análise de poemas de fernando pessoa

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Analise de Poemas de Fernando Pessoa

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  • Anlise de Poemas

    Fernando Pessoa ortnimo considera que o acto criativo s possvel pela conciliao dasoposies entre realidades objectivas (fsicas ou psquicas) e realidades mentalmenteconstrudas (artsticas, incluindo as literrias). Da a necessidade de intelectualizar o que senteou pensa, reelaborando essa realidade graas imaginao criadora. A conscincia de efemeridade, porque o tempo um factor de desagregao, cria-lhe odesejo de voltar a ser criana novamente. A nostalgia da infncia como bem perdido leva-o umavez mais desiluso frente vida real e vida de sonho. Fernando Pessoa, ao no conseguir fruir a vida por ser consciente e ao no conseguirconciliar o que deseja ou idealiza como que realiza, sente-se frustrado, o que traduz o drama depersonalidade do ortnimo que, tal como os heternimos, apresenta uma identidade prpria,diversa do autor Fernando Pessoa, conservando deste apenas o seu nome.

    Sou um Evadido

    Sou um evadido.Logo que nasciFecharam-me em mim,Ah, mas eu fugi.

    Se a gente se cansaDo mesmo lugar,Do mesmo serPor que no se cansar?

    Minha alma procura-meMas eu ando a monte,Oxal que elaNunca me encontre.

    Ser um cadeia,Ser eu no ser.Viverei fugindoMas vivo a valer.

    Com a metfora Sou um evadido, o poeta caracteriza a sua realidade fragmentada,utilizando diversas palavras e expresses do campo semntico como evaso da priso na qual seencontra. O poeta considera-se um evadido que sempre fugiu e fugir da priso que o seu ser:Logo que nasci/Fecharam-me em mim,/Ah! mas eu fugi. Ao longo do poema, diversaspalavras e expresses constroem o sentido do sujeito potico fugitivo que quer escapar a umapriso: procura-me, ando a monte, cadeia, Viverei fugindo. O tom irnico com que o sujeito potico afirma Ah! mas eu fugi. ou Oxal que ela/Nuncame encontre. mostra que est no limite, sem solues. Alm disso, afirma Ser um cadeia,/Ser eu no ser./Viverei fugindo/Mas vivo a valer., ou seja, rejeita ser nico. A fuga

  • de si mesmo apresenta um carcter permanente, de continuidade, acontece no passado (eufugi), no presente (Sou um evadido), ou como desejo (Oxal que ela/Nunca me encontre)ou ainda inteno de futuro (viverei fugindo). O sujeito potico caracteriza a sua realidade pessoal (estrofes 1, 3 e final da 4) atravs deuma reflexo geral, filosfica (estrofe 2 e incio da 4). Utiliza esses momentos de reflexo comoargumentos da sua opo de fuga aos limites do eu, demonstrando a naturalidade do cansao deser impartvel, afirmando Ser um cadeia e que apenas conseguir viver plenamente se fugirde si mesmo.

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    No sei quantas Almas Tenho

    No sei quantas almas tenho.Cada momento mudei.Continuamente me estranho.Nunca me vi nem achei.De tanto ser, s tenho alma.Quem tem alma no tem calma.Quem v s o que v,Quem sente no quem ,

    Atento ao que sou e vejo,Torno-me eles e no eu.Cada meu sonho ou desejo do que nasce e no meu.Sou minha prpria paisagem,Assisto minha passagem,Diverso, mbil e s,No sei sentir-me onde estou.

    Por isso, alheio, vou lendoComo pginas, meu ser.O que segue no prevendo,O que passou a esquecer.Noto margem do que liO que julguei que senti.Releio e digo: Fui eu?Deus sabe, porque o escreveu.

    Na primeira estrofe, as expresses que conferem um carcter mltiplo e contnuo fragmentao do sujeito potico so: "No sei quantas almas tenho/Cada momentomudei./Continuamente me estranho./Nunca me vi nem achei./De tanto ser. Na segundaestrofe, os adjectivos diverso e mbil acentuam a pluralidade. Fernando Pessoa revela a existncia de um desconhecimento de si mesmo, uma perda deidentidade, que entre outras expresses, pode ser elucidado por: No sei quantas almas tenho,Continuamente me estranho, Torno-me eles e no eu, Cada eu sonho ou desejo/ do quenasce e no meu, Nunca me vi nem achei. O poeta assiste sua fragmentao como se a sua conscincia fosse um ser exterior a si,como se, ao olhar-se, visse imagem de si ou como se, ao auto-analisar-se, lesse um livro cujas

  • pginas so o seu prprio ser. A metfora Sou minha prpria paisagem, assim como asmetforas ligadas leitura do eu, traduzem expressivamente a noo do eu alheio e exterior a si,isto , o(s) outro(s) eu(s). O poema escrito predominantemente no presente, o tempo em que o sujeito potico seobserva. Do passado, apenas existe o esquecimento (O que passou a esquecer), do futuro, ainterrogao (o que segue no prevendo).

