anorexia nervosa no adolescente do sexo masculino: uma revisão€¦ · adolescência & saúde...

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Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 45-52, abr/jun 2012 Adolescência & Saúde 45 ARTIGO DE REVISÃO RESUMO Objetivo: Devido ao aumento dos casos de anorexia nervosa entre adolescentes do sexo masculino, o objetivo deste trabalho é fazer uma revisão da literatura para se entender os aspectos implicados nesta situação. Fontes de dados: Foi realizada busca nas bases científicas em saúde (Scientific Eletronic Library Online [SciELO], Medical Literature Analysis [MEDLINE] e ADOLEC [Biblioteca Virtual em Saúde – www.adolec.org]) utilizando-se os descritores: “anorexia nervosa”, “medicina do adolescente”, “saúde do adolescente”, “comportamento do adolescente”, “nutrição” e “transtornos da ali- mentação”. Síntese dos dados: Foram selecionados artigos publicados entre 1980 e 2011, utilizando-se os de maior im- portância. Múltiplos fatores de risco estão envolvidos na etiologia da anorexia nervosa no sexo masculino e a abordagem terapêutica é complexa e multidisciplinar. Conclusão: Apesar de incomum no sexo masculino, a frequência da anorexia tem aumentado e sempre deve ser lembrada por profissionais que trabalham com adolescentes e que se deparam com desnutrição grave, pois sua identificação e a instituição precoce de tratamento são fundamentais para o prognóstico, evitando-se, assim, a postergação diagnóstica e o comprometimento da evolução da doença. PALAVRAS-CHAVE Anorexia nervosa, saúde do adolescente, comportamento do adolescente, transtornos da alimentação, pesquisa inter- disciplinar. ABSTRACT Objective: Prompted by an uptrend in anorexia nervosa among male adolescents, this paper reviews the literature in order to understand aspects implicit in this situation. Data source: survey of scientific literature on health (Scientific Electronic Library Online [SciELO], Medical Literature Analysis [MEDLINE] and ADOLEC [Virtual Health Library – www. adolec.org]) using the following keywords: "anorexia nervosa", "adolescent medicine", "adolescent health", "adolescent behavior", "nutrition" and "eating disorders". Data summary: Papers published between 1980 and 2011 were selected, and the most relevant were examined. Many risk factors are involved in determining the etiology of anorexia nervosa in men and the therapeutic approach is complex and multidisciplinary.. Conclusion: Although still rare, anorexia is on the rise among boys and must always be considered as a possibility by healthcare practitioners caring for adolescents with severe malnutrition, as early detection and treatment are crucial for its prognosis, thus avoiding delayed diagnoses and more severe progression of the disease. Anorexia nervosa no adolescente do sexo masculino: uma revisão Anorexia nervosa in male adolescents: a review > > > Kátia Jarandilha dos Santos 1 Mirtes Salantier Romão 2 Maria Sylvia de Souza Vitalle 3 Maria Sylvia de Souza Vitalle ([email protected]) - Setor de Medicina do Adolescente do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo - Rua Botucatu ,715 - São Paulo, SP, Brasil. CEP: 04023-062. Recebido em: 13/02/2012 – Aprovado em: 01/05/2012 1 Médica de Adolescentes; Coordenadora da UTI Pediátrica do Hospital Samaritano. São Paulo, SP, Brasil. 2 Mestra em Ciências pelo Programa de Pós-graduação em Educação e Saúde na Infância e Adolescência da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP); Gerente de Qualidade Hospitalar da Autarquia Hospitalar Municipal/Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. 3 Doutora em Medicina; professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e Adolescência da UNIFESP; Chefe do Centro de Atendimento e Apoio ao Adolescente da Disciplina de Especialidades Pediátricas do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina (EPM) da UNIFESP. São Paulo, SP, Brasil.

