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www.mobileditorial.com.br

ISBN 978-85-64502-09-3

Argos Micael se desabrocha na cara do leitor, com aque-la entrega possível porque um personagem não se sabe lido, e porque é escrito por mãos seguras. Esse percur-so nos é entregue em prosa fl uida, percorremos uma trança feita de afetos e desafetos, ornando as costas de uma trama urbana, mas poderia ser em qualquer outro lugar onde haja alteridade e amadurecimento. Argos Micael coloca para si a tarefa de fazer-se, consciente da própria plasticidade, da matéria ainda moldável da juventude. Mas o embate com o mundo é inalienável, “Argos Micael só temia ter vontade de ser aceito”. É justamente nesse combate interno que assistimos ao desejo seminal do homem, o de sua emancipação.

Andréa del Fuego

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2013

ArgosMauro Sta. Cecilia

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Copyright © 2013 Mauro Sta. Cecília

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

EdiçãoEduardo Coelho

Projeto gráfico, Capa, Editoração e Produção GráficaLeandro Collares | Móbile Editorial

Gravura de capaAndrés Sandoval

Sta. Cecília, Mauro Argos / Mauro Sta. Cecília. — Rio de Janeiro : Móbile, 2013.

ISBN 978 -85 -64502 -09-3

1. Ficção brasileira I. Título.

CDD -869.93

Todos os direitos desta edição reservados àMóbile EditorialR. Senador Dantas, 80 sl. 1305Rio de Janeiro — RJ — 20031 -922Tel.: (21) 2210 -1787www.mobileeditorial.com.br

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Sumário

Primeira parte, 7

Segunda parte, 39

Terceira parte, 149

Quarta parte, 181

Quinta parte, 203

Sexta parte, 209

Epílogo, 251

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Primeira parte

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I

Aconteceu exatamente como ele havia imaginado, durante a noite inteira, e de olhos bem abertos: foi incessantemente abordado pelos seus colegas no primeiro dia. Todos queriam saber se era mesmo o filho do bilionário Eider Micael, o megaempresário das mil e uma transações mirabolantes (a maioria delas ligada a concorrências e licita-ções consideradas por quase toda a imprensa como imorais e espúrias). Que não era filho do empresário, e sim de um jardineiro.

— Mas então o que você veio fazer aqui?! — gritou -lhe o rapaz ruivo, da fala dissimulada e de uma precocidade física impressionante para seus dezessete anos. Era o líder da bagunça e se impunha aos de-mais por ser também o mais desenvolvido num tipo de esperteza que traz embutida a maldade (e que pressupõe alguma situação muito ruim vivida por ele).

— Ganhei uma bolsa de estudos.— Bolsa? — repetiu Ivan Otávio.— É — diz esticando a mão para cumprimentá -lo. — Muito

prazer, Argos Micael. — Ivan Otávio não move um músculo, nem se-quer o olha diretamente. — Ah, o aluno novo é cdf?... isso é ótimo. Muito bom. E também é pobre, filho de jardineiro... Excelente! E ainda por cima se chama Argos Micael!... Perfeito! Só com estas informações

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já teríamos o perfil de um infeliz protagonista de um insuportável dra-malhão mexicano! — Ivan Otávio pergunta para os outros alunos que estavam ao redor: — Quem é que conhece alguém chamado Argos Micael?!... — depois de obter como resposta apenas alguns risinhos de escárnio, ele finalmente olha para o novo aluno: — Fique sabendo, Ar-gos Micael, que aqui estudam os filhos de algumas das famílias mais...

— Já estou sabendo.— O quê?— Eu fui informado que os filhos de algumas das famílias mais

influentes do país estudam no Liceu Voltaire.— Ah, já foi?! Que bom. Mas só por isso você vai me interrom-

per, Argos Micael?... Olha como são as coisas... O calouro mal chegou e já quer determinar o rumo da prosa. Vamos deixar as coisas bem claras para eu não ter que repetir. Detesto repetir as coisas, todo mundo sabe disso. O novato, o forasteiro, o imigrante indesejado que chegou agora e está aqui de favor é você. Entendeu?

