anos 70 música popular - ana maria bahiana josé miguel wisnik margarida autran

Download Anos 70 música popular - Ana Maria Bahiana José Miguel Wisnik Margarida Autran

If you can't read please download the document

Upload: rainer-goncalves-sousa

Post on 29-Nov-2015

536 views

Category:

Documents


33 download

TRANSCRIPT

  • querer me ensinar. E eu tenho medo de desapreoder." Proeurados pelas gravadoras quando estas percebe-

    ram que era mais facil e barato utilizar 0 trabalho dos criadores originais do que produzir c6pias, os sambistas das escolas usaram seu instrumento de trabalho para le-vantar seu protesto. E ftzeram sambas como este, de Nelson Sargento: "Samba/inocente, pe no cMo/A fidal-guia do salao/te abra

  • C 'lh Abel Ferreira, Luperce Miranda e Altamlra am a, Dea Rian na Capacabana Palace.

    as Cariaquinhas

    ver So r?

    b, Canjunta Atlantica

    62 64

    ~ .. Y'li. 4""S . .:6 iil' .rt.l~J -ili .~ -r ~ " i

    F

    ,,, Renascimento" e descaracteriza~ao do choro

    Margarida Autran

    Enquanto no core to do J ardim da LUZ, em Sao Paulo, quase tres mil pessoas cantaram e dan9aram ao som da flauta de Altamiro Carrilho e da voz de Ademil-de Fonseca, a Rainha do Chorinho, no Rio houve tumulto e briga na porta da Sala CecIlia Meirelles, pe-quena para conter a multidao que queria ouvir Abel Ferreira, Luperce Miranda, Joel Nascimento, Dec Rian, os Carioquinhas, Paulo Moura e 0 conjun to de Rada-mes Gnatalli.

    Os dois concertos, patrocinados pelas Secretarias de Cultura, no inlcio de 77 e no final de 76, respectiva-mente, marcaram indiscutivelmente a volta do choro, mas sao tambem uma clara amostra da atua9aO oficial na cultura popular. Ao ser subvencionado pelo Estac!o e encamp ado pela industria cultural, que pretenderam torna-Ie competitivo no mercado nacional, este genero basicamente intimista - que nos sellS cern anos de exis. H~ncia nunea deixou de ser tocado amadoristicamente por musicos populares nos quintais dos suburbios cario-cas, onde nasceu - foi levado a descaracterizayao, 0 que provocou urn nipido esvaziamento de urn Hboom" criado artificialmente. "Esta volta do charo teve urn problema gravissimo," observa Maria Helena Dutra. "Ele voltou muito oficial, de patrocinio, menos popu-lar que cultural. Hoje quem quer ouvir choro tern que ir ao Planetario da Gavea, onde e executado em promo-,ao da Secretaria de Cultura."

    Foi urn a:l(ologico espetaculo de Jaco do Bandolim e Elizeth Cardoso, no aniversario de Pixinguinha de 1968, e 0 excelente disco que dele resultou, qtle cha-rnaram novamente a aten9ao de pessoas mais ligadas a

    65

  • musica popular brasileira para este som rico, criativo e de difi cil execu,ao, que tinha em J ac6 seu principal -e quase que solitario - divulgador. Jac6 promovia em sua casa, reunifies, das quais surgiram alguns excelentes choroes, e acumulava urn grande acervo de discos e par tituras que, com sua morte, foram incorporados ao Mu~ seu da Imagem e do Som.

    Mas s6 a partir de 73, quando 0 show Sarau, de Pau Iinho da Viola, dirigido par Sergio Cabral, apresentou a Zona Sui carioca 0 virtuosismo do tradicional conjunto Epoca de Ouro, acompanhante de Jac6 do Bandolim, 0 choro come,ou a interessar a urn outro tipo de plateia: "Esse tal de choro e urn barato. Dava 0 maior pe em Woodstock", escutou Sergio Cabral de umjovem espec tador. Em novembro de 75, estimulados pela receptivi dade de Saran, Sergio, Paulinho da Viola, Albino Pinhei ro e Juarez Barroso criaram a Clube do Choro, no Rio, promovendo concertos que reuniam chor6es tradicio nais, grupos recemformados par musicos jovens e insw trumentis!,s de formaglio erudita, como 0 Quinteto Villa.Lobos e 0 pianista Artur Moreira Lima, que estava entlio descobrindo 0 virtuosismo de Emesto Nazareth.

    Ate entlio, quando a retomada do choro ainda era iniciativa de urn grupo de intelectuais interessodos em preservar a memoria musical brasileira e apresentar aos instrumentistas uma OP9ao ao vazio em que se encon-travam, os concertos ainda tinham 0 cHma que 0 choro exige e que, quando foram oficializados, nlio consegui ram mais ter. Tendo 0 improviso como caracterlstica fundamental, sua execu9ao exige urn envolvimento emocional entre os musicos e, segundo 0 flautista Bide, unico remanescente do regional "Velha Guarda", do qual participaram Pixinguinha, Donga e J olio da Baiana, "esta musica nao e s6 para ser ouvida mas tambem sen-tida, nas suas fases de alegria e tristeza, porque a muw

    sica para nos (choroes) e urn dialogo de instrumentos. Enquanto a solo faz uma pergunta, as acompanhantes respondem com acordes harmonic os. E isto e uma coisa que s6 nasce de cora,lio para cora

  • siderada quadrada e cafona e, segundo Paulinho da Viola, 0 musico que a tocasse "ganhava retulos pejora-tivos como nacionalista, purista, saudosista." E ele explica este "preconceito" como "urn problema de classe media, que sempre teve uma relayao de consuma com a musica e sempre a colocou como coisa secunda-ria, de pano de fundo para Dutfas coisas". E continua: "0 problema maior e que durante algum tempo se dis-cutiu 0 problema da cultura brasileira por urn prisma universitario. Tuda 0 que cheirassc a brasHeire, usanda urn termo de Vianinha, fazia 0 pessoal torcer 0 nariz. E essa discussao tada, por essa perspectiva, s6 alienava ainda mais os verdadeiros valores populares. Depois hOllvr uma certa abertura, 0 tropicalismo etc." (Jornal de Musica, maryo de 76)

    Mas as tempos mudaram 0 consumismo da classe media nao se satisfazia mais com a alienayao do rock, 0 mercado interne precisava se expandir para absorver a industria cultural que se desenvolvia e a decada de 70 traz em seu bojo uma necessidade do Estado de refor-mular sua polItic a de cultura, na qual os intelectuais iriam assumir urn novo pape!.

    Quando Roherto Moura define 0 choro como "a anti-musica de protesto" e afinna que "certamente nao sera uma coincidencia 0 fato de que, num momento em que todas as artes brasileiras estlio vivendo urn c1ima de ten-sao a MPB ter-se encaminhado para a ressurrei9ao de urn' genera tipicamentc instrumental - onde nao e pre-ciso dizer nada" (0 Dia. novembro de 77), ole est. abordando apenas um lado da qucstao. Talvez 0 fato de 0 choro nao encontrar problemas com a ccnsura te-nha facilitado seu rapido acolhimento por parte do novo projeto cultural brasileiro. Mas nao foi 0 fator deter minante.

    Se em 74/75 0 govemo decide promovcr fonnas espontaneas de cultura que, como 0 choro, sobreviviam de urn modo marginal, buscando integra-las no merca-do, e porque precisa de uma base de sustenta9ao ideo-16gica. E e nas manifestayoes culturais que ja contam com uma base popular que ela sed. buscada. t: preciso tapar 0 buraco cultural, "interpretando" os "anseios e aspira

  • ,

    atividades, durante os quais editou urn LP do excelente e ate entao desconhecido chorao Armandinho Neves, lan

  • cavaquinho e violao", charas gravados com artistas de sua casa de muska, 0 J ogral. A experiencia acabou por leva-Io a abandonar a pubUcidade e tomar-se urn com-bativo pradutor preocupado em pramover a boa musi ca brasileira. Assim, ele foi responsavel pelos melhores discos de chora, como "Altamiro revive Pattapio", "Hist6ria de urn bandolim - Luperce Miranda", a gra-val'[o praticamente inedita da obra de Emesto Naza reth na interpreta,[o do pianista Artur Moreira Lima e o disco do Quinteto VillaLobos, no qual 0 chora e apresentado com tratamento camerfstico.

    Mas a Marcus Pereira Discos nao conseguiu sobrevi-ver, num mercado monopolizado pelas multinacionais. Como pradutor independente, Marcus passou a gravar suas produyoes na Copacabana, empresa fonografica de capital nacion'll. "Quanto a explos[o do choro, que vern alimentando as gravadores multinacionais, e sim-ples explicar. No mundo em que a gente vive, comida, saude e educayao sao neg6cio. Por que a cultura estaria a salvo? E urn neg6cio para as gran des empresas e nao tenho duvidas de que vai ser explorado assim. E uma visao realista do mundo em que vivemos. 0 resto e ingenuidade", escreveu ele em 0 Globo (27/9/77).