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Adolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 45-52, abr/jun 2012 Adolescência & Saúde

45ARTIGO de ReVISÃO

ReSUMOObjetivo: Devido ao aumento dos casos de anorexia nervosa entre adolescentes do sexo masculino, o objetivo deste trabalho é fazer uma revisão da literatura para se entender os aspectos implicados nesta situação. Fontes de dados: Foi realizada busca nas bases científicas em saúde (Scientific Eletronic Library Online [SciELO], Medical Literature Analysis [MEDLINE] e ADOLEC [Biblioteca Virtual em Saúde – www.adolec.org]) utilizando-se os descritores: “anorexia nervosa”, “medicina do adolescente”, “saúde do adolescente”, “comportamento do adolescente”, “nutrição” e “transtornos da ali-mentação”. Síntese dos dados: Foram selecionados artigos publicados entre 1980 e 2011, utilizando-se os de maior im-portância. Múltiplos fatores de risco estão envolvidos na etiologia da anorexia nervosa no sexo masculino e a abordagem terapêutica é complexa e multidisciplinar. Conclusão: Apesar de incomum no sexo masculino, a frequência da anorexia tem aumentado e sempre deve ser lembrada por profissionais que trabalham com adolescentes e que se deparam com desnutrição grave, pois sua identificação e a instituição precoce de tratamento são fundamentais para o prognóstico, evitando-se, assim, a postergação diagnóstica e o comprometimento da evolução da doença.

PAlAVRAS-ChAVeAnorexia nervosa, saúde do adolescente, comportamento do adolescente, transtornos da alimentação, pesquisa inter-disciplinar.

ABSTRACTObjective: Prompted by an uptrend in anorexia nervosa among male adolescents, this paper reviews the literature in order to understand aspects implicit in this situation. data source: survey of scientific literature on health (Scientific Electronic Library Online [SciELO], Medical Literature Analysis [MEDLINE] and ADOLEC [Virtual Health Library – www.adolec.org]) using the following keywords: "anorexia nervosa", "adolescent medicine", "adolescent health", "adolescent behavior", "nutrition" and "eating disorders". data summary: Papers published between 1980 and 2011 were selected, and the most relevant were examined. Many risk factors are involved in determining the etiology of anorexia nervosa in men and the therapeutic approach is complex and multidisciplinary.. Conclusion: Although still rare, anorexia is on the rise among boys and must always be considered as a possibility by healthcare practitioners caring for adolescents with severe malnutrition, as early detection and treatment are crucial for its prognosis, thus avoiding delayed diagnoses and more severe progression of the disease.

Anorexia nervosa no adolescente do sexo masculino: uma revisãoAnorexia nervosa in male adolescents: a review

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Kátia Jarandilha dos Santos1

Mirtes Salantier Romão2

Maria Sylvia de Souza Vitalle3

Maria Sylvia de Souza Vitalle ([email protected]) - Setor de Medicina do Adolescente do Departamento de Pediatria da Universidade Federal de São Paulo - Rua Botucatu ,715 - São Paulo, SP, Brasil. CEP: 04023-062.Recebido em: 13/02/2012 – Aprovado em: 01/05/2012

1Médica de Adolescentes; Coordenadora da UTI Pediátrica do Hospital Samaritano. São Paulo, SP, Brasil.2Mestra em Ciências pelo Programa de Pós-graduação em Educação e Saúde na Infância e Adolescência da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP); Gerente de Qualidade Hospitalar da Autarquia Hospitalar Municipal/Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil.3Doutora em Medicina; professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e Adolescência da UNIFESP; Chefe do Centro de Atendimento e Apoio ao Adolescente da Disciplina de Especialidades Pediátricas do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina (EPM) da UNIFESP. São Paulo, SP, Brasil.

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46 Santos et al.ANORExIA NERVOSA NO ADOLESCENtE DO SExO MASCULINO: UMA REVISãO

INTROdUÇÃO

Anorexia nervosa (AN) é um transtorno do comportamento alimentar (tA), séria con-dição psiquiátrica caracterizada por limitações dietéticas autoimpostas, padrões bizarros de alimentação e acentuada perda de peso, tudo isso associado a grande temor de engordar, re-cusa em manter o peso mínimo adequado para a idade e a altura, distúrbio da imagem corpo-ral e transtorno endócrino generalizado envol-vendo o eixo hipotálamo- hipofisário- gonadal com atraso puberal ou involução dos caracteres sexuais secundários nos adolescentes do sexo masculino. Ocorre principalmente em adoles-centes e adultos jovens do sexo feminino, sendo incomum em adolescentes do sexo masculino1.