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    Autopsicografia

    O poeta um fingidorFinge to completamenteQue chega a fingir que dorA dor que deveras sente

    E os que lem o que escreve,Na dor lida sentem bem,No as duas que ele teve,Mas s a que eles no tm

    E assim nas calhas de rodaGira, a entreter a razo,Esse comboio de corda Que se chama corao.

    O ttulo do poema Autopsicografia, e analisando o significado de cada elemento destapalavra, Auto + psico + grafia, somos remetidos para a anlise dos mecanismos psicolgicosenvolvidos na prpria escrita. O poeta um fingidor o tema apresentado no poema. Significa que, no poema, o poetafinge uma dor que no coincide com a dor sentida na realidade. Essa, mesmo como ponto departida para a escrita, no a dor escrita, pois esta uma inveno (uma transfigurao) criadapela imaginao. Os leitores, ao lerem o poema, sentem uma dor, mas no a que o poeta sentiunem a que ele escreveu, que a sua no dor. A ltima estrofe apresenta, de forma metafrica, a relao entre a razo e o corao. Ocorao apresentado como um comboio de corda, um brinquedo que se move orientado peloscarris em que se move. A razo uma realidade parte, mas simultaneamente estimulada(entretida) pelo corao. De acordo com o poema, a criao potica assenta no fingimento, na medida em que umpoema no traduz aquilo que o poeta sente, mas sim o que imagina a partir do anteriormentesentido. O poeta um fingidor que escreve uma emoo fingida, pensada, fruto da razo e daimaginao, no a emoo sentida pelo corao que apenas chega ao poema transfigurada na talemoo poeticamente trabalhada. O leitor no sente nem a emoo vivida pelo poeta, nem aemoo por ele imaginada no poema, apenas a que nele prprio (lritor) provocada pelo poema,mas que diferente da do poema. A poesia a intelectualizao da emoo.

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  • Ela Canta, Pobre Ceifeira

    Ela canta, pobre ceifeira,Julgando-se feliz talvez;Canta, e ceifa, e a sua voz, cheiaDe alegre e annima viuvez,

    Ondula como um canto de aveNo ar limpo como um limiar,E h curvas no enredo suaveDo som que ela tem a cantar.

    Ouvi-la alegra e entristece, Na sua voz h o campo e a lida, E canta como se tivesse Mais razes pra cantar que a vida.Ah, canta, canta sem razo!O que em mim sente 'st pensando.Derrama no meu coraoA tua incerta voz ondeando!

    Ah, poder ser tu, sendo eu!Ter a tua alegre inconscincia,E a conscincia disso! cu! campo! cano! A cincia

    Pesa tanto e a vida to breve!Entrai por mim dentro! TornaiMinha alma a vossa sombra leve!Depois, levando-me, passai!

    O canto da ceifeira vem de uma voz ao mesmo tempo alegre e triste. suave e musical comoum canto de ave. O adjectivo pobre, anteposto ao substantivo ceifeira, expressa a apreciaosubjectiva que o sujeito potico (o poeta Fernando Pessoa) faz da mulher pobre, porque nosabe. Se o mesmo adjectivo estivesse colocado aps o substantivo, indicaria a condio social daceifeira. Ao ouvir o canto, o sujeito potico sente-se, contraditoriamente, alegre e triste. A ceifeira canta sem razo, ou seja, sem pensar. Pelo contrrio, o sujeito potico, quesente tristeza e alegria ao ouvir o canto, pensa no que sente, no consegue sentir sem pensar.Nele, a sensao converte-se em pensamento, intelectualiza-se. O poeta gostaria de ser a ceifeiracom a sua alegre inconscincia, o que o mesmo que dizer que gostaria de sentir sem pensar,mas gostaria, tambm, de ser ele mesmo, de ter a conscincia de ser inconsciente. O que o poetadeseja to s unir o sentir ao pensar. com tristeza e desolao que o poeta afirma a conscincia que tem do peso da cincia, dopensamento, que impede que a vida, to breve, seja vivida inconsciente e alegremente. No finaldo poema, o poeta exprime o desejo de se deixar invadir e levar pelas sensaes acordadas pelanatureza o cu, o campo e pelo canto da ceifeira. Este desejo de sentir corresponde ao desejode no pensar.

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  • No Sei Ser Triste A Valer

    No sei ser triste a valerNem ser alegre deveras. Acreditem: no sei ser. Sero as almas sinceras Assim tambm, sem saber?

