anÁlise didÁtica: uma histÓria feita de crÍticas...

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Jornal de Psicanálise, São Paulo, 41(74): 71-111, jun. 2008. 71 1 Colaboração na pesquisa histórico- bibliográfica de Sandra Lorenzon Schaffa e Leda Affonso Figueiredo Herrmann. Agradeço a Vera Sevestre e Irene Pereira o levantamento bibliográfico prévio. A tradução de citações, no texto e nas notas, é de responsabilidade do autor. * Com algumas alterações, este artigo foi publicado em: Slavutzky, A., Souza Brito, C.L.& Souza, E.L.A. (1996) (Orgs.). História, clínica e perspectiva nos cem anos da psicanálise. Porto Ale- gre: Artes Médicas, 1996. 2 1944-2006. Analista didata da SBPSP. ** As notas de rodapé e citações foram mantidas, porém convertidas para os padrões ora adotados pelo JP. Para fami- liarizar o leitor com algumas caracterís- ticas da SBPSP na época da produção do artigo, introduzi notas, assinaladas pelo sinal de asterisco. Atualizei também as referências bibliográficas dos livros de Fabio (L. H.). ANÁLISE DIDÁTICA: UMA HISTÓRIA FEITA DE CRÍTICAS 1* Fabio Herrmann 2 Preâmbulo de 2008 ** Em 1993, o Jornal de Psicanálise (vol. 23, nº 50) debruçou-se sobre a questão da análise didática, para pensá-la como uma psicanálise regulamentada. Seus editores, Lia- na Pinto Chaves e Luis Carlos Menezes, enco- mendaram então a Fabio uma resenha histó- rica sobre o tema. Formação e movimento psicanalítico ocuparam as preocupações do Fabio escritor e pensador da Psicanálise, principalmente dos anos 80 até meados dos 90, quando ocupou cargos administrativos — foi presidente da SBPSP, da Fepal, chair para a América Latina do Comitê de Programa no Congresso Internacional de Roma de 1989 e do Comitê de Sociedades, criado na gestão de Horácio Etchegoyen na IPA. O resultado foi este longo artigo, que passeia, no seu estilo irônico-crítico, pela história da constituição da análise didática desde os primórdios da invenção da Psicanálise, analisando prefe- rencialmente a formação psicanalítica vigen- te na SBPSP. Agora, em 2008, com este número, A análise do analista, o JP volta ao tema e seu corpo editorial, por sugestão de Luis Carlos Menezes, decide oportunamente republicá- lo, resgatando-o do limbo das passadas edi- ções, cujo destino em geral é o esquecimento. Os quinze anos decorridos em nada afetaram

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Page 1: ANÁLISE DIDÁTICA: UMA HISTÓRIA FEITA DE CRÍTICAS 1*pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v41n74/v41n74a05.pdf · com as evangélicas figuras da ovelha perdida e do filho pródigo, seja mais

Jornal de Psicanálise, São Paulo, 41(74): 71-111, jun. 2008. 71

1 Colaboração na pesquisa histórico-bibliográfica de Sandra Lorenzon Schaffae Leda Affonso Figueiredo Herrmann.Agradeço a Vera Sevestre e Irene Pereirao levantamento bibliográfico prévio. Atradução de citações, no texto e nasnotas, é de responsabilidade do autor.* Com algumas alterações, este artigo foipublicado em: Slavutzky, A., SouzaBrito, C.L.& Souza, E.L.A. (1996)(Orgs.). História, clínica e perspectiva

nos cem anos da psicanálise. Porto Ale-gre: Artes Médicas, 1996.2 1944-2006. Analista didata da SBPSP.** As notas de rodapé e citações forammantidas, porém convertidas para ospadrões ora adotados pelo JP. Para fami-liarizar o leitor com algumas caracterís-ticas da SBPSP na época da produção doartigo, introduzi notas, assinaladas pelosinal de asterisco. Atualizei também asreferências bibliográficas dos livros deFabio (L. H.).

ANÁLISE DIDÁTICA:

UMA HISTÓRIA FEITA DE CRÍTICAS1*

Fabio Herrmann2

Preâmbulo de 2008**

Em 1993, o Jornal de Psicanálise (vol.

23, nº 50) debruçou-se sobre a questão da

análise didática, para pensá-la como uma

psicanálise regulamentada. Seus editores, Lia-

na Pinto Chaves e Luis Carlos Menezes, enco-

mendaram então a Fabio uma resenha histó-

rica sobre o tema. Formação e movimento

psicanalítico ocuparam as preocupações do

Fabio escritor e pensador da Psicanálise,

principalmente dos anos 80 até meados dos

90, quando ocupou cargos administrativos —

foi presidente da SBPSP, da Fepal, chair para

a América Latina do Comitê de Programa no

Congresso Internacional de Roma de 1989 e

do Comitê de Sociedades, criado na gestão de

Horácio Etchegoyen na IPA. O resultado foi

este longo artigo, que passeia, no seu estilo

irônico-crítico, pela história da constituição

da análise didática desde os primórdios da

invenção da Psicanálise, analisando prefe-

rencialmente a formação psicanalítica vigen-

te na SBPSP.

Agora, em 2008, com este número, Aanálise do analista, o JP volta ao tema e seu

corpo editorial, por sugestão de Luis Carlos

Menezes, decide oportunamente republicá-

lo, resgatando-o do limbo das passadas edi-

ções, cujo destino em geral é o esquecimento.

Os quinze anos decorridos em nada afetaram

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sua atualidade e a clareza com que registra e expõe a característica principal da

análise didática: ter-se constituído como uma história feita de críticas pela burocra-

tização que o destino do movimento psicanalítico lhe impôs. Assim, este artigo

conclama todos os psicanalistas a contornar, pelo constante uso do pensamento

crítico, o destino da regulamentação burocrática impeditiva de discussões balizadas

no próprio método psicanalítico; discussões que tomem em consideração a troca de

experiências e avaliação de resultados sobre este ponto fundamental da formação,

que é a análise daquele que deseja ser analista.

Para finalizar, retomo as palavras de Fabio na “Introdução” que preparou

quando este mesmo JP, em 1999 (v. 32, nos 58/59), decidiu pela republicação de um

texto seu de 1983, “A Psicanálise, a psicanálise e as demais psicoterapias em face

do absurdo”:

Ao fim de contas, idéias são assim mesmo. A gente pensa que as tem, mas somente as pule.

Seu movimento visceral continua à revelia do autor que, acreditando haver enterrado algum

momento intermediário da produção — com o esgotamento de uma edição, por exemplo —,

acaba por se surpreender ao encontrar o corpo andando redivivo por aí. Talvez, antes que

com as evangélicas figuras da ovelha perdida e do filho pródigo, seja mais honesto admitir

a comparação com o também bíblico Lázaro: qualquer estágio que se sepulte de uma idéia

acaba por levantar da cova e sai atrás do autor, cobrando seu destino…

Leda Herrmann

RESUMO

A visão que temos de nossas teorias, práticas e instituições costuma ser a de que

estas decorrem exclusiva ou principalmente de reflexões ou descobertas. No caso das

regras que norteiam a formação, porém — como, aliás, no estabelecimento das teorias

dominantes e das práticas clínicas usuais —, os jogos de força entre correntes e grupos

psicanalíticos desempenham um papel destacado. A regulamentação da análise didática,

em especial, é menos o produto de uma ampla discussão entre os analistas que o

resultado da complexa história de nosso movimento.

Por tal razão, provavelmente, grande parte dos escritos mais notáveis sobre o

assunto possuem um inequívoco tom crítico. No presente artigo, o autor procura rastrear

algumas das linhas mestras dessa história e dessas críticas. Dentro do quadro de uma

revisão histórica, avaliam-se certos problemas implicados na organização institucional da

análise didática e busca-se compreender o motivo da ambigüidade central: aquilo que mais

se critica é o que mais se pratica.

Palavras-chave: Análise didática. Formação. Movimento psicanalítico. Transferência.

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Análise didática: uma história feita de críticas

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Freud gostava de citar como exem-plo do valor antitético das palavras primi-tivas o vocábulo latino sacer, que signifi-ca ao mesmo tempo sagrado e maldito

(Freud, 1910/1957a, p. 159). No conheci-do artigo (de 1910) sobre o tema, esteexemplo tem papel proeminente; mas jáfigura na primeira ata das Reuniões psi-

cológicas das quartas-feiras, de 1906,que, comentando um manuscrito de Ranksobre o incesto (Numberg & Federn,1979, p. 36), faz menção a este valorantitético.

A análise didática é justamenteassim: considera-se o lugar sagrado daformação psicanalítica, por isso mesmofalar dela soa quase sempre blasfemo.(Não fosse a blasfêmia um dos destinosmais comuns da fala humana e talvez omais tentador.) Quando se discutem opoder dos analistas, os males das institui-ções, a formação de grupos transferenci-ais nas sociedades, é sempre a prática daanálise didática que é logo posta à mesa.Do lado de fora dos institutos, a análisedidática é usualmente comparada a uminstrumento disciplinador fascista; noscomentários internos de corredor, entra,não raro, no capítulo do abuso de podereconômico. Desde os pretendentes à for-mação até alguns dos mais importantespensadores psicanalíticos parecem estarcheios de críticas à análise didática — no

entanto, sua prática continua e é vistacomo central para a formação.

Em consonância com uma antítesede tal monta, realizamos um levantamen-to histórico-bibliográfico, a fim de apurara tendência dos textos mais interessantessobre o assunto. E, de fato, estes secentram numa crítica geral à formaçãoanalítica e apontam quase sempre proble-mas sérios na condução das análises di-dáticas, quando não criticam sua meraexistência — modelares, a este respeito,são os artigos de Balint, Szasz e Bernfeld,aos quais nos referiremos muitas vezesno texto. A questão que se nos defrontaneste artigo é, portanto, tentar compreen-der a razão de tantas críticas, acompa-nhando simultaneamente o próprio de-senvolvimento histórico que deu forma àanálise didática atual. As duas dimensõesestão interligadas, pois, como veremos,não só a história da implantação da aná-lise didática foi e continua sendo sobcertos aspectos criticável — no momen-to, por exemplo, a condenação da chama-da análise condensada talvez cumpraum papel político dentro dos jogos depoder internacional da psicanálise —*,como, por outro lado, a crítica da forma-ção psicanalítica, e da análise didática emparticular, tem sido um dos motores dahistória do movimento psicanalítico. Qua-se todas as cisões começaram com algum

* De 1987 até o final da década de 90, a SBPSP viveu sob o regime de intervenção branca da IPA.Primeiramente, interrompeu-se por quatro anos o processo de seleção de novos pretendentes à formaçãoanalítica. Em seguida, foi proibida a prática da análise condensada (freqüência a mais de uma sessão nummesmo dia), que durante anos propiciou o acesso à formação a colegas do interior e de outros Estados,favorecendo a expansão do movimento psicanalítico para além da cidade de São Paulo.

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tipo de pronunciamento contra a forma-ção oficial, às vezes ao estilo progressista,às vezes como um pronunciamento con-servador. O certo é que seria impossívelatender ao pedido do Jornal de Psicaná-lise de preparar uma resenha histórica dainstituição da análise didática, sem tomarem conta que esta é, como reza o título,uma história feita de críticas.

Qual a extensão real da prática daanálise didática entre os grupos analíti-cos? Há tempos, fui convidado a partici-par de uma mesa sobre formação psica-nalítica no congresso de certo grupo laca-niano em Belo Horizonte. Um dospainelistas explicava como haviam supe-rado este “instrumento de poder da IPA”.Os postulantes àquele grupo deviam com-pletar seus cursos e análises antes de seapresentarem à instituição, quando entãoseriam julgados aceitáveis ou não. Paraminha surpresa, ao argumentar que, nes-se caso, também tinham eles uma espéciede análise didática, ou seja, uma análiseregulamentada como condição de acessoao título de psicanalista, a reação doorador esteve entre surpresa e indignada.Segundo o colega, a coisa era totalmentediferente ali, porque não tinham didatas.Havia umas trezentas pessoas no auditó-rio. Perguntei-lhes se não corria entreeles alguma lista não oficial de quemdeveria ser procurado para análise porum postulante realmente interessado emser aceito e subir na instituição. Houveum assentimento cúmplice dos mais jo-

vens e um pouco de mal-disfarçado riso.Em suma, a questão é mais ou menos aseguinte: nós temos uma lista impressa deanalistas que podem ser procurados peloscandidatos e um regulamento que prevê otempo mínimo e as condições de feiturada análise didática; mas todo grupo psica-nalítico de formação e boa parte dosgrupos de formação psicoterápica exi-gem que o postulante se submeta a umaterapia de certa duração, consideradaséria, e possuem também listas das pes-soas elegíveis para cumprir tal exigência:a lista pode ser escrita ou falada, decreta-da ou construída por boatos, eis a diferen-ça principal, ao que parece. A questãoverdadeiramente relevante, portanto, se-ria decidir se convém ou não exigir análiseprévia de quem quer ser analista, pergun-ta já de si blasfema hoje em dia, mas queao ser feita em diferentes oportunidadesa Freud recebeu alguns ‘nãos’ e outros‘sins’, acabando por resolver-se pratica-mente ao longo deste século* por umaregulamentação formal que encerrou adiscussão, ou tentou, pelo menos.

Por ora, fiquemos num âmbito maisameno e pessoal. Fiz minha análise didá-tica com o dr. Armando Ferrari, no come-ço dos anos 70, e nunca me arrependidisso. Discutir minha vida e profissãocom aquele italiano inteligente e apaixo-nado pode ter sido tudo, menos monótono.Houve dificuldades — que análise não astem? —, mas talvez o que mais impregnaminha memória daqueles anos é uma

* O autor refere-se ao século 20.