Devido ao aumento dos casos de AN no sexo masculino e à dificuldade de se estabele-cer o diagnóstico neste sexo, o objetivo des-te trabalho foi fazer uma revisão da literatura para se entenderem os aspectos implicados nesta situação.

MÉTOdOS

A busca foi realizada por acesso on-line e compreendeu as publicações científicas inde-xadas nas bases de dados eletrônicas: Scienti-fic Eletronic Library Online (SciELO), Medical Literature Analysis (MEDLINE) e ADOLEC (Bi-blioteca Virtual em Saúde – www.adolec.org), utilizando os descritores: “anorexia nervosa”, “medicina do adolescente”, “saúde do adoles-

Key wORdSAnorexia nervosa, adolescent health, adolescent behavior, eating disorders, interdisciplinary research.

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cente”, “comportamento do adolescente”, “nu-trição” e “transtornos da alimentação”, com os vocábulos em português, inglês e espanhol. Se-lecionaram-se os artigos publicados entre 1980 e 2011. Outras fontes de informações foram tra-balhos técnicos publicados por órgãos oficiais (American Dietetic Association [ADA]; American Psychiatric Association [APA]; décima revisão da Classificação Estatística Internacional de Doen-ças e Problemas Relacionados à Saúde [CID 10]; Manual Diagnóstico e Estatístico de transtornos Mentais [DSM]; Organização Mundial da Saúde [OMS]). As expressões de pesquisa foram cons-truídas por meio da combinação desses termos. A pesquisa bibliográfica incluiu estudos de caso, de coorte, transversais e de revisão, escritos nas línguas portuguesa, espanhola e inglesa, além de artigos e livros relacionados, obtidos por meio da pesquisa dos artigos selecionados com as palavras-chave. Os artigos foram eleitos pelos seus títulos e resumos. Foram excluídos aqueles escritos em outras línguas e não rela-cionados com a faixa etária adolescente, sem resumo, ou cujo título não estivesse relacionado com o objetivo da revisão. De todas as publica-ções identificadas, foram selecionadas aquelas que atendiam aos objetivos da revisão.

ePIdeMIOlOGIA

A AN possui uma prevalência que varia de 2% a 5% entre adolescentes e adultos jovens2,

3, sendo considerada incomum no sexo mascu-lino4. Porém a proporção poderá aumentar se forem incluídas nos trabalhos científicos as sín-

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47Santos et al. ANORExIA NERVOSA NO ADOLESCENtE DO SExO MASCULINO: UMA REVISãO

dromes parciais, ou seja, aquelas que não pre-enchem todos os critérios diagnósticos5.

Há poucos estudos de prevalência de AN entre adolescentes do sexo masculino, entre-tanto existem relatos da proporção de seis ho-mens para 14 mulheres entre adolescentes pré-púberes e de 1:19 entre pós-púberes6. Revisão de prontuários de 24 anos mostrou a propor-ção 15: 357. taxa de prevalência de zero para o sexo masculino pode ser observada em outro estudo epidemiológico8. O diagnóstico de AN e bulimia nervosa em crianças e adolescentes mais jovens é inferior a 1%, porém há cada vez mais relatos de preocupação com peso e com a alimentação em faixas etárias muito jovens. A prevalência de AN varia entre 0,5% e 3,7%, dependendo de definições do transtorno mais restritas ou mais abrangentes9. A idade de início do quadro no sexo masculino é outro aspecto controverso. Para alguns pesquisadores não há diferença entre os sexos, mas outros afirmam que os homens podem desenvolver a doença mais tardiamente que as mulheres, o que po-deria estar relacionado com o início e o término mais tardio da puberdade no sexo masculino5. A gravidade da doença e a evolução clínica em pacientes muito jovens ainda não foram ade-quadamente estudadas.

Existe maior índice de suicídio entre ado-lescentes do sexo masculino com tA do que nos do feminino5. Há diferenças entre os sexos com relação ao tipo de preocupação com a imagem corporal: mulheres estão mais preocupadas com a magreza; homens, em atingir uma for-ma masculina musculosa. Assim, os homens ra-ramente se queixam do manequim das roupas que vestem ou dos quilos que pesam10. Porém, em decorrência das mudanças culturais nas úl-timas três décadas, houve maior valorização do corpo masculino e mais preocupação dos ho-mens com a aparência.

