andré singer - o enigma merquior (folha de são paulo)

Upload: victor-neves-de-souza

Post on 07-Jan-2016

8 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

André Singer sobre José Guilherme Merquior - na Folha de São Paulo.

TRANSCRIPT

So Paulo, domingo, 15 de julho de 2001

Texto Anterior | Prximo Texto | ndice

O enigma MerquiorPaulo Cerciari/Folha Imagem

O diplomata, ensasta e crtico literrio Jos Guilherme Merquior (1941-1991), autor de "Razo do Poema" e "De Praga a Paris"

O Mais! ouviu filsofos, socilogos e escritores para avaliar o legado da obra de Jos Guilherme Merquior, que, de marxista a "porta-voz da direita" e "renovador da crtica literria", segue dividindo opinies dez anos aps sua morte

por Andr Singer

Passada uma dcada da morte de Jos Guilherme Merquior, todavia no est claro o papel que a histria intelectual do Brasil lhe reservar. H quem o qualifique de "a maior inteligncia brasileira da segunda metade do sculo 20", como declara o poeta Bruno Tolentino. H quem o considere apenas um "aluno hiperaplicado", conforme escreveu na Folha outro poeta, Nelson Ascher. Entre uma e outra opinio, pode-se colher vasta gama de avaliaes distintas sobre o diplomata carioca que discorria sobre literatura, filosofia e poltica com rara erudio. Desde ser apenas o mais "talentoso porta-voz da direita", segundo declarou Marilena Chaui, professora de filosofia da Universidade de So Paulo, quando o adversrio morreu, at se constituir no "rbitro da atualizao cultural brasileira", de acordo com o cientista poltico Candido Mendes, reitor da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, Merquior ainda recebe avaliaes muito distintas. parte duas condies reconhecidas por todos -a de ser um erudito e amar a polmica-, a meterica carreira de Merquior, que comeou a escrever j na adolescncia e morreu com menos de 50 anos sem parar de publicar (" como se ele soubesse que tinha pouco tempo", afirma Tolentino), foi desconcertante para gregos e troianos. Homem dotado de uma capacidade de leitura descomunal ("quase nunca me aconteceu de ter mencionado um livro que ele no houvesse lido", conta o filsofo de orientao marxista Leandro Konder, professor de filosofia na Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro), Merquior foi autor de 22 volumes "e h ainda vrios pstumos por sair", segundo o editor Jos Mrio Pereira, da Topbooks, que pretende reunir, nos prximos anos, os escritos dispersos e inditos do amigo. A dificuldade em fixar a imagem de Merquior decorre, em parte, da diversidade de sua produo. Entre "Razo do Poema" (1965) e "O Liberalismo" (1991), o polemista transitou -ao impressionante ritmo de quase um livro por ano- por diferentes reas de interesse e posturas ideolgicas. "A sua carreira tem mais curvas do que a estrada de Santos", afirma o acadmico Eduardo Portella, ex-ministro da Educao (governo Figueiredo, 1979-1985). Comeou na crtica literria e terminou na teoria poltica. Iniciou-se simptico esquerda e acabou em uma adeso militante ao credo liberal. Enfim, as mudanas de Merquior, apesar de no serem bruscas ou errticas, foram largas o suficiente para impedir uma apreenso simples do significado da obra que deixou. O balano do seu legado necessitar de trabalhos acadmicos de flego e ter que comear por distinguir pelo menos dois Merquiores. Existe o jovem Merquior, que apareceu, de surpresa, em 1959, no cenrio cultural do Rio por meio de crticas literrias publicadas no "Suplemento Dominical" do "Jornal do Brasil", o qual, curiosamente, saa aos sbados. O responsvel pelo caderno, Reynaldo Jardim, recebeu o primeiro texto pelo correio. O contedo era to bom que decidiu public-lo, mesmo sem conhecer o autor. Estabeleceu-se, assim, uma rotina em que o colaborador enviava os textos pelo servio postal e era ento aproveitado sem que houvesse contato direto com o editor.

