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ANTROPOLOGIA DA MEDICINA: UMA REVISÃO TEÓRICA Marcos de Souza Queiroz* Ana Maria Canesqui** QUEIROZ, M. de S. & CANESQUI, A.M. Antropologia da medicina: uma revisão teórica. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 20:152-64, 1986. RESUMO: Foi feita revisão e análise da literatura antropológica mais importantes sobre representações de saúde e doença e práticas de cura, tendo a Inglaterra, os Estados Unidos da América e a França como referência. Tendo representantes nas principais es- colas dentro do pensamento antropológico (tais como o funcionalismo, o funcional-estru- turalismo, o estruturalismo, a teoria do rótulo, o interacionismo simbólico, a etnome- todologia, o criticismo cultural), a história da antropologia da medicina se confunde com a própria história da antropologia. Além de analisar a contribuição que essas várias escolas fizeram para esse campo de estudo, aponta-se o impasse atual que se está nele verificando. Atribui-se como principal razão para esse impasse à ausência de uma teoria capaz de explicar como os processos sociais de pequena escala (apropriados à metodologia antropológica) subordinam-se aos processos sociais recorrentes na so- ciedade capitalista. UNITERMOS: Antropologia da medicina. Medicina tradicional. Sociologia da medicina. * Do Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Saúde e do Núcleo de Políticas Públicas da Univer- sidade Estadual de Campinas Caixa Postal 1170 13100 Campinas, SP — Brasil. * Do Departamento de Medicina Preventiva e Social, do Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Saúde e do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Universidade Estadual de Campinas Caixa Postal 1170 13100 Campinas, SP - Brasil. INTRODUÇÃO O objetivo desse artigo é rever criti- camente as principais linhas teóricas de- senvolvidas na Antropologia da Medici- na, tendo como referência a Inglaterra, os EUA e a França. Em outro texto (Queiroz e Canesqui 24 , 1986), esse mes- mo objetivo foi desenvolvido tendo co- mo referência exclusiva o Brasil. O campo da antropologia da medicina iniciou-se com a constatação do elo ine- xorável entre doença, medicina, cultura e sociedade humana. Teorias da doença (científica ou religiosa), envolvendo etio- logia, diagnóstico, prognóstico, tratamen- to e cura são partes do repertório cultu- ral de grupos humanos e variam no tem- po e no espaço em consonância com a variação cultural. Rivers 25 (1924), mais pelo fato de ter sido também médico, além de antropó- logo, realizou uma obra pioneira que hoje em dia é clássica no campo da an- tropologia da medicina. Ele conceptua- lizou este campo como um sub-sistema interno ao sistema cultural de uma so- ciedade, antecipando assim a consolida- ção das bases da teoria funcionalista. Desse modo, crenças sobre saúde e doen- ça de povos "primitivos" deixaram de ser encarados como fenômenos ilógicos, bizarros ou irracionais, passando a ser percebidos como teorias da causação da doença que fazem sentido dentro do contexto cultural a que pertencem. Para Rivers 25 , que recebeu influência marcante de Durkheim, essas teorias po- dem ser agrupadas em três categorias básicas que ainda hoje são empregadas na análise de "medicinas populares": a humana, a espiritual ou sobrenatural e a natural. A categoria humana engloba crenças relacionadas com o fato de que crises e conflitos no relacionamento hu- mano e social em geral provocam doen-

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ANTROPOLOGIA DA MEDICINA: UMA REVISÃO TEÓRICA

Marcos de Souza Queiroz*Ana Maria Canesqui**

QUEIROZ, M. de S. & CANESQUI, A.M. Antropologia da medicina: uma revisão teórica.Rev. Saúde públ., S. Paulo, 20:152-64, 1986.

RESUMO: Foi feita revisão e análise da literatura antropológica mais importantessobre representações de saúde e doença e práticas de cura, tendo a Inglaterra, os EstadosUnidos da América e a França como referência. Tendo representantes nas principais es-colas dentro do pensamento antropológico (tais como o funcionalismo, o funcional-estru-turalismo, o estruturalismo, a teoria do rótulo, o interacionismo simbólico, a etnome-todologia, o criticismo cultural), a história da antropologia da medicina se confundecom a própria história da antropologia. Além de analisar a contribuição que essasvárias escolas fizeram para esse campo de estudo, aponta-se o impasse atual que seestá nele verificando. Atribui-se como principal razão para esse impasse à ausência deuma teoria capaz de explicar como os processos sociais de pequena escala (apropriadosà metodologia antropológica) subordinam-se aos processos sociais recorrentes na so-ciedade capitalista.

UNITERMOS: Antropologia da medicina. Medicina tradicional. Sociologia damedicina.

* Do Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Saúde e do Núcleo de Políticas Públicas da Univer-sidade Estadual de Campinas — Caixa Postal 1170 — 13100 — Campinas, SP — Brasil.

* Do Departamento de Medicina Preventiva e Social, do Núcleo Interdisciplinar de Estudos emSaúde e do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Universidade Estadual de Campinas —Caixa Postal 1170 — 13100 — Campinas, SP - Brasil.

INTRODUÇÃO

O objetivo desse artigo é rever criti-camente as principais linhas teóricas de-senvolvidas na Antropologia da Medici-na, tendo como referência a Inglaterra,os EUA e a França. Em outro texto(Queiroz e Canesqui24, 1986), esse mes-mo objetivo foi desenvolvido tendo co-mo referência exclusiva o Brasil.

O campo da antropologia da medicinainiciou-se com a constatação do elo ine-xorável entre doença, medicina, culturae sociedade humana. Teorias da doença(científica ou religiosa), envolvendo etio-logia, diagnóstico, prognóstico, tratamen-to e cura são partes do repertório cultu-ral de grupos humanos e variam no tem-po e no espaço em consonância com avariação cultural.

