ano iii #36 vitória/es dezembro de 2017 · especismo e o veganismo. como vocês puderam notar,...

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1 ANO III—#36 Vitória/ES Dezembro de 2017

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ANO III—#36 Vitória/ES Dezembro de 2017

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Editor

Raphael Faé Baptista

Editoração:

Felipe Sellin

Colaboram nessa Edição:

Felipe Sellin

Miguel Rios

Raphael Faé Baptista

Sergio Aleixo

Interaja conosco, sua opinião

é muito importante para nós:

[email protected]

Edição n°35—Novembro de 2017

6.340 seguidores na página 15.849 pessoas alcançadas 724 curtidas em publicação 117 compartilhamentos “”

QUADRINHOS

No mês de Novembro/2017, conta-

mos com um texto muitíssimo inte-

ressante, de Vanessa Lima, sobre o

especismo e o veganismo.

Como vocês puderam notar, muda-

mos a capa da edição, pois a primeira

capa (à esquerda) não estava de acor-

do com o conteúdo do texto e com a

própria filosofia do veganismo.

De fato, não foi uma imagem muito

feliz. Veganismo não é só comer ver-

duras e legumes. Não havia, ali, seguir

para a direita ou para a esquerda.

Além de haver inúmeras opções vega-

nas para pizzas, bolos, sanduíches,

etc., o veganismo não é propriamente

sobre vida saudável (embora, muitas

vezes, seja uma consequência). É,

sobretudo, sobre a libertação animal.

Depois de recebermos críticas perti-

nentes, mudamos a capa (à direita)

que, mesmo se aproximando das idei-

as da autora, ainda assim não abran-

gia todo o escopo do especismo e do

veganismo.

Isso mostra como o tema é amplo e

importante. Mostra como os Centros

Espíritas deveriam abordar e proble-

matizar o veganismo, inclusive, utili-

zando comida vegana nos eventos

espíritas. Mostra como os espíritas

deveriam ser agentes de transforma-

ção e de conscientização, reduzindo

ou eliminando o consumo de carne.

A realidade, no entanto, mostra como

a pauta vegana é menosprezada, e

muitas vezes ridicularizada, junto ao

movimento espírita e seus dirigentes.

Com isso, renovamos o nosso agrade-

cimento à Vanessa Lima pela matéria,

e a todos que, atentos a essa questão,

perceberam o nosso equívoco.

E com toda a certeza, retornaremos a

esse tema em 2018...

3

EDITORIAL

Nesse final

de ano, pouco temos a comemorar. A entrada em

vigor da “reforma” trabalhista – aprovada tão rapi-

damente e com a adesão ou a omissão de muitos

trabalhadores – já deu início aos seus efeitos dele-

térios, com milhares de empregados sendo demiti-

dos para, em seguida, serem recontratados sob a

nova legislação, com menos direitos e salários me-

nores.

Para complicar, o Banco Mundial estima que o Bra-

sil terá aproximadamente 3,6 milhões de miserá-

veis a mais até o final do ano, que se juntarão aos

outros mais de 10 milhões. E enquanto parte da

sociedade brasileira vai se esfacelando na pobreza e

na miséria, o Brasil continua como uma das socie-

dades mais desiguais do Mundo: um paraíso para

os ricos e um inferno para as classes média e pobre.

E a agenda neoliberalóide do governo federal está

sendo fielmente executada a benefício dos poucos,

mas verdadeiros donos do poder. A PEC do teto dos

gastos públicos já afeta investimentos em saúde,

educação, infraestrutura, etc., mas deixou intocado

o pagamento de juros e especulação financeira. A

reforma trabalhista está piorando a vida já precária

da grande massa de brasileiros. As universidades

federais e a previdência social, menina dos olhos

dos banqueiros, agora são a bola da vez…

Pensamos que o movimento espírita tinha que estar

mais atento a essas questões. Ao lado da aborda-

gem moral e espiritual, obviamente necessárias,

acreditamos que essas questões sociais são tão im-

portantes quanto falar de perispírito e de parábolas

de Jesus. Afinal, a sociedade em que vivemos tam-

bém é um produto moral. Uma sociedade com fave-

las, miséria, patriarcado, falta de saneamento bási-

co, educação sucateada, etc., revela muito de sua

moralidade.