Precocidade excepcionalCerta vez, Merquior decidiu entregar um dos artigos em mos. Foi redao do jornal e passou o envelope ao jornalista. "Olha, diga a seu pai para aparecer", disse Jardim ao rapaz de pele muito branca e cara de garoto, caractersticas que o acompanharam at a morte. "Mas eu sou Jos Guilherme Merquior", respondeu o quase menino para a surpresa de Jardim, que o convidaria, em 1960, a assumir a coluna de crtica de poesia do suplemento.Konder, que conheceu Merquior em 1961 durante um festival de cinema sovitico, confirma a lenda que cercava a figura do crtico adolescente e, naquela poca, simptico esquerda: "Muita gente achava que ele no existia". Nascido em 1941, na Tijuca, em uma famlia bem-posta, porm sem intelectuais de renome, Merquior foi de uma precocidade excepcional. Basta observar o impacto que tiveram alguns daqueles ensaios iniciais, redigidos por volta dos 20 anos e depois reunidos no livro de estria, "Razo do Poema"."A Sereia e o Desconfiado", de Roberto Schwarz, e "Razo do Poema", ambos publicados pela Civilizao Brasileira em 1965, "foram verdadeiros renovadores da crtica literria brasileira", afirma o editor Pedro Paulo Sena Madureira, hoje na Siciliano. "De repente, apareceram, um em So Paulo e outro no Rio de Janeiro, dois jovens pensadores de grande vigor."A sensibilidade de Merquior para a poesia, demonstrada em anlises de peas clssicas como a "Cano do Exlio", de Gonalves Dias, ou de poetas modernos, como Murilo Mendes, tambm consensual. "Ele foi um excelente crtico de poesia", diz o pensador de inspirao marxista Carlos Nelson Coutinho, professor de teoria poltica na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em homenagem a Merquior realizada no Pen Club do Rio de Janeiro, o mais importante terico da literatura brasileira, Antonio Candido, professor emrito da Universidade de So Paulo, afirmou que "Merquior foi sem dvida um dos maiores crticos que o Brasil teve".E, para exemplificar a qualidade da fatura de Merquior, Candido menciona justamente o estudo sobre a "Cano do Exlio". "Ele mostrou que a sua eficincia [do poema" provm na verdade do fato de ser todo ele, virtualmente, uma espcie de grande expresso adjetiva", disse Candido.A primeira fase de Merquior, em que o apego literatura predomina sobre os interesses ideolgicos, se estende por cerca de uma dcada. Nela, alm de aprofundar o gosto pela poesia, que iria resultar, por exemplo, na tese "Verso Universo em Drummond", defendida na Universidade de Paris e que resultou em "um belo livro", segundo Carlos Nelson Coutinho, ele passa a estudar outros gneros literrios. "A interpretao que ele faz de Machado contm novidades importantes", afirma Portella, referindo-se, sobretudo, ao texto "Machado de Assis e a Prosa Impressionista", contido no volume um de "De Anchieta a Euclides, Breve Histria da Literatura Brasileira" (1977).Significativamente, o volume dois daquela "breve histria da literatura brasileira" jamais seria escrito. que em meados da dcada de 70, em Londres, para onde se havia mudado a convite do ento embaixador Roberto Campos, o foco intelectual de Merquior comeou a se deslocar para a temtica poltica.No difcil perceber que havia um elo comum nos ataques de Merquior; tratava-se de combater certa cultura de esquerda que ele qualificava de romntica e atrasada

A ateno conjuntura sempre fizera parte do cotidiano de Merquior, at porque dela dependia o seu futuro como funcionrio do Ministrio das Relaes Exteriores. Merquior nunca descuidou de ascender no Itamaraty. Admirador confesso de Francisco Clementino de San Tiago Dantas (1911-1964), o mtico chanceler e depois ministro da Fazenda do presidente Joo Goulart (1961-64), procurou seguir-lhe os passos. "Conheci Jos Guilherme em 1963, no almoo em que se convidou San Tiago Dantas para ser o paraninfo da turma dele no Rio Branco", conta o ex-ministro da Fazenda Marclio Marques Moreira (governo Collor, 1990-1992). Formado em direito e filosofia pela antiga Universidade Nacional do Rio de Janeiro, Merquior fizera, em seguida, no Instituto Rio Branco a formao para ingressar na carreira diplomtica e se tornou orador da turma paraninfada por San Tiago. Formado, foi logo depois trabalhar em Braslia. Conta Tolentino que, quando sobreveio o golpe de 1964, Merquior quase embarcou no avio que levaria Darcy Ribeiro, o chefe do Gabinete Civil de Jango, para o exlio. Impedido pela mulher, Hilda Vieira de Castro Merquior, de seguir os chefes do governo deposto, Merquior teve que enfrentar, no Brasil, processo interno no Itamaraty por vnculos com o antigo regime. "Ajudei a fazer a defesa dele e de Sergio Paulo Rouanet", lembra Marques Moreira.

