uma ação que vá além da economia. O Estado aparece, então, como responsável por criar, através de uma política social, condições dignas de vida para todas as camadas da sociedade. Sozinho, porém, não é capaz de pôr em prática tal política. Daí a necessidade de, superando conceitos neoliberais e estatistas, promover uma ação conjunta entre Estado, mercado, e sociedade civil, em que representantes dessas três esferas discutiriam suas

204 Segundo BRESSER PEREIRA & GRAU a expressão “não-governamental” é anglicanismo que reflete uma confusão entre Estado e governo (1999:17).

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propostas, encaminhando soluções.” (VIEIRA, 1999:241)

Utiliza-se como fundamento de ação dessas entidades o modelo de Administração Pública gerencial como aquele preocupado com os resultados da ação desses entes. Entretanto, nem todas as respostas gerenciais dadas à crise do modelo burocrático enfocam a participação da sociedade civil nas questões decisórias do sistema administrativo. Fernando ABRUCIO (1999) destaca as três principais teorias inglesas que fundamentaram o modelo da Administração Pública gerencial: o gerencialismo puro, o consumerism e a Public service orientation (PSO)205. Somente esta última teria por meta a construção da esfera pública, visto que

“O ponto que distingue a PSO das outras correntes é o conceito de cidadão, pois, enquanto o conceito de cidadão tem conotação coletiva – pensar na cidadania como um conjunto de cidadãos com direitos e deveres -, o termo consumidor (ou cliente) tem um referencial individual, vinculado à tradição liberal, a mesma que dá, na maioria das vezes, maior importância à proteção dos direitos dos indivíduos do que à participação política, ou então maior valor ao mercado do que à esfera pública.” (ABRUCIO, 1999:190)

Nesse sentido, o ideário da Administração Pública gerencial nem sempre garante a expressão de vontade e o exercício da cidadania por parte da sociedade civil.

É somente no sentido de uma redescoberta da sociedade civil que devemos compreender o espaço público não-estatal e, conseqüentemente, as entidades que o integram.

205 O autor representa o seguinte quadro ilustrativo desses modelos (ABRUCIO, 1999:181):

Gerencialismo puro Consumerism Public service orientation Economia/eficiência Tax payers (contribuintes)

Efetividade/qualidade Clientes/consumidores

Accountability/eqüidade Cidadãos

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Assim, a relação entre a Administração Pública e o cidadão é um desafio para o paradigma do Estado Democrático de Direito para além do atual modelo de reforma administrativa gerencial.

4. CONCLUSÕES A distinção entre o público e o privado não pode se explicar a partir

tão somente da norma jurídica visto que, através dela, não é possível estabelecer um critério para determinar sua “natureza”. A dogmática jurídica, nesse sentido, deve apoiar-se numa nova reestruturação societária para delimitar o campo de atuação do ordenamento jurídico a partir dos espaços de comunicação. Nesse sentido, a dicotomia se mantém do ponto de vista das esferas de legitimação do direito (esfera pública e esfera privada) no âmbito de um paradigma procedimental. Suas implicações ultrapassam as meras especulações teórico-doutrinárias, mas refletem-se nos fundamentos políticos e sociais da formação do direito.

Torna-se de singular importância, nesse sentido, a superação dos paradigmas tradicionais do direito que estabelecem uma distinção e uma separação profunda entre as noções do público e do privado, tanto remetendo a processos e direitos distintos (o público, protetor de interesses estatais e o privado, protetor de interesses individuais) como descuidando de um espaço de legitimação para o exercício das ações de interesse público e, sobretudo, circunscrevendo a um estreito âmbito o que é ‘público’. Esse campo, todavia, ainda se encontra limitado pela forma e a organização das instituições jurídicas e pela própria cultural legal da maioria dos países.

Não se trata de fazer como a maioria da doutrina que acredita que a distinção ainda pode ser utilizada com determinadas finalidades, como aquela que defende que a distinção se mantém do ponto de vista metodológico ou didático; ou para permitir a utilização e aplicação do direito ou a sistematização dos diferentes ramos do direito e do regime jurídico; ou, ainda, como instrumento sistematizador do universo normativo para efeitos de decidibilidade. Acreditamos que nem mesmo para a representação conceitual, para a compreensão histórica e para a enunciação de juízos de valor no vasto campo percorrido pelas teorias da sociedade e do Estado, a dicotomia ainda possa ser mantida.

Resta-nos, pois, o reconhecimento da complexidade social e dos procedimentos comunicativos, em cada uma das esferas pública e privada, para a manutenção da dicotomia através de uma relação de tensão e de complementaridade.

Essa relação de tensão entre as esferas públicas e privadas apresenta um novo papel para o sistema administrativo, bem como para o conjunto de normas jurídicas que regem sua atuação.

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Numa relação de tensão entre as esferas públicas e privadas vários preceitos nos quais se funda o sistema administrativo devem ser repensados e entre eles citamos as polêmicas questões do contrato administrativo e sua diferença em relação ao contrato privado, os regimes jurídicos dos servidores públicos, a distinção entre os bens públicos e os bens privados da Administração.

Em todas essas matérias, o critério do direito e público e do direito privado utilizado pela doutrina e jurisprudência pátria para cindir os institutos de direito administrativo dos demais institutos de direito privado não oferece qualquer fundamentação ou até mesmo utilidade.

Até mesmo a questão do regime jurídico administrativo e seu corolário básico de que à Administração Pública cabe a defesa dos interesses públicos deve ser discutida visto que os próprios interesses públicos deixam de ser categorias ontológicas e homogêneas para se tornarem instrumentos de discussão e negociação. É preciso, nesse sentido, revisar os modos de definir e realizar os interesses públicos, sob pena de cairmos novamente no raciocínio tautológico de que à Administração cabe defender o interesse público e que o interesse público é aquele que está contido na lei. Temos, assim que, o interesse público não existe de forma absoluta e, portanto, autoritária. Existe, porém, de forma relativa, através do consenso que se vai formando sobre o que constitui uma moral comum mediante um processo de abertura de canais no sistema político que interferem no sistema administrativo.