— Mas eu não quis...— Não interessa. Peça desculpas.Argos passeia a vista pelo trecho do pátio onde estavam e não

encontra qualquer olhar solidário. — Me desculpe.— Está certo... Mas é só dessa vez. Nunca se esqueça disto: aqui

você será sempre olhado com desconfiança. E também precisará provar que você não passa de um veadinho assustado! — Todos os alunos em volta riram já sem o menor constrangimento. — Como em nossa escola é expressamente proibido o trote ou coisas do gênero, e para eu ter certeza que você compreendeu direitinho, hoje o colega vai dormir no chão por sua própria vontade. Pode ser? — decretou Ivan Otávio dando gargalhadas que esmagaram Argos Micael.

Dessa forma nada amena, Argos foi recebido no Liceu Voltaire para cursar o último ano do ensino médio. Até então estudara em colé-gios públicos muito fracos e morara de favor na casa de parentes tão dis-tantes quanto improváveis. Durante boa parte de sua infância e início da adolescência, Argos foi um hóspede na casa dos outros. Mas havia sido sempre aluno bem acima da média, elogiado por todos os professores.

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No ano anterior ao Liceu, Argos Micael recebera, aos dezesseis, a emancipação para que pudesse desembaraçar a sua vida da família praticamente ausente. Embora continuasse a ser sustentado por ela, não sabia, no entanto, exatamente quem desembolsava o dinheiro que lhe fornecia o mínimo necessário para se virar. Foi Tânia Mara quem lhe comunicou o ato jurídico realizado por intervenção do juiz, mas na época Argos não se importou em não entender o que tal ato significava.

O Liceu Voltaire, extremamente rigoroso, nascera em regime de internato em 1952. O corpo de alunos, inicialmente de setenta e cinco crianças e adolescentes, havia sido idealizado exclusivamente para me-ninos como algumas das melhores escolas europeias da primeira me-tade do século. Somente na década de 1990, rendendo -se aos tempos, abriu -se também para o semi -internato, tornou -se misto e aumentou o número de alunos para trezentos e oitenta. “Você não é desse mundo, se toca”, era a leitura possível para o espesso ambiente de sua recepção. Mas Argos adaptou -se. Para garantir a sobrevivência, foi constante-mente humilhado e aprendeu a rastejar.

A ideia de prestar o exame anual para a única bolsa concedida no prestigioso colégio havia sido de Tânia Mara, que imaginou Ar-gos, indiscutivelmente um rapaz inteligente, tornar -se mais sofisticado convivendo com os filhos da elite. Ela era uma espécie de governanta e secretária faz -tudo que se tornou membro indispensável da família. Era apenas ela quem o visitava — a contragosto — e mesmo assim muito raramente. Descia a serra de ônibus para entregar -lhe coisas de uso pessoal, algum doce feito pela mãe, revistas e livros de informática. Na maior parte das vezes, ele mesmo pagava suas despesas. Para isso havia sido emancipado e tinha conta no banco.

Desde muito novo acostumado apenas à própria companhia, Ar-gos Micael mostrou -se um observador sobre quem um espírito influen-ciável ficaria na dúvida se com o seu intenso silêncio estaria mentalmen-te a ridicularizá -lo. Já que o revide lhe era vedado, a melhor postura para Argos se traduzia em dar campo para o outro se complicar. O sobreno-me Micael (que tanta polêmica havia causado no Liceu e por onde mais ele passava) veio realmente de um jardineiro. Argos até já se acostumara

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a responder à mesma pergunta, de modo a causar algum tipo de choque. Ele dizia: “Não, não sou filho de nenhum empresário desonesto; sou filho do jardineiro Mário Micael e da empregada doméstica Olívia.”