Embora sem confirmação, parece que, no sexo masculino, há elevado número de homos-sexuais11. É possível que os homossexuais este-

jam super-representados nas amostras clínicas, pois para eles é mais fácil procurar tratamen-to para uma doença ainda muito associada ao sexo feminino, e essa associação pode tornar ainda mais difícil para homens heterossexuais buscar ajuda profissional. É importante ressal-tar que a magreza, além da forma do corpo e dos músculos, é muito valorizada entre os ho-mossexuais12.

A seleção da população e a identificação de casos são alguns dos problemas metodo-lógicos a serem enfrentados no estudo epide-miológico desses transtornos, pois, além da baixa prevalência na população geral, existe a tendência dos indivíduos a ocultar a doença e evitar a busca por profissionais qualificados para tratá-los, sendo necessário estudar um grande número de indivíduos para que os resultados sejam confiáveis, o que torna o custo opera-cional e o tempo envolvido muito elevados. Os pacientes que procuram ajuda geralmente são aqueles de maior gravidade, implicando preva-lência e incidência subestimadas13.

eTIOlOGIA

A AN tem etiologia multifatorial, estan-do sujeita a diversos fatores que a produzem e perpetuam, desde a interação das característi-cas biológicas, psicológicas e familiares até as socioculturais14. Entre os fatores psicológicos destacam-se traços de personalidade obsessi-va, perfeccionismo, passividade e introversão15 como elementos que poderiam ter influência na gênese deste transtorno.

Ressalte-se o papel da mídia entre os fa-tores socioculturais com a constante veiculação do padrão de beleza da sociedade ocidental contemporânea, a qual valoriza e reforça a de-manda por um corpo muito magro e contribui para o aumento de incidência da doença, prin-cipalmente no sexo feminino, nos grupos de profissionais de risco, como atletas, bailarinas,

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modelos e nutricionistas, embora venha sendo observado também entre profissionais destes grupos do sexo masculino4, 5, 16.

Fatores de risco no sexo masculino

Alguns homens apresentam maior chan-ce de desenvolver tA (lato sensu) ao longo da vida. Entre esses destacam-se aqueles que per-tencem a profissões nas quais há preocupação evidente com peso e forma corporais: bailari-nos, modelos, jóqueis, ginastas, fisiculturistas, corredores e lutadores de luta livre5, 16.

O que se conhece até o momento ape-nas sugere o envolvimento de atletas de elite como fator de risco, particularmente aqueles que competem em esportes que dão ênfase à magreza, pois existem várias limitações meto-dológicas na maioria dos trabalhos publicados sobre este assunto, conforme aponta trabalho de revisão17.

As taxas específicas relacionando com AN e sexualidade são imprecisas, pois mais da metade dos pacientes anoréxicos do sexo masculino é referida como “assexuada”, e não apresentariam opção sexual definida5. Algumas comorbidades também seriam de maior risco para a AN no sexo masculino, como esquizo-frenia, outros distúrbios psiquiátricos e abuso de drogas4, 5. Estudo sobre AN envolvendo 135 pacientes do sexo masculino mostrou que estes apresentavam comorbidades semelhantes às das mulheres, incluindo depressão maior, abuso de drogas e distúrbios de personalidade12.

Estudos sobre fatores de risco na popula-ção adolescente do sexo masculino são escas-sos. Existe um estudo com adolescentes que não demonstrou serem a homossexualidade ou a bissexualidade masculina fatores de risco rela-cionados com os pacientes estudados18.

Assinale-se que os achados em relação aos fatores de risco nos adolescentes do sexo mas-culino devem ser interpretados com precaução

e ser extrapolados em relação aos achados de literatura para outras faixas etárias.

