Antnio Lobo

Antunes

Os cus de Judas

Para o Daniel Sampaio

-meu Amigo.

A

Do que eu gostava mais no Jardim Zoolgico era do rinque de patinagem sob as rvores e do professor preto muito direito a deslizar para trs no cimento em elipses vagorosas sem mover um msculo sequer, rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas, que, se falassem, possuam seguramente vozes to de gaze como as que nos aeroportos anunciam a partida dos avies, slabas de algodo que se dissolvem nos ouvidos maneira de fins de rebuado na concha da lngua. No sei se lhe parece idiota o que vou dizer mas aos domingos de manh, quando ns l amos com o meu pai, os bichos eram mais bichos, a solido de esparguete da girafa assemelhava-se de um Gulliver triste, e das lpides do cemitrio dos ces subiam de tempos a tempos latidos aflitos de caniche. Cheirava aos corredores do Coliseu ao ar livre, cheios de esquisitos pssaros inventados em gaiolas de rede, avestruzes idnticas a professoras de ginstica solteiras, pinguins trpegos de joanetes de contnuo, catatuas de cabea banda como apreciadores de quadros; no tanque dos hipoptamos inchava a lenta tranquilidade dos gordos, as cobras enrolavam-se em espirais moles de cagalho, e os crocodilos acomodavam-se sem custo ao seu destino tercirio de lagartixas patibulares. Os pltanos entre as jaulas acinzentavam-se como os nossos cabelos, e afigurava-se-me que, de certo modo, envelhecamos juntos: o emprego de ancinho que empurrava as folhas para um balde aparentava-se, sem dvida, ao cirurgio que me varreria as pedras da vescula para um frasco coberto de rtulo de adesivo; uma menopausa vegetal em que os caroos da prstata e os ns dos troncos se aproximavam e confundiam irmanar-nos-ia na mesma melancolia sem iluses; os queixais tombavam da boca como frutos podres, a pele da barriga pregueava-se de asperezas de casca. Mas no era impossvel que um hlito cmplice nos sacudisse as madeixas do ramos mais altos, e uma tosse qualquer rompesse a custo o nevoeiro da surdez em mugidos de bzio, que a pouco e pouco adquiriam a tranquilizador tonalidade da bronquite conjugal.

O restaurante do Jardim, onde o odor dos animais se insinuava em farrapos diludos no fumo do cozido, apimentando de uma desagradvel sugesto de cerdas o sabor das batatas e conferindo carne gostos peludos de alcatifa, encontrava-se ordinariamente repleto, em doses equitativas, de grupos excursionistas e de mes impacientes, que afastavam com os garfos bales deriva como sorrisos distrados, a arrastarem pontas de guita atrs de si, tal as noivas volantes de Chagall a bainha dos vestidos. Senhoras idosas vestidas de azul, com tabuleiros de bolos na barriga, ofereciam travesseiros mais poeirentos do que as suas bochechas folhadas, perseguidas pelo fastio pegajoso das moscas. Ces esquelticos de retbulo medieval hesitavam entre a biqueira dos empregados e as salsichas que sobravam dos pratos para o cho laia de dedos suprfluos, luzidios da brilhantina do leo. Os barcos que pedalavam no tanque ameaavam a todo momento entrar vogando pelas janelas abertas, a oscilarem sobre ondas hostis de guardanapos de papel. E l fora, indiferente msica fosca que os altifalantes embaciavam, aos lamentos vivos do boi-cavalo, jovialidade de pandeiretas cansadas dos excursionista e ao pasmo da minha admirao comovida, o

professor preto continuava a deslizar imvel no rinque de patinagem debaixo das rvores com a majestade maravilhosa e inslita de um andor s arrecuas.

Se fssemos, por exemplo, papa-formigas, a senhora e eu, em lugar de conversarmos um com o outro neste ngulo de bar, talvez que eu me acomodasse melhor ao seu silncio, s suas mos paradas no copo, aos seus olhos de pescada de vidro boiando algures na minha calva ou no meu umbigo, talvez que nos entender numa cumplicidade de trombas inquietas farejando a meias no cimento saudades de insetos que no h, talvez que nos unssemos, a coberto do escuro, em coitos to tristes como as noites de Lisboa, quando os netunos dos lagos se despem do lodo do seu musgo e passeiam nas praas vazias ansiosas rbitas ferrugentas. Talvez que finalmente me falasse de si. Talvez que atrs da sua testa de Cranach exista, adormecida, uma ternura secreta pelos rinocerontes. Talvez que, palpando-me me descubra de repente unicrnio, a abrace, e voc agite os braos espantados de borboleta cravada em alfinete, pastosa de ternura. Compraramos bilhetes para o comboio que circula no jardim, de bicho em bicho, o seu motor de corda, evadido de um castelo-fantasma de provncia, acenando de passagem gruta de prespio dos ursos brancos, tapetes reciclados. Observaramos oftalmologicamente a conjuntivite anal dos mandris, cujas plpebras se inflamam de hemorroidas combustveis. Beijar-nos-amos diante das grades dos lees, rodos de traa como casacos velhos, a arregaarem os beios sobre as gengivas desmobiladas. Eu afago-lhe os seios sombra oblqua das raposas, voc compra-me um gelado de pauzinho ao p do recinto dos palhaos, bofetadas de sobrancelha para cima que um saxofone trgico sublinha. E teramos recuperado dessa forma um pouco da infncia que a nenhum de ns pertence, e teima em descer pelo escorrega num riso de que nos chega, de longe em longe e numa espcie de raiva, o eco atenuado.

Lembra-se das guias de pedra da entrada do Jardim e das bilheteiras semelhantes a guaritas de sentinela onde oficiavam empregados bolorentos, a piscarem rbitas mopes de mocho na penumbra mida? Os meus pais moravam no muito longe, perto de uma agncia de caixes, mos de cera e bustos do padre Cruz, que os uivos noturnos dos tigres faziam vibrar de terror artrtico nas prateleiras da montra, invlidos do comrcio msticos que decoravam os topos dos frigorficos sobre ovais de croch, de tal forma que o ronronar dos aparelhos se diria nascer dos seus esfagos de barro, afligidos de indigestes de galhetas. Da janela do quarto dos meus irmos enxergava-se a cerca dos camelos, a cujas expresses aborrecidas faltava o complemento de um charuto de gestor. Sentado na retrete, onde um resto de rio agonizava em gargarejos de intestino, escutava os lamentos das focas que um dimetro excessivo impedia de viajarem pela canalizao e de descerem no jato das torneiras grunhidos impacientes de examinador de Matemtica. A cama da minha me gemia em certas madrugadas o lumbago do elefante desdentado que tocava a sineta contra um molho de couves, num comrcio centenariamente inaltervel inflao, comandada pela asma do meu pai em assopros ritmados de cornaca. A mulher dos amendoins, a que faltava o cotovelo esquerdo, montava a sua indstria de alcofas nos baixos da nossa varanda, e narrava minha av em discursos verticais, de baixo para cima, as bebedeiras do marido, atravs de cuja violncia explodiam captulos de Mximo Gorki da Editorial Minerva. As manhs povoavam-se e tucanos e de hibiscos servidos com as carcaas do pequeno-almoo que abandonavam nos dedos a farinha ou o p dos mveis por limpar. A mancha do sol da tarde trotava no soalho na cadncia furtiva das hienas, revelando e escondendo os desenhos sucessivos do tapete, o relevo lascado do rodap, o retrato de um tio bombeiro na parede, iluminado de bigodes, de que o capacete areado cintilava reflexos domsticos de maaneta. No vestbulo havia um espelho biselado que de noite se

esvaziava de imagens e se tornava to fundo como os olhos de um beb que dorme, capaz de conter em si todas as rvores do Jardim e os orangotangos dependurados das suas argolas laia de enormes aranhas congeladas. Por essa poca, eu alimentava a esperana insensata de rodopiar um dia espirais graciosas em torno das hiprboles majestticas do professor preto, vestido de botas brancas e calas cor-de-rosa, deslizando no rudo de roldanas com que sempre imaginei o voo difcl dos anjos de Giotto, a espanejarem nos seus cus bblicos numa inocncia de cordis. As rvores do rinque fechar-se-iam atrs de mim entrelaando as suas sombras espessas, e seria essa a minha forma de partir. Talvez que quando eu for velho, reduzido aos meus relgios e aos meus gatos num terceiro andar sem elevador, conceba o meu desaparecimento no como o de um nufrado submerso por embalagens de comprimidos, cataplasmas, chs medicinais e oraes ao Divino Esprito Santos, mas sob a forma de um menino que se erguer de mim como a alma do corpo nas gravuras do catecismo, para se aproximar, em piruetas inseguras, do negro muito direito, de cabelo esticado a brilhantina, cujos beios se curvam no sorriso enigmtico e infinitamente indulgente de um buda de patins.

Este anjo da guarda de gravata desde sempre substituiu dentro de mim a pagela virtuosa da Sozinha e as suas bochechas equvocas de Mae West de sacristia, envolvida em amores msticos com um cristo de bigodinho Fairbanks no cinema mudo do oratrio das tias, que moravam em grandes casas escuras, com os baixos-relevos dos sofs e dos mveis adensando a penumbra, onde as teclas dos pianos cobertos por xailes de damasco cintilavam a sua crie de bemis. Em cada edifcio da Rua Barata Salgueiro, triste como a chuva num recreio de colgio, habitava uma parente idosa remando de bengala na vazante das alcatifas repletas de jarres chineses e de contadores de embutidos, que o mar de geraes de comerciantes de pera ali abandonara como numa praia final. Cheirava a fechado, a gripe e a biscoito, e s as grandes tinas oxidadas, de pernas em forma de garras de esfinge, com a linha da gua ausente assinalada por uma orla castanha semelhante a um vinco de bon na testa, se me afiguravam vivas, procurando com as vidas goelas desmesuradas as tetas de cobre das torneiras, de que desciam, de quando em quando, lgrimas raras como gotas de argirol. Nas cozinhas idnticas ao laboratrio de qumica do liceu, com um calendrio das Misses com muitos pretinhos na parede, criadas sem idade, que se chamavam todas Albertina, preparavam canjas sem sal resmungando nos tachos pedaos de tero, destinados a condimentar o arroz branco. Nos esquentadores antiqussimos, contemporneos da marmita de Papin, as chamas do gs adquiriam a forma instvel de ptalas frgeis, oscilando beira de um estoiro catastrfico que reduziria a cacos irreconhecveis a ltima chvena de Svres. As janelas no se distinguiam dos quadros: no vidro ou na tela, as mesmas rvores de Outubro encolhiam-se como pilas transidas depois de um banho de piscina, a que se enrolavam as serpentinas desbotadas de um carnaval defunto. As tias avanavam aos arrancos como danarinas de caixinha de msica nos derradeiros impulsos da corda, apontavam-me s costelas a ameaa pouco segura das bengalas, observavam-me com desprezo os enchumaos do casaco e proclamavam azedamente:

- Ests magro

como se as minhas clavculas fossem mais vergonhosas que um rastro de bton no colarinho.

