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229 O Matadouro Municipal (1959) [fig.159-160], apesar de se constituir como uma peça mais pequena, organiza-se como um jogo mais variado do ponto de vista espacial, volumétrico e compositivo. Também aqui Varela parece reinterpretar as suas modulações modernistas dos Anos Trinta, no uso de abóbodas de berço – tema recorrente do seu léxico formal –, e como solução redentora deste programa, mas, neste caso, dentro do quadro histórico de uma nova racionalidade, «rompendo» com os esquematismos das composições simétricas e axiais de outrora, para optar por uma disposição sequencial dos corpos funcionais e das dependências, onde a diversidade da volumetria e do pé-direito se estabelece através da variação de escala das abóbadas, estabelecendo variações de luz no interior. Este recurso surge intercalado com coberturas planas, criando uma variação de elementos que confere ao conjunto alguma diversidade plástica. Já o caso do Mercado de Minde [fig.161-162] pode «geneticamente» aparentar-se a exemplos mais antigos – como no caso do projecto para o Mercado de Coimbra 13 (1937). Mas neste caso a disposição das abóbadas não segue a modulação em planta, e pelo contrário, parece mesmo «contrariar» o sentido axial da volumetria e da organização do espaço funcional, o que faz que, ao «cruzar» as duas partes da composição, resulta numa diversidade bastante peculiar no panorama das obras do autor. Parece, também, no geral, uma «reinvenção» do modelo axial e simétrico proposto pelo Mercado de Coimbra, aqui «reconstruído» à luz de uma combinação de elementos racionalistas característicos dos Anos Cinquenta. 13 Veja-se a este respeito 7.1. Fig. 159 – António Varela, Matadouro Municipal da Nazaré, planta, Nazaré, 1959. Fig. 160 – António Varela Matadouro Municipal da Nazaré, cortes, Nazaré, 1959. Fig. 161 – António Varela, Mercado de Minde, Minde, planta, anos 50.

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O Matadouro Municipal (1959) [fig.159-160], apesar de se constituir

como uma peça mais pequena, organiza-se como um jogo mais variado do

ponto de vista espacial, volumétrico e compositivo. Também aqui Varela

parece reinterpretar as suas modulações modernistas dos Anos Trinta, no

uso de abóbodas de berço – tema recorrente do seu léxico formal –, e como

solução redentora deste programa, mas, neste caso, dentro do quadro

histórico de uma nova racionalidade, «rompendo» com os esquematismos

das composições simétricas e axiais de outrora, para optar por uma

disposição sequencial dos corpos funcionais e das dependências, onde a

diversidade da volumetria e do pé-direito se estabelece através da variação

de escala das abóbadas, estabelecendo variações de luz no interior. Este

recurso surge intercalado com coberturas planas, criando uma variação de

elementos que confere ao conjunto alguma diversidade plástica.

Já o caso do Mercado de Minde [fig.161-162] pode «geneticamente»

aparentar-se a exemplos mais antigos – como no caso do projecto para o

Mercado de Coimbra13 (1937). Mas neste caso a disposição das abóbadas

não segue a modulação em planta, e pelo contrário, parece mesmo

«contrariar» o sentido axial da volumetria e da organização do espaço

funcional, o que faz que, ao «cruzar» as duas partes da composição, resulta

numa diversidade bastante peculiar no panorama das obras do autor.

Parece, também, no geral, uma «reinvenção» do modelo axial e simétrico

proposto pelo Mercado de Coimbra, aqui «reconstruído» à luz de uma

combinação de elementos racionalistas característicos dos Anos Cinquenta.

13 Veja-se a este respeito 7.1.

Fig.  159  –  António  Varela,    Matadouro  Municipal  da  

Nazaré,  planta,  Nazaré,  1959.  

Fig.  160  –  António  Varela,    Matadouro  Municipal  da  

Nazaré,  cortes,  Nazaré,  1959.  

Fig.  161  –  António  Varela,    Mercado  de  Minde,  Minde,  

planta,  anos  50.  

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Mas se o tema das «abóbadas» parece recriar-se neste novo período,

já a o recurso aos materiais tradicionais surge através do paradigma do

regionalismo crítico que se inaugura neste novo período. O recurso ao

sistema «Cavan»14 como mimetismo da estereotomia da pedra é

abandonado em favor da pedra natural, nomeadamente na composição dos

socos, muros ou fachadas inteiras do edificado. É certo que esta nova

opção define parte da estética de Cinquenta – maioritariamente inaugurada

por Keil do Amaral em numerosos projectos de equipamentos públicos e

não só. Varela «adopta» o novo léxico regionalista, reintegrando-o no

quadro dos seus esquematismos geométricos em torno do círculo e do

quadrado, mas também na procura de soluções geometricamente menos

puristas que parecem revelar outros caminhos da modernidade.

Neste caso, o projecto de ampliação do parque de campismo do

Monte Branco (Nazaré) [fig.163 a 167], revela-se como uma obra em que o

arquitecto terá procurado uma adequação dos materiais naturais à

linguagem moderna. Tal como nos equipamentos do Parque Florestal de

Monsanto desenvolvidos por Keil do Amaral na década anterior, aqui

Varela parece integrar a estética «adaptada»15 pelo colega para parques e

jardins, relacionando a estereotomia semi-regular da pedra escacilhada ou

14 Técnica de betão projectado que reproduz a esterotomia da pedra. Cf.7.1. 15 “A última viagem europeia que [Keil] realizou teve por objectivo alicerçar conhecimentos sobre parques e jardins, através de visitas aos espaços verdes públicos ingleses, alemães e (mais uma vez…) holandeses. Enquanto os parques ingleses se fundavam numa tradição multissecular e num «modo natural» de fazer com profundas raízes culturais e climáticas, difíceis de reproduzir em ambientes diversos, e os alemães testemunhavam uma organização e manutenção difíceis de igualar, o exemplo holandês era o que mais se aproximava do «caso portugês».” In TOSTÕES, Ana, AMARAL, Francisco Pires Keil do, MOITA, Irisalva, [coord. geral], Keil do Amaral: o arquitecto e o humanista, Câmara Municipal de Lisboa / Pelouro da Cultura, Lisboa, 1999, p.61.

Fig.  163  –  António  Varela,    Ampliação  do  parque  de  

campismo  do  Monte  Branco,  

Nazaré,  anos  50.  Planta  geral.  

Fig.  162  –  António  Varela,    Mercado  de  Minde,  Minde,  alçado  frontal,  anos  50.  Note-­‐se  a  «subtracção»  de  uma  abóboda  ao  módulo  central,  por  comparação  

com  o  Mercado  de  Coimbra.  

Fig.  164  –  António  Varela,    Ampliação  do  parque  de  

campismo  do  Monte  Branco,  Nazaré,  anos  50.  Alçado  da  

entrada.  

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bujardada com a plasticidade do betão, numa série de pequenos

equipamentos organizados em torno de um jardim elevado sobre o mar.

Sendo que o parque original se organiza dentro de um pequeno vale

segundo a linha de água que desce a encosta até a cidade da Nazaré, Varela

optou por estabelecer a ampliação no topo do monte16, articulando deste

modo o percurso rodoviário da estrada nacional, à entrada do parque, pela

colina e daí até à entrada da vila, num percurso arborizado intercalado com

pontos de observação sobre a encosta e o oceano.

16 Assinale-se que o nome Monte Branco advinha, inicialmente, do seu carácter árido. Desde a concepção destes equipamentos, há mais de meio século, até à actualidade, regista-se, no entanto, uma acentuada arborização, que oculta, em parte, a relação inicial deste espaço com a vila e com o mar.

Fig.  165  –  António  Varela,    Ampliação  do  parque  de  

campismo  do  Monte  Branco,  Nazaré,  anos  50.  Edifício  da  administração  (foto  de  2009).  Note-­‐se  a  opção  final  da  geometrização  do  vão  ,  com  base  na  quadratura  de  círculos  –  uma  das  «marcas»  de  Varela.  

Fig.  166  –  António  Varela,    Ampliação  do  parque  de  

campismo  do  Monte  Branco,  Nazaré,  anos  50.  Edifício  da  administração:  planta,  

alçados  e  cortes.  

Fig.  167  –  António  Varela,    Ampliação  do  parque  de  

campismo  do  Monte  Branco,  Nazaré,  anos  50.  Balneário:  

planta,  alçados  e  corte.  

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No que respeita às suas últimas colaborações, regista-se ainda deste

período a sua participação no projecto de decoração do Cinema Império

(1947-52), de Cassiano Branco, onde Varela integrou uma equipa de

arquitectos da nova geração, tais como Raúl Chorão Ramalho e Frederico

George17. Sendo o projecto do cinema uma obra essencialmente de

Cassiano, assinala-se a sua intervenção ao nível da decoração,

nomeadamente na execução de revestimentos diversos na sala e em torno

do palco, assim como na concepção dos painéis do «foyer» e da bilheteira,

únicos elementos originais que ainda subsistem [fig.168-169].

A singularidade desta peças, do ponto de vista icónico, testemunham

das concepções abstracto-geométricas típicas do imaginário de Varela, e

também permitem estabelecer analogias com outros casos peculiares no

percurso do autor, nomeadamente o pórtico da Fábrica da A.E.L. de

Matosinhos18, ou o «óculo-vortice»19 da casa da rua de Alcolena, entre

outras referências que parecem indiciar uma interpretação dos arquétipos

da modernidade.

17 Enquanto que o projecto do Café Império é da autoria de Raul Chorão Ramalho, a concepção dos interiores do cinema é da autoria de Frederico George Afigura-se, deste modo, a acção de Varela neste projecto, enquadrada dentro deste último momento de intervenção. 18 Veja-se a este respeito 6.4.2.2. 19 Veja-se a este respeito 7.4.

Fig.  168  –  António  Varela,    decoração  de  interiores  do  cinema  Império.  Aspecto  actual  da  bilheteira  [foto  

de  2008].    

Fig.  169  –  António  Varela,    decoração  de  interiores  do  Cinema  Império.  (pormenor)  

[foto  de  2008].    

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Em suma, o percurso de António Varela é, também, a seu modo,

demonstrativo da «travessia» da primeira geração moderna. Do período

formativo essencialmente alicerçado nos cânones das Belas Artes até às

pesquisas funcionalistas das décadas de Vinte e de Trinta, atravessando o

período de «compromisso» de Quarenta, surge Varela, nos Anos

Cinquenta, já como um «veterano» modernista. E se por um lado parece ter

demonstrado algum interesse às sínteses críticas da nova geração surgida

após o Congresso Nacional de Arquitectura de 1948, também é certo que

por essa altura já era tido como um «resistente», e, de certo modo, um

«não-alinhado». É certo que também terá procurado «reinventar-se» no

paradigma da nova década, através de experimentalismos diversos, onde o

empirismo, as revisões regionalistas da nova crítica da modernidade e as

recentes influências internacionais do pós-guerra parecem ter,

aparentemente, ocupado o lugar da «aventura» do período modernista, em

torno do neopitagorismo e de outras intenções simbólicas herdadas da

«geração do Orpheu». Mas é, apesar de tudo, nesse período final de Trinta

que se pode encontrar uma possível «centralidade» na obra de Varela, onde

a imagem e o «mito» se coaduna com a sua «arte» e a sua «persona».

Paradoxalmente, essa sua «centralidade» situa-se num período de

transição da arquitectura portuguesa, e talvez por isso, caracterize de um

modo mais exacto a figura do arquitecto em torno da reflexão entre

Modernidade e Tradição, num caminho que ficou marcado por uma obra

decisiva, paradigmática e fundamental: a Fábrica da Algarve Exportador

Limitada em Matosinhos.

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TERCEIRA PARTE

O LEGADO DO “INVISÍVEL” UMA INTERPRETAÇÃO DA OBRA DE ANTÓNIO

VARELA

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Fig.  170  –  Lázaro  Lozano,  logótipo  da  empresa  Algarve  Exportador  Limitada,  (anos  30).    

Fig.  171  –  AEL,  fachada  da  secção  de  fabrico,  1938    [foto  de  1999].    

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A FÁBRICA DE MATOSINHOS COMO OBRA FUNDAMENTAL

   

“a  ordem  como  cânone  e  a  máquina  como  metáfora”1  

 

6.1. INTRODUÇÃO

A unidade fabril nº6 da empresa Algarve Exportador Limitada

marcou indubitavelmente o apogeu do modernismo no panorama nacional

da indústria conserveira. Assinala, de igual modo, um momento alto na

carreira de António Varela e pode talvez considerar-se, pelo seu

pioneirismo, como uma das obras mais emblemáticas deste arquitecto. Para

a sua compreensão houve necessidade de estudar a evolução das tipologias

arquitectónicas conserveiras, de modo a devidamente enquadrar a acção de

Varela no espaço e no tempo próprio, e compreender a razão das suas

opções de projecto, face ao programa de uma indústria cujas instalações

eram à época consideradas como obsoletas. Pela sua importância capital,

tanto no percurso do autor, como pela sua exemplaridade e relevância no

panorama histórico da arquitectura industrial portuguesa do século XX,

assim como pela sua complexidade e riqueza interpretativa, este capítulo

divide-se em três partes: 1) o estudo do paradigma oitocentista das

tipologias conserveiras, que designámos por «Contextualização»; 2) a

análise funcional e urbana da unidade de Matosinhos, como momento

histórico inovador, em torno do conceito de «Uso»; e 3) a análise dos seus

mecanismos de composição, em torno do conceito de «Representação»,

como leitura interpretativa e simbólica, com especial relevância para outras

obras do autor2.

José-Augusto França escreveu, em 1974, relativamente à

arquitectura portuguesa dos Anos Trinta e Quarenta, que “(...) esta

arquitectura industrial tivera, em 39, uma raríssima realização de mérito, 1 RODRIGUES, Maria João Madeira, O século XX e a aventura moderna, in Arquitectura, Quimera, Lisboa, 2002, p.88. 2 Veja-se a este respeito o Capítulo 7: Outras obras à luz de uma mesma interpretação.

CAPÍTULO 6

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Fig.  172  –  Tóssain,  ilustração  publicitária  para  a  revista  Conservas,  Algarve  Exportador  Limitada,  (anos  40).    

na fábrica de Conservas de Matosinhos, de António Varela.” (França,

1991, p.249)3

Apesar de serem escassas ou relativamente recentes as referências à

presente obra na temática da arquitectura portuguesa no século XX, a

fábrica de Matosinhos poderá eventualmente ser considerada, no entanto,

como um dos poucos exemplos existentes modernistas no panorama da

indústria nacional, como se pode ainda comprovar pelo que escrevem os

seguintes autores:

Em 1970 Nuno Portas referenciou esta fábrica dentro do

enquadramento de duas obras «notáveis»4 de António Varela: A Fábrica de

Matosinhos e a Farmácia Azevedo e Filhos5, no seu estudo A evolução da

arquitectura moderna em Portugal6.

Também José Manuel Fernandes a esta se refere como “(...) a

notável fábrica de conservas Algarve Exportador, em Matosinhos,

infelizmente demolida [sic]7, cuja rica diversidade de ângulos, em

articulação com o quarteirão, que preenchia totalmente, recorda a solução

da Casa da Moeda.”(Fernandes, 1993, p.121)

3 FRANÇA, J.-A., A Arte em Portugal no século XX (1911-1961), Bertrand Editora, , 3ª edição, Lisboa, 1991, p.249, [1ª ed., 1974]. 4 Segundo terminologia do autor. Cf. nota 4. 5 Esta última em colaboração com Jorge Segurado. Veja-se a este respeito 4.3.: A construção de um «espírito moderno» e a parceria com Jorge Segurado. 6 PORTAS, Nuno, A evolução da arquitectura moderna em Portugal in ZEVI, Bruno, História da Arquitectura Moderna, 2° vol., Lisboa, ed. Arcádia, 1970, tábua 107. 7 FERNANDES, José Manuel, Arquitectura modernista em Portugal, Gradiva, 1993, p.121. Ao contrário do que indica José Manuel Fernandes, convém rectificar que a fábrica não foi demolida. Tendo cessado de laborar em 1979 e votada ao abandono pelos seus últimos administradores no seguimento de um conturbado processo de falência, degradou-se ao longo das duas últimas décadas, tendo-se ainda registado dois incêndios pelo meio, encontrando-se actualmente em estado de ruína. Saliente-se que em 1988 a Câmara Municipal de Matosinhos solicitou a sua classificação como Imóvel de Interesse Concelhio (cf. Arquivo de documentação do Gabinete Municipal de Arqueologia e História da Câmara Municipal de Matosinhos). Rectifique-se igualmente que a fábrica não representa a totalidade do quarteirão e embora ocupe a sua maior parte, é confinante com a fábrica de conservas Rainha do Sado (também em estado de ruína) completando o mesmo, a sul. Do ponto de vista do desenho da fachada da secção de fabrico, pode notar-se que a fábrica de Matosinhos de Varela integra uma característica própria do estilo «Art Déco», pelo escalonamento dos frontões da secção de fabrico, também denominada à época, de «Estilo Atlante». Esta situação também foi apontada por José Manuel Fernandes: “Os elementos construtivos, com forma piramidal ou em denteado escalonado, foram outra «obsessão» deste estilo, em tudo ansioso por resolver o que antes se exprimia em linhas oblíquas ou curvas [entenda-se: o estilo «Arte Nova»]. A chamada «fachada-frontão», com uma forte cimalha «em escada», foi talvez a consubstanciação mais total deste gosto: em equipamentos de pequena dimensão (...) ou em armazéns e fábricas (em Matosinhos, as frentes da antiga Algarve Exportador, por António Varela, Praça Passos Manuel, n° 216).” Idem, ibidem, p.58.

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Fig.  173  –  Tóssain,  ilustração  publicitária  para  a  revista  Conservas,  Algarve  Exportador  Limitada,  [anos  40].    

Para além de António Varela, os arquitectos e os outros artistas

plásticos que levaram a cabo a presente obra, assim como a sua iconografia

e publicidade, pertencem a essa mesma geração de artistas da vanguarda

portuguesa que interpretaram a modernidade: António Varela, Lino

António, Lázaro Lozano [fig.170], Tóssain [fig.172-173] e João da Câmara

Leme, participaram, em momentos diversos, a vários níveis e em diferentes

áreas, no empreendimento da Algarve Exportador Limitada,

compartilhando o idealismo de seu fundador, Agostinho Fernandes8.

É possível considerar a fábrica de Matosinhos da Algarve

Exportador como um exemplo paradigmático da arquitectura industrial dos

anos trinta, sendo o mais significativo conjunto fabril do ramo da indústria

conserveira e um exemplo paradigmático num programa moderno que

teve pouca difusão neste período e no espaço português: a «arquitectura

das fábricas». Foi neste sentido que se abordou esta obra como um marco

importante, quando se sabe estarem sujeitos espaços de memória como este

a um eventual desaparecimento.

Segundo António Quadros, “uma arquitectura circunstancializada,

uma arquitectura nacionalizada, uma arquitectura existencializada, não tem

necessariamente que recorrer às formas e aos símbolos dos monumentos do

passado ou das construções regionais. Nacionalismo artístico não equivale

a passadismo” (Quadros, 1954)9. Por outro lado, e numa perspectiva

integracionista, Fernando Távora observa que “A individualidade não

desaparece com o fumo e se nós a possuirmos nada perderemos em estudar

a arquitectura estrangeira, caso contrário será inútil ter a pretensão de falar

em arquitectura portuguesa.” (Távora, 1947)10. Tendo presentes estas

ideias, procuraram-se estabelecer algumas considerações entre os

fundamentos do espaço moderno industrial, a arquitectura portuguesa e a

fábrica da Algarve Exportador em Matosinhos.

8 Agostinho Fernandes, o mesmo que fora patrono de António Varela e José de Almada Negreiros (v. supra, Cap.3.2: Leiria e a Escola do Porto, e infra, Cap.7.3: A casa de férias de Agostinho Fernandes (1938-42): uma aproximação mediterrânica à modernidade portuguesa). 9 QUADROS, António, Introdução a uma estética existencial, Lisboa, 1954. 10 TÁVORA, Fernando, O problema da casa Portuguesa, Lisboa, 1947.