    Quanto aos music os, inebriados com tao inexplica-vel sucesso, poucos tiveram a clareza do experiente HeIDleto Pascoal que, entre outras coisas, tambem en-tende de choro e de mercado: " ... Por exemplo: eu acho que a onda do chorinho, a onda do rock e a onda do balao, a onda disso ou daquilo, sao estas coisas que atrapalham. Fica todo mundo querendo ganhar dinhei ro em cima disso al. Esse neg6cio que estao fazendo com 0 chorinho, e como se fosse a safra da laranja, a safra da banana, a safra da manga." ("Se a musica fosse uma banana", depoimento ao jornal 0 Beijo, novembro de 77)

    E quando ate a prefeitura e a universidade de Lon drina investem suas verbas num festival de choro, des locando para 0 Parana uma respeitavel caravana de gran des interpretes do genera, os meios de comunica 1'[0 de massa tambem ocupam 0 espal'o que lhes era destinado pelo novo plano cultural em vigor, divulgan do macil'a e massificadamente a nova moda em todo 0 territorio nacional. Nunca os choraes deram tantas entrevistas a revistas e jomais e, embora os discjockeys confessassem sua dificuldade em selecionar boas grava. I'0es de choro para suas pragrama,oes radiof6nicas, ele

    72

    passou a ser veiculada com freqiiencia, cspecialmente depois que virou jingle comercial e tema de telenovelas ("Bohcmios", de Anacleto Medeiros, foi inc1u(do na trilha musical de "Pecado capital" e "Brejeira", de Ernesto Nazareth, na de "Nina", entre outros).

    Em Silo Paulo, "0 chora das sextasfeiras", pradu zido pelos jomalistas Julio Lemer e J. R. Tinhor[o, que desde 75 nele apresentavam 0 Conjunto Atlantico e convidados como Altamira Carrilho e Ademilde Fon seca, tomou-se em dois anos 0 programa de maior audiencia na TV Cultura. Mas a escalada televisiva do choro culminou com 0 Festival da Bandeirantes, que em outubro de 77 teve 1.200 musicas inscritas, envia-das por compositores de todo 0 pais. "Os festivais foram terrlveis, sem clima, porque 0 choro nao e lima boa mercadoria para este tipo de espetaculo, ja que n[o cria competiyao", afirma Maria Helena Dutra.

    Repetido no ana seguinte, ja com menos repercus-sao, 0 festival motivou uma polemica sabre os cami-nhos do chora. Participando do juri, 0 cr(tico Tinhor[o colocou-se contra os que pretendiam Hmoderniza-Io", afirmando que 0 festival revel!,u, no geral, "urn apego e uma fidelidade muito grandes a formachora de tocar, enquanto criayao musical a nIvel de musicos e compo-sitores da classe media para baixo." E mais: "Quem quiser algo diferente que crie 0 Festival de Chora de Vanguarda, para genios de alta classe media. Ou mate 0 povo que 0 incomoda com sua pobreza, sua ratina, sua falta de cultura, seu apego a tradi,ao da orelhada, seu instrumental ''ultrapassado'' e sua vocayao para ser autentico". (HElites musicais comeyam a implicar com o choro" ,Jornal do Brasil, 21/10/78)

    Contudo, esta "reciclagem" era inevitavel - e ate mesmo esperada - no momento em que 0 choro foi retirado de seu meio .ambiente e divulgado para urn novo publico, desligado da tradil'[o popular que durante urn seculo 0 acompanhou. Classificado pelo cr(tieo Ruy Fabiano como "talvez 0 tinico genera de musica progressiva nacional, rompendo em deteIDlinados momentos as fronteiras entre 0 popular e 0 erudito", nao e de estranhar que, rompidas aquelas fronteiras, 0 chora aglutinasse a sua vol~a instrumentistas vindos de outras escolas, como a jazz(stica e a emelita, os quais, por sua pr6pria forma,ao, dificilmente se enquadrariam nos moldes originais.

    "Atualmente, fazer s6 choro e uma coisa cansativa

    73

  • devido ao policiamento e ao cuidado da, puristas, defensores e cnticos da MPB, que dificuItam qualquer passo adiante que se queira darH, queixou-se Paulo Moura, saxofonista oriunda cta jazz (Ultima Hara, de zembro de 76). Queixa que, na verdade, revela uma anahse apressada do processo por que estava passando o chore, pm parte dos criticos a que 0 musico se refere.

    Foram tambem as possibilidades instrumentais desta ~usica que .despertaram 0 interesse das gera~5es que Vleram depOls da bossa-nova e do tropicalismo - movi-mentos que valorizaram a linguagem musical propria-mente dita, a som em si meSma. E, enquanto em 1970 o musicolago Mozart Araujo declarava ser dificil encontrar autenticos charoes "nestes dias de ie-ie-ie" devido a virtuosi dade que 0 chorD exigia de seus execu~ tantes, quatro anos depois comeryaram a surgir gropos ?e choro farmadas por muskos que nao tinham sequer ldade para se profissionalizar.

    "Quando 0 choro comer;ou a voltar - e eu nao sei bern por que isto aconteceu - eu imaginei que fosse haver essa identidade com 0 pessoal mais novo, bastan te aberto a uma linguagem instrumental," disse Pauli nho da Viala aa \ Jamal de Musica, em mar,a de 76. HIsso eu vinha obseIVando nos meus shows, onde apre-sentava choros que empolgavam a garotada."

    Os Carioquinhas, Galo Preto, Cinco Companheiros, Levanta Poeira, Anjos da Madrugada, Eramos Felizes e a Fina Flor do Samba foram compostos por instrumen-tistas cuja idade media estava entre os 15 e as 20 anos. Rafael, ex-Canoquinhas, excepcional viollro de sete cordas recentemente convidado a substituir Dino na excursao do Epoca de Duro COm 0 Projeto Pixinguinha, tinha apenas 14 anos quando foi "descaberto" par urn diretor do Departamento Cultural carioca, no Sovaco de Cobra (grupo de choroes que se rellne aos domingos num bote co da Penha Circular, transfonnado em atra-,ao para a classe media do Ria).

    A maio ria desses conjuntos entao formados se man tiveram fie is ao estilo tradicional, como os Carioqui-nhas, que tocavam na mesma harmonia que 0 Epoca de Duro. Outros ja inclu{ram algumas modificayoes em sua formayao, como a Fina Flor do Samba, que usava solo de contrabaixo aCllstico, muita percussao e bateria, embora mantivessem urn estilo de execu9ao autentico. Mas ate Os Mutantes, 0 V[mana e outros grupos :nais habitualmente ligados ao rock incorporaram 0 choro a

    74

    F

    suas apresenta,Cies. Revelando mais interpretes do que. compositores, a

    choro quase nao proporcionou novas sucessos, :l exce-930 de "Meu caro amigo", de Chico Buarque e Francis l:ime, e do LP de Paulinho da Viola, "Memorias cho-rando". Contuda, atendendo as regras de mercado, fai incluido nos repertorios dos discas anuals de muitos artistas cantratados pelas gravadoras, pois, afinal "charo vende".

    A Cor do Som, urn conjunta formado par mllsicos con. experiencia de rocke freya (via trio eietrica bala-na), chegou a conseguir 0 quinta lugar no primeiro Festival dl Bandeirantes com sua compasi9ao "Espinto Infantil" e, embora mestre Pixinguinha ja dissesse que "choro e urn neg6cio sacudido e gostoso", uma repor tagem do Jamal de Musica afirmava na ocasiila que "A Cor do Som tirou 0 charinho da eterna candi9'o de rel[quia e fez dele uma musica viva, esperta, curiosa" e em seguida sugeria que "Espirito Infantil" bern que po-deria ser a inffulcia de uma nova fonna de fazerum tipo de musica que precisa encontrar novos caminhos para sobreviver" (Nica Queiroz em "E fantastico 0 choro de plastica", J.M., outubro de 76). Mas, mals adiante, 0 autor ja duvidava da perseveran,a destes inovadares e da continuidade desta "nova fonna" de fazer choro, ao preyer que, a curto praza, muita coisa poderia mudar e "a febre do choro", 0 modismo atual, certamentl! dant lugar a gente nova com novas id6ias na cabec;a".

    Realmente. Transformada num "fantastico charo de plastica" ao ser adaptada aos anseios e aspira9Cies da classe media - destinada a retamar seu papel de base social do regime - a velho chonnho de Callado, Naza reth e Pixinguinha chegou ao final da decada exaurida. Criado por mllsicos populares, que durante urn seculo se esforc;aram anonimamente para manter viva sua pureza original, ele nao teve fOlego para se manter por mais tempo como produto de consumo de massa. Os bons instrumentistas que revelou partiram para outros caminhos (0 que motivou a dissolu,ao da maioria dos conjuntos) e os choroes tradicionais aproveitam 0 final da safra, en quanta nao sao for9ados a se adaptar ao novo modismo: a gafieira.