Um pndulo inlocalizvel, perdido entre trevas de armrios, pingava horas abafadas num qulquer corredor distante, atravancado de arcas de cnfora, conduzinho a quartos hirtos e midos, onde o cadver de Proust flutuava ainda, espalhando no ar rarefeito um hlito pudo de infncia. As tias instalavam-se a custo no rebordo de poltronas gigantescas decoradas por filigranas de croch, serviam o ch em bules trabalhados como custdias manuelinas, e completavam a jaculatria designando com a colher do acar fotografias de generais furibundos, falecidos antes do meu nascimento aps gloriosos combates de gamo e de bilhar em messes melanclicas como salas de jantar vazias, de ltimas Ceias substitudas por gravuras de batalha:

- Felizmente que a tropa h-de torn-lo um homem.

Esta profecia vigorosa, transmitida ao longo da infncia e da adolescncia por dentaduras postias de indiscutvel autoridade, prolongava-se em ecos estridentes nas mesas de canasta, onde as fmeas do cl forneciam missa dos domingos um contrapeso pago a dois centavos o ponto, quantia nominal que lhes servia de pretexto para expelirem, a propsito de um beste, dios antigos pacientemente segregados. Os homens da famlia, cuja solenidade pomposa me fascinara antes da primeira comunho, quando eu no entendia ainda que os seus concilibulos sussurrados, inacessveis e vitais como as assembleias dos deuses, se destinavam simplesmente a discutir os mritos fofos das ndegas da criada, apoiavam gravemente as tias no intuito de afastarem uma futura mo rival em belisces furtivos durante o levantar dos pratos. O espectro de Salazar pairava sobre as calvas pias labaredazinhas de Esprito Santo corporativo, salvando-nos da ideia tenebrosa e deletria do socialismo. A PIDE prosseguia corajosamente a sua valorosa cruzada contra a noo sinistra de democracia, primeiro passo para o desaparecimento, nos bolsos vidos de ardinas e maranos, do faqueiro de cristofle. O cardeal Cerejeira, emoldurado, garantia, de um canto, a perpetuidade da Conferncia de So Vicente de Paula, e, por inerncia, dos pobres domesticados. O desenho que representava o povo em uivos de jbilo ateu em torno de uma guilhotina libertria fora definitivamente exilado para o sto, entre bids velhos e cadeiras coxas, que uma fresta poeirenta de sol aureolava do mistrio que acentua as inutilidades abandonadas. De modo que quando embarquei para Angola, a bordo de um navio cheio de tropas, para me tornar finalmente homem, a tribo, agradecida ao Governo que me possibilitava, grtis, uma tal metamorfose, compareceu em peso no cais, consentindo, num arroubo de fervor patritico, ser acotovelada por uma multido agitada e annima semelhante do quadro da guilhotina, que ali vinha assistir, impotente, sua prpria morte.

B

Conhece Santa Margarida? Digo isto porque, s vezes, na messe dos oficiais decorada com o mau gosto obstinadamente impessoal da sala de espera de um dentista de Moscavide (flores de plstico, oleografias imprecisas cujos arabescos montonos se confundem com o papel da parede, cadeiras hirtas semelhantes a quadrpedes

desirmanados pastando num acaso sem simetria as franjas gastas dos tapetes), os majores em rebolio abandonavam os copos de usque, de cubos de gelo substitudos por dados de pquer, para, eretos como soldados de chumbo barrigudos, saudarem a entrada de uma senhora que qualquer coronel subitamente urbano comboiava, deixando atrs de si, perceptvel na tremura dos gales, um rastro cochichado de cio de caserna, que se cristalizaria em esquemas explicativos no mrmore venoso dos urinis, destinado alfabetizao dos faxinas. A masturbao era a nossa ginstica diria, mbolos encolhidos nos lenis gelados maneira de fetos idosos que nenhum tero desibernaria, enquanto, l fora, os pinheiros e a nvoa se confundiam numa trama inextricvel de sussurros midos, sobrepondo noite a noite pegajosa dos seus troncos, aucarados do algodo de feira popular da bruma. Como em pequeno na Praia das Mas, percebe, no fim de Setembro, quando nos deitvamos e o corpo se assemelhava a uma sementinha perdida no colcho enorme, enrugada e trmula, agitando os filamentos peludos dos membros em espasmos assustados pelo som do mar l em baixo, vinde de parte nenhuma, a retrair e a distender a bronquite pedregulhosa do seu pulmo invisvel. Os relgios de cuco davam lugar a cornetas igualmente irritantes, a farda e a pele convergiam numa carapaa nica de quitina militar, os cabelos rapados e as formaturas traziam-me memria as colnias de frias da infncia e o seu cheiro a doce e azedo de pouca gua, feito de resignao vagamente indignada. Aos domingos, a famlia em jbilo vinha espiar a evoluo da metamorfose da larva civil a caminho do guerreiro perfeito, de boina cravada na cabea como uma cpsula, e botas gigantescas cobertas da lama histrica de Verdun, a meio caminho entre o escuteiro mitmano e o soldado desconhecido de carnaval. E tudo decorria, entretanto, na atmosfera de colgio interno que os quartis sutilmente prolongam, com os seus segredos, os seus grupos iniciticos, os seus estratagemas de perversidade primria destinados a iludir a vigilncia de prefeitos dos comandantes, mais preocupados com o trunfo do brdge, de cuja escolha dependeria o rumo tranquilo ou tempestuoso da digesto do jantar, do que com as convulses noturnas das camaratas perdidas atrs da caspa bolorenta dos pltanos, onde ces magros como galgos de Greco se uniam em coitos melanclicos, fixando-nos com olhos dolorosamente implorativos de freiras moribundas.

Em Mafra, sob a chuva, vi correr os ratos entre os beliches na tristeza desmesurada do convento, labirinto de corredores assombrados por fantasmas de furriis. Em Tomar, onde os peixes sobem do Moucho para vogarem ao acaso pelas ruas em cardumes cintilantes, constru Jernimos de paus de fsforo admirados pelas esclerticas amarelas dos paraquedistas com hepatite. Em Elvas, ilharga de um aspirante gordo e inseguro como um pudim flan na borda de um prato, desejei evaporar-me nas muralhas da cidade maneira dos violinistas de Chagall no azul espesso da tela, batendo as desajeitadas asas de coto das minhas mangas militares, at pousar em Paris para uma revoluo de exlio feita de quadros abstrato e de poemas concretos, a que o Dirio de Notcias da Casa de Portugal forneceria o lastro lusitano de anncios de casamento castos como notrios hipermtropes, e de missas do stimo dia adoadas pelo sorriso sem carne dos mortos. E em Santa Margarida, aguardando o embarque, pastoreei longas bichas de soldados a caminho de um dentista demente que despovoava gengivas uivando de felicidade assassina:

- Com os queixais da gajada no vai colega ter problemas - berrava-me ele, encostado sua cadeira horrenda, reluzente de satisfao e de suor, a enterrar o maarico em chamas da broca num maxilar apavorado.

As senhoras do Movimento Nacional Feminino vinham por vezes distrair os visons da menopausa distribuindo medalhas da Senhora de Ftima e porta-chaves com a efgie de Salazar, acompanhadas de padre-nossos nacionalistas e de ameaas do inferno bblico de Peniche, onde os agentes da PIDE superavam em eficcia os inocentes diabos de garfo em punho do catecismo. Sempre imaginei que os pelos dos seus pbis fossem de estola de raposa, e que das vaginas lhes escorressem, quando excitadas, gotas de Ma Griffe e baba de caniche, que abandonavam rastros luzidios de caracol na murchido das coxas. Sentadas mesa do brigadeiro, comiam a sopa com a ponta dos beios tal como os doentes das hemorroidas se acomodam no vrtice dos sofs, deixando nos guardanapos de papel pegadas de copas de bton de que se evolavam ainda desgostos com as criadas e restos de tiradas patriticas, e reencontrei-as no portal do barco na manh da partida, encorajando-nos com maos de cigarros Trs Vintes e apertos de mo viris em que as falanges, falanginhas e falangetas se articulavam entre si por intermdio dos anis de braso:

- Sigam descansados que ns na retaguarda permanecemos vigilantes.

E com efeito, observando bem, pouca coisa havia a recear de ndegas to tristes, em relao s quais as cintas se conformavam com o papel secundrio de fundas hernirias.

E depois, sabe como , Lisboa principiou a afastar-se de mim num turbilho cada vez mais atenuados de marchas marciais em cujos acordes rodopiavam os rostos trgicos e imveis de despedida, que a lembrana paralisa nas atitudes de espanto. O espelho do camarote devolvia-me feies deslocadas pela angstia, como um puzzle desarrumado, em que a careta aflita do sorriso adquiria a sinuosidade repulsiva de uma cicatriz. Um dos mdicos, dobrado no colcho do beliche, soluava aos arrancos em palpitaes irregulares de motor de txi que se engasga, o outro contemplava os dedos com a ateno vazia dos recm-nascidos ou dos idiotas que lambem longamente as unhas com os olhos extasiados, e eu perguntava a mim prprio o que fazamos ali, agonizantes em suspenso no cho de mquina de costura do navio, com Lisboa a afogar-se na distncia num suspiro derradeiro de hino. Subitamente sem passado, com o porta-chaves e a medalha de Salazar no bolso, de p entre a banheira e o lavatrio de quarto de bonecas atarraxados parede, sentia-me como a casa dos meus pais no Vero, sem cortinas, de tapetes enrolados em jornais, mveis encostados aos cantos cobertos de grandes sudrios poeirentos, as pratas emigradas para a copa da av, e o gigantesco eco dos passos de ningum nas salas desertas. Como quando se tosse nas garagens noite, pensei, e se sente o peso insuportvel da prpria solido, nas orelhas, sob a forma de estampidos reboantes, idnticos ao pulsar das tmporas no tambor do travesseiro.

Ao segundo dia alcanamos a Madeira, bolo-rei enfeitado de vivendas cristalizadas a flutuar na bandeja de loua azul do mar, Alenquer deriva no silncio da tarde. A orquestra do navio resfolegava boleros para os oficiais melanclicos como corujas na aurora, e do poro onde os soldados se comprimiam subia um bafo espesso de vomitado, odor para mim esquecido desde os meios-dias remotos da infncia, quando na cozinha, hora das refeies, se agitavam volta da minha sopa relutante as caretas alternadamente persuasivas e ameaadoras da famlia, sublinhando cada colher com uma salva de palmas festiva, at que algum mais atento gritava:

- Cantem o Papagaio Loiro que o mido est a puxar o vmito.

Em resposta a este aviso terrvel, todos aqueles adultos desatavam a desafinar em unssono como no naufrgio do Titanic, de beios arrepiados sobre os dentes de ouro, uma criada batia tampas de tacho a compasso, o jardineiro fingia marchar de vassoura ao ombro, e eu devolvia ao prato um roldo de massa e arroz que me obrigavam a reengolir, desta vez sem coro, sibilando em voz baixa insultos furibundos. Agora, percebe, estendido no convs numa cadeira de repouso, a sentir no progressivo suor do colarinho a implacvel metamorfose do Inverno de Lisboa no Vero gelatinoso do Equador, mole e quente como as mos do senhor Melo, barbeiro do av, no meu pescoo, na loja da Rua 1 de Dezembro, onde a umidade multiplicava o cromado das tesouras nos espelhos canhotos, o que com mais veemncia me apetecia era que, tal como nesses tempos recuados, a Gija me viesse coar as costas estreitas de menino num vagar feito da pacincia da ternura, at eu adormecer de sonhos lavrados pelo ancinho dos seus dedos apaziguadores, capazes de me expulsarem do corpo os fantasmas desesperados ou aflitos que o habitam.

