anti hibridez

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O constrangimento da forma: transformação e (anti-)hibridez entre os Karajá de Buridina (Aruanã - GO) 1 Eduardo Soares Nunes Universidade de Brasília RESUMO: Este artigo explora dois contextos de produção das pessoas mis- turadas dos Karajá de Buridina, pessoas internamente repartidas entre uma “metade indígena” e uma “metade não indígena”. Nesses dois contextos, o artesanato e a pesca, elementos indígenas e não indígenas se fazem simulta- neamente presentes, mas, dependendo de qual aspecto os Karajá enfocam, ou seja, dependendo de qual relação é ativada, e de que maneira, cada ação evidencia um conjunto específico de disposições corporais, karajá ou bran- cas. Esses indígenas reconhecem muitas rupturas em relação ao modo de vida dos antigos, mas como, sob que forma, essas transformações aparecem para eles? Meu argumento, nesse artigo, é que elas não aparecem como uma nova forma de vida karajá, mas como a coexistência de duas formas de vida, uma indígena e outra branca. A mistura, para os Karajá, é uma forma de relação que não gera híbridos. Concluo fazendo alguns comentários sobre o caráter totalizante da transformação. PALAVRAS-CHAVE: Karajá, transformação, hibridez, mistura, perspectiva. Hibridez é uma ideia bastante em voga nas discussões atuais sobre “cul- tura” ou “tradição”. Contrapondo-se a imagens de sistemas fechados e definidos por características “puras” ou “prístinas”, muitos pesquisadores e pesquisadoras vêm insistindo sobre o caráter histórico, dinâmico e, em

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  • O constrangimento da forma:transformao e (anti-)hibridez entre os

    Karaj de Buridina (Aruan - GO)1

    Eduardo Soares Nunes

    Universidade de Braslia

    RESUMO: Este artigo explora dois contextos de produo das pessoas mis-turadas dos Karaj de Buridina, pessoas internamente repartidas entre uma metade indgena e uma metade no indgena. Nesses dois contextos, o artesanato e a pesca, elementos indgenas e no indgenas se fazem simulta-neamente presentes, mas, dependendo de qual aspecto os Karaj enfocam, ou seja, dependendo de qual relao ativada, e de que maneira, cada ao evidencia um conjunto especfico de disposies corporais, karaj ou bran-cas. Esses indgenas reconhecem muitas rupturas em relao ao modo de vida dos antigos, mas como, sob que forma, essas transformaes aparecem para eles? Meu argumento, nesse artigo, que elas no aparecem como uma nova forma de vida karaj, mas como a coexistncia de duas formas de vida, uma indgena e outra branca. A mistura, para os Karaj, uma forma de relao que no gera hbridos. Concluo fazendo alguns comentrios sobre o carter totalizante da transformao.

    PALAVRAS-CHAVE: Karaj, transformao, hibridez, mistura, perspectiva.

    Hibridez uma ideia bastante em voga nas discusses atuais sobre cul-tura ou tradio. Contrapondo-se a imagens de sistemas fechados e definidos por caractersticas puras ou prstinas, muitos pesquisadores e pesquisadoras vm insistindo sobre o carter histrico, dinmico e, em

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    muitos casos, hbrido dos sistemas socioculturais. O que se chama de cultura, em suma, no seria maculado pela apropriao de elementos estrangeiros; antes, esta seria mesmo sua dinmica de constituio. O panorama atual dos povos indgenas em territrio hoje brasileiro (e na Amrica do Sul, de uma maneira geral) , certamente, muito propcio para essas discusses: o engajamento com o mundo dos brancos cada vez mais intenso e as populaes que se reconhecem como misturadas esto em um processo crescente de visibilizao seja devido ao acmulo de etnografias que se debruam sobre elas, seja por seu prprio esforo de se tornarem visveis como comunidades indgenas (incluindo aqui os casos de emergncia tnica). Tudo se passa, em suma, como se o resul-tado do processo histrico que arrebatou essas populaes sobretudo nas reas de colonizao mais antiga fosse, do ponto de vista de sua continuidade e de seu modo de vida atual, uma hibridez. E o esforo dos pesquisadores e pesquisadoras que tm teorizado sobre a questo o de mostrar que esses fenmenos so algo muito diferente de uma perda cultural; o de apontar, em suma, que no h nada de ilegtimo nisso, que no se deixa de ser ndio devido mistura.

    Em certo sentido, meu esforo nesse artigo vai no caminho contrrio: pretendo mostrar como o que os Karaj de Buridina chamam de mistura corresponde coexistncia de elementos indgenas e no indgenas sen-do, entretanto, avesso hibridez a mistura uma anti-hibridez. Quero mostrar, em suma, que o engajamento com o mundo dos brancos no implica, para esses indgenas, em uma transformao de sua cultura, mas sim na aquisio de um segundo ponto de vista. Como o ttulo do texto indica, meu fio condutor, aqui, aquilo que Marilyn Strathern chamou, em The Gender of the Gift (1988), de constrangimento da forma: a vida atual dos Karaj dessa pequena aldeia passou, certamente, por inmeras transformaes ao longo de sua histria, mas como, sob que forma, essas transformaes aparecem para eles?

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    Na parte final do texto, travo um dilogo com um artigo recente de Santos-Granero (2009), que tem uma dupla finalidade: por um lado, utilizo-o como um contraponto minha descrio sobre Buridina, com a finalidade de deixar mais claro porque a mistura no uma hibridez; por outro, arriscando um argumento mais abrangente, tento mostrar, junto com outros autores, que transformar-se em Outro sempre um processo total ou totalizante, a despeito do fato de ser operado, muitas vezes, por pequenos elementos, que, de um certo ponto de vista, pode-ramos considerar como partes de alguma entidade maior uma cul-tura ou uma tradio, por exemplo. Como ficar claro, a formulao do engajamento indgena com mundos outros (o mundo dos brancos aqui includo) em termos de hibridez, assim como em termos de mistura, depende da maneira como lidamos com a ideia de transformao.

    A questo que persigo, melhor deixar claro de sada, no a da histo-ricidade, a de se os ndios tm ou no, se esto ou no na histria (para falar de uma maneira rpida e um tanto grosseira), mas simplesmente a de como as transformaes aparecem para esses indgenas. So essas formas in que persigo aqui. Para tanto, necessrio, primeiro, que ve-jamos, ainda que brevemente, o que precisamente a mistura para os Karaj e, em seguida, que nos foquemos em dois de seus contextos de produo o artesanato e a pesca, duas atividades fundamentais em seu cotidiano para compreendermos como o desempenho dessas atividades evidencia capacidades, afeces e disposies corporais especficas.

    A mistura em Buridina

    Os Karaj, grupo falante de uma lngua tardiamente classificada como pertencente ao tronco Macro-J o inryb2 , ocupam imemorialmente a calha do Rio Araguaia. A maior parte de suas aldeias est situada na

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    Ilha do Bananal (to). Buridina a aldeia mais montante deste terri-trio, na margem goiana da divisa com o estado do Mato Grosso. No incio do sculo xx, Buridina estava situada ao lado separada apenas pelo crrego Bandeirantes3 de um presdio chamado Santa Leopoldina, em torno do qual cresceu um vilarejo homnimo. Tendo sido outrora, segundo a memria de seus moradores, a maior aldeia karaj de que j se teve notcia, na dcada de 1940 dois incidentes relacionados feitiaria dispersam quase toda sua populao. Buridina se v, ento, resumida a um homem, Jacinto Maurehi, que opta por ficar ali e rene em torno de si, nas dcadas subsequentes, um pequeno contingente de parentes, em torno do qual a aldeia se reestruturou. Na dcada de 1970, a j ento cidade de Aruan, em decorrncia do crescimento do turismo, comea a se expandir e atravessa o crrego Bandeirantes. Cerca de uma dcada depois, Buridina j est, exceo feita ao lado rio, rodeada pela malha urbana, restrita a um espao de aproximadamente dez mil metros quadrados. Ainda nos anos 1970, sua pequena populao, restrita a um ncleo de parentes muito prximos, inicia um processo de intercasamen-to com a populao regional, processo esse que ainda segue seu curso. Hoje, uma parcela considervel da populao mestia termo utilizado pelos prprios indgenas.

    Depois de mais de quarenta anos vivendo nessa situao de extrema conjuno com os brancos, os Karaj se dizem hoje misturados, termo que se refere comumente aos casamentos intertnicos, mas no apenas. Para virtualmente todos os aspectos da vida desses indgenas, h dois lados, como dizem: fala-se o inryb e o portugus; come-se comida de ndio, obtida essencialmente pelas vias tradicionais (sobretudo a pesca), e comida de branco, comprada geralmente no comrcio local; todos tm um nome indgena, dado pelos avs, segundo o sistema tradicional de nominao, mas tambm tm um nome de branco, escolhido pelos pais, ao modo tori4; aldeia (in hwa) e cidade (tori hwa) so fisicamente distintas5 e marcadas

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    por socialidades diferentes, referidas, de um lado, como a cultura, o jeito cultural, a organizao aqui de dentro ou a lei do ndio e, de outro, como a lei da cidade, a lei do branco ou a organizao l de fora; to-dos tm tori em suas famlias e, portanto, entretm relaes de parentesco com eles, mas a incapacidade desses parentes brancos de se comportarem como parentes verdadeiros marca sempre, aos olhos dos Karaj, seu aspecto outro6. E a lista poderia se estender indefinidamente.