Rivers25 (1924), mais pelo fato de tersido também médico, além de antropó-logo, realizou uma obra pioneira quehoje em dia é clássica no campo da an-

tropologia da medicina. Ele conceptua-lizou este campo como um sub-sistemainterno ao sistema cultural de uma so-ciedade, antecipando assim a consolida-ção das bases da teoria funcionalista.Desse modo, crenças sobre saúde e doen-ça de povos "primitivos" deixaram deser encarados como fenômenos ilógicos,bizarros ou irracionais, passando a serpercebidos como teorias da causação dadoença que fazem sentido dentro docontexto cultural a que pertencem.

Para Rivers25, que recebeu influênciamarcante de Durkheim, essas teorias po-dem ser agrupadas em três categoriasbásicas que ainda hoje são empregadasna análise de "medicinas populares": ahumana, a espiritual ou sobrenatural e anatural. A categoria humana englobacrenças relacionadas com o fato de quecrises e conflitos no relacionamento hu-mano e social em geral provocam doen-

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ças. As tão difundidas crenças em mau-olhado, feitiço ou inveja, ou ainda as

crenças de que o modo de vida e detrabalho (que inevitavelmente envolvemrelacionamento e conflito humanos) afe-tam de alguma forma a saúde, são exem-plos dessa categoria. A categoria espiri-tual ou sobrenatural engloba crenças deque espíritos ou entidades sobrenaturaispodem provocar doenças. Essas crençasremetem a restrições e prescrições deordem moral, as quais necessariamentese referem à ordem sócio-cultural. Final-mente, a categoria natural engloba ascrenças de que agentes naturais tais co-mo micróbios ou agentes tóxicos tambémprovocam doenças. Aqui, o modo comouma sociedade conhece o mundo que acerca, selecionando e combinando certoselementos em detrimento de outros, estáevidentemente relacionado com o modocomo esta sociedade organiza e percebea si mesma, como enfatizara Durkheim.

Em comparação com a medicina cien-tífica ocidental, Rivers25 chegou inclusivea uma conclusão ousada, afirmando queas medicinas "primitivas" são, no planoteórico, mais coerentemente organizadasdo que a medicina científica ocidental e,portanto, mais racionais. Em suas pala-vras,

"A arte dessas sociedades é de algummodo mais racional do que a nossa,na medida em que os seus modos dediagnóstico e tratamento seguem maisdiretamente as idéias referentes à cau-sação de doenças" (Rivers25, 1924:52).Não é difícil perceber nessa citação

uma antecipação do "relativismo cultu-ral" que, de um modo ou de outro, in-fluenciou profundamente a grande maio-ria das etnografias funcionalistas e estru-turalistas, incluindo a área da antropolo-gia da medicina, como veremos adiante.

Evans-Pritchard7 (1937) realizou umaobra clássica dentro da antropologia. Asua preocupação envolvia de um modogeral teorias de causação de infortúniosindividuais, inclusive doenças, principal-

mente no que se refere à lógica da acusa-ção de feitiçaria. Ele mostrou que paraos Azande (e para muitos outros povosafricanos, como nos tem mostrado asetnografias mais recentes), toda a doen-ça, assim como toda a má-sorte indivi-dual, provém de um feitiço feito por umaoutra pessoa. O objetivo foi mostrar queesta crença reflete a estrutura de podere suas divisões dentro da sociedade. Aoobedecer a uma lógica onde conflitos so-cialmente estruturados se expressam ese resolvem através de uma complexa in-teração sócio-política, a crença em fei-tiçaria deixou de ser encarada como re-sultado de uma mentalidade primitiva,mas como uma expressão cultural deuma complexa realidade humana.

Desenvolvendo ainda mais as idéiaslançadas por Evans-Pritchard7, Turner30

(1977) mostrou que a medicina africanautiliza-se de um paradigma baseado prin-cipalmente em fatores sociais. Nele, nãosó as doenças como também as curas sãopercebidas como resultantes de crises ereconciliações no relacionamento social.Turner30 mostrou em particular como omédico Ndembu exerce as suas ativida-des de cura mais concentrado no gruposocial do que no paciente individual. Eleobservou ainda que naquela cultura opaciente não melhorará enquanto as ten-sões e agressões nas inter-relações gru-pais não tiverem sido expostas à luz eao tratamento ritual. Nesse sentido, opapel do médico Ndembu é se deixarsensibilizar pelas correntes sociais de sen-timentos conflituosos e pelas disputas in-terpessoais e sociais nas quais elas seexpressam, e canalizá-las num sentidopositivo. Assim, "as energias cruas doconflito são domesticadas à serviço daordem social" (Turner30).

O propósito de Turner30, nesse artigo,foi mostrar que mesmo uma medicina"primitiva" como a dos Ndembu podeoferecer, segundo a sua própria expres-são, lições para a medicina científica oci-dental, muito embora ele resista a idéia

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de romantizar a situação ao lembrar queessa medicina convive com um baixíssi-mo nível de saúde das populações a queservem.

O relativismo cultural norte-america-no levantou o interesse pelo estudo doscostumes e funcionamento das culturas,enfatizando a relatividade das condutasnormais e patológicas. Os trabalhos deBenedict2 (1934) podem ser considera-dos típicos desta linha, tendo mostradoque aquilo que as sociedades ocidentaisconsideram fatos patológicos podem serobservados como perfeitamente normaisem outras sociedades, e vice-versa.