C

Luanda comeou por ser um pobre cais sem majestade cujos armazns ondulavam na umidade e no calor. A gua assemelhava-se a creme solar turvo a luzir sobre pele suja e velha que cordas podres sulcavam de veias ao acaso. Negros desfocados no excesso de claridade trmula acocoravam-se em pequenos grupos, observando-nos com a distrao intemporal, ao mesmo tempo aguda e cega, que se encontra nas fotografias que mostram os olhos voltados para dentro de John Coltrane quando sopra no saxofone a sua doce amargura de anjo bbedo, e eu imaginava adiantes dos beios grossos de cada um daqueles homens um trompete invisvel, pronto a subir verticalmente no ar denso como as cordas dos faquires. Pssaros brancos e magros dissolviam-se nas palmeiras da baa ou nas casas de madeira da Ilha ao longe, submersas de arbustos e de insetos, nas quais putas cansadas por todos os homens sem ternura de Lisboa ali vinham beber os ltimos champanhes de gasosa, maneira de baleias agonizantes ancoradas numa praia final, movendo de tempos a tempos as ancas ao tirmo de pasodoble de uma angstia indecifrvel. Alferes pequeninos e de culos, com ar competente de estudantes-trabalhadores escrupulosos, pastorearam-nos aos saltinhos na direo de carruagens de gado que aguardavam num ponto coberto de detritos e de limos, ponto da Cruz Quebrada, lembra-se, onde os esgotos morrem estendidos aos ps da cidade, ces idosos que bolsam no capacho vmitos de lixo: em toda a parte do mundo a que aportamos vamos assinalando a nossa presena aventureira atravs de padres manuelinos e de latas de conserva vazias, numa sutil combinao de escorbuto heroico e de folha-de-flandres ferrugenta. Sempre apoiei que se erguesse em

qualquer praa adequada do Pas um monumento ao escarro, escarro-busto, escarro-marechal, escarro-poeta, escarr-homem de Estado, escarro-equestre, algo que contribua, no futuro, para a perfeita definio do perfeito portugus: gabava-se de fornicar e escarrava. Quanto filosofia, minha cara amiga, basta-nos o artigo de fundo do jornal, to rico de ideias como o deserto do Gobi de esquims. De modo que, de crebro exaurido por raciocnios complicados, tomamos ampolas bebveis s refeies a fim de conseguir pensar.

Apetece-lhe outro drambuie? Falar em ampolas bebveis d-me sempre sede de lquidos xaroposos, amarelos, na esperana insensata de descobrir, por intermdio deles e da suave e jovial tontura que me proporcionam o segredo da vida e das pessoas, a quadratura do crculo das emoes. Por vezes, ao sexto ou stimo clice, sinto que quase o consigo, que estou prestes a consegui-lo, que as pinas canhestras do meu entendimento vo colher, numa cautela cirrgica, o delicado ncleo do mistrio, mas logo de imediato me afundo no jbilo informe de uma idiotia pastosa a que me arranco no dia seguinte, a golpes de aspirina e sais de frutos, para tropear nos chinelos a caminho do emprego, carregando comigo a opacidade irremedivel da minha existncia, to densa de um lodo de enigmas como pasta de acar na chvena matinal. Nunca lhe aconteceu isto, sentir que est perto, que vai lograr num segundo a aspirao adiada e eternamente perseguida anos a fio, o projeto que ao mesmo tempo o seu desespero e a sua esperana, estender a mo para agarr-lo numa alegria incontrolvel e tombar, de sbito, de costas, de dedos cerrados sobre nada, medida que a aspirao ou o projeto se afastam tranquilamente de si no trote mido da indiferena, sem a fitarem sequer? Mas talvez que voc no conhea essa espcie horrorosa de derrota, talvez que a metafsica constitua apenas para si um incmodo to passageiro como uma comicho efmera, talvez que a habite a jubilosa leveza dos botes ancorados, balouando devagar numa cadncia autnoma de beros. Uma das coisas, alis, que me encanta em si, permita-me que lho afirme, a inocncia, no a inocncia inocente das crianas e dos polcias, feita de uma espcie de virgindade interior obtida custa da credulidade ou da estupidez, mas a inocncia sbia, resignada, quase vegetal, diria, dos que aguardam dos outros e deles prprios o mesmo que voc e eu, aqui sentados, esperamos do empregado que se dirige para ns chamado pelo meu brao no ar de bom aluno crnico: uma vaga ateno distrada e o absoluto desdm pela magra gorjeta da nossa gratido.

O comboio cheio de malas e do receio tmido de estrangeiros em terra desconhecida, cuja lusitanidade se nos afigurava to problemtica como a honestidade de um ministro, rolou do cais para os musseques num gingar inchado de pombo. A misria colorida dos bairros que cercavam Luanda, as coxas lentas das mulheres, as gordas barrigas de fome das crianas imveis nos taludes a olharem-nos, arrastando por uma guita brinquedos irrisris, principiaram a acordar em mim um sentimento esquisito de absurdo, cujo desconforto persistente vinha sentindo desde a partida de Lisboa, na cabea ou nas tripas, sob a forma fsica de uma aflio inlocalizvel, aflio que um dos padres presentes no navio parecia compartilhar comigo, afadigado em encontrar no brevirio justificaes bblicas para massacres de inocentes. Encontrvamo-nos s vezes, noite, na amurada, ele de livro em punho e eu de mos nos bolsos, para fitar as mesmas ondas negras e opacas em que reflexos ocasionais (de que luzes? de que estrelas? de que gigantescas pupilas?) saltavam como peixes, como se buscssemos, naquela escura extenso horizontal que as hlices do barco aravam, uma esclarecedora resposta a inquietaes informuladas. Perdi esse padre de vista (uma das minhas sinas, alis, consiste em perder rapidamente de vista todos os padres e todas as mulheres que encontro) mas recordo com a nitidez de um pesadelo infantil a sua careta de No

perplexo, embarcado fora numa arca de bichos com clicas, que arrancaram s florestas natais das suas reparties, das suas mesas de bilhar e dos seus clubes recreativos, para os lanar, em nome de ideais veementes e imbecis, em dois anos de angstia, de insegurana e de morte. Acerca da veracidade desta ltima, de resto, no sobejavam dvidas: grandes caixes repletos de fretros ocupavam uma parte do poro, e o jogo, um pouco macabro, consistia em tentar adivinhar, observando os rostos dos outros e o nosso prprio, os seus habitantes futuros. Aquele? Eu? Ambos? O major gordo l ao fundo a conversar com o alferes de transmisses? Sempre que se examinam exageradamente as pessoas elas comeam a adquirir, insensivelmente, no um aspecto familiar mas um perfil pstumo, que a nossa fantasia do desaparecimento delas dignifica. A simpatia, a amizade, um certa ternura at, tornam-se mais fceis, a complacncia surge sem custo, a idiotia ganha a seduo amvel da ingenuidade. No fundo, claro, a nossa prpria morte que tememos na vivncia da alheia e em face dela e por ela que nos tornamos submissamente cobardes.

No quer passar ao vodka? Enfrenta-se melhor o espectro da agonia com a lngua e o estmago a arder, e esse tipo de lcool de lamparina que cheira a perfume de tia-av possui a benfica virtude de me incendiar a gastrite e, em consequncia, subir o nvel da coragem: nada como a azia para dissolver o medo ou antes, se preferir, para transformar o nosso passivo egosmo habitual num estrebuchar impetuoso, no muito diverso na essencia mas pelo menos mais ativo: o segredo da famosa lcera de Napoleo, percebe?, a chave que elucida Wagram e Austerlitz. E estes pires de coisas pequeninas, venenosas e salgadas, que o imperador nunca provou decerto, percorrero os nossos intestinos como pedrinhas de soda custica capazes de nos atirarem, a favor da guinada de uma clica, para as mais loucas ou doces aventuras. Quem sabe se acabaremos a noite a fazer amor um com o outro, furibundos como rinocerontes com dores de dentes, at a manh aclarar lividamente os lenis desfeitos pelas nossas marradas de desespero? Os vizinhos do andar de baixo cuidaro, atnitos, que trouxe para casa dis paquidermes que se entredevoram num concerto de guinchos de dio e de parto, e quem sabe se tal novidade despertar neles humores h muito tempo adormecidos, e os leve a engancharem-se maneira das peas desses puzzles japoneses impossveis de separar, a no ser pela infinita pacincia de um cirurgio ou a faca expedita de um capador definitivo. capaz de levar o pequeno-almoo cama a cheirar j a dentfrico Binaca e a otimismo? De assobiar pelos incisivos como os padeiros de antigamente, anjos enfarinhados de cesto ao ombro que substituam as corujas cansadas dos guarda-noturnos, e cuja recordao constitui uma das menos melanclicas fatias das minhas lembranas de infncia? capaz de amar? Desculpe, a pergunta tola, todas as mulheres so capazes de amar e as que o no so amam-se a si prprias atravs dos outros, o que na prtica, e pelo menos nos primeiros meses, quase indistinguvel do afeto genuno. No faa caso, o vinho segue o seu curso e daqui a nada peo-lhe para casar comigo: o costume. Quando estou muito s ou bebi em excesso, um ramalhete de flores de cera de projetos conjugais desata a crescer em mim maneira do bolor nos armrios fechados, e torno-me paegajoso, vulnervel, piegas e totalmente dbil; o momento, aviso-a, de se retirar sorrelfa com uma desculpa qualquer, de se meter no carro num suspiro de alvio, de telefonar depois do cabeleireiro s amigas a narrar-lhes entre risos as minhas propostas sem imaginao. No entanto e at l, se no v inconveniente, aproximo um pouco mais a minha cadeira e acompanho-a durante um copo ou dois.

