análise do manifesto antropófago
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Anlise do Manifesto Antropfago Sntese de A antropofagia ao alcance de todos de Benedito Nunes. (ANDRADE, Oswald. 1995)
1. No manifesto o uso da palavra antropfago, ora emocional, ora exortativo, ora
referencial faz-se nesses trs modos da linguagem e em duas pautas semntica
uma etnogrfica e outra histrica.
2. Desenvolvimento em trs planos: simblica da represso ou da crtica da cultura;
o histrico-poltico da revoluo caraba; e o filosfico, das idias metafsicas.
a)A sociedade brasileira surge atravs das oposies que a dividiram, polarizando a sua
religio, sua moral e o seu direito a partir de uma primeira censura a da Catequese que
trouxe o cristianismo e a do Governo Geral que trouxe as ordenaes. Resulta no cdigo
de tica do senhor do Engenho, patriarca dono de escravos, reinando sobre a Senzala e a
Casa Grande. Segundo Oswald nunca fomos catequizados e o paganismo tupi e africano
subsiste como religio natural na alma dos convertidos, de cujo substrato inconsciente faz
parte o antigo direito de vingana na sociedade tribal tupi. As oposies podem ser
resumidas a uma nica entre o antropfago nu e o ndio de roupa inteira, ndio vestido de
senador do imprio, figurando nas peras de Alencar cheio de bons sentimentos
portugueses.
b) Fixaes psicolgicas e histricas da nossa cultura intelectual emblemas so
personalidades e situaes consagradas, intocveis como os tabus: Padre Vieira (a
retrica e a eloqncia) Anchieta (o fervor apostlico e a pureza), Goethe (o senso de
equilbrio, a plenitude da inteligncia) a Me dos Gracos (a moral severa, o culto
virtude), a corte de D.Joo VI (a dominao estrangeira), Joo Ramalho (o primeiro
patriarca ).
c) A esses emblemas opem-se os mitos culturais sol, cobra grande, jaboti, Jacy,
Guaracy etc. habitantes das reservas imaginrias instintivas do inconsciente primitivo
(coletivo), catalizariam quando satiricamente lanados contra os primeiros, a operao
antropofgica, como devorao dos emblemas de uma sociedade. Isso a transformao
do Tabu em totem. Trata-se de desafogar recalques histricos e liberar a conscincia
coletiva (o transe), novamente disponvel, depois disso para seguir os roteiros do instinto
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caraba gravados nesses arqutipos do pensamento selvagem o pleno cio, a festa, a
livre comunho amorosa, incorporados viso potica pau-brasil e s sugestes da vida
paradisaca sem complexos, sem loucura, sem prostituies e sem penitencirias do
matriarcado de Pindorama.
d) A rebelio individual a servio da revoluo caraba maior que todas as revolues
porque emprestou seu impulso rebeldia romntica, revoluo bolchevista, ao
surrealismo e ao transformadora da tcnica, que produziu com uma nova escala da
experincia humana, o selvagerismo da sociedade industrial. num ato de reintegrao de
posse, que equivale a uma crtica da razo poltica do exotismo, j que a trajetria
ideolgica do nosso antropfago foi a mesma que introduziu a atrao do novo mundo na
literatura europia, a revoluo caraba nos devolveria o impulso originrio que unifica
todas as revoltas eficazes na direo do homem. Oswald como Montaigne (XXXI Essays)
reconhece na antropofagia, ato de vindita menos brbaro do que a crueldade com que os
europeus, incapazes de comer um homem morto, torturam e estraalham um corpo
humano vivo, sob o pretexto de piedade e de religio. Segundo Nunes, foi desse
quadro que Montaigne decalcou a sua interpretao da sociedade primitiva, mtica
Idade de Ouro, matriarcal e sem represso, cuja violncia se descarregaria no ritual
antropofgico, que foi a espcie de canibalismo valorizada por Oswald de Andrade.
e) Com a referncia a Totem e tabu de Freud, Oswald generaliza a antropofagia ritual
enquanto purgao do primitivo origem da sade moral do homem como animal de
presa que assimila e digere, sem resqucio de ressentimento ou de conscincia culposa
espria, os conflitos interiores e as resistncias do mundo exterior (Nietzsche). Pilhagem
terica a prpria atitude antropofgica, justificada pela digamos, traio da memria,
ratificando uma metafsica brbara que assume o terror primitivo.
f) O alcance religioso da antropofagia graas ao ritual canibalstico, incorporava, num
ato de extrema vingana, a alteridade inacessvel dos seus deuses, fincando-os na terra, e
com eles estabelecendo a convivncia familiar. preciso partir de um profundo atesmo
para se chegar idia de Deus.