    Todas essas distines, enfatizo, so feitas pelos prprios indgenas, que falam constantemente dos dois lados, do lado indgena e do lado no indgena, enfatizando sua importncia. Eu sempre falo que eu va-lorizo as duas partes, porque uma complementa a outra, o conhecimento do ndio e o conhecimento do no ndio, como me disse certa vez o caci-que Raul Hawakati. E essa duplicidade constitutiva tambm da pessoa, os Karaj se reconhecendo como pessoas duplas. Os corpos mestios so o prottipo dessa duplicidade, pois contm dentro de si os dois (ou mais) sangues de seus ascendentes: um mestio, filho de um karaj puro com uma branca, por exemplo, dito ter dois sangues, Karaj e tori7 e no um nico sangue misturado, como fazem os Piro (Gow, 1991). Essa duplicidade, entretanto, no se restringe aos mestios: se nem todos tm um pai ou uma me no indgena, todos so misturados. Vejamos, por exemplo, uma fala de Renan Hburunatu, ele prprio ndio puro8, que faz uma transio sutil da mestiagem mistura. Em um curso de forma-o de professores indgenas, uma ndia de outra etnia, falando sobre os casamentos com brancos, lhe perguntou: o que voc acha da mistura? Ele prprio me relataria a pergunta e sua resposta, depois do acontecido.

    A mistura no tem problema, no. Porque todos ns, seres humanos, so-mos assim, misturados. Para mim, no importa a caracterstica, se de ndio, se no . Importa ele saber quem ele , filho de ndio. Ento, para ele, as duas coisas so importantes, tanto o conhecimento do ndio como

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    o do no ndio. As duas coisas so importantes para ns, como para nossas crianas. O meu lado direito [do crebro] pode ser in, o esquerdo tori!

    Ou como em uma fala de sua irm, Karitxma: Ns somos seres hu-manos que tm outras culturas e outros costumes, me vejo como ndia que tenho duas culturas: Karaj e no ndio (Portela, 2006, p. 197). As pessoas dos Karaj de Buridina, em suma, so elas prprias misturadas, pessoas internamente repartidas entre um lado ou metade in e um lado ou metade tori. Essa duplicidade uma duplicidade dos corpos, as pessoas misturadas so de corpos duplos: cada uma das suas metades internas objetifica um feixe de afeces, capacidades e disposies dis-tinto, i.e., um corpo (cf. Viveiros de Castro, 1996, 2002a) distinto. Em minha dissertao desenvolvi esse argumento em detalhes, mostran-do como essa duplicidade corporal produzida no seio do processo do parentesco (cf. Nunes, 2012, caps. 4 e 5). Mais adiante, nas descries sobre a produo de artesanato e a pesca, alguns dos contextos de pro-duo dessa duplicidade que a mistura sero vistos em mais detalhes.

    Minha proposta que a mistura pode ser descrita como a forma indgena da relao entre os pontos de vista indgena e no indgena. Nela, os dois lados encontram-se conjugados, mas no fundidos: eles co-habitam em um mesmo sistema (uma pessoa ou um coletivo), mas no se fundem, dando origem a um terceiro elemento. O resultado de se misturar com os brancos no um terceiro tipo de povo, mestio, mas, antes, uma comunidade in capaz de acessar dois pontos de vista distin-tos, in e tori voltemos fala de Karitxma, citada acima, na qual ela se diz uma ndia que tem duas culturas. A mistura no um jogo de soma zero, no qual ganhar de um lado implica, necessariamente, em per-der do outro; ela mais bem uma antimestiagem (Kelly, 2011), uma anti-hibridez, uma soma cujo resultado uma unidade repartida entre os dois elementos geradores. A mistura no um entre dois, no sentido

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    de um lugar intermedirio entre os mundos indgena e no indgena; ela no um um, um dois sem intervalo, no qual, a cada momento, s se pode estar em um dos lados. A mistura ambos os lados, sem nunca s-los ao mesmo tempo, ela a possibilidade de ser ambos.

    Os dois lados, assim, precisam se manter separados. Os Karaj dis-tinguem categoricamente a origem das coisas, das lnguas, das formas de demonstrao de afeto, respeito e, de um modo geral, das formas de relao: eles dizem, por exemplo, que na cultura assim, que isso da cultura, que na cultura isso no existe. Conversamente, falam da lei da cidade ou da lei do branco, distinguindo-as do jeito cultural, da lei indgena ou da tradio (cf. Nunes, 2013). Essa duplicidade, insisto, no pode assumir a forma de uma hibridez. Como me disse certa vez Renan: Ento a gente tem que ter essas duas memrias [indgena e no indgena], e as duas so muito importantes para a gente. Mas tem que saber lidar com elas, seno a pessoa enlouquece. Daqui a pouco vai ter gente pescando no asfalto, por a! Os Karaj dizem que se misturar, baguna, enfatizando que essa baguna, a obliterao da diferena in-tori, i.e., a possibilidade de que eles no consigam mais distinguir entre os dois lados, acarretaria o fim da aldeia enquanto uma aldeia in, o fim de sua continuidade enquanto um coletivo karaj Buridi-na se tornaria, como me disse um homem, apenas mais um bairro da cidade. Assim, esse mesmo homem disse-me, em outro momento, que o importante para ns guardar a cultura na memria, no sangue9. O importante, para dizer de outro modo, que se continue fazendo dois movimentos paralelos, virar ndio e virar branco.

    A questo da alternncia , portanto, fundamental. As pessoas mis-turadas s podem se ver ou ser vistas como efetivamente duplas (ou mltiplas) quando na posio de objeto, como algo produzido, o re-sultado ou a objetificao da ao de outras pessoas (Strathern, 1988, p. 251). Ou, para usar o vocabulrio de Strathern, quando na posio

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    de pessoa (idem, pp. 272-3). Enquanto agentes, elas s podem ser uma coisa ou outra, cada ao s pode evidenciar um feixe de afeces, capa-cidades e disposies, in ou tori10. Para agir, necessrio eclipsar uma de suas metades internas e se dar a ver como um, como uma unidade, em relao a na relao com outra pessoa. H, portanto, um certo paralelismo entre as pessoas misturadas dos Karaj de Buridina, entida-des compsitas de uma parte Eu e uma parte Outro, e os andrginos melansios de que fala Strathern. Tambm entidades compsitas, mas de uma parte masculina e outra feminina, os andrginos no agem; ou seja, pessoas so ativadas, se tornam agentes, apenas em uma condio de mesmo sexo [same-sex], como masculino ou feminino (idem, p. 299). Os andrginos, assim, so estreis.

    Um homem ou uma mulher s podem encontrar seu oposto se ele(a) j descartou os motivos de sua prpria diferenciao interna: assim, um andrgino dividual tornado um indivduo em relao a uma contraparte individual. Uma dualidade interna externalizada ou elicitada na presena de um(a) parceiro(a): o que era metade de uma pessoa se torna um de um par (idem, pp. 14-5 traduo minha).

    Essa alternncia, entretanto, no uma questo de livre escolha, mas sim um modo de ativao de relaes determinadas. As afeces e ca-pacidades (por exemplo, talhar madeira, fabricar cestaria, comercializar artesanato) de um corpo s se conhecem por seus efeitos, e nunca a priori: elas precisam, assim, ser elicitadas, o que s pode ocorrer por meio da ativao de uma relao especfica, concreta. Uma mulher, por exemplo, se conhece uma boa me quando seu filho ou filha responde positivamente ao ato de ser alimentado(a) e cuidado(a) por ela, demons-trando apreo pelo ato de ser alimentado(a) e pela prpria comida. E, ao se conhecer como uma me, essa mulher se produz como tal. Se a

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    criana age como seu filho/sua filha, porque ela mesmo sua me por meio da reao da criana que se pode conhecer a efetividade das aes maternas como alimentar ou dar carinho. Quando, porm, a crian-a responde negativamente ao ato de ser alimentada/cuidada por sua me, essa mulher se conhecer como algo diferente de uma me, de um parente. Nada est garantido, qualquer estatuto s pode ser conhecido a posteriori. Presenciei, por exemplo, uma situao em que uma criana com menos de um ano se recusava a comer carne de peixe e de tartaruga quando sua me lhe oferecia. Isso gerava uma tenso ou incerteza no grupo domstico, e o fato de ser tambm o estatuto de me que estava sob suspeita era evidenciado por comentrios do av da criana, que dizia sobre sua filha coisas como essa menina no alimenta a criana di-reito! Quando retornei aldeia em um perodo posterior de trabalho de campo, a criana j estava maior e no apenas comia, como demonstrava apreo e vontade de comer peixe e, sobretudo, tartaruga o alimento in por excelncia , e o clima de incerteza sobre o par me-filha havia se desfeito. Relaes interpessoais e intrapessoais, no podem, assim, ser isoladas: por meio de uma relao com outro que uma parte ou metade interna da pessoa aparece como a pessoa inteira (cf. Kelly, 2001; Wagner, 1991).

    * * *

    A ideia da mistura, tal como a elaboro aqui, no , com efeito, exclusi-va dos Karaj de Buridina. Formulaes muito semelhantes aparecem, por exemplo, nos trabalhos de Kelly (2011) e Vilaa (2000) ambos importantes fontes de inspirao para minha etnografia; alm do mais, como listei rapidamente em outro lugar (Nunes, 2012, pp. 76-77), h alguns indcios na literatura amerndia de que essa forma de relao entre os pontos de vista indgena e no indgena pode ser algo mais geral do

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    que se poderia a princpio pensar. Isso no quer dizer, porm, que meu argumento seja extensvel, por exemplo, para o conjunto dos grupos in, nem tampouco paraos Karaj propriamente ditos: minha descrio, nes-te texto, diz respeito exclusivamente Buridina. Com efeito, os Karaj de outras que tive a oportunidade de conhecer, como Santa Isabel do Morro (Ilha do Bananal, to), no que se refere a seu engajamento com o mundo tori, me parecem enfrentar questes muito semelhantes s de Buridina, mas resolvendo-as diferentemente11.

    Artesanato

    Uma das principais fontes de renda dos Karaj de Buridina a venda de artesanato. Logo na entrada da aldeia se encontra o Museu, um Cen-tro de Cultura que foi construdo em 1994 e que faz parte do Projeto Maurehi12. O local visitado por uma grande quantidade de turistas e ali que os indgenas vendem a maior parte de seu artesanato. O que no impede, porm, que os artesos vendam eles prprios suas peas em casa por vezes, compradores procuram artesos especficos para enco-mendar peas como remos, gamelas, arcos, burdunas etc., peas maiores e de sada mais difcil, que geralmente s se fabrica sob encomenda.

