análise do escopo de práticas dos médicos na estratégia

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Roberto Ribeiro Maranhão Análise do escopo de práticas dos médicos na estratégia saúde da família em Fortaleza Ceará Eusébio 2019

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A sample article titleRoberto Ribeiro Maranhão
Análise do escopo de práticas dos médicos na estratégia saúde da família em
Fortaleza – Ceará
Roberto Ribeiro Maranhão
Análise do escopo de práticas dos médicos na estratégia saúde da família em
Fortaleza – Ceará
Profissional em Saúde da Família –
PROFSAÚDE e apresentada ao Programa de
Pós-graduação em rede Saúde da Família, na
Fundação Oswaldo Cruz como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em Saúde
da Família. Área de concentração: Saúde da
Família. Programa proposto pela Associação
Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO),
com a coordenação acadêmica da Fundação
Oswaldo Cruz e integrado por instituições de
ensino superior associadas em uma Rede
Nacional.
Holanda Cunha Barreto
Eusébio
2019
Título do trabalho em inglês: Analysis of scope of practice of medical professionals in the
family health strategy in Fortaleza - Ceará
Catalogação na fonte
Fundação Oswaldo Cruz
Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde
Biblioteca de Saúde Pública
M311a Maranhão, Roberto Ribeiro.
Análise do escopo de práticas dos médicos na estratégia saúde da
família em Fortaleza – Ceará / Roberto Ribeiro Maranhão. -- 2019.
97 f. : il. color.
Orientadora: Prof.a Dra. Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto Dissertação (Mestrado Profissional em Saúde da Família -
PROFSAÚDE) – Fundação Oswaldo Cruz, Eusébio, CE, 2019.
Programa proposto pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva
1. Estratégia Saúde da Família. 2. Atenção Primária à Saúde. 3.
Medicina de Família e Comunidade. 4. Recursos Humanos. 5. Escopo
de Prática. I. Título.
CDD 23o ed. 362.12098131
Roberto Ribeiro Maranhão
Análise do escopo de práticas dos médicos na estratégia saúde da família em Fortaleza –
Ceará
em rede Saúde da Família, da Escola Nacional de Saúde
Pública, na Fundação Oswaldo Cruz, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em Saúde da
Família. Área de concentração: Saúde da Família.
Aprovada em: 26 de junho de 2019
Banca Examinadora
Fundação Oswaldo Cruz - Ceará
Fundação Oswaldo Cruz - Ceará
Centro Universitário Christus - Ceará
Centro Universitário 7 de Setembro
Eusébio
2019
pobre e excluída de meu país. Que a ciência
possa hoje, mais do que nunca, trazer o fim
das desigualdades. Em específico a minha
família, por todo apoio. Em especial a minha
esposa Adélia pelas noites em claro
compartilhadas, a minha filha Lara pela
energia renovada com sua chegada, a minha
mãe Ana Carmem por ser incondicional e a
minha orientadora Ivana por guiar meus
passos em trilhas, jamais em trilhos.
AGRADECIMENTOS
O Mestrado Profissional em Saúde da Família (PROFSAUDE) não é um início e nem
muito menos um fim. A caminhada dos que abriram os olhos e decidiram enxergar as mazelas
humanas é cheia de tristeza e sofrimento. A luta, portanto, para que tenhamos um mundo mais
igual pode ser produto de egoísmo. Não se ver inundado por tudo aquilo que transborda das
periferias das grandes cidades ou que se esconde nas entranhas dos sertões. Viver em um mundo
sem miséria, sem pobreza, seria então a saída para o que decidi enxergar? Não me resta dúvida
que isto é algo capaz de motivar a natureza humana. Mas seria ela impura em sua essência?
A meu lado, vejo pessoas cegas (por opção?). Conversar tem-se tornado um ato cada
vez mais difícil. Por vezes a incompreensão, por vezes o desinteresse, por vezes até o asco. Mas
algumas vezes, há quem se deixe enxergar, que se permite escutar, que se arrisque tentar
entender. Mas então o que oferecer a quem aceite trilhar o caminho mais obscuro? Tristeza?
Sofrimento?
A caminhada até aqui me faz sentir que não seremos felizes. Não nesta vida. Se a
felicidade é um bem coletivo, e se ser feliz é condição que depende da felicidade alheia... não
seremos felizes. Mas então o que dizer dos que semeiam a desgraça e colhem para si a falsa
felicidade das coisas? Estes sim, os verdadeiros egoístas.
Quero compartilhar e agradecer às mãos dadas da caminhada, que não se faz sozinha.
Agradecer aos que abrem os olhos e decidem enxergar, mesmo sabendo que distante e
inalcançável estará a felicidade. A sua busca não será em vão. Poderemos senti-la a cada nova
conquista por nosso tão sonhado mundo. Passaremos deste mundo sem jamais ter sabido o que
é ser plenamente feliz, mas com a certeza que lutamos para que não apenas nós, mas todos
possam um dia serem plenos e felizes. E se uma vida de dificuldades pode nos fazer pensar que
essa vida foi de tristeza e sofrimento, lembremo-nos que verdadeira felicidade de viver está em
fazer felizes aqueles que amamos.
Meu eterno amor e gratidão a minha esposa Adélia, minha filha Lara, meus pais, minha
família, aos muitos amigos e amigas que seguem firmes na caminhada. Perdoem-me se, por
vezes, possa eu não me dedicar a cada um como merecem. Perdoem-me se, por vezes, eu seja
furtado pela “luz”, seja furtado pela “dor”, que um dia há de ter fim. Por fim a toda equipe do
PROFSAUDE Ceará e a todos no Rio que fizeram deste Mestrado uma caminhada de grande
aprendizado, companheirismo e luta. Que os laços aqui formados sejam eternos nas linhas da
ciência e nas construções de uma sociedade para todos com dignidade.
“A luz que me abriu os olhos
para a dor dos deserdados
e os feridos de injustiça,
não me permite fechá-los
nunca mais, enquanto viva.
ainda que o medo costure
os meus olhos, já não posso
deixar de ver: a verdade
me tocou, com sua lâmina
de amor, o centro do ser.
Não se trata de escolher
entre cegueira e traição.
ou dizer da dor que vejo
para ajudá-la a ter fim,
já faz tempo que escolhi.”
Thiago de Mello - Já faz tempo que escolhi
Rio de Janeiro, 1981
Introdução: Partindo-se da ideia de uma atuação multiprofissional e interdisciplinar
capaz de ampliar os escopos de prática de profissionais da saúde, o conceito da Estratégia de
Saúde da Família (ESF) ganha destaque. Após mais de duas décadas de implantação da ESF, a
complexificação do quadro epidemiológico da população brasileira trouxe novos e numerosos
desafios à equipe de saúde da família. A fim de resgatar a premissa, que incumbe a Atenção
Primária à Saúde (APS) a resolução de 80% dos problemas de saúde da população, há que se
propor novos avanços na forma de atuação representada pela ESF. É fato que houve uma
estagnação da cobertura da ESF provocada pelas limitações na fixação de profissionais médicos
e pela própria escassez destes. Há, contudo, que se pensar também na qualidade da assistência
prestada de acordo com as capacidades de atuação de cada categoria componente da APS. É
neste âmbito que se insere a discussão do escopo de prática. Objetivo: Analisar o escopo de
prática dos médicos atuantes na Estratégia Saúde da Família da cidade de Fortaleza no Ceará e
suas relações com a formação e titulação em medicina de família e comunidade. Métodos: O
estudo é do tipo inquérito quantitativo transversal. De abril a novembro de 2018 foi aplicado
um formulário semiestruturado em um total de 263 médicos, componentes de amostra
representativa do total de médicos atuantes na ESF de Fortaleza/CE, contendo 54 atribuições
dentre ações, atividades e procedimentos específicos da profissão médica, e comuns dos
profissionais da ESF. Ademais foram investigados fatores relacionados a uma maior ou menor
abrangência do escopo de prática. Os dados foram analisados por meio do software SPSS versão
23. A normalidade das variáveis quantitativas foi verificada por meio do teste de Shapiro-Wilk.
Foram utilizados testes de Mann-Whitney e Kruskal-Wallis para comparação do número de
procedimentos realizados pelos profissionais e demais variáveis. Resultados: Destacou-se uma
maior abrangência de escopos de prática dentre os médicos com formação no exterior e aqueles
com formação específica na área de medicina de família e comunidade, sendo a dupla
qualificação da residência médica com a titulação o fator de maior impacto sobre o escopo de
prática dos médicos participantes. Problemas relacionados a infraestrutura foram apresentados
como destaque para a não realização de atribuições, principalmente as específicas. Além disso,
o fator disponibilidade de tempo e cobrança da gestão também foram elencados. No geral os
médicos declararam saber fazer um número de atividades, ações e procedimentos superior ao
que de fato realizavam. Conclusões: Existe uma lacuna em potencial para se ampliar o escopo
de prática dos médicos na ESF, perpassando desde investimentos estruturais e capacitações da
gestão, até uma formação específica voltada ao campo da medicina de família e comunidade.