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Como se pôde observar anteriormente, o estabelecimento dos

princípios modernos indica claramente a necessidade, para a época, de

criar uma nova ordem para um novo mundo: o mundo da máquina, no qual

o Homem deveria ser o principal beneficiário e não o escravo

condicionado. Dentro do mesmo espírito e a partir dos Anos Trinta, a

própria vanguarda europeia também incorpora as ideias da vanguarda

russa, e vêem-se as fábricas construtivistas como as novas catedrais de um

«admirável mundo novo». Em termos gerais, relembramos que o

desenvolvimento teórico e a produção que evoluia na Europa, inicialmente

no gabinete de Behrens, mais tarde na Bauhaus de Gropius, mas também

de Mendelsohn, de Mies van der Rohe e Le Corbusier, na vanguarda do

construtivismo russo, de Vladimir Tatlin às utopias de Chernikov,

Rotchenko, assim como nos Estados Unidos, com a Albert Kahn

Incorporated («Speed is the password for designing», era o seu lema…),

tudo isto, ou quase tudo, passava ao lado do «status quo» da arquitectura

industrial portuguesa, que se acomodava, num marasmo profundamente

marcado pela estagnação dos desgastados paradigmas oitocentistas. No

entanto, face a esse mesmo «impasse», considera-se, actualmente, graças a

um maior distanciamento histórico, a caracterização dos primeiros

vestígios de modernidade em Portugal através do esforço de uma primeira

geração, “geração de compromisso que não de manifesto” (DOCOMOMO,

1998, p.14)11.

11 Nas palavras de Manuel Mendes, trata-se de uma geração que “(...) produz obras delicadas na prospecção útil das novas convenções da invenção formal, no domínio vocabular da linguagem do moderno (mais de aceno que sintáctico)”, caracterizando-a como “(...) Acontecimento efémero. A passagem da tradição do novo sugere exercício de adaptação mais do que aceleração, espécie de estação estruturalmente inconclusa. Porque alcançada à força de braço, lanço a lanço, aproximação que sugere esforço musclado mais que impacto poético. Na transitoriedade ou na impossibilidade local para a interpretação prospectiva do paradigma formal da modernidade, – o edifício autónomo de arquitectura racionalista, o objecto – o sentido propositivo desta geração cedo evolui para a criação de um estilo português de arquitectura moderna pela investigação diletante do que considera permanências da tradição arquitectónica portuguesa ou valores da cultura nacional.” In MENDES, Manuel, Nós - uma modernidade de fronteira – nós para uma passagem inconclusa, in Arquítectura do Movimento Moderno – 1925-1965, Inventário do Docomomo Ibérico, edição do Docomomo Ibérico / Fundação Mies Van der Rohe / Associação dos Arquitectos Portugueses, 1998, pp.14 -16.

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Fig.  174  –  cartaz  da  exposição  Arqueologia  Industrial  /  

Indústria  conserveira,  Câmara  Municipal  de  Matosinhos,  1989.    

Avançando para além dos modelos dos edifícios industriais

conserveiros projectados na época, o caso da Fábrica de Matosinhos da

Algarve Exportador, constituindo grande parte de um quarteirão

homogéneo, apresenta a particularidade de adaptação de uma linguagem

formal moderna ao velho sistema secular das indústrias de conservas de

peixe. Não se tratava, neste caso, de conceber um edifício industrial a

partir de novas indústrias emergentes, mas de reformular radicalmente o

velho modelo da unidade fabril de conservas de peixe, largamente utilizado

nas décadas anteriores, numa nova proposta que respondesse não só a

todos os factores de produção (armazenamento, evisceração, cozedura,

enlatação, azeitamento, cravação e distribuição), mas que também pudesse

responder a novos níveis de salubridade e de bem estar dos trabalhadores

num ambiente adequado.

A obra foi divulgada numa revista especializada da época e

aplaudida com grande entusiasmo por diversas entidades12. O resultado,

ainda hoje, é um exemplo paradigmático do funcionalismo moderno

[fig.174] aliado a uma imagem marcadamente forte de organização e

produtividade industrial, mas onde se permite “individualizar esse

substancial desejo de renovação” (DOCOMOMO, 1998, p.14)13, sem no

entanto esquecer a sua contextualização nesse “estilo português de

arquitectura moderna” (id., ibid., p.16)14, no quadro de uma “investigação

das permanências da tradição arquitectónica portuguesa ou valores da

cultura nacional” (id., ibid., p.16).

12 Cf. Arquitectura Portuguesa e Cerâmica / Reunidas, n° 40, 3° série, Julho de 1938. 13 SEDLMAYR, Hans Verlust der Mitte, segundo PIZZA, António A arquitectura da fábricas como Zeitstil da modernidade, Cap. 5 – Comércio e Indústria, in Arquitectura do Movimento Moderno 1925-1965 – Inventário do Docomomo Ibérico, edição do Docomomo Ibérico / Fundação Mies Van der Rohe / Associação dos Arquitectos Portugueses, p.14. 14 MENDES, Manuel, Nós – uma modernidade de fronteira – nós para uma passagem inconclusa, in Arquítectura do Movimento Moderno – 1925-1965, Inventário do Docomomo Ibérico, edição do Docomomo Ibérico / Fundação Mies Van der Rohe / Associação dos Arquitectos Portugueses, 1998. p.16.

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6.2. CONTEXTUALIZAÇÃO – O PARADIGMA OITOCENTISTA DAS

FÁBRICAS CONSERVEIRAS: A PRIMEIRA GERAÇÃO

Em termos de funcionamento, as edificações do período conserveiro

que antecederam ao período moderno em Portugal remontam, em parte, a

um modelo com práticas milenares, em que o interior era concebido como

um espaço que pudesse integrar as diversas etapas de tratamento do

pescado15. Segundo Jorge Custódio16, a arquitectura da indústria

15 A importância da indústria conserveira romana encontra-se bem atestada pela presença de numerosos vestígios de oficinas ou fábricas pelo litoral português. As cetárias romanas são conhecidas um pouco por toda a bacia mediterrânica e só em Portugal conhecem-se mais de quarenta estações arqueológicas deste tipo. A este número podem acrescentar-se largas dezenas de fábricas existentes nas vizinhas regiões da costa atlântica marroquina, mauritânia, na costa meridional espanhola, assim como na costa norte (golfo da Biscaia). A investigação sobre a localização de cetárias romanas em Portugal não é abundante, exceptuando o caso de Tróia, sendo este o maior complexo industrial conserveiro algumas vezes encontrado em território português. A arquitectura conserveira romana encontra-se bem estudada através da observação de dois casos bem preservados: Cotta, na costa da Mauritânia, e Bello, em Cádiz, assim como em algumas estações do estuário do Sado. Com base nos estudos de alguns autores, estabelece-se uma possível descrição deste modelo de estabelecimentos industriais: “Consistiam geralmente em construções regulares, localizadas perto da margem, apresentando alguns cuidados construtivos (opus pseusidomun com revestimento de opus signinum). Em muitos dos casos podemos afirmar que todos os detalhes da construção dão a ideia de um trabalho bem concluído e concebido para ser durável. A área de salmoura, propriamente dita, localizava-se na parte central do edifício. Era em volta deste conjunto de tanques que giraria toda a actividade da oficina. Oficina que possuía, ainda, o impluvium que recolhia as águas da chuva, um reservatório enterrado ou cisterna, um edifício de aquecimento (necessário para o aquecimento da água quando se pretendia acelerar o processo de produção), e armazéns. Os tanques, agrupados no pátio interior da fábrica, eram regra geral de construção cuidada e resistente, de boa alvenaria e revestimento em opus signinum liso, espesso e de grande homogeneidade. Completamente impermeáveis, esses tanques, ou tinas, não tinham esgoto, mas apresentam na maioria dos casos uma ligeira depressão no fundo de um dos lados, prevista para a limpeza. De formas rectangulares e quadrangulares, de arestas arredondadas, estes tanques possuem dimensões diversas de comprimento e largura, por vezes dentro da mesma oficina. Também as dimensões de profundidade são variáveis, embora geralmente possuam mais de um metro, atingindo mesmo, por vezes, alturas superiores a dois metros (é o caso de alguns tanques de Tróia, Grândola). Surgem contudo, junto destas profundas tinas, outras mais pequenas destinadas, provavelmente, não tanto à salmoura mas antes à recuperação dos resíduos e entranhas dos peixes (...). Estes tanques, apesar de se localizarem em pátios, encontrar-se-iam abrigados por uma cobertura que os protegiam da chuva e eventualmente do sol. No caso de Tróia, onde foram encontradas telhas no enchimento das salgadeiras, os grupos de tanques, delimitados por muros, apresentam vestígios de pilares de secção transversal quadrangular que suportariam a cobertura.” In CLETO, Joel, A indústria de Conserva de Peixe no Portugal Romano – O Caso de Angeiras (Lavra, Matosinhos), in Matesinus n° 112 – 1995/6, p.26, com base no estudo de Ponsich para o caso de Bello. No que respeita ainda ao funcionamento destas oficinas refira-se o mesmo estudo interpretativo para o caso de Bello, segundo PONSICH, Michel, À propos d'une usine antique de salaisons à Bello, in Mélanges de la Casa de Velasquez, 1976, pp.75-77. Como na maioria dos casos, a fábrica encontra-se instalada paralelamente à costa, a uma cota que a coloca ao abrigo das marés atlânticas. Pensa-se que a ausência de portas nos seus acessos confirmaria um aprovisionamento directo a partir da praia. Veja-se BERNARDO, Hernâni de Barros, A localização da Indústria Conserveira – Alguns problemas geográficos, in Indústria Portuguesa, Ano 19, n°224, Outubro de 1946, p.26. Convém ainda realçar o trabalho fundamental de Jonathan C. Edmonson, Two Industries in Roman Lusitania: mining and garum production, BAR International Serie, p.362, Oxford, 1987 e alguns acrescentos à mesma obra, por ALARCÃO, Jorge de, Recenções (a Edmonson, 1987), Conímbriga, nº28, Coimbra, pp.236-243, assim como outros contributos para o estudo das regiões romanas coincidentes com o actual território português, in CENTENO, Rui, A Dominação Romana, in História de Portugal [dir. José Hermano Saraiva], Vol.1, Lisboa, 1984, Alfa, pp. 149-211, CLETO,

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conserveira portuguesa pode definir-se entre dois períodos: 1) um período

inicial, com uma arquitectura «feita por engenheiros», segundo modelos

importados para esta indústria emergente; e 2) um segundo período, de

uma arquitectura «feita por arquitectos», influenciada pelo Movimento

Moderno, recorrendo a tentativas de estruturação de um modelo próprio.

O estabelecimento desta síntese em dois períodos históricos anuncia

uma ordem e permite-nos compreender a evolução desta arquitectura de

carácter industrial. Deste modo, tendo presente que a fábrica de

Matosinhos da AEL se enquadra no segundo período, seria no entanto

importante observar o primeiro, que decorre da conjuntura da revolução

industrial portuguesa de oitocentos. Este recuo no tempo também permite

uma visão do «estado da arte» à época, e uma contextualização da resposta

de Varela na sua acção inovadora.

Joel, e SANTOS, Vítor, Novos tanques romanos descobertos na Praia de Angeiras, [artigo] in O Tripeiro, 7a série, vol. X (5), Porto, 1991, pp. 161-165, BARATA, Clara, Tanques de Salga (...) descobertos em Cascais, [artigo] in Público Local Porto, 3 de Novembro de 1992, p.58, FERREIRA, Octávio da Veiga, Algumas considerações sobre as fábricas de conservas de peixe na antiguidade encontradas em Portugal, [artigo], arquivo de Beja, n° 23-24, Beja, 1967, pp. 123-134, SANTOS, Maria Luísa Estácio da Veiga A., Arqueologia Romana no Algarve, dissertação para a licenciatura em Ciências Históricas apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa, Vol. 1., Lisboa, 1971. Pouco se sabe sobre estas explorações no território português, sendo da opinião geral que muito ainda haverá por fazer, particularmente na região do Algarve. No entanto, ressalvam-se os casos do Tejo e do Sado como referências comuns na bibliografia especializada: “De facto, a imponência das ruínas de Tróia, por um lado, e as diversas intervenções na arqueologia urbana, por outro, têm vindo a lançar alguma luz nos nossos conhecimentos. (...) [Tróia] é, sem dúvida, o maior complexo industrial conserveiro romano em território português depois de Bello (Cadiz), em toda a Península Ibérica. De resto, será mesmo um dos maiores centros produtores da antiguidade romana.” [CLETO, p. 28]; a este respeito o autor reporta-se à obra de André de Resende, De Antiquitibus Lusitaniae, a às primeiras investigações arqueológicas feitas por Carlos Ribeiro no século XIX, assim como a escavações que datam do início do século XX, dirigidas por Inácio Marques da Costa: “A este investigador se ficam a dever muitas informações a testemunhos entretanto desaparecidos. Nos anos 30, por exemplo, este arqueólogo ainda observou e descreveu uma fiada de casas de dois pisos e reproduziu os desenhos dos frescos que lhes adornavam as paredes e os tectos.” [Idem, ibidem, p.28]. Veja-se ainda a respeito das tipologias e funcionamento das cetárias, Michel PONSICH e TARRADEL, Miguel, Garum et Industries Antiques de Salaison dans la Mediterranée Occidentale, Paris, 1965, PUF, pp. 9-37, COSTA, A.. I. Marques da, Estudos sobre algumas estações da época luso-romana nos arredores de Setúbal III, in O Arqueólogo Português, Vol. XXVII, Lisboa, 1929, Museu Etnológico Português, pp.165-181 e ainda TAVARES, Carlos e SILVA, Joaquina Soares da, Arqueologia da Arrábida, col. Parques Naturais n°15, Lisboa, 1986. 16 Segundo Jorge Custódio, esta imagem parece veicular a ideia de um primeiro período caracterizado por uma edificação pragmática e empírica, por vezes adaptada ao local mas essencialmente reproduzindo modelos construtivos segundo os raros desenhos técnicos à época (veja-se o caso do modelo de Opperman, essencialmente vulgarizado a partir de cópias de plantas) –, por oposição a um segundo período (anos Trinta) correspondente a uma outra maturação e já com bases teóricas de cariz funcionalista, com uma intervenção dos arquitectos no processo de concepção em série e em cadeia, e um outro nível de cuidado no partido estético e de integração do edifício fabril em termos urbanísticos e arquitectónicos.

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243

Interessa, portanto, compreender de que modo cada um destes

períodos se organizou e como se estruturou a sua evolução, desde o

período da década de 188017 até à época de implantação da fábrica de

Matosinhos (1939) (como modelo exemplar deste segundo período).

Considerámos, para o efeito, como primeiro período, o surgimento das

primeiras instalações da década de 1880 até ao «boom» de novecentos, e

daí em diante em grande proliferação até à década de 1930; já o segundo

período corresponde à fase moderna, dos anos 1930 até 1950.

17 Conviria ainda referir os antecedentes históricos que precederam esta fase: antes do aparecimento das modernas fábricas de conservas de peixe já esta actividade se exercia com base nos denominados armazéns de salga que remontam à Antiguidade Clássica. Será preciso não esquecer que esta indústria se encontrou estreitamente ligada a esta actividade que já existia desde os períodos mais remotos no território português: será necessário referir, como é evidente, que para além da matéria-prima (o pescado), também o sal, tratado nas salinas, foi outra matéria-prima indispensável que contribuiu para o desenvolvimento deste tipo de indústria: “Os estabelecimentos ou fábricas de salga de peixe são na sua forma mais comum, um conjunto de pequenos tanques contíguos, quadrados ou rectangulares, de dimensões varáveis, em geral construídos nas praias, sobre os rochedos, mas sempre vizinhos ao mar. Interiormente são revestidos de cimento romano [opus signinum] e têm os ângulos rebatidos e reforçados por caneluras convexas que correm a toda à volta do fundo. Muitos deles apresentam no seu solo uma cavidade circular ou «concha», para facilitar o escoamento do produto e de sua limpeza. Muitos deles apresentam no seu solo uma cavidade circular ou «concha», para facilitar o escoamento do produto e de sua limpeza." in SANTOS, Maria Luísa Estácio da Veiga A, Arqueologia Romana no Algarve, dissertação para a licenciatura em Ciências históricas apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa, Vol.1., Lisboa, 1971, p.62. Recorde-se que este modelo, apesar de apresentar uma evidente analogia com as antigas cetárias romanas, decorre igualmente da importação para Portugal, durante o século XIX, da indústria de salga tradicional existente em Itália, assim como na Grécia, que entretanto também evoluiu a partir do mesmo modelo paradigmático romano. Idem, ibidem, p.62. No que respeita a tipologia dos armazéns de salga, observa-se uma disposição do espaço que não parece diferenciar-se muito do modelo das antigas cetárias registadas arqueologicamente um pouco por todo o litoral: estes consistem, sinteticamente e no que respeita ao seu funcionamento, numa delimitação de espaço, entre uma área de limpeza do pescado, uma área de salga e uma área de armazenamento, debaixo de um telheiro de madeira, suportado por paredes de argamassa, e um embasamento em alvenaria de pedra: “Os estabelecimentos ou fábricas de salga de peixe são na sua forma mais comum, um conjunto de pequenos tanques contíguos, quadrados ou rectangulares, de dimensões varáveis, em geral construídos nas praias, sobre os rochedos, mas sempre vizinhos ao mar. Interiormente são revestidos de cimento romano «opus signinum» e têm os ângulos rebatidos e reforçados por caneluras convexas que correm a toda à volta do fundo. Muitos deles apresentam no seu solo uma cavidade circular ou «concha», para facilitar o escoamento do produto e de sua limpeza.” Idem, ibidem, p.62. Convém referir que este modelo, apesar de apresentar uma evidente analogia com as antigas cetárias romanas, decorre igualmente da importação para Portugal, durante o século XIX, da indústria de salga tradicional existente na Itália, assim como na Grécia, que entretanto também evoluiu a partir do mesmo modelo paradigmático romano.

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6.2.1. A primeira fase (1880-1930)

É por volta das últimas décadas do século XIX que se pode

considerar, em termos cronológicos, a implementação das primeiras

fábricas de conservas de peixe em Portugal. A escassez de sardinha que

nessa época se verificou nas costas da Bretanha, onde se concentrava

grande parte da indústria francesa de conservas de peixe, levou os

industriais da região a procurarem outras paragens para aquela indústria.

Terá sido esta uma das razões principais para a implantação de fábricas

estrangeiras em Portugal.

Observam-se registos de finais de oitocentos e princípios de

novecentos, de uma primeira fase de domínio desta indústria, em Portugal,

por parte de gregos e italianos, que trouxeram esta indústria para portos

pesqueiros onde abundavam o atum, o biqueirão e outras espécies, e

principalmente no sul do país18. É a partir deste período que se começa a

enlatar o pescado, sendo o fabrico da lata assegurado por uma unidade de

solda em anexo ou por compra dos componentes da lata a terceiros: nesta

situação podem indicar-se os casos exemplares da fábrica de Hubert de

Ouizille (Setúbal, 1880) assim como da fábrica de conservas de atum em

lata S. Francisco de Francisco Rodrigues Tenório (Vila Real de Santo

António, 1880).

Por outro lado, o fabrico de conservas de peixe em lata surge

integrado, como processo de conservação inovador, nas grandes unidades

francesas que fabricavam todo o tipo de conservas pelo método de

Appert19 (como os usualmente designados «boiões» estanques).

