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201 Anna Mariani e as casinhas nordestinas SILVIA HELENA DOS SANTOS CARDOSO* *Brasil, artista/fotógrafa e antropóloga. Doutora em Artes e Mestre em Multimeios / Instituto de Artes / UNICAMP e Bacharel em Ciências Sociais/Antropologia / FFLCH / USP. Professora Universitária — Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e Universidade Nove de Julho. AFILIAçãO: Universidade Nove de Julho. Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Centro Universitário Belas Artes de São Paulo Código Postal — 04018-010 São Paulo Brasil. Universidade Nove de Julho. CEP 01156-050, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected] Artigo completo recebido a 9 de setembro e aprovado a 24 de setembro de 2013 Title: Anna Mariani and houses northeastern Abstract: The article contextualizes the photo shoot of photographer / Brazilian artist Anna Mariani on the facades of the houses in northeast- ern Brazil. Color is the main element treated as a phenomenon of visual perception and cultural identity. The work includes the scenario of Brazil- ian Photography and Contemporary Art. Keywords: Photography / Landscape / Contem- porary Art / Brazilian Art / Brazilian Northeast. Resumo: O artigo contextualiza o ensaio fotográfico da fotógrafa/artista brasileira Anna Mariani acerca das fachadas das casas na região nordeste do Brasil. A cor é o prin- cipal elemento tratado como fenômeno de percepção visual e de identidade cultural. A obra contempla o cenário da Fotografia Brasileira e Arte Contemporânea. Palavras-chave: Fotografia / Paisagem / Arte Contemporânea / Arte Brasileira / Nordeste Brasileiro. Anna Mariani e a Fotografia Brasileira O primeiro contato com o ensaio fotográfico de Anna Mariani (1935) aconte- ceu nos anos 80 do último século. As fotografias revelavam certa delicadeza no registro das casas e, especificamente, das típicas fachadas coloridas da região nordestina brasileira. A memória não é suficiente para recordar o espaço expo- sitivo da obra, mas aquele conjunto de imagens ficou verdadeiramente gravado como um assunto a ser pesquisado posteriormente. Naquela data, a cena artística e fotográfica no Brasil atravessava uma transfor- mação: finalmente “as coisas” do país passavam por uma valorização e a cultura Cardoso, Silvia H. dos Santos (2013) “Anna Mariani e as casinhas nordestinas.” Revista :Estúdio, Artistas sobre outras Obras. ISSN 1647-6158, e-ISSN 1647-7316. Vol. 4 (8): 201-207.

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siLViA hELENA dos sANtos CARdoso*

*Brasil, artista/fotógrafa e antropóloga. Doutora em Artes e Mestre em Multimeios / Instituto de Artes / uNICAMP e Bacharel em Ciências Sociais/Antropologia / FFLCH / uSP. Professora universitária — Centro universitário Belas Artes de São Paulo e universidade Nove de Julho.

AFILIAçãO: universidade Nove de Julho. Centro universitário Belas Artes de São Paulo. Centro universitário Belas Artes de São Paulo Código Postal — 04018-010 São Paulo Brasil. universidade Nove de Julho. CEP 01156-050, São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected]

Artigo completo recebido a 9 de setembro e aprovado a 24 de setembro de 2013

title: Anna Mariani and houses northeasternAbstract: The article contextualizes the photo shoot of photographer / Brazilian artist Anna Mariani on the facades of the houses in northeast-ern Brazil. Color is the main element treated as a phenomenon of visual perception and cultural identity. The work includes the scenario of Brazil-ian Photography and Contemporary Art.Keywords: Photography / Landscape / Contem-porary Art / Brazilian Art / Brazilian Northeast.

Resumo: O artigo contextualiza o ensaio fotográfico da fotógrafa/artista brasileira Anna Mariani acerca das fachadas das casas na região nordeste do Brasil. A cor é o prin-cipal elemento tratado como fenômeno de percepção visual e de identidade cultural. A obra contempla o cenário da Fotografia Brasileira e Arte Contemporânea.Palavras-chave: Fotografia / Paisagem / Arte Contemporânea / Arte Brasileira / Nordeste Brasileiro.