    Os turistas que compram artesanato, porm, no so um grupo ho-mogneo, fato bem conhecido pelos Karaj, observadores atentos que so. Isso levou os indgenas a perceber que esses tori se apropriam de seus objetos em dois registros: 1. como um objeto funcional, operan-do uma traduo de um objeto indgena para a funcionalidade de um objeto no indgena; ou 2. como um objeto tnico, agregando valor pea justamente por sua origem indgena, associada cultura Kara-j, e, geralmente, pensando-o como um objeto decorativo. Vale dizer que so geralmente as pessoas de maior poder aquisitivo, a elite goiana,

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    pessoas vindas de So Paulo, Rio de Janeiro, Braslia e outras cidades brasileiras mais distantes, e, principalmente, os estrangeiros, que ope-ram por meio desse segundo registro, ao passo que so os tori de menor poder aquisitivo e/ou vindos de cidades mais prximas que operam por meio do primeiro. Exemplos de objetos que so apreendidas por meio do primeiro registro so as canoas de vrios tamanhos (1 a 5 metros) e as gamelas, que geralmente so adquiridas para serem usadas como fruteiras ou como vaso de plantas para colocar no jardim, e os remos, que so comprados por muitos donos de embarcao. No segundo caso, entram vrias peas como arcos, flechas, adornos plumrios de cabea, lanas, colares de mianga, bonecas talhadas em madeira ou feitas de cermica. Alguns objetos, como os cestos de seda de buriti, congregam quase sempre os dois significados, interessando os compradores tanto por sua funcionalidade observando os turistas nas compras de artesa-nato, pode-se escutar comentrios como esse aqui bom para colocar canetas ou aquele d pra usar como bandeja quanto pela origem cultural. Esses dois registros ficam claros tambm quando se observa as estratgias que alguns indgenas usam para convencer seus clientes indecisos, sugerindo possibilidades de uso (utilitrio ou decorativo) para o objeto: A senhora pode colocar na parede, assim, fica muito bonito, voc pode colocar no jardim, colocar umas plantas, ou ento em cima da mesa para usar como fruteira.

    H, aqui, na verdade, ao lado da oposio entre os registros funcional e tnico, que predominante, uma segunda oposio, aquela entre obje-tos utilitrios e objetos decorativos. Essas duas oposies se emparelham, mas so distintas. Valorizar uma pea por ser bonita [(decorao)], por exemplo, diferente de valoriz-la por ser indgena (registro tnico). Em um sentido, portanto, a separao entre os aspectos til e decorativo das peas artificial, pois a compra de um objeto til sempre leva sua esttica em considerao, em alguma medida, ao passo que a prpria

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    decorao uma utilidade do objeto. Mas como aqueles que compram os objetos principalmente por seu valor decorativo so geralmente os turistas que vm de longe e que, em sua maioria, valorizam a origem tnica do objeto, a (decorao) e o registro tnico acabam por se sobre-por. Do mesmo modo, como aqueles que se interessam principalmente pela funcionalidade das peas so os turistas moradores de cidades mais prximas, que, em sua maioria, no do tanta importncia para a origem tnica do objeto, a (utilidade) e o registro funcional tambm acabam se sobrepondo. Assim, dependendo do registro em que um objeto apreen-dido, uma das funes predomina: no registro funcional, a (utilidade) no marcada; no registro tnico, a (decorao) que no marcada.

    Tambm os Karaj tm que fazer algumas tradues para que suas vendas sejam mais eficazes, sobretudo no que diz respeito esttica dos objetos. Pois mesmo que a origem tnica agregue valor s peas para os turistas, isso no parece ter um peso maior do que as suas preferncias estticas ou certas imagens que fazem dos ndios. Certa vez perguntei a um homem se ele lixaria uma pea talhada em madeira que guardava marcas sutis da ferramenta utilizada (formo), de modo que estas mar-cas sumissem. Ele me disse que alguns turistas apreciavam que as peas ficassem daquele jeito, mais rsticas. Disse inclusive que uma vez ele fez uma gamela sob encomenda de uma senhora e lixou com uma lixadeira.

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    Quando sua cliente viu a pea, ela ficou surpresa, pois queria um objeto rstico. Ele ento talhou um pouco mais o objeto de maneira que as marcas do formo ficassem aparentes. Na produo de artesanato, as preferncias estticas dos turistas so levadas em conta para a execuo de alguns detalhes, e os indgenas que no so bem sucedidos nesse exerccio de traduo visivelmente vendem menos.

    A produo de artesanato em Buridina opera em dois registros distin-tos, um indgena e outro no indgena. Distintos, porm, na maior parte das vezes, simultneos, e isso tanto nas tcnicas quanto nos instrumentos e nos materiais utilizados. Os Karaj produzem peas tradicionais ou da cultura, mas muitas vezes se utilizam de materiais e instrumentos tori para faz-lo. A emplumao das flechas ou de outros artigos que utilizem a mesma tcnica, bem como a atadura da haste das flechas, geralmente feita usando linhas industrializadas. A menos que o compra-dor solicite que o arteso utilize os materiais tradicionais. Ou ao menos que o arteso julgue que assim que o comprador deseja. Quando, ainda em 2009, com pouco tempo de campo, encomendei trs flechas como tipos diferentes de ponta para Renan, ele optou por fazer a amarrao das penas com seda de buriti, a atadura da haste com imb e, no caso da flecha para peixes, fazer a ponta com osso13. (Provavelmente ele no estava enganado em julgar que os antroplogos ou antroplogas so aqueles que esperam mais de sua tradicionalidade). Os instrumentos utilizados so praticamente todos ferramentas tori. Os principais so a faca e o faco, mas outros, como formo, enx, plaina, tesoura, agulha e lima, so tambm muito comuns. Hoje, a quantidade de ferramentas eltricas, como furadeira, lixadeira e pirgrafo, tm aumentado bastante, e os homens tm se utilizado muito delas para agilizar o trabalho. As bonecas de cermica, cuja produo foi recentemente retomada com fora sob o estmulo do Projeto Ponto de Cultura e do recm-aprovado registro do ofcio e dos modos de fazer essas bonecas como patrimnio

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    da cultura imaterial brasileira so mais comumente moldadas com barro trazido da cidade de Gois e pintadas com tinta industrializada.

    Os Karaj concebem que a utilizao de toda essa gama de materiais e tcnicas no indgenas os produz como tori. Por outro lado, objetos como arcos, remos, burdunas, bonecas de cermica etc., so inequivo-camente in, e, ao produzi-los, os Karaj produzem a si prprios como indgenas a fabricao de um remo, por exemplo, ao elicitar capaci-dades e afeces propriamente in, faz com que o homem que o fabrica se conhea como humano, in. De fato, as duas coisas esto ocorrendo ao mesmo tempo.

    Com outras peas, porm, o inverso que se passa. Os Karaj tam-bm fabricam artesanato tori, como brincos, colares, pulseiras, pren-dedores de cabelo, chaveiros, camisetas com pinturas indgenas, peas decorativas (como peixes esculpidos em madeira ou cascos de tartaruga ostentando pintura karaj que servem de decorao para paredes). Mui-tas das tcnicas e materiais usados, por outro lado, so in. Os brincos, por exemplo, so feitos principalmente com materiais naturais, como penas, ossos de alguns animais, madeira, cascas de coco, escamas de pi-rarucu etc. Esses materiais, conjugados com sua forma de manejo, so considerados como in: a habilidade de lapidar ossos (que eram usados nas pontas de flechas para peixes, por exemplo) e o conhecimento sobre eles, a habilidade de talhar madeira e a utilizao de penas para a con-feco de diversas plumrias so disposies, afeces ou capacidades dadas por um corpo humano, i.e., in. Para os Karaj, que os homens talhem madeira (para fazer remos, arcos, canoas, lanas etc.) um dado, um dos componentes dos conjuntos de associaes convencionais que definem uma imagem da humanidade e que so tidos como inatos, como parte da natureza das coisas e no como o resultado da ao das pessoas (cf. Wagner, 1981). Assim, ao fazer um brinco de penas utilizan-do a tcnica de emplumao das flechas, um homem se conhece como

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    humano, in, i.e., ele se produz como tal porque isso algo que os homens in fazem. As mulheres fazem bolsas (objetos tori) utilizando a tcnica da cestaria ou aquela utilizada na fabricao das esteiras; outra pea comumente produzida pelas mulheres so prendedores de cabelo de palha (utilizando a tcnica da cestaria) com palitos de madeira, alguns deles com um fio pendente no qual so amarrados pequenos feixes de penas (a tcnica outra que a da emplumao das flechas). Uma mulher precisa que seu marido fabrique o palito de madeira para seus prende-dores, pois o trabalho dos materiais sofre uma clivagem de gnero: ces-taria (utilizando seda de buriti) e cermica so trabalhos exclusivamente femininos, ao passo que o trabalho com madeira atividade masculina. Assim, o que disse acima sobre a atividade masculina, vale tambm para o caso das mulheres. O domnio da cestaria e da olaria no visto como capacidades que uma mulher in pode ou no ter, mas como disposies e afeces, imanentes como a humanidade dos Karaj, que definem o que uma mulher in . Se uma mulher no domina essas tcnicas, porque ela perdeu a cultura; e se ela reaprender, o que est ocorrendo que ela est resgatando a cultura. Se ela domina essas tcnicas, em suma, simplesmente porque ela uma mulher humana, in. Ao fazer uma ritxoko (f.f.; ritxoo, f.m.), as famosas bonecas de barro in, uma mulher se conhece como indgena, i.e., ela se produz como tal.