Dentro do paradigma funcionalista,essa postura enfatizou ao extremo o pon-to de que cada elemento de uma orga-nização cultural deve ser observado co-mo tendo um sentido próprio e único,impossível de ser extrapolado para umaoutra organização cultural. Critica-se des-sa forma tanto o evolucionismo que vê asociedade ocidental moderna, e dentrodela a sua cultura hegemônica, como oápice da civilização, como o difusionis-mo que procura encontrar o significadode elementos culturais de sociedades "pri-mitivas" ou "atrasadas" na difusão a par-tir de uma civilização mais adiantada.Por outro lado, defende-se também odireito de cada sociedade de desenvol-ver-se de um modo autônomo, uma vezque não existe nenhum caminho neutroe objetivamente superior que pudesseservir de modelo para o desenvolvimentode todas as sociedades.

A postura anti-etnocêntrica de Bene-dict contribuiu bastante à psiquiatria queaté então supunha a objetividade univer-sal dos quadros mórbidos. Se na obra des-sa autora ainda encontramos a utiliza-ção de categorias próprias da psiquiatriaocidental na análise de outras culturas ea concomitante presença de juízos devalor na conceituação do normal e dopatológico, outros autores vieram elimi-nar esses resquícios "etnocêntricos", in-

corporando à anormalidade o critério es-tatístico, o que resultou em conferir aocomportamento anormal o caráter de des-vio da norma.

A investigação da causa (cultural ebiológicia) dos fenômenos resultantes dodesvio da norma impôs a colaboraçãoconjunta da psiquiatria e da antropolo-gia, abrindo assim o campo hoje deno-minado etnopsiquiatria. Linton17 (1956),por exemplo, combinando categoriasbiológicas com antropológicas, distingueas anomalias absolutas, válidas para to-das as sociedades, das anomalias relati-vas, capazes de expressar o normal e opatológico próprios exclusivamente a umacultura particular. Parsons21 (1951), re-toma a questão do desvio como fenôme-no sociológico e não psiquiátrico, defi-nindo-o como a recusa ou impotência doego em interiorizar certas regras.

A teoria parsoniana, sob uma perspec-tiva mais sociológica do que antropoló-gica, a partir da década de 50, se inte-ressou diretamente pelo problema do sis-tema médico. Parsons é conhecido comoum dos pais do funcionalismo, uma pos-tura teórica que percebe a sociedade co-mo em equilíbrio mantido por padrõespartilhados de normas e valores em cons-tante luta contra os processos desfuncio-nais como, por exemplo, o crime e adoença. Nesse sentido, a medicina é en-carada como uma instituição indispensá-vel para a manutenção do equilíbrio so-cial por lutar contra uma das fontes maisperigosas de disfunção e desvio, ou seja,as doenças.

Com o seu conceito de papel socialem geral e papel de doente em parti-cular, Parsons estabeleceu bases impor-tantes para o desenvolvimento de estudosdas ciências sociais em medicina. Deacordo com a sua teoria, o papel socialde doente evoca um conjunto de expec-tativas padronizadas que definem as nor-mas e os valores apropriados ao doentee aos indivíduos que interagem com ele.Nesse esquema, a norma é sempre refor-

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çada e o desvio é sempre punido. Comonenhuma parte pode definir o seu papelindependentemente do papel do parceiro,o relacionamento humano em geral e oentre médico e paciente em particular,longe de serem formas espontâneas deinteração social, são definidos por umjogo de expectativas mútuas que são sem-pre socialmente dadas. Portanto, médi-cos e pacientes tendem a agir de ummodo estável e previsível no meio socialem que pertencem.

O esquema parsoniano, embora criti-cado pela sua visão totalitária e sistê-mica da sociedade (o que implica per-cepção de mudança social sempre adap-tativa e integrativa onde os desvios econflitos se submetem à orientação va-lorativa do consenso social), foi um mar-co dos mais importantes na área dos es-tudos sociológicos e antropológicos damedicina, influenciando um grande nú-mero de trabalhos e de posturas teóri-cas. Dentro dessa linha, uma divisão teó-rica fundamental foi estabelecida entreos aspectos objetivos e os subjetivos dadoença, sendo que os primeiros depen-dem das ciências médicas e biológicaspara a sua compreensão e os segundosdas ciências sociais, uma vez que o pro-pósito dessas ciências é estudar como oprocesso da doença é percebido, avaliadoe interpretado por uma cultura, uma co-munidade, uma classe ou um grupo social.

Assim, os campos da sociologia e daantropologia da medicina passaram aconcentrar-se no comportamento socialcom relação à doença e, particularmente,ao "mal-estar", já que esse último con-figura uma área bastante aberta paradiferentes interpretações cosmológicas ediferentes padrões de comportamento, va-riando conforme a experiência social doindivíduo. A importância dos estudos so-ciais dos "mal-estares" foi freqüentemen-te justificado pelo fato de ser a percep-ção subjetiva dos indivíduos sobre osseus sintomas que os levam a percebera doença e a procurar um médico.

De um modo geral, embora influen-ciadas por Parsons, a maior parte daspesquisas sociológicas e antropológicasna área da medicina que se seguiram ten-deram a adotar uma postura muito maisempírica, em oposição à grande teoriaparsoniana, o que permitiu que as mino-rias étnicas, os grupos de emigrantes, aspopulações de origem mexicana e as clas-ses sociais pobres em geral fossem am-plamente estudadas. A grande maioriados trabalhos produzidos nos EUA nessetempo observaram a doença como umfenômeno biológico objetivo tal como aciência médica ocidental a define, preo-cupando-se assim apenas com a sua ex-periência subjetiva. O foco de interessedas ciências sociais aplicadas à medicinaconcentrou-se, portanto, nas diferençascomportamentais dos doentes, atribuin-do-se essas diferenças a fatores como et-nicidade, cultura, classe social, nível edu-cacional, escolaridade, idade, sexo eoutros.