Imagem corporal e o sexo masculino

Atualmente observa-se que os homens es-tão tão preocupados com a imagem corporal quanto as mulheres, e vários fatores poderiam contribuir, na sociedade ocidental contempo-rânea, para o desejo de um corpo idealizado, destacando-se a possível influência da mídia e os conceitos socioculturais, que causariam ex-pectativa não realista da imagem corporal mas-culina, em que seria valorizado o aumento de musculatura, predominando os ombros largos com quadris e cintura estreitos. Sendo assim, os homens se envolveriam em atividades que pudessem aumentar a musculatura, pois, com isso, seus sentimentos de masculinidade, con-fiança e aumento da atratividade se elevariam, tornando-os mais suscetíveis ao excesso de exercício físico como forma de contrabalançar os efeitos da alimentação ou como tentativa de perda de peso16.

Estas peculiaridades em relação ao sexo masculino são importantes, pois podem contri-buir para retardar o reconhecimento dos sinto-mas da AN, dificultando o diagnóstico, uma vez que os homens tendem a expressar os seus sen-timentos em relação ao corpo diferentemente das mulheres19.

O subdiagnóstico ou o diagnóstico incor-reto da AN no sexo masculino pode perpetuar a falsa ideia de que este transtorno ocorreria quase que exclusivamente no sexo feminino e a manutenção da relutância dos homens em re-conhecer o problema e pedir ajuda.

CRITÉRIOS dIAGNÓSTICOS

Os critérios diagnósticos para a AN têm sido amplamente estudados, estando esta do-

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ença incluída nos sistemas classificatórios dos transtornos mentais do quarta edição do Ma-nual Diagnóstico e Estatístico de transtornos Mentais (DSM-IV)20 (1994), e da décima re-visão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10)21.

Nas mulheres a presença de amenorreia é característica endócrina marcante, porém não existe referência endocrinológica semelhante no sexo masculino nem um requerimento aná-logo pelos critérios diagnósticos do DSM-IV20 para se estabelecer este diagnóstico no sexo masculino. A CID-10 contorna este problema para estabelecer o diagnóstico de AN e con-templar, também, o sexo masculino, pois nos seus critérios diagnósticos solicita a inclusão de transtorno endócrino generalizado envolvendo o eixo hipotálamo-hipofisário-gonadal.

A desnutrição aguda observada em pré-púberes retarda o desenvolvimento das caracte-rísticas sexuais secundárias22, pode interromper o desenvolvimento puberal e interferir na tra-jetória de crescimento e desenvolvimento dos pacientes. Existe alguma controvérsia na litera-tura em relação ao comportamento bulímico/purgativo destes pacientes, tornando-os mais parecidos com aqueles que apresentam bulimia nervosa, porém existem diferenças fisiológicas entre indivíduos com comportamento bulímico que mantêm peso normal e aqueles que per-dem muito peso, justificando, assim, a impor-tância da distinção da AN subtipo purgativo da bulimia nervosa22.

Estes aspectos levaram o DSM-IV a criar os subtipos de AN (restritivo e compulsão periódi-ca/purgativo). A CID-10, entretanto, optou por não criar estes subtipos da AN nos seus critérios diagnósticos, sendo que nesta classificação os pacientes que apresentem episódios bulímicos e têm baixo peso recebem o diagnóstico de bulimia nervosa22. Esta é uma característica di-vergente e importante entre estes dois sistemas classificatórios porque pode implicar classifica-

ção e tratamento inadequados do transtorno alimentar.

Indivíduos pré-púberes e adolescentes em geral, principalmente os do sexo masculino, muitas vezes não preenchem os critérios diag-nósticos estabelecidos pelo DSM-IV ou CID-10, fazendo que a AN possa ser subdiagnosticada23,

24. Desta forma, as taxas de prevalência pode-riam ser ainda maiores, caso as formas parciais de apresentação fossem consideradas.

ABORdAGeM ClÍNICA

A AN requer atenção e reconhecimento por diferentes profissionais das diversas áreas de atuação para sua suspeita ou diagnóstico, pois o diagnóstico precoce é fundamental para se evi-tarem as complicações clínicas.