A questão é que (boa) parte do movimento espírita,

em especial o federativo (febista), fechou-se numa

abordagem individualizante e terapêutica do espiri-

tismo. Não é um espiritismo para o coletivo, mas

para a pessoa, como se ela vivesse sozinha no mun-

do. Não é um espiritismo para questionar o mundo,

mas para ajudar a aceitar as coisas do mundo. E

desde que esse movimento espírita encerrou-se

nessa compreensão individualizante e terapêutica,

a vida como um todo tem passado ao largo de suas

preocupações.

Como outrora fizeram os teólogos cristãos que dis-

cutiam o sexo dos anjos enquanto os turcos invadi-

am Constantinopla, parte dos espíritas de hoje, ao

seu modo, estão perdendo o bonde da história e

deixando de compreender a nossa condição huma-

na e social numa perspectiva mais abrangente.

Com isso, a MATÉRIA DE CAPA é de autoria de

Raphael Faé, que traz uma discussão necessária

sobre a figura histórica de Jesus, em contraste com

o mito do Jesus Cristo. Numa época em que Jesus

está “na moda”, recuperar a sua historicidade é um

passo importante para ressignificá-lo.

A OPINIÃO ficou por conta de Miguel Rios, que

traz uma reflexão rápida e profunda sobre o per-

dão.

No PONTO DE VISTA contamos com a (primeira)

contribuição (de muitas) de Sérgio Aleixo, que au-

torizou a reprodução do capítulo “Resignação” de

sua obra “Que Espiritismo é o nosso? Ensaios da

hora extrema”.

A RESENHA é sobre o incrível documentário

“Humano”, por Felipe Sellin.

Por fim, agradecemos a todos que têm nos acompa-

nhado e nos ajudado. Aos leitores e articulistas...

cada contribuição, cada texto, cada curtida e com-

partilhamento, cada menção já é de muita valia.

Não é nada fácil colocar as edições no ar. Mas so-

mos recompensados quando sabemos que as edi-

ções estão sendo estudadas nos grupos espíritas,

quando nos procuram para saber melhor sobre

determinado autor, quando nos falam como as

abordagens estão fazendo a diferença e de como as

pessoas se redescobriram no espiritismo por causa

do Jornal.

Tenham uma excelente leitura, e que 2018 seja de

muita reflexão, crítica, aperfeiçoamento, debates e

luta por uma sociedade livre, justa e solidária.

Felipe Sellin e Raphael Faé

Caras Leitoras e Caros Leitores,

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MATÉRIA DE CAPA

JESUS DE NAZARÉ, JESUS CRISTO

Um dos maiores crimes já cometidos con-

tra a humanidade foi ter transformado

Jesus em Deus, de tornar Jesus de Nazaré

– um ser humano com suas questões,

suas esperanças e angústias, dúvidas e

certezas – num personagem mítico, em

Jesus, o “Cristo”, o mito grego do messias,

um ser pronto, distante de nós e de nossas

capacidades, como acontece com os deu-

ses perfeitos.

Como tornaram um homem histórico, de

carne e osso, num Deus mitológico, não

faltam historiadores estudando isso a

fundo. E se tais estudos existissem à épo-

ca de Allan Kardec, não há dúvidas que

ele os teria problematizado junto aos espí-

ritos. Porém, como o conhecimento é his-

tórico, e diante do caráter incompleto do

espiritismo (incompleto como qualquer

ciência ou filosofia), é necessário debater

com essas novas descobertas, a fim de

buscarmos, cada vez mais, a verdade so-

bre aqueles a quem dizemos seguir.

E quanto mais informações surgem sobre

Jesus de Nazaré – espírito encarnado,

concebido por meio de relações sexuais,

nascido envolto no mesmo sangue e flui-

dos que qualquer outra pessoa e inserido

num contexto social repleto de injustiças

– mais ele é admirável e um exemplo,

enquanto o Jesus Cristo se torna numa

figura não só deprimente, como o é todo

salvador fabricado, mas também pernicio-

sa, pois nos afasta das possibilidades reais

de transformação pessoal e do mundo.

Sem dúvidas, essa abordagem gera resis-

tência entre espíritas, acostumados a con-

ceber Jesus como Deus ou como um

“espírito que já atingiu a perfeição relati-

va”, o que, na prática, significa a mesma

coisa: que Jesus nunca poderia ter agido

de modo a demonstrar uma humanidade,

como experimentar medo, manter rela-

ções sexuais ou sentir profunda indigna-

ção diante das misérias de seu tempo. Até

a expulsão dos cambistas e vendilhões é

explicada de modo a reduzir eventual

violência, como se Jesus tivesse agido

com polidez e pedindo licenças, e não com

vigor. Alguns usam até o “magnetismo”

ou a “autoridade moral” de Jesus para

explicar essa passagem, como se a sua

simples presença já fosse suficiente para

criar juízo nos cambistas e vendilhões...