    75

  • Hermeto Paschoal

    Egberta Gismanli 76

    r

    L

    Musica instrumental - 0 caminho do improviso a brasileira

    Ana Maria Bahiana

    A denominayao "musica instrumental" - OU, como prcferem as pr6prios musicos, "musica improvisada" -parece, a principia, elastica e abrangente. Esteve cons~ tantemente em pauta durante a decada, foi retomada como assunto de investigayao e dabate inumeras vezes, principal mente a partir da metade final dos anos 70. Mas, na verdade, 0 assunto central dessas discuss6es, 0 tema oculto sob a designa9ao "musica instrumental" -palavra que, por defini,ao, deveria se aplicar a toda for-ma musical cxecutada exc1usivamente com instrumen-tos, sem 0 concurso do texto cantado, 0 que incluiria desde 0 charo ate a musica dita "clissica" ou "erudita" - nao CIa tao imenso como fazia supar. Referia-se, basicamente, as faImas musicais cunhadas na informa-,ao do jazz e a gera,ao de seus praticantes, os instru-mentistas dispersos com 0 esvaziamento da bossa nova eo desinteresse do mercado e da industria fonognifica.

    Portanto) ao tentar compreender em perspectiva a prodUl~ao e a discussao da "musica instrumental" nos anas 70, e preciso fazer essa distinyao. Dais grandes as-suntes foram levantados e debatidos nestes anos ~ assuntos diversos e freq uentemente - mas mro necessa-riamente - comunicantes: urn, a problematica profis-sional do musico enquanto classe; outro, a disputa pela aten,ao do publico, da industria fonografica e dos meies de comunicalfao empreendida por esses musicos de fonnayao jazistica, herdeiros ou continuadores (muitas vezes sobreviventes) da linhagem da bossa nova.

    Os problemas e dificuldades profissionais da classe de instrumentistas - onde se incluem desde os.mu.sicos de sinfOnica ate os integrantes de bandas carnavales-

    77

  • cas - nao surgiram nesta decada. E nela nao foram so-lucionados, apesar de terem atraido) talvez como nunca antes, a aten,[o dos meios de comunica,ao, principal mente a imprensa. Em 77, a morte do violinista Macum-binha (Benedito Inacio Garcia) e sua familia (mulher,. dois filhos) por urn escapamento de gas lido mais como suicidio que acidente, deu a enfase dramatica num de-bate que ja havia sido levantado desde 0 inicio da dOca ca. "0 sindicato, a Onlem dos Musicos, como outros sindicatos, nada fazem, nada reivindicam. Existe 0 me do da interven,ao. Os musicos tern todos os dias seu mercado de trabalho aviltado. Se fecham em pequenos grupelhos de caracteristieas mafiosas, pra disputarem as sobras de urn mercado de trabalho ocupado pela impor ta,ao de cultura de consumo, importa,ao essa que da altos lucros para os empresarios, mas faz os espectros da fome rondarem os lares dos trabalhadores brasilei. fOS", escreveu Plinio Marcos, na epoca (l).

    Mas 0 problema nao era tao simples. nem tao recen-teo As fases de fartura e penuria para 0 musico como profissional parecem antes obedecer a ciclos, e as quei-xas contra inimigos que roubam espavo do instrumen-tista vern de outras decadas, mudando apenas 0 nome do acusado: ieieH>, discoteca (nao ados anos 70, mas a dos 60), fita pregravada. Os problemas principais, que apeilas nesta decada aproximaram-se de uma solu~ao, dizem rcspeito antes a organizavao da classe - unico meio eficiente de fazer valer 0 direito de qualquer cate-goria profissional, artistiea ou nao. Indagado sobre as causas das dificuldades de sobrevivencia e afirma,ao do instrumentista, no Brasil, 0 trumpetista Marcio Montar-royos nao hesitou em responder: "E porque nao tern organizavav, nao querem ir a luta. 0 musico que fica em casa estudando e chorando porque ninguem Ihe da valor, nao adianta" (2). E de fato, em parte realimenta dos pelo proprio interesse da imprensa em levantar seus problemas - pagamento justo pelos horarios de estu dio, maior aproveitamento do musico em casas notur-nas e grava,l5es de publicidade, facilidade de compra de bons instrumentos, quase sempre importados e sujeitos a alta taxa,ao - os esfor,os dos musicos no sentido de pressionar suas organizavoes, em geral tidas como ino-perantes, principalmente a Ordem dos Musicos, trouxe alguns resultados pralicos. Reajustes periodicos do pa gamento por perfodo de gravavao e atuavao em espeta-culos e casas noturnas, revogavao do ISS pago sobre

    78

    L

    caches, assistencia medica e auxilio funeral foram algu-mas das conquistas principais da classe nesta decada. (3)

    Mas alem da mera sobrevivencia, a que se dlscutm foi a efetiva participavao do musico no processo cria-dar a retomada da velha disputa cantor versus instru-me~tista, musica cantilda e mUsica improvisada. Mais uma vez, e urn problema ciclico - a perfodos de predo-minancia da fala e do texto seguemse fases de ,ebusca mento harmonica e improviso. Os anos 70 viram 0 es-(auro da ponta de urn desses ciclos e 0 come,o do par to de mai':i uma forma nova de musica improvisada - e uma nova plateia. . .

    o ultimo grande momento instrumental do BraSil tl nhc:. sido a bossa-nova. Apos quase uma decada de refi-namento harmonico e depura,ao da sintese jazz!samba - operada, em'sua maior parte, por uma geravao coesa de instrumentistas, contemporanea em idade, cabet;a, forma,ao - a palavra recuperou espa~os com 0 racha da mUsica de participa,ao, ou protesto, de meados dos anos 60. (4) 0 predominio do texto atingiu seu pique maximo com os festivais, nos d~rradeiros anos 60 e pri~ meiros 70 - e quando a censura empenhou esfor,os p? ra emudecer a musica brasileira, os primeiros murmu-rios da musica instrumental- sem texto, portanto, teo-ricamente, incensuravel e livre - se fIzeram ouvir.

    Eram mitsicos - quase todos compositores - da der radeira gera~ao formada em jazz e bossa, que iam comev~r a entrar em cena com for~a quando. a palavt~ instaurou seu reinado. Em doses menores, havIa sobreVI-ventes da propria bossa, exilados no posto de acompa nhantes de canto res ou no ext~rior, mesmo - a eterna meca, 0 amplo mercado pro spero 'com capacidade qua-se infinita de absor~ao de mao-

  • queixosos, desanimados inclusive pelos proprios pro blemas imedialos, profissionais, da classe. (5)

    A gradual modifica,ao do comporlamenlo do mer cado, a parlir de 76/77 - vitalizado em geral, e em ge-ral interessado em musica - acabou trazendo a luz nao exatamente urn boom de musica instrumental - 0 que talvez fosse dramatico e ate esperado por alguns, mas dificilmente resultaria em efeitos duradouros - mas pe-10 menos alguns nomes de real consistencia, aumentan-do assim 0 Ieque de op0es, acrescentando a musica im provisada, ja em uma forma nova, distante de seus tem-pos de jazz/bossa, a pralica musical do pais.

    a interesse do publico nao veio subitamente, e nao surgiu do nada. Curiosarnente, urn dos fatores que aju-daram a criar uma plateia para a musica improvisada foi urn dos maio res acusados - 0 rock. Assim como as pIa-leias jovens dos primeiros anos 60 linham educado 0 ouvido para 0 improviso consumindo jazz - e esperan-do uma fusao tipo jazlstica dos musicos - as plateias novas, que comeyam a se interessar por musica em mea-dos dos anos 70, lin ham seu goslo formado em grande parte pela liberdade de improviso do rock mais "pro-gressivo", mais aproximado do jazz e dos chissicos - e ao encontrar essa qualidade em musicos brasileiros, fi-zeram eco, Na verdade, nao scria exagero afirmar que grande parte do publico que lomou possivel a exislen- I cia de uma atividade constante da musica improvisada, no Brasil, seja constituida par roqueiros desiludidos com os sucedaneos nacianais de sua musica favorita, "Acho que a musica instrumental no Brasil esta come-yanda a dar pe. ( ... ) Agora ja se enconlra num show do Egberta, que e sam puro, lad a a garolada do rock." disse, em 76, a saxofonisla/flaulista Mauro Senise. E completou: "Esta comeyando a surgir nesse pessoal uma Dutra concepyao de som, porque, embora a rock lambem seja muilo born, ficar s6 nele nao da." (6) Ma-riozinho Rocha, urn dos diretores artisticos da gravado-ra Odeon (responsavel por dais vcrdadeiros "sucessos" do selor, Egberta Gismonti e Wagner Tiso) foi mais explicito: "Os grupos instrumentais estrangeiros, como Focus,o de Rick Wakeman, vieram dar nova pcrspecti-va ao mcrcado da musica instrumental. 0 ultimo LP de Egberta Gismonti vendeu 14 mil copias, e 0 de Wagner Tiso, corn apenas tres semanas, ja esta Corn duas mil vendidas". (7)

    Tambem naa sc pod em subestimar os esfon;os da 80

    T

    L

    imptensa e da critica, trazendo 0 assunto incessante-mente a lana na melade fmal da decada, conseguindo em parte compensar a a!heamenlo do ",dio e da TV. (8) E as proprias iniciativas dos mtisicos, despertados enfim para a necessidade da coes~o - 0 "Projeto Trindade", particular e independenle, concebido pelo cantor Luis Keller e pela folografa e cineasla Tania Quaresma, pode nao ler alean,ado a lolalidade de suas melas grandiosas (funcionar como uma entidade, uma fundayao alterna-tiva de apoio ao musico, produzindo shows e discos) mas conseguiu atrair a ateny80 de gravadoras e meios de comunicayao e, acima de tudo, aproximar os musi-cos uns dos outros, acima das rivaiidades e medos, du-rante seu ciclo de shows, em 78. (9)

    A realizayao, extremamente bern sucedida, de uma verdadeira maratona de musica improvisada, em 78 - 0 Feslival de Jazz de Sao Paulo, em setembro - serviu para atestar a existencia inequivoca de urn interesse pe-10 genera. Apesar de nao se poder descarlar a apelo dos grandes names eslrangeiros - John McLaughlin, Chick Corea, Larry Coryell, George Duke - e a lendencia ao modismo. "Ou,o muita genIe falar do Hermelo. Mas poucos entenden", afirmou Theo de Barros, ex-campa-nheiro de Hermelo no Quarlelo Novo, em dezembro de 78. "Nao sei se feliz au infelizmenle, ele esla sendo Ira-tado como urn modismo. ( ... ) Mas esse publico jovem que a acompanha oferece uma vanlagem. Dele voce sempre consegue arrancar urn aplauso, mesma que seja par boa educa,ao. Agora, 0 importanle e ser fiel. E le-nho minhas duvidas: no momenta em que a genIe mais precisar desse publico, sera que ele nlio eslara seguindo algum John Travolla?" (10).