Estas ações vislumbram potencializar ações mais resolutivas e ampliar a qualidade dos serviços
prestados na APS.
Primária à Saúde, Medicina de Família e Comunidade.
ABSTRACT
Introduction: Based on the idea of a multidisciplinary and interdisciplinary action capable of
expanding the scopes of practice of health professionals, the concept of the Family Health
Strategy (FHS) is highlighted. After more than two decades of FHS implantation, the
complexification of the epidemiological picture of the Brazilian population has brought new
and numerous challenges to the family health team. In order to rescue the premise, that incurs
Primary Health Care (PHC) to the resolution of 80% of the population's health problems, it is
necessary to propose new advances in the form of action represented by the FHS. It is a fact
that there was a stagnation of the FHS coverage caused by the limitations in the fixation of
medical professionals and their own shortage. However, there is also a need to think about the
quality of care provided according to the capacity of each category of PHC. It is within this
scope that the discussion of the scope of practice is inserted. Objectives: Analyze the scope of
physicians' practices in the Family Health Strategy of the city of Fortaleza in Ceará and its
relationship with training and qualification in family and community medicine. Method: It is a
cross-sectional quantitative survey type of study. From April to November 2018, a semi
structured form was applied to a total of 263 physicians, components of the total number of
physicians working at the FHS in Fortaleza/CE, containing 54 attributions among actions,
activities and procedures specific to the medical profession, and common to the FHS
professionals. In addition, we investigated factors related to a greater or lesser extent of the
scope of practice. The data were analyzed using SPSS software version 23. The quantitative
variables were normalized using the Shapiro-Wilk test. Mann-Whitney and Kruskal-Wallis
tests were used to compare the number of procedures performed by professionals and other
variables. Results: It was highlighted a wider range of scopes of practice among physicians
with training abroad and those with specific training in the area of family and community
medicine, and the dual qualification of medical residency with title degree was the factor with
the greatest impact on the scope of practice of participating physicians. Problems related to
infrastructure were presented as a highlight for not performing attributions, especially the
specific ones. In addition, the factor availability of time and management charging were also
listed. In general, doctors declared that they know how to do a greater number of activities,
actions, and procedures than they actually did. Conclusions: There is, therefore, a potential gap
to expand the scope of practice of physicians, ranging from structural investments and
management training, to specific degree in the field of family and community medicine. These
actions seek to strengthen more resolutive actions and increase the quality of services provided
in PHC.
Care, Family Practice.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Quadro 1 - Conceitos para Atenção Primária à Saúde.............................................. 16
Quadro 2 - Comparação da PNAB 2012 à PNAB 2017 com relação as atribuições
do médico da equipe de saúde da família...............................................
23
Quadro 3 - Conceitos para Atenção Primária à Saúde.............................................. 35
Quadro 4 - Quantitativo de Médicos para cálculo da amostra da pesquisa. Segunda
e terceira listagens, Consolidado Geral e MM, respectivamente............
38
Quadro 5 - Distribuição da população de médicos e descritivo de entrevistas e
perdas no processo da pesquisa. N1 - Quantitativo inicial da população
conforme consta no quadro 4, retirados os 2 pesquisadores...................
42
Quadro 6 - Quantitativo de profissionais a serem entrevistados na pesquisa após
correção da população ............................................................................
43
Quadro 7 - Distribuição dos médicos da ESF de Fortaleza segundo coordenadoria
regional de saúde (CORES) e por vínculo de trabalho. Dados finais. N1
- Quantitativo inicial da população conforme consta no quadro 6,
retirados os 2 pesquisadores. Rel. E/N1(%) – Porcentagem de
entrevistados do N1..................................................................................
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Perfil sociodemográfico e de formação, de tempo de trabalho e regional
de trabalho de médicos da estratégia saúde da família. Fortaleza, 2018.
N = 263.......................................................................................................
47
Tabela 2 - Distribuição de procedimentos, atividades e ações de saúde comuns aos
profissionais da Estratégia Saúde da Família (ESF), realizados pelos
médicos da ESF. Fortaleza, 2018. N=263..................................................
48
Tabela 3 - Distribuição de procedimentos, atividades e ações de saúde específicos
da profissão médica, realizados pelos médicos da ESF. Fortaleza, 2018.
N=263.........................................................................................................
49
Tabela 4 - Situações apontadas pelos médicos como motivos para não realizar
procedimentos e ações comuns aos profissionais da estratégia saúde da
família que sabem fazer. Fortaleza, 2018. N=263......................................
50
Tabela 5 - Situações apontadas pelos médicos como motivos para não realizar
procedimentos, atividades e ações de saúde específicos da profissão
médica que sabem fazer. Fortaleza, 2018. N=263......................................
51
Tabela 6 - Caracterização das visitas domiciliares realizadas pelos médicos da ESF.
Fortaleza, 2018. N=263..............................................................................
51
Tabela 7 - Caracterização das atividades de prevenção ao câncer de colo uterino e
de mama realizadas pelos médicos da ESF. Fortaleza, 2018. N=263........
52
Tabela 8 - Caracterização das ações em saúde mental realizadas pelos médicos da
ESF. Fortaleza, 2018. N=263.....................................................................
53
Tabela 9 - Utilização de protocolos para atendimentos pelos médicos da ESF.
Fortaleza, 2018. N=263..............................................................................
Tabela 10 - Características de encaminhamentos para outros pontos de atenção
realizados pelos médicos na ESF e continuidade do cuidado dos
usuários. Fortaleza, 2018. N=263..............................................................
Tabela 11 - Características de acompanhamento de pessoas em internação domiciliar
realizados pelos médicos na ESF. Fortaleza, 2018. N=263.......................
56
Distribuição de procedimentos, atividades e ações de saúde comuns aos
profissionais da Estratégia Saúde da Família (ESF), realizados pelos
médicos da ESF, e de procedimentos, atividades e ações de saúde que os
médicos sabem fazer, segundo características sociodemográficas, de
formação, de tempo de trabalho e regional de trabalho de médicos da
estratégia saúde da família. Fortaleza, 2018. N=263.................................
58
da profissão médica, realizados pelos médicos da ESF, e de
procedimentos, atividades e ações de saúde que os médicos sabem fazer,
segundo características sociodemográficas, de formação, de tempo de
trabalho e regional de trabalho de médicos da estratégia saúde da família
Fortaleza, 2018. N=263.............................................................................
Distribuição de procedimentos, atividades e ações de saúde comuns aos
profissionais da Estratégia Saúde da Família (ESF), realizados pelos
médicos da ESF, segundo principal forma de aprendizado. Fortaleza,
2018. N=263..............................................................................................
principal forma de aprendizado. Fortaleza, 2018. N=263.........................
64
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................... 11
12
1.1.2 Materialização da Atenção Primária no Brasil............................................. 14
1.1.3 Caminhos ao cenário atual dialogando com a Atenção Primária à Saúde
Abrangente de Alma-Ata...............................................................................
1.3 POLÍTICA NACIONAL DA ATENÇÃO BÁSICA..................................... 21
1.4 FORMAÇÃO MÉDICA NO BRASIL.......................................................... 24
COMUNIDADE E SEU ESCOPO DE PRÁTICA........................................
25
2 JUSTIFICATIVA........................................................................................ 29
3 OBJETIVOS................................................................................................ 32
VARIÁVEIS...................................................................................................