O comboio que fugiu conosco daquela Cruz Quebrada africana e da sua coroa de guindastes oxidados e gaivotas pernaltas acabou por depositar-nos numa espcie de

quartel ao largo de Luanda, casernas de cimento a arderem no calor, onde o suor crepitava na pele como bolhas de fervura. Nos alojamentos dos oficiais, cercados de bananeiras de grandes folhas franjdas idnticas a asas de arcanjos em runa, os mosquitos atravessavam a rede das janelas para produzirem no escuro, em conjunto, um rumor insistente e agudo em que o meu sangue, sorvido em bochechos rpidos e finalmente liberto de mim, cantava. L fora, um cu de estrelas desconhecidas surpreendia-me: assaltava-me por vezes a impresso de que haviam sobreposto um universo falso ao meu universo habitual, e que me bastaria romper com os dedos esse cenrio frgil e inslito para reingressar de novo no quotidiano do costume, povoado de rostos familiares e de cheiros que me acompanhavam com a fidelidade dos cachorros. Jantvamos na cidade em esplanadas srdidas repletas de soldados, entre cujos joelhos circulavam de ccoras engraxadores miserveis, lanando-lhes s botas soslaios veementes de paixo, ou indivduos sem pernas que estendiam timidamente manipanos esculpidos a canivete, equivalentes s Torres de Belm de plstico do meu pas natal. Sujeitos brancos sebentos, de pasta sob o brao, trocavam dinheiro portugus por dinheiro angolano num vagar sabido de agiotas; ruas, que se pareciam todas com a Morais Soares, aproximavam-se e afastavam-se num labirinto atrapalhado a caminho da fortaleza; non provinciano espalhava-se nos passeios em poas piscas de estrabismo alarajando. Ancorado na baa, o navio que nos trouxera duplicava o reflexo na gua preparando a partida: ia regressar sem mim ao Inverno e ao nevoeiro de Lisboa onde tudo prosseguia irritantemente na minha ausncia com o ritmo do costume, permitindo-me imaginar, despeitado, o que se seguiria de modo inevitvel minha morte e que era, afinal, o prolongamento da indiferena morna e neutra, sem entusiasmo nem tragdias, que eu to bem conhecia, feita de dias cosidos uns aos outros numa fnebre burocracia desprovida de inquietaes de labareda. Acredita nos sobressaltos, nos grandes lances, nos terramotos interiores, nos voos planados de xtase? Desengane-se, minha cara, tudo no passa de uma mistificao tica, de um engenhoso jogo de espelhos, de uma mera maquinao de teatro sem mais realidade que a cartolina e o celofane do cenrio que a enformam e a fora da nossa iluso a conferir-lhe uma aparncia de movimento. Como este bar e os seus candeeiros Arte Nova de gosto duvidoso, os seus habitantes de cabeas juntas segredando-se banalidades deliciosas na euforia suave do lcool, a msica de fundo a conferir aos nossos sorrisos a misteriosa profundidade dos sentimentos que no possumos nunca; mais meia garrafa e cuidar-nos-amos Vermeer, to hbeis como ele para traduzir, atravs da simplicidade domstica de um gesto, a tocante e inexprimvel amargura da nossa condio. A proximidade da morte torna-nos mais avisados ou, pelo menos, mais prudentes: em Luanda, espera de seguir dentro de dias para a zona de combate, trocvamos com vantagem a metafsica pelos cabars safados da ilha, um pega de cada lado, o balde de espumante Raposeira frente, e a pequena vesga do strip-tease a despir-se no palco no mesmo alheamento cansado com que uma cobra velha muda de pele. Acordei algumas vezes em quartos de penso manhosa sem haver entendido sequer como para l entrara, e vesti-me em silncio buscando os sapatos sob um soutien de rendinhas pretas no intuito de no perturbar o sono de um vulto qualquer enrolado nos lenis, e de que percebia somente a massa confusa dos cabelos. De fato, e consoante as profecias da famlia, tornara-me um homem: uma espcie de avidez triste e cnica, feita de desesperana cpida, de egosmo, e da pressa de me esconder de mim prprio, tinha substitudo para sempre o frgil prazer da alegria infantil, do riso sem reservas nem subentendidos, embalsamado de pureza, e que me parece escutar, sabe?, de tempos a tempos, noite, ao voltar para casa, numa rua deserta, ecoando nas minhas costas numa cascata de troa.

DNo, no me di nada, talvez um pouco a cabea, uma insignificncia, uma impresso, uma tontura. Este rumor montono de conversa, estes odores misturados, as feies que se desarrumam e se deslocam no ato de falar atordoam-me: no conheo ningum, no possuo o hbito destes tenplos exticos em que se sacrificam no j vsceras de animais mas o prprio fgado, modernas catacumbas a que as lmpadas votivas das luzes raras e o murmrio de reza das conversas conferem uma tonalidade de religio sacrlega de que o barman o bezerro de oiro, imvel atrs do altar-mor do balco, cercado pelos diconos dos frequentadores do costume, que erguem em seu louvor black-velvets rituais. As cruzes do timol substituem os crucifixos, jejuamos pela Pscoa a fim de baixar as gorduras do sangue, comungamos aos domingos vitaminas purificadoras, confessamos ao grupanalista os atropelos castidade, e recebemos de penitncia a sua conta mensal; nada mudou, como v, salvo que nos consideramos ateus porque, em lugar de batermos com a mo no peito, bate o mdico por ns com o diafragma do estetoscpio. Sinto-me aqui, percebe, como sentia em pequeno o meu pai na igreja, nas missas pelos defuntos da famlia onde chegava invariavelmente a meio, plantado junto pia de gua benta, de mos atrs das costas, Robespierre de canadiana a desafiar as caixas das esmolas e os olhos de barro triste dos santos. Perteno sem dvida a outro stio, no sei bem qual, alis, mas suponho que to recuado no tempo e no espao que jamais o recuperarei, talvez que ao Jardim Zoolgico de dantes e ao professor preto a deslizar para trs no rinque de patinagem sob as rvores, entre os guinchos dos bichos e a campainha do vendedor de gelados. Se eu fosse girafa am-la-ia em silncio, fitando-a de cima da rede numa melancolia de guindaste, am-la-ia com o amor desajeitado dos exageradamente altos, mastigando o chiclets de uma folha pensativa, ciumento dos ursos, dos papa-formigas, dos ornitorrincos, das catatuas e dos crocodilos, e desceria trabalhosamente o pescoo pelas roldanas dos tendes para esconder a cabea no seu peito em trmulas marradas de ternura. Porque, deixe-me confidenciar-lho, sou terno, sou terno mesmo antes do sexto JB sem gua ou do oitavo drambuie, sou estupidamente e submissamente terno como um co doente, um desses ces implorativos de rbitas demasiado humanas que de quando em quando, na rua, sem motivo, nos colam o focinho aos calcanhares gemendo torturadas paixes de escravo, que acabamos por sacudir o pontap e se afasta, a soluar, decerto, interiormente sonetos de almanaque, chorando lgrimas de violetas murchas. Duas coisas, minha boa amiga, continuo a partilhar com a classe de que venho, desapontando o poster do Guevara, esse Carlos Gardel da Revoluo, que pendurei sobre a cama a fim de que me proteja dos pesadelos burgueses, e que funciona um pouco para mim como uma espcie de joia magntica Vitaphor da alma: a emoo fcil que me faz fungar diante da televiso da leitaria hora da novela, e o medo arrepiado do ridculo. O que eu gostava, por exemplo,de conseguir, sem ostentao nem vergonha, coroar a minha calvcie nascente de um chapu tirols de pena. Ou de deixar crescer a unha do dedo mnimo. Ou de entalar um bilhete de eltrico dobrado na aliana. Ou de atender os meus doentes vestido de palhao pobre. Ou de lhe oferecer o meu retrato em corao de esmalte para voc usar quando for gorda, porque ser gorda um dia, descanse, todos ns seremos

gordos, gordos, gordos e tranquilos, como gatos capados espera da morte nas matines do Odeon.

Porm, na poca de que lhe falo eu tinha cabelo, bastante cabelo, enfim, algum cabelo se bem que aparado regularmente curto e escondido dentro do pires da boina militar, e descia de Luanda a caminho de Nova Lisboa na direo da guerra, atravs de inacreditveis horizontes sem limites. Entenda-me: sou homem de um pas estreito e velho, de uma cidade afogada de casas que se multiplicam e refletem umas s outras nas frontarias de azulejo e nos ovais dos lagos, e a iluso de espao que aqui conheo, porque o cu feito de pombos prximos, consiste numa magra fatia de rio que os gumes de duas esquinas apertam, e o brao de um navegador de bronze atravessa obliquamente num mpeto heroico. Nasci e cresci num acanhado universo de croch, croch de tia-av e croch manuelino, filigranaram-me a cabea na infncia, habituaram-me pequenez do bibelot, proibiram-me o canto nono de Os Lusadas e ensinaram-me desde sempre a acenar com o leno em lugar de partir. Policiaram-me o esprito, em suma, e reduziram-me a geografia aos problemas dos fusos, a clculos horrios de amanuense cuja caravela de aportar s ndias se metamorfoseou numa mesa de frmica com esponja em cima para molhar os selos e a lngua. J lhe aconteceu sonhar de cotovelos apoiados num desses tampos horrveis e acabar o dia num terceiro andar de Campo de Ourique ou da Pvoa de Santo Adrio, a ouvir crescer a prpria barba nos seres vazios? J sofreu a morte quotidiana de acordar todas as manhs ao lado de uma pessoa que mornamente se detesta? Irem os dois para o emprego no carro, olheirentos de sono, pesados j de decepo e cansao, ocos de palavras, de sentimentos, de vida? Pois imagine que de repente, sem aviso, todo esse mundo em diminutivo, toda essa teia de hbitos tristes, toda essa reduzida melancolia de pisa-papis em que neva l dentro, em que neva monotonamente l dentro, se evaporava, as razes que a prendem a resignaes de almofada bordada desapareciam, os elos que a agarram a pessoas que a aborrecem se quebravam e voc acordava numa camioneta, no muito confortvel, certo, e cheia de tropas, verdade, mas circulando numa paisagem inimaginvel, onde tudo flutua, as cores, as rvores, os gigantescos contornos das coisas, o cu abrindo e fechando escadarias de nuvens em que a vista tropea at cair de costas, como um grande pssaro extasiado.

De tempos a tempos, no entanto, Portugal reaparecia sob a forma de pequenas povoaes beira da estrada, nas quais raros brancos translcidos de paludismo tentavam desesperadamente recriar Moscavides perdidas, colando andorinhas de loia nos intervalos das janelas ou pendurando lanternas de ferro forjado nos alpendres das portas: quem levou sculos a semear igrejas acaba inevitavelmente, por reflexo, a colocar jarras de flores de plstico no tampo dos frigorficos, do mesmo modo que Tolstoi, agonizante, movia os dedos cegos no lenol repetindo o ato de escrever, com a diferena de as nossas frases se resumirem a boas-vindas de azulejo e a palavras de acolhimento desbotado no capacho da entrada. At que ao fim da tarde, um fim de tarde sem crepsculo, com a noite a suceder-se abruptamente ao dia, chegamos a Nova Lisboa, cidade ferroviria no planalto, de que guardo uma confusa lembrana de cafs provincianos e de montras poeirentas, e do restaurante onde jantamos, de espingarda entre os joelhos, obsevados por mulatos de culos escuros parados diante de cervejas imemoriais, cujas feies imveis possuam a consistncia opaca das cicatrizes; durante todo o bife senti-me como que no prefcio do massacre de S. Valentim, prestes a tiroteios de Lei Seca, e levava o garfo boca no aborrecimento mole de Al Capone, compondo nos espelhos sorrisos de crueldade manifesta; ainda hoje, sabe, saio do cinema a acender o cigarro maneira de Humphrey Bogart, at que a viso da minha

imagem num vidro me desiluda: em vez de caminhar para os braos de Lauren Bacall dirijo-me de fato para a Picheleira, e a iluso desaba no fragor lancinante de um mito desfeito. Meto a chava porta (Humphrey Bogart ou eu?), hesito, entro, olho a gravura do vestbulo (j definitivamente eu a olh-la) e afundo-me no sof no suspiro de pneu que se esvazia de uma Gata Borralheira ao contrrio. Como quando sair daqui, percebe, ao ter acabado de lhe contar esta histria esquisita e de ter bebido, em vagares de camelo, todas as garrafas visveis, e me achar l fora, ao frio, longe do seu silncio e do seu sorriso, sozinho como um rfo, de mos nos bolsos, a assistir ao nascer da manh numa angstia cremosa que a lividez das rvores macabramente sublinha. As madrugadas, de resto, so o meu tormento, gordurosas, geladas, azedas, repletas de amargura e de rancor. Nada vive ainda e, todavia, uma ameaa indefinvel ganha corpo, aproxima-se, persegue-nos, incha-nos no peito, impede-nos de respirar livremente, as pregas do travesseiro petrificam-se, os mveis, agudos, hostilizam-nos. As plantas dos vasos avanam para ns tentculos sequiosos, do outro lado dos espelhos objetos canhotos recusam-se aos dedos que lhes damos, os chinelos sumiram-se, o roupo no existe, e no interior de ns, teimoso, insistente, dolorosamente lento, caminha este comboio que atravessa Angola, de Nova Lisboa ao Luso, a transbordar de homens fardados que cabeceiam contra as janelas procura de um sono impossve.

