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1143 ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL DO ESTADO DE SÃO PAULO: O ALCANCE E O SIGNIFICADO DA EXCLUSÃO DAS CIÊNCIAS Patrícia Elisa do Couto Chipoletti ESTEVES Faculdade de Pindamonhangaba/Funvic Pedro Wagner GONÇALVES Universidade Estadual de Campinas (Ensino e História de Ciências da Terra) Eixo Temático 05: Políticas de formação de professores [email protected] 1. Introdução Esta pesquisa explora o campo interdisciplinar que envolve políticas curriculares, mecanismos de gestão educacional e Ensino de Ciências. Procura mostrar o potencial dos estudos da natureza para formar as novas gerações diante de pesquisas e reflexões que cobrem a área cognitiva da aprendizagem. O texto descreve aspectos centrais da política curricular do Estado de São Paulo para os componentes relativos aos estudos da natureza. Busca descrever o sentido dos primeiros anos do Ensino Fundamental a partir da ausência das Ciências e o alcance disso para formar as novas gerações. O objetivo central desta pesquisa é descrever e interpretar o significado das políticas curriculares da rede estadual e revelar o significado da grade curricular definida pela Secretaria do Estado da Educação de São Paulo. Certo conjunto de perguntas marca os horizontes desta pesquisa: Por que o componente curricular Ciências foi excluído da grade estadual? Quais são as implicações dessa exclusão para a justiça social? Quais concepções de Ciências podem ser aprendidas pelos alunos e qual é sua importância para a formação das novas gerações? Nos limites deste texto, essas perguntas não foram exploradas à exaustão, mas há indicações relativas a todas elas no texto. 2. Procedimentos metodológicos Trata-se de um estudo documental que examina apostilas legais da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo para descrever políticas curriculares relativas ao Ensino de Ciências do nível do Ensino Fundamental. Procura-se caracterizar a concepção de justiça social presente nesses documentos diante de pesquisas educacionais e da área específica de ensino.

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1143

ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL DO ESTADO DE SÃO PAULO: O

ALCANCE E O SIGNIFICADO DA EXCLUSÃO DAS CIÊNCIAS

Patrícia Elisa do Couto Chipoletti ESTEVESFaculdade de Pindamonhangaba/Funvic

Pedro Wagner GONÇALVES Universidade Estadual de Campinas (Ensino e História de Ciências da Terra)

Eixo Temático 05: Políticas de formação de professores

[email protected]

1. Introdução

Esta pesquisa explora o campo interdisciplinar que envolve políticas curriculares,

mecanismos de gestão educacional e Ensino de Ciências. Procura mostrar o potencial

dos estudos da natureza para formar as novas gerações diante de pesquisas e reflexões

que cobrem a área cognitiva da aprendizagem.

O texto descreve aspectos centrais da política curricular do Estado de São Paulo

para os componentes relativos aos estudos da natureza. Busca descrever o sentido dos

primeiros anos do Ensino Fundamental a partir da ausência das Ciências e o alcance

disso para formar as novas gerações.

O objetivo central desta pesquisa é descrever e interpretar o significado das

políticas curriculares da rede estadual e revelar o significado da grade curricular definida

pela Secretaria do Estado da Educação de São Paulo.

Certo conjunto de perguntas marca os horizontes desta pesquisa: Por que o

componente curricular Ciências foi excluído da grade estadual? Quais são as implicações

dessa exclusão para a justiça social? Quais concepções de Ciências podem ser

aprendidas pelos alunos e qual é sua importância para a formação das novas gerações?

Nos limites deste texto, essas perguntas não foram exploradas à exaustão, mas

há indicações relativas a todas elas no texto.

2. Procedimentos metodológicos

Trata-se de um estudo documental que examina apostilas legais da Secretaria de

Educação do Estado de São Paulo para descrever políticas curriculares relativas ao

Ensino de Ciências do nível do Ensino Fundamental. Procura-se caracterizar a

concepção de justiça social presente nesses documentos diante de pesquisas

educacionais e da área específica de ensino.

