antropologia das emoções

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS 6º PERÍODO Semestre 2011.2 Profª. Maria Cristina Rocha Barreto [E-mail: [email protected]] Mossoró, RN Dezembro de 2011

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

6º PERÍODO – Semestre 2011.2

Profª. Maria Cristina Rocha Barreto [E-mail: [email protected]]

Mossoró, RN

Dezembro de 2011

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Copyright © 2010 Claudia Barcellos Rezende

1ª edição - 2010

Impesso no Brasil | Printed in Brazil

Todos os direitos reservados à EDITORA FGV. A reprodução não autorizada desta

publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei nº 9.610/98).

Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade do autor.

Este livro foi editado segundo as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado pelo decreto Legislativo nº 54, de 18 de abril de 1995, e promulgado pelo Decreto nº 6.583, de 29 de setembro de 2008.

COORDENADORES DA COLEÇÃO: Marieta de Moraes Ferreira e Renato Franco PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS: Mariflor Rocha REVISÃO: Fátima Caroni, Adriana Alves Ferreira, Aleidis de Beltran DIAGRAMAÇÃO: FA Editoração PROJETO GRÁFICO E CAPA: Dudesign

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

Rezende, Claudia Barcellos, 1965-

Antropologia das emoções / Claudia Barcellos Rezende, Maria Claudia Coelho. - Rio de Janeiro: Editora FGV; 2010. 136 p. (Coleção FGV de bolso. Série Sociedade & Cultura)

Inclui bibliografia.

ISBN 978-85-225-0795-5

1. Antropologia social. 2. Emoções. 3. Comportamento humano. IJ. Coelho, Maria Claudia. Il. Fundação Getulio Vargas. III. Título. IV.

Série.

CDD - 301.2

EDITORA FGV

Rua Jornalista Orlando Dantas, 37 22231-010 I Rio de Janeiro, RJ I Brasil Tels.: 0800-021-7777 I 21-3799-4427 Fax: 21-3799-4430 [email protected] I [email protected]

www.fov.hr/editora

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Aos nossos alunos

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Sumário

Introdução 9

Capítulo 1 19

Emoções: biológicas ou culturais? As emoções e o corpo humano

O o lhar das ciências sociais O medo

A raiva

Capítulo 2 43

Emoções: individuais ou sociais? O lugar da emoção nas ciências sociais: formulações clássicas As gramát icas dos sentimentos

Capítulo 3 75

A micropolítica das emoções A perspectiva contextualista: um mapeamento

do campo da antropo log ia das emoções

A micropolít ica das emoções: estudos de caso

Dádiva, hierarqu ia e emoção: as trocas de presentes entre patroas e empregadas domésticas

Capítulo 4 97

As emoções nas sociedades ocidentais modernas A tensão entre sentir e expressar

O contro le das emoções A ênfase hedonista no fazer

Contro le e p razer combinados: do is exemplos

Autenticidade, p razer e contro le: amor nos tempos modernos

Conclusão 123

Referências bibliográficas 131

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Introdução

Em um texto em que explora o tema da natureza universal das grandes tragédias, a antropóloga norte-americana Laura Bohannan narra e comenta uma experiência muito particular: contar a história de Hamlet para uma tribo africana. Sua convicção inicial, discutida em Oxford com um amigo inglês, é de que as grandes tragédias falam da condição humana, podendo, portanto, ser universalmente compreendidas da mesma maneira.

A situação surge de forma inesperada. Durante uma estação chuvosa, Laura vê-se isolada na habitação de uma família, encarapitada no alto de uma colina, à qual poucos têm acesso. Impossibilitados de realizar seus afazeres cotidianos, os membros

da família dedicam-se todos os dias, meses a fio, a beber cerveja e contar histórias. Um dia, Laura é instada a explicar o que faz ao contemplar incessantemente seus "papéis";

neste momento, pedem-lhe que conte uma história da sua terra. Recordando a conversa com seu amigo inglês, Laura vê aí uma chance ímpar de "testar" a

universalidade da compreensão de Hamlet. E decide contar ao grupo a tragédia de Shakespeare.

Ao longo da narrativa, uma profusão de mal-entendidos e interrupções se sucedem. A primeira delas é a incredulidade dos africanos diante da natureza da aparição do fantasma do pai a Hamlet: o que é um "fantasma"? Afinal, pessoas mortas não falam, não têm materialidade. À ideia de "fantasma", os nativos contrapõem a possibilidade de um "agouro", enviado por um feiticeiro, ou de um "zumbi". E ridicularizam Hamlet por acreditar estar diante de seu pai.

Outras dificuldades surgem para o entendimento da história: por que o

sucessor do chefe é seu filho, e não seu irmão? Por que o chefe morto tinha uma única esposa - quem iria alimentar seus convidados? Por que Polônio não permitia que

Hamlet cortejasse sua filha - ele não percebia que um chefe o compensaria por isso? Por que Polônio não se identificara atrás da cortina ao ser ameaçado por Hamlet -

qualquer criança se apresentaria para não ser morta! Por que Hamlet não recorrera aos anciãos para vingar-se de Cláudio - todos sabem que não se pode erguer a mão

contra os mais velhos! E que dizer da exiguidade da família de Ofélia - como assim seus únicos parentes masculinos eram o pai e o irmão? Deveria haver muito mais!

Um leitor minimamente familiarizado com questões canônicas da antropologia

reconhece, por trás desses mal-entendidos, problemas tradicionais das teorias do parentesco e da dádiva - construção de descendência, dádiva e poder, concepções de

família (extensa versus nuclear) etc. Essas questões entrelaçam-se com a emergência dos afetos, também eles suscetíveis de variações provocadas pelo ambiente

sociocultural em que se encontram. A experiência de Laura Bohannan traz um momento de fertilidade ímpar para a apresentação da relação entre cultura, sociedade

e emoções.

O núcleo da tragédia de Hamlet é a traição que seu pai sofre da parte de sua

esposa, Gertrudes, com seu irmão Cláudio. É este o responsável por seu envenenamento, com a anuência de Gertrudes. Pouco após a morte do rei, Gertrudes

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e Cláudio se casam e este assume o trono. A tragédia tem início com a aparição do fantasma do rei a seu filho, denunciando a traição. Elemento nodal da tragédia é a

revolta de Hamlet quanto à decisão de sua mãe em casar-se novamente, desrespeitando o período ritual de dois anos de luto.

Por essa revolta, Hamlet é unanimemente considerado um bobo pelos africanos: que besteira é essa de esperar dois anos - quem iria cuidar da fazenda de seu irmão, se a viúva esperasse tanto assim para casar-se novamente? E então ele não sabe que é dever do irmão mais novo casar-se com a viúva de seu irmão? Quem cuidaria melhor de seus filhos e de seus bens?

A regra do levirato é um evidente obstáculo à "compreensão universal" da tragédia de Hamlet. A prescrição matrimonial que define como preferencial o casamento com a viúva de seu irmão impede a compreensão da vivência desse

casamento como uma traição, e torna absurdo o ciúme de Hamlet. Afinal, por que ter ciúme, se sua mãe fizera exatamente o que mandava o costume, agindo no melhor de

seu interesse e de seu filho? E por que ter raiva do irmão do pai, se este apenas cumprira seu papel?

Essa pequena fábula antropológica tem uma "moral": os sentimentos são tributários das relações sociais e do contexto cultural em que emergem. O ciúme de

Hamlet faz sentido à luz das teorias do parentesco ocidental, mas é absurdo se levarmos em conta outros sistemas de parentesco, com suas prescrições e interdições próprias. O ciúme não é, assim, um sentimento universal, decorrência espontânea de exigências de exclusividade sobre aqueles a quem amamos; ao contrário, sua eclosão é pautada por "regras de relacionamento", que o tornam legítimo e esperado em relações governadas por expectativas prescritas de reciprocidade e exclusividade, mas que o condenam em outros modelos de relacionamento nos quais a "regra" é o compartilhar do outro, a exemplo dos modelos poligâmicos.

A convicção de que os sentimentos têm uma natureza universal faz parte do

senso comum ocidental, que os considera um aspecto da natureza humana marcado pelas ideias de "essência" - no sentido de uma universalidade invariável- e de

"singularidade" - como algo que provém espontaneamente do íntimo de cada um. Fazer uma "antropologia das emoções" é colocar em xeque essas convicções,

tratando-as como "representações" de uma dada sociedade; construir as emoções como um objeto das ciências sociais é inseri-Ias no rol daquelas dimensões da

experiência humana as quais, apesar de concebidas pelo senso comum como "naturais" e "individuais" - a exemplo da sexualidade, do corpo, da saúde e da doença etc. -, estão muito longe de serem refratárias à ação da sociedade e da cultura.

O processo de construção das emoções como objeto das ciências sociais é longo, podendo remontar aos esforços pioneiros de fundação das ciências sociais

como campo de saber autônomo. Embora o tema das emoções figure nos trabalhos de muitos antropólogos e outros cientistas sociais, sua aparição se dá com frequência de

forma secundária. A presença dos afetos foi sempre notada como parte da dinâmica da vida social, sem que contudo a eles se dedicasse atenção como objeto autônomo de

investigação. Por trás disso estava o status dúbio das emoções: embora se tornassem elementos da interação social, eram vistas como fatos "naturais", realidades

psicobiológicas que já eram dadas a priori e modificadas até certo ponto pela socialização em uma cultura específica. Mais ainda, eram consideradas também

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fenômenos subjetivos, individuais e particulares, mesmo que as sociedades regulassem sua expressão. Mantinham-se, portanto, assunto prioritariamente da

psicologia.

Sociólogos clássicos como Émile Durkheim e Georg Simmel fizeram contribuições significativas no sentido de mudar essa perspectiva. Embora em seus textos programáticos ambos tratem as emoções como estados subjetivos e não sociais, por caminhos distintos, eles mostram como há sentimentos que são produzidos socialmente - nas relações sociais - e que têm efeitos significativos para as interações e a coletividade de modo amplo. Seus estudos são, portanto, elaborações importantes na direção de tomar as emoções como elementos sociais.

Contudo, a ambivalência em torno do estatuto das emoções perdurou por muito tempo no desenvolvimento das diversas escolas antropológicas. Esse quadro de

atribuição aos sentimentos de um espaço menor na teoria social, por conta de sua representação como elementos de natureza psicobiológica (cuja marca social residiria

apenas na regulação de sua expressão por regras sociais) persiste por várias décadas. Alguns pensadores das escolas britânica, americana e francesa de antropologia, como

A. R. Radcliffe-Brown, Ruth Benedict e Marcel Mauss, respectivamente, detiveram-se nas regras e formas coletivas de expressão dos sentimentos, ora explorando seu papel

ou função social, ora comparando padronizações culturais distintas das emoções. Ainda percebemos nesses autores, com exceção de Mauss, uma visão ambígua da emoção, que ora é pensada como um estado interno, subjetivo e não social, ora resultaria de situações sociais, sendo assim de ordem social.

O estudo das emoções ganhou força na antropologia com o desenvolvimento da abordagem interpretativa na década de 1970 nos Estados Unidos. Nessa perspectiva, a noção de cultura como padrões de comportamento habituais e tradicionais foi repensada e redefinida em termos de teias de significados, transmitidas por símbolos e interpretadas de maneira específica de sociedade para sociedade. Essa

mudança produziu muitos estudos em torno da construção cultural dos significados nas mais variadas esferas da vida social, em particular os conceitos de pessoa e self,

bem como das emoções. Esses trabalhos também enfatizavam a articulação entre emoção e concepções de pessoa com as esferas da moralidade, da estrutura social e

das relações de poder.

Nos Estados Unidos, a tônica dos estudos antropológicos em torno das

emoções na década de 1980 partia de uma perspectiva relativista que tratava os sentimentos como conceitos culturais que mediam e produzem a experiência afetiva. Assim, a separação antes feita entre estados subjetivos e sentimentos sociais foi problematizada, uma vez que as próprias ideias de pessoa e de subjetividade passam a ser vistas como construções culturais. Além disso, como propõe Catherine Lutz (1988), uma das expoentes deste campo, os conceitos de emoção implicam negociações sobre a definição da situação e sobre vários aspectos da vida social, devendo ser vistos como

elementos de práticas ideológicas locais. Com isso, as emoções passam a ser tomadas como um idioma que define e negocia as relações sociais entre uma pessoa e as outras

(Lutz e White, 1986). Resulta dessa orientação uma série de etnografias (entre outras, Abu-Lughod, 1986; Lutz, 1988; Rosaldo, 1980), que formam o chamado campo da

antropologia das emoções (Lutz e White, 1986).

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Recentemente, o estudo antropológico das emoções passou a enfatizar o elemento do contexto em que se manifestam os conceitos emotivos, buscando ir além

das relativizações para analisar sob um ponto de vista pragmático as situações sociais específicas em que eles são expressos (Abu-Lughod e Lutz: 1990). A preocupação dessa abordagem contextualista aqui e dupla: mostrar como o próprio significado das emoções varia dentro de um mesmo grupo social dependendo das circunstâncias em que se manifestam, e atentar para as consequências da expressão dos sentimentos nas relações sociais e de poder.

Assim, o campo da antropologia das emoções estruturou-se não apenas com uma variedade de estudos etnográficos, mas também com um conjunto de questões teórico-metodológicas que buscavam fornecer instrumentos para a comparação. Das relativizações iniciais passou-se para um esforço maior em mostrar a dimensão micropolítica das emoções, revelando como são mobilizadas em contextos sempre marcados por relações e negociações de poder em vários níveis.

Como em outros lugares, no Brasil as emoções também aparecem ocasionalmente em estudos das ciências sociais há muito tempo. Como mostra Koury

(2005a), é uma temática que ocupou pensadores da década de 1930, como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, que discutiram as emoções em suas

preocupações relacionadas à constituição de uma identidade nacional brasileira.

Já na década de 1980, encontramos uma maior atenção a esses fenômenos, ainda que o foco das análises estivesse nas variações do conceito de pessoa e nas emoções em contextos e segmentos sociais distintos. Roberto DaMatta (1997) analisa como as formas de expressão das emoções, entre outros comportamentos, se ajustam às diferenças entre espaços públicos e privados. Velho (1981 e 1986), Dauster (1986) e Salem (2007), entre outros, examinam como a emoção e sua expressão vêm a ser um componente central na construção de projetos de pessoas das camadas médias urbanas, marcados pela tensão entre a individualização e o pertencimento. Duarte

(1986), por sua vez, busca compreender a centralidade da categoria emotiva "nervoso" nas concepções específicas de pessoa entre classes trabalhadoras urbanas, mais

holistas em sua orientação.

Como foco de estudos que forma um campo próprio, o interesse nas emoções

vem gradualmente ganhando espaço entre as ciências sociais brasileiras desde a década de 1990. Há não apenas movimentos em direção a uma institucionalização do

campo, mas também uma diversidade de temáticas estudadas. Entre as iniciativas institucionais pioneiras, podemos destacar a criação, em 2002, da Revista Brasileira de Sociologia das Emoções, revista virtual editada por Mauro Koury (Universidade Federal da Paraíba - UFPB). Outras formas de institucionalização são a realização de grupos de trabalho nas principais reuniões científicas, entre elas a Reunião de Antropologia do Mercosul (RAM) e a Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Ciências Sociais (Anpocs), e a criação de núcleos de pesquisa como o Grupo de Estudo

e Pesquisa sobre Emoção (Grem) da UFPB, e o Núcleo de Antropologia das Emoções [Nante], na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Entre os autores que vêm contribuindo para o desenvolvimento do campo, Mauro Koury, na UFPB, já pesquisou as emoções do luto e a dor nas cidades (2003) e

examina o sentimento de medo nas relações entre indivíduos no meio urbano (2005b). Na Uerj, Maria Claudia Coelho trabalha com a temática das emoções em torno de

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questões distintas: os sentimentos expressos por Ias na idolatria (1999), a dádiva nas trocas materiais (2006a) e as experiências de vitimização em assaltos a residências

(2006b). Também na Uerj, Claudia Barcellos Rezende fez uma análise comparativa sobre amizade em Londres e no Rio de Janeiro, discutindo essa relação que também é vista como sentimento (2002), e recentemente pesquisou a elaboração subjetiva da identidade brasileira entre pessoas que fizeram pós-graduação no exterior, ressaltando a dinâmica dos elementos emotivos dessa construção (2009). 1

Este livro está estrutura do em torno de alguns temas principais do estudo das emoções nas ciências sociais. Os dois primeiros capítulos discutem as questões que fundam o campo. No primeiro está o debate em torno da natureza das emoções: são elas biológicas ou culturais? O segundo capítulo analisa o outro problema fundamental dessa área: a emoção é um estado individual ou social?

O terceiro capítulo apresenta a perspectiva que vincula as emoções à estrutura social, enfatizando em particular seu potencial micropolítico, ou seja, de expor e afetar

as relações de poder e hierarquia de um modo amplo. O quarto capítulo trata das emoções nas sociedades ocidentais modernas e as questões que marcam a experiência

emotiva neste contexto.

1 Esses projetos de pesquisa desenvolvidos pelas autoras constituíram os campos de investigação que

formam a base da concepção deste l ivro. Todos os projetos, a partir de outubro de 1997, foram

desenvolvidos no âmbito Programa de Incentivo à Produção Científica, Técnica e Artística (Prociência) da

Sub-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa da Uerj.

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Capítulo 1

Emoções: biológicas ou culturais?

Seria o amor um sentimento que contribui para a manutenção da espécie

humana? Esta é a ideia apresentada em uma reportagem do jornal O Globo, na edição de 29 de junho de 2008, segundo a qual as emoções "seriam forjadas pela seleção

natural". Como outras características físicas, os sentimentos teriam sido fundamentais na evolução da espécie, garantindo a ela vantagens reprodutivas. Assim, o amor seria

importante para a reprodução da espécie, pois une os seres humanos para reproduzir e proteger a prole, já que o filhote humano precisa de tempo para poder viver de

forma independente. O medo ajudaria na sobrevivência, evitando, por exemplo, que uma pessoa passe na frente de um leão tranquilamente e corra o risco de morrer. A

raiva é outra emoção que incitaria a defesa pessoal, contribuindo assim para a sobrevivência.

Nesse artigo de jornal, encontramos uma ideia muito constante no pensamento das sociedades ocidentais modernas: as emoções são fenômenos comuns e naturais a todos os seres humanos. A capacidade <te sentir emoções resultaria do equipamento biológico e psicológico inerente à espécie humana e seria, portanto, universal. Seriam assim invariáveis no tempo e no espaço, de modo que as pessoas

poderiam se identificar com outras em sociedades distintas ou em épocas passadas em função de sentirem emoções como amor, tristeza, raiva, medo etc. Nesse modo de

pensar, as emoções trariam poucas ou nenhuma marca das culturas nas quais as pessoas vivem. Essa visão está presente no senso comum, na mídia e também em

algumas áreas disciplinares.

Neste capítulo, vamos primeiramente analisar essa visão das emoções, que

compõe uma etnopsicologia ocidental moderna. A noção de etnopsicologia, discutida por Lutz (1988), se refere ao sistema de conhecimentos que define e explica o que é a pessoa seus atributos, suas reações, seu modo de se relacionar com os outros que permite que ela monitore a si própria e aos outros, possibilitando assim alguma antecipação dos comportamentos. É principalmente um campo de conhecimento que varia de sociedade para sociedade, bem como ao longo da história. Na etnopsicologia ocidental moderna, encontramos dois pressupostos fundamentais no modo de pensar a pessoa e suas emoções que serão discutidos aqui: a percepção de que as emoções estão ancoradas à dimensão psicobiológica do indivíduo e a noção consequente de que

as emoções são constantes e universais. Exploraremos em seguida o modo como as ciências sociais problematizam esses argumentos, colocando o debate sobre o caráter

biológico ou cultural das emoções em outras bases. Nossa preocupação é distinguir as visões de mundo ocidentais modernas das posturas teóricas para o estudo das

emoções. Ao final, apresentamos alguns estudos que relativizam emoções consideradas básicas, como o medo e a raiva, para ilustrar esta discussão.

As emoções e o corpo humano

Um dos pressupostos fundamentais da etnopsicologia ocidental moderna, na visão de Lutz (1988), é a noção de que a pessoa é constituída por um dualismo

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fundamental: a oposição entre corpo e mente. Embora estejam articuladas na pessoa, são dimensões pensadas separadamente uma da outra, produzindo por isso campos

de conhecimento d:stmtos para lidar ora com o corpo, ora com a mente. Os fenômenos associados a esta última instância são também divididos em dois: as emoções e a razão. Esta segunda dicotomia está relacionada com a primeira, na medida em que as emoções estão geralmente associadas ao corpo, enquant o a razão seria um fenômeno basicamente da mente. Na associação entre emoção e corpo, encontramos tanto as causas quanto as manifestações dos sentimentos, que teriam também certas qualidades comuns às reações corporais.

Nessa visão de mundo, as emoções são pensadas como tendo, muitas vezes, origem no funcionamento do corpo. Dois exemplos desta ideia são as concepções dos hormônios e do funcionamento neurológico do cérebro como causadores e/ou reguladores das emoções. Os hormônios ditos masculinos e femininos respectivamente a testosterona e o binômio estrogênio e progesterona explicariam muitas características emotivas dos gêneros. Os homens seriam mais agressivos do que as mulheres em função da maior presença d,a .testosterona no seu organismo. Já

as mulheres teriam varias reações emotivas atribuídas aos hormônios, que marcariam as varias etapas de seu ciclo de vida. Haveria uma maior instabilidade emotiva nos dias

anteriores à menstruação, o que, Junto a aspectos físicos, configuraria a síndrome da tensão pré-menstrual (TPM). Como mostra Juer (2007) em sua análise da visão biomédica dos hormônios, o desejo de ter filhos é às vezes explicado pela forte presença do estrogênio após a menarca. A gravidez é considerada também um período no qual a mulher teria uma instabilidade emocional, além da forte presença do medo e da ansiedade, em muito associada às alterações hormonais na gestação. A menopausa é outro momento na vida das mulheres no qual a diminuição do estrogênio e da progesterona afetaria as emoções.

O funcionamento do cérebro, em particular as reações químicas que lá acontecem, é apontado como outra fonte responsável por algumas manifestações emotivas. Os jornais já escreveram sobre o amor como resultado de certas reações

químicas do cérebro, e como mulheres e homens apresentariam características cerebrais distintas teriam também experiências diferentes do sentimento. Nessa

perspectiva, também a ansiedade e os estados emotivos que conformam a depressão resultariam principalmente de reações químicas desequilibradas, sendo muitas vezes

tratadas por meio da química de ansiolíticos e antidepressivos.

Considera-se também que os sentimentos produzam reações corporais. Assim, a tristeza vem muitas vezes acompanhada de lágrimas e soluços, reações que também podem vir da alegria e da felicidade. O medo provocaria arrepios, palpitações e até mesmo enfartes cardíacos, dando sentido literal à expressão popular "morrer de medo". A ansiedade e a angústia podem ter variadas manifestações, como falta de ar, insônia, sensação de aperto no estômago. Há inclusive no senso comum e na medicina a visão de que mulheres muito ansiosas têm dificuldade de engravidar.

Encontramos também a atribuição do surgimento de algumas doenças à

presença de alguns estados emotivos. Em um estudo clássico, Sontag (1984) analisa como, no século XIX, a tuberculose era considerada uma doença da paixão, que

acometeria pessoas melancólicas e apaixonadas, enquanto: no século XX, o câncer seria mais comum entre pessoas contidas, tensas e estressadas.

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Nessa etnopsicologia. as emoções teriam vários atributos em comum com os fenômenos corporais. Por exemplo, apresentariam muitas vezes o mesmo caráter

involuntário e espontâneo que muitas reações corporais. Explicações como aquelas que veem hormônios e reações neurológicas como produtores de emoções reforçam a ideia de que eles aconteceriam de maneira independente da vontade do sujeito. Diz-se também que a paixão e o amor são sentimentos que não escolhem seu objeto. Em outros momentos acredita-se que a raiva sentida surja de maneira incontrolável. sendo também difícil de ser manifestada de modo contido. As lágrimas de tristeza exemplificariam uma reação emotiva e ao mesmo tempo corporal vista como involuntária, a tal ponto que chorar em cena seria um aprendizado difícil para atores.

