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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE INSTITUTO DE ESTUDOS EM SAÚDE COLETIVA MESTRADO EM SAÚDE COLETIVA Angela Vasconi Speroni OS SENTIDOS DO ACOLHIMENTO: UM ESTUDO ANTROPOLÓGICO SOBRE A PORTA DE ENTRADA DA ATENÇÃO BÁSICA EM SAÚDE Rio de Janeiro 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE INSTITUTO DE ESTUDOS EM SAÚDE COLETIVA MESTRADO EM SAÚDE COLETIVA

Angela Vasconi Speroni

OS SENTIDOS DO ACOLHIMENTO:

UM ESTUDO ANTROPOLÓGICO SOBRE A PORTA DE ENTRADA

DA ATENÇÃO BÁSICA EM SAÚDE

Rio de Janeiro 2013

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Angela Vasconi Speroni

Os sentidos do Acolhimento:

um estudo antropológico sobre a porta de entrada

da atenção básica em saúde

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito à obtenção do Título de Mestre em Saúde Coletiva.

Orientadora: Profa. Dra. Rachel Aisengart Menezes

Rio de Janeiro 2013

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S749 Speroni, Angela Vasconi. Os sentidos do Acolhimento: um estudo antropológico sobre a porta de entrada da atenção básica em saúde / Angela Vasconi Speroni. – Rio de Janeiro: UFRJ/ Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, 2013. 95 f.; 30cm. Orientador: Rachel Aisengart Menezes. Dissertação (Mestrado) - UFRJ/ Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, 2013. Referências: f. 84-88. 1. Acolhimento. 2. Atenção primária à saúde. 3. Assistência à saúde. 4. Emoções. 5. Antropologia. I. Menezes, Rachel Aisengart. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos em Saúde Coletiva. III. Título. CDD 362.1  

 

 

 

 

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Para os meus pais,

Clóvis e Luciana

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Quando a gente acha que tem todas as respostas,

vem a vida e muda todas as perguntas.

(Luis Fernando Veríssimo)

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente gostaria de agradecer a Rachel Aisengart Menezes, minha orientadora,

que, sem dúvida, foi a maior parceira neste projeto. Agradeço pela disponibilidade em

compartilhar seus vastos conhecimentos, sua rica biblioteca, muitas vivências e emoções. A

expressão deste agradecimento não é capaz de alcançar toda gratidão por sua generosidade,

sinceridade e carinho.

Aos professores Jaqueline Ferreira, Octavio Bonet e Claudia Rezende, pelas

importantes contribuições para o desenvolvimento deste estudo. Agradeço também a

disponibilidade das professoras Miriam Ventura e a Waleska Aureliano de integrarem a banca

de defesa.

Aos colegas, Priscila Castro, Patricia Barbosa, Sabrina Paiva, Rosângela Rosa, Iolanda

Szabo, João Vinicius Dias, Gabriel Waichert, Alan Camargo, Francisca Lucena, Nathalia

Ramos e Flavia Teixeira, companheiros nesta jornada.

Ao corpo docente do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal

do Rio de Janeiro, pela formação e estímulo. Estar ligada ao IESC como aluna permitiu-me

contar com o apoio sob a forma de bolsa de mestrado da CAPES, por intermédio da UFRJ.

Agradeço também aos funcionários e colaboradores, em especial Roberto Unger, Fátima

Gonçalves, Ivisson Carneiro e “Dentinho”, pela atenção e gentileza.

Quero agradecer a toda equipe do Centro Municipal de Saúde, no qual realizei esta

pesquisa, sobretudo Rogério Miranda, Ana Caroline Canedo e Ana Luiza, pela abertura e

disponibilidade em colaborar com o desenvolvimento do meu trabalho naquele espaço.

Gratidão a todos os profissionais, pacientes e familiares que partilharam comigo experiências

e emoções.

A Maria Alice Lustosa. Mais que um exemplo, uma inspiração. Sem palavras para

expressar minha gratidão por tudo o que fez e faz por mim. Muito obrigada por sua amizade,

seu carinho e apoio de sempre.

Agradeço também a Soraya Lopes, pelo privilégio e orgulho de ser sua afilhada.

Gratidão a Cristiane Rangel, por ter me ajudado a chegar até aqui.

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Aos meus familiares e amigos, em especial Carolina Domingues, Tatiana Xerez,

Marcela Abla, Isadora Carvalho e Sara Pansani, que se fazem presentes mesmo na distância,

enchendo meus dias de alegria.

Aos meus pais, Clóvis e Luciana, e irmãos, Anna, Paulo e Eduardo, que são a base de

tudo, grande estímulo para seguir adiante. Com certeza essa conquista também é de vocês.

Por fim, a Rodrigo, por seu amor, um dos melhores presentes que a vida me deu.

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SPERONI, Angela Vasconi. Os sentidos do Acolhimento: um estudo antropológico sobre a porta de entrada da atenção básica em saúde. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

RESUMO

O Ministério da Saúde preconiza que a porta de entrada da atenção básica ocorra por

intermédio do Acolhimento com Classificação de Risco. Na prática, esta normatização

determina uma estratificação de riscos, para otimização da oferta dos serviços, de modo a

reduzir as filas e o tempo de espera para assistência. Inserido na Política Nacional de

Humanização, o Acolhimento se apresenta como uma “tecnologia do cuidado”, centrada na

capacidade estendida de escuta e análise das demandas de saúde da população. Defende-se,

pois, o ACCR como dispositivo de fomento do vínculo entre usuários e sistema de saúde,

mediante um novo posicionamento ético-político de seus agentes. No entanto, no cotidiano

dos serviços, revela-se um descompasso entre prescrições normativas e experiências

singulares. Neste cenário, o principal objetivo deste estudo consiste na apreensão da lógica

que rege este campo de produção de saúde, a partir da análise das estratégias mobilizadas

pelos distintos atores sociais, envolvidos em jogos simbólicos de identificação e

diferenciação, hierarquização e poder. Os achados resultam de mais de 60 horas de

observação etnográfica, realizada em unidade básica de saúde, na cidade do Rio de Janeiro.

As reflexões estão inseridas em dois horizontes, em conexão. O primeiro vincula-se ao

conjunto de pesquisas brasileiras voltadas à compreensão da dinâmica das instituições e

serviços de saúde, sob o viés da Antropologia da Saúde. A partir desta abordagem, o

Acolhimento é considerado como uma construção histórico-cultural da ideologia moderna,

que se institui sob a centralidade das dimensões sociopolítica e tecnocientífica. Mais do que

uma categoria polissêmica, cujos sentidos são negociados entre seus atores, o Acolhimento

revela-se como drama social, decorrente da tensão entre normas universalizantes e um

sistema de relações sociais estruturalmente hierarquizado. Estas concepções conduzem a

reflexões sobre temas como igualdade, liberdade, cidadania, autonomia, direitos e justiça. O

segundo horizonte remete à perspectiva da Antropologia das Emoções, sustentada sobre o

potencial micropolítico das emoções, de expor e afetar as relações de poder e hierarquia.

Neste sentido, a escolha por desenvolver este estudo em torno de narrativas apreendidas na

pesquisa de campo justifica-se pelo intuito de desvendar práticas e retóricas, que evidenciam

uma construção de discursos emotivos enquanto agenciamentos que dão sustentação aos

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sujeitos, garantindo a legitimidade de sua ação social. No contexto observado, a dialética

sofrimento – reparação e cuidado se apresenta como estratégia recorrente, validada pela

retórica da vítima.

Palavras-chave: Acolhimento, Atenção Primária à Saúde, Antropologia da Saúde,

Antropologia das Emoções

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SPERONI, Angela Vasconi. Os sentidos do Acolhimento: um estudo antropológico sobre a porta de entrada da atenção básica em saúde. Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva) – Instituto de Estudos em Saúde Coletiva, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

ABSTRACT

The Brazilian Ministry of Health prescribes that the gateway of primary health care occurs

through the User Embracement with Risk Rating. In practice, this regulation sets risk

stratification to optimize the supply of services, in order to reduce the queues and the time for

assistance. As part of the National Humanization Policy, the User Embracement is defined as

a "technology of care" centered on an extended capacity for listening and analyzing people´s

health demands. Hence, the User Embracement is defended as a device to promote the link

between users and health system through a new ethical-political positioning of their agents.

However, the everyday practices reveal a mismatch between normative prescriptions and

singular experiences. In this scenario, the main objective of this study is to achieve the logic

that guides this modality of health assistance by the analysis of the strategies developed by

different social actors included in symbolic games of identification and differentiation,

hierarchy and power. The findings are a result of more than 60 hours of ethnographic

observation developed in a primary health care service in the city of Rio de Janeiro. The

reflections concern to two theoretical fields in connection. The first refers to a set of Brazilian

researches that aim to understanding the dynamics of health institutions and services, under

the bias of Anthropology of Health. From this approach, the User Embracement is considered

as a historical and cultural construction of modern ideology that is established in the centrality

of sociopolitical and technoscientific dimensions. More than a polysemic category whose

meanings are negotiated among the actors, the User Embracement is revealed as a social

drama arising from the tension between universalizing standards and an hierarchical system

of social relations. These concepts lead to reflections on topics such as equality, freedom,

citizenship, autonomy, rights and justice. The second field concerns to the prospect of

Anthropology of Emotions sustained on the micropolitical potential of the emotions that

refers to their capacity to expose and affect the relations of power and hierarchy. Therefore,

the choice to develop this study around narratives is justified by the aim of uncovering

practices and rhetorical that shows up a building of emotive speeches as assemblages that

support the subjects, ensuring the legitimacy of their social actions. In the context observed,

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the dialectic of suffering - repair and care is recurrently mobilized, validated by the rhetoric

of the victim.

Keywords: User Embracement, Primary Health Care, Anthropology of Health, Anthropology of Emotions

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LISTA DE SIGLAS

ACCR – Acolhimento com Classificação de Risco

ACS – Agente Comunitário de Saúde

CAP – Coordenação de Área Programática

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CEBES – Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

CEP – Comitê de Ética em Pesquisa

CID 10 – Classificação Estatística Internacional de Doenças e

Problemas Relacionados à Saúde 10ª Edição

CMS – Centro Municipal de Saúde

CONEP – Comissão Nacional de Ética em Pesquisa

ESF – Estratégia de Saúde da Família

IESC – Instituto de Estudos em Saúde Coletiva

MS – Ministério da Saúde

OMS – Organização Mundial de Saúde

PNH – Política Nacional de Humanização

PSF – Programa Saúde da Família

SISREG – Sistema de Regulação

SMS(DC) – Secretaria Municipal de Saúde (e Defesa Civil)

SUS – Sistema Único de Saúde

UBS – Unidade Básica de Saúde

UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro

UPA – Unidade de Pronto Atendimento

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO 13

A CONSTRUÇÃO DO OBJETO DE INVESTIGAÇÃO 13

PARTE 1 - A ENTRADA NO CAMPO DE PESQUISA 19

1.1. O CENTRO MUNICIPAL DE SAÚDE 23

1.2. PRIMEIRAS OBSERVAÇÕES 25

PARTE 2 - O ACOLHIMENTO 32

2.1. UMA NORMATIZAÇÃO DO CUIDADO 32

2.2. UMA REALIDADE ALÉM DA PRESCRITA 36

2.3. UMA PROPOSTA DE MUDANÇA 55

PARTE 3 - INTERAÇÕES E EMOÇÕES NA PORTA DE ENTRADA DA ATENÇÃO

BÁSICA EM SAÚDE 66

CONSIDERAÇÕES FINAIS 79

A DESCOBERTA DE UMA NOVA IDENTIDADE 79

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 84

ANEXOS 89

1. CRONOGRAMA DA PESQUISA DE CAMPO 89

2. FLUXOGRAMA DA PORTA DE ENTRADA DAS UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE 91

3. PROTOCOLO PARA CLASSIFICAÇÃO DE RISCO NO ACOLHIMENTO 92

4. PLANO DE INTERVENÇÃO PARA O ACOLHIMENTO 94

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INTRODUÇÃO

A construção do objeto de investigação

A proposta inicial deste estudo centrava-se na apreensão da experiência de

adoecimento1, por meio das narrativas dos sujeitos. O intuito era realizar entrevistas com os

usuários, na chegada no sistema público de saúde, de modo a investigar os percursos de cura2

traçados até ali. Para cumprir com este objetivo escolhi como campo de pesquisa uma unidade

básica de saúde, localizada no centro da cidade do Rio de Janeiro.

A entrada no campo de investigação se deu com a observação de reuniões das chefias

do serviço. Naquele momento, a intenção era apreender a dinâmica dos fluxos da unidade de

saúde e das interações entre os distintos atores sociais. A partir de sugestão do diretor da

instituição, iniciei também observação na porta de entrada do serviço, no Acolhimento,

visando conhecer as pessoas que buscam assistência naquela unidade, para delimitar a

estratégia de abordagem para as entrevistas.

No entanto, as observações das reuniões e do Acolhimento conduziram a novas

questões, referentes às estratégias dos diferentes atores sociais – profissionais de saúde,

gestores e usuários – envolvidos no atendimento em saúde. Após algumas semanas de

observação etnográfica, optei pela mudança do objeto do estudo, para esta “nova” modalidade

de assistência, o Acolhimento. A seguir apresento os argumentos que justificam esta escolha.

***

O Ministério da Saúde (MS) preconiza que a porta de entrada da atenção básica ocorra

por intermédio do Acolhimento com Classificação de Risco (ACCR). Esta normatização

insere-se na Política Nacional de Humanização (PNH), criada em 2008. Na prática, estabelece

a estratificação efetiva de riscos, com vistas à extinção da oferta de serviços a partir da ordem

de chegada. Defende, pois, o Acolhimento como uma “tecnologia do cuidado” (BRASIL,

2011, p. 22), centrada na capacidade estendida de escuta e análise das necessidades de saúde

da população, por parte dos profissionais.

À época da pesquisa de campo, a instituição encontrava-se em processo de

implementação efetiva desta normatização. De fato, o Acolhimento já funcionava há algum

                                                                                                                         1 Rabelo, Alves & Souza, 1999. 2 Ferreira & Espírito Santo, 2012.

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tempo, mas a dinâmica das práticas ainda seguia o modelo da tradicional Triagem3. Neste

contexto, o Acolhimento constituía temática central das conversas – formais e informais –

entre profissionais e gestores, sobretudo em face das exigências de cumprimento das

determinações da Secretaria Municipal de Saúde (SMS). O tema foi recorrente nas reuniões

observadas, principalmente pela emergência de conflitos entre profissionais e usuários, na

porta de entrada do serviço.

Com o início da análise do diário de campo, o Acolhimento se apresentou

definitivamente como objeto de investigação. O objetivo central do estudo passou a consistir,

então, na apreensão das interações estabelecidas no – e para além do – espaço do

Acolhimento. Mais do que isto, meu olhar se deslocou para os diferentes significados

atribuídos ao Acolhimento, de acordo com a posição de cada ator social na dinâmica do

sistema, bem como da interação entre eles.

Outro fator que contribuiu para a mudança do objeto de pesquisa foi o tempo para

aprovação do projeto pelo Comitê de Ética da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil

da cidade do Rio de Janeiro (CEP/SMSDC-RJ). O projeto de pesquisa foi qualificado no

Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(IESC/UFRJ) em novembro de 2011 e aprovado pelo seu Comitê de Ética (CEP/IESC-UFRJ)

no final de dezembro de 2011. Contudo, em virtude de mudanças na plataforma de inscrição

de projetos junto à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), só foi possível abrir

um protocolo de pesquisa junto ao CEP/SMSDC-RJ em abril de 2012. Logo, a aprovação

final ocorreu em maio de 2012.

Para não descumprir medidas éticas, optei por limitar a metodologia do estudo à

observação etnográfica, abrindo mão das entrevistas individuais com usuários. Além disso, o

material coletado nas mais de 60 horas de pesquisa de campo (vide anexo 1) mostrou-se

suficiente para o desenvolvimento das reflexões.

Assim, o campo me conduziu a novas questões. Ao longo da pesquisa foram se

delineando três eixos centrais de discussão: (1) a distância entre ideário e prática; (2) as

estratégias dos diferentes atores sociais – profissionais de saúde, gestores e usuários –

envolvidos na assistência em saúde; (3) as emoções que emergem nas interações na porta de

entrada do serviço. Estas e outras questões repercutiram em novas perspectivas de análise.

***

                                                                                                                         3 A distinção entre Acolhimento e Triagem será discutida adiante.

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Esta investigação sobre o Acolhimento insere-se no amplo horizonte de reflexão das

ciências sociais e pertence ao campo de estudos brasileiros voltados à compreensão do

fenômeno saúde/doença/sofrimento, sob a perspectiva da Antropologia da Saúde. Cabe frisar

que muitas das questões aqui apontadas também poderiam ser analisadas sob outros eixos

teórico-metodológicos, como das Políticas Públicas em saúde, por exemplo. No entanto, a

escolha por refletir sobre o Acolhimento pelo viés antropológico justifica-se pelo intuito de

evidenciar os sentidos atribuídos pelos diferentes atores sociais, o que possibilita uma análise

sobre a produção de significados específicos, no âmbito do exercício profissional cotidiano.

Este estudo se distancia, portanto, de uma perspectiva que toma tanto o sistema de

saúde quanto suas representações e práticas como coisas constituídas, explícitas, e o sujeito

como destituído de agência. Exatamente no sentido contrário, a proposta central é revelar a

produção de saúde como um campo dinâmico, que “inclui trabalhadores e usuários em

mecanismos complexos de identificação, diferenciação, hierarquização, e jogos simbólicos de

força, poder e reprodução” (SOUZA; MOREIRA, 2008, p. 336).

A partir de sua “perspectiva ‘radicalmente’ relativizadora” (SARTI, 2010, p. 204), a

Antropologia sustenta-se na crítica sistemática ao universalismo, propondo uma ideia de

“humanidade construída pelas diferenças” (PEIRANO, 1991, p. 2). Estudos clássicos

centraram-se em desvendar os modos de viver, pensar, sentir e interagir de povos distantes, de

sociedades ditas “tradicionais”, revelando o Ocidente como “uma entre as várias

possibilidades de realização da humanidade” (PEIRANO, 1991, p. 3). Neste contexto, a

observação etnográfica consagrou-se como técnica prioritária da pesquisa antropológica,

enquanto ferramenta para imersão no universo estrangeiro.

A partir da década de 70 emergem no Brasil estudos voltados à reflexão sistemática

sobre o nosso próprio sistema (DAMATTA, 1979, 1985; VELHO, 1981). Esta produção

influenciou significativamente o campo da Antropologia da Saúde, com repercussão em

investigações centradas na busca pela compreensão do fenômeno saúde/doença/sofrimento4.

Questões como a forma de viver e pensar a dor, os infortúnios, as aflições e perturbações de

várias ordens começaram a constituir objetos de um campo de pesquisa específico. Neste

contexto, o estudo de Duarte (1986) sobre a “doença dos nervos” representa um marco, ao

propor a noção de perturbação, definida como experiência físico-moral que escapa às

                                                                                                                         4 Para mais informações sobre a constituição da Antropologia no Brasil, ver: Canesqui, 1998; Sarti, 2010.

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racionalidades biomédica e psicológica, como conceito-chave para os estudos antropológicos

em saúde.

Duarte (2003) foi além ao pensar no esquema indivíduo x pessoa, revelando os

confrontos entre as representações individualizantes dos agentes da biomedicina e as

representações holistas dos pacientes. Desde então surgiram muitos estudos influenciados

pela busca de apreensão dos mecanismos de afirmação da racionalidade biomédica, em

contraste com as dimensões holistas da representação ou vivência dos eventos de

saúde/doença (DUARTE, 2003, p. 177). A Antropologia da Saúde brasileira configura-se,

assim, na procura por afirmar uma perspectiva analítica própria do campo da saúde, mediante

uma revisão das dicotomias natureza/cultura, objetivo/subjetivo, biológico/social (SARTI,

2010, p. 200).

Ao refletir sobre as estratégias acionadas por cada ator social no e em relação ao

Acolhimento, busco deslocar a discussão para “o contexto em que um indivíduo se torna uma

pessoa e passa a ocupar determinado lugar numa rede de relações” (CARRARA, 2012, p.

521). A constatação da incongruência entre ideário e prática desta modalidade de assistência

em saúde traz à tona considerações sobre a ideologia do individualismo, estruturada sobre um

“ser indiviso dotado de liberdade e igualdade, senhor de uma vontade e de responsabilidade”

(DUARTE, 2012, p. 143). Neste sentido, a concepção do Acolhimento como um projeto de

humanização conduz a reflexões sobre cidadania, autonomia, direitos e deveres.

Esta dissertação assume, portanto, uma postura analítica crítica, influenciada por

estudos que revelam as dimensões de hierarquia e poder presentes em organizações

burocráticas, dentre elas as instituições médicas. Esta vertente política da perspectiva

antropológica sustenta-se em uma crítica aos paradigmas da biomedicina do século XX, com

suas “novas formas de vigilância sobre os corpos e a saúde, monitorados com base na noção

de riscos” (SARTI, 2010, p. 210). Neste contexto, as categorias saúde e doença atuam como

princípio classificatório de indivíduos e grupos, no interior de determinada sociedade

(RINALDI, 2012). Carrara (2012, p. 524) aponta que, para além da dimensão de

responsabilização dos doentes, crescem as discussões sobre os direitos à saúde e à assistência,

no campo social e político, repercutindo em demandas crescentes à Justiça.

Uma das ferramentas para compreender as regras coletivas implícitas neste jogo entre

distintos atores sociais consiste na análise das emoções. As emoções são “formas organizadas

de existência” (BRETON, 2009, p. 117) que, longe de corresponderem a expressões

instintivas selvagens, obedecem a lógicas pessoais e sociais, traduzindo a ressonância afetiva

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do acontecimento de maneira compreensível aos olhos dos outros. A dimensão emotiva é,

portanto, uma esfera central, não somente da vida dos sujeitos, mas também da estrutura que

rege o funcionamento das instituições.

Até sua transformação em objeto próprio de pesquisa, as emoções emergiam no rol de

elementos que compõem a vida social e eram conjecturas a partir de outros objetos, sem a

delimitação de uma categoria analítica específica (LUTZ; ABU-LUGHOD, 1990). A partir da

década de 90, a Antropologia das Emoções surge como tendência afirmativa de campo

disciplinar no Brasil (KOURY, 2005; REZENDE; COELHO, 2010). Sarti (2010) destaca que,

apesar de não inscrever sua origem no campo da Antropologia da Saúde, a vertente

antropológica das Emoções estabelece com ele uma “continuidade teórica (pois) surge,

igualmente, da problematização da categoria indivíduo, em sua relação com a cultura e da

crítica da razão ocidental em sua dualidade corpo/espírito” (SARTI, 2010, p. 217).

A escolha deste referencial como suporte para a análise do material coletado na

pesquisa se deve ao propósito de evidenciar a “relação entre gramáticas emocionais, relações

interpessoais e organização social” (COELHO, 2010, p. 282), pois, como aponta Breton

(2009), as emoções são emanações sociais ligadas a circunstâncias morais e à sensibilidade

particular do indivíduo. Elas constituem “matéria viva do fenômeno social (...) distribuindo os

valores e as hierarquias que sustentam a afetividade” (BRETON, 2009, p. 120). Assim, muitas

das reflexões apontadas neste estudo sustentam-se no potencial micropolítico das emoções,

em sua capacidade de expor e afetar as relações de poder e hierarquia, de modo amplo

(REZENDE; COELHO, 2010, p. 17).

Logo, esta dissertação possui dois horizontes de reflexão, que se encontram

necessariamente em conexão. O primeiro vincula-se ao conjunto de pesquisas brasileiras

voltadas à compreensão da dinâmica das instituições e serviços de saúde, sob o viés da

Antropologia da Saúde. O segundo inscreve-se na perspectiva da Antropologia das Emoções,

mais especificamente na vertente que discute a questão da saúde/doença/sofrimento.