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A interpretação dos documentos é feita seguindo orientações de Gibbs (2008)

sobre análise qualitativa de textos. Considera tanto os conteúdos escritos, quanto as

lacunas, omissões e os contextos que ajudam a revelar propósitos, objetivos e sugerem o

que está acontecendo.

De certo modo, isso se assemelha às análises de contingência sugeridas por

Bardin (2011) que, ao identificar um item, passa a considerá-lo dentro do universo

contextual por meio de análises associativas que permitem caracterizar seu significado.

3. Papel do Ensino de Ciências na formação da cidadania

Perspectivas comuns que examinam os currículos dos níveis básicos de ensino

assinalam que algumas áreas possuem um papel político e ideológico na formação das

novas gerações. Nesses casos, as áreas mais lembradas são a língua nacional, a

História e a Geografia. Extrapola os limites deste texto demonstrar essas afirmações, por

isso, indicamos apenas a concordância com tais tomadas de atitude e pretendemos

ampliar ainda mais tais interpretações para o campo das Ciências – muitas vezes

consideradas neutras para formar a cidadania.

Muitos autores defendem que o currículo é um campo ou um território de disputa e

luta. Todas as vezes que se inclui alguma coisa, simultaneamente se exclui outro aspecto

da cultura, do conhecimento ou dos valores.

Moreira e Candau (2007) argumentam que a disputa chave no campo do currículo

se dá pela preservação ou pela superação das divisões sociais.

Diante disso, tenta-se demonstrar que ensinar Ciências é uma decisão de política

curricular tanto na relevância do assunto, bem como na necessidade de incluir esse

objeto da cultura para a formação das futuras gerações se nos alinhamos à perspectiva

de superação das brutais diferenças sociais que caracterizam o País. Em termos mais

simples, defende-se que ensinar Ciências é um ato político.

Tedesco (2012) assinala que as mudanças rumo a uma educação inclusiva na

América Latina requerem transformações estruturais da educação e mudanças

pedagógicas. Entre estas, inclui promover aprendizagem de Ciências voltada para a

alfabetização científica (TEDESCO, 2012) para, logo em seguida, associar a melhoraria

do Ensino de Ciências à formação e prestigio dos professores.

Poderíamos citar muitos outros autores que insistem sobre a importância das

Ciências fazerem parte da formação das novas gerações. Mas ao esmiuçar o que se

prescreve para incluir no currículo, há significativa dispersão da abrangência em torno da

alfabetização científica. O termo tem sido aplicado nos últimos vinte anos para indicar a

construção de uma dimensão cívica para Educação em Ciências (HURD, 1998) até a

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necessidade de aumentar e melhorar o consumo de bens tecnológicos da sociedade

capitalista.

O conhecimento científico é inerentemente contingente e histórico, ou seja, em

cada momento precisamos considerar modelos diferentes, as implicações de cada

modelo e os desafios sociais, econômicos, culturais e tecnológicos postos por cada

modelo para o futuro. Todos os temas científicos controversos exemplificam as

dificuldades desses desafios (mudança climática, bioengenharia, extinção em massa e

diversidade biológica). E a questão se torna ainda mais complicada quando

consideramos que muitos desses temas demandam decisões políticas.

Izquierdo (2005) fez uma apreciação de caráter curricular sobre o Ensino de

Ciências e aproxima sua prescrição da necessidade de considerar um conjunto de

dimensões humanistas, culturais, econômicas e políticas para compor a alfabetização

científica.

Há uma ideia comum sobre o conhecimento científico que ajuda a compreender

sua importância: trata-se de um conhecimento baseado em dados empíricos (vindos da

observação, da experimentação) para constituir uma explicação racional. Esta

delimitação é considerada limitada, mas de onde vêm esses limites?