No plano teórico poucos objetariam a necessidade de (re)construir os binômios Estado/mercado e público/privado. Mas o fato é que quando, política ou juridicamente, atacam-se os defeitos do sistema administrativo, como por exemplo, a sua ineficiência ou a falta de pluralismo de opiniões no sistema administrativo, o remédio que se propõe habitualmente é “menos Estado, mais mercado” – fato visivelmente apresentado no Programa de Reforma Administrativa gerencial. E quando o equilíbrio entre público e privado não se sustenta mais, e ao se agitar a palavra de ordem ‘menos Estado, mais mercado’ as propostas de redesenhar as coordenadas de um programa de reformas administrativas surgem com maior amplitude.

O Programa de Reforma Administrativa gerencial, na parte que trata da constituição de uma nova relação entre o Estado, o mercado e a sociedade através da instituição do Programa de Publicização com a criação de Organizações Sociais não poderia lograr êxito.

Em primeiro lugar, o programa deu ênfase somente ao papel econômico do setor público não-estatal, desprezando os aspectos do controle social da atividade da Administração Pública por parte das

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entidades que o compõe. A ênfase nesse aspecto de atuação das entidades não-estatais demonstra tão somente a saída do Estado de determinado setor econômico e do setor de prestação de serviços públicos.

Em segundo lugar, o tipo de entidade criada não pressupõe, no âmbito do paradigma procedimental do direito, a legitimação da atuação da Administração Pública no seio da sociedade. Mais uma vez os programas são “determinados” pelo Estado (âmbito de atuação, forma, procedimentos, requisitos) sem qualquer base de legitimação social. Como diz HABERMAS, referindo-se às mudanças reformistas de nossos tempos que “A reforma é como as utopias clássicas do tempo de Fourier: sonho do bem sem meio de execução, sem método eficaz.”

A Reforma Administrativa gerencial, nesse sentido, não se aproveitando das principais falhas dos programas de reforma administrativas anteriores, incorre, de igual forma, em equívocos que poderiam ter sido evitados, como, por exemplo, a ausência da participação popular na formulação do Plano de Reforma do Estado, de 1995. Tornou-se visível (para não dizermos claramente declarada) a semelhança do Programa de Reforma Administrativa gerencial com propostas advindas de países com realidades sociais completamente diferentes da nossa.

Alguns doutrinadores e até mesmo alguns proponentes da Reforma Administrativa gerencial brasileira utilizaram-se dos postulados da Teoria discursiva do direito e da democracia para discutir a ampliação da esfera pública sem atentar para as conseqüências de seus postulados no processo de legitimação da atuação estatal.

A premissa de que parte a Reforma Administrativa gerencial - que o público é mais amplo do que o estatal – coaduna-se, em certa medida, com a ruptura de alguns princípios basilares postos pela modernidade, tal como a subsunção do público ao Estatal, como vimos nos capítulos anteriores desse estudo.

Observamos, entretanto, que a utilização do alargamento do conceito do que é público tem se dado tão somente para justificar a transferência das atividades estatais para a iniciativa privada e não como forma de inserção da sociedade civil nesse processo, ou seja, não tem ocorrido a inserção da parcela da sociedade que se encontra da periferia da esfera pública, para o centro dessa esfera.

Para que seja recrudescido o papel desse que hoje é chamado “terceiro setor”, “movimentos sociais”, “sociedade civil organizada”, “periferia da esfera pública”, é necessário eliminar (ou ao menos minimizar) os obstáculos às interações políticas entre cidadãos, uma vez que só destas pode emergir uma vontade geral não distorcida. Isso

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somente pode se dar através da construção de uma cidadania plena – o que exige, como vimos, um sábio equilíbrio entre os dois espaços – o público e o privado -, pois o predomínio excessivo de um pólo pode inviabilizar o outro. E a prática da cidadania depende de fato da reativação da esfera pública, onde indivíduos possam agir coletivamente e se empenhar em deliberações comuns sobre todos os assuntos que afetem a comunidade política.

Todas essas ponderações põem uma “pá de cal” na idéia de “nova” relação entre o Estado e a sociedade mediante a criação das Organizações Sociais propugnadas pelo Programa de Reforma Administrativa gerencial e demonstram a necessidade premente de iniciarmos um verdadeiro processo discursivo de atuação da esfera pública no sentido de legitimar as ações do sistema administrativo.

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Resenhas _________

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Cidade do Pensamento Único – Desmanchando consensos de Otília Arantes, Carlos Vainer e Ermínia Maricato Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2000. Livro importante para os que se debruçam sobre as questões urbanas, mas não só, Cidade do

Pensamento Único – Desmanchando Consensos, escrito por Otília Arantes, Carlos Vainer e Ermínia Maricato recoloca no centro do debate a articulação entre processos de acumulação do capital e a forma urbana.

Os três autores, nos quatro artigos que compõem o livro, caminham por referências teóricas diferentes, experiências e formas diversas de compreensão da cidade, e nos seus distintos percursos constróem um quadro referencial da realidade atual das metrópoles mundiais e brasileiras e dos processos de gestão urbana. As leituras sobre as cidades apresentadas neste livro, longe de estarem em concordância com a literatura dominante sobre o tema, procuram justamente desmanchar os consensos formados em torno da prática e do discurso do/sobre o planejamento urbano – aí reside a força e a importância de um texto como este. Mobilizando uma literatura que não se restringe ao urbanismo (outro aspecto importante e vivo dos artigos), as polêmicas e discussões travadas nos textos articulam as atuações do planejamento urbano com as questões macro econômicas e políticas, com a montagem de um discurso e de um universo simbólico no qual então é possível falar de um pensamento único sobre as cidades. Esta abordagem parece extremamente fértil e contundente num tempo de tantos e amplos consensos, justamente por desnaturalizar processos sociais, tirando o véu que encobre as práticas de acumulação de capital associadas as formas de produção (e reprodução) do espaço urbano e, mais, questionado o estatuto até ali incontestável de ‘caminho natural da humanidade’ subjacente a estas práticas e discursos estratégicos.