18 Veja-se a este respeito os casos de Lagos, Olhão, Vila Real de Santo António, assim como do outro lado da fronteira, no litoral costeiro espanhol [casos de Ayamonte e Cádiz]. Refira-se que nos respectivos espaços portuários destas cidades surgem, por vezes, em documentação antiga, alguns nomes de industriais italianos ou gregos, como proprietários de fábricas de conservas em sal, como nos foi possível observar in situ. 19 “Na modesta fábrica de Massy, elaborando as primeiras conservas esterilizadas de carnes e legumes muito antes de Pasteur ter formulado a justificação científica do processo, Appert desvendou a rota de uma grande indústria moderna em que Portugal pôde tomar posição relevante, graças aos seus vastos recursos piscatórios.” BERNARDO, Hernâni de Barros, Breve História da Indústria de Conservas de Peixe em Portugal, [artigo], in Indústria Portuguesa, Ano 25, n°289, Março de 1952, p.75. Convém referir que, entretanto, na Noruega, assim como nos Estados Unidos,

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Com estas primeiras fábricas também chega um grande número de

operários, assim como as novas tecnologias de conservação. No entanto,

não é certo que tenham sido estas fábricas estrangeiras as primeiras a trazer

o processo de enlatamento para o país, pois, segundo Sebastião Ramires, já

funcionava em Peniche, em 1864, uma pequena fábrica de conservas de

“sardinha em latas”20. Embora não seja de relevo para o presente estudo a

determinação da primeira fábrica, importará antes assinalar essa década de

1880 como o início do ciclo de desenvolvimento deste tipo de indústria

através da construção das primeiras fábricas, num Portugal que despontava

tardiamente para a «sua» revolução industrial. Convém acrescentar que não

foi apenas por iniciativa de empresas ou de empresários estrangeiros que a

indústria de conservas em lata se desenvolveu no país. Noutras localidades

do território, Figueira da Foz, Aveiro, Porto ou Olhão, vão surgindo

empresas nacionais que começam lentamente a desenvolver-se por

iniciativa de industriais portugueses21.

principalmente no estado do Maine, começam a desenvolver-se outras indústrias situadas na vanguarda dos aperfeiçoamentos fabris, tornando possível a multiplicação de iniciativas produtoras que, desde cedo, recolhem um fulgurante êxito. Contudo, a França, apesar da nova concorrência, continuou a manter-se na dianteira, beneficiando do que Appert lhe assegurara no princípio do século: “Em 1880 estavam em actividade nesse país cerca de 200 fábricas de conserva de peixe e dela irradiavam para outros, entre os quais Portugal, as iniciativas produtoras nesse ramo, trazendo à economia alimentar desses povos mais adiantados possibilidades que até então se ignoravam.” Idem, ibidem, p.75. Por outro lado, sabe-se que em 1865 já existia em Vila Real de Santo António uma fábrica de conservas de atum em azeite e que em 1879 desenvolvia ali valiosas actividades a fábrica Santa Maria, da firma Parodi e Roldan. Em 1880 foi fundada a fábrica São Francisco, de Francisco Rodrigues Tenório, que alcançou rapidamente grande prestígio pela alta qualidade do atum em lata que fornecia aos mercados internos e externos. Por seu lado, Hubert de Ouizille fala de um industrial francês, de nome Delory, que terá aportado em Setúbal, em 1880. Com base neste testemunho é possível considerar ter sido esta a primeira fábrica de conservas de sardinha a ser fundada em Portugal, seguida pela iniciativa de outros empresários franceses que fugiam da recessão dos cardumes das suas costas atlânticas. Veja-se a este respeito CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial”, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.26. 20 Veja-se a este respeito RAMIRES, Sebastião, Indústrias Portuguesas in Feiras de Amostras nas Colónias Portuguesas, Lisboa, 1923, in BERNARDO, Barros, Indústria Portuguesa, n° 224, 1946, p.74. Também se pode confirmar, segundo Barros Bernardo, pelas estatísticas industriais do distrito de Leiria. Cf. idem, ibidem, p.74 21 Em 1864, Peniche: notícias de uma pequena fábrica de conservas de “sardinhas em lata”; em 1865, Vila Real de Santo António: fábrica de conservas de “atum em azeite em lata”; em 1879, Vila Real de Santo António: fábrica de conservas Santa Maria, da firma Parodi e Roldan; em 1880, Vila Real de Santo António: fábrica de conservas de atum em lata S. Francisco, de Francisco Rodrigues Tenório; em 1880, Setúbal: fábrica de conservas “de sardinha em azeite, por iniciativa de um industrial francês”; em 1880, Espinho: fábrica de conservas de peixe em sal, da empresa Santos, Cirne & C. in idem, ibidem, p.74

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Com base num apontamento de Hernâni de Barros Bernardo, poder-

se-á sintetizar em seis períodos toda a evolução desta indústria no território

de Portugal22: 1) um ciclo de salga, abrangendo o período luso-romano e

que predominou até ao séc. XV; 2) um ciclo de fumagem, que predominou

nos séc. XVI e XVII, do qual, segundo o autor, não se encontram quase

nenhuns vestígios; 3) um ciclo de molhos e de prensagem, mal definido,

cuja existência pode ser atestada após o séc. XVI; 4) um ciclo de conservas

em azeite, óleos, ou molhos, já mais definido no séc. XIX e que persiste no

século XX; 5) Um ciclo de conservas enlatadas, de variadas espécies, que

principiou na segunda metade do séc. XIX e que atingiu o seu apogeu nas

grandes indústrias da primeira metade do séc. XX; 6) um ciclo de

congelação, a partir da segunda parte do séc. XX23.

É especificamente com base no quinto ciclo, relativo à indústria de

conservas de peixe em lata, que este estudo se delimita. Situando a fábrica

nº 6 da firma Algarve Exportador Lda no seu tempo histórico, poderemos

considerar este exemplo como marcante do princípio do fim do período

áureo da indústria de conservas de peixe em Portugal.

22 Esta estrutura foi elaborada com base no apontamento de BERNARDO, Barros, Indústria Portuguesa, n° 224, 1946, p.74. 23 Este sexto período de congelação, enunciado pelo mesmo autor, refere-se à transição da conservação provisória do pescado pelo sal (método tradicional), para uma fase de armazenamento frigorífico do produto. Esta medida, entre muitas outras com as quais se começa seriamente a confrontar esta indústria a partir dos anos sessenta, não foi suficiente para fazer sobreviver de forma satisfatória a indústria de conservas em Portugal, pelo que nos reportamos a um estudo efectuado em 1967-68, sobre a viabilidade da empresa Algarve Exportador Lda face ao novo mercado, à época, emergente, e onde se enumeram as medidas necessárias para a sobrevivência desta indústria nacional para os anos vindouros, sendo uma dos quais a necessidade urgente da criação de uma «rede nacional de frio», que permitisse armazenar o pescado, transformando uma indústria que era tradicionalmente sazonal e sujeita às irregularidades da faina numa indústria activa durante todo o ano. Seria esta, entre outras, uma das iniciativas que poderiam renovar as conserveiras portuguesas, e lhes permitissem competir com os novos mercados estrangeiros, que começaram a competir directamente com a indústria nacional logo a seguir à Segunda Guerra Mundial. Veja-se ainda a este respeito CERQUEIRA, Nuno Nazareth Fernandes de, A viabilidade de uma empresa, Instituto Superior Técnico, Lisboa, 1968, e CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, pp. 49-51.

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Fig.  175  –  Real  Fábrica  de  Conservas  de  Matosinhos  Lopes,  

Coelho  Dias  &  Cª  Lda.  

   

6.2.2. O modelo adaptado do sector agrícola industrializado24

Para além da indústria de salga, surgem nas últimas décadas do

século XIX algumas unidades fabris que integravam os mais variados

processos de fabrico e produção de conservas de todo o tipo25.

O facto do processo de enlatamento surgir no contexto destas

fábricas com produção variada, também se pode explicar pelo acentuado

poder económico que estas primeiras empresas detinham, surgindo

isoladamente como autênticos colossos industriais, tendo sido estas as

primeiras beneficiárias de novas tecnologias importadas do estrangeiro,

coisa que as pequenas empresas de iniciativa privada ainda não possuíam,

o que comprova que o fabrico de conservas em lata surge numa primeira

fase integrado nas unidades de fabrico de conservas de todo o tipo, e

demonstra que ainda não existia um edifício especializado na produção

exclusiva de conservas de peixe em lata.

Um dos exemplos mais significativos destas primeiras unidades foi

uma fábrica de conservas de peixe em sal em Espinho, da empresa Santos

Cirne e C.ª, com sede no Porto. Esta empresa possuía uma outra fábrica,

denominada a Luso-Brasileira, a qual se dedicava a preparação de

conservas de fruta e azeitonas26. Assim, no que respeita à região norte,

Espinho constituiu-se desta forma como o primeiro centro conserveiro,

embora não especializado. Será também neste local que, em 1894, graças à

aplicação de capitais de origem brasileira, se irá implantar a primeira

fábrica da empresa Brandão Gomes & C.a. Esta fábrica obtém, um ano

mais tarde, o alvará de fornecedora da Casa Real e em 1899 a mesma

empresa abre uma outra unidade em Matosinhos. Também a Lopes, Coelho

Dias & C. [fig.175] é inaugurada em Matosinhos em 1900. Segundo José

24 Segundo terminologia utilizada por José Salgado, citado por CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989. 25 Esta fase inicial ainda não corresponde ao modelo mais divulgado da fábrica de conservas de peixe, no sentido em que não existia uma produção limitada à conserva de peixe em lata, sendo que estas primeiras fábricas produziam uma grande gama de conservas, desde as conservas de carne a uma enorme diversidade de conservas de vegetais, para além de variedades de peixes, produzindo-se também molhos variados, «picles», comercializando também azeite e vinagre. 26 CORDEIRO, ibidem, p.26.

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Lopes Cordeiro, esta duas empresas irão beneficiar, na época, da

inexistência de concorrência na região norte, “(...) transformando-se muito

rapidamente em autênticos colossos industriais” (Cordeiro, 1989, p.26)27.

Segundo várias descrições, todo este conjunto de actividades com

funcionamentos diversos, assim como o seu aspecto formal, mais lhes

conferia o aspecto de granjas agrícolas [fig.175].

Segundo alguns autores, estas primeiras fábricas de conservas de

peixe foram construídas com base nos modelos adaptados do sector

agrícola. Na verdade, seriam soluções fortemente inspiradas nas primeiras

explorações agrícolas industrializadas, com um acentuado contraste entre o

interior e o exterior, como descreve José Salgado28.

Estas primeiras fábricas conserveiras não eram muito diferentes de

outras unidades industriais oriundas de outros ramos emergentes: podemos

citar, como exemplo, a Companhia Vinícola Portuguesa, instalada na zona

sul de Matosinhos, em 1899, enorme complexo industrial com 11.000

metros quadrados de área, em relação ao qual Joaquim Leitão

escreveu:“(...) não é um traçado de arquitectos (...), é um enorme plano de

batalha, com toda a estratégia que a suprema e invencível divisão do

trabalho contém”(Id., ibid., p.20)29.

27 Idem, ibidem: o autor refere ainda que estas duas fábricas "[...] constituíam sem dúvida duas das mais importantes unidades industriais daquele sector, facilmente testemunhado pela capacidade, qualidade a diversidade de sua produção, organização empresarial e apetrechamento tecnológico, a ainda, pela sumptuosidade de das suas instalações fabris". Esta "sumptuosidade", nos termos expostos pelo próprio, remete para a questão da "monumentalidade” com que se revestia a arquitectura desta primeira geração de fábricas. Este carácter "monumental" será mais tarde um dos principais temas de debate do Movimento Moderno, numa procura dos sintomas da “velha arquitectura”, debilitada e desfasada em relação aos programas industriais. Cordeiro, ibidem, p.26. Veja-se ainda a este respeito GIEDION, Siegfried, Space, Time & Architecture: the growth of a new tradition, 1941 – Harvard University Press, 5th edition, 2003, e Mechanization Takes Command: a contribution to anonymous history, Oxford University Press, 1948. 28 Segundo José Salgado: “(...) uma solução fortemente inspirada nos modelos das primeiras explorações agrícolas industrializadas, com um acentuado contraste entre o exterior e o interior.” In CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.20. Este último relembra ainda que esta fábrica, instalada na zona sul de Matosinhos, “(…) foi a primeira unidade industrial a ocupar aquela zona constituindo um foco de atracção para futuras indústrias.” in LEITÃO, Joaquim, Guia ilustrado da Foz, Matosinhos, Leça e Lavadores, Livraria Magalhães & Moniz Editora, Porto, 1907, p.20, in CORDEIRO, ibidem, p.26. 29 Segundo José Salgado, citado por CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.20.

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Fig.  176  –  Gravura  da  filial  de  Matosinhos  da  conserveira  Brandão  Gomes.  

 

   

Ainda segundo a opinião de José Salgado, acentuando o carácter

fortemente diferenciado entre o aspecto exterior da fábrica e o seu interior,

comenta:

“(…) grandes cobertos em telha apoiados em pilares e travejamentos em madeira, as altas paredes em pedra, a clara distinção entre os corpos a que correspondiam diferentes funções, tudo sugere uma granja: só que aqui, celeiros, adegas, lagares, etc., estão concentrados, criando um volume compacto que não unitário. A finalidade do edifício talvez seja um elemento decisivo para interpretar esta forma, já que estas instalações não eram fábrica no sentido restrito do termo: funcionavam mais como armazéns onde se procedia à análise química laboratorial, à rotulagem, embalagem e expedição de um produto natural que não era ali totalmente transformado.” (Cordeiro, 1989, p.21)30.

Esta descrição refere-se à Companhia Vinícola, em Matosinhos, mas

poderia ser facilmente adscrita à primeira geração das indústrias

conserveiras, como fábricas de conservas de todos os géneros. Com efeito,

reencontram-se as mesmas características neste sector: um espaço de

laboração, específico, fechado ao exterior, e uma volumetria que

delimitava rigorosamente o espaço da produção [fig.176]: “Tudo o que se

passa no interior da fábrica é agora vedado aos olhos do público”

(Cordeiro, 1989, p.23), nas palavras de José Lopes Cordeiro, mas também

relembrando que é esta é uma das principais características dos modelos da

arquitectura industrial que surgem com a Revolução Industrial:

“(…) com a definição de um espaço fechado e especializado, do qual estão excluídas todas as actividades que não estejam propriamente ligadas à produção. A sua relação com o espaço urbano reduz-se a um simples muro que delimita o espaço de produção, ou a uma fachada por vezes decorativa que não só não nos fornece nenhum elemento sobre o que se passa no seu interior, como por vezes desempenha um papel de dissimulação dessa actividade.” (Id., ibid., p.23) [fig.175].

Em síntese, estas duas situações descritas permitem compreender

que por volta de 1880 – encontrando-se o processo de conservação em lata

numa fase bastante experimental –, surgem, nesta primeira fase duas

situações: 1) uma tipologia semelhante à utilizada na indústria de salga, ou

seja, uma unidade autónoma de fabrico inteiramente manual, sem a

assistência de máquinas, e assistida por uma unidade dita de «vazio», onde

os soldadores fabricavam as latas, sendo esta unidade integrada no mesmo 30 SALGADO, José, in CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.21.

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edifício ou, situação mais comum, num edifício à parte; 2) uma produção

de conservas de peixe em lata integrada numa grande unidade de fabrico de

todo o tipo de conservas (carnes, legumes, frutas cristalizadas), onde o

processo de fabrico de conservas de latas ainda coexistia com esses outros

processos mais antigos de conservação de alimentos, nos quais o método

de Appert (ou appertização) era também utilizado.

Para uma perspectiva global das origens do modelo da fábrica de

conservas de peixe em lata tal como foi posteriormente desenvolvida no

Século XX, surgem aqui dois modelos paradigmáticos, e que parecem, à

partida, contraditórios: 1) o modelo dos estabelecimentos ou fábricas de

salga (paradigma: as cetárias, no litoral, desde a Antiguidade Clássica); 2):

o modelo agrícola (paradigma: a granja de produção variada, século XIX).

No entanto, se por um lado, como o indica José Lopes Cordeiro31, a

primeira produção de latas de conserva terá surgido experimentalmente no

modelo agrícola, não podemos esquecer que a produção de conservas de

peixe encontra o seu paradigma mais antigo no seu meio natural: o

litoral32.

A crescente massificação da produção e o seu rápido crescimento

observado no final de oitocentos, levaram à procura de uma organização

exemplar do pessoal, através do método de organização que já no Século

XIX se podia observar nas granjas multifuncionais, as quais, embora não

31 Idem, ibidem, p.23. 32 A geografia humana ensina-nos que a evolução das actividades humanas quase sempre se fez do litoral para o interior, e raramente no sentido inverso. Por essa ordem de ideias, deverá encarar-se com a maior reserva o estabelecimento de um modelo de fábricas de conservas em lata, que se observaram sempre no litoral, a partir de um modelo agrícola (que surge no interior). Pode mesmo considerar-se que existe uma relação de continuidade no espaço físico entre os pontos de estabelecimento das actividades conserveiras da Antiguidade e o estabelecimento das fábricas de conservas de peixe em lata de finais de oitocentos, o que se pode facilmente observar pela evolução da dinâmica dos portos pesqueiros no litoral português, da Antiguidade aos nossos dias, através das condicionantes naturais do espaço físico envolvente (recursos naturais marinhos, acessos fluviais, etc.), encontrando-se patentes por todo o território numerosos exemplos de sucessivas estratificações no mesmos espaços ao longo do tempo. De facto, a fábrica de conservas de peixe em lata integra os mesmos objectivos das milenares cetárias (a conservação do peixe). Nesse sentido, representa a evolução de uma indústria especializada num determinado produto (monoprudutora), ao contrário do paradigma das granjas agrícolas, que eram constituídas por uma série de espaços articulados mas independentes nas suas produções variadas (multiprodutora).

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possuindo uma especialização, eram tidas como exemplos de organização

laboral.

Algumas das primeiras conserveiras apresentam situações em

analogia com a granja, através da tipologia das fachadas, do sistema de

construção, a organização em volta de um pátio central, etc. Mas o edifício

de fabrico conserveiro caracteriza-se, contudo, pela sua unidade em volta

do mesmo sistema de produção, o que origina uma tipologia própria assim

como um sistema construtivo.

Nesse sentido, o modelo da fábrica de conservas de peixe em lata,

também parece aproximar-se do modelo paradigmático dos primeiros

edifícios industriais; ou seja, no que respeita a estabelecer uma possível

estrutura do modelo da fábrica de conservas de peixe em lata, dever-se há

considerar os dois modelos acima descritos (as cetárias e a granjas

agrícolas), como paradigmas elementares para o correcto entendimento do

modelo da fábrica de conservas de peixe em lata.

Por um lado, tudo leva a crer que se pode considerar o paradigma da

milenar «fábrica de salga de peixe», no que respeita a um método peculiar

de organizar o espaço e o sistema de produção especializado (indústria

monoprodutora). Por outro lado, a sua organização massificada e a sua

escala integram uma organização hierarquizada do pessoal, inspirada no

modelo agrícola (indústria multiprodutora).

Consideramos que o facto destas fábricas de conservas em lata

nascerem, a partir do último quartel do Século XIX, como edifícios

projectados de raiz e não como construções que decorriam de um método

empírico de utilizar o espaço, é mais revelador dos estudos tipológicos

efectuados sobre o programa da fábrica de conservas de peixe, no contexto

da arquitectura industrial do Século XIX, e elaborados por «engenheiros-

construtores», do que de uma analogia do modelo agrícola adaptado ao

litoral, o que consideramos poder ser equacionado, ainda que como

influência particular e não determinante.

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6.2.3. Características das fábricas de conservas de peixe em

lata no início do Século XX: o estabelecimento do modelo de

Opperman.

Dentro de um quadro geral, partindo do paradigma do primeiro

modelo de uma fábrica da Idade Contemporânea, do qual a fábrica de

fiação de John Lombe (Séc. XVIII), pode ser considerada como o

paradigma original, observa-se uma série de estudos, durante o século

XIX, no que respeita ao estabelecimento de modelos de arquitectura

industrial, dos quais destacamos um estudo efectuado na Grã-Bretanha

pelo engenheiro Opperman. Devido à crescente especialização e o

desenvolvimento geral das indústrias no quadro da evolução da revolução

industrial britânica, Opperman, através de uma análise de vários exemplos

observados na época, estabelece uma série de modelos para diferentes

edifícios industriais, tendo em conta uma melhoria do existente, dos quais

destacamos um modelo que este engenheiro inglês desenvolveu para a

industria de conservas de peixe em particular.

Registam-se em Portugal, a partir de novecentos, toda uma série de

aplicações do modelo de Opperman levadas a cabo por alguns dos seus

seguidores, às quais não são alheios alguns edifícios das maiores empresas

conserveiras portuguesas que se estabeleceram nesses mesmos portos

pesqueiros do litoral, entre os quais destacamos algumas unidades que

podem servir como modelos exemplares do início do Século XX: a fábrica

de conservas Lopes Coelho Dias a C.a Lda. (Matosinhos); a fábrica de

conservas Brandão Gomes, (Matosinhos); a fábrica de conservas Santa

Maria, da firma Parodí e Roldan, (Vila Real de Santo António); a fábrica

de conservas de atum em lata São Francisco de Francisco Rodrigues

Tenório (Vila Real de Santo António), a fábrica de conservas Feu y

Hermanos, (Portimão); a fábrica de conservas Santo António, da firma

Júdice Fialho e C.a (Portimão).

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Estas fábricas caracterizavam-se essencialmente por uma visível

unificação dos edifícios em grandes quarteirões fechados, marcando a

passagem da primeira fase, de adopção do modelo agrícola, para uma

segunda fase, com um modelo próprio, caracterizado por um espaço

fechado e especializado que, pouco a pouco, irá substituindo a organização

inicial da unidade industrial pela simples adição de volumes.

Tal não significa que este modelo fabril (organizado em torno de um

edifício principal caracterizado por um espaço fechado ao exterior), não

tenha sido sujeito a ampliações diversas ao longo do tempo, o que se

explica facilmente pela expansão comercial desta indústria emergente das

primeiras décadas do Século XX.

Uma outra característica desta arquitectura reside na tipologia das

fachadas e na sua implementação em espaço urbano: será preciso não

esquecer que muitas destas primeiras fábricas eram construídas em

arrabaldes, faixas do litoral ou ribeirinhas limítrofes às zonas urbanas,

tendo sido, aos poucos, absorvidas pela expansão do tecido urbano dos

centros portuários. Simultaneamente, foram em muitos casos centros

geradores desses mesmos novos espaço urbanos, das quais a tipicidade

toponímica de «rua da fábrica» é suficientemente esclarecedora.