Olívia era muito jovem, ainda uma adolescente, quando Virgílio Frederico, advogado viúvo de trinta e cinco anos, comprou a proprieda-de da família de José Leão Xavier. Este, também viúvo, um ex -diretor dos Correios e presidente da câmara dos vereadores por duas legisla-turas, morrera seis meses antes da chegada de Virgílio à cidade, e seus dois filhos (que não moravam mais lá desde que constituíram suas próprias famílias em outros estados) resolveram vender de uma vez o patrimônio, diante da única proposta feita em dinheiro.

Porém, um pouco antes de Zé Leão falecer, numa lealdade à toda prova, seguiu na frente para o cemitério o seu velho motorista, Antônio Moraes, pai de Olívia. E assim que tomou a extrema -unção, ele pediu ao amigo jardineiro, Mário Micael, que cuidasse de sua filha, que ficaria órfã de pai e mãe. O jardineiro tomou o pedido do moribundo como um dever do qual não se afastou, mesmo que a seu modo, até o fim da vida. Poucos meses depois da morte do velho companheiro, Mário Micael, cinquentão, casou -se com Olívia. E, dez semanas após o casa-mento, chegou à casa o novo patrão, Virgílio Frederico, que resolveu manter todos os serviçais do antigo dono.

No ano em que cursou o Liceu Voltaire, Argos Micael era um ga-roto magro, de cabelos escuros e olhos castanhos, sem espinhas e nenhum talento para o esporte. Um típico adolescente, e que tinha seus sonhos cru-amente desamparados pela inexistência de qualquer estrutura familiar. No entanto, o sofrimento e a sensação de abandono eram o que lhe serviam de combustível. “Eu tenho a ideia. Isso é o mais difícil de se conquistar”, pen-sava Argos, com a sua vontade alicerçada em nada mais do que o paradoxo.

Os seus momentos de pura melancolia, evidentemente, não eram poucos. Tinha manifestações bastante confusas, principalmente em re-lação a Virgílio Frederico. Por mais que se esforçasse em dedicar -lhe uma indiferença categórica, tanto dizia: “Deve ser encantador!”, como também: “É um cachorro estúpido!”

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Como qualquer adolescente (mas por motivos distintos), Argos Micael se sentia melhor nos fins de semana e feriados. Enquanto os co-legas iam divertir -se, encontrar parentes e amigos, ele passava um bom tempo deitado, olhando para o teto, ruminando e pensando na ideia. “Não preciso de amigos. Isso é ridículo.” Quando não se enfiava por até dez horas seguidas na sala de informática do prédio dos alunos — de certa forma, também em benefício da ideia. Aproveitava bastante esses dias (até que algum funcionário de plantão ou mesmo o complacente vigia noturno, quando não o próprio diretor, viesse decretar o fim da atividade e desligar o aparelho).

Chegou mesmo a ouvir do diretor Boldrin, assim que ficaram a sós numa dessas ocasiões de folga (ele entrou na sala de informática, Argos estava mergulhado na tela do computador), o diretor disse, sem maiores rodeios, que a instituição deveria servir, em primeiríssimo lu-gar, aos interesses e às necessidades dos alunos tradicionais. Afinal de contas, “são eles que fazem a reputação do Liceu Voltaire”. Nestas horas Argos Micael metamorfoseava -se num dócil carneirinho.

— Compreendeu bem?— Sim, professor.— Professeur... professeur Boldrin — exigiu, com um sotaque le-

vemente artificial, o senhor baixinho, de óculos, careca e cavanhaque alourado. — Lembre -se de que a bolsa que o senhor ganhou, aliás com todos os méritos, ainda não o torna um dos nossos, um a mais entre os melhores. Pelo menos por enquanto... compreendeu bem? Afinal, este é um mundo inteiramente novo, que precisa se fazer por conquistar... e isto — convenhamos — não é nada fácil. Pois então: tudo corre con-tra você, inclusive o tempo... Nós já estamos no último ano do ensino médio, não é mesmo? E, cá entre nós, talvez — como se costuma dizer — aqui nem seja realmente para o seu bico.

