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Análise de Discurso Florianópolis - 2014 Pedro de Souza 11º Período

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Análise de Discurso

Florianópolis - 2014

Pedro de Souza11ºPeríodo

Governo FederalPresidência da República

Ministério de Educação

Secretaria de Ensino a Distância

Coordenação Nacional da Universidade Aberta do Brasil

Universidade Federal de Santa CatarinaReitora: Roselane Neckel

Vice-reitora: Lúcia Helena Martins Pacheco

Secretário de Educação a Distância: Cícero Barbosa

Pró-reitora de Ensino de Graduação: Roselane Fátima Campos

Pró-reitora de Pós-Graduação: Joana Maria Pedro

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Diretor do Centro de Comunicação e Expressão: Felício Wessling Margotti

Diretor do Centro de Ciências da Educação: Wilson Schmidt

Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a DistânciaDiretor da Unidade de Ensino: Felício Wessling Margutti

Chefe do Departamento: Rosana Cássia Kamita

Coordenadora de Curso: Sandra Quarezemin

Coordenador de Tutoria: Josias Hack

Coordenação Pedagógica: Cristiane Lazzarotto Volcão

Comissão EditorialTânia Regina Oliveira Ramos

Silvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos

Cristiane Lazzarotto Volcão

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Coordenação: Ane Girondi

Design Instrucional: Daiana Acordi

Diagramação: Tamira Silva Spanhol

Capa: Tamira Silva Spanhol

Tratamento de Imagem: Tamira Silva Spanhol

Copyright © 2011, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSC

Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer

meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Coordena-

ção Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância.

Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da

Universidade Federal de Santa Catarina

Ficha Catalográfica

S728a Sousa, Pedro de Análise do discurso / Pedro de Souza, — Florianópolis :

LLV/CCE/UFSC, 2011. 114p. : il

Inclui bibliografiaUFSC. Licenciatura em Letras Português na modalidade a Distância

ISBN 978-85-61482-42-8

1. Análise do discurso. 2. Ideologia. 3. Subjetividade. 4. Psicanálise. 5. Materialismo histórico. I. Título

CDU 801

Sumário

Unidade A - No princípio, há a fala, a língua e o falante...... 9

1 Linguagem, língua, fala..............................................................................11

2 A fala, o indivíduo falante .........................................................................15

3 A fala entre o descontrole e o controle ................................................19

4 O discurso como procedimento de controle .....................................23

Unidade B - Elementos da noção arqueológica de discurso ................................................................................................................27

5 Do enunciado à função enunciativa ....................................................29

6 O correlato do enunciado .........................................................................31

Unidade C - Do discurso como objeto de análise ao modo da escola francesa ...........................................................................41

7 Da fala ao discurso: relações de força e de sentido ........................43

8 Análise de discurso: artefato de leitura ................................................47

9 O esquecimento no jogo da memória ou do interdiscurso .........57

10 Os limites entre o mesmo e o diferente ...........................................65

11 Do jogo de posições à formação discursiva .....................................73

12 A definição discursiva de ideologia ....................................................75

13 A história das formas-sujeito ................................................................81

Unidade D - Construindo a análise ...........................................89

14 Do conceito ao trabalho de escavação do processo discursivo ......................................................................................................91

15 Textualidade e discurso: vivem Marias e Clarices .........................99

16 Da dispersão do sujeito à unidade do autor .................................105

Considerações Finais ................................................................... 119

Referências ...................................................................................... 121

Referências das imagens ........................................................... 123

Apresentação A Análise de Discurso, quando ela não é praticada por um espe-cialista, é uma atividade cotidiana inseparável do exercício da lin-guagem. Todo indivíduo “analisa” seu jornal, a carta que acaba de receber, a conversa à mesa vizinha, o que escuta no rádio, etc. Esta análise, o mais das vezes, praticada inconscientemente, pode de-mandar um esforço mais considerável, às vezes percebido como tal, no momento em que palavras e textos parecem esconder um sentido não imediatamente acessível e se dirigem a pessoas difíceis de iden-tificar. Toda leitura e toda escuta é portanto Análise de Discurso.

Baylon e Mignot

A Análise de Discurso, no currículo do Curso de Letras, da Universidade

Federal de Santa Catarina, segue a sequência do grupo de disciplinas

colocadas no elenco da Linguística. Mais precisamente é uma matéria

que deveria ter como pré-requisito a Semântica e a Teoria da Enunciação. Por isso,

é uma disciplina oferecida no presencial no penúltimo semestre do curso.

Por quê? A ideia é que a Análise de Discurso, especialmente na vertente da escola

francesa, seja uma disciplina que proponha uma nova maneira de considerar o

sentido na linguagem. No campo do discurso, encontramos o levantamento de um

problema pouco considerado nos outros domínios que tratam da significação em

Linguística. Trata-se do problema do sujeito e da história. Em Análise de Discur-

so, aprendemos que esses elementos não podem ficar à parte do estudo de como

os sentidos se realizam na língua. Só que o modo de incluí-los não é à maneira

tradicional de abordar o histórico, o social, o subjetivo como um contexto que se

acrescenta aos funcionamentos linguísticos, ou como se separasse o lado interior

– o que importa ao objeto linguístico – e o lado exterior, aspectos suplementares

que não são pertinentes ao domínio dos estudos linguísticos. Não é bem assim.