    Quer, portanto, se trate de peas indgenas feitas com materiais e tc-nicas no indgenas ou de peas tori feitas com materiais e tcnicas in, materiais e tcnicas indgenas e no indgenas coexistem na produo de objetos indgenas e no indgenas14. E o efeito disso uma duplici-dade. Quando um homem fabrica um arco ou um remo, ou quando ele faz os palitos de madeira para os prendedores de cabelo que sua esposa fabrica, ele se conhece como indgena; ele se conhece como uma pessoa portadora das capacidades e afeces que caracterizam a humanidade in. Mas quando seu foco est voltado para o fato de que ele faz isso com

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    instrumentos de metal, alguns deles eltricos, com tcnicas de manu-seio desses instrumentos que foram aprendidas com os tori, que ele usa energia eltrica para tal, e que para tanto ele tem que pagar a conta de luz, e que para tanto ele tem que, por exemplo, vender aquela pea que ele est fabricando, e que para tanto ele tem que acessar a perspectiva dos turistas sobre aquela pea, conhecer sua lgica de consumo para que sua produo tenha vazo, em suma, quando seu foco est voltado para esse outro lado, ele se situa em um processo de devir tori, i.e., ele se conhece como branco.

    Meu argumento que no s os dois movimentos coexistem em Bu-ridina, mas que, em alguns casos, eles se do simultaneamente. Tnia Stolze de Lima (1996) mostrou, l se vo quinze anos, que a duplicidade prpria mesmo da perspectiva: para cada uma das partes envolvidas em algum acontecimento, coisas diferentes se passam. Tomemos os casos da venda de um arco, um remo, uma lana, uma esteira ou uma boneca de barro. Comprar/vender uma pea um evento diferente para os In (I) e para os tori (T), e no apenas pelo lado da transao comercial em que cada um se situa:

    I. (vender uma pea para) colocar comida em casa [parentesco]T. comprar artesanato [comrcio]

    Mas essas partes diferentes em relao podem ser internas pessoa. E aqui a simultaneidade de que falava. Do ponto de vista de cada uma das metades internas da pessoa, a metade in (MI) e a metade tori (MT), i.e., dependendo de qual relao ativada, algo diferente se passa. Continuemos com o mesmo exemplo.

    MI. colocar comida em casa (ativado pela relao com a esposa)MT. vender uma pea (ativado pela relao com o comprador)

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    E, dependendo de como a relao ativada, as coisas podem se inverter.

    MI. vender um pea in (ativado pela relao com o comprador)MT. vender uma pea para comprar comida (ativado pela relao com a esposa)

    Em Buridina, o dinheiro obtido com a venda de artesanato assim como aquele obtido com a venda de peixe, como veremos adiante in-vestido, em sua maior parte, na compra de comida no comrcio local. Ao menos, isso o que um homem deveria fazer com boa parte do dinheiro que ganha. Um arteso pode fazer uma boa venda e, com os recursos obtidos, fazer uma compra de comida para um ms: sua esposa poder, ento, em resposta quele evento, lhe tratar como um bom marido lhe devolvendo, assim, o conhecimento de que ele um bom marido; o homem, ento, se conhecer como indgena, pois colocar comida em casa algo que os maridos in fazem. Mas, como disse, dependendo de como a relao ativada, as coisas podem se inverter. Digamos que esse homem fique um tempo longo todo o ms de julho, por exemplo, quando o fluxo de turistas bastante intenso trabalhando apenas com artesanato. Ele pode, durante esse perodo, obter dinheiro suficiente para no deixar faltar comida em casa. Absorvido com essa atividade, entretanto, ele no ter tempo para pescar e, assim, sua famlia passar todo esse ms comendo arroz, feijo, carne bovina, frango etc. Sua es-posa, ento, poder reclamar com ele dizendo que ela s est comendo comida de branco, que est fraca (pois no est comendo tartaruga) etc. ou ela poder mesmo xing-lo, dizendo que ele est se portanto como um branco, que s pensa em dinheiro e no pesca para sua esposa. O homem, assim, se conhecer como ele prprio branco, pois os tori alimentam suas esposas com comida no indgena, e fazem isso por meio do dinheiro. E o mesmo para a relao com o comprador: dependendo de como a relao for ativada, o arteso eclipsar sua metade in, apa-

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    recendo/se conhecendo como branco; e se a mesma relao for ativada de uma outra maneira, ele eclipsar sua metade tori, aparecendo/se conhecendo como in.

    Acima, utilizei o exemplo de peas in fabricadas com ferramentas, materiais e tcnicas tori, mas a mesma anlise vlida tambm para os objetos do segundo tipo, peas tori fabricadas com materiais e tcnicas in, como, por exemplo, uma bolsa feita com a tcnica da cestaria. As-sim, quer se trate da relao com os tori, quer se trate da relao mesma entre as partes ou metades internas das pessoas, a produo e a venda de artesanato promovem, alternada ou simultaneamente, dois movi-mentos: por um lado os Karaj se conhecem (se produzem) como in; por outro, eles se conhecem como tori. Esse, portanto, um aspecto de sua constituio como pessoas misturadas. Uma descrio da pesca far as mesmas questes aparecerem. Vejamos.

    Pesca

    Os Karaj nunca foram agricultores nem caadores to dedicados quanto so exmios pescadores. A maior parte da protena animal que eles con-somem vem do rio Araguaia (e dos muitos lagos anexos a ele), e esses so seus alimentos mais valorizados: uma quantidade de espcies de peixes de escama e, sobretudo, o tracaj (ktu, f.f.; tu, f.m., Podocnemis unifilis) e a tartaruga (ktuni, f.f.; tuni, f.m., Podocnemis expansa), o alimento in por excelncia. A despeito das variaes na possibilidade de captura do pescado e dos quelnios em termos da quantidade, dos locais e das tcnicas impostas pelo ciclo anual das guas do rio15 (cf. Nunes, 2012, pp. 217-220), a pesca uma atividade executada durante todo o ano e, alm de sua importncia econmica, uma aptido masculina extremamente valorizada e considerada como propriamente in.

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    Os peixes e as tartarugas, entretanto, no entram nos grupos domsti-cos apenas como comida. Parte da produo pesqueira comercializada e, portanto, convertida em dinheiro. Os Karaj sabem tanto que os brancos que lhes compram pescado o fazem seguindo a mesma lgica que quando compram um pacote de po no supermercado quanto que as atividades tradicionais de pesca so a contraparte indgena da principal atividade de subsistncia no indgena, o comrcio. Renan, por exemplo, costuma dizer que o o rio o nosso armazm, quando a gente precisa, a gente vai l e pega. Assim, a pesca passa por um processo de traduo, por assim dizer, chegando aos tori como o trabalho dos ndios: uma ativi-dade tcnico-econmica por meio da qual garantem sua subsistncia. E assim como no caso do artesanato, os Karaj precisam fazer uma traduo simtrica, pois preciso acessar a perspectiva dos brancos sobre a pesca e sobre a venda para que se possa comercializar o peixe com sucesso. Os turistas, mas principalmente os regionais, so insistentes, alguns quase incansveis, na barganha do preo, pedindo descontos, querendo pagar valores irrisrios ou, depois da negociao fechada, colocando um peixe a mais na sacola dizendo se tratar de um brinde. Os indgenas mais hbeis na negociao so os que se do a ver, nessas situaes, como semelhantes aos compradores, ao dizer coisas como eu no posso fazer por menos que tanto, esse meu ganha-po, assim que eu sustento minha famlia. Para alguns, isso soa como uma evidncia de que esto diante de ndios aculturados, pois o ndio ingnuo, no sabe ne-gociar. Os menos habilidosos acabam se apreendendo sob o ponto de vista desses compradores. E no ser habilidoso nesse jogo correr o risco de no conseguir colocar comida em casa, pois a pesca, em Buridina, no algo barato: necessrio comprar gasolina para se deslocar at os locais onde h mais peixes e a aquisio dos materiais para fabricao de redes tambm dispendiosa. Se no se consegue ver a pesca e a venda do pescado como um negcio para que haja lucro, preciso gerar uma

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    renda bruta maior do que os custos de produo , pode-se ficar em maus lenis. Por outro lado, o ato da compra sofre uma traduo no sentido inverso, chegando aos ndios como parentesco, pois da mesma forma que os indgenas recorrem ao rio para colocar comida em casa (seja diretamente seja por meio do dinheiro que a pesca gera), i.e., produzir corpos-parentes, os brancos recorrem ao comrcio para criar seus filhos, i.e., sustentar sua famlia. Na venda do peixe, portanto, para cada uma das partes algo diferente se passa.

    I. (vender peixe para) colocar comida em casa [parentesco]T. comprar o produto do trabalho de outro [comrcio]

    Tambm nesse caso, para cada uma das metades internas do pescador, dependendo de qual relao ativada, e de que maneira, algo diferente se passa.

    MI. colocar comida em casa (ativado pela relao com a esposa)MT. vender peixe (ativado pela relao com o comprador)

    MI. vender o produto de uma atividade in (ativado pela relao com o comprador)MT. vender peixe para comprar comida (ativado pela relao com a esposa)

    Pescar uma das capacidades ou afeces que, como a tcnica de tra-balho da madeira, a cestaria e a olaria, so atributos da humanidade indgena. Pescando, um homem se conhece como in, se produz como tal. Por outro lado, os materiais e as tcnicas utilizadas so, em larga medida, tori: canoas de alumnio, motores de popa, linhas de nylon, anzis, pesca com rede. A habilidade no uso da canoa e no manuseio do remo, porm, so atributos in16. Os alvos e as finalidades so parte indgena e parte tori: captura-se peixes que so parte da dieta in e ou-

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    tros que no o so; peixe de escama assado ou frito comida indgena, caldeirada de peixe (de couro) comida no indgena; o pescado pode ser comido ou vendido. E quando o peixe vendido, boa parte do di-nheiro usada para comprar comida: frango, carne bovina, carne suna, bolachas, refrigerantes etc., so comida de branco; farinha de puba comida de ndio. Aqui, como no caso do artesanato, h dois movimen-tos ocorrendo simultaneamente. Quando os Karaj enfocam o fato de pescarem e a articulao dessa atividade com o parentesco, algo que, no caso dos homens, resume-se com a injuno da necessidade de colocar comida em casa, eles se conhecem como in; quando, porm, enfocam o fato de pescarem usando canoas de alumnio, motores de popa, redes de material industrializado e de que parte do pescado vendido para conseguir dinheiro, eles se conhecem como tori.