    Assim, com algum alraso, a gera,[o de inslrumentis-las/composilores, que lulava par urn lugar no mercado desde a dilui,ao da bossa nova, comeyou a conquistar este espayo nesta decada, nao mais em conflito mas pa-ralelamente a musica cantada, com lex to. Seria de ima-ginar que, pela demora e acumulo, muitos seriam os musicos a passar por essa abertura. Nem tantos. Desa-costumados a produzir para si, au mal abaslecidos de informayao, por viverem em circulos fechados, os mu sicos, mesma apresentando apuro tecnico na execuyaa, tinham pouco a mostrar em criatividade, ("Nosso pro-blema principal e a de todo musico: a perigo da genIe deteriorar como inslrumentislas por falla de treino, de ensaio, de estuda, I

  • cos Rezende (1\), que desenvolveu uma carreira de 10 anos na Europa antes de retornar ao Brasil em 76, cnde criou 0 grupo Index, de mUltiplas forma~5es. "Com tanta luta para sob reviver , tanto trabalho de estUdio, 0 musico acaba mlo tendo tempo para se dedicar a seu instrumento").

    Urn olbar sobre a produ~ao instrumental ou impro-visada - para distinguir 0 genero do choro e do erudito, tambem instrumentais - que fmalmente aflora e en-contra canais de escoamento a partir de 16/77, vai reve-lar que os trabalhos mais consisten1es, e que melhar dialogam com as plateias sao os que, justamente, rom pem de certa forma com a cadeia jazz/bossa que foi seu beryo. E incorporam dados novos, interessandose so-bretudo pela musica dita de raiz. Nivaldo Ornellas, mi-neiro de Bela Horizonte, saxofonista, flautista - traba-lhos com Milton Nascimento, sobretudo, mas tambem com Hermeto Paschoal e Egberto Gismonti - tern, so-bre isso, urn depoimento esc1arecedor: "No come90 eu fazia as duas caisas (atuar como instrumentista e com-por) bern juntas. Era muito influenciado pelo jazz, ne, como tedo musica, e as duas caisas eram parecidas, jazz e bossa. Eu compunha umas imita95ezinhas de bossa nova, sabe? Mas nao mostrava a ninguem, achava bern ruinzinho. Foi ai por 72, 73 que composi~ao e tra-balbo instrumental come~aram a ficar bern diferentes. Eu to cava uma coisa e compunha outra inteiramente diferente, saia assim, nao tinhajeito. Era toda uma vol-ta a Minas, aquela coisa de musica religiosa, essas coi-sas." (12) (Nivaldo despontou como compositor no Projeto Trindade, em 77, e gravou seu primeiro LP individual, "Memoria das Minas", no ano seguinte, den-tro da serie "Musica Popular Brasileira Contemporiinea", da gravadora Polygram).

    Como Nivaldo, outro mineiro, Wagner Tisc, evoluiu da raiz jazz/bossa para uma lingua musical hlbrida de c1assicos, musica regional e uma pitada de rock - que praticou, mais, nos anos do Som Imagimirio, 70-73. "Acho que essas coisas Gazz e musica erudita) mais os sons de Minas mesmo, das igrejas, das fazendas, sao os principais elementos do meu som. Ah, e tern 0 rock, e claro. Os Beatles, Jazz e Beatles, pra mim, estao no mesmo plano." (13)

    Ao se encerrar' a decada, a musica instrumental ti-nha no Brasil pelo menos dois gran des nomes - nao so em termos de quaJidade e persistencia de suas obras,

    82

    'F

    mas ate em apelo junto ao publico. Dois nomes que exemplificavam perfeitamente essa passagem da linha jazz/bossa para uma linguagem mais misturada e mats ampla: Egberto Gismonti e Herrneto Paschoal. .

    Egberto, fluminense de Carmo, criado em Nova Fn-burgo, apareceu na fase fmal dos festivais (6?~ 70) fa-zendo - no piano e violao - urn tipo de mUSlca que revelava sua forma~ao de conservatorio e suas preocu-pa~5es com a elabora~ao dos arranjos. Durante quatro anos seu trabalbo em disco (e em ocasionals shows) seguiu essa linha: intrincadas pec;;as onde a improvis~~ao jazistica era controlada pelo preciosi~mo da ou~vesaria orquestral, aproximando-se ora mats da can~ao (LP "Agua e Vinho", 72), ora dos processos "erudi-tos" (LP "Egberto Gismonti", conhecido como 'da arvore", 73).

    A partir de 74 e do LP "Academia de Dan~as", Egberto come~ou a passar a limpo essas informa~6es, decantando e fund indo a liberdade do improviso e a elabora~ao do arranjo com - cada vez mais - dados de musica brasileira basica. Cada disco dos anos seguintes - e eles foratr. cada vez mais abundantes e frequentes, principalmente a partir de uma bern sucedida e premia-da carreira no exterior, atraves do selo .alemao ECM, dedicado a jazz e musica de vanguarda - aprimoreu mais esta fusao, e trouxe-a mais perto nao de uma uto-pica e, no caso, impossivel "simplicidade", mas de uma organicidade, uma unidade, uma originalidade que nao devia n2.da aos patronos inaugurais do bossa/jazz, mas in~taurava uma nova categoria, uma nova lingua musi-cal expressa atraves da execuvao instrumental. "Nao sei hem 0 que foi. ou melhor, foi urn processo acelera-do por tudo isso", ele disse, em 77, esclarecendo 0 p~ocesso de dcpura~ao de sua musica. "De repente eu VI a mentira de tudo, a mentira, basicamente, que se escon-dia em diversos relacionamentos meus com as pessoas, com a musica. Por exemplo, pra que ficar pondo cordas numa musica que nao pede cordas, apenas pra soar sin-fOnico, falsamente sinfonico porque sinf6nica mesmO e outra coisa, outros musicos, outra estrutura de musica? Por que fazer isso s6 porque eu tinha decididCl que essa era minha forma de musica? Por que nao to car simples-mente do jeito que eu tinha composto?" (14)

    o trabalho no exterior) para a ECM, em coiaboravao com 0 notavel percussionista Nana - "exilado" na Eu-ropa desde 74 - desenvolveu e apurou essa fala musical

    83

  • onde a liberdade essencial do improviso e entendida em si mesma, sem pagar tributo a nenhuma forma ~a ~stabelecida, como 0 jazz - os procedimentos .m~slcals de Egberto sao originais, pr6prios, obedecem aos lmpulsos e con troles de seu criador e so podem ser chamados de "jazisticos" se tomarrnos 0 terrno como sinonimo exa-to de improviso e livre associa~ao musical, 0 que nao seria verdadeiro.

    E 0 mesmo procedimento encontnivel em Hermeto Pasehoal. SO que esse paraibano de Lagoa da Canoa chegou a esse - digamos improviso selvagem por outros caminhos. Criado em familia de musicos, ouvindo forros e xaxados, Hermeto prafissionalizou-se cedo co-mo instrumentista de radio, integrante dos "regionais" que acompanhavam cantores em Caruaru e Recire: No Rio desde 58 Hermeto prosseguiu to cando em radIos e casas notum~s - 0 que significava acesso e pnltica de todo tipo de musica, do samba can~ao ao chorinho, passando pelo jazz - revezando-se no piano, acordeon, sax e flauta. Dez anos depois, integrava 0 Quarteto No-vo ao lado de Airto Moreira, Theo de Barros e Heraldo do' Monte, no aeompanhamento de Geraldo Vandre. E, pouco depois, ia para os Estados Unidos, a convlte de Airto.