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sensação de bom humor. (Quando nãoum manancial de riso.) Certa vez, diantede um trocadilho meu, replicou-me exal-tado que eu estava... Estava... Na brave-za, fugira-lhe o português e completouseveramente: “Doutor, o senhor estáschermando con le parole!” Meu itali-ano não dava para tanto. Schermando?,perguntei. “Sim”, contestou pensativo,“como se diz isso que se faz com espada,florete?” Pensei um pouco eu também.“Ah, esgrimindo?” “Isso mesmo, o se-nhor está esgrimindo com as palavras!”,completou Ferrari com a mesmaimperturbável severidade. (Penso que foia primeira vez que escutei uma broncacom tradução simultânea...) O que querodizer, e sendo simples é também funda-mental, é que esta coisa de análise didá-tica só se pode levar com um mínimo dehumano bom humor. Tratada em tomaltissonante, fica sagrada ou malditaou, pior, converte-se na ocasião idealpara elevadas declarações de princípi-os éticos.

Anos depois, tive muitas oportuni-dades de recordar essa lição, ao tornar-me analista didata. Implantado o atualsistema de escolha de didatas por eleiçãoda Assembléia Geral*, durante bom tem-po ninguém se apresentava. Como queestávamos todos à porta de entrada, con-vidando uns aos outros, gentilmente: “Pas-se por favor”. “Não, não, meu caro, vocêprimeiro.” Como, na época, eu era presi-dente da Sociedade, alguém me fez ver

delicadamente que estava atravancandoa porta, e decidi candidatar-me.

O sistema anterior, em que os no-vos didatas eram escolhidos pelos futurospares, havia desembocado num impasseque a seu tempo será discutido. Acabáva-mos de viver tempos difíceis na Socieda-de e nosso contato com os organismospsicanalíticos internacionais estivera quasecortado. Assim, quase imediatamente apóster sido eleito para a função, no fim de1985, era o único representante de SãoPaulo no Pré-Congresso Didático da Fe-pal, que antecedeu o Congresso do Méxi-co, de 1986, e não pude escapar da apre-sentação de um trabalho, mesmo sem terpraticamente vivência alguma da função.Talvez por isso, em 1987 e 1989, nasConferências de Analistas Didatas dosCongressos Internacionais de Montreal ede Roma, fui convidado a dirigir grupos dediscussão. Em nenhuma dessas oportuni-dades deixou-se de falar sobre análisedidática. É claro que, não tendo grandeexperiência na matéria, pois ainda estavacomeçando, foi fascinante participar dadiscussão dos mais velhos e conhecedo-res. Pude notar que, nos sucessivos en-contros grupais, uma constante nuncafaltava. Os debates começavam em tommaior, com os próprios analistas didatasassumindo ativamente as críticas que, dehábito, se lhes fazem: poder transferenci-al, doutrinação dos candidatos, complica-ções da moldura analítica por fatoresinstitucionais. É como se a parte candi-

* Esse sistema esteve vigente na SBPSP de meados dos anos 80 a meados dos anos 90.

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dato renascesse dentro do didata nessesmomentos, ou penetrassem em nós atémesmo as críticas externas à IPA; e osdiscursos inflamavam-se até à empol-gação. Pouco a pouco, porém, a curvaemocional entrava em descendente, ter-minando nosso concerto, em tom decidi-damente menor, por admitir a impres-cindibilidade da análise didática, a neces-sidade de algum tipo de seleção dos dida-tas e a fatalidade dos empecilhos práti-cos. No fim, a situação presente pareciaaos diferentes grupos de discussão ser amenos ruim.

Quem sabe venha a ser esta aconclusão da conversa que agora inicia-mos: um mal necessário. Entretanto, ateoria do mal necessário, apareça ondeaparecer, sempre se me afigura um pou-co falaciosa. Geralmente, conduz-nos aconcluir pelo mal necessário a conver-gência entre uma evidente confusão euma intenção oculta. Reside a confusãoem juntar, num mesmo objeto de juízo,dois objetos da realidade distintos. O cor-te malfeito, em nossa questão, faz identi-ficarem-se análise didática e análise re-gulamentada: a primeira é, antes de maisnada, um bem necessário; a segunda,talvez um mal dispensável. Em termosgerais, regulamentos fazem-se assim: agente avalia uma série de casos concre-tos e prevê, sensatamente, qual regrageral abarca todos eles; estabelecida esta,aplicam-na ao próximo caso e só aí seavalia a extensão da tolice cometida. Poisa média de situações particulares redun-da em princípios puristas ou em medidas

mesquinhas de controle. Quem recolheas sobras, neste caso, é o espírito buro-crático, que se sente à vontade paraproferir a terrível sentença final: seria até

melhor não haver regulamentos, mas

se os há é para serem cumpridos. Re-gulamentos não são entidades inofensi-vas, não são simples parâmetros; elesdeterminam uma paulatina drenagem daessência para as regras formais, sobretu-do quando, como em nosso caso, a essên-cia da operação analítica é tão fugidia:discute-se qual a essência da psicanálisee a triste resposta burocrática é: umaterapia feita em quatro dias da semana. Aintenção oculta é pois a da burocracia.Em princípio, a Psicanálise, enquanto dis-ciplina — não menos que a psicanálise, aprática clínica —, é a antípoda precisa daburocracia. Todavia, como sempre e comoem toda parte, alguns espíritos burocráti-cos extraviam-se para dentro de nossomovimento. Seu destino é aqui ingrato,uma vez que estão condenados a enxer-gar à volta a criação do pensamentopsicanalítico, sem poder dela participar enão raro tendo suficiente sentido estético-científico para apreciar o produto. Nãosão pessoas más ou maldotadas, apenasforam parar onde não deviam. Há duasposições em que se pode refugiar o buro-crata psicanalítico: na periferia das esco-las teóricas, transformando em certezadogmática as inquirições do pensador edifundindo a ortodoxia resultante, e nocentro das decisões administrativas, cri-ando e operando regulamentos. Comoveremos, a opinião dos autores que se

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debruçaram sobre o assunto em nossomovimento psicanalítico não deixa dema-siadas dúvidas. Em sua eterna luta dialé-tica contra o pensamento psicanalítico, aoqual serve letalmente, a intenção buro-crática tem na regulamentação do ensinoe, em especial, na análise regulamentadao instrumento perfeito para fazer-se ne-cessária, o necessário mal.

Haverá meios de desfazer a con-fusão entre análise didática e regulamen-to? Não sei. Apenas sei, e quero deixarregistrado logo no começo deste artigo,que o trabalho de analista didata, se leva-do com algum humor e autocrítica, podeser verdadeiramente estimulante e agra-dável. Meus analisandos ensinam-me asorrir de minhas próprias insuficiências ea ser simples ao falar da vida, aindaquando não o seja necessariamente aoescrever sobre matéria teórica. Enfim, aolado da escrita teórica e da clínica, parti-cipar da formação de novos analistasajuda a ver a vida passar sem mágoa, poismais vida vem depois, também em nossopequeno mundo psicanalítico. E comodesta vida nada se leva, melhor é deixarnela o máximo possível...

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O curso d’água formador da aná-lise didática, como a conhecemos atual-mente, nasce de três fontes principais,cada uma delas produzindo seu filete, quese vai engrossando e abrindo um leitotortuoso, para desembocar num rio queparece hoje querer correr montanha aci-

ma. São elas: o ensino da terapia analítica,a institucionalização do movimento psica-nalítico internacional e o desenvolvimentoda teoria psicanalítica. Alguns autores(Balint, 1948; Szasz, 1958) que tratam dahistória da formação distinguem tambémtrês períodos no processo geral de regu-lamentação da análise didática: o primeirovai do fim do século 19 até 1918, com oCongresso de Budapeste, ou 1920, com aformação do Instituto de Berlim; o segun-do estende-se até o começo da SegundaGuerra ou até a morte de Freud, em 1939;o terceiro abrange o pós-guerra e a rigorpoder-se-ia estender sem grandes modi-ficações até nossos dias. Sigamos as trêslinhas de origem brevemente, referindo-as aos períodos sucessivos e procurandolocalizar suas intenções principais.

Pelos fins dos anos 1890, Freud jáera ocasionalmente procurado por alunosseus para que os ajudasse em dificulda-des pessoais ou, o que era ainda maiscomum, para que interpretasse seus so-nhos. Ao mesmo tempo, prosseguia aauto-análise de Freud, no mesmo passode sua produção teórica e prática clínica,funcionando estes três espaços como sis-temas de reverberação: o que vinha deum dos emissores influenciava os outrosdois e encontrava comprovação, às vezespor um processo que hoje chamaríamosde sugestão intelectual, outras por umaautêntica fertilização cruzada. Por fim,com o início das Reuniões psicológicas

das quartas-feiras, em 1902, embrião daSociedade Psicanalítica de Viena

(Numberg H. & Federn, 1979, pp. 10-11),

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fundada em 1908, a prática de revisar emgrupo as histórias pessoais e os proble-mas psicológicos dos membros ganhasistematicidade. Na reunião científica de15 de janeiro de 1908 (Numberg H. &Federn, 1979, pp. 289-293), o dr.Urbantschitsch, médico, proprietário ediretor do próspero Cottage Sanitariumde Viena, apresentou algumas notas, tira-das de seu diário pessoal, em que descre-ve o próprio desenvolvimento sexual até ocasamento. Como se vê, a franca exposi-ção da vida psíquica, para si mesmo epara os outros, acompanha a invenção daPsicanálise. Freud insistia na necessida-de de auto-análise do psicanalista e, maistarde, na conveniência de fazer-se anali-sar de tempos em tempos (Freud, 1937/1964, p. 249).

Mas de que análise se tratava?Freud (1912, pp. 116-117) recomendavaanálise prévia3, principalmente entre 1910e 1920, e referia-se à análise didática,Lehranalyse4, diferenciando-a de formacortante da análise terapêutica. O primei-ro termo, análise prévia, sugere a con-veniência de um período de análise pesso-al antes de começar a atender pacientes,o segundo implica que um instrumentobásico da instrução do analista é a trans-missão concreta do método, por meio deum ensino em carne viva, por assim dizer.

De fato, as primeiras análises didáticaseram curtíssimas, se julgadas pelos pa-drões atuais, e só foram crescendo mercêde uma institucionalização a que logochegaremos. Eitingon analisou-se comFreud por dois meses, com duas sessõessemanais, ou melhor, conversas peripa-téticas, pois se davam nos fins de tarde,enquanto percorriam as ruas de Viena(Balint, 1954). É verdade que também asanálises terapêuticas eram muito maiscurtas. Entretanto, não havia então comoconfundir análise e análise didática. Asegunda consistia numa demonstração

do método e visava simplesmente ensinarsua técnica, aproveitando para esclare-cer dificuldades pessoais que poderiamprejudicar o tratamento dos futuros paci-entes, por gerarem reações de contra-transferência. Um subproduto dessa ten-dência pode ser encontrado mais tarde nachamada análise de controle, praticadapelo grupo de Budapeste, em que o pró-prio analista didata supervisionava os ca-sos de seu candidato, no divã, buscandoesclarecer os empecilhos de ordem pes-soal que as podiam fazer estagnar. De-pois de 1920, as coisas mudariam subs-tancialmente, mas para compreender alinha de transformaçãoé preciso conside-rar a segunda fonte mencionada: a institu-cionalização do movimento psicanalítico

3 Aqui ele dá seu apoio à iniciativa da “escola de análise de Zurique”, que exigia análise prévia para “aquelesque pretendiam analisar outras pessoas”.4 Balint (1948), no seu artigo On the psychoanlytic training system, à pág. 171, faz interessante observaçãosobre as mudanças na terminologia inglesa para análise didática. A primeira tradução foi instructional

analysis, “uma tradução servil” do alemão Lehranalyse, a segunda didatic analysis, também na esteira doalemão didaktische Analyse, firmando-se, por fim, training analysis.

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e, em especial, a regulamentação do en-sino que este oferecia.

Quando, no Congresso de Nurem-berg, em 1910, foi proposta pela primeiravez a formalização do ensino da Psicaná-lise, Freud contestou vigorosamente aidéia, afirmando não ser uma sociedadeórgão de ensino, mas que cabia aos mem-bros, em caráter pessoal, oferecer cursoslivres, a que livremente os pretendentesiriam aderir (Girard, 1982, pp. 920-921).O acesso à formação obedecia então aum princípio de auto-seleção e aceita-vam-se analistas leigos. À medida, po-rém, que a institucionalização começou aocorrer, acompanhando diretamente osucesso e a popularidade da nova práticaterapêutica, alguns fenômenos foram pau-latinamente delineando o quadro atual daanálise didática. A duração foi crescen-do, os regulamentos foram se cristalizan-do e a diferença, antes claríssima, entreanálise didática e análise terapêutica co-meçou a desaparecer5.

Siegfried Bernfeld (1962), nummemorável trabalho apresentado à Soci-edade de São Francisco, em 10 de no-vembro de 1952, poucos meses antes deseu falecimento, mas só publicado dezanos depois, oferece uma explicação muitoplausível para isso. Com a descoberta do

câncer de Freud, em meados de 1923, elee todos os demais analistas concluíramque sua morte seria questão de meses.Nesse período de morte provisória domestre, alguns discípulos mais dotadosconsideraram-se livres da tutela edescompromissados para “seguir seu pró-prio caminho”; Rank, por exemplo, deuasas à sua teoria do trauma de nascimen-to, que haveria de receber de Freud, em1926, severas críticas (Freud, 1926/1959b,pp. 135-136, pp. 150-153), seguida, em1937, daquela tão conhecida reprimenda,com a história dos bombeiros que retiramo candeeiro que incendiou a casa, em vezde apagar o fogo (Freud, 1937/1964, pp.216-217). Quando Freud ressuscitou damorte anunciada prematuramente, dizBernfeld, puniram-se nos filhos os peca-dos dos pais ambivalentes. A forma dapunição foi o controle estrito dos alunos,praticado pelos institutos de formação, aexemplo do de Berlim — reaçãoautolimitante que lembra um pouco nos-sas próprias medidas recentes, de restri-ção à entrada no Instituto, depois daameaça de intervenção da IPA*. Lá, emBerlim, haviam importado de Viena, noinício dos anos 20 um analista de analis-

tas, Hanns Sachs, já que os demais não sepodiam analisar reciprocamente — este

5 Entretanto, Freud apresenta opinião divergente da identificação entre os dois processos, ainda em Análise

terminável e interminável, de 1937. Ao considerar as dificuldades impostas ao praticante da psicanálise,diz: “Mas onde e como poderá o pobre coitado adquirir as qualificações ideais que necessitará em suaprofissão? A resposta é na própria análise, com a qual se inicia o preparo para sua atividade futura. Porrazões práticas, esta análise só pode ser curta e incompleta. Seu principal objetivo é habilitar o professora julgar a possibilidade de o candidato ser aceito para futura formação” (Freud, 1937/1964, p. 248).* A serem tratadas, pelo autor, mais adiante.