    Uma conversa que tive com Renan, ainda que trate de outras ques-tes, pode servir de exemplo aqui. Certo dia, perguntei a ele sobre o tyy-tby (a alma)17 dos mestios, posto que um de seus genitores tori. Ele me respondeu que um mestio tm dois tyytby, um in e outro tori, que convivem em seu corpo. Se ele est conversando com voc e diz: ama-nh eu vou dar uma flechada num peixe, a voc sabe que o tyytby in que est l. Se ele diz: amanh eu vou pilotar a canoa e pescar com rede, o tori. S precisa saber de qual lado cada tyytby est. Porque ele dividido [fazendo uma linha vertical com o dedo, dividindo seu corpo em dois]. Se o lado esquerdo in, o direito tori. Essa foi a nica vez que algum me disse que os mestios teriam dois tyytby outras pessoas foram categricas em afirmar que cada pessoa, mestia ou pura, s tem um (cf. Nunes, 2012, pp. 109-111). Essa fala, porm, interessante tanto por indicar que a mistura totalizante que mesmo ali onde o consenso aponta para uma unidade, algumas pessoas podem ver uma duplicidade quanto por apontar para o mecanismo de eclipsamento das metades internas das pessoas para o fato de que, do ponto de

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    vista de uma ao determinada, concreta, as pessoas aparecem como uma coisa ou outra, como in ou como tori. O tyytby, aqui, assim como o sangue, fornece uma linguagem potente para falar sobre essa duplicidade que, como disse mais acima, no se restringe aos mestios.

    Assim como no caso da produo e venda de artesanato, portanto, quer se trate da relao entre os indgenas e os tori, quer se trate da rela-o entre suas partes internas, pescando e consumindo ou vendendo o pescado, os Karaj de Buridina tanto viram in quanto viram tori: a presena simultnea de alvos, objetivos, tcnicas e materiais indgenas e no indgenas propicia sua produo como pessoas misturadas.

    * * *

    A leitora ou o leitor atento deve ter notado que, ao descrever a produo de artesanato e a pesca apresentei uma formulao que, aparentemente, contradiz uma outra que fiz no incio do texto. L havia dito que os Ka-raj de Buridina so pessoas misturadas, que contm, internamente, uma metade in e uma metade tori, mas que, a cada momento, s se pode ativar um desses lados: as pessoas s aparecem como duplas quando em uma posio de objeto; mas, para agir, elas tm que aparecer como um de um par. Depois, porm, afirmei que algumas aes propiciam dois movimentos simultneos, virar ndio e virar branco. Esta lti-ma formulao, entretanto, no implica que possvel agir sob ambas as perspectivas ao mesmo tempo. Tambm aqui, as pessoas s podem aparecer como duplas quando na posio de objeto, mas a objetifica-o dessa duplicidade deve ser posta na minha conta. Como enfatizei, o ato de pescar com rede industrializada localizado ora como em um devir in, ora como em um devir tori, dependendo de quais aspectos os Karaj enfocam em cada situao concreta, i.e., dependendo de qual relao ativada, e de que maneira: quando o que est em foco a contraparte

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    masculina do trabalho feminino para criar os filhos, essa pesca eviden-cia as capacidades ou afeces de um corpo in, e o homem se conhece como tal; quando o fundo torna-se figura, quando o que aparece o fato da pesca ser levada a cabo com instrumentos e tcnicas no indgenas, ou de o pescado ser vendido, e no diretamente consumido, a atividade evidencia as capacidades ou afeces de um corpo tori, e o homem se conhece como tal. Isso fica claro na estrutura das conversas que tive com algumas pessoas sobre o assunto: quando meus comentrios colocavam em primeiro plano os aspectos no indgenas da pesca, as respostas que obtinha eram do tipo no passado pescava s de flecha mesmo, ou en-to aqui acabou, que nem tori, mesmo; quando eu comentava sobre os aspectos karaj da pesca, obtinha respostas como ns, In, somos assim, ns vivemos mais da pesca. Caa e roa tambm, um pouco, mas mais pesca, mesmo, ou, como numa fala j citada aqui, o rio nosso armazm. Nunca os Karaj me disseram coisas como (1) ns vivemos da pesca, (2) mas pescamos hoje de uma maneira diferente da que nossos avs o faziam. Esses duas injunes no aparecem juntas, segundo entendo, pois elas so signo da ativao de relaes diferentes. , portanto, enfocando simultaneamente essas duas possibilidades de relao uma objetificao que aparece por meio de minha etnografia, como disse, e no pelas bocas indgenas que afirmo que essas aes promovem dois movimentos simultneos, virar ndio e virar branco.

    Mistura como anti-hibridez

    A mistura uma forma de relao que no gera hbridos, e os Karaj enfatizam esse ponto dizendo que uma tal hibridizao (a formao de um terceiro tipo de povo, mestio) acarretaria seu fim enquanto uma aldeia karaj: sua continuidade como um coletivo in depende da

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    manuteno da diferena in-tori, da capacidade de distinguir entre os dois lados. O leitor ou a leitora, porm, poderia talvez objetar que, se os Karaj distinguem categoricamente a origem das coisas, algumas delas sendo tradicionais ou culturais e outras pertencendo aos tori, essa prtica corresponde menos a um exerccio de identificao como se a pertena das coisas a um dos dois lados fosse inequvoca que a uma prtica de purificao: a descrio que apresentei aqui deixa claro que a duplicidade inerente mistura se faz presente em qualquer ato, que cada ato pode evidenciar capacidades in ou tori, dependendo de qual relao seja ativada de que maneira. Se cada ato tem aspectos indge-nas e no indgenas, como logram os Karaj faz-los aparecer como apenas um? Por que no insistir, justamente, na hibridez evidente desses atos?

    Isso o que Fernando Santos-Granero faz em um artigo recente, no qual, apontando para a importncia da mudana cultural como um processo de transformao corporal e identitria em curso (2009, p. 477 traduo minha), ele define o que chama de paisagem corporal [bodyscape] dos Yanesha atuais como sendo hbrida. Compartilho uma srie de pressupostos com o autor sobretudo no que diz respeito equi-valncia entre mudana cultural e transformao corporal , mas seu argumento sobre a hibridez no me pareceria adequado para descrever o caso dos Karaj de Buridina, pois deixa de considerar um aspecto crucial das transformaes em questo. Vejamos.

    Santos-Granero nota que, apesar da hibridez ter se tornado um con-ceito muito recorrente na literatura contempornea, no h um consen-so dos autores em relao a seu status analtico. Nosso autor distingue dois modos principais de compreender o que a hibridez nos tempos coloniais e ps-coloniais, e diz que as paisagens corporais yanesha so hbridas nos dois sentidos:

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    [...] elas aparecem simultaneamente como o produto de tradies em con-fronto e como a expresso de uma abertura duradoura dos Yanesha para o Outro. Entretanto, se se assume uma perspectiva de longa durao, torna-se claro que a viso da hibridez como contingente s noes de tradio e modernidade insuficiente para entender os padres yanesha de mudana cultural. A hibridez entre os Yanesha uma prxis cultural tanto um ponto de vista quanto um modo de ser , e no apenas um evento histrico isolado e bem delimitado. [...] A hibridez como um confronto entre as tra-dies yanesha e europeias , assim, apenas um exemplo de um fenmeno muito mais amplo: a constante incorporao de aspectos selecionados de Outros socialmente significativos para a constituio do Eu [Self] yanesha (idem, p. 492 - traduo minha).

    Pareceria apropriado ver as roupas yanesha, diz Santos-Granero, como produtos hbridos resultantes da fuso [merging] e da coexistncia de ele-mentos tradicionais e modernos (idem, p. 491 grifos meus). A roupa dos antigos e a roupa dos brancos no so mutuamente excludentes. At os homens e mulheres yanesha mais peruanizados, diz o autor, sempre apresentam um item da vestimenta e ornamentao nativas. De modo similar, mas inverso, eles tampouco vestem roupas nativas sem combin-las com assessrios peruanos, tais como relgios de pulso, bons, culos de sol ou grampos de cabelo (idem, p. 482). Nenhuma vestimenta, portanto, seria completamente tradicional.

    Outro argumento importante do autor diz respeito recuperao do uso da vestimenta tradicional, a cushma, no contexto poltico atual. Isso poderia parecer algo como um retorno tradio, mas a opinio de Santos-Granero que, antes, trata-se de uma passagem de uma tradi-o modernidade e, depois, uma nova tradio (idem, p. 489), um novo jeito de ser Yanesha (idem, p. 490). As cushmas que as mulheres vestem hoje, por exemplo, no so mais fabricadas com pano de algodo

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    feito por elas mesmas, e sim com um anlogo industrializado, alm de ostentarem desenhos ausentes nos modelos antigos. Porm, isso no significa que os Yanesha que usam cushma so mais tradicionais do que os que no usam. Antes, isso indica que usar uma cushma se tornou um smbolo de ser progressista [progressive] e orientado para o futuro [forward looking] (idem, ibidem): a tradio, assim, seria um signo da mudana. Mas a vestimenta tradicional esteve sujeita ao mesmo pro-cesso: h evidncias histricas que alguns itens considerados hoje como tradicionais foram adotados de Outros (os missionrios franciscanos, por exemplo). Assim, a vestimenta nativa yanesha est longe de ser tradicional. Ela denuncia [betrays] uma longa histria de interao com agentes estrangeiros (idem, p. 491). Essa proposio de Santos-Granero evoca, certamente, a questo da histria ou, mais precisamente, de como conceitualizar as mudanas sofridas pelo grupo estudado. Que o leitor ou a leitora me permita abrir um parntese.