Neste esforço de compreender a realidade contemporânea, cada um dos autores, à sua maneira, nos revelam processos sociais em curso e a forma de operação do consenso econômico e discursivo em torno das formas de gestão urbana. Estes textos abrem caminhos fecundos para a discussão da realidade urbana na qual estamos mergulhados. Por entre as questões e teses defendidas nos artigos podemos descobrir e nos interrogar sobre o que não está nos textos de maneira explícita mas que nos concerne, a saber, aquilo ou melhor, aqueles que não são “sujeitos solváveis” (Vainer) para o planejamento dito estratégico - para usar o senão atento de Otília Arantes - mas que constróem e vivem nesta cidade-mercadoria que nossos autores desnudam.

Passemos então aos artigos. * * *

No primeiro dos quatro artigos do livro, Uma estratégia fatal – A cultura nas novas gestões urbanas, Otília Arantes rompendo o “fim de linha” no qual está mergulhado o pensamento da cidade nos convida a uma análise acurada sobre os processos de gestão urbana do nosso tempo, indicando de maneira clara “o papel decisivo que os desmanches nacionais parecem estar conferindo às novas localizações urbanas” (p12).

A questão que estrutura o texto é justamente explicitar a forma como a cultura opera no centro deste novo planejamento urbano autoproclamado estratégico, ainda que se contraponha às intervenções pontuais do contextualismo guarda dele a “dimensão cultural” como mote de ação e como forma de legitimação de seu discurso e de implementação de uma forma de gestão urbana. Importante notar que a dimensão cultural foi invocada nas intervenções urbanas dos contextualistas na sua reação aos paradigmas do Movimento Moderno e segue como traço de continuidade apontado por Otília Arantes entre o planejamento estratégico e o contextualismo.

Este perverso mecanismo operativo desta nova forma de gestão urbana ganha maior relevância diante da luz lançada por Otília Arantes sobre o estatuto da cultura “enquanto esfera refratária à homogeneidade imposta ou requerida pela velha ideologia da ordem” (p14), contraposta ao caráter estratégico que o planejamento urbano formatou para suas intervenções urbanas usando “os investimentos culturais” como ponta de lança econômica e mote discursivo para os processos de revitalização urbana. Analisadas dentro do contexto de acumulação capitalista, estas intervenções urbanas expõem o processo de expulsão de população, ou de gentrification, - por suposto população pobre, aqueles que não contam e não interessam -, “desencadeados pelo reencontro glamuroso entre Cultura (urbana ou não) e Capital” (p15) nas atuais estratégias de requalificação urbana.

O ponto original e mais contundente deste artigo, sem sombra de dúvidas, é o esforço feito por Otília Arantes ao perscrutar as entranhas desta forma de gestão urbana e seu conseqüente e

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indissociável pensamento único das cidades e, provocando-nos um imenso espanto, expor a torção imposta pelo planejamento estratégico no mecanismo operativo da cultura. A autora busca a filiação deste processo histórico de apaziguamento da energias utópicas da cultura transformadas no seu avesso e desta sua análise sobre o novo lugar ocupado pela cultura, agora não mais vivida como experiência de autonomia e liberdade mas aprisionada no invólucro da imagem e do marketing. A conversão operada pelo planejamento urbano estratégico no sentido das “intervenções culturais” aparece como “uma etapa a mais na abordagem culturalista da cidade” (p14), uma nova inflexão sofrida pelo cultural turning dos anos 60. Inflexão esta que transforma a cultura de uma esfera de contestação como naqueles anos em seu oposto, encontrando hoje no fim a “verdade do nosso tempo”, uma mercantilização quase absoluta de todas esferas da vida, que de maneira dramática encontra na cidade e na colonização pelo mercado de sua dimensão de civilidade uma “nova fronteira de acumulação de poder e dinheiro - o negócio das imagens” (p16). A esta maneira nova na imbricação entre planejamento urbano, cultura e capital, Otília chamará de culturalismo de mercado.

Os atuais empreendimentos culturais que deixam transparecer a cidade-empreendimento desta nova geração do planejamento urbano, agravam mais ainda o “inchaço cultural” que a nova combinação cultura-capital impôs. Essa transformação da cultura em imagem por um lado formata identidades através de mecanismos de espelhamento/projeção de mercadorias culturais que moldam estilos e jeitos de viver, e por outro lado, permite a concentração de investimentos e atividades altamente lucrativas decorrentes deste novo campo aberto à atividade econômica. Tendo o planejamento estratégico seu mote na venda da imagem da cidade percebe-se a “âncora identitária da nova urbanística” neste produzir imagens e mercadorias associando cidade e cultura pelas mãos da mercadoria. Exposto este mecanismo de funcionamento do planejamento urbano estratégico chegamos ao escândalo: a “mercadorização integral de um valor de uso civilizatório como a cidade” (p17) que encontra nas populações desta cidades-empreendimento compreensão uma vez que a sua situação econômica debilitada “por duas décadas de estagnação econômica e catástrofe urbana” (p17) não lhes parece apontar e permitir outro caminho para retomada do desenvolvimento e da geração de empregos.

O nascimento do planejamento estratégico efetivou-se no reencontro entre planejadores urbanos e investidores/empreendedores urbanos como forma de abrir mais uma fronteira de acumulação de capital nas cidades americanas. O marco deste reencontro e seu receituário está na intervenção urbana de Baltimore, conduzido por James Rouse que já naquela época trazia a “palavra-isca, a famigerada ‘revitalização urbana’” no bojo de seu empreendimento de gentrification, juntamente com os adendos da parceria que, vistos de perto, são nada mais do que a apropriação de fundos públicos por empresas e pessoas privados, em nome pretensamente de uma coletividade. Este empreendimento tornou-se um catalisador que expandiu a experiência para outros centro urbanos. Importa registrar, já neste momento de nascimento do planejamento dito estratégico, a centralidade prematura da cultura como “um dado essencial na coalizão de classe e interesses, responsável pela máquina urbana de crescimento” (p25), bem como a utilização ideológica do do “orgulho cívico” das populações envolvidas e “patriotismo de massas” como o amálgama destas intervenções de revitalização urbana.