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se consagrava praticamente só a isso,sem sequer participar das decisões buro-cráticas do Instituto, o que faz de Sachs oprimeiro analista didata completamenteespecializado do movimento psicanalíti-co. Em 1922, a análise didática duravaentre um ano e um ano e meio, enquantoas primeiras análises didáticas freudianasnão passavam de seis meses. Em 1924,isto é, depois do episódio descrito porBernfeld, o primeiro regulamento do Ins-tituto previa três anos para a formação,iniciando-se com o ensino teórico, segui-do de dois anos de casos supervisionados,ao passo que cabia à análise didáticaocupar os anos finais da formação. Em1925, a Sociedade de Viena publicou suasregras, que previam dois anos para aformação total.

Inexoravelmente, a institucionali-zação internacional prosseguia. No Con-gresso de Wiesbaden, em 1932, o Comitê

Internacional de Formação, criado em1926 no Congresso de Bad-Homburg,estipulava novas recomendações para aformação de analistas: duração de trêsanos, sendo dois de formação teórica,dois de supervisão e um ano e meio deanálise didática. Mas foi só com a ediçãodas Standing Rules do Instituto de Lon-dres que a análise didática começou aatingir suas proporções atuais: quatro anosera o tempo previsto (Balint, 1948, p.165). Algumas observações ficam evi-dentes quando se acompanha tal desen-volvimento. A regulamentação do pro-cesso formativo de analistas não pareceter se pautado por discussões abertas

acerca da necessidade metodológica deseus requisitos, antes estes foram sempredecretados, conforme se lê em Balint(1948) e Szasz (1958). Por outro lado, ede forma um tanto paradoxal na aparên-cia, ao mesmo tempo em que a obrigato-riedade da análise didática se estabeleciapor regulamento — assim como a deseleção dos candidatos, duração dos cur-sos, etc. —, esta se ia transformando deinstrumento de transmissão de uma práti-ca em análise comum, apagando-se adiferença entre terapia e didática. Valedizer que a compulsoriedade incidiu sobreaquilo que justamente menos pode sercontrolado: a livre disposição de se fazeranalisar, indispensável para a análise te-rapêutica e não tanto para uma análise deinstrução ou de demonstração.

Este movimento paradoxal nãocessaria de acentuar-se desde então. Nosregulamentos atuais da IPA detalham-sea forma da análise didática e os critériospara que uma formação seja reconheci-da, de acordo com a tendência presentede uniformizar os institutos e garantirpadrões internacionais. A ideologia domi-nante é a de que os psicanalistas estãofiliados à IPA, antes e acima de que àssuas sociedades e devem pois seremproduzidos pela mesma forma e forma-ção. Uma reação contra a centralizaçãoexcessiva começa hoje a esboçar-se porparte das sociedades, que viram reconhe-cida sua pretensão a constituir um Colé-

gio de Representantes das Sociedades

para supervisionar o funcionamento doConselho Executivo central. Dentro des-

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sas lutas burocráticas, entretanto, a aná-lise didática cada vez mais é consideradacomo uma análise terapêutica, somentemais ambiciosa que outra qualquer, eassim essencialmente dependente do de-sejo espontâneo dos analisandos — dequem se espera apenas que a desejem nahora certa. Pode-se supor que a cadagrama colocado no prato da liberdadepara o autoconhecimento, coloca-se ou-tro grama no prato da regulamentação,refletindo provavelmente a contradiçãoinerente a uma ciência do inconsciente —ou seja, do desconhecido, da descobertainfindável—, que foi incorporada por ummovimento rigidamente regulamentado:como ser livre para descobrir e ao mesmotempo garantir que sempre se vão desco-brir as mesmas coisas, o cânon freudianoou os cânones das escolas?

Nesse contexto, uma observaçãode Girard (1982, 930-932) ilumina a ter-ceira fonte das atuais análises didáticas.Ele mostra que, inicialmente, a formaçãose dava no quadro de uma Psicanálise queera essencialmente prática de descober-ta, ainda sem uma teoria abstrata elegislativa, por assim dizer. Quando Freudsentiu a necessidade de instituir teoriasgerais da Psicanálise, a começar pelametapsicologia, por volta de 1915 a 17, asanálises didáticas, como as análises tera-pêuticas, começaram a ser pautadas deseu interior por normas teóricas. No perí-odo da primeira tópica, analisavam-sesobretudo os destinos das pulsões e suaevolução infantil; com o advento da teoriaestrutural, em 1923, passaram a centrar-

se principalmente na análise do ego, bus-cando fortalecê-lo, assim como colaborarno desenvolvimento do superego — numtexto clássico, Straychey (1934) fala noanalista como “superego auxiliar”.

Enquanto na Europa central as te-orias freudianas dominavam, na Inglater-ra houve o rompimento kleiniano, queencontrou um modus vivendi complexona Sociedade Britânica, e, na França, olacaniano, que gerou nova instituição, naseqüência de uma “crítica radical” àsnormas de formação. Nos Estados Uni-dos, o problema foi diverso: a luta paramanter a hegemonia médica na profissãode analista levou à ruptura com o ComitêInternacional de Formação, que logo sedissolveu, em 1938. Com efeito, a ascen-são do nazismo, forçando a emigraçãomaciça de analistas, e o clima de pré-guerra na Europa, tiraram da IPA, daSociedade Britânica e de Jones, em par-ticular, a capacidade prática de manter odomínio sobre os numerosos grupos nor-te-americanos. Estes reivindicaram parasi o controle da própria formação, amea-çando romper com a IPA. Por fim, relu-tante, Jones, então presidente da IPA,teve de ceder: a American Psychoana-

lytical Association estabeleceu, em 1937,um organismo centralizado para a qualifi-cação de analistas e regras próprias —entre as quais, segundo os críticos quesurgiram nos anos 50, como Balint, Szasz,Bernfeld e outros, havia princípios de“burocratização e doutrinação”. As soci-edades latino-americanas foram forma-das já sob o impacto da morte de Freud e

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no terceiro período da institucionalização;vem daí que entre nós pareça tão naturala presente forma do ensino: nunca conhe-cemos outra.

Esse desenvolvimento das escolaspsicanalíticas marcou o destino da análisedidática de mais de uma maneira. Emprimeiro lugar, as análises continuaram ase diferenciar, pois a competição entre ascorrentes exigia que os analistas, desde ocomeço da formação, já fossem direcio-nados segundo as propostas teóricas quemais tarde deveriam defender. E qualinstrumento melhor do que a própria aná-lise para levá-los a encarnar posições?Em segundo lugar, como este uso daanálise didática sempre foi consideradoperverso, até mesmo por seus pratican-tes, ele teve que ser negado, no sentidocomum e no sentido freudiano, com cadagrupo afirmando que suas análises busca-vam apenas os objetivos fundamentais deautoconhecimento e harmonia psíquica;com isso, já não se podendo discutir cer-tas metas concretas, a reflexão sobre aanálise didática refluiu consideravelmen-te, sendo substituída por acres acusaçõesrecíprocas de proselitismo ou de abuso depoder entre as correntes psicanalíticas.Por fim, como os diferentes grupos inter-nos da própria IPA não se podiam enten-der completamente nem admitir de públi-co as divergências, seu único termo co-mum passou a ser os assim chamados

standards: à medida que cresce a frag-mentação ideológica do movimento psi-canalítico, parece que a busca de padrõescentralizados torna-se o único ponto deacordo possível sobre a formação. Enfim,em 1989, justamente quando o CongressoPsicanalítico Internacional de Roma dis-cutia O campo comum da Psicanálise,sua Conferência de Analistas Didatasteve como tema Que faz uma Análise

Didática suficientemente boa?6, valen-do-se caracteristicamente da expressãowinnicottiana, ou seja, de uma concepçãoque não está na disputa da hegemoniateórica internacional.

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Esta breve história da análise didá-tica e a de alguns textos que a discutemsugerem umas quantas reflexões.

De início, foi constatada a impor-tância de o analista desenvolver umavisão de suas próprias condições psíqui-cas, como forma de melhor perceber asdo paciente. Ao mesmo tempo, emboramenos citada, foi crescendo a idéia de queo caminho mais natural para aprender aanalisar assemelha-se àquele corrente-mente utilizado no aprendizado artesanal,ao estilo do ensino da pintura ou daestatuária nos ateliês de arte, vale dizerque se aprende ao ver fazer; e a principalforma encontrada de ver fazer análise foi

6 Uma análise dos relatórios oficiais dessa Conferência mostra-nos trabalhos basicamente prescritivos, comrecomendações de como deve ser uma análise didática — por exemplo, que ela deve ser análise, que nãodeve ser uma repetição do já conhecido nas teorias psicanalíticas, que deve levar em conta estarem analistae analisando inseridos numa instituição, etc.

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a de submeter-se o candidato à analista àpsicanálise com um colega mais experi-mentado. Claro, o grande problema gera-do pelo conjunto desses requisitos tãosensatos foi, e continua sendo, a própriamistura dos projetos. A análise de minhasdificuldades psicológicas não fornece umparâmetro absolutamente universal e podenão se aplicar às de meus pacientes. Maisséria, entretanto, é outra das conseqüên-cias do cruzamento de projetos. Cria-seuma associação inevitável entre a formapsicanalítica transmitida, as peculiarida-des da prática de meu analista, e osefeitos transferenciais produzidos pelotratamento a que me submeto. Noutraspalavras, o estilo analítico do didata e desua corrente predileta são transmitidoscom uma força psíquica toda especial,pois foram o caminho da solução ou aomenos do manejo de questões muito ínti-mas do analisando. É, mal comparando,como se quiséssemos ensinar um deter-minado estilo de nado a um aprendiz emconstante risco de afogamento num riocaudaloso; é evidente que, se sai ileso, aimplantação do estilo é muito mais eficaze possivelmente imutável, quando com-parada à daquele que aprendeu numatranqüila piscina.

Em segundo lugar, análise tera-pêutica e análise didática têm uma com-plexa e turbulenta história de convivên-cia. A análise terapêutica era de inícioencarada como um tratamento médicomais ou menos convencional: dirigia-se adoentes e pretendia curá-los. Devagar,porém, a psicanálise foi alterando seus

objetivos e reino de aplicação. Quandocresceu o número de analistas, a práticapassou a dirigir-se mais e mais a pessoaspsiquiatricamente normais. Por um lado,estas são em maior número, e os milharesde consultórios psicanalíticos não se po-deriam lotar apenas de neuróticos e psi-cóticos; por outro, os pacientes mais oumenos normais são muito mais fáceis deanalisar. Não se trata de uma impostura,como pode sugerir a imagem de analistasconseguindo fáceis resultados terapêuti-cos com doentes que não o são. O que sepassou foi mais simples e honesto: detratamento médico para doenças psiquiá-tricas, a psicanálise transformou-se emalgo que até mesmo no campo da medici-na encontra paralelos na tendência a pri-vilegiar a medicina preventiva, o prolon-gamento da vida saudável e a preocupa-ção com a qualidade de vida. Mais exata-mente, a prática analítica reforçou umade suas dimensões, a de um instrumentode melhor viver, meta nobre sem dúvida.Contudo, certo resquício dos objetivosanteriores interfere nesse novo estado denossa prática; com efeito, para manter adignidade médica, bem como para defen-der a necessidade de análise do pacientemédio, por vezes sucumbem os analistasà tentação de criar uma pseudopsico-patologia sob medida, cujo diagnósticocalca-se sempre num grau maior de gra-vidade que o da psiquiatria clínica. Comoresultado dela, hoje em dia, nossa literatu-ra tende a considerar o sujeito psiquiátriconormal como um neurótico — somos

todos neuróticos, é uma frase que se

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difundiu enormemente na cultura psica-nalítica de divulgação —, enquanto osneuróticos são vistos como psicóticos e ospsicóticos, com ou sem razão, como ina-nalisáveis, caindo fora de uma classifica-ção psicanalítica, cuja existência é, alémdisso, constantemente negada por quem ausa. No mais, a análise terapêutica depessoas razoavelmente sãs pode e devesobreviver como uma forma de serviçoimportantíssimo que se presta à coletivi-dade humana: aprimorar a vida psíquica,coletiva e individual.

O problema que nos concerne ape-nas dá as caras quando cotejamos as duasespécies de análise. No começo, a análiseterapêutica supunha um doente e a análi-se didática, um analisando aproximada-mente normal. Quando esta simples dis-tinção foi se apagando, duas ocorrênciasseguiram-se. A primeira foi tornar-se aanálise didática o verdadeiro padrão paratodas as análises, questão a que devere-mos voltar mais à frente. A segunda,sempre referida pelos textos sobre análi-se didática, foi a tentativa de estabeleceruma distinção com base em regulamentosestritos. Número de sessões, duração,condições do analista que a conduz, inser-ção da análise didática no processo deformação, tudo isso se transformou emmatéria legislativa — e, por vezes, comconseqüências inequivocamente executi-vas, em todos os sentidos alegóricos dotermo. Vem daí a justeza do nome queencabeça esta edição do Jornal de Psi-canálise: análise regulamentada. To-das as tentações do poder acabaram por

desembocar na questão sagrada da aná-lise didática.