    A partir da dcada de 1980, a etnologia amazonista de inspirao estruturalista incorporou as relaes com os brancos como tema de discusso. A literatura que se dedicou ao assunto, ao integrar os no indgenas no panorama mais amplo de relaes com a alteridade e ao utilizar os quadros conceituais desenvolvidos a partir de outros temas (como parentesco, produo da pessoa, xamanismo e cosmologia) para lidar com as assim chamadas relaes intertnicas, acabou por fornecer uma formulao alternativa para o problema da aculturao para a ideia de que o engajamento com o mundo dos brancos teria um efeito desestruturante sobre as culturas indgenas18. Se, como essa literatura tem apontado, os povos indgenas da Amrica do Sul reproduzem-se por meio de alteraes radicais sucessivas, que envolvem a transformao em outro e a aquisio de sua perspectiva (Vilaa, 2008, p. 177), virar branco pode ser visto como apenas mais um movimento na direo da captura de perspectivas outras. O engajamento com os brancos, assim,

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    funcionaria como um combustvel a mais para a mquina amerndia, favorecendo sua continuidade ou, ao menos, no sendo contrria a ela e no como um fator de atrito, de desgaste.

    Muitos autores tm suas reservas em relao a essa posio, pois pen-sam que a dinmica de transformao tem que ter seus limites, para alm dos quais ela colocaria sim problemas de continuidade. Carlos Fausto, por exemplo, expe a questo nos seguintes termos:

    Quando afirmamos que mudanas no so uma mera perda cultural, mas so parte de um padro de inveno cultural alopoitica, estaramos su-gerindo que o mundo indgena uma mquina capaz de digerir infinita-mente o mundo no indgena? Quais so os limites e as condies para que tal abertura funcione como um meio para a continuidade indgena? [...] Seria a abertura ao Outro um desiderato ontolgico absoluto ou seria ela influenciada [inflected] pela prpria estrutura do processo histrico mais amplo no qual ela opera? (2009, pp. 497-8 traduo minha)19.

    Essa tenso em torno da qualidade transformacional dos mecanismos amerndios de reproduo social me parece, porm, resvalar frequen-temente na confuso comum entre alterao e mudana (sociocultural). O caso dos Karaj de Buridina bem mostra por qu. Nem sempre a relao com o mundo dos brancos uma questo de digesto, uma in-corporao de elementos aliengenas no seio da vida indgena, uma juno cujo resultado s pode aparecer de duas formas: ou como uma re-signifi-cao ou re-elaborao desses elementos estrangeiros, que passariam, assim, a compor aquilo que os indgenas chamam de sua cultura, aos moldes da ideia de indigenizao da modernidade, de Sahlins (1997a; 1997b); ou como uma hibridez, aos moldes do que falam Santos-Gra-nero sobre as paisagens corporais yanesha e Patrcia Rodrigues (2007, 2008) sobre a concepo como a imagem privilegiada para a teoria da

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    ao criativa java20. Essa incorporao pode se dar segundo outros moldes, como diz Vilaa sobre a converso Wari: o que se tem um sistema que contm em sua estrutura central um lugar a ser ocupado por um outro, que objetivado diferentemente a cada momento (2008, p. 194). A questo que esse ponto de vista estrangeiro incorporado como Outro, a diferena mantida internalizada na pessoa, como vi-mos aqui. Isso no uma digesto.

    Problemas, porm, certamente se colocam, e as reflexes de muitos grupos indgenas sobre sua situao atual do prova disso21. Meu ponto apenas que isso no funo direta da transformao em branco, ou em Outro. Esses limites e condies da transformao, eu tendo a pensar, no so aqueles relativos a o quanto se pode absorver do mundo dos brancos sem colocar problemas insolveis para a questo da continui-dade indgena; esses limites correspondem eficcia dos mecanismos de estabilizao da perspectiva humana que permitem que sempre se possa ir e voltar (cf., p. ex., Vilaa, 2005), eficcia daquilo que Wagner (1981) chamou de repolarizao do controle elaborei esse ponto em mais detalhes em outro lugar (cf. Nunes, 2012, pp. 321-330). Para usar um fraseamento comum dos Karaj de Buridina, o importante manter a cultura, o que significa, na prtica, que a diferena entre as perspectivas in e tori se mantenha como um contraste marcado, radical, que os dois lados se mantenham distintos pois, lembro,se misturar baguna (cf. supra). Em suma, transformao (no sentido que a etnologia amerndia confere ao termo) e mudana (sociocultural) no se equivalem.

    E essa proposio no tem qualquer coisa a ver com a historicidade ou no dos Karaj ou de outros grupos. As sociocosmologias ame-rndias esto na histria, so eminentemente histricas, esto em um processo constante de transformao (ou de mudana...). Isso algo incontestvel. Como j afirmara Lvi-Strauss (1962, p. 310 traduo

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    minha), a questo que as sociedades humanas reagem de modos mui-tos distintos a essa condio comum que a de que toda sociedade est na historia e de que muda. Uma questo a se perseguir, portanto, a maneira como essas mudanas aparecem para cada grupo. Voltemos, ento, ao argumento de Santos-Granero.

    A recuperao do uso da cushma pelos Yanesha , em certo sentido, algo anlogo ao que os Karaj de Buridina chamam de regate cultural. Mas a assertiva de que a retomada da feitura das bonecas de barro, por exemplo, uma passagem da tradio modernidade, e desta a uma nova tradio, que isso remeteria a uma nova forma de ser Karaj posto que essas bonecas, hoje, so feitas principalmente com barro comprado e pintadas com tinta industrializada , seria simultaneamente verdadeira e falsa. Se pensarmos que, h cerca de dois sculos atrs, os In praticamente no conheciam o dinheiro e os bens dos brancos, e que hoje esses itens so elementos cada vez mais imprescindveis para a vida em aldeia (inclusive para a feitura das bonecas, que, alm do mais, so hoje vendidas, ao passo que no passado eram feitas apenas como brinquedo para as crianas), possvel, ento, dizer que se trata de uma nova forma de ser Karaj. No pretendo negar isso, algo, afinal, que careceria mesmo de propsito os prprios indgenas reconhecem muitas rupturas em relao ao modo de vida dos antigos. Mas como, sob que forma, essas mudanas aparecem para os Karaj de Buridina? Elas no aparecem como uma nova forma daquilo que Nathalie Ptesch (1992) chamou de incit, da humanidade in, mas como a coexistncia da cultura com a lei ou a organizao dos tori. Quando uma mulher fabrica uma pea de cestaria, mesmo utilizando uma agulha de metal e adaptando a pea ligeiramente de acordo com o gosto esttico dos consumidores no indgenas, ou quando faz uma boneca, mesmo que com tinta e barro comprados, ela se conhece como in, como um cor-po-pessoa que d a ver capacidades e afeces propriamente humanas.

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    Nesse sentido, ela est fazendo exatamente a mesma coisa que faziam as In antigas, como dizem: tanto outrora como hoje, a fabricao de uma boneca elicita uma forma in, um feixe de afeces, capacidades e disposies propriamente in. O que mudou apenas que, em outros momentos (ou no mesmo momento, se ela ativar outra relao), o corpo das in de hoje, em Buridina, pode dar a ver capacidades e afeces tori. Para os Karaj, o que est em primeiro plano em relao sua diferena frente vida dos antigos o fato de que estes ltimos viviam sem ne-nhum acesso aos bens dos brancos como disse um jovem de Buridina, Ah, Karaj mesmo poder viver s da caa e da pesca, poder ficar bem longe do pessoal dos brancos, poder falar s na linguagem dos ndios (Portela, 2006, p. 206 grifos originais omitidos) e no a questo de que o povo de hoje faz de um modo diferente as mesmas coisas que os antigos faziam. E quando so esses modos diferentes de fazer que esto em questo, esses indgenas no apreendem sua tradio atual como uma nova tradio, mas dizem simplesmente que a cultura acabou ou est acabando. Em um mundo, como o karaj, no qual a humanidade imanente (cf. Wagner, 1981; Viveiros de Castro, 1996, 2002a; Lima, 1996, 1999), s h uma maneira de virar ndio, s h uma forma sob a qual as pessoas podem aparecer como in; a cultura no algo que pode ter continuidade apesar (ou por meio) de suas transfor-maes, mas sim algo que se pode perder ou ganhar novamente, recuperar, resgatar (cf. Nunes, 2013). A cultura dos Karaj de Buridina sempre uma virtualidade total, por mais que o que esteja em questo seja apenas uma parte dela: a cultura de que falam uma perspectiva e, como tal, total ou totalizante, no pode ser fracionada. Assim, talvez caiba lembrar, aqui, que, se a metfora da hibridizao tornou-se, em anos recentes, foco de importantes desenvolvimentos tericos na antro-pologia, ela tem sido, no mais das vezes, importada parcialmente, pois um de seus aspectos no vem sendo considerado com a devida ateno:

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    assim como os andrginos, os hbridos so estreis22. E casos como o dos Karaj de Buridina, abordado aqui, apontam para a possibilidade de que, talvez, esse no seja um detalhe menor, pelo menos se nos atentamos para a forma como as transformaes na vida indgena aparecem para os prprios sujeitos pesquisados.