Seja sob o ponto de vista da investigação filosófica sobre a natureza da

metodologia científica, seja sob investigações empíricas sobre pesquisas voltadas para

descrever e entender como se faz ciência; seja dentro do esforço de difundir descobertas

e explicações cientificas para as novas gerações, todos os casos mostraram algo

intrínseco e, ao mesmo tempo, complicado do conhecimento científico: o seu caráter que

rejeita a finitude, ou seja, o caráter epistemológico da ciência implica na incessante busca

de novos fatos, explicações, modelos etc. sem prospecto de fim.

Isso está relacionado a uma concepção dominante de ciência que toma a Física

como referência chave, ou seja, há um privilégio dos argumentos construídos a partir de

raciocínios analíticos, de base experimental (o espaço do laboratório é por excelência a

ideia da ciência positiva), valorizando a reprodutibilidade e a linguagem matemática.

Dodick, Argamon e Chase (2009) assinalam uma decorrência importante do

caráter da ciência para seu ensino, para que cumpra com o desenvolvimento cognitivo

das novas gerações: o principal foco da Educação em Ciências deve ser a aprendizagem

por investigação. Esses autores trazem, ainda, para discussão do que ensinar em

Ciências, conclusões de pesquisas de História e Filosofia da Ciência. Isso mostrou

métodos experimentais que envolviam a manipulação de fenômenos naturais usados em

áreas tais como, Biologia Molecular, Física ou Química Orgânica. Esta característica do

fazer ciência é muito diferente de outro grupo de pesquisas sobre a natureza, as ciências

históricas, tais como Cosmologia, Paleontologia, Ecologia ou Geologia. Estas usam

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metodologias distintas ligadas a seu raciocínio explanatório sobre eventos passados

formulados a partir do que foi observado, mas a maior parte, não manipulado (são

ciências que operam procedimentos observacionais, raciocínios comparativos e

multifatoriais). Disso há uma importante decorrência para o currículo: um currículo

completo baseado na investigação também requer o entendimento de como cientistas

históricos fazem sua pesquisa. Isso implica que educadores precisam reconhecer que há

diferenças entre as ciências experimentais tradicionais e ciências históricas para que os

estudantes possam desenvolver diferentes modos de raciocínio.

A questão não é nova no âmbito do Ensino de Ciências. Robinson (1998 –

originalmente publicado em 1965) indicava que para os alunos poderem compreender

Ciências e aprender as explicações científicas requerem tanto atividades de laboratório,

quanto leituras dos diversos campos científicos. Robinson (1998) nota que os campos

científicos se dividem segundo sua estrutura e construção da realidade científica (o que

inclui processos de observação, procedimentos de verificação, inter-relações de indução

e dedução) em dois grandes ramos: correlacional e exato.

A separação operada por Robinson (1998) coincide com a divisão dos campos

científicos exposta por Dodick, Argamon e Chase (2009): as ciências exatas

(experimentais) e correlacionais (históricas). Gray (2014) traz praticamente essa mesma

divisão de Ciências para defender que o modo como crianças e jovens vão conceber a

atividade científica depende de conhecer as diferenças entre o que ele denominou

ciências experimentais e ciências históricas.

Gray (2014) argumenta que ciências experimentais, por exemplo, a Química,

perguntam sobre experimentos diretos que podem ser feitos com fenômenos naturais.

Portanto, o conhecimento é frequentemente construído por meio de experimentos

controlados de fenômenos manipulados, frequentemente correspondendo a teste de

hipóteses singulares (trata-se do método de construção da evidência). Raramente tratam

de particularidades do lugar e do tempo para refletir sobre um processo.

Frodeman (2004) explorou as diferenças entre os campos científicos a partir dos

procedimentos metodológicos e do espaço do fazer ciência. O laboratório é por definição

um espaço irreal - argumentou. As condições são parametrizadas, objetos são limitados,

materiais são purificados. O espaço do laboratório é utópico, em grego o termo é ou-

topos que significa fora do lugar. O laboratório é um lugar separado do resto do mundo,

não faz diferença se você está em Dallas ou em Oslo. Não apenas o espaço é idealizado,

o tempo também é. Tempo evidentemente existe, rodar um experimento gasta um tempo.