Conhece o general Machado? No, no se franza, no procure, ningum conhece o general Machado, cem em cada cem portugueses nunca ouviram falar do general Machado, o planeta gira apesar desta ignorncia do general Machado, e eu pessoalmentem odeio-o. Era o pai da minha av materna, a qual, aos domingos, antes do almoo, me apontava com orgulho a fotografia de uma espcie de bombeiro antiptico de bigodes, dono de numerosas medalhas que tronavam no armrio de vidro da sala juntamente com outros trofus guerreiros igualmente inteis, mas a que a famlia parecia prestar uma venerao de relquias. Pois fique sabendo que durante anos, aborrecido e pasmado, escutei semanalmente, em folhetins narrados pela voz emocionada da av, as proezas vetustas do bombeiro elevadas na circunstncia a cumes de epopeia: o general Machado envenenou-me anos e anos o bife introduzinho na carne o mofo indigesto de uma dignidade hirta, cuja rigidez vitoriana me enjoava. E foi precisamente esta criatura nefasta, de que as rbitas globulosas de prefeito ou de cura me reprovaram da parede, recusando-me mesmo a absolvio dbia que paira como um halo nos sorrisos amarelos dos retratos antigos, que construiu, ou dirigiu a construo, ou concebeu a construo, ou concebeu e dirigiu a construo do caminho de ferro em que seguamos, de rebenta-minas na dianteira, chocalhando numa plancie sem princpio nem termo, mastigando as conservas da rao de combate num desapetite em que morava j o medo pnico da morte, que durante vinte e sete meses cresceu na umidade das minhas tripas os seus cogumelos esverdeados. Na messe de oficiais do Luso, espcie de Bairro da Madre de Deus de ruas geomtricas e casas econmicas plantado no planalto dos Bundas, no esprito Portugal dos Pequeninos corporativo que fez do Estado Novo uma constante aberrao por defeito ou por excesso, vi, pela primeira vez em muito tempo, cortinas, clices, mulheres brancas e tapetes: a pouco e pouco aquilo a que durante tantos anos me habituara afastava-se de mim, famlia, conforto, sossego, o prprio prazer das maadas sem perigo, das melancolias mansas to agradveis quando nada nos falta, do tdio Antonio Nobre nascido da crena convicta de uma superioridade ilusria. Por exemplo, a tristeza depois do jantar substitua as palavras cruzadas do jornal, e entretinha-me a preencher os quadradinhos em branco de trabalhosas elucubraes oscilando entre o idiota chapado e o vulgar profundo, limites alis entre os quais o pensamento lusitano se condensa, equivalentes metafsicos dos versos dos cravos de papel. Compreenda-me: pertencemos a uma terra em que a

vivacidade faz as vezes do talento e onde a destreza ocupa o lugar da capacidade criadora, e creio com frequncia que no passamos de fato de dbeis mentais habilidosos consertando os fusveis da alma custa de expedientes de arame. Inclusive o estar aqui consigo talvez no passe de um expediente de arame que me salve da mar-baixa de desespero que me ameaa, desespero de que no conheo a causa, percebe, e que noite me enrola no visco do seu lodo, me afoga de aflio e de receio, me molha o beio de cima de um bigode de suor, me faz tremer os joelhos um contra o outro em castanholas de dentadura postia de porteiro adormecido. No, a srio, o crepsculo chega e o corao acelera-se, palpo-o no pulso, as vsceras comprimem-se, a vescula di-me, os ouvidos zumbem, qualquer coisa de indefinvel e prestes a romper-se palpita, tenso, no meu peito: um dia destes, o porteiro d comigo estendido nu no cho da casa de banho, um fio de pasta de dentes e de sangue ao canto da boca, as pupilas subitamente enorme contemplando nada, a cheirar mal, sem cor, inchado de gases. Voc l no jornal, no acredita, volta a ler, verifica o nome, a profisso, a idade, e passadas duas horas esqueceu-se e vir aqui, como de costume, ancorar o seu silncio numa enseada de copos, tilintar em cada mnimo gesto as pulseiras indianas que recordam uma Londres mtica perdida no nevoeiro do passado, na poca em que Bod Dylan falava e as pernas das vendedoras do Selfridges eram quase to atraentes como os sorrisos dos polcias.

Outro vodka? verdade que no acabei o meu mas neste passo da minha narrativa perturbo-me invariavelmente, que quer, foi h seis anos e perturbo-me ainda: descamos do Luso para as Terras do Fim do Mundo, em coluna, por picadas de areia, Lacusse, Luanguinga, as companhias independentes que protegiam a construo da estrada, o deserto uniforme e feio do Leste, quimbos cercados de arame farpado em torno dos pr-fabricados dos quartis, o silncio de cemitrio dos refeitrios, casernas de zinco a apodrecer devagar, descamos para as Terras do Fim do Mundo, a dois mil quilmetros de Luanda, Janeiro acabava, chovia, e amos morrer, amos morrer e chovia, chovia, sentado na cabina da camioneta, ao lado do condutor, de bon nos olhos, o vibrar de um cigarro infinito na mo, iniciei a dolorosa aprendizagem da agonia.

E

Gago Coutinho, a trezentos quilmetros ao sul do Luso e junto fronteira com a Zmbia, era um mamilo de terra vermelha poeirenta entre duas chanas podres, um quartel, quimbos chefiados por sobas que o Governo Portugus obrigava a fantasias carnavalescas de estrelas e fitas ridculas, o posto da PIDE, a administrao, o caf do Mete Lenha e a aldeia dos leprosos; uma vez por semana eu sacudia o badalo do sino de capela pendurado no meio de um crculo de cubatas aparentemente desertas, no silncio carregado de rudo que frica tem quando se cala, e dezenas de larvas informes principiavam a surgir, manquejando, arrastando-se, trotando, dos arbustos, das rvores das palhotas, dos contornos indecisos das sombras, larvas de Bosch de todas as idades

em cujos ombros se agitavam, como penas, franjas de farrapos, avanando para mim maneira dos sapos monstruosos dos pesadelos das crianas, a estenderem os cotos ulcerados para os frascos de remdio. O senhor Jonato, o enfermeiro negro da delegao de sade nominal, que corria constantemente como os chineses do Tim-Tim, distribua as pastilhas na majestade macabra de um ritual eucarstico para desenterrados vivos, alguns dos quais, j cegos, voltavam para ningum as rbitas desabitadas, reduzidas a uma nvoa azul-mida de muco repugnante. Midos sem dedos, afligidos de moscas, agrupavam-se numa pinha muda de espanto, mulheres de feies de grgula segredavam-se dilogos que os cus da boca em runa tornavam numa pasta de gemidos, e eu pensava na ressurreio da carne do catecismo, como pedaos de tripas e erguerem-se dos buracos dos cemitrios num despertar vagaroso de ofdeos. Um pouco, percebe, como se toda esta gente plida que cochicha curvada em atitudes de feto, enrolando-se mutuamente em torno das nucas os tentculos sem ossos dos braos, sasse de roldo a porta do bar, no para a noite domesticada e cmplice da Lapa, feita do ressonar conjunto de bassets e de condessas, mas para um dia excessivo iluminado pelo sol vertical das salas de operao dos ringues de boxe, que revelasse sem piedade as olheiras, as rugas, as pregas de cansao, a murchido dos seios, as expresses vazias que nenhum cognac mobila. O senhor Jonato, regiamente instalado numa cadeira desconjuntada, absolvia de tintura de iodo as feridas que lhe ofereciam pincelando-as de extremas-unes expeditivas, inteis esconjuros contra a presena da morte, e eu circulava ao acaso de quimbo em quimbo assustando velhas esquelticas acocoradas entrada das palhoras, e de que as saias, demasiado largas par as suas ancas de cones, se assemelhavam s mangas de papel que embrulham as palhinhas de refresco. E havia o cheiro de decomposio de mandioca a secar nas esteiras, a umidade, que se farejava no ar, da chuva que crescia, excrementos secos como os cagalhes de carto do Entrudo, ratos obesos remexendo o lixo, a chana horizontal ao longe atavessada por um rio sinuoso e estreito como uma veia da mo, e os morcegos a aguardarem o crepsculo nos vestgios de templo de Diana de uma casa de colono, afogada no capim sem cor do esquecimento.

Gago Coutinho era tambm o caf do Mete Lenha, branco sopinha de massa cujo esforo para falar o torcia de caretas de defecao, casado com uma espcie de botija de gascidla enfeitada de colares estridentes, sempre a queixar-se aos oficiais dos belisces com que os soldados lhe homenageavam as ndegas atlnticas, difceis, alis, de discernir numa mulher aparentada a um imenso glteo rolando em que mesmo as bochechas possuam qualquer coisa de anal e o nariz se aparentava a a inchao incmodo de hemorroida, caf para refrescos inocentes nas to compridas tarde de domingo, e onde pela primeira vez o tenente, confidencial, abriu a carteira para me mostrar a fotografia da criada, e revelou, recostando-se para trs no assento de ferro por demais exguo para as duas omoplatas enormes, o produto sinttico das meditaes de uma vida:

- Sopeira em que o patro no se ponha nunca chega a criar amor casa.