Zborowski34 (1952) pode ser tomadocomo um exemplo desse tipo de postura.Realizando pesquisa pioneira na área, eleverificou que as reações à dor variamconforme a cultura a que um indivíduopertence. Assim, descendentes de judeus,italianos e americanos tradicionais fo-ram estudados, sendo que os dois pri-meiros grupos mostraram ser muito maissensíveis à dor do que o último grupo.Os descendentes de italianos tambémprocuravam um alívio imediato à dorenquanto os de judeus usavam-na comoum meio para manipular o comporta-mento dos outros e para receber maioratenção. Em contraste, os americanostendiam a se conformar com a imagemmédica do paciente ideal, evitando ex-pressar dor em público e cooperandocom o pessoal do hospital. Eles tambémse preocupavam com o seu estado gerala longo prazo, não se importando muitocom o alívio imediato dos sintomas.

Zola35 (1966), nessa mesma linha depesquisa, comparou pacientes america-

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nos de origem irlandeza, italiana e anglo-saxônica e constatou que os de origem

italiana tendiam a dramatizar os seus sin-tomas, os irlandezes a negá-los e os an-glo-saxões a falar deles de modo impes-soal, neutro e sem ansiedade.

Dentro dessa linha de pesquisa, algunstrabalhos se fizeram em conjunção coma perspectiva da medicina oficial, inte-grando o desempenho de sociólogos, an-tropólogos e médicos dentro de progra-mas de saúde pública em áreas perifé-ricas. Assim, os pontos de vista socioló-gico e antropológico contribuiram para apenetração mais efetiva das técnicas sa-nitárias em comunidades pobres. As pa-lavras de Paul22 (1955:1) ilustram per-feitamente essa atitude:

"Se você quiser controlar pernilongosvocê deve aprender a pensar como umdeles. A irrefutabilidade desse argu-mento é evidente. Ele se aplica, noentanto, não apenas para as popula-ções de pernilongo que se procura ex-terminar, mas também para popula-ções humanas que se procura benefi-ciar. Se se deseja ajudar uma comu-nidade a melhorar a sua saúde, deve-se aprender a pensar como uma pes-

soa dessa comunidade".A crítica que se pode fazer a essa pos-

tura diz respeito ao fato dela consideraras informações transmitidas pela medici-na oficial como realidades naturais, neu-tras e universais, sem que as ciências so-ciais pudessem analisá-las sob uma pers-pectiva histórica e cultural com o mes-mo status epistemológico dos sistemasmédicos historicamente anteriores ou desociedades de tecnologia simples não oci-dentais. De fato, ao se tornarem práticassubordinadas a finalidades de promovera expansão da medicina oficial, as ciên-cias sociais limitaram consideravelmenteas suas possibilidades de desenvolvimen-to científico.

Estando ausente na grande maioriados trabalhos realizados nessa temática

a perspectiva de que a medicina cientí-fica ocidental é também inevitavelmentecultural, social e ideológica, eles fre-qüentemente deixaram-se impregnar depensamento etnocêntrico. Assim, implí-cita ou explicitamente, os sistemas de me-dicina alternativas foram considerados namelhor das hipóteses, como inefetivos e,na pior, como perigosos, enquanto a me-dicina científica foi considerada comosendo baseada em conhecimentos objeti-vos, neutros e independentes de influên-cias sócio-econômicas e culturais.

Dentro da postura funcionalista que,de um modo ou de outro, influenciou agrande maioria dos estudos em ciênciassociais em saúde nessa época, alguns en-fatizaram o aspecto objetivo da realida-de dentro da tradição positivista, enquan-to outros enfatizaram o aspecto subjeti-vo, dentro da tradição fenomenológica.

Foster8,9 (1953, 1976) pode ser toma-do como um bom exemplo da posturapositivista que não chega inclusive a ab-sorver inteiramente as virtudes do méto-do funcionalista. Apesar da riqueza em-pírica do seu material de pesquisa so-bre a "medicina popular" de comunida-des de origem mexicana nos EUA e naAmérica Central, a sua interpretação eanálise dos dados é comprometida peloslimites da sua postura teórica. Tomemos,por exemplo, as suas idéias difusionis-tas e evolucionistas. Trata-se de idéiasque foram amplamente criticadas nasciências sociais antes mesmo da conso-lidação do método funcionalista. Comosalientou Boas4 (1966), a difusão e a evo-lução de fenômenos culturais só podemser compreendidos em termos de imposi-ção de significados no fluxo da expe-riência. Evidentemente, um elemento deuma sociedade "A" ou de um momentohistórico "X" não pode ser comparadocom o mesmo elemento de uma socie-dade "B" ou de um momento histórico"Y" se esses elementos carregam dife-rentes significados em seus respectivosmeios sócio-culturais.

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Assim, não tem a menor força expli-cativa a interpretação de Foster de queo "sistema médico popular" de amplossetores rurais da América Latina (princi-palmente o sistema do "quente e frio")são legados da medicina Ibérica da épocada colonização; muito menos ainda, asua classificação da medicina em três es-tágios evolutivos: a medicina personalís-tica, a medicina naturalística e a medi-cina científica. Ao considerar a medici-na oficial, e dentro dela as suas terapiasfarmacológicas, como a mais evoluídapossível, o autor perde a noção de quea ação de uma droga, por exemplo, alémde ser induzida, pelo menos em parte,por expectativas culturais, como ocorrecom o efeito placebo, só adquire um sig-nificado terapêutico no interior de umcontexto cosmológico maior.