***

Este estudo está dividido em três partes. A primeira expõe a entrada no campo,

destacando os primeiros contatos com os profissionais da unidade de saúde, e o panorama

geral da estrutura física e relacional da instituição.

A segunda parte destina-se à análise do Acolhimento sob três dimensões: (1) enquanto

normatização do cuidado, (2) como uma realidade além da prescrita e (3) como proposta de

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mudança. Esta divisão foi instrumentalmente desenhada com o intuito de dar visibilidade à

distância entre o discurso oficial e as práticas, no contexto investigado.

A última sessão discute as interações e emoções na porta de entrada da atenção

básica em saúde, revelando práticas e retóricas que constroem os diferentes significados do

Acolhimento.

A escolha por circunscrever este estudo em torno de narrativas apreendidas na

pesquisa se baseia na intenção de evidenciar a posição de cada ator social neste campo de

produção em saúde, que inclui gestores, profissionais e usuários em jogos simbólicos de

identificação e diferenciação, hierarquização e poder. Trata-se, portanto, de ultrapassar o

diário de campo, na busca por chaves de leitura para interpretação e atribuição de sentidos às

situações observadas.

Encerro esta dissertação com algumas considerações acerca da descoberta de um novo

lugar e de uma nova postura: a de antropóloga. O objetivo é concluir este estudo com uma

reflexão em torno de relevantes questões – que se apresentaram em minha trajetória no

mestrado, na interação com o campo de pesquisa e seus atores, e a partir das revisões do

diário de campo – sob a ótica da primazia da reflexividade contínua no fazer antropológico

(BOURDIEU, 2005).

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PARTE 1

A ENTRADA NO CAMPO DE PESQUISA

A proposta inicial do projeto deste estudo era realizar entrevistas individuais com os

usuários, no momento da chegada no sistema público de saúde, para delinear os percursos de

cura traçados até ali. Uma vez que a atenção básica constitui uma das principais portas de

entrada do sistema, optei por eleger uma unidade básica de saúde como campo de pesquisa.

Cabe destacar que, apesar do conhecimento da procura maciça por serviços de urgência para

ingresso no sistema, considero que a maioria das pessoas chega nestas unidades em estado de

sofrimento agudo, por vezes sem relato de projetos terapêuticos anteriores. Além disso, a

velocidade dos fluxos de atendimento nestes serviços poderia comprometer a investigação.

No percurso para a escolha do campo, recebi auxílio de um colega do mestrado. Ele

indicou um amigo, então diretor de um Centro Municipal de Saúde (CMS), localizado no

centro da cidade do Rio de Janeiro, para apresentar meu projeto e verificar a possibilidade de

realizar a investigação na unidade. Em agosto de 2011, meu colega enviou um e-mail,

comunicando que havia mandando uma mensagem para seu amigo sobre meu trabalho,

interesse e busca por uma unidade básica de saúde para realização da pesquisa. Ele sugeriu

que eu enviasse e-mail, explicando com mais detalhes o projeto, e concluiu o texto da

seguinte maneira: “Ele é super acessível e acho que vai se interessar pela ideia”. Ao final,

passou os contatos de e-mail e celular do diretor. No dia seguinte busquei contato via e-mail:

Boa noite, Dr. XXX5.

Faço mestrado em Saúde Coletiva, no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ.

O YYY (que faz mestrado comigo lá) me passou seu contato.

Meu objeto de pesquisa é o Itinerário Terapêutico, assim pretendo investigar, a partir do discurso dos pacientes, o desenvolvimento da demanda por cuidados em saúde e a trajetória de cuidados até a chegada ao serviço oficial de atenção à saúde.

Eu e minha orientadora (Profa. Dra. Rachel Aisengart Menezes) pensamos em utilizar, como instrumento de metodologia qualitativa, entrevistas semiestruturadas em unidades básicas de saúde.

Por isso, o YYY me passou seu contato, pois sugeriu que talvez eu pudesse ter o Centro Municipal de Saúde ZZZ como campo de pesquisa.

Gostaria de te pedir uma oportunidade para apresentar meu projeto mais detalhadamente.

                                                                                                                         5 O ocultamento dos nomes dos sujeitos envolvidos nesta pesquisa objetiva garantir o anonimato, de modo a cumprir com dimensões éticas da pesquisa antropológica, enquanto modalidade de “construção do saber (que) vale-se do uso instrumental do outro – seus corpos, suas falas, suas ideias” (SARTI, 2010, p. 216).

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Estarei na reunião do CEBES (Centro Brasileiro de Estudos de Saúde) na próxima terça.

Podemos nos encontrar lá, caso esteja.

Porém, se desejar marcar qualquer outro horário, por favor, fique à vontade.

Desde já, agradeço pela sua atenção.

Fico aguardando um retorno seu, por gentileza.

Atenciosamente,

Angela Speroni.

Ele não respondeu. Alguns dias depois reenviei a mensagem para outro e-mail que

meu colega encaminhou, alegando que ele quase não usava mais o anterior. O diretor

respondeu no dia seguinte, marcando uma reunião no CMS para início de setembro.

Confirmei o encontro no mesmo dia, agradecendo a atenção.

Cheguei no dia, hora e local marcado, com uma versão inicial de meu projeto em

mãos. Não foi difícil encontrar a unidade. Após instruções de um segurança na recepção, subi

as escadas em direção à sala do diretor, no segundo andar. Outra segurança, posicionada na

porta da sala das chefias, informou que ele ainda não tinha voltado do almoço e pediu que

aguardasse ali, em um longo corredor, com muitas cadeiras. Algumas pessoas pareciam

esperar por consultas naquele espaço, que conta com várias portas de consultórios, com placas

indicativas da especialidade em cima. Sentei, mas logo me levantei, para observar um grande

mural6, no qual havia documentos e informes para a população, as escalas de horários dos

profissionais, entre outros.

O diretor chegou e fomos para sua sala. Lá conversamos sobre meu projeto e os

objetivos gerais da pesquisa. Ele demonstrou disponibilidade em ajudar no que fosse preciso,

mas ressaltou que, por se tratar de unidade pública vinculada à Secretaria Municipal de Saúde,

o projeto deveria ser submetido ao CEP/SMSDC-RJ antes de iniciar a investigação. Ele

indicou os caminhos para chegar até lá e sugeriu que procurasse mais informações no site da

própria Prefeitura. A seguir afirmou que eu poderia começar a observar a unidade “quando

                                                                                                                         6 Segundo a Carteira de Serviços da SMSDC-RJ (RIO DE JANEIRO, 2011, p. 11), toda unidade deve ter um painel, em local visível a população, contendo minimamente as seguintes informações: horário de funcionamento da unidade; mapa da área de abrangência e relação de ruas, identificando nominalmente os profissionais de referência, no caso das equipes do Programa de Saúde da Família; relação nominal dos profissionais com a respectiva programação semanal de cada um, contendo horário e atividade desenvolvida; relação nominal de profissionais com suas respectivas carga horária de acordo com o contrato de trabalho; data/hora/local de atividades coletivas e reuniões com a comunidade; relação dos representantes da população e profissionais que integram o Colegiado Gestor Local (a composição deste Colegiado deve garantir que 50% dos participantes sejam usuários); telefone, e-mail e site da Ouvidoria da CAP e da Prefeitura do Rio de Janeiro; entre outras. Além disso, toda unidade básica de saúde deve dispor de um “placar da saúde” com a devida atualização mensal dos indicadores de saúde.

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quisesse”, antes da obtenção da autorização formal para realizar entrevistas com os

“usuários”7. Respondi que preferia iniciar a observação após a qualificação do projeto, por

considerar que, assim, ele estaria mais amadurecido e consistente. Ele concordou e repetiu

que eu poderia começar “quando quisesse”. Por fim, discorreu sobre sua trajetória individual

– possui graduação em Enfermagem e trabalha há alguns anos junto ao “nível central”8 –,

destacando que assumiu a direção da unidade há poucos meses e, por isso, está “em período

de observação e análise, sem propor qualquer mudança na organização e ideologia

vigentes”.

Deixei meu projeto impresso e combinamos que o manteria informado sobre o

andamento do processo junto ao CEP/SMSDC-RJ. Agradeci sua disponibilidade e nos

despedimos.

Cerca de um mês depois entrei novamente em contato por e-mail, para perguntar se ele

poderia completar e assinar um documento exigido para a abertura do processo no CEP/IESC-

UFRJ, antes do envio para o CEP/SMSDC-RJ9. Ele respondeu alguns dias depois, pedindo

desculpas pela demora no retorno e afirmando que eu poderia passar no CMS para buscar o

documento na segunda-feira seguinte. Assim fiz.

No início de novembro entrei em contato por telefone, para convidá-lo para minha

qualificação. Ele disse que faria o possível para estar lá, visto que sua agenda estava “muito

complicada”. Combinei que encaminharia a versão final do projeto por e-mail. Enviei no

mesmo dia, com o seguinte texto:

Oi, XXX.

Como combinamos ao telefone, escrevo para reforçar o convite para a qualificação do meu projeto de mestrado que acontecerá na próxima segunda, às 10h., no IESC, na sala da pós-graduação (que fica ao lado da secretaria da pós).

Envio, em anexo, a versão final do projeto.

                                                                                                                         7 O diretor refere-se às pessoas que buscam atendimento na unidade como “usuários”. Após algum tempo de pesquisa observei que esta nomenclatura é utilizada por muitos profissionais, especialmente os que ocupam cargos de chefia. Em determinando dia notei que havia um cartaz, na entrada lateral da unidade, que dizia: “Você sabia que o paciente é chamado de usuário?”. A partir da pesquisa bibliográfica para elaboração desta dissertação, pude constatar que esta é a nomenclatura oficial, utilizada nas cartilhas e manuais do Ministério da Saúde e da Secretaria Municipal de Saúde. 8 O “nível central” refere-se à Coordenação de Área Programática (CAP). No fluxograma de gerenciamento do sistema de saúde, a CAP está situada entre a Secretaria Municipal de Saúde e as unidades de saúde (centros municipais, clínicas de família, farmácias, hospitais, entre outros). 9 O CEP/SMSDC-RJ exige o parecer do CEP da instituição na qual o pesquisador está formalmente vinculado para abertura de protocolo de pesquisa. (Informação disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/web/smsdc/exibeconteudo?article-id=2735269. Acesso em setembro de 2011.)

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Na segunda, levarei uma impressa para você, mas envio antes por e-mail, para caso queira dar uma olhada.

Espero por você lá!!!

Muito obrigada pelo apoio!!

Beijos e bom final de semana,

Angela.

Ele não apareceu nem deu notícias. Dois dias após a qualificação entrei novamente em

contato por e-mail, para perguntar se ele poderia refazer o documento assinado anteriormente,

pois alterei o título do projeto. Também solicitei sua assinatura em dois documentos

pendentes para abertura do processo no CEP/IESC-UFRJ. Iniciei o texto da seguinte maneira:

Oi, XXX.

Tudo bem??

Foi uma pena você não ter conseguido ir na minha qualificação na segunda.

Foi uma reunião muito boa e produtiva!!!

Sua presença teria contribuído ainda mais, mas imagino o quanto complicado é para você se ausentar do CMS... Mas, tudo bem, sem problemas!

Ele respondeu no mesmo dia:

Oi querida queria muito ter ido, mas essa semana está mega complicada... Mas de um jeito ou de outro estava torcendo por ti e sabia que o sucesso era garantido.

Combinamos que eu passaria na unidade na quarta-feira seguinte, para pegar o

documento refeito e suas assinaturas. Assim fiz.

No início de janeiro de 2012 enviei e-mail, comunicando que o projeto havia sido

aprovado no CEP/IESC-UFRJ e que aguardava o parecer oficial, para dar entrada no

CEP/SMSDC-RJ. Além disso, gostaria de verificar a possibilidade de começar a frequentar o

CMS para observar, conhecer um pouco a dinâmica, as equipes, os pacientes, até para avaliar

qual será o melhor momento e a forma de abordá-los. Ele respondeu no mesmo dia,

agendando nossa reunião para a segunda-feira seguinte.

Antes de seguir com as primeiras observações do campo, faz-se necessário apresentar

algumas informações sobre a unidade e um panorama geral de sua estrutura física.

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1.1. O Centro Municipal de Saúde

O Centro Municipal de Saúde (CMS) foi inaugurado em 1947, em localização distinta

da atual. Em 1995 foi efetuado um convênio entre a SMS e a UFRJ, quando ocorreu o

deslocamento da unidade para sua sede atual.

O CMS atende à 3ª Região Administrativa do Rio de Janeiro, que abrange bairros da

área central da cidade. Desde 2009 configura-se como uma unidade mista10 de assistência à

saúde, pois dispõe de atenção primária nos moldes tradicionais, além de uma equipe do

Programa Saúde da Família (PSF). Conforme relato do diretor, no momento da entrada no

campo, havia previsão de alcançar um total de três equipes multidisciplinares do PSF na

unidade. Ali são desenvolvidas atividades de ensino, pesquisa e assistência, em regime de

cogestão com a UFRJ.

Dentre as modalidades de atendimento oferecidas constam: Assistência Social, Clínica

Médica, Dermatologia, Enfermagem, Epidemiologia, Fonoaudiologia, Ginecologia e

Obstetrícia, Homeopatia, Infectologia, Nutrição, Odontologia, Pediatria, Pneumotisiologia,

Pré-Natal de baixo risco, Psicologia e Terapia Ocupacional. Além disso, o CMS conta com

Programas de Saúde, como Acolhimento mãe-bebê, Bolsa Família, Planejamento Familiar,

Programa DST/Aids, Programa Diabetes, Programa de Saúde Bucal, PSF, Tabagismo, entre

outros.

A estrutura do prédio é antiga e demanda reformas. Os materiais, como cadeiras,

mesas e equipamentos, estão bem desgastados. De acordo com a equipe, falta espaço para

comportar todos os profissionais em melhores condições de trabalho.

O espaço é estruturado da seguinte maneira: no térreo, na entrada principal, há um

balcão de recepção, no qual fica um segurança, que fornece informações para usuários e

visitantes. Na parede há uma grande placa explicativa, com a indicação da localização dos

setores por andar. Logo à frente está localizada uma sala de Recursos Humanos (antigo

Núcleo de Pessoal), na qual os funcionários assinam o ponto, no início de cada turno (manhã

e tarde). À direita há um corredor que conduz ao auditório. Do lado direito deste corredor está

a Farmácia, que ocupa o espaço de três salas e conta com uma janela para acesso dos

usuários. Do lado esquerdo há outra placa grande, com indicação dos setores por andar, um

elevador e uma escada de acesso ao segundo andar, dois banheiros para funcionários e outro

                                                                                                                         10 Segundo a Carteira de Serviços da SMSDC-RJ (RIO DE JANEIRO, 2011, p. 5), “unidades mistas” são aquelas nas quais somente parte do território de cobertura é atendido pelo Programa de Saúde da Família.

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corredor. Neste segundo corredor estão situados a Casa de Forças, um consultório da Nutrição

e uma porta que permite acesso a dois consultórios da Clínica Médica do lado direito; e outra

porta, que conduz aos consultórios da Ginecologia, Pré-Natal e Planejamento Familiar

(Serviço Social), do lado esquerdo. Neste corredor estão dispostas cerca de 30 cadeiras, para

que os pacientes aguardem as consultas. No final há dois banheiros para usuários, um

masculino e outro feminino, além de uma sala para Esterilização. Ao seguir por este corredor

e virar à direita, estão localizados os consultórios da Pediatria e a sala de Vacinação. Ao final

há duas salas da Documentação Médica. Ao virar novamente à direita há um espaço aberto,

no qual ficam as duas salas do Acolhimento, o “tradicional”11 e o do PSF (também é possível

ter acesso ao último pelos consultórios da Clínica Médica). Esse espaço está ligado ao

primeiro corredor, no qual estão a Farmácia e o auditório.

Existe outra entrada do CMS, que conduz diretamente ao espaço das salas de

Acolhimento, sem passagem pelo interior da unidade. Os pacientes costumam utilizar essa

segunda entrada, pois ali há bancos nos quais se formam as filas para o Acolhimento

“tradicional”. Ao final dele, à esquerda, há uma janela para a Documentação, setor no qual os

usuários realizam a matrícula na unidade. Ao lado da janela há outra placa grande, com a

indicação dos setores por andar.

No segundo andar – cujo acesso é pela escada ou pelo elevador, localizados no

corredor da Farmácia – há um balcão no qual fica um segurança, na entrada de uma porta que

conduz à sala do diretor e mais duas salas de chefias. Em uma dessas salas há um banheiro

exclusivo para a direção, as chefias e os médicos. Apesar da agente de segurança – contratada

por empresa privada terceirizada – permanecer ali para controlar a entrada a essa área restrita,

ela também fornece informações aos usuários. Na parede atrás do balcão há outra placa

grande, com a localização dos setores por andar. Ao virar para esquerda, há um corredor, com

alguns espaços destinados à UFRJ: três salas de aula, uma secretaria, um laboratório de

informática, uma sala da gestão administrativa e um banheiro exclusivo para alunos. Ao virar

para direita, há um corredor, com os consultórios da Fonoaudiologia, Pneumologia,

Epidemiologia (lado esquerdo), Serviço Social e Odontologia (lado direito). Nesse espaço

estão dispostas mais de 30 cadeiras, como local de espera dos pacientes para as consultas. Ao

seguir por este corredor e virar à direita, estão os dois consultórios da Dermatologia, dois

                                                                                                                         11 Os profissionais da unidade utilizam o termo “tradicional” para distinguir as equipes contratadas para o atendimento da população em geral das vinculadas ao Programa Saúde da Família. Esta nomenclatura também é utilizada nas cartilhas e manuais do Ministério da Saúde e da Secretaria Municipal de Saúde. Apropriei-me desta distinção discursiva para facilitar a compreensão do relato.

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banheiros (um para usuários e outro para funcionários), um bebedouro e uma sala do PSF do

lado esquerdo; um consultório da Massoterapia e da Terapia Ocupacional, e a sala da chefia

de Enfermagem, do lado direito. No fundo há um refeitório, com acesso restrito aos

funcionários.

Ao lado da sala da chefia de Enfermagem há uma escada para o terceiro andar, no qual

estão localizados o consultório da Psicologia, a sala do PSF, uma sala que já foi um estúdio

fotográfico da UFRJ, um banheiro e um bebedouro. No corredor central há seis cadeiras. A

sala do PSF é diferente das demais: ela é ampla, bem iluminada, com uma grande mesa de

reunião e quatro mesas menores, com um computador conectado à internet em cada, e um

aparelho de ar condicionado em funcionamento contínuo.

1.2. Primeiras observações

Em meados de janeiro de 2012 tive a primeira reunião com o diretor, com o propósito

de conversar sobre a entrada no campo: quais os melhores dias e horários para a observação,

qual o local mais apropriado, a inserção junto à equipe, entre outras questões. O diretor sugere

o início da observação no setor do Acolhimento, que é a porta de entrada do CMS. Ele explica

como ocorre a dinâmica do atendimento neste espaço.

O Acolhimento é realizado diariamente, de 07h30 às 17h., de segunda a sexta-feira, e

até 12h., aos sábados. De segunda a sexta são oferecidas vagas para consulta com as

diferentes especialidades médicas, mediante entrega de senhas, de acordo com a ordem de

chegada. Aos sábados a demanda é “livre”, o que significa que não há distribuição de senhas.

O PSF possui um Acolhimento próprio, localizado em outra sala, e seu acesso é

facilitado pela atuação dos agentes comunitários de saúde (ACS). O usuário é recebido por

um ACS, em seguida é atendido por um enfermeiro, para posterior encaminhamento para a

médica. O funcionamento é diário, de 08 às 19h., e não há distribuição de senhas.

Durante a explicação o diretor reforça a existência de uma distância entre a proposta

ideológica e sua efetivação na prática, enfatizando que “o Acolhimento é mais do que um

lugar, é uma nova filosofia de atendimento”. Ao final expressa sua insatisfação com a

dinâmica do funcionamento na unidade, principalmente pelo fato de que os pacientes ainda

são atendidos segundo a ordem de chegada, mediante concessão de senhas limitadas por turno

do dia. No que tange às barreiras que favorecem essa dinâmica, aponta a deficiência no

quantitativo de médicos clínicos na instituição, o que limita a oferta de serviços, e a lógica das

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senhas e da fila por ordem de chegada que ainda impera, tanto para profissionais quanto para

usuários, “que chegam cedo para conseguir atendimento, apesar da divulgação da

informação de que podem chegar em qualquer horário”.

Neste momento o diretor afirma que pretende implementar Oficinas de Acolhimento,

com o intuito de modificar a lógica do atendimento junto aos profissionais. Sua ideia é

“sensibilizá-los para a nova proposta”. Algumas medidas já foram tomadas, como o

funcionamento em horário integral, de 08 às 17h., e a abertura dos agendamentos, na tentativa

de possibilitar que “todos fossem atendidos”. Até o término da pesquisa esta Oficina não

aconteceu.

Outra meta considerada importante pelo diretor consiste na capacitação dos

profissionais para a realização de encaminhamentos, visto que poucos têm conhecimento

amplo da estrutura da rede de referência12. Há também um problema de ordem material, pois

o CMS não conta com computadores disponíveis para consulta imediata. No tempo em que

estive com o diretor fomos interrompidos duas vezes por profissionais que demandavam que

ele conferisse em seu computador quais as unidades de referência para encaminhamento de

usuários que estavam sendo atendidos no Acolhimento, e que não eram da área de cobertura

do CMS.

O diretor destaca ainda a determinação da SMS do número máximo de 16

atendimentos a cada turno de quatro horas, das 24 horas semanais que os médicos devem

cumprir. Ele relata que, de fato, os médicos não cumprem seis, mas apenas quatro turnos por

semana. Assim, na prática, na maioria dos serviços eles efetuam cerca de 20 atendimentos por

turno. Neste CMS o diretor estipulou que, independente da redução informal da carga horária

de trabalho, cada profissional deve realizar apenas 16 atendimentos por turno, pois o que mais

importa é a qualidade dos atendimentos: “sou contra a lógica dos números e a favor da lógica

da carga horária, pois o mais importante é a qualidade do atendimento, do preenchimento do

prontuário, do encaminhamento”. Para reforçar sua opinião, mostra um prontuário que não

foi totalmente preenchido afirmando que, “se o médico tiver mais tempo, pode realizar um

bom atendimento e, assim, será possível termos dados relevantes do caso”.

                                                                                                                         12 Desde 2010, o sistema municipal de saúde do Rio de Janeiro está regionalizado, a partir do local de residência dos usuários. Ou seja, cada unidade básica possui sua área de cobertura delimitada por ruas específicas. Além disso, existem níveis de atenção – primária, secundária e terciária – que definem o perfil de atendimento de cada serviço (RIO DE JANEIRO, 2011, p. 5).

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O diretor fornece algumas informações adicionais sobre o CMS:

§ Segundo o Censo de 2010, o CMS é responsável pela cobertura de 52.642 pessoas.

Dessas, pouco mais de quatro mil são atendidas pelo PSF.

§ Algumas demandas estruturais consideradas urgentes pelo diretor são: um

consultório próprio para o PSF, uma sala de curativos e um laboratório para exames

clínicos13.

§ O CMS faz parte do Projeto Pró-Saúde, uma parceria da UFRJ com a Prefeitura,

que realizará, a partir de meados de 2012, obras de restauração e ampliação do

espaço, com o objetivo de ampliar seu PSF para três equipes.

Converso com ele sobre a possibilidade de não utilizar jaleco e ele concorda. O intuito

seria evitar minha identificação com a equipe e, também, um possível distanciamento dos

usuários.

Ao final do encontro o diretor mostra o local onde estão localizadas as salas de

Acolhimento – “tradicional” e do PSF – no térreo e acompanha-me até a saída da unidade. Ele

indica o estacionamento restrito aos profissionais da unidade, nos fundos do prédio,

autorizando-me a parar ali. Naquele momento senti que fui, por ele, incluída na equipe da

instituição, como profissional.