No entanto, essas resistências não devem

impedir a reflexão e o progresso. Claro

que um espírito evoluído é mais coerente

entre suas crenças e suas ações. O proble-

ma é compreender essa evolução a partir

de nós, de enquadrarmos Jesus em nossas

pré-compreensões do que é ser evoluído.

E, então, vemos como nossos preconcei-

tos moldam uma determinada figura de

Jesus, a começar pela questão física: nu-

ma terra desértica, de pessoas de feições

rudes e pele amorenada, ele é representa-

do como um loiro (quase ruivo), de olhos

azuis, pele branca e aveludada, cabelos

sedosos, etc. Se já queremos nos enganar

no aspecto físico, imagine quanto aos seus

posicionamentos éticos, políticos, sociais,

etc.

Desse modo, precisamos compreender

que quando meia dúzia de homens trans-

formaram Jesus em Deus, eles retiraram

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de nós quase toda a integridade de seu

exemplo e de sua moral. Começando em

Paulo de Tarso, seguido dos primeiros

teólogos aos atuais, foi surgindo um Jesus

Cristo bem diverso do Jesus de Nazaré.

Dentro de acontecimentos históricos im-

portantes, eles moldaram um Jesus con-

veniente à dominação política e social,

inicialmente romana. Ao excluírem o con-

teúdo histórico e humano de Jesus e o

conteúdo sociopolítico de sua missão,

perdemos importantes referências de co-

mo devemos lidar conosco e com o mun-

do, para transformá-lo num lugar onde

impere a justiça e o amor, o mais forte

ajude o mais fraco, o maior seja quem

mais sirva, o fim mais importante seja

nós, e não a vida, etc.

Ao retirarem também o seu caráter de

contestador da ordem social da Palestina

de sua época, o que sobrou foi um domí-

nio “espiritual”, sendo então colocado

num altar onde é representado pregado

numa cruz e olhando para baixo, como a

dizer que toda a luta por um mundo me-

lhor sempre redundará em fracasso, que

nunca venceríamos a injustiça, a opressão

e o ódio, a não ser no “outro mundo”.

Jesus, então, deixou de ser uma motiva-

ção para superar as mazelas sociopolíticas

e morais e passou a avalizá-las, a justificá-

las. No domínio “espiritual” que lhe res-

tou, ele se tornou na força para aceitar e

suportar essas mazelas, não combatê-las.

Por isso a esperança é central no cristia-

nismo: se a luta contra a injustiça é ingló-

ria e fadada ao fracasso, o que resta é

“fazer a minha parte”, “aceitar a minha

cruz” e esperar a recompensa “na outra

vida”.

O poder dessa degenerescência é tão

grande que contaminou a compreensão

média dos espíritas sobre ensinos de Kar-

dec e dos espíritos sobre a regeneração. A

regeneração é a construção de uma socie-

dade melhorada, com novos horizontes

morais e outras prioridades. Porém, em

regra, estudos e exposições sobre o tema

– apresentados como “transição planetá-

ria” – se resumem a falar dos espíritos

evoluídos que estão reencarnando como

se fossem os anjos do Senhor que, num

passe de mágica, mudarão tudo (aliás,

espíritos amados na teoria, mas odiados

na prática, pois vem nos tirar de nossa

zona de conforto e abalar nossas certe-

zas). Então, a regeneração deixa de ser

algo “nosso”, de caráter concreto, social,

histórico e político para ser algo “deles”,

de caráter “espiritual”, que apenas obser-

vamos.

Diante disso, o historiador Reza Aslan

afirma que se o único fato que conhecês-

semos sobre Jesus fosse a sua crucifica-

ção, isso seria suficiente para sabermos

que ele foi morto por afrontar o poderio

romano. O crucificado era alguém que,

sobretudo, ousou desafiar Roma.

Jesus não foi morto por falar de amor. Se

fosse só isso ele teria morrido de velhice, e

até poderia ter sido um queridinho das

elites de seu tempo, como o são hoje os

falsos profetas e pseudo-médiuns que

adoram falar o que o povo quer ouvir.

Estes, buscando atender às necessidades

de um auditório psicologicamente infanti-

lizado, falam que somos luz, que temos

potencial, que vamos vencer no final, que

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devemos buscar a felicidade ou a paz,

enquanto Jesus, dentro da tradição profé-

tica judaica, afirmava que a nossa luz está

sob o alqueire, que seríamos deuses se

tivéssemos fé, que nem todos serão sal-

vos, que a felicidade não é deste mundo e

que ele não veio trazer a paz, mas a espa-

da.