Duas outras teorias das mais impor-tantes para o campo da antropologia damedicina enfatizaram o aspecto subjetivoda realidade, dentro da tradição fenome-nológica, em oposição à perspectiva po-sitivista. Trata-se da "teoria do rótulo"(labelling theory) e do "interacionismosimbólico", em cujos âmbitos a maioriados trabalhos na área da "medicina po-pular" nos EUA e na Inglaterra têm si-do produzidos atualmente.

A teoria do rótulo sugere que a socie-dade é muito menos um sistema coeren-te do que um arranjo pluralístico degrupos que competem entre si para im-por a sua visão de mundo. O que é le-gítimo e correto para um grupo pode nãosê-lo necessariamente para um outro. As-sim, temos uma relatividade total dasnormas, que só são válidas para os gru-pos sociais que as sustentam. A simplescriação de uma norma implica necessa-riamente a criação de desviantes, umavez que não existem normas ou leis uni-versais, neutras e independentes de inte-resses específicos de grupos sociais, co-mo enfatizou Becker1 (1963).

Já o interacionismo simbólico criticao caráter determinista do sistema social

do funcionalismo e propõe uma visãoonde os indivíduos desempenham asações relevantes. Assim, a ordem socialnão é somente dada como propuseraDurkheim, mas também criada na inte-ração de membros da sociedade. Comoinsistia Mead20 (1967), o indivíduo nãoconsiste somente de normas internaliza-das de conduta; ele sempre pode agir im-pulsiva e inventivamente de maneira quenão foi aprendida na sociedade. O indi-díduo pode também manipular as nor-mas e as regras sociais visando benefí-cios políticos e pessoais. Isso é o quegeralmente ele faz, como tem enfatizadoatravés de inúmeras pesquisas a escolainglesa de Manchester, numa crítica àvisão que percebe o indivíduo como umamarionete impulsionado pelas regras, nor-mas e leis de uma sociedade.

No campo da medicina, essas teoriasou metodologias têm produzido trabalhosinteressantes como, por exemplo, o deRosenhan26 (1980), cuja equipe de pes-quisadores se internou como esquisofrê-nicos em 12 hospitais psiquiátricos emdiferentes regiões dos EUA. A pesquisamostra que em nenhum dos casos a "far-sa" foi descoberta. Todos os pesquisa-dores, que foram diagnosticados comoesquisofrênicos apenas por dizerem naentrevista inicial que ultimamente esta-vam ouvindo vozes e sentiam a sua vidavazia, tiveram esse diagnóstico mantidoao longo dos 19 dias de estadia, emmédia, nos hospitais, apesar do compor-tamento amigável, não disruptível e ab-solutamente normal que todos eles exi-biram. A pesquisa mostra que em váriasocasiões esses comportamentos eram vis-tos como sintomas da doença. Assim, osfatos eram freqüentemente distorcidos in-conscientemente de modo a se confor-marem com a teoria da dinâmica da rea-ção esquizofrênica. Por exemplo, todosos falsos-pacientes tomavam notas publi-camente e tal comportamento era vistocomo um sub-conjunto dos comportamen-tos compulsivos relacionados com a es-

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quizofrenia. Este é só um exemplo en-tre muitos arrolados pelo autor compro-vando que uma vez rotulado como doen-te mental não há nada que se possa fa-zer para desmentir, pois a percepção darealidade depende de uma configuraçãoorganizada por uma teoria ou um ró-tulo. Assim, o autor conclui que a cate-gorização psicológica da doença mentalé, na melhor das hipóteses, inútil e, napior, danosa, enganosa e pejorativa.

Dentro da perspectiva do "interacio-nismo simbólico", Roth27 (1963) analisapacientes internados num sanatório detuberculose e a estratégia desses pacien-tes no sentido de impor uma ordem pre-visível na incerta carreira hospitalar. Elemostra como na ausência de certeza so-bre o curso do tratamento e sobre a re-cuperação desses pacientes, eles se uti-lizam de regularidades que existem emregimes de tratamento, na operação dopróprio hospital e no progresso de ou-tros pacientes para construir normas pa-ra eles mesmos. Isto os permite estimaro estágio que eles se encontram no ca-minho até receberem alta. Roth27 mos-tra também que a pressão da expectativados pacientes é freqüentemente forte pa-ra influenciar as decisões clínicas e te-rapêuticas dos médicos.

A análise de Goffman13 (1974), dehospitais para doentes mentais, é das maisimportantes. Como o lugar do doente éfundamental nestas instituições, e comoesse lugar é organizado em função deuma lógica que beneficia a própria or-dem institucional, o papel do doente édado sem oferecer margens para desvios.O paciente é obrigado a seguir esse pa-pel depois de vários processos de "mor-tificação do eu", ou seja, processos quevisam, de um lado, a perda de sua iden-tidade anterior tais como o uso de uni-forme, a raspagem da cabeça e a perdado nome em favor de um número; e, deoutro, à conformidade com o novo pa-pel de doente, tais como as atitudes deatendentes, enfermeiros e médicos que

tendem a interpretar qualquer comporta-mento, considerado normal em outro con-texto, como sinal de patologia. No en-tanto, dentro do limite do papel de in-sano que o paciente é obrigado a exe-cutar, Goffman mostra que o comporta-mento desses pacientes é adequado aocontexto no qual eles atuam. Num am-biente deprivador e punidor que ataca omais íntimo senso de autonomia e priva-cidade, o comportamento dos internadosem face dessa situação, mesmo que bi-zarro em outros contextos, não deve servisto como sinal de demência mas comouma resposta compatível com as condi-ções em que são obrigados a viver.