Nos finais de semana, Argos de vez em quando ia aos jogos de futebol com o vigia noturno. O vigia era conhecido tanto como Preto Vanderlei como por Bigorna — entretanto a razão para isso nunca foi devidamente esclarecida. Bigorna, que tinha a mania de assobiar uma velha canção cafona, A chave do teu coração, torcia como um alucinado

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para o Vasco da Gama. Argos Micael não torcia para ninguém. Na verdade nem gostava de futebol. Mas por insistência do outro o acom-panhava apenas para sair um pouco do liceu. E depois dos jogos, geral-mente no estádio de São Januário, fosse qual fosse o resultado, Preto Vanderlei batia ponto numa casa de mulheres que conhecia perto da praça da Bandeira, na célebre Vila Mimosa.

Foi assim que Argos Micael fez sexo pela primeira vez (no colé-gio, as meninas nem olhavam para ele). E que aconteceu efetivamente só na terceira oportunidade. Nas duas primeiras, preferiu ficar espe-rando Bigorna do lado de fora do antigo sobrado. Até que se encheu de raiva e escolheu a mais feia das mulheres. Mas, assobiando a sua cos-tumeira velha canção, Preto Vanderlei interrompeu a cena quando viu Argos subindo os degraus, atrás de uma velha senhora de peruca acaju.

— Não, espera aí... Tudo vai se ajeitar!Mesmo assim, Argos não tinha uma boa recordação do episódio.

Lembrava que foi tudo muito ligeiro, menos de 15 segundos, bastou a moça colocar nele o preservativo com os lábios. E que ela, a jovem que surgiu depois, bocejava e não estava com nenhum hálito maravilhoso, apesar de evidentemente não ter permitido beijo na boca.

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II

Argos Micael costumava fantasiar bastante sobre como Virgílio Frederico e a mãe teriam se aproximado. Assim como Virgílio nunca o visitara, a mãe também não, desde quando fora despachado na infância. Mas Argos se sentia completamente abandonado era por ele; ela de vez em quando ainda lhe mandava alguma besteira, alguma doce ilusão. Argos culpava Virgílio Frederico. “Seria apenas um sedu-tor barato?” Uma vez ou outa sobrava para a mãe. “Como pôde minha mãe trair Mário, que era tudo para ela, um marido, um pai, um deus... logo três semanas depois do casamento?”, pensava ele. “Minha origem vem da perdição! Pode haver começo pior?”, torturava -se mentalmente.

Ao chegar à cidade, Virgílio Frederico já havia sido casado três vezes, ficado viúvo da última esposa e desbaratado duas fortunas. Estas intempéries aconteceram, não custa lembrar, até os seus trinta e cinco anos, antes de se estabelecer definitivamente na cidade. Esse era o pou-co que Argos sabia dele. Aliás, sabia também que Virgílio Frederico, depois de abandonar a carreira de advogado e do fracasso de seu proje-to agrícola, exercia uma nova atividade, negociador de conflitos, sem se interessar, porém, em saber ao certo o que isto significava.

Portanto, não foi à -toa que Virgílio acabou ganhando a fama na cidade de ser o poeta das mulheres. O que mais intrigava Argos Micael

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no caso da sedução de sua mãe é que não a considerava (através de fo-tos) uma jovem realmente muito bonita. A ponto de fazer um homem tão experiente perder a cabeça. Argos talvez achasse isso estranho e perturbador porque Olívia não tinha de fato uma beleza exuberante — não representava um espocar de fogos de artifício para o céu da virilidade. Era, sim, de uma beleza selvagem e tímida, que vicejou até o momento em que perdeu seu terceiro e quarto filhos de uma só vez, gêmeos univitelinos.