34
4.2.3 Variáveis analisadas no estudo...................................................................... 36
4.3.1 Cenário inicial da população de médicos e médicas de Fortaleza.................. 36
4.3.2 Primeira etapa do cálculo amostral e definição dos participantes.................. 37
4.3.3 Por que se optou pela estratificação dos participantes por vínculos?............. 39
4.3.4 Cálculo amostral e número de entrevistas...................................................... 40
4.3.5 Critérios de inclusão e exclusão..................................................................... 40
4.3.6 Coleta de dados.............................................................................................. 41
4.3.8 Distribuição dentro das coordenadorias regionais de saúde........................... 43
4.4 ANÁLISE DOS DADOS............................................................................... 44
5 RESULTADOS............................................................................................. 46
PRÁTICA........................................................................................................
46
PARTICIPANTES..........................................................................................
56
6 DISCUSSÃO.................................................................................................. 66
CAPACITAÇÃO............................................................................................
70
7 CONCLUSÕES............................................................................................. 73
Apêndice 2 - Instrumento de coleta de dados................................................. 84
12
Esta dissertação trará inicialmente os elementos intrínsecos do trabalho na Atenção
Primária. É importante ao leitor entender que o conceito sobre escopo de prática, que é o cerne
desta obra, não é algo propriamente novo, mas inovador quando abordado dentro da concepção
de reestruturação ou releitura do modelo que guia a atuação profissional brasileira: a Estratégia
Saúde da Família.
Existe uma relação direta entre a qualidade dos serviços de saúde, desde o aspecto da
saúde pública até o atendimento médico-paciente, e o escopo de prática dos médicos que atuam
na Atenção Primária. Esta relação pode ainda não estar bem caracterizada, uma vez que os
estudos neste tema ainda são recentes, e, considerando o cenário brasileiro, são também
escassos. Também há que se considerar o cenário da intersetorialidade como potente campo de
fortalecimento da atenção à saúde. Contudo, as barreiras da regulação profissional
historicamente apresentadas necessitam ser superadas para que a atenção primária abrangente
possa ser o foco almejado pelos profissionais.
Manter o curso para a consolidação da Atenção Primária no Brasil é uma tarefa árdua e com
inúmeras barreiras. É preciso dispor do maior número de ferramentas possíveis. Países com sistemas de
saúde mais consolidados e uma Atenção Primária forte apontam o escopo de práticas como novo campo
a ser abordado. Estudos que visem analisar o escopo de práticas de profissionais da saúde podem,
portanto, trazer opções para diversos campos das políticas públicas. O presente estudo traz elementos
que devem dialogar com a perspectiva da análise do escopo de prática.
1.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A ESTRATÉGIA DE SAÚDE DA FAMÍLIA E A
ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE
1.1.1 Estratégia Saúde da Família e seus marcos
A Estratégia Saúde da Família (ESF) assume papel central na história da reforma do
modelo de assistência brasileiro, uma vez que é capaz de dialogar com os princípios e objetivos
do Sistema Único de Saúde (SUS), contrapondo-se ao modelo tradicional baseado na doença
(VIANA e DAL POZ, 1998; ANDRADE et al, 2017). Segundo Viana e Dal Poz (1998),
somente a partir de fevereiro de 1996 é que o então Programa de Saúde da Família (PSF) é
definido como uma estratégia nos termos da Norma Operacional Básica (NOB) 96, que
estabelece incentivos através de acréscimos financeiros aos repasses estabelecidos pelo Piso da
Atenção Básica (PAB) (BRASIL, 1996).
13
O percurso histórico que legitima a ESF só foi possível por conta de experiências de
sucesso como o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) que teve início em 1991
e se estabeleceu principalmente nas regiões Norte e Nordeste. Foi a percepção do Ministério da
Saúde em "identificar os agentes como peça importante na organização do serviço básico de
saúde no município" que permitiu que o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS)
transcendesse dos objetivos para os quais havia sido formulado de redução das mortalidades
materna e infantil (VIANA e DAL POZ, 1998).
Destaque-se ainda o papel de três atores que foram centrais no processo de
consolidação do PSF:
(...) gestores locais (secretários municipais e técnicos do sistema
local), com técnicos externos à área da saúde (como os técnicos do
Comunidade Solidária e de organismos internacionais, como o UNICEF, e de
países que desenvolvem práticas de saúde da família, como Canadá e Cuba),
e com as associações da comunidade. (...) Essa nova tríade de apoio político
ao programa, formada a partir da formulação do PSF, tem ainda, na atuação
dos Conselhos Municipais de Saúde, um canal importante de expressão, pois
o conselho reforça a tríade e o programa reafirma o espaço de autonomia do
conselho (VIANA e DAL POZ, 1998, p. 26-27).
Ainda segundo o mesmo artigo, que teve como objetivo avaliar o processo de
implementação do PSF, tomando como referência experiências de 7 municípios brasileiros e
mais um programa específico do município de São Paulo, o papel dos gestores somado ao apoio
da comunidade foram elementos de destaque para o sucesso do desenvolvimento do PSF, em
que o Nordeste se destacou, valorizando a importância do Ceará neste processo, por exemplo,
por meio das políticas estaduais de apoio aos municípios. (VIANA e DAL POZ, 1998)
O PSF e seus antecessores se constituíram como programas inovadores, sendo capazes
de superar a lógica dos programas verticais até então vigentes e que não eram capazes de
alavancar uma verdadeira reforma necessária para a evolução desejada com a criação do SUS.
Inovadores em todos os aspectos destacados por Viana e Dal Poz (1998) porque introduziram
novos "rostos" (os Agentes Comunitários de Saúde) e implementaram uma nova perspectiva na
assistência, não mais de uma atitude passiva frente ao adoecimento, mas de intervenções ativas
sobre o cotidiano de vida das pessoas, criando ainda uma nova forma de relacionamento com a
comunidade: o vínculo. (VIANA e DAL POZ, 1998)
Estruturalmente, o PSF foi capaz de induzir: a organização dos sistemas municipais de
saúde através dos pré-requisitos exigidos para implementação das equipes e repasse de recursos
14
(convênios); a descentralização por meio de exigência às determinações da NOB-93; e a
evolução nas formas de pagamento que passaram a contar com recursos baseados em critérios
populacionais e de abrangência das equipes do Programa, institucionalizados pela NOB-96.
(VIANA e DAL POZ, 1998; ANDRADE et al, 2017).
Toda a evolução histórica ocorrida, que permitiu ao Brasil consolidar o modelo da
ESF, deve ser reconhecida. Todavia, a forma como se entende a saúde e sua complexa dinâmica
em meio ao tecido social exige que o modelo de atenção esteja em constante mudança,
necessitando sempre ser avaliado e aprimorado.
1.1.2 Materialização da Atenção Primária no Brasil
A ESF é, portanto, uma evolução iniciada por meio de experiências municipais, e,
posteriormente, incorporada e capitaneada pelo Ministério da Saúde, voltada a fortalecer ações
de prevenção e promoção da saúde. Ela foi a etapa de consolidação mais recente do modelo de
Atenção Básica à Saúde (ABS) implementado no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
Dentre as etapas desse processo é necessário destacar: o Programa de Agentes Comunitários de
Saúde (PACS) de 1991 e seu aprimoramento em termos de competências desses profissionais.
Com uma área de atuação inicialmente restrita a regiões Norte e Nordeste e focada a pequenos
municípios, o PACS evoluiu se integrando ao sistema municipal de saúde até a implantação do
Programa de Saúde da Família (PSF) em dezembro de 1993 (SAMPAIO et al, 2012).
Partindo-se da ideia de uma atuação multiprofissional e interdisciplinar capaz de
ampliar os escopos de prática (GIRARDI et al, 2016) de profissionais da saúde, o conceito da
Estratégia de Saúde da Família (ESF) ganha destaque.
Políticas com foco no financiamento a fim de garantir a expansão do PSF propiciaram
a progressiva implementação da ESF como modelo de APS no Brasil. A formulação do Pacto
pela Saúde em 2006 trouxe o marco da Política Nacional da Atenção Básica (PNAB) e definiu
a ESF “como modelo de atenção básica à saúde e como centro ordenador das redes de atenção
à saúde do SUS” (BRASIL, 2006; SAMPAIO et al, 2012).
O que diferencia o modelo de APS no Brasil de outras experiências internacionais são
as características marcantes da ESF que se consolidaram historicamente. Segundo Kidd (2016),
no livro A Contribuição da Medicina de Família e Comunidade para os Sistemas de Saúde,
existem três características:
e suas populações, com a tarefa de identificar problemas operacionais,
organizacionais ou sociais de maneira adequada.