Outra qualidade compartilhada é a ideia de que, assim como existe uma unidade biológica entre os seres humanos, há também uma unidade psíquica entre eles. Entretanto, se a razão seria uma capacidade cujo desenvolvimento depen de de vários fatores externos à pessoa, sendo, portanto, variável entre grupos e sociedades, as emoções, como fenômenos mais próximos ao corpo, estariam menos sujeitas também ao controle externo, sendo assim menos variáveis e mais constantes através

das culturas. Por esse motivo, as emoções são consideradas qualidades essenciais dos seres humanos, no sentido de caracterizar um núcleo essencial do indivíduo que se

manteria relativamente intacto apesar da intervenção da sociedade. Neste sentido, encontramos uma tensão entre a visão da emoção como emanando de uma natureza interior e não social do indivíduo e a concepção que a toma como qualidade universal de todos os seres humanos. Passaríamos assim do plano da singularidade individual para o universal sem qualquer mediação da sociedade ou cultura.

Por outro lado, embora nessa etnopsicologia as emoções tenham uma dimensão psicobiológica, admite-se que a sociedade influencie o modo de expressar os sentimentos. Assim, reconhece-se a existência de regras de expressão que afetam a manifestação dos sentimentos não apenas de acordo com os contextos sociais, como também entre sociedades diferentes. Há, por exemplo, normas para a expressão das emoções em uma situação de luto, que independem do indivíduo sentir tristeza ou

pesar pela morte de uma pessoa. O luto, por sua vez, varia de sociedade para sociedade, de modo que em certos lugares pode-se chorar copiosamente enquanto,

em outros, pede-se expressões mais contidas de pesar e tristeza. Nessa ótica, faz-se uma distinção entre o sentimento, entendido como individual e não cultural, e sua

expressão, vista como regra da por prescrições sociais.

Outra característica vista como social é a linguagem verbal e corporal para expressar as emoções. A manifestação de afeto por uma pessoa pode ou não envolver gestos, como beijos e abraços, que implicam o toque no corpo do outro. O vocabulário emotivo de uma sociedade é reconhecido como distinto do de outra, dificultando, por exemplo, o exercício de tradução de categorias emotivas de uma língua para outra. No entanto, as palavras nem sempre são vistas como expressando "de fato" o que o sujeito sente, reforçando novamente a distinção entre uma forma de expressão de ordem social e o sentimento de natureza individual. Nessa perspectiva, abre-se a possibilidade para que as pessoas sintam uma emoção mesmo que em sua sociedade não exista um termo de linguagem para expressá-Ia, como por exemplo sentir

"saudade" em culturas que não possuem essa categoria.

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Assim, as emoções são consideradas fenômenos que acontecem no corpo, tanto em função de sua origem quanto também de suas manifestações. Como já

afirmamos, essa estreita relação entre emoção e corpo estaria em contraste com a associação entre razão e mente. Essa oposição mostra como estas noções estão vinculadas e como recebem valores distintos, questão que Lutz (1988) analisa com atenção. Em muitos contextos, considera-se a mente superior ao corpo, e do mesmo modo a razão em relação à emoção. A razão como característica da mente permitiria o conhecimento, o planejamento, o progresso, o domínio sobre o mundo natural, do qual o corpo, e também as emoções, fariam parte. O corpo e a emoção podem ser controlados pela mente e pela razão, mas seriam a priori mais imprevisíveis, mais involuntários e mais incontroláveis. Enquanto a razão e a mente colocariam o ser humano em um plano distinto e acima hierarquicamente de outras espécies animais, as emoções e as necessidades corporais o igualariam a elas. Assim, o caráter mais incontrolável das emoções daria à pessoa mais emotiva uma vulnerabilidade e ao mesmo tempo uma aura perigosa que a pessoa mais racional não teria.

Por outro lado, nem sempre a emoção é menos valorizada que a razão. Em

alguns contextos os termos se invertem e a emoção torna-se uma força positiva, criadora, natural e autêntica. Constituiria também a dimensão mais verdadeira da

subjetividade individual. Em contraste, a razão representaria, nessa visão, o pensamento consciente tomado como artificial. Afinada com esses sentidos, encontramos também a ideia de que a emoção é sinal de acolhimento e humanidade, tanto em relação à frieza e distanciamento do racional, quanto à fisicalidade dos instintos nos animais. Nessa ótica, então, a pessoa mais emotiva seria mais comprometida, mais envolvida, mais humana, em oposição à alienação e à frieza da pessoa mais racional.

Nesse modo de pensar ocidental moderno, alguns grupos de pessoas são considerados mais emotivos do que outros, qualidade que implica os atributos positivos e negativos já discutidos. As crianças são vistas como mais emotivas, pois ainda não desenvolveram seu domínio da razão. Lutz (1988) também chama a atenção

de que, durante muito tempo, para os segmentos médios e altos da sociedade euroamericanas, pessoas negras e pobres em geral, bem como os povos tidos como

primitivos, eram também pensadas como tendo menos controle sobre suas emoções, sendo mais vulneráveis e ao mesmo tempo perigosas. Entretanto, o grupo que ainda

hoje é fortemente associado às emoções são as mulheres. Com seus comportamentos tidos pelo senso comum e pela medicina como estreitamente regulados pelos hormônios, as mulheres seriam mais instáveis emocionalmente e, portanto, menos racionais. Se essa caracterização é negativa em várias situações, principalmente no mercado de trabalho, em outros contextos é positiva e valoriza as mulheres como mais acolhedoras e cuidadosas nas relações do que os homens. De um modo geral, a qualificação de pessoas como mais emotivas revela-se elemento de relações de poder nas quais se justifica a subjugação da parte mais fraca em virtude de seu menor controle sobre as emoções, demonstrando a dimensão micropolítica dos sentimentos que discutiremos mais detalhadamente no capítulo 3.

O olhar das ciências sociais

Quando tratamos esse conjunto de ideias como uma etnopsicologia,

apontamos para o fato de que tal sistema de conhecimento é relativo no tempo e no

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espaço, problematizando assim o pressuposto fundamental das emoções como essências constantes e presentes em todos os seres humanos. Para embasar essa

afirmação, é preciso repassar os elementos dessa visão de mundo apresentados antes e analisá-los.

O primeiro ponto em questão é a relação entre as emoções e o corpo. A ideia de que certos processos corporais, como a produção de hormônios. causam ou afetam as emoções é problemática em função das mudanças no próprio conhecimento da medicina. Como Juer (2007) discute, a noção de hormônio como substância secretada em certas partes do corpo só surge ao longo do século XX. A forma de pensar a distinção entre corpos femininos e masculinos que estaria por trás de parte da discussão sobre hormônios já variou ao longo da história, como demonstra Laqueur (1990). Na Grécia antiga, o corpo feminino era pensado como a imagem invertida do corpo masculino, de tal maneira que a diferença entre eles era de graus e não de substância, como vem a ser a partir do século XIX. Assim, atribuir tal ou qual característica emotiva as mulheres em função dos hormônios mais presentes em seus corpos é uma visão que não existia nas sociedades ocidentais um século atrás.

Pode-se argumentar que essas visões não são novas leituras e sim "descobertas" de "fatos científicos" até então desconhecidos. Mas, como Foucault

(1977), Bourdieu (1983) e muitos outros já demonstraram, a ciência não é um campo neutro, pois os cientistas são, antes de tudo, pessoas que vivem em sociedades e momentos históricos específicos. O conhecimento produzido pela ciência é atravessado por relações de poder que disputam o que é legítimo, verdadeiro ou não. Neste sentido, o corpo, na análise de Foucault (1977), torna-se, a partir do século XVIII, objeto de escrutínio, tanto em termos de sua utilização quanto de sua explicação, e algo de novas formas de poder que o disciplinam sob todos os aspectos. Os cuidados do corpo, através de dietas, exercícios, medicamentos preventivos etc., revelam não apenas as preocupações tem torno dele, mas também um controle estrito e detalhado de tudo o que acontece com ele. Foucault discute como em torno do corpo desenvolvem-se saberes – médicos, psicológicos, jurídicos, demográficos – que

atravessam vários campos de poder, pensando-o não apenas como controle e repressão, mas também como produtor de práticas e interesses. A medicina em

particular implica um campo de conhecimento que segmenta o corpo em partes como forma de construção de saber para então articulá-lo e regulá-lo, para torná-lo cada vez

mais produtor e eficiente. Assim, a medicalização do corpo implica não apenas um tipo de conhecimento que reflete as relações de poder de sua sociedade e sua época, mas também uma forma de cuidar dele marcada por um extenso detalhamento que objetiva discipliná-Ia.

Como exemplo da relativização do discurso médico, Martin (1997), em sua análise de manuais de medicina, observa que a linguagem descritiva da concepção humana espelha noções culturais encontradas nas sociedades ocidentais modernas sobre homens e mulheres. Assim, na reprodução, o óvulo foi durante muito tempo pensado como um elemento passivo a ser penetrado pelo espermatozoide, a parte ativa no processo, reproduzindo assim ideias sobre os papéis das mulheres como passivas e os homens como ativos nos encontros amorosos. Mesmo quando na década

de 1980 surgiu uma visão mais interativa e o óvulo passou a ser visto também como participante ativo da concepção, os termos usados para descrever essa participação tal

como o óvulo "prende" o espermatozoide refletem uma visão da mulher como

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ameaçadora e perigosa e mantêm ainda o gameta masculino no papel principal da fertilização.

A questão principal aqui é que o modo como entendemos e vivenciamos o corpo é sempre mediado pelas formas de pensar cultural e historicamente construída:. Assim, torna-se difícil separar o que seria um fato biológico de um fato cultural. Embora seja inegável que na espécie humana o corpo possui uma mesma estrutura orgânica: a percepção da morfologia e da fisiologia corporal varia muito. Para citar um exemplo clássico na antropologia, em sua análise sobre as ilhas Trobriand, Malinowski (1986) mostrou como os trobriandeses pensavam a concepção e a gravidez excluindo a participação biológica dos homens. Sua percepção da fisiologia humana atribuía aos rins a produção de fluido seminal enquanto os testículos eram vistos como adornos para tornar o pênis apresentável. Para eles, o fluido seminal masculino não contribuía para a concepção, que ficava ao encargo dos espíritos dos antepassados da mulher. Na argumentação d.e Malinowski, essa representação era congruente com a organização social dos trobriandeses, baseada na matrilinearidade, um sistema de parentesco no qual a descendência é traçada do irmão ou outros parentes masculinos da mãe para

seu filho. Assim, tanto a transmissão de direitos e deveres quanto o reconhecimento de descendência entre gerações excluíam a figura do pai, explicando portanto sua

ausência nos processos de concepção e gravidez. Mas este mantinha sua Importância social para a unidade doméstica, devendo cuidar tanto da mulher quanto da criança.

Uma vez que as ideias sobre como o corpo funciona são diversas, assim serão também as formas de relacioná-Io às emoções. Dessa maneira, o modo como explicamos as emoções tendo origem em certos processos corporais torna-se parte de uma visão culturalmente específica sobre o corpo, mas não é uma associação universalmente feita. Faz parte da nossa etnopsicologia, mas não de outras. Isso implica problematizar a qualidade de universalidade das emoções em função de uma unidade biológica e psíquica dos seres humanos. Novamente, se esse aparato biológico e psíquico é uniforme, as percepções sobre ele não o são, o que conduz também a experiências corporais e psicológicas muito variadas, posto que são sempre mediadas

pela linguagem que é um elemento da cultura.

Isso não quer dizer, entretanto, que não podemos propor uma visão teórica

sobre a relação entre o corpo e as emoções. Alguns autores (Abu-Lughod e Lutz, 1990; Fajans, 2006) argumentam que as emoções são fenômenos incorporados, situados no

corpo, sem que isso signifique afirmar que sejam "naturais". Fajans (2006) defende que, embora as emoções possam surgir inicialmente em um bebê como reações biológicas a estímulos externos, elas são lembradas desde cedo como parte de um contexto de interação social, e não são pensadas de forma isolada. As emoções tornam-se então parte de esquemas ou padrões de ação aprendidos em interação com o ambiente social e cultural, que são internalizados no início da infância e acionados de acordo com cada contexto. Assim, como ressaltam Abu-Lughod e Lutz, o aprendizado de como, quando e por quem certo sentimento deve ser manifestado inclui a aquisição também de um conjunto de técnicas corporais que Incluem expressões faciais, gestos e posturas (1990:12).

Essa visão da relação entre corpo e emoção problematiza várias ideias já

discutidas. Primeiro, temos a noção de que, embora seja possível reconhecer a

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variedade cultural de formas de expressar as emoções , o sentimento em si seria da ordem de uma essência humana e, portanto, mais invariável.

Contudo, se a lembrança das reações emotivas está sempre associada ao contexto de interação que as produziu, já temos o fato de que o sentimento não é sentido de forma abstrata nem independente de interações sociais específicas. Além disso, desde muito cedo o aprendizado da linguagem passa a mediar a experiência, de modo que se torna difícil separar o sentimento de sua percepção e expressão, mesmo que esta aconteça apenas para o próprio indivíduo. Assim, a distinção entre sentir e expressar tem relevância teórica nessa etnopsicologia ocidental moderna, que parte de uma visão específica de sujeito cujos sentimentos localizam-se em uma interioridade que nem sempre é manifestada publicamente. Integra, portanto, uma visão de mundo particular. Torna-se, entretanto, teoricamente problemático para estudos comparativos feitos em outras sociedades.

Outra ideia questionada pelas ciências sociais é a que atribui às emoções um

caráter impulsivo, de reações que, como os fenômenos corporais, até certo ponto fogem ao controle da pessoa. Porém, se levarmos em conta que desde cedo na

infância se aprende como, quando e com quem expressar os sentimentos, torna-se difícil encontrar um estado inicial no qual as emoções seriam vivenciadas em estado

puro, de forma espontânea e sem controle algum. O que vemos é um aprendizado emocional que, por ser internalizado muito cedo, deixa de ser percebido como uma forma controlada de viver os sentimentos. Isso não anula o fato de que as pessoas em certas situações percebem regras explícitas de como expressar suas emoções, sentindo-se assim obrigadas a se manifestar de uma dada maneira, enquanto, em outros momentos, nos quais as normas não são evidentes, acreditam na espontaneidade de suas expressões, conforme veremos no próximo capítulo.

Há, portanto, entre as sociedades formas distintas de lidar com o controle emotivo, com conjuntos variados de regras que também apresentam graus diversos de

explicitação. Como veremos com mais profundidade no capítulo 4, o estudo clássico de Elias (1993) mostra as várias formas de controle emotivo ao longo do processo

civilizador nas sociedades ocidentais. Se, nos últimos séculos, surgiu a necessidade de autocontrole sobre o corpo e as emoções a ser mantido pelo sujeito em todas as

situações, antes, o controle era exercido em alguns contextos, mas não em todos, e era monitorado de fora para dentro, ou seja, pelos outros principalmente. A questão é

que atualmente, em muitas situações, esse autocontrole é percebido como a forma natural de o sujeito se expressar, embora esse modo também tenha sido aprendido e regrado.

Este último ponto vai problematizar também a oposição feita entre emoção e razão, fonte de outras associações e valorações, como explicamos na seção anterior. O aprendizado das emoções na infância tem necessariamente uma dimensão cognitiva, qualidade geralmente pensada como racional. Além disso, se as emoções são desde

sempre regradas, a ideia de uma pulsão que existe à parte de um controle exercido pela razão deixa de fazer sentido nessa perspectiva. Michelle Rosaldo (1984)

desenvolve bem esta questão quando diz que a emoção recebe sua forma do pensamento e o pensamento é sempre carregado de emoção. A diferenciação entre

eles, que ela denomina uma cognição "quente" e outra "fria", não seria de substância, mas sim em termos do envolvimento do sujeito. Assim, ela define que "as emoções

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são pensamentos de alguma maneira 'sentidos' em rubores, pulsações, movimentos do fígado, mente, coração, estômago, pele. São pensamentos incorporados,

pensamentos permeados pela percepção de que 'estou envolvido'" (1984:143, tradução nossa).

A distinção entre emoção e pensamento é exemplificada, pela autora, através da diferença entre escutar e sentir o choro de uma criança, como quando se percebe que há algum perigo ou que a criança que chora é seu filho.

Portanto, as emoções, embora situadas no corpo, têm com este uma relação que é permeada sempre por significados culturalmente e his toricamente construídos. A visão de que as emoções são fenômenos universalmente compartilhados, posto que fruto de uma unidade biológica e psicológica do ser humano, é problematizada pelas ciências sociais, que a toma como elemento da etnopsicologia ocidental moderna.

Ilustraremos, na seção a seguir, o caráter cultural das emoções com a análise de dois sentimentos específicos: o medo e a raiva, emoções frequentemente atribuídas a uma

essência humana universal.

O medo

O medo é um sentimento que ocupa lugar de destaque em alentadas análises das transformações por que passou a sociedade ocidental moderna, como é o caso das obras de Norbert Elias e Jean Delumeau. Suas perspectivas compartilham um traço fundamental: a afirmação da universalidade da experiência do medo, entendida como inerente à espécie humana, em combinação com uma perspectiva historicista que atenta para as várias configurações que este potencial humano pode receber.

Em seu estudo sobre a natureza do processo civilizador, Elias (1993) atribui ao estudo do medo um lugar estratégico na compreensão das formas do controle social.

Para Elias, o medo é um canal de transmissão das estruturas sociais à estrutura psicológica individual. Incutir medo seja através de punições ou ameaças explícitas ou

de mecanismos velados de negação da aprovação social está entre as estratégias de socialização pelas quais valores e normas são transmitidos de geração para geração,

passando a ser "adotados" pelo indivíduo como objetivos "seus", os quais, se não atingidos, poderão gerar sentimentos de fracasso, perda de autoestima etc. O medo está assim entre os sentimentos com os quais o indivíduo exerce o autocontrole, em um aprendizado que, conforme veremos mais adiante, está para Elias no cerne do processo civiliza dor.

O potencial de sentir medo, em sua visão, faz parte da natureza humana. Entretanto, as formas pelas quais cada grupo dará vida a essa capacidade são fruto de

circunstâncias históricas e culturais. É neste sentido que Elias inventaria, entre os medos modernos, o temor de perder o emprego ou de cair na miséria, entre os grupos

sociais de menor poder aquisitivo; ou, entre as camadas médias e altas, o receio da degradação social ou da perda de prestígio.

Os medos mudam ainda em função de outras variáveis, tais como o "medo de sobrar" identificado por Novaes (2006) entre jovens brasileiros quando falam de suas

expectativas em relação ao mercado de trabalho; ou o "medo de mostrar medo", analisado por Gay (1995) em seu estudo sobre os duelos travados por jovens

universitários alemães.

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Essa perspectiva, em que o medo é visto como um potencial universal que se realiza de formas particulares a cada contexto histórico e social, é adotada também

por Delumeau (1989). Nessa obra, ele propõe fazer uma história social do medo na sociedade ocidental entre os séculos XIV e XIX. Seu argumento é que a necessidade de segurança desempenhou um papel significativo na história das sociedades humanas, que entretanto foi pouco compreendido em função da vergonha de admitir o medo. Com a valorização nos séculos XIV e XVI da coragem, principalmente entre os nobres e os cavaleiros, o medo figurava pouco nas crônicas da época, aparecendo basicamente como característica do povo, da massa, e portanto razão de sua sujeição. Com a Revolução Francesa, houve um discurso semelhante mas invertido, no qual o medo era também camuflado para "exaltar o heroísmo dos humildes" (1989:15). Aos poucos, durante o século XIX, a literatura passou a se preocupar abertamente com o medo.

O autor apresenta uma visão do medo que, embora remeta a qualidades essencialistas, adquire configurações sociais distintas ao longo da história. Para ele, o medo decorre de uma necessidade de segurança que "está na base da afetividade e da moral humanas" (1989: 19). Entretanto, a própria afetividade está mergulhada na

"natureza social do homem", de forma que tanto indivíduos quanto coletividades constroem sua segurança e seus temores em função de laços sociais significativos com

a mãe, no caso das crianças, ou com o grupo dominante, no caso de minorias. Assim, ele argumenta, um grupo dominante que recusa a relação com dominados engendra neles medo e ódio. Exemplificando, relata como os vagabundos do Antigo Regime, na França, provocaram em 1789 o "Grande Medo" dos proprietários e a ruma dos privilégios jurídicos sobre os quais a monarquia se assentava.

Ele distingue entre tipos de medos espontâneos e refletidos, cíclicos e permanentes que ora afligiam amplos segmentos da população, ora alguns setores específicos. Os medos espontâneos podiam ser permanentes, associados a certo nível técnico (por exemplo, medo do mar ou de fantasmas), ou cíclicos, como medo das pestes ou dos aumentos dos Impostos. Como exemplo dos medos refletidos, Delumeau analisa o papel da Igreja em construir adversários para os homens como

turcos, judeus, heréticos e as mulheres (especialmente as feiticeiras).

Em ambos os estudos, vemos que o sentimento do medo surge associado a

noções de perigo e risco que ameaçam o indivíduo – seja sua integridade física, sua autoimagem ou sua posição social – ou um determinado grupo social. E importante

frisar que essas noções são construídas histórica e socialmente, como mostram Delumeau e Elias, e o medo torna-se também uma resposta socialmente regra da a situações percebidas como ameaçadoras. Assim, a universalidade da experiência do medo, que eles atribuem a uma essência inerente aos seres humanos, pode ser relacionada ao fato de que todas as sociedades e os indivíduos que as compõem lidam com ameaças a uma estrutura física e social que é construída, não sendo portanto garantida nem certa.

A raiva

Essa mesma perspectiva um potencial universal realizado sob formas histórica e culturalmente variáveis pode ser encontrada na análise do ódio feita por Gay (1995)

com base na experiência, já mencionada, dos duelos universitários entre jovens alemães.

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O Mensur é um duelo de sabres popular entre jovens pertencentes às fraternidades que povoavam o mundo universitário alemão no século XIX. Seu objetivo

principal era infligir e, paradoxalmente, obter cicatrizes, preferencialmente no rosto. A sutura dos ferimentos, realizada pelos estudantes de medicina, era muitas vezes feita de maneira propositadamente tosca, com o objetivo de produzir uma cicatriz nítida insígnia corporal da coragem. Expor-se em um combate capaz de produzir, diante de uma plateia entusiasmada, ferimentos deste tipo era motivo de grande ansiedade entre os jovens estudantes, produzindo, entre outras manifestações subjetivas, aquele medo comentado acima o medo de demonstrar medo. Inúmeras podiam ser as razões para duelar, muito embora o duelo fosse com frequência um fim em si duelava-se para prçvar aos outros, e portanto a si mesmo, que se podia fazê-lo, e com isso afirmar sua própria honra. Assim, muitas vezes não era uma ofensa que provocava o duelo, mas o contrário: buscava-se uma ofensa capaz de justificar um duelo. Como exemplo extremo dessa motivação, podemos citar o caso narrado por Gay em que a clássica associação entre honra masculina e duelos aparece quase invertida: a história do estudante que, apesar de apavorado, lutou até ser golpeado no rosto de forma a deixar uma cicatriz, afirmando fazê-Io "por amor", mas não porque outro homem tivesse assediado sua noiva – ao contrário, ela mesma assim lhe pedira que fizesse, para obter "uma bela cicatriz" ...

A que necessidade atende, então, o Mensur? Para Gay, a agressividade é um impulso inato do ser humano, e a explicação para fenômenos como esse tipo de duelo está no duplo sentido do termo "cultivo". Ao forjarem razões para se agredir, os rapazes estariam ao mesmo tempo dando vazão a um impulso primário e moldando-o segundo normas sociais, incentivando-o e controlando-o. O Mensur seria assim um exercício em que se combinariam dois aspectos fundamentais da natureza humana: o impulso para agredir ("ódio" ou "raiva") e a necessidade, exigência da convivência com o outro, de conter esse impulso. Fazer correr por canais socialmente aprovados o fluxo da agressividade é assim simultaneamente uma maneira de cultivá-Ia, fazendo-a florescer, e de cultiváIa, domesticando-a.

Sob outra perspectiva, que prioriza sua dimensão sociocultural, o sentimento da raiva recebeu também bastante atenção no campo da antropologia das emoções

por ser uma emoção que põe em questão as relações sociais em jogo. Escolhemos mostrar como o sentimento é experimentado em sociedades distintas, contrastando a

análise de Katz (1988) sobre raiva nos Estados Unidos com a etnografia de Lutz (1988) sobre os Ifaluk, na Micronésia.

Katz (1988), em seu estudo sobre as seduções do crise, detém-se nas motivações de pessoas que matam por questões que consideram legítimas. Ele abre sua análise com o caso de um pai que espanca seu bebê de cinco semanas até a morte, porque a criança não parava de chorar. O autor aponta. que, nesse assassinato "justificável" (righteous slaughter), a interpretação da cena não difere muito de eventos cotidianos em que pais demandam respeito e reagem a desafios e provocações com castigos físicos. A questão em jogo naquele episódio específico teria sido uma interpretação do choro da criança como desafiador e desrespeitoso, e o uso da violência como forma de restabelecer a autoridade paterna.