Mergulho na poltica Aps ser absolvido, Merquior foi enviado embaixada em Paris, onde permaneceu at o final dos anos 60. Findo o perodo francs e aps uma passagem por Bonn, na Alemanha, e outra em Braslia, Campos o leva em 1974 para Londres. J doutor em letras pela Sorbonne, Merquior decide, ento, matricular-se na London School of Economics and Political Science para obter um segundo doutorado, dessa feita em cincia poltica. Comea, ento, a aparecer o Merquior da maturidade, aquele que mergulhar na poltica. Do ponto de vista intelectual, a ponte entre uma e outra fase foi realizada pelos trabalhos anteriores de Merquior na rea de crtica da cultura, uma extenso natural da militncia literria. Ao final da turbulenta "era de Aqurio" que caracterizou os anos 60, Merquior escreveu "Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin" (1969), significativamente dedicado a San Tiago Dantas. "Foi o primeiro trabalho a sair no pas sobre a Escola de Frankfurt", conta Portella. De acordo com Jos Mrio Pereira, graas a Merquior, que havia lido os autores alemes na traduo italiana, o Brasil teria tomado conhecimento dos frankfurtianos antes que eles fossem estudados em determinados pases da Europa. Com uma linguagem clara -um dos traos da prosa merquioriana-, "Arte e Sociedade" antes de mais nada "explica" o pensamento dos trs cones da esquerda para em seguida critic-lo a partir de uma tica heideggeriana. Concorde-se ou no com a crtica, o carter didtico da exposio anterior produz aquele efeito de "atualizao cultural" a que se refere Candido Mendes. O mergulho no mundo neo-hegeliano alemo foi, no perodo que precedeu Londres, parte de uma ampla pesquisa voltada para o fenmeno esttico. Nesse percurso, Merquior principia a afastar-se do marxismo, que o havia estimulado no incio da dcada de 60. "Lembro-me de uma carta, do comeo de 1964, em que ele revia Lukcs e aderia a Lvi-Strauss", relata Konder. Em Paris, Merquior estabelece contato direto com o mestre da antropologia e escreve um ensaio intitulado "A Esttica de Lvi-Strauss". Como se v, o caminho que levaria Merquior da crtica literria teoria poltica seria ao mesmo tempo o percurso da esquerda ao liberalismo, ainda que em tempos diferentes. Atribui-se, sem razo, ao ambiente popperiano da London School, onde, sob a orientao do socilogo Ernest Gellner, o diplomata escreveu "Rousseau and Weber - Two Studies in the Theory of Legitimacy" (Routledge e Kegan Paul, 1979), a converso liberal de Merquior. Na verdade, a tese antes favorvel a Rousseau do que a Weber. "Em 1978, achava-me ainda razoavelmente impregnado do utopismo de Maio, que eu vivera dez anos antes em sua sede parisiense", escreveu Merquior, como para justificar-se da falta de liberalismo, no prefcio edio brasileira, publicada apenas dez anos mais tarde. O caminho para o liberalismo foi lento, e a verdadeira cruzada liberal de Merquior ocorrer apenas nos anos 80. Transferido do Reino Unido para o Uruguai e depois para o Brasil, Merquior se engajar em uma srie de polmicas no comeo da dcada que, no por acaso, marcaria o espalhamento do neoliberalismo pelo mundo. A partir dessa poca, o futuro embaixador mostrou-se pouco interessado em conciliar, ao menos no plano do debate pblico. Atacou a psicanlise, cutucou o jornalista Paulo Francis, ento o de maior evidncia no pas, esculhambou Caetano Veloso, dolo da juventude intelectualizada e, acima de tudo, comprou uma briga de morte com Marilena Chaui, uma das mais brilhantes pensadoras da escola uspiana, ao acus-la de "plgio no-doloso" do filsofo francs Claude Lefort. Marilena respondeu que era tradutora de Lefort para o portugus, alm de ter formao comum e intercmbio intelectual com ele, da no fazer sentido a idia de plgio.