ANAMNeSe

Apesar de a AN ser cada vez mais citada nos meios de comunicação, os pacientes não têm consciência de que possam ter um proble-ma e são trazidos ao consultório pelos pais, que estão preocupados, normalmente, apenas com a perda de peso. São aspectos necessários ao preenchimento dos critérios diagnósticos: início do quadro, velocidade e magnitude da perda de peso, hábitos alimentares, descrição da in-gestão alimentar, uso de medicações laxativas, diuréticos ou anorexígenos, atividade física, preocupação excessiva com alimentos, calo-rias, peso e dieta, sentimento de sentir-se gordo mesmo com o peso normal, sinais de depres-são, obsessão, compulsão e perfeccionismo24, 25. Além disso, a anamnese detalhada é essencial para se afastarem, de maneira segura, causas orgânicas de desnutrição, como tumores do sistema nervoso central, doenças do colágeno, hipotireoidismo, fibrose cística, diabete melito, úlceras pépticas e doenças esofágicas.

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Quadro clínico

Além das complicações metabólicas, cardiovasculares, alterações de fluidos e ele-trólitos, alterações do nível sérico de fósforo e síndrome de realimentação, renais, hema-tológicas e ósseas, do trato gastrointestinal, endócrinas, cerebrais, dermatológicas, pul-monares e visuais26, algumas particularidades metabólicas nos pacientes do sexo masculino devem ser observadas: baixos níveis de tes-tosterona, diminuição dos hormônios luteini-zante (LH) e foliculoestimulante (FSH) asso-ciada a reduzido volume testicular com oligo ou azoospermia e diminuição da libido (que pode persistir mesmo após a recuperação do peso corporal). Sendo a adolescência período crítico para o desenvolvimento do esqueleto, nesta fase se atingem 20%-25% da estatura final do indivíduo e 90% do pico de incorpo-ração da massa óssea ocorrerão até o final da segunda década de vida. As enfermidades que ocorrem neste período podem comprometer o ganho de massa óssea e não se pode afirmar que a proliferação óssea possa ocorrer após esta fase crítica do desenvolvimento puberal. Este comprometimento ocorrerá tanto no osso trabecular quanto no cortical. A desnutrição diminui a formação de osso (turnover), o que, em associação às modificações fisiológicas da puberdade (diminuição do estrógeno, hiper-cortisolismo, redução da ingestão de proteína e vitamina D), favorece a queda da densidade mineral óssea, e isso poderá contribuir para a diminuição do crescimento linear do osso. Se a AN ocorrer na fase precoce da puberdade, poderá se desenvolver osteoporose, havendo a possibilidade de não ser revertida com a reali-mentação e a recuperação do peso corporal, o que facilitará a ocorrência de fraturas patológi-cas. A osteopenia tende a ocorrer mais no sexo masculino devido à diminuição da testostero-na. Já se observou maior comprometimento ósseo da coluna lombar em adolescentes que

apresentavam maior duração da doença27. É importante a valorização da queixa de dores ósseas nestes pacientes, pois elas podem cor-responder a fraturas patológicas causadas pela osteopenia.

PRINCÍPIOS GeRAIS dO TRATAMeNTO

O tratamento é complexo e requer aten-ção aos aspectos psiquiátricos, clínicos e nu-tricionais, reforçando a necessidade do acom-panhamento com equipe multiprofissional28, 29. Deve ser dirigido, inicialmente, para o restabe-lecimento do peso e de alguns hábitos alimen-tares adequados, e, a médio e longo prazos, para modificar as alterações psíquicas1, 30, 31.

CONSIdeRAÇõeS FINAIS

Apesar de ser incomum no sexo masculi-no, a AN deve sempre ser lembrada por profis-sionais que trabalham com adolescentes e que se deparam com desnutrição grave, pois sua identificação e a instituição precoce de trata-mento são fundamentais para o prognóstico. Apesar de eventualmente parecer não ser mui-to diferente do que ocorre no sexo feminino, em que é mais frequente, a AN é um diagnós-tico que pode demorar mais tempo para ser feito no sexo masculino, ou mesmo não ser re-alizado, dadas as características de sexo e as di-ficuldades dos critérios diagnósticos, podendo comprometer a evolução da doença e os ado-lescentes se apresentarem com quadros mais graves nos serviços de saúde quando em com-paração com o sexo feminino. A abordagem multiprofissional e a participação constante da família melhoram o sucesso terapêutico.

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Adolescência & SaúdeAdolesc. Saude, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 45-52, abr/jun 2012

52 Santos et al.ANORExIA NERVOSA NO ADOLESCENtE DO SExO MASCULINO: UMA REVISãO

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