Com uma abordagem interacionista e comparando dados de diversos processos judiciais, o autor destaca que esse tipo de interpretação é comum em várias cenas de

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interação anteriores a essa modalidade de crime que produzem um processo emotivo específico, exigindo assim uma organização de comportamento particular. Katz

destaca então três aspectos que marcam a experiência do assassino: o ato de matar torna-se uma forma de defender valores coletivos: o ataque é conduzido sem premeditação, à base da raiva e da ira; e a vítima é marcada por meio de xingamentos de modo que o assassino possa restituir o bem. A vítima é interpretada como alguém que desafia o assassino moralmente, de maneira que o assassinato torna-se então a última instância de defesa da respeitabilidade.

Nessa análise, Katz dedica-se aos sentimentos de humilhação e de raiva como parte da engrenagem da ação. Embora a análise da humilhação seja aprofundada no capítulo 3, queremos mostrar aqui como essa emoção transforma-se na raiva. O sentimento de humilhação surge quando o indivíduo experimenta ser um objeto pressionado por forças fora de seu controle. Neste caso, o sujeito acredita na intenção dos outros de degradarem a sua pessoa. A humilhação pode se transformar em raiva e ódio quando, segundo Katz, a pessoa acredita que o único modo de resolver esse sentimento é inverter a estrutura que o originou o movimento de inferiorização ou

degradação percebido no outro. Nessas situações, quando a imagem pública da pessoa é manchada, como nos casos de infidelidade conjugal que muitas vezes levam aos

assassinatos "justificáveis" que Katz examina, perde-se o domínio sobre a identidade e produz-se a ira. Assim, a raiva e o ódio são tingidos de consciência da humilhação, havendo uma percepção de dominação moral que toma conta fisicamente da pessoa. Neste sentido, a raiva do outro é sempre uma confirmação da humilhação, cuja superação e transcendência passam por ações movidas pela ira.

É importante destacar alguns pontos na análise de Katz sobre a raiva e o ódio. A articulação da raiva com a humilhação põe em relevo a identidade da pessoa que é afetada pelo evento que produz esses sentimentos. Como o respeito pela imagem pública de uma pessoa é um valor importante nessa sociedade, há portanto um forte componente moral na raiva, para além de um sentimento que o indivíduo sinta privadamente. Está em questão assim não apenas a pessoa que sente a raiva mas

também o conjunto de relações sociais ao seu redor como os outros irão vê-lo e se relacionar com ele.

A etnografia de Lutz (1988) sobre os Ifaluk oferece um contraste interessante e revelador sobre o sentimento da raiva. A categoria song, que ela traduz como "raiva

justificada", é um dos principais conceitos usados para expressar julgamentos morais nessa sociedade. Ao contrário da noção americana de raiva, que fala de eventos que frustram desejos individuais, a raiva justificável dos Ifaluk manifesta-se para condenar socialmente certos acontecimentos e assim conduzir aos comportamentos valorizados coletivamente.

Ela explica que os Ifaluk reconhecem vários tipos de raiva, como a irritação que vem com uma doença ou a raiva frustrada com infortúnios ou eventos que fogem ao

controle da pessoa. Mas todas essas formas distinguem-se do sentimento da raiva justificável e são alvo de crítica e reprovação. A emoção song é tratada como a

sensibilidade moral que toda pessoa deve ter e é por isso aceita como legítima.

O cenário de interação que produz o sentimento da raiva é aquele em que há

uma violação de regras ou valores que é apontada por uma pessoa que abertamente condena o ato. O responsável pelo ato então reage com medo dessa raiva, temendo

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que a pessoa zangada se torne violenta, e corrige assim seu comportamento. Lutz apresenta alguns contextos mais comuns nos quais a emoção song é expressa. Quando

jovens rapazes que haviam bebido voltaram à noite para a aldeia, agindo ruidosamente e contrariando assim o estilo calmo e pacífico dos Ifaluk, muitas pessoas temeram a raiva justificável dos chefes, os líderes morais considerados os responsáveis pelo bem-estar da ilha e seu povo. Outro contexto comum em que se manifestava o sentimento era quando uma pessoa deixava de cumprir com a obrigação de dividir com os outros. Compartilhar tudo desde comida, trabalho e até as crianças era um dos principais valores dessa sociedade e em torno dele surgiam conflitos cotidianos. Assim, quando alguém achava que o outro não estava dividindo como esperado, declarava sua raiva justificável como forma de afirmar uma determinada interpretação dos acontecimentos, o que às vezes era contestado pela pessoa acusada. Com frequência, a possibilidade de que alguém viesse a expressar esse sentimento tornava-se uma razão explícita para dividir com o outro. Na educação das crianças também recorria -se muitas vezes à emoção song para sinalizar que algum valor não estava sendo observado e que a criança estava apresentando um mau comportamento.

Há também um componente ideológico no acionamento dessa categoria emotiva, que contribuía para a manutenção das relações de poder. Como explica Lutz,

através das manifestações de raiva justificável era possível delinear a hierarquia social dos Ifaluk. Assim, chefes sentiam raiva dos membros da comunidade, adultos das crianças, mulheres mais velhas das mulheres mais novas, e irmãos de suas irmãs mais novas. A direção em que a raiva justificável seguia era sempre para baixo na escala social. Em alguns casos, esse sentimento era usado para tentar alterar as relações de poder, como entre irmãos ou entre as mulheres e seus maridos, mas nunca entre o povo e seus chefes.

De um modo geral, portanto, a expressão da raiva justificável servia para estimular comportamentos adequados aos valores sociais, tanto em crianças quanto em adultos. Ela sintetiza que "o conceito de song é particularmente útil na organização do desvio social e na proteção dos interesses pessoais que são afetados por tal desvio.

Simultaneamente, [os roteiros de interação gerados a partir desta emoção] promovem a reprodução de relações interpessoais gentis que caracterizam a ilha" (1988:176).

Lutz destaca alguns elementos dessa concepção Ifaluk de raiva justificável que contrastam com a visão norte-americana de raiva. Esta implica sentimentos de ofensa,

injúria ou frustração que impediriam a pessoa de agir da maneira desejada. Neste sentido, a raiva seria uma resposta a essa contenção pessoal que é sentida como uma violação do princípio moral da liberdade individual. Aqui, estaria em questão uma visão do indivíduo como um centro de direitos, distinta da concepção Ifaluk que toma a pessoa como componente de relações. Além disso, apesar de ressaltar um valor moral Importante para os americanos, a raiva é considerada um sentimento antissocial, que pode gerar comportamento agressivo. Por outro lado, a retenção da raiva também não é bem-vista em função da ideia de uma emoção que precisa ser expressa para não "explodir" de forma violenta.

Em comum nas duas sociedades e aqui acrescentamos pontos colocados por Katz –, encontramos que a expressão dos sentimentos de raiva fala da violação de

valores culturais importantes, seja o controle de si e de sua identidade ou o compartilhamento de bens e pessoas. Daí que, nas situações em que a raiva está em

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questão, há sempre um julgamento moral do responsável pelo ato que produz essa emoção. Assim, em ambas as sociedades os modos de lidar com a raiva funcionam

como formas de controle social. Lutz aponta também que as semelhanças entre a raiva e song surgem do fato universal de que há divergências entre os mundos ideal e real e delas resultam conflitos. Neste sentido, ambos os conceitos são usados para dar sentido e lidar com a discrepância moral e o conflito interpessoal. Como ela sintetiza, “o que difere e a interpretação que cada um faz do que são mundos reais e ideais e o quão vigorosamente, coletivamente, verbalmente ou não verbalmente se resolve o problema ou a ofensa" (1988:181).

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Capítulo 2

Emoções: individuais ou sociais?

As ciências sociais têm no par indivíduo-sociedade uma oposição fundadora.

Entre os clássicos, Émile Durkheim e Georg Simmel a elegeram como eixo em torno do qual formularam seus projetos teóricos para a recém-criada disciplina. Naquele

momento, esses esforços iniciais de fundação da sociologia eram voltados para a demarcação de um campo próprio de atuação intelectual, em larga medida tomando a

ciência da psicologia como" outro" diante do qual delimitar uma abordagem particular do ser humano.

Deriva daí uma dificuldade histórica para a possibilidade de construção da emoção como um objeto das ciências sociais. Associada, como vimos no capítulo

anterior, na etnopsicologia ocidental ao domínio da psicologia individual, a emoção é entendida, no senso comum das sociedades modernas complexas ocidentais, como

algo que diz respeito à singularidade psicológica do sujeito, o que a tornaria portanto refratária a condicionamentos de natureza sociocultural. A emoção "autêntica" seria

aquela que emana do íntimo de cada um, tendo raízes nas histórias de vida particulares, no que a sociedade e a cultura não teriam qualquer participação.

O exercício que propomos neste capítulo é uma desconstrução dessa visão da emoção como um aspecto da experiência humana que seria, por sua natureza individual, refratária a uma abordagem socioantropológica. Para isso, retomaremos na

primeira seção as formulações de Durkheim e Simmel em seus textos programáticos, contrastando-as com a maior sutileza de outros trabalhos em que os autores se

voltaram para o estudo de emoções ou estados emocionais específicos, quando podemos entrever então um esforço de encompassamento da emoção como um

objeto de estudo possível. Em seguida, exporemos a maneira como Marcel Mauss fez avançar a compreensão dessa tensão indivíduo-sociedade no estudo das emoções,

com uma exploração do modo como o obrigatório e o espontâneo entrelaçam-se na experiência emocional individual. Na segunda seção, analisaremos alguns sentimentos

selecionados explicitamente pelo seu potencial para a compreensão dessa tensão individual-social na experiência das emoções.

O lugar da emoção nas ciências sociais: formulações clássicas

Georg Simmel e a oposição forma-motivação

Em "O problema da sociologia", cuja publicação original data de 1908, o

sociólogo alemão Georg Simmel esboçou um projeto teórico no qual buscou definir o objeto da sociologia. Sua proposta baseia-se em uma concepção da sociedade como

formada pela interação entre indivíduos. Para Simmel, interagir é "relacionar sua condição com a do outro", ou seja, levar em conta, na forma de agir, a presença ou existência de um outro. Toda interação é composta por uma "forma" e uma

"motivação". A "motivação" é o conteúdo, o interesse ou objetivo do indivíduo q ue se engaja em uma interação; a "forma" é o modo, um formato por meio do qual aquele

conteúdo passa a existir.

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Forma e motivação, contudo, não constituem pares fixos. Há um sem-fim de motivações, que podem ser eróticas, associativas, cooperativas, competitivas,

agressivas, religiosas etc.; há também incontáveis formas através das quais essas motivações ganham realidade, tais como jogos, guerras, casamentos, grupos de ajuda mútua, igrejas, partidos, clubes ou sindicatos. Os elos entre formas e motivações s ão também fluidos, no sentido de que tanto uma mesma motivação pode assumir formas diversas o impulso erótico pode, por exemplo, levar ao casamento (monogâmico ou poligâmico), ao adultério, ao "ficar com" etc. quanto uma mesma forma pode ser gerada por motivações distintas o casamento pode ser motivado pelo amor, pela atração sexual, pela necessidade/desejo de estabelecer uma relação de aliança, por interesses pecuniários etc.

Do ponto de vista empírico, forma e motivação são indissociáveis: nenhuma forma de sociação é imotivada, nenhuma motivação é amorfa. Toda e qualquer motivação só pode ganhar realidade sob uma forma socialmente estabelecida, do mesmo modo como toda forma precisa de uma motivação para existir. Entretanto, do ponto de vista conceitual, Simmel as separa de maneira a propor uma definição da

"unidade de análise" da sociologia: a forma. Usando o exemplo do ódio entre ex-companheíros, ele afirma que, como ocorrência, trata-se inegavelmente de um

fenômeno psicológico. A pergunta "sociológica", contudo, seria dirigida às categorias de "união" e "discórdia". O autor é enfático ao afirmar que os dados da sociologia são processos psicológicos, os quais contudo estariam fora do escopo analítico da sociologia, sendo preciso deles abstrair a "realidade objetiva da sociação".

Contudo, essa nitidez com que ele separa o psicológico do sociológico em um texto de natureza programática fica esmaecida quando volta sua atenção para a análise de sentimentos. Um exemplo seria o texto "Fidelidade e gratidão", em que discute sua contribuição essencial para a estabilidade e coesão da vida social. A fidelidade é descrita como um sentimento" sociologicamente orientado", ou seja, em vez de gerar novas relações, ela decorreria da antiguidade de uma relação. Já a gratidão seria o sentimento que motivaria a reciprocidade, mesmo na ausência de

coerções externas. O ponto fundamental aqui é a atenção que Simmel dá, ao examinar o problema da coesão social, à dimensão afetiva da estabilidade das formas sociais,

permitindo-nos assim entrever uma concepção da relação forma-motivação mais nuançada do que aquela esboçada em seu texto programático.

Émile Durkheim e o "fato social"

Em 1895, Émile Durkheim (1984) formula seu projeto teórico-metodológico para a nova disciplina da sociologia em um texto que integra hoje o cânone das ciências sociais. Neste pequeno livro, postula como unidade de análise o "fato social". Este é definido como algo que "existe fora das consciências individuais", sendo capaz de exercer uma ação coercitiva sobre a vontade individual.

Esse poder de coerção, contudo, é algo além de uma característica, entre outras, do fato social: é uma espécie de "prova dos nove" para estabelecer a natureza social de um fato. Para Durkheim, é ao ser capaz de coagir a vontade individual que um fenômeno estabelece sua condição de "social", uma vez que atesta assim a externalidade, em relação à consciência individual, de sua existência. Essa coerção

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pode ser exerci da de diversas formas, como por exemplo constituições, códigos penais, condenação pela opinião pública ou costumes.

Essa importância atribuída à existência externa ao indivíduo como "atestado" da natureza social de um fato é expressão do esforço feito pelo autor para encontrar um lugar em meio às ciências que, no cenário intelectual em que atuava, estudavam o homem: a filosofia, a biologia e a psicologia. Elas tinham, cada qual, sua dimensão própria do humano para perscrutar: sua transcendência. sua fisiologia, seu psiquismo. Ele sugere a existência de uma quarta dimensão a social -, cuja especificidade e independência em relação às demais se empenha em demarcar como forma de criação de um espaço de atuação intelectual que legitime falar em uma "nova disciplina".

Reencontramos assim um movimento intelectual que compartilha com o programa de Simmel ao menos esse traço fundamental: a eleição da psicologia como

"outro disciplinar", com a exclusão de tudo aquilo que é associado ao psicológico do escopo da sociologia. Entretanto, também na sociologia durkheimiana a oposição

indivíduo-sociedade (ou psicológico-sociológico) se complexifica em outros momentos. Um bom exemplo é a noção de "efervescência", discutida por Durkheim ao analisar

ritos e crenças religiosas. A "efervescência" é um estado alterado da atividade psíquica individual, que somente se produz quando o sujeito está imerso em meio a uma

coletividade, cuja marca é a intensidade. A participação em uma coletividade desse tipo pode ainda, segundo ele, provocar a posteriori uma impressão de não reconhecimento de si.

Essa possibilidade a existência de fenômenos coletivos capazes de alterar o estado de consciência individual-, se, por um lado, atesta a natureza coercitiva do fato social, por outro introduz ao mesmo tempo um matiz nessa concepção da relação indivíduo-sociedade como uma oposição, sugerindo que o social pode estar também dentro do indivíduo, nuançando assim a formulação programática do fato social como aquilo que existe "fora da consciência individual".

Marcel Mauss e a expressão dos sentimentos como linguagem

É nessa direção que Marcel Mauss faz avançar a reflexão em torno do par indivíduo-sociedade. Em um pequeno artigo no qual examina ritos funerários australianos, ''A expressão obrigatória dos sentimentos", mostra o caráter ritualizado da expressão dos sentimentos, que se acentua ou recua segundo momentos socialmente demarcados na sequência ritual, obedecendo além disso a uma estética comum. Gritos, lamentações ou lágrimas não seriam apenas expressões externas de sentimentos oriundos do íntimo de cada um, mas, ao contrário, seriam pautados por uma gramática comum.

Entretanto, Mauss complexifica o problema central da sociologia durkheimiana

da qual é herdeiro e continuador referente à natureza coercitiva do fato social. Se, por um lado, a reflexão sobre o modo como o obrigatório e o espontâneo relacionam-se

na experiência individual continua central, por outro nos oferece um quadro mais nuançado dessa relação. Para ele, a natureza ritualizada e coletiva da expressão dos sentimentos é prova cabal de seu caráter de "fato social"; isto, contudo, não impede que os sentimentos sejam espontâneos, por serem assim vivenciados por quem os expressa. Para ele, a expressão dos sentimentos é uma linguagem, em que o indivíduo

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comunica aos outros aquilo que sente em um código comum, nesse movimento comunicando também a si mesmo suas emoções.

Surge assim um modelo teórico para se pensar as emoções como objeto das ciências sociais cuja contribuição maior está na porta que abre para construirmos, como objeto de nossa reflexão, a percepção ocidental moderna das emoções como provenientes do íntimo de cada um, em vez de deixarmos que esta representação tolde a possibilidade de reconhecermos a experiência emocional como algo histórica, social e culturalmente configurado. Esta tensão é o eixo que orienta a análise dos sentimentos que examinaremos a seguir.

As gramáticas dos sentimentos

Estar só ou estar com o outro pode ser entendido como uma clivagem fundamental da experiência humana, que recebe, nas várias maneiras que o ser humano inventou para conviver, um sem-fim de configurações distintas. Escolhemos para discutir dois sentimentos que podem ser entendidos como esforços emocionais de fusão com o outro (o amor e a admiração); dois sentimentos suscitados pela ausência do outro (a solidão e a saudade); e um tipo de relação engendrado pelo desejo de estar com o outro (a amizade).

De todas as maneiras que há de amar: a concepção moderna de amor

Entre os sentimentos aos quais as ciências sociais já devotaram sua atenção, o amor tem certamente um lugar de destaque, com sua natureza tendo sido objeto das

reflexões, entre outros, de Simmel (1993) e Luhmann (1991). As transformações produzidas nas relações amorosas também vêm merecendo a atenção dos teóricos da

modernidade, como atestam as reflexões de Bauman (2004) sobre o "amor líquido" ou de Giddens (2002) sobre as “relações puras".

O campo das reflexões sobre a comunicação de massa é .outro espaço pródigo em análises sobre o amor. O foco principal é a forma como esse sentimento é representado nas produções discursivas midiáticas. tal como na obra clássica de Morin (1984), em que o amor é incluído no rol das temáticas centrais da indústria cultural. No Brasil, alguns autores também envidaram esforços de reflexão sistemática sobre o

sentimento amoroso, como Lázaro (1996, 1997).

Em um artigo publicado em uma coletânea dedicada à antropologia da arte,

Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro (1977) realizaram uma análise da concepção de amor presente na tragédia shakespeariana Romeu e Julieta, sugerindo ser uma

espécie de "mito de origem" da noção moderna de amor. O argumento apresentado pelos autores é uma excelente "porta de entrada" para a compreensão da natureza histórica e culturalmente construí da desse sentimento, razão pela qual o escolhemos, em meio à pluralidade de trabalhos sobre o amor, para expor de modo mais detalhado.

Os autores ancoram sua análise na concepção de mito de Lévi-Strauss (1975): uma narrativa em que as sociedades discutem a si mesmas, suas tensões e contradições. O mito não teria assim um autor individual, sua "autoria" sendo sempre coletiva. O ponto central aqui é que, ainda que o mito possa ter recebido uma versão literária consagrada - como no caso do mito de Édipo em Édipo-Rei, de Sófocles, ou no caso aqui discutido de Romeu e Julieta -, a história contada fala de tensões e conflitos

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que dizem respeito a um grupo social que nele se espelha, residindo aí a razão principal de sua perenidade. E essa concepção de mito que nos autoriza a "ler" nessa

narrativa algo mais do que a visão de seu autor, permitindo-nos ai entrever uma forma de representar e vivenciar o amor comum a toda uma coletividade que se reconhece nessa narrativa.

Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro tomam a oposição entre holismo e individualismo, proposta por Dumont (1992), como eixo principal para a análise da concepção de amor presente na história de Romeu e Julieta. A partir de um exame da lógica que orienta o sistema de castas na Índia, Dumont formula sua clássica oposição entre holismo e individualismo: duas ideologias distintas acerca da posição do indivíduo em relação à sociedade. No holismo, o indivíduo é concebido como parte de um todo, com seu lugar no mundo sendo definido a partir de seu "lugar" de nascimento, ou seja, sua identidade é conferida a partir de seu pertencimento a um grupo familiar e do lugar deste no todo social. O nascimento em um dado grupo define assim, entre outras possibilidades, direitos e deveres políticos, profissões ou parceiros possíveis para casamento. O individualismo, por sua vez, é uma ideologia que entende

o indivíduo como valor supremo ao qual a sociedade estaria subordinada, sendo esta concebida como uma "associação" de indivíduos cuja existência lhe seria anterior e

que se agrupariam por vontade própria. Nessa ideologia, a identidade é entendida como uma construção de dentro para fora, ou seja, a singularidade individual, combinada aos princípios da igualdade e liberdade no mundo público, seria a fonte da construção do lugar do indivíduo na sociedade.

O holismo seria uma ideologia típica das sociedades tribais e de algumas outras formas complexas de organização social, como a sociedade de castas da Índia; o individualismo, por sua vez, seria a ideologia predominante no Ocidente moderno. Entretanto, o Ocidente nem sempre teria sido individualista, tendo conhecido um período holista na Idade Média, com a transição de uma ideologia para outra se dando, na interpretação de Dumont, durante o Renascimento.

Ora, é exatamente nesse momento que se dá a consagração da história de

Romeu e Julieta sob a forma de tragédia por Shakespeare. É bom lembrar que a história, em suas linhas gerais, não é uma criação original de Shakespeare, já

circulando em poemas e outras formas narrativas anteriores a sua versão teatral. O que sua retomada durante o Renascimento e seu "sucesso" estrondoso expresso na

perenidade de seu tema nos dizem sobre a representação moderna do sentimento amoroso?

Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro realizam uma análise estrutural da tragédia, identificando três pares de opostos que estruturam a narrativa: amor/família, corpo/nome, alma-coração/corpo. A primeira delas é dada pelo próprio cerne da trama: o amor que une Romeu e Julieta encontra em suas famílias de origem um ferrenho opositor, contra o qual o casal se insurge ao casar-se em segredo.

A segunda oposição corpo/nome surge na famosa cena do balcão, em um diálogo citado pelos autores, em que Julieta apela a Romeu para que renegue seu

nome, alegando ser o nome irrelevante em sua identidade, algo que "não faz parte dele":

Julieta – Romeu, Romeu! Por que razão tu és Romeu? Renega teu pai e abandona esse

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nome! Ou se não queres jura então que me amarás, e eu deixarei de ser Julieta Capuleto!

Em ti, só o teu nome é que é meu inimigo! Tu não és Montecchio, mas tu mesmo! Afinal, o que é um Montecchio? Não é um pé, nem a mão, nem um braço, nem um rosto. Nada do que compõe um corpo humano. Toma outro nome! Um nome! Mas, que é um nome? Se outro nome tivesse a rosa, em vez de rosa, deixaria por isso de se r perfumosa? Assim também, Romeu, se não fosses Romeu, terias, com outro nome, esses mesmos encantos, tão queridos por mim! Romeu, deixa esse nome, e, em troca dele, que não faz parte de ti, toma-me a mim, que já sou toda tua!

A resposta de Romeu confirma essa cisão entre nome e identidade, em que o sobrenome atestado de pertencimento a um grupo familiar é prontamente deixado de lado como um entrave à vivência do amor:

Romeu Farei o teu desejo de bom grado! Por ti, trocarei seja o que for! Por ti, serei de novo batizado! Não me chames Romeu ... mas sim o Amor!

Não, minha bela, nem Montecchio nem Romeu! Já que meu nome não te agrada, eu não sou eu!

Citado por Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro (1977:150)

A terceira oposição alma-coração/corpo surge na peça por ocasião do exílio imposto a Romeu pelo Príncipe, por ter desobedecido à proibição de duelar e, em um embate, ter matado Teobaldo (parente de Julieta) ao sair em defesa de seu amigo Mercúcio (morto também na mesma ocasião). Fisicamente afastados, contudo, Romeu e Julieta continuam espiritualmente ligados pelo amor: é possível afastar seus corpos, mas não romper a união entre suas almas, metaforizadas pelo" coração".