Combinamos que ele iria conversar com as chefias da unidade sobre minha entrada, na

próxima reunião geral. Meu retorno fica marcado para a quarta-feira seguinte, quando seria

apresentada na reunião. Quando o diretor não pode comparecer neste encontro, ele é

oficialmente substituído pela médica coordenadora do Programa de Atenção Integral à

Saúde.

Na quarta seguinte chego ao CMS no horário marcado. Logo ao entrar observo uma

grande movimentação de pacientes no térreo. Muitos se aglomeram em uma fila para a

Farmácia. Aguardo cerca de 15 minutos pelo diretor, que ainda não havia chegado. Fico

sentada no corredor do segundo andar, observando o trânsito de usuários e profissionais. Noto

que poucos pacientes aguardam atendimento ali. Aparentemente, apenas uma nutricionista e

um pneumologista estão atendendo.

                                                                                                                         13 Segundo a Carteira de Serviços da SMSDC-RJ (RIO DE JANEIRO, 2011, p. 10), toda unidade básica de saúde deve oferecer coleta de exames laboratoriais diariamente, o que não ocorria no CMS no momento do início da pesquisa.

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A equipe de Enfermagem “tradicional” veste jalecos brancos. As enfermeiras do PSF

usam um jaleco branco com manga longa, com as logomarcas “Prefeitura - Saúde da Família”

no bolso esquerdo, “Programa Saúde Presente” à direita e uma do SUS na manga esquerda.

Os ACS trajam uma espécie de colete, grande e cinza, com as logomarcas “Prefeitura - Saúde

da Família” no bolso direito, “Programa Saúde Presente” à esquerda e uma grande da

Prefeitura nas costas. Acima desta logo está escrito “Agente Comunitário de Saúde”. Os

seguranças e a equipe de limpeza utilizam uniformes de suas empresas privadas. Os outros

profissionais (médicos, nutricionista e afins) estão vestidos com suas roupas pessoais, sem

qualquer característica associada a suas identidades profissionais.

O diretor chega e conversarmos um pouco, antes da reunião. Ele conta que o CMS

possui uma farmácia própria com três farmacêuticos. Relata que o subsecretário municipal de

saúde deseja criar uma farmácia única para a área programática. No entanto, ele está lutando

para manter a sua, de modo a minimizar o deslocamento dos pacientes, pois, para ele, “a

farmácia central não é uma realidade para o Rio de Janeiro, apesar do custo de

gerenciamento ser menor”. Os medicamentos são fornecidos pela Prefeitura e pelo MS, mas

todos chegam à unidade por intermédio da SMS. O diretor afirma seguir o princípio de

universalidade do SUS, mediante autorização para o fornecimento de medicamentos para

todos que ali chegam com receita. Entretanto, na prática – que, segundo ele, “coincide com o

discurso da Secretaria” – a farmácia atende apenas à demanda dos usuários de sua área de

cobertura. Ele conta ainda que, apesar de ser proibida a distribuição de amostras grátis em

instituições públicas, muitos médicos as recebem e guardam em seus próprios consultórios,

entregando-as diretamente para os pacientes.

Comento sobre a grande movimentação de pessoas na entrada do CMS hoje. Ele

explica que esse aumento de usuários às quartas-feiras acontece em decorrência da ausência

de médicos clínicos às terças. Assim, grande parte da população da região, por saber da

deficiência de médicos às terças, vem ao CMS às quartas, além das pessoas que passaram

pelo Acolhimento no dia anterior e foram indicadas para retornar naquele dia.

A partir disso conversamos sobre o Acolhimento. Ele relata que cada médico possui

oito vagas por turno para atendimento das demandas advinda daquele setor, além de oito para

consultas previamente marcadas. Aqueles pacientes que chegam ao Acolhimento, mas não

conseguem atendimento no mesmo turno “por falta de vagas”, são reagendados nas vagas

disponíveis para outros dias. O diretor afirma que “essa dinâmica é confusa”, já que a agenda

fica com o médico e, de certa forma, é ele quem a controla. Para reverter esta situação, seu

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objetivo é criar um Setor de Agendamento, de modo a propiciar um controle único, para toda

demanda do CMS. Ele completa: “aqui cada um faz o que quer, então, você precisa ganhar a

pessoa na ideia; não adianta impor nada, pois não há como ter um controle; é necessário

convencer os profissionais a seguir a nova proposta”.

Por fim, o diretor conta que, aos sábados, o CMS funciona com um esquema de

rodízio entre os profissionais (um médico, dois enfermeiros, uma chefia e um profissional do

Setor Administrativo), a demanda é “livre” (sem distribuição de senhas) e a procura por

atendimentos é pequena. Nesses dias, a Farmácia fica sob a responsabilidade da chefia de

plantão.

A seguir subimos para a reunião das chefias14, que é realizada na sala do PSF no

terceiro andar. Além de mim e do diretor, estão presentes: a chefe da Enfermagem; a

enfermeira chefe do Programa Saúde do Adulto (responsabilidade sobre a equipe da Clínica

Médica); a médica “coordenadora” 15 do Programa de Atenção Integral à Saúde

(responsabilidade sobre os profissionais de outras categorias, como Psicologia, Nutrição e

Terapia Ocupacional); a chefe do Setor Administrativo; a chefe dos Recursos Humanos; a

chefe da Área de Informação, Controle e Avaliação (antiga Documentação Médica); e uma

enfermeira do PSF. Estão ausentes: a chefe do PSF; a chefe da Epidemiologia; a chefe da

Odontologia; a chefe da Farmácia; e a chefe do Almoxarifado. A chefe do Programa Saúde

da Criança foi transferida há dois meses para o “nível central” (CAP) e ainda não foi

substituída. Segundo uma das chefias técnicas, esta falta de substituição gera sobrecarga e

descontentamento em parte da equipe.

O diretor inicia a reunião pedindo que eu explique meu projeto. Relato minha trajetória

profissional, os motivos de interesse no tema, os objetivos gerais da pesquisa e porque escolhi

o CMS como campo de investigação. Comento a proposta de observar inicialmente a

dinâmica do Acolhimento e, após aprovação do projeto pelo CEP/SMSDC-RJ, iniciar as

entrevistas individuais com os usuários, no momento da chegada à unidade. Todos demostram

interesse e disponibilidade em ajudar no que fosse preciso. O diretor afirma contar com as

minhas observações para seu projeto de reestruturação do Acolhimento. Sua ideia é utilizar os

                                                                                                                         14 As chefias do CMS são divididas entre técnicas e administrativas. As técnicas referem-se às chefias de Enfermagem e dos Programas de Saúde, com responsabilidade sobre os médicos e categorias afins. 15 É curioso notar que ela é a única que não se denomina “chefe”, especialmente diante do fato de ser a substituta oficial do diretor, no caso da sua ausência. No entanto, é a única que é tratada pelas outras chefias como “doutora”, acredito que em virtude de sua graduação em Medicina.

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dados da investigação como fonte para avaliação da dinâmica do setor, antes, durante e após o

processo de mudança.

A reunião prossegue com uma discussão sobre o Acolhimento “tradicional”. Peço que

expliquem a dinâmica de atendimento neste setor. O primeiro momento é por eles nomeado

como “Triagem”. Seu principal objetivo é a distribuição de senhas e encaminhamentos, para

acabar com as filas que se formam antes do início das consultas médicas. Nesse momento há

dois profissionais, um da Enfermagem e uma chefia técnica, conforme escala pré-definida

mensalmente. A seguir ocorre o “acolhimento” às pessoas que chegam após o término das

vagas para consulta naquele turno. O dito “Acolhimento”, portanto, tem demanda “livre”, sem

a distribuição de senhas. Ele é realizado por apenas um profissional, geralmente a enfermeira

que já estava lotada na “Triagem”.

O diretor expressa sua insatisfação com essa dinâmica, principalmente diante da lógica

de oferta de serviços pela ordem nas filas. Para ele não deveria haver esta distinção entre

Triagem e Acolhimento, de modo que todos os usuários deveriam ser “acolhidos” da mesma

maneira, independentemente de ter ou não vagas para atendimento no turno. Todos

concordam que “a fila lá é eterna” e reclamam da sobrecarga de pessoas que vêm de outras

instituições que, assim como a nova Clínica da Família da região, marcam o retorno de seus

usuários para um intervalo de tempo muito grande.

O diretor anuncia então a primeira Oficina de Acolhimento, a ser realizada em meados

de março, sob coordenação das responsáveis pelo Acolhimento na SMS e na CAP. Ele reforça

a importância da participação do maior número possível de profissionais do CMS,

“especialmente os mais resistentes16”, e solicita que todas as chefias técnicas busquem

facilitar o comparecimento dos profissionais sob sua responsabilidade, mediante

remanejamentos nas escalas. Esta oficina foi adiada diversas vezes, não ocorrendo até o

término desta pesquisa.

A seguir o diretor apresenta um resumo das principais questões debatidas em reunião

com o subsecretário municipal de saúde e a coordenadora da CAP, na última segunda-feira.

Eles prosseguem com a discussão acerca de questões burocráticas da instituição, como a

definição de um local para guardar uma cópia extra da chave da sala do diretor, o

fornecimento de copos para que pacientes e acompanhantes possam beber água nos bebedores

do CMS, entre outras.

                                                                                                                         16 Esta classificação será discutida mais adiante.

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Ocorre um momento em que todos falam ao mesmo tempo sobre mudanças impostas

pelo “nível central”, como a troca de funcionários com outra unidade. O diretor pede silêncio

e afirma enfaticamente: “a comunicação aqui é um problema muito grave!”.

Depois deste dia participei de mais doze reuniões das chefias. Não houve qualquer dia

em que o Acolhimento não fosse tema de discussão, especialmente em relação aos problemas

com a referência e contra-referência de pacientes. A principal queixa dos profissionais era

proveniente dos inúmeros casos de usuários que residem em áreas de cobertura de outras

unidades básicas da região e buscam o CMS pela falta de atendimento nas mesmas, o que

conduz a conflitos entre profissionais e usuários, diante da prescrição de encaminhamentos.

Outros assuntos recorrentes nestas reuniões foram: a deficiência no quantitativo de

médicos clínicos na unidade; a dificuldade de adaptação da equipe em relação ao novo

esquema de retirada dos prontuários de pacientes agendados; o que fazer com os

“funcionários-problema” (fala das chefias e dos gestores), com muitos atrasos e faltas sem

justificativas plausíveis; e as constantes reclamações dos profissionais, frente à exigência de

cumprimento da carga horária integral pelo diretor. Estes e outros tópicos serão discutidos

separadamente, na próxima parte deste estudo.

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PARTE 2

O ACOLHIMENTO

2.1. Uma normatização do cuidado

O Ministério da Saúde preconiza que a porta de entrada da atenção básica ocorra por

intermédio do Acolhimento com Classificação de Risco (ACCR). Conforme a Carteira de

Serviços da SMSDC-RJ (RIO DE JANEIRO, 2011, p. 9), toda unidade primária deve ter

minimamente uma sala de recepção com ACCR.

Esta normatização foi criada a partir da Política Nacional de Humanização (PNH),

com o intuito de “reduzir as filas e o tempo de espera (mediante) a ampliação do acesso e de

atendimento acolhedor e resolutivo baseados em critérios de risco” (BRASIL, 2004, p. 10).

Segundo documento oficial da PNH (BRASIL, 2004), esta é a primeira das quatro metas

prioritárias da Política juntamente com: o direito de todo usuário saber quem são os

profissionais que cuidam de sua saúde, e o dever dos serviços de se responsabilizarem por sua

referência territorial; a garantia de informações ao usuário, do acompanhamento de pessoas de

sua rede social e dos direitos do código dos usuários do SUS; e a garantia da gestão

participativa de trabalhadores e usuários, bem como da educação permanente dos

trabalhadores pelas unidades de saúde.

A cartilha Acolhimento nas Práticas de Produção de Saúde (BRASIL, 2008),

prescreve esta modalidade de assistência como uma das diretrizes de maior relevância ética,

estética e política da PNH:

- ética no que se refere ao compromisso com o reconhecimento do outro, na atitude de acolhê-lo em suas diferenças, suas dores, suas alegrias, seus modos de viver, sentir e estar na vida;

- estética porque traz para as relações e os encontros do dia-a-dia a invenção de estratégias que contribuem para a dignificação da vida e do viver e, assim, para a construção de nossa própria humanidade;

- política porque implica o compromisso coletivo de envolver-se neste “estar com”, potencializando protagonismos e vida nos diferentes encontros (BRASIL, 2008, p. 6).

Na medida em que se insere no discurso da Humanização, o Acolhimento tem como

pano de fundo os princípios gerais da própria PNH, tais como: a descentralização e a

regionalização da atenção e da gestão em saúde, e a ampliação dos níveis de universalidade,

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equidade, integralidade e controle social (BRASIL, 2004, p. 5). A seguir discuto cada uma

destas dimensões em separado.

Segundo diretrizes do Ministério da Saúde, a atenção básica deve se constituir como a

grande articuladora da rede de atenção à saúde, desenvolvendo-se como importante porta de

entrada e ordenadora da rede (BRASIL, 2011, p. 44). Assim, hipoteticamente, as unidades

básicas deveriam representar o tipo de serviço com maior grau de descentralização e

capilaridade, diante da proximidade do cotidiano da vida das pessoas e coletivos, em seus

territórios (BRASIL, 2011, p. 14). No entanto, na realidade, a procura exacerbada por

serviços de urgência e especializados pode ser, em grande medida, determinada pelas

limitações da oferta de assistência e capacidade de cuidado na atenção básica. Neste contexto,

o Acolhimento é desenhado com a finalidade de possibilitar que este nível da atenção se

configure como uma “porta aberta, capaz de dar respostas positivas aos usuários” (BRASIL,

2011, p. 14). Esta proposta está centrada na capacidade estendida de escuta e análise das

necessidades de saúde da população, por parte dos profissionais, de modo a ampliar o escopo

de possibilidades para lidar com a complexidade de sofrimentos, adoecimentos e demandas

que ali se apresentam. Neste “escopo de possibilidades” incluem-se dimensões subjetivas,

relacionadas à implicação pessoal de cada ator social na assistência em saúde, e objetivas,

vinculadas à perspectiva de “redes de atenção” em saúde (BRASIL, 2011, p. 13). Assim, para

que o Acolhimento possa cumprir com os objetivos prescritos, “é fundamental que as unidades

básicas possuam adequada retaguarda pactuada para o referenciamento dos pacientes que,

uma vez acolhidos, avaliados e tratados, necessitem de cuidados de outros serviços”

(BRASIL, 2011, p. 45). Para tanto, é essencial, em instância superior, que a gestão do sistema

de saúde funcione de forma articulada, complementar e não competitiva.

O princípio da universalidade remete à concepção da saúde como “um direito de todos

e um dever do Estado”, a partir da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988). Desta

forma, o direito à saúde constitui um direito fundamental de todo e qualquer cidadão, cabendo

ao Estado assegurar os meios necessários para que todos possam exercê-lo plenamente. Neste

contexto, a proposta do Acolhimento se apresenta como um dispositivo de garantia do acesso

universal ao sistema de saúde. O ideário é construído, então, centrado no objetivo primordial

de possibilitar que todo brasileiro se sinta cuidado, diante de suas demandas de saúde

(BRASIL, 2011, p. 13).

A equidade baseia-se na premissa de que é preciso tratar diferentemente os desiguais,

o que, no âmbito da assistência em saúde, reside na assistência de cada pessoa, de acordo com

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sua necessidade, de modo a evitar diferenciações injustas (BRASIL, 2011, p. 32). O discurso

oficial aproxima equidade da perspectiva de justiça. Neste contexto, defende-se a

Classificação de Risco enquanto instrumento de garantia da equidade, mediante uma

otimização dos fluxos de ofertas de serviços17, a partir da estratificação das demandas

singulares dos usuários. O ACCR é concebido, então, sob uma perspectiva usuário-centrada,

em oposição à lógica procedimento-centrada (BRASIL, 2011, p. 39):

A fila e a cota de ‘consultas do dia’ (senhas limitadas), além de submeterem as pessoas à espera em situação desconfortável e sem garantia de acesso, são muitas vezes o contrário do princípio de equidade, na medida em que o critério mais comum de acesso, nesses casos, é a ordem de chegada (BRASIL, 2011, p. 32).

A Classificação de Risco deve, portanto, orientar o tipo de intervenção necessária, bem

como o tempo em que isso deve ocorrer. Surgem, então, as noções de “demanda espontânea”

e “demanda programada”. A primeira refere-se aos usuários que chegam ao Acolhimento sem

agendamento prévio, para uma primeira avaliação de suas demandas; e a segunda concerne

àqueles que retornam para consultas ou procedimentos previamente marcados. Neste

contexto, “a agenda dos profissionais se torna um recurso-chave tanto para garantir a

retaguarda para o acolhimento, quanto para a continuidade do cuidado (programático ou não)”

(BRASIL, 2011, p. 35). A coordenação e o planejamento das agendas contribuem para reduzir

o tempo de espera para as consultas, o que acaba por favorecer a diminuição das taxas de

absenteísmo dos pacientes, uma vez que, quanto maior o intervalo para o retorno, maior a

chance dos usuários buscarem outros meios para resolver seus problemas (BRASIL, 2011, p.

36). Assim, prescreve-se o ACCR como dispositivo de reforço do vínculo entre usuários e

sistema de saúde.

Na perspectiva da “continuidade no cuidado” inclui-se a dimensão da integralidade,

enquanto princípio norteador das práticas de saúde. Esta proposição estrutura-se em três

níveis. Primeiro, ao considerar o âmbito das relações interpessoais que se estabelecem no

Acolhimento, pode-se verificar que a formulação do ideário se organiza em torno da

capacidade de “escuta ampliada”, por parte dos profissionais de saúde. Reforça-se a

“exigência de se considerarem (...) as dimensões orgânica, subjetiva e social do processo

saúde-doença-cuidado, para que as ações de cuidado possam ter efetividade” (BRASIL, 2011,

p. 19). Nos documentos oficiais, é evidente a preocupação em não burocratizar o Acolhimento

e o fluxo do usuário na unidade, sob a pena de reduzir a atenção básica a um pronto-

                                                                                                                         17 Para visualizar o fluxograma prescrito para a porta de entrada das unidades básicas de saúde, vide anexo 2.

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atendimento (BRASIL, 2011, p. 27). Assim, no nível institucional, destaca-se a importância

de não reduzir o Acolhimento a uma dimensão espacial, um lugar burocrático de passagem

para acesso às consultas especializadas ou outros tipos de serviços (BRASIL, 2008, p. 13). “O

Acolhimento não se reduz a uma etapa nem a um lugar” (BRASIL, 2011, p. 19), ao contrário,

ele deve estar presente em todas as relações de cuidado, nos encontros reais entre todo e

qualquer trabalhador de saúde e usuários, podendo acontecer de formas variadas. Trata-se,

pois, de um “compartilhamento de saberes, angústias” (BRASIL, 2008, p. 19), de uma

“solidariedade entre trabalhadores e usuários”, de modo que os últimos também possam

compreender o esforço de organização do acesso pelos primeiros, com vistas à “construção

permanente e solidária de laços de cidadania” (BRASIL, 2004, p. 9). Ainda, em um nível

mais amplo, isto é, na dimensão do sistema de saúde, a integralidade remete às noções de

“clínica ampliada” e “redes de atenção”, que visam assegurar um cardápio diversificado de

ofertas de cuidado.

Por fim, o controle social implica “na produção de um novo tipo de intervenção entre

sujeitos (...) fomentando seu protagonismo” (BRASIL 2004, p. 8). Assim, se por um lado, a

proposta do Acolhimento, inserida no discurso oficial de Humanização, aumenta o grau de co-

responsabilidade dos diferentes atores que constituem a rede de atenção em saúde e coloca os

profissionais como co-gestores de seu processo de trabalho; por outro, pretende garantir os

direitos de usuários e seus familiares, e estimular sua participação como atores do sistema de

saúde (BRASIL, 2004, p. 7).

A Humanização, como uma politica transversal, supõe necessariamente que sejam ultrapassadas as fronteiras, muitas vezes rígidas, dos diferentes núcleos de saber/poder que se ocupam da produção de saúde (BRASIL, 2004, p. 7).

O ideário é, portanto, permeado por conceitos como: “democratização”, “gestão

participativa”, “autonomia”, “direitos”, refletindo um esforço permanente de englobar todos

os atores envolvidos na produção das práticas de saúde, em uma atuação integrada e

colaborativa.

Não apenas os trabalhadores de saúde, mas o próprios usuários precisam compreender o que significa o acolhimento e se envolver com ele, seja para promover sua qualificação, ou mesmo para que se evitem eventuais desentendimentos no cotidiano do serviço (BRASIL, 2011, p. 40).

Nesta dimensão, o Acolhimento apresenta-se preeminentemente como uma “tecnologia

do cuidado” (BRASIL, 2011, p. 22), que almeja refletir um novo posicionamento ético-

político dos agentes de saúde.

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2.2. Uma realidade além da prescrita

“os homens são regidos não por palavras escritas em uma folha de papel ou por teorias abstratas, mas por outros homens” (DOUGLAS, 1998, p. 19)

No CMS observado, o Acolhimento “tradicional”18 é realizado em uma pequena sala,

no térreo. Na porta da sala há uma placa na qual está escrito “Acolhimento” e, abaixo, dois

papéis, com instruções aos pacientes, com a palavra “Triagem”19. Em um desses papéis consta

que “a prioridade não é exclusivamente por ordem de chegada”.

Em frente à porta da sala estão dispostas duas mesas, cada uma para um profissional,

com uma cadeira respectiva para o paciente. Os profissionais ficam sentados de frente para a

porta. Entre as mesas há uma janelinha na parede, para o setor de Documentação. Durante as

observações sentei-me em uma cadeira abaixo dessa janela, entre as mesas dos profissionais,

de frente para os usuários.

Cada mesa possui uma gaveta, na qual os profissionais deixam as senhas disponíveis

para atendimento naquele turno – cada senha é identificada com uma cor correspondente à

especialidade clínica, o nome do médico e um número que concerne à ordem de atendimento

–, as Guias de Referência e os Cartões de Marcação de Consulta. Sobre cada mesa estão

coladas duas folhas referentes à Classificação de Risco no Acolhimento 20 (em versão

resumida) e mais duas com os principais diagnósticos, segundo a CID 1021. Neste local

também estão colocadas duas pastas, com os endereços correspondentes a cada unidade

básica da área programática, isto é, ao lado de cada rua consta o nome da unidade básica de

referência. Esta pasta é muito consultada, especialmente porque, com a inauguração recente

da Clínica da Família da região, muitas pessoas foram realocadas e os profissionais devem

confirmar se o paciente permanece no conjunto de atendidos pelo CMS, antes de entregar-lhe

                                                                                                                         18 Tendo em vista as variações entre os Acolhimentos “tradicional” e do PSF, e considerando que a dinâmica de funcionamento no modelo “tradicional” repercutia debates mais frequentes, optei por observar apenas esta modalidade de Acolhimento. 19 Apontei esta contradição em uma das reuniões das chefias, quando o diretor justificou tratar-se de “um reflexo da dificuldade de assimilação do novo modelo pela equipe de modo geral”. Após alguns meses, os papéis com o dizer “Triagem” foram retirados. 20 Para visualizar o Protocolo para Classificação de Risco no Acolhimento, vide anexo 3. 21 A CID 10 corresponde à 10ª edição da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, publicada pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Trata-se de um sistema estatístico nacional, que adota a mesma classificação utilizada internacionalmente, pela ICD 10 (International Classification of Diseases and Related Health Problems). Este documento fornece códigos relativos à classificação de doenças e de uma grande variedade de sinais, sintomas, aspectos anormais, queixas, circunstâncias sociais e causas externas para ferimentos ou doenças. A cada estado de saúde é atribuída uma categoria única, que corresponde a um código CID 10. (Informações disponíveis em: http://www.medicinanet.com.br/cid10.htm. Acesso em abril de 2012).