No primeiro encontro, Virgílio Frederico e Olívia Micael conce-beram logo o primeiro bebê. Uma menina, praticamente um ano mais velha que Argos Micael. Argos costumava se esquecer do nome da irmã (Lerena... Lina...) que, para contribuir com seu sentimento de rejeição, não havia sido retirada do convívio familiar como ele. Mesmo após os dois filhos nascerem, Virgílio Frederico e Olívia continuaram manten-do o seu vínculo escorregadio e tortuoso. Durante mais de quinze anos foi assim. A mãe morava na pequena construção anexa à casa principal (primeiro com o pai motorista, depois com o jardineiro Mário e depois apenas com a filha).

Os tempos, no entanto, ficaram bastante árduos para Virgílio. Suas economias mal administradas foram a pique. Afundado em dí-vidas de sua mal sucedida plantação e nas custas de um processo am-bicioso que ele movera, foi obrigado nos últimos anos a ir morar na casinha com Olívia e Lena. E além do mais a passar pelo constran-gimento de viver, de certa forma, sustentado pelas costuras, faxinas e outros pequenos trabalhos de Olívia. Porém o curioso é que ele parecia não se importar. Apesar de ter vivido períodos de boa vida, incluindo pequenas temporadas em Veneza, Paris e Nova Iorque, ele se adaptou à mixórdia com a altivez e o queixo levantado de sempre — num mo-mento em que, além do mais, toda a cidade lhe deu às costas.

Não que a sua situação fosse especialmente injusta ou que ele fosse exatamente um mau -caráter. Virgílio Frederico era alguém que, ao seu modo muito particular, vivia flutuando nas brumas da fraterni-dade e da bem -querência universal. Com a sua fala baixa porém firme, e às vezes até bastante emocionada, mas sempre em tom baixo, era um

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sujeito que sabia conquistar o interlocutor a ponto de em conversa de hora e meia fazer -lhe um rendido amigo de infância.

Embora descartando veementemente o uso de sua autoridade de patrão, conseguiu resgatar Olívia de Mário, evitando a tragédia. Sub-serviente e humilde, Mário resignou -se ao que não poderia mais retro-ceder. Fez apenas questão de partir o quanto antes. Mas nunca deixou de estar em contato com a família e até ser recebido em casa por uns dias em algumas ocasiões. Relutou muito, no entanto, em aceitar um pagamento em dinheiro.

Quando, tanto tempo depois, Argos voltou à cidade, Virgílio Fre-derico contou -lhe (no seu bar preferido, perto da ponte) sobre os primei-ros encontros furtivos com Olívia. Virgílio lhe disse: “Não pude resistir ao fascínio de sua mãe. Naquele belo olhar reprimido, amedrontado, vis-lumbrei uma mulher em estado de intenso desejo. Só isso foi o suficiente para me tirar do coma em que tinha se transformado a minha vida.”

Virgílio revelou -lhe que os dois passaram a se ver, como que por acaso, na varanda da casa principal. Eram encontros desajeitados e bre-ves. Até que uma vez aconteceu o verdadeiro encontro. Naquela noite Olívia voltava um pouco mais tarde para a sua casa nos fundos do ter-reno, depois de entregar num bairro vizinho uma muda de roupa lava-da. Um Virgílio ansioso por vê -la, especialmente naquela noite, fumava à meia -luz da varanda. Quando a viu entrar na propriedade, apagou o charuto imediatamente e bebeu um pouco d’água. Com um sorriso amigável fez sinal para que ela desse a volta.

— Tudo bem, Olívia? — disse no seu tom aveludado caracterís-tico. Ela, quase sem respirar, apenas baixou os olhos e repetiu as duas palavras imperceptíveis. — Estava esperando você... — ele continuou. — Veja como a noite está linda. Hoje temos uma Lua minguante, be-líssima e recatada como você. Ali... (disse apontando) — Olívia olhou para o céu e viu, à direita de algumas nuvens, subitamente despontar um fiapo luminoso de beleza desconcertante. Não era a Lua de todas as noites. Parecia a curva sensual de um pequenino berimbau de prata. Cercando -a, perto da diminuta base, três estrelas em formato de U faziam o céu sorrir.