15
2. A presença de agentes comunitários de saúde.
3. A inclusão da saúde oral no sistema público de saúde (KIDD,
2016, p. 200).
1.1.3 Caminhos ao cenário atual dialogando com a Atenção Primária à Saúde Abrangente de
Alma-Ata.
Após mais de duas décadas de implantação da ESF, a complexificação do quadro
epidemiológico da população brasileira trouxe novos e numerosos desafios à equipe de saúde
da família. Mendes (2012) em seu livro “O Cuidado das Condições Crônicas na Atenção
Primária à Saúde: o Imperativo da Consolidação da Estratégia da Saúde da Família”,
contextualiza a evolução de um cenário que já estava vislumbrado na década de 90 denominado
de "crise da saúde". Viana e Dal Poz (1998) fazem o destaque para a complexidade que estavam
sujeitos os países periféricos como o Brasil, que além do processo de transição epidemiológica
de emergência de doenças não infecciosas, ainda persistiria em uma agenda não resolvida de
agravos relacionados à macro componentes sociais (saneamento básico, distribuição de renda,
dentre outros), e somar-se-iam o crescimento das causas externas - Tripla Carga de Doenças
(VIANA e DAL POZ, 1998; MENDES, 2012). Considerando a existência de um cenário
epidemiológico complexo, Pontes e cols. falam de uma superposição de agendas sanitárias
afetando o cenário de assistência de saúde, a ponto de gerar falhas em diversos componentes
no processo de atenção (PONTES et al. 2009).
Observa-se não existir uma transição propriamente dita dos contextos epidemiológicos ao longo
do tempo, mas sim uma superposição deles, o que traz como desafios para a saúde pública tanto doenças
infecciosas e parasitárias quanto as crônico-degenerativas e outros agravos não-infecciosos. Nessa
perspectiva, esse processo não apresenta uma resolução clara, trazendo situações em que o perfil de
morbimortalidade se mantém característico de distintos padrões, produtos das desigualdades, o que
configura, portanto, uma “transição prolongada” ou polarizada.
Estas análises do processo de transição epidemiológica trazem à tona a necessidade de
se refletir conceitualmente e historicamente a Atenção Primária no Brasil. Todo o processo
histórico desenvolvido nas últimas duas décadas teve impactos importantes na saúde do país
com redução de indicadores usados como referência internacional para avaliação da qualidade
da assistência (SAMPAIO et al, 2012), porém não se pode negar que estes impactos dialogam
muito mais com o conceito de atenção primária à saúde (APS) focalizada e restritiva do que
com conceito de APS abrangente e compreensiva da Conferência de Alma-Ata (STARFIELD,
2002; ANDRADE, 2006; GIOVANELLA e MENDONÇA, 2012).
16
A análise dos dois conceitos se faz necessária e é importante que seja resgatada dentro
desta dissertação. Na publicação de 2006 de Andrade e colaboradores, há o resgate da
classificação feita por Vuori em 1985 sobre os enfoques da Atenção Primária. Esta classificação
é trabalhada por outros autores e dela se destacam dois conceitos sintetizados no quadro 1.
Quadro 1 – Conceitos para Atenção Primária à Saúde.
Enfoque Conceito Ênfase
materno-infantil, as ações mais comuns são: monitoramento
de crescimento infantil, reidratação oral, amamentação e
imunização e, por vezes, complementação alimentar,
planejamento familiar e alfabetização de mulheres.
Conjunto
participação social.
acessibilidade e cobertura universais com base nas
necessidades, participação comunitária, emancipação, ação
intersetorial, tecnologias apropriadas e uso eficiente dos
recursos.
Fontes: ANDRADE (2006); GIOVANELLA; MENDONÇA (2012).
O emprego dos termos “Atenção Primária” e “Atenção Básica” até então feito nesta
dissertação foi com intuito de preservar as referências dos autores estudados. Todavia,
conforme destaca Giovanella e Mendonça (2012), há uma diferenciação nos termos:
A preferência pelo termo ‘atenção básica’ no Brasil durante a implementação do SUS,
(...), pode ser atribuída ao contexto histórico internacional de difusão das propostas de
ajuste fiscal do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial nos países
latino-americanos, com forte ênfase para programas de APS seletivos e focalizados,
contrários aos princípios de universalidade e integralidade do SUS. Assim,
gradativamente, o termo APS foi substituído por ‘atenção básica à saúde’. (...)
No final da primeira década do século XXI, a Política Nacional de Atenção Básica
ampliou o escopo e a concepção da atenção primária brasileira, incorporando os
atributos da atenção primária à saúde abrangente (GIOVANELLA e MENDONÇA,
2012, p. 538).
Desta forma, o termo Atenção Primária à Saúde será usado como referência aqui para
se correlacionar especificamente ao conceito de APS abrangente a luz dos preceitos
estabelecidos em Alma-Ata. Isto tende a corroborar com a análise de que o processo de reforma
do sistema de saúde, iniciado com o PACS, permanece à medida em que também é mantida a
17
contínua mudança nos modos de vida da sociedade, tornando um imperativo que a APS no
Brasil e a ESF superem antigos desafios e possam encarar novas demandas do contexto de
saúde do país (PONTES et al. 2009; PINTO et al, 2014).
A fim de resgatar a premissa que incumbe à APS a resolução de 80% dos problemas
de saúde da população (STARFIELD, 2002), há que se propor novos avanços na forma de
atuação representada pela ESF. É fato que houve uma estagnação da cobertura da ESF
provocada pelas limitações na fixação de profissionais médicos e pela própria escassez destes
(PINTO et al, 2014). Há, contudo, que se pensar também na qualidade da assistência prestada
de acordo com as capacidades de atuação de cada categoria componente da APS. É neste âmbito
que se insere a discussão do escopo de prática (GIRARDI et al, 2016).
1.2 ESCOPO DE PRÁTICAS DOS MÉDICOS DA ESF
1.2.1 Uma nova ferramenta para análise do trabalho na APS
As políticas públicas de saúde no Brasil têm historicamente sido renovadas e
repensadas com intuito de aprimorar os processos de atenção e cuidado a população, contudo
não há uma linearidade nesta evolução. Dentro de uma análise do mais recente projeto de grande
impacto na saúde pública brasileira – Programa Mais Médicos para o Brasil (PMMB) (BRASIL,
2013b; SANTOS et al, 2017) – Pinto e colaboradores trazem o contexto de que antes da
implementação do projeto a cobertura da ESF no Brasil vinha aumentando na ordem de apenas
1,5% ao ano (PINTO et al, 2014). Esta análise traz um cenário numérico já preocupante, uma
vez que a carência na cobertura traz inúmeras dificuldades para que se constitua qualquer tipo
de cuidado nos moldes da APS (STARFIELD, 2015). Contudo, há também que se considerar
como o trabalho dos profissionais é feito, se atende as demandas da sociedade, sejam elas dentro
de um contexto institucional através de políticas como a Política Nacional da Atenção Básica
(PNAB) ou mesmo através de mecanismos avaliadores.
No Brasil, a Estação de Pesquisa de Sinais de Mercado (EPSM) que integra o Núcleo
de Educação em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas
Gerais (NESCON – FM/UFMG), realiza, desde 1999, monitoramento dos sinais de mercado de
trabalho em saúde e o desenvolvimento de metodologias de pesquisa e avaliação na área de
recursos humanos em saúde. Em trabalho recente de 2016, o grupo coordenado por Girardi
publicou um artigo intitulado “Avaliação do escopo de prática de médicos participantes do
Programa Mais Médicos e fatores associados” (GIRARDI et al 2016). O conteúdo deste
trabalho traz por objetivo “caracterizar o escopo de prática de médicos inseridos na Atenção
18
Primária em Saúde (APS), participantes do Programa Mais Médicos para o Brasil (PMMB) e
investigar os fatores associados à execução de maior número de atividades clínicas”, e
representa o único trabalho brasileiro na área quando usada a Biblioteca Virtual em Saúde
(BVS) como mecanismo de busca.