Não é de estranhar, isso posto, queos escritos mais interessantes sobre aanálise didática sejam textos críticos, nãoraro virulentos, apesar de em geral seremda lavra de didatas. Muito pouco se es-creveu de importante sobre o lado bom daanálise de formação, que, não obstante,também existe. Sem deixar de praticá-la,temos sido severos críticos da regula-mentação da análise; parece mesmo serde bom-tom fazer uma ressalva pessoal,mostrando que se sabe serem incompatí-veis análise e regulamentação, todas asvezes em que o assunto vem a ser discu-tido. Os autores demonstram a impossibi-lidade ética da análise didática, os didatasmédios afirmam que, pessoalmente, dis-cordam da obrigatoriedade e não se dei-xam influenciar por ela. É uma história deconsciência culpada a da análise didática:quase se poderia crer que todos a execu-tam de mau grado.

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Como vimos, há sólidos argumen-tos contra a análise didática. Não vamosexaminá-los sistematicamente: quase to-dos alinham ponderações fortes e verda-deiras, com certos exageros que se diriaserem expressamente calculados parasua inviabilização. É como se o argumen-tador se visse tragado pelo receio de terrazão e levasse seu arrazoado um poucolonge demais, justo até o ponto em que elese contradiz ou se torna impraticável.

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Este curioso fenômeno, o receio de terrazão, surge regularmente também emdebates políticos a respeito da justiçasocial e em considerações pessoais apropósito da vida econômica de cada um,ou seja, sempre que algum tipo de práticaconsensualé contrastada com os princípi-os que se afirma norteá-la, surgindo adisparidade entre interesse de grupos eexigências da razão.

A forma mais virulenta dos argu-mentos contra a análise didática assenta-se numa espécie de demonstração deimpossibilidade técnico-ética. É mais oumenos assim. A análise só é possívelnuma atmosfera em que a sugestão nãoexista ou esteja extremamente rarefeita.Esta preocupação muito justa sempreobcecou Freud.7 De fato, aquilo que umaanálise mostra acerca do inconscientepoderia atribuir-se à influência sugestiva,inclusive seu próprio efeito terapêutico,tirando da Psicanálise a pretensão cientí-fica e aproximando-a do curandeirismo8.Este é um problema bem real, que temmuito que ver com a análise didática, poiso caráter formativo potencializa a forçade sugestão: o paciente-candidato temtodo o interesse em acreditar no queaparece em sua análise, caso contrárionunca chegará a considerar-se analista.

Reflitamos um instante sobre isso.Quando uma interpretação procura de-monstrar ao analisando a forma de seus

processos mentais, é forçoso estar atentoà possibilidade de que o processo mesmode construí-la seja a própria demonstra-ção. Por exemplo, se estou convencido daexistência de algum dos mecanismos psí-quicos descritos pelas teorias, minha com-preensão das idéias do paciente inevita-velmente se deixará guiar por ele e aca-barei encontrando-o sem falta, ou melhor,eu mesmo o construirei interpretativa-mente. O mais ilustre exemplo desse tipode circularidade pode ser encontrado naInterpretação dos sonhos, quando Freud,depois de dividir em partes o sonho daInjeção aplicada em Irma e fazer asso-ciações sobre cada parte do sonho, con-clui pela evidência do mecanismo oníricode condensação. Como procurei mostrarno capítulo final de Andaimes do real: o

método da Psicanálise (2001a, pp. 309-323), qualquer texto ou relato, mesmo quenão se trate de um sonho, se submetido asemelhante procedimento interpretativo,acabará por demonstrar a existência decondensações, uma vez que o caminhointerpretativo faz uma espécie dedescondensação do material. Dividindoem partes e associando sobre as partes,ele constrói um segundo texto, em com-paração ao qual o texto original só podeparecer condensado. Noutras palavras, omecanismo demonstrado é apenas o in-verso dos passos de sua demonstração.Numa obra teórica, porém, essas coisas

7 “É muito provável, também, que a aplicação em larga escala de nossa terapia nos levará a aliar livrementeo ouro puro da análise com o cobre da sugestão direta...” (Freud, 1919/1955, p. 168).8 “Quando Freud recomendou prudência na utilização analítica do conceito de cura, visava essencialmentea proteger a análise contra a tentação e as armadilhas da sugestão...” (Valabrega, 1983, p. 44).

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podem ser descobertas e corrigidas. Freudmesmo estava alerta para o problema dacircularidade, em termos gerais, tanto queescreve na História do movimento psi-

canalítico (1914/1957b, p. 17): “Se qual-quer pessoa pensa em situar repressão eresistência entre as premissas, ao invésde entre os achados da Psicanálise, eume oporei fortemente”. Claro como água.Ele sabia muito bem que a interpretaçãonão alcança demonstrar suas premissas,mas deve sempre produzir descobertasempíricas— conquanto discutir a proble-mática empiria onde se cumprem taisdescobertas não esteja no âmbito desteartigo —, ou achados, para escapar àcircularidade e à tautologia. O efeito maisdeletério da circularidade interpretativa re-vela-se na situação analítica concreta, comouma sorte de circuito de convicção, contrao qual pouco pode fazer o analisando.

Na análise concreta, a força su-gestiva da situação nunca pode ser des-cartada. O paciente está sob a influênciado analista e espera alívio e conhecimen-to, nesta ordem. A análise didática junta atal sugestionabilidade o interesse em atin-gir uma investidura profissional. Com tudoisso, argumenta-se, o risco de exercerpoder sugestivo sobre o candidato, levan-do-o a aceitar, à força transferencial, umbloco de definições teóricas a respeito desua vida mental é máximo. Szasz (1958),em seu clássico artigo sobre a formaçãoanalítica, dedica um item inteiro à renún-cia ao poder, sob a epígrafe agourenta do

dito de Lord Acton: “O poder tende acorromper, o poder absoluto corrompe deforma absoluta”. Valabrega (1983, p. 47)vai mais longe, afirmando que: “a análisesó é possível no interior de um campo de

suspensão, de renúncia ao exercício

do poder. Exigência sine qua non”9.Para sermos justos com a análise

didática, devemos reconhecer aí dois pro-blemas distintos. O primeiro, com cujaexistência concordo em absoluto, é orisco de uma implantação no candidato —Szasz fala em “indoctrination” e em“brain-washing”. Com efeito, a forma-ção de grupos de poder dentro das socie-dades, sob a égide de teorias fechadas dofuncionamento psíquico, pode realmenteconduzir à implantação de uma persona-lidade artificial em certos candidatos, poisestes, além de serem submetidos a umaanálise que, executada sob tais premis-sas, lhes ensina a nomear seus processosmentais com o repertório lingüístico dateoria dominante, aprendem em aula aexistência dos mecanismos que sua aná-lise lhes mostra e são supervisionadossegundo os mesmos critérios no trabalhocom os próprios pacientes. Sofrendo ta-manha convergência de doutrinação, nãoé de estranhar que os discípulos de cadaescola não somente acreditem nas teoriasque se lhes ensinam, como até mesmoexibam os processos psíquicos postula-dos por elas. Como eu mesmo escrevi emO divã a passeio (2001b, p. 12): “Talcircuito fechado e constantemente reali-

9 Itálicos do autor.

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mentado conduz o postulante a viver inte-riormente as teorias adquiridas, não comomodelos aproximados e falíveis do psi-quismo, mas como verdade intuitiva: che-go a imaginar às vezes se o único exemplovivo de certas teorias psicanalíticas nãoseriam os adeptos da escola que as pro-põe”.

Piera Aulagnier — esta autora deopiniões tão firmes quanto conseqüentescom sua postura pessoal, de cujo convíviouma morte prematura nos privou — pare-ce-me ter dito o essencial sobre o tema.Para ela, a teoria psicanalítica pode muitobem ser compreendida sem que o leitor sesubmeta a qualquer análise pessoal. En-tretanto, a posição diante das teorias édecisivamente influenciada pela análise,para bem ou para mal. Atribuindo umaverdade imanente às teorias, o sujeitoaliena-se, pois situa sua verdade fora desi, no âmbito do saber alheio10. A análisede formação deve ter pois funçãodesalienante, o analista que a conduzmediando entre conhecimento teórico edescoberta prática, de sorte a permitir aoanalisando que encontre em si mesmo ossentidos do inconsciente e não os reproduzapelo desejo de satisfazer o saber de seuanalista. Ora, este é um passo delicado, jáque o próprio analista é objeto de uma“transferência passional e alienante”, quepode ser alimentada para moldar o sujeitosegundo os cânones do grupo a que vai

pertencer. Ou seja, puro conhecimentoteórico não faz um analista, mas a medi-ação da análise pode levá-lo, no outroextremo, a um estado de submetimentoteórico.

Quando entre nós, por exemplo,espera-se que um candidato faça umarealização da teoria, ao invés de adquirirconhecimento livresco, a intenção geral éde promover esta desalienação. Para isso,contudo, é necessário que o candidatotenha, em primeiro lugar, um sólido co-nhecimento da teoria sugerida, que co-nheça igualmente outras teorias e siste-mas teóricos e que adquira com o profes-sor certa visão crítica, por meio de peque-nos experimentos de teorização de situa-ções particulares. Em segundo lugar, suaanálise pessoal deve estar sendo conduzi-da necessariamente fora do quadro dosistema teórico ensinado, para que não seconfundam as duas ordens de aquisição:o lido e o vivido. Se ensino e análisecoincidem em transmitir esquemas damesma escola, a relação transferencialcom o analista leva a viver intimamente aspropostas teóricas, e o candidato nemprecisa estudá-las em detalhe, pois assente na carne. Então, fecha o livro econfia na intuição, que, sem exceção, vairealizar o conceito ensinado. Este exem-plo de máxima sugestão analítica, entre-tanto, não deve ter suas conseqüênciasexageradas até o ponto de negar a possi-

10 A autora aponta para a extrema ambição do discurso psicanalítico corrente e critica com vigor osprocedimentos de formação que endossam a apropriação de um credo teórico, falsamente proposto comoencarnação do método psicanalítico; método este que exige “subordinar todo saber sobre um enunciadoa uma interrogação sobre o enunciante” (Aulagnier, 1990, p. 56).

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bilidade da análise didática ou do ensinoteórico. Quanto ao segundo, basta que oensino seja sério e diversificado, semdoutrinação numa só escola; quanto àprimeira, que o didata tenha o bom sensode não reforçar em seu analisando ten-dências irracionais ou místicas. É umdesvio possível, mas se o elevamos aograu de impugnação, acabaremos pordesiludir-nos de tal maneira que sobreviráum conformismo masoquista com os pro-blemas concretos de cada instituição deensino psicanalítico.

Um tipo mais ameno de impug-nação da análise didática passa pelo pro-blema da contaminação institucional. AnaFreud, já em 1938 (1950/1968), pôs aquestão em pratos limpos:

Não hesitaríamos em qualificar de tec-nicamente errado se um analista selecio-nasse seus pacientes em seu círculo deconhecidos; se os deixasse compartilharseus interesses, ou discutisse suas opini-ões pessoais com eles mesmos ou em suapresença; se se descuidasse a ponto dejulgar o comportamento deles, de expor-lhes suas críticas a outras pessoas demodo a afetar suas decisões; se manipu-lasse ativamente os pacientes, oferecen-do-se como modelo, e terminasse a análisepermitindo ao paciente identificar-se pes-soal e profissionalmente consigo (p. 420).

Não obstante, acrescenta ela, “nóscometemos todos e cada um desses des-vios da técnica clássica quando analisa-mos candidatos” (p. 421), pessoas queconvivem em lugar tão próximo e vital-

mente importante como é uma sociedadede psicanálise. Opinião a que Grotjahn(1954, pp. 254-262) acrescenta: “o paci-ente-candidato... é convidado a formaruma neurose de transferência numa teladistorcida pela realidade”. Imagine-se aprojeção de um filme numa tela ondulantee teremos a vívida imagem do que Grotjahnqueria dizer. Alguns remédios para essasituação já foram tomados em nosso meio:o analista didata não mais opina sobre seuanalisando e procura-se evitar o convíviode ensino direto. Resta, é claro, a questãoda filiação. Nos pequenos grupos psica-nalíticos, é inevitável o conflito dentro dairmandade de analisandos de poucos di-datas. Já nas sociedades maiores, o ver-dadeiro conflito estabelece-se entre osgrupos transferenciais, que formam re-des de poder e não raro autênticos exér-citos em combate no interior da institui-ção. Contudo, esta não é uma razão paraabandonar a prática da análise didática,mas para realizá-la mais conscienciosa-mente, já que estas redes se formamtambém em torno de supervisores deprestígio e de autores psicanalíticos, ondeos há.