Espadachim conservadorNo difcil perceber que havia um elo comum nos ataques de Merquior. Tratava-se de combater certa cultura de esquerda que ele qualificava de romntica e atrasada. Nomeado, no mesmo perodo, para assessorar o chefe da Casa Civil (governo Figueiredo), Leito de Abreu, o ex-crtico literrio lukacsiano passou a frequentar o debate poltico como espadachim conservador.Ao fogo cruzado do incio dos 80 segue-se uma srie de livros em que Merquior -recm-eleito para a Academia Brasileira de Letras- busca dar sustentao crtica da crtica anticapitalista. "A Natureza do Processo" (1982), "O Argumento Liberal" (1983), "O Marxismo Ocidental" (1987) e "O Liberalismo, Antigo e Moderno" (1991), todos publicados pela editora Nova Fronteira, colocam Merquior no mesmo diapaso que outros intelectuais latino-americanos que haviam migrado da esquerda para o liberalismo (e da literatura para a poltica), como Mario Vargas Llosa e Octavio Paz, com quem manteve intenso contato durante o perodo em que foi o embaixador do Brasil no Mxico, entre 1987 e 1989."Com a morte de Merquior, ns, marxistas, perdemos um timo interlocutor", afirma Carlos Nelson Coutinho. "Sinto falta dele", corrobora Leandro Konder.A falta a que se refere Konder diz respeito qualidade da argumentao merquioriana, que obriga o intelectual de esquerda a refinar os argumentos se quiser manter-se altura do adversrio. "Acho que ele foi o primeiro crtico conservador do marxismo no Brasil que efetivamente leu Marx", afirma Konder.Para Candido Mendes, a cultura e a inteligncia de Merquior o teriam levado a superar o liberalismo. De acordo com Mendes, a morte "eliminou a maturidade completa de um pensamento que iria garantir a tarefa crtica no Brasil como uma razo operante sem as servides da ideologia ou da pequena dialtica". No mnimo, afirma Mendes, preciso entender que o liberalismo de Merquior no descartava, antes pressupunha, "a retomada do desenvolvimento".Com efeito, Merquior apagou-se, de repente, no auge de uma batalha intelectual e poltica que ningum sabe exatamente aonde o levaria. Engajado na sustentao ideolgica do governo Collor, produziu, a pedido do presidente, o texto que seria a base programtica de um partido social-liberal a ser construdo pelo poltico alagoano. "Eu lhe disse para cair fora, que aquilo era uma barca furada", conta Konder, que permaneceu amigo de Merquior apesar das desavenas doutrinrias e j percebera o aventureirismo da empreitada collorida.Por que Merquior no ouviu os conselhos? Uma hiptese, aventada por outro amigo, o advogado Paulo Mercadante, precisar ser levada em conta quando for composta a biografia definitiva do polemista. "Merquior tinha sonhos polticos", cogita Mercadante. "Certa vez, ele me disse que havia se preparado intelectual e culturalmente para dar o pulo na poltica, tal como o fizera, dcadas antes, San Tiago Dantas."

ltimos diasPor essas estranhas coincidncias do destino, as trajetrias de um e de outro seriam interrompidas pela doena. Surpreendido por um cncer devastador e fatal em agosto de 1990, Merquior, naquele momento em Paris, reagiu com estoicismo aproximao da Parca, a ponto de continuar a proferir conferncias e escrever quase at o ltimo dia. "Eu acho que o mais importante foi a tica da sua morte", afirma Mendes. "Essa capacidade de ter uma viglia absolutamente romana", explica Mendes, "no sentido de ignorar a morte e ir adiante, quer dizer, como se a contemplao dele j tivesse se fincado na eternidade".Na ltima apario pblica, em dezembro, na capital francesa, Merquior apresentava palidez e magreza cadavricas. "Mas iluminou-se ao comear a falar", conta Eduardo Portella. Defendeu o estabelecimento, no Brasil, de um "neocapitalismo produtivo", que se opusesse tanto ao "projeto de Repblica sindicalista" quanto ao capitalismo "especulativo". Propugnava por um Estado "promotor de estratgias globais de desenvolvimento" e "protetor dessas imensas camadas da populao que esto ainda sem teto, sem a alimentao apropriada, sem escola e sem acesso Justia".Morto em janeiro de 1991, impossvel saber o que Merquior diria diante do surto neoliberal que comeou no governo que ele apoiava e teve continuidade na era tucana. Seja como for, o balano de sua obra, quando for feito, iluminar no s a contribuio especfica de um dos principais intelectuais brasileiros do sculo 20 como o percurso de parte da intelectualidade nacional antes que as estruturas desenvolvimentistas das quais Merquior foi fruto comeassem a ser desmontadas.

Andr Singer professor de cincia poltica na USP e reprter especial da Folha. Autor de "Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro" (Edusp) e "O PT" (Publifolha).