O pensamento novo que a Análise de Discurso traz para os estudos linguísticos,

especialmente do sentido em língua, é que a exterioridade, a dimensão tida como

da ordem do contexto histórico, social e ideológico, à língua. Do ponto de vista do

discurso, não se pode entender a língua como algo separado da história e dos con-

textos sociais. Portanto, é como fato de linguagem que problemas de subjetividade,

de história e de ideologia vão ser abordados aqui, nunca como elementos à parte.

Figura 1 - Meditando. Eliseu Visconti. 1916.

Por isso, nosso ponto de partida será retomar o conhecimento que temos da ciência

linguística e de seu objeto e rever como ele se formou deixando de lado os aspectos

tidos como impertinentes para o estudo da língua, especialmente a consideração do

sujeito. Daí que vai fazer todo sentido começarmos pela inauguração da Linguística

por Ferdinand de Saussure e, em seguida, examinar como sua dicotomia langue/pa-

role é repensada no âmbito da Psicanálise até chegar a examinar como a visão psica-

nalítica do signo linguístico visando o sujeito é aproveitada pela Análise de Discurso.

O que será posto em foco é a reinclusão do sujeito na análise da língua e do discurso.

Propomos a entrada propriamente no terreno do discurso a partir de

Michel Foucault. Lendo os primeiros parágrafos de A ordem do discurso (1996),

vamos fixar a perspectiva de que o ponto de partida e alvo da Análise de Dis-

curso é o homem tomando em sua fala, porque é através de homens falando que

vemos o discurso agir e o sujeito e o sentido se realizarem.

Na sequência, o plano de estudo será privilegiadamente calcado no manual propos-

to por Eni Orlandi, Análise de Discurso: princípio e procedimentos (2003). Esse

será nosso guia de estudo para que se leve, via ensino a distância, o que tem sido

feito com ele nas aulas presenciais. Teremos assim um mapa para a leitura de ou-

tros textos que auxiliarão na compreensão mais precisa e nos aprofundamentos de

conceitos. O interesse é que todos possam perceber a produtividade da disciplina,

não apenas como acréscimo ao conhecimento intelectual, mas também como fer-

ramenta para desenvolver criticamente ações pedagógicas e intervenções sociais.

Neste ponto, encerramos esta apresentação anunciando que o instrumento que

aqui propomos é a oportunidade de partilhar o que temos conseguido ao longo de

16 anos de ensino de Análise de Discurso. Tudo o que aqui vai proposto, além de

ser um subsídio para a educação a distância e uma partilha, é também uma forma

de rever o caminho e, nessa revisão, avançar para outros caminhos que estabele-

çam e cristalizem a importância desta disciplina no campo das ciências humanas

em geral e das letras, servindo aí de instrumento teórico e pedagógico de cruza-

mento entre Linguística e Literatura.

Pedro de Souza

Figura 3 – Michel Foucault.

Figura 4 – Eni Orlandi.

Figura 2 – Ferdinand de Saussure.

Unidade ANo princípio, há a fala, a língua e o falante

Figura 5 - Caliban. Franz Marc. 1914.

Capítulo 01Linguagem, língua, fala

11

Linguagem, língua, falaApresentar a conjuntura intelectual que, na França dos anos de 1960,

serviu de quadro epistemológico para dar origem à escola francesa de Análise

de Discurso como campo de conhecimento sobre a linguagem.

A Análise de Discurso se interessa por homens falando (ORLAN-DI, 2003, p. 15). Assim, por toda situação em que há pessoas falando, conversando, debatendo, dialogando, expondo ideias, portanto palavras sendo ditas, oralmente ou por escrito, ou até mesmo por meio de formas não verbais de linguagem. Em todas essas práticas de linguagem, há dis-curso, ou seja, efeito de sentido entre interlocutores. Isso se estende às situações em que se lê um livro, assiste-se a um filme ou a um espetáculo teatral, escuta-se uma música popular ou erudita. O que se interpõe en-tre o indivíduo e essas diferentes modalidades de linguagem é di’scurso, isto é, o regime simbólico em que um simples ruído ou uma simples imagem produz sentido e, por isso mesmo, demanda interpretação.

Todavia interpretar, levando em conta o processo discursivo que se

interpõe entre o intérprete e o objeto a ser interpretado, não é atri-

buir sentido a tudo que se lê, se vê ou se escuta. Muito ao contrário,

diante do que acontece no cotidiano como enunciável, legível, vi-

sível ou audível, enfim, como fato simbólico, observam-se sentidos

sendo produzidos. Tem-se aqui o ponto de partida que apresenta

uma atividade de interpretação em que o discurso, e não o senti-

do, é o seu objeto primeiro. Em outros termos, a Análise de Discurso

interessa-se somente por processos em que o sentido é abordado

como efeito de linguagem, e nunca como propriedade literal das

coisas expressas em palavras. Dessa perspectiva, decorre que a lin-

guagem é condição material do discurso.

Afinal, o que é linguagem? Sempre que em Linguística propõe-se uma definição para linguagem, nota-se que, em verdade, o que se defi-ne mesmo é a língua. É como se a linguagem fosse um sistema que só

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Análise do Discurso

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pudesse ser apresentado e definido por algo que expõe sua sistemati-cidade, mas também algo de que a linguagem pode prescindir para se definir por si mesma. Isso porque a linguagem pode se estruturar por outras modalidades formais que não remetem necessariamente ao sig-no verbal. Levando isso em conta, Saussure não hesitou em eleger, em gesto excludente e exclusivo, a língua enquanto objeto que diz respeito à faculdade humana da linguagem. Excludente porque, como veremos adiante, exclui o sujeito que fala e exclusivo porque propõe a língua como objeto de saber que só cabe à Linguística estudar.