Essas três oposições podem ser sintetizadas em uma única: a oposição entre

um eu individual (amor, corpo, alma-coração) e um eu social (família, nome, corpo). Ao melhor estilo das análises estruturalistas, vemos que os elementos deslocam-se, seu sentido estando na relação que estabelecem com os demais elementos – é assim que "corpo", quando oposto a “nome”, significa o eu individual, mas quando oposto a “alma”, representa o eu social. Esta oposição entre uma dimensão individual do sujeito e uma dimensão social, estrutura a interpretação proposta pelos autores para esta tragédia.

Para Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro, Romeu e Julieta pode ser entendido como um "mito de origem" do amor moderno, exatamente por situar-se na passagem de uma ordem holista para uma ordem individualista. É a convivência entre esses dois códigos que engendra a tragédia, com o apaziguamento eventual do conflito entre as duas ideologias destruindo as condições de possibilidade da trama.

Se não, vejamos: em uma ordem holista. Romeu e Julieta não se amariam, plenamente reconhecidos que estariam em suas identidades dadas pelo

pertencimento a suas famílias de origem. Ou ainda, poderiam até se amar, mas certamente não veriam nisso um motivo para casar-se, uma vez que o amor como motivação para o casamento é invenção recente. Tragédia desfeita, uma vez que a

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mola propulsora da tragédia – o casamento em segredo, à revelia das famílias – não ocorreria.

Por outro lado, em uma ordem individualista, Romeu e Julieta poderiam (ao menos no plano ideal) amar a quem quisessem, e escolher seu cônjuge por questões de foro íntimo, sem preocupações com o estabelecimento de relações de aliança (motivação para o casamento típica das sociedades tradicionais e holistas). Suas famílias poderiam não aprovar suas escolhas, poderiam se opor, mas dificilmente um casal moderno, se tomado de paixão tão avassaladora. se submeteria a esses ditames. Tragédia desfeita, uma vez que a mola propulsora da tragédia - o casamento em segredo, à revelia das famílias - não ocorreria.

É portanto essa convivência entre códigos contraditórios, o holismo e o individualismo, típica das fases de transição, que engendra a tragédia de Romeu e

Julieta. Tomada como mito, ela nos mostra a emergência de uma noção de amor em que um sentimento proveniente do íntimo do sujeito o faz voltar-se contra o social, a

ele impondo sua vontade - é um sentimento embebido pela ideologia individualista.

Esse sujeito determinado de dentro, contudo, e livre em relação à sociedade,

está amarrado a ditames de outra ordem. Esse amor todo-poderoso, que o faz enfrentar qualquer obstáculo, não é escolha sua: é de natureza cósmica, estando ele

destinado a amar aquela pessoa. Romeu e Julieta se apaixonam em um baile de máscaras, sem que um tenha noção de quem é o outro. A determinação cósmica desse sentimento surge aí com toda a nitidez: livre para agir em nome do amor, o indivíduo moderno não é, contudo, livre para não amar, ou mesmo para escolher a quem amar. O amor é assim concebido como algo que se abate sobre o indivíduo: ou será que alguém acharia que, tendo em vista o desenlace, Romeu e Julieta escolheriam se apaixonar um pelo outro, caso lhes fosse dada essa chance?

Vemos assim o surgimento de uma concepção de amor em que o indivíduo é tomado por um sentimento de origem sobredeterminada, em nome do qual insurge-se

contra qual- quer determinação de ordem social que se oponha à vivência plena desse sentimento. Mas esta é uma maneira de amar que, embora tendo em Romeu e Julieta

seu mito de origem, o transcende em muito, podendo esta narrativa ser tomada como uma "matriz" para inúmeras outras produções discursivas contemporâneas, que lotam

o universo da comunicação de massa. São filmes, poemas, romances, letras de música, peças de teatro, todas elas tematizando o "amor impossível", aquele que arrebata o

sujeito e em nome do qual ele move montanhas, encontrando sem tantas versões o mesmo destino trágico de Romeu e Julieta. Os obstáculos enfrentados, contudo, variam, ampliando o leque dos "antagonistas", que já não se restringem à família: podendo ser guerras, morte, tempo ou mesmo a natureza. E assim em Love story ou Ghost (a morte); em Doutor Jivago, Casablanca ou E o vento levou (guerras e revoluções); em Em algum lugar do passado (o tempo); e em Splash ou Xanadu (a natureza).

Nessa lista de produções cinematográficas há um pouco de tudo, entre dramas e comédias, filmes clássicos e produções mais recentes de orientação marcadamente

comercial. Entre os clássicos, contudo, há uma constante: os protagonistas terminam separados. Mas não será exatamente por isso que são clássicos, no sentido de se

eternizarem na memória do público? Se o amor está entre os temas centrais da indústria cultural e se o happy end, conforme afirmou Morin (1984), é um

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compromisso desse tipo de produção cultural, não faria sentido então aventar a hipótese de que o lugar tão central desses filmes no imaginário romântico popular do

Ocidente contemporâneo estaria justamente ligado a esses finais, que, justamente por não serem "felizes", não seriam propriamente "finais"? Será que, por não permitirem a seus protagonistas viverem seu amor, esses filmes permaneceriam inacabados na imaginação de seu público, à maneira de um "gancho" de telenovela? Ou quem, entre os aficcionados por esses filmes, nunca sonhou com a volta de Rhett para Scarlett, ou nunca refez a cena final de Dr. Jivago, fazendo com que Lara se voltasse e o visse agonizando na calçada?

Os temas de Romeu e Julieta, assim, ecoam até hoje em um sem-fim de produções discursivas contemporâneas, atuando como uma "matriz" para esse imaginário do amor romântico. Em muitas dessas narrativas, reconhecemos essencialmente seu núcleo temático do amor impossível; em outras, um conjunto maior dos traços apontados por Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro em sua exposição sobre as características da noção moderna de amor. É o caso de Exagerado, composição de autoria de Cazuza, que tomamos aqui para ilustrar este lugar

"matricíal" do amor de Romeu e Julieta. Diz a letra:

Amor da minha vida Daqui até a eternidade Nossos destinos foram traçados Na maternidade ( ... ) Eu nunca mais vou respirar Se você não me notar Eu posso até morrer de fome Se você não me amar E por você eu largo tudo Vou mendigar, roubar, matar Até nas coisas mais banais Pra mim é tudo ou nunca mais ( ... )2

O "apaixonado" de Cazuza é um sujeito que, como Romeu, afronta a sociedade, em versão ainda mais exagerada, em nome de seu amor: ele mendiga, rouba e mata. Aqui, a sociedade não é o único antagonista, com sua própria natureza humana sendo também alvo de enfrentamento: ele deixa de respirar, morre de f ome. Entretanto, heroico em sua determinação de viver seu amor, este sujeito apaixonado é submisso diante do destino: sua vida inteira é determinada por uma instância cósmica, da maternidade até a eternidade.

Em uma letra da música pop brasileira dos anos 1980, vemos assim

reproduzida, em pinceladas gerais, a concepção do amor moderno identificada por Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro na tragédia renascentista "Romeu e Julieta", sugerindo assim a acuidade de sua interpretação deste texto como um "mito de origem" deste amor. Esta análise, ao sugerir a relação entre este sentimento e a ideologia individualista, é um excelente exemplo da perspectiva que entende as emoções como construções históricas, a exemplo desta maneira de amar típica da modernidade ocidental.

2 Letra obtida junto ao site http://catuza.musicas.mus.br/letras/43861(. Acesso em: 29 selo 2008.

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Uma outra maneira de amar: o fã e a experiência do fascínio

O amor moderno tem, entre suas características centrais, o poder de singularizar, ou seja, de fazer o indivíduo sentir-se especial. O sujeito enamorado vive

sua paixão como algo único, que nunca alguém sentiu igual; ora, se este traço é recorrente nas experiências da paixão, então ao menos isso todos os apaixonados têm

em comum: a convicção de que nunca alguém sentiu algo parecido antes.

Este paradoxo – igualar-se na percepção de ser diferente – é típico da

experiência moderna, consistindo em uma configuração historicamente particular

daquela tensão que Simmel (2006) já apontava como constitutiva da condição humana: a tensão entre compartilhar, saber-se igual, e diferenciar-se, saber-se

singular. Este dilema acentua-se, evidentemente, na sociedade de massas, com seu apelo indiferenciado à singularização. Nesta seção, queremos acompanhar o modo

como este drama é vivenciado em uma experiência indissociável da sociedade de massas: a condição de Ia e as emoções a ela associadas, a saber, o amor e a fascinação.

Em trabalho voltado para a compreensão da experiência da fama, Coelho (1999) analisou um conjunto de cartas endereçadas por Ias a seus ídolos televisivos,

um ator e uma atriz de grande projeção no meio televisivo brasileiro, sendo ambos protagonistas de novelas no horário nobre da Rede Globo de Televisão. Lidas em

conjunto, estas cartas chamam a atenção por trazerem um esforço recorrente da parte dos Ias em diferenciar-se perante seus ídolos, justificando a expectativa de uma

resposta. Este esforço é baseado em uma certeza, mais ou m:nos explícita, mais ou menos nuançada, da própria singularidade, de ser único em meio a muitos, certeza

essa que surge sob duas formas principais: o recurso frequente à expressão "Ia

número 1", utilizada por muitos para reivindicar do ídolo o reconhecimento da natureza diferenciada da admiração que lhe dedicam, e a utilização recorrente do

discurso amoroso para expressar a natureza de seus sentimentos.

O conjunto de cartas analisado é composto por cerca de 280 cartas, sendo 80

para o ator e as demais para a atriz. O t0rr:. e sempre afetuoso, com manifestações de apreço e admiração, independentemente das variações de gênero tanto do Ia quanto

do ídolo. O escopo deste afeto é amplo, podendo ir de elogios respeitosos até elo quentes declarações de amor.

Morin (1980), discutindo o universo das estrelas de cinema hollywoodianas, afirma que nas cartas de Ias "a linguagem do amor ( ... ) se mistura com a da adoração" (p. 58). É para a análise desta "mistura" que Coelho volta sua atenção, sugerindo uma interpretação para o porquê do recurso, pelos Ias, ao discurso amoroso para expressar seus sentimentos.

Sua interpretação baseia-se em uma estranheza inicial: se o modelo da relação amorosa ideal é diádico e baseado na reciprocidade e na exclusividade, por que os Ias a ele recorrem para falar do que sentem por seus ídolos? Não seria flagrante a distância entre a relação amorosa ideal e uma relação entre líder carismático-seguidor

(típica das relações de idolatria)? Não é esta, ao contrário, definida por um modelo "centrípeto" muitos devotando seu afeto a um único, o qual, por definição, não o

retribui em natureza ou intensidade, além de reparti-lo por um grupo, não sendo jamais exclusivo?

A autora recorre à comparação realizada por Lindholm (1993) entre as experiências do amor e do carisma para sugerir uma interpretação para o porquê do

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recurso ao discurso amoroso pelos Ias. Com base na noção freudiana de "identificação", Lindholm discute as formas possíveis de satisfação do desejo humano

de "escapar aos limites do eu", elencando, ao lado da terapia, do consumo e da adesão a ideais de nação, o pertencimento a grupos carismáticos e o amor romântico.

Estas experiências compartilhariam a capacidade de propiciar ao sujeito a vivência de um "estado fusional", um perder-se no outro que compensaria as incertezas do eu, permitindo a eclosão de uma sensação de êxtase. Amor e carisma teriam assim em comum a capacidade de provocar no indivíduo enamorado/fascinado uma sensação de conforto gerada pela "fusão" com o outro. Por esta mesma razão, seriam mutuamente excludentes, ou seja, impossíveis de serem vivencia dos simultaneamente, mas nem tanto porque o sujeito não possa; é mais porque não precisa, uma vez que o desejo fusional pode ser atendido tanto por um quanto pelo outro, sendo uma impossibilidade de sua natureza uma vivência parcial, que permitisse ou exigisse "complementações" de qualquer espécie.

Entretanto, ainda segundo Lindholm, haveria uma diferença fundamental entre o amor e o carisma: sua valoração social. Para ele, o amor romântico seria uma

experiência socialmente valorizada na modernidade ocidental; basta lembrarmos, em favor de seu argumento, a profusão de discursos ficcionais que giram em torno da

experiência do enamoramento, (quase que) invariavelmente descrita como desejável. Não é o sujeito apaixonado um dos principais protagonistas dos enredos matriciais da comunicação de massa?

O carisma, por sua vez, seria objeto de uma desvalorização social, com a adoração carismática sendo alvo de sentimentos de hostilidade e menosprezo nesta mesma modernidade ocidental, e com frequência associada a formas várias de patologia mental. A comunicação de massa novamente é uma boa fonte de argumentos a favor da postulação de Lindholm; conforme demonstra Coelho neste mesmo trabalho, os filmes que tematizam a relação Ia-ídolo invariavelmente

descrevem o primeiro como um sujeito adoecido, solitário e descontrolado, a quem as narrativas reservam sempre um "unhappy end": o abandono ou a morte, jamais a

relação desejada com o ídolo.

Temos assim duas experiências emocionais capazes de produzir no sujeito um

mesmo efeito: a satisfação de um desejo de fusão com o outro. Estas duas experiências, contudo, são objeto de valorações sociais distintas, sendo o amor

recomendável e o carisma execrável. Se, contudo, a experiência do Ia pertence tão evidentemente ao elenco dos eventos carismáticos, por que o Ia fala de amor? Por que não fala de adoração ou fascínio?

Coelho recorre à combinação de duas ideias para propor uma interpretação para esta estratégia típica das cartas de Ias: a noção de Morin (1984) de que a

indústria cultural seria uma "escola de interpretação da experiência" e a concepção de Mauss (1981), discutida acima, de que a expressão dos sentimentos seria uma

"linguagem". Para Morin, a indústria cultural ofereceria um conjunto de modelos para a conduta privada, seria um espaço de produção de mitos e discurs os que os

indivíduos tomariam como guias para a compreensão e condução de suas vidas privadas, a vivência afetiva ai Incluída. Em sendo assim, os consumidores das

narrativas midiáticas aprenderiam a valorizar a experiência do amor, ao mesmo tempo

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em que se veriam diante de uma produção discursiva que maciçamente condena o sentimento do fascínio como algo patológico e desqualificante.

Ou seja: ser fã é algo a ser evitado. Dizer-se fascinado e um risco para a autoimagem. O fã vê-se assim diante de um dilema, imprensa do pela necessidade de expressar o que sente e a percepção, mais ou menos clara, mais ou menos difusa, da natureza socialmente desvalorizada deste afeto.

Mauss, conforme vimos, entende a expressão dos sentimentos como uma linguagem. Aqui, interessa destacar a natureza de "mão-dupla" desta linguagem: o indivíduo, ao falar do que sente, comunica-se consigo mesmo através da comunicação com os outros, compreendendo, por meio desta expressão, aquilo que sente.

Coelho toma esta concepção de Mauss da expressão dos sentimentos como uma forma do sujeito compreender o que sente como alicerce teórico para sugerir

uma interpretação de por que o fã fala de amor para seu ídolo, apesar de todas as inadequações aparentes desta escolha. E porque, confrontado com uma imagem

socialmente desvalorizada de sua experiência emocional, e tendo diante de si uma experiência de natureza vizinha porém, ao contrário, objeto de valorização social, o fã

"traduziria" o fascínio em amor, neste movimento resgatando, para o outro e para si, uma imagem favorável de seus sentimentos.

E mais: dizer-se fascinado é inserir-se em uma multidão, é aceitar ser um em meio a muitos. Dizer-se apaixonado é resgatar a dimensão singular de sua identidade, colocando-se no lugar daquele herói apaixonado convicto da originalidade e força de seus sentimentos. O fã que fala de amor para seu ídolo reencontra assim aquele paradoxo com que abrimos esta seção: igualar-se no movimento mesmo de

demarcação da própria singularidade.

"Estou só e não resisto": as gramáticas da solidão

Sentir-se único e especial, contudo, nem sempre é apenas fonte de satisfação. A ênfase na própria singularidade pode tornar difícil a comunicação com o outro, um compartilhar de experiências que é parte integrante da compreensão da própria vivência, sensações e emoções. O encapsulamento no próprio mundo interno pode criar uma percepção distorcida e exagerada da própria "originalidade", trazendo consigo um sentimento de incompreensão pelo outro. Este sentimento é uma forma possível da solidão – mas não a única.

Simmel (1964b), ao discutir o isolamento individual, já assinalava que mesmo aí

há um traço da sociedade, uma vez que não se trata exatamente da ausência do social, mas de uma existência imaginada e em seguida rejeitada da sociedade. Esta visão da

sociedade como algo presente na experiência do isolamento abre a porta para realizarmos com a solidão mais um exercício de questionamento do senso comum, que

nela enxerga um sentimento que diz respeito somente ao íntimo. Este é o ponto abordado por Wood (1986), que descreve a solidão como marca da pelo paradoxo de

ser experimentada pelo sujeito como um sentimento de separação do outro, ao mesmo tempo em que é possível encontrar "gramáticas" sociais para a emergência deste tipo de sentimento. Em outras palavras: há "regras" socialmente definidas para que o sujeito possa sentir-se só.

Sábados à noite, por exemplo, nos grandes centros urbanos são ocasiões de

sociabilidade prescrita; estar sozinho, sem companhia para alguma forma de lazer,

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suscita comumente um forte sentimento de solidão, conhecido e "validado" pelo grupo social como uma reação emocional legítima diante da situação concreta. Esta

"regra", contudo, não apenas "valida" este sentimento nestas circunstâncias; ela praticamente o prescreve como uma reação emocional que atesta a "normalidade" do indivíduo. Alguém que se sinta bem estando sozinho em um sábado à noite seria, em muitos grupos urbanos, visto como "esquisito" e "antissocial". Por outro lado, sentirse sozinho em uma segunda-feira pela manhã também não é lá muito "normal": é que esta "gramática" da solidão é regida por uma temporalidade marcada pelas oposições noite/dia, lazer/trabalho, O tempo da solidão, neste exemplo, pode ser caracterizado como noturno e de lazer, ou seja, momentos para os quais há uma sociabilidade prescrita/desejada que não se concretiza.

Esta "gramática", contudo, além de evidentemente não ser universal, não é também de aplicação homogênea em meio a um mesmo grupo social. Sua força é muito mais acentuada entre os jovens, para quem a experiência de estar só em um sábado à noite pode ser muito penosa; por outro lado, a sociabilidade de pessoas idosas ocorre com frequência mais cedo, muitas vezes em dias úteis, não havendo

nada de "antissocial" em sentir-se bem sozinho em casa às oito da noite de um sábado, após uma sessão vespertina de cinema, por exemplo.

Há assim muitas formas de sentir-se só. Há formas mais cotidianas de solidão, como estas regidas pela lógica da sociabilidade; há aquelas de orientação religiosa/espiritual, como na realização de "retiros"; e há também formas-limite, que em sua dramaticidade nos ajudam a entender algo sobre a natureza eminentemente social do ser humano. Este é o caso da solidão dos moribundos discutida por Elias (2001).

Em sua análise, Elias discute a atitude moderna diante da morte, partindo da constatação de que no Ocidente contemporâneo os indivíduos teriam enorme dificuldade em identificar-se com os moribundos, devido ao desconforto trazido pela

lembrança da própria morte. A morte seria duplamente recalcada: pelo indivíduo (como uma forma de proteção contra o terror provocada pela evocação de sua

mortalidade) e pela sociedade, que "traduziria" este terror em medidas de afastamento dos moribundos do convívio social, com seu confinamento a espaços

destinados a gerir a morte, tais como os hospitais.

Esta atitude de afastamento diante da morte expressaria, para Elias, uma forma

de negar a finitude da vida individual. Negá-Ia seria um imperativo diante da forma como o sujeito moderno concebe a própria vida: como algo isolado, sem a dimensão das cadeias de interdependência que conectam cada existência individual a uma rede social. Para o autor, esta incapacidade de ver-se como um elo em uma rede de relações seria responsável por uma forma de sofrimento típica da modernidade: a percepção da vida como absurda e destituída d.e sentido. Em sua visão, o sentido da vida está na importância que temos para os outros; do momento em que deixamos de

valorizar, como fonte de sentido para a existência individual, o lugar que ocupamos na vida dos outros, nossa própria existência se torna de fato vazia e absurda, uma vez que

não haveria qualquer outro sentido além do que somos para os outros. Vem daí o terror diante da própria morte, imaginada, diante desta desvalorização do laço com o

outro, como a dissolução absoluta de tudo aquilo que importa.

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O medo inspirado pelos moribundos e seu consequente afastamento para os espaços ocultos de gestão da morte geraria então uma experiência emocional de

muita dramaticidade. Para Elias, em toda sociedade morre-se do mesmo jeito como se vive. A percepção da vida como absurda, ao gerar um sentimento de solidão proveniente da desvalorização do pertencimento a uma rede de interdependência, impõe sobre os moribundos um ônus adicional: a percepção, ainda em vida, de não ter mais sentido para os outros, de saber-se excluído antes mesmo de morrer, em uma forma extrema de solidão.

"Saudades, só portugueses .. :': emoção e temporalidade

É possível, assim, estar só de muitas maneiras. Mas a solidão não é a única

forma de experiência emocional que fala da percepção de uma falta, de uma ausência. Há outros sentimentos que são também suscitados pela relação com algo que não está

acessível ao sujeito, como a saudade.

No Brasil gostamos de dizer, com orgulho, que "saudade é uma palavra que só existe em português", como se isso nos fizesse detentores exclusivos de uma possibilidade afetiva incomum de experimentar um sentimento especial e valorizado. Podemos, neste nosso "bordão", entrever temáticas caras ao estudo das emoções, como por exemplo a relação entre experiência emocional e identidade coletiva (aqui colocada de forma um tanto paradoxal, porque, ao nos orgulharmos de nossa "exclusividade" sobre a saudade, parece que nos esquecemos de que, antes de ser "brasileira", a "saudade." é "portuguesa", aparecendo em muitos discursos nacionais portugueses como um traço distintivo de sua Identidade).

Um segundo ponto importante levantado pela análise do sentimento da

saudade é que este é um sentimento que fala de uma forma de relacionar-se com o passado. Dois autores, o ensaísta português Eduardo Lourenço (1999) e o antropólogo

brasileiro Roberto DaMatta (1993), exploraram em textos sobre a saudade essa sua característica de ser uma maneira de sentir e de refletir sobre o passado. Este passado, contudo, não é pensado como etapa de um tempo concebido cronologicamente, como algo que "passa" inelutavelmente em um ritmo regrado e constante, mas sim como algo que, do ponto de vista subjetivo, pode ser recuperado, revivido, por meio da ação da memória. Sentir saudade seria "subtrair-se à passagem inexorável do tempo", ou, nos termos de Lourenço, recusar a "ordem do tempo".

Em uma busca por aprofundar a compreensão da particularidade desta relação que o indivíduo saudoso mantém com passado, Lourenço estabelece uma comparação entre os sentimentos da saudade, da nostalgia e da melancolia, entendidos como três modalidades de relação com o passado. Estes sentimentos estabeleceriam com o tempo diferentes "jogos de memória, inventando-o como ficção". Para Lourenço, enquanto na melancolia o passado seria vivenciado como "definitivamente passado" e, na nostalgia, estaria fora do alcance mas seria imaginado como "recuperável", na

saudade o sujeito se furtaria à ordem do tempo, reapropriando-se emocionalmente de algo passado.

Entretanto, não é somente com o passado que os sentimentos estabelecem formas de relação. As conexões entre experiências afetivas e temporalidade abarcam também o futuro e o presente. É assim que poderíamos, por exemplo, pensar na ansiedade e na esperança como formas de relação com o futuro, a primeira falando de

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uma "ânsia" pelo porvir, a segunda remetendo a uma sensação – pertencente, ela mesma, ao momento presente de quem sente – de otimismo. Também como parte de

seu esforço por compreender a natureza do vínculo com o passado estabelecido pela saudade, Lourenço contrasta-o com as temporalidades de outros sentimentos ligados ao presente, tais como a angústia e o tédio. Para ele, na angústia não há futuro, havendo somente um presente sem dimensões"; já no tédio, o tempo "roda em torno de si mesmo", com o indivíduo sendo esmagado por um excesso de realidade.