    Isso nos leva de volta assertiva de Santos-Granero de que a vestimen-ta tradicional nunca completamente tradicional, e vice-versa. Aqui, novamente, trata-se simultaneamente de algo verdadeiro e enganoso. Verdadeiro se nos atentamos para o fato de que as prticas consideradas pelos Karaj como tradicionais ou da cultura nunca so atualizadas em contextos ou por meio de elementos completamente tradicionais, como os casos do artesanato e da pesca, que abordei nesse texto, deixam claro. Mas eu repetiria a mesma pergunta: como, sob que forma, essa questo aparece para os Karaj? O ponto, aqui, que a transformao algo totalizante: no se pode virar um pouco branco, do mesmo modo que no se pode virar um pouco ndio. Entendo o incmodo de vrios etnlogos e etnlogas com a recente difuso de afirmaes como os Fulanos de Tal esto virando brancos; se bem os entendo, seu proble-ma com a ideia que essa expresso poderia, talvez, transmitir; a ideia de que, para usar uma formulao extrema, os ndios esto abdicando de suas tradies e aderindo s nossas, esto deixando de ser indgenas, esto virando completamente brancos23. Mas a transformao um processo, e no um estado, um devir, e no um Ser: ningum termina de devir, mas est constantemente devindo. por isso que falo de virar ndio e virar branco como dois movimentos que coexistem. Vi-rar branco sempre virar completamente branco, por mais que no se vire branco completamente: no necessrio se dar a ver e ser visto como um semelhante aos tori, ou qualquer outro Outro, em todos os aspectos possveis para que se vire Outro. Um dos principais efeitos da fractalidade, como J. Kelly demonstrou para o caso amerndio, colocar

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    em cena uma outra ideia de totalidade ou tirar essa ideia de cena, tal-vez fosse melhor dizer. Se a mesma relao entre os termos se replica em todos os nveis, o que uma parte para o nvel superior aparece como um todo em seu prprio nvel. E isto para qualquer todo/parte, pois esse todo no uno: no h um todo que no seja tambm uma parte.

    O englobamento atravs da troca de uma parte da pessoa leva-nos quali-dade fractal a que quero me referir: o encerramento do todo (de uma pes-soa) na parte (de uma pessoa); a converso de partes de pessoas em pessoas inteiras o filho de um matador wari, o filho de um matador jvaro e, podemos adicionar especulativamente, o novo nome (alma) do matador tupinamb. necessrio manter em mente, ento, quando adiante falo em troca de partes do corpo, que o que trocado uma verso em escala reduzida da pessoa inteira (Kelly, 2001, p. 102 grifos meus).

    Um trao comum a muitos complexos guerreiros amerndios, quando estes ainda eram operantes, pelo menos nos casos tupi cf. Viveiros de Castro (1986, 2002b) para os Arawet e Oakdale (2001) para os Kayabi , a contaminao do matador com o sangue da vtima, o que provoca o inchao de sua barriga e lhe rende acesso ao ponto de vista do morto: o matador tem que ficar recluso, pois corre o risco de ver seus parentes com os olhos do inimigo, como eles mesmos inimigos. Uma parte do morto, assim, aparece como o morto inteiro, uma pessoa inteira, e, por meio dela, o matador tem acesso a essa perspectiva outra. claro que o matador no vira completamente Outro no sentido de que ele continua fazendo parte de seu grupo , mas isso menos uma questo da transformao ser ou no total, do que dele estar envolvido no em um devir, mas em dois: devir parente, humano, e devir inimigo, Outro. Daqui podemos retornar ao caso das roupas yanesha, da conjugao da cushma com assessrios peruanos como botas de borracha, relgios

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    de pulso, culos de sol etc. Assim como o sangue do inimigo morto aparece como o inimigo inteiro, a cushma tambm no poderia ser vista como uma parte fractal da tradio yanesha? Tambm ela no poderia aparecer como a tradio inteira? A esse propsito, cito parte do comentrio de Carlos Fausto ao artigo de Santos-Granero do qual estamos nos ocupando aqui.

    Meu terceiro ponto envolve a noo de hibridez. Embora eu esteja ba-sicamente de acordo com o uso que Santos-Granero faz do conceito de Latour como um contraponto ao esforo modernista de produzir tradies puras ou autnticas, eu gostaria de v-lo distinguir essa noo de outra relacionada, mestiagem [mestizaje], que tanto uma importante categoria local na Amrica Latina quanto uma noo academicamente reconheci-da (Gruzinski, 1999). Alm do mais, os amerndios tambm praticam [play on] uma purificao ou, para empregar o vocabulrio de Strathern (1988), um eclipsamento. As paisagens corporais hbridas dos amerndios tm seus prprios mecanismos para se fazer visveis como no hbridas em relaes especficas (Kelly 2005). No estaria Chemell24 eclipsando sua hibridez para aparecer ritualmente como um todo [one and a whole] em uma apario [sance] intertnica pblica? (Fausto, 2009, p. 498 traduo minha; grifos meus).

    precisamente algo dessa ordem, penso, que ocorre no caso dos Karaj de Buridina, do qual a produo de artesanato e a pesca, descritas aqui, servem de exemplo: capacidades, afeces, objetos, tcnicas e materiais in aparecem como a cultura; suas contrapartes tori aparecem como a lei ou a organizao dos brancos; e, em ambos os casos, so mundos inteiros, no partes ou pedaos de mundos. Por isso, no h eufemismo ou paliativo no mundo que resolva a questo. Virar in ou virar tori so movimentos totais, por mais que a passagem de um registro outro

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    seja levada a cabo por elementos ou capacidades mnimas25, que pode-ramos considerar como uma parte de um todo. Como argumentei alhures (Nunes, 2009, pp. 107-8), esses elementos so operadores de perspectiva, eles efetuam mudanas de registro totais ou completas. Quando, por exemplo, a Escola Maurehi estava funcionando em dois turnos (ano de 2009), os indgenas se referiam ao turno matutino como aula de inryb (aula da lngua karaj) que inclua o ensino da ln-gua escrita e diversas outras atividades consideradas como da cultura, como artesanato e brincar na praia e ao turno vespertino como aula de toriryb(aula de portugus) que, alm do portugus, englobava todas as outras disciplinas do currculo das escolas pblicas estaduais, matemtica, geografia, histria etc. Em uma reunio ocorrida em 2011, um homem fazia uma apresentao, para os tori presentes, de uma ati-vidade que ocorreria na sequncia. Ele falou a palavra toriryb e, ao se dar conta de que sua audincia muito provavelmente no conhecia tal palavra, ele procedeu a uma explicao: toriryb a cultura de vocs.

    Notas

    1 Este artigo uma verso compactada e revisada de um dos captulos de minha dissertao de mestrado (Nunes, 2012). Agradeo leitura atenta e aos comentrios de Marcela Coelho de Souza e dos dois membros de minha banca de defesa do mestrado, Luis Cayn e Jos Antonio Kelly.

    2 In o termo de autodesignao dos Karaj, Java e Xambio; Ryb significa fala, lngua, modo de falar. Essa lngua apresenta uma diferenciao da fala segundo o sexo do falante, caracterizada pela queda, na variante masculina, de uma con-soante (majoritariamente a oclusiva velar surda /k/) localizada entre duas vogais ou no incio de palavras da fala feminina (Cf. Ribeiro, 2012, cap. 3). As variaes na fala segundo o gnero do falante esto sinalizadas no texto, quando necessrio, pelas siglas f.f. (fala feminina) e f.m. (fala masculina).

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    3 Este crrego, juntamente com outro, Xibiu, situado pouco mais jusante, so, hoje, os limites sul e norte da Gleba i da T.I. Karaj de Aruan, que conta ainda com outras duas Glebas. Para mais informaes sobre a Terra Indgena e o processo de demarcao, cf. Braga (2002), e para uma descrio mais extensa da histria da aldeia, ver Nunes (2009, 2012) e Portela (2006, pp. 151-163).

    4 Termo da lngua karaj que designa os no indgenas ou brancos.5 Buridina nunca perdeu a configurao tradicional das aldeias in, compostas de

    uma ou mais fileiras de casas paralelas ao rio, exceto pelo fato de que l no h a casa de Aruan (hetokr ou ijas heto), que se situa na regio mediana das fileiras de casas, um pouco afastada na direo do mato e com sua abertura voltada para o sentido oposto s casas sobre a configurao das aldeias in, cf. Toral (1992, pp. 51-56), Krause (1941, pp. 253-254), Donahue (1982, p. 181; pp. 183-184).

    6 Alguns indgenas reclamam que os brancos que vm morar na aldeia no respeitam a cultura ou a lei do ndio. Um senhor me dizia certa vez que se eu fosse morar na cidade eu ia respeitar a lei deles, mas que a recproca no verdadeira.

    7 Com efeito, uma pessoa mestia tem tantos sangues quantas forem seus ascendestes de origem distinta. Comentando sobre o caso dos filhos de um homem mestio de Karaj e Java casado com uma mulher mestia de Karaj com Tapirap, por exemplo, um outro homem me disse que essas crianas tm trs sangues no mesmo corpo, na mesma pessoa.

    8 Os Karaj de Buridina se utilizam de uma trade classificatria bsica para falar dos casa-mentos com branco e dos filhos gerados por eles: ndio puro, mestio e tori cf. Nunes (2009) e Schiel (2002). Interessantemente, o que parece ser uma trade , com efeito, uma estrutura que oscila entre o dois e o trs uma caracterstica bastante difundida em estruturas da sociocosmologia in (dos patamares do cosmos ao plano da aldeia), nas quais os pontos extremos da trade possuem vrias caractersticas em comum, o que faz com que, em alguns contextos, eles se oponham conjuntamente ao elemento mediano, formando, assim, uma oposio binria (cf. Ptesch, 1992, 1987; Rodrigues, 1993 e Schiel, 2007). Assim como veremos mais adiante, do ponto de vista da ao, os mestios ora aparecem como ndios, ora como brancos (cf. Nunes, 2009, p. 98).

    9 A imagem do sangue, potente como essa substncia, usada pelos Karaj para falar de uma srie de coisas relacionadas mistura, dentre elas a continuidade da famlia: partilhando do mesmo sangue que seus ancestrais indgenas (diretos ou mais remotos), as pessoas do continuidade como os Karaj costumam dizer cultura ou lei do ndio (cf. Nunes, 2012, cap. 4).

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    10 Cada ao s pode fazer as coisas e/ou as pessoas aparecerem de uma forma espe-cfica, in ou tori. O que chamo aqui de forma, portanto, no se relaciona a um formalismo, diferena entre as propriedades formais e o contedo, mas simples-mente ao conjunto de capacidades, afeces e disposies especficas que cada ao elicita nas pessoas.