Em um famoso artigo – A semântica e o corte saussuriano –, que Michel Pêcheux escreve com Claudine Haroche e Paul Henry (2007, p. 13-32), argumenta-se sobre o cuidado de Saussure para distinguir teo-ricamente língua e linguagem. Quando se põe no plano da língua, o lin-guista retira dela todos os traços empiricistas com que se depara quando se considera a linguagem, plano onde tudo cabe em termos de modo de expressão social e individual. De modo que, na visão saussuriana, a língua é parte da linguagem, mas só está contida naquela em termos puramente formais e não empíricos. Deixam-se de lado aspectos indivi-duais implicados no exercício da linguagem.

Roland Barthes – Elementos de semiologia (1964) – vai mais di-reto ao ponto e afirma que, na língua concebida por Saussure, encon-tramos a subtração do que acontece na linguagem em ato, ou seja, para isolar a língua como objeto de investigação, é preciso que a Linguística subtraia a fala e os homens falando. Barthes enfatiza que a linguagem é, para Saussure, um ponto de tensão entre a dimensão social da língua e a individual da fala.

A língua é então, praticamente, a linguagem menos a fala; é, ao mes-mo tempo, uma instituição social e um sistema de valores. Como insti-tuição social, língua não é absolutamente um ato, pois escapa a qualquer premeditação; língua é a parte social da linguagem; o indivíduo não pode sozinho nem criá-la, nem modificá-la (BARTHES, 1964, p. 17-18).

Figura 6 - Ceci n’est pas une pipe. René Magritte. 1928.

Figura 7 – Michel Pêcheux.

Figura 8 – Roland Barthes.

Capítulo 01Linguagem, língua, fala

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Daí a seguinte equação:

(linguagem - [fala]) = LÍNGUA

O psicanalista Jean-Claude Milner (1987, p. 24) toca também nes-sa questão. Aos olhos de Saussure, não é questionado o fato de que, sob a língua, há linguagem. Essa é tomada como o ponto de partida, mas nunca é adotada como objeto da Linguística. Milner conclui que, para Saussure, a linguagem só interessa à Linguística como condição ma-terial de possibilidade da língua e das línguas. É como se a linguagem fosse genericamente um sistema de signos e, especificamente, um sis-tema de unidades sonoras articuladas: em vários níveis – o fonológico, o morfológico e o sintático –, estruturando a língua, ou o que a Linguística estabelece como seu objeto de saber.

A leitura que Jacques Lacan faz de Saussure leva-o a concluir que a língua que interessa aos linguistas não é a mesma que interessa aos psicanalistas. Para formular as propriedades da língua como estrutura constitutiva de um sistema de linguagem, Saussure precisa excluir a fala (parole), atividade individual por onde se articula a língua (lan-gue). Lacan (1978), ao emitir seu postulado “o inconsciente se estru-tura como uma linguagem”, faz uso justamente do que a linguística saussuriana exclui, isto é, a fala.

Vemos que, no caso do estudo científico sobre a língua, a estratégia de Saussure é moldar o objeto da Linguística, de tal modo que a fala imbrica-da nela não intervenha, comprometendo o objetivismo pretendido. Essa postura fica clara quando Jacques Lacan mostra que a Psicanálise que ele propõe, em contato com os postulados saussurianos, faz uso justamente do que não interessou ao linguista, a saber, a fala, como já mencionamos anteriormente. Isso porque o objeto da Psicanálise é o inconsciente, algo que não pode ter existência senão no indivíduo falante. Portanto, se Saus-sure pode chegar ao seu objeto passando pela fala e, ao mesmo tempo, desconsiderando-a, Lacan mostra que a Psicanálise, para abordar o seu objeto, o inconsciente, não pode prescindir da fala e do indivíduo falante.

Figura 10 – Jacques Lacan.

Figura 11 - Sem esperança. Frida Kahlo. 1945.

Figura 9 – Jean-Claude Milner.

Análise do Discurso

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O sujeito que interessa à Análise de Discurso, tal como formulada por Michel Pêcheux, é bem diverso do que investiga a psicanálise laca-niana em seus diferentes percursos. Veremos depois que o ponto em que a questão do sujeito na Análise de Discurso encontra a Psicanálise diz respeito ao modo com que o conceito de inconsciente é mobilizado para a construção de outro ponto de vista conceitual sobre o sujeito na relação com a ideologia. É que, a partir de Louis Althusser, fica estabele-cido, segundo Pêcheux, que não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia, e esse é o liame material entre a linguagem e o incons-ciente. Esse tema voltará no momento oportuno.

Em ambas as perspectivas postas anteriormente, há o fenômeno da fala diante da qual se coloca a linguagem ou uma linguagem em questão. Em termos gerais, quando se trata de considerar a evidência da lingua-gem, não importa observar diretamente a fala ou as unidades materiais que produzem o efeito de interpretação, mas sim o fato de essas unida-des serem estruturadas e articuladas segundo as regras de uma siste-maticidade linguística. De outra parte, em termos singulares, quando o caso é encarar a opacidade de uma linguagem, a fala é sempre o evento do qual se parte e ao qual se chega, no trajeto que tende a configurar um modo de fazer sentido.