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uma senha para atendimento. Nas mesas também ficam as pastas com as agendas da Pediatria,

da Dermatologia e da Pneumologia, e uma com um extenso documento para a Classificação

de Risco no Acolhimento. Este documento contém as possíveis classificações para cada

quadro clínico. Por exemplo, no caso de cefaléia, se for acompanhada por rigidez na nuca é

“vermelho”, dor moderada com vômitos é “amarelo”, dor leve é “verde”, e dor crônica ou

recorrente sem piora recente é “azul”. Os casos vermelhos e amarelos devem ser

encaminhados para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Os verdes e azuis são

atendidos na unidade básica de saúde.

Nas paredes da sala estão dispostos dois quadros com diversos papéis, com algumas

informações para os usuários. Dentre estas, consta que o Acolhimento para a Psicologia é

realizado às quartas e sextas-feiras às 15h por uma psicóloga, e às quintas e sextas às 09h30

por outra. No caso de paciente menor de idade, os pais devem comparecer sozinhos à primeira

consulta. O Acolhimento para a Homeopatia é realizado em grupo, em uma reunião que

acontece uma terça-feira por mês.

A dinâmica do Acolhimento é descrita a seguir. Todos os dias, antes do início de cada

turno (07h30 e 12h30), as pessoas se posicionam em filas, para aguardar atendimento. Estas

filas são organizadas pelos próprios usuários, de acordo com as especialidades clínicas.

Quando o Acolhimento se inicia, um segurança permanece do lado de fora da sala,

controlando as filas e a entrada dos pacientes. A chamada para o atendimento também é feita

por especialidade, o que significa que cada profissional atende os usuários de determinada fila

por vez. Como mencionado, esta primeira etapa é denominada pela equipe de “Triagem”.

Depois que as filas são esvaziadas, apenas o profissional da Enfermagem permanece no

chamado “Acolhimento”. No horário correspondente à troca de turno, das 12h às 12h30, o

Acolhimento é fechado, o que contradiz a determinação de funcionamento integral, segundo a

Carteira de Serviços da SMSDC-RJ (RIO DE JANEIRO, 2011, p. 25).

Após algum tempo de pesquisa, pude constatar que nos dois momentos – Triagem e

Acolhimento – a dinâmica com os pacientes é basicamente a mesma. A diferença consiste na

existência ou na ausência de vagas disponíveis para consulta no mesmo turno, o que acaba por

refletir na duração do atendimento. Quando não há mais senhas, o profissional despende mais

tempo na avaliação do caso, para decidir se concede uma senha extra para consulta no mesmo

turno, se agenda a consulta ou se solicita que o paciente retorne em outro turno ou dia, para

tentar nova vaga.

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Cada atendimento acontece da seguinte maneira. De modo geral, o usuário senta-se em

frente ao profissional e relata os motivos de sua vinda ao CMS. Ele aponta suas queixas e, por

vezes, o profissional faz algumas perguntas, para obter mais informações. Enquanto conversa

com o paciente, o profissional preenche um documento, nomeado pela CAP de Ficha de

Gerenciamento do Acolhimento, com as seguintes informações:

§ Número do prontuário - Só é possível saber se o paciente estiver com o Cartão de

Matrícula do CMS em mãos.

§ Nome completo

§ Sexo

§ Data de nascimento

§ Procedência: H (Hospital), U (UPA), UBS (Unidade Básica de Saúde) ou CP

(Conta Própria)

§ Motivo da procura - Refere-se à queixa do paciente

§ Classificação de Risco: A (Vermelho), B (Amarelo), C (Verde) ou D (Azul)

§ CID - Código relativo à CID 10.

§ Resolutividade: 1 (Acolhido + consulta no mesmo dia), 2 (Acolhido e

encaminhado para UBS de referência), 3 (Acolhido e encaminhado para UPA), 4

(Acolhido e encaminhado para Hospital), 5 (Agendado) ou 6 (Resolvido no

Acolhimento)

§ Bairro22

§ Adulto (código 88) ou Criança (código 87)

A falta de cuidado dos profissionais no preenchimento desta ficha foi apontada nas

reuniões das chefias e nas reuniões sobre o Acolhimento com as diferentes equipes, quando a

responsável da CAP reforçou a importância do documento, enquanto ferramenta para

reorganização do processo de trabalho na unidade. Durante as observações, por diversas vezes

notei que as profissionais não preenchiam completamente o documento, sobretudo os itens

relativos à Classificação de Risco e à CID.

Após ouvir o relato do paciente, o primeiro dado que o profissional busca esclarecer é

se ele pertence ou não à área de cobertura do CMS. Caso não pertença, é encaminhado

                                                                                                                         22 Este item foi incluído posteriormente, com o intuito de monitorar a frequência de pacientes de outras áreas.

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diretamente para a unidade de referência, por meio do preenchimento da Guia de Referência.

Nestas situações, observei que quase todos os profissionais reforçavam que, se porventura o

paciente não conseguisse atendimento em sua unidade de cobertura, não deveria sair de lá

sem o canhoto da Guia preenchido (Contra-Referência), pois assim ele e a equipe do CMS

poderiam saber o motivo pelo qual não fora atendido. Entretanto, há uma exceção: como as

outras unidades básicas da área não contam com certas especialidades, como Pediatria e

Dermatologia, os usuários que demandam atendimento por estas clínicas são atendidos neste

CMS.

Durante a observação, constatei que, nos casos que deveriam ser atendidos nesta

unidade, as senhas foram, na maioria das vezes, distribuídas pela ordem de chegada. De modo

geral, apenas quando não havia mais números para aquele turno, os pacientes eram agendados

(para as especialidades que possuem agenda) ou solicitava-se que eles retornassem em outro

dia, quando haveria nova oferta de vagas para consulta.

Cada senha distribuída é anexada ao Cartão de Matrícula do paciente e colocada na

janelinha para Documentação, de onde saem os prontuários diretamente para cada setor. Ao

final, pede-se ao paciente para ir até o setor em que será atendido e aguardar a chamada para

consulta. Se o paciente não possuir o Cartão do CMS ou não estiver de posse dele no

momento, recebe a senha e solicita-se que se dirija à janela da Documentação, no corredor ao

lado, para que faça sua matrícula. Para tanto, é necessário que tenha em mãos um documento

de identificação (identidade ou certidão de nascimento) e um comprovante de residência.

No primeiro dia de observação busquei acompanhar simultaneamente os atendimentos

das duas profissionais. No entanto, como cada atendimento ocorre rapidamente, a partir do

segundo dia acompanhei apenas um profissional por vez, com o intuito de observar

atentamente cada situação. Além disso, com a progressiva definição do novo objeto e

objetivos da pesquisa, tornou-se imprescindível a concentração em cada interação

estabelecida naquele espaço.

A seguir apresento as principais questões apreendidas durante a pesquisa de campo.

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Você sabia...

Que a triagem é chamada de Acolhimento? Que o paciente é chamado de usuário?

Esta mensagem estava afixada em um dos murais do CMS, próximo ao local em que se

formam as filas para o Acolhimento “tradicional”. Ela reflete uma das questões mais

debatidas entre gestores e profissionais da unidade: a indefinição das fronteiras entre as

categorias Triagem e Acolhimento.

A proposta do Acolhimento foi instituída com o intuito de acabar com a tradicional

Triagem, que limitava a oferta dos serviços à concessão de senhas por ordem de chegada.

Portanto, hipoteticamente, o novo modelo pressupõe e objetiva uma superação da lógica

centrada no procedimento, mediante a qual a recepção da demanda espontânea restringia-se a

uma ação de triagem administrativa, cuja finalidade seria o repasse do problema. A nova

perspectiva afirma-se centrada no usuário, com foco em seu sofrimento e suas “necessidades

de saúde”. Neste contexto, a substituição do termo paciente por usuário vai de encontro com

a proposta de implementação de um atendimento “mais humano”, uma assistência integral em

saúde centrada no sujeito enquanto agente de seu processo saúde/doença/cuidado.

Prescreve-se, então, que a oferta de serviços seja reorganizada a partir da

implementação efetiva da Classificação de Risco, como dispositivo de garantia da equidade

na assistência em saúde, mediante uma “escuta ampliada” das demandas da população e um

“escopo ampliado de ofertas” de assistência. No entanto, o próprio discurso normativo prevê

que, na prática, o Acolhimento da demanda espontânea na atenção básica está, com alguma

frequência, reduzido a uma triagem para o atendimento médico, principalmente quanto esta é

a principal, ou a única, oferta de cuidado da unidade (BRASIL, 2011, p. 39).

Os profissionais do CMS pesquisado dividem o momento do Acolhimento em dois.

Primeiro, uma etapa por eles ainda denominada como “Triagem”, na qual dois profissionais

avaliam cada caso, de modo a distribuir rapidamente todas as senhas para consulta no turno,

antes do início dos atendimentos, pelos médicos. O objetivo final desta etapa consiste na

extinção das longas filas de pacientes. A ausência de uma “escuta ampliada” neste momento

se reflete no questionamento de uma chefia técnica, que afirma não concordar com o fato de

estar alocada ali, frente à ausência de formação técnica para realizar uma “avaliação efetiva

dos casos”. Em conversa informal com esta profissional, ela relata já ter solicitado sua

substituição nesta função, uma vez que tem dificuldade de avaliar os casos, por não ser

médica nem enfermeira, além de achar o trabalho ali “muito chato”.

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Após o término das senhas disponíveis, apenas um profissional permanece na sala –

geralmente a enfermeira que já estava na primeira etapa –, iniciando o período então

denominado “Acolhimento”. A partir daí, cada caso é avaliado com mais atenção, para

determinar a oferta de assistência, dentre as possibilidades restantes, que geralmente

consistem em: agendamento da consulta; indicação para retorno, para nova tentativa de vaga

em outro turno/dia; e, por vezes, entrega de senha extra, para atendimento naquele turno.

Neste segundo momento parece haver, enfim, uma “escuta estendida”, o que pode ser

ilustrado pela fala de uma enfermeira: “Agora que acabaram os números, tenho que ver qual

é o problema de cada um”.

A indefinição entre estas duas categorias também estava explícita nas indicações

colocadas na porta da sala. Enquanto uma placa determinava que ali era o espaço destinado ao

“Acolhimento”, papéis avulsos denominavam as atividades ali realizadas de “Triagem”.

Outro dado controverso é que um destes papéis indicava: “Triagem - a prioridade não é

exclusivamente por ordem de chegada”.

Portanto, uma imprecisão, que poderia parecer apenas nominal, revela a dificuldade de

uma compreensão efetiva das propostas do Acolhimento, pela equipe da unidade. O

descompasso entre as prescrições normativas e a realidade das práticas estava impresso em

papéis, era nomeado pelos diferentes atores e se fazia presente no atendimento destinado ao

usuário, no momento de sua chegada à unidade.

“O Acolhimento não é um espaço, é uma atitude”

Esta fala possibilita reflexões acerca da dimensão de territorialização do cuidado. O

discurso oficial define o Acolhimento como “uma prática presente em todas as relações de

cuidado, nos encontros reais entre trabalhadores de saúde e usuários, nos atos de receber e

escutar as pessoas, podendo acontecer de formas variadas” (BRASIL, 2011, p. 19). A

prescrição para atendimento de forma “solidária” dos usuários que chegam na unidade, pela

primeira vez ou em continuidade, se estende a todos os profissionais do serviço. Assim,

apesar da importância de garantir espaços reservados para uma escuta e identificação de

riscos, como o atendimento individual pela Enfermagem, “já na recepção da unidade, uma

atendente, um porteiro ou um segurança podem identificar situações que apresentam maior

risco ou que geram sofrimento intenso” (BRASIL, 2011, p. 32).

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No entanto, no CMS observado, as discussões sobre o Acolhimento não se estendiam à

toda equipe profissional. Ao contrário, em uma das reuniões para implementação da nova

proposta, a responsável pelo Acolhimento na CAP destacou que “os vigilantes (referindo-se

especialmente aos que ficam posicionados na porta da sala do Acolhimento, organizando as

filas) não podem dar qualquer informação para os usuários”. Além disso, até o término da

pesquisa, quando o Acolhimento já estava em funcionamento, estas reuniões foram realizadas

apenas com as chefias gerais da unidade; a equipe de Enfermagem, que fica à frente nesta

modalidade de assistência; e a equipe da Clínica Médica, que supostamente comportaria os

profissionais “mais resistentes” (fala do diretor e das chefias) às mudanças prescritas. Não foi

possível observar qualquer movimento, por parte dos gestores, na direção de ampliar as

discussões, de modo a integrar os profissionais administrativos, os terceirizados e os usuários,

que hipoteticamente deveriam ter seu direito de participação e controle social assegurado pela

nova proposta.

Para além disso, as discussões sobre o Acolhimento limitaram-se a ponderações sobre

diretrizes burocráticas, definições concretas e questões formais sobre a rede de atenção em

saúde. Na tentativa de consolidar um único discurso e uniformizar a prática, não foram

enfocados os desafios da diversidade, do encontro com o outro, da identificação, da

diferenciação e dos conflitos.

“Aqui cada um faz como bem quer”

Esta frase, repetida pelo diretor com o intuito de ressaltar a falta de uniformidade nas

condutas profissionais no Acolhimento – e em outras atividades gerais da unidade – indica,

mais uma vez, o descompasso entre prescrição e realidade. Ela foi seguida narrativas como:

“então, você precisa ganhar a pessoa na ideia”; “não adianta impor nada, pois não há como

ter o controle”; “é necessário convencer os profissionais a seguir a nova proposta”.

O manual oficial da nova política destaca que “há acolhimentos e acolhimentos”

(BRASIL, 2011, p. 19), apontando a existência de múltiplas perspectivas e intencionalidades,

por parte de seus diferentes agentes. Assim, o Acolhimento consiste em uma “prática

constitutiva das relações de cuidado” (BRASIL, 2011, p. 19), revelando-se menos nos

discursos sobre ele do que nas suas realizações concretas.

Durante as observações foi possível notar diferenças na forma como cada profissional

desempenhava o Acolhimento. Inicialmente tendi a considerar que as chefias técnicas ali

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alocadas realizavam avaliações mais cautelosas, em decorrência de maior conhecimento das

prescrições oficiais, frente à recorrência do tema nas reuniões observadas. No entanto, com o

desenrolar da pesquisa, observei que as variações estavam conectadas a dois aspectos: (1) à

atenção no preenchimento de documentos – como as Guias de Referência e a Ficha de

Gerenciamento do Acolhimento – e (2) ao cuidado, propriamente dito, dispensado ao

paciente. Com o avanço da investigação, pude constatar que estas diferenças correspondiam à

questões vinculadas a dois níveis de interação, respectivamente: (1) entre profissionais,

chefias e gestores, e (2) entre profissionais e usuários.

A atenção no preenchimento de documentos, especialmente no que concernia à

Classificação de Risco e à CID 10 na Ficha de Gerenciamento, estaria associada ao nível de

conhecimento e ao comprometimento do profissional, em relação às normatizações e

diretrizes oficiais. Esta observação conduziu a reflexões mais amplas, acerca dos vínculos e

hierarquias institucionais.

Cabe indicar que as argumentações aqui desenvolvidas apoiam-se na concepção de

hierarquia, segundo Dumont (LEIRNER, 2003), como categoria universal, que reflete a

distribuição de valor diferencial em determinada sociedade ou grupo social, permitindo a

orientação do sujeito em situação, sem necessariamente implicar em dominação e exploração.

A associação entre hierarquia e poder é, portanto, fruto da ideologia individualista moderna,

que tem a igualdade como valor preeminente (DUARTE, 2003). Neste momento, limito-me a

apontar os diferentes níveis de configuração social do sistema de saúde, sem avançar na

análise das dimensões de autoridade e poder, presentes nas interações entre os distintos atores.

No âmbito do sistema público de saúde, é possível distinguir cinco níveis de agência:

gestão – direção das unidades de saúde – chefias – profissionais – usuários. O nível da gestão

é composto, hierarquicamente, por: Ministério da Saúde – Secretarias Municipais de Saúde –

Coordenações de Áreas Programáticas. Dentre as chefias e os profissionais, há uma

subdivisão entre administrativos e técnicos, e entre os funcionários públicos e privados

(terceirizados).

Ao assumir a perspectiva de um modelo englobante, no qual o MS engloba a SMS, a

SMS engloba a CAP, que engloba a direção, que engloba as chefias e assim por diante, é

possível visualizar a distância entre os profissionais da unidade e as diretrizes oficiais. Mary

Douglas (1998) aponta que “em níveis mais elevados de organização, os controles sobre os

membros que a constituem, situados em níveis mais baixos, tendem a ser mais fracos e mais

difusos” (DOUGLAS, 1998, p. 12). Neste cenário, a função mediadora da direção e das

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chefias adquire importância significativa, para o fluxo contínuo de transmissão de

informações no sistema. Pode-se ainda pressupor uma proximidade maior da direção com a

CAP e a SMS (para cima) e com as chefias (para baixo), e das chefias respectivamente com a

direção (para cima) e com os profissionais (para baixo). Neste fluxo hierárquico, de

proximidades e distanciamentos, a interação entre a direção e as chefias merece destaque.

Um dos aspectos mais destacados pelo diretor, nas reuniões observadas, foi a

dificuldade de comunicação na instituição, especialmente intra e inter-equipes. Sua queixa

residia na falta de reverberação de suas determinações – condizentes com as diretrizes do MS

e da SMS – para os profissionais da unidade, via chefias diretas. Seu posicionamento pode ser

ilustrado pela seguinte fala:

A gente tem que ter uma direção e a nossa direção é a SMS. A função de cada chefia que aqui está é fazer reverberar as decisões aqui tomadas para todos os funcionários, porque eu não tenho como ter o controle.

Em diversos momentos presenciei situações que evidenciam o hiato entre as chefias e

a direção. As chefias assinalaram a distância em que percebem-se posicionadas, relativamente

à direção, especialmente em função da proximidade do diretor com o “nível central”. De fato,

o diretor possui intercâmbio direto com a CAP e a SMS. Este grau de comunicação é maior –

comparativamente com o relacionamento com níveis mais baixos (chefias, profissionais e

usuários) –, não apenas pela posição do diretor no sistema, mas também por sua trajetória

profissional e alguns vínculos pessoais. Neste contexto, as chefias muitas vezes se referiam a

ambos – direção e “nível central” – como um único elemento, principalmente pela

uniformidade discursiva, frente às exigências de cumprimento das diretrizes oficiais. Esta

associação pode ser ilustrada pela fala de uma chefia, no Acolhimento, referindo-se à

dificuldade para cumprir com a determinação de não atender os usuários residentes em áreas

de cobertura de outras unidades básicas da região. O usuário reclama por não conseguir

atendimento no CMS e ser referenciado para outro serviço. A chefe dirige-se para mim e

afirma: “É isso que eles lá em cima (referindo-se à direção e CAP/SMS) não entendem!”.

A distância entre as chefias e a direção também ficou explícita em reuniões nas quais o

diretor não esteve presente. Nestas ocasiões, as chefias expressavam mais abertamente suas

insatisfações, frente às exigências do diretor e/ou da gestão. Em determinada reunião, quando

conversam sobre as dificuldades de referência dos usuários da área de cobertura de outras

unidades que chegam para o Acolhimento ali, há a manifestação de um consenso de que “não

há solução”, pois os fluxos prescritos não correspondem à disponibilidade de ofertas de

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serviços da rede. Em certo momento, uma chefe declara: “O diretor é uma pessoa muito

volátil”, referindo-se à sua percepção da passividade dele diante das decisões do “nível

central”. As chefias combinam, então, de conversar com o diretor, na próxima reunião em que

estiver presente, sobre suas opiniões e insatisfações acerca das decisões do “nível central”,

mas isto não aconteceu.

No nível da interação intra e inter-equipes, algumas chefias frequentemente se

posicionavam em defesa da equipe profissional sob sua responsabilidade direta, perante o

diretor e seus pares. Neste contexto, alguns embates foram travados entre chefias técnicas e

administrativas, em prol de uma definição do escopo de funções e atividades de cada equipe.

Cabe ainda mencionar os conflitos entre as equipes ditas “tradicionais” e as do PSF.

Segundo o diretor, “há muita resistência por parte dos médicos tradicionais em relação à

equipe do Programa”. Em certa reunião, uma chefia comenta um boato23, que surgiu entre os

funcionários, de que o CMS acabaria, em função da redução da demanda de pacientes

“tradicionais”, refletindo uma ameaça, em face da chegada de mais duas equipes do PSF:

“quem iremos atender?”. O diretor não leva a discussão adiante, ressaltando que ainda

restavam mais de 50 mil usuários na área de cobertura do CMS. Em conversa informal com

outra chefia, ela reclama que “todos os investimentos são alocados para o PSF, enquanto os

efetivos não têm condições adequadas de trabalho”, exemplificando com o fato de sua sala

estar interditada há mais de um ano, diante da necessidade de consertos estruturais, e

completa: “e o diretor, por ser militante do PSF, não reconhece isso”.

Outro aspecto relevante para compreensão do funcionamento do sistema reside nas

exigências de (des)burocratização. Segundo discurso do diretor – que coincide com as

determinações oficiais – uma das metas centrais da SMS é a desburocratização dos processos.

No entanto, a própria Secretaria prescreve uma série de burocracias, para o gerenciamento dos

fluxos no sistema. Por exemplo, se um paciente chegar no Acolhimento precisando de

atendimento para Oftalmologia, Ortopedia, Urologia, Angiologia, Proctologia, Gastrologia,

entre outras especialidades que o CMS não possui, o profissional deve preencher à mão um

encaminhamento para o SISREG (Sistema de Regulação da SMS). Este papel deve ser

entregue para um técnico administrativo, que passará as informações para o sistema digital, de

modo a realizar o agendamento online. Após isso, ele deve entregar o papel para uma chefia

                                                                                                                         23 A fofoca constitui relevante temática de estudos antropológicos, que revelam seu poder, enquanto prática socialmente autorizada, capaz de produzir controle social. Sobre o tema, ver: Fonseca, 2004; Jones, 2009.

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técnica, encarregada de telefonar para o usuário para informar a data, o horário e o local da

consulta. Este é um dos muitos processos vigentes.

Com a implementação dos agendamentos no CMS, uma questão recorrente nas

reuniões das chefias consistiu nos problemas com a retirada prévia, no dia anterior à consulta,

dos prontuários de pacientes agendados. O foco das discussões centrava-se na definição do

responsável em casos de extravio dos prontuários: a enfermeira que pega os prontuários na

Documentação Médica, o médico que os utiliza na consulta, ou o profissional da

Documentação que deve arquivá-lo novamente. Uma das soluções encontradas foi

implementar o registro de retirada e devolução dos prontuários em um livro ata, o que não

resolvia efetivamente a questão da responsabilidade.

Segundo Weber (2001), a burocracia é uma forma de organização humana que se

baseia na racionalidade, na adequação dos objetivos pretendidos, para garantir a máxima

eficiência possível. A racionalidade burocrática opera uma lógica institucional classificatória

que se sustenta sobre a abstração e o estabelecimento de uma rotina (DOUGLAS, 1998, p.

99). Enquanto dispositivo organizacional, suas principais dimensões são: o caráter legal das

normas, o caráter formal das comunicações, a divisão do trabalho, a impessoalidade no

relacionamento, a hierarquização da autoridade, a competência técnica, a profissionalização e

a previsibilidade do funcionamento. A racionalidade burocrática é resultante do processo de

“secularização”, que corresponde ao avanço linear da racionalidade no Ocidente, na razão

direta do desencantamento da religião (WEBER, 2001). A “secularização” está, portanto,

associada à gênese da cultura ocidental moderna, na qual as dimensões sociopolítica e

tecnocientífica são centrais.