    Na America, Hermeto foi "descoberto" por Miles Davis - segundo Airto, virou "0 bicho de es,tima9ao do Miles" - e desenvolveu uma carreira respeitada co-mo musico, compositor e arranjador, no .meio de YlZZ. De volta ao Brasil em 74 - embora contmuasse vlaJan-do esporadieamente para os Estados Unidos - Herme-to come you a desenvolver uma linha de a9ao pe~uhar, {mica. Com apenas tres discos lan9ados no BrasIl (urn em 72 e os outros muito mais tarde, em 78 e 79) e sem abrir mao de sua forma livre e muitas vezes caotica de trabalhar, transformou-se em figura de eulto das pla-teias emergentes - ao ponto de provo car 0 comentario de Theo de Barros sobre os perigos do modismo.

    Mas, de fato, Hermeto foi de encontro, perfeitamen-te, aos ouvidos desse novo publico. Sua rnusica e uma torrente de livre associa96es, onde a pratica do improvi-so se desenvolve a partir de dados muito terra a terra, retomando os xaxados e xotes da infancia e da adoles-cencia e citando 0 choro, 0 regional da juventude. E, como Egberto, mas par caminhos e com resultados di-versos, tirando do jazz a exclusividade e a sinonimia do improviso, encontrando alternativas para a pnitica ins-

    84

    trumental no Brasil. "Quando eu vou gravar, a minha preocupa9ao e essa, so: fazer urn trabalho sem qualquer influencia. Eu improviso da minha maneira. Muita gen-te confunde improvisa9aO com jazz. Brasileiro quer im-provisar feito americana e quebra a eara." (15)

    Impossivel falar da musica instrumental no Brasil, nos anos 70, sem mencionar a verdadeira emigra9ao de musicos para a Europa e, principalmente, Estados Uni~ dos - e suas conseqtiencias. Causada de imediato pela falta de horizontes profissionais nos ultimos anos 60 e primeiros 70, a leva de instrumentistas que foram ten-tar a sorte no sempre utopico e sonhado mercado arne-ricano - onde parece haver lugar para todo tipo de mu-sica - na verdade apenas retoma urn movimento migra t6rio que nunca cessou de existir, neste stkulo. Os ace-nos do Eldorado americano - com a Europa a rebo-que - HaO sao desta decada, e claro; 0 apelo de fazer "a Europa (ou a America do Norte) eurvar-se ante 0 Bra-sil" ja esta na historia de nossa cultura ha muitos anos, para nao dizer seculos - talvez desde a Independencia. Nos anos 70 houve apenas urn recrudescimento desse chamado - cuja ultima grande colheita fora justamente em fins da era bossa-nova, levando consigo Torn Jobirn, Sergio Mendes, Joao Giiberto, Edu Lobo e muitos ou-tros. 0 impasse profissional para 0 musico, no Brasil, e o crescimento do mercado nos Estados Unidos, coinci-dentemente, se incumbiram de atrair urn lote conside-ravel de instrumentistas da derradeira gera9ao jazz/bos-sa, em levas sucessivas que come9am em 68/69 e dimi-nuem de intensidade apenas no" anos finais da decada.

    Os resultados dessa migra9ao, contudo, foram bas-tante inferiores ao otimismo dos viajantes, que viam, no pr6spera mercado americano, a so1u9ao imediata para todos os seus problemas. La, como ca, a mllsica improvisada de qualidade, continua9ao natural do jazz, estava restrita a uma faixa pequena do publico - embo-ra, evidentemente, muito maior que 0 quinhao corres-pondente no Brasil. Nesse circulo fechado, os espa~us ja estavam praticamente ocupados - e a concollcncia como forasteiro era durfssima. Restavam duas 0p96es: ou entrar via Europa, onde algumas etiquetas manti nham urn interesse constante por musica instrumental de vanguarda (caso da ECM. de Egberto e Nami) ou em-pregar-se nas diversas op~6es do mercado americano, do rock a musica para danyar.

    Em todos os casos - quem conseguiu acesso direta-

    85

  • mente ao creme do meio americano, quem penetrou via Europa e quem se colocou em grupos nao neceSSa-riamente de jazz - tiveram mais sorte os percussionis-tas. E natural: ha muito tempo a musica Hcivilizada", seja americana seja europeia, sente-se atrafda pelo "exotismo" e pela "selvage ria" do "tra90 mais tfpico" da produ~lio musical ao suI do Equador (ou a oeste da linha de Greenwich): a percussao. E 0 dado novo mais facilrnente reconhecfvel e assirnihivel, e, no momento exato em que 0 jazz se inclinava mais e mais para as formula~5es ritmicas - a fusion, 0 jazz/rock - e que a industria do disco encampava a musica para danyar como genera importante, a chegada de percussionistas egressos da America Latina, era extremamente oportu-na. Para muitos musicos brasileiros, 0 interesse america-na pela percussao, quase exclusivamente, foi revelador da disHincia que havia entre 0 jazz praticado em seu beryo proprio e a que eles pensavam ser uma variayao brasileira do genero. Enquanto improvisadores, seguin-do urn padrlio estabelecido pelo jazz americano, s6 ha-via lugar se se tomassem percussionist as - au adotas-sem claramente a linguagem do dono do mercado.

    Fora da percussao, poucos conseguiram escapar a esse processo. Egberta, porque chegou ao mercado americano via ECM - onde tinha e tern toda liberdade de criayao - foi urn deles. Hermeto, porque manteve-se teimosamente integra em sua maneira de criar e sem ambi~5es a estrela, tambOm. Ja 0 trombonist a Raul de Souza, morando nos Estados Unidos desde 73, e gravando hi desde 75, tra~ou uma carreira que se afasta cada vez mais do Brasil e de seu estilo original e se embrenha a fundo nafusion music americana, urn gene-ra que, segundo ele, 'possibilita maior entendimento par parte do povo, que nem sempre entendia a bossa-nova e 0 jazz" (16). Prafissianalmente bern sucedido, lider de seu proprio grupo de cinco musicos e duas cantoras, Raul admite, no entanto, que e urn ern mil, e que, para chegar a esse ponto, "fai preciso comer mui-to pao duro, tomar muito cafezinho sem a,licar". (16)

    Na area da percussao, as historias de sucesso sao mais frequentes. Incluem 0 genial e irredutfvel Nana (outro contratado da ECM), Alirio Lima (John Mclaughlin), Dom Urn Romao (Weather Report), Pau-linho da Costa (Chuck Mangione, Minnie Ripperton), Chico Batera, Laudir de Oliveira (Chicago, grupo mais para rock que para jazz) e Airto Moreira, este ja candi-

    86

    =

    L

    data ao estrelato. Todos tern 0 mesmo depoimento a dar: 0 relato da curiosidade "civilizada" pela percussao "exotica" do Brasil. "Eles go starn muito da gente, colo-cam a gente nas alturas, voce e uma especialidade, urn tempero ex6tico que eles gostam. Mas nao faz parte do dia a dia", diz Chico Batera, que atuou como musico de estudio, "free-lancer", em Los Angeles, de 69 a 72. (17). "A gente se vira, ne? Nao vou meter a mao mesma, como eu batia no candomble, nao vou tocar como se estivesse numa bateria", admite Laudir de Oliveira, que tocava em terreiros e blocos carnavales-cos no Rio antes de viajar para os Estados Unidos com urn grupo folc16rico e acabar integrando 0 conjunto Chicago, a partir de 75. "E nem precisa: qualquer coi-sa que eu fa~a ta born, eles adoram qualquer cois. de ritmo brasileiro. ( ... ) Agora, individualmente, e di-ficil urn musico braileiro influenciar de verdade, lao Voce tern de fazer a coisa, mas do jeito deles, senao eles nlio aceitam." (18)

    o grande Sllcesso americano, 0 precursor da onda da p~~cussao brasileira e 0 paranaense Airto Moreira, que VlaJou para tentar a sorte na America, com sua mulher, a car.tora Flora Purim, em fins dos anos 60. Depois de uma passagem pelo grupo de Miles Davis e outra pelo Return to Forever de Chick Corea, Airto (e Flora) fo-ram adotados definitivamente pelo cenario de jazz americano. Vencedores, vezes seguidas, das listas de "melliores do ano" da publica~lio especializada D~wnBeat, nas categorias "vocal feminino" e "misce-lanea", Airto e Flora tentaram passar do esUgio de no-me respeitado no meio jazfstico a estrelas do grande mercado americana de musica. Urn salto diffcil, quase impossivel para urn forasteiro, e que traz consigo, Sem-pre, uma grande dose de submi~saa as formas est abele-cidas de fazer musica para vender, na America.