Figura 12 – Louis Althusser.

Capítulo 02A fala, o indivíduo falante

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A fala, o indivíduo falante

Vamos tomar uma narrativa cinematográfica como recurso para representar o que estamos desenvolvendo até aqui sobre a consideração do sujeito e da língua na fala. Nell é o título do filme produzido pela FoxVideo, em 1995. Ele foi dirigido por Michael Apted e produzido por Missel e Jodie Foster. Os atores que protagonizam a história são Jodie Foster, Liam Neeson e Natasha Richardson.

Nell narra a história de uma moça criada isolada junto com sua mãe em uma floresta distante, sem contato com a cidade. Depois que morre a mãe, a personagem Nell fica sozinha. É quando ela é encontrada pelo médico e pela psicóloga, que tentam levá-la para a civilização. Mas antes de saber se ela quer sair do isolamento, eles precisam investigar que língua é aquela que ela fala e se é capaz de se comunicar.

São, portanto, duas questões levantadas na narrativa. Va-mos nos ater aqui à segunda questão: será que nos sons que a personagem emite pode-se reconhecer uma língua?

Para aceitar que Nell tem linguagem, a psicóloga preci-sa atestar a existência de traços de um sistema linguístico nos sons que ela emite. Já o médico, desde o princípio, escuta o modo com que os sons emitidos e os gestos de Nell podem ser associados a uma linguagem, na mesma medida em que são associáveis a um sentido. “Precisamos ouvir a linguagem dela”, diz o médico, fazendo objeções à atitude da psicóloga que, tan-to nos gestos quanto nos sons, sempre projeta um sistema for-mal que apaga a fala de Nell.

No início do filme, a partir do procedimento científico da psicóloga, os comportamentos de Nell, por exemplo, sua reação diante de um espelho, levam a interpretar formas previsíveis de percep-ção de si: “Ela tem um ego objetivo e um ego subjetivo. Nunca vi uma projeção tão perfeita!”, exclama conclusivamente a psicóloga, interpre-tando os gestos exibidos a partir de alguma abordagem preconcebida.

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Figura 13 – Capa do DVD do filme Nell, dirigido por Michael Apted.

Análise do Discurso

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Finalmente, desvenda-se o mistério: que língua há na fala de Nell? A partir da adoção de uma perspectiva simbólica na qual se situa um sistema linguístico, as sequências sonoras emitidas são, na interpretação da psicólo-ga, associadas a um modo de articulação no qual se deduz, na fala de Nell, a atualização de uma língua. No momento em que o médico pede que a cole-ga interprete os sons que Nell acaba de proferir, a psicóloga responde: “Eis o que eu acho: Nell fala inglês”. Este é o instante em que a fala da moça da flo-resta só ganha estatuto de linguagem, quando, segundo a postura científica da psicóloga, surge a descoberta da língua por trás da fala de Nell.

A breve análise de trechos do filme Nell serve para ilustrar como se

coloca o aspecto constitutivo da noção de linguagem que é preciso

salientar a fim de que possamos compreender a especificidade do

objeto de estudo da Análise de Discurso. Há uma diferença funda-

mental entre a língua tomada em sua sistematicidade pelo linguista

(é o caso da maneira de a psicóloga abordar a fala de Nell) e a que

se escuta em um acontecimento discursivo (exemplo da atitude do

médico diante das formas de a menina interagir com as pessoas e

com as coisas do mundo que a circunda).

Quando a psicóloga pergunta: “Que gesto é aquele?”, o médico, as-sociando aos gestos e aos sons emitidos uma maneira de significar, su-gere: “Não sei. Um gesto de autoconforto. Ela o faz quando diz ‘mim’”.

Mas a psicóloga insiste na procura dos elementos repetíveis que levam ao encontro da língua que a fala de Nell atualiza. Para ela, o que se pode interpretar dos fragmentos sonoros emitidos explica, no caso de Nell, “como a degradação da fala é enganadora”.

A posição da psicóloga ilustra a perspectiva da fala tal como na linguística saussuriana, ou seja, apaga-se efetivamente o modo como a fala aparece a fim de considerar nela apenas a realização concreta de um sistema linguístico formal.

Capítulo 02A fala, o indivíduo falante

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A posição do médico representa a atitude de quem se deixa in-terpelar pela fala tal como aparece, considerando a língua como o ele-mento que atravessa o ato concreto de falar e só significa nas condições históricas em que a fala acontece. A história de Nell é marcada pelas vicissitudes entre entregar-se ao bem-estar que lhe oferece o seu hábitat na floresta e precaver-se do perigo presente na intromissão de pessoas e eventos estranhos em seu cotidiano. É no horizonte desse esquema pré-construído que o médico chega ao que pode ser a língua, ou a lin-guagem, que assenta a fala de Nell.

Atingimos o ponto nodal das noções colocadas em questão até aqui. A noção de discurso, nos termos da escola francesa, pressupõe uma noção própria de linguagem e de língua, bem distante do que se propõe no terreno estrito da Linguística. Em verdade, seguindo o que ensina Eni Orlandi, trata-se muito mais de pensar a linguagem como maneira de significar, e não como sistema fechado de regras de ordem fonológica, morfológica ou sintática.