O universo da música pop brasileira novamente pode nos oferecer um exemplo das vivências afetivas contemporâneas. Esta percepção do tédio como um sentimento cuia característica central está em uma forma de relação com o tempo em que este é subjetivamente vivenciado como imóvel, em um descompasso com seu ritmo externo, pode ser encontrada em Tédio, da banda carioca Biquini Cavadão. Diz a letra:

Sabe esses dias em que horas dizem nada E você nem troca o pijama, preferia estar na cama

O dia, a monotonia tomou conta de mim É o tédio, cortando os meus programas, esperando o meu fim

Sentado no meu quarto O tempo voa

Lá fora a vida passa E eu aqui à toa Eu já tentei de tudo Mas não tenho remédio Pra livrar-me deste tédio Vejo um programa que não me satisfaz Leio o jornal que é de ontem, pois pra mim, tanto faz ( ... )3

O ponto principal que podemos reconhecer aqui é a defasagem entre a passagem do tempo cronológico e sua vivência subjetiva pelo indivíduo. Ele sabe que o

tempo está passando, sob a forma de dias ou horas, mas sua experiência interna é percebida como "descolada", obedecendo a um tempo "psicológico" cuja marca é a

imobilidade, acentuada pela percepção racional de que as horas passam (mas "não dizem nada") e os dias também (mas o jornal pode ser de ontem, "tanto faz").

Saudade, tédio e esperança, assim, entre outros sentimentos, expressam uma maneira de o indivíduo relacionar-se com temporalidade, reanimando um passado,

debatendo-se com o presente, apostando no futuro. Esta perspectiva mostra o quanto estes sentimentos, embora possam ser vivenciados por sujeitos específicos como gerados por momentos particulares de suas histórias de vida pessoais, são ainda assim tributários de gramáticas compartilhadas de natureza sociocultural. Este exercício intelectual encontrar a sociedade e a cultura em meio à experiência emocional tem na amizade ainda mais um terreno de fértil exploração.

"Amigo é coisa pra se guardar": escolhas e normas da amizade

Chegamos assim ao último sentimento que gostaríamos de examinar à luz desta clivagem indivíduo-sociedade: a amizade. Ao mesmo tempo um sentimento e

3 Letra obtida junto ao site http://biquini.com. brjindex.cfmjhomejmusicajdetalhesjtedio. Acesso em: 04

novo 2008.

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um tipo de relação, a amizade foi, durante muito tempo, pouco estudada pelas ciências sociais, pois era considerada uma relação muito subjetiva, voluntarista e

pouco estruturada por regras sociais, contrastando assim com o domínio do parentesco, tema consagrado na antropologia. Somente na década de 1980, com trabalhos exclusivamente voltados ao assunto, esta visão passou a ser relativizada e tomada como parte de uma visão de mundo das sociedades ocidentais modernas, sujeita também a variações internas, como mostraremos através dos estudos de Papataxiarchis (1991) feito na Grécia e de Rezende (2002) sobre a Inglaterra e o Brasil.

No estudo de Papataxiarchis sobre amizade entre homens na aldeia grega Mouria, a relação constrói-se em nítida oposição à família e ao mundo doméstico. Este é essencialmente um espaço de identidade feminina. Para as mulheres, o foco de suas relações e lealdades se concentra nos parentes consanguíneos, uma vez que fora destes há muito receio de fofoca e conflitos. São poucas as possibilidades de amizade entre mulheres, que surgem nos interstícios das relações de parentesco e são expressas nestes termos.

Entre os homens, as amizades são extremamente valorizadas por seu

distanciamento da esfera doméstica e também das relações de trabalho. Em contraste com estas, que são marcadas pela obrigação, as tensões da hierarquia e a preocupação

com status, as amizades são pautadas na reciprocidade e na espontaneidade das trocas emotivas. Os amigos se relacionam no espaço da cafeteria, onde o ato de beberem juntos torna-se fundamental na aproximação e desenvolvimento da amizade. O convite ao drinque deve ser retribuído e é a companhia constante com troca de bebidas que permite comportamentos mais relaxados, espontâneos e mais emotivos. Na medida em que a relação se desenvolve, a preocupação com a reciprocidade diminui e os aspectos instrumentais da amizade são desvalorizados em função da qualidade emocional da relação. A experiência da amizade torna-se então fundamentalmente um compartilhar das experiências e emoções entre homens, constitutiva do processo de construção da identidade masculina.

Neste contexto, as amizades são vividas como exemplos de voluntarismo e

escolha individual. Isto não significa que escolha seja irrestrita. A igualdade normativa é enfatizada e os amigos tendem a ter idade, origem familiar, classe social, ocupação e

estado civil semelhantes. Guardadas estas condições, os amigos são escolhidos livremente a partir da dinâmica de sociabilidade nas cafeterias. A dimensão do

voluntarismo se destaca principalmente no fato de a amizade e constituir como antítese do trabalho e da domesticidade espaços marcados por relações assimétricas e obrigatórias.

Esta antítese desaparece no estudo de Rezende (2002) sobre amizade no RIO de Janeiro. Entre os cariocas de camadas médias entrevistados, a amizade pode surgir entre colegas de trabalho e também nas relações de família. O elemento da hierarquia presente nestes espaços não é visto como impeditivo, pois a amizade e baseada na

afinidade, na intimidade, na confiança e na doação ao outro. Na família, a amizade torna-se mais um modelo de relação a inspirar as relações familiares, transmitida, pelo

uso frequente da expressão "pai amigo", mãe amiga . A confiança e a doação ao outro são aspectos em geral presentes, mas a afinidade e a intimidade muitas vezes não

existem, o que é explicado pela falta de escolha sobre os parentes. No meio de trabalho, é possível encontrar colegas que reúnam qualidades para transformá-Ios em

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amigos. O quesito mais difícil de assegurar nestas relações é a confiança no bem-querer e na doação ao outro, pois a competição e outros interesses profissionais

podem falsear as intenções na aproximação de um amigo em potencial.

Ao falarem sobre as interações no espaço de trabalho e no público em geral, era comum ouvir dos entrevistados a referência a muitas pessoas por quem se "tinha" amizade relações estruturadas em outros critérios que continham, porém, o sentimento de amizade. Era uma percepção de amizade bastante inclusiva e,.em geral, abarcava relações entre pessoas com características sociais, como origens de classe, raça, orientação sexual e religião, mais distintas entre si. Nelas o afeto da amizade parecia fornecer o solo comum de bem-querer e de "humanidade" que diminuía a percepção da diferença que podia afastá-los. Por isso as pessoas estudadas repetiam tanto que era possível fazer amizade com qualquer um atravessando as barreiras sociais.

Ficava claro, entretanto, que estes amigos, às vezes referidos mais pelo termo

adjetivo ("uma pessoa amiga”) do que pelo substantivo, eram diferentes dos amigos próximos, em número tão reduzido que "se podia contar nos dedos . Estes vinham de

condições sociais bastante próximas e tinham. se conhecido no colégio, na faculdade ou na vizinhança, meios sociais relativamente homogêneos. O tempo era um fator

Importante na relação, pois permitia que os amigos provassem sua confiabilidade e sua doação ao outro, elementos Importantes nas amizades próximas.

Para os ingleses de camadas médias estudados por Rezende (2002) em Londres, o tempo e a confiança também eram valorizados na amizade. No entanto, na comparação feita com os cariocas, destaca-se que a noção de amizade como um sentimento, que poderia até estar presente em outras formas de relação, não figurava para estes londrinos. Ao contrário, as relações de amizade pertenciam unicamente à esfera privada, junto com as relações de parentesco. No espaço de trabalho, era difícil desenvolver amizade pois, mais do que a hierarquia e a competitividade, era preciso

ter um comportamento eficiente, produtivo e polido, contrário ao relaxamento que marcava a relação entre amigos.

Os amigos eram vistos como pessoas com quem era possível se expor sem reservas e ter seu verdadeiro eu aceito. Como eles diziam, o amigo é alguém com

quem "eu posso ser 'eu mesmo"'. No início da relação, a afinidade é importante sobretudo nos interesses de lazer e no senso de humor. Com o tempo, desenvolve-se a

confiança necessária para se expor, processo este que deve ser recíproco e sincronizado. Como cada um prezava sua privacidade e tempo para si, não gostando de imposições indevidas, ter confiança em que o amigo aceitaria compartilhar emoções era fundamental para a relação.

Por isso, era difícil estabelecer amizade no trabalho ou em outros espaços

marcados pela diversidade social. No trabalho, prevalecia a ênfase na contenção emotiva em função da eficiência e produtividade, antitética à amizade. Com pessoas

de origem de classe distintas, em particular as que vinham da classe trabalhadora, havia a percepção de que as noções de privacidade eram distintas, de forma que se

tornava difícil sincronizar os processos de autorrevelação. Como as pessoas de classe trabalhadora eram vistas como mais espontâneas e pouco polidas, a preservação do

espaço pessoal era ameaçada.

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Deste modo, as relações de amizade se estabeleciam entre pessoas de origens sociais muito semelhantes, com trajetórias também similares. Contrastando com a

diversidade étnica e social de pessoas em Londres, os ingleses estudados formavam redes muito homogêneas nas quais encontravam as qualidades de amizade desejada. Como a polidez e sua contenção emotiva eram o modus operandi no espaço público, era com os amigos que eles podiam relaxar e ser espontâneos. Se na família havia a confiança do apoio quando necessário, faltava a eles a percepção de afinidade que permitia o tipo de exposição de si que acontecia entre amigos. A amizade tornava-se mesmo um ideal para as relações familiares.

Estes três exemplos mostram como a amizade é uma relação afetiva que contém falgum grau de escolha individual, se dá dentro de um campo de possibilidades. Embora vivida como uma opção subjetiva, a amizade é concebida e praticada com significados, normas e valores culturalmente definidos. Estas definições não valem apenas para unidades culturais mais amplas, como no contraste entre os contextos grego, brasileiro e inglês, mas também para segmentações mais finas, como nas diferenças de gênero em Mouria ou as de origem de classe em Londres. Assim, a

amizade como uma relação afetiva exemplifica, como o amor, a admiração, a solidão e a saudade, experiências emocionais que são a um só tempo subjetivas e sociais.

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Capítulo 3

A micropolítica das emoções

Entre os diversos temas envolvidos na gramática sociocultural que rege as relações de amizade está, como vimos, a oposição hierarquia-igualdade. A criação de vínculos de amizade pode ser assim favorecida ou interditada por relações hierárquicas ou igualitárias em função do modo como cada grupo entende sua natureza, define as expectativas afetivas, de sociabilidade, de reciprocidade etc.

A relação entre um sentimento, tão associado no senso comum ocidental à espontaneidade da escolha individual, e as formas de estratificação social nos conduz à dimensão da experiência emocional que gostaríamos de explorar neste capítulo: a capacidade micropolítica das emoções, ou seja, seu potencial para dramatizar/alterar/reforçar a dimensão macrossocial em que as emoções são suscitadas e vivenciadas. É com essa dimensão que o estudo das emoções pode contribuir para a compreensão de temas "consagrados" da agenda de pesquisa das ciências sociais, como por exemplo as dinâmicas de inclusão/exclusão que «regem as relações entre os grupos sociais - o nojo, o desprezo, a indiferença - ou as fontes da

inconsistência dos laços sociais - a fidelidade, a gratidão, a compaixão.

Para explorar este aspecto da experiência emocional, exporemos a seguir a

perspectiva teórica proposta por Abu-Lughod e Lutz (1990) para a análise das emoções - o "contextualismo" -, buscando situá-Ia em meio a outras perspectivas possíveis, acompanhando o mapeamento do campo da antropologia das emoções feito pelas autoras. Em seguida, discuti- remos o modo como a capacidade micropolítica das emoções surge nas análises empreendidas por alguns autores sobre sentimentos específicos: a compaixão, o nojo, o desprezo, a humilhação e a gratidão. A última seção do capítulo é dedica- da a uma exploração da fecundidade dessa perspectiva para a compreensão de aspectos da cultura brasileira, com base no estudo de caso realizado por Coelho (2006a) sobre as trocas de presentes entre patroas e empregadas domésticas.

A perspectiva contextualista: um mapeamento do campo da

antropologia das emoções

Em texto introdutório ao campo da antropologia das emoções, as antropólogas norte-americanas Catherine Lutz e Lila Abu-Lughod realizaram um mapeamento das

principais vertentes teóricas que fizeram da emoção um objeto de pesquisa. Nesse mapeamento, elas sugerem a existência de três correntes: o "essencialismo", o

"historicismo" e o "relativismo". A elas, Lutz e Abu-Lughod irão opor uma quarta perspectiva alternativa: o "contextualismo".

O essencialismo é descrito pelas autoras como o viés predominante nos estudos psicológicos e psicanalíticos, apoiados na premissa de que as emoções teriam um substrato universal e natural, sendo, em seu núcleo, as mesmas por toda parte. Entre as perspectivas mencionadas como representativas dessa abordagem, as autoras

incluem a psicanálise freudiana, com sua concepção das energias pulsionais como algo

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a ser "modelado" ou "canalizado" pelas forças civilizatórias. Para Lutz e Abu-Lughod, o problema maior dessa perspectiva seria uma espécie de "reificação" das emoções,

tidas como preexis- tentes ao social, que com elas deveria "lidar", "expressando- as" ou "reprimindo-as" ou ainda "ritualizando-as".

O historicismo e o relativismo compartilhariam um ponto- chave que os oporia ao essencialismo: a crença na "construção cultural das emoções", que seriam fenômenos histórica e socialmente circunscritos. Uma estratégia central desses estudos seria a comparação entre contextos socioculturais distintos, capaz de colocar em xeque a suposição dos essencialistas de que as emoções teriam substratos universais. O eixo eleito para comparação diferenciaria essas vertentes: enquanto o historicismo recorreria a um escrutínio temporal, o relativismo se valeria de comparações entre culturas contemporâneas entre si.

Essas vertentes, contudo, nem sempre aparecem em "estado puro". Se por um lado é possível identificarmos trabalhos de inspiração claramente historicista (como a

análise já comentada da concepção moderna de amor em Romeu e Julieta realizada por Benzaquen de Araújo e Viveiros de Castro, 1977; ou a "história das lágrimas" fei ta

por Vincent-Buffault, 1988) e textos marcadamente relativistas (como o exame da "etnopsicologia" ocidental feito pela própria Catherine Lutz, 1988), por outro há

também estudos que mesclam traços essencialistas com matizes historicistas e/ou relativistas, como por exemplo os estudos já mencionados de Peter Gay (1995) sobre o ódio ou de Jean Delumeau (1989) sobre o medo.

A inovação do contextualismo está em sua inspiração na noção foucaultiana de "discurso". Essa proposta teórica baseia-se na concepção de discurso como uma fala que mantém com a realidade uma relação não de referência, mas sim de formação. Ou seja, nela o real não preexiste ao que é dito sobre ele, mas, ao contrário, é formado por aquilo que se diz sobre ele. Para as autoras, a emoção não seria apenas um construto histórico-cultural; a emoção seria algo que existiria somente em contexto,

emergindo da relação entre os interlocutores e a ela sempre referida. É nesse sentido que se pode falar de uma "micropolítica da emoção", ou seja, de sua capacidade para

dramatizar, reforçar ou alterar as macrorrelações sociais que emolduram as relações interpessoais nas quais emerge a experiência emocional individual. E assim, então, que

as emoções surgem perpassadas por relações de poder, estruturas hierárquicas ou igualitárias, concepções de moralidade e demarcações de fronteiras entre os grupos

sociais, conforme veremos a seguir na análise de alguns sentimentos específicos.

A micropolítica das emoções: estudos de caso

Em sua obra clássica intitulada Teoria dos sentimentos morais, Adam Smith empreende uma alentada análise da "simpatia", por ele definida como a solidariedade

do ser humano em relação às paixões vivenciadas pelos outros. Ela, contudo, variaria em grau (podendo mesmo ser inexistente) de acordo com a natureza da paixão. As

paixões "insociáveis" - o ódio e o ressentimento - suscitariam pouca ou nenhuma simpatia; as paixões" do corpo" seriam também de difícil compartilhamento, devido à

sua natureza "incomunicável" porque de difícil imaginação. Há ainda as paixões "egoístas" - a dor e a alegria - e as paixões "sociáveis", entre as quais relaciona a

generosidade, a humanidade, a bondade, a amizade, a estima recíproca e a compaixão.

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O ponto fundamental da obra de Smith é o desvendar de uma "lógica da simpatia": em que situações estaria o ser humano mais propenso a identificar-se com

o sentimento alheio - na desgraça ou no sucesso?

Discutindo um conjunto de situações, entre as quais o sucesso repentino, o autor aborda o problema da inveja, descrevendo-a como um sentimento capaz de emergir diante do rompimento de uma igualdade original. Dois temas entrelaçam-se assim em sua obra: a relação entre sentimentos e posições relativas entre os sujeitos e a articulação entre a vivência vicária da experiência alheia e a emergência da simpatia.

Os sentimentos "morais" seriam assim aqueles que falam de uma relação estabelecida no íntimo do sujeito com a alteridade: o que o sofrimento ou a alegria do "outro" suscitam Qual a lógica que rege essa dinâmica emocional?

Diversos são os critérios envolvidos nessa regulagem dos sentimentos diante

do outro: o sofrimento alheio pode suscitar compaixão, indiferença ou até mesmo regozijo, de- pendendo das macrorrelações a que uma dada interação se reporte. Em

meio a esses critérios, podemos destacar a fronteira nós-outros, ou seja, os sentimentos morais fariam um trabalho de inclusão/exclusão social, sendo suscitados

por "mapas de navegação emocional" ao mesmo tempo em que reforçariam os seus traçados. Compaixão, nojo, desprezo, gratidão, humilhação seriam assim, todos eles,

sentimentos capazes de realizar o trabalho micropolítico de dramatização, reforço e, por que não, alteração das macrorrelações sociais.

Compaixão: a responsabilidade pelo infortúnio

Uma comparação entre a gramática da compaixão em dois contextos histórico-

sociais distintos pode nos servir como porta de entrada para a exploração dessa capacidade micropolítica da emoção: o trabalho de Lindsay French (1994) sobre a

hostilidade de que são alvo as vítimas de amputações por minas terrestres em um campo de refugiados no Camboja e o estudo de Candace Clark (1997) sobre a lógica

que rege o dar e receber da compaixão nos Estados Unidos contemporâneos.

French realizou uma etnografia em um campo de refugiados cambojanos em

1989-91. Ela relata a onipresença de pessoas que haviam sofrido algum tipo de mutilação por mi- nas terrestres. As perguntas iniciais de sua pesquisa dizem respeito à natureza da experiência corporal da amputação e ao efeito sobre a população do campo dessa "hiperexposição" às mutilações corporais. Sua hipótese inicial é a de que a presença cotidiana dos amputados consistiria em uma lembrança recorrente da

guerra e de que seu infortúnio seria alvo de compaixão.

Seus dados etnográficos, contudo, revelam algo bastante distinto da compaixão

esperada. Os refugiados cambojanos têm duas reações emocionais principais diante dos amputa- dos: medo e desprezo. O medo é suscitado pela reputação dos

amputados de serem pessoas violentas, agressivas e desonestas, afeitas à extorsão e ao roubo. Já o desprezo viria de sua representação como pessoas" diminuídas" pela

mutilação corporal, e portanto incapazes de agir como um ser humano íntegro (no duplo sentido do termo). Paradoxalmente, o maior efeito da amputação sobre as

virtudes morais do sujeito atingido seria sobre sua capacidade de compadecer-se, da qual a amputação o teria destituído.

Para o amputado, a mutilação representaria uma violenta alteração de seu lugar no mundo social. A proteção de que gozava, como soldado, da parte de seu

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comandante lhe é radicalmente retirada quando de sua "inutilização" para o com- bate; o apoio de sua esposa e família é também ameaçado, pois sua capacidade de

desempenhar suas funções de protetor e provedor é abalada pela mutilação. O amputado vê assim seu lugar no mundo ser devastado pela mutilação, e com isso seu "valor moral" ser também diminuído. A experiência emocional do amputado é de degradação e abandono, sendo encompassada por um sentimento geral de incapacidade e desvalorização no mundo.

French vai buscar na doutrina budista sobre karma e reencarnação uma explicação para esses contornos emocionais da experiência da amputação. Segundo ela, o karma seria acionado no budismo como forma de compreender aquilo que não se pode controlar ou para o qual se busca consolo; o futuro, contudo, estaria aberto à influência de ações meritórias no presente. O budismo traria ainda, associada a essas noções, uma hierarquia do mérito e da virtude, à luz da qual a amputação seria um infortúnio que atestaria um "valor diminuído" do sujeito, caracterizando sua proximidade como um "risco" para os demais.

A autora coloca assim essa experiência corporal em relação com uma dinâmica

emocional que, ao associar uma mutilação física a uma diminuição da capacidade humana de compadecer-se, evidenciaria sua relação com um contexto religioso,

cultural e político mais amplo, em que a gramática da com- paixão seria orientada por uma hierarquia engendrada pelas condições de vida nos campos de refugiados. Essa "negociação da compaixão" encontrada em sua etnografia, contudo, aparece como uma surpresa, contrariando sua hipótese inicial de que a amputação geraria no outro uma reação emocional compassiva. Por que French entra em campo com essa expectativa? Haveria outra "gramática da compaixão" possível que nortearia sua hipótese inicial?

A análise de Clark (1997) sobre a compaixão nos Estados Unidos contemporâneos fornece uma pista para entendermos essa "surpresa" de French. A

autora mapeia as regras que governam o da r e receber da compaixão, mostrando a centralidade do critério da responsabilidade pelo infortúnio. Quando o sujeito é

percebido pelo outro como tendo cometido atos, adotado comportamentos ou mesmo meramente sendo de uma determinada forma capaz de, em alguma medida,

provocar o ocorrido, seu status como merecedor de compaixão é diminuído; quando, ao contrário, seu infortúnio é atribuído ao acaso ou a outrem, facultando assim sua

representação como vítima de algo alheio à sua vontade ou possibilidade de intervenção, suas chances de suscitar compaixão no outro aumentam sensivelmente.

Entretanto, o problema da responsabilidade do sujei- to pelo que lhe ocorre não é simples, apresentando enorme diversidade social, cultural e histórica. Clark sugere que a ampla divulgação do olhar das ciências humanas e sociais teria levado a um alargamento do campo dos "atenuantes". E assim que um agressor pode ser "desculpado" por seus atos se for representado como "produto" de circunstâncias

socioeconômicas desfavoráveis, responsáveis pela criação de um ambiente social que não deixaria alternativas ao sujeito; ou que uma pessoa pode ser isentada de

responsabilidade por uma derrocada em sua vida se o comportamento adotado - o alcoolismo, por exemplo - for concebido não mais como um vício moral, mas como

uma doença que o sujeito sofre. A compaixão criaria assim "fronteiras morais", separando aqueles representados como merecedores de compaixão - porque isentos

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de culpa ou responsabilidade pelo que lhes acontece - e aqueles a quem se destina uma reação de im- piedade, uma vez que são percebidos como responsáveis por suas

desventuras.

Essa análise de Clark da gramática da compaixão norte- americana nos aponta o caminho para a compreensão da discrepância entre a hipótese original de French para a experiência carnbojana e sua surpresa diante daquilo que encontra em sua etnografia. A suposição de que os amputados suscitariam compaixão no ambiente ao seu redor é evidentemente tributária da etnopsicologia ocidental que os considera merecedores desse sentimento porque vítimas de um acidente de natureza inteiramente aleatória, "algo que poderia acontecer com qualquer um". Nessa concepção, o abandono de que são alvo é uma nova forma de vitimização, que espantaria a um ocidental pela aparente "impiedade". A investigação etnográfica, contudo, demonstra estar em ação outra "gramática emocional", a qual, através do recurso a uma doutrina religiosa, insere a experiência da amputação em uma lógica de "responsabilidade". A comparação entre essas duas for- mas de dar/receber compaixão ilustra assim a dimensão micropolítica do sentimento, capaz de demarcar e

reforçar micro- hierarquias articuladas a contextos culturais e históricos mais amplos.

Nojo e desprezo: afetos, hierarquia e moral

Em seu livro, Miller (1997) narra um episódio ocorrido entre ele e um pedreiro que contratara para um serviço em sua casa. O pedreiro é forte, de compleição avantajada e tem o corpo coberto por tatuagens. Enquanto trabalha, suas calças escorregam de sua cintura, deixando parte das nádegas à mostra. Um dia, quando o autor saía de casa de mochila nas costas, pedalando sua bicicleta, o pedreiro voltou-se para sua esposa e indagou: "Ele é professor?", em um tom que poderia significar algo como "isso aí é um professor?".