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Fig.179  –  Fábrica  de  conservas  Feu  y  Hermanos,  Portimão;  planta  geral;  em  cima:  secção  de  vazio  (demolida);  em  baixo,  do  outro  lado  da  estrada:  secção  de  fabrico,  armazéns  de  cheio  e  cais  de  desembarque.  

 

   

Fig.177  –  Fábrica  de  conservas  Feu  y  Hermanos,  em  Portimão;  em  cima:  alçado  da  secção  de  vazio  (demolida);  em  baixo:  secção  de  fabrico  e  armazéns  de  cheio.  

 

   

Fig.178  –  Fábrica  de  conservas  Feu  y  Hermanos,  Portimão;  corte  transversal  com  a  rua,  a  secção  de  fabrico,  e  o  cais  junto  ao  rio  Arade.  

 

   

6.2.4. Características espaciais e funcionamento geral

O edifício é projectado em extensão sempre que possível,

procurando ocupar, a maior parte das vezes, quarteirões inteiros,

constituindo-se geralmente de um só piso na zona de fabrico, destacando-

se um volume de dois a três pisos na zona de escritórios, de forma a ser

facilmente identificável [fig.175-176]. Estas características são comuns à

maior parte dos edifícios conserveiros construídos, nesta primeira fase da

indústria, pelo país todo no início do Século XX, assim como no caso de

Matosinhos, pela maior parte dos edifícios fabris que vão ocupar a zona a

sul do porto de Leixões, futuro complexo industrial33.

Deste modo é possível sintetizar as características gerais das fábricas

desta primeira geração: 1) um edifício projectado em extensão (fig.157),

ocupando por vezes quarteirões inteiros [fig.179], quando integrado no

tecido urbano; 2) um espaço fechado ao exterior, dividido por funções,

com um pátio em comunicação e articulação das várias secções [fig.179],

integrando por vezes um cais de desembarque, quando a fábrica se

encontrava à beira-mar ou à beira-rio [fig.178-179]; 3) uma zona de

fabrico, geralmente não excedendo um piso de altura, e uma zona de

administração com dois a três pisos facilmente identificável, surgindo

integrada, na maior parte das vezes, no mesmo edifício, mas procurando

33 No caso de Matosinhos, trata-se do sítio que ainda no século XIX se designava por Areal do Prado. Veja-se a este respeito o presente capítulo: 5.3.3.1. Origens do desenvolvimento urbano de Matosinhos.

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quase sempre destacar-se pela sua expressão formal, no exterior e/ou no

interior [fig.175-176]; 4) um sistema construtivo composto geralmente por

paredes auto-portantes em alvenaria de pedra, tijolo, ou de argamassas

diversas; um travejamento dos pisos em madeira, assim como pilares,

também em madeira, quando fosse necessário vencer um vão [fig.179]; 5)

a proximidade do edificado junto a uma linha de água, exterior ou

subterrânea, permitindo o fácil escoamento dos detritos [fig.178]; 6) a

inclusão, por vezes, de uma linha-férrea, com ligação directa aos ramais de

distribuição.  

6.2.5. Sistema de produção

O sistema de produção de uma fábrica de conservas em lata, tendo

variado ao logo do tempo, caracteriza-se, em termos gerais, por um

primeiro momento de uma produção em série inteiramente manual, sendo

igualmente o fabrico da lata efectuado manualmente por soldadores, como

classe operária distinta, demarcando-se do operariado conserveiro,

exclusivamente composto por mulheres, e distinguindo-se também no

espaço físico, por possuir uma unidade de solda integrada na unidade de

fabrico ou noutro edifício em anexo [fig.179], (a secção de «vazio»34).

Noutros casos, o ofício da solda afirmava-se como actividade independente

da conserveira e constituía-se então como uma indústria monoprodutora

própria35. As sucessivas invenções, decorrentes de uma crescente

acentuação dos processos mecanizados, vieram contribuir para um cada

vez mais rigoroso sistema de fabrico em cadeia e em série, com o qual se

tomará mais fácil introduzir maquinaria cada vez mais especializada. Por

exemplo, o processo de azeitamento, que tradicionalmente é realizado

manualmente numa tina, passa a ser efectuado por máquinas automáticas

(as azeitadeiras,). Outro ainda é o caso do fecho da lata, tradicionalmente

efectuado pelos soldadores com recurso ao chumbo, (e que mais tarde veio

a ser abandonado devido ao seu caráter tóxico), tendo sido totalmente

34 Designou-se por secção de «vazio», porque decorria do facto de nesse determinado espaço a lata ainda se apresentar vazia. 35 Muito embora dependente das flutuações do mercado conserveiro.

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Quadro   3   –   Esquema   de   funcionamento   de   uma   conserveira:   a   fábrica   recebe,   a  montante,   a   lata  vazia  vinda  da  secção  de  vazio,  assim  com  o  peixe  conservado  em  sal  (I.);  na  secção  de  fabrico  (II.),  procede-­‐se  em  primeiro   lugar  ao  descabeço  e   limpeza  do  peixe,  sendo  este  de  seguida   lavado  (1),  passando  à  cozedura  (2)  e  ao  seu  enlatamento  nas   latas  recebidas  da  secção  de  vazio  (3),  sendo  a  operação   efectuada  pelas   operárias  nas   várias  bancadas;   passa  para   a   secção  de   azeitamento   (4),  sendo   aqui   o   processo   manual   ou   mecânico   (executado   pelas   azeitadeiras);   a   lata   é   de   seguida  fechada  nas  cravadeiras  (5),  seguindo  para  a  esterilização,  efectuada  por  processo  de  autoclaves  (6),  sendo  de  seguida  lavada  (7),  donde  segue  finalmente  para  o  armazém  de  cheio,  a  jusante  (III),  onde  se  procede  à  verifição  de  cada  lata  (8),  antes  do  seu  embalamento  (9)  e  armazenamento  (10).  [Note-­‐se  que  este  esquema  se  irá  manter  no  caso  da  fábrica  de  Matosinhos  de  António  Varela,  assim  como  noutros   projectos   de   sua   autoria:   a   fábrica   da   Afurada   e   a   remodelação   da   unidade   de   Lagos   da  AEL].  

 

   

 

substituído pelas cravadeiras automáticas, como no caso da Fábrica da

Algarve Exportador, e assim por diante, etc.

Deste modo é possível apresentar o esquema de produção de uma

fábrica de conservas de peixe em lata [quadro 3]. Contudo, tendo em conta

que o processo sofreu inúmeras variações tanto no espaço como no tempo,

é-nos impossível, no enquadramento geral deste trabalho, indicar todas as

suas variações, pelo que se apresenta uma breve síntese do sistema de

produção de base. Este sistema varia na disposição e articulação interna

das várias funções nos primeiros espaços fabris. Mais tarde, com o esforço

de racionalização decorrente de uma maior intervenção dos arquitectos nos

projectos das fábricas da segunda geração, é possível observar-se uma

semelhança cada vez maior entre este esquema abstracto e o espaço real

projectado, nomeadamente no que diz respeito à organização da secção de

fabrico, em série e em cadeia, como se poderá observar no caso da fábrica

da Algarve Exportador em Matosinhos [v. infra, 6.2].

I.  SECÇÃO  ou  “ARMAZÉM  DE  VAZIO”      Descarga  da  matéria  

prima  (peixe)  

Fabrico  ou  armazenamento    

da  lata  

II.   SECÇÃO   DE  FABRICO      1.  Salga,  limpeza  e          lavagem    2.  Cozedura  3.  Enlatamento  4.  Azeitamento  5.  Cravação  6.  Esterilização  7.  Lavagem  da  lata  

III.  SECÇÃO  ou  “ARMAZÉM   DE  CHEIO”                  8.  Verificação  9.  Embalamento  10.  Armazenamento  

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Em conclusão: alguns destes critérios, tanto a nível do sistema

construtivo como do funcionamento, irão manter-se no decurso da segunda

geração de fábricas, a partir dos Anos Trinta e Quarenta e na qual a Fábrica

nº 6 da Algarve Exportador se integra. No entanto, se por um lado esta

primeira geração se caracteriza por uma grande produção de latas de

conservas por todo o território litoral, verifica-se, já na segunda geração,

uma aproximação diferente no que respeita ao cuidado dos projectistas face

a uma indústria que se especializava, através de um maior rigor funcional,

dos sistemas construtivos e de uma sintaxe formal mais próxima do

paradigma moderno.

Estes melhoramentos também contribuíram para um progressivo

restauro e alguma remodelação das fábricas da primeira geração, que por

vezes chegam até aos nossos dias com evidentes indícios de diferentes

momentos construtivos, assim como a nível do funcionamento interno e

das aplicações de elementos mais recentes.

É ainda possível considerar, de algum modo, que se a primeira

geração «produziu latas», a segunda terá «produzido fábricas»... Esta

imagem, apresentada por Jorge Custódio, poderá servir para distinguir os

dois tempos na história da indústria conserveira: um primeiro tempo em

que se apostou na quantidade, face a uma crescente exportação, e um

segundo tempo em que se acentuou a qualidade, não só do produto, mas

também no aperfeiçoamento das unidades fabris, o que passou

obrigatoriamente por uma reflexão tipológica ao nível da arquitectura.

A primeira geração, que situamos entre 1880 e os primeiros anos de

novecentos, caracterizou-se por uma predominância de produção da região

centro (Lisboa, Setúbal, Sines, Peniche, Nazaré) e da região sul do país

(Lagos, Portimão, Olhão e Vila Real de Santo António), enquanto que a

partir de meados da década de Trinta começou-se a estabelecer uma clara

hegemonia na região norte, em parte devido ao aumento de escassez dos

bancos sardinha nas costas mais a sul.

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Fig.180  –  Lázaro  Lozano,  ilustração  publicitária  para  a  Algarve  Exportador  Limitada,1926.    

Este novo dinamismo centrou-se em Matosinhos e foi assegurado

pelo porto de Leixões, primeiro porto de pesca do país. A cidade de

Matosinhos passa então a ser considerada, a partir de 1937, como o

principal centro de uma indústria com uma característica maioritariamente

exportadora, no limiar da Segunda Guerra Mundial36.

Deste modo e para compreendermos o caso particular da fábrica nº6

da empresa Algarve Exportador Limitada, é necessário compreender a

evolução desta empresa no espaço e no tempo e pelo que justificou a

implantação desta última unidade fabril, pertencente à segunda geração

tipológica, no norte do país.

6.3. CONTEXTO, PROGRAMA E ORGANIZAÇÃO DE UM

CONJUNTO FABRIL INOVADOR

6.3.1. A Algarve Exportador Limitada: caracterização e

estratégia de implementação urbana e territorial

Tendo em conta o anteriormente mencionado, desde a abordagem

histórica e tipológica das antigas conserveiras à concepção de uma novo

modelo industrial com a fábrica de Matosinhos da A.E.L., seria necessário,

para poder permitir uma boa compreensão do significado desta fábrica,

enquadrar a empresa no seu espaço e no seu tempo próprio [fig.180], na

conjuntura que antecedeu o momento desta última edificação. Esta

conjuntura encontra-se intimamente ligada ao percurso do fundador da

empresa: o industrial/coleccionador e patrono de António Varela:

Agostinho Fernandes37.

36 CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.48. 37 Agostinho Fernandes, empresário industrial e mecenas das artes (1896-1973), nasceu na Mexilhoeira Grande (Algarve), oriundo de uma família humilde cujo único filho viu sobreviver a uma elevada mortalidade infantil. Vai para Lisboa em 1900, aos catorze anos e com a antiga quarta classe, começando por empregar-se nos Armazéns do Grandela como paquete. Um pouco mais tarde entra para uma empresa inglesa de exportação de esteios (tipo de escoras) de pinho para a Grã-Bretanha, local onde as suas qualidades anunciadas despertam a atenção de Harold Edwin Oakley, o proprietário, que vendo as possibilidades e o potencial do seu empregado, decide-se a pagar-lhe o

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A Algarve Exportador Lda. já possuía, antes da construção da

fábrica de Matosinhos, outras fábricas localizadas estrategicamente nos

principais centros portuários e conserveiros do país. A empresa foi

progressivamente estabelecendo unidades fabris ou representações da

firma pelos portos pesqueiros nacionais de maior relevância, através de

dois sistemas: quer por compra e aquisição de fábricas que existiam

anteriormente e procedendo a obras de remodelação, quer por aquisição

dos terrenos estratégicos, com vista à elaboração de raiz de uma nova

unidade fabril. Este modo de intervenção da empresa era característico das

empresas de maior envergadura e foi determinante, numa época anterior à

criação dos Planos Directores Municipais, para a organização e a

caracterização urbana das principais cidades portuárias do país.

prosseguimento dos estudos. Este aprende vários idiomas ao mesmo tempo que trabalha, tendo chegado a tirar o curso de contabilidade. Facto notório numa época impregnada de um certo colonialismo saxónico reinante, terá ido substituir um contabilista inglês na Archer, assumindo funções de ajudante de gerência. Depois de ter passado por uma empresa portuária de máquinas, associou-se, de seguida a outros portugueses, entre os quais se destacam os irmãos Álvaro e Mário de Sousa, constituindo a Portuguese Corporation, uma empresa com muitos associados que detinha o monopólio da importação do carvão de Inglaterra, para além de cereais de várias origens [refira-se que os irmãos Sousa comprariam mais tarde o Banco Fonsecas, Santos e Viana, que tomaria mais tarde o nome de Banco Fonsecas e Burnay actualmente integrando o Banco Português do Investimento], e para cuja sociedade convidaram Agostinho Fernandes, tendo este declinado a proposta devido às suas «firmes convicções» de industrial. A Algarve Exportador Limitada é fundada em 1920 por vários associados, entre os quais o próprio Agostinho Fernandes, nessa altura com trinta e quatro anos de idade e com estatuto de sócio maioritário. Inicialmente é uma empresa especializada na importação de material destinado à indústria de conservas, nomeadamente da folha de Flandres, matéria prima de base destinada ao embalamento da conserva de peixe em lata. Compra-se um cerco (uma embarcação pesqueira de tonelagem superior à traineira), mas o negócio revela-se desastroso. Agostinho Fernandes negoceia então o resto das outras acções da firma, e, adquirindo o total, compra a fábrica conserveira «Canelas» em Lagos, que se torna a fábrica n° 1 da Algarve Exportador Limitada. É já com sólida reputação como industrial do meio que o seu único proprietário e gerente, beneficiando de bons contactos estrangeiros, estabelece para a A.E.L uma parceria exclusiva de exportação para a Casa «Vimer», uma empresa alemã importadora de produtos conserveiros. Durante os anos de 1920 passa à exportação por venda directa, com representantes a agentes por todo o continente, viajando pela Europa e Médio-Oriente, tendo sido criados escritórios próprios em Bordéus, servindo a França e a Holanda, e em Londres, servindo grande parte dos países anglo-saxónicos, incluindo os Estados Unidos, ainda antes da Segunda Guerra Mundial. Noutro quadrante, embora não menos importante, convém ainda referir que Agostinho Fernandes foi igualmente sócio-fundador da Contemporânea, da Portugália Editora e do Museu Malhoa, nas Caldas da Rainha (da autoria de Paulino Montês), entre outras múltiplas actividades, e patrono de alguns artistas, poetas e escritores da geração moderna, entre os quais convém apenas sumariamente destacar, a título do presente estudo, José de Almada Negreiros e António Varela. Veja-se a este respeito AMARO, Luis, Agostinho Fernandes, as Portugálias, pp-11-40, e CASTRO, Laura, Agostinho Fernandes (1886-1972) – Apontamentos para uma cronologia, pp.-103-135, in SANTOS, José da Cruz [coord.], Agostinho Fernandes – um industrial inovador, um coleccionador de arte, um homem de cultura – fotobiografia, Portugália Editora S.A., Lisboa, 2000.

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Fig.182  –  ilustração  publicitária  da  Algarve  Exportador  Limitada  para  o  mercado  francófono,  [s.d.].  Note-­‐se  a  indicação  dos    seis  unidades  conserveiras  da  empresa.    

Fig.181  –  Aspecto  de  parte  da  frota  pesqueira  da  empresa  Algarve  Exportador  Limitada,  sediada  no  porto  de  Leixões,  [s.d.].    

Para além de especialização na produção de conservas de peixe, esta

empresa possuía frotas pesqueiras em vários portos [fig.181], funcionando

ao mesmo tempo como armadora, o que era prática corrente dos grandes

consórcios conserveiros nacionais, como era o caso também da Feu Y

Hermanos, da Júdice Fialho, da Vasco da Gama ou ainda da Sebastião

Ramires. Surgiam, por vezes, situações em que estas frotas eram afectas a

um determinado porto pesqueiro, descarregando o pescado na lota sob

coordenação de uma representação de vendas da empresa no mesmo local.

Deste modo, as frotas serviam para assegurar a venda do pescado nas lotas

de cada porto, independentemente de sua empresa possuir – ou não –, uma

unidade local. Era este o caso, por exemplo, da frota da A.E.L. de

Portimão, que embora aí não possuísse nenhuma fábrica, negociava o

pescado na lota, ou alugava a sua logística a outros consórcios38.

Em 1939, a Algarve Exportador Limitada atingia um total de seis

fábricas de conservas de peixe [fig.182] com características de unidades

autónomas, distribuídas pelo centro, sul e norte do território nacional:

Lisboa, Lagos [fig.184], Setúbal, Peniche [fig.183], Nazaré, e por fim

Matosinhos, na procura de uma hegemonia do território nacional.

Tendo em conta a divisão dos centros conserveiros do território entre

a Região Centro, a Região Norte e a Região Sul, é possível evidenciar a

disposição estratégica da empresa, somente igualável em número, logística

e dimensão aos outros grandes consórcios da época (Júdice Fialho, Feu y

Hermanos, Lopes Coelho Dias e C.ª, Ramires): no caso da AEL, as 38 Por vezes, também se criavam sistemas de dependência entre os vários armadores e conserveiros, em convergência de interesses de negócio: no caso de Portimão, por exemplo, era prática corrente ver as embarcações da A.E.L. em doca seca nos seus estaleiros junto à fábrica Feu y Hermanos, no rio Arade, junto ao Convento de São Francisco. Já no caso de Lagos, Setúbal e Peniche, a empresa A.E.L. possuía frota e fábricas funcionando em conjunto. Também no caso de Matosinhos, a produção desta fábrica era assegurada por uma frota própria, de modo que o ritmo de actividade não era prejudicado nem dependia das numerosas flutuações da compra de pescado na lota a terceiros, como sucedia às empresas que não possuíam frota própria. Surgiam, assim, em cada grande porto pesqueiro da época, três situações distintas, não só no caso da AEL em particular, mas no quando geral dos grandes consórcios da indústria conserveira da época: 1) uma unidade fabril que comprava o pescado na lota a terceiros; 2) uma frota que vendia o pescado a terceiros; 3) uma ou várias unidades fabris da mesma empresa apoiadas directamente pela frota da mesma empresa e no mesmo local.

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Fig.183  –  Fábrica  de  Peniche  da  Algarve  Exportador  Limitada  (Anos  Vinte),  com  remodelações  posteriores  de  António  Varela  nos  anos  40  (foto  de  1999).    

unidades de Lisboa, Lagos, Peniche e Nazaré foram remodelações de

fábricas anteriores, enquanto que nos casos de Setúbal e Matosinhos foram

projectos de raiz, encontrando-se todas, actualmente, bastante degradadas

ou em estados de ruína mais um menos avançados39.

Se excluirmos a fábrica de Matosinhos, as cinco primeiras fábricas

da empresa incluem-se na primeira fase da arquitectura conserveira. Estas

são significativas, tanto pelas suas características formais e organização do

espaço, assim como pelo seu sistema construtivo, de soluções anteriores à

segunda geração, que se inicia no final dos Anos Trinta e se acentua nos

anos Quarenta, na qual a fábrica de Matosinhos, da autoria de António

Varela, surge como um modelo exemplar da aplicação dos princípios do

funcionalismo moderno.

39 A segunda fábrica, de Lisboa, foi demolida em 1940, aquando das obras de aterro portuário pela Associação dos Portos de Lisboa. Refira-se ainda que, para além da fábrica de Matosinhos, a maior parte destas fábricas se encontram actualmente ou em ruína, ou em avançado estado de degradação; são estas: Matosinhos (em estado de ruína); Nazaré (desactivada); Peniche (desactivada); Lisboa (demolida); Setúbal (adaptada como local de estacionamento fechado); Lagos (demolida, embora com uma recente manutenção e subsequente aproveitamento do muro de delimitação da propriedade).

Fig.184  –  António  Varela,    planta  de  remodelação  da  

fábrica  da  Algarve  Exportador  

Limitada  de  Lagos,  1942    

     

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Fig.185  –  António  Varela,  perspectiva  da  AEL  a  partir  da  entrada  de  gaveto  junto  à  praça  Passos  Manuel,  1938.    