No artigo há uma definição de escopo de prática como sendo “o conjunto de atividades,
funções e ações que um profissional pode exercer com segurança, segundo sua formação,
treinamento e competência profissional”. Este conceito é trazido da literatura internacional
levantada pelo grupo de pesquisa da EPSM e outros colaboradores, o que aponta um novo passo
dentro do processo de fortalecimento da Atenção Primária. Para esta dissertação, é
imprescindível a compreensão da dimensão do escopo de prática como ferramenta de análise
do trabalho dos profissionais de saúde. Todavia, neste trabalho, o foco será o profissional
médico atuante na ESF.
1.2.2 Conceitos internacionais de escopo de prática e sua importância
Em artigo publicado no Journal of the American Board of Family Medicine, Warren
Newton, MD, MPH (2011) expressa que o que se deve considerar com relação ao escopo da
prática dos médicos de família é saber exatamente o que fazem e como isso varia de acordo
com a região e com as características do médico, como a faixa etária e o sexo. Warren Newton,
MD, MPH é atualmente o presidente e CEO do American Board of Family Medicine e nesse
artigo de 2011 já destacava que aquilo que os médicos de família fazem é fundamental tanto
para a saúde pública como para a formação em Medicina de Família (NEWTON, 2011).
Nos Estados Unidos, o American Board of Family Medicine se utiliza de uma
certificação para os médicos de família que é feita através de estágios com intervalos de três
anos, nos quais algumas atividades são requeridas a fim de que o profissional se mantenha
atualizado com a demandas da Medicina de Família e ainda uma avaliação a cada dez anos.
Através desse processo de certificação é possível avaliar o escopo de prática dos médicos que
se sujeitam a certificação. Cabe destacar que esta certificação não é obrigatória e, portanto, nem
todos os médicos de família americanos se submetem a ela ou mesmo seguem as
recomendações de fazer as atividades de certificação anualmente (ABFM, 2019).
Uma publicação mais recente envolvendo o processo de certificação do American
Board of Family Medicine mostrou resultados que apontam que os médicos de família que
mantêm um escopo mais amplo de prática foram mais propensos a passar no exame de
certificação (the American Board of Family Medicine (ABFM) Maintenance of Certification for
Family Physicians (MC-FP)). Além disso, o estudo ainda propõe que um escopo de prática
19
mais amplo provavelmente produz benefícios externos. Na medida em que o médico de família
adquire mais conhecimento advindo da prestação de cuidados mais completos e desenvolve
relacionamentos mais duradouros com seus pacientes estará mais propenso a fornecer maior
qualidade de cuidado (PETERSON et al, 2015).
A conclusão acima do estudo de Peterson e Cols. aponta algo que os próprios autores
afirmam quando da discussão de seus resultados: se os médicos de família encolherem seu
escopo de prática poderão perder algo muito significativo de sua essência, ou como o próprio
autor chama seu “toque especial” (special sauce), em fornecer um cuidado abrangente
(comprehensiveness) necessário para promoção de uma atenção primária efetiva (HOLT, 2012;
PETERSON et al, 2015).
Os estudos americanos não são os únicos a levar em consideração o escopo de prática
como influenciador na qualidade do cuidado e, portanto, do fortalecimento da Atenção Primária
abrangente. Uma revisão canadense sobre escopo de prática de profissionais de saúde no país
traz a importância de haver uma permanente discussão sobre o tema, uma vez que avanços na
saúde e novas tecnologias requerem que os profissionais adquiram novas competências, assim
como se torna necessário repensar os limites de atuação de determinadas categorias
profissionais para que possam ocupar novos espaços de demanda dos serviços de saúde
(BARANEK, 2005). Um exemplo citado, que ilustra bem este cenário, é a atuação da
enfermagem na execução sigmoidoscopias, frente ao aumento na demanda de rastreamento de
câncer colorretal. Todavia o projeto que previa esta atuação da enfermagem, apesar da
segurança e efetividade, foi suspenso devido em parte a “incertezas na regulação e
responsabilidade profissional”.
A situação exposta por Baranek tem perfeito alinhamento ao contexto brasileiro e se
materializa na penosa lei do ato médico sancionada em 2013 após mais de 20 anos de tramitação
no congresso nacional e inúmeros enfrentamento judiciais com outras categorias da saúde
(GUIMARÃES e REGO, 2005; BRASIL, 2013a). Em análise prévia a sanção da lei feita por
Guimarães e Rego (2005), os autores expõem:
Encaminhando para uma articulação com os aspectos macroestruturais, vemos
que esta disputa tem-se revelado com um cerne voltado mais para o interesse
no monopólio econômico sobre as práticas profissionais do que para o
interesse das corporações profissionais em lutarem por uma participação na
construção de um projeto social global ou pela implementação de políticas de
saúde (apesar de as corporações centrarem seus discursos, de acordo com seus
20
interesses, sobre a atuação integral à saúde ou riscos a ela), de trabalho e de
formação profissional.
A realidade brasileira expõe uma situação preocupante que vai na contramão de países
que estudam formas de se ampliar o escopo de prática dos profissionais de saúde, visando
inclusive o compartilhamento de atividades que visem em última análise o benefício a saúde da
população. No Canadá, há o exemplo da definição do termo “relação colaborativa” que almeja
uma parceria entre médicos e enfermeiros “baseado no respeito e confiança mútua e no
entendimento das habilidades e conhecimentos de cada um” (BARANEK, 2005). Outros
autores citados por Girardi (2016) apresentam, na mesma linha de entendimento, o conceito de
task shifting, do qual se destaca um material da Organização Mundial da Saúde de 2007: Task
shifting to tackle health worker shortages ou na tradução direta Troca de tarefas (ou papéis)
para combater a escassez de trabalhadores de saúde, cujo foco se dá nos programas de
HIV/AIDS, tendo como meta “acesso universal a programas abrangentes de prevenção,
tratamento, cuidado e apoio” (OMS, 2007). O trabalho traz a realidade cruel de diversos países
no mundo com absoluta carência de profissionais que possam dar suporte a pessoas
contaminadas pelo vírus HIV e que necessitam de suporte e tratamento. Em algumas situações,
como em Malawi, existem distritos que não tem médico algum. Este cenário também não é tão
distante da realidade brasileira. Após a saída de inúmeros médicos cubanos do PMMB, algumas
regiões do país que até então estavam tendo assistência médica voltaram a uma situação de
completa escassez como publicado em matéria intitulada “Xingu sofre apagão médico e três
crianças indígenas morrem em 11 dias” (JUNQUEIRA, 2019). A matéria deixa evidente a
ligação direta observada entre a saída dos médicos do PMMB e o déficit na saúde para os povos
indígenas. Isto só corrobora com o déficit de profissionais e sua má distribuição no país
atestados por outros estudos (CAMPOS, 2009; EPSM, 2012) e que aparentemente foram
excluídos da agenda política brasileira.
O artigo de Pinto e colaboradores (2014) intitulado “O Programa Mais Médicos e o
fortalecimento da atenção básica” publicado na Revista do Centro Brasileiro de Estudos de
Saúde: Divulgação em Saúde para Debate de outubro de 2014, traz um apanhado do que foi o
PMMB dentro do contexto brasileiro de atenção a saúde e pode subsidiar o leitor a ter mais
informações sobre o assunto.
Segundo o material da OMS, task shifting é a nomenclatura usada para a delegação de
tarefas a trabalhadores de saúde menos especializados, quando apropriado. O documento traz o
relato do emprego desta ferramenta em Uganda onde havia uma proporção de um médico para
cada 22 mil habitantes. Enfermeiras foram capacitadas para conduzirem o tratamento
21
antirretroviral, enquanto trabalhadores comunitários assumiam funções de testagem rápida e
processos de educação em saúde (OMS, 2007). O trabalho não exclui, contudo, a necessidade
de formação e capacitação de novos profissionais, mencionando o alarmante número deficitário
de 4 milhões de trabalhadores no mundo.
É, portanto, indispensável que se entenda o trabalho de profissionais dentro de um
contexto Intersetorial, tanto dentro da área da saúde como com outras áreas envolvidas.
A ação intersetorial busca superar a fragmentação das políticas públicas e é
entendida como a interação entre diversos setores no planejamento, na
execução e no monitoramento de intervenções para enfrentar problemas
complexos e necessidades de grupos populacionais. Em saúde, a articulação
intersetorial é imprescindível para incidir sobre os determinantes sociais do
processo saúde-enfermidade e promover a saúde (GIOVANELLA e
MENDONÇA, 2012, p. 521).