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— Sinto como se este espetáculo estivesse destinado somente a nós dois... — Virgílio segurou nas mãos frias de uma Olívia que tentou recuar e desistiu por estar paralisada. E que por isso não exerceu prati-camente nenhuma resistência.

— Por favor, senhor Virgílio...— Já lhe pedi para não me chamar assim. Pelo menos a sós.— Mário pode acordar a qualquer momento e...— Ora, você sabe muito bem que ele só acordará quando vierem

os primeiros raios de sol. Ainda falta muito... — De repente, Virgílio Frederico a puxou pela nuca e lhe deu um beijo rápido. Sem muita con-vicção Olívia tentou debater -se, mas ele a conteve e lhe aplicou outro beijo, mais intenso. — Não faça mais isso... — Foi a senha para a Lua se esconder atrás das nuvens e as estrelas, que já tinham morrido havia alguns bilhões de anos, se apagarem a fim de liberar a vergonha de Olívia de implodir, no escuro, por entre as almofadas do sofá amarelo com flores vermelhas.

Ela ainda não tivera nenhuma relação sexual — a menos que se considerassem as duas ou três vezes em que permitiu, inteiramente constrangida, que o jardineiro Mário Micael, um gigante numa cama de brinquedo, desse alguns solavancos em sua carne trêmula.

Virgílio, firme como a sombra de um punhal, a apanhou nos bra-ços e foi caminhando suavemente em direção à porta, apenas encostada. Com a ponta de um dos pés abriu -a, atravessou a sala de estar e pegou o comprido corredor rebaixado, que dava tanto para a ampla cozinha quanto para a escada com piso de mármore. Subiu cuidadosamente os vinte e três lances. Em poucos minutos, estavam os dois no quarto dele. E a curva do berimbau de prata ficou lá fora, escondida para ninguém.

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III

Ao final do ano no Liceu Voltaire, Argos Micael quis romper com tudo. Terminara o ensino médio com sobras. Foi um dos três me-lhores alunos do colégio no ano letivo, nos dizeres do próprio professeur Boldrin. Apesar disso, Argos não tinha a intenção de seguir o caminho natural de entrar para uma boa faculdade, ser notável em uma profis-são, e ganhar um bom dinheiro. Informática, economia, robótica, física quântica, relações internacionais, neurociência, matemática pura, enge-nharia de produção — o que ele quisesse.

Mas, apesar de sua decisão, foi compelido pelo colégio a prestar o exame de vestibular, na contramão de todos os outros alunos do ter-ceiro ano do ensino médio do liceu, que estavam ansiosos em entrar para a faculdade. Tirou, de propósito, uma nota baixíssima no Enem, o exame oficial do governo. Foi um escândalo. Seus professores eram unânimes em apontá -lo como principal candidato a primeiro lugar nas melhores universidades.

“Meu objetivo, agora que já tenho a tal educação obrigatória e inútil, é me ver livre de tudo isso”, pensava Argos no ônibus, olhando pela janela o mar da Barra da Tijuca, no longo trajeto do Recreio dos Bandeirantes para o Centro da cidade. “Agora botarei em prática a ideia. Não vou precisar, de fato, de mais ninguém. E os que não acreditam se

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surpreenderão porque é assim que vou fazer a minha vida. Sem preci-sar depender de qualquer ajuda!”

A ideia, seu tesouro sem preço, somente ela o libertaria. Argos Micael guardava -a dentro de suas entranhas, como se deve guardar algo extremamente raro, precioso. Argos Micael guardava a ideia exa-tamente como nos revela o belíssimo poema “Guardar”, de Antonio Ci-cero: “Guardar uma coisa é olhá -la, fitá -la, mirá -la por / admirá -la, isto é, iluminá -la ou ser por ela iluminado. / Guardar uma coisa é vigiá -la, isto é, fazer vigília por / ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela.”