Jesus foi morto porque afrontou as elites

políticas, religiosas e econômicas de seu

tempo, opondo-lhes uma nova moral, na

medida em que ele foi a antítese dessas

elites, de sua ordem social e de sua moral.

Miserável, sem instrução, de família nu-

merosa, trabalhador braçal, amigo da

fome e das necessidades, só mais um ros-

to comum na multidão que buscava tra-

balho nas cidades ricas da região, Jesus

cresceu provando o que há de pior num

planeta de provas e expiações. Desde pe-

queno sentiu o peso de ser um pária, um

descartável, de ser humilhado e de comer

das migalhas dos poderosos.

Isso fez com que Jesus tivesse um lado, e

foi desse lado que ele contestou o mundo

onde o rico pisa no pobre, o grande abusa

do pequeno, quem tem tira de quem não

tem. Foi desse lado que ele se levantou

para acusar os grandes de então de hipó-

critas, sepulcros caiados, víboras, cegos

guiando cegos, dizendo que a escória so-

cial seria preferida por Deus.

Logo, ao dizer que somos irmãos, iguais,

Jesus não enuncia uma frase bonita, para

“acalmar corações”. Ele afronta a moral

de sua época, em que era um absurdo um

nobre ser irmão de um plebeu, um roma-

no ser semelhante ao judeu, o judeu ser o

próximo do samaritano, de estar em pé de

igualdade juiz e réu, sacerdote e prostitu-

ta, leproso e fariseu. Mas, em lugar de dar

vazão a ódios reprimidos, ele canalizou

toda a indignação e o sentimento de justi-

ça para a transformação do indivíduo e da

sociedade, apresentando o que era um ser

humano íntegro e capaz e uma sociedade

sadia, evoluída, regenerada.

Por óbvio, a espiritualidade é um aspecto

importante do ser humano. Mas reduzir

Jesus a um domínio espiritual é apequená

-lo demais. Jesus não é apenas a solução

das minhas contradições com o divino ou

o sagrado. Ele é a representação máxima

da coerência que podemos ser, que equa-

ciona moral, ética, política, afetividade,

espiritualidade, etc.

Nessa completude, não se pode estar

“conectado a Deus” vivendo ao lado de

tantas misérias. Nessa completude, as

“bem-aventuranças” deixam de ser ape-

nas uma proposta espiritual para se tor-

narem nos princípios éticos, jurídicos,

sociais e políticos de uma nova civiliza-

ção, na qual terão lugar os que sofrem, os

humildes, os justos, os mansos, os miseri-

cordiosos. Nessa completude, encontra-

mos a denúncia que ele fez da moral e da

ordem social de sua época, que em nada

difere da nossa.

Passados 2 mil anos, continuamos igno-

rantes quanto à missão e ao significado

de Jesus, e as elites políticas, religiosas e

econômicas continuam destilando ódio

aos atuais miseráveis, leprosos e samari-

tanos, e se esforçando para que as perver-

sões sociais perdurem: que haja fome

desde que sua mesa esteja farta, que exis-

ta analfabetismo desde que seus filhos

estejam em boas escolas, que haja pobre-

za desde que forneça mão-de-obra barata,

que o planeta entre em colapso ambiental

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desde que gere lucro, que adoremos ído-

los desde que mantenha a submissão.

Continuamos a viver numa sociedade

externamente cristã, mas internamente

farisaica, que vive de aparências. De nos-

sa boca sai Jesus e o amor incondicional,

mas em nosso coração está Moisés e o

olho por olho. Em nossas mentes há a

simplicidade do Nazareno, mas continua-

mos a alimentar o nosso orgulho e egoís-

mo nas contradições do capitalismo e do

consumo. Cultuamos Jesus e queremos

ser melhores, mas a nossa adoração ao

conforto material, ao dinheiro, à carreira,

à família, ao status, à manutenção de in-

justiças que eventualmente nos benefici-

em nos mantém presos ao farisaísmo so-

cial.

Diante disso, se Jesus retornasse hoje, ele

encarnaria aquilo que nos causa nojo e

repulsa. Viria da periferia das grandes

cidades. Seria favelado, trabalhador bra-

çal, mais um anônimo da “turma da lim-

peza” ou um morador de rua. Teria cabe-

los alvoroçados e despenteados, roupas

simples, talvez lhe faltariam alguns den-

tes e não falaria um português correto.