Mas o laboratório elimina a história, o não reprodutível, o fluxo contingente de eventos –

seja em suas dimensões naturais ou culturais.

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Robinson (1998) argumenta que procedimentos correlacionais são caracterizados

pela coleta de dados e comparações. Tais comparações podem originar agrupamentos e

classificações. Correlações de dados quantitativos podem resultar em relações

matemáticas desenvolvidas por certos procedimentos (segundo certos coeficientes de

correlação). Exemplifica este campo com as Ciências Biológicas.

Gray (2014) afirma que ciências históricas frequentemente precisam construir

explanações causais sobre fenômenos únicos e singulares, largamente é um

pensamento reconstrutivo obtido por meio de métodos comparativos para prever causas

e efeitos de fenômenos achados.

As ciências históricas operam com argumentos que envolvem escalas de tempo

muito diversificadas. Isso foi assinalado por Frodeman (2010) para a Geologia. De certo

modo, Frodeman (2010) acompanhou Potapova (2008): ambos assinalaram o caráter

temporal (e histórico), interpretativo, narrativo e sistêmico dos estudos que buscam

unificar nosso entendimento da relação com a Terra. Ou como Frodeman (2004)

reivindica: uma disciplina específica que propiciaria o logos completo do planeta, ou seja,

o que os gregos denominavam Gaia. Um campo capaz de sintetizar os estudos da Terra

com a poesia e a escrita da natureza. Combinar essas a considerações alcança diversas

implicações geopolíticas devido aos tópicos que aborda, tais como, poluição, mudança

climática etc.

O significado e as implicações dessa abrangência temporal foram tratados por

Cervato e Frodeman (2014) ao assinalar o quanto mudam as perspectivas econômicas,

políticas e culturais quando trazemos para o centro do debate as escalas de tempo de

dezenas de milhares a milhões de anos. Elementos como o preço dos cereais precisam

ser ponderados com variáveis novas se passamos a considerar a taxa de perda de solo

em intervalos de tempo de algumas gerações, ou seja, se começamos a refletir sobre o

tempo da natureza.

Após o furacão Katrina, o debate em Nova Orleans se concentrou na reconstrução

da cidade – como Cervato e Frodeman (2014) relatam. O debate foi sobre custos,

adequação de diques e possibilidade de outro furacão de Categoria 3, 4 ou 5 atingir a

cidade. Se os debatedores estivessem familiarizados com o tempo geológico, se

observassem o mapa geológico, teriam percebido que a probabilidade de ocorrência de

outro furacão categoria 4 ou 5 atingir Nova Orleans é de 100%.

Frodeman (2013) tratou dos problemas relacionados à mudança climática global.

Seu argumento sobre a incerteza da previsão climática assume implicitamente o

problema das escalas de tempo. Defende que há um problema lógico vinculado à

incerteza sobre qualquer “evento” futuro: se tomamos uma seca, uma temporada de

furacões ou tempestades extremas, vamos considerar um evento anômalo ou isso faz

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parte de um padrão de mudança climática. Posto em outros termos, não há base

epistemológica para separar os termos “tempo” e “clima”. O tempo é o que acontece hoje,

o clima é uma média das condições de largo período de tempo. Mas o que define um

“largo período de tempo”? Bem como, o define o “hoje”? Não podemos perder de vista

que meteorologistas trabalham com médias históricas dos últimos trinta anos.