A atuação em saúde é tão complexa quanto seu próprio conceito, se considerarmos seu
contexto ampliado (CECIM et al, 2005).
No nosso país, a Lei Orgânica da Saúde (Lei 8080), do ano de 1990, definiu
no Artigo 3º que a saúde tem como fatores determinantes e condicionantes,
entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente,
o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e
serviços essenciais. (BRASIL, 1999; CECIM et al, 2005, p. 34).
Na realidade do Brasil, ao mesmo tempo em que a saúde precisa avançar na articulação
com outras políticas públicas e agir nos determinantes sociais, também necessita melhorar sua
resolutividade.
1.3 POLÍTICA NACIONAL DA ATENÇÃO BÁSICA
Como esta pesquisa compõe um estudo maior, que será referenciado na etapa de
descrição do método, sua base conceitual inicialmente foi a PNAB de 2012. Contudo em vinte
e um de Setembro de 2017, foi aprovada a portaria número 2.436 pela Comissão Intergestores
Tripartite, determinando a revisão das diretrizes de organização da Atenção Básica. Assim
mesmo, em termos de atribuições específicas dos médicos, pouco se alterou do texto de 2012,
e em termos das responsabilidades das esferas de governo, também não houve alteração da
redação no que tange os estímulos destacados no parágrafo anterior. (BRASIL, 2017).
Como um dos marcos teóricos referenciais para esta pesquisa, a Política Nacional de
Atenção Básica de 2012 define atribuições para os profissionais que atuam no âmbito da
Atenção Básica através da ESF. Este documento teve sua primeira elaboração em 2006 e
22
compõe uma revisão de diretrizes e normas para a organização da ABS brasileira. Nele estão
contidos os princípios e diretrizes norteadores do processo de cuidado à saúde no SUS e o
detalhamento sobre como ABS se insere neste sistema, o organiza, coordena e estrutura. Além
disso, detalha os aspectos técnicos sobre o funcionamento e processo de trabalho que permitirá
alcançar cobertura equitativa de saúde a 100% da população brasileira (BRASIL, 2012;
ANDRADE et al, 2017).
É a partir deste contexto que a PNAB se destaca para ser uma referência ao escopo de
práticas dos profissionais que atuam na APS brasileira. O documento traz um campo para
definir as atribuições de cada profissional, dividindo estas entre comuns e específicas. Veja um
quadro nesta seção que detalha as atribuições específicas dos médicos.
Há que se destacar que a PNAB também aponta uma série de outras determinações
que garantem que de fato estas atribuições dos profissionais sejam factíveis, haja vista a
complexidade da atuação no cenário da APS. Por isso, este documento compõe referencial desta
pesquisa e é através dele que se traçou elementos do instrumento utilizado com os participantes.
A PNAB aponta, por exemplo, a necessidade de se valorizar os vínculos dos
profissionais com a garantia de direitos trabalhistas e previdenciários, além da implantação de
carreiras. É destaque também a preocupação com o processo de educação permanente, assim
como a articulação interministerial, visando mudanças curriculares nos cursos de graduação e
pós-graduação na área da saúde que contribuam para a melhor formação não apenas dos
profissionais, mas também dos gestores, a fim de que estes possam se aperfeiçoar para o
trabalho na APS. E como último destaque, o incentivo ao desenvolvimento de estudos e
pesquisas voltadas ao aperfeiçoamento e disseminação dos assuntos relevantes à APS.
(BRASIL, 2012).
Historicamente, um dos problemas relacionados a restrição do escopo de práticas dos
médicos na ESF é resultante da graduação, que concentra a maior parte de sua carga horária em
atividades teóricas sobre especialidades médicas, além de que os estágios práticos ocorrem
principalmente em hospitais ou outros serviços especializados, de forma que ao concluir o curso
os profissionais não estão preparados para atuar na atenção primária à saúde. (GOMES et al,
2012). Outras referências importantes para discutir o escopo de práticas dos médicos de família
e comunidade são as orientações das sociedades de medicina de família e da literatura
especializada. Discutiremos estes temas na próxima seção.
Abaixo segue o quadro 2, onde é apresentada uma comparação das atribuições
específicas dos médicos entre os documentos de 2012 e 2017.
23
Quadro 2 – Comparação da PNAB 2012 à PNAB 2017 com relação as atribuições do médico
da equipe de saúde da família.
PNAB 2012 PNAB 2017
indivíduos sob sua responsabilidade;
e famílias sob sua responsabilidade;
II - Realizar consultas clínicas, pequenos
procedimentos cirúrgicos, atividades em grupo
na Unidade Básica de Saúde (UBS) e, quando
indicado ou necessário, no domicílio e/ou nos
demais espaços comunitários (escolas,
procedimentos cirúrgicos, atividades em grupo na
UBS e, quando indicado ou necessário, no
domicílio e/ou nos demais espaços comunitários
(escolas, associações entre outros); em
conformidade com protocolos, diretrizes clínicas
e terapêuticas, bem como outras normativas
técnicas estabelecidas pelos gestores (federal,
estadual, municipal ou Distrito Federal),
observadas as disposições legais da profissão;
III - Realizar atividades programadas e
de atenção à demanda espontânea;
III - Realizar estratificação de risco e
elaborar plano de cuidados para as pessoas que
possuem condições crônicas no território, junto
aos demais membros da equipe;
IV - Encaminhar, quando necessário,
fluxos locais, mantendo sua responsabilidade
pelo acompanhamento do plano terapêutico do
usuário;
fluxos locais, mantendo sob sua responsabilidade
o acompanhamento do plano terapêutico
prescrito;
outros pontos de atenção, a necessidade de
internação hospitalar ou domiciliar, mantendo a
responsabilização pelo acompanhamento do
hospitalar ou domiciliar, mantendo a
responsabilização pelo acompanhamento da
atividades de Educação Permanente de todos os
membros da equipe; e
desenvolvidas pelos Agentes Comunitários de
Saúde (ACS) e Agentes de Combate a Endemias
(ACE) em conjunto com os outros membros da
equipe; e
funcionamento da UBS.
sejam de responsabilidade na sua área de atuação.
Fonte: elaborado pelo autor, com base no texto das PNABs 2012 e 2017 (BRASIL, 2012, p. 47) e (BRASIL, 2017).
1.4 FORMAÇÃO MÉDICA NO BRASIL
A PNAB aponta para mudanças curriculares nos cursos de graduação e pós-graduação
que contribuam para a formação de profissionais para o SUS. Nesta perspectiva, reformas têm
sido executadas em âmbito nacional com intuito de realinhar a formação em saúde. Destacam-
24
se os cursos de Medicina, cujas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) mais recentes, do ano
de 2014, estabelecem pontos específicos da formação no SUS e na APS.
Art 6 - II: Valorização da Vida, com a abordagem dos problemas
de saúde recorrentes na atenção básica, na urgência e na emergência, na
promoção da saúde e na prevenção de riscos e danos, visando à melhoria
dos indicadores de qualidade de vida, de morbidade e de mortalidade, por
um profissional médico generalista, propositivo e resolutivo;
Art 15 - II: estímulo à inserção de ações de promoção e educação
em saúde em todos os níveis de atenção, com ênfase na atenção básica,
voltadas às ações de cuidado com o corpo e a saúde;
Art 24 - § 3º O mínimo de 30% (trinta por cento) da carga horária
prevista para o internato médico da Graduação em Medicina será
desenvolvido na Atenção Básica e em Serviço de Urgência e Emergência
do SUS, respeitando-se o mínimo de dois anos deste internato.
§ 4º Nas atividades do regime de internato previsto no parágrafo
anterior e dedicadas à Atenção Básica e em Serviços de Urgência e
Emergência do SUS, deve predominar a carga horária dedicada aos
serviços de Atenção Básica sobre o que é ofertado nos serviços de Urgência
e Emergência. (BRASIL, 2014)
Contudo, processos anteriores de reformas curriculares já apontavam necessidades de
fortalecimento da formação voltada para a APS. Ainda assim, salvo algumas exceções, os
processos formativos ainda são centrados nos hospitais universitários e isso ainda se
correlaciona com o não reconhecimento da APS como um campo de ação abrangente e integral,
no qual se encontra uma imensa complexidade de situações em saúde e que representa a área
com maior diversidade de cenários capazes de formar um profissional qualificado (GOMES et
al, 2012; GIOVANELLA e MENDONÇA, 2012).