As diferentes maneiras de significar que englobam a língua – gra-mática tradicional, diversas vertentes da Linguística – indicam a di-versidade de ponto de vista para abordar a linguagem. Na Análise de Discurso, a língua não é concebida em relação a si mesma, mas em re-lação com a história e com a ideologia, isto é, os regimes de evidência discursiva nos quais os sentidos podem ser múltiplos, mas não qualquer um. Ou ainda, nos termos de Michel Foucault: de como arqueológica e genealogicamente não se pode dizer qualquer coisa em qualquer tempo.

Em Análise de Discurso, a fala, antes de ser mera manifestação do sistema da língua, é já um evento discursivo. Toda vez que um indiví-duo fala não apenas se apropria da língua em suas unidades e regras formais, conforme se diria em Linguística. Do ponto de vista discursi-vo, no ato de falar, o falante deixa-se interpelar por formas linguísticas enredadas em uma série de ocorrências de dizeres cuja historicidade, ou maneira de fazer sentido, define o discurso em suas condições de possibilidade e em sua forma material de linguagem. Em resumo, a língua que funciona na fala remete não a regras formais puras, mas a

Análise do Discurso

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regularidades arquivadas em formações discursivas e que atravessam a fala. Depois vamos ver como, através de Foucault, explicitar melhor esse aspecto da relação fala/discurso.

O que Ferdinand de Saussure tomaria como a língua em ato na fala,

em Análise de Discurso, privilegia-se as formas concretas de a lín-

gua aparecer na história, ou simplesmente, nos termos de Orlandi,

a língua inscrita na história. A dedução é imediata: na perspectiva

da Linguística, a expressão língua em ato equivale à língua a priori e fora da história. Por outra parte, na perspectiva discursiva, a língua

que emerge na fala é acontecimento discursivo, ou seja, está ligada

ao tempo e ao oscilar descontínuo da história. É exatamente isso

que ressalta Orlandi (2003, p. 15): “O discurso é assim palavra em

movimento [...]”.

Capítulo 03A fala entre o descontrole e o controle

19

A fala entre o descontrole e o controle

Retomemos o estatuto da fala e do indivíduo falante. Nessa parte, vamos nos deter no indivíduo falante para, a partir da fala que ele co-mete, observar a ordem discursiva que o interpela e o sujeito em que se converte ao tomar a palavra.

Daí que nosso ponto de partida, para começar a compreender o que é discurso, será o texto da aula inaugural proferida por Michel Foucault, no Collège de France em 1971: A ordem do discurso. Nesse texto, va-mos ver que a fala e o sujeito que dela decorre são os elementos fundamentais a partir dos quais depreende-mos a existência e o funcionamento de um processo de linguagem chamado discurso. Se, nessa parte, escolhe-mos tomar o Foucault da célebre aula é porque sempre nos guiamos pelo pressuposto de que a fala e o falante remetem ao discurso, concebido como sistema de re-gras, ou, mais precisamente, de acordo com o que o pensador francês desenvolve em sua conferência, como princípios e procedimentos de controle.

Os princípios de controle que regem a entrada do falante em dada ordem de discurso definem essa mesma ordem como prática. Por isso mesmo, o conceito de ordem de discurso aqui sempre diz respeito ao quadro institucional em que determinada fala é exercida e considerada legítima. A fala por si só não é nada, não existe. A fala por si só é acontecimento aleatório. E para monitorar o aleatório da fala é necessário impor-lhe princípios de controle vindos de fora e de dentro do discurso.

Nesse sentido, a maneira com que Foucault introduz sua expo-sição em A ordem do discurso certamente é uma estratégia que nos permite focalizar a noção de indivíduo falante. Ele é aquele que fala

3

Figura 14 - Pátio do Collège de France. Monumento a Guillaume Bude.

Análise do Discurso

20

de modo não submetido à ordem do discurso: o eu insinuado sub--repticiamente no discurso.

Gostaria de me insinuar sub-repticiamente no discurso que devo pro-

nunciar hoje, e nos que deverei pronunciar aqui, talvez durante anos.

Ao invés de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e leva-

do bem além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no

momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo:

bastaria, então, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alojas-

se, sem ser percebido, em seus interstícios. Como se ela me houvesse

dado um sinal, mantendo-se, por um instante, suspensa. Não haveria,

portanto, começo; e em vez de ser aquele de quem parte o discurso,

eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, uma estreita lacuna, o pon-

to de seu desaparecimento possível. (FOUCAULT, 1996, p. 6).

Vamos comparar a situação dramatizada com outra re-latada no filme O discurso do rei, dirigido por Tom Hooper, em 2010. A sinopse do filme nos dá conta da seguinte história:

Desde os 4 anos, George (Colin Firth) é gago. Este é um sério pro-

blema para um integrante da realeza britânica, que freqüentemente

precisa fazer discursos. George procurou diversos médicos, mas ne-

nhum deles trouxe resultados eficazes. Quando sua esposa, Elizabe-

th (Helena Bonham Carter), o leva até Lionel Logue (Geoffrey Rush),

um terapeuta de fala de método pouco convencional, George está

desesperançoso. Lionel se coloca de igual para igual com George e

atua também como seu psicólogo, de forma a tornar-se seu amigo.

Seus exercícios e métodos fazem com que George adquira autocon-

fiança para cumprir o maior de seus desafios: assumir a coroa, após a

abdicação de seu irmão David (Guy Pearce).

Disponível em: < http://www.adorocinema.com/filmes/o-discurso-do-rei/>.