Sem dúvida alguma, tanto a "teoriado rótulo" como o "interacionismo sim-bólico" são reações liberais ao conserva-dorismo funcionalista. As pesquisas con-duzidas sob a influência dessas metodolo-gias, em particular o "interacionismo sim-bólico", dimensionaram um aspecto im-portante da realidade social que é o seuaspecto subjetivo, ou seja, o resultado doprocesso de interação entre membros dasociedade em contínua negociação, sejapara projetar uma imagem do "eu" navida cotidiana, seja para definir uma es-tratégia diante de uma situação. Assim,importantes trabalhos foram realizados.No entanto, a crítica que se pode fazera essas posturas diz respeito à reduzidadimensão que dão para a estrutura socialmais ampla.

Para o "interacionismo simbólico", nãoexiste a preocupação de observar fatosrelativos ao sistema social mais amplo,uma vez que a organização da sociedadeé vista como algo fluido, pouco consis-tente e em constante mudança pela ma-nipulação e reação contínua de seus mem-bros. Para a teoria do rótulo, os grupossociais e as sub-culturas são observadascomo tendo o mesmo peso e a mesma di-mensão de uma civilização, uma vezque tudo é tomado como relativo no mun-do cultural. Assim, a cultura de uma tri-bo perdida no Amazonas, por exemplo,

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teria a mesma ordem de importância dacultura ocidental moderna. Portanto, es-se método de pesquisa peca pela ausên-cia de senso de proporção e escala, o quenão permite reconhecer que fatores es-truturais mais sólidos tais como classe so-cial ou a forma capitalista de produçãoexistem e dimensionam a realidade decomunidades, grupos sociais ou culturas.

A etnometodologia é outra posturateórica desenvolvida nos EUA que temcontribuído para o campo da antropolo-gia da medicina. Ela originou-se a par-tir dos estudos de Boas4 que conside-rava os fenômenos culturais e lingüísticoscomo estando relacionados entre si etendo uma origem inconsciente comum.Dando ênfase exclusiva à questão do sig-nificado, o que confunde idioma comcultura, Boas4 imprimiu uma nova dire-ção à lingüística, abandonando a teoriahistórica segundo a qual os idiomas pro-vêm de um idioma-mãe. Whorf32 (1956)foi outro autor importante que consoli-dou a idéia de vínculo entre idioma ecultura. Segundo ele, a concepção da rea-lidade depende da estrutura do idioma fa-lado por uma sociedade. Assim, cer-tos idiomas seriam mais adequados doque outros para desenvolver certos tiposde atividades. Ele não considerava, porexemplo, os idiomas indo-europeus ade-quados ao estudo das ciências físicas emgeral, enquanto louvava a precisão e aracionalidade de alguns idiomas faladospor sociedades "primitivas".

Na área da etnomedicina, Frake11

(1977) pode ser considerado um autorbastante representativo, tendo analisadoo sistema médico entre os Subanum deMindanao, nas Filipinas. Numa etnogra-fia densa e rigorosa, ele mostra que emalguns aspectos esse sistema de medicinarealiza uma descriminacão mais elabo-rada, principalmente entre os sintomasde doença de pele, do que a da medicinacientífica.

A crítica que se poderia fazer a essemétodo, no entanto, diz respeito ao fato

de ser controvertido o elo entre idiomae cultura na extensão que pretendem seusproponentes. É evidente que em algunssetores, esse elo é inevitável como, porexemplo, o fato dos Esquimós, habitantesdo Ártico, terem vários vocábulos paradesignar neve, e os Aztecas, habitantesdos trópicos, terem apenas uma palavrapara designar frio, neve e gelo, comoobservou Whorf.32 No entanto, as inúme-ras pesquisas realizadas na área não têmsido capazes de ir muito longe em pro-var de um modo mais definitivo essa re-lação. Em geral, as tentativas ficam res-tritas a algumas peculiaridades empíri-cas setorializadas dentro da cultura estu-dada, sem espaço para enriquecimentoteórico mais universal. Dentro de umapreocupação mais cosmopolita, a con-clusão de Frake, de que nas doenças depele os Subanum elaboram uma descri-minação mais elaborada do que a damedicina científica ocidental, se dilui, pormelhor que isso tenha sido provado.

O estruturalismo teve em Lèvi-Strauss16

(1970) um notável representante que che-gou a se preocupar diretamente com o te-ma medicina. Para esse autor, qualquersistema cognitivo obedece primordialmen-te à lógica classificatória binária do cére-bro humano que determina como os ele-mentos da estrutura social são organiza-dos. Com isso, ele destrói as concepçõesutilitaristas tão freqüentes no funcionalis-mo que explicava o sistema social a partirde necessidades humanas naturais de ca-ráter biológico ou psicológico. Malinows-ki19 (1954), por exemplo, afirmava queo sistema de parentesco parte da neces-sidade sexual e do instinto de conserva-ção, a religião da necessidade psicológi-ca de proteção face ao desconhecido, osistema político, da necessidade de pro-teção física, etc. Lèvi-Strauss16, refutan-do esse reducionismo explicativo a fatosbiologicos ou psicológicos, afirmava que"o ser humano classifica o mundo porqueo mundo é bom para ser pensado e nãopor causa de qualquer tipo de constran-

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gimento ou necessidade biológica ou psi-cológica". Nesse esquema, as necessida-des humanas naturais não só deixam deser o motor da estrutura social comopassam a ser subordinadas a este: é aestrutura social que modela as necessida-des humanas. Como a estrutura socialnão é simplesmente um dado concreto,diretamente observável, mas parte da or-ganização simbólica imposta inconscien-temente pelo cérebro humano, em sim-biose com a cultura, estes elementos or-ganizam o pensamento, os sentimentos eas sensações humanas, condicionando,assim, o sentido de necessidade humana.