g)Oswald interiorizou na antropofagia o ndio, mas como imagem do primitivo vivendo
numa sociedade outra, e movendo-se num espao etnogrfico ilimitado, que se confundia
com o inconsciente da espcie. Por esse lado, seu primitivismo reproduziu o
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distanciamento crtico do antroplogo moderno e por outro aliou-se, recuando a um
pensamento selvagem, ao desnudamento do homem que a psicanlise empreendia. Tupi
ou caraba, longe de representar a alma comum sedimentada, conota as energias psquicas
que animam e impulsionam o desenvolvimento humano. Um novo mito que incidindo
sobre a histria para critic-la, encontra sua matria no arqutipo mesmo do homem
natural, tornando-se um contra-mito.
h) O Matriarcado de Pindorama Tese: homem natural anttese homem civilizado
sntese homem natural tecnizado. Na qualificao da antropofagia se d a concepo de
mundo baseado no conjunto das estruturas do matriarcado primitivo, e de messinico
concepo de mundo correspondente ao patriarcado. Oposio e tese fundamental do
manifesto.
i) A concepo messinica une duas instncias de dominao o estado e a espiritual do
sacerdcio, ligando a autoridade do pai a de Deus, reproduz o modelo colonial de
governo. a conquista espiritual dos jesutas que se transfere ao do pensamento
messinico, suporte ideolgico e expresso filosfica de uma superestrutura de que so
aspectos integrantes o regime da propriedade privada no direito, da famlia monogmica
quanto aos mores e do monotesmo quanto religio. So messinicas as religies de
salvao e as filosofias da transcendncia, que traduzem as doutrinas paternalistas do
Estado Forte, inclusive a ditadura do proletariado os derivativos soteriolgico (a figura
do mediador, sobrenatural ou carismtico) e escatolgico.
j) A concepo matriarcal a expresso da solidariedade que ligava o homem natureza
e os indivduos entre si, graas ao comum sacrifcio do totem. Realiza o direito materno,
a propriedade comum da terra que compem a cultura antropofgica, ldica e festiva,
garantindo-se periodicamente contra o desequilbrio por meio da transgresso dos
banquetes orgisticos, e tendo no trabalho espontneo um prolongamento das atividades
vitais. Libertado pela mquina, o homem recuperaria sua liberdade real e o sentimento
ldico, pai da criao artstica recuperaria tambm o seu medo ancestral.
Aviso de Benedito Nunes: No busque no pensamento de Oswald de Andrade a latitude
do discurso reflexivo-crtico, a delimitao cuidadosa de problemas pressupostos, nem
essas longas cadeias de raciocnio que caracterizam a filosofia. Busque, isto sim, a cadeia
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de imagens que ligam a intuio potica densa conceituao filosfica esquematizada,
aqum de qualquer sistema e um pouco alm da pura criao artstica. E, sem confundir
seriedade com sisudez, aceite que o tempero da stira tenha entrado em altas doses nesse
banquete antropofgico de idias, presidido pelo humor de Serafim Ponte Grande, que
fundiu o sarcasmo europeu de Ubu Roi com a malcia brasileira de Macunama.
Ref. Maria Cndida Almeida (2002):
A dialtica de Oswald desfaz as oposies dicotmicas entre colonizador/colonizado;
civilizado/brbaro e natureza/tecnologia. Ao considerar o canibal como um sujeito
transformador, social e coletivo faz a reviso da tradio ocidental, mudando a direo da
seta no sentido evolutivo primitivo - civilizado, propondo o brbaro tecnizado, bem mais
prximo das manifestaes da cultura contempornea, tribal e tecnolgica. Muitas da
idias em voga de compartilhamento da informao esto de certa maneira prefiguradas
na teoria desse pensador brasileiro. No lugar do hibridismo, sempre tivemos em todos os
processos tnicos e culturais, a mestiagem, genuna criao brasileira.
O manifesto anuncia aquilo que iria ocorrer posteriormente na linguagem: um modelo de
pensamento cultural e de uma lngua brasileira calcada na sntese das expresses
regionais da prtica oral de todo o Brasil. A multiplicidade de interpretaes
proporcionada pela justaposio de imagens e conceitos coerente com a averso de
Oswald de Andrade ao discurso lgico-linear herdado da colonizao europia. Sua
trajetria artstica indica que h coerncia na loucura antropofgica - e sentido em seu
no-senso.
NUNES, Benedito. A antropofagia ao alcance de todos. In:ANDRADE, Oswald. A
utopia antropofgica. So Paulo, Global, 1995.
ALMEIDA, Maria Cndida. Tornar-se outro. O topos canibal na literatura brasileira. So
Paulo, Annablume, 2002.