Miller faz dessa história uma pequena fábula sobre o desprezo. Explorando-a

em minúcias, transforma a si mesmo e suas reações subjetivas em um campo para observação da dinâmica emocional das relações sociais. Seu ponto principal é a

comparação entre o desprezo que sente pelo pedreiro e o desprezo que este sente por ele. Do seu ponto de vista, o desprezo é suscitado por questões ligadas à fisicalidade - as tatuagens (por Miller entendidas como uma forma de vulgaridade), a exposição das nádegas, a exibição de força física. Por outro lado, sua suposição é de que o desprezo do pedreiro está ligado a uma atribuição de fraqueza física a ele, o intelectual.

Nessa pequena fábula, está em questão a natureza recíproca dos desprezos devotados entre o intelectual e o pedreiro, girando em torno de um atributo central em tantas construções de identidades masculinas: a força física. Entretanto, Miller aponta para uma diferença fundamental: o desprezo do pedreiro é desinibido; ele não

parece sentir-se culpado ou envergonhado por nutrir esse tipo de sentimento. Já ele, um intelectual liberal, envergonha-se por reconhecer em si um sentimento condenado

pelas teorias políticas que estuda e pelas quais procura pautar sua vida, não apenas como intelectual, mas também em seu cotidiano como cidadão. O conflito emocional

deflagrado pelo desprezo ocorre devido à contradição entre a crença na igualdade fundamental de to- dos os seres humanos e a emergência de um sentimento que é em

si mesmo um atestado de existência e/ou reivindicação de hierarquia.

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A reciprocidade desse sentimento, contudo, traz ainda novas nuances. Tradicionalmente, o desprezo é um sentimento que emerge em relações hierárquicas,

sendo devotado por quem ocupa as posições superiores àqueles em situação inferiorizada - a essa modalidade Miller refere-se como "desprezo para baixo". Nas sociedades tradicionais, essa parece ser a única modalidade do desprezo, ou ao menos a única que adentra a cena pública. As sociedades modernas democráticas criam a possibilidade de outra modalidade de desprezo: o "desprezo para cima", devotado, como no exemplo da história acima, por aqueles que ocupam posições socialmente desvalorizadas (os trabalhadores manuais) àqueles detentores de status mais elevado (os intelectuais). Surge assim outra função micropolítica do desprezo: a contestação da hierarquia em sua versão "para cima", e não mais somente seu reforço/ demarcação, como no desprezo "para baixo". É assim que Miller sugere, então, de forma um tanto irônica, que esta parece ser uma conquista fundamental dos regimes democráticos: a instauração da possibilidade dos desprezos mútuos, em uma espécie de "socioeconomia" emocional da igualdade.

Na análise de Miller, o nojo figura ao lado do desprezo como uma "emoção de

demarcação de status": Recorrendo a Adam Smith e sua discussão sobre empatia e moralidade, Miller arrola o nojo entre os "sentimentos morais", capaz de demarcar,

com sua eclosão, as fronteiras entre os "iguais" e os "diferentes".

Nesse esforço de demonstrar a capacidade micropolítica das emoções, interessa destacar a associação entre nojo e moralidade. Comumente associado a experiências físicas, o nojo pode ser descrito como aquilo que fere as categorias discriminadas em sistemas de classificação, transitando de forma agramatical por áreas que deveriam ser mantidas apartadas. É assim que Rodrigues (1975), com base em um conjunto de depoimentos sobre experiências descritas como "nojentas" por seus entrevistados, identifica uma "gramática" que permite descrever o nojo como uma reação fisiológica suscitada pela transgressão de uma regra inconsciente relacionada à demarcação interior/exterior do corpo humano. A quase totalidade dos depoimentos descreve situações de contato sensorial (visual, tátil, olfativo) com

secreções do corpo humano; seria a violação dessa fronteira interior/exterior que suscitaria uma reação fisiológica de horror à transgressão. O interesse maior desse elo

transgressão-nojo seria a ponte criada entre o sensorial e o intelectual, uma vez que o desrespeito ao sistema de classificação seria capaz de provocar uma reação fisiológica,

atestando assim a importância, para o conforto do sujeito, daquela ordenação do mundo.

Miller, contudo, vai mais longe em sua análise ao definir o escopo de situações capazes de suscitar nojo. O nojo, em si mesmo uma reação percebida no corpo, não teria suas motivações restritas ao corpo em si, sob a forma de características ou secreções, podendo também ser suscitado por traços que agrediriam convicções morais, como por exemplo a cupidez ou a hipocrisia. Entre as atividades capazes de suscitar nojo nos Estados Unidos contemporâneos, Miller menciona a advocacia e a política. O nojo surge como um "idioma" para a expressão de "julgamentos morais", como quando dizemos, a respeito de, por exemplo, uma atitude de desrespeito a direitos consagrados do outro com vistas ao atendimento de interesses próprios

considerados venais, que "isso me revira o estômago"; ou quando presenciamos a manipulação de ideias e princípios a serviço da consecução de objetivos interessados e

reagimos dizendo ter "vontade de vomitar".

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O nojo é, assim, uma reação fisiológica possível à transgressão de normas morais, permitindo, conforme afirma Miller, atestar a força dessas regras, uma vez que

elas, literalmente, nos retorcem as entranhas ao mero pensamento de sua violação.

Nojo e desprezo, assim, realizam um trabalho semelhante de vinculação entre os níveis micro da experiência pessoal e macro da organização social, costurando hierarquias e nor- mas morais aos afetos e sentimentos. Outras emoções realizam trabalhos semelhantes, a exemplo da humilhação.

Humilhação: princípios morais e identidade

Em sua análise sobre crimes hediondos, Katz (1988) discute, conforme já comentamos no primeiro capítulo deste livro, as motivações das pessoas que

cometem crimes marcados por uma enorme desproporção aparente entre as atitudes das vítimas e as agressões de que são alvo (um pai que mata seu bebê por não parar

de chorar ou um morador que mata seu vizinho por obstruir a entrada de sua garagem). O foco de sua análise é a dinâmica emocional desse tipo de agressão, cujo

cerne estaria na emergência de uma "ira santa", capaz de autorizar um massacre aos olhos do agressor. Para este, a vítima desafia, com suas atitudes, princípios

fundamentais na visão de mundo do agressor: a autoridade paterna desrespeitada pelo bebê que não atende às ordens sucessivas para parar de chorar; o direito

feminino ao trabalho, afrontado pelo marido que põe fogo nos livros da esposa; o direito à propriedade, infringido pelo vizinho que estaciona seu carro diante da garagem do outro.

Esse não é, contudo, um processo racional e consciente (ainda que precariamente dimensionado) da parte do agressor: há uma dinâmica emocional que

principia pela humilhação e que deslancha um processo cujo ápice é a agressão. A humilhação decorre, para Katz, da tentativa de evitar a raiva provoca da pelas atitudes

da vítima; a raiva é, em um primeiro momento, percebida pelo futuro agressor como uma" concessão", como um "igualar-se" que estaria implícito no reconhecimento da

ofensa; a indiferença representaria assim uma "elevação" do agressor diante da vítima. A constatação, contudo, por parte do próprio sujeito de que essa indiferença é

"fingida", não mais do que uma estratégia para simular uma superioridade que não existe - uma vez que a "provocação" atinge o alvo ao ponto de exigir essa estratégia -

pode ser, por si mesma, humilhante. Quem não reconhece a irritação que uma provocação do tipo" olha só, ele está fingindo que não liga", em meio a um conflito,

pode causar?

O sentimento de humilhação apresentaria assim cinco características. A primeira é sua dimensão pública, ou seja, sentimo-nos humilhados diante de um outro

(ainda que esse outro possa não estar presente na cena física imediata, bastando muitas vezes a consciência de sua existência); essa humilhação parece, no calor das

circunstâncias, ser eterna, ou seja, algo de que o sujeito nunca se poderá livrar, e que por isso parece-lhe insuportável; o sentimento vem de fora para dentro, é algo que

"toma conta" do sujeito, que se vê como objeto de uma experiência emocional; a humilhação é "holística", ou seja, ela envolve todo o corpo; e, finalmente, ela acarreta

uma perda de controle da identidade. Na humilhação, não sou mais quem eu pensava ser, mas alguém inferiorizado diante de todos, e pior, alguém que tentou disfarçar essa

inferioridade simulando uma indiferença, em estratégia óbvia aos olhos de todos. É em

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defesa desse núcleo de quem é que o sujeito agride aquele que, a seus olhos, o ameaça em um plano tão fundamental de sua existência.

Princípios morais e experiência subjetiva entrelaçam-se aqui novamente, dessa feita atingindo a própria identidade individual pela emergência do sentimento da humilhação. Mas nem só de mal-estares e agressões é feito esse entrelaçamento, como veremos a seguir no caso da gratidão.

Gratidão: a "memória moral da humanidade"

"Memória moral" é uma expressão utilizada por Simmel (1964a) para falar do trabalho feito pelo sentimento da gratidão em favor da solidez dos laços sociais.

Discutindo a emergência da gratidão no contexto das dádivas materiais, ele afirma ser este afeto que impulsiona a reciprocidade, condição sine qua non da vida social. A

gratidão seria assim aquilo que impele à retribuição mesmo na ausência da coerção externa, desempenhando portanto um papel fundamental na coesão dos vínculos

sociais.

Simmel analisa as dimensões de liberdade e coerção presentes no universo da dádiva, afirmando ser o primeiro presente o único realmente espontâneo, uma vez que nele não há qualquer obrigação. Toda e qualquer retribuição, por sua vez, comportaria já uma dimensão coercitiva, sendo a gratidão a consciência de haver entrado em uma relação infinita, pois a decisão da primeira oferta comporta uma liberdade que retribuição alguma poderia conter, com o eventual desejo autêntico de retribuir sendo sempre, em alguma medida, turva- do pela sua obrigação.

La Rochefoucauld afirmava que Na pressa em retribuir é uma forma de

ingratidão". É como se a aceitação do primei ro presente e do adiamento da retribuição equivalesse a uma aceitação do estado de dívida, do qual a gratidão seria uma

expressão emocional. Ora, estar em dívida é também estar em relação, mas em uma posição inferiorizada, em que reconheço que o outro tem/pode mais, uma vez que me

deu algo que não pude retribuir, nesse movimento me "inferiorizando". Apressar-se em retribuir é então um esforço para sair desse lugar, para" quitar" a oferta inicial,

recusando assim o senti- do último do presentear: o estabelecimento de uma parceria.

O sentimento da gratidão seria a expressão afetiva da aceitação desse lugar de dívida, que é, em última instância, a aceitação de uma relação marcada por uma hierarquia, em que o sujeito entra em relação com alguém que pode mais: daí a afirmação de que a gratidão teria "um gosto de servidão". Sua emergência obedece,

portanto, a regras morais, em uma "gramática" que define o valor moral do sujeito em função de sua capacidade de sentir-se grato àquele que o beneficia, ainda que à custa

de uma diminuição de seu status pela incapacidade de retribuir. É talvez esse o sentido último daquela fórmula linguística do agradecer, já tão desgasta da pelo uso que não

nos apercebemos de seu sentido último: "obrigado".

A gratidão faria assim um trabalho de coesão e estabilização dos laços sociais.

Entretanto, isso é feito obedecendo a regras que são tributárias das macrorrelações sociais em meio às quais os indivíduos se movem em suas relações interpessoais. A

análise de um tipo particular de dádiva - aquela realizada entre patroas e empregadas domésticas - nos servirá como exemplo para o aprofundamento da compreensão

dessa capa- cidade micropolítica das emoções.

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Dádiva, hierarquia e emoção: as trocas de presentes entre patroas

e empregadas domésticas

As trocas de presentes são um tema consagrado da antropologia desde as obras seminais de Malinowski (1976) e Mauss (1974), atravessando a história da disciplina em sucessivas formulações teóricas. Originalmente baseadas em da- dos etnográficos de sociedades tribais, as teorias da dádiva acompanham o movimento da

antropologia de voltar-se para o estudo das sociedades complexas, tendo engendrado também estudos sobre os sistemas de troca de aldeias (Yan, 1996), cidades (Cheal,

1988) ou mesmo países (Hendry, 1995; Miller, 1993; Yang, 1994).

Nos estudos voltados para a dádiva em ambiente urbano, sua associação com a expressão emocional é frequente. Seguindo essa linha, Coelho (2006a) empreendeu uma análise da dádiva junto a segmentos de camadas médias da Zona Sul do Rio de Janeiro, procurando perceber de que forma as trocas de objetos materiais são aí utilizadas como meio para que os sujeitos falem de si, de quem são e do que sentem. Retomando a clássica formulação de Mauss de que a dádiva dramatiza o vínculo existente entre doador-receptor, a autora identificou a existência de uma elaborada gramática que regula, entre outros aspectos da troca, a escolha dos objetos e as expectativas de retribuição.

Os dados utilizados foram um conjunto de seis entrevistas realizadas com

mulheres de um mesmo grupo profissional (professoras de línguas estrangeiras), com idades variando aproximadamente entre 50 e 70 anos, residentes na Zona Sul do Rio

de Janeiro (à exceção de uma moradora da Barra da Tijuca). Nesses depoimentos, as entrevistadas falaram dos presentes que davam e recebiam, das ocasiões do

presentear, dos critérios que utilizavam para escolher os presentes que dariam. Contaram também diversas histórias sobre presentes marcantes que haviam dado ou

recebido. Em meio a esses rela- tos, falaram sobre os presentes que davam a suas empregadas domésticas, em trocas regidas por critérios bastante diversos daqueles utilizados no presentear de amigos, filhos, maridos e parentes. Esses depoimentos foram em seguida contrastados com a "fala" das empregadas domésticas a respeito dos presentes recebidos de suas patroas. Essa "fala" foi obtida pela autora através de relatos recolhidos por uma babá e a ela transmitidos e por uma entrevista concedida por uma acompanhante que trabalhava para um senhor idoso.

Nessas trocas, um tema emergia com enorme clareza: a importância atribuída pelas patroas à demonstração, pelas em- pregadas, de gratidão pelo objeto recebido, e

que entrava em flagrante contraste com a recusa destas em sentir-se gratas. Algumas histórias ilustram bem esse "embate emocional" entre patroas e empregadas.

A primeira história foi narrada por uma patroa como exemplo de uma pessoa a quem não gostava de dar presentes porque, segundo ela, a empregada "não sabia

receber presentes". Ela havia comprado para a empregada um descascador de abacaxi idêntico ao que comprara para si mesma, e a em- pregada reagira com desagrado ao

presente, como costumava fazer sempre que a patroa lhe dava um presente. Na avaliação da patroa, a moça era "amarga", "se supervalorizava", "não compreendia" .

A segunda história nos mostra o outro lado da moeda: a satisfação da patroa

com a evidente alegria da empregada com o presente recebido - uma tampa plástica para micro- ondas. A história é narrada pela patroa como exemplo de um presente que

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ela havia gostado especialmente de dar, porque a faxineira (ao contrário da personagem da história anterior) ficava "tão agradecida com as coisas que a gente dá".

Fica clara, assim, a importância da gratidão para as patroas nesse tipo de dádiva. Esse sentimento, contudo, não é um "suplemento" da troca, um aspecto entre outros. Ele parece ser a própria retribuição, uma vez que as patroas não esperam receber de suas empregadas qualquer objeto material e mesmo, no limite, não querem receber nada, dizendo-se "constrangidas" ou com "pena" diante da ideia de que a retribuição viesse sob uma forma também material.

O modelo ideal dessa forma de troca parece ser assim, para as patroas, um objeto material em troca de um senti- mento - a gratidão. A "boa empregada" é aquela que demonstra estar agradecida sem fazer qualquer esforço para retribuir no plano material. Ora, essa "gramática", parece contrariar o modelo da troca esboçado por

Mauss, em que a retribuição é não só desejada como obrigatória. Qual o sentido subjacente a essa forma que a dádiva assume entre patroas e empregadas?

Vimos, com Simmel, que a gratidão tem um "gosto de servidão". Para ele, sentir-se grato seria a expressão emocional da aceitação de uma impossibilidade de

retribuir, o que colo- caria o receptor em uma posição de inferioridade hierárquica. Receber um presente sem esforçar-se por retribuir e, além disso, demonstrar-se grata,

seria assim aquilo que, aos olhos das patroas, dramatizaria a aceitação pela empregada de seu lugar de submissão em uma relação marcada pela hierarquia.

Mas e se invertermos o ponto de vista e olharmos para essas trocas pelo ângulo das empregadas? Qual imagem dessa patroa que se autorrepresenta como "generosa" surgiria daí?

Hobbes afirma que:

Receber de alguém, a quem nos consideramos iguais, benefícios maiores do que poderíamos esperar retribuir, dispõe a um amor contrafeito, que em verdade é ódio secreto. Isto coloca um homem no estado de um devedor desesperado, que, ao evitar ver seu credor, silenciosamente deseja que ele esteja onde nunca mais possa vê-Ia. Porque os benefícios criam obrigações, e as obrigações são uma servidão, e as obrigações que não podemos quitar, estas são uma servidão perpétua, o que, para um igual, é odioso.

Citado por Miller (1993:15, tradução nossa)

Temos aqui um nuançar da experiência afetiva da gratidão, em que, em vez de uma resignação tranquila à ocupação de um lugar de dívida que expressaria uma inferioridade hierárquica, esse sentimento aparece mesclado ao ódio por ver-se relegado a essa posição. Duas histórias, contadas pela acompanhante entrevistada, permitem compreender melhor a dinâmica afetiva.

Na casa em que trabalha como acompanhante de um senhor idoso, há duas outras empregadas: a cozinheira, que está na casa há muitos anos, e a acompanhante com a qual reveza. Esta colega dera à patroa, como presente de aniversário, uma cafeteira, a qual comprara a prestações devido ao preço, muito alto em comparação com seu poder aquisitivo. A patroa, contudo, em vez de apreciar o sacrifício embutido no presente, ficara irritada e não usara a cafeteira, sequer" colocando-a sobre a cama" ao lado dos demais presentes (forma implícita de recusa), tendo mais tarde comentado com a cozinheira que a moça era "muito metida" por dar um presente

daquele valor.

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A segunda história é sobre um presente de Natal dado por essa patroa à entrevistada: uma lata de biscoitos. A entrevistada fala sobre esse presente de forma

irritada e ressentida, mencionando duas razões para seu desagrado: o baixo valor ("a gente trabalha o ano inteiro pra no final ganhar uma lata de biscoitos?") e a desatenção quanto a sua maneira de ser ("então ela não vê que eu vivo de dieta?").

Nessas duas histórias há de saída três elementos importantes para entendermos a "negociação" em que se engajam patroas e empregadas por meio dessas dádivas. O primeiro deles é que receber um presente material de sua empregada, em particular se for caro, ofende a patroa, em vez de agradá-Ia; à luz de sua expectativa de ser "paga" com gratidão, essa oferta pode ser entendida como uma reivindicação de igualdade, ferindo a regra implícita de dramatização do vínculo hierárquico que as une (aos olhos da patroa). O segundo é a recusa da empregada, por sua vez, a receber um presente: a lata de biscoitos, ao desagradar por seu baixo valor, é equiparada ao salário, como se fosse remuneração por um trabalho, e não uma dádiva. O terceiro elemento é a reivindicação, da parte da acompanhante, de ser vista como sujeito singular que tem gostos e idiossincrasias, em vez de ser encarada como

ocupante de um papel: a lata de biscoitos, ao desconsiderar sua preocupação com dietas, seria um presente de uma patroa para uma empregada, ou seja, uma troca

entre papéis sociais, e não entre sujeitos individualizados.

Se acrescentarmos ao quadro o relato da acompanhante sobre os presentes que dá à sua patroa, poderemos ver com mais nitidez o modo como essa relação trabalhista que emoldura o relacionamento entre ambas é negociada no plano afetivo. Seus presentes para a patroa são sempre os mesmos: "meias de três reais". Isso é dito com certo desprezo tingido de raiva, porque essas meias são aceitas e "colocadas sobre a cama", apesar da desvalorização de que são alvo pela própria doadora.

Ao escolher assim seu presente, essa acompanhante realiza um movimento ambivalente: conforma-se à sua posição de "inferioridade" ao aceitar entrar na relação

como aquele que pode dar menos, nesse movimento alcançando, paradoxalmente, certa igualdade ao ser recebida como "parceira" de trocas, pois seu presente é

"exposto na cama" e usado (ao contrário da cafeteira). Ao receber a lata de biscoitos, contudo, essa resignação desaparece e surge em seu lugar uma agência expressa no

plano emocional: a acompanhante não fica grata, e as "meias de três reais" não são assim exatamente uma retribuição, mas antes um revide à lata de biscoitos.

A gratidão desejada pelas patroas surge assim como um sentimento capaz de atuar no reforço dos vínculos hierárquicos, quando expresso docilmente pelas empregadas em resposta às dádivas materiais recebidas e não retribuídas. Por sua vez, essa mesma gratidão, quando negada pelas empregadas e substituída por indiferença e/ou ressentimento, é a tradução emocional da recusa em ocupar o lugar que aquela dádiva, ao não poder ser retribuída no plano material, insiste em colocá-Ias. Essa "ingratidão" teria assim um "gosto de insubordinação", realizando um trabalho

micropolítico de contestação das hierarquias sociais.

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Capítulo 4

As emoções nas sociedades ocidentais modernas

Até o momento, falamos das emoções nas sociedades oci- dentais como uma

etnopsicologia que precisa ser relativizada quando pensamos as relações entre o indivíduo e a sociedade ou entre a biologia e a cultura. Colocamos em questão nos

capítulos anteriores a necessidade de separar visões nativas dessas sociedades de um instrumental teórico para estudar as emoções nas ciências sociais. Neste último

capítulo, restringimos o foco da discussão para tomar agora essa etnopsicologia não mais como problema, mas como visão de mundo que orienta e organiza a experiência emotiva das pessoas nas sociedades ocidentais modernas.

Quando pensamos a vida em uma sociedade ocidental moderna, é comum vir à mente a imagem de massas de pessoas transitando pelas ruas de uma grande metrópole, ao lado de muitas outras desconhecidas. Nesse quadro, há frequente- mente certa pressa no ar bem como a sugestão de relativo isolamento entre as pessoas, apesar da proximidade dos corpos na rua. Programas jornalísticos de televisão recorrem sempre a imagens assim ao tratar sobre temas variados que dizem res- peito à vida nas sociedades ocidentais modernas. No cinema, os muitos filmes de Woody Allen rodados em Nova York tornaram-se exemplos clássicos com seu tratamento constante das angústias e dificuldades na construção das relações pes- soais, e das amorosas em particular, naquele contexto. O que gostaríamos de ressaltar

é que essas imagens e sentimentos são tão frequentemente apresentados na televisão e em filmes porque mostram questões significativas da experiência subjetiva em uma grande metrópole ocidental moderna.

Assim, pretendemos aqui analisar em maior profundidade alguns aspectos em torno da vivência das emoções nessas sociedades, tomando como base a obra de alguns autores. A partir de Sennett, examinaremos a tensão entre a expressão dos sentimentos e sua autenticidade, uma vez que o ato de expressá-los é visto como afetando sua qualidade. Discutiremos também a preocupação com o controle das emoções, referindo-nos para tanto aos estudos de Elias sobre o processo civilizatório e de Simmel sobre a vida na metrópole moderna. Como contraponto dessa questão, analisaremos o valor dado também ao hedonismo, pensando com os trabalhos de Duarte e de Campbell a associação entre consumo e busca de prazer. Ilustraremos a presença desses valores com a discussão da felicidade na mídia, do risco nos esportes radicais e da vivência do amor nas sociedades ocidentais modernas.

A tensão entre sentir e expressar

Já apontamos no primeiro capítulo que, na etnopsicologia ocidental moderna, a expressão dos sentimentos é vista como um domínio sujeito às regras sociais que regulam quando, como e para quem manifestar emoções. Em contrapartida, o sentimento em si seria uma reação da ordem do natural ou mesmo do biológico que pode ser distingui da das normas sociais. Seria, portanto, um fenômeno ao mesmo tempo individual, no sentido de particular a cada um, e comum a todos como seres humanos.

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Fundamental nessa visão é a concepção de que a pessoa possui uma dimensão interna e privada, que se distingue de sua apresentação pública. As emoções

localizam-se assim nessa interioridade, surgindo daí a ideia de uma distinção entre o sentimento sentido e o sentimento expresso. Essa diferenciação reproduz então aquela entre as esferas privada e pública, que, no caso das emoções, ganha uma valoração específica: o que é sentido e pensado no privado é verdadeiro enquanto o que é apresentado em público pode ser falso. Cria-se, por- tanto, uma tensão entre sentir e expressar os sentimentos, questão bem explorada no estudo de Sennett (1988) sobre o declínio do homem público.