6.3.2. Enquadramento histórico do projecto

Em 1938 a Algarve Exportador Limitada beneficiava de uma larga

fatia no mercado de exportação nacional. No que respeita à implantação da

unidade de Matosinhos, não é estranho o facto desta cidade, importante

centro conserveiro beneficiando da proximidade do porto de Leixões, o

segundo porto do país, ter adquirido, em 1937, o estatuto de primeiro

centro conserveiro do país40. A data do projecto para a unidade de

Matosinhos da AEL, da autoria de António Varela, remonta a princípios de

1938 [fig.185-187], tendo sido aprovado em sessão de câmara a 9 de Abril

do mesmo ano. Para avaliar da justeza de tal momento por parte da

empresa, será preciso compreender que esta terá feito uma jogada de

antecipação: a empresa tinha perfeito conhecimento da falta de peixe que

se fazia sentir com bastante frequência no centro e no sul nos últimos anos,

com uma migração dos bancos de sardinha cada vez mais para norte. Tais

factos podem ser comprovados através de um artigo publicado em Agosto

de 1941 numa publicação especializada do sector conserveiro, a

Conservas, e intitulado Como progride a Indústria Conserveira do Norte.41

40 Cf. CORDEIRO, José M. Lopes, “A indústria conserveira em Matosinhos - exposição de arqueologia industrial”, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.48. 41 “Esta importante firma [a A.E.L.] já possue outras fábricas em Lisboa, Setúbal, Lagos, Peniche e Nazareth, mas a sua organização, uma das mais completes de Portugal, ressentia-se da falta de pesca de que sofreu o centro e Sul do país nos últimos anos e entenderam os seus dignos administradores que a solução prática estava em instalar-se também no Norte, sendo Matosinhos o lugar agraciado com a instalação da nova fábrica.” In Conservas, n° 68, Agosto de 1941.

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Fig.186  –  Quarteirão  da  Fábrica  nº6  da  AEL  e  da  Rainha  do  Sado,  Matosinhos;  vista  para  sul;  cruzamento  da  avenida  da  República  com  a  rua  Heróis  de  França.    

Fig.187  –  António  Varela,  Fábrica  nº6  da  AEL,  perspectiva,  1938.    

Tal como se pode comprovar pelo tom do artigo, parece evidente que

a firma terá actuado de forma estratégica. Convém mencionar a este

respeito: a) o tempo de planificação da empresa segundo uma estratégia

preestabelecida para decidir uma implantação na região norte; b) a

aprovação do projecto numa região da juridição do Grémio dos Industriais

de Conserves de Peixe do Norte, região essa que rivalizava

economicamente com o centro e o sul, ao qual a Algarve Exportador

Limitada era naturalmente identificada42; c) o tempo da mesma aprovação,

respectivas autorizações e licenças diversas para ser posto em prática o

plano preestabelecido, até serem activados os mecanismos de um processo

de tal envergadura junto das autoridades autárquicas; d) o tempo de

encomenda de um projecto desta dimensão e o tempo necessário à sua

elaboração por parte do projectista (neste caso, tratando-se de António

Varela); e) o tempo de emissão dos diversos alvarás para poder dar início à

obra.

Em suma, formalizando toda um processo legal perante diversas

entidades, a acção da firma Algarve Exportador Limitada enquadra-se na

progressiva hegemonia da região norte, tendo procedido António Varela à

elaboração do projecto de base em 1937. Deste modo, e com vista à

compreensão do espaço urbano caracterizado pelo quarteirão composto

pela Fábrica da Algarve Exportador Limitada / Rainha do Sado [fig.186],

conviria ainda referir alguns dados importantes sobre a evolução histórica

da expansão urbana de Matosinhos.

42 Será preciso acrescentar que Agostinho Fernandes assumia na época funções de Presidente do Grémio dos Industriais de Conservas de Peixe do Centro.

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264

6.3.3. Contextualização urbana

6.3.3.1. Origens do desenvolvimento urbano de Matosinhos

O concelho de Matosinhos, tal como se estabelece actualmente, é de

constituição recente, e remonta a um processo de reorganização territorial

que apenas se iniciou no lento despertar para o desenvolvimento industrial

correspondente ao último quartel do Século XIX.43

“Com a aproximação do final do século surgem grandes transformações na economia e na sociedade do concelho. O início da construção do porto de Leixões, inicialmente projectado apenas para porto de abrigo, e o aparecimento das primeiras fábricas, nomeadamente de duas grandes fábricas de conservas, desempenharam um papel um papel de destaque nesse conjunto de profundas transformações. A agricultura e a pesca, ocupações dominantes até então, começam a ser substituídas pelas actividades do sector secundário e, timidamente, do sector dos serviços.” (Cordeiro, 1989, p.11).

Neste contexto o crescimento populacional e o desenvolvimento

urbanístico, particularmente, da freguesia de Matosinhos, provoca

profundas alterações à paisagem tradicional predominantemente agrícola,

com a implantação sucessiva de inúmeras instalações industriais,

possivelmente – segundo apontam algumas fontes –, com um plano de

urbanização previamente elaborado pela Companhia Edificadora44. Seja

como for, é certo que a definição da estrutura urbana que em grande parte

se conservou até à actualidade deve-se ao plano da autoria de Licínio

Guimarães e que remonta a 1880, onde surgem já demarcados os principais

arruamentos que mais tarde se viriam a configurar45 [fig.188]. Neste

documento é possível observar a peculiar inflexão entre a malha antiga a

norte e o traçado ortogonal a sul, onde se destaca a implantação do

Hipódromo de Matosinhos, (posteriormente demolido). É a partir deste

43 “Até ao final do século Matosinhos vai ser alvo de uma reorganização territorial: em 1871, a freguesia de Labruge, é de novo integrada no conselho de Vila do Conde; a abertura da estrada da Circunvalação, em 1895, tem como consequência a integração das freguesias de Nevogilde, Aldoar e Ramalde nos limites territoriais do Porto. Em 1909, a designação de «conselho de Bouças» carecia de sentido face ao não desenvolvimento daquele lugar comparativamente ao de Matosinhos. Por esse motivo, a Câmara Municipal enviou uma representação ao governo solicitando uma alteração ao nome do conselho, o qual se passou a designar por «conselho de Matosinhos», a partir de 6 de Maio daquele ano.” In CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.8. 44 Cf. Idem, ibidem, p.11. 45 Cf. Idem, ibidem, p.11.

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Fig.  188  –  Planta  Projecção  Horizontal  de  parte  da  Vila  de  

Matosinhos,  compreendida  entre  

a  praia  dos  banhos  e  o  forte  do  

Queijo,  da  autoria  de  Licínio  Guimarães,  década  de  1880.  Note—se  a  inflexão  para  sul  do  eixo  da  rua  de  Brito  Capelo  e    a  sobreposição  da  nova  malha  ortogonal  sobre  os  terrenos  do  antigo  hipódromo  a  norte.    

momento que o velho centro histórico começa a perder importância e a

Rua de Brito Capelo se torna o centro da vila de Matosinhos, no seu

prolongamento para sul46.

É nesta vasta área plana que daí em diante, e já na viragem do

século, numerosas empresas conserveiras e de salga viriam a requerer

alvarás nos terrenos do Hipódromo de Matosinhos e do «elegante e

burguesíssimo Jockey-Club47» localizado no areal do Prado. Neste

contexto de «Belle Époque», Matosinhos e principalmente Leça da

Palmeira começavam a perder progressivamente o seu carácter de estâncias

de repouso e lazer da burguesia portuense que até aí então desempenharam,

sendo que a própria relação funcional entre as duas – ou seja, a

predominância do papel de centro turístico e balnear que garantia maior

importância a Leça –, começa a alterar-se significativamente em favor do

desenvolvimento industrial de Matosinhos, acelerado pela construção do

porto de Leixões que se inicia em 1884.

Pela mesma via, as linhas de caminho de ferro, em articulação com

as ligações às novas fábricas, a construção de novas estradas, assim como o

surgimento dos transportes públicos estabelecendo uma ligação regular

com a cidade do Porto e outros centros urbanos, contribuíram para o

crescimento urbano, predominantemente para sul. A estrada de 46 Cf. SÉREN, Maria do Carmo, Mitologias da pesca e pescadores de Matosinhos, in Uma cidade assim, Câmara Municipal de Matosinhos, [catálogo], Matosinhos, 1996, p.35. 47 Segundo referência de José Lopes Cordeiro. Aqui se construiriam os armazéns de vinho da Companhia Vinícola Portuguesa em 1899, ocupando uma área de 11.000 metros quadrados. Cf. CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, p.16.

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circunvalação, inaugurada em 1895, substitui o tradicional trajecto através

da estrada da Azenha de Cima, assim como as pontes de madeira (1882),

ligando a Rua Nova do Arnado (Leça) ao Juncal de Baixo (Rua Roberto

Ivens, Matosinhos), e da ponte metálica (1887), permitindo a sua utilização

pelos recém-chegados transportes públicos.48

Segundo José Lopes Cordeiro, o desenvolvimento industrial de

Matosinhos, ocorrido a partir dos finais de oitocentos, possui três

características essenciais: ter-se desenvolvido muito tardiamente;

apresentar uma distribuição irregular, sofrendo a influência da proximidade

de um grande centro urbano (a cidade do Porto); e evidenciar muito

precocemente um sector dominante, o da conservação e conserva de peixe,

“o que se justificava pela abundância da matéria-prima nele utilizada e pela

facilidade existente de exportação do produto acabado” (id., ibid., 1989,

p.20).

Contudo, o atraso verificado no arranque industrial do conselho

resulta em grande parte do próprio atraso que o país neste domínio

apresentava. No entanto, a partir do momento em que se inicia a instalação

das primeiras fábricas, verifica-se que este processo se desenvolve num

ritmo bastante acelerado, “constituindo algumas dessas fábricas, pelo

significado da sua produção e pelas suas instalações, empresas de primeiro

plano na vida económica nacional” (id., ibid., p.20)49.

Em suma, Matosinhos constitui-se, à viragem do século, como o

quarto porto piscatório do país, tendo passado para a liderança nacional a

partir da década de 1930. É também nesta década que Salazar permite a

abertura de um porto comercial “mantendo reservas sobre o seu excessivo

48 Cf. CORDEIRO, José M. Lopes, A indústria conserveira em Matosinhos – exposição de arqueologia industrial, Câmara Municipal de Matosinhos, 1989, pp.13-14. Refira-se que estas pontes foram demolidas no primeiro quartel do século XX, aquando da construção da Doca nº1 do porto de Leixões. 49 “As fábricas de conservas Lopes, Coelho Dias (1899), Brandão Gomes (1900), filial da de Espinho, constituíam sem dúvida duas das mais importantes unidades industriais portuguesas daquele sector, facilmente testemunhado pela capacidade, qualidade e diversidade da sua produção, organização empresarial e apetrechamento tecnológico, e ainda, pela sumptuosidade das suas instalações fabris.” Idem, ibidem, 1989, p.20).

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tamanho” (Séren, 1996, p.27) e que se irá edificar um bairro de pescadores,

no quadro das acções urbanísticas do Estado Novo.

É ainda possível considerar que a estas duas fases de

desenvolvimento económico muito se devem as duas fases de expansão do

sector conserveiro, e parecem corresponder, de igual modo, às duas

grandes fases de expansão urbanística da cidade de Matosinhos, centradas

na primeira metade do Século XX: a primeira, que se inicia em finais de

oitocentos e se prolonga nas primeiras décadas de novecentos, e a segunda,

na substantiva proliferação de unidades fabris durante a década de Trinta

Pertence justamente a esta segunda fase a Fábrica da Algarve

Exportador de António Varela, reconhecendo-se este como o «período

áureo» da história da indústria conserveira, não só em Matosinhos, como

em todo o país.

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Fig.  190  [à  esq.]  –  Localização  da  fábrica:  planta  com  sinalização  das  conserveiras  e  das  fábricas  de  conservas  pelo  sal  de  Matosinhos  em  1937  (dois  anos  antes  da  construção  da  AEL)  note-­‐se  a  inflexão  da  malha  urbana  entre  a  zona  antiga  [a  norte]  e  a  zona  industrial  [a  sul];  o  lote  de  implantação  da  AEL  encontra-­‐se  assinalado  a  cheio;  a  doca  de  pesca  do  porto  de  Leixões  encontra-­‐se  a  poente.  Em  cima  [fig.  191]:  fotografia  aérea  de  1996,  onde  se  pode  observar  o  enquadramento  da  fábrica  em  torno  da  praça  Passos  Manuel  e  no  sentido  do  eixo  da  avenida  da  República,  em  direcção  à  doca  de  pesca  do  porto  de  Leixões  [o  tracejado  é  nosso].  

 

   

Fig.  189  –  Fábrica  nº6  da  AEL,  vista  para  sudoeste  sobre  a  praça  Passos  Manuel,    com  o  cruzamento  da  avenida  da  República  com  a  rua  Roberto  Ivens.  Ao  fundo,  o  mar  e  o  porto  de  Leixões.    

6.3.3.2. Contextualização urbana da Fábrica da Algarve

Exportador Limitada

O terreno comprado pela firma AEL inclui-se num quarteirão

triangular no centro de Matosinhos, afigurando-se claramente como um

momento de rotação na malha ortogonal projectada [fig.190]. Deve-se este

facto a uma inflexão resultante da articulação entre a área urbana mais

antiga de Matosinhos, situada a norte, com o desenho urbano da zona

industrial para sul36, de acordo com o planeamento de finais de oitocentos

[fig.188], consequente da crescente industrialização do sector conserveiro.

O quarteirão é delimitado a norte pela avenida da República, a

nascente pela rua Roberto Ivens (à data do projecto com o nome de rua Dr.

Alves da Veiga), e a poente pela rua Heróis de França (à data do projecto

com o nome de rua João Chagas) [fig.192-195].

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Fig.  194  –  AEL,  vista  da  Praça  Passos  Manuel;  em    primeiro  plano,  a  administração  e  a  habitação  do  encarregado  no  piso  superior.    

Fig.  193  –  Fachada  da  secção  de  fabrico  da  AEL,  em  continuidade    com  o  eixo  da  avenida  da  República.    

Fig.  192–  vista  aérea  para  norte  do  quarteirão  formado  pela  AEL  [1938]  e  a  conserveira  Rainha  do  Sado  [1941].  Ao  centro  ,  a  Praça  Passos  Manuel  no  eixo  da  Avenida  da  República;  a  poente,  a  praia  de  Matosinhos.      

No entanto a principal artéria era – e ainda continua a ser –, a

avenida da República, importante eixo do traçado urbano de Matosinhos,

conjuntamente com a praça Passos Manuel. Esta avenida foi projectada

desde os limites da cidade a nascente, em direcção à cidade do Porto, e

para poente, desembocando junto à praia de Matosinhos e ao porto de

pesca a sul da doca de Leixões [fig. 190-191], sendo esta percorrida pela

grande fachada correspondente à secção de fabrico da A.E.L. [fig.189-

193].

A praça Passos Manuel, intercalada na avenida, serve de eixo de

distribuição entre o seu lado nascente, em direcção à cidade do Porto e seu

lado poente, diminuindo de cota em direcção ao mar, até à praia de

Matosinhos e ao porto de pesca (zona sul do porto de Leixões) [fig. 190-

191].

Esta praça serve de culminar sul da avenida Serpa Pinto, pertencente

à malha mais antiga e que nasce na doca n°1 do Porto de Leixões. Serve

igualmente de eixo de distribuição entre a zona norte da Rua Roberto

Ivens, desde a Doca n°1 do porto de Leixões, rematando mais a sul na

Praça Cidade do Salvador, em direcção à cidade do Porto, pela Foz ou pela

Estrada de Circunvalação inaugurada em 1895. Como se pode comprovar

pela planta de 1937 [fig.190], evidencia-se a estratégica localização desta

nova unidade da AEL, implantada no centro urbano de Matosinhos, entre o

porto de pesca e a malha que se desenvolveu mais tarde para o interior.

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Fig.  195  –  vista  aérea  para  poente  do  quarteirão  formado  pela  AEL  [1938]  e  a  conserveira  Rainha  do  Sado  [1941].  Apesar  do  avançado  estado  de  ruína,  a  continuidade  das  fachadas  contribui  para  a  homogeneidade    do  conjunto.      

Esta localização estratégica é reforçada pela sua organização

volumérica junto à praça, à qual António Varela parece ter dedicado

especial atenção [fig.186-189-194], pois parece evidente que se tenha

apoiado no desenho urbano preexistente para a génese do projecto, o que

se comprova pelo testemunho escrito do próprio (v. infra, 6.3.4.).

 

6.3.4. Descrição da fábrica: as várias fases projectuais

A fábrica surge referenciada pela primeira vez no mesmo ano de

conclusão do projecto, na revista Arquitectura Portuguesa e Cerâmica e

Edificação / Reunidas50, de Julho de 1938. Publicação especializada da

época, com imagem na capa referente a uma perspectiva assinada por

António Varela, e que consta do conjunto de peças desenhadas que deram

entrada na câmara para aprovação do projecto. Transcrevemos o artigo,

tendo em conta a sua relevância para vários pontos de interesse deste

estudo:

50 Cf. A Arquitectura Portuguesa e Cerâmica e Edficação / Reunidas (A.P.C.E./R), n° 40, 3° série, Julho de 1938.

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Fig.  196  –    AEL,  interior  da  secção  de  fabrico,  vista  sobreelevada  a  partir    da  administração.    

Fig.  197  –    Capa  da  publicação  A  arquitectura  portuguesa  e  

cerâmica  e  edificação  reunidas,  nº40,  Julho  de  1938,  e  perspectiva  de  António  Varela    para  a  primeira  versão  da  fábrica    de  Matosinhos  da  AEL.      

“Publicamos hoje alguns trabalhos de um distinto arquitecto: António Varela. Formado pela Escola de Belas Artes do Porto, pertence à nova geração mas tem-se afirmado como dos mais marcantes e seguros; deve ser dos que mais novos concluíram o seu curso, pois aos 24 anos era já arquitecto. É actualmente professor de Ensino Técnico, na Escola Industrial Machado de Castro e deu a sua valiosa colaboração, em mais de um ensejo ao notável artista Jorge Segurado, designadamente no plano de urbanização da Praia do Cabedelo (...)51. Demos estas páginas a um seu interessante projecto para uma fábrica que a firma Algarve Exportadora Limitada, pretende construir em Matosinhos. Já lá vai o tempo em que na construção de uma fábrica se dispensavam cuidados estéticos; hoje, projectar um estabelecimento fabril é estudar um conjunto que deve também mostrar-se harmonioso. Para mais, o terreno onde está será executada a construção está situado em artéria importante. O arquitecto António Varela tem neste projecto um trabalho de superior inteligência; as gravuras que publicamos elucidam-no suficientemente, mas não queremos deixar de referir o vasto Hangar com cobertura sem apoios intermediários, com a fachada francamente aberta à luz, e com um módulo de construção determinado, de que resultou uma fachada de belo ritmo moderno, a que a altura do entablamento (necessário para evitar poeiras no interior) dá certo ar de grandiosidade. No mais, a atenção do leitor encontrará méritos evidentes, que confirmam o alto conceito já granjeado por este artista.” (A.P.C.E./R, 1938).

Aqui são destacados, através de uma breve descrição das soluções

adoptadas, os princípios inerentes ao posicionamento de António Varela

face às soluções aportadas pelos estudos dos modelos técnico-

funcionalistas no que respeita à arquitectura industrial. Termos como “o

vasto hangar com cobertura sem apoios intermediários”, “fachada

francamente aberta à luz”, e “módulo de construção determinado” referem-

51 V. infra, 4.3.1.

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Fig.  198  –    AEL,  interior  da  secção  de  fabrico,  vista  a  partir  da  secção  de  cheio.    

se directamente a princípios de composição típicos do funcionalismo

moderno [fig.196-198-199].

Parece no entanto evidente que terá sido António Varela um dos

primeiros arquitectos no panorama nacional a ter posto em prática estes

valores modernos no que respeita aos princípios inerentes à arquitectura

fabril.