Num Centro Espírita, seria considerado

só um “assistido”. Não seria convidado a

palestrar, a dizer algo de importante e a

ensinar. Com honrosas exceções, só sua

aparência já lhe interditaria qualquer

possibilidade de evidência no meio cristão

em geral, e espírita em particular.

E quando resolvesse abrir a boca e colocar

o dedo na ferida, não tenhamos dúvidas:

ele atingiria a nossa vaidade num grau tão

elevado, ele nos desnudaria moralmente

de tal modo, ele nos colocaria diante de

uma verdade tão crua e incisiva que não

restaria outra alternativa senão calá-lo.

Alguns iriam entendê-lo e amá-lo, mas a

maioria iria odiá-lo, como o foi em seu

tempo.

Jesus, o Cristo, alimenta a fé daqueles que

acreditam na reconciliação das contradi-

ções do mundo material a partir de um

mundo celeste. Isso é válido e toda a fé

sincera deve ser respeitada.

Mas o Jesus de Nazaré é algo mais íntegro

e interessante. É uma inspiração real e

um horizonte concreto que nos dá os va-

lores morais e as linhas de ação na busca

de uma ordem social justa e amorosa,

onde o compartilhar seja o que nos una e

onde todos expressem um sentido de fra-

ternidade abrangente, que rompa com as

fronteiras políticas e sociais, e faça de nós

uma irmandade planetária. Jesus de Na-

zaré não reconcilia as nossas contradições

a partir do “outro mundo”, mas deste

mundo.

Kardec, ciente do significado da regenera-

ção, dá um passo importante ao retomar a

moral de Jesus sob o prisma da razão

moderna e do que havia de mais avança-

do em sua época. Ele e os espíritos reti-

ram o pó místico de séculos e nos apre-

sentam ensinos morais seguros para o

nosso agir.

Aos espíritas do século XXI cabe dar

prosseguimento a essa tarefa, andando de

mãos dadas com a ciência, a filosofia e o

pensamento crítico, ressaltando que essa

tarefa só é válida se implicar em autocríti-

ca e em contestação da ordem social, fa-

zendo com que a nossa condição humana

tenha cada vez menos espaço para a dor e

a humilhação. Qualquer coisa fora disso é

repetir erros históricos e prosseguir numa

sociedade essencialmente farisaica, hipó-

crita e anticristã.

Raphael Faé é formado em Direito e

mestre em Filosofia.