Anna Mariani e a Fotografia BrasileiraO primeiro contato com o ensaio fotográfico de Anna Mariani (1935) aconte-ceu nos anos 80 do último século. As fotografias revelavam certa delicadeza no registro das casas e, especificamente, das típicas fachadas coloridas da região nordestina brasileira. A memória não é suficiente para recordar o espaço expo-sitivo da obra, mas aquele conjunto de imagens ficou verdadeiramente gravado como um assunto a ser pesquisado posteriormente.

Naquela data, a cena artística e fotográfica no Brasil atravessava uma transfor-mação: finalmente “as coisas” do país passavam por uma valorização e a cultura

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brasileira começava ou recomeçava a encontrar o seu lugar na história da arte latino- americana. Ao mesmo tempo em que os artistas encontravam espaço para colocar obras de caráter universal no insípido mercado de arte, os fotó-grafos começavam a redescobrir a cultura local. É verdade que o interesse pela cultura popular é marcado por um movimento de vai e vem: ora muito valoriza-da, ora muito desprezada. Contudo, a partir daquelas duas últimas décadas, a cultura popular brasileira passou a ser encarada com maior seriedade e estima.

Neste contexto, a fotógrafa soteropolitana Anna Mariani expôs o resulta-do de inúmeras viagens por sete estados brasileiros — Bahia, Alagoas, Sergi-pe, Ceará, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte —, não nesta ordem, mas a Bahia, estado de nascimento da artista, foi o primeiro a revelar a beleza das populares casinhas coloridas. O trabalho começara em meados dos anos 70 com fotografias pretos e brancos como anotações e, posteriormente, com os diapositivos coloridos, pois segundo a fotógrafa, a cor das fachadas revelava o universo poético do homem nordestino, sempre lembrado por sua força bruta, à luz de Euclides da Cunha (1866/1909), escritor de Os Sertões (1902). Mariani se dedicou a registrar a paisagem nordestina, mas não o cenário natural, ao con-trário, uma paisagem construída: as fachadas frontais das casas. Se o conceito de paisagem é construído em diferentes teóricos, o arquiteto italiano Aldo Rossi (1931/1997) traz a definição de paisagem construída para todas as coisas que são culturalmente criadas (Fortes, 2009). A paisagem da natureza não é exclu-siva, encontramos outras paisagens: a paisagem construída é aqui o foco, uma vez que as fachadas das casinhas brasileiras são culturalmente idealizadas, como mostra a Figura 1.

A cor como identidade culturalO ensaio fotográfico de Anna Mariani foi tratado como uma grande novidade no mundo imagético brasileiro, uma vez que as coloridas fachadas já eram conhe-cidas pelos viajantes estrangeiros e nacionais, mas nunca haviam sido expostas num espaço de arte. A beleza das casinhas atestava a singularidade das facha-das coloridas e denominadas pelo habitante local por pintura. Aquelas pinturas tinham a cal pigmentada como tinta e a sua diluição responsável pelo maior ou menor contraste da cor, ora muito saturada, ora muito suave. Não só a fachada, mas também os ornamentos e os enfeites, conhecidos por platibandas, eram pintados. Estas decorações muitas vezes com desenhos florais e/ou elementos vazados, que lembram os cobogós, elemento arquitetônico que facilita a passa-gem do ar e também da luz natural e artificial entre o exterior e interior de um ambiente, recebem uma cor diferente. A cor principal da fachada é associada às outras cores, sejam nos ornamentos, nas portas e nas janelas, como na Figura 2.

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Figura 1 ∙ Fotografia de Anna Mariani, Delmiro Gouveia/Alagoas (1985).Figura 2 ∙ Fotografia de Anna Mariani, Coração da Maria/Bahia (1979).