Em suma, o exagero no tom dasdenúncias contra a análise didática cola-bora para seu não esclarecimento. Seexigimos, com Valabrega, um campo deabsoluta renúncia ao poder como condi-ção sine qua non para a prática analítica,não só se torna impossível a análise didá-tica, como também o exercício de toda equalquer análise. Humanamente impossí-vel, pelo menos, pois quem dirá que é de

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todo imune ao exercício de qualquer po-der? O poder curativo, por exemplo, atraio analista; ele deve procurar evitar seusabusos, mas nunca chega a eximir-se dodesejo de curar, sob pena de estar sim-plesmente a racionalizá-lo. Nossa práticaé uma luta de recuos contra improprieda-des e deficiências — e, honestamente,assim deve ser. Absolutos morais condu-zem à racionalização ou à apatia. É o quemostrava antes a propósito de algumasdiscussões entre didatas, em nossos pré-congressos. Começa-se por colocar cer-tas exigências éticas muito louváveis;depois, essas exigências são radicalizadas;por fim, ao constatar que se exige oimpossível, conclui-se que nada há a fa-zer, senão continuar tudo como está. Opoder resultante da exigência intelectualde abstenção completa acaba por ser o daburocracia teórica e institucional que, emsua missão histórica de servir a qualquerortodoxia, obstaculizando a criação dopensamento original, vê cair-lhe ao colo ocontrole da formação analítica, enquantoo pensador se retira da liça. Só uma dosede bom senso dá liberdade à criação.Pessoalmente, creio que o paradoxo da

denúncia radical, como forma de man-ter o status quo, não deve ser menospre-zado nas sociedades de psicanálise. Aanálise didática não é uma monstruosida-de ética: ela pode ser bem ou malfeita, eisso depende, entre outras coisas, da aber-tura teórica das próprias sociedades. Se éverdade que sugestão sempre há, não émenos verdade que as sugestões podemter caráter muito diverso na prática: pode-

se influir para que um certo tema sejaconsiderado pelo paciente, ou pode-seinfluir para que ele engula uma teoriainteira. Muito diferente em termos éticose técnicos, não é mesmo? Concluindo:mais preciso e prático que exigir umcampo de renúncia absoluta ao poder,podemos esperar do analista que conduzasuas análises procurando andar em dire-ção contrária à do exercício do poder.

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A análise didática, afora tantasoutras funções, desempenha o papel deprotótipo para a imaginação psicanalítica.Quando dizemos que uma análise didáticanada mais é que uma análise, isto tambémpode ter o sentido de afirmar que imagina-mos toda e qualquer análise terapêuticacomo se fosse uma espécie de variaçãoalgo imperfeita da análise didática. Emnossa Sociedade, por muito tempo, osanalistas mais experientes tiveram sobre-tudo candidatos em análise, o que explicasua teorização da prática ter sido forte-mente influenciada por este modelo. Mas,na verdade, esta é uma idéia muito difun-dida, Lacan afirmou certa vez ser a aná-lise didática a análise padrão. Como oscandidatos já se submeteram, comumen-te, a uma análise terapêutica e, por outrolado, prevalece em parte do mundo psica-nalítico a concepção de que toda psicaná-lise se deve desenvolver numa atmosferade disponibilidade, que desloca o proble-ma dos objetivos terapêuticos, os anali-sandos didáticos não exigem cura rápida,

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atuam menos e comportam-se melhor,segundo um código não escrito do bompaciente. Não é raro que o candidato façamuito mais questão de conservar o setting

e de fazer com que seu analista siga aindamais à risca a moldura psicanalítica habi-tual do que este mesmo desejaria.

Como resultado, embora os analis-ta didatas queixem-se freqüentemente dadificuldade de analisar candidatos, pelaincidência de teorização e de contamina-ções do quadro em função do ensino, ocerto é que costumam referir-se à análisepadrão como se fora didática. Por com-paração, apenas poucas análises de paci-entes comuns conseguem rivalizar comeste ideal, retirado das exigências proto-colares da análise didática. Número edistribuição de sessões, constância do usode divã, mas sobretudo a ausência deatuações mais óbvias, de exigência demelhora imediata e uma disposição firmede ir até o fim distinguem geralmente oscandidatos em análise.

É claro que este modelo tem seusinconvenientes. Se, por um lado, oferecea todos os analistas uma espécie de refe-rência ideal, que pode servir como ele-mento de preservação do padrão psica-nalítico, por outro, acaba forçando-os acriarem um tipo muito especial de regra

de exceção. É comum no meio psicana-lítico valorizar sobremaneira a distinçãoentre psicanálise e psicoterapia. Todavia,quantas psicoterapias feitas por analistasnão são mais que análises com objetivosterapêuticos mais definidos, realizadascom um número menor de sessões sema-

nais? Nesse caso, elas se distinguemrealmente da análise didática, não dapsicanálise como Freud a praticava, porexemplo. O paciente ideal, então, é naverdade o candidato. Se a análise imagina-riamente perfeita é a didática, as exceçõestransformam-se em regra geral e quasetudo o que se faz na prática cotidiana épsicoterapia, do que decorre que encolha ouniverso da experiência considerada analí-tica e aumente exageradamente a área nãolegislada que é a da psicoterapia.

Por fim, no tocante à formação,surge um problema análogo ao do ensinomédico nos grandes centros hospitalares:da mesma maneira que o estudante demedicina aprende a realizar um atendi-mento que depois não terá como manterno exercício corrente — dúzias de exa-mes complementares, intervenções ci-rúrgicas sofisticadas —, o candidato co-meça sub-repticiamente, e sem consciên-cia disso, a ser preparado para se tornardidata. Se não chegar a sê-lo, ou enquantonão o for, talvez sinta estar executandouma função menor, menos perfeita doque a psicanálise. No mundo do ensino,como em tantos outros, a idéia de transmi-tir uma forma de trabalho idealizado paraque a prática habitual aproxime-se dela omais possível é uma fantasia dominante.Provavelmente, seria muito melhor ensi-nar simplesmente a clinicar tecnicamentebem e teorizar a experiência que de fatovem sendo executada pelo candidato, aju-dando-o a pensar sua prática, tal qual ascondições concretas permitem que se dê,não como a imaginação a valoriza.

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Uma das mais severas críticasdirigidas à análise didática é a de pro-mover a infantilização dos candidatos11.Outra, a de ajudar os institutos a seleci-onar e promover os mais dóceis e me-díocres. Examinemos ambas as acusa-ções em conjunto, já que estãoconectadas: aquele que se mantém in-fantilizado dificilmente chegará a serinovador e crítico. Na verdade, estacrítica deve ser dirigida contra o siste-ma de formação como um todo, maisque contra uma parte dele. Desde suainstitucionalização na década de 20,como sustenta Bernfeld, houve a ex-pressa intenção de controlar os candi-datos, ao menos tanto quanto de ensi-nar-lhes uma técnica e algumas teori-as. Afirma aquele autor — “minha teseé a seguinte: a formação conduzida pornossas escolas profissionais (institu-tos) distorce alguns dos mais valiososaspectos da Psicanálise” (Bernfeld,1962, p. 458). A formação analítica éacusada, por diferentes críticos, de serautoritária; limitadora da liberdade depensamento; partidária com relação acertas correntes teóricas em detrimen-to do conjunto da Psicanálise; por fim,de promover a infantilização dos candi-datos. Tudo isso se faz ver com maisforça quando o grupo dirigente égerontocrático, problema que não pa-rece ser o nosso, ou quando opta por

uma seleção estreita de dois ou trêsautores, que serão os únicos obrigatori-amente ensinados.

Do ponto de vista estrito da análisedidática, o ponto parece ser outro. Ideal-mente, uma análise só se pode cumprirquando o analisando deseja analisar-se.Idealmente? Os analistas em geral seri-am muito mais enfáticos que isso. Todosos anátemas do repertório psicanalíticocairiam de imediato sobre quem se propu-sesse a analisar alguém à força. Comoresolver, pois, a contradição óbvia entre odesejo de se fazer analisar e a regulamen-tação da análise didática? A corda estou-ra sempre do lado mais fraco. Para nãodar demasiadas voltas num problema jádiscutido, repetirei apenas que se esperade um candidato que deseje livrementeanalisar-se na hora certa e pelo tempopredeterminado. Ou seja, não só a cons-ciência deve ser dócil, mas até o incons-ciente!

Talvez, porém, o problema estejaum tanto deslocado, senão nunca teriasolução. Por desejo, na formulação aci-ma, entenda-se vontade. Pensando bem,esta é uma das mais comuns confusõesterminológicas que costumamos come-ter. Vontade é, basicamente, consciênciae intenção; desejo é a matriz simbólicadas emoções, sua fonte inconsciente deprodução. Mas o desejo de analisar-seindepende de regulamentos e em largamedida independe mesmo da vontadepessoal. Aliás, o que vem a ser o desejo de

11 Ver, por exemplo, Bernfeld, 1962, p. 480.

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analisar-se? Para usar minha própria ter-minologia, que espero não resulte hermé-tica para o leitor, o desejo de analisar-senada mais é que a presença potencial doHomem Psicanalítico no sujeito que nosprocura. Desejo de analisar-se é, portan-to, a disposição intrínseca ao psiquismo,mas incrementada pela ação do métodopsicanalítico, a permitir que suas auto-representações entrem em crise, a que serompam os campos do inconsciente queas restringiam. Tal disposição há ou não,e quando há, pode estar presente emgraus diversos, segundo a constituiçãopsíquica do sujeito. A análise de persona-lidades psicopáticas, por exemplo, é qua-se impossível, porque qualquer ruptura decampo ameaça o desencadeamento deuma psicose. Já a vontade de analisar-se,ato de liberdade, é determinada por inú-meras circunstâncias, desde o sofrimentopsíquico até a conveniência econômica,passando, no caso presente, pela ambiçãoa se tornar analista, sejam boas ou másrazões que a motivem. De qualquer modo,é evidente que existe uma proposiçãocontraditória na expectativa de que oanalisando descubra, quase por coinci-dência, uma intensa vontade de análisejustamente quando é aceito por um insti-tuto. E, como sempre, paradoxos de con-duta impedem o diálogo adulto.

Entretanto, penso que há um fatorcoadjuvante na infantilização do candida-to, mas de tal monta que poderia mesmoser considerado o fator principal. Aqui,sim, trata-se de um fenômeno ideológicobem-delimitado e inequívoco. Responda

depressa, por favor: qual a teoria psicana-lítica com maior sucesso de público entreos psicanalistas que conhece? Suponhoque você tenha respondido o inconscien-te, a resistência, a transferência, a sexu-alidade infantil, o complexo de Édipo, umaou várias delas. Pois engana-se redonda-mente. A teoria psicanalítica de maiorpopularidade do mundo é a da mãe.

Que teoria é essa? Comecemos docomeço. Nos tempos de Freud, as con-cepções genéticas lineares desfrutavamde grande prestígio. A idéia básica não édifícil de entender. Supunha-se que oestado presente de algo é produzido pelodesenvolvimento de seu estado imediata-mente anterior, e assim por diante, até omais primitivo. Alterações funcionais,aspectos contraditórios ou obscuros dealgo eram geralmente atribuídos a resídu-os anacrônicos do desenvolvimento. Osprogressos da microscopia permitiam quea histologia e a embriologia dominassem opensamento médico. O darwinismo po-pularizava-se extraordinariamente, atéformar uma moda científico-popular. Alingüística evolutiva parecia também ex-plicar quase tudo: os estudos sobre osânscrito de M. Müller ambicionavamreduzir os meandros nevoentos da mitolo-gia a equívocos devidos ao duplo sentidode palavras primitivas. Não resulta estra-nho em absoluto que Freud, que conheciamuito bem as tendências científicas vi-gentes — os exemplos acima estão todosmencionados em sua obra —, houvessetransposto para sua teoria do psiquismo obem-sucedido princípio genético.

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Depois, é claro, o mundo intelectu-al daria suas voltas inevitáveis e a gêneselinear não haveria de gozar do mesmofavor científico. Porém, o movimento psi-canalítico já recebera seu impulso inicial eo dever de manter-se fiel aos esquemasde pensamento canônicos. O analistamédio, que é treinado a pensar em termosgenéticos estritos, ora não crê com muitaconvicção em filogênese, símbolos uni-versais ou na horda primitiva. Mas acre-dita na infância, evidentemente: nodesvalimento da criancinha e no acolhi-mento materno. Sua teoria reduz, portan-to, a concepção genética freudiana a umsó de seus elementos: ao desenvolvimen-to imaginário da relação mãe-bebê. Se-gundo essa teoria popular, cada sujeitoadulto seria, na verdade, um bebê disfar-çado, à espera de encontrar tão-somente,dentro e fora de si, a mãe certa. O analistaque recebeu essa influência desde o inícioda formação raramente chega a desgru-dar-se do modelo interpretativo mãe-bebê.O defeito básico desse interpretante éque se remete a uma infância perfeita-mente abstrata — não lembrada, nãoespecífica —, mas vem daí também seusucesso, pois, sendo abstração, pode seraplicada a todo e qualquer paciente, queserá o bebê de seu analista, mãe abstrata.

Conduzidas segundo o modelo mãe-bebê, as análises didáticas verdadeira-mente infantilizam o candidato, bebeifi-

cam-no, se se pode utilizar tão bárbaroneologismo. E se há convergência abso-luta nos demais setores da formação, seas supervisões seguem o mesmo roteiro

básico, se, no curso teórico, todos ostextos da Psicanálise são lidos nesse re-gistro e se até mesmo os trabalhos decrítica institucional usam o modelo mãe-bebê para explicar as relações nas socie-dades e institutos, podemos concluir que ainfantilização do candidato não é apenasum acidente indesejável, mas é um efeitocolateral da proposta básica da forma-ção. Se levarmos a linearidade genéticaàs suas mais absurdas conseqüências,conclui-se que só chegando a pensarcomo um bebê a gente alcançará umaintuição realmente profunda dos fenôme-nos psíquicos.

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A análise didática começou emSão Paulo, em 1937, com a chegada dadra. Adelheid Koch, do Instituto de Ber-lim. Em termos gerais, a década de 30assistiaà ampliação dos objetivos e ambi-ções da análise didática. Aquela época foimarcada, como mostra Balint (1954, p.160), pelas queixas, feitas por Ferenczi aFreud, de que sua análise pessoal foramuito incompleta, não tomando suficien-temente em consideração a transferêncianegativa. Ferenczi pretendia que o candi-dato deveria ser “melhor analisado queseu analista” e propunha uma “análiseabsolutamente completa”, na qual até asmais “recônditas fraquezas do caráter”pudessem emergir e ser tratadas. Freud,em Análise terminável e interminável

(1937/1964, p. 234), mostra-se muito cé-tico a respeito da possibilidade de uma

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análise absoluta, capaz de prevenir todosos futuros problemas de alguém. Na ver-dade, é difícil dizer quanto dessa discus-são pode ter influenciado os inícios daformação em São Paulo, mesmo porquesó nos anos 40, após a morte de Freud, aidentidade do querelante veio a público.De qualquer maneira, o certo é que, con-comitantemente à criação de nosso Insti-tuto, consolidou-se a tendência a queBalint, um tanto ironicamente, se referecomo tentativa de transformar a análisedidática numa “superterapia”, segundo aproposta de Ferenczi.