A conformação de um consenso em torno do crescimento a qualquer preço encontra solo histórico para desenvolver-se justamente em populações que viveram a experiência de estagnação econômica e a crise de empregos, que permitiu a disseminação de uma fabulação ideológica “segundo a qual o crescimento enquanto tal faz chover empregos” (p27). Produção de um consenso econômico conjuntamente à fabricação de um consenso discursivo sobre o pensamento das cidades, processo indissociáveis e complementares cujo centro operativo está nos “investimentos culturais”. Esta não é a mesma lógica de “colonização da animação cultural” pela cidade-empreendimento como máquina de crescimento; representa uma inversão deste mecanismo, ou seja, a cultura passa a ser o mote organizador e formador de ideologias que moldam e fabricam consensos econômicos e simbólicos. Esta fase do capitalismo traz uma aterradora novidade em si: “as cidades passaram elas mesmas a ser geridas e consumidas como mercadorias” (p26).

Ao retirar o véu que encobre este pensamento único das cidades, Otília Arantes abre um campo de discussão sobre as cidades ainda sem precedentes entre nós. Sua crítica atenta e contundente dos processos econômicos e sociais e de gestão urbana em curso no mundo, nos abre a possibilidade de questionar o discurso abundante entre nós das experiências “culturais e comunitárias” que vem se tornando prática em parte de cidades brasileiras; nos leva a questionar

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o sentido de tantas revitalizações de centros históricos que vemos pipocar em algumas cidades brasileiras, note-se patrocinadas pelo poder público em parceria com empresas privadas; nos leva a questionar o papel mesmo do Estado na implementação de políticas urbanas de requalificação urbana associadas ao grande capital permeado (ou seria encoberto?) por um discurso democrático e participativo; e, sobretudo, dirige nosso olhar e nossa crítica para as bordas das cidades, cada vez mais ‘terra de ninguém’, coalhada de violência e silêncios, que ficou de fora deste processos de reabilitação e nos instiga a pensar criticamente sobre suas formas de resistência, políticas ou não, à barbárie absoluta na qual parece estamos afundando.

* * * Dando continuidade ao propósito do livro de desmanchar consensos, no artigo Pátria,

empresa e mercadoria – Notas sobre a estratégica discursiva do Planejamento Estratégico Urbano, Carlos Vainer, como o título já anuncia, interroga o planejamento urbano estratégico a partir de seu próprio discurso, através de textos de seus principais porta-vozes, mostrando como as formulações de uma cidade-mercadoria, cidade-pátria e cidade-empresa concorrem para a montagem de um projeto de cidade que como se verá não é neutro e tão pouco o único possível.

Carlos Vainer analisando o discurso dos planejadores urbanos e/ou seus ideólogos notadamente, Borja, Castells e Forn, faz um percurso interessante mostrando como as formulações do planejamento urbano estratégico, e suas práticas também, revelam o projeto de uma cidade apropriada por interesses do capital no interior do qual se delineia à morte da cidade como espaço da política supondo a eliminação de todo e qualquer conflito e portanto, das condições para o exercício da cidadania. Ainda que seja necessário a ressalva de que o discurso da cidadania hoje em dia está sob a interrogação de muito autores no que diz respeito a sua capacidade de efetivamente dar suporte ao aparecimento de sujeitos políticos, a observação de Vainer monta um campo de conflitos no interior do qual o autor localiza o planejamento estratégico como um projeto de classe.

As três formulações do planejamento urbano estratégico que Vainer analisa são tratados não como noções que se sobrepõem e sim, como noções que se articulam montando um consenso em torno das práticas desta forma de intervenção na cidade. Importante notar que longe de serem somente formulações discursivas, a idéia de um cidade-mercadoria, cidade-empresa e cidade-pátria opera de maneira articulada com a prática do planejamento e são descritas pelo autor como componentes fundamentais que permitem a esta forma de gestão e planejamento urbano estratégico consolidar a noção de uma cidade do pensamento único.

A efetivação da condição da cidade como mercadoria supõe que haja um marketing urbano e que este seja cada vez mais atuante nos processos de planejamento e gestão urbanos. Supõe ainda que algo se venda, no caso a cidade ou partes delas, e para alguém. O planejamento estratégico focaliza suas atenções para a venda de atributos específicos que interessam ao capital transnacional cujo espaço, além de todas aos comodidades do “mundo moderno”, precisa ser seguro. Muitas vezes esta imagem da cidade segura vem associada a imagem de uma cidade democrática e justa. Vainer mostra por dentro das “formulações estratégicas” como a venda das cidades para agentes internacionais está conectada ao receituário neoliberal de abertura dos países ao capital externo como forma prioritária e dita única de desenvolvimento que vem sendo aplicado a economia nacional.

A venda da segurança transfigura a pobreza e sua correlata a violência, em questão ambiental e paisagística no discurso dos planejadores estratégicos, como no caso do Planejamento Urbano do Rio de Janeiro. Esta formulação para além de uma imagem de marketing mostra a forma mesmo como as questões relativas a vida em sociedade são tratadas, ou melhor, como os vínculos de reciprocidade e de responsabilidade social foram esgarçados e como a noção de bem comum esvaneceu. Deixa claro, também, o público ao qual se destina a cidade do planejamento urbano estratégico: um grupo elitizado de “capital internacional, visitantes e usuários solváveis” (p80 – grifo do autor). Mais uma vez no livro, vemos desvelada a transformação da cidade em mercadoria e desta vez, mercadoria de luxo. E mais vemos a consolidação de um verdadeiro apartheid urbano.