A biomedicina representa a instituição da ideologia moderna por excelência, na

medida em que opera sob a primazia da racionalidade científica (DUARTE, 2003;

CAMARGO JR., 2005). Neste contexto, os saberes e os discursos biomédicos, ao se

sustentarem em uma cientificidade baseada em evidências, têm sua legitimidade garantida

oficialmente. A partir desta dimensão sociopolítica, o Acolhimento pode ser concebido como

uma construção histórico-cultural da ideologia individualista moderna, na medida em que se

institui no horizonte regido pelos princípios de igualdade, liberdade e autonomia individual. O

discurso oficial defende o Acolhimento como uma “tecnologia de cuidado” (BRASIL, 2011),

que teria como meta central favorecer o acesso às narrativas dos sujeitos, deslocando o foco

da doença para o doente, e garantindo seu reconhecimento enquanto agente no processo

saúde/doença/cuidado. O Acolhimento apresenta-se, então, como um instrumento ético-

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político, que operaria de acordo com uma lógica dialógica, não unilateral, com vistas à

inclusão do usuário em seu plano de cuidado, favorecendo consequentemente sua vinculação

com o sistema de saúde. A Classificação de Risco, por sua vez, se estabelece a partir do

princípio da equidade, garantindo a oferta “justa” de serviços, mediante uma avaliação

integral das necessidades de saúde da cada cidadão.

Entretanto, a realidade segue na contramão destes propósitos. A partir da pesquisa de

campo, observei que a Classificação de Risco institucionaliza uma racionalidade burocrática,

que determina critérios objetivos para avaliação e categorização de aspectos subjetivos, como

dor e sofrimento. A pretensa objetividade científica destitui da palavra sua dignidade ética,

que garantiria o reconhecimento do outro em sua singularidade, reduzindo seu estatuto à mera

busca de informações, para composição do caso clínico (DESLANDES, 2004, p. 11). Desta

maneira, este dispositivo contribui para a manutenção da autoridade biomédica24.

Cabe aqui um parênteses para mencionar a perspectiva de Ginzburg (1990), que aponta

a associação entre a semiologia médica e o paradigma indiciário, tendo em vista que o modelo

epistemológico da medicina se ampara na investigação de sinais e sintomas. Como um

detetive, o médico (leia-se os agentes da biomedicina) constrói(em) seu conhecimento

baseado(s) em “indícios imperceptíveis para a maioria” (GINZBURG, 1990, p. 145).

Antropólogos, como Good (1994) e Bonet (2004), revelam a primazia do diagnóstico

na construção do saber biomédico, cujo objetivo final consiste, invariavelmente, na

descoberta da patologia do paciente. “Os médicos concedem essa valorização especial ao

‘diagnóstico’ porque nele se encontram depositadas as expectativas e esperanças de resolução

do caso exposto pelo paciente” (BONET, 2004, p. 89). Logo, na prática, a Classificação de

Risco se sustenta justamente neste propósito, de possibilitar uma avaliação do potencial de

risco, agravos à saúde e/ou grau de sofrimento, que possa determinar não somente o tipo de

intervenção necessária, mas especialmente o tempo em que isto deve ocorrer (BRASIL, 2011,

p. 32).

Ao se amparar nas categorias risco e vulnerabilidade, este dispositivo reflete ainda

dimensões morais que, frequentemente, implicam na culpabilização dos sujeitos, por sua

enfermidade e sofrimento (LUPTON, 1997, p. 83). Para Lupton (1997), a noção de risco

                                                                                                                         24 A produção de saúde no Brasil aproxima-se de um modelo paternalista de assistência, no qual o médico comunica sua decisão ao paciente, sem diálogo prévio sobre as possibilidades diagnósticas e/ou terapêuticas. Este modelo se contrapõe ao modelo informativo, predominante nos Estados Unidos, e ao modelo compartilhado, preeminente na Inglaterra, no qual a decisão é tomada em parceria entre profissional e enfermo. Sobre o tema, ver: Wirtz et al., 2006; Karnieli-Miller; Eisikovits, 2009).

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consiste em uma construção social que reflete uma compreensão racionalista da realidade, a

partir da qual eventos indesejados podem – e devem – ser previstos e, consequentemente,

evitados. No âmbito da assistência em saúde, esta noção se aproxima da categoria perigo

(DOUGLAS, 1976), afirmando um imperativo para o cuidado, mediante a imposição – ainda

que não expressa explicitamente – da obrigação dos sujeitos de participarem dos cuidados de

sua saúde. Assim, se por um lado, o discurso normativo aponta a co-responsabilização como

caminho para (re)construção da autonomia dos sujeitos (BRASIL, 2011, p. 39); por outro, na

prática, os indivíduos são classificados a partir de um aparato político-instrumental que

garante um controle sob os corpos.

Douglas (1998) assinala que as instituições operam uma classificação, pois, ao

produzirem rótulos, conferem uniformidade e estabilidade ao fluxo da vida social. Além

disso, as instituições se fundam em uma analogia elaborada a partir do corpo – tendo em vista

a preeminência da mão direita sobre a esquerda (HERTZ, 1980), do norte sobre o sul, do

masculino sobre o feminino –, o que permite que, de uma simples complementariedade, possa

emergir uma hierarquia política (DOUGLAS, 1998, p. 59). No cenário observado, em

descompasso com as novas propostas, a produção do cuidado permanece sustentada em

relações hierárquicas que, longe de garantir igualdade entre os sujeitos, acabam por refletir a

tradução de diferenças em desigualdades. Neste contexto, a assimetria nos níveis de

conhecimento transforma-se em dimensões de poder, mantendo aberta a lacuna sobre as

formas de garantir ao usuário maior equidade no processo comunicacional (DESLANDES,

2004, p. 13).

Durante a pesquisa, pude observar que as variações na interação com os usuários, na

avaliação dos casos e, consequentemente, nas possibilidades de oferta de assistência, não

diziam respeito às posições hierárquicas ou ao nível de conhecimento das normatizações, mas,

sobretudo, à disposição pessoal de cada profissional. Neste contexto, o cuidado pode ser

entendido como uma construção humana, um bem simbólico à disposição no circuito de

trocas sociais (MOREIRA, 2007, p. 303).

No entanto, uma vez que a disponibilidade para a escuta e o cuidado se configura

como uma competência individual e as próprias diretrizes oficiais baseiam-se em categorias

(inter)subjetivas, como sensibilidade, solidariedade e ética, como sustentar a defesa do

Acolhimento como “tecnologia do cuidado”?

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“As pessoas nem sentam para escutar o paciente, ouvir o que ele quer”

A indagação acerca de qual seria a lógica que rege esta nova modalidade de assistência

em saúde, o Acolhimento, permeou todo desenvolvimento deste estudo. A proposta de

reestruturação da atenção em saúde, inserida no discurso político da Humanização, está

organizada em torno de dois eixos: (1) uma discussão acerca da ética, com vistas à construção

de uma nova ordem relacional, fundamentada em interações mais horizontais entre

profissionais e usuários; e (2) uma política de defesa dos direitos de cidadania dos sujeitos

implicados na produção de saúde, mediante o reconhecimento do direito de cuidar e ser

cuidado com qualidade (SOUZA; MOREIRA, 2008).

A dimensão ética revela a solidariedade e alteridade como valores centrais,

norteadores das mudanças na cultura de assistência em saúde (DESLANDES, 2004, p. 12). A

solidariedade implica uma “tomada de posição identificatória com o outro, mesmo que esta

alteridade esteja marcada por uma reciprocidade baseada na diferença, seja de classe social,

gênero, repertório cultural e/ou de conhecimento” (SOUZA; MOREIRA, 2008, p. 307). Neste

contexto, a proposta de humanização se apresenta em oposição à violência resultante da falta

de reconhecimento do outro em sua diversidade, sua singularidade. A diferença deve ser,

portanto, reconhecida como um imperativo, sem ser reduzida a uma assimetria, sem gerar

desigualdade. Assim, o Acolhimento inscreve-se como uma lógica de cuidado, uma prática

“solidária”, que reforça a perspectiva do encontro intersubjetivo, do diálogo, das negociações

dos sentidos e rumos da produção de cuidados em saúde (DESLANDES, 2004, p. 13).

Uma chave para análise destas questões consiste na oposição racionalidade x

sensibilidade. O racionalismo cartesiano contribui para a vigência de uma razão científica em

saúde, que separa corpo de mente, razão de emoção, objetividade de subjetividade (SOUZA;

MOREIRA, 2008, p. 330). A legitimidade da autoridade biomédica na sociedade moderna

sustenta-se em sua pretensa garantia de cientificidade, racionalidade, objetividade e

neutralidade. Por outro lado, diversos antropólogos, como Good (1994), Bonet (2004),

Camargo Jr. (2005) e Menezes (2005), indicam que o exercício da biomedicina é constituído

por uma dupla dimensão: racionalidade/experiência, objetividade/subjetividade, saber/sentir.

A partir de etnografia da formação médica, Bonet (2004) revela a existência de uma “tensão

estruturante” que se impõe aos estudantes de medicina, mediante os imperativos da

competência e do cuidado, como categorias concorrentes e, ao mesmo tempo,

complementares. Assim, à medida que a produção do saber só é possível a partir do sentir na

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relação com o outro, é justamente no contínuo movimento de aproximação e de

distanciamento dos pacientes que o futuro profissional constrói sua nova identidade.

A proposta do Acolhimento pretenderia, portanto, unir estas dimensões, assumindo o

cuidado como uma competência. Neste contexto, a ênfase na “humanização” das práticas se

faz presente como um qualificativo positivo, como uma retórica que investe no valor

associado a uma marca, que garantiria – ou pretenderia garantir – qualidade a quem a utiliza

(SOUZA; MOREIRA, 2008, p. 328).

O segundo eixo consolida a humanização como política transversal, centrada na

concepção de saúde como direito civil de todo cidadão brasileiro. Fruto da PNH, o

Acolhimento assume o compromisso de contribuir para o fomento da autonomia e do

protagonismo dos sujeitos envolvidos no processo saúde/doença/cuidado, mediante a

democratização das estruturas de poder. Contudo, na rotina da atenção à saúde, permanece

reservado aos usuário o lugar de coadjuvante, na medida em que o ideário profissional e o

imaginário social atribuem preeminência à técnica (SOUZA; MOREIRA, 2008, p. 333).

Por outro lado, a concepção de saúde como direito do cidadão conduz a novas

modalidades de atuação política e social. “O acesso à saúde torn(ou)-se assim uma questão de

justiça social, igualdade e liberdade, não mais restrita aos cuidados aos enfermos como um

valor moral exclusivamente” (VENTURA, 2012, p. 6). Neste cenário, crescem as demandas

judiciais, com vistas a garantir a equidade na alocação de recursos e na oferta da assistência

em saúde.

Mas, afinal, qual é a lógica que sustenta o Acolhimento, como posicionamento ético-

político inovador, no âmbito da produção do cuidado em saúde? A partir de investigação

acerca das estratégias das instituições e dos profissionais de saúde, para lidar com a doença e

os doentes, Mol (2008) revela duas lógicas: do cuidado e da escolha. Enquanto a lógica do

cuidado está centrada em dimensões coletivas como solidariedade, respeito mútuo, troca e

reciprocidade; a lógica da escolha defende a autonomia individual. Assim, enquanto a

primeira se sustenta em uma dimensão relacional, a segunda encontra-se intimamente

vinculada ao ideal de liberdade individual, característico da cultura ocidental moderna.

Estas concepções aproximam-se da perspectiva teórica de Duarte (2003), em torno do

esquema indivíduo x pessoa, acerca das formas diferenciais de experiência da saúde e da

doença. A categoria indivíduo designa um “sujeito específico da modernidade: um ser

indiviso dotado de liberdade e igualdade, senhor de uma vontade e de responsabilidade ou

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senso moral próprio” (DUARTE, 2012, p. 143). Esta categoria constitui, portanto, o núcleo

ideológico da noção de cidadania, suporte da ordem liberal e do mundo público moderno. Em

contrapartida, a noção de pessoa reflete uma visão dos sujeitos como “entes socialmente

relevantes imersos em sua rede de relações e em sua trama densa de atribuições e

significados” (DUARTE, 2012, p. 141). A ideia de pessoa seria, então, indissociável de uma

representação holística e hierárquica da ordem social.

Duarte (2003, p. 176) aponta, ainda, que “todas as sociedades são essencialmente

holistas (na medida em que) têm de se fundar em algum tipo de ordem relacional nas suas

formas societárias efetivas”. Mol vai além, ao afirmar que “nós (leia-se indivíduos ocidentais

modernos) não temos tantas escolhas quanto pensamos” e, por isso, estamos “longe de ser

autônomos” (MOL, 2008, p. 4-6, tradução minha25). Portanto, as sociedades ditas “modernas”

não podem ser linearmente descritas como “individualistas”, mas como referidas à “ideologia

do individualismo” (DUARTE, 2003; LEIRNER, 2003).

Ao aproximar as categorias de pessoa e indivíduo e as concepções de Mol (2008), é

possível afirmar que a oposição entre um ser relacional x um ser autônomo se refletiria, no

âmbito da atenção em saúde, na dualidade das lógicas do cuidado e da escolha,

respectivamente. Neste sentido, cabe ainda considerar a distinção estabelecida por Simmel

(1971) entre individualismo quanti e qualitativo. O primeiro está centrado na afirmação da

liberdade, igualdade e autonomia dos sujeitos sociais. O individualismo qualitativo, por sua

vez, pertence ao ideário romântico da singularidade, interioridade, autenticidade e criatividade

dos sujeitos da cultura.

A partir destas ponderações, ao retomar a perspectiva do Acolhimento como uma

construção histórico-cultural da ideologia individualista moderna, apresento uma associação

de suas dimensões ética e política com os esquemas propostos:

Dimensão ética Posicionamento político

Foco no encontro, no diálogo Foco na autonomia

Lógica do cuidado Lógica da escolha

Noção de pessoa Noção de indivíduo

Individualismo qualitativo Individualismo quantitativo

                                                                                                                         25 No original: “So ‘we’ in ‘the West’ may not have as much ‘choice’ as we think” (p. 4) // “we are far from autonomous” (p. 6).

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Ao atentar para o Acolhimento em sua dimensão ética, foi possível observar que, em

muitas situações, a expectativa de recepção cuidadosa, por parte dos usuários, não era suprida,

o que pode ser ilustrado pela fala que intitula este tópico: “As pessoas nem sentam para

escutar o paciente, ouvir o que ele quer”.

Ao considerá-lo como um novo posicionamento político, observa-se que a pretensa

“autonomia do paciente”, enquanto sujeito de direitos, permanece, na maioria das vezes,

subordinada à diretrizes e aos fluxos institucionais, à burocracia e, sobretudo, à lógica

racionalista do saber/poder. As possibilidades de inclusão dos usuários, enquanto agentes dos

processos de produção de cuidado, restringem-se às delimitações que refletem diferentes

níveis de hierarquização do sistema. Uma situação observada é exemplar. Em uma reunião

das chefias discutia-se a definição dos locais para colocação de cartazes para alerta da

população acerca da necessidade de realização de exames para detectar doenças sexualmente

transmissíveis, como sífilis, HIV e hepatite, por pessoas que tiveram relação sexual sem uso

de preservativo. Uma chefia técnica interrompe a discussão, afirmando: “isso (a colocação

dos cartazes) é uma faca de dois gumes, pois vai aumentar a demanda para os médicos e não

temos senhas suficientes para todos”.

A construção política e moral da saúde como um direito, como um bem no circuito de

trocas sociais (MOREIRA, 2007, p. 303), possibilitou a ampliação da atuação política e social

dos sujeitos, especialmente no campo das demandas por justiça26 em saúde. O estudo de

Ventura (2012) sobre as crescentes reinvindicações judiciais por bens e serviços de saúde

contra entes públicos no Brasil aponta que uma dificuldade resultante desta passagem da

saúde para o direito à saúde consiste no fato de que a realização deste direito comporta uma

satisfação de uma dimensão privada, que exige respeito às subjetividades, aos direitos e

liberdades pessoais. Além disso, concerne a uma dimensão coletiva, que requer assegurar esse

bem-estar individual a todos, a um custo aceitável para a sociedade (VENTURA, 2012, p.

35). Mais uma vez, trata-se da oposição pessoa x indivíduo, cuidado x escolha.

Para concluir este tópico, cabe assinalar a perspectiva de Mol (2008) de que a

mobilização da lógica da escolha pode conduzir ao “mau cuidado”, na medida em que o ônus

                                                                                                                         26 “O termo justiça possui diferentes significados. Ele denota um conjunto de critérios ideais, que devem conduzir uma ação ou deliberação sobre determinada questão, e permite identificar três elementos intrínsecos: a alteridade, por pressupor ‘um elo de reciprocidade que vincula um sujeito a outro’, pois ‘ocorre sempre no âmbito de uma relação subjetiva’. O segundo elemento é a igualdade ou simetria, pois busca estabelecer uma distribuição (repartir benefícios ou encargos) ou retribuição (compensar ou corrigir a violação de uma simetria). O terceiro elemento consiste na exigibilidade de um débito: a ideia de receber aquilo que é devido.” (MENEZES; VENTURA, 2013, p. 12).

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do erro e da incerteza pode incidir sobre os ombros do paciente. Assim, o “bom cuidado” não

estaria relacionado com escolhas, da mesma forma que criar mais oportunidades para a

escolha do paciente não contribui, necessariamente, para favorecer o cuidado em saúde.

“Sempre foi assim” // “Em nenhum lugar é assim”

As reflexões acerca de uma realidade além da prescrita extrapolam as fronteiras do

Acolhimento. Uma questão polêmica, presente em conversas formais e informais das equipes

de profissionais da unidade, consistia na exigência de cumprimento da carga horária integral

de cada turno, formalmente decretada pelo diretor, a partir de uma carta de boas vindas a

2012, entregue a todos os funcionários. Esta determinação já havia sido reforçada

pessoalmente por ele, nas reuniões de apresentação realizadas com cada equipe em separado,

quando assumiu a direção do CMS. Sua intenção era acabar com a alta frequência de atrasos e

com os abandonos de turno antes do término do horário. No entanto, esta exigência gerava

insatisfação nos profissionais. Segundo informações de uma chefia técnica, em conversa

informal na ausência do diretor, “em nenhum lugar é assim”. Sua justificativa circunscreve-se

à baixa remuneração salarial dos funcionários públicos, que repercute no fato de quase todos

possuírem mais de um emprego, o que impediria o cumprimento da carga horária integral em

cada serviço. Um fator que contribui para o agravamento desta polêmica é a percepção,

informalmente compartilhada pelos profissionais da unidade, de que a diretora anterior “era

do tipo amiga de todos; fazia vista grossa para isto (impontualidades e ausências) e, assim,

criou muitos vícios na equipe” (fala da mesma chefia).

Neste contexto, uma fala recorrente é a de que “sempre – ou nunca – foi assim”. Frente

a este discurso, o diretor faz questão de reforçar que “isso não ajuda em nada, ao contrário,

só atrapalha”. Para ele, grande parte das dificuldades na implementação efetiva do

Acolhimento, por exemplo, decorre das resistências à mudanças por parte da equipe,

acostumada a fazer as coisas “como bem quer”.

Neste ponto, cabe refletir sobre aqueles que a direção e as chefias consideram como os

“profissionais mais resistentes”. Por vezes, a referida “resistência” reside na recusa em seguir

as determinações e prescrições oficiais da CAP/SMS e/ou da direção. Um exemplo é o fato de

que alguns médicos se recusam a atender pacientes encaminhados do Acolhimento após às

16/17h. Em dimensões mais amplas, o fator “resistência” incidiria no sentido da manutenção

da lógica tradicional de oferta de serviços, pela ordem de chegada no Acolhimento, e na

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dificuldade de efetuar uma estratificação efetiva de riscos, que poderia implicar na sobra de

vagas em determinado turno. Sobre esta dificuldade, uma chefia técnica argumenta:

Não entendo porque penalizar uma pessoa tendo número. Existe a vaga, o cara tá aqui, para ele marcar tem que vir até aqui, e nós não atendemos só porque tem essa rotina. É injusto! (...) Não concordo com isso. Eu dou o número mesmo e até estimulo o paciente a ser atendido no dia.

O diretor também utilizava esta classificação em referência à relação entre os

profissionais “tradicionais” e as equipes do PSF – “há muita resistência por parte dos

médicos tradicionais em relação à equipe do Programa” –, com o intuito de destacar a

distância física e relacional entre eles. Mais do que isto, a “resistência” se apresenta na

ameaça vivenciada pelos funcionários “tradicionais”, uma vez que “todos os investimentos

são alocados para o PSF, enquanto os efetivos não têm condições adequadas de trabalho”

(fala de uma chefia). Sobre este aspecto, cabe mencionar que o Ministério da Saúde, de fato,

estabelece a Estratégia de Saúde da Família (ESF) como “modalidade prioritária para a

reorganização dos serviços de atenção básica em todo o Brasil” (BRASIL, 2011, p. 38).

O exame das tensões entre o diretor – enquanto representante da gestão do sistema – e

as chefias e profissionais merece novamente destaque. Em determinada reunião, uma chefia

técnica pergunta se devia ou não abrir a agenda para certo dia, véspera de feriado. O diretor

responde que não, pois poderia ser ponto facultativo e, se marcassem os pacientes, para

desmarcar e remarcar seria muito complicado. A chefe indaga se poderia, então, escalar

apenas um profissional de sua equipe, para atender a livre demanda do dia, caso não fosse

ponto facultativo, enfatizando que “sempre foi assim e não havia problemas”. O diretor não

concorda. Neste momento, uma chefia administrativa comenta, em tom de voz baixo, com a

colega que levantou a questão: “tá pesado agora, né”.

De certo modo, esta situação se aproxima da concepção de Hannah Arendt (2000)

acerca da banalidade do mal. Em 1963, Arendt fez a cobertura do julgamento de Adolf

Eichmann 27 em Jerusalém, para a revista The New Yorker. Diante da inconsistência

argumentativa de Eichmann, Arendt lança a perspectiva de que o mal não precisa ser

radicalmente diferente do rotineiro ou normal. Ao contrário, ele pode ser simplesmente banal,

decorrente da tendência de seguir ordens, alinhando-se com a opinião da maioria, sem

questionamentos nem críticas sobre os resultados de sua ação ou inação. Em diversas

situações, foi o que presenciei nas reuniões das chefias e no Acolhimento. A “banalidade” se

                                                                                                                         27 Adolf Eichmann foi um dos responsáveis pela logística de extermínio de milhões de pessoas, em particular de judeus, durante o Holocausto, que ficou conhecida como a “solução final”.

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revelou, por exemplo, no estabelecimento de “manobras”, informal ou formalmente

compartilhadas, para burlar regras do sistema. Seguem alguns exemplos.

Em certa reunião das chefias ocorre uma discussão acerca da escala de horários de

cada equipe, a ser enviada mensalmente para a SMS. As chefias tratam de duas escalas: uma

“real”, com acordos e trocas de horários informalmente organizados; e outra “oficial”, com

horário pleno instituído por lei segundo a determinação da carga horária total de cada

categoria profissional. A chefe dos Recursos Humanos ressalta que a escala “oficial”, a ser

enviada para a SMS, deveria ser o mais próxima possível da “real”, pois poderiam sofrer

fiscalização, quando seria necessária uma explicação da ausência de algum profissional, no

horário previsto. No final de cada mês, a chefe dos Recursos Humanos deve levar os pontos

de todos os profissionais para uma conferência na SMS, de acordo com a escala “oficial”. Se

algum dia estiver em aberto, a falta é computada. Todos ficam agitados com essas

determinações.

Apesar de ser proibida a distribuição de amostras grátis em instituições públicas,

muitos médicos recebem e guardam amostras de medicamentos em seus consultórios,

distribuindo-as diretamente para os pacientes. Outras manobras foram observadas, como a de

uma enfermeira, que fechou o Acolhimento, supostamente realizado em horário integral, para

ir ao banco. Estas questões evidenciam, novamente, o descompasso entre as prescrições e a

realidade das práticas.