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A combinação entre as cores — duas ou mais matizes — revelam certa harmo-nia: azul/azul claro; rosa/marrom; rosa/amarelo; amarelo/branco; rosa/verde/branco; entre outros, são reunidos e marca uma identidade, certo temperamen-to familiar ou do chefe da família, um trabalho genuíno apesar de algumas refe-rências sociais e locais, e muitas vezes religiosas.

Contudo, o que é a cor para o nordeste brasileiro? Para o homem nordes-tino? O significado da cor, da pintura é consciente? São apenas questiona-mentos. Não existe uma resposta precisa, mas sabemos que a construção das fachadas destas casas com cores e detalhes específicos está no domínio do fenômeno cultural.

Na publicação de Pinturas e Platibandas (2010) de Anna Mariani, volume com cerca de 200 fotografias de habitações populares realizadas no período en-tre 1976 e 1995, confirmamos que a fatura da pintura tem a cor como elemento diferenciador. A arquitetura é vernacular e popular, e conta muitas vezes com a simples presença de uma porta e uma janela, quando não, se observam um elemento decorativo à luz da natureza — flores e folhas — ou a data da constru-ção. Contudo, é a cor que marca a diferença: a tonalidade forte acentua certo destaque com relação às outras casas; uma tonalidade mais suave expressa de-licadeza, o que também chama atenção através do tom pastel.

Nesta paisagem, um jogo competitivo marca a concorrência entre os habitan-tes locais: se internamente as casas são equivalentes quanto à arquitetura e, espe-cificamente, a divisão interna (quartos, sala, cozinha; o banheiro costumava estar fora da casa), externamente, a fachada marca o espaço público e nesta área todas as singularidades culturais são reveladas. Certa vez, uma moradora disse que ‘... não consigo entrar um ano sem pintar a fachada da minha casa...’. É como uma roupa nova, um vestido novo, como escreveu o cantor brasileiro Caetano Veloso (1942) no catálogo da exposição (Mariani, 2010), ‘... a cidade fica endomingada...’, com referência ao domingo quando as pessoas vestem roupas novas, se arrumam para sair. Nestas ocasiões, geralmente festas religiosas, as casas e suas fachadas expressam a felicidade dos seus moradores. A fachada acaba por determinar a relação que o morador deseja estabelecer com o visitante externo.

O estudioso suíço Johannes Itten (1888/1967) escreveu que ‘cada um tem sua própria concepção de harmonia cromática’ (Barros, 2006: 78). Sendo as-sim, o gosto e o temperamento são duas características relevantes para enten-der a cor e seus usos nas fachadas das casinhas. Além do elemento arquitetô-nico, já escrito, a cor e sua combinação revelam certa dinâmica, uma vez que a escolha pode mudar de um ano para outro, a cor da pintura não permanece eternamente, a exceção de alguns casos, mas até mesmo o tempo — o desgaste — dá conta do esmaecimento da cor, o que acaba por transformá-la em outra

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Figura 3 ∙ Fotografia de Anna Mariani, Ingá/Paraíba, a casinha azul é de 1985 e a casinha amarela é de 1987. Figura 4 ∙ Fotografia de Anna Mariani, Serra Talhada/Pernambuco (1982).

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matiz, conseqüentemente, apontando para outra percepção visual e, portanto, cultural, como na Figura 3.

A cor é um fenômeno físico porque depende da luz para existir, como en-fatizou o cientista inglês Issac Newton (1643/1727), contudo não é só isso, é percepção visual também — os olhos e o sistema cerebral são os aparelhos da visão e da interpretação da cor — e tal percepção está no universo da cultura, portanto cor pode ser tratada como uma manifestação cultural. Se a cultura é a ferramenta que orienta o homem, a percepção da cor, não está só no plano fisio-lógico da visão, mas também está para a associação psicológica da percepção visual, somadas às suas qualidades estéticas, como tratou o estudioso alemão Johann Woefgang von Goethe (1749/1832) em Doutrina das Cores (1810).