Contudo, este artigo é referente ao projecto e data como sendo

anterior à construção (1938). No que respeita a alguns comentários sobre a

qualidade do espaço construído em 1939 a resultantes do projecto de

António Varela, referira-se ainda o artigo da revista Conservas (1941), no

qual se pode igualmente comprovar o valor da novidade desta fábrica no

seu meio e na sua época, e alguns comentários no que respeitava o seu

funcionamento:

“Registámos anteriormente nestas colunas várias notas representativas do Progresso da nossa indústria ao referirmo-nos às novas instalações das firmas Lagos, Ferreira & C.a L.da e Lopes da Cruz & C.a L.da, em Vila do Conde , e a Brandão a C.a L.da, em Matosinhos, esta última transformando a sua antiga fábrica da Avenida Serpa Pinto a dando-lhe exteriormente aspecto digno do seu nome. Hoje cabe a vez de nos referirmos à Algarve Exportador L.da, exclusivamente [...]. As fotografias que ilustram estas notas darão melhor ideia do que quanto nós pudéssemos dizer com respeito à excelente

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Fig.  199  –    AEL,  interior  da  secção  de  fabrico,  vista  sobreelevada  a  partir  da  administração.  Ao  fundo  e  em  elevação:  o  monta-­‐cargas  de  acesso  à  açoteia.    

tendência que vimos observando nos industriais, ou seja o de dedicar todos os cuidados à higiene das suas instalações.” (Conservas, 1941)52.

Prossegue o artigo, com uma alusão a uma visita ao interior da

fábrica:

“Na nossa rápida visita impressionou-nos em primeiro lugar o asseio que presidia em todas as secções. A nave destinada ao enlatamento é grande, elegante, airosa, cheia de luz. O solo é de mosaico e o conjunto formado pelos cofres de coser e de esterilizar, com as suas chaminés de corte vistoso, dá o aspecto agradável de um salão dos velhos tempos senhoriais. A distribuição do azeite é teoricamente perfeita e tem, precisamente, a novidade do aperfeiçoamento. Destaca-se uma soberba «açoteia» para utilizar na secagem da sardinha e servida por um ascensor que prova os bons desejos da «Algarve Exportador Lda.» em servir os seus clientes da América do Norte. Reflectem também desejos ferventes de harmonizar com os tempos, os departamentos destinados a vestiários a refeitórios, onde a simplicidade se conjuga com o bom gosto, assim como o que se destina a banhos de chuveiro, onde nada falta para o bom serviço dos operários. O mármore e o mosaico são, não somente belos materiais, mas também dos mais fáceis de limpar, e o mosaico e o mármore são empregados nesta fábrica em todas as dependências em que o trabalho diário obriga a uma limpeza permanente (...).” (Ibid.).

Após uma série de congratulações pelo evento à firma AEL, “pelos

seus brios a pela contribuição que presta ao desenvolvimento da indústria

portuguesa de conservas” (ibid.), segue-se um último parágrafo dedicado a

António Varela:

“Não podemos deixar de nos referirmos ao arquitecto Dr. António Varela [sic], da Escola de Belas Antes do Porto, autor da primorosa obra, espírito juvenil com brilho próprio e um elemento novo digno de ser consultado quando houver que tratar-se de futuras instalações ou mesmo modificações das actuais, porquanto a austeridade de linhas e o delicado detalhe interior revelam o artista que sabe engalanar sem perder de vista as necessidades práticas, que cria beleza sem prejudicar o útil. Oferecemos-lhe os nossos sinceros parabéns com o pressentimento de que não será esta a última vez que Conservas lhe rende o tributo de carinhosa admiração, ainda que pese a sua reconhecida modéstia.” (Ibid.).

Note-se que a revista Conservas terá dado como certas futuras

intervenções de António Varela, o que se veio a comprovar mais tarde. De

facto, embora pese significativamente o projecto inicial de António Varela

de 1938, a fábrica foi objecto de ampliações e remodelações ao longo do

tempo.

52 Conservas, n° 68, Agosto de 1941.

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Com excepção de pequenas intervenções diversas realizadas

posteriormente, existem outros dois momentos construtivos bastante

importantes para a compreensão do conjunto. O primeiro, datado de 1941,

refere-se à construção de armazéns de estiva, da autoria de António Varela;

o segundo, datado de 1946, refere-se a uma ampliação do edifício do pátio

para mais um piso situado por cima do andar térreo, mas aparentemente já

sem intervenção de António Varela, pois o projecto consta como sendo da

autoria do arquitecto Agostinho Ferreira de Almeida.

Pode, deste modo, concluir-se existirem três momentos construtivos,

intervalados por espaços de tempo relativamente curtos. Primeira fase:

projecto da fábrica de conservas da Algarve Exportador Limitada, autor:

António Jorge Rodrigues Varela (1938); segunda fase: projecto de

armazéns de estiva a construir nos terrenos da fábrica em anexo, autor:

António Jorge Rodrigues Varela (1941); terceira fase: projecto de

ampliação e remodelações do edifício do pátio; autor: Agostinho Ferreira

de Almeida (1946).

Da primeira à segunda fase vão dois anos de intervalo. Já da segunda

à terceira vão cinco.

As duas primeiras são as mais importantes e significativas. A

primeira, por razões óbvias, abrange a maior parte do edificado, e consiste

na fábrica propriamente dita; a segunda, porque marca a última intervenção

de António Varela, revestindo-se por isso da maior importância para se

poder seguir as suas variações no espaço e no tempo, face ao seu modo de

projectar, na mesma obra; já a terceira, da autoria de Agostinho Ferreira de

Almeida, veio adulterar, em certa medida, o traçado original do conjunto

idealizado por António Varela, como se poderá confirmar53. Observe-se

então, sequencialmente, cada um destes três momentos construtivos.

 

53 v. infra, 6.3.

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Fig.  200  –    António  Varela,  desenho  perspectivado  da  AEL,  1938  [pormenor  sobre  a  entrada  da  administração].  Note-­‐se  a  primeira  versão  do  frontão    da  secção  de  fabrico.    

6.3.4.1. Primeira fase: projecto da fábrica de conservas

Algarve Exportador Limitada54

   

Transcrevemos uma parte da introdução da memória descritiva do

projecto elaborada por Varela e referida pelo próprio como Do Terreno e

do Partido da Composição:

“O terreno adquirido pela firma Algarve Exportador Limitada, para instalação da sua fábrica, na vila de Matozinhos, tem a forma trapezoidal, e contorna-se a Nascente, com a rua Dr. Alves da Veiga, formam os arruamentos uma pequena praça circular, o que motiva, naquele cruzamento o corte do ângulo, por um arco de circunferência.” (A.C.M.M., 1938)55

Como se pode comprovar pelas suas palavras, este cruzamento irá

desde logo revestir-se da maior importância no conjunto global do

projecto, pois é a partir deste desenho da praça que se estabelece o espaço

pare a administração, sendo esta uma das analogias apontadas por José

Manuel Fernandes quando refere a sua “rica diversidade de ângulos

[fazendo lembrar] a Casa da Moeda” (Fernandes, 1993, p.121) [fig.105-

110].

Convém considerar que o motivo gerador desta forma de gaveto foi

a praça (espaço «causal»), tendo dado origem à superfície côncava da

fachada (espaço «consequente» e forma «subtractiva») [fig.200-201]. Esta

solução não parece contrariar a homogeneidade do projecto. É a resolução

de um espaço edificado consequente do «vazio» causal da praça, e em

analogia directa com a solução adoptada por Jorge Segurado para a

resolução do gaveto entre a rua João Crisóstomo e a rua da Estefânia no 54 Autoria de António Varela; data de aprovação camarária: 9 de Abril de 1938. 55 Algarve Exportador Limitada, memória descritiva de António Varela, processo do Arquivo da Câmara Municipal de Matosinhos (A.C.M.M.), Matosinhos, 1938.

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Fig.  201  –    AEL,  vista  da  entrada  de    gaveto  da  administração  [s.d.,  anos  40].  Note-­‐se  a  alteração  aa  altura  do  frontão  da  secção  de  fabrico  em  relação  ao  projecto  de  1938.      

edifício da Casa da Moeda em Lisboa, projectada uns anos antes

[fig.105]56.

Convém assinalar que a entrada principal (n° 216 da avenida da

República, endereço oficial da fábrica) que dá acesso directo à

administração, se encontra virada para o antigo edifício da Câmara

Municipal de Matosinhos na rua Brito Capelo. Isto poderá comprovar uma

intenção propositada em situar o centro de estatuto da empresa face ao

centro do poder local57.

Esta postura que se revela ao observador pode ser reconhecida

noutros exemplos, na disposição dos corpos administrativos das outras

grandes fábricas da mesma época, como a Pinhais, a Ramires, a Lopes,

Coelho Dias a C.a (demolida), a unidade da Júdice Fialho (idem), ou a

Brandão Gomes (idem), o que confirma uma necessidade constante por

parte dos grandes pólos geradores de riqueza de se localizarem

estrategicamente face ao poder e reclamando notoriedade para si mesmos.

É bastante evidente, para quem se predispuser a observar, como este

gaveto junto à praça se traduz num espaço de memória do lugar e de toda a

cidade. Hoje em dia, apesar de nos encontrarmos perante uma ruína, é

ainda notável pela presença que imprime no olhar de quem passa,

encontrando-se bem patente na memória colectiva da população mais

idosa, que a recorda com o saudosismo de um passado próspero e

«glorioso»58. A tudo isto não terá sido alheia toda a atenção que António

Varela colocou na sua resolução:

“(…) No partido da composição, pretendemos conciliar, a valorização da Praça Circular, dar a cada um dos arruamentos, fachadas de harmonia com a importância dos mesmos, quer sob o ponto de vista estético, quer sob o ponto de vista da importância da circulação, sem que por essa razão deixasse

56 V. supra, 4.2. 57 Gesto por si só simbólico, dado o edifício da antiga câmara se encontrar alguns quarteirões acima, fora do eixo visual e somente observado em planta, mas reflexo de uma postura de afirmação típica, à época, dos consórcios privados… 58 “Era a maior e a mais bela de todas”: no que respeita a memória local sobre a A.E.L. e outras antigas fábricas de Matosinhos, foi este o traço mais comum que reunimos em depoimentos por entre a população local, onde se incluem numerosas ex-operárias e «gentes do mar» que recordam a fábrica com saudade e afecto. Sobre o imaginário dos espaços de memória matosinhenses, veja-se ainda as figuras 174-212.

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de ser cumprido rigorosamente o programa que nos foi fornecido, o racional aproveitamento do terreno, e a distribuição da luz julgada conveniente para cada uma das secções que constituem o todo da fábrica. E assim, projectamos a Secção de Gerência confinando com a Praça Circular numa constituição de um só pavimento, com a cobertura horizontal, e com o desenvolvimento da fachada em seguimento da circunferência concêntrica da Rotunda conseguindo arranjo gracioso e praticamente, um aumento do raio da mesma Rotunda [a praça Passos Manuel] o que dará a esta o aspecto sempre agradável de desafogo.” (Id. ibid.).

Observa-se, pela ênfase concedida, todo o cuidado essencial que o

autor quis dar a esta parte do projecto, no sentido de querer conjugar o

projectado com o existente. Não se sabe, porém, se a escolha desta parte do

terreno para o posicionamento da administração terá sido de António

Varela ou se terá partido da vontade de Agostinho Fernandes.

Parece, no entanto, afigurar-se invariavelmente como o

posicionamento estratégico ideal, tanto pelas razões citadas, como por

confluência de opiniões, se tivermos em conta o bom entendimento entre

António Varela e o seu cliente, (que para além de sócio-gerente, também

fora seu patrono)59.

Por outro lado evidencia-se a preocupação do autor em “dar a cada

um dos arruamentos, fachadas de harmonia com a importância dos

mesmos”. A observação do lugar confirma a memória descritiva: existe de

facto uma hierarquia própria, que serve tanto os aspectos funcionais da

fábrica como a sua relativa correspondência à importância dos eixos. Já

observámos como procedeu em relação à praça da avenida da República;

veja-se em relação ao resto:

“Ao longo da Avenida da República, com eixo longitudinal no sentido Nascente/Poente projectamos a secção de fabrico num vasto Hangar com cobertura sem apoios intermediários, com a fachada francamente aberta à luz do norte, e com um módulo de construção determinado do que resultou uma fachada, de ritmo harmonioso e a que a altura do entablamento (necessário para evitar poeiras no interior) dá certo ar de grandiosidade.” (Id. ibid.).

Para além de se encontrar esta frase no original, retomada pelo artigo da

Arquitectura Portuguesa, é possível constatar desde logo que, a respeito da

hierarquia dos espaços e dos eixos, Varela não deixa margem para dúvidas:

59 Ver supra, 3.2.

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é o eixo da avenida da República, no seguimento da praça, que orienta e

estabelece a hierarquia dos espaços projectados. Isto demonstra a

continuação da mesma linha de raciocínio do autor, antes manifestada em

relação à praça. Para mais, a procura de uma qualidade lumínica mais

«neutra» aliada à ventilação da secção de fabrico («a luz de norte») parece

revelar a sensibilidade do «arquitecto-funcionalista» mas também do

«pintor-esteta». Continua António Varela:

“Ao longo da rua Dr. Alves da Veiga projectamos o armazém, chamado de cheio num edifício de proporções mais modestas mas a que também um módulo de construção, a relação entre os cheios e as aberturas, a altura total, e a elevação da parte destinada à habitação do encarregado juntamente com a empena do Hangar da secção de Fabrico que lhe serve de fundo dão motivo de sã harmonia e sério aspecto.” (Id. ibid.).

É notória a preocupação do autor em colocar em evidência a

harmonia das partes com o todo: através do equilíbrio dos cheios com os

vazios, do jogo de volumetria entre os diferentes módulos, enfatizando o

aspecto cenográfico entre a “parte destinada à habitação do encarregado” e

a “empena do Hangar da Secção de Fabrico”, jogando como pano de

fundo. Esta empena era realçada em termos cenográficos pela colocação de

um poste de bandeira, o que lhe acentuava a imponência frente à praça e ao

lugar que ocupava.

“(...)Finalmente confinando com a rua João Chagas, lado do trapézio com ângulos diferentes de 90° instalámos os serviços de abastecimento da fábrica, em edifícios de proporções adequadas às suas funções com as respectivas zonas mortas (de serviço) independentes da rua, limitadas por um muro de vedação que define o alinhamento. A racional distribuição destes serviços engendrou uma fachada movimentada em dentes de serra, a que a vedação de cada uma das zonas dá unidade. O efeito sempre desagradável, da solução vulgar com sutamentos, foi evitado com este arranjo (...).” (id., ibid.).

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Fig.  203  –    AEL,  acessos  da  [secção  de  vazio  e  pátio:  o  escalonamento  dos  módulos  facilita  a  acessibilidade  rodoviária  [pormenor  da  planta  geral].    

Fig.  202  –    esquema  de  acessibilidades    de  Ernst  Neufert  [Architect’s  data,  1936].    

Fig.  204  –    AEL,  secção  de  gerência,  com  vista  sobre  a  secção  de  fabrico.    

Note-se que esta «racional distribuição» da fachada movimentada

em «dentes de serra» é uma solução tipicamente funcionalista e moderna,

apontada por Ernst Neufert, na sua obra Architect’s data60 (1936), no que

se refere à relação da fábrica moderna com os seus acessos. Colaborador

de Gropius na Bauhaus e iminente teórico do funcionalismo moderno,

Neufert comenta que as circulações ocupam muito espaço devido aos raios

mínimos das curvas, referindo que “os terrenos mais convenientes são os

de via oblíqua” (Neufert, 1996, p.280) e “não sendo assim, convém adoptar

a disposição oblíqua para os edifícios” (id. ibid.) [fig.202].

É possível estabelecer uma comparação entre o modelo de Neufert, e

a articulação dos módulos dos armazéns de vazio da fábrica da A.E.L.

[fig.203]. Estas soluções formais decorriam de uma preocupação

eminentemente funcional no processo de concepção do espaço, sendo,

nessa época, inovadoras em Portugal. António Varela finda a introdução à

memória descritiva considerando que face à sua obrigação como autor do

projecto terão os desenhos que o constituem a faculdade de fornecer todas

as indicações necessárias para que fique “dada a ideia exacta da obrigação”

(A.C.M.M., 1938) à qual se propôs:

“(...) ao termos o honroso encargo, de elaborar o projecto da Fábrica que a firma Algarve Exportador Limitada pretende construir na vila de Matosinhos e que foi a de projectarmos uma construção digna da importância da indústria de conservas, do valor comercial da firma Algarve Exportador Limitada, e que contribui para valorizar ainda mais o valioso centro industrial onde vai ser realizada.” (Id., ibid.).

Prossegue a memória descritiva relativamente ao funcionamento da

fábrica, e clarifica-se numa análise paralela à planta geral, que se optou por

numerar, com vista à sua correlação sequencial [fig.205].

60 NEUFERT, Ernst, Arte de projectar em arquitectura, Ed. Gustavo Gili do Brasil, São Paulo, 11ª ed., 1996, p.280 [Architect’s data, segundo a versão original alemã Bauentwurfslehre, 1936].

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Fig.  205  –    AEL:  organização  do  espaço  interno  da  fábrica  segundo  o  projecto  original:  verifica-­‐se  em  planta  a  funcionalidade  do  sistema  em  cadeia  que  progride  de  forma  linear,  e  de  modo  semelhante  ao  esquema  apresentado  na  figura  7;  (I.  SECÇÃO  DE  VAZIO;  II.  

SECÇÃO  DE  FABRICO;  III.  

SECÇÃO  DE  CHEIO):  a  numeração  representada  corresponde  à  numeração  da  memória  descritiva  de  António  Varela:  (1)  gerência  a  acesso  à  habitação  do  encarregado;  (2)  secção  de  fabrico;  (3)  armazém  de  cheio;  (4)  armazém  de  vazio  e  depósito  de  sal;  (5)  entrada  de  serviço;  (6)  garagem;  (7)  depósito  de  água  em  elevação;  (8)  creche,  vestiário,  refeitórios  e  balneários;  (9)  habitação  do  encarregado;  (10)  galeria  na  secção  de  fabrico.  Em  termos  funcionais,  é  ainda  possível  observar  a  localização  do  núcleo  constituído  pela  casa  das  caldeiras/motor/autoclaves,  depósito  de  guano,  chaminé,  casa  do  azeite,  oficina,  garagem,  pátio  e  armazém  para  instituto  [fiscalização]  

No que diz respeito à secção administrativa, e segundo a memória

descritiva de Varela, evidencia-se a necessidade de centralizar este espaço

como «charneira», articulando duas «frentes» simultaneamente: o espaço

de fabrico e o espaço exterior.

“A gerência localizada na parte do terreno que confina com a rotunda, tem o acesso pela mesma rotunda, e compõe-se de uma sala para exposições de mercadoria, uma sala de receber, vestiários, instalações sanitárias e escritórios com o respectivo expediente. Do escritório comunica-se directamente com a secção de fabrico e com o armazém de cheio. O acesso à habitação do encarregado, independente de qualquer dependência da fábrica faz-se também pela rotunda, no diedro formado pela parede norte do armazém de cheio e a parede nascente da secção gerência” (Id. ibid.).

Saliente-se que deste espaço do escritório a vista panorâmica sobre a

secção de fabrico é total, o que permitia uma vigilância constante sobre o

processo de fabrico e os trabalhadores [fig.204]. Este modo de conceber o

espaço traduz, simbolicamente, uma certa lógica de hegemonia do

patronato, um pouco à imagem da Casa da Moeda de Segurado, com os

seus «pontos de observação» sobre os operários, mas também à

semelhança de outras indústrias onde a necessidade de vigília era uma

constante.

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Fig.  206  –    AEL,  interior  da  secção  de  fabrico,  vista  sobreelevada  a  partir  da  açoteia  [foto  de  1938].  Nota-­‐se    o  sistema  de  asnas  treliçadas  em  ferro,  permitindo  o  vencimento  de  um  grande  vão  de  26  metros  de  envergadura  sem  apoios  intermédios.  Á  direita:  as  chaminés  dos  autoclaves;  à  esquerda:  a  fachada  para  a  avenida  da  República  e  a  retícula  janelar  de  betão  armado  que  integrava  o  sistema  de  caxilharia  oscilante  destinada  à  ventilação;  em  cima:  a  grande  clarabóia;  ao  fundo,  as  janelas  e  o  acesso  da  administração.    

Fig.  207  –    AEL,  automatização    do  sistema  em  série,  aspecto    do  produto  final  [foto  de  1977].    

A secção de fabrico da A.E.L. [fig.206-208-209] constituía-se em si

mesmo como o espaço principal de todo o conjunto, sendo o «coração» da

fábrica. O seu funcionamento obedecia ao sistema de produção em série e

em cadeia, ou seja:

Recebia, a poente, a lata vazia vinda da secção de vazio [fig.205; I.],

e o peixe já salgado; na secção de fabrico [fig.205; II.], onde se procedia

em primeiro lugar ao descabeço e à limpeza do peixe, donde de seguida se

lavava e se cozia, passando-se ao seu enlatamento, nas latas recebidas da

secção de vazio, sendo a operação efectuada nas várias bancadas pelas

operárias; de seguida passava para a secção de azeitamento, onde o

processo mecânico era executado pelas máquinas «azeitadeiras». A lata

era, então, fechada nas «cravadeiras», seguindo para a esterilização

efectuada nos autoclaves, e daí finalmente para a secção de cheio, situada a

nascente [fig.205; III.].