No edifcio sinistro do hospital civil, idntico a uma penso de provncia moribunda de paredes empoladas por furnculos de umidade, os doentes de paludismo estremeciam de febre nos degraus da entrada, no corredor, na sala de consulta, no cubculo destinado s injees, espera das ampolas de quinino na tranquilidade imemorial dos negros, para quem o tempo, a distncia e a vida possuem uma profundeza e um significado impossveis de explicar a quem nasceu entre tmulos de infantas e despertadores de folha, aguilhoado por datas de batalhas, mosteiros e relgios

de ponto. Diante da secretria, espessa como um bunker, qual instalava a minha cincia de manual, a misria e a fome desfilavam manh fora na serenidade montona da chuva de Setembro, e a nica resposta que a minha impotncia me permitia eram as pastilhas de vitamina da tropa adoadas por um sorriso de desculpa e de vergonha. Impedidos de pescar e de caar, sem lavras, prisioneiros do arame farpado e das esmolas de peixe seco da administrao, espiados pela PIDE, tiranizados pelos cipaios, os luchazes fugiam para a mata, onde o MPLA, inimigo invisvel, se escondia, obrigando-nos a uma alucinante guerra de fantasmas. A cada ferido de emboscada ou de mina a mesma pergunta aflita me ocorria, a mim, filho da Mocidade Portuguesa, das Novidades e do Debate, sobrinho de catequistas e ntimo da Sagrada Famlia que nos visitava a domiclio numa redoma de vidro, empurrado para aquele espanto de plvora numa imensa surpresa: sos os guerrilheiros ou Lisboa que nos assassinam, Lisboa, os Americanos, os Russos, os Chineses, o caralho da puta que os pariu combinados para no foderem os cornos em nome de interesses que me escapam, quem me enfiou sem aviso neste cu de Judas de p vermelho e de areia, a jogar as damas com o capito idoso sado de sargento que cheirava a menopausa de escriturrio resignado e sofria do azedume crnico da colite, quem me decifra o absurdo disto, as cartas que recebo e me falam de um mundo que a lonjura tornou estrangeiro e irreal, os calendrios que risco de cruzes a contar os dias que me separam do regresso e apenas achando minha frente um tnel infindvel de meses, um escuro tnel de meses onde me precipito mugindo, boi ferido que no entende, que no entende, que no logra entender e acaba por enterrar o triste focinho molhado nos ossos de frango com esparguete do rancho, do mesmo modo, percebe, que aqui, na sua companhia, me sinto cavalo de narinas enfiadas na alcofa de vodka, mastigando o feno azedo do limo.

A seguir ao jantar os jeeps dos oficiais giravam de palhota em palhota hesitaes de pirilampos: o amor barato e rpido em compartimentos abafados, aclarados por pavios indecisos de petrleo que coloriam as paredes de barro de uma iluso de capelas. Chegava-se de bisnaga antivenrea no bolso e aplicava-se a pomada atravs da braguilha aberta maneira de uma vulva de pano, sob o olhar indiferente de mulheres de dentes serrados em tringulo, acocoradas na cama no alheamento de perfil de certos retratos de Picasso, em cuja curva dos lbios flutuam Guernicas desdenhosas. No mesmo colcho dormiam, em regra, os filhos, as galinhas e algum antepassado decrpito perdido em pesadelos de mmia, rosnando os hierglifos dos seus sonhos. O tenente fornicava de pala do bon para trs e pistola cinta, com o impedido de espingarda em riste a vigiar as redondezas, o oficial de operaes mandou vir um mquina de costura do Luso e cozia bainhas de cala de madrugada ao lado de uma negra esplndida, de enrgicos seios pendentes como os da loba de Roma, e o capito das damas, instalado ao volante, pedia a raparigas impberes que o masturbassem, oferecendo em troca cartuchinhos de rebuados de hortel-pimenta: o branco chegou com um chicote, cantava o milcia na viola, o branco chegou com um chicote e bateu no soba e no povo, o branco chegou com um chicote e bateu no soba e no povo.

Se voc soubesse o que acordar com vontade de urinar a meio da noite numa noite sem lua, vir c fora mijar e nada existir em torno, nenhuma luz, nenhuma caserna, nenhum vulto, s o rudo do seu chichi invisvel e as estrelas congeladas na meia laranja do cu, afastadas demais, pequenas demais, inacessveis demais, prestes a desaparecer porque a manh surge de repente e dia adulto, acordar a meio da noite e sentir na quietude e no silncio, percebe?, o sono inumervel de frica, e ns ali de pernas afastadas, em camisa e cuecas, minsculos, vulnerveis, ridculos, estranhos, sem passado nem futuro, a flutuar na estreiteza assustada do presente, coando a flor-do-

congo dos testculos. J nessa altura certamente voc acostara neste bar, com o mesmo cigarro na mo esquerda, o mesmo copo na mo direita e a mesma absoluta indiferena nos olhos, inalteravelmente imvel, pssaro de plpebras pintadas pousado no ramo do banco a tilintar as pulseiras indianas na msica precisa dos seus gestos. Gosto dos seus gestos, assim automticos e lentos como os das figuras dos relgios prosseguindo o seu trajetozinho obstinado, acabava-se de urinar e as bolhas ferviam na terra como se a bexiga, sabe como , fosse uma chaleira a arder, voltava para dentro, e estendia-me na cama esmaltada de branco da enfermaria at o primeiro clarim me extrair em sobressalto dos meus vapores difusos.

De tempos a tempos chegavam visitas inesperadas ao cu de Judas: oficiais do Estado-Maior de Luanda, que o formol do ar condicionado conservava, quinquagenrias sul-africanas que beijavam os doentes em arroubos de cio da menopausa, duas atrizes de revista a agitarem a descompasso as pernas gordas num palco de mesas, acompanhadas por um acordeo exausto; jantaram na messe ao lado do comandante reluzente de orgulho, cuja timidez se embrulhava nos sorrisos de um adolescente em falta, enquanto o tenente da criada lhes cirandava em torno, farejando os decotes num stase mudo. O capelo, contrito, descia as plpebras virgens sobre o brevirio da sopa.

- Quarenta anos a acumular esperma - calculava o capito idoso a medi-lo de longe. - Se aquele gajo se vier afoga-nos a todos na gua benta dos tomates.

As atrizes acabaram por dormi no posto da PIDE, vigiadas por agentes biliosos cujas sobrancelhas se franziam de ameaas indecifrveis. Dizia-se que a mulher do inspetor, espanhola magra com aspecto de contorcionista decadente que se exprimia aos gritos numa linguagem de circo, torturava ela mesma os prisioneiros inventando martrios sem sutiliza de Lucrcia Brgia das Portas de Santo Anto. Mais tarde, na Baixa do Cassanje, ouvi falar do enforcamento de um ginga para edificao da sanzala, e dos negros que cavavam um buraco na mata, desciam para dentro, e aguardavam pacientemente que lhes rebentassem a cabea a tiro e os cobrissem de areia, puxando um cobertor de terra por sobre o sangue dos cadveres.

- Filhos da puta, filhos da puta, filhos da puta - repetia o tenente, siderado.

O branco veio com um chicote, cantava o milcia na viola, e bateu no soba e no povo.

F

J reparou que a esta hora da noite e a este nvel do lcool o corpo se comea a emancipar de ns, a recusar-se a acender o cigarro, a segurar o copo numa incerteza tateante, a vaguear dentro da roupa oscilaes de gelatina? O encanto dos bares, no ?, consiste em, a partir das duas da manh, no ser a alma a libertar-se do seu invlucro terreste e a seguir verticalmente para o cu no esvoaar mstico de cortinas brancas das mortes do missal, mas a carne que se livra, um pouco espantada, do esprito, e inicia

uma dana pastosa de esttua de cera que se funde at terminar nas lgrimas de remorso da aurora, quando a primeira luz oblqua nos revela, com implacabilidade radioscpica, o triste esqueleto da solido sem remdio. Se no observarmos bem, alis, podemos principiar a entrever j o perfil dos nossos ossos, que as vrgulas das olheiras e o acento circunflexo da boca disfaram de sorrisos melanclicos de que pendem restos murchos de ironia idnticos ao brao inerte de um ferido. Talvez o tipo da mesa ao lado, que o dcimo Carvalho Ribeiro Ferreira inclina dezassete graus para bombordo na rigidez de andor de uma torre de Pisa de casaco de veludo beira de queda catastrfica, seja Amedeo Modigliani a procurar no fundo do clice um rosto assassinado de mulher, talvez Fernando Pessoa habite aquele senhor de culos ao p do espelho, em cuja aguardente de pera pulsa o volante comovido da Ode Martima, talvez o meu irmo Scott Fitzgerald, que o Blondin assemelhava a um trs quartos ponta irlands, se sente a qualquer momento nossa mesa e nos explique a desesperada ternura da noite e a impossibilidade de amar, porque, sabe como , o vodka confunde os tempos e abole as distncias, voc chama-se na realidade Ava Gardner e consome oito toureiros e seis caixas de Logans por semana, e, quanto a mim, o meu verdadeiro nome Malcom Lowry, sou escuro como o tmulo onde jaz o meu amigo, escrevo romances imortais, recomendo Le gusta este jardn que es suyo? evite que sus hijos lo destruan, e o meu cadver ser lanado na ltima pgina, como o de um co, para o fundo de um barranco. Viemos todos hoje ocupar a inocente Lapa cor-de-rosa imitada de Carlos Botelho da mar-baixa das nossas bebedeiras silenciosas, superfcie das quais cintila, de quando em quando e by appointment of Her Majesty the Queen, o reflexo do gnio, e sobre as nossas cabeas ungidas tombam as lnguas de fogo de Johnny Esprito Santo Walker: Utrillo, que amarrotava postais ilustrados enquanto pintava, Soutine, o dos meninos do coro e das casas torturadas, Gomes Leal e a sua inocente e tonitruante misria de menino velho, e ns os dois observando, maravilhados, esta procisso de palhaos sublimes que uma msica de circo acompanha. Pode parecer-lhe esquisito mas sempre vivi rodeado de fantasmas numa casa antiga que era como que o espectro de si mesma, desde o porto flanqueado por ananases de pedra mala dos ossos de Anatomia, que aguardava, arrecadada, a minha vez de a estudar, num perfume doce de incenso e de gangrena. Gatos vadios escondiam-se nos ramos da figueira do quintal como frutos furtivos, cujos olhos pingavam o leite verde de uma desconfiana rpida, nos vidros da salamandra crescia a claridade opala dos versos de Cesrio, e na sala o retrato de Antero, de uma dolorosa beleza que o gnio calcinava, opunha aos bigodes modestos dos avs o oceano em desordem da sua barba loira, onde naufragavam destroos quebrados de tercetos. O meu pai, magro e anguloso como um mrmon, viajava deriva na poltrona, impulsionado pela chamin de navio do cachimbo. a sombra inchava volumes geomtricos nos prdios vizinhos, desenhada por um Soulages triste. e eu masturbava-me no quarto sob a fotografia colorida da equipa do Benfica, na esperana de vir a ser um dia o guas da literatura, que de ccoras, ao centro, desafiava o universo com o orgulho de mrmore de um discbulo triunfal.