Goethe apresentou uma visão mais ampla e livre acerca da percepção visual e, também, da cor, uma vez que reconhecia o elemento subjetivo no processo de criação poética, e de reconhecimento e combinação da cor.

Em última análise, a cor é um fenômeno fascinante que desperta sensações, interesses e deslumbramentos, como salientou Barros (2006). Neste percurso, o elemento subjetivo deve ser considerado no processo de significação cromá-tica, pois no trabalho criativo a intuição é um instrumental quando do trabalho com cor e cores.

Considerações FinaisA análise aqui desenvolvida não pretende uma perspectiva redutora. Não está somente para a Antropologia que estuda a cultura como fator preponderante para a compreensão da natureza humana. Como somente para questões rela-cionadas à beleza, à estética e/ou técnicas da fotografia. Contudo, nossa pers-pectiva é tentar trazer à luz a cor como característica importante e de destaque na região nordestina brasileira, como na Figura 4.

A cor nas fachadas é tratada como pintura pelos próprios habitantes. A pin-tura já esteve somente sobre a tela, mas agora no cenário contemporâneo a pin-tura é reconhecida em perspectiva expandida: na parede, no mural, no chão, na fachada. Todas são pinturas. O que querem dizer?

As casinhas nordestinas e, especificamente, suas fachadas com suas cores e ornamentos funcionam como cartão de visita, um convite, ao menos, para obser-var a casa. Neste raciocínio, a cor representa também um fator de sociabilidade — contempla uma dinâmica social — uma interação entre os locais e os estrangeiros.

O artista escocês David Batchelor (1955), em palestra recente em São Pau-lo (agosto de 2013), afirmou que ‘a cor nos expõe ao mundo’. Nesta perspecti-va, as casinhas coloridas revelam certa percepção dos moradores das cidades registradas por Anna Mariani sobre o mundo. Não existe um padrão único,

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apesar da semelhança entre as pinturas; as casas contam muitas vezes com uma porta e no máximo duas janelas, e com alguns ornamentos simétricos, geométricos, florais. Contudo, quase sempre as portas e as janelas estão fecha-das. Por quê? Tal característica também foi observada em outras regiões de cli-ma muito quente. Será a temperatura um fator determinante?

As pessoas não estão presentes nas fotografias de Mariani, entretanto elas estão lá, são representadas através das cores: fortes, suaves, contrastadas, vi-vas, desgastadas, saturadas, como se fossem obras minimalistas. Mas tal refe-rência — Minimalismo — é outra conversa, outro artigo.

A fotógrafa/artista Anna Mariani inseriu definitivamente a paisagem cons-truída das fachadas coloridas das casinhas nordestinas no contexto imagético da Fotografia Brasileira — como documento iconográfico e expressão cultural —, e acabou por enfatizar a poética visual popular que por muito tempo fora ignorada.

Referências Barros, Lilian Ried Miller (2006) A cor no

processo criativo: um estudo sobre a Bauhaus e a teoria de Goethe. São Paulo: Editora Senac São Paulo. ISBN: 978-85-7359-877-3.

Batchelor, David (2001) Minimalismo; tradução de Célia Euvaldo. São Paulo:

Cosac Naify Edições. ISBN: 85-86374-28-8.Cauquelin, Anne (2007) A invenção

da paisagem. Tradução de Marcos Marcionilo. São Paulo: Martins.

(Coleção Todas as Artes). ISBN: 978-85-99102-53-4.Fortes, Hugo (2009) “Natureza e artificialidade

nas paisagens aquáticas contemporâneas”. In: Poéticas da Natureza. São Paulo: PGEHA/Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. ISBN: 978-85-7229-637-1.

Mariani, Anna (2010) Pinturas e Platibandas. São Paulo: Instituto Moreira Salles. ISBN: 978-85-86707-48-3.

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