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PONTO DE VISTA

RESIGNAÇÃO

A cada ciência o seu objeto. O espiritis-

mo cuida da alma, vê pelo prisma da

evolução do espírito. Tudo certo, mas

sempre em termos. Onde está dito na

doutrina espírita que a resignação seja

passividade ante as injustiças e os des-

mandos de quem detém poder, seja polí-

tico, seja também econômico, aliás sem-

pre mancomunados? O que devemos

fazer como bons espíritas? O que é cari-

dade nesse caso? Kardec diz sobre o

bom espírita: “Possuído do sentimento

de caridade e de amor ao próximo, faz o

bem pelo bem, sem esperar paga algu-

ma; retribui o mal com o bem, toma a

defesa do fraco contra o forte e sacrifica

sempre seus interesses à justiça”(1). Por

que será então que quando se critica o

capitalismo, ou mais propriamente as

formas de sua sociabilidade usurária,

alguém sempre lembra do tema resigna-

ção de modo seletivo, aconselhado ao

socialista, ao comunista, visto como

revoltado sem causa, invejoso inconse-

quente, ou, por outra, ao pobre, julgado

em provas ou expiações inamovíveis tão

só? Leia-se isto: “Pode dar-se que um

homem nasça em posição penosa e difí-

cil, precisamente para se ver obrigado a

procurar meios de vencer as dificulda-

des. O mérito consiste em sofrer, sem

murmurar, as consequências dos males

que lhe não seja possível evitar, em per-

severar na luta, em se não desesperar, se

não é bem-sucedido; nunca, porém,

numa negligência que seria mais pregui-

ça do que virtude”(2). Sofrer sem mur-

murar, mas não sem lutar; não é o con-

formismo que se aconselha. Ora; exata-

mente quais efeitos de que males não

nos seria possível evitar? Os resultados

maléficos, por exemplo, que mais am-

plamente considerados se conjugam na

desigualdade das condições sociais, ao

contrário do que se propala, de modo

nenhum vêm a constituir uma lei da

natureza, uma obra de Deus; segundo os

guias kardecistas, essa desigualdade

exclusivamente se deve ao ser humano

(3). De fato, somos, pois, estimulados a

lutar, a melhorar de vida e a própria

vida, excluídas extravagâncias ridículas

do egoísmo, e não a nos conformar com

miséria ou pobreza, seja nossa, seja

alheia, menos ainda frente aos desman-

dos que as ocasionam e impedem que,

exempli gratia, o trabalho honesto

prevaleça; quem se impõe em geral são

as manipulações do capital especulativo,

ao atingirem os setores público e/ou

privado, quebrando mesmo quem pro-

duz desde que isso interesse a uns pou-

cos, em detrimento das reais necessida-

9

des de bilhões de seres, que restam des-

prezados ante nefandas maquinações

numéricas, que a mobilização consciente

da maioria explorada, por sinal, redu-

ziria a pó.

A resignação bem entendida, como fonte

de serenidade e discernimento em meio

às lutas físicas e morais, não deve ser

lembrada no interesse e fomento da

alienação ou do imobilismo na doutrina

espírita, porque, nesta, a isso não cor-

responde. Nem se deve abusar, outros-

sim, do princípio de submissão às leis. É

sabido que direito e justiça nem sempre

marcham pari passu. Por lapidar, leia-

se até mais não poder: “Não digais, pois,

quando virdes atingido um dos vossos

irmãos: ‘É a justiça de Deus, importa

que siga o seu curso.’ Dizei antes:

‘Vejamos que meios o Pai misericordio-

so me pôs ao alcance para suavizar o

sofrimento do meu irmão. Vejamos se as

minhas consolações morais, o meu am-

paro material ou meus conselhos pode-

rão ajudá-lo a vencer essa prova com

mais energia, paciência e resignação.

Vejamos mesmo se Deus não me pôs nas

mãos os meios de fazer que cesse esse

sofrimento; se não me deu a mim, tam-

bém como prova, como expiação talvez,

deter o mal e substituí-lo pela paz’”(4). E

à eventual falácia meritocrática neolibe-

ral, recomendem-se estes desvelamen-

tos: “O orgulho é o terrível adversário da

humildade. Se o Cristo prometia o Reino

dos Céus aos mais pobres, é porque os

grandes da Terra imaginam que os títu-

los e as riquezas são recompensas defe-

ridas aos seus méritos e se consideram

de essência mais pura do que a do po-

bre. Julgam que os títulos e as riquezas

lhes são devidos, pelo que, quando Deus

lhos retira, o acusam de injustiça. Oh!

irrisão e cegueira!”(5) — “Infelizmente,

sempre há no homem que possui bens

de fortuna um sentimento tão forte

quanto o apego aos mesmos bens: é o

orgulho. Não raro, vê-se-o atordoar,

com a narrativa de seus trabalhos e de

suas habilidades, o desgraçado que lhe

pede assistência, em vez de acudi-lo, e

acabar dizendo: ‘Faça o que eu fiz.’ Se-

gundo o seu modo de ver, a bondade de

Deus não entra por coisa alguma na

obtenção da riqueza que conseguiu acu-

mular; pertence-lhe a ele, exclusivamen-

te, o mérito de a possuir. O orgulho lhe

põe sobre os olhos uma venda e lhe tapa

os ouvidos. Apesar de toda a sua inteli-

gência e de toda a sua aptidão, não com-

preende que, com uma só palavra, Deus

o pode lançar por terra”(6).

Da obra “Que Espiritismo É o Nosso? Ensaios da Hora Extrema”, de Sergio F. Aleixo, gentilmente cedido pelo autor e disponível em http://sergioaleixo.blogspot.com.br/2017/03/22-resignacao_27.html

NOTAS:

(1) O Evangelho segundo o Espiritismo,

XVII: 3. Obs.: O período estava assim

originalmente: “Possuído do sentimento

de caridade e de amor ao próximo, faz o

bem pelo bem, sem contar com qualquer

retribuição, e sacrifica seus interesses à

justiça”. (O Livro dos Espíritos, 918.)

Portanto, Kardec lhe impôs as alterações

“retribui o mal com o bem, toma a defe-

sa do fraco contra o forte.”

(2) O Evangelho segundo o Espiritismo,

V: 26.

(3) O Livro dos Espíritos, 806.

(4) O Evangelho segundo o Espiritismo,

V: 27.

(5) O Evangelho segundo o Espiritismo,

VII: 11.

(6) O Evangelho segundo o Espiritismo,

XVI: 14.