    Os derradeiros anos 70 encontraram Airto neste impasse, no sem..puio. Quem analisou com agudeza a trajetoria de Airto e Flora no mercado americana - 0 que,porextensao,e uma slntese das ambiyoes e dilemas dos muskos brasileiros no exterior - foi Egberto Gis-monti (com quem, alias, Airto fez urn dos melliores albuns de sua carreira, "Identity", de 75). "La, 0 Cara tern de passar por varios estagios. Primeiro, a gravadora reconhece nele alguma coisa de in teresse, que vale a pen a gravar. Depois, ele passa a ser urn cara que vale a pen a gravar porque se -sabe que ele vai dar urn certo

    87

  • retorno. ( ... ) Agora dat voce pode passar pra outro estagio. Os caras vao te perguntar: voce quer ir pro outro estagio, quer tentar 0 milh[o de e6pias, 0 disco de ouro e tal? Depende de voce. E urn jogo. Voce tern de saber jogar. Se voce nao souber, samba. 0 Airto e a Flora, por exemplo, estao meio sambados porque qui-seram dar esse pulo maior e n[o deram 0 retorno espe-rado, entao nao estao nem III nem ca." ( 19)

    Nivaldo Ornellas

    88

    NOTAS

    (1) Follla de Sao Paulo, 1/7/77 (2) Entrevista a Maria Alice Paes Barreto, Jornal do Brasil, 6/9/78 (3) Entrevista de Wilson Sandoli, prcsidcntc da Ordem dos Musicos, a Jary Cardoso, Folha de Sao Paulo, 26/7/77 (4) 0 baterista Edson Machado, falando a Sonia Nolasco Fer-reira em Nova York, mantO de 78: "Foi taota letra que fizcram, intelectualizaram as musicas de tal forma que 0 pessoal deixou de escutar a melodia, ficou sem ouvido para 0 principal: a musi-ca." (0 Globo, 25/3/78) (5) Uma brecha rcduzida mas importantc nesse perfocto de marasmo foi 0 trabalho do grupo Som Imaginario. Liderado pelo tec1adista e compositor Wagner Tiso, e com urn nuclco integrado pelo baterista Robertinho e 0 baixista Luis Alves, 0 Som Imaginario teve ainda as participa(,:oes de Tavito, Fredery-ko, Toninho Horta e Nelson Angelo (guitarras), Nana Vascon-celos (percussiio) e ZC Rodrix (teclados). Entre 70 e 73, grava-ram tres albuns para a Ode on. (6) Entrcvista a Liana Fortes, Jornal de Musica, 23/9/76 (7) Entrevista a Paulo eezar Guimaraes Barbosa, 0 Globo, 11/9/78 (8) No final da dccada, a TV tentou em vao recuperar a tempo perdido incluindo um pouco mais de musicais em sua progra-mar,;iio c, inclusive, {omando acintosamcntc a bandeira da "luta pela musica instrumental brasileira". A Rede Globo, que esta-beleccu padroes de atua(,:ao em TV, ocsta dccada, namorou 0 tema pelo mcnos duas vezes: em 77, com 0 mal sucedido "Lc-vanta Poeira", e em 79, com "Alerta Geral", coman dado pela cantora Alcione. (9) A cria(,:ao da serie de LPs "Musica Popular Brasileira Con-temponlnca", pela gravadora Polygram (incluindo, no catalogo inicial, dois participantes de Trindade, Nivaldo Ornellas e Marcos Rezcndc) e 0 album individual de Wagncr Tiso para a Odcon sao, em grande partc, fruto do esfor(,:o do Projeto Trin-dadc. (10)_ Entrevista a Luis Hcnriqllc Romagnoli, Jamal do Brasil, 25/11/77 (11) Entrevista a Ana Maria Bahiana, Jornal de Trindade, novcmbro,78 (12) Entrevista a Ana Maria Bahiana, Jornal de Trindade, novembro,78 (13) Entrcvista a Ana Maria Bahiana, Jornal de Trindade, novcmbro,78 (14) Entrevista a Ana Maria Bahiana, 0 Globo, 29/2/77 (15) Entrcvista a Ruy Fabiano e Ana Maria Bahiana, Jornal de Musica, 21/1/77 (16) Jornal do Brasil, 7/9/78 (17) Entrevista a T~irik de Souza, Jamal do Brasil, 21/3/76 (18) Entrevista a Ana Maria Bahiana, 0 Globo, 31/10/7 7 (19) Entrevista a Ana Maria Bahiana, 0 Globo, 2/2/79

    89

  • o Estado e 0 mUSICO popular: de marginal a instrumento

    Margarida Autran

    No momenta em que se iniciam as anos 70, Geraldo Vandr" est. em Paris, denunciodo num IPM do 19 Dis trito Naval, Caetano Veloso e Gilberto Gil estao em Londres, depois de passarem algum tempo presos no Brasil. Nao sao casos isolados: uma centena de muskos, entre eles os mais representativos da produyao musical da decada anterior, se espalham par sete pa(ses de qua tro continentes, engrossando 0 contingente de brasilei-ras que, por absoluta falta de condi~oes de continuar trabalhando em seu pa(s, foram para 0 exterior. Seu OKodo faz parte de urn processo mais amplo que atingiu a sociedade brasileira como urn todo.

    No Brasil, em tennos musicais, 0 silencio ensurdece-dor e ql'ebrado apenas pelo som importado das guitar ras eietricas, fato que trouxe graves consequencias para a produc;ao cultural nacional nesta area. "A arte, ate certo ponto, expressa urn padrao determinado pela situa~[o social e econ6rr.ica da epoca. E poss(vel que a grande arte ultrapasse as fronteiras desse determinismo, mas ele existe e toIhe uma por~[o de possibilidades artlsticas", disse Aldir Blanc (revista Homem, setem-bra de 77), enunciando uma tese que bern explica a crise que a musica popular enfrentou nesta decada em que, na fase mais obscurantista do regime, a cultura era considerada urn superfluo e 0 musico popular era tido como urn marginal, urn elemento de alta periculosidade cuja pradu~[o passava obrigatoriamente pelo crivo da Pollcia Federal, que detenninava se podia ou nao ser divulgada. E mesmo quando 0 desgaste do sistema levou a governo a procurar urn diaIogo com os artistas, o mecanisme da censura n[o foi desativado.

    91

  • Em novembro de 71, doze compositores enviam uma carta il dire9ao do VI Festival Internacional da Can9ao cancelando sua participa9ao no certame, ale-gando a impossibilidade de se fazer arte diante da "exorbitancia, a intransigencia e a drasticidade do Ser~ viyo de Censura", que vetou as letras de musicas inscri~ tas no Festival. Dias depois, Chico Buarque, Tom Jobim e Sergio Ricardo comparecem ao DOPS da anti-ga Guanabara para depor em inquerito instaurado no Servi90 de Censura Federal para "apurar responsabili-dades na divulgayao do manifesto contra aquele depar-tamento". A TV Globo, que havia levado a carta ao conhecimento das autoridades, encerrou naquele ano a prom09ao do FIC. Mas, apesar da repercussao do fato no exterior, a panorama nao mudou.

    "A arte esta anemica, irada e medrosa. Os artistas nao se preocupam mais com a beleza ou com a verdade de uma obra, mas com sua viabilidade. 0 Btasil, pais tropical de cores vivas, ve sua arte tomar uma cor pas-tel", afirmou Ailton Escobar, ao denunciar 0 desinte-resse do govemo para com a cultura e sua opyao pelo esporte como plataforma poiftica para conquistar 0 grande publico. (Jamal do Brasil, 1/1 /73).

    Quando 0 disco "Banquete dos Mendigos", do qual constam velhas cumposh;oes como "Orayao de Mae Mfmininha", de Dorival Caymmi, e "Asa Branca", de Luiz Gonzaga, cuja venda reverteria em beneffcio de institui90es mantidas pela ONU, e apreendido em todo o territorio nacional (1975), 0 dire tor do Departamen-to de Censura, Rogerio Nunes, assim justifica a apreen-Sao: "as musicas do disco, interpretadas por varios autores, entre os quais Chico Buarque, Paulinho da Viola, Raul Seixas, Edu Lobo e Gal Costa, tern conota-yoes poifticas desfavonlveis ao governo."

    "0 problema e que estou com urn medo danado de ruandar musicas novas para a censura, porque a propor-yao esta: de cada tres musicas, Iiberam uma. b claro que cheguei a autocensura. Mas, dentro desse limite que ja me coloquei, eu acho que ainda tenho campo para fazer 0 neg6cio. Esse tipo de musica que eu tenho feito, que para mim e uma coisa nova, e a razao de ser de fazer urn disco novo. Elas estao dentro de limilcs que eu acho que, no espfrito da Censura, podem passar. Agora, se eles me fizerem recuar mais ainda, ell paro." (Chico Buarque a Veja, setembro ,.Ie 71).

    Embora tenha sido 0 compositor mais visado pela

    92

    censura, Chico nao parou. E com 0 passar do tempo descobriu uma serie de artimanhas das quais ele e outros compositores lan9aram mao para faciiitar a libera9ao de suas musicas. Uma del,,:s foi a invenyao de urn musico ficticio, 0 Julinho da Adelaide, que par ser desconheci-do nifo enfrentava tantos problemas. Gra,"s a Julinho da Adelaide, Chico conseguiu lan9ar "Chama oladrao" e "Voce nao gosta de mim", esta inspirada num inci-dente verfdico: urn policial, que foi a sua casa com uma intima9ilo, no elevador pediu urn autografo para a mha. Mas nem sempre estes "jeitinhos" davam certo. "Nesses casos, a gravadora, que encaminha a musica para a cen-sura, teria que ser urn cumplice, mas descobri que, na v~rdade, a gravadora abria 0 jogo. Tinha medo de repre-sallas e bOlcotava meu talento de simulador." (Homem, setem bro de 77).