No cu de Judas, oculto por uma farda de camuflado que me fornecia a aparncia equvoca de um camaleo desiludido, adiava a minha partida para Estocolmo a bordo de um barco de papel impresso, para viajar de helicptero, de bales de plasma entre os joelhos, a recolher da mata os feridos das emboscadas, que sobreviventes estupefatos erguiam maneira dos corpos brandidos dos nufragos. O furriel enfermeiro, a quem a vista do sangue enjoava, ficava porta da sala de operaes improvisada, dobrado como um canivete, a vomitar num banco o feijo do almoo, e eu, tenso de raiva, imaginava a satisfao da famlia se lhe fosse dado observar, em conjunto e de chapu de aba larga como na Lio de Anatomia de Rembrandt, o mdico competente e responsvel que

desejavam que eu fosse, consertando a linha e agulhas os heroicos defensores do Imprio, que passeavam nas picadas a incompreenso do seu espanto: cest un peu dans chacun de ces hommes Mozart assassin, dizia eu furioso dentro de mim, desbridando tibiais, rodando garrotes, regulando a botija de oxignio, preparando os amputados para seguirem para o Luso, assim que amanhecesse, na pequena avioneta da FAP, enquanto os maqueiros, no compartimento ao lado, procuravam as veias dos dadores, e o tenente seguia inquieto os meus gestos numa ansiedade que se adensava. Nunca as palavras me pareceram to suprfluas como nesse tempo de cinza, desprovidas do sentido que me habituara a dar-lhes, privadas de peso, de timbre, de significado, de cor, medida que trabalhava o coto descascado de um membro ou reintroduzia numa barriga os intestinos que sobravam, nunca os protestos me surgiram to vos, nunca os exlios jacobinos de Paria se me afiguraram to estpidos: se me perguntam porque continuo no Exrcito respondo que a revoluo se faz por dentro, explicava o capito de culos moles e dedos membranosos atrs do seu cigarro eterno, o capito qu puxou da pistola para o pide magrinho que atirara um pontap a uma rapariga grvida e o expulsou da companhi indifetente s ameaas azedas do outro, o capito de malas cheias de livros e de revistas estrangeiras que me contavam do que eu no sabia e a quem me juntei meses mais tarde na ilha e arame de Ninda, ao p do rio, para a travessia sem bssola de uma longa noite.

Os batuques dos luchazes eram concertos de coraes pnicos, taquicrdicos, retidos pelas trevas de galoparem sem controlo na direo da prpria angstia, como, por exemplo, as minha pernas se aproximam a tremer das suas sob o tampo cmplic da mesa. As rbitas dos tocadores aparentavam-se a ovos cozidos fosforescentes, sem pupila, iluminados pelas fogueiras de palha destinadas a esticar a pele de cabrito dos tambores, ou pelas ndegas que balouavam, suspensas do nada, laia das lanternas de um comboio que se afasta. Cada palhora, flanqueada de uma miniatura idntica destinada ao deus Zumbi, senhor dos antepassados e dos mortos, adquiria os contornos informes da inquietao e do terror, onde nos cabiris somavam os seus latidos de medo ao choro das crianas e aos cacarejos interrogativos das galinhas, pssaros imperfeitos reduzidos a um destino de churrasco. O escuro cavava-se de galerias, de corredores, de degraus que os sons penetravam numa procura desesperada, folheando sombras, deslocando rostos, remexendo as gavetas vazias do silncio em busca do eco de si mesmos, tal como por vezes nos encontramos, aterrados e surpresos, nos objetos esquecidos nas prateleiras dos armrios a lembrarem-nos quem fomos numa insistncia cruel. O suor dos corpos, gordo e sumarento, possua textura diversa das tristes gotas arrepiadas que me desciam a espinha, e sentia-me melancolicamente herdeiro de um velho pas desajeitado e agonizante, de uma europa repleta de furnculos de palcios e de pedras da bexiga de catedrais doentes, confrontado com um povo cuja inesgotvel vitalidade eu entrevira j, anos antes, no trompete solar de Louis Armstrong, expulsando a neurastenia e o azedume com a musculosa alegria do seu canto. A essa hora, na minha cidade castrada pela polcia e a censura, as pessoas coagulavam-se de frio nas paragens dos autocarros, a soprarem adiante da boca o vapor de gua dos bales das legendas de uma histria de quadradinhos que o Governo proibia. Em tronco nu, o meu pai devia barbear-se ao espelho do quarto de banho nos gestos rpidos e precisos do costume, dentro do tero da minha mulher uma criana prestes a nascer socav s cegas as grades de carne da sua priso, a minha me estendia o brao sonolento para o tabuleiro do pequeno-almoo, na grande cama preta que sempre constituiu para mim como que o smbolo do lar. Pensei que nunca soubera de fato mostrar-lhes quanto gostava deles, por timidez ou por pudor, e a ternura tantos anos reprimida trazia-me boca o sabor amargo do remorso e o desgosto de haver frustrado as suas pequenas esperanas ao transformar a minha vida numa sucesso sem nexo de cambalhotas desastrosas. Planos

grandiloquentes, em que Freud, Goethe e S. Francisco de Assis convergiam e se combinavam, comearam a grelar-me na cabea arrependida, laia de feijes no algodo molhado das experincias do liceu, milagres de algibeira para Lavoisiers mongoloides: se regressasse vertical, jurava eu a mim mesmo num fervor de peregrino de Compostela, afadigar-me-ia a construir, a partir do meu nada confuso, a digna esttua de bronze do marido e do filho ideais, talhado segundo o modelo das pagelas dos mortos no missal da av, criaturas repletas de qualidades e virtudes Santa Teresinha e das quais conhecia apenas os sorrisos resignados. Talvez at que me inscrevesse nos escuteiros a fim de pastorear, de apito, cales e autoridade paciente, um grupo de adolescentes borbulhosos atavs do Museu dos Coches, ou vagueasse pelas esquinas cata de ancies de bengala com dificuldade em atravessar. Far-me-ia irmo do Santssimo, clarinete de filarmnica, colecionador de dentaduras postias no intuito de expulsar do insuportvel sossego dos seres o meu eterno e deletrio desejo de evaso. Calaria para sempre a vozinha interior que na cabea me reclama, teimosa, proezas de Zorro. E ao termo de dolorosa enfermidade suportada com resignao crist e confortado com os sacramentos da Santa Madre Igreja, ingressaria por meu turno na panteo do missal da av a juntar-me a uma extensa galeria de chatos bondosos, apontado como exemplo a netos indiferentes, que considerariam com enfado a absurda mornido da minha existncia.

G

Ninda. Os eucaliptos de Ninda nas demasiadamente grandes noites do Leste, formigantes de insetos, o rudo de maxilares sem saliva das folhas secas l em cima, to sem saliva como as nossas bocas tensas no escuro: o ataque comeou do lado da pista de aviao, no extremo oposto sanzala, luzes mveis acendiam-se e apagavam-se na chana num morse de sinais. A Lua enorme aclarava de vis os pr-fabricados das casernas, os postos de sentinela protegidos por sacos e toros de madeira, o retngulo de zinco do paiol; porta do posto de socorros, estremunhado e nu, vi os soldados correrem de arma em punho na direo do arame, e depois as vozes, os gritos, os esguichos vermelhos que saam das espingardas a disparar, tudo aquilo, a tenso, a falta de comida decente, os alojamentos precrios, a gua que os filtros transformavam numa papa de papel-cavalinho indigesta, o gigantesco, inacreditvel absurdo da guerra, me fazia sentir na atmosfera irreal, flutuante e inslita, que encontrei mais tarde nos hospitais psiquitricos, ilhas de desesperada misria de que Lisboa se defendia cercando-as de muros e de grades, como os tecidos se previnem contra os corpos estranhos envolvendo-os em cpsulas de fibrose. Internados em enfermarias desconjuntadas, vestidos com o uniforme dos doentes, passevamos na cerca de areia do quartel os nossos sonhos incomunicveis, a nossa angstia informe, os nossos passados vistos pelo binclo ao contrrio das cartas da famlia e dos retratos guardados no funto das malas sob a cama, vestgios pr-histricos a partir dos quais poderamos conceber, como os bilogos examinando uma falange, o esqueleto monstruoso da nossa amargura.

Ocorria-me que quando a notcia da alta chegasse pelo rdio ser-nos-ia necessria uma penosa reaprendizagem da vida, maneira dos hemiplgicos que exercitam o esparguete difcil dos membros em aparelhos e piscinas, e que talvez permanecssemos para sempre incapazes de andar, reduzidos cadeira de rodas de uma resignao paraltica, a observar a simplicidade do quotidiano como o Chaplin dos Tempos Modernos as mquinas pavorosas que implacavelmente o trituram: sair o porteiro e a falsa indulgncia dos mdicos, construda do carto pintado de uma boa vontade postia, encontrar pouco a pouco, ladeira abaixo, a manh geomtrica da cidade que os azulejos decepam em losangos desbotados, penetrar numa leitaria fantasmagrica para o primeiro galo livre, ver os reformados do domin na eterna postura dos jogadores de cartas de Czanne, e sentir que se deixou irremediavelmente de pertencer a esse mundo ntido e direto onde as coisas possuem consistncia de coisas, sem subterfgios nem subentendidos, e os dias nos podem ainda oferecer, sabe como , apesar das anginas, dos cobradores e da letra do carro, a surpresa de vigsimo premiado de um sorriso que se no pediu. Voc, por exemplo, que oferece o ar assptico competente e sem caspa das secretrias de administrao, era capaz de respirar dentro de um quadro de Bosch, sufocada de demnios, de lagartas, de gnomos nascidos de cascas de ovo, de gelatinosas rbitas assustadas? Estendido numa cova espera que o ataque acabasse, olhando as hirtas silhuetas de chapu alto dos eucaliptos idnticas a fnebres testemunhas de duelo, de G3 intil no suor das mos e cigarro cravado na boca como palito em croquete, descobri-me personagem de Becket aguardando a granada de morteiro de um Godot redentor. Os romances por escrever acumulavam-se-me no sto da cabea maneira de aparelhos antiquados reduzidos a um amontoado de peas dspares que eu no lograria reunir, as mulheres com quem me no deitaria ofereceriam a outros as cosas afastadas de rs de aula de Cincias Naturais, onde eu no estaria para as esquartejar com o canivete vido da minha lngua, o filho por nascer constituiria apenas a cristalizao improvvel de ma distante tarde de Tomar, num quarto de messe de oficiais de janela escancarada para a praa, com o sol coalhado nas accias e ns celebrando na cama a liturgia ardentes de um desejo cedo demais desaparecido. Tomar: colches que rangem como solas, abraos rpidos, o pnis a pique mido de sede, grosso de veias, vermelho em flor de Pessanha, a mo que o friccionava contra os seios, a boca que o bebia, os calcanhares a lavrarem-me as ndegas, o silncio exausto, de marionetas desabitadas de dedos, de depois. Hoje, quando a encontro, como se observasse o retngulo plido que as molduras imprimem nas paredes sem que nos consigamos lembrar do desenho da tela, e tento em vo discernir, por detrs das feies envelhecidas e srias, compondo a custo uma expresso de camaradagem benigna que nunca foi sua, o rosto jovem e alegre que amei, fechado sobre o seu prprio prazer como uma corola noturna. E todavia, percebe?, desse modo que ela permanece em mim apesar da usura dos anos e do azedume das reconciliaes frustradas, das feridas das mentiras mtuas e do desencanto do afastamento definitivo: a rapariga morena e magra, de grandes olhos graves, que conheci na praia, a observar as ondas na majestade longnqua dos carnvoros indiferentes, que parecem de sbito ausentar-se em meditaes dolorosas e imveis, enxotando-nos para o canto de sombra das inutilidades esquecidas. Lembra-se da voz de Paul Simon?