Argos saltou na rua Primeiro de Março, andou até a Rio Bran-co, cruzou a Presidente Vargas e foi encontrar -se com Tânia Mara no bar Paladino, na esquina da rua Uruguaiana com a avenida Marechal Floriano. Quando chegou na centenária casa, entrando pela mercearia que fica na frente do estabelecimento, ela já estava sentada no pequeno salão, à direita. Como sempre, um tanto masculinizada. Ou por outra, quase sem nenhuma sensualidade, apesar de não ser tão velha. Tomava um chope preto e comia uma omelete. Argos Micael preparou -se para levar bronca.

— Senta aí, vai. Não fica com essa cara de idiota. Você demorou tanto que tive de comer.

— Foi o trânsito. Não tenho culpa do trânsito, Tânia Mara.— Devia ter saído mais cedo... Bem, agora não importa. Quer

uma omelete de sardinhas portuguesas? Está ótima. Mas acho que você não vai gostar, ela não é para seu bico.

— Adoro sardinha.— Vai querer uma?— Prefiro sanduíche de mortadela. Tem?— Como vou saber?!... Claro que tem mortadela. Não está ven-

do que eles aqui também vendem frios sem graça? Coisa de pobre! Garçom, por favor... Dá o que esse menino quer.

O velho garçom trouxe para Argos Micael o sanduíche com uma água com gás. Mesmo sem muita fome, deliciou -se com o farto sanduí-che de mortadela fatiada no pão francês. Enquanto ele comia, Tânia

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Mara falava com alguém ao celular sobre algum problema hidráulico num banheiro que não era o dela. Assim que desligou, ele se apressou em tomar a palavra.

— Bom, eu queria comunicar a vocês...— Vocês quem?Sem deixar Argos explicar, foi logo emendando: — Trouxe uma

carta de Virgílio Frederico para você. — Argos Micael levou um grande susto. Como assim? Por que dele? E não dela?

— Carta?!— Sim, isso que você ouviu, seu idiota.— Mas por que uma carta?! Por que não um e -mail? Um telefo-

nema... Por que não veio aqui?...— E -mail? Telefone?... Você não conhece Virgílio Frederico

mesmo! Aquele vive no mundo da lua, acho que nunca chegou perto de um computador.

Tânia Mara tirou da bolsa um envelope e o colocou em cima da mesa, de toalha azul, encostada na parede ladrilhada branca com quadros de matérias de jornal sobre a casa. Para tentar ganhar tempo Argos Micael respirou fundo e olhou para o teto centenário; havia pequenas rachaduras, algumas talvez mais antigas do que os pró-prios garçons.

— O que ele quer depois desse tempo todo?— Não sei. Leia e verá — disse Tânia friamente.Ele pega o envelope, rasga -o meio sem jeito e pinça a carta. Ape-

nas dois parágrafos escritos à mão. Lê o cabeçalho: “Meu querido Ar-gos”. Teve um calafrio. Não foi para isso que se deslocou do liceu no Recreio dos Bandeirantes até o Centro da cidade.

— Acho que vou ler no ônibus quando voltar para o colégio.— Você quem sabe. Está na minha hora. A propósito, você tem o

direito de ficar lá só até o final do mês. Recebemos uma carta constran-gedora daquele diretorzinho.

— Professor Boldrin.— Que seja. Mas não quero falar disso agora.— Não se preocupe, eu... Eu vou me virar.

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— Vai se virar nada! Até mais, Argos Micael, metido a valentão... — disse e deu -lhe as costas. Tânia Mara foi até o caixa, pagou a conta e saiu do salão pelo corredor que dá para a mercearia. Argos Micael nem ao menos teve a chance de contar porque tinha desistido da faculdade. Professor Boldrin havia ficado maluco com isso. “Uma vergonha! Você é uma vergonha! Esse colégio não é para o seu bico!” Foi expulso do liceu, mas não pela decepção causada e sim graças ao motivo perfeito do soco que deu em Ivan Otávio.

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