Bem diferente da postura de quem quer tomar a palavra, mas resis-te a fazê-lo, o rei George VI quer falar, mas não pode. Só que a tomada da palavra era a condição a ser cumprida para que ele ocupasse a devida

Figura 15 - Cena do filme em que o príncipe Albert, o rei Jorge VI, realiza um de seus discursos.

Capítulo 03A fala entre o descontrole e o controle

21

posição do sujeito cuja missão tinha início na sua fala. O problema é que ele não podia falar por limitações próprias de quem não conta com a própria voz para deixar passar a voz da ordem do discurso que ali o convocava. George VI, de fato, até não ser preparado, não falava porque estava impedido pela gagueira.

Guardadas as devidas proporções, a antecâmara do pro-nunciamento de George VI assemelha-se, nos termos de Michel Foucault, “ao teatro muito provisório” do trabalho que deve fazer aquele a quem se encarrega a função de representar o ponto de origem de um discurso que não vem dele. Na cena primeira da aula inaugural que Foucault pronuncia no Collège de France, ele hesita entre permanecer recolhido à própria voz ou submetê-la à da ordem do discurso que ali o convocava, mesmo tendo toda a garantia de não perder a continuidade ao longo de sua enuncia-ção. Podemos comparar esta hesitação do filosofo com o caso de George VI tendo a seu lado o amigo Lionel a lhe dar apoio para vencer a gagueira. Vale a pena aqui contrapor essas duas perfomances, que beiram o fracasso do sujeito no momento de falar, a outra cuja tomada da fala acontece de modo muito bem sucedido. Barack Obama, em sua visita ao Brasil, em 19 e 20 de março de 2011, começou o seu discurso, pronun-ciado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, de forma muito coloquial. Cumprimentou os brasileiros, em português, agradecendo pela calorosa acolhida a toda sua família, foi simpático ao lembrar da importante parti-da de futebol que haveria naquela tarde e lembrou também a primeira vez que viu imagens do Brasil em um filme: Orfeu negro.

Desde o momento em que chegamos o povo desta nação tem gentilmente

mostrado à minha família o calor e a generosidade do espírito brasileiro, obri-

gado. Quero agradecer a todos por estarem aqui, pois me disseram que há

um jogo do Vasco ou do Botafogo... Eu sei que os brasileiros não abrem mão

de seu futebol tão facilmente.

Uma das primeiras impressões que tive do Brasil veio de um filme que vi

com minha mãe quando eu era muito pequeno. Um filme chamado Orfeu

Figura 16 - Presidente dos Estados Unidos despedindo-se do público após o encerramento de

seu discurso no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Análise do Discurso

22

negro, que se passava nas favelas durante o carnaval. E minha mãe adorava

aquele filme, tinha música e dança e, como pano de fundo, os lindos mor-

ros verdes. Esse filme estreou primeiramente como uma peça bem aqui, no

Theatro Municipal.

Qualquer que fosse a retórica, vemos um orador tomando a palavra sempre sabendo quem era, e, sendo quem era, o presidente dos Estados Unidos, ouvimos a performance do chefe do estado que não perde de vista o lugar que ali deveria ocupar como o sujeito do discurso.

Capítulo 04O discurso como procedimento de controle

23

O discurso como procedimento de controle

É preciso lembrar que Foucault não está considerando a fala que se exerce no âmbito político. Lendo os primeiros parágrafos de A ordem do discurso, entendemos que o filósofo dramatiza o que supostamente acon-tece quando alguém resiste a falar mesmo sendo convocado a fazê-lo. Nesse sentido, observem que o tema da aula inaugural não é o indivíduo falante destituído da vontade ou da impossibilidade de falar. O tema desse texto é o próprio discurso enquanto ordem, diante da qual, alegoricamen-te, Foucault põe em cena o falante situado na soleira da porta da ordem discursiva que o habilita a falar já sendo o sujeito do discurso.

A certa altura de sua conferência, da página 8 em diante, Foucault já não mais dramatiza a atitude daquele que como toda gente desejaria se colocar do outro lado do discurso. É inevitável falar e tornar-se sujeito, e isso só é possível através do discurso enquanto instituição que dita as regras para que, de dentro dela, alguém tome a palavra. Mas essa possi-bilidade, conforme dadas condições, não está aberta a qualquer um. Na sequência de sua explanação, Foucault passa a mostrar e definir quais princípios regem a entrada do falante em dada ordem de discurso para nela converter-se de simples falante a sujeito de discurso. Descrever tais princípios é já fazer Análise de Discurso, já que os mesmos princípios podem compor diferentes ordens discursivas; ora a do saber, ora a da religião, ora a do político, etc.

Esse ritual alegórico com que Foucault inicia sua conferência ser-ve para compreender o que ele concebe como discurso já desde o que propôs em A arqueologia do saber (1986). O discurso pode então ser definido de duas maneiras:

Materialmente, seja no plano oral ou escrito, o discurso é a fala atravessada por uma ordem simbólica, a mesma que, mediante procedi-mentos de exclusão e controle, converte o falante em sujeito do discurso;

4

Análise do Discurso

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Formalmente, o discurso é a ordem, isto é, os preexistentes princí-pios de exclusão, controle e rarefação que constituem o sujeito mediante a fala ancorada no indivíduo falante.