A formulação da cidade-empresa é precedida pela noção da cidade como sujeito. A identidade deste novo sujeito transformou-se, a cidade assume a identidade e a racionalidade de uma empresa. Esta analogia é fundamental para permitir que o planejamento estratégico possa sair de dentro da gestão das empresas privadas e instaurar-se no território urbano. A cidade é assimilada pela empresa, ela é uma empresa. Esta nova forma de gestão urbana, essa nova racionalidade empresarial transposta para o território não abre mão das intervenções estatais. O Estado, longe

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de desaparecer, transmuta-se e reaparece como um dos pólos da famosa parceria público-privado, que garante ao final a consecução dos interesses dos interesses privados e do mercado. A supressão da separação rígida entre setor público e privado, estabelece uma relação sem mediações entre interesses do capital e o Estado. Anuncia-se assim a morte da cidade como um espaço da política, como possibilidade de configuração de um bem comum público. Neste processo de despolitização, as cidades transformam-se em objetos-sujeitos de pura gestão. Morte do espaço político – da polis.

A articulação destas formulações como uma nova construção político-institucional de uma prática sela o fim da política, guardando o discurso ideológico da necessidade de poderes locais. A construção da idéia de uma cidade-pátria deve ser entendida dentro do mecanismo de fabricação de consensos indispensáveis para a boa realização dos planos de revitalização urbana pensados e geridos nos marcos do planejamento estratégico urbano. Cidade unificada em torno do projeto, sem dissidências e brechas. Cidade como unidade, a mesma unidade que permite ao planejamento urbano estratégico falar dela como um sujeito.

A formação de um consenso em torno da cidade tem por base “um sentimento (ou consciência) de crise” (p93 - grifo do autor) e a aceitação de que somente a paz social interna é capaz de vencer esta etapa na vida das cidades. Por paz interna entenda-se a abdicação de todo e qualquer (será mesmo? – nos interroga o autor) interesse privado que dificulte ou impeça a superação da crise. O pulo do gato está na transformação de uma sensação momentânea de crise em patriotismo de cidade. “A unidade que se pressupunha no discurso unitário sobre a cidade é a unidade que se pretende construir. O paradoxo realizado: o plano estratégico fala em nome de uma cidade unificada cuja construção pretende engendrar através da promoção do patriotismo.” (p94) Neste processo a construção de marcos simbólicos deste novo patriotismo são fundamentais para a consolidação desta paz social – reinventa-se os arcos do triunfo.

A reformulação político-institucional da cidade é parte integrante e necessária para estabilidade e permanência necessárias à competitividade de produtividade do capital na nova cidade pacificada. Assim, a despolitização das cidade é parte integrante das garantias de rentabilidade das intervenções de requalificação urbana promovidas sob coordenação do planejamento urbano estratégico. Governo local forte e que possa ter continuado de preferência, acima das disputas político-ideológicas e dos partidos passa a ser o modelo ideal e difundido como parâmetro de atuação política. A difusão da idéia de descentralização do poder encontra de maneira perigosa a construção mítica e ideológica de um líder que encarna um dito projeto unificado para a cidade leva a destruição da esfera política local.

Na imbricação entre estas três formulações de cidade – cidade-mercadoria, cidade-empresa e cidade-pátria – está anunciada a morte da “cidade como espaço da política e como lugar de construção da cidadania” (p98). Mais uma vez no livro, chegamos ao fim da leitura do artigo e resta a questão por trás das análise atentas dos autores: onde estarão sendo gestadas as resistências a este processo de morte da política.

* * * O artigo de Ermínia Maricato, As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias –

Planejamento urbano no Brasil, tem o mérito de procurar recompor a história do planejamento urbano no país buscando a raiz de um situação que a autora identifica como central, a cisão vivida nas cidades brasileiras entre uma cidade legal-formal e outra ilegal-real. Esta disjunção entre duas formas diferentes e complementares de produção do espaço urbano é apontada como o mecanismo de reafirmação e reprodução das “desigualdades e privilégios” do país.

Ermínia Maricato reconstruirá a história do planejamento urbano brasileiro mostrando as formas pelas quais o modelo modernista/fordista se instalou no Brasil, procurando na disjunção entre a letra da lei e sua aplicação as raízes de grandes diferenças sócio-espaciais e as formas espoliativas de produção da cidade. No seu percurso demostra que embora uma parte da cidade tenha sido produzida ao largo da legislação urbanística, a chamada cidade ilegal ou real, os mecanismos de gestão urbana atingiram-na mas não foram capazes de desamará-la de teia de favores característica da sociabilidade política brasileira. Caminha assim, numa trilha tortuosa ao identificar que os problemas das cidades brasileiras não são causados pela inexistência de planos urbanísticos, apontando como problema central o encobrimento do real funcionamento da produção espacial das cidades e as pressões dos investidores urbanos, do capital imobiliário e da empreiteiras.

Importante é o esforço feito durante todo o texto de mostrar as imbricações entre o planejamento urbano brasileiro, o cenário internacional (notadamente europeu e americano) e os

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ciclos ou etapas do desenvolvimento do capitalismo, e mais, mostrar como na verdade o planejamento urbano no Brasil esteve em consonância com a forma de desenvolvimento do capitalismo e o estabelecimento de uma modernidade inconclusa e excludente.

Os mecanismos de produção das periferias urbanas apartadas da cidade no sentido forte do termo, aparecem com todo o vigor na descrição proposta por Maricato. A dobradinha lote precário-autoconstrução é o motor da produção de parte significativa das grandes cidades e demonstra a “dinâmica própria de produção da cidade” (p151) a que foi submetida parte da população brasileira. Os planos e diretrizes de intervenções passaram ao largo desta cidade constituído-se, nas palavras da autora, “idéias fora do lugar” numa referência a celebre tese defendida por Roberto Schwarz, enquanto “um lugar estava sendo produzido sem que dele se ocupassem as idéias” (p151).