No que essas idéias concernem à me-dicina, Lèvi-Strauss16 as expôs no seu ca-pítulo "O feiticeiro e sua magia" (1970).Nele, ele conta a estória anteriormentecoletada por Boas a respeito de um ín-dio do noroeste americano chamado Que-salid que havia se tornado um grandecurandeiro. Nesse estudo, Lèvi-Strauss16

enfatiza o caráter da eficácia simbólicano qual os símbolos socialmente podero-sos curam pacientes que, pela doença,incorrem numa espécie de desvio social.Assim, o shaman torna-se um curandeiroeficiente na medida em que seu desem-penho é reconhecido socialmente pelogrupo. Na expressão do autor, "Quesa-lid não se tornou um grande shaman por-que ele curava seus pacientes; ele curavaseus pacientes porque tinha se tornadoum grande shaman".

Os '"insights" de Lèvi-Strauss16 naárea da medicina sugerem um vasto cam-po de estudos relacionados tanto com ocaráter psicossomático da doença comocom o efeito placebo de inúmeros trata-mentos e terapias médicas científicas ounão. Para ele, a integridade física nãoresiste à dissolução da personalidade so-cial. Além disso, pela simples virtudede fazer parte de uma estrutura cognitiva,um elemento pode se tornar eficaz como,por exemplo, o uso de certas práticasterapêuticas que, isoladas de seu con-texto cultural, não fazem qualquer senti-

do. Com a exceção de Comaroff6 (1978)que realizou um trabalho bastante inte-ressante sobre o aspecto placebo existen-te em grande parte das consultas de clí-nicos gerais em Gales, não tem havidomais estudos na área sobre o assunto.

A crítica que se pode fazer ao estrutu-ralismo, no entanto, diz respeito à suadificuldade de lidar com a história e comos conflitos sociais. Para Lèvi-Strauss16,as diferenças culturais são produtos dasestruturas que se forjaram pelo acaso enão de forças sociais determinadas. Aocolocar a estrutura e não a efetiva inte-ração de grupos ou classes sociais comodeterminantes das regras, normas e va-lores sociais, além do desenvolvimento daprópria história, o estruturalismo de Lè-vi-Strauss mascara o fato de que tantoa arbitrariedade da existência dos ele-mentos de uma cultura como o desenvol-vimento histórico numa certa direçãoinevitavelmente beneficiam os interessesde certos segmentos de uma sociedadeem detrimento de outros.

O movimento crítico culturalista nor-te-americano tem exercido importante in-fluência em vários trabalhos antropoló-gicos sobre medicina. Em geral, essa in-fluência caracteriza-se, de um lado, poruma crítica radical à ciência e à práticamédicas oficiais e, de outro, por uma va-lorização das medicinas alternativas edas concepções populares sobre saúde edoença. Nesse sentido, a ciência e a prá-tica médicas são percebidas como algonegativo que promovem dependência, es-tigma e doenças.

Esse tipo de crítica começou a apa-recer na área das doenças mentais (ver,por exemplo, Laing15, 1975 e Szasz28,1970), onde o caráter repressor, desuma-no e contrário à saúde contido na me-dicina oficial é denunciado. Atualmente,esse enfoque pode ser encontrado tendocomo referência a medicina oficial emgeral que, como um agente de controlesocial, reproduz o "ethos" da sociedadeburocrático-industrial e capitalista em

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suas concepções "racistas", "machistas"e engajadas em promover a dominânciade uma classe social sobre a outra. Nesseesquema, a doença é promovida pela ini-bição das possibilidades naturais e autô-nomas de cura e pela iatrogenia, ou seja,a responsabilidade pelo surgimento dedoenças causadas pela própria prática te-rapêutica da medicina (Illich14, 1975).

Ao mesmo tempo, o impacto social daação terapêutica da medicina oficial éconsiderado de proporção insignificanteem relação à melhoria nas condições desaúde da população causadas por outrosfatores tais como a disponibilidade dealimentos ou o controle ambiental (Pow-les23, 1973; Mackeown18, 1976).

No que diz respeito à valorização dasmedicinas alternativas e populares, essetipo de enfoque tende a enfatizar o as-pecto holístico desse tipo de medicinaque se baseia no equilíbrio do indivíduocom o seu meio natural e social para ex-plicar a doença ou para promover a cura.

Trata-se em geral de uma postura ro-mântica e individualista que acredita po-der transformar amplos setores da socie-dade (no caso a instituição médica) atra-vés de uma revolução cultural, sem per-ceber os aspectos estruturais da socie-dade mais ampla da qual a instituiçãomédica é em grande parte apenas umaexpressão. No entanto, essa postura émais importante do que julgam certos se-tores marxistas que não levam a questãocultural em consideração ou, quando alevam, a percebem apenas como um epi-fenômeno dentro de um quadro onde fa-tores infra-estruturais ou econômicos pre-valecem. Em realidade, fatores culturaisnão podem ser separados de fatores eco-nômicos e ambos ocorrem simultanea-mente na infra-estrutura social, como en-fatizou Worsley33 (1982).

A relação da medicina com a socieda-de foi colocada em novas bases no finalda década dos anos 60, resultando numconjunto de trabalhos que criticaram asformulações funcionalistas e positivistas

até então dominantes nas contribuiçõesdas ciências sociais à medicina. Nesseperíodo, já se anunciava a crise nos paí-ses capitalistas avançados que, especifi-camente na França (com o movimentode maio de 1968) e na Itália (com areforma sanitária), trouxe à tona a poli-tização da medicina, pondo em novas ba-ses a relação da medicina com a socie-dade.