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Fig.  208  –    AEL,  interior  da  secção  de  fabrico,  vista  sobreelevada  a  partir    da  açoteia  [foto  de  1977  –  uma  das  últimas  imagens  da  fábrica  em  laboração].    

A organização da secção de fabrico da AEL de Matosinhos foi –

deste período e não só –, aquela em que melhor se aperfeiçoaram as

qualidades do espaço funcional no sector conserveiro, estruturando-se de

forma clara e simples, de modo a optimizar o sistema de fabrico em cadeia

e em série, e resultou do esforço de pesquisa de Varela face a um programa

bastante vasto e complexo. Segundo as suas palavras:

“Esta secção localizada ao longo do lado norte do terreno compôe-se de um vasto Hangar destinado ao arrumo dos apetrechos e maquinaria necessários ao fabrico das conservas de peixe. Todas as dependências complementares desta secção – nichos para os cofres de cozimenta, esterilização, casa do azeite, casa do motor, casa das caldeiras, depósito de guano, e instalações sanitárias para serviço do pessoal, ficam adossadas à parede sul do Hangar, em comunicação directa com este e são servidas por um vasto páteo que corre no sentido nascente poente do terreno e separa todas as secções de fabrico da parte destinada à vida dos operários fora das horas de trabalho – creche, vestiários, refeitórios e balneários (...).”(Id. ibid.).

Aqui se demonstra o cuidado de Varela na «parte humana», no zelo

que teve em separar o espaço de fabrico do espaço de apoio à vida dos

operários fora do horário laboral., sendo que o pátio é o espaço que separa

estes dois momentos (trabalho/descanso),que sempre existiram na vida das

fábricas. Volumétricamente, também é interessante compreender que este

«vazio» é importante como momento de «silêncio» na articulação das

partes da composição, entre a fábrica («labor-interior») e o pátio («lazer-

exterior»).

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Fig.  210  –    AEL,  armazém  de  cheio,  com  saída  para  a  rua  Roberto  Ivens.  Por  cima:  a  habitação  do  encarregado  [foto  de  1999].    

Fig.  209  –    AEL,  interior  da  secção  de  fabrico,  vista  sobreelevada  a  partir    da  açoteia  [foto  de  1999].      

O armazém de cheio [fig. 210] dividia-se em dois espaços distintos:

por um lado o armazém propriamente dito, onde se verificava

manualmente o vácuo da lata numa operação manual efectuada pelas

apelidadas «verificadeiras»61, e por outro, um espaço necessário à

fiscalização, que procedia a vistorias periódicas do produto acabado,

servindo de escoamento do produto pela rua Roberto Ivens situada a

nascente:

“Este armazém localizado no lado nascente do terreno é dividido em duas partes, por uma parede que corre transversalmente, destinando-se uma, à mercadoria para o instituto, outra, para a mercadoria da fábrica. O seu acesso com o exterior é feito por dois portões com dimensões que permitem a passagem das camionetas. O armazém para o instituto comunica interiormente com o da fábrica, e este directamente com a secção de fabrico.” (Id. ibid.).

No que respeita ao armazém de vazio62 [fig.211-213-214-218-219], é

importante considerar – para além da sua descrição funcional e interna,

patente na memória descritiva de Varela –, a sua relevância como parte

expressiva do exterior. Em relação a este (e ao depósito de sal, incluído

nesta área), prossegue a memória descritiva:

61 Apelidam-se de «verificadeiras» as operárias com a função de verificar o vácuo no interior das latas, antes do embalamento no armazém de cheio, fazendo-se este processo batendo manualmente umas nas outras, distinguindo deste modo, e pela sonoridade, o correcto fecho da lata. 62 Recorde-se que se designa por «secção de vazio» a área destinada ao fabrico das latas de conserva.

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Fig.  211  –    AEL,  “torre”  de  vigia  e  entrada  da  secção  de  vazio  [s.d.].  Ao  fundo:  as  chaminés  e  o  depósito  de  água.  em  elevação.    

Fig.  213  –    AEL,  “torre  de  vigia”    e    secção  de  vazio    [foto  de  1999].    

Fig.  214  –  António  Varela,  acesso    do  armazém  de  vazio  [desenho  nº9:  corte  longitudibal  –  pormenor  ].    

Fig.  212  –  Álvaro  Siza  Vieira,  desenho,caneta  sobre  papel,    [s.d.]      

“Este armazém localizado no ângulo do terreno formado pelos alinhamentos dos lados norte e poente comunica interiormente com a secção de fabrico, e com o exterior por intermédio de um cais próprio separado da rua por um muro de vedação. O depósito de sal, situado no prolongamento do armazém de vazio tem como este para serviço de abastecimento um cais próprio igualmente separado da rua por um muro de vedação, e comunica interiormente com a secção de fabrico”. (Id. ibid.).

António Varela não menciona o acesso vertical à açoteia por uma

escada que acompanha a forma cilíndrica integrada na torre. Mas este topo

poente da fábrica, denominado localmente pela população de «torre» ou «o

torreão da Algarve Exportador», ficou indelevelmente no imaginário

colectivo da cidade [fig.212]. Assumia efectivamente as funções de uma

torre de vigia, visto encontrar-se marcadamente virada para a doca e para o

mar, e permitia observar a movimentação portuária, avistar o regresso das

embarcações pesqueiras e accionar a sirene que convocava ao trabalho.

Do ponto de vista do desenho urbano, este elemento «resolve» o

gaveto entre a avenida da República e a rua Heróis de França, enquanto

que ao nível da fachada remata a horizontalidade da secção de vazio com o

seu movimento dinâmico e vertical.

Embora não seja mencionada por Varela, que se remete ao seu

silêncio para além das justificações funcionais, esta também é uma

situação original e bastante invulgar na arquitectura conserveira,

revestindo-se não apenas de um carácter funcional, mas também como um

exercício metafórico e simbólico: a torre de vigia, vista do exterior, parece

assumir-se no mais puro formalismo modernista, na sugestão do «espírito

da máquina», além de dar a ideia de uma «fortaleza impenetrável»

[fig.211-213], enquanto que interiormente marca os limites do percurso

interno através da verticalidade, com uma «ascensão» em direcção à luz e

ao céu [fig.218-219].

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Fig.  219  –    AEL,  escada  de  acesso    à  “torre  de  vigia”  na    secção  de    vazio  [foto  de  1999].    

Fig.  217  –    Yakov  Chernikov,  die  arkhitekturnye  fantasil,  Leningrado,  1933.    

Fig.  218  –    AEL,  laje  em  consola    na“torre  de  vigia”  [foto  de  1999].    

Fig.  215-­‐216  –    Labayen  e  Aizpurua,  Clubhouse,  San  Sebastian,Espanha,  1929.  Planta  e  fotografia.    

Podendo evidenciar-se como «momento poético», em tom de

«promenade architecturale», a sua forma em «quilha» é uma marca típica

do apelidado «estilo boat» [fig.215-216], que Varela, à imagem de outros

arquitectos modernistas, à época muito acalentava. Aqui a metáfora poderá

submeter-se à analogia directa da proa de um navio, como representação

icónica e arquetípica do léxico do modernismo «heróico». Há que ter em

conta os exemplos de utilização da forma cilíndrica como expressão da

estética dos anos 20-30 em torno do mítica industrial, bastante presente nas

primeiras obras dos precursores modernistas, como no caso de Mendelsohn

ou Le Corbusier, assim como em algumas ilustrações visionárias de

Chernikov [fig.98-217] ou Sant’Elia [fig.99]. Este elemento da composição

de Varela recorda também algumas analogias morfológicas de Le

Corbusier, em Vers une Architecture63.

António Varela tinha conhecimento de algumas obras dos

arquitectos modernistas estrangeiros, contudo sabe-se que a informação

chegada a Portugal sobre as evoluções dos «modernismos», nos anos

Trinta, apesar de mais abundante do que na década anterior, não era

suficiente, para fazer amadurecer um verdadeiro carácter doutrinário, tal

como o considera Nuno Portas64. Seria talvez mais a proximidade da

dinâmica gerada em torno da «primeira geração moderna» e a sua parceria

com Jorge Segurado, a ter influenciado o imaginário de António Varela na

produção de «imagens» da modernidade. Aqui as analogias serão mais

directas, revelando o recurso à forma da «quilha», como no caso do

63 “Les éléments de la nouvelle architecture se peuvent reconnaître dans les produits industriels: bateaux, avions et automobiles.” In LE CORBUSIER, Vers une Architecture, Paris, 1923, veja-se ainda a este respeito BENÉVOLO, Leonardo, História de la arquitectura moderna, 78 edição, 2ª tirada, Editora Gustavo Gili, Barcelona, 1996, pp. 456-464. 64 Ver supra, 3.3.2.

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Fig.  220  –    AEL,  entrada  de  serviço  dos  soldadores  pela  rua  Heróis  de  França  [actualmente  murada]  [foto  de  1999].    

Fig.  221  –    AEL,  seccção  de  fabrico:  entrada  de  serviço  pelo  pátio    [foto  de  1999].  Note-­‐se  as  pilastras  octogonais  e  os  «óculos».    

Fig.  222  –    AEL,  garagem  no  fundo  do  pátio  [foto  de  1999].    

mercado de Coimbra, da Mirante ou da Casa de São Francisco, ou ainda

noutros projectos com Segurado.65

No que respeita a entrada de serviço dos operários, a garagem e a

localização do depósito de água em elevação, prossegue Varela:

“Esta entrada foi localizada quasi no extremo sul do lado poente do terreno e no eixo do muro de vedação do páteo, por ela se faz a entrada do pessoal e todo o abastecimento da secção de fabrico e dos seus indispensáveis anexos (…)”(Id. ibid.) [fig.219].

À semelhança da hierarquia de acessos da Casa da Moeda, aqui

também estes têm uma clara separação, opondo a entrada da administração

à entrada dos operários, e estes maioritariamente, por uma questão de

tradição neste tipo de indústria, divididos por sexos segundo as suas

funções: neste caso a entrada dos homens fazia-se pelo portão da secção de

vazio [fig.220] (para o trabalho de soldadura da folha de flandres), e a das

mulheres pelo pátio e daí para o interior da secção de fabrico e demais

serviços [fig.221].

No caso da garagem [fig.222], localizada ao fundo do pátio, foi

estabelecida “em alpendre encostado à parede poente do armazém de

cheio, e ocupa transversalmente toda a sua largura” (Id. ibid.) [fig.223-

224]. Convém assinalar que este espaço foi mais tarde dividido em dois,

sendo sido em parte fechado e utilizado como nova creche, quando a

primeira foi demolida, com vista à comunicação da fábrica com os

armazéns de estiva da segunda fase (1941). Quanto ao depósito de água em

altura, foi localizado “no ângulo formado pelos lados do terreno poente a

sul, neste ângulo projectou-se um alpendre destinado a possíveis serviços

futuros que não possam ser feitos a céu aberto.”66 (Id. ibid.) [fig.225].

65 V. supra, 4.3.3. e 5.2. 66 Embora António Varela tenha assinalado o espaço onde este elemento se iria localizar, não se sabe se terá sido implantado no seu local original, ou se foi construído directamente no espaço que ainda ocupa actualmente (a uns escassos metros a sul, já nos terrenos da ampliação), ocupando lateralmente um canto gerado pelo encosto do corpo do armazém de 1941, do lado da rua Heróis de França.

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287

Fig.  225  –    António  Varela,  módulo  de  apoio  destinado  a  creche,  vestiário,  refeitórios  e  balneários;  ao  lado,  o  depósito  de  água  [desenho  perspectivado,  1938,  pormenor].    

Fig.  223  –    António  Varela,  creche    [planta  geral,  1938,  pormenor].  

Fig.  224  –    AEL,  pátio  com  acesso  pela    rua  Heróis  de  França  [actualmente  murado]e  entrada  de  serviço  da    secção  de  fabrico  [foto  de  1999].    

No que respeita a creche, os vestiários, os refeitórios e os balneários

[fig.222-223], refere António Varela:

“Estas instalações situadas no lado sul do terreno, compõem-se: A creche; de uma vasta sala, com a entrada recatada e separada do pátio por um muro de vedação, baixo e em alegrete, os vestiários refeitórios; de dois grupos, um para homens, outro para mulheres, análogos mas de dimensões diferentes, proporcionada ao número de operários de cada sexo. As construções projectadas para estes serviços são de aspecto simples, mas alegre, como convém, e o seu arranjo interior será feito de molde a permitir a sua utilização quotidiana, com ordem e perfeito estado de asseio. A iluminação e ventilação são asseguradas pelas grandes superfícies envidraçadas e pelo vasto pátio que as separa das outras secções da fábrica” (Id. ibid.).

Registamos, segundo o testemunho de antigos operários, que este

espaço do pátio com os seus serviços de apoio (creche, vestiários,

refeitórios e balneários) era um local que servia exemplarmente as suas

funções, onde foi possível, mais tarde, com a ampliação para um piso

superior, instalar uma enfermaria, permitindo o apoio para cuidados e

assistência médica privada [fig.225].

Referimos anteriormente que o pátio é o espaço que separa estes dois

momentos que sempre existiram nas fábricas: o tempo de trabalho e o

tempo de descanso: podemos observar que este pátio possui uma escala

mais «humana», o que parece contribuir para o seu carácter mais privado,

por oposição à frente da Avenida da República, explicitamente

monumental e em «diálogo» permanente com o exterior.

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Fig.  226  –    António  Varela,  AEL,  habitação  do  encarregado  e  aposentos  da  administração,  com  terraço  por  cima  da  secção  de  gerência  [desenho  perspectivado,  1938,  pormenor].    

Fig.  227  –    António  Varela,  AEL,  habitação  do  encarregado  e  aposentos  da  administração,  com  terraço  por  cima  da  secção  de  gerência:  a  sala  de  refeições  estabelece  a  comunicação  entre  as  duas  áreas  [planta  de  cobertura,  desenho  nº3,1938,  pormenor].    

Por comparação, convém referir que não era possível atingir esta

qualidade do «privado» nos grandes pátios das conserveiras mais antigas,

esses «enormes planos de batalha»67 onde a necessidade de circulação e de

todo o funcionamento da fábrica era prioritário. Neste caso o espaço não é

desvirtuado por funções de trabalho, parecendo antes funcionar como

“contraponto” à secção de fabrico.

No que diz respeito à habitação do encarregado68 [fig.226-227], esta

situava-se sobre o lado norte do armazém de cheio, e compunha-se, na

realidade, de duas partes distintas: uma destinada ao encarregado da

fábrica e outra privativa da administração:

“[…] A primeira é formada pelo hall de saída da escada, sala de jantar, cozinha, três quartos e instalações sanitárias; a segunda, por uma pequena sala de refeições, um amplo quarto, e respectiva instalação sanitária. Esta parte da habitação tem comunicação com o terraço da cobertura da secção gerência”. (Id. ibid.).  

 

Por fim, António Varela ainda menciona uma galeria «em elevação»

na secção de fabrico [fig.228]: “Esta galeria prevista no projecto destina-se

a uma possível instalação do vazio, que de futuro se poderá tornar uma

necessidade, não fazendo portanto parte da construção inicial”69 (Id. ibid.).

Convém referir que esta galeria nunca chegou a ser construída, como se

pode verificar pela observação das paredes da ruína, que não aparentam

nenhum tipo de fixação70.

67 V. nota 28 do presente capítulo. 68 Trata-se, de facto, do gerente da fábrica. 69 Este elemento é visível no alçado norte da secção de fabrico, assim como no desenho n°7 do processo de licenciamento. 70 O mesmo também nos foi confirmado por antigos funcionários da fábrica ao afirmarem desconhecer tal situação.

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Fig.  228  –  António  Varela,  a  galeria  periférica  por  cima  da  secção  de  fabrico  [não  executado]  [corte  transversal,  desenho  nº7,  1938,  pormenor  ].    

Pela observação do desenho n°7 [fig.228], assim como do desenho

n°8, relativos, respectivamente, ao corte transversal e ao corte longitudinal

da secção de fabrico, verifica-se que esta galeria tenha sido projectada para

poder percorrer toda a secção de fabrico pela periferia e em altura, por duas

frentes distintas: por um lado a sul, pela parede que faz a ligação com as

instalações de apoio à secção de fabrico (casa do azeite, casa das

máquinas, etc,) e por outro, a norte, correndo toda a grande fachada

envidraçada junto à avenida da República. No entanto, poderá existir uma

razão para a galeria nunca ter sido construída:

Tendo em conta a descrição de António Varela, esta galeria “não

fazendo parte da construção inicial”, estaria destinada a uma possível

ampliação da secção de vazio, ou seja, da parte destinada ao fabrico de

latas de conserva. Foi possível apurar, no entanto, segundo alguns ex-

funcionários da fábrica, que toda a secção de vazio foi transferida, por

volta de finais dos Anos Sessenta, para o armazém nascente, devido às

ampliações da fábrica em 1941. Neste sentido, e considerando que estes

armazéns (da segunda fase) foram construídos imediatamente três anos

após a inauguração da fábrica (a primeira fase), é possível concluir que

nunca terá sido necessária a ampliação da secção de vazio para uma galeria

num segundo andar, por cima da secção de fabrico, tal como Varela

previra.

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Fig.  230  –  A  fábrica  de  conservas    Rainha  do  Sado,  1941,confinante  com  os  armazéns  da  AEL  [foto  de  1999].    

Fig.  229  –  António  Varela,  AEL,    armazéns  de  ampliação,  1941.    

6.3.4.2. Segunda fase: projecto dos armazéns de ampliação

da fábrica71

Este edifício destinava-se ao armazenamento e estiva de produto

para exportação, devendo-se a sua construção a um aumento exponencial

da produção da empresa, face à encomenda massiva no contexto bélico da

Segunda Guerra Mundial. Não foi possível apurar se o terreno

correspondente à edificação dos armazéns já pertencia à firma Algarve

Exportador Limitada ou se foi comprado depois da aquisição do terreno

inicial no qual a firma construiu a unidade fabril, três anos antes, pois a

nada disto se refere o processo camarário. No entanto, segundo o que se

pode concluir pelas datas de entrada dos relativos processos na autarquia,

consta o registo de uma aprovação relativa à construção da fábrica de

conservas de peixe da firma Rainha do Sado [fig.230], datada de Janeiro de

1941, situada mais a sul, no extremo triangular do quarteirão. Deste modo,

conclui-se que o espaço «sobrante» entre o lote da Rainha do Sado e o lote

da AEL foi aquele onde se edificou o armazém de ampliação desta mesma,

por António Varela.

Os usos destes armazéns variaram com o tempo. António Varela não

especifica claramente as diferentes funções dos seus três espaços

diferentes, a não ser o central, destinado à estiva:

71 Autoria de António Varela; data de aprovação camarária: 29 de Maio de 1941.

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Fig.  231  –  AEL,  armazéns  de    ampliação  da  AEL,  1941,    alçado  sul  [foto  de  1999].    

“O terreno tem a forma trapezoidal (trapézio rectângulo) e os seus eixos medem: o transversal 15.60 m. e o longitudinal 61.00 m., o lado menor das ângulos de 90° confina com a rua Dr. Alves da Veiga e o lado menor dos ângulos diferentes de 90° com a rua João Chagas, os lados paralelos ao eixo longitudinal são definidos por construções já existentes [...]”.(Id. ibid.).

Estas «construções já existentes» são, a norte, a própria AEL, de

1938-39, do próprio Varela, e a sul, a Rainha do Sado, edificada no

princípio de 1941. Por outro lado, António Varela também sublinha a

necessidade de continuação do desenho de fachadas, em harmonia com o

seu projecto anterior:

“De harmonia com o programas estabelecido a para conseguirmos uma ligação correcta com o existente, situamos as construções como se segue: a) um armazém, com acesso pela rua Dr. Alves da Veiga e cuja fachada abrange todo o alinhamento, com a profundidade de 21.00 m.b) uma construção destinada à estiva com as dimensões de 11.00 x21.00 m. Esta construção é servida por um páteo com a largura de 4.00 m. e com o comprimento de 11.00 m. c) Um armazém com as dimensões de 21.00 x 15.60 m. cuja fachada fica recuada da rua João Chagas, entrepondo-se-lhes um páteo de forma trapezoidal que ficará em comunicação directa com o da fábrica existente. A vedação que confina com a rua João Chagas segue no enfiamento da existente e é de traçado igual.” (A.C.M.M., 1941) 72.

Veremos na última parte deste capítulo73 a importância da métrica

destes módulos no traçado geral de António Varela e de que forma estes se

articulam em continuidade com o primeiro traçado geral do projecto,

datado de 1938. Por enquanto, e seguindo a observação dos vários

momentos construtivos da A.E.L., referimos ainda a última intervenção na

fábrica.