Ao tentar compreender o sentidopresente da análise didática no Institutode São Paulo, creio que podemos tomarcomo hipótese provável a conjunção depelo menos três fatores: a convicção deque a análise didática deveria ser sempreabsolutamente completa (a “superterapia”de Balint), a aceitação implícita de suaobrigatoriedade, com regulamentaçãoformal, e a referência kleiniana, que pas-sou a ser dominante em nosso Institutonos anos 60 e que depois derivaria para osistema atual, klein-bioniano.

A regulamentação da análise didá-tica vinha de fora, do estrangeiro, de umlugar altamente considerado, e inacessí-vel em termos práticos, a IPA. Ainda merecordo de ouvir falar da IPA como sefora uma potência estrangeira a que esti-véssemos submetidos de forma colonial.Não me espantaria, aliás, escutar o mes-mo hoje e, para ser inteiramente honesto,

depois de termos, os brasileiros, participa-do de alguns encontros de cúpula da IPA,não posso dizer que a imagem estejadespida de toda razão. Assim, não só osparâmetros da análise didática — quatroou cinco vezes por semana, cinco anos,um ano prévio ao começo dos cursos e,hoje, a questão dos dias separados —foram aceitos e geralmente praticados,como, o mais importante, quase nuncaforam discutidos abertamente para saberse são ou não são os melhores e se podemser derivados racionalmente das exigên-cias inerentes ao método psicanalítico. Apropósito, mesmo no âmbito da IPA estadiscussão raramente tem se dado aberta-mente: não posso esquecer a estranhezaque gerou uma pequena observação mi-nha, feita durante um encontro internaci-onal12, sobre ser a questão da freqüênciaum problema de técnica ou de regulamen-to, mas não uma característica definidorado nosso método.

Regulamentos são convenções prá-ticas. Entretanto, se se agrega ao fato dehaver um regulamento, a pretensão a umaanálise absolutamente completa, o resul-tado pode ser paradoxal. Principalmentese este objetivo fica obscurecido por umanegação, expressa, no caso, pela asser-ção repetida de que a análise — a didáticainclusive — não tem qualquer objetivodefinido, senão o de promover cresci-mento mental. O resultado paradoxal ésimplesmente que as exigências regula-mentares perdem toda a importância,

12 VI Simpósio da IPA — A IPA hoje — A IPA amanhã, Linden Hall, Inglaterra, 1988.

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porque o candidato, para merecer chegara sê-lo, deve aspirar a submeter-se a umaanálise muito mais profunda e extensa doque a que se lhe exige.

Quão completa? Aqui intervém ofator teórico-ideológico. Como as teoriasque servem de base a nosso trabalho, emSão Paulo, postulam perturbações muitoprimitivas do desenvolvimento da psique—Leitmotiv do pensamento klein-bionia-no —, uma análise completa teria deliteralmente chegar ao ovo. A forma con-creta de semelhante exigência, contudo,não chega a ser tão radical. Ou talvez sejaainda mais radical, porque entre nós tor-nou-se costume atribuir à “falta de análi-se” qualquer deficiência prática ou teóri-ca do analista. Tudo se passa como se aanálise didática, mais do que ser uma dasprecondições para o exercício da psica-nálise, juntamente com a capacitação te-órica, a educação da sensibilidade, a cul-tura geral, a experiência de vida, o desen-volvimento técnico, etc., fosse a autênticapedra de toque da formação analítica. Nofundo dessa crença na onipotência daanálise pessoal — que não sendo idéia deninguém, parece ser de todos — estaria,por conseguinte, a convergência dos trêsfatores históricos acima: regulamenta-ção, superterapia e ideologia teórica. Elaatende ao regulamento da IPA, preten-dendo ignorá-lo por suplantar suas exi-gências; atende à completude ferenczia-na, justamente por negar-lhe a possibili-dade, propondo, em lugar do analista com-pletamente analisado, um analista quenunca deixe de se fazer analisar; atende

à teoria local, ao ambicionar ir sempremais para trás, rumo ao recanto maisprimitivo na mente.

Os começos históricos da análisedidática, em São Paulo, não continhamtais pressupostos de maneira explícita.Ao contrário, como é comum nos tempospioneiros, beneficiavam-se de certa pre-cariedade criativa. Flávio Dias — numaintervenção bem-humorada na reuniãosobre a História da Sociedade Brasileirade Psicanálise de São Paulo, que nossodepartamento cultural organizou em 1985,completada por uma entrevista para oextinto Folhetim, da Folha de S. Paulo

— lembra os idos de 1937, quando a dra.Koch começava a atendê-lo e ao prof.Durval Marcondes em análise didática.Parece que, embora já começando a en-tender o português, depois de um ano deestada, a doutora tinha dificuldade comcertas expressões mais coloquiais ouchulas de nossa língua falada. Assim,segundo Flávio Dias, Durval Marcondesteria preparado uma lista seleta de ex-pressões muito fortes para a época, quelhe pretendia entregar na sessão seguin-te. Por azar, porém, a malfadada listaficou no bolso de um terno que a esposado professor conscienciosamente inspe-cionou antes de mandar ao tintureiro.Descobrindo a lista, ter-lhe-ia dito: “En-tão, Durval, é disso que vocês falamnessa tal de psicanálise?”

Por muitos anos, os didatas em SãoPaulo foram poucos. Quando entrei noInstituto, em 1971, não era possível se-quer completar o número estatutário da

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Comissão de Ensino, razão pela qual nun-ca se votava essa função. O rápido cres-cimento da Sociedade converteu essaescassez num problema sério, pois osanalistas didatas passaram a ter sua clíni-ca quase que só composta de candidatos.Com isso, não era possível apresentaremtrabalhos clínicos, mas a acusação maisséria que se lhes dirigia então dizia respei-to ao poder absoluto que os didatas con-centravam, à formação de clãs transfe-renciais e ao monopólio econômico daformação. Tais acusações podem servistas hoje de forma algo relativizada, poisa Sociedade então era como uma famíliagrande, na qual poder, proselitismo e di-nheiro geram violentas discussões... àmesa de domingo. Na segunda metadedos anos 70 e no começo da décadaseguinte, não obstante, houve uma con-centração real de poder por parte de umgrupo ideológico dominante na Socieda-de. Então, foi ativamente obstada a pro-moção de novos didatas e abandonada aseleção formal de candidatos, cabendo aoanalista decidir pessoalmente sobre aaceitabilidade de alguém para análise econdição de ser analista13. A Sociedadejá não era pequena e as filas de espera depretendentes cresciam de maneira notó-ria. A suspeita de que se tinha estabeleci-do um monopólio da formação por partede um só grupo chegou até à IPA. Agora,sim, o ideário da análise didática, registra-do acima, tornara-se plenamente efetivo.

Por exemplo, corria a voz de que eranecessário, além da análise regulamen-tar, submeter-se a uma reanálise com apessoa certa para chegar a ser didata.Houve uma reação em 1982; a partir daí,novo grupo dirigente reformulou os esta-tutos e buscou contornar a falta de dida-tas, por meio de eleição por assembléia.Quando a modificação já fora feita, po-rém, e já se cuidava da questão das filasde espera, foi que o Conselho Executivoda IPA decidiu-se a intervir sobre a situ-ação passada, durante o Congresso deMontreal, em 1987. Como resultado, nos-so Instituto ficou fechado ao ingresso denovos candidatos por anos e ainda hoje aseleção é um tema delicado. Talvez oproduto final desses eventos venha a ser,paradoxalmente de novo, o de fazer comque a análise didática se torne talvezainda mais idealizada, agora como atesta-do de passagem por um crivo improvável:o da seleção para o Instituto.

O desafio que nos cabe responderno futuro próximo pode ser, por conse-guinte, o da desideologização da análisedidática. Ao fim da apresentação à Soci-edade Britânica, em 1947, do trabalho aoqual tantas vezes voltamos, Balint acusaos candidatos de “serem facilmente inti-midados e dependentes... jurando cega-mente pelas palavras de seus mestres”.“Mais graves são as acusações contranós, os analistas didatas”, continua ele,citando Freud, em Linhas de avanço na

13 Um estudo de fôlego sobre a história da psicanálise em São Paulo pode ser encontrado na dissertaçãode mestrado de Roberto Yutaka Sagawa: Os Inconscientes no divã da história, apresentada ao Institutode Filosofia e Ciências Sociais da Unicamp, em 1989.

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terapia psicanalítica, 1919 [1918]: “re-jeitamos enfaticamente que... (o analis-ta), com a arrogância de um Criador,forme o paciente à sua imagem e seme-lhança e diga que está bom” (Balint, 1948,p. 172). Naquele tempo e contexto, oproblema central era o autoritarismo de-clarado do sistema, que se refletia nasanálises. Hoje, entre nós, a desideologiza-ção passa felizmente por um caminhomenos espinhoso: basta sermos todos umpouco menos crédulos nas virtudes denosso modelo teórico único, na onipotên-cia da análise pessoal e na supremaciadas instituições estrangeiras.

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Revendo o primeiro texto que pro-duzi sobre análise didática, para o já men-cionado Congresso da Fepal de 1986, noMéxico (Herrmann, 1986b), encontrei umfragmento que pode ser uma variaçãoamena, no contexto de tantas críticasmaiores. Pelo menos, pese a ser produtode minhas primeiras impressões comodidata, não é opinião que tenha renegadocom os anos.

Estou diante de meu analisando. Esta-mos sós? Nem tanto. Por trás de nós,digamos assim, posta-se a sociedade depsicanálise e seu instituto. À nossa frente,o exercício analítico do candidato, que já opratica e dele se quer assenhorear. De umlado, uma instituição, de outro, a popula-ção de outro consultório. Encaremos ounão este fato, ele penetra nosso espaçoanalítico, determina nossa posição recí-

proca, confere uma especificidade ao sur-gimento do desejo. Uma instituição, umanalista, um candidato, seus pacientes.Idealmente, creio, a análise didática não sediferencia: é análise simplesmente. Isso,todavia, como meta e intenção, pois nossaprática revela algumas idiossincrasias.

A primeira delas, nessa rápida revisãopessoal, é o sentido particular das teoriasutilizadas na interpretação. Toda análisecompreende um sistema interpretante, umacervo de teorias que a norteia. Em parte,elas estão nos livros. Entretanto, a seleçãode teorias dominantes e a filtragem dosentido que lhes atribuirá o analista éantes obra grupal. Dentro de cada socie-dade, formam-se correntes de opinião e,sobretudo, uma espécie de modus vivendi,cujos valores são bem mais operantes doque as grandes teorias professadas nasbibliografias de trabalhos clínicos. Ideolo-gias, pode-se dizer. São núcleos de iden-tidade, mais ou menos retirados das teori-as dominantes, que definem as virtudesbásicas de um analista. Cada qual reflitasobre sua própria instituição. Tolerância

à frustração pode ser o lema de um grupo.De outro, a desobstrução do caminho da

experiência ou o anti-racionalismo, queàs vezes chega a induzir um clima contrárioa toda forma de manifestação cultural ouaté de teorização — coisa que já configurauma teoria ideológica, com certeza. Fre-qüentemente, as sociedades psicanalíti-cas pensam em si mesmas como grandesfamílias, pais e filhos e um difuso Comple-xo de Édipo.

Tal cultura psicanalítica, um tantoigual, um tanto variável de sociedade parasociedade, constitui a fonte teórica deinúmeras interpretações nas análises di-dáticas. Em qualquer análise o fenômeno

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se dá; porém, na análise didática, ele posi-ciona os parceiros do jogo de maneiramuito especial. É que o analisando partici-pa do próprio grupo ideológico ou nele sequer introduzir. Disso resulta, sabemos,um monumental ponto cego, ou melhor,um sistema adesivo, grudento. Quandoum candidato escuta a interpretação fun-dada nos cânones grupais, primeiro, nosmeses de iniciação, vê-se diante de ummodelo nebuloso, porém desejável, deconduta humana ideal a que quer aderir.Confunde-o depois com ser analista e,por fim, vicia-se na forma canônica —como numa droga qualquer —, exigindode seu analista que lhe aponte constante-mente as falhas de cumprimento da modapsicanalítica aceita. De sua parte, procuraidentificar-se com as qualidades exigidas.Pode ser que deva eximir-se de toda pato-logia, ao que se convencionou chamarnormalidade medíocre; pode ser, o queentre nósé mais comum, que deva ostentaruma patologia mínima aceitável— algumaneurose, um núcleo psicótico, o mínimode doença, em suma, para ser consideradonormal, e não arrogante, por exemplo.

A par disso, naturalmente, a análisepode prosseguir com frutos. Contudo, aconvergência de interpretações baseadasna microcultura grupal, ouvidas na análi-se, nas supervisões e de colegas, limitadecisivamente a manifestação de aspec-tos contrários do desejo. Numa palavra, aforma de representação dominante de umdado grupo psicanalítico tende a conver-ter-se em teoria interpretativa, depois emnorma de vida e critério de cura para o paranalítico.