OPINIÃO

Perdoar não é fofo. É esforço. Já é quase Natal. Tudo de novo. Os pisca-

piscas se esparramam por todas as facha-

das, a Serasa convoca para limpar o nome

com o 13º salário e Simone nos pergunta

o que a gente fez. Somem-se aos frutos da

época, assim como os panetones, os ser-

mões de perdoar a quem te ofendeu.

Vivemos em uma sociedade de hegemo-

nia cristã e o perdão é uma moeda de

troca com o divino. Aprendemos que per-

doar é o máximo da generosidade, a mai-

or quebra de correntes. Leia as toneladas

de textos já publicados sobre o perdão e

você sairá perdoando até desconhecidos,

quem nunca te fez mal. Sairá buscando

motivos, nesta reta final de ano, alguma

mágoa esquecida, sem importância, so-

mente para perdoar a pessoa. E se sentir

mais limpo, amaciado e perfumado que

roupa lavada em comercial de Confort.

Perdoar tem no recheio uma sensação de

poder. Se eu perdoo, estou no degrau

acima e estendo a mão a quem está lá

embaixo e o puxo. Perdoar, na esmagado-

ra maioria das vezes, tem uma arrogância

por trás, um se santificar, um se autopro-

mover.

Perdoar pode ser vil se for falso. Porque

não é perdão. É cinismo. É medir forças e

já garantir vitória por antecipação.

Perdoar vai além do “eu te perdoo”. Vai

além de os dois se abraçam, soltam uns

sorrisinhos, cada qual segue para o seu

canto.

Resolve? Se a sinceridade não é plena, ela

quebra na primeira repensada que quem

concedeu o perdão dá sobre o caso. Ele

continuará ruminando a raiva, só que

desta vez com refluxos de hipocrisia. Seu

perdão é para virar assunto de benevolên-

cia na ceia natalina:

- Ah! Eu perdoei Zé.

- Nossa. Como você é gente boa!

O perdão então tem o visual embalado em

papel sem valor, que nem presente de

amigo secreto. Perdão comprado, envolvi-

do, preso com fita durex e ofertado com

sorrisos protocolares para o momento

selfie do Instagran. Foi o nome que puxou

do saquinho, não podia trocar e tanto faz.

O importante é que todo mundo ganhe

sua tranqueira made in Taiwan.

Só que perdão, perdão na real, não é like

que se distribui por impulso. Nem é aper-

to de mão que faz por etiqueta. Se é uma

obrigação é que nem oferecer café à visita

incômoda. Faz-se por convenção social.

Veio como reboco para moldar o persona-

gem dadivoso, de espírito puro, incapaz

de raivas e rancores, que as pessoas in-

corporam no final do ano.

Perdão, perdão mesmo, é ato difícil. Re-

quer esforço. Sobretudo, tempo. Requer

preparo. E disposição. Requer estar pron-

to.

Não é perdão se foi somente performan-

ce. Não é perdão se foi para agradar cicla-

no ou fulano, porque disseram que perdo-

ar é celestial. Não é perdão se foi por

pressão.

Não perdoe se algo ainda queima lá den-

tro. Não perdoe se a mágoa apenas foi

submersa. Trata-se de perdão teatral.

Perdão Viúva Porcina. Aquele que foi sem

nunca ter sido.

Perdão, inclusive, precisa de um motivo

forte. Algo que tenha doído de verdade,

que dilacerou e sequelou. Algo que não

desaparece porque é Natal. Algo que tal-

vez precise de muitos natais para, no mí-

nimo, amenizar até chegar lá.

Perdão é ato bonito, grande, e não pode

ser banalizado. Perdão está atrelado à

saúde emocional.

Adie. Deixe o tempo passar. Se possível,

trabalhe o perdão com a outra pessoa.

Converse sobre as causas e consequên-

cias. Ambos podem ter tido responsabili-

dades e o perdão pode ser mútuo. Vir

vagaroso. Às vezes áspero, às vezes amis-

toso. E mais autêntico. Realmente revigo-

rante e refrescante. Por vocês. Não para

ganhar um Nobel da Paz.

Não perdoe porque é Natal. Perdão não se

compra e não se dá como perfume lança-

mento do Boticário. O cheiro pode ser

bom, mas não fixa para sempre.

Miguel Rios é jornalista.

RESENHA

Todas as dimensões do que é ser “Humano”

A sociedade de consumo transforma qual-

quer evento em uma grande oportunidade

de comércio. Como o Natal não é diferen-

te, pelo contrário, estamos falando na

data em que o mercado sempre se encon-

tra mais aquecido, apesar do atual mo-

mento de crise financeira. Com um feria-

do longo e a família reunida ao redor da

lareira moderna (os aparelhos televiso-

res), é comum a uma família de classe

média que algum de seus membros pro-

ponha que assistam uma comédia natali-

na.