2.3. Uma proposta de mudança “Vamos sacudir as estruturas!”

A partir de agosto de 2012, o diretor do CMS decide iniciar um processo com vistas à

implementação efetiva do Acolhimento, conforme as determinações da SMS e do MS. A

escolha por este momento foi justificada pelo fato dele estar completando um ano na direção

da instituição, neste mesmo período:

Sempre que temos um fechamento de ciclo temos mudança, e agora é o momento de mudar coisas que não podem mais esperar. Uma delas é o Acolhimento. A gente precisa mudar a forma de acolher essas pessoas. (...) A gente vai mudar a cultura de atendimento da pessoa. Possivelmente isso vai gerar problemas com funcionários e usuários, pois vamos sacudir as estruturas!

Ele contou com a parceria da responsável pelo Acolhimento na CAP neste processo.

Juntos desenharam um Plano de Intervenção para o Acolhimento (anexo 4), a ser “discutido”

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(fala dos gestores) com as equipes de saúde da unidade. Como, nesta ocasião, já havia

mudado o objeto de minha pesquisa, fui convidada a participar de algumas reuniões sobre este

tema. A primeira contou somente com a participação do diretor e da responsável da CAP,

com o intuito de definir o Plano de Intervenção, a ser apresentado para os profissionais da

unidade.

No dia marcado, o diretor e eu chegamos primeiro. A responsável da CAP chega

pouco tempo depois. Eles iniciam uma discussão sobre as mudanças que deveriam ser

definitivamente estabelecidas no Acolhimento, sobretudo para acabar com a assimetria entre

ideário e prática. Em relação ao acesso, fica estabelecido que a porta lateral do CMS ficará

aberta para entrada dos usuários de 07 às 10h., e de 12 às 15h., quando o fluxo de chegada é

maior. Nos períodos de 10 às 12h. e de 15 às 19h. será fechada, restringindo a entrada à porta

principal da unidade. Esta determinação pretende ampliar a segurança, pois já houve dois

assaltos ao CMS. Uma das mudanças concretas mais importantes será a criação de “call

centers” para a recepção dos usuários no Acolhimento. Como o CMS é uma unidade “mista”,

a porta de entrada é única, o que significa que é a mesma para as pessoas que buscam

atendimento “tradicional” ou junto às equipes do PSF. Assim, serão montadas três baias para

os ACS do PSF da unidade, e mais duas para as enfermeiras da equipe “tradicional”, todas no

corredor da entrada lateral do CMS. Incialmente apenas as baias do PSF terão computadores,

mas a expectativa é de que todo o sistema seja informatizado.

Com estas mudanças, o fluxo do atendimento “tradicional” será o seguinte: o usuário

será recebido por uma enfermeira no call center, que escutará “brevemente” (palavra deles)

sua demanda. Caso haja necessidade, será encaminhado para a sala de Acolhimento (que

permanece no mesmo espaço), quando receberá uma “escuta mais atenta”. Esta frase contém

uma contradição: uma vez que a proposta do Acolhimento está centrada na “capacidade

ampliada de escuta e análise”, em todos os níveis da assistência, indicar um segundo

momento para uma “escuta mais atenta” consiste em paradoxo, que reflete a manutenção do

modelo de atendimento vigente – primeiro uma Triagem, depois o Acolhimento.

Após ser “acolhido”, o usuário será encaminhado para a Central de Marcação, para

agendar sua consulta com o especialista. Caso não pertença à área de cobertura do CMS,

receberá a Guia de Referência devidamente preenchida. Apenas os pacientes com “demanda

real para atendimento imediato” (fala da responsável da CAP), segundo os critérios da

Classificação do Risco, deverão ser encaminhados para consulta no setor designado. A

responsável da CAP reforça, então, que o discurso normativo deve ser “só entra quem

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realmente precisa”, a partir do estabelecimento de critérios restritos para consulta no mesmo

dia. A seguir ela afirma que o ideal seria as chefias técnicas saírem do Acolhimento e só

permanecerem as enfermeiras, porque “quando a chefia é médica acaba virando uma

consulta e elas não têm agenda para dar continuidade”. Além disso, haverá um ou dois

técnicos de enfermagem de standy by, para ajudar os enfermeiros do Acolhimento na busca

por prontuários, avaliação de sinais vitais dos usuários, entre outras funções. Para a Central

de Marcação, serão alocados profissionais do Setor Administrativo, para realização dos

agendamentos conforme critérios previamente definidos (ex. intervalos de tempo

estabelecidos de acordo com a Classificação de Risco).

O diretor destaca que o objetivo final consiste em tirar a agenda das mãos dos médicos,

para manter a uniformidade e a coerência destes critérios. Para garantir a regularidade destes

fluxos, é imprescindível a instauração definitiva da estratificação dos riscos, e sua tradução

correta para Ficha de Gerenciamento do Acolhimento, de acordo com os critérios de

classificação de sinais e sintomas estabelecidos pelo MS. Além disso, outra meta importante é

promover o incremento das anotações, de referências e resoluções por exemplo, nos

prontuários, no momento do Acolhimento. Para o diretor, o incentivo a estas anotações pode

funcionar como um “meio para sensibilizar a equipe quanto à importância do registro no

prontuário”. Esta ótica é condizente com o discurso oficial, que defende a importância do

registro em prontuário individual/familiar, enquanto instrumento para permitir o “melhor

acompanhamento e a longitudinalidade do cuidado” na atenção básica (BRASIL, 2011, p. 38).

A seguir eles debatem a questão da Coordenação da Agenda (vide anexo 4), com o

intuito de determinar o percentual de vagas estipulado para a demanda programada

(agendamentos) e espontânea (atendimento no dia), de cada especialidade clínica. Assim,

definem 70% de agendamentos e 30% para demanda espontânea para Ginecologia; 80% e

20%, respectivamente, para Dermatologia; e 50% de cada para Clínica Médica.

No final da reunião, a responsável da CAP destaca a importância de ouvir a população,

para apreender sua percepção e avaliação destas mudanças. Pergunto se o CMS conta com

Ouvidoria e eles respondem que não; há apenas uma caixa para reclamações e sugestões. A

responsável, ainda, dispõe-se a se reunir com as equipes de saúde da unidade, para apresentar

o Plano de Intervenção e conversar sobre as novas diretrizes para o Acolhimento. Sou

convidada a participar destes encontros e prontamente aceito.

Dois dias depois ocorre uma reunião sobre o Acolhimento com as chefias da unidade,

na qual estão presentes: o diretor, a responsável da CAP, a chefe da Enfermagem, a chefe do

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Programa Saúde do Adulto, a coordenadora do Programa de Atenção Integral à Saúde, a

chefe do PSF, a chefe da Epidemiologia, a chefe da Odontologia, a chefe do Setor

Administrativo, a chefe dos Recursos Humanos, a chefe da Documentação Médica, a chefe do

Almoxarifado e uma residente do IESC/UFRJ. Apenas a chefe da Farmácia está ausente, pois

está de férias.

A reunião é iniciada com o debate em torno dos agendamentos. O diretor explica que

as consultas passarão a ser marcadas por dia e horário, na Central de Marcação. Nos casos de

atraso, cada situação deverá ser individualmente avaliada pela enfermeira, no Acolhimento. A

regra é “não encaixar, para acabar de uma vez por todas com a lógica da ordem de chegada”

(fala do diretor). Além disso, a definição dos intervalos para o agendamento ficará sob a

responsabilidade do próprio profissional do Acolhimento “tradicional”, de acordo com a

especialidade clínica e sua avaliação do paciente. Os casos do PSF serão definidos

diretamente pelo prontuário eletrônico.

A seguir passam à leitura do Plano de Intervenção, na versão entregue pelo diretor,

parcialmente completa após a última reunião com a responsável da CAP. Ao longo da leitura

do documento, especificam quem será a chefia responsável por cada ação prevista. Assim, o

diretor fica responsável por realizar a Adscrição do território; a chefe da Enfermagem por

organizar as consultas de sua equipe e a escala dos técnicos para apoio no Acolhimento; a

chefe do Programa Saúde do Adulto e a coordenadora do Programa de Atenção Integral à

Saúde ficam encarregadas da Coordenação da Agenda; e a chefe da Documentação Médica

por organizar a Busca prévia de prontuários no seu setor.

Todos debatem com atenção a questão da Coordenação da Agenda (vide anexo 4),

com vistas à definição do percentual das 16 vagas por turno que será destinado aos

agendamentos e à garantia de demanda espontânea, por especialidade. Fica assim decidido:

§ Clínica Médica – 50% agendamento e 50% de demanda espontânea;

§ Pediatria – 50% agendamento e 50% de demanda espontânea;

§ Ginecologia – 70% de agendamento e 30% de demanda espontânea;

§ Dermatologia – 80% de agendamento e 20% de demanda espontânea;

§ Pneumologia – 80% de agendamento e 20% de demanda espontânea;

§ Saúde Bucal – 80% de agendamento e 20% de demanda espontânea;

§ Fonoaudiologia – 100% de agendamento;

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§ Homeopatia – 100% de agendamento;

§ Massoterapia – 100% de agendamento;

§ Nutrição – 100% de agendamento;

§ Pré-Natal – 100% de agendamento;

§ Puericultura – 100% de agendamento;

§ Terapia Ocupacional – 100% de agendamento.

Fica também estipulado que a chefe do Programa Saúde do Adulto e a coordenadora

do Programa de Atenção Integral à Saúde serão responsáveis por avaliar o quantitativo de

faltosos da demanda programada, de modo a otimizar as consultas já agendadas. A

responsável da CAP destaca, ainda, a importância da otimização dos atendimentos da

enfermagem, uma vez que nem todos os pacientes precisam retornar sempre para os clínicos.

Nos casos de tuberculose, hanseníase e hipertensão, por exemplo, as consultas médicas

podem ser intercaladas com as da Enfermagem. A chefe da Enfermagem argumenta que a

dificuldade para implementar estas consultas reside na resistência dos médicos, que não

avisam os pacientes sobre esta possibilidade e marcam sempre o retorno para eles mesmos.

Uma das chefias técnicas enfatiza a importância de restar tempo suficiente para

discussões e reuniões de equipe, de modo que todos possam expor suas opiniões e

dificuldades, frente às novas diretrizes. Neste sentido, a responsável da CAP afirma: “Sei que

parece que teremos muito trabalho, mas, a médio prazo, o objetivo é que fique tudo

redondinho, para que o trabalho possa fluir mais tranquilamente”.

A seguir o diretor ressalta a importância de uma definição dos limites dos territórios –

do CMS, do PSF daqui e das outras unidades da área – para que esta informação fique clara

para todos os profissionais e usuários. Sobre o tema, a responsável da CAP destaca ser

necessário reforçar com os médicos que, no caso de atendimento de um paciente do PSF, não

devem marcar retorno, mas sim entregar a Guia de Referência devidamente preenchida, ao

final da consulta. O diretor também destaca a importância do registro da Resolutividade do

Acolhimento no prontuário.

Duas chefias técnicas demonstram desacordo em relação à Utilização efetiva do

Critério de Classificação de Risco e Vulnerabilidade, por considerarem “muito difícil o

paciente aceitar que não será atendido; além de que os profissionais também não conseguem

mandá-lo embora, pois ficam com pena”.

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Ao final da leitura do documento, pergunto quem são os Agentes Experientes. Eles

respondem que são um senhor e uma senhora, com a função de “Posso Ajudar?”, que

integram um projeto da Secretaria Municipal de Envelhecimento e Qualidade de Vida. A

partir de minha pergunta, a responsável da CAP indica que “os vigilantes (seguranças

terceirizados) não podem dar qualquer informação para os usuários”, uma vez que ela já

presenciou o segurança posicionado na porta do Acolhimento informar para usuários que às

terças e sextas-feiras não há atendimento com médico clínico.

Acompanhei mais duas reuniões para apresentação do Plano de Intervenção, uma com

a equipe de Enfermagem e outra com a equipe da Clínica Médica. Estas seriam as equipes

“mais importantes” (palavras dos gestores), no que tange à implementação efetiva do

Acolhimento, pois as enfermeiras são as profissionais da linha de frente desta modalidade de

assistência, e os principais obstáculos estariam vinculados à Clínica Médica, frente à escassez

de médicos e à alta demanda de pacientes.

A reunião com a equipe de Enfermagem é realizada na sala do PSF, no segundo andar.

Estão presentes: o diretor, a responsável da CAP, a chefe da Enfermagem, a chefe do

Programa Saúde do Adulto e quatro enfermeiras do CMS. O diretor inicia a reunião relatando

que completou um ano na unidade e que “agora está na hora de mudar coisas nas quais

acredito e que são também as diretrizes da Secretaria”. Ele ressalta a importância de uma

discussão mais aprofundada sobre os critérios de Classificação de Risco e da melhoria da

comunicação entre as equipes menores. Exemplifica a situação com o fato de, naquele dia, ter

faltado uma enfermeira no Acolhimento, e ele só tomar conhecimento às 08h30, pela chefe da

Epidemiologia. A seguir o diretor passa a palavra para a responsável da CAP e, a partir de

então, não participa mais da reunião. Ele permanece sentado à mesa, trabalhando em seu

computador. Por vezes, sai da sala para resolver outras questões.

A reunião segue com a discussão do Plano de Intervenção, reformulado após a última

reunião com as chefias. Cada profissional recebe uma cópia impressa do documento. A

responsável da CAP reforça a questão destacada pelo diretor, sobre a falta de comunicação

intra e inter-equipes, afirmando que “esse é um problema da unidade como um todo, que, de

certa forma, contribui para o gargalo no Acolhimento, pois falta uma fala única na

unidade!”. Como exemplo, menciona o desconhecimento da área de cobertura dos territórios,

estabelecida a partir da regionalização que vigora desde 2010. A partir daqui, assinalo apenas

as colocações mais relevantes, de modo a evitar repetições.

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A responsável da CAP destaca que o ponto mais importante desta reunião consiste na

discussão acerca da Coordenação da agenda, pois, a partir daquele momento, as equipes

deverão passar a trabalhar com percentuais, “e não mais em vagas”. Para que isto aconteça, é

imprescindível determinar a proporção de pessoas que faltam às consultas marcadas e,

também, quantas são “colocadas para dentro”. A regra é: “só entra no dia quem tiver

critérios reais para o atendimento imediato de demanda espontânea”. A responsável da CAP

completa: “no primeiro momento vão sobrar vagas, até porque pode dar 16h. e chegar

alguém com critério para entrar, e aí o médico vai ter que atender, mesmo que já tenha

atendido os 16 números do turno”. As enfermeiras pontuam que “não é tão simples assim”,

uma vez que, muitas vezes, os médicos se recusam a atender após determinado horário ou

número de consultas. A responsável da CAP afirma, então, que, se tiverem qualquer problema

deste tipo, devem transmitir imediatamente para direção.

As enfermeiras sugerem que as consultas da Enfermagem sejam incluídas nesta

agenda, com um percentual de 80% para demanda programada e 20% para a espontânea. Uma

enfermeira ressalta: “a população se queixa muito e fica muito revoltada de ser atendida pela

Enfermagem, e não pelo médicos”.

A seguir elas discutem a questão dos Agendamentos. A responsável da CAP reforça

que é “preciso mudar a lógica, (tendo em vista que) existem muitas faltas porque a marcação

é para muito longe e as pessoas sabem que se vierem para o Acolhimento serão atendidas”.

Ela completa: “no cotidiano, sem nada diferente, apenas 10% tem critério real de risco para

demanda espontânea”. Neste momento, uma enfermeira revela: “A verdade é que a gente dá

número para todo mundo”. Ao final da reunião, as enfermeiras solicitam a redação e

impressão de um documento com a rotina dos fluxos da unidade, para os diferentes casos, de

modo a facilitar a uniformidade das condutas.

A reunião com a equipe da Clínica Médica é realizada em uma sala do Serviço Social,

no segundo andar. A sala é pequena para o número de pessoas. Não há cadeiras suficientes e,

apesar da colocação de mais unidades, a última profissional a chegar senta-se na maca. Estão

presentes: a responsável da CAP, a chefe do Programa Saúde do Adulto, três médicos (duas

mulheres e um homem), uma enfermeira e três técnicas de enfermagem. Observo que apenas

a responsável da CAP tem o Plano de Intervenção em mãos.

Ela inicia o encontro destacando seu propósito de discutir as mudanças na porta de

entrada da unidade, a partir das diretrizes da SMS: “Chegou o momento de mudar!”. Ressalta

que o principal objetivo da nova proposta consiste na transformação da lógica de oferta de

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serviços, com a determinação de que os atendimentos devem passar a ser pensados em termos

percentuais, e não mais em relação às 16 vagas, sendo 50% para agendamentos e 50% para

demanda espontânea:

A gente está tentando trabalhar com a população uma nova lógica de que aqui só será atendido por demanda espontânea quem de fato precisar. A gente sabe que por turno não chega mais de quatro ou cinco pessoas que de fato precisam entrar.

Duas médicas questionam o que fazer com os pacientes “em emergência” de outras

áreas de cobertura, que chegam para atendimento neste CMS. A responsável da CAP afirma

que devem atender a “demanda aguda” e depois encaminhá-los para a unidade de referência,

“sem a garantia de retorno para cá”. O médico questiona o que fazer com os pacientes do

PSF que são frequentemente encaminhados para consulta com ele. A responsável da CAP

responde que “realmente isso está uma confusão” e que, por isso, o diretor assumiu o

problema para resolver pessoalmente, pois “as novas equipes precisam dar conta do que é

deles”.

A seguir a responsável da CAP comenta sobre a Central de Marcação, afirmando que

caberá aos profissionais – médicos e enfermeiras – determinar o tempo de retorno para as

consultas. Sobre as Consultas de Enfermagem, ela indica que devem ser intercaladas com as

consultas médicas, de acordo com o programa (Hipertensão, Diabetes e outros) e a linha de

cuidado (correspondente ao estágio da doença). Como na Clínica Médica só há uma

enfermeira para dois médicos, é importante intercalar as consultas com a participação nos

grupos.

A responsável da CAP retoma a questão da Coordenação da agenda: “É importante

trazer esse novo olhar para a população, de que só vai entrar no dia se realmente for

preciso”. Sobre os agendamentos, uma das médicas questiona o fato de só ter vagas para o

próximo ano. A chefe do Programa Saúde do Adulto se compromete a olhar todas as agendas,

para verificar quem não é da área e analisar o quantitativo dos faltosos. A médica a

interrompe, declarando, em tom enfático:

Eu não vejo lógica em não atender o paciente se tiver vaga para o dia, até porque vai criar gargalo em outros dias. Para mim, um bom Acolhimento depende do aumento do número de médicos. Além disso, muitas pessoas faltam o trabalho para vir para cá e não podem ficar faltando para retorno. Não vejo sentido nisso, não vejo como isso vai mudar a saúde da população. (...) Porque já está tudo decidido; vocês não querem ouvir o que a gente pensa, o que a gente sofre de frente para a população. Vim para essa reunião decidida a não falar nada porque vocês não querem nos escutar.

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A responsável da CAP não responde. Pouco depois, a médica recebe uma ligação e vai

embora. Outra médica chama atenção, então, para a quantidade de usuários que vão para

consulta sem o prontuário em mãos. Uma enfermeira também questiona o que fazer com os

profissionais da área e as “carteiradas”28, tendo em vista que, conforme determinação da

SMS, estes casos não deveriam ser atendidos ali. A responsável argumenta: “É importante ter

sensibilidade para ouvir essa pessoa no Acolhimento. Devemos acolher aqui, mas depois

encaminhar para unidade de referência, até porque muitas vezes a família também precisa

ser atendida.”.

Ao se aproximar das 17h., os profissionais começam a ficar agitados, demonstrando

querer ir embora. A chefe do Programa Saúde do Adulto já havia comentado que seria difícil

marcar a reunião neste horário porque, “quando dá 16h30, eles ficam aflitos para ir embora”.

No entanto, era o único horário possível para reunir a maioria da equipe.

Ao final da reunião, a responsável da CAP assinala outras deliberações da SMS. Se a

demanda espontânea for para a Clínica Médica, na ausência de médicos clínicos, qualquer

especialista deve atender, como médico da unidade. As consultas de Enfermagem devem

atender 10 pacientes por turno, e as médicas 18. Neste CMS, o diretor aceitou reduzir este

último número de consultas por turno de 20 para 16, para alcançar maior qualidade no

atendimento. Noto que a responsável da CAP faz questão de enfatizar este dado, para evitar

possíveis questionamentos, diante de casos de demanda espontânea que chegam mais tarde,

quando as 16 vagas já estão completas. A responsável da CAP encerra a reunião buscando

justificativas para os problemas com as novas equipes do PSF. Em sua opinião, há um déficit

na formação generalista e uma falta de interesse dos profissionais para discutir os casos e

aprender. Estas seriam as causas do número elevado de encaminhamentos para os

especialistas.

Após a reunião acompanho uma das chefes até a sua sala, na qual estava outra chefe.

Pergunto à primeira o que achou da reunião e ela afirma que precisariam fazer mais uma,

“com pelo menos duas horas, para que as coisas fiquem mais claras”. Comento o

questionamento da médica acerca dos benefícios da nova proposta de Acolhimento. A chefe

aponta que esta profissional é tida como pessoa “muito difícil”, mas que nunca teve qualquer

problema com ela, pois é “muito comprometida, fala a verdade, diz o que pensa e não leva as

                                                                                                                         28 Esta questão será analisada na próxima parte deste estudo.

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discussões para o nível pessoal”. Completa: “prefiro lidar com gente assim, que fala na cara,

sem falsidade”.

Neste momento, a outra chefe, que já estava na sala, interrompe a conversa, afirmando

também discordar das novas diretrizes. Para ela, não atender o paciente no dia, mesmo tendo

vaga, “é injusto, pra não dizer que é uma sacanagem”. A partir daí inicia uma argumentação

enfática:

Não concordo com isso. Não entendo porque penalizar uma pessoa tendo número. Existe a vaga, o cara tá aqui, para ele marcar tem que vir até aqui, e nós não atendemos só porque tem essa nova rotina. É injusto! A pessoa tem que faltar o trabalho só para vir marcar. Não é certo! Então teríamos que ter marcação pelo telefone, assim como nos planos de saúde. O PSF tem os ACS que marcam a consulta para a pessoa, é diferente. Então são dois pesos e duas medidas. Não entendo porque penalizar para educar.

A chefe que participou da reunião concorda, afirmando tratar-se de “educação alemã,

sem maternagem alguma”. A outra chefe retoma seu discurso:

Você parte do princípio de que todo mundo está agindo de má fé (no sentindo de ressaltar os sintomas para conseguir vaga no mesmo dia). É um pensamento perverso! Não concordo com isso. Dou número mesmo e até estimulo o paciente a ser atendido no dia.

Ela justifica suas colocações, citando os inúmeros casos de mães que aproveitam que

um filho está doente para trazer os outros para a consulta. Também reforça sua posição com o

exemplo de pacientes com problemas considerados pequenos, como casos para Dermatologia,

que se programam para vir ao CMS em determinado dia, faltam o trabalho e arrumam alguém

para cuidar da casa e dos filhos (“assim como nós fazemos quando temos uma consulta”), e

que, caso não consigam o atendimento imediato, provavelmente não retornarão. Por fim,

conclui: “não concordo e ninguém vai me convencer!”.

A chefe que participou da reunião afirma que não sabe como farão para controlar o

número de vagas disponíveis por turno durante o Acolhimento, pois não terão mais as senhas:

“Como vou saber se ainda posso encaixar mais alguém?”, uma vez que a lógica passa a ser

de percentuais. A outra chefe argumenta que não terão senhas mas continuam tendo vagas:

“me toquei que só mudou o nome”. Esta fala reflete a manutenção de uma racionalidade

burocrática, que reforça a impessoalidade no relacionamento e a preeminência de um sistema

de relações sociais estruturalmente hierarquizado.

A seguir elas comentam sobre uma médica pneumologista que está causando

problemas com a equipe e os usuários, em virtude de sua insatisfação com o trabalho e,

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principalmente, por seu comportamento “agressivo”. Elas seguem conversando sobre o tema e

outras questões burocráticas acerca de suas equipes. Peço licença e vou embora.