Além disso, há algo mais numa socie-dade de psicanálise. É um dos poucoslugares donde não existe saída ou aposen-tadoria. Não nascemos nela, mas geral-mente nela permanecemos até morrer, en-terrando nossos mortos entrementes. Issolhe empresta um ar definitivo, em que ainaceitação repercute como sentença ca-pital, não raro significando uma meia-mor-te profissional. É compreensível portantoque o candidato se precavenha, adotandouma família postiça, com todas as lealda-des e ciúmes. Assim, o desejo encontranovo limite de manifestação na análise, oupelo menos uma posição especial. Seja odidata um chefe de grupo, seja um dosseguidores menores — circunstância ain-da mais grave, porventura —, a curiosida-de teórica do candidato pode facilmenteser interpretada como arrogância ou trai-ção do patrimônio familiar e, reciproca-mente, a contestação de sua família origi-nária acaba por expressar-se num repúdioexperimental pela corrente teórica ou ide-ologia do analista.

Reina então, em diversos momentosde análises didáticas, um princípio educa-cional afetivo que, noutro contexto, bati-zei como a regra do des/obede/serás*. Épreciso que sejamos induzidos (pelo gru-po, pelas instituições) a descumprir comum dos modelos de conduta, emoção oupensamento vigentes, para que o ambien-te possa efetuar uma ação corretiva, apa-rentemente natural, que determinará a for-ma futura de nosso ser. Serás no futuroaquilo a que desobedeceres hoje. A aná-lise pode participar de tal função. Desviosdo modelo cultural são interpretados como

* Ver Herrmann, 2001d, Des/obede/serás, pp. 127-152.

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prenúncios de catástrofe, quando o pró-prio modelo representa a teoria interpre-tante do analista didata, e qualquer inci-dente de vida, provocado ou não pelainstituição, é traduzido de imediato comoconfirmação do castigo esperado. Trata-se, portanto, de uma pedagogia conforma-dora, de âmbito ontológico, originalmenteconstatável nos sistemas familiais, poréminteiramente operante como referência nasanálises didáticas. Um núcleo identitário,expresso em nossa fórmula pela raiz obede,que substancia certo modo de ser analista,veicula-se pela tensão entre a resistência(des) e o futuro (serás), fixando o sistematransferência-contratransferência na re-produção ininterrupta do mesmo modeloidentitário.

Não creio que se siga, dessas conside-rações, a impugnação pura e simples daanálise didática. Pelo contrário. Uma ila-ção coerente é que a análise didática vema ser o lugar onde suas próprias contradi-ções devem ser superadas. Para tanto, éindispensável ter presente o caminho peloqual o projeto pedagógico indesejávelpenetra no trabalho analítico, à revelia dopar. Já vimos que uma das portas de entra-da é a transformação da cultura grupal emteoria interpretante, com o feitio de moda.Outra via de penetração, nada desprezível,é a identificação dos conflitos intrapsíqui-cos, derivados das vivências originaisinfantis, com as figurações institucionaisde poder e conhecimento. Tanto os obstá-culos inerentes à carreira psicanalítica,que vão desde a possibilidade de recusado candidato nalgum grau de seu progres-so institucional até à dificuldade de domi-nar nosso complicado ofício, quanto asrepresentações de aquisição de capacida-de analítica acabam por reencarnar os pri-

mitivos elementos de ambivalência e com-petição, como é sobejamente conhecido.Constitui-se agora um código de comuni-cação, específico da análise didática eaceito pelos parceiros do processo, quetraduz todas as vivências presentes emtermos primitivos e reciprocamente privi-legia a transferência institucional. O cam-po transferencial, por tal descaminho, imis-cui-se no Instituto e Sociedade, as rela-ções são sempre remetidas ao conflitoedípico.

Ora, seria justamente aconselhável quese cuidasse de compreender as instânciasformadoras em seu nível próprio, os con-flitos atuais em sua dimensão presente,ciência como ciência, política como políti-ca, afastando de vez a pesada metáfora dasrelações familiais, pais, filhos, irmãos, comointerpretação corrente das relações insti-tucionais. Quem sabe assim a análise didá-tica desse um passo para ser simplesmenteanálise, sendo a Sociedade, sociedade ci-entífica e nada mais. É preciso convir emque o vazamento transferencial para a for-mação não é obra apenas do candidato,mas passa também por um código lingüís-tico de corte regressivo, que empobrece efaz monótona a comunicação nas sessõese torna a vida institucional viciada eminterpretações transferenciais. Temos cui-dado, em nossa Sociedade, de desligarinteiramente a análise didática do sistemade aprovação, impedindo o didata de pro-nunciar-se sobre seu candidato em qual-quer instância e procurando evitar as in-terpretações transferenciais como tradu-ção dos conflitos formativos do instituto.

Por último, vale a pena dedicarmosalgumas linhas à presença dos pacientesdos candidatos no campo transferencial.De fato, e até de direito, a análise didática

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funciona como parâmetro e modelo para ocandidato em seu trabalho profissional. Aísão tratadas as angústias da clínica, asupervisão conta com tal apoio para com-plementar seu exercício, e, mais, há umainegável tendência à mimetização do pró-prio analista, nos princípios de nossa ati-vidade analítica. O ponto que pretendodestacar, entretanto, é a presença de umasupervisão oculta no íntimo da relaçãoanalítica dos candidatos, que toma algu-mas feições características. A primeiradelas, a mais direta, é a apresentação dematerial de pacientes na sessão, à esperade luzes superiores. Até aí, nada de mais.Porém, a complicação surge quando umaidentificação aparentemente intensa comum próprio paciente leva o candidato aadoecer em consonância, usando incons-cientemente a análise como campo de pro-va. O candidato diagnostica-se através daprópria clientela, funde análises, utiliza àsvezes um paciente como duplo-enfermo,para comunicar seus conflitos pessoais.Ou, inversamente, algum paciente trans-forma-se num emblema identitário, numaneurose de empréstimo. Tende o candida-to a transplantar a seus pacientes a pato-

logia mínima, aceita por seu grupo forma-tivo como normalidade concebível. Me-nos que esse mínimo, seria tratado deingênuo por colegas e supervisores; mais,de afoito. A mesma patologia teórica que,supõe, todos os homens experimentam,dissemina-a entre seus pacientes e a tratacomo sua, na própria análise, através deum circuito de duplo empréstimo. Poisbem, tanto a rejeição taxativa da supervi-são oculta, quanto, está claro, a confusãode papéis que decorre da aceitação daproposta de supervisão constituem equí-vocos a evitar. Só a minuciosa e fina discri-

minação das identificações é respostaadequada. No fundo, estamos aí para issomesmo. Para mediar um desenvolvimentoclínico, não, porém, como modelo pessoal,mas como eixo de transformação da vidapsíquica do candidato em instrumentoterapêutico ativo. Acolher interpretativa-mente uma clientela vicariante pode ser,por conseguinte, um dos nós mais comple-xos e estimulantes da tarefa didática.

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Percorremos até aqui alguns doscaminhos históricos que criaram a análisedidática tal como é hoje praticada. É horade fazer um balanço final dos resultados.

Nossa primeira constatação é queboa parte dos textos que discutem suahistória, fazem-no de forma crítica, àsvezes virulenta. A que se deve isso? Éque uma visão histórica suprime toda aingenuidade. Tendemos a acreditar que aPsicanálise é uma criação abstrata, obrado espírito humano que se deseja desvelarmelhor para si mesmo. Como tal, teorias,técnicas e as instituições vigentes são emgeral discutidas como se fossem neces-sárias ou pelo menos fruto de uma refle-xão descomprometida, quando, na verda-de, todas elas chegam a nós respingandosangue histórico. No caso presente, aanálise didáticaé, como vimos, produto delutas complicadas dentro do movimentopsicanalítico e reflete, por isso mesmo, oslances dessas pelejas: a formação doprimeiro grupo psicanalítico em Viena; acriação da IPA; a morte anunciada deFreud e a criação do Instituto de Berlim;

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as duas guerras mundiais; a campanha deindependência norte-americana contra asexigências do Comitê Internacional deFormação e contra Jones, em especial abusca de aliar a Psicanálise à AssociaçãoPsiquiátrica Americana, como especiali-dade médica; as controvérsias kleinianase o esforço da Sociedade Britânica demanter-se unida e preponderante no mo-vimento internacional, conseguindo retera sede burocrática da IPA; as cisões naFrança; a tentativa de firmar a hegemoniaatual do Conselho Executivo da IPA, pormeio do constante apelo à questão dosstandards, e o germe de oposição quecomeça a encontrar por parte das Socie-dades Componentes. Chegamos até àfundação das sociedades e dos institutoslatino-americanos, particularmente o deSão Paulo, que nos interessa, verificandoque, entre nós, reina uma espécie denaturalização da idéia de análise didática,que nos leva a considerar aquilo que seproduziu em circunstâncias históricasmuito especiais como resultado de umareflexão pura sobre as conveniências doprocesso de treinamento psicanalítico.Quem se debruça sobre a história concre-ta — mesmo aqui, quando o faço porencomenda expressa do Jornal de Psi-canálise —, já não consegue fechar osolhos a quanto de circunstancial há emnossa formação presente. Os autores quenos serviram de referência estavam qua-se todos empenhados nalguma contro-vérsia sobre a formação e encontraramna história as provas de que as coisas,embora sejam assim como são, poderiam

ter sido diferentes e podem vir a serdiferentes, caso nosso movimento siganovos caminhos.

As críticas dirigem-se principal-mente ao papel doutrinador que têm asformações e à possibilidade de a análisedidática colaborar na doutrinação. Con-trole autoritário, infantilização dos anali-sandos, poder dos didatas, manutençãodoutrinária do corpo teórico psicanalítico,impedimento de criatividade teórico-clíni-ca dos candidatos são as censuras maisásperas que tem merecido a instituição daanálise didática. Em minha opinião, cadauma dessas críticas tem alguma justiça, acertas observações aliei-me, juntandonovos argumentos críticos. Entretanto, éigualmente justo dizer que as própriascríticas, tanto quanto a análise didática,são fruto de circunstâncias históricas pre-cisas: na realidade, das mesmas circuns-tâncias ambas, vistas apenas de ângulosdistintos. Enquanto os aparelhos de poderiam ditando regras, alguns analistas, nemsempre externos a esses aparelhos, pro-curavam opor-se; isso nos vale, no míni-mo, para meditar sobre a arbitrariedadehistórica dos organismos de suporte dasciências, da nossa em particular, e emcomo as teorias dominantes são selecio-nadas de acordo com as marés do jogo deinfluência política, pelo menos tanto comopor sua efetiva capacidade em respondera certos problemas do conhecimento.

Que resta de todas essas críticas?Serão apenas queixas dos perdedores dojogo político? Essa visão tão popular quantocínica não parece digna de nossa conside-

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ração. Resta, sim, um convite à reflexãoe ao aprimoramento. Antes de mais nada,caro leitor, é preciso convir numa críticafinal. E esta é a seguinte: se a história daanálise didática é feita de críticas, confor-me afirma o título deste artigo, isto sedeve primariamente ao fato de não tersido matéria de pensamento construtivo.Quero dizer com isto que, se as decisõesacerca de como regulamentar a forma-ção tivessem resultado de um debateaberto e livre entre os pensadores daPsicanálise, dificilmente estes teriam derecorrer tão pesadamente à crítica doproduto final. Quando, ao pensar um pro-blema, creio que meus argumentos pos-sam vencer pela força de suas idéias e,nesse caso, modificar de imediato a rea-lidade, não me sinto impotente ou amargo.Contudo, tem pesado uma proibição so-bre o pensamento metodológico a propó-sito da análise didática; assim, a únicaforma de reflexão passa a ser a denúnciacrítica, pois o pensamento mais elevadonão se sente acatado como legislador,quando prevalece a regulamentação bu-rocrática das comissões. Diante do poder

administrativo, o analista que tem umprojeto de pensamento e escrita é extre-mamente vulnerável: se, além de atenderseus pacientes, deve dedicar 20 ou 30horas semanais ao trabalho intelectual,ele só consegue acumular funções políti-cas quando apoiado unanimemente portoda a instituição; basta que surja umapequena oposição, e o tempo de enfrentá-la já ultrapassa sua escassa disponibilida-de. Só lhe resta, então, usar sua armafrágil: ele escreve, como vimos até aqui.

Outra pequena conclusão diz res-peito ao fatalismo reinante com relaçãoao problema do submetimento e falta decriatividade do analista-candidato. É cos-tume creditar à força da transferência ofato de que as teorias dominantes numlocal e os mestres ou prepostos de mes-tres que as encampam formem seus sé-quitos de discípulos dóceis. E se tudo vaipor conta da transferência, então é inevi-tável, ou vamos analisar sem transferên-cia? O exemplo mais taxativo que secostuma apresentar dessa aparente fata-lidade é o destino da escola criada porLacan14. Lacan abandonou a IPA e for-

14 Provavelmente o texto mais contundente já escrito acerca da filiação psicanalítica é o livro de FrançoisRoustang, Un destin si funeste (1976), em que o autor, desiludido com os destinos da escola lacaniana,procura demonstrar a fatalidade da submissão dos discípulos ao mestre, já a partir do grupo original deFreud. O título, retirado da tragédia Atreu, de Crébillon, e citado no Seminário sobre a carta roubada,de Lacan, faz referência à arte de bem-devorar os próprios filhos ou, no caso, os discípulos. Esta bela, masacérrima crítica, ilustra também o paradoxo da denúncia radical de forma exemplar. Não por levar a umaespécie de conservadorismo institucional — que Roustang renunciou a todo intento de formaçãoconvencional —, mas por condenar radicalmente toda e qualquer instituição psicanalítica à repetição docanibalismo teórico e transferencial. A propósito, Castoriadis, em Les carrefours du labirynthe, criticacom igual ênfase este gênero de fatalismo histórico, mostrando que mesmo as marcas originárias, como adominação transferencial na Psicanálise, só serão mantidas se um processo histórico lhes der sustentação,segundo o interesse do grupo dominante.