The problem is all inside your head

She said to me

The answer is easy if you

Take it logically

Id like to help you in your sttruggle

To be free

There must be fifty ways

To leave your lover

She said its really not my habit

To intrude

Furthermore, I hope my meaning

Wont be lost or misconstruie

But Ill repeat myself

At the risk of being crude

There must be fiftu ways

To leave your lover

Fifty ways to leave your lover

You just slip out the back, Jack

Make a new plan, Stan

You dont need do be coy, Roy

Just get yourself free

Hop on the bus, Gus

You dont need to discuss much

Just drop off the key, Lee

And get yourself free

She said it grieves me so

To see you in such pain

I wish there is something I coud do

To make you smile again

I said I appreciate that

And you please explain

About the fifty ways

She said why dont we both

Just sleepe on it tonight

And I believe in the morning

Youll begin to see the light

And then she kissed me

And I realizes she probably was right

There must be fifty ways

To leave your lover

Fifty ways to leave your lover

You just slip out the back, Jack

Make a new plan, Stan

You dont need do be coy, Roy

Just get yourself free

Hop on the bus, Gus

You dont need to discuss much

Just drop off the key, Lee

And get yourself free

Ninda: o milho encostado ao arame folheava toda a noite as pginas ressequidas, o feiticeiro sorvia o pescoo das galinhas degoladas numa voracidade brutal. O capito e eu jogvamos xadrez na mesa da sala de jantar, entre migalhas e cascas, avanando um peo interrogativo e reticente semelhante a um dedo que palpa a medo uma borbulha infectada, ou conversvamos c fora, sentados em cadeiras curvas de tbuas de barril, julgando aproximativamente no escuro a posio do outro atravs do eco devolvido das nossas prprias vozes, morcegos aflitos que se procuram: no meu desordenado Museu Grvin interior de mdicos e poetas, onde Veslio e Bocage discutiam pormenores anatmicos picarescos e clandestinos sob as castas vistas reprovadoras do general

Fernandes Costa dos sonetos do Almanaque Bertrand, a quem roubei sem vergonha, na infncia, versos que cintilavam brilhos de vidro de metforas de pacotilha que me encantavam, um impetuoso fluxo de barbudos iluminados penetrou de roldo, a entoar alternadamente a Internacional e a Marselhesa, substituindo-se, autoritrios, ao doutor Jlio Dantas, ao doutor Augusto de Castro e a mais algumas dezenas de criaturas quitinosas, a bichanarem em sofs Imprio dramas histricos bordados no ponto de cruz de dilogos de tremoo. O capito apresentou-me de passagem um Marx que me considerou de longe resmungando economias ininteligveis no segredo do colarinhos, Lenine a conspirar, de cabeleira postia, no meio de um grupo de sobrecasacas ardentes, Rosa Luxemburgo coxeando comovida nas ruas de Berlim, Jaurs assassinado a tiro no restaurante, de guardanapo ao pescoo, maneira dos gnguesteres de Chicago a rodopiarem, mortos, nas cadeiras do barbeiro, num estilhaar de espelhos e de frascos, e eu imaginei-me a entrar casa adentro com eles para assistir ao fugir espavorido dos parentes na direo da zona de influncia dos seus cones corporativos, estendendo para os vampiros socialistas que lhes arreganhavam a ameaa tremenda da nacionalizao das porcelanas familiares, as tranas de alho esconjuratrias das pagelas da Sozinha. O peloto que saa noite para proteger o quartel, alapado nas matas rasas que cresciam, amarelentas, na areia, torcidas de anemia, aproximava-se no escuro, passava sob a lmpada coberta de um abat-jour de insetos, dispersava-se sem rudo nas cabanas das casernas, onde a profundidade do sono se media pela intensidade do cheiro dos corpos, amontoados ao acaso como nas fossas de Auschwitz, e eu perguntava ao capito O que fizeram do meu povo, O que fizeram de ns aqui sentados espera nesta paisagem sem mar, presos por trs fieiras de arame farpado numa terra que nos no pertence, a morrer de paludismo e de balas cujo percurso silvado se aparenta a um nervo de nylon que vibra, alimentados por colunas aleatrias cuja chegada depende de constantes acidentes de percurso, de emboscadas e de minas, lutando contra um inimigo invisvel, contra os dias que se no sucedem e indefinidamente se alongam, contra a saudade, a indignao e o remorso, contra a espessura das trevas opacas tal um vu de luto, e que puxo para cima da cabea a fim de dormir, como na infncia utilizava a bainha do lenol para me defender das pupilas de fsforo azul dos meus fantasmas.

Diga-me l: como que voc dorme? Deitada de bruos, de polegar na boca, num abandono em que se prolongam ainda restos hesitantes da fragilidade infantil, ou de pala negra nos olhos e rolhas de borracha nas orelhas laia das artistas decadentes do cinema americano ou das mulheres fatais desesperadas de solido e de champanhe, de pesadelos povoados de divrcios, de cirurgies plsticos e de ganidos de pelos de arame parecidos com a caricatura de Audrey Hepburn? Acho que deve ler poetas esotricos antes de apagar a luz, sujeitos de bigode complexo que aqui vm s vezes esconder a sua mediocridade intransigente atrs de um gin-fizz, admirados por raparigas sem peito, fumando Gauloises amarrotados na sofreguido desgrenhada com que as velhas dos asilos devoram a fatia de po-de-l dos domingos. Deve ter uma gravura de Vieira da Silva na parede do quarto e o retrato do cineasta sem talento, com quem mantm uma relao desiludida, cabeceira, deve acordar de manh num torpor de crislida titubeante eternamente entre a larva e a borboleta, a tropear s cegas para a cozinha na esperana insensata de que o primeiro nescaf, bebido pressa entre caarolas sujas, lhe garanta que existe de fato, eficiente e de colete, na gerncia de uma qualquer multinacional de sabonetes, o research executive sabiamente terno, de tmporas grisalhas e gravata Pestana & Brito, que o seu horscopo lhe promete. Pela minha parte, sabe como , no peo tanto vida: as minhas filhas crescem numa casa de que cada vez menos me recordo, de mveis bebidos pelas guas de sombra do passado, as mulheres que encontrei depois abandonei-as ou abandonaram-me numa tranquila

decepo mtua em que no houve sequer lugar para esse tipo de ressentimento que como que o sinal retrospectivo de uma espcie de amor, e envelheo sem graa num andar demasiado grande para mim, observando noite, da secretria vazia, as palpitaes do rio, atravs da varanda fechada cujo vidro me devolve o reflexo de um homem imvel, de queixo nas mos, em que me recuso a reconhecer-me, e que teima em fitar-me numa obstinao resignada. Talvez que a guerra tenha ajudado a fazer de mim o que sou hoje e que intimamente recuso: um solteiro melanclico a quem se no telefona e cujo telefonema ningum espera, tossindo de tempos a tempos para se imaginar acompanhado, e que a mulher a dias acabar por encontrar sentado na cadeira de baloio em camisola interior, de boca aberta, roando os dedos roxos no pelo cor-de-novembro da alcatifa.

H

Escute. Olhe para mim e escute, preciso tanto que me escute, me escute com a mesma ateno ansiosa com que ns ouvamos os apelos do rdio da coluna debaixo de fogo, a voz do cabo de transmisses que chamava, que pedia, voz perdida de nufrago esquecendo-se da segurana do cdigo, o capito a subir pressa para a Mercedes com meia-dzia de voluntrios e a sair o arame a derrapar na areia ao encntro da emboscada, escute-me tal como eu me debrucei para o hlito do nosso primeiro morto na desesperada esperana de que respirasse ainda, o morto que embrulhei num cobertor e coloquei no meu quarto, era a seguir ao almoo e um torpor esquisito bambeava-me as pernas, fechei a porta e declarei Dorme bem a sesta, c fora os soldados olhavam para mim sem dizer nada, Desta vez no h milagre meus chuchus, pensei eu, fitando-os, Est a dormir a sesta, expliquei-lhes, est a dormir a sesta e no quero que o acordem porque ele no quer acordar, e depois fui tratar dos feridos que se torciam nos panos de tenda, nunca os eucaliptos de Ninda se me afiguraram to grandes como nesta tarde, grandes, negros, altos, verticais, assustadores, o enfermeiro que me ajudava repetia Caralho caralho caralho com pronncia do Norte, viemos de todos os pontos do nosso pas amordaado para morrer em Nida, do nosso triste pas de pedra e mar para morrer em Ninda, Caralho caralho caralho repetia eu com o enfermeiro no meu sotaque educado de Lisboa, o capito apeou-se da Mercedes num cansao infinito, segurava a arma laia de cana de pesca intil, o povo da sanzala espreitava receoso l de baixo, escute-me como eu escutava o rpido latir aflito do meu sangue nas tmporas, o meu sangue intacto nas tmporas, pelos buracos da varanda via o capito a passear de um lado para o outro apertando o vitico de um copo de usque contra o peito, falando sozinho, cada um conversava sozinho porque ningum conseguia conversar com ningum, o meu sangue no copo do capito, tomai e bebei Unio Nacional, o corpo do morto crescia no quarto at rebentar as paredes, alastrar pela areia, alcanar a mata em busca do eco do tiro que o tocou, o helicptero transportou-o para Gago Coutinho como quem varre lixo vergonhoso para debaixo de um tapete, morre-se mais nas estradas de Portugal do que na guerra de frica, baixas insignificantes e adeus at ao meu regresso, o furriel arrumou os instrumentos cirrgicos na caixa cromada, os canivetes, as pinas,

os porta-agulhas, as sondas, sentou-se ao meu lado nos degraus do posto de socorros, espcie de vivenda pequenina para frias de reformados melanclicos, mordomos idosos, governantas virgens, os eucaliptos de Ninda no cessavam de aumentar, estamos os dois aqui sentado agora como ele e eu nesse tempo, Abril de 71, a dez mil quilmetros da minha cidade, da minha mulher grvida, dos meus irmos de olhos azuis cujas cartas afetuosas se me enrolavam nas tripas em espirais de ternura. Foda-se, disse o furriel que limpava as botas com os dedos, Pois , disse eu, e acho que at hoje nunca tive um dilogo to comprido com quem quer que fosse.

Escute: antes disso houvera a perna do Ferreira, ou seja, a ausncia da perna do Ferreira que uma antipessoal transformou num saco agonizante, as coxas esfarrapadas do cabo Mazunguidi, das quais at ilhs de atacador retirei, o penso de frescura da manh na minha testa perplexa, chegar ao alpendre do posto de socorros com a camisa manchada de sangue e receber como um insulto a claridade indiferente do dia. Se a revoluo acabou, percebe?, e em certo sentido acabou de fato, porque os mortos de frica, de boca cheia de terra, no podem protestar, e hora a hora a direita os vai matando de novo, e ns, os sobreviventes, continuamos to duvidosos de estar vivos que temos receio de, atravs da impossibilidade de um movimento qualquer, nos apercebermos de que no existe carne nos nossos gestos nem som nas palavras que dizemos, nos apercebermos que estamos mortos como eles, acomodados nas urnas de chumbo que o capelo benzia e de que se escapava, apesar da solda, um odor grosso de estrume, urna do cabo Pereira, urna do Carpinteiro, urna do Macaco, que uma mina assassinou a cin