A vinculação ilegal-arcaico e legal-moderno implícita neste o artigo pode nos conduzir a um encobrimento perigoso da realidade brasileira. Valeria a pena o esforço de perceber por detrás do suposto par arcaico-ilegal contraposto ao par moderno-legal, as relações de determinação reciproca, para além desta forma de leitura dual. Esta releitura da relação arcaico-moderno na produção das cidades brasileiras poderia iluminar a forma mesmo como o Brasil estabeleceu sua modernidade econômica e política, ajudando a entender a dupla determinação, por vezes tomada como anomalia, destes dois pólos. Diante disto a contraposição cidade real-cidade formal ganharia novo vulto e poderia indicar caminhos interessantes de análise e de intervenção na produção da cidade.

O artigo avança na discussão da questão urbana e propõe formas de gestão e planejamento das cidades com vistas a dirimir o fosso que separa as “duas cidades” apontadas pela autora. A proposta interessa mais pelo fato de propor uma forma integrada de se pensar a gestão da cidade, procurando articulá-la com mecanismos de decisão orçamentária e de formação de fóruns de participação democrática. Vale a tentativa, sem esquecer é claro que somente a própria “cidade real” através de suas formas de resistência e fóruns políticos de organização, será capaz de reverter este quadro de apartamento social no qual vivemos.

Joana da Silva Barros

Mestranda no departamento de Sociologia Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

* * *

ENTRE INSTITUCIONALISMO E DECISIONISMO

Carl Schmitt e a fundamentação do direito, de Ronaldo Porto Macedo Jr. São Paulo: Max

Limonad, 2001, 228 pp.

Originariamente dissertação de mestrado defendida pelo autor na FFLCH-USP, este livro pode ser

incluído entre os melhores trabalhos da recente e vasta bibliografia internacional sobre a polêmica

figura de Carl Schmitt206. Dentre os vários estudiosos que hoje analisam a obra schmittiana, Ronaldo

206 Cf., além dos títulos citados adiante, Caldwell, Peter C. Popular sovereignty and the crisis of German constitutional law. Durham/Londres: Duke Univ. Press, 1997; Cristi, Renato. Carl Schmitt and authoritarian Liberalism. Cardiff: Univ. of Wales Press, 1998; Dyzenhaus, David. Legality and legitimacy: Carl Schmitt, Hans Kelsen and Hermann Heller in Weimar. Nova York: Oxford Univ. Press, 1999; McCormick, John P. Carl Schmitt’s critique of Liberalism. Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1999; Scheuerman, William E. Carl Schmitt: the end of law. Nova York: Rowman & Littlefield, 1999. Araujo, José Antonio E. La crisis del Estado de Derecho: Schmitt en Weimar. Barcelona: Ariel, 1990; Galli, Carlo. Genealogia della politica: Carl Schmitt e la crisi del pensiero politico moderno. Bolonha: Il Mulino, 1996; Kervégan, Jean François. Hegel, Carl Schmitt: le politique entre spéculation et positivité. Paris: PUF, 1992; Beaud, Olivier. Les derniers jours de Weimar: Carl Schmitt face à l’avènement du nazisme. Paris:

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Porto Macedo Jr. destaca-se por centrar seu trabalho na influência das teorias institucionalistas do

direito no pensamento de Schmitt na década de 1930.

O primeiro capítulo busca contextualizar a atuação de Schmitt entre os anos 1920 e 1940, ou seja,

entre a crise e queda do regime democrático de Weimar e a ascensão e consolidação do nazismo. É

destacado o oportunismo de Schmitt — muito maior do que sua convicção — na adesão ao regime

totalitário, seguindo aqui a interpretação dos norte-americanos George Schwab e Joseph Bendersky207

(pp. 29-37). O segundo capítulo aborda o “decisionismo jurídico” — expressão que para Macedo Jr.

“está irremediável e definitivamente ligada ao pensamento jurídico de Carl Schmitt” (p. 39) — e todo

o seu desenvolvimento na obra schmittiana, desde as idéias de “ditadura comissária” e “ditadura

soberana” (Die Diktatur: von den Anfängen des modernen Souveränitätsgedankens bis zum

proletarischen Klassenkampf, de 1922), passando pela crítica ao parlamentarismo e à Constituição de

Weimar (Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus, de 1923, e Verfassungslehre,

de 1928), até a dicotomia amigo/inimigo do conceito do político (Der Begriff des Politischen, de

1932).

O terceiro capítulo examina as teorias institucionalistas do direito, capitaneadas pelas obras de

Maurice Hauriou (especialmente o ensaio “La théorie de l’institution et de la fondation: essai de

vitalisme social”, de 1925, incluído na coletânea Aux sources du droit: le pouvoir, l’ordre et la liberté,

de 1933) e de Santi Romano (L’ordinamento giuridico, de 1918). Finalmente, o quarto capítulo e a

Conclusão tratam mais propriamente da influência das teorias institucionalistas sobre o pensamento de

Schmitt, que na década de 1930 — mais especificamente com o ensaio Sobre os três tipos do

pensamento jurídico, de 1934208, e a idéia de “ordenamento concreto” (konkretes Ordnungsdenken) —

teria, segundo Macedo Jr., mitigado o decisionismo, tornando-o uma espécie de “decisionismo

institucionalista” (p. 133).