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mou um movimento que primava peladenúncia contra o poder dos mestres; noentanto, qual mestre terá imposto commais força que ele um estilo e sua autori-dade? Fatalidade transferencial, pois?Qual nada! Projetos conseqüentes. O quese passa, com a IPA e com o lacanismo,é que a Psicanálise tem convivido com umprojeto altamente contraditório. Ela cons-titui uma zona do saber na qual as verda-des teóricas são tênues e poucodemonstráveis. Assim, seu destino só podeser o de produzir constantemente, explo-rando sempre novas áreas que não foramainda objeto de investigação teórica. Cho-ver no molhado, detalhando e reafirman-do conceitos conhecidos, embora possafertilizar outras formas de saber, em queo acúmulo de experimentos leva à rupturade paradigmas anteriores — como sus-tenta uma das teorias do conhecimentomais em voga entre os psicanalistas, a deKuhn —, não irriga em nossa disciplina,só faz poças d’água. Todavia, justamentepor isso, desde Freud faz-se um esforçoconsciente para manter um corpo doutri-nário intocável. Não consigo imaginaroutro exemplo de ciência em que alguémafirmasse algo parecido com a conhecidaexigência de Freud acerca das crençasmínimas a serem aceitas para que alguémse possa chamar psicanalista. Quem con-ceberia Einstein escrevendo que, para sedizer físico, o postulante deve acreditar notempo e no espaço, ou em sua relativida-de? Ou que Weber exigisse daquele quese pretende sociólogo declarar sua ade-são explícita à teoria dos tipos ideais?

Tendo muito pouca coisa provada e, comisso, escolas e correntes que se contradi-zem frontalmente, estamos na situaçãoparadoxal de precisar produzir livrementesempre as mesmas conclusões — as dapsicanálise freudiana e, depois, as daescola dominante em cada lugar. Por isso,o projeto de formação, dentro ou fora daIPA, envolve um capítulo não escrito desubmetimento intelectual, muito parecidoao que se exige do postulante a qualquerdesignação religiosa. Assim, mesmo de-nunciando o projeto alheio, qualquer es-cola só pode formar-se afirmando umcânon novo e mantendo-o à custa datransferência analítica dos discípulos.

Se a análise didática tivesse ape-nas esta função, penso que a deveríamosproscrever. Mas não sendo este o caso, émelhor proscrever apenas a doutrinaçãoescolástica, abrindo o ensino, em cadalugar, ao pensamento direto sobre os pro-blemas da alma humana, sem ligar oestudo e a clínica ao seguimento de unstantos autores. É claro que a transferên-cia das análises dos professores dificultaeste projeto tão sensato, assim como ou-tros fatores que não cabe aqui enumerar.Mesmo sem ainda poder mudar a realida-de só por pensá-la, pensar um pouco nãocusta nada. Pensemos, pois.

O movimento de transmissão deuma forma humana qualquer, seja a deser humano, seja uma profissão, arte ouciência, tem de atravessar um estreito edecisivo desfiladeiro. Nalgum momento,quando entre uma e outra gerações háque se transmitir o como ser ou o como

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fazer algo, é mister que se passe apenasa essência da arte em questão, num sen-tido lato, e não as idiossincrasias do sujeitotransmissor. Mas, como separar umacoisa de outra? Num texto recente(Herrmann, 2001c), procurei mostrar que,desde a antiguidade mais remota e nasculturas ditas primitivas, o culto dos ante-passados tem servido a este propósito.Em poucas palavras, o processo funcionaassim. Erige-se uma estátua ou qualqueroutra forma de representação que fixa aforma mínima e essencial do aspectohumano a ser transmitido, que leva onome de um ancestral prestigiado.Destarte, quando o mais velho e o maisnovo prostram-se juntos diante do símbo-lo do antepassado, aquele transmite a esteum como ser ou como fazer essencial-mente algo, porém sem reivindicar para sia autoria nem impor ao outro suas própri-as peculiaridades. Além disso, a agres-sividade despertada pela sujeição jánão se dirige a ele, ao mais velho, masao antepassado, reverenciado por am-bos. No caso da Psicanálise, fazemos omesmo com Freud, no lugar de ances-tral modelar.

Óbvio, este é um recurso ligeira-mente primitivo, porém humaníssimo e —por que não o dizer? — inteligente. O quepode acontecer, entretanto, é que novosantepassados sejam inscritos na lista, comoKlein ou Lacan. É que os transmissores,professores ou autores atuais, tambémdesejam poder passar suas característi-cas, mas estão divididos entre o temor aoataque da nova geração e a ambição de

criar sua própria escola. Nada melhor queerigir outro antepassado, desde que esteseja depositário do desejo de perpetuida-de de cada um de nós. O resultado, então,é uma luta entre correntes, cada qualbuscando derrubar a estátua alheia, demaneira parecida à das chamadas guer-ras raciais da Ilha de Páscoa, discutidasno texto acima citado. Haverá soluçãomelhor? Creio que sim. É possível con-servar uma estátua de Freud, mas queesta não seja simplesmente a do conjuntode suas teorias — estas merecem melhordestino, o de serem estudadas com cuida-do e senso crítico —, mas, como propuscerta vez, feita, por exemplo, à imagem deseus charutos: estes que o ajudaram apensar e depois se esfumaram, pois ima-gino que ninguém se sinta dono dos cha-rutos de Freud (Herrmann, 12 jun. 1993).Ao mesmo tempo, temos o método psica-nalítico, criado por ele para produzir co-nhecimento e cura. Sendo a forma essen-cial de nossa disciplina, não tem donotambém, não carrega idiossincrasias, sótem o problema de ser um tanto desco-nhecido, ou antes, de estar algo esquecidoe misturado com idiossincrasias de es-colas. Se o ensino da Psicanálise vol-tar-se à prática direta do método, pro-curando pô-lo em evidência e fazê-loproduzir conhecimentos fora dos câno-nes estabelecidos pelas escolas, talvezse possa superar o paradoxo da trans-missão: nem será minha cara nem a suaque se vão implantar, nem um nemoutro seremos atacados comousurpadores e tampouco estaremos

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condenados a descobrir, livremente,sempre a mesma coisa.

Imagine-se um instituto de forma-ção onde cada professor estivesse de-senvolvendo um projeto pessoal de inves-tigação sobre determinado aspecto daalma humana. Alguém estaria estudandoo sentimento de alegria, outro talvez seinteressasse pelos jogos de poder no ca-samento, um terceiro poderia estar fazen-do uma revisão crítica das metapsicologi-as, para saber qual o rendimento de cadauma na produção de interpretações compacientes de perversões, etc. Os temas, éóbvio, não importam demais nesta fanta-sia, basta que se afastem dos assuntos-clichê das escolas — é possível que al-guém estivesse até interessado numaanálise crítica de alguma delas. Os candi-datos poderiam acompanhar tais investi-gações em seminários, que haveriam decobrir tanto a pesquisa em si mesma,quanto os textos clássicos que fossemconsiderados necessários para introdu-zir-se ao tema específico e à investigaçãopsicanalítica de modo geral. O tempo deacompanhamento de um certo semináriodependeria do interesse e rendimento dapesquisa. Alguns professores especializar-se-iam no ensino das bases metodológi-cas da Psicanálise e outros nos funda-mentos teóricos freudianos, a fim de pro-porcionar um curso introdutório. Comisso, já teríamos todo o necessário paraum ensino não-escolástico, pois quemacompanha a investigação temática numsetor do psiquismo está logo inclinado aescolher algum outro setor da psique para

estudar, de preferência algo que aindanão foi tocado ou permanece muito obs-curo. Foi assim que nasceu a Psicanálise,nada impede que se desenvolva assim,dentro do espírito das reuniões psicológi-cas das quartas-feiras, que Freud faziacom seus colegas. Suprimida a luta deposições entre as escolas, restaria, comofator principal, a curiosidade científica,

Num sistema como este, nenhumalinguagem ou cânon conceitual poderiaser tão dominante a ponto de implantar-senas supervisões e análises, criando o fe-nômeno de emolduração. Qual o papelda análise didática nesse caso? Transmi-tir a forma psicanalítica em estado puro.Pois indiscutivelmente a idéia de análisedidática não é má. Ela invoca, em primei-ro lugar, a utilidade de um analista conhe-cer-se razoavelmente para suportar ostrânsitos emocionais que sua prática clíni-ca exige. Depois, e nisso talvez esteja aespecificidade da análise didática, o fatomesmo de experimentar reorganizar-seemocionalmente, estudar a forma de seupróprio pensamento e de seus afetos,compreender como diferentes relações otocam de uma ou outra maneira constituium ensinamento muito especial. Experi-menta-se o poder do campo transferenci-al, a eficácia das resistências e como elassão eventualmente vencidas, prova-se oefeito interno das interpretações. Ou seja,a análise didática, sem deixar de execu-tar-se no geral como uma análise tera-pêutica, transmite excelentemente umaforma de operação, que é a do métodopsicanalítico.

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Pesando num prato as críticas to-das que se fazem contra os desvios daanálise didática, em particular contra ospropósitos de sua regulamentação, e pon-do no outro prato esta simples função detransmitir a forma psicanalítica, pensoque o fiel da balança se inclinará para opositivo. Uma análise levada a efeito numambiente isento de excessivo proselitismo,sem escola única, uma análise permeávelà experiência analítica do próprio candi-dato com seus analisandos e em que odesejo de analisar-se não seja imposto,mas só tomado em consideração, nãopode ser alvo de críticas ferozes.

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E o problema da superterapia?Como lidar com a fantasia de que umaanálise substitua tudo o mais, por ser tãocompleta que esvazie o inconsciente in-teiro?

Há anos, quando ensinava em cer-ta faculdade, uma aluna perguntou-me,com séria e sancta simplicitas, se eraverdade que o sujeito analisado já nãotinha inconsciente e, nesse caso, tambémnão sonhava. Eu acabara então de ter altade minha análise didática e contei-lhe. Elaquis saber como era. Quanto aos sonhos,expliquei-lhe que ainda sonhava, porémque meus sonhos já vinham com interpre-tação em sublegenda. Apenas, como meuanalista era estrangeiro, as legendas esta-vam em italiano, e muitas vezes eu não asconseguia entender. Logo, um resto deinconsciente sempre havia.

Pois bem, para combater essasfantasias basta um pouco de bom humor.Há outras fantasias que também pedem omesmo tratamento. Algumas pessoaspensam que uma análise só responde aointeresse pelo conhecimento. Outras queo desejo de analisar-se é o único tema daanálise didática. Às vezes se escuta quea cura e o alívio de sofrimento não têmnada a ver com o tratamento analítico. Ouque o corpo e suas sensações não cabemem nossa prática. Que o futuro analista sódeve ser movido pelo amor à Psicanálise,não por interesse profissional. Ou que,como analistas, não podemos experimen-tar desejo algum. Existe, ao todo, umcódigo imaginário de bom comportamen-to que tem mais peso na orientação ideo-lógica de nossa prática do que os 24volumes da obra de Freud juntos, e cujoselo distintivo é, sem qualquer sombra dedúvida, a abstração do homem concreto.Ao escutar conselhos desse tipo, recor-de-se da história seguinte, com a qualtermino este já longo artigo.

Quando se constrói um edifícioreligioso, é prática obrigatória da IgrejaCatólica que a planta seja aprovada poruma comissão do Vaticano. Trata-se deuma espécie de nihil obstat formal, aexemplo daquele que se dava aos livrosreligiosos. Certa feita, uma congregaçãoplanejava edificar um seminário, aqui noBrasil, cuja planta teve de ser, competen-temente, submetida ao Vaticano. Veio apermissão, porém com um só reparo emlatim: sunt angeli?, são anjos?, pergunta-va o encarregado. A princípio, a congre-

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gação pensou que fosse algum tipo deelogio à santidade do projeto; até que,revendo a planta, descobriu-se que o ar-quiteto não planejara nela banheiro al-gum!

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SUMMARY

Training analysis: a history made of criticism

We usually regard our theories, clinical practice and institutions as mainly or

exclusively being brought up by discoveries or abstract considerations. Nevertheless,

as far as the training requirements — but also dominant theories and clinical practice

— are concerned, they are determined by the political interplay between psychoanalyti-

cal groups as well. Regulations concerning training analysis are particularly the

conjunctural effect of complex historical trends in our international movement, rather

than the sensible result of worldwide discussions on this topic.

This is probably why most of the relevant papers published on this matter have

an unmistakably critical tone. In this paper, the author tries to follow the main streams

of this history and criticism. Within this historical framework, he tries to evaluate the

central ambiguity involved in the issue of training-analysis regulations: when practical

matters are discussed on an idealistic ethical basis, we usually end up by doing

precisely what we criticize the most.

Key words: Training analysis. Psychoanalytic training. Psychoanalytic movement.

Transference.

RESUMEN

Análisis didáctico: una historia hecha de críticas

El punto de vista que tenemos de nuestras teorías, prácticas e instituciones

suele ser el de que éstas surgen exclusiva o principalmente de reflexiones o

descubrimientos. En el caso de las reglas que guían la formación, a pesar de – como

en el establecimiento de las teorías predominantes y de las prácticas clínicas usuales

- los juegos de fuerza entre corrientes y grupos psicoanalíticos despliegan un rol

sobresaliente. La reglamentación del análisis didáctico, en especial, más que el

resultado de una compleja historia de nuestro movimiento, es el producto de una amplia

discusión entre los analistas.

Por tal motivo, probablemente, gran parte de los escritos más notables sobre

el tema poseen una inequívoca tonalidad crítica. Dentro del contexto de una revisión

histórica, se evalúan ciertos problemas implicados en la organización institucional del

análisis didáctico y se busca comprender el motivo de la ambigüedad central: aquello

que más se critica es lo que más se practica.

Palabras-clave: Análisis didáctico. Formación. Movimiento psicoanalítico. Transferen-

cia.