Fica claro que, em princípio, a noção de or-dem discursiva que Michel Foucault desenvolve apenas se aplica a determinados quadros institu-cionais ligados à produção do conhecimento. As-sim, só há ordem de discurso nos domínios em que está em jogo a constituição de objetos do sa-ber e o estabelecimento da diferença entre o ver-dadeiro e o falso. Se alguém diz qualquer coisa, em qualquer tempo, não importando a verdade ou a falsidade e a legitimação de campos de sa-ber, então o que é assim dito, ou seja, no âmbito do senso comum, não vale como discurso. Mais adiante vamos ampliar a noção de prática discur-siva à fala que acontece fora de domínios institu-

cionais do saber ou das práticas científicas. É quando introduziremos o conceito de ideologia do modo com que é desenvolvido por Michel Pêcheux para definir formação discursiva.

Mas cabe aqui enfatizar que, pensando nos termos de Michel Fou-cault, o importante é guardar que a fala e o indivíduo falante são os ingredientes essenciais que o discurso – formalmente concebido como ordem – investe para constituir o indivíduo como sujeito e dotar de sen-tido os enunciados que produz. O investimento da ordem discursiva so-bre a fala ou a enunciação é tomado como as condições de possibilidade do discurso e do sujeito que nele se produz.

Observando, portanto, como acabamos de fazer, o desempenho oral de Michel Foucault, nos primeiros parágrafos de sua aula inaugural – A ordem do discurso –, anotamos dois fatos:

O pensador francês introduz sua aula expressando-se na condição de indivíduo falante não submetido à ordem do discurso, isto é, como o

Figura 17 - Feira de São João. Cândido Portinari. 1936-1939.

Capítulo 04O discurso como procedimento de controle

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eu que, ao encadear aleatoriamente uma sequência de palavras, gostaria de se não se arriscar a entrar na discursividade na qual ele é institucio-nalmente convocado a proferir sua aula. Trata-se do momento hipoté-tico em que o falante e sua fala expõem-se destituídos de discurso em uma dada situação;

Na sequência, o filósofo se distancia da po-sição do falante que teme se apropriar da palavra e define o que ele chama de ordem de discurso usando a expressão “princípio de controle e ex-clusão”. Ele define enfim que discurso não se re-duz a palavras proferidas, mas fundamentalmente aos princípios e às regras institucionais aos quais, atravessando o falante e sua fala, cabe constituir o sentido e o sujeito do discurso. Essa leitura nos leva a concluir que se trata então mais de explici-tar o caráter institucional da ordem discursiva, e menos de apresentar sua forma de estruturação ou formulação linguística.

Os princípios de controle que regem a entrada do falante em dada ordem de discurso definem essa mesma ordem como prática. Nesses termos, a prática discursiva é constituída de procedimentos de controle ou, dito nos termos do livro A arqueologia do saber, de regras de forma-ção discursiva. Por isso mesmo, o conceito de ordem de discurso aqui sempre diz respeito ao quadro institucional em que determinada fala é exercida e considerada legítima. A fala por si só não é nada, não existe. A fala por si só é acontecimento aleatório. E, para monitorar o aleatório da fala, é necessário impor-lhe princípios de controle vindos de fora e de dentro do discurso.

Figura 18 - Manifestación. Antonio Berni. 1934.

Unidade BElementos da noção arqueológica de discurso

Figura 19 - Lição de anatomia do Dr. Tulp. Rembrandt H. van Rijn. 1632.

Capítulo 05Do enunciado à função enunciativa

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Do enunciado à função enunciativa

Apresentar a construção do conceito de discurso e de formação discursiva

desenvolvida por Michel Foucault em A arqueologia do saber.

Estudamos, na Unidade A, como a noção de discurso se constrói em Michel Foucault. Partimos da leitura da introdução da aula inaugu-ral A ordem do discurso e examinamos com que intuito Foucault focali-za o indivíduo falante hesitando a se pronunciar. Supomos que o autor pretendeu expor a fala em ato como lugar concreto em que intervém a ordem discursiva constituindo ao mesmo tempo o sujeito e o discurso. Ficou entendido que o discurso é ordem que atravessa o falante, deter-minando, em sua fala, o que e como deve ser dito. O discurso é ordem que se traduz em práticas de controle. Em síntese, vimos que o referen-cial para o conceito de discurso nessa conferência é a fala definida como evento aleatório de enunciação.

A leitura dos primeiros parágrafos de A ordem do discurso tem a ver com o que já havíamos apresentado em nossas primeiras conversas: para analisar e compreender como o discurso se faz, é preciso levar em conta a fala e nela os homens falando. Por isso, se você bem se recorda, condu-zimos a leitura de A ordem do discurso focalizando a cena de um indiví-duo recusando-se não simplesmente a falar, mas a falar submetendo-se à ordem do discurso. Era como se ele, sendo forçado a ser aquele que se enuncia como sujeito do saber em uma aula inaugural, tivesse que ocupar uma posição de discurso, assim como um piloto levado a uma decolagem de emergência ou a um pouso forçado sob o risco de não ser reconhecido como sujeito na posição atribuída a ele por uma sociedade de discurso.

Como é que o indivíduo pode não resistir a essa complexa maneira de fazê-lo entrar na ordem do discurso? Como é que de repente ele se vê enredado em regras anônimas de proferimento de enunciados e ain-da por cima tendo que responder por aquilo que diz exatamente como prescreve a formação discursiva em que se inscreve seu dizer?