6.3.4.3. Terceira fase: projecto de ampliação do edifício de

apoio ao pessoal da fábrica74

Pese embora o facto de esta fase não ser da autoria de António

Varela, consideramos de importância a sua referência no sentido de se

compreender a quebra operada ao nível da métrica e da composição, como

consequência do aumento da volumetria [fig.232], em altura, que se operou

no módulo original de António Varela, e destinado ao apoio ao pessoal da

72 Algarve Exportador Limitada – armazéns a construir em Matozinhos, memória descritiva de António Varela, processo do Arquivo da Câmara Municipal de Matosinhos (A.C.M.M.), Matosinhos, 1941. 73 V. infra, 6.4.2.4.4. 74 Autoria de Agostinho Ferreira de Almeida; data de aprovação camarária: 29 de Junho de 1946.

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Fig.  232  –  AEL,  ampliação  do  edifício  de  apoio,  1946  [foto  de  1999].    

fábrica. Da memória descritiva do arquitecto Agostinho Ferreira de

Almeida consta o seguinte: “a parte a edificar destina-se à creche,

vestiário, consultório, sala de espera e W. C., para o pessoal da fábrica. A

construção projectada fica instalada no primeiro andar (2° pavimento) de

parte do edifício existente, sendo estes ligados por uma escada de acesso.”

(A.C.M.M., 1946)75

Esta terceira e derradeira intervenção destinou-se a uma nova

localização da creche, do vestiário, assim como da criação de um

consultório médico com sala de espera e instalações sanitárias próprias.

Compreende-se a necessidade deste aumento devido à produção massiva

da fábrica durante a década de Quarenta. O conjunto de serviços foi

organizado num módulo acrescentado por cima do edifício de apoio

original projectado por António Varela, (a primeira fase de 1938),

constituindo-se em altura um edifício que anteriormente era apenas térreo.

O piso superior liga-se ao inferior por uma escada de acesso de dois lanços

(actualmente em estado de ruína), que foi criada a partir da subdivisão do

espaço de refeitório do piso térreo. Para além de se elevar por cima do

existente, este novo módulo confina na sua parede a sul com a parede dos

armazéns de ampliação de Varela (a segunda fase projectual, de 1941).

Refira-se que este apoio médico, que veio completar os serviços de

apoio ao pessoal da fábrica, foi bastante indicado por antigos operários da

fábrica como sendo dos mais eficientes de todas as conserveiras da mesma

época. Esta forma de assistência social privada terá sido, porventura, o

derradeiro e decisivo passo para a fábrica se tornar uma referência do

meio, o que se pôde concluir tanto pelos relatos da imprensa especializada

da época, como pelos testemunhos de vários ex-operários e familiares de

Agostinho Fernandes.

Já no que respeita ao aspecto formal desta última fase, Agostinho

Ferreira de Almeida não seguiu a métrica de Varela, tendo-lhe imprimido

75 Algarve Exportador Limitada – projecto de ampliação do edifício de apoio ao pessoal da fábrica, memória descritiva de Agostinho Ferreira de Almeida, processo do Arquivo da Câmara Municipal de Matosinhos (A.C.M.M.), Matosinhos, 1946.

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Fig.  233  –  ARS  arquitectos,  modelo  teórico  de  uma  fábrica  de  conservas,  in  Conservas  de  peixe,  1946.    

uma caracterização própria, tendo resultado desta intervenção uma

descontinuidade que, embora pontual face ao vasto projecto de Varela, é

suficiente para desarmonizar o conjunto espacial do pátio: não só na

métrica dos vãos, mas também desequilibrando a articulação volumétrica

entre este edifício com os módulos da secção de fabrico e dos armazéns de

1941.

6.3.5. O modelo teórico do atelier ARS arquitectos publicado

em 194676

No crescente esforço de racionalização de meios através da busca de

uma arquitectura que se queria cada vez mais funcional e do qual a fábrica

de Varela surge como uma resposta pioneira, seria contudo interessante

referir um artigo intitulado Uma Fábrica de Conservas Moderna, do atelier

ARS Arquitectos, publicado na revista Conservas de Peixe em 1946, como

proposta de um modelo teórico de fábrica de conservas [fig.233].

“Até ainda bem pouco tempo ninguém se preocupava com o desenvolvimento racional das instalações para uma Fábrica de Conservas. Erguiam-se grandes barracões mais ou menos amplos semeados de pilares, instalavam-se lá dentro os maquinismos irremediavelmente condicionados à

76 Referimos «publicado» no que diz respeito, propriamente, ao artigo. No que respeita à elaboração do modelo teórico pelo atelier ARS (constituído por Fortunato Cabral, Morais Soares e Fernando Cunha Leão, autores, entre outras obras modernas, do Mercado do Bom Sucesso, Porto, 1949-1952), não nos foi possível apurar a data exacta de sua concepção: parece, e apenas isso, que terá sido realmente elaborado já no período do pós-guerra e com o propósito expresso de publicação na imprensa, pelo que se depreende do tom geral do artigo.

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rigidez dos apoios intermédios e à disciplina da construção, desprezando em absoluto as exigências do fabrico. Grande parte das actuais Fábricas de Conservas ainda é caracterizada por uma certa desordem perturbadora na secessão natural das diferentes fases de produção. A disposição desastrada dos edifícios e dos acessos interrompendo a continuidade das operações, só serve de pretexto a inconsoláveis passeios do pessoal e a longos percursos sem vigilância na circulação das matérias primas e dos produtos, diminuindo o rendimento dos maquinismos e aumentando a fadiga dos operários. Uma regra se pode opor a esta desordem coordenando todas as coisas no tempo e no espaço – O FUNCIONAMENTO EM CADEIA – como verdadeiro sistema imposto ao fabrico para manter a continuidade e contiguidade das operações e solidarizar todas as suas fases. A sequência das operações ordenada segundo uma linha continua, verdadeira via de transporte em sentido único, desde a entrada das matérias primas passando pelos locais de preparação, onde se ramifica de modo a servir cada máquina, até ao armazém dos produtos terminados e de expedição, reproduz as fases de um circuito sanguíneo de um corpo organizado. Ficamos assim longe da confusão pelo entrecruzamento e sobreposição da circulação dos produtos, dos operários e dos quadros. A juntar a esta disposição racional há que ter em consideração o progresso realizado no equipamento industrial nos últimos anos, no sentido de se obter maior produção por unidade de tempo sem prejuízo da qualidade do produto” (Conservas, 1946)77.

Citam os autores, seguidamente, toda uma série de equipamento

industrial inovador, “maquinismos com que já estão equipadas algumas

fábricas modernas” (id., ibid.), assim como a questão da higiene das

instalações “hoje objecto de louvável preocupação dos modernos

industriais” (id. ibid.): Seria importante notar que em 1946 já era possível

confirmar a existência, para além da fábrica da AEL de Matosinhos (1939),

de outras unidades fabris com essas mesmas características modernas e que

considerámos como a segunda geração de fábricas conserveiras, iniciada

com a fábrica da A.E.L., e das quais ainda se podem destacar a fábrica de

Benito Garcia (1943), na Afurada, também da autoria de António Varela, e

a fábrica de Januário Godinho, em Matosinhos, já no pós-guerra, como

estabelecimento e plena afirmação de um modelo que terá sido ainda

pioneiro com o exemplo da fábrica da AEL, no fim da década de Trinta.

77 In Uma fábrica de conservas moderna, artigo do atelier ARS Arquitectos, Conservas de peixe, 1946.

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De facto, tornam-se patentes no discurso de 1946 do ARS

Arquitectos, certos princípios de ordem característicos do Movimento

Moderno, e que já tinham sido anteriormente postos em prática por

António Varela no projecto da fábrica da AEL, sete anos antes:

“Trata-se de cerrar o trabalho das condições normais da natureza, de Sol, espaço e limpeza, como meio natural que preside à longa e minuciosa formação do ser humano. Só assim se conseguem transformar radicalmente as condições de trabalho, dando conforto e uma certa alegria a esta parte mais longa e mais dura da vida. A todos estes factores, ideias e regras tem de se atender na elaboração dum projecto para uma fábrica de conservas moderna para rasgar novos horizontes à produção desprezando os usos rotineiros. De acordo com estes princípios se elaborou o desenho que a gravura representa, que como se verifica, não tem a pretensão de ser um projecto, mas sim um esquema estrictamente funcional da parte mais importante de uma Moderna Fábrica de Conservas. À roda desta zona gravitam todas as secções subsidiárias que não vale a pena enumerar por serem do conhecimento geral. Adoptá-lo é uma questão de ética, uma decisão do espírito, a aceitação de um ponto de vista. Os meios estão todos ao alcance e à disposição de quem queira elaborar o plano” (Id., ibid.).

Em resumo, e num quadro histórico alargado, relembramos que no

que respeita a evolução do modernismo na arquitectura portuguesa, foi

indubitavelmente a década de Trinta o tempo do surgimento das novas

oportunidades. O Estado Novo começou lentamente a tomar forma e a sua

edificação, inseparável do pensamento político salazarista, realizou-se com

a criação da União Nacional, em 1932, com a Constituição, o Estatuto do

Trabalho Nacional e os Sindicatos Nacionais, em 1933, o que permitiu,

nesta fase primordial, o relançar da economia e da indústria78. Nesta

década de Trinta, onde os arquitectos da nova geração moderna ainda

«acreditou» numa possível reforma geral da arquitectura feita através da

aplicação de princípios modernos, pela relativa liberdade geral com que

alguns arquitectos ainda exerceram a sua arte, antes do retrocesso geral da

década de Quarenta79. Esta arquitectura passou, mais tarde, nessa década,

78 Cf. PORTELA, Artur, Salazarismo e Artes Plásticas, Biblioteca Breve/Volume 68, ed. Instituto da Cultura e da Língua Portuguesa, Divisão de Publicações, Lisboa, 1982, pp.76-77 [1ªed. 1987]. 79 Idem, ibidem. Veja-se ainda a este respeito FRANÇA, J.-A., Terceira Parte – os Anos 40 e 50, in A Arte em Portugal no século XX, Bertrand Editora, 3ª edição, Lisboa, 1991 [1ªed. 1974].

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para uma «arquitectura de resistência», devido à inevitável e consequente

cristalização do regime80.

Foi no contexto da década anterior, no princípio de um novo impulso

económico mas ainda sem uma nova ideologia de regime completamente

consolidada, que a Algarve Exportador Limitada se expandiu

maioritariamente e embora possuindo, desde a sua fundação em 1920, uma

unidade em Lagos, seguida da de Lisboa e, mais tarde, Setúbal, Peniche e

Nazaré, procedeu à construção de raiz de uma sexta fábrica, sedeada em

Matosinhos, passando a assegurar estrategicamente o território nacional de

norte a sul. O seu projecto foi encomendado a António Varela, e demarca-

se das anteriores por ser das primeiras em Portugal onde surge um cuidado

entre a organização de um espaço eminentemente funcional, conjugada a

uma imagem empresarial moderna no quadro de procura de uma «estética

industrial».

Isto significa que a fábrica de Matosinhos, para além de ter sido,

desde cedo, reconhecida pela utilização dos novos processos de fabrico,

assim como pela qualidade de seus produtos, assume-se como um exemplo

para a época, pelo refinamento e o carácter inovador de uma linguagem

moderna, pouco vista no ramo, tendo reforçado a imagem da própria

empresa no panorama nacional e internacional. É o que transparece, no

cuidado do traçado das fachadas, de sua iconografia e de sua publicidade,

sendo a imagem e a essência como um todo indivisível, cristalizado

iconograficamente no seu logotipo.

José Manuel Fernandes, no Inventário do Docomomo Ibérico

Arquitectura e Movimento Moderno, comentando esse tempo da primeira

geração do modernismo português, refere:

“(…) um tempo inicial, entre 1920 e 1930, necessariamente experimental, [de quando nos] ficam preciosidades, obras com linguagens díspares, espaços e formas radical ou moderadamente modernizantes. Da década turbulenta dos anos 40, são testemunho projectos que tentam denodadamente «romper» a pesada cortina política, nacionalista e autoritária que impregnava

80 Idem, ibidem.

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os dois estados ibéricos – é o começo e a glória de uma arquitectura de resistência” (DO.CO.MO.MO., p.6)81.

Neste sentido, a fábrica de Matosinhos parece ilustrar o

anteriormente citado, podendo-se situá-la entre estes dois tempos, sendo,

em essência, um exemplo de um período de transição. E se é verdade que

esta unidade integra uma raiz modernista e funcionalista – tendo sido, a seu

tempo e no meio em que se implementou, um projecto radicalmente

inovador –, mais do que isso, parece também revelar – mesmo através das

suas ruínas, – o valor e a complexidade de um «estilo português de

arquitectura modernista». Deste modo, reveste-se também de referências a

um sistema cultural próprio e distingue-se da produção exclusivamente

funcionalista do mesmo período.

Procurou-se assim, na primeira parte deste capítulo, observar a

fábrica de Matosinhos de Varela no que respeita essencialmente o seu

«uso». Foi necessário estabelecer um enquadramento prévio da história das

tipologias da indústria conserveira para se conseguir compreender o caso

particular desta fábrica, e que traduz invariavelmente o pensamento em

acção do seu autor.

No entanto, as suas qualidades como obra arquitectónica parecem

não se restringir unicamente ao seu «uso», à sua funcionalidade e à sua

leitura histórica, mas também na sua capacidade de «representação», numa

metodologia de composição que revela uma idealização própria.

Foi essa idealização que se procurou compreender na parte seguinte.

81 FERNANDES, José Manuel, Apresentação do Docomomo Ibérico, in Arquitectura do Movimento Moderno – 1925-1965 – Inventário do Docomomo Ibérico, ed. Docomomo Ibérico / Fundação Mies Van der Rohe / Associação dos Arquitectos Portugueses, 1998, p.6.

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Fig.  234  –  AEL,  pórtco  de  entrada    da  administração  [foto  de  1941,  familiar  de  Agostinho  Fernandes].    

 

 

 

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299

Fig.235  –  AEL,  entrada    da  administração  [foto  de  1946,  familiar  de  Agostinho  Fernandes].    

 6.4. COMPOSIÇÃO, TRAÇADO E SIMBÓLICA: UMA INTERPRETAÇÃO

6.4.1. Introdução

“Pour  l’admirer,  il  faut  lever  les  yeux.”82  

                                                           Maurice  Guinguand

O estudo da representação é o estudo do lugar ou dos elementos

arquitectónicos enquanto portadores de uma função simbólica implícita.

Foi a partir deste prisma que estabelecemos o método de observação do

desenho da fábrica, que parecem reveladoras das intenções e dos princípios

de composição do autor.

Em primeiro lugar, o estudo dos traçados reguladores da fábrica de

António Varela pode ser objecto de pesquisa do cânone, enquanto estudo

da métrica, das razões e das proporções. Por outro lado, o estudo do seu

significado procura estabelecer analogias com outros exemplos. Este

estudo deverá ser objecto de pesquisa do ícone, enquanto sistema de

observação da similaridade (similis) por transferência de arquétipos ou de

formas arquetípicas.

O estudo do cânone estabelece comparações de dados concretos

entre si, tendo-se mantido o seu estudo na estrita observação da fábrica,

com base no desenhos que constam do projecto de António Varela, sempre

que possível, assim como por outro lado, na observação da construção no

seu espaço físico, quando a esta foi necessário recorrer, por comparação

com o projecto original, como por necessidade práctica, por ausência de

documentação que não consta do mesmo.

O estudo do ícone é metafórico, enquanto observação dos mesmos

fenómenos arquetípicos, permitindo estabelecer analogias com outros

exemplos que, embora nem sempre possam corresponder ao mesmo 82 GUINGAND, Maurice, L’or des Templiers, Robert Laffont, Paris, 1973, p.215.

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Fig.236  –  AEL,  pórtco  de  entrada    da  administração  [actualmente    murada]  [foto  de  1999).    

período da fábrica de Varela, parecem ser demonstrativos dos mesmos

processos mentais face a diferentes situações projectuais.

Para poder ser compreendida a presente composição, houve que ter

em consideração estes dois critérios, que se revelaram complementares,

tanto na sua forma como no seu conteúdo, através de certos princípios

mentais de consciência operativa.

6.4.2. Estudo dos princípios de composição da fábrica da

A.E.L.

6.4.2.1. Observação e considerações gerais

No decorrer da observação geral do edifício foi possível encontrar

algumas analogias entre o traçado que preside à elaboração do sistema

construtivo em planta e o traçado do vão de entrada da administração,

junto à praça Passos Manuel [fig.234-235-236].

Entrada «nobre» da fábrica, por excelência, constitui-se como um

pórtico simbólico e marca, em termos de iconografia explícita, o estatuto

da empresa.

Com base no estudo que se segue, será possível considerar que terá

existido uma intenção consciente por parte de António Varela ao relacionar

esta parte com o todo, através de um sistema de analogias comensuráveis.

Não foi possível encontrar os desenhos do autor no que respeita esta

pormenorização, pelo que recorremos à observação directa no edificado83,

tendo sido efectuado um levantamento no local em 1999 [fig.239-240-

241]. No entanto, dois factores levam a encarar com alguma prudência as

considerações que se seguem:

83 Consta do processo camarário da fábrica um alçado do conjunto junto à praça Passos Manuel. Este alçado contém uma porta apenas, sem bandeira, mas tudo leva a crer que o desenho do conjunto do pórtico, com a respectiva bandeira, fez parte dos desenhos de pormenorização que desapareceram juntamente com outros de António Varela. Contudo, toda a sua composição aponta para uma assinatura tipicamente «vareliana», por comparação com outros projectos do autor.

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a) O facto do conjunto do pórtico supostamente simétrico,

como se pode observar no desenho do alçado de pormenor da entrada

da administração apresentar alguns desfasamentos nas suas cotas

máximas.

b) O facto da moldagem em cimento da caixilharia que forma o

seu desenho apresentar algumas variações de amplitude, da ordem

máxima de 3 cm., entre alguns módulos, que no entanto aparentam ser

iguais.

Existem várias razões para estas imperfeições:

a) primeira hipótese:

Como bem se sabe, uma obra nunca é perfeita e somente no papel os

traçados sugerem uma perfeição abstracta que faz parte da essência do

projecto. O rigor da construção já não depende unicamente do projectista

mas de inúmeras variantes, em grande parte da responsabilidade daquele

que constrói e das condições em que constrói.

Somos levados a pensar que embora a execução aparente bastante

rigor no cuidado da aplicação dos materiais, já quanto à métrica ela

apresenta, embora muito pontualmente, alguns ligeiros assentamentos,

colocando-se a hipótese de estes serem originários da construção: neste

caso, põe-se ainda a pergunta de estes terem sido propositados ou

meramente casuais.

b) Segunda hipótese:

Tendo em conta a ruína a que dois incêndios o submeteram e devido

ao abandono a que foi votado84, o edificado revela, apesar de tudo, um

relativo bom estado, em parte devido à sua concepção com materiais de

primeira qualidade. No entanto, foi cedendo na sua estrutura,

considerando-se natural que sessenta anos decorridos após a sua

construção, apresente alguns assentamentos.

84 Veja-se a este respeito a nota 7 do presente capítulo.

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Não tendo sido efectuado um estudo do estado geral das condições

da construção, será difícil determinar exactamente o grau de

descompensações que o conjunto sofreu ao longo dos tempos.

Contudo, já no que diz respeito ao caso específico deste pórtico, a

sua observação à vista desarmada permite concluir que as

descompensações que o vão no seu total terá sofrido são mínimas em

relação à estrutura, mas suficientes para poder induzir uma margem de erro

para o estudo da métrica de alguns pormenores que julgámos importantes.

Em conclusão:

Ou estas variações decorrem de pequenas imperfeições na execução,

ou decorrem do progressivo assentamento geral do edifício, ou ainda – o

que tudo leva a crer ter sido o mais provável –, do conjunto destas duas

hipóteses.

No entanto, a hipótese de descompensação será talvez a mais

importante, mas como já foi dito, sem um estudo rigoroso in situ será

impossível confirmá-lo plenamente.

Já no que diz respeito em particular o desenho da bandeira do

pórtico, todo em cimento, será possível considerar, por simples observação

à vista desarmada, que o molde no qual foi executado impossibilitaria

melhor acabamento.

Deste modo, consideraram-se negligenciáveis as imperfeições

observadas tanto na bandeira em particular, assim como no conjunto do

pórtico no geral, sendo possível estabelecer, sem condicionantes externas,

algumas relações entre a representação em desenho deste espaço em

particular e o desenho de conjunto de todo o edificado.

As medições efectuadas no terreno permitiram localizar esses erros

por forma a não serem tidos em consideração no que respeita ao estudo das

relações entre o pórtico e o traçado total da planta da fábrica, por