A partir deste dia encerrei minhas atividades de pesquisa na unidade, com a intenção

de contar com tempo suficiente para empreender a análise do diário de campo. Além disso,

considerei ser fundamental um distanciamento do campo, para possibilitar o desenvolvimento

de reflexões, condição necessária à redação desta dissertação.

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PARTE 3

INTERAÇÕES E EMOÇÕES NA PORTA DE ENTRADA

DA ATENÇÃO BÁSICA EM SAÚDE

Esta parte do estudo é dedicada à análise das interações estabelecidas, entre

profissionais de saúde e usuários, no espaço do Acolhimento. Para compreensão das práticas e

retóricas que constroem os significados desta nova modalidade de assistência, conto com o

apoio do referencial antropológico que evoca as emoções como categoria analítica, a

Antropologia das Emoções.

Este viés sócio-antropológico surge em oposição à vertente essencialista que considera

as emoções como elementos inerentes à condição humana, essencialmente internos,

irracionais e, portanto, naturais. Como apontam Lutz e Abu-Lughod (1990), inicialmente, a

perspectiva relativista trouxe à tona questionamentos sobre a universalidade da categoria, a

partir de investigações que revelaram as emoções como símbolos sociais, produtos

emergentes da vida social. A partir da década de 90, os estudos assumem uma abordagem

contextualista, que busca mostrar que “os sentimentos são tributários das relações sociais e do

contexto cultural em que emergem” (REZENDE; COELHO, 2010, p. 11), uma vez que o

próprio significado das emoções varia dentro de um mesmo grupo social, dependendo das

circunstâncias em que se manifestam.

Neste contexto, as emoções passam a ser concebidas como formas de linguagem,

revelando um potencial micropolítico de “atualizar, na vivência subjetiva dos indivíduos,

aspectos do nível macro da organização social” (COELHO, 2010, p. 266). O olhar

antropológico direciona-se para a “relação entre gramáticas emocionais, relações interpessoais

e organização social” (COELHO, 2010, p. 282). Muitos estudos surgem, então, com o

objetivo de evidenciar como os discursos emotivos expõem e afetam as relações de hierarquia

e poder de modo mais amplo, em uma via de mão dupla, na qual o contexto modela os

discursos e estes reconfiguram o próprio contexto social.

O foco no discurso permite não só uma visão sobre como a emoção, como o discurso de que participa, é informada por temas e valores culturais, mas também como ela serve como um operador em um campo controverso de atividade social, como ela afeta um campo social, e como pode servir como um idioma para comunicação, não necessariamente sobre sentimentos mas sobre diversos assuntos

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como o conflito social, os papéis de gênero, ou a natureza do ideal da pessoa ou dos desviantes. (LUTZ; ABU-LUGHOD, 1990, p. 11, tradução minha29).

É nesse horizonte que insiro esta parte de meu estudo, centrada no propósito de dar

visibilidade às narrativas e discursos dos distintos atores sociais, enquanto metáforas que dão

sustentação aos sujeitos, garantindo a legitimidade de sua ação social. Ao conceber as

emoções como agenciamentos, busco aqui cumprir com o “exercício intelectual” proposto por

Rezende e Coelho (2010, p. 69), “de encontrar a sociedade e a cultura em meio à experiência

emocional”.

“Isso aqui tá virando um mitiê”

Esta fala foi anunciada por uma chefia técnica, durante reunião das chefias observada,

para apontar a “confusão” causada pelos usuários na porta de entrada da unidade. Ela referia-

se especificamente ao fato dos pacientes frequentemente acionarem a polícia, na tentativa de

garantir seu direito à assistência em saúde, em face da falta de vagas para atendimento

imediato.

A partir desta narrativa e da discussão apresentada na parte precedente deste estudo, é

possível pensar no Acolhimento como um drama social (TURNER, 1980), na medida em que

se institui em um cenário de tensão social. Para Turner (1980), os “dramas sociais” podem ser

entendidos como a unidade constitutiva do processo social, caracterizada por uma sequência

interativa, composta por quatro fases sucessivas: (1) separação ou ruptura; (2) crise e

intensificação da crise; (3) ação remediadora; e (4) reintegração. “Nos ‘dramas sociais’, que

põem em jogo os distintos agentes sociais em competição, os fins e significados são

colocados em processos interdependentes de ressignificação” (BONET, 2004, p. 90). Neste

sentido, fica clara a intrínseca relação entre drama social e conflito.

Para Simmel (1971), para além de uma visão meramente negativa da categoria, o

conflito deve ser entendido como uma força integrativa do grupo, pois “provavelmente não

existe qualquer unidade social em que correntes convergentes e divergentes entre seus

membros não estejam inseparavelmente entrelaçadas” (SIMMEL, 1971, p. 72, tradução

                                                                                                                         29 No original: “The focus on discourse allows not only for insight into how emotion, like the discourse in which it participates, is informed by cultural themes and values, but also how it serves as an operator in a contentious field of social activity, how it affects a social field, and how it can serve as an idiom for communicating, not even necessarily about feelings but about such matters as social conflict, gender roles, or the nature of the ideal or deviant person”.

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minha30). Simmel define, então, o conflito como um caminho para unidade, um meio para se

resolver dualismos divergentes, uma vez que seu oposto, a indiferença, estaria presente

apenas de modo relativamente limitado na esfera das interações humanas. DaMatta (1979, p.

149) aponta que

o conflito aberto marcado pela representatividade de opiniões é, sem dúvida, um traço revelador de um igualitarismo individualista que, entre nós (leia-se cidadãos brasileiros) quase sempre se choca de modo violento com o esqueleto hierarquizante de nossa sociedade.

Desta forma, é possível conceber o Acolhimento como um drama social, que se

estabelece entre uma norma universalizante – que exige dos sujeitos o desempenho de um

papel específico, o de indivíduo-cidadão (BARBOSA, 2006) – e um sistema de relações

sociais estruturalmente hierarquizado. Assim, como destaca DaMatta (1979), o grande

problema é que, no Brasil, um tratamento igualitário é quase sempre sinônimo de tratamento

inferior. Neste contexto, o conflito é visto de modo pejorativo, como uma fraqueza do sistema

em cumprir seus ideias de igualdade, democracia e justiça.

A fala que intitula este tópico do estudo evidencia esta perspectiva, pois revela as

dimensões de conflito, confusão e desordem presentes no Acolhimento. Sobre este aspecto,

antes de passar à reflexão sobre as estratégias acionadas pelos usuários, frente à

impossibilidade de assistência pelo sistema de saúde, cabe assinalar duas considerações

acerca do tema da desordem. Primeiramente, a aproximação do Acolhimento à noção de

“mitiê” remete a um vínculo simbólico que associa desordem à sujeira, a partir da concepção

clássica de sujeira como “matéria fora do lugar” (DOUGLAS, 1976). Além disso, é possível

indicar a associação entre violência e desordem, enquanto estratégia retórica acionada para

descrever um cotidiano no qual a violência irrompe subitamente, transformando-o (COELHO,

2010, p. 271).

No contexto investigado, diante da imposição de um tempo de espera31 e da falta de

“acolhimento” pela equipe, muitas vezes os usuários expressam os sentimentos de

                                                                                                                         30 No original: “there probably exists no social unit in which convergent and divergent currents among its members are not inseparably interwoven”. 31 A espera refere-se tanto ao intervalo do agendamento da consulta, quanto ao tempo na fila para o Acolhimento. Sobre a última, Moreira (2007, p. 312) destaca que: “a organização de uma fila de chegada num posto de saúde, ainda na madrugada, transcende somente um mecanismo burocrático, e que permite a instituição de uma ordem baseada numa regra: a de quem chega primeiro. Há o interesse de saber quem já estava na frente e foi chamado se conseguiu atingir seu objetivo, se sua espera foi recompensada. E ainda, o fenômeno de construção de redes de amizade, apoio e troca de experiências durante permanência na fila, que fazem com que se volte a ela. Ao que parece, a fila por si não incomoda, o que provoca revolta e desconforto é a impossibilidade de ver recompensado o esforço da espera”.

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indignação e revolta. Estas experiências emotivas decorrem sobretudo da aparente

irrelevância do motivo do adiamento – que geralmente consiste nas regras da regionalização

do sistema e da Classificação de Risco – e da banalização de seu sofrimento pelo outro. Em

ambas instâncias, as emoções refletem uma estrutura hierarquizada, incapaz de “acolher” os

sujeitos em suas demandas.

Figari (2009, p. 132) aponta a indignação como expressão da “subalternidade”, que

decorre de relações assimétricas, marcadas pela construção de um “Outro dominante”, a partir

da produção de “outros subalternos”. Neste sentido, no contexto do Acolhimento, o

sentimento indignação, mobilizado pelos usuários, resultaria do reconhecimento de sua

inferioridade, perante o poder do sistema e de seus representantes. Figari (2009, p. 137)

considera, ainda, a indignação como via de penalização, na medida em que o ressentimento

aciona a raiva, deslocando a questão do âmbito da vida privada para dimensão do debate

público. Figari defende uma dimensão de contaminação, que inclui os distintos atores sociais

na busca pela contenção do perigo decorrente do dano causado. Mais adiante serão abordadas

as emoções mobilizadas pelos outros atores sociais, neste caso, os profissionais de saúde,

diante do sofrimento e da revolta dos usuários.

A noção de indignação apontada por Figari (2009) aproxima-se da concepção de

humilhação de Rezende e Coelho (2010), enquanto operador da consciência pública da

inferioridade, diante do outro. As autoras assinalam que o único modo de resolver esta

situação é reverter a estrutura que originou o sentimento: o movimento de dominação moral

percebido no outro. Assim, a humilhação “deslancha um processo cujo o ápice é a agressão”

(REZENDE; COELHO, 2010, p. 87). Para Coelho (2010, p. 281), a lógica do complexo

emocional humilhação-raiva reside na defesa de certa moralidade, essencial para a

constituição da identidade do sujeito social. Neste sentido, Boltanski (2004) também indica

que, mediante as “armas da raiva” (p. 57, tradução minha32), a indignação adquire força,

podendo transformar-se em ação, muitas vezes expressa sob a forma de acusação.

No cenário observado, a denúncia contra o sistema se apresentou como agenciamento

frequentemente acionado, com vistas à reparação da banalização do sofrimento pelo outro.

Duas estratégias foram recorrentes. A primeira consistia na denúncia para a polícia, cuja

intenção residia em fazer valer a força da lei, que obriga o cumprimento dos deveres do

Estado para com os direitos dos cidadãos, mediante ação imediata de agentes socialmente

                                                                                                                         32 No original: “weapons of anger”.

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legitimados, cuja autoridade simboliza o poder da força da (e contra a) violência. A segunda

estratégia consistia em ameaças de denúncia pública, nos meios de comunicação de massa.

Em determinada situação observei uma enfermeira do Acolhimento estimular um usuário a

denunciar, em programa aberto de televisão, o fato da Clínica da Família da região ser “só

fachada do governo”. A falta de assistência naquela unidade decorria de um número de

profissionais insuficiente para o atendimento das demandas da população. A enfermeira

encoraja o usuário a tomar esta atitude, afirmando: “só assim quem sabe as coisas mudam”.

Boltanski (2004, p. 59) aponta a noção de “indignação contagiosa”, cuja coloração

política é estabelecida a partir da separação entre o suposto agressor e a suposta vítima, por

dimensões de poder e dominação. No contexto investigado, as denúncias circunscrevem-se

em críticas à organização do sistema de saúde e ao poder de seus representantes. O foco

desloca-se, pois, de um discurso individual, centrado na reparação pessoal pelo sofrimento,

para um compromisso coletivo que, graças à força dos meios de comunicação nas sociedades

modernas (SONTAG, 2003), adquire o imperativo para uma ação política.

As duas estratégias vinculam-se, portanto, ao tema das demandas por justiça, no

sentido da correção de uma violação da igualdade de direitos. Ambas revelam o paradoxo

apontado por DaMatta (1979, p. 195), entre uma lei, cuja força constitui uma esperança, e a

total desconfiança nas regras e nos decretos universalizantes. Logo, o regime da justiça expõe

uma dimensão política-hierárquica, legitimada pela gramática das “vítimas” (BOLTANSKI,

2004).

“Pelo amor de Deus”

Este fala é recorrentemente utilizada pelos usuários, como recurso de barganha por

atendimento imediato. Ao considerar a utilização da Classificação de Risco enquanto

instrumento primordial para a estratificação de prioridades e necessidades de saúde, cabe

mencionar, novamente, a tensão entre os critérios objetivos, definidos e legitimados por uma

racionalidade científica, e as representações subjetivas dos indivíduos, em relação às suas

concepções de saúde, doença e sofrimento. Neste sentido, no cenário do Acolhimento,

expressões corporais, como dor e lágrimas, aparecem como instrumentos de uma linguagem

simbólica.

Rezende e Coelho (2010) indicam que, a partir do século XX, a interioridade e suas

expressões passam a ser cada vez mais valorizadas. Neste contexto, as demonstrações de

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sentimentos em público são consideradas sinal de espontaneidade e veracidade moral

(REZENDE; COELHO, 2010, p. 102). O processo de sensibilização aproxima duas categorias

constituintes da noção de pessoa: interioridade e verdade (MENEZES, 2011, p. 144).

O choro aparece, então, como recurso para suscitar a compaixão ou exercer pressão

para seduzir o outro, demonstrando fragilidade (BRETON, 2009, p. 139). As lágrimas são “os

únicos produtos corporais que, quando excretados, não provocam nojo” (MENEZES, 2011, p.

146). Ao contrário, como demonstra Menezes, em estudo sobre o Estatuto das lágrimas

(2011), elas são usualmente associadas à uma imagem de autenticidade. No Acolhimento

observado, diante do choro – por dor ou pela angústia, frente à possibilidade de não conseguir

atendimento – não houve qualquer profissional que recusasse assistência imediata,

especialmente no caso de crianças33, independente da existência ou não de vagas para

consulta no turno.

A partir de estudo sobre o Sofrimento à distância, Boltanski (2004) afirma que, em

face ao sofrimento, todas as exigências morais convergem para o imperativo da ação, no

sentido da reparação dos infortúnios causados. Neste complexo emocional sofrimento-

reparação, a pena do outro – e/ou de si mesmo por ver-se identificado com o sofrimento –

transforma-se em indignação que, mediante a mobilização da raiva, aponta o compromisso

com ações efetivas; em muitos casos, menos dirigidas para aqueles que sofrem, mais para a

punição do causador do sofrimento (BOLTANSKI, 2004, p. 57). Diante da dor dos outros

(SONTAG, 2003), o sujeito pode apresentar diferentes reações, como repugnância ou

compaixão, repercutindo, por exemplo, em clamor por vingança ou em apelo pela paz.

Voltarei à análise das emoções mobilizadas pelos profissionais diante do sofrimento alheio

mais adiante. Sigo, aqui, com a reflexão sobre a agência dos usuários.

No contexto investigado, os discursos emotivos do sofrimento apresentaram-se como

agenciamentos, por meio da retórica de construção da categoria da vítima. Sarti (2011) indica

que a figura da vítima é socialmente construída, como modo de conferir reconhecimento ao

sofrimento do outro, bem como legitimidade moral às suas reivindicações. Para Rezende e

Coelho (2010, p. 82), a representação como vítima aumenta sensivelmente as chances de

suscitar o sentimento de compaixão no outro. A noção da vítima, portanto, reflete uma

conexão íntima entre particularidade e universalidade.

                                                                                                                         33 A juventude é extremamente valorizada na sociedade ocidental moderna. Menezes (2006, p. 68) indica que, quanto mais jovem o enfermo, maior a mobilização emocional da equipe de saúde.

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No que se refere, pelo menos ao mundo ocidental moderno, a identificação da vítima faz parte dos anseios de democracia e justiça, dentro do problema da consolidação dos direitos civis, sociais e políticos de cidadania. (SARTI, 2011, p. 54).

No entanto, segundo Boltanski (2004, p. 67), a construção da vítima está remetida a

duas modalidades de sofrimento: (1) ordinário, inerente à condição humana, por exemplo

decorrente da morte e/ou do amor; e (2) o sofrimento considerado evitável, que adquire uma

dimensão política, na medida em que é legitimado pelo discurso da responsabilidade. Esta

última definição conduz a uma associação entre as categorias vítima e direitos, organizada sob

a dialética sofrimento-cuidado.

Sarti (2011) aponta a dialética sofrimento – reparação e cuidado, como uma das

formas contemporâneas de sociabilidade, que impulsiona a implementação crescente de

políticas centradas na reparação de danos. Neste horizonte ideológico, a perspectiva da

dignidade humana assume posição central, enquanto valor ordenador do discurso dos direitos

humanos. Este discurso ganha consistência após a segunda guerra mundial, com a Declaração

Universal dos Direitos Humanos em 1948 que, “a partir de pressupostos tributários da

concepção de indivíduo presente nas declarações de direito francesa e norte-americana do

século XVIII, (tem) como ideia-matriz de que ‘os homens nascem livres e iguais em direito’”

(VIANNA, 2001, p. 17). Ao longo da segunda metade do século XX, ocorre o deslocamento

do papel do Estado – na lei nomeado como Poder Público – como promotor de direitos,

repercutindo no modelo de indivíduo a ser protegido do Estado, e não por ele (VIANNA,

2001, p. 16). Neste cenário, crescem os números de processos legais, contra instituições e

profissionais de saúde, somados à emergência de movimentos da sociedade civil, em prol dos

direitos dos doentes (MENEZES, 2004).

Vianna (2001, p. 50) aponta que o universo dos direitos é moral, uma vez que, entre as

dimensões que compõem a moralidade, reside a do direito, enquanto “ordenador de relações

sociais”. Desta forma, com o decorrer da pesquisa de campo, pude constatar que a experiência

de vitimização, longe de representar uma suposta destituição da autonomia dos sujeitos,

refletia um agenciamento socialmente instituído, na busca pela compaixão do outro. No

entanto, nem sempre a dinâmica emocional presente nas interações entre usuários e

profissionais de saúde se desenrola desta forma.

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“Isso me dá raiva”

Esta fala foi expressa por uma profissional do Acolhimento, frente ao atraso de uma

paciente para chegada na unidade, o que repercutiu na perda da consulta agendada. A paciente

vai até o Acolhimento na busca por uma nova vaga para atendimento no mesmo turno. Diante

de suas justificativas, a enfermeira afirma que não poderá passá-la na frente das pessoas que

aguardam atendimento e que, “como eles (referindo-se aos profissionais da unidade) têm

compromisso com horário”, ela deverá aguardar até o término das filas para ver se ainda

restarão senhas. Quando a paciente sai da sala, a profissional diz: “Isso me dá raiva. É muito

abuso!”.

Esta narrativa conduz a reflexão acerca das estratégias acionadas pelos profissionais,

frente às demandas dos usuários. Menezes (2005), ao investigar as formas de gestão das

emoções pelos profissionais de saúde, aponta a tensão entre a identificação com o drama

vivido pelo paciente e uma distância capaz de impedir um mínimo de contato, necessário para

o estabelecimento de um relacionamento humano.

De modo geral, as emoções observadas variaram da raiva à piedade, da repugnância à

solidariedade. Assim, se por um lado, a representação como vítima aumenta sensivelmente as

chances de o sujeito suscitar compaixão no outro; por outro,

quando o sujeito é percebido como tendo cometido atos, adotado comportamentos ou mesmo meramente sendo de uma determinada forma capaz de, em alguma medida, provocar o ocorrido (no caso, sua doença e seu sofrimento), seu status como merecedor de compaixão é diminuído (REZENDE; COELHO, 2010, p. 82).

Portanto, o critério da responsabilidade repercute na mobilização da raiva e da

repugnância. Uma situação observada ilustra esta dinâmica. Um homem de 45 anos chega no

Acolhimento, em busca de medicação para seu quadro de hipertensão, relatando ter passado

mal na semana anterior, devido à falta do remédio. A enfermeira solicita seu prontuário para o

setor de Documentação. Ao analisar o documento, comenta: “Faz muito tempo que o senhor

não vem aqui. A tua história é péssima! Não vem a nenhuma consulta, a não ser para pegar

os remédios”. A enfermeira refaz, então, sua receita para apenas dois comprimidos e diz:

“Vou te dar apenas dois comprimidos para você sair da crise, mas você precisa procurar sua

unidade de referência.”.

Nesta situação, o julgamento moral da profissional em relação ao paciente incidiu

diretamente sobre sua ação. Sua agressividade fluiu por canais socialmente aprovados, neste

caso, mediante o exercício da norma que determina a regionalização do sistema de saúde. O

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desprezo diante do sofrimento alheio se revela enquanto operador da demarcação do status

social, em um sistema hierárquico que sustenta e legitima o poder das instituições biomédicas

e de seus representantes. Neste contexto, o discurso do risco opera no sentido da inclusão de

uma lógica dos deveres. Um exemplo consiste na fala de uma enfermeira, dirigida a um

paciente, que também chega ao Acolhimento em busca de medicação, sem receita em mãos:

“trazer a última receita para as consultas é um dever do usuário”. Mais uma vez, fica

evidente a oposição entre representações individualizantes e expectativas holísticas de atenção

e cuidado; entre regras universais e agência pessoal; entre individualismo e hierarquia.

Neste jogo de poderes sob o qual opera o sistema de saúde, muitas vezes os

profissionais, na linha de frente entre gestores e usuários, expressam o sentimento de

impotência. Durão (2012) aponta dois tipos de impotência: (1) resignada, que contém certa

conformação burocrática; e (2) indignada, a partir da qual são acionados recursos que, por

vezes, burlam as determinações superiores. Enquanto a primeira estaria vinculada ao

sentimento de desprezo, em sua capacidade micropolítica de demarcar a superioridade

hierárquica no plano subjetivo (COELHO, 2010, p. 277), a segunda remete à solidariedade,

enquanto experiência emocional que permite a superação desta assimetria, impulsionando a

coesão social.

A indignação mobilizada pelos profissionais remeteria, pois, à noção de contágio,

defendida por Boltanski (2004), e à dimensão de contaminação, proposta por Figari (2009).

Neste sentido, indignar-se implica no estabelecimento de uma aliança com as “vítimas”, o

que, no cenário do Acolhimento, só se faz possível mediante certo nível de identificação entre

profissionais de saúde e usuários, na medida em que os primeiros também estão subordinados

à impessoalidade de prescrições burocráticas, que violam o princípio moral da liberdade

individual.

“Vou dar um jeitinho de te encaixar aqui”

No cenário observado, o jeitinho consistia em manobras, estabelecidas pelos

profissionais, para burlar as regras formais de gerenciamento do fluxo do sistema. Assim, se

de um lado, os gestores se esforçam para a implementação de um Plano de intervenção

estruturado sobre a organização dos agendamentos; de outro, na porta da frente dos serviços,

os profissionais seguem respondendo à demanda imediata dos usuários.

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Barbosa (2006) desenvolveu amplo estudo sobre o Jeitinho brasileiro, como elemento

central no processo de constituição de nossa identidade nacional. A autora defende a

concepção do jeitinho como um estilo de sociabilidade, que exprime nossa34 dificuldade em

lidar com leis e regras universais. O jeitinho, enquanto estratégia de ação social centrada no

apelo à simpatia pessoal e à generosidade humana do interlocutor, consiste em “uma forma

‘especial’ de se resolver algum problema ou situação difícil ou proibida (...) seja sob a forma

de burla a uma regra ou norma prescrita, seja sob a forma de conciliação, esperteza ou

habilidade” (BARBOSA, 2006, p. 41). DaMatta (2006, p. xxiv) aponta, ainda, o jeitinho

como “prova da nossa malandra engenhosidade política e social”.