Ele busca compreender o surgimento de uma desvaloriza- ção da vida pública, propondo também uma análise de seus efeitos sobre a subjetividade do in divíduo. O autor traça as origens desse quadro à queda do Antigo Regime na França e de processos instaurados com a formação de uma nova cultura capitalista, urbana e secular. Até então, o domínio público significava basicamente uma região da vida social separada da esfera da família e dos amigos, povoada por conhecidos e estranhos de origens sociais diversas. O foco da vida pública era a capital e era cosmopolita a

pessoa que se movimentava confortavelmente nessa diversidade social. A distinção fundamental no século XVIII entre público e privado dava-se pela separação entre as

demandas da civilidade, expressas no comportamento público e cosmopolita, e as demandas da natureza, satisfeitas pela família. Apesar de conflitantes, eram exigências que podiam se equilibrar. Nessa perspectiva, era possível interagir com estranhos de forma emocionalmente satisfatória, mantendo-se ao mesmo tempo indiferente a eles, e esse era o modo como o ser humano se transformava em um ser social. A capacidade para estar com a família e os amigos era vista como uma potencialidade natural. Assim, relacionar- se com o mundo público era uma questão de cultivo social, do aprendizado de regras de convívio, enquanto no mundo privado realizava-se o que seria da natureza do indivíduo.

Sennett identifica três fatores principais que levaram a uma mudança nesses significados em torno do público e do privado. Primeiramente, o desenvolvimento do

capitalismo industrial gerou uma pressão para uma maior privatização. que transformou a família não apenas em um refúgio idealizado como também em um

padrão moral com o qual avaliar a esfera pública, que passou a ser vista como moralmente inferior. A qualidade material da vida pública também foi afetada pela

produção em massa de roupas, de tal modo que os marca dores de classe social pela vestimenta se tornaram a princípio confusos e a diversidade de pessoas foi adquirindo uma aparência mais homogênea no mundo público. Com isso, os estranhos passaram a ser mais misteriosos e a vida pública mais incerta, contrastando então com o aconchego oferecido pela família.

Em segundo lugar, aponta para uma mudança na subjetividade em função de uma nova forma de secularização. Todas as sensações experimentadas passaram a ter estatuto de fato. Portanto, nada que provocasse sensações devia ser excluído da esfera privada de uma pessoa, tendo assim uma qualidade importante a ser descoberta. Tornou-se plausível considerar as emoções fatos em si, compreendendo-as a partir das situações em que eram manifestadas. Essa mudança teve como efeito

sobre a vida pública o esmaecimento das fronteiras entre O que era tido como pessoal e como impessoal, uma vez que todas as experiências contam igualmente. As

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aparências apresentadas na esfera pública deixaram de ter um significa- do próprio e passaram a ser vistas como pistas de uma essência interior a ser descoberta.

Por último, o autor destaca a força da sobrevivência da vida pública nos moldes do Antigo Regime, no qual aquele era o espaço de possíveis transgressões morais. Em contraste com os ideais de comportamento esperados no mundo da família, em público as pessoas experimentavam sensações distintas de outros contextos, havendo tolerância à quebra das regras de respeitabilidade. Sennett observa que essa relação com o público era distinta para homens e para mulheres, que corriam um risco moral mais significativo. Mesmo assim, a experiência de vida entre estranhos, que já era fundamental para o exercício da civilidade e para a construção da ordem social, continuou considerada importante, mas com um novo sentido. Agora, o foco era não mais o coletivo e o público, mas sim o individual e o privado - a formação da personalidade, que precisaria do contato com estranhos para se desenvolver.

Da atuação dessas três forças resultou, na visão de Sennett, uma sociedade

intimista que passou a subjugar a experiência da vida em público ao seu significado subjetivo para o indivíduo. Assim, a expressão de si na vida pública tornou-se um

problema. Antes do século XIX e das mudanças discutidas acima, expressar-se em público significava apresentar estados emotivos através de formas já estabelecidas e

padronizadas, independentemente de quem os estivesse apresentando. No presente, espera-se que a expressão seja absolutamente pessoal e idiossincrática, como parte de uma busca constante do eu. Ser1nett ressalta que não se trata de uma distinção entre o expressivo e o inexpressivo, mas entre formas distintas de transação emocional. Antes, os modos convencionais de expressar uma emoção permitiam que ela pudesse ser manifestada várias vezes, por pessoas diversas. Agora, o foco da interação deixa de ser o outro e passa a ser um trabalho incessante para descobrir o que cada um sen- te. As formas ritualizadas e convencionais de se comportar tornam-se alvo de desconfiança por não serem vistas como autênticas, além de cercearem o mergulho na descoberta de razões e impulsos internos.

Por sua vez, as expressões autênticas dessa interioridade são valorizadas,

principalmente quando acontecem em público. Como a personalidade passa a ser vista cada vez mais como algo que não é controlável, mas que tem existência e força

próprias, as emoções são vistas igualmente como reações nem sempre controláveis. As expressões de sentimentos em público são consideradas então sinal de autenticidade,

principalmente entre figuras públicas como políticos e artistas, que estariam sempre representando. Com isso, a separação entre comportamentos públicos e privados deixa de ser vista como algo controlável pelo sujeito e a linha entre o sentimento privado e sua apresentação pública torna-se fluida. Produz-se assim uma supervalorização do mundo privado e a erosão do mundo público.

Essa crise na distinção entre os domínios da vida social gera, segundo Sennett, desordens de "caráter" provocadas pela emergência do narcisismo como configuração

subjetiva predominante. A autoabsorção que o narcisismo promove, longe de ser fonte de gratificação, fere o eu, pois nada de novo o atinge. Como as interações passam a

não ter o outro como foco e sim um processo de descoberta de si, surgem sensações de falta de conexão e de vazio. As relações impessoais deixam de ter qualquer

significado, pois não são autênticas. Nesse quadro, a busca pelas motivações e intenções do outro na interação conta mais do que suas ações. Cria-se então uma

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cultura pautada no sentimento de intimidade como medida de significado de realidade.

A valorização da intenção sobre a ação pode ser bem ilustrada no filme norte-americano Denise está chamando (1995), do diretor Hall Sawen. Trata-se de um grupo de amigos que moram em Nova York que está constantemente em contato por telefone (ainda é uma época sem as tecnologias de comunicação da internet], mas que têm dificuldades de se encontrar face a face. O filme começa com os amigos se perguntando se vão à festa de uma das personagens e, embora todos digam que sim, ninguém aparece no encontro. Todos justificam que quiseram ir, mas, no último momento, não puderam compare- cer. O mesmo acontece com o enterro de uma das amigas, que morre em um acidente de carro causado por estar dirigindo e falando ao telefone ao mesmo tempo. Todos manifestam sua intenção de ir, mas não vão. Em seguida, outra personagem inicia um relacionamento amoroso com um homem que se dá apenas por telefone. Após algum tempo o namoro começa a esfriar porque um passa a desconfiar dos verdadeiros senti- mentos do outro, em função da mudança do tom da voz ao telefone. O filme termina com uma festa de ano-novo, organizada por

um dos personagens, para a qual todos se dirigem, mas acabam passando direto pela porta do edifício, sem tocar a campainha. Quando Denise, que vai à festa para também

conhecer o pai do filho que ela concebeu por inseminação artificial, aperta o interfone, não é atendida.

Embora o filme possa ser pensado sob vários aspectos, em particular o paradoxo de relações que são alimentadas pelo fio do telefone, mas não pela presença física diante do outro, o que vale a pena destacar aqui é a aceitação da intenção - e não de sua concretização - de estar junto como força motora das relações. Todas as ausências nos encontros são aceitas e não vemos no filme nenhuma reação de raiva ou desaponta- mento em relação aos outros. Mais do que agir pelo e com o outro - ir à festa que ele prepara, compartilhar a dor de sua perda com outros, e significativamente conceber um filho com o outro - importa fundamentalmente a intenção de estar com ele. A intenção é entendida como autêntica, como reveladora

dos verdadeiros sentimentos que uma pessoa tem, ilustrando assim a ênfase intimista que Sennett identifica nas sociedades ocidentais modernas.

O controle das emoções

A segunda questão que se coloca para a experiência das emoções nessas sociedades é a ideia de que o sujeito deve ter um autocontrole emotivo. Podemos exemplificar esse valor com a discussão sobre as emoções presentes durante a gravidez nas matérias da Revista da Gestante, publicação da editora Online, veiculadas nos números de 2007 (Rezende, 2008). Se a ansiedade e o medo são considerados sentimentos normais às mulheres que estão na primeira gestação, há por outro lado uma recomendação constante de que se deve bus- car um "equilíbrio" emocional. Através das dicas e conselhos da revista, o objetivo é controlar assim a intensidade da ansiedade e do medo para que se mantenham dentro de níveis "normais" e para que a

gestante se sinta tranquila.

A noção de que um equilíbrio das emoções é o ideal a ser atingido e mantido

foi analisada no estudo clássico de Elias (1993) sobre o processo civilizatório na Europa. Pela leitura dos manuais de etiqueta e bons costumes do final da Idade Média

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até o início do século XX, Elias examina as mudanças nas regras em relação ao corpo e às emoções que promoveram uma padronização do "aparato psicológico", como ele

denomina, articulando-as a transformações mais amplas na organização social. São duas as principais forças atuando na formação da configuração social presente nas primeiras décadas do século XX: a diferenciação cada vez maior de funções sociais e o monopólio pelo Estado do controle da violência.

A crescente diferenciação das funções sociais gerou uma maior interdependência entre as pessoas. Como consequência, o comportamento de cada indivíduo passou a ser ajusta- do em relação ao dos outros, criando assim a necessidade de um controle de si mais uniforme, mais estável e mais amplo. A preocupação com a consequência de cada ato tornou-se elemento constante das interações, reforçando, portanto, as exigências de manter o autocontrole. Embora o processo de desenvolvimento desse controle afete diferentemente pessoas com funções distintas, ele se dissemina por todos os setores da sociedade. Se, nos séculos anteriores, a fonte de controle do comportamento vinha principalmente de fora, de pessoas geralmente em situação social superior ou equivalente, que avalizavam ou

recriminavam as ações, gradualmente desenvolveu-se um autocontrole internalizado e automatizado.

Por sua vez, o monopólio da força física pelo Estado, bem como a estabilidade de suas instituições centrais, favoreceu também a contenção emocional como traço psicológico significativo. Se nos séculos anteriores as disputas eram resolvidas de forma mais individualizada, o uso da violência torna-se restrito aos aparatos de força do Estado, criando a necessidade na pessoa de reprimir impulsos de agressão ao outro. As ameaças físicas ao indivíduo foram gradativamente tornadas impessoais, de modo que, segundo Elias, a vida tornou-se menos perigosa.

O resultado dessas forças sobre o indivíduo é um auto- controle constante que

leva a uma moderação dos afetos. A estrutura psicológica passa a estar dividida em uma parte consciente e controladora e outra inconsciente e impulsiva. Com a

contenção dos impulsos passionais, as emoções ficam menos intensas. A percepção das pessoas e das coisas torna- se mais neutra em termos afetivos, determinada

menos por medos ou desejos e mais pela observação direta do comportamento humano.

O uso da observação de si e do outro integra dois processos destacados por Elias: a racionalização e a psicologização dos comportamentos. A contenção emotiva e

a necessidade de ajustar a conduta em função dos outros e de suas possíveis consequências produz uma forma cada vez mais racionalizada de agir. Nela, a

dimensão de planejamento e cálculo se destaca não apenas no modo como o sujeito se comporta, mas também na maneira como ele lida com a conduta dos outros. Desenvolve-se uma visão psicologizada dos indivíduos, que contribui também para a

previsão de comporta- mentos. Do mesmo modo que a pessoa adquire consciência de seus impulsos e motivações no processo de controlá-los, passa também a perceber o

outro de modo similar, com nuances mais ricas. Assim, Elias afirma que a reflexão contínua, a capacidade de prever e calcular, a regulação precisa de sua própria

conduta, bem como o conhecimento de todo o contexto de ação tornam-se condições indispensáveis de sucesso na vida social.

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O controle dos outros tem sua contrapartida interna. Se a racionalização é uma forma de observar e monitorar o comportamento do outro surgida com o processo

civilizatório, os sentimentos do medo (discutido no capítulo 1) e da vergonha tornam-se meios de incutir a autorregulação. De um modo geral, essa emoção remete a uma preocupação com a transgressão de normas que pode levar a uma degradação social diante de outros. Ao longo do período que Elias analisa, o limiar de vergonha se expandiu muito e mudaram as regras às quais o sentimento se refere. Segundo ele, o sentimento de vergonha está estreitamente articulado à estrutura social. Tomando o exemplo das atitudes diante das funções naturais do corpo, Elias mostra como a exposição do corpo em público foi passando por um processo de isolamento crescente, acompanha- do igualmente por mudanças na arquitetura das residências que adquiriram um espaço reservado para os cuidados corporais. Se no século XVI a vergonha da exposição do corpo surgia apenas na companhia de algumas pessoas de posição social igualou superior, as funções naturais do corpo vieram a ser no século XX objeto de controle constante diante de to- dos e de vergonha a ponto de não se falar sobre o assunto.

Assim como o corpo, as emoções passam a ser foco de um controle estrito regulado pela possibilidade da vergonha. Esse sentimento agora se vincula a uma

ansiedade e um medo de que o indivíduo perca o controle dos impulsos e emoções que devem ser contidos. Se antes a fonte de repressão dos impulsos era externa - pessoas e manuais de etiqueta -, agora é interna. Essa divisão da personalidade em uma parte controladora e outra impulsiva produz uma tensão interna e é dela que surge a vergonha, que se reporta menos à opinião social concreta do que à sua internalização. É a possibilidade de uma crítica ou repreensão, e não seu acontecimento de fato, que aciona a vergonha. Assim, é em função desse conflito interno que o indivíduo se reconhece como inferior e indefeso diante dos gestos dos outros.

Todos esses processos psíquicos e afetivos contribuem para a formação de uma estrutura psicológica particular, na qual Elias identifica alguns problemas. A educação

das crianças no presente passou a ter que incutir desde cedo e em poucos anos um controle sobre o corpo e sobre os afetos que os indivíduos desenvolveram em vários

séculos. O grau de tolerância aos "maus comportamentos", principalmente em relação à etiqueta em torno do corpo, diminui muito, de forma que eles tendem a desaparecer

muito cedo. A criança que não atinge o nível de controle emocional esperado é vista como "doente", "anormal", "impossível", marcando o tipo de vida que poderá ter.

Além disso, como o impulso de sentir prazer com certas funções corporais deve desaparecer da consciência do adulto, o prazer torna-se mais secreto e privado. A própria fruição de certas emoções é deslocada para o plano da fantasia e para o consumo de livros e filmes (aspecto que será discutido mais adiante com o trabalho de Colin Campbell). Esses conflitos internos em torno do controle dos impulsos e sentimentos produzem, na opinião de Elias, uma dificuldade de vivência afetiva, que por sua vez gera distúrbios de comportamento, compulsões e excentricidades. Se a vida torna-se menos perigosa, torna-se também menos prazerosa e essa é uma das cicatrizes deixadas pelo processo civilizatório na visão de Elias.

A vida em uma metrópole revelaria de forma ainda mais aguda algumas dessas tensões na subjetividade do indivíduo. Em sua análise seminal, Simmel (1987) examina

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os tra- ços mentais que compõem um morador de uma metrópole no início do século xx, com aspectos que se aproximam da leitura de Elias sobre as sociedades ocidentais

modernas. Ele destaca que a base psicológica da individualidade metropolitana assenta-se na intensificação da demanda colocada sobre a vida emotiva em função da mudança contínua de estímulos externos. Como consequência, os indivíduos desenvolvem mais as reações racionais, como uma forma de proteção interna à diversidade e descontinuidade externas. Já nas cidades pequenas, o ritmo de vida é mais lento e uniforme, permitindo relações mais pautadas na afetividade.

A predominância do racional na metrópole é também alimentada por duas características sociais que Simmel considera marcantes da metrópole moderna: ser sede da economia monetária e possuir uma alta divisão de trabalho. O primeiro fator estimula um comportamento mais calculista, dominado pelo intelecto. Há também necessidade de precisão e pontualidade nas interações, de maneira a permitir a boa integração da diversidade de atividades decorrente da divisão do trabalho. Tal precisão, por sua vez, exige a contenção dos impulsos irracionais. Além disso, o poder nivelador do dinheiro valoriza o que é comum a todos, sendo, portanto, indiferente às

individualidades. Decorre então uma forma de interagir altamente impessoal que lida com os outros de modo uniforme e distanciado.

Outro aspecto relacionado a essas características e particularmente típico da metrópole é a atitude blasé. Esta se desenvolve como uma dificuldade de reagir emocionalmente à rapidez nas mudanças dos estímulos externos. Sua essência é uma indiferença às distinções entre as coisas, que têm para o indivíduo uma aparência homogênea e superficial, sem densidade. Nesse sentido, Simmel associa a atitude blasé também ao poder nivelador do dinheiro, que reduziria tudo a um denominador comum.

De forma semelhante à atitude blasé, encontra-se nos habitantes da metrópole uma atitude de reserva diante dos contatos com as pessoas. É também uma reação de

autopreservação diante da quantidade de estímulos externos, evitando um estado de "atomização interna". A experiência subjetiva da reserva seria não apenas indiferença

aos outros, mas até mesmo certo estranhamento e aversão a eles, que em alguns casos pode acarretar ódio e conflito. Está também associada ao sentimento de solidão,

que contrasta com a proximidade dos corpos na metrópole.

Por outro lado, essa reserva promove um sentimento de liberdade individual.

Este traço, como argumenta Simmel, é uma forte tendência na evolução da vida social na medida em que as sociedades crescem, perdem a coesão estreita dos pequenos grupos e desenvolvem uma divisão especializada do trabalho. Com um controle social mais relaxado e com o desenvolvimento das necessidades da vida pública, a vida subjetiva é mais desenvolvida no sentido de acentuar as singularidades de cada um. Há também esforços contínuos de se diferenciar e chamar atenção sobre a individualidade que podem produzir excentricidades e extravagâncias, típicas das

grandes cidades.

Assim como Elias, Simmel também identifica problemas no surgimento dessas

formas mentais e das relações sociais que elas engendram. Por um lado a metrópole permite obser- var os dois tipos de individualismo desenvolvidos nos séculos XVIII e

XIX, que enfatizam respectivamente, os valores da liberdade e igualdade entre os indivíduos, bem como a valorização da diferenciação e da singularidade de cada um.

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Por outro lado, há nela um forte descompasso entre as realidades subjetiva e objetiva. A vida subjetiva não consegue se desenvolver no mesmo ritmo da objetiva, levando às

características mentais da impessoalidade, da atitude blasé e da reserva diante da profusão de estímulos externos. A cultura objetiva, com toda a sua diversidade, acaba sendo desvalorizada por atitudes que a captam somente em função de seus denominadores comuns.

Portanto, a tônica da formação subjetiva típica nas sociedades ocidentais modernas é, segundo esses autores, uma contenção constante dos impulsos e das emoções. Embora ambos considerem os sentimentos pulsões naturais, que to- dos os seres humanos possuiriam, sua expressão é certamente regulada pela sociedade e pela época em que vivem. Assim, em função de transformações sociais mais amplas, como a crescente divisão social do trabalho, a economia monetária e o monopólio da força pelo Estado, surgiu a necessidade de ações coordenadas que implicariam reações mais racionais, pouco afetivas. A metrópole condensa e aguça esse traço de controle emotivo, criando atitudes particulares como a reserva e a postura blasé nas interações sociais.

A ênfase hedonista no prazer

O hedonismo é outro valor também presente nas sociedades ocidentais modernas, existindo em tensão com a tônica da contenção emotiva. A valorização do prazer assume for- mas diversas nas sociedades ocidentais modernas e se revela com nitidez em práticas de consumo, como as atividades esportivas, de lazer e a relação com a mídia. Para entender essa ênfase na vivência do prazer, apresentamos o ensaio de Duarte (1999), que recupera alguns aspectos de sua origem romântica e introduz algumas de suas feições contemporâneas, fazendo uma ponte com o estudo de Campbell (2001), ao qual recorremos para analisar a articulação entre hedonismo e consumo.

Duarte argumenta que há, nas sociedades ocidentais modernas, uma forte valorização dos sentidos. Associado a uma concepção de sujeito particular a essas

sociedades, existe um "dispositivo da sensibilidade" que teria se desenvolvido entre os séculos XVII e XVIII. Ele é pautado em três ideias fundamentais e articuladas em torno do sujeito e de sua relação com o mundo: a perfectibilidade, a experiência e o fisicalismo.

A perfectibilidade se traduz na ideia iluminista de que a espécie humana possui a capacidade de se aperfeiçoar constante e indefinidamente. O pressuposto desse argumento e a noção de que o ser humano é um ser de razão, portador de uma "verdade" situada em seu "interior" e esteio de sua "vontade".

Para que se desenvolva a perfectibilidade, é preciso estar em relação com o

mundo exterior. A experiência do mundo com os "sentidos" torna-se assim o meio de aperfeiçoar a razão humana. Nessa proposição, a ideia de "sentido" é crucial, pois ela

está tanto na raiz da razão quanto da emoção. Os "sentidos" são tomados como "veículo de instrução das atividades da mente" e também" de articulação das relações

humanas" (1999:25). A experiência é então ao mesmo tempo um fato cognitivo e emocional.

O fisicalismo, terceiro tema discutido por Duarte, está também implicado nos outros dois. Trata-se de uma concepção de sujeito que surge da separação entre corpo

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e espírito e que vê na corporalidade uma lógica própria. Assim, busca-se descobrir essa lógica para compreender suas implicações para a condição humana. Com novas formas

de pensar o funcionamento do corpo desenvolvidas no século XIX, em particular do sistema nervoso, surge a noção de uma sensibilidade que é ao mesmo tempo "fisiológica" e também "sentimental". Como esta última conotação é mais englobante, supõe-se que "as afecções do espírito são ao mesmo tempo dependentes e autônomas do 'substrato' nervoso" (p. 26).

Estruturando, portanto, esse "dispositivo de sensibilidade" estão os três temas articulados, que produziram na visão de Duarte uma exploração sistemática do corpo humano como foco de uma busca incessante de exacerbação da sensibilidade e de intensificação do prazer. Desse processo de valorização de novas experiências sensoriais desenvolveram- se estratégias de maximização da vida, como nas várias especialidades da medicina, e de otimização do corpo, como o consumo de drogas legais e ilegais. Com elas, revela-se uma tensão entre dois conjuntos de valores: o investimento na duração e preservação da vida, para o qual a contenção emotiva é elemento importante, e a aposta na vivência da intensidade em curto prazo, marca da

ênfase hedonista.

Essa ênfase vai adquirir matizes específicos no século XX, na leitura de

Campbell (2001), se em comparação com outras épocas. A forma "autoilusiva" característica do presente, que se deve em muito ao papel da mídia na estimulação do consumo, diferencia-se do hedonismo de outras épocas, que ele chama de tradicional. Em ambas as formas, há em comum o elemento de desejo e antecipação de um acontecimento que produz prazer. No modo tradicional, esse desejo vem das imagens da memória de uma experiência já vivida como prazerosa. No hedonismo moderno e autoilusivo, o desejo surge de uma qualidade antecipada de prazer de uma experiência que ainda não foi vivida. Se na primeira forma a novidade pode ser vista com desconfiança, na atual ela é motor do desejo.

No hedonismo autoilusivo, os indivíduos consomem principalmente imagens mentais pelo prazer que elas proporcionam. Campbell distingue três formas de

imaginação. A fantasia é a imagem que se cria sem ajustes em relação ao real e que se permite pelo prazer oferecido. Do lado oposto esta a antecipação, a imagem que se

conforma estreitamente a experiência. Como meio-termo, temos o devaneio, foco de análise do autor, que se pauta em imagens de acontecimentos futuros ajustadas ao

real, mas que se permitem ser agradáveis. Haveria assim nesse hedonismo uma tensão entre os prazeres da perfeição que vêm da fantasia e aqueles da realidade potencial que o devaneio proporciona.