Segundo Gomes et al (2012), as mudanças realizadas em muitas Instituições de Ensino
Superior (IES) têm focado numa questão metodológica que não parece ser suficiente para
cumprir o papel de formação de profissionais que a sociedade necessita.
Experiências exitosas dialogam com a mudança na formação muito mais relacionada
a uma questão de mudança social – de natureza ético-política – entendida como uma
transformação radical da cultura do que uma questão de método (GOMES et al, 2012).
Não resta dúvida, contudo, que o cenário da Atenção Básica à Saúde (ABS) é
fundamental, não só à formação dos alunos, com cenários ampliados de clínica e saúde coletiva,
25
mas também como resposta à demanda social persistentemente vigente em nosso país.
(CAMPOS, 2007).
O artigo de autoria do Professor Gastão Wagner Campos (2007) estabelece processos
ainda atuais de reflexão necessários à prática do ensino na ABS, tais como à relação das IES
com os municípios para pactuação dos processos formativos (CAMPOS, 2007). Apesar da
ausência de referenciais indexados (não encontrados artigos nas bases BVS e Scielo), existem
experiências de escolas médicas que demonstram o sinergismo tanto para a formação
(graduação) quanto para à própria qualidade da assistência como o exemplo do campus de
formação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Uma prática deste cenário pode ser
observada em um vídeo elaborado com alunos na região e de outras do Brasil. (RIFF, 2016)
Cenários como o da escola de medicina de Caruaru são um reflexo de como se pode
investir em uma mudança ético-política referida por Gomes et al (2012) que dialogue com os
mecanismos adotados pelo estado de incentivo a formação médica no Brasil, tais como a Lei
dos Mais Médicos e as DCN (BRASIL, 2012; BRASIL, 2013b; ANDRADE et al, 2017).
A questão da formação representa foco significativo da pesquisa, uma vez que se
deseja inferir se há influência sobre o escopo de práticas a partir do tipo de formação específica
dos médicos que atuam na ESF.
1.5 COMPETÊNCIAS NECESSÁRIAS AOS MÉDICOS DE FAMÍLIA E COMUNIDADE E
SEU ESCOPO DE PRÁTICA
A APS tem por características ser resolutiva e representar o ponto de maior acesso ao
sistema de saúde. No caso do SUS, a ESF deve estar organizada a responder por 80% a 90%
dos problemas de saúde da população e para tal precisa de profissionais capazes de prover
cuidados em saúde de forma qualificada e abrangente (OPAS, 1978; STARFIELD, 2002;
CAMPOS et al, 2014; ANDRADE et al, 2017).
Michael Kidd (2016) traz em sua obra, na seção que trata do escopo da medicina de
família, uma descrição do trabalho do médico Ian Couper em uma província na África do Sul.
O cenário descrito é de uma região com cerca de 100.000 habitantes, cujos cuidados de saúde
são providos por uma equipe multiprofissional com médicos de família sob a coordenação do
Dr. Couper. Destaca-se que a região é dotada de um hospital, nove consultórios fixos e três
consultórios móveis, e que serviços médicos especializados estão distantes 300 km do local. O
perfil de atendimentos providos são amplos e demonstram a flexibilidade do escopo da
medicina de família que vai desde a atenção assistencial de recém-nascidos crianças e idosos,
até o cuidado integral a famílias com ações intersetoriais, aconselhamento para questões de
26
prevenção e promoção de saúde e cuidados paliativos (KIDD, 2016, p. 53 – Quadro "O trabalho
de um médico de família na África do Sul").
Embora médicos de família no mundo todo tenham muito em comum, o escopo real
dos serviços pode variar muito dentro dos países e comunidades, dependendo de muitos fatores.
Os serviços prestados por médicos de família dependem da prevalência local de doenças e
problemas de saúde, da disponibilidade de recursos (como equipamentos ambulatoriais,
suprimentos, e a capacidade de pagar à equipe), da extensão do seu treinamento, da organização
e financiamento dos serviços de saúde e dos papéis, responsabilidades e disponibilidade de
outros profissionais da saúde. (KIDD, 2016, p.53).
No documento "perfil do médico de família e comunidade: definição iberoamericana",
a Confederação Iberoamericana de Medicina Familiar (CIMF), faz um resgate histórico de
documentos e encontros internacionais com intuito de definir os atributos do médico de família,
levando em consideração as diferentes nuances que influenciam o trabalho deste profissional
nos diversos cenários pelo mundo. Como conclusão elenca os elementos que caracterizam o
médico de família "cinco estrelas" (CASTILLO et al, 2010; KIDD, 2016, p49):
• Profissional da saúde, que considere o paciente como parte
integral de uma família e uma comunidade, e proporcione atenção clínica
de alta qualidade, integral, bio-psico-social, espiritual e personalize a
atenção preventiva numa relação de longo prazo baseada na confiança.
• Tomador de decisões, que escolhe a tecnologia adequada para o
cuidado da pessoa, com critérios éticos e de custo-eficácia, melhorando
assim o tipo de atenção prestada.
• Comunicador, que é capaz de promover estilos de vida saudáveis
mediante explicações enfáticas e assertivas, outorgando, portanto o poder
aos indivíduos e grupos para melhorar e proteger sua saúde.
• Líder da comunidade, que tenha ganhado a confiança da pessoas
entre as quais trabalha, e que pode reconciliar as demandas de saúde dos
indivíduos com a comunidade, estabelecendo um plano de ação para o
beneficio desta.
• Membro de uma equipe, que possa trabalhar de forma
harmoniosa com outros profissionais do setor saúde e de outros setores,
com as pessoas, as organizações, dentro ou fora do sistema sanitário, a fim
de satisfazer as necessidades de saúde de seus pacientes e comunidades.
27
• Preservar e melhorar a qualidades do cuidado, de tal maneira que
se dê resposta às necessidades integrais das pessoas. (CASTILLO et al,
2010).
No Brasil, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC),
liderou um processo para criação de um Currículo Baseado em Competência para a Medicina
de Família e Comunidade (MFC). Toda a elaboração durou cerca de um ano e teve como
resultado um documento que tem por objetivo "servir de guia para os programas de residência
na especialidade no país, assim como nos futuros processos de certificação de especialistas
realizados por esta sociedade médica". Assim mesmo, ressalta-se a relativização a depender da
realidade local de cada espaço de formação e, ainda como um documento inicial, estar aberto
para futuras atualizações somadas justamente a partir da pluralidade de cenários de prática.
(LERMEN JUNIOR, [s.d.)
Em estudo da Rede de Observatório em Recursos Humanos em Saúde foi aplicado
questionário para médicos participantes do Programa Mais Médicos para o Brasil (PMMB), no
qual se buscou definir atuação desses profissionais acerca de ações e procedimentos realizados
por médicos em diversos pontos do país. O estudo apontou dificuldades para a manutenção das
ações e implementação de novas práticas, tais como falta de materiais e infraestrutura (87,3%)
nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) (GIRARDI et al, 2016).
O artigo traz os termos "ampliado" e "limitado" para definir o escopo de prática dos
participantes da pesquisa, mas destaca que "no Brasil, não foram encontradas escalas para
avaliar o escopo de prática de médicos" (GIRARDI et al, 2016). A presente pesquisa poderá
então se somar no sentido de comparação de resultados e ainda proposição futura de uma escala
nacional sugerida por Girardi et al (2016).
A priorização específica de modalidades de atendimento de demanda podem criar um
viés a assistência, por um lado excluindo pessoas e limitando seu acesso aos serviços de saúde
e por outro se utilizando de um modelo tradicional de queixa-consulta, sendo neste caso
incompatível com a própria APS. Um equilíbrio entre demandas programada e espontânea
caracteriza uma APS resolutiva com práticas centradas nas pessoas, passando a ser reconhecida
"como serviço de procura regular". (SANTOS et al, 2012)
O estudo de Santos et al (2012), trouxe como inovação associações entre
características do perfil de médicos e enfermeiros de quatro capitais brasileiras (Aracaju, Belo
Horizonte, Florianópolis e Vitória) com determinadas práticas assistenciais. O artigo se utiliza
28
de ações estabelecidas na PNAB de 2006, mas que tem o potencial de dialogar com resultados
do presente estudo. (SANTOS et al, 2012).