No entanto, o jeitinho nem sempre é visto sob uma perspectiva positiva. A partir da

aproximação com as categorias favor e corrupção, estabelece-se um continuum, que se

estende de um polo positivo, no qual está posicionado o favor, a um polo negativo, remetido

à corrupção (BARBOSA, 2006, p. 42):

(+) (+) / (-) (-) ______________________________________________________________

favor jeito corrupção

Enquanto o jeitinho consiste em um “ritual de aglutinação”, que se baseia na

solidariedade entre sujeitos supostamente iguais – “hoje é ele, mas amanhã pode ser eu”

(BARBOSA, 2006, p. 43) –, o favor estabelece uma hierarquia, na qual o credor está

posicionado em situação superior ao devedor. Além disso, o favor não envolve

necessariamente a transgressão de uma norma.

No cenário desta reflexão antropológica sobre a dimensão das interações e trocas

sociais, é imprescindível considerar a noção de dádiva, instituída por Mauss (1974). A dádiva

enquanto “fato social total” permite uma discussão acerca de diversos aspectos da vida social,

revelando “uma espécie de imbricação de suas várias dimensões” (COELHO, 2006, p. 12). A

dádiva revela o caráter obrigatório da reciprocidade, que se estabelece na tríplice obrigação

de dar, receber e retribuir (Mauss, 1974). No jogo das trocas sociais, dar é essencial para obter

prestígio. Por sua vez, aquele que recebe a dádiva tem a obrigação de aceitá-la, uma vez que

aquele que a recusa tem seu prestígio ameaçado, por recusar um convite à aliança. A terceira

obrigação completa o “sistema da dádiva” (COELHO, 2006, p. 23), pois a contraprestação

equivale a uma nova prestação, exigindo uma nova retribuição. Vianna (2001, p. 43) destaca a

                                                                                                                         34 O uso da terceira pessoal do plural decorre da referência ao “povo brasileiro”, no qual estou incluída.

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complexidade deste sistema que, para além da “aparentemente simples equação do doador

como aquele que fica em posição de crédito, e o recebedor com o ônus do débito”, impõe,

mediante a possibilidade de quitação completa, o risco de ruptura definitiva das relações

instituídas a partir da dádiva.

Mediante estudo sobre a troca de presentes entre empregadas e patroas, da classe

média urbana brasileira, Coelho (2006) demonstra que a ideia do que seria uma retribuição

“adequada” varia de acordo com as regras culturais que governam as trocas em cada

sociedade ou grupo social. No contexto das relações estudadas, diante da impossibilidade de

“retribuir à altura”, a gratidão se apresenta como “suplemento emocional da obrigação de

retribuir” (COELHO, 2006, p. 70), revelando o caráter assimétrico de uma relação fortemente

hierarquizada. Assim, as patroas esperam ter sua dádiva retribuída, não pela troca por outro

objeto, mas pela demonstração de gratidão por parte das empregadas, na medida em que esta

vivência subjetiva assinala o reconhecimento de sua inferioridade hierárquica, demarcando,

em última instância, uma “posição permanente de servidão” (COELHO, 2006, p. 71). Por

outro lado, a ingratidão teria um certo “gosto de insubordinação, realizando um trabalho

micropolítico de contestação das hierarquias sociais” (REZENDE; COELHO, 2010, p. 96).

Assim como o favor, os sentimentos de pena e de compaixão experimentados pelos

profissionais de saúde afirmam a superioridade hierárquica dos representantes da

biomedicina, reforçada pela concessão de dádivas que jamais poderão ser retribuídas “à

altura”, pelos usuários atendidos pelos profissionais. Como ilustração desta dinâmica, em

determinada reunião das chefias foi discutido o caso de uma antiga paciente da unidade que,

“como forma de agradecimento” (palavras de uma chefe), passava o dia ajudando sua médica.

A negociação em prol de algum jeitinho e sua concessão vincula-se a sentimentos,

como piedade e solidariedade, que expressam a dimensão subjetiva de uma relação entre

iguais. Para Barbosa (2006, p. 98), a força do jeitinho reside em sua capacidade de

transformar indivíduos em pessoas:

Em nenhum momento o usuário do jeitinho é reconduzido à sua posição de indivíduo, pelo simples fato de que ele coloca a igualdade na linha de frente, como algo socialmente dado e ideologicamente legitimado, e a desigualdade (a sua necessidade) na retaguarda, como algo conjuntural, legitimado apenas situacionalmente.

Para uma instauração do circuito de trocas é preciso, portanto, que se reconheça a

diferença como um imperativo, sem que esteja reduzida a uma assimetria, sem gerar

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desigualdade (MOREIRA, 2007, p. 314). Mais do que isto, a solidariedade só é possível a

partir de uma tomada de posição identificatória com o outro.

Paciente “vip”

Para concluir esta parte, apresento outra situação observada. No meio de um turno do

Acolhimento, chega uma enfermeira da Prefeitura, em busca de atendimento para

Dermatologia, pois estava com uma unha inflamada. A profissional prontamente entrega uma

senha para consulta, sem solicitar mais informações, nem efetuar qualquer anotação na Ficha

de Gerenciamento. Algum tempo depois a paciente retorna para devolver a senha, afirmando

que não poderá aguardar o atendimento, pois está em seu horário de trabalho.

A partir de estudo etnográfico em um centro de terapia intensiva, Menezes (2006)

afirma que o paciente “vip” situa-se no plano das relações pessoais e institucionais, do

“conhecimento”. A categoria “vip” se apresenta, portanto, em “contraposição ao anonimato”

(MENEZES, 2006, p. 75), uma vez que seu acionamento repercute na mobilização de

diferentes estratégias, por parte dos profissionais.

No contexto do Acolhimento, apesar da existência de uma regra que determina a oferta

de serviços exclusivamente a partir da estratificação efetivas de riscos, o acionamento da

categoria “vip” evidencia mais do que a simples mobilização de um “jeitinho”. O favor

imediatamente concedido decorre de uma ameaça vivenciada pelo profissional, em face de

sua exposição diante do outro, “conhecido” e supostamente “poderoso”. Neste cenário, o

profissional pode se sentir pressionado a cumprir as demandas do paciente “vip”, na medida

em que a legitimidade e autoridade social deste sujeito proporcionam visibilidade ao seu

trabalho (Menezes, 2006). Esta visibilidade possui, ainda, duas dimensões projetivas: para o

bem ou para o mal, repercutindo, respectivamente, em críticas positivas ou negativas sobre o

seu trabalho. Assim, no contexto investigado, conceder um favor ao usuário “vip” garantiria

uma proteção contra possíveis represálias de agentes superiores, ainda que ao custo do

descumprimento de prescrições oficiais.

Portanto, a lógica do paciente “vip” não está incluída “no reino da caridade e da

bondade como valores básicos, cujo foco é um sistema de pessoas que sempre se concebem

como complementares” (DAMATTA, 1979, p. 190). Ao contrário, a aproximação da

perspectiva do Você sabe com quem está falando? (DAMATTA, 1979) reflete um ritual

autoritário e radical, que, enquanto “drama social”, implica em hierarquização e separação. A

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categoria “vip”, portanto, também possui raízes intrinsecamente vinculadas a uma concepção

individualista do mundo. Logo, mais uma vez evidencia-se a tensão entre uma vertente

individualizante, centrada na impessoalidade e automatismo das leis e regulamentos, e um

código da singularidade, associado à moral da pessoa.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A descoberta de uma nova identidade

Antes de encerrar esta dissertação, destaco algumas reflexões que permearam o

desenvolvimento do estudo, especialmente acerca de meu posicionamento no campo de

pesquisa.

A observação etnográfica constitui o método antropológico por excelência, na medida

em que possibilita ao pesquisador apreender lógicas que modulam – e são moduladas – por

práticas sociais específicas. Para compreender os sentidos e significados de uma prática social

é imprescindível a inserção no universo nativo, com participação nos seus eventos. Neste

contexto, a sensibilidade e subjetividade do antropólogo encontram-se invariavelmente

incluídas (GOMES; MENEZES, 2008, p. 2).

Portanto, implicar-se na pesquisa envolve, para o pesquisador, o duplo movimento de

identificação e estranhamento, transformando o “exótico em familiar” e o “familiar em

exótico” (DAMATTA, 1978). Assim, a tarefa primeira do antropólogo deve ser a busca pelo

progressivo distanciamento crítico de seus próprios valores (LERNIER, 2003, p. 27),

especialmente quando o universo pesquisado é um campo conhecido.

Apesar de ter atuado previamente, como psicóloga, em hospitais públicos do Rio de

Janeiro, a atenção básica era um campo até então inexplorado por mim. Assim, não foi difícil

olhar para aquele ambiente como um grande continente estrangeiro a ser desbravado. Por

outro lado, de alguma forma, as interações ali estabelecidas me eram familiares. No entanto,

em momento algum me preocupei em intervir como psicóloga naquele espaço. Ao contrário,

com o decorrer da pesquisa, ficava cada vez mais claro a importância de permanecer

exclusivamente na posição de pesquisadora.

Minha inclusão na – e pela – equipe de saúde foi sentida desde o momento da entrada

no campo, principalmente a partir da participação nas reuniões das chefias da unidade. A

disponibilidade dos profissionais em contribuir com o meu trabalho, mediante

esclarecimentos frequentes sobre os fluxos e atividades da unidade e do sistema, e sua

abertura à minha participação em momentos de interação informal – como um almoço com

uma chefia e uma confraternização de aniversário – denotavam certa aliança entre “nós”.

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Aliás, este “nós” se fez presente nos primeiros relatos de meu diário de campo, mais

especificamente, naqueles que referiam-se aos episódios de interação com a equipe.

Esta observação conduziu a reflexões mais amplas, acerca de minha “aliança” com a

equipe. Se por um lado esta identificação favorecia o desenvolvimento da pesquisa35, por

outro, em alguns momentos, me vi impulsionada a demarcar meu lugar de pesquisadora,

evitando posicionamentos que pudessem comprometer esta identidade. Algumas situações

vivenciadas no Acolhimento evidenciam esta dinâmica36. Em determinado dia, ao término do

primeiro momento do Acolhimento, a dita “Triagem”, a enfermeira pede que eu fique em seu

lugar enquanto vai ao banco, solicitando aos pacientes que aguardassem seu retorno. Face à

minha resposta de que infelizmente não poderia fazer aquilo, pois “estava ali apenas para

observar”, ela demonstra aborrecimento e diz: “então, vou terminar essa fila e fechar, não

quero nem saber”. Em outra situação, uma enfermeira também expressa insatisfação, diante

da minha recusa em ajudá-la no preenchimento de documentos, como as Guias de Referência

e a Ficha de Gerenciamento do Acolhimento, para “adiantar seu trabalho e as filas”.

Entretanto, uma terceira situação me mobilizou de forma diferente. Uma usuária chega

passando mal no Acolhimento. A enfermeira solicita que eu vá até o setor ao lado, para buscar

o aparelho para medir a pressão arterial e atendo prontamente. A partir desta atitude reflito

sobre minha identificação com as emoções das pessoas que ali chegavam, em busca de

cuidado. Muitas vezes, estar naquele espaço não era fácil. Por diversas vezes, saí dali cansada,

triste, indignada. Mais do que empatia37, o sofrimento daqueles sujeitos mobilizava e instituía

uma aliança emocional para com eles.

Assim, ao considerar que a integridade do estudo antropológico reside em uma

reflexividade contínua, que permita evitar contaminações pelo envolvimento emocional do

pesquisador, destaco que o maior desafio deste estudo foi minimizar minhas avaliações e

julgamentos, acerca das interações observadas e, especialmente, sobre os atores envolvidos.

Por vezes foi difícil afastar minhas sensações e sentimentos, ao presenciar um jogo repleto de

emoções. Diante disto, para empreender a análise dos dados e redigir esta dissertação, foi

                                                                                                                         35 Não tive qualquer impedimento em frequentar a unidade e seus espaços. Ao contrário, todos os profissionais com os quais me deparei demonstraram disponibilidade em permitir a observação de suas atividades. 36 É possível que minha posição espacial na sala do Acolhimento, sentada em cadeira entre os dois profissionais, do mesmo lado da mesa que eles, de frente para os usuários, de alguma forma possa ter contribuído para esta identificação, tanto por eles quanto pelos pacientes e seus acompanhantes. 37 Favret-Saada (2005) define empatia como: (1) a capacidade de experimentar de forma indireta as sensações, percepções e pensamentos do outro, pressupondo uma identificação; (2) comunhão afetiva (GOMES; MENEZES, 2008, p. 2).

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fundamental um distanciamento do campo. Esta é a principal razão da escolha por encerrar a

observação antes da conclusão do processo de implementação efetiva do Acolhimento.

Cabe ainda destacar uma última questão: a escolha pelo uso dos termos doentes,

pacientes e/ou usuários. A noção de doente está remetida ao princípio classificatório operado

pelas categorias sociais de doença e saúde (RINALDI, 2012). A concepção de paciente, assim

como a de caso clínico, resulta da preeminência de uma lógica biomédica, no contexto da

racionalidade ocidental moderna. Já a categoria usuário indica a lógica de um sistema, cuja

ideologia sustenta-se em um discurso de “humanização”, motivo que sustenta a ênfase na

indicação de que “o paciente é chamado de usuário”.

Meu questionamento acerca de qual categoria utilizar reside na percepção da limitação

das três, enquanto referências aos sujeitos que buscam “acolhimento” em uma unidade

pública de saúde. No entanto, na falta de nomenclatura mais adequada, optei por variar o uso

dos termos, de modo a evitar repetições no texto, mas principalmente para fugir do risco de

ser conivente com a primazia da racionalidade biomédica de um lado e, de outro, de

compactuar com uma retórica que, longe de cumprir com seu propósito de fomento da

igualdade entre os sujeitos, segue reforçando a hierarquia, o poder e a dominação.

***

Para concluir esta dissertação, retomo os três eixos centrais de discussão, no intuito de

evidenciar suas conexões: (1) a distância entre ideário e prática; (2) as estratégias dos

diferentes atores sociais – profissionais de saúde, gestores e usuários – envolvidos na

assistência em saúde; (3) as emoções que emergem nas interações na porta de entrada do

serviço.

Ao longo deste estudo fica explícito o descompasso entre as prescrições normativas e a

realidade das práticas. Mais do que uma categoria polissêmica, cujos sentidos são negociados

entre os distintos atores sociais, o Acolhimento revela-se como portador de um “drama

social”, decorrente da tensão entre normas universalizantes e um sistema de relações sociais

estruturalmente hierarquizado. Assim, se por um lado, o discurso oficial, inserido na Política

Nacional de Humanização, é permeado por certos ideais, como “democratização”, “gestão

participativa”, “autonomia”, “cidadania”, “direitos”; por outro, prescreve-se uma

reorganização da oferta de serviços, a partir de um dispositivo que institucionaliza uma

racionalidade burocrática, garantindo a autoridade do sistema de saúde e o poder de seus

representantes. Neste contexto, a pretensa “autonomia” do usuário, como sujeito de “direitos”,

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permanece subordinada a diretrizes e fluxos institucionais, à burocracia e, sobretudo, à lógica

racionalista do saber/poder.

Além disso, na contramão da proposta de uniformização das práticas, é possível

observar o desenrolar de experiências singulares, marcadas pela agência de cada ator social.

Neste sentido, a investigação das interações que se estabelecem na porta de entrada da

atenção básica desvenda práticas e retóricas que apontam para a construção dos diferentes

significados do Acolhimento. Dentre as estratégias mobilizadas pelos atores sociais

envolvidos neste campo de produção de saúde, encontram-se discursos emotivos que se

revelam como agenciamentos, garantindo sustentação aos sujeitos, mediante a legitimidade de

sua ação social.

No contexto observado, a dialética sofrimento – reparação e cuidado se apresenta

como estratégia social recorrente, legitimada pela retórica de construção da “vítima”, uma vez

que, em face do sofrimento, todas as exigências morais convergem para o imperativo da ação,

com vistas à reparação, por meio do cuidado. Assim, os usuários frequentemente manifestam

indignação, revolta e acusação, como estratégias para demandar que seja feita justiça, frente

à banalização de seu sofrimento pelo outro. O regime da justiça, por sua vez, expõe uma

dimensão política-hierárquica, refletida na busca pelo respeito à dignidade humana, mediante

garantia da igualdade entre indivíduos-cidadãos. Neste sentido, novamente, a tensão entre

uma vertente individualizante, centrada na impessoalidade e automatismo das leis e

normatizações, e um código da singularidade, associado à moral da pessoa, é explicitada.

Assim, por um lado, a retórica da “vítima” aciona uma tomada de posição

identificatória com o outro, repercutindo em determinados sentimentos, como solidariedade e

piedade, que contribuem para uma mobilização de “jeitinhos”, no sentido do “acolhimento”

das demandas da pessoa que sofre. Por outro lado, a inclusão do critério responsabilidade

provoca certo tipo de sentimentos, como desprezo, pena e compaixão, que operam em prol da

manutenção de uma posição de superioridade, perante o outro.

Portanto, se a dinâmica das interações estabelecidas no Acolhimento revela jogos

simbólicos de identificação e diferenciação, hierarquia e poder, como garantir a validade de

sua concepção enquanto “tecnologia do cuidado”? Mais do que isso, diante de uma proposta

de reorganização do sistema centrada em uma clínica orientada exclusivamente pela

objetividade e a técnica, como é possível afirmar a existência de humanização e cuidado?

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A ausência de uma “gestão participativa” e a produção de indiferença diante do outro

constituem indicativos de um processo de produção de anestesia, que respalda e protege os

profissionais, em face da incapacidade do sistema de atender à demanda integral de seus

usuários. Assim, em última instância, para além de sua configuração enquanto dispositivos de

reforço do vínculo entre usuários e sistema de saúde, mediante a garantia de um padrão ético

de cuidado, as regras do Acolhimento com Classificação de Risco se revelam como artifícios

para camuflar a oferta insuficiente de serviços.

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ANEXOS

1. Cronograma da pesquisa de campo

DIA ENTRADA SAÍDA HORAS ATIVIDADE

01 10:00 11:00 01h Reunião com diretor

02 10:00 13:00 03h Reunião das chefias

03 10:00 14:00 04h Reunião das chefias + Acolhimento + Almoço

04 10:00 14:00 04h Reunião das chefias + Acolhimento

05 10:00 12:00 02h Reunião das chefias

06 10:00 12:30 02h30 Reunião das chefias

07 07:30 12:00 04h30 Acolhimento

08 10:00 12:30 02h30 Reunião das chefias

09 07:30 11:30 04h Acolhimento

10 09:00 11:00 02h Curso Técnico Agentes Comunitários de Saúde

11 10:00 12:00 02h Reunião das chefias

12 07:30 11:00 03h30 Acolhimento

13 10:00 12:00 02h Reunião das chefias

14 12:30 15:00 02h30 Acolhimento

15 10:00 12:00 02h Reunião das chefias

16 10:00 12:00 02h Reunião das chefias

17 10:00 12:00 02h Reunião das chefias

18 10:00 10:20 20min -- x --

19 10:00 12:30 02h30 Reunião das chefias

20 09:30 12:00 02h30 Reunião sobre Acolhimento com diretor

21 11:00 15:00 04h Reunião sobre Acolhimento com chefias

22 14:30 17:00 02h30 Reunião sobre Acolhimento Enfermagem

23 16:00 17:40 01h40 Reunião sobre Acolhimento Clínica Médica

24 10:30 12:15 01h45 Reunião das chefias

TOTAL: 60 horas e 45 minutos de observação

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ATIVIDADE DIAS

Reunião das chefias 13

Acolhimento 06

Reunião sobre Acolhimento 04

Outras 03

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2. Fluxograma da porta de entrada das unidades básicas de saúde

(BRASIL, 2011, p. 28)

= ACOLHIMENTO

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3. Protocolo para Classificação de Risco no Acolhimento

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4. Plano de Intervenção para o Acolhimento PLANO DE INTERVENÇÃO: Organização do Acesso e Acolhimento38

- Discussão com os profissionais da unidade para a compreensão do processo de organização do acesso e Acolhimento: reunião com médicos e enfermeiros da unidade; pauta das reuniões de chefia.

- Adscrição do território: É necessário garantir que os usuários das equipes de Saúde da Família sejam devidamente encaminhados e agendados para as suas respectivas equipes. Não se deve garantir o retorno do usuário para a Clínica Médica da unidade (Importante fazer a lista atualizada das ruas cobertas pelo PSF).

- Consulta de Enfermagem: Escala das enfermeiras para a consulta de Enfermagem de acordo com as especialidades: Clínica Médica (Incluíram: “tuberculose, hanseníase e hipertensão” - Nestes casos, as consultas são intercaladas com as do médico.), Ginecologia e Pediatria. Garantia de agendamento da consulta de primeira vez e/ou de retorno de acordo com as linhas de cuidado.

- Técnico de Enfermagem: Escala de técnicos de Enfermagem para apoio ao Acolhimento, por turno, objetivando a avaliação de sinais vitais da demanda espontânea clínica.

- Coordenação da agenda: Análise da relação entre consultas agendadas e consultas de demanda espontânea, por especialidades. (Incluíram: “avaliação do quantitativo de faltosos”)

Propostas: § Clínica Médica – 50% agendamento e 50% de demanda espontânea (Percentual previsto para o

início do processo de organização do Acolhimento, visto que a meta da SUBPAV é de 60% de agendamento e 40% de demanda espontânea.)

§ Ginecologia – 70% de agendamento e 30% de demanda espontânea § Dermatologia – 80% de agendamento e 20% de demanda espontânea § Pneumologia – 80% de agendamento e 20% de demanda espontânea

§ Pediatria – 60% (passaram para 50%) de agendamento e 40% (passaram para 50%) de demanda espontânea

§ Fonoaudiologia – 100% de agendamento § Homeopatia – 100% de agendamento § Nutrição – 100% de agendamento

§ Massoterapia – 100% de agendamento § Terapia Ocupacional – 100% de agendamento § Saúde Bucal – 80% de agendamento e 20% de demanda espontânea § Pré-Natal – 100% de agendamento § Puericultura – 100% de agendamento

                                                                                                                         38 Este documento foi elaborado pela responsável pelo Acolhimento na CAP e o diretor. A primeira versão foi apresentada às chefias, quando foram incluídas as alterações aqui assinalas em vermelho. A versão final foi apresentada às equipes de Enfermagem e Clínica Médica.

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Obs.: O quantitativo em % não impede que demais usuários, além do número previsto de consultas por turno, sejam devidamente atendidos por demanda espontânea, desde que baseado em critério de Classificação de Risco que justifique a consulta no mesmo dia. (Incluíram: “O extra pode ser encaminhado para consulta de Enfermagem.”)

- Central de Marcação de Consultas: Apoio integrado ao profissional do Acolhimento; a agenda das consultas e os agendamentos ficarão sob responsabilidade da Central de Marcação de Consultas; garantia da análise efetiva da coordenação da agenda.

- Busca prévia de prontuários na Documentação Médica: Os prontuários dos usuários agendados devem ser retirados no dia anterior pelo profissional da Documentação Médica, objetivando a agilidade do atendimento e a diminuição das filas. Os usuários de demanda espontânea que necessitarem de consulta no mesmo dia ou que tiverem a sua demanda resolvida no próprio Acolhimento devem ter seus respectivos prontuários também retirados pela Documentação Médica.

- Utilização efetiva do Critério de Classificação de Risco e Vulnerabilidade: Fim da distribuição de números para consulta no Acolhimento.

- Preenchimento adequado e análise da Ficha de Gerenciamento do Acolhimento: Critério adequado de preenchimento; ferramenta para a reorganização do processo de trabalho na unidade; discussão mensal na reunião de chefias.

- Plano de acolhimento: É necessário discutir o Plano de Acolhimento com profissionais da unidade e usuários. Para isso é preciso que se tenha claro no plano o horário e as escalas (incluindo de férias) dos profissionais da unidade.

- Agentes Experientes: O local ideal para o trabalho dos Agentes Experientes é na porta de entrada da unidade, apoiando o processo de organização do acesso e Acolhimento, e orientando o fluxo dos usuários na unidade.