Em nossa opinião, porém, há muito mais continuidade do que ruptura no pensamento de Carl Schmitt

na década de 1930. A influência institucionalista na obra de Schmitt vem ao menos desde 1928,

quando foi publicada sua Teoria da Constituição (Verfassungslehre), em que pela primeira vez são

mencionadas as “garantias institucionais” (institutionelle Garantien). Em um texto de 1931,

Freiheitsrechte und institionelle Garantien der Reichsverfassung, ele aprofundou essa conceituação,

diferenciando tais garantias, reservadas às instituições de direito público (Igreja, exército, a autonomia

orgânica local etc.), das chamadas “garantias de instituto” (Institutsgarantien), destinadas às

Descartes & Cie., 1997; “Carl Schmitt ou le juriste engagé”. In: Schmitt, Carl. Théorie de la Constitution. Paris: PUF, 1993; Maus, Ingeborg. Bürgerliche Rechtstheorie und Faschismus. 2a ed. Munique: W. Fink, 1980; Mehring, Reinhard. Pathetisches Denken — Carl Schmitts Denkweg am Leitfaden Hegels. Berlim: Duncker & Humbolt, 1989; Meier, Heinrich. Carl Schmitt, Leo Strauss und der Begriff des Politischens: Zu einem Dialog unter Abwesenden. Stuttgart: Metzler, 1998. 207 Cf. Schwab, George. The challenge of the exception. 2a ed. Nova York: Greenwood Press, 1989; Bendersky, Joseph W. Carl Schmitt: theorist for the Reich. Princeton: Princeton Univ. Press, 1983. 208 Esse texto (Über die drei Arten des rechtswissenschaftlichen Denkens) e O Führer protege o direito (Der Führer schutz das Recht), também de 1934, são reproduzidos no livro em tradução inédita de Peter Naumann, o que constitui mais uma importante contribuição de Macedo Jr.

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instituições de direito privado (casamento, propriedade etc.). O conceito de garantias institucionais foi

elaborado em contraposição à clássica noção liberal de direito subjetivo público, ou seja, direitos

individuais oponíveis ao Estado.

Antiliberais e antiindividualistas na concepção schmittiana, as garantias institucionais protegem os

indivíduos desde que estes pertençam a alguma instituição, e não porque eles possuam direitos

subjetivos fundamentais: a proteção está ligada à instituição, não à pessoa. Nas palavras de Schmitt, “a

liberdade não é uma instituição jurídica”, ou seja, os direitos de liberdade só podem ser garantidos se

ligados a alguma instituição jurídica, prevalecendo assim a garantia institucional sobre a garantia das

liberdades. Ao separar os direitos fundamentais em três categorias (direitos de liberdade, garantias

institucionais e garantias de instituto), fazendo prevalecer as duas últimas sobre a primeira, Schmitt

deixa muito claro o que ele considera objeto de proteção na Constituição de Weimar: as instituições

mais tradicionais e conservadoras do sistema jurídico-político, em detrimento dos direitos

fundamentais propriamente ditos.

Pouco depois da publicação desse texto, o “hamletismo político” de Weimar foi resolvido pela

nomeação de Adolf Hitler como chanceler pelo presidente Hindenburg e a conseqüente implantação

do Estado totalitário. Em 30 de janeiro de 1933, a “decisão”, o grande problema da democracia

republicana, está tomada. Na realidade, ao contrário do que afirmam muitos autores, particularmente

Schwab e Bendersky, a adesão de Carl Schmitt ao nazismo não se limita a mero oportunismo político.

Tal visão estaria baseada na versão do próprio Schmitt, elaborada após ter caído em desgraça junto aos

poderosos do nazismo, em 1936, e foi por ele utilizada, inclusive, para sua defesa perante o Tribunal

de Nuremberg.

A sua hostilidade constante em relação à República, à Constituição de Weimar e ao Tratado de

Versalhes, bem como seu conceito de político (em que o inimigo pode ser facilmente visualizado no

“estrangeiro”), tornariam possível, por si sós, a sua tomada de posição sob o nazismo, embora não a

fizessem necessária. Schmitt não foi, realmente, o grande teórico do Estado totalitário nazista, como

bem afirma Macedo Jr. (pp. 135-137), mas sua afinidade teórica com o nazismo não pode ser reduzida

à contribuição na teorização do “Estado dual” alemão (Der Doppelstaat, título do livro de Ernst

Fraenkel de 1941, em que o autor, social-democrata exilado nos Estados Unidos, analisa a estrutura do

Estado totalitário nazista).

Com o livro Staat–Bewegung–Volk: die Dreigliederung der politischen Einheit (Estado–Movimento–

Povo: a tripartição da unidade política), de 1933, a adesão de Schmitt ao nazismo se consuma. Ele

separa ali a unidade política em três esferas: o Estado (basicamente o exército e a burocracia), a esfera

estática; o Povo, a esfera apolítica; e o Movimento (consolidado no partido nazista), a esfera dinâmica,

que penetra e dirige as outras promovendo sua síntese, a homogeneidade (inclusive racial) entre

governantes e governados, por meio do Führer, que era o chefe do partido, o chefe do Estado e o chefe

do povo. Esse livro pode ser considerado complementar a Sobre os três tipos do pensamento jurídico,

que consolidaria, segundo Macedo Jr., a mudança do pensamento de Schmitt do decisionismo puro

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para o “decisionismo institucionalista”. A divisão dos tipos de pensamento jurídico entre Norma,

Decisão e Ordenamento, bem como a consolidação do conceito de “ordenamento concreto”, servem

para justificar a visão de Schmitt acerca da “nova ordem” nacional-socialista. A “decisão” já havia

sido tomada, encerrando a hesitação da democracia parlamentar de Weimar e superando o

normativismo positivista. O que prevalecia, em sua opinião, era uma dualidade entre o Ordenamento,

mais estático, e as formações dinâmicas do Movimento (Bewegung), síntese, como vimos, do Estado e

do Povo, conduzido pelo Führer. Dessa forma, o “institucionalismo” de Carl Schmitt foi uma tentativa

de achar lugar para as instituições tradicionais alemãs (família, exército, Igreja, propriedade) dentro da

“nova ordem”, conduzindo assim o Movimento por formas jurídicas, constituindo o “ordenamento

concreto”209.

Não há propriamente uma ruptura de Schmitt com o decisionismo — a despeito da aparente mitigação

deste sob a forma do assim denominado “decisionismo institucionalista” — e com a idéia de

“ordenamento concreto”. Como muito bem salientou Hasso Hofmann, a ditadura decisionista aparece

como conseqüência inevitável do pensamento do “ordenamento concreto”, pois a condição necessária

para que este exista como assegurador da unidade política é a decisão política incontestável210. E para

Schmitt, desde Teologia política (Politische Theologie), de 1922, “soberano é aquele que decide sobre

a situação de exceção”. A “decisão” referida em Sobre os três tipos do pensamento jurídico, ansiada

pelo autor em todo o período weimariano, foi tomada em 1933. O fim da República de Weimar é o

fator que deu origem ao “ordenamento concreto” defendido por Schmitt em 1934.