O direcionamento dessas novas abor-dagens pelas ciências sociais marcou-sepela incorporação da tradição marxista,que passou a assumir importância ana-lítica cada vez maior. No entanto, se nodesenvolvimento da antropologia socialem geral encontramos a presença dessalinha de análise em autores como Gode-lier12 (1973), Terray29 (1975), Bloch3

(1975) e outros, no que diz respeito aocampo específico da antropologia da me-dicina, ao contrário do que se verifi-cou no campo da sociologia da medicina,as análises com esse referencial teóricoquase inexistem. De fato, esse campo con-tinuou permeável aos marcos teóricos an-teriores, avançando mais suas análisespela incorporação do estruturalismo.

Podemos, contudo, apontar as contri-buições de Foucault10 (1977) que servi-ram de referência para muitos estudos nocampo das ciências sociais e medicina,especialmente aqueles voltados para ahistoricidade dos saberes e das institui-ções médicas, que têm servido de refle-xão aos aspectos culturais, ideológicos e,principalmente, políticos da medicina,sem contudo constituir-se numa contri-buição antropológica exclusiva.

Recentemente, o campo da antropolo-gia da medicina tem-se desenvolvidoem múltiplas direções, empregando di-versos princípios teóricos e metodoló-gicos, cujas bases estão nos autores re-vistos nesse texto. Autores de orientaçãoempiricista como Wellin31 (1977: 47),embora não considerem esse aspecto umproblema, o reconhecem como um fato.Em suas palavras,

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"Nós não temos muita teoria em an-tropologia em geral ou em antropolo-gia da medicina em particular. O quenós temos são orientações teóricas,postulados amplos que envolvem mo-dos de selecionar, conceptualizar e or-denar dados em resposta a certos tiposde questão".

Sem dúvida, se Wellin tem razão quan-do observa a precariedade teórica de umgrande número de trabalhos atuais naárea, ele deixa de tê-lo quando não vêproblema nesse fato. Em realidade, semuma teoria que formalize certas questõesfundamentais, o resultado é o empiricis-mo que não leva a parte alguma.

COMENTÁRIOS FINAIS

Recentemente, uma contribuição im-portante no campo da antropologia quese valeu do paradigma teórico de Grams-ci em conjunção com a metodologia an-tropológica foi o estudo de Canclini5

(1983) sobre culturas populares no Mé-xico. A nosso ver, esse estudo abre pos-sibilidades frutíferas ao campo da antro-pologia da medicina, uma vez que umdos problemas que ainda se coloca paraessa disciplina é lidar com as práticas eas ideologias de cura alternativas em re-lação à medicina oficial. Cabe, nesse ca-so, entendê-las não como formas de pro-dução, circulação e consumo de serviçosde cura em oposição à medicina oficial,mas como em articulação com o pro-cesso capitalista de produção, emboraelas mantenham algumas especificidades,principalmente no campo da cultura, dareligião e da ideologia. Portanto, o mo-do de produção capitalista articula aprodução do cuidado à saúde seja noplano "oficial", seja no plano "popular"ou "alternativo". Nesse caso, as práticas

e ideologias de cura alternativas só podemse manifestar de modo subordinado ouaté mesmo respondendo, parcial ou total-mente, a certos vazios não preenchidospela extensão do cuidado médico oficial.

No entanto, o objeto da antropologiana área da medicina não se circunscreveapenas às formas alternativas de medici-na, como que numa procura incessantepelo exótico. Na medida em que a medi-cina oficial na sociedade capitalista com-porta processos culturais e ideológicos(perfeitamente adequados à metodologiaantropológica) permeando não só a pro-dução, distribuição e consumo de bense serviços de saúde como também a com-posição da força de trabalho nessa área,abre-se um campo novo e fértil à inves-tigação antropológica, cujo estudo requeruma conjugação interdisciplinar de esfor-ços no campo das ciências sociais apli-cadas à medicina.

Muito está ainda por ser feito no cam-po da antropologia da medicina, princi-palmente quando ela passar a se preo-cupar com a produção, distribuição econsumo de atos médicos, medicamentose serviços de saúde, assumindo assim co-mo objeto de estudo processos sociaisintegrados à dinâmica capitalista. Assim,o consumo das chamadas medicinas "al-ternativas" ou "populares" terá de servisto em relação com o padrão de con-sumo de diferentes categorias sociais im-pulsionado pelo modo de produção ca-pitalista. A perspectiva antropológica,nesse caso, traria a compreensão da si-tuação de pequena escala sem perder adimensão do processo de mercantilizaçãocapitalista em que esta situação está su-bordinada. A nosso ver, esse é o grandedesafio aberto a essa área de estudos quecertamente só poderá produzir avançosteóricos se houver sucesso nessa empresa.

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ABSTRACT: An ana lys i s was made of the most representative l i terature on bothc u r i n g prac t ices of cure and health and illness representat ions, taking England, theUni ted State of America and France as references. With representat ives of the mainschools of anthropological thought (such as func t iona l i sm. funct ional-s tructural ism,s t ruc tura l i sm, label l ing theory, symbolic in terac t ionism, ethnomethodology and culturalcr i t i c i sm) , the h is tory of Anthropology of Medicine runs into the his tory of Anthropo-logy i t se l f . Besides ana lys ing the contr ibut ion these various schools have made to this areaof s tudy , the current deadlock which is arising within, it is also indicated by this art icle.I t is considered that the absence of a theory capable of explaining how small scalesocial process (which are appropriate to anthropological methodology) are subordinatedto the large-scale social processes which are recurrent in cap i ta l i s t society is the mainreason for this deadlock.

UNITERMS: A n t h r o p o l o g y , m e d i c a l . M e d i c i n e , t r a d i c i o n a l . Sociology, medical .

R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S

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Recebido para publicação em 11/10/1985

Aprovado para publicação em 06/01/1986