    Ainda nao Se tem uma estimativa total do numero de letras vetadas ou mutiladas durante a Mcada(so nos quatro ultimos meses de 72 foram proibidas 170), mas cabe ressaltar alguns casos em que a ayao da censura atin~iu as raias do absurdo, como 0 veto de poemas muslcados de Carlos Drummond de Andrade eManuel I3andeira; a proibiy30 de "Ministerio da Economia" composta em 1940 por Geraldo Pereira, musico faleci: do em 54, e a quase suspensao de urn concerto de musi~ ca de camara promovido pela Pr6-Arte, sob 0 pretexto da nao identificayao de nomes estrangeiros que consta-vam do programa (eram Haydn, Bocherini e Scarlatti).

    Dlante de tantos entraves e compreensivel que a quase totalidade dos compositores,1 cineastas e drama-turgos que surgiram ate quase final da Mcada estives-sem na casa dos trinta anos, pessoas habituadas a criar dentro de 'uma outra realidade. Nos anos 70, nao havia clima para a Criay30 artlstica e, meSmo quando estatis-ticamente os problemas com a censura se reduziram sellS efeitos sobre toda uma nova gera9ao de criadore~ permaneceram irreversfveis. Podados elJ1 suas primeiras investidas, estes jovens fatalmente se enquadraram na au toc:nsura. Para eles1 0 certificado de ~ibera9ao era algo tao nonnal quanto a carte ira de identidade. "Para mim, para uma gerayao que se criou quase sem cenSUra e chocante ter que mandar textos, as vezes fntimos ...: toda criayao requer uma entrega muito particular _ para Urn funcionario examinar, dizer se pode ser divul-gada au nao. Com 0 garcto que surge agora n[o e assim Por isso . 'm tanta gente compondo em ingles, pais e

    93

  • mais facil passar", constatou Chico Buarque. ("Eu s6 podia resistir", Veja. outubro de 76).

    Na verdade, as caisas nao se decam de forma tao simples. Diante do massacre que sofreu a rnusica popu-lar brasileira, abafada por uma politica eminentemente repressiva, a industria fonognifica (a mais mullinacional entre as industrias brasileiras) precisava eriar novos pro-dutos para abastecer a urn mercado em acelerada expansao, devido iI politica economica de concentra,ao de renda adotada pelo governo. Seu crescimento duran te a decada foi de 15% ao ano, em media, colocandose hqje com" 0 sexio mercado fonognifico do mundo.

    o vazio da produ,ao nacional foi entao preenchido nao s6 pela importa9ao maciera de "tapes" e matrizes estrangeiros como pel a imposi9ao de "imitacroes", como os "l#dolos nacionais" Chrystian, que nao e outro senao Jose Pereira da Silva, os parceiros Paul Brian e Harry Thompson, alias Sergio Sa e Ary Piovezani, Steve McClean, na carteira de identidade Helio da Costa Manso, Terry Winter, que n[o e outro senao 0 pa\llista Thomas William Standem (tambem compositor de mu sicas nordestinas sob 0 apelido de Joao Tome e de mu sicas francesas assinando-se Marcel Denin) e Qutros, todos compondo em ingies.

    A descaracterizayao da arte do Brasil resultou assim numa supervalorizal'ao de produtos culturais importa dos, a ponto de, em 76, 0 entao diretor geral da Phono gram, Andre Midani, declarar que 0 futuro da musica popular brasileira estaria no rock.

    Contudo, a crise economica que, a partir de 73/74, leva 0 regime a urn desgaste que desfaz 0 ConsenSQ na-cional em tome de sistema instaurado em 64, obriga 0 Estado a ado tar uma politic a de maior aproximayao com as classes medias e setores mais descontentes, em busea de uma nova base de apoio. "Cultura tambem e desenvolvimento", decreta 0 governo, dentro desta nova perspectiva. E 0 Ministro da Educal'ao, Ney Braga, subitamente "preocupado com a aparente decadencia da musica popular brasileira e interessado em detetar as causas dessa crise", ordena ao Departamento de Assun-tos Culturais que faya sondagens entre compositores, pesquisadores e orgaos de produl'ao e divulga,ao da musica para estabelecer diretrizes da ayao oficial nesta area.

    "Houve a aproximayao com Ney Braga ~orque havia urn interesse grande do governo em ser simpatico, em

    94

    conquistar a simp alia popular, 0 que so pode ser feito atraves de artistas ou jogadores de futebol", diz Mauri cio Tapaj6s, urn dos musicos que participou de uma comissao ouvida pessoaImente pelo ministro, emjanei. ro de 75.

    Esta reformul3l'ao na area da cu\tura era uma impo-siyao do momenta que se atravessava. "A sociedade dirigente nao pode fundamentar seu papel apenas nas forl'as coercitivas", analisou 0 teatr610go Paulo Pontes. "A partir de detenninado momento, se ela aspira a continuidade, ela tem que ganhar a conseiencia da maioria das pessoas. Porque, senao, se crian! urn fossa intranspon(vel entre a consciencia da maioria e os pro-jetos das classes dirigentes" (Veja, maio de 76).

    o novo plano de Ney B.aga era uma ponte sobre 0 fossa, mas a manutenyaO da coeryao mantinha a garan-tia do controle estatal. E quando as sondagens do Mi-nisterio da Educal'ao e Cultura constataram os graves problemas do mercado de produl'ao e consumo, Con-cluindo que Hse nao for tomada uma providencia, a forya criativa da musica brasileira desapareceni", a sugestao mais importante encaminhada ao ministro por sua equipe foi a Crial'ao de um orgao para cui dar espe cialmente da musica (popular e erudita). Isto seria facio litado com a instala,ao da Fundac;ao Nacional de Arte, a Funarte, entidade encarregada de recolher recursos para incentivar 0 trabalho dos compositores, apoiar pesquisadores, fmanciar grava\ioes erninentemente cul-turais e ainda fiscalizar 0 cUmprimento das leis sobre divulgal'ao e fabrical'ao de discos, ja que as principais dificuldades destacadas pelo DAC foram 0 nlto cum-primento do decreto que fIXa a execul'ao da musica brasileira nas radios e televisoes e 0 fato de que 70% do mercado de discos estavam dominados pela musica estrange ira.

    Assim, enquanto 0 Estado decide organizar a produ yaO cultural, entre os compositores a visao era a de que a situa\iao s6 poderia melhorar caso fossem resolvidos "ou pelo menos atenuados" os problemas de direitos autorais e censura. 0 que tambem e uma posi\iao equi-vocada, pois somente a total liberdade de crial'ao e 0 completo controle dos direitos pelos autores permitem o correto exerc{cio de sua funvao.

    Desorganizados enquanto categoria profissional, com seus sindicatos - como todos os outros--- desati-vadas, eles ainda contavam com a agravante ue ter a

    95

  • categoria dividida entre as sindicatos dos musicos e as dos compositores. Quanto as Ordens dos Musicos, as orgaos normativQs da profissao, tanto a federal quanta as regionais pennaneciam ha muitos anos nas maos de urn mesmo grupo. Em Sao Paulo, paradoxalmente, 0 {,residente da Ordem, Wilson Sandoli, e tambem 0 pre sidente do Sindicato, aonde chegou como inteIVentor. No Rio, para nao ficar atnis, Adelino Moreira e presi dente da SBACEM (Sociedade Arrecadadora de Direi tos Autorais) e do Sindicato dos Musicos. Assim se 0 profissional for reclamar ao seu sindicato que sua socie-dade 0 rouba, estani duas vezes reclamando com a mes-ma pessoa.

    "Cada Ordem regional e composta por 21 diretores, renovados em urn ter~o por ano", explica Mauricio Tapajos. "Se conseguirmos formar uma chapa de 14 herois, entre titulares e suplentes, e ganbar a elei,ao, no ana seguinte temos que ganbar de novo para conseguir a maioria. E mesmo af e preciso ganhar nos outros estados para chegar a Ordem Federal, caminbo que demanda arros de consciencia do musico em todo 0 Brasil."

    So no Rio de Janeiro h:i 22 mil musicos inscritos na Ordem, mas 17 mil nao exercem a profissao e apenas 5 mil tern condi,oes de votar. E quando, ja em 1978, foi formada uma chapa so de musicos profissionalmen te atuailtes (Antonio Adolfo, Luizao, Aquiles do MPB4, Airton Barbosa, Beth Carvalho, Dori Caymmi e Luiz Gonzaga Junior), pouco mais de mil musicos com pareceram as urnas. Articulada e legaliz3da em apenas uma semana, a chapa teve uma vantagem de 60 votos no Grande Rio, mas perdeu no resto do estado, reduto da situa,ao, por mais de 400.

    Diante da dificuldade de atuar dentro das entidades de classe oficiais, no final de 74 urn grupo de profissio nais criou a SOMBRAS. Formada para agrupar in de pendentemente autores, criadores e interpretes da mu-sica ou letra (nao era preciso pagar nada para participar dela), a Sociedade de Musica Brasileira, soeiedade civil sem canlier lucrativo, tinha como pri'lclpio fundamen-tal preseIVar, estudar e divulgar a musica brasileira e defender os direitos por ela gerados.