A resenha atual é uma proposta imperdí-

vel de reflexão. O filme “Humanos - Uma

Viagem pela Vida”, um documentário do

fotógrafo, diretor e ambientalista francês

Yann Arthus-Bertrand que, em suas mais

de duas horas, resume uma série de entre-

vistas realizadas em mais de 63 línguas

diferentes. Por um lado, esse filme é dife-

rente do humor fácil e do sentimentalis-

mo barato dos caça-níqueis de fim de ano.

Por outro lado, representa toda reflexão

necessária para as famílias nestes dias

comemorativos em que comentamos mais

sobre o amor ao próximo.

A obra de Arthus-Bertrand alterna entre

dois olhares importantes sobre o mundo.

No primeiro, literalmente com o foco nos

indivíduos, quase uma três por quatro em

movimento, percebe-se os diversos traços

culturais e sociais carregados por essas

pessoas. Mas, ao contrário do que parece,

a maior aproximação realizada não é pela

câmera focada nas faces, mas sim das

profundas trajetórias de vida apresenta-

das. Portanto, o que o cineasta quer nos

apresentar é a narrativa por trás daquela

imagem. A ausência de uma legenda indi-

cativa de país de origem e nome do entre-

vistado é uma maneira de aproximar ain-

da mais o expectador a cada um destes

relatos. Os depoimentos passam por di-

versos temas: logo no princípio, um ho-

mem apresenta sua definição de felicida-

de que, para ele, seria ter energia elétrica

em sua casa; ao falar de amor, um homem

revela a dificuldade que teve ao não rece-

ber afeto de seu pai e por isso não soube

transmitir; o membro de uma célula ter-

rorista revela suas angústias; o ex-

presidente uruguaio Pepe Mujica fala

como a felicidade vem de aprender a viver

com pouco numa sociedade baseada no

consumo de bens supérfluos; para citar

algumas das narrativas.

Entre os depoimentos, a câmera se deslo-

ca para um ambiente externo, com paisa-

gens belíssimas. As paisagens nos colo-

cam de frente para o quão pequeno é o ser

humano perto do ambiente natural em

que ele está inserido. Em que pese que

apenas a terra foi considerada, a plurali-

“Ou você é feliz

com pouco, pois a

felicidade está den-

tro, ou não conse-

gue nada. Isso não

é uma apologia da

pobreza, mas sim

da sobriedade.”

Pepe Mujica

dade de mundos habitados

poderia contribuir para

potencializar tal considera-

ção. As imagens de mares,

desertos, cidades ricas e

pobres completam a men-

sagem que o cineasta bus-

ca nos apresentar sobre o

qual diverso, singular e ao

mesmo tempo com tantas

semelhanças é o ser huma-

no.

O filme teve seu lançamen-

to mundial em 2016, na

Assembleia da Organiza-

ção das Nações Unidas. Ele se apresenta

quase como um projeto de desenvolvi-

mento da alteridade em todos os seus

aspectos. Na atualidade, em que a comu-

nicação mundial parece integrada e como

se a compreensão do outro proposta pela

antropologia já não fizesse sentido, perce-

bemos que o outro está muito mais próxi-

mo, ao mesmo tempo em que o outro

somos nós. A origem da violência atual

continua sendo a intolerância (seja ela

religiosa, seja ela de gênero, e ou cultural)

e a desigualdade social e econômica. To-

dos os dias aguardamos quando o EUA

vai começar uma nova guerra, mas quan-

do olhamos o alvo percebemos que ao

redor do mundo são diversas as guerras

civis. Ao mesmo tempo, um país como o

Brasil, que se orgulha de sua diversidade,

apresenta uma violência que mata princi-

palmente jovens negros e pobres, ao mes-

mo tempo em que registra a maior taxa

mundial de crimes por homofobia.

No entanto, “Humanos” não é sobre como

os seres humanos são insignificantes.

Muito pelo contrário. Além de uma pro-

posta de entendimento que gera amor ao

próximo, ao assistir o filme podemos per-

ceber como são pequenas algumas de

nossas dificuldades, como são encarados

de forma diversa alguns dos problemas

iguais aos nossos e dos caminhos para

tentar superar algumas destas situações.

Assistir a este filme só diminuíra o peso

das futilidades, o que nos transforma em

seres humanos maiores.

Felipe Sellin é sociólogo.