Campbell (2001: 126) argumenta que o devaneio se coloca como um hiato entre o desejo e sua consumação. E um "estado de desconforto desfrutável". Por isso, o devaneio acaba se tornando uma experiência mais prazerosa do que o consumo de fato, que desencanta ao colocar diante do sujeito um objeto real com características

não imaginadas no sonho. O ato de devanear constantemente produz um afastamento contínuo da realidade, uma vez que os devaneios levam sempre a no- vos objetos de

desejos, que por sua vez, ao serem consumi- dos, serão novamente decepcionantes por distinguirem-se da imagem sonhada. O anseio como um desejo sem foco, que não

tem um objeto que possa realizá-lo, e a insatisfação tornam-se estados emocionais permanentes.

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Por outro lado, são esses estados emotivos que motivam o consumo. Novos produtos acenam com o prazer idealizado no devaneio, que não pode mais ser

esperado dos produtos já conhecidos e consumidos. A apresentação de um produto como "novo" permite ao consumidor em potencial projetar nele um pouco do prazer imaginado, oferecendo assim a possibilidade de que esse desejo se concretize. Por isso Campbell (2001:132) afirma que o espírito do consumismo moderno não é materialista, pois é calcado na ideia de que "a ilusão é sempre melhor do que a realidade" .

Em função disso, o autor propõe, os produtos são menos importantes do que sua representação. A capacidade de fantasiar se pauta mais no consumo de imagens do que dos objetos em si. É por isso que a propaganda se torna tão imprescindível para o consumo, já que é ela que se dirige ao devaneio associando o produto a certos sonhos e assim despertando o desejo. Revistas, catálogos comerciais, anúncios e cartazes são importantes, pois oferecem imagens que podem ser "desfrutadas", assim como um romance ou um filme. Campbell argumenta inclusive que a satisfação sensorial obtida com filmes, peças, programas de televisão e de rádio, discos e quadros

não é tão importante quanto o que eles podem oferecer em termos de imagens para a elaboração dos devaneios.

Em resumo, Campbell (2001:115) destaca que o hedonista moderno é um "artista do sonho" que tem capacidade de obter prazer das emoções despertadas por estas imagens. Sua qualidade é "a aptidão de criar uma ilusão que se sabe falsa, mas se sente verdadeira". Os indivíduos reagem subjetivamente a essas imagens e devaneios como se fossem reais. Porém, como se afastam de fato do real, com necessidades e desejos que não são satisfeitos, sentem-se permanentemente frustrados.

Baseados em Duarte e Campbell, podemos dizer, portanto, que a busca do prazer é um valor que orienta o comporta- mento nas sociedades ocidentais modernas. A exploração dos sentidos como meio de experimentar o mundo é o

alicerce de diversas práticas como apontou Duarte. É, em particular, a mola propulsora do consumo, na visão de Campbell, que, entretanto, adverte para a insatisfação

permanente que ele produz ao desencantar o devaneio. A valorização do prazer torna-se então um eixo que estrutura a experiência emotiva nessas sociedades, coexistindo

com a ênfase na contenção emotiva já discutida.

Controle e prazer combinados: dois exemplos

Muitas vezes o valor dado ao controle das emoções entra em choque com a busca do prazer, que tende a estar associado à intensidade das sensações. Mas encontramos também situações nas quais se pretende alcançar o prazer e a satisfação através de medidas de controle de si e de planejamento. Ilustramos essa combinação

com dois exemplos de esferas distintas: o foco dado à felicidade na mídia e a vivência do risco nos esportes radicais.

A felicidade tornou-se um sentimento a ser alcançado sempre, nas sociedades ocidentais modernas. De acordo com Bruckner (2002:58), há mesmo um imperativo da

felicidade, que deixa de ser apenas um direito para se tornar um valor moral. Nesse contexto, "prazer, saúde, salvação se tornaram sinônimos, pois o corpo passou a ser o

horizonte inexcedível, mas, sobretudo, se tornou suspeito não se sentir radiante". Para conquistar esse estado, desenvolve-se uma forte indústria que coloca ao alcance dos

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indivíduos receitas de várias ordens com o objetivo de chegar à felicidade. Em todas elas, o pressuposto é a noção de que este fim pode ser atingido por todos por meio de

um "condicionamento positivo", de disciplina pessoal.

A constituição de um imaginário sobre a felicidade nas sociedades ocidentais modernas está estreitamente relacionada à mídia, como argumenta Condé (2007). Por um lado, o consumo dos meios de comunicação de massa oferece não apenas alimento para a elaboração de devaneios, nos termos de Campbell, como também pode ser em si uma experiência prazerosa. Além disso, os próprios produtos da mídia também colaboram para a construção da noção de felicidade. Vários o fazem, como a tradição de filmes com final feliz, já mencionada no capítulo 2. Gostaríamos aqui de discutir outra produção discursiva de massa: a "imprensa conselheira" analisada por Condé (2008).

A "imprensa conselheira" é constituída por uma diversidade de materiais jornalísticos que oferecem "conselhos", "receitas" e "dicas" para uma variedade de

questões práti- cas da vida. Condé argumenta que, nesse tipo de discurso, a felicidade é, de um modo geral, um tema presente como a orientação dominante das prescrições

apresentadas. Mesmo que nem sempre de forma explícita, o foco na felicidade se apresenta nas receitas para a satisfação de necessidades materiais, bem como para a

conquista de um estado subjetivo de bem-estar.

O ponto interessante dessa análise é que o meio de atingir a satisfação e o prazer que levam à felicidade implica atitudes pautadas no valor do controle das emoções. Recorrendo às reportagens de uma revista desse gênero de imprensa, Condé apresenta como uma das formas de se alcançar a felicidade aí proposta o contato com emoções consideradas "negativas" - medo, raiva, tédio -, aliado à sua compreensão para que, uma vez conhecidas, possam ser controladas. Há também a ideia de que para conquistar "realização pessoal" é preciso planejamento e moderação. O que sobressai dessas matérias é uma concepção "pacificada" de felicidade, como Condé a

de- nomina, pautada no equilíbrio das emoções, na experiência comedida longe da plenitude e do prazer intenso de momentos passageiros.

Outro caso que ilustra bem a combinação da busca do prazer e da intensidade com alguma medida de controle é a vivência de risco presente nos esportes radicais.

Rocha (2008) discute o modo como a própria noção de risco é definida de modo diferente por sociedades e épocas distintas. Correr risco é uma escolha individual

pautada por valores e significados culturais sobre o que é arriscado e provoca medo e o que não é. O risco refere-se a uma norma específica que está posta em questão, pondo em evidência valores centrais à constituição da sociedade. Assim, Bocha argumenta que a mesma sociedade que produz a segurança como um bem coletivo tende a conceber o risco como escolha puramente individual, quando de fato está operando com significados culturais.

No caso dos praticantes da modalidade esportiva estudada por Rocha - o base

jump -, buscar o risco envolve uma opção por um estilo de vida pautado na "emoção". Os base jumpers saltam de estruturas fixas construídas (edifícios e pontes) e naturais

(montanhas e penhascos) e acionam o paraquedas após certo período de queda livre. São várias as emoções sentidas no processo de saltar: o medo que antecede salto, a

liberdade de planar e a alegria de pousar. O risco e medo são considerados experiências positivas, pois permitem mostrar a superação de desafios, a coragem e a

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capacita- ção dos praticantes. Para eles, a proximidade com a morte em cada salto constitui uma oportunidade de exaltar e transformar a vida.

Neste sentido, o risco envolvido no esporte tem ressignificado os termos de uma acepção negativa mais corrente no senso comum, para adquirir um sentido positivo, como mostra Rocha. Possibilita assim um afastamento da "morte em vida", que caracteriza, para esses praticantes, o cotidiano da vida "comum". Este é percebido como tedioso, sem emoções, sem vida. Praticar o base jump seria, portanto, uma forma de se afastar da morte simbólica, ainda que se aproxime da mor- te natural. Com a preparação técnica para o salto e a presença de coragem e audácia, há a possibilidade de vivenciar o risco de maneira mais controlada em busca da excitação e do pra- zer associados a uma visão romântica do sujeito e da vida.

Autenticidade, prazer e controle: amor nos tempos modernos

Os valores do controle emotivo e da busca do prazer podem estar também

articulados à ênfase na autenticidade. Essa articulação é encontrada na forma como são vividas as relações amorosas nas sociedades ocidentais modernas. Já abordamos o tema no capítulo 2, ressaltando como a experiência amorosa coloca em questão a relação entre indivíduo e sociedade. Destacamos, a partir de alguns textos, como a ideologia individualista, com sua ênfase na autonomia individual perante grupos sociais mais inclusivos, marca a noção moderna de amor, sentimento que paradoxalmente é visto como tendo uma origem sobredeterminada, cósmica. Nesta seção, vamos redirecionar o olhar para o modo como os valores discutidos até agora informam a subjetividade e a vivência das relações amorosas, recorrendo principalmente aos estudos de Bauman (2004) e Giddens (2002).

Bauman (2004) discute como as relações amorosas na modernidade são

tratadas como um investimento. Segundo ele, o relacionamento ganha ares de um "negócio", no qual cada pessoa entra com tempo e esforço e espera o "lucro", que

seriam a gratificação e a segurança. Porém, a necessidade de estar sempre monitorando a relação produz também uma incerteza permanente. Se o

relacionamento pode diminuir a insegurança que vem da solidão, cria também novas incertezas. Comprometer-se, portanto, se torna uma "faca de dois gumes". Como consequência, manter ou acabar o "investi- mento" passa a ser uma questão de cálculo e decisão.

Bauman identifica nas relações amorosas a mesma ambivalência que encontra de forma ampla no que ele chama de "modernidade líquida". Há o desejo de segurança que vem com os compromissos com os laços sociais , ao mesmo tempo em que há a vontade de ser livre e independente para fazer escolhas. Nas relações amorosas, o compromisso atrai por oferecer confiança e segurança, mas assusta e

inquieta por com- prometer a liberdade individual. Diante das ambivalências em torno destes vínculos, Bauman chama também o amor de "líquido".

Por isso, os relacionamentos amorosos tendem a ser reduzidos ao modo" consumista", que exige satisfação imediata e no qual "o valor exclusivo, a única

'utilidade', dos objetos é a sua capacidade de proporcionar satisfação" (2005:70). Uma vez interrompida a satisfação, não há por que manter a relação. Nesse contexto,

muitos preferem as "relações de bolso", discutidas por Bauman. Por serem relações de curta duração, instantâneas e disponíveis, permitem que a pessoa esteja no controle

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da situação. Para que elas funcionem, deve-se entrar na relação de forma consciente e "sóbria", evitando deixar-se arrebatar por fortes emoções. Nelas, a emoção do amor

não deve estar presente, pois, como diz Bauman, esse sentimento implica abertura ao destino e a liberdade que se incorpora no outro. Em sociedades consumistas. que favorecem produtos prontos, satisfação instantânea e garantida e poucos esforços, as "relações de bolso" destacam-se por sua conveniência.

Com tom mais positivo, Giddens (2002) apresenta uma análise detalhada da relação amorosa a partir de sua discussão da "relação pura", um tipo ideal que marca as relações pautadas na intimidade sexual e as amizades. O principal traço distintivo da "relação pura" é o fato de ser escolhida a partir de uma diversidade de possibilidades. Embora as condições de vida limitem o grau de liberdade de escolha, a pluralidade de possibilidades existente permite que o indivíduo se afaste de modelos tradicionais de relação e constitua laços nos moldes da "relação pura".

Na modernidade tardia, como Giddens denomina, esse tipo de relação torna-se

extremamente significativo para o projeto reflexivo do eu. Ou seja, o eu é visto como um projeto pelo qual o indivíduo é responsável e em função do qual age

reflexivamente. No processo de construção dessa autoidentidade, busca-se manter uma trajetória coerente em termos de passado, presente e futuro, auxiliada pela

elaboração de uma narrativa explícita sobre o eu. O corpo é um elemento importante desse projeto identitário, que integra um sistema de ação e de monitoramento consciente das sensações e dis- posições corporais. O fio condutor do projeto de autoidentidade passa a ser o valor moral da autenticidade, que exige a distinção entre o falso e o verdadeiro eu. Nesse quadro, portanto, as relações puras tornam-se escolhas realizadas por um indivíduo que age reflexivamente, buscando ser coerente e verdadeiro consigo mesmo.

Giddens discute alguns traços que caracterizam a "relação pura". Em contraste com os laços pessoais em contextos tradicionais, a "relação pura" não é ancorada nas

condições externas da vida social e econômica. Ao contrário, é iniciada e mantida pela satisfação emocional que oferece. É justamente a motivação pautada no que a relação

pode prover que a torna "pura", uma vez que nenhum critério externo a ela a sustenta.

Como substituto das âncoras externas, ele argumenta que o compromisso de

ambas as partes com a relação passa a ter um papel fundamental na sua sustentação. Embora o sentimento do amor possa alimentar o compromisso, é a decisão de cada

um de se comprometer que conta fundamentalmente. A pessoa comprometida está preparada para aceitar os riscos envolvi- dos na escolha por aquela relação específica, em detrimento de outras. Nesse sentido, a reciprocidade e a sintonia mútua em termos do compromisso são imprescindíveis à "relação pura".

A intimidade e a confiança são também elementos centrais desse tipo de

relação. O foco dado à intimidade contrasta com a predominância das formas impessoais de interação na esfera pública. Desse modo, a intimidade, como um

equilíbrio entre a autonomia individual e o compartilhamento de emoções e experiências, torna-se valorizada e medida de estabilidade da relação em longo prazo.

Para criar intimidade, é preciso ter confiança para se expor ao outro, de forma que cada um passe a conhecer o outro verdadeiramente. A autenticidade retorna aqui

como valor moral, no qual se baseia a conquista da confiança e o desenvolvimento de intimidade entre as partes de uma "relação pura".

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Além dos elementos citados, a dinâmica de manutenção da "relação pura" é calcada em um questionamento reflexivo e contínuo, tendo como eixo a indagação

"está tudo bem?". Tal questionamento constitui parte central da própria relação, podendo também gerar tensões ao buscar o equilíbrio e a reciprocidade entre ambas as partes. No processo de escrutinizar em cada um os sentimentos diante da relação, são examinadas e negociadas também as autoidentidades de ambas as partes. O movimento de monitoração constante de si e da relação tem como objetivo buscar sempre o que é autêntico para cada um, o que no caso da "relação pura" está associado à satisfação emocional.

Tanto Bauman quanto Giddens ressaltam a força dos ele- mentos da escolha e da busca da satisfação pessoal nas relações amorosas. Ambos estão baseados na ideia de que o indivíduo constrói relações que são "verdadeiras", pois permitem expressar sua interioridade de modo autêntico. Para que sejam verdadeiras, prazerosas e satisfatórias, é necessário um controle e monitoramento sistemático de cada um na relação. A vivência das relações amorosas nesses moldes ilustra a articulação dos valores da autenticidade da expressão de si, do controle emotivo e da ênfase no prazer

e na satisfação característicos das experiências emotivas nas sociedades ocidentais modernas.

Conclusão

A paciência é difícil, pois meu coração ainda está tão ferido ...

Imaginei, oh querida, que a distância

Seria a cura mas só fez piorar. ..

Esses poemas de amor foram recitados por um jovem beduíno, Fathalla, que

havia se apaixonado por sua prima e desejava se casar com ela. Os pais dos jovens concordaram a princípio com o casamento, mas depois entraram em discussão, de

forma que o pai da moça se recusou a dar a mão da filha ao .rapaz. Como forma de esquecê-Ia, Fathalla partiu para a Líbia, enquanto a jovem teve seu casamento arranjado com outro rapaz. Quando Fathalla soube da notícia, compôs e gravou os

poemas e enviou a fita cassete para sua amada. Já casada, ela ouviu a fita e, quando terminou, desmaiou e morreu.

À primeira vista, essa história contada por Abu-Lughod (1990) parece sugerir que e amor é um sentimento universal, algo que todos podem sentir como seres

humanos. Ao mesmo tempo, parece ser também uma experiência absolutamente individual e singular, distinta daquilo que outros sentem e com tamanha intensidade

que pode mesmo matar, como nesse caso do amor frustrado entre jovens beduínos e também na tragédia de Romeu e Julieta que discutimos no capítulo 2.

Contudo, Abu-Lughod nos conduz a outras conclusões.

Sim, a poesia de Fathalla expressa o sentimento de amor, que curiosamente, porém, não está presente nas conversas cotidianas sobre relações amorosas. Ao contrário, a distância marca as relações entre homens e mulheres nessa sociedade e casais demonstram pouco o cuidado ou a atenção um com o outro. No cotidiano, predominam os sentimentos de modéstia e vergonha - visíveis na forma de vestir e na postura corporal que implicam uma negação da sexualidade - que uma pessoa correta

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e boa deve sempre apresentar. A deferência aos outros que a modéstia expressa é um valor moral funda- mental, alicerce das relações de poder entre homem e mulher e

entre os mais velhos e os jovens.

O amor como base da união entre um homem e uma mulher é claramente preterido em função dos casamentos preferenciais entre primos, que reforçam os elos de parentesco do grupo patrilinear que estrutura a sociedade beduína. É em função dessa estratégia de reprodução que o sentimento de modéstia é tão valorizado, pois nega o interesse sexual e afirma a deferência à autoridade dos patriarcas. Neste sentido, o sentimento de amor é considerado sem modéstia e desafiador, pois pode ir contra os interesses e a ordem estabelecidos.

Como então entender a poesia de amor? Seria um senti- mento reprimido e subversivo? Abu-Lughod diz que não. As poesias amorosas fazem parte de um gênero -

as ghinnawa - muito apreciado e recitado em ocasiões festivas e também em conversas corriqueiras com pessoas proximas. São particularmente contadas e

cantadas por mulheres e jovens, mas ocasionalmente também por homens mais velhos. Essas poesias falam de sentimentos que expressam um conjunto de valores

igualmente importante para um grupo tribal que já foi nômade, como os beduínos: a autonomia e a liberdade, que, entretanto, existem em contradição com a deferência

dada à autoridade masculina tradicional. Neste sentido, Abu-Lughod argumenta que as poesias amorosas tornam-se um discurso de desafio e resistência aos ideais da vida social beduína, e são valorizadas como tal. Por isso a história de Fathalla emocionava, pois mostrava o que o abuso de poder pode acarretar.

Assim, o amor na sociedade beduína é expresso segundo um tipo particular de discurso: as poesias amorosas. Nesse contexto, a expressão do sentimento é valorizada não apenas por falar do desejo de união entre duas pessoas, mas também por declarar a importância da autonomia dos indivíduos. Com as mudanças econômicas no Egito que, desde a década de 1980, vêm afetando o estilo nômade dos beduínos. os jovens

rapazes têm estado cada vez mais sob autoridade dos patriarcas, fazendo com que recorram mais às poesias amorosas, agora gravadas em fitas cassetes, como forma de

protesto. Assim, muitas vezes a poesia era recitada por mulheres casa- das que tinham sua liberdade tolhida, bem como por jovens que queriam reclamar do poder

econômico e político de seus pais e tios. Ou até mesmo pelo anfitrião da pesquisadora, que tocou para ela a fita do poema ao levá-Ia ao aeroporto para se queixar do fato de

que ela os deixava ao retornar aos Estados Unidos. Em outros momentos, contudo, manifestavam-se a modéstia e o recato, negando-se qualquer sentimento de interesse ou atenção peio outro.

No final, descobrimos que a prima amada de Fathalla não morreu de amor e vive casada com seu marido. O que Abu-Lughod sugere é que, mais do que tomar o poema como uma expressão de um sentimento de amor não realizado, frustrado, sua apresentação em um contexto particular revela as tensões relativas às pessoas e

relações específicas presentes naquela situação. Ou seja, mais do que expressar estados internos que se mantêm indiferentemente do contexto de interação, o poe-

ma de amor é um discurso emotivo que, ao ser colocado para um grupo de pessoas, pode dramatizar ou alterar o estado das relações em questão, demonstrando assim o

potencial micro- político das emoções que discutimos no capítulo 3.

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Nessa história podemos reencontrar os principais pontos abordados ao longo do livro. A tensão entre a universalidade de sentimentos ditos "naturais" e sua

susceptibilidade aos contextos culturais pode ser reconhecida em uma espécie de "dupla moral" desta história: mesmo que o amor seja encontrado em todos os lugares, não se ama ou expressa esse sentimento sempre da mesma forma, e, principalmente, não se dá a ele sempre o mesmo lugar na constituição dos vínculos sociais, evidenciando a particularidade histórica e cultural dessa estreita associação que o Ocidente moderno realizou entre amor e casamento.

A segunda tensão que apontamos como constitutiva do campo da antropologia das emoções é evidente aqui também, mostrando como as experiências subjetivas estão atreladas a gramáticas culturais. Desvendar esses códigos ilustra um problema central de toda teoria social: como dar conta do hiato entre as percepções "nativas" e a visão do observador. Esse dilema é expresso aqui sob a forma de um "drama" típico engendrado pela ideologia individualista ocidental: a afirmação da singularidade das experiências afetivas, contradita por sua evidente recorrência sob a forma de padrões claramente identificáveis.

Em meio a esses padrões, a "codificação" das formas afetivas não se restringe aos afetos sentidos, mas também à sua expressão. Se falar de amor parece ser hoje um

imperativo moral, com o apaixonar-se livremente sendo uma experiência idealizada em inúmeras produções discursivas contemporâneas, dos livros de autoajuda às narrativas cinematográficas, essa pequena fábula antropológica mostra a particularidade histórica e cultural dessa" compulsão" em falar de amor. Entre os beduínos, falar de amor sob outra forma que não as ghinnawa é imodéstia, falta moral grave, e não sinal de saúde mental, de "liberação" dos afetos, como em tantos discursos contemporâneos que equacionam o bem-estar psíquico à possibilidade de expressão dos sentimentos.

Finalmente, a história de Fathalla serve também para mostrar a natureza

micropolítica dos sentimentos, com a atribuição de um caráter perigoso e subversivo ao amor, por sua possibilidade de desafiar hierarquias vigentes que encontram nas

regras matrimoniais um campo fecundo de atuação. Serve ainda para mostrar o uso que os discursos sobre as emoções podem ter em contextos específicos. Nessa

história, não interessa apenas o que Fathalla sentia por sua noiva ou o lugar dessa história no imaginário beduíno, mas também o que aquele que a narra está dizendo

para seu interlocutor ao escolher contar-lhe a história. É também para essa dimensão dos discursos sobre a emoção que aponta a perspectiva "contextualista" da antropologia das emoções.

Nossa estranheza diante da história de amor de Fathalla encontra talvez equivalente no espanto africano diante da história de ciúme de Hamlet. É que os tributos pagos pelas experiências emocionais às teias socioculturais em que se enredam tornam difícil, para um espectador de fora, entender essas motivações

afetivas, sua gênese, suas articulações.

Amor e ciúme formam um complexo de aparência indissociável para as

subjetividades ocidentais modernas. Essa maneira moderna de amar, ao atrelar o sentimento amoroso ao casamento monogâmico, autoriza a imposição ao parceiro de

uma exigência de reciprocidade e exclusividade, legitimando assim o ciúme, que, respeitados certos limites, pode mesmo ser considerado "prova de amor".

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Esse "complexo" amor-ciúme, contudo, pode ser matiza- do. Nas histórias que narra sobre a experiência da poligamia entre os beduínos, Abu-Lughod (1993) mostra

os ciúmes e rivalidades que perpassam as relações entre as três esposas de seu anfitrião Haj. Mas o ciúme assim como o amor são sentimentos que denotam falta de modéstia, e portanto têm um lugar e um meio específicos para ser expressos. Assim, se à primeira vista, as esposas de Ha] sentem ciúmes dele, de um modo que não parece tão distante assim dos ciúmes que uma mulher ocidental sentiria diante do envolvimento de seu ma- rido com outra, essas experiências subjetivas diferenciam-se em um ponto fundamental: o ciúme das beduínas é ilegítimo do ponto de vista ideológico. Elas estão erradas, aos olhos de muitos, em atormentar seu esposo com as rixas e rivalidades. Já a indiferença de uma ocidental ao envolvimento de seu marido com outra é sinal de desinteresse amoroso - ela está "errada" em não sentir ciúmes. Essa imbricação entre experiência afetiva, ideologia e organização social é assim mais uma fonte de matizes para a vivência dos afetos, legitimando o ciúme ocidental, culpabilizando o ciúme beduíno.

Para além de discussões voltadas para a análise de emoções isoladas, a

antropologia das emoções permite assim pensarmos também na configuração e dinâmica de "complexos" emocionais, tais como os pares amor-ciúme ou humilhação-

raiva, abrindo mais um leque de objetos de reflexão. Os sentimentos, tantas vezes definidos como o oposto da racionalidade, podem ser muito, muito bons para pensar.

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