    A ideia nao era nova e foi precipitada pela expulsao de urn gropo de artistas de sua sociedade arrecadadora, a SICAM, simplesmente porque pediram urna presta,ao de contas, tinieo direito dos compositores constante

    96

    nos estatutos da sociedade. A arreeada9[0 e distribui 9[0 de direitos autorais sempre' fOi urn ponto de estran gulamento no exereicio da profiss[o, sendo feita por urn grande numero de soeiedades particulares, que reuniam entre seus filiados tanto os autores como os editores (no caso, os patrtles, ja que todas as gravadoras possuem suas pr6prias editoras, que abocanbam 33% dos direitos sobre a obra. Embora ninguem seja obriga do a editar uma musica para gravala, dificilmente vai conseguir fazer urn disco se niro der esta parceria a gra vadora/editora.)

    A distribui9ao dos direitos era feita de maneira arbi tniria pelas arrecadadoras, que fIxavam urn "salario" irris6rio aos autores, alegando a dificuldade de contro Iar a execu9iro e venda de suas musicas em todo 0 pais, tarefa dele gada aos fiscais das arrecadadoras. Diante do enorme volume de dinbeiro manipulado pelas socie dades, fato constantemente denuneiado pelos prejudi cados, 0 govemo decide intelVir, criando 0 Conselho Nacional de Direito Autoral, com a fmalidade de nor malizar e fiscalizar esto atividade. Subordinado ao CNDA e criado tambem 0 ECAD, Escritorio de Arreca da9ao de Direitos Autorais, 6zgao executivo formado pela jun9iro das entidades arrecadadoras. Seu sistema de arrecada,i1o e distribui9iro deveria ser feito por compu ta,iro eletronica, pelo SERPRO, atraves da Caixa Eco nomica Federal, evitandose assirn que a parcela de di nbeiro devida ao autor fosse desviada. Entretanto, embora aprovado peloCongresso, 0 projeto encontrava se estagnado em BrasI1ia, desde 73.

    A SOMBRAS contribuiu decisivamente para acelerar a vigencia da lei que criou aqueles 6rgaos, mas nao con-seguiu que funcionassem como deveriam, au seja, que a arrecada9iro niro passasse pelas milos dos fiscais. Como o ECAD e formado pelos mesmos homens que contro lavam as arrecadadoras, eles conseguiram que apenas 30% da arrecada,i1o fosse feita por amostragem enviada pelas radios e televis5es, quando deveria passar gradual mente para 50%, 70% ate que todo 0 sistema do SER PRO fosse implantado. Os 5% de erro previstos pel a computa,iro eletronica formariam entiro urn fundo de reserv3 de direitos autorais, para atender 208 musicos a quem a distribui,ao nao enquadrasse.

    J:! no govemo Figueiredo foi nomeada uma comis sao para apurar as falhas do CNDA, 0 que motivou a demissao de todos as sellS membros, que ainda nao fo-

    97

    1

  • ram substitufdos por outros, a serem nomeados direta-mente pelo Presidente da Republica. . Quanto it SOMBRAS, embora tivesse sua representa-

    tlVldade de classe admitida nao so pelos musicos como pelo govemo, foi desativada. 0 incendio do MAM onde ficava sua sede, queimou todos os seus arquivos ~ documental'ao e, a!em disso, sua diretoria (Tom Jobim na presidencia, Herminio Bello de Carvalho como vice Aldir Blanc, Vitor Martins, Gutemberg Guarabira, Gon' zaguinha e Macale compondo a diretoria), que tinha urn mandato de dois anos, nao conseguiu legalizar a entidade nem promover outra eleil'ao durante este per{odo. "Nao havia renovayao", admite Mauricio Tapaj6s, seu secreUirio executivo. ''Todo rnundo estava muito feliz com seis ou sete trabalhando para 22 mil que nao faziam nada. Mitos ou nao mitos, eles nao tinham paciencia para ficar atras de uma mesa cuidan-do de processos. Nao tern poesia."

    Outro saldo da SOMBRAS, que conseguiu iniciar urn processo de conscientizayao do profissional de musica,. foi 0 Projeto Pixinguinha, 0 principal projeto da admlOiStral'aO Ney Braga para 0 setor, que surgiu de uma ideia de Herminio Bello de Carvalho, base ada no sucesso da serie de shows "Seis e Meia", levada ao palco do Teatro Joao Caetano, no Rio, entre 1976 e 78. 0 Projeto Pixinguinha, em dois anos (78/79), reali-zou 1.468 espetaculos, levados a diversas capitais do pais, onde foram vistos por mais de urn milhao de pessoas. Para Hermfnio, seu coordenador, as principais vantagens do Projeto foram a formal'ao de plateias, a motIva9ao para a criayao de projetos semelhantes fora do eixo Rio-Sao Paulo, e 0 fato de tel' colocado ao alcance do povo artistas antes "inatinglveis", alguns por serem caros, outros por serem novas, e ainda aque-les que estavam esquecidos, "'sepultados pelo sistema".

    Lembrando que os ingressos para os shows sao bern mais baratos que os dos espetaculos produzidos por partIculares, Herminio salienta que podem ser vistos por urn publico que antes nao tinha acesso a espetacu-los ao vivo. E dai tira uma conclusao que justifica a intenl'ao do plano cultural adotado pelo govcrno: a "conscientiza9ao das massas" atraves do poder da musi-ca, que "se alastra, projeta-se em cfrculos energeticos e uma coisa [eito naquele samba que fiz com Paulinho (da Viola), "fcito urn mar sc alastrou".

    E inegavel que 0 Projeto Pixinguinha divulgou a mu-

    98

    sica popular, basicamente aquela produzida no Rio e . em Sao Paulo, em todo 0 pais, criando urn novo merca-do de trabalho para 0 pro fissional. Mas tambem unifor-mizou a expressao musical, deixando de fora as mani-festal'oes regionais, cuja riqueza e incontestavel. Este aspecto seria tambem abordado com a crial'aO da Feira Pixinguinha, destinada a promover os autores de outras regioes, mas com a mudanl'a do Ministerio a enfase maior esta sendo dada it educal'ao e uma dnlstica redu-I'ao de verbas tomou invhlvel 0 novo projeto_

    A iniciativa do Estado de (ral'ar os caminhos da cuI-tUra nacional, aspecto mais importante da segunda metade da decada, teve urn outro lado negativo: hoje, sem a ajuda direta ou indireta do poder publico, tor-nou-se praticamente imposslvel sua divulgal'ao, pOis 0 empresario privado nao tern condil'oes de competir com a maquilla estatal. "0 que sobra e uma pequena fatia do bolo, e esta todo mundo brigando para dispu-tar", diz Albino Pinheiro, 0 eriador do "Seis e Meia" que adverte que 0 fundamental, que e mexer na legisla: I'ao da cultura popular, coisa que s6 0 poder publico pode fazer, nao foi feito: "Isto e urn reflexo de toda a reaiidade brasileira".

    Entre a reivindical'oes nao atendidas estao 0 contro-Ie na importa9ao de matrizes estrangeiras, 0 apoio a industria nacional, a observancia do decreto que estipu-la a percentagem de execul'ao obrigatoria de musica brasileira, a isenl'ao de taxas para importal'aO de instru-mentos por musicos profissionais e estudantes de mu-sica, a inclusao do ensino da musica popular nas escolas de 19 e 29 graus e, principahnente, a liberdade de expressao.

    "Hoje a tendencia e para a vaselinagem", denunciou Aldir Blanc, em 77, em depoimento a revista Homem, revelando que as gravadoras, atraves de seus advogados, barganham com 0 departamento de censura, que confia a eles 0 poder de dizer quais as musicas gravaveis au nao. Chico Buarque e Edu Lobo confinnam esta forma mais sofisticada de repressao, que foge ao controle do compositor, e que e feita atraves de "pedidos, conse-lhos ditos de forma aparentemente afetuosaH por parte das multinacionais do disco.

    Esta nova mane ira de agir mostra que, como nao po~e manter descontente a produyao empresarial capi-tahsta que sua politlea economica propicia, .0 governo transfonna as multinacionais em seus aliados, atraves

    99

  • de uma serie de acertos, como a isenyao do IeM em troca da impressao da frase "'Disco e cultu.ra" nas capas dos discos, e da relativa delega9ao do mecanismo da censura.

    Exemplificando esta "barganha industrial", Aldir Blanc cita uma carta, da qual existe c6pia nos arquivos da RCA, na qual 0 advogado da gravadora,afirma a Bras(Jia que "os equivocos saidos qo disco 'Galo de Briga' nao mais acontecerao este ano", pois a grava-dora seria mais comedida no ian9amento seguinte do compositor. "E preciso gerar dinheiro, aroda nao pode deixar de girar", diz Aldir. "Eles se propoem a olear ainda mais essa roda. Isso tern urn pre90 para 0 eriador, para a eultura e, consequentemente, para aquele que Olive."

    Quando, no final da decada, a can~ao politica reto-ma timidamente 0 espa~o drasticamente fechado desde que Geraldo Yandr,; puxou 0 coro de cem mil pessoas que, no Maraeanazinho, cantavam 0 seu "Caminhando", e que 0 tema anistia e abordado pelos compositores populares, e born lembrar que 0 povo brasileiro s6 esta-ra anistiado quando puder cantar livremente.

    100

    Gil e as Mutantes

  • r r

    Martinho da Vila

    Banda Black Rio