    11 Essa , de fato, apenas uma impresso, mas que valeria ser investigada mais a fundo. De todo modo, penso que mais etnografias de aldeias menores seriam de grande valor para a compreenso da situao scio-histrica atual dos In como um todo, posto que as aldeias grandes (Santa Isabel do Morro, Fontoura e Macaba, do lado karaj, e Canoan, do lado java), como dizem os Karaj, so politicamente proeminentes e muito mais visveis, tendo sido terreno das principais etnografias sobre o grupo. E, apesar de a histria de Buridina, por exemplo, ter incio apenas no comeo do sculo xx, o histrico de relaes com os brancos to longo quanto o de Santa Isabel, por exemplo, j que foi de l que o fundador de Buridina saiu nesta ltima aldeia, por exemplo, os moradores mais velhos ainda guardam na memria uma narrativa sobre o tori uhu (cf. Nunes, 2012, p. 373), que provavelmente se refere chegada dos bandeirantes regio do Mdio Araguaia. E, como mostra a histria dessa aldeia, os prprios motivos que levaram Kabitxana, seu fundador, a abandonar Santa Isabel foram determinantes para a configurao que Buridina tomou, e, logo, para a estabilizao da mistura como uma forma de relao com os brancos.

    12 O Projeto de Educao e Cultura Indgena Maurehi, ao qual por vezes os Karaj se referem como projeto de resgate cultural, opera majoritariamente em duas frentes: a Escola Estadual Indgena Maurehi e o Centro de Cultura Maurehi, referido simplesmente como Museu, local onde os Karaj expem e vendem seu artesanato. Para mais informaes sobre o projeto, cf. Pimentel da Silva (2009).

    13 Nas flechas de pesca feitas para uso, a ponta de osso comumente substituda por um pedao de arame e, no caso daquelas para caa, a prpria haste de madeira pode ser trocada por um pedao de arame liso ou mesmo por um aro de bicicleta.

    14 A produo de peas in, claro, envolve tambm materiais e tcnicas karaj, ao passo que nos objetos no indgenas so tambm utilizados materiais e tcnicas tori. Se estou enfatizando a utilizao de materiais e tcnicas no indgenas na produo de peas karaj, e vice-versa, para marcar que na produo de artesanato, como um todo, no possvel isolar momentos, unidades ou peas indgenas das no indgenas, pois, a todo instante, independentemente do tipo de pea que esteja sendo produzida, materiais e tcnicas in e tori coexistem.

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    15 A alternncia entre um perodo de chuvas e de cheia do rio, o inverno, e outro de seca e baixa das guas, o vero.

    16 Mesmo que se use o motor para chegar at o local da pescaria, dentro do lago, por exem-plo, quando a rede vai ser armada ou quando vai-se olhar a rede (conferir se algum peixe foi capturado), preciso usar o remo, pois o barulho do motor espanta os peixes.

    17 Tyytby (f.m.; tkytby, f.m.) pode ser traduzido por pele velha tky pele, casca ou roupa, tby velho. um dos componentes da pessoa. Os tyytby formam um estoque limitado: quando uma criana nasce, ela recebe um tyytby j existente, ou seja, que no passado ocupou outros corpos in vivos; quando essa pessoa morrer exceto se ela morrer no sangue, i.e., derramando sangue ou por morte violenta (assassinada, afogada, atacada por animal, por suicdio etc.) , seu tyytby se juntar aos wors, a coletividade dos mortos, at que, um dia, volte a ocupar outro corpo in vivo (cf. Rodrigues, 1993).

    18 Digo uma formulao alternativa pois, antes desse movimento, a aculturao j vinha sendo alvo de fortes crticas em solo brasileiro, e outras correntes tericas j haviam formulado solues para o problema como, por exemplo, a noo de frico intertnica proposta por Roberto Cardoso de Oliveira (1972[1964]).

    19 Cf. tambm, Fausto, 2001, pp. 541-543.20 A leitora ou o leitor familiarizado com a literatura in talvez tenha estranhado o fato

    de que, em um texto dedicado anlise de uma forma especfica de relao entre um princpio Eu e um princpio Outro, at o momento eu no tivesse menciona-do a teoria java da histria, de Patrcia Rodrigues. Para a autora, todo tipo de produo social seria fruto de uma ao criativa carcterizada por uma mediao tensa feita pelos agentes humanos, ao longo do tempo, entre foras desagregadoras e foras estabilizadoras (2007, p. 40). A autora identifica a primeira dessas foras com um princpio de identidade (associado ao masculino e ao passado mtico) e a segunda com um princpio de alteridade (associado ao feminino e a todas as formas de alteridade, dentre elas os brancos). A concepo a imagem mestra para essa teoria da ao: toda criao depende da interao social entre dois princpios que se fundem, produzindo um terceiro ser, assim como pai e me fundem-se para produzir um filho [...]. Em suma, toda criao est no lugar simblico dos filhos, em especial o primognito, e s possvel a partir da relao com um outro (2007, p. 36 grifos meus). V-se, assim, que a teoria da ao criativa java de Patrcia Rodrigues difere significativamente da mistura que descrevo para os Karaj de Bu-ridina: o argumento da autora insiste, justamente, sobre a produo de um terceiro

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    elemento, um filho hbrido (2008, p. 801), ao passo que, como argumentei, o resultado da mistura a produo de pessoas misturadas, pessoas internamente re-partidas pelos mesmos elementos que a geraram elementos, estes, que s foram capazes de produzi-la assim por serem eles prprios internamente repartidos; em lugar de uma estrutura orientada como a espiral da histria de Rodrigues (2008, pp. 891-905), temos fractalidade (Nunes, 2012, pp. 88-91). Se no discuto o ar-gumento de Rodrigues neste texto, porque seria necessrio um outro artigo para faz-lo com a seriedade e o detalhamento que sua minuciosa e colossal etnografia pede. Em minha dissertao, fiz um primeiro, e ainda inicial, esforo nesse sentido (Nunes, 2012, pp. 330-345).

    21 Em sua etnografia da aldeia java Txuiri, Oiara Bonilla (2000) aborda esses proble-mas de maneira bastante interessante, talvez justamente porque no os formule em termos de continuidade. Trata-se de uma aldeia formada a partir da ocupao de um antigo povoado no indgena, esvaziado no processo de desintruso da Ilha do Bananal, e que, em fins da dcada de 1990, Bonilla descreve como orientada para um processo de tornar-se branco vrios pontos do que a autora descreve para essa aldeia, com efeito, se aproximam da situao de Buridina. A autora mostra que, assim como os primeiros humanos, vindos do mundo de baixo (berahatxi), tiveram que mudar seus corpos para se adaptar vida na superfcie, beira do Araguaia, os Karaj de Porto Txuiri tiveram de se apropriar de algumas caractersticas dos Tori para adaptar-se nova vida civilizada (idem, p. 59). Mas isso teve seus custos, esse processo tendo resultado em transformaes que nem todos desejam ou almejam, e esses in acabam virando mais Brancos do que alguns poderiam desejar (idem, 87). E, interessante notar, a mistura, no caso dos Karaj de Buridina, parece ser justamente uma maneira encontrada por eles para estabelecer um controle, mesmo que relativo, sobre esses efeitos imprevistos do devir branco ver, por exemplo, a histria de criao do Projeto Maurehi, tal como narrada pelo cacique Raul Ha-wakati (Nunes, 2012, p. 326). Porm, apesar dessas semelhanas, a autora no fala dessa transformao corporal que o tornar-se branco como a aquisio de um segundo ponto de vista, de um segundo corpo, o que, como venho argumentando, me parece ser o caso para os Karaj de Buridina.

    22 Rodrigues, por exemplo, ao definir a posio de sujeito histrico para os Java como um anlogo dos filhos hbridos, precisa, justamente, que usa a palavra no sentido de originrio do cruzamento de espcies diferentes (Ferreira, 1986), mas sem a conotao de esterilidade dos hbridos (2008, p. 801 grifos meus).

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    23 Certamente, no isso que os etnlogos e as etnlogas que se valem da expresso virar branco tm em mente: mas o que se teme que o que eles tm em mente difira daquilo que o leitor ou a leitora (seja ele formado em antropologia ou um agente que se ope ao movimento indgena, p. ex.) absorver de seu texto.

    24 Chemell um Yanesha que fornece o caso com o qual Santos-Granero abre a narrativa do artigo. Convidado a participar de um evento, ele apareceu para falar vestido com uma cushma; depois de terminado o evento, ele tirou sua cushma e se vestiu com roupas peruanas. Um antroplogo peruano, amigo do autor, ao v-lo trajando essa outra roupa, no o reconheceu.

    25 Cf., por exemplo, o caso matis, entre os quais a transformao em jaguar efetuada pela reiterao, em intervalos regulares, de um monossilbico, no implicando nem tomada de alucingenos, nem pinturas corporais sofisticadas, nem reves-timento com ornamentos marcados pela semntica felina, nem postura, atitude, maneira ou comportamento particularmente evocativos (Erikson, 2000, p. 43).

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    ABSTRACT: The present paper explores two contexts of production of Ka-rajas Buridina village mixed persons, that is, persons internally divided into an indigenous half and a non-indigenous half . In these two contexts, craftworking and fishing, indigenous and non-indigenous elements coexist, but depending on which aspect the Karaj focus on, that is, depending on which relation is activated, and in which way each action evinces one specific set of bodily dispositions, Karaj or white ones. This indigenous population recognizes a number of discontinuities between their actual life and that of the ancient people. But in which manner, under which form, do those transformations appear to them? In this paper, I argument that they do not appear as a new Karaj way of life, but as the coexistence of two ways of life, one indigenous and other white. For the Karaj, mixture is a form of relating that does not generates hybrids. I conclude making some remarks on the totalizing character of this transformation.

    KEYWORDS: Karaj, transformation, hybridity, mixture, perspective.

    Recebido em outubro de 2012. Aceito em junho de 2013.