Autor sempre influente na Espanha e Itália, Carl Schmitt tem sido alvo de grande interesse em vários

países, como Estados Unidos, Canadá e França. Hoje é visto por muitos, inclusive por setores do

pensamento de esquerda, como um grande crítico do liberalismo e das falhas da democracia

representativa. O grande problema dessa “recepção” de Schmitt é a tendência em amenizar ou ignorar

sua atividade política anterior e, especialmente, em meio ao nazismo. Não se pode ignorar o fato de

que sua obra foi toda elaborada visando justificar certas correntes político-ideológicas, bem como as

suas próprias posições em relação à turbulenta conjuntura histórica e política da Alemanha do século

XX. Isso sem esquecer que, como jurista, Carl Schmitt era voltado também para a solução de

problemas concretos e conjunturais, não podendo ter sua obra compreendida isoladamente da sua

atuação política e pessoal no decorrer de sua vida.

Esse mérito o livro de Ronaldo Porto Macedo Jr. também tem, pois não tenta, artificialmente, separar

o autor da obra. Separar a obra de Carl Schmitt de sua vida apenas serviria para fundamentar

concepções equivocadas ou distorcidas, como a adaptação indevida de conceitos por ele elaborados

para defender a instituição do chamado “Estado total” em contextos históricos e políticos

209 Cf. Stolleis, Michael. Geschichte des öffentlichen Rechts in Deutschland, vol. III: Staats- und Verwaltungsrechtswissenschaft in Republik und Diktatur, 1914-45. Munique: C. H. Beck, 1999, pp. 324-325. 210 Hofmann, Hasso. Legitimität gegen Legalität: Der Weg der politischen Philosophie Carl Schmitts. 3a ed. Berlim: Duncker & Humblot, 1995, cap. IV. Este livro, cuja primeira edição é de 1964, foi o pioneiro na análise aprofundada da obra de Schmitt.

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absolutamente distintos. Um autor conservador e tradicionalista, que pensou toda a sua obra com o

objetivo de combater a democracia, a república e o pluralismo, não pode ser ignorado, mas também

não pode ter seus conceitos utilizados inadvertidamente, sem a cautela de serem contextualizados da

forma devida. Democracia e Carl Schmitt — decisionista ou institucionalista — decididamente não

combinam.

Gilberto Bercovici Doutor em Direito do Estado

pela Faculdade de Direito da USP.

* * *

DO DIREITO COMUNITÁRIO

O livro Introdução ao Direito Comunitário de Marcílio Toscano Franca Filho (São

Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, 112p.) serve, antes de tudo, para bem compreender o que seja o

Direito Comunitário, ramo do Direito da Integração que se desenvolve no marco do Direito

Internacional Público Geral.

FRANCA FILHO demonstra nesta obra que é dotado de grande capacidade de síntese.

Ele tem, na realidade, o raro condão de vincular temas abrangentes e complexos com

impressionante simplicidade, sem deixar de ser profundo. Os assuntos tratados (ordem

internacional, Estado, soberania, globalização, direito da integração, direito comunitário)

acham-se compactados e explicados, sem descurar, porém, o extremado rigor conceitual que o

autor faz questão de ressaltar que seguirá, como de fato segue do começo ao fim do livro. Toda

essa ampla temática é desenvolvida, em pouco mais de cem páginas, sob a luz onipresente e

necessária do mais polêmico dos temas referidos, a soberania. Esta, lembra o autor, nasce

absoluta. Hoje não há a falar em soberania absoluta, isso permite que formas de organização sui

generis, bancadas por entes estatais, sejam factíveis. A União Européia desenvolveu-se nos

moldes das organizações tradicionais de alcance regional, mas com a peculiaridade de ser

supranacional. Daí a dificuldade em determinar-lhe a natureza jurídica, quem o fez norteou-se por

variados matizes: federal, internacional, supranacional, funcional. O certo, porém, é que se trata

de sistema normativo localizado entre o Direito Internacional e o Direito estatal, norteado por

princípios essenciais e comuns aos pactuantes, tais como: liberdade, democracia, respeito aos

direitos humanos e às liberdades fundamentais e ao Estado de direito.

Sabe-se que a emergência do fenômeno das organizações internacionais data apenas

do Século XX. Ressalte-se, contudo, que fora da Europa esses organismos, que passaram a ter o

status de sujeitos do Direito Internacional, permanecem intergovernamentais. Somente a Europa

conseguiu dar no plano material primazia ao sistema normativo supra-estatal. Que isso significa

do ponto de vista jurídico? Significa a consolidação de relevante tese teorética e,

consequentemente, a comprovação do primado do Jus Gentium, a despeito dos que defendem ser

o Direito Comunitário ramo diferente do Direito Internacional. O Direito Comunitário prova,

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pois, como nenhum outro, a possibilidade de organização para além do Estado, com primazia da

ordem supra-estatal. Neste tipo de organização o Estado ainda desempenha destacado papel como

criador, destinatário e fiel observador das normas supranacionais, alicerçadas no princípio

fundamental da Pacta Sunt Servanda.

A obra de FRANCA FILHO é obrigatória por sobradas razões. Porquanto nela há

precisão e rigor científico, riqueza de informações, linguagem escorreita e fluente, resultando,

para o leitor, em agradável e profícua leitura. Convém lembrar, por fim, que o autor obteve com a

obra Introdução ao Direito Comunitário, com merecida distinção, o título de Mestre em Ciências

Jurídicas no Programa de Pós-Graduação em Direito, da Universidade Federal da Paraíba

(CCJ/UFPB).

Fredys Orlando Sorto Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Paraíba

Mestre em Direito Internacional e Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo Associado ao “Instituto Hispano-Luso-Americano de Direito Internacional” (Madri)