Podemos acrescentar: se tomamos algumas dezenas de milhares de anos para

caracterizar o clima de nossa época, vamos ter outro olhar para o aquecimento global

pós 1980. A tempo: não estamos pondo em dúvida a concepção amplamente defendida

de aquecimento global derivado do aumento de gases estufa da atmosfera, mas

queremos assinalar que há uma incerteza lógica que precisa fazer parte da formação das

novas gerações pois ela estará presente em qualquer tema controverso (por exemplo,

alimentos transgênicos, engenharia genética etc.).

Necessitamos, ainda, recorrer a um aspecto menos explorado do que a própria

relevância do Ensino de Ciências. Autores, tais como, Zoller e Scholz (2004)

desenvolvem uma correlação entre estudos sistêmicos e desenvolvimento de habilidades

cognitivas.

Zoller e Scholz (2004) essencialmente associam os estudos de Ciência,

Tecnologia, Sociedade e Ambiente (CTSA) ao esforço para desenvolver habilidades

cognitivas de ordem mais alta (HOCS) nas crianças e jovens.

O argumento de Zoller (2004) em favor das ciências ambientais e suas múltiplas

implicações para diminuir as fronteiras disciplinares e buscar os elementos

multidimensionais da CTSA traz para o centro do debate as HOCS.

Desde uma perspectiva algo diferente, Earley (2013) reivindica que diante dos

desafios da revolução tecnológica atualmente em curso é necessário buscar um ensino

de Química de caráter sistêmico. O ensino analítico que prevalece no momento é

insuficiente para dar conta dos problemas que temos hoje.

Isso facilita nossa aproximação com Orion (2009) que expõe um currículo de

Ciências do nível básico construído na perspectiva de atingir a alfabetização ambiental. O

autor sustenta que o fundamento dessa alfabetização é a Ciência do Sistema Terra. Isso

contribui para desenvolver habilidades cognitivas de ordem elevada (raciocínio

sistêmico), crucial para enfrentar os desafios sociais, econômicos, políticos e militares de

nossa época.

A noção de alfabetização em Geociências é preconizada por diversos autores. Do

mesmo modo que alfabetização científica possui distintas delimitações e objetivos. King

(2008) traçou um quadro abrangente dos problemas e possibilidades do Ensino de

Geociências. Resumidamente o autor sugere que essa alfabetização está relacionada à

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familiaridade e consciência das transformações materiais que ocorrem nos sistemas

terrestres.

King (2008) descreve atividades práticas de laboratório e campo e mostra as

habilidades cognitivas que se acham vinculadas a cada uma delas, bem como suas

diferenças com atividades comuns de sala de aula.

Lacreu (2009) também argumenta sobre a necessidade de desenvolver a

alfabetização em Geociências para as próximas gerações. Mas, além de considerar que

esta é um elemento fundamental da construção da cidadania do século XXI, procura

compor este elemento como sendo simultaneamente um entendimento ambiental e

desenvolvimento de habilidades cognitivas. Do seu ponto de vista, não permitir que os

cidadãos compreendam como fenômenos terrestres funcionam (terremotos, enchentes,

escorregamentos, clima etc.) corresponde a naturalizá-los, ou seja, tornar naturais os

efeitos das relações adversas de natureza e sociedade.

Ao se apoiar nesses princípios e considerando, ainda, que o direito à educação é

um direito inalienável do ser humano – como tem sido definido em vários países da

América Latina – o currículo apoiado nessas pesquisas deveria contemplar tais

elementos na Educação Básica.

4. O currículo oficial de Ciências

Desde o ano de 2007 a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo vem

elaborando e implantando seu currículo para os ensinos Fundamental e Médio. A partir de

2010 a rede estadual passou a ter um currículo oficial que foi acompanhado de material

didático dirigido aos alunos, bem como orientação fornecida aos professores. Mas é

importante lembrar que os anos iniciais do Ensino Fundamental já contavam com material

didático e capacitação de professores preparado pelo Centro de Estudos e Pesquisas em

Educação, Cultura e Ação Comunitária (CENPEC) e que permanece ativo na rede

estadual até o presente.