    Ah, ante a fico da alma E a mentira da emoo, Com que prazer me d calma Ver uma flor sem razo Florir sem ter corao!

    Mas enfim no h diferena. Se a flor flore sem querer, Sem querer a gente pensa. O que nela florescer Em ns ter conscincia.

    Depois, a ns como a ela, Quando o Fado a faz passar, Surgem as patas dos deuses E ambos nos vm calcar.

    'St bem, enquanto no vm Vamos florir ou pensar.

    Nos trs primeiros versos, o poeta afirma a sua incapacidade (subjectiva) de ser triste oualegre, a sua incapacidade de ser. Nos dois ltimos faz uma interrogao de carcter geral,filosfica, ontolgica, sobre a conscincia ou a no conscincia dos outros e a falsidade a elasassociada. O homem sente e pensa, mas nele a razo e a emoo so mentira (pois no se conseguemconjugar), enquanto que a flor no sente nem pensa e, no entanto, desabrocha sem precisar derazo nem de emoo. Para a flor, florescer um acto involuntrio, tal como para o homem umacto involuntrio pensar. O poeta no consegue ser triste a valer/Nem ser alegre deveras,porque no consegue deixar de pensar e apenas sentir. Apesar da diferena entre a flor e o homem revelada ao longo do poema, na quarta estrofeestabelece-se uma semelhana: o destino de ambos o mesmo a morte. A ambos o Fado fazpassar, a ambos as patas dos deuses (...) vm calcar. Aps constatar a inevitabilidade damorte, o poeta finaliza o poema com um apelo irnico ao carpe diem, ou seja, enquanto amorte no chega, deve-se aproveitar a vida, seja florindo inconscientes como a flor, sejapensando, como inevitvel no homem. Neste poema o tema pessoano da incapacidade de viver a vida surge articulado com obinmio sentir/pensar e o carpe diem, nos trs versos iniciais em que o poeta assume nosei ser que, surgindo depois das duas afirmaes anteriores, como afirmar no saber viver.

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  • O Menino da sua Me

    No plaino abandonadoQue a morna brisa aquece,De balas trespassado Duas, de lado a lado ,Jaz morto, e arrefece.

    Raia-lhe a farda o sangue.De braos estendidos,Alvo, louro, exangue,Fita com olhar langueE cego os cus perdidos.

    To jovem! que jovem era!(Agora que idade tem?)Filho nico, a me lhe deraUm nome e o mantivera:O menino da sua me.

    Caiu-lhe da algibeiraA cigarreira breve.Dera-lhe a me. Est inteiraE boa a cigarreira,Ele que j no serve.

    De outra algibeira, aladaPonta a roar o solo,A brancura embainhadaDe um leno... Deu-lho a criadaVelha que o trouxe ao colo.

    L longe, em casa, h a prece:Que volte cedo, e bem!(Malhas que o Imprio tece!)Jaz morto, e apodrece,O menino da sua me.

    O pano de fundo sugerido um campo plano e ermo, batido pelo sol quente plainoabandonado/ Que a morna brisa aquece, cus perdidos adequa-se situao de extremasolido e abandono do cadver do jovem soldado morto. A figura do jovem soldado morto vai sendo sugerida e progressivamente descrita. De facto,um conjunto de traos e situaes caracterizadoras da figura surgem antepostas suaidentificao. De balas trespassado, Jaz morto, e arrefece.. Identificar aquele que jaz morto e arrefece como o menino do sua me imprimir aoquadro um dramatismo extremo. No h nada mais terrvel do que a ideia de um filho morto, eainda por cima longe de sua me. Este filho no tem nome, nem precisa, porque o annimosoldado morto e abandonado ainda e sempre o menino para a sua me. A cigarreira dada pela me e o leno dado pela ama que o ajudou a criar so a imagem doseu passado de menino vivo junto de quem o ama(va). A presena de objectos preservadoscontrasta com o corpo morto e frio do soldado (Est inteira/E boa a cigarreira./Ele que jno serve). A presena destes elementos to importante que o poeta reservou uma estrofe

  • para cada um deles. Relativamente ao leno, h uma sugesto de cor sobretudo na expressobrancura alada que inevitavelmente conduz sugesto da imagem da pomba da paz (brancuraalada = asa branca). O menino de sua me a descrio dramtica de um jovem soldado morto quandocombatia, longe de casa, para defender o Imprio. No entanto, pode ver-se nele a representaodo poeta que sabe ser impossvel o regresso ao colo da sua me. A infncia ficou para trs, irremediavelmente perdida, morta. Relacionando este poema coma temtica da nostalgia da infncia, compreende-se o sentido desta representao.

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    Sara Martinsn21 12C4