29
2 JUSTIFICATIVA
A partir dos elementos dispostos na Introdução, espera-se que o leitor compreenda a
importância da análise do escopo de práticas como ferramenta inovadora dentro do processo de
contínua evolução da forma como se dão os serviços de Atenção Primária no Brasil. A
utilização deste elemento já está bem consolidada na literatura internacional, o que fortalece
ainda mais os objetivos almejados nesta pesquisa que foi oriunda de processo formativo de
Mestrado Profissional. Ademais cabe aqui especificar o cenário em que ocorreu a pesquisa e
suas nuances em termos epidemiológicos.
Fortaleza é a quinta capital do país e a segunda no Nordeste em número de habitantes.
Está inserida no cenário nacional, apresentando em sua estrutura etária redução na proporção
de crianças e adultos jovens e consequente aumento na proporção de idosos e sua maior
expectativa de vida. (IBGE, 2010).
A época do estudo, Fortaleza apresentava uma cobertura populacional estimada de
equipes de saúde da família inferior a 50% segundo dados do Ministério da Saúde. Houve
inclusive uma redução da cobertura no período que saiu de 46,5% em abril de 2018 para 43,7%
em novembro de 2018 (BRASIL, 2019). Este fato corrobora com as perdas ocorridas
principalmente entre os profissionais do Programa Mais Médicos, conforme será descrito nesta
parte do trabalho. Ainda sobre a cobertura, os dados apresentados no plano municipal 2018-
2021 divergem daqueles obtidos no e-Gestor do Ministério da Saúde, apontando uma cobertura
da Atenção Básica em 67% (FORTALEZA, 2017). De toda forma, percebe-se um cenário de
baixa cobertura.
O município tem um panorama geral de melhorias em saúde relacionadas a indicadores
como à taxa de mortalidade infantil (TMI) que tem se mantido estável nos últimos quatro anos
em taxas na casa de 11 óbitos por mil nascidos vivos, como mostra o Gráfico 1. Pode-se atribuir
este panorama a fatores associados à melhoria das condições de vida, a intervenções públicas
na área da saúde (estratégia de saúde da família, implantação da estratégia de agentes
comunitários de saúde) e educação, e ainda, melhorias de infraestrutura e saneamento básico
entre outros aspectos (FORTALEZA, 2017).
Todavia a complexidade epidemiológica caracterizada pela tripla carga de doenças
afeta o cenário de assistência de saúde, tornando-se necessário refletir sobre possíveis falhas no
processo de atenção (MENDES, 2012; ANDRADE et al, 2017; BARRETO et al, 2017). O
30
plano municipal de saúde de Fortaleza traz elementos para esta reflexão, apontando necessidade
de avaliação da ESF quanto ao acesso e a qualidade do cuidado (FORTALEZA, 2017).
Como destaque estão as crescentes taxas de sífilis congênita em menores de 1 ano
(Gráfico 2), incidência de sífilis em gestante (Gráfico 3) e casos de tuberculose (Gráfico 4).
Gráfico 1 – Taxa de Mortalidade Infantil, Fortaleza, 1981–2016*
Fonte: SMS Fortaleza/COVIS/Célula de Vigilância Epidemiológica/SIM/SINASC (*Dados sujeitos a alterações)
Gráfico 2 – Taxa incidência de sífilis congênita por mil nascidos vivos de mães residentes em
Fortaleza, segundo ano de diagnóstico, 2007-2016*
Fonte: SMS/FORTALEZA. Célula de Vigilância Epidemiológica/SINAN Net *Dados sujeitos a alterações.
31
Gráfico 3 – Taxa incidência de sífilis em gestante, residentes em Fortaleza, CE, segundo ano
de diagnóstico, 2007-2016*
Fonte: SMS Fortaleza/Célula de Vigilância Epidemiológica/SINAN Net *Dados sujeitos a alterações.
Gráfico 4 – Nº de Casos Novos e Incidência de Tuberculose. Fortaleza, 2007 a 2016*
Fonte: SMS Fortaleza/Célula de Vigilância Epidemiológica/SINAN Net*Dados sujeitos a alterações.
32
3.1 OBJETIVO GERAL
Analisar o escopo de prática dos médicos atuantes na Estratégia de Saúde da Família da
cidade de Fortaleza no Ceará e suas relações com a formação e titulação em medicina de família
e comunidade.
Caracterizar o perfil sociodemográfico, de atuação e formação dos profissionais médicos
da ESF de Fortaleza.
Caracterizar a prática e a forma de aprendizado auto referidas de atribuições comuns aos
profissionais da ESF pelos médicos;
Caracterizar a prática e a forma de aprendizado auto referidas de atribuições e
procedimentos específicos do escopo de práticas do profissional médico;
Investigar os fatores relacionados a uma maior ou menor abrangência do escopo de
práticas.
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4.1 NATUREZA DO ESTUDO
O presente estudo é um inquérito quantitativo transversal sobre o escopo de práticas
profissionais de médicos da Estratégia Saúde da Família do município de Fortaleza, realizado
por meio da aplicação de um formulário semiestruturado, contendo um total de 111 itens. O
instrumento por completo pode ser visualizado no Apêndice 2 deste trabalho. O trabalho de
campo contou com participação majoritária de dois mestrandos do mestrado profissional em
saúde da família (PROFSAUDE) que compartilharam os resultados dentro de suas dissertações
de conclusão.
A pesquisa em foco é um recorte do projeto guarda-chuva “Campo de Práticas
Profissionais e Acesso ao Cuidado na Estratégia Saúde da Família do Ceará” – CAMPESF –
(BARRETO et al, 2017), coordenado pela Professora Dra. Ivana Cristina de Holanda Barreto,
pesquisadora da FIOCRUZ-CE. O referido projeto integra a Rede de Pesquisa em Políticas e
Modelos de Atenção à Saúde da FIOCRUZ. O autor é participante do mestrado profissional em
saúde da família (PROFSAUDE), juntamente com seu maior colaborador Antônio Leonel Mila
Junior, e o estudo é componente de sua formação acadêmica.
O projeto CAMPESF tem como objetivo geral analisar a relação entre campo, escopo
de práticas profissionais e colaboração interprofissional na ESF do Ceará, contribuindo para
melhoria do acesso e da qualidade na APS. O projeto iniciou em 2016, tem duração prevista de
48 meses e oito etapas de execução.
Segundo Creswell (2010), um projeto de levantamento dá uma descrição quantitativa
ou numérica de tendências, atitudes ou opiniões de uma população ao estudar uma amostra dela.
A partir dos resultados da amostragem, o pesquisador generaliza ou faz alegações acerca da
população.
A pesquisa utilizou a abordagem quantitativa para testar teorias objetivas, examinando
a relação entre as variáveis, as quais podem ser medidas tipicamente por instrumentos, de forma
que os dados numéricos possam ser analisados por procedimentos estatísticos (CRESWELL,
2010).
34
4.2.1 Processo de reelaboração do instrumento
O primeiro grande desafio foi o desenvolvimento do instrumento. No início do
Mestrado em abril de 2017, houve um processo de revisão do instrumento original - que
investigava dados sócio-demográficos, formação profissional, realização de atribuições comuns
aos profissionais da ESF, realização de atribuições específicas do médico e colaboração
interprofissional - com intuito de agregar novas perspectivas ao trabalho em proposição. Cabe
destacar que o instrumento original já havia sido empregado em uma amostra de profissionais
médicos da Regional dois de Fortaleza. A proposta atual seria realizar a pesquisa em uma
amostra aleatória de todos os profissionais médicos da Estratégia Saúde da Família de Fortaleza.
Procedeu-se então para uma série de reuniões com minha participação, da minha orientadora,
da Professora Dra. Anya Pimentel Gomes Fernandes Vieira Meyer e do mestrando Antônio
Leonel Mila Junior, além de outros professores vinculados ao Mestrado.
Dentro deste processo somou-se outra linha de pesquisa do mesmo mestrado que teria
o mesmo grupo dos médicos e médicas da ESF de Fortaleza como participantes. Por fim, já no
final o ano de 2017, obtivemos um produto do instrumento que foi apresentado em banca de
qualificação.
Após a apresent