O novo currículo estadual foi acompanhado por mecanismo de supervisão escolar

assessorado por professores coordenadores (da Oficina Pedagógica das Diretorias

Regionais de Ensino). O processo foi acompanhado por avaliações padronizadas

estaduais aplicadas aos alunos, cujos resultados foram associados a índices de

desenvolvimento (levados em conta na distribuição anual de bonificações financeiras a

professores e gestores da rede). Alguns mecanismos empregados são detalhados a

seguir.

Como parte da estratégia de implantação do currículo paulista foram elaboradas

as Orientações Curriculares do Estado de São Paulo – Língua Portuguesa e Matemática,

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Ciclo I (São Paulo, 2016). Os propósitos do documento são explicados na página

eletrônica da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo:

O presente documento foi elaborado, como já colocado, a partir dasOrientações Gerais para o Ensino de Língua Portuguesa e deMatemática publicadas pela SME São Paulo, com a intenção desubsidiar o ensino dos conteúdos mais relevantes a serem garantidosao longo das quatro séries do Ciclo I do Ensino Fundamental. Odocumento se organiza em torno de um objetivo central: subsidiartodos os envolvidos no processo de ensino da Língua Portuguesa(Leitura, Escrita e Comunicação Oral) e Matemática parasistematizar os conteúdos de ensino mais relevantes a seremgarantidos ao longo das quatro séries do Ciclo I do EnsinoFundamental. Outro propósito importante do documento é contribuirpara a reflexão e discussão dos professores com a indicação do que osalunos deverão aprender, progressivamente, durante as quatro séries doCiclo I do Ensino Fundamental (SÃO PAULO, 2016, grifos meus).

Por outro lado, no documento intitulado Reorganização do Ensino Fundamental e

do Ensino Médio (SÃO PAULO, 2012, p. 6) há “[...] orientações para o trabalho cotidiano

de dirigentes e professores da rede estadual de ensino” e “trata da organização dos

ciclos de aprendizagem, do tempo escolar, das áreas de ensino e sua distribuição na

composição das matrizes curriculares de cada segmento de ensino, bem como da

recuperação dos alunos com dificuldades”. Essa publicação é uma compilação de cinco

trabalhos e num deles, denominado Por uma Educação de Qualidade é esclarecido que

segundo a LDB n. 9.394/96 (BRASIL, 1996) a educação deve se pautar por três

princípios:

1. Todos são capazes de aprender; 2. A escola deve propiciar situaçõesde aprendizagem que valorizem as experiências dos estudantes; 3. Aescola é responsável pela construção da proposta pedagógica e pelaadoção do princípio de gestão democrática (SÃO PAULO, 2012, p. 20).

Esse discurso aparentemente progressista encobre uma tradição curricular

mobilizada pelo esforço de garantir a alfabetização em língua portuguesa. No final do

século XX, os baixos resultados de leitura e escrita conduziram a um esforço que

envolveu material didático (construtivista e vinculado à linguística) e formação continuada

persistente de professores. Isso foi reforçado durante os últimos dez anos por diversos

mecanismos de compensação financeira segundo resultados do currículo avaliado

(avaliado externamente). Professores que atendem os primeiros anos do Ensino

Fundamental repetem de modo pouco reflexivo que sua tarefa essencial é alfabetizar as

crianças. Na rede estadual de São Paulo e nas escolas municipalizadas que seguem o

mesmo currículo esse programa passou a se chamar “Ler e Escrever” em 2007.

Marin (2012) descreve os resultados da persistência dessa política curricular e

seus efeitos na sala de aula. Revela que houve alterações do ensino e da aprendizagem

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nos anos iniciais. O caderno do aluno tornou-se local para colar folhinhas com atividades

e pouco se escreve apesar de a escrita ser o foco dessa fase de aprendizagem. E

continua descrevendo o trabalho de uma professora de escola estadual paulistana: a

marca do ano escolar foi crianças sentadas com cadernos abertos esperando em silêncio

ordens da professora. Ou seja, esta política curricular articula uma sucessão de condutas

para alunos e professores.

