análise do poema de vinicius de morais

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Análise do Poema: Soneto do Amor Maior - Vinicius de Moraes Maior amor nem mais estranho existe Que o meu, que não sossega a coisa amada E quando a sente alegre, fica triste E se a vê descontente, dá risada. E que só fica em paz se lhe resiste O amado coração, e que se agrada Mais da eterna aventura em que persiste Que de uma vida mal-aventurada. Louco amor meu, que quando toca, fere E quando fere vibra, mas prefere Ferir a fenecer e vive a esmo Fiel à sua lei de cada instante Desassombrado, doido, delirante Numa paixão de tudo e de si mesmo A começar pelos aspectos materiais da nossa análise, o poema de Vinicius de Moraes foi disposto em dois quartetos e dois tercetos. Examina-se, portanto, um poema de forma fixa, modelo clássico conhecido como soneto italiano. As duas primeiras estrofes têm um esquema regular de rima: abab, abab. Já nos tercetos, os dois primeiros versos de cada um rimam entre si ("fere" e "prefere" na terceira estrofe; "instante" e "delirante" na quarta estrofe). Os últimos versos de cada terceto apresentam uma rima em eco ("esmo" e "mesmo"). Tem-se a alternância de rimas pobres e rimas ricas, a seguir pela ordem: verbo-adjetivo; adjetivo-substantivo; verbo-verbo; verbo-adjetivo; verbo-verbo; locução adverbial-adjetivo; substantivo-adjetivo. Todas as rimas são consoantes, ou seja, têm harmonia completa no som. Nos quartetos, elas ocorrem de forma cruzada; nos tercetos, de forma emparelhada. Os versos são, em sua maioria, decassílabos com impulsos rítmicos variáveis. Na primeira estrofe, por exemplo, as sílabas tônicas são as seguintes: Maior amor nem mais estranho existe (4 - 8 - 10) Que o meu, que não sossega a coisa amada (2 - 6 - 10)

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Page 1: Análise do poema de vinicius de morais

Análise do Poema: Soneto do Amor Maior - Vinicius de Moraes

Maior amor nem mais estranho existe

Que o meu, que não sossega a coisa amada

E quando a sente alegre, fica triste

E se a vê descontente, dá risada.

E que só fica em paz se lhe resiste

O amado coração, e que se agrada

Mais da eterna aventura em que persiste

Que de uma vida mal-aventurada.

Louco amor meu, que quando toca, fere

E quando fere vibra, mas prefere

Ferir a fenecer – e vive a esmo

Fiel à sua lei de cada instante

Desassombrado, doido, delirante

Numa paixão de tudo e de si mesmo

A começar pelos aspectos materiais da nossa análise, o poema de Vinicius de Moraes foi

disposto em dois quartetos e dois tercetos. Examina-se, portanto, um poema de forma fixa,

modelo clássico conhecido como soneto italiano. As duas primeiras estrofes têm um esquema

regular de rima: abab, abab. Já nos tercetos, os dois primeiros versos de cada um rimam entre si

("fere" e "prefere" na terceira estrofe; "instante" e "delirante" na quarta estrofe). Os últimos

versos de cada terceto apresentam uma rima em eco ("esmo" e "mesmo").

Tem-se a alternância de rimas pobres e rimas ricas, a seguir pela ordem: verbo-adjetivo;

adjetivo-substantivo; verbo-verbo; verbo-adjetivo; verbo-verbo; locução adverbial-adjetivo;

substantivo-adjetivo. Todas as rimas são consoantes, ou seja, têm harmonia completa no som.

Nos quartetos, elas ocorrem de forma cruzada; nos tercetos, de forma emparelhada.

Os versos são, em sua maioria, decassílabos com impulsos rítmicos variáveis. Na primeira

estrofe, por exemplo, as sílabas tônicas são as seguintes:

Maior amor nem mais estranho existe (4 - 8 - 10)

Que o meu, que não sossega a coisa amada (2 - 6 - 10)

Page 2: Análise do poema de vinicius de morais

E quando a sente alegre, fica triste (4 - 6 - 10)

E se a vê descontente, dá risada. ( 3 - 6 - 10)

Nos versos 3, 4 e 5 observa-se a ocorrência da anáfora, uma vez que a conjunção e aparece no

início de cada um deles, sendo retomada na metade do sexto verso e no início do décimo. Há

também o uso de aliterações, nos versos 9, 10, 11 e 12 com a sequência de fones fricativos

lábio-dentais, alternando entre sonoros e surdos (fere, fere, vibra, ferir, fenecer, vive) e nos

versos 12 e 13 , com as oclusivas alveolares (cada, instante, desassombrado, doido, delirantes).

A anáfora e a aliteração, somadas ao recurso da rima, contribuem para evidenciar a sonoridade

do poema.

O soneto tem sua voz centrada em um "eu" que exprime seus sentimentos em tempo imediato.

Todos os verbos estão conjugados no presente e são usados para atribuir ao amor descrito ações

essencialmente humanas, como se observa em dá risada, toca, fere, prefere, etc.

Na primeira estrofe, observamos um jogo de contrastes: sente alegre e fica triste; vê descontente

e dá risada. É provável que esse choque entre alegria-tristeza venha a sublinhar a afirmação feita

pelo eu-lírico nos dois primeiros versos, de que não existe amor maior e nem mais estranho do

que o seu. Na segunda estrofe, a tensão se faz entre eterna aventura e vida mal-aventurada, esta

última renunciada pelo eu-lírico.

A reiteração da conjunção "e" nos versos 3, 4 e 5 serve para reforçar o caráter contraditório do

sentimento descrito pelo poeta: um amor fora do comum, que sente tristeza ao ver a "coisa

amada" alegre, ri se a vê descontente e fica em paz se resiste ao amado coração. São reações não

condizentes com a ideia habitual de amor, que em geral causa o oposto do que foi descrito pelo

poeta: se uma das partes está descontente, a outra também o está; o mesmo vale para a alegria; e

não há resistência, pois o amor é "entrega", "rendição".

Surge, então, a concepção de um amor de certo modo "egoísta", que prefere aventurar-se, viver

ao acaso, ser "fiel à sua lei de cada instante" a murchar, fenecer, mesmo que para isso seja

necessário ferir, como está explícito na sequência de aliterações que se inicia no verso 9 e finda

no verso 12. Aqui, a sonoridade causada pela repetição das fricativas lábio-dentais (f - f - v - f -

f - v) assume um sentido quase ameaçador. O louco amor do poeta, o amor sem temores,

quando toca, quando atinge a coisa amada, é capaz de ferir, estremecer, e é o que o agrada:

persistir em sua eterna aventura.

Page 3: Análise do poema de vinicius de morais

A aliteração de oclusivas alveolares na última estrofe reafirma o aspecto delirante desse amor

que tem paixão por tudo e por si mesmo. A sequência (t - t - d - d - d - d - d - t - t - d) parece

caracterizar a extravagância e singularidade do amor descrito. O último verso parece concluir

tudo o que foi expresso até então, quando diz "numa paixão de tudo e de si mesmo", em que é

possível notar, mais uma vez, o caráter egoísta do sentimento do poeta.

Todos os aspectos acima mencionados - tanto os materiais quanto os expressivos - são típicos da

lírica. A subjetividade, a sonoridade, a voz em primeira pessoa, a atemporalidade, o sentido

denotativo que os verbos assumem: tudo dirigindo o poema a uma forma elaborada e inusitada

de descrever um sentimento tão saturado dentro das obras literárias como o amor.