Quase um corolário dessa política curricular é a matriz dos cinco primeiros anos

da Educação Fundamental: Ciências está ausente dos três primeiros anos e no quarto e

quinto ano recebe 10% da carga horária.

É evidente que o currículo do Estado de São Paulo é ilegal diante das diretrizes e

parâmetros curriculares nacionais. Apesar disso, persiste devido aos mecanismos que

foram listados acima.

5. O alcance político da exclusão das Ciências

Evangelista e Shiroma (2007) já alertavam para o alinhamento das políticas

educacionais brasileiras às orientações de órgãos internacionais. O Banco Mundial

promoveu programas para América Latina e Caribe buscando estabelecer ligações entre

mudanças nas políticas e nas práticas educativas para atender propósitos da economia

mundial. Os mecanismos – ainda segundo as mesmas autoras – tentam organizar a

educação em torno de noções vinculadas à provisão, financiamento, avaliação,

regulação, gestão, controle e falta de responsabilização do estado.

No plano pedagógico, o resultado central da combinação desses mecanismos é o

esvaziamento do currículo. Isso foi feito privilegiando dois componentes curriculares -

Português e Matemática – e abandonando as demais dimensões de conteúdo. O

processo é agravado ao privilegiar a formação de condutas disciplinares que adestram

professores e alunos.

A política curricular da rede estadual de São Paulo revela que procura seguir e

desenvolver as orientações internacionais para educação e, ao mesmo tempo, rejeita

toda a produção científica sobre currículo, formação de professores e Ensino de Ciências.

O resultado disso é um aparente paradoxo: as premissas dos documentos da Secretaria

do Estado da Educação propõem objetivos de aprendizagem para os anos iniciais do

Ensino Fundamental contemplando as áreas tradicionais do currículo, mas quando se

define a matriz curricular, História, Geografia e Ciências são eliminadas.

Mirra e Morrell (2011) discutem as reformas educacionais iniciadas nos EUA pelo

programa Nenhuma criança para trás. Revelam como as noções dominantes de

qualidade de ensino e de aprendizagem limitam a autonomia do professor e são fonte de

um profissionalismo, da reforma da educação sob influência da ideologia neoliberaliberal.

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Mostram, ainda, que a perspectiva de cidadania vinculada ao modelo conduz as escolas

públicas norte-americanas a atender estudantes (indivíduos) para obter conhecimento e

habilidades que serão necessários para perseguir seus recursos e ganhos individuais

(MIRRA; MORRELL, 2011). Isso induz a formar valores individualistas, consumistas,

passivos e reforçam o predomínio da democracia representativa (com o domínio do

governo restrito a poucas famílias).

A exclusão das Ciências dos anos iniciais do Ensino Fundamental é um dos

mecanismos que conduzem a promoção da exclusão social dos alunos da escola pública.

6. Conclusões

A política curricular e de gestão da rede estadual de São Paulo revela o desprezo

pela produção científica nacional e estrangeira sobre currículos, formação de professores

e Ensino de Ciências. Ao invés disso, há muitos indícios da tentativa de acompanhar

orientações internacionais para a educação oriundas de órgãos multilaterais tais como o

Banco Mundial.

O traço marcante da grade curricular estadual promulgada em 2010 foi a redução

do currículo que excluiu Ciências, Geografia e História dos anos iniciais do Ensino

Fundamental e manteve uma carga didática muito pequena nos demais anos da

Educação Básica.

Considerando o potencial formativo dos estudos da natureza, a necessidade de

conhecimento científico e tecnológico para enfrentar, desde dilemas de consumo a crise

ambiental global, a política curricular do Estado de São Paulo para Ciências é indício de

que o objetivo central da escola pública é promover a exclusão social e fazer com que as

escolas mantenham a injustiça social.

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