5

Análise do Discurso

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Essa questão já tinha sido introduzida por Michel Foucault, antes de ele proferir sua conferência de posse no Collège de France. Foi quando desenvolveu, de modo mais programático, o conceito de discurso. Em A arqueologia do saber, publicado em 1969, logo depois de haver sido lançado sua série de obras arqueológicas As palavras e as coisas (1966), Nascimento da clínica (1963) e História da loucura (1961), a construção do conceito de discurso tem outro ponto de partida: o enunciado em sua materialidade de coisa dita ou escrita.

Você deve estar perguntando: por que então não começamos por este livro, A arqueologia do saber? De fato, seria o caminho normal, se quiséssemos adotar um procedimento cronológico de levantamento dessa noção nos textos de Foucault. Mas existe explicação para esta es-tratégia didática de expor a concepção foucaultiana de discurso come-çando pela escrita de sua aula inaugural: tem a ver com o enfoque que estamos empregando nesta disciplina. Você já deve estar percebendo que queremos colar a noção de sujeito à noção de discurso mostrando que a discursividade se constitui ao mesmo tempo que o sujeito. Lem-bre-se da primeira frase citando Orlandi (2003, p. 15), que abriu a uni-dade anterior: “A Análise de Discurso se interessa por homens falando”. A essa se liga o postulado de Michel Pêcheux: “Não há discurso sem sujeito” (PÊCHEUX, 1990). Também Foucault disse repetidas vezes que o discurso interessava a ele pelo fato de que alguém disse alguma coisa.

Capítulo 06O correlato do enunciado

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O correlato do enunciado

Só que para chegar ao conceito de discurso do qual deve derivar a noção de formação discursiva, em A arqueologia do saber, Foucault inicia pondo em questão a forma da unidade elementar do discurso, ou seja, do enunciado. Embora tendo sempre como pressuposto o fato de que há sempre alguém sustentando materialmente a possibilidade do dizer, o pensador problematiza a abordagem do dizer pela forma com que apare-ce, seja no plano escrito ou oral. Essa abordagem não pode ser a mesma que adota em Lógica, Semântica Formal ou Pragmática na Linguística.

Para substituir o termo frase ou proposição pelo de enunciando, é que, nos primeiros capítulos do A arqueologia do saber, Foucault gastou um tempo demonstrando que não há uma relação direta entre o enun-ciado proferido e aquilo que ele diz, bem como que a origem do dizer não está na intenção de um sujeito prévia e psicologicamente concebido. A relação entre o enunciado e aquilo que se diz nele vem de outro lugar chamado o seu correlato, o domínio ou a condição de possibilidade do dizer e do sujeito que diz.

A correspondência entre enunciado e um domínio possível de exis-tência de objetos ou coisas a saber leva ao conceito de função enuncia-tiva, isto é, à relação de enunciado que descreve a posição que o sujeito tem que assumir para ser o sujeito do que diz. É no exercício da função enunciativa que se localiza a formação discursiva na qual o indivíduo se constitui como sujeito de discurso.

Dito ainda em outros termos, a relação entre o enunciado e seu correlato, domínio de condições de possibilidade, leva ou constrói a função enunciativa ou função de existência, ou seja, é do enunciado correlacionado a certas leis ou condições de possibilidade que se chega à definição de discurso como o ato que faz existir com ele aquele de que fala e aquilo de que se fala.

Exercitemos o entendimento dessa conceituação a partir de uma singular narrativa cinematográfica. Trata-se do filme escrito e dirigido

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Análise do Discurso

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pelo cineasta britânico Derek Jarman, Blue. Nele, há a exposição do es-pectador a uma tela em azul. Atrás dela se escuta uma voz emitindo palavras em inglês, que podem ser exibidas pelas legendas expostas na língua original ou traduzidas para o português ou para o francês. A es-tranheza está na espera por imagens e cenas que nunca aparecem. De-pois de algum tempo, o espectador conclui que só pode acompanhar o que se passa no filme concentrando-se na sequência de palavras que se sucedem ininterruptamente por sobre o plano de fundo azul. E, se quiser captar algum conteúdo, tem de fazer alguma relação entre a for-mulação escrita ou falada e aquilo que é dito.

Blue - Derek Jarman

You say to the boy open your eyes

When he opens his eyes and sees the light 

 You make him cry out. Saying 

 O Blue come forth 

 O Blue arise 

 O Blue ascend 

 O Blue come in 

Assim começa o filme Blue: imagem sempre estática em fundo azul, a voz humana em off, trilha musical, ruídos diversos e a opção de acom-panhar a voz com ou sem a legenda em inglês ou português.

Em que sentido a ausência de imagens que aparece acompanhada de letras e sons pode ter a ver com o que diz Foucault com respeito à relação entre o enunciado e aquilo que ele diz? O cuidado é de a gente efetuar uma análise sem sair do terreno do conceito de função enuncia-tiva, aproveitando-se do efeito que tem sobre nós as imagens do filme de Derek Jarman. Não é o caso de substituir o texto de Foucault pelo do filme. A linguagem poética de Blue vem a calhar como chance de fazer passar o conceito sem transformá-lo num mero exercício acadêmico.

Figura 20 – Derek Jarman.

Capítulo 06O correlato do enunciado

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Vejamos como fica essa tentativa de usar a experiência de se expor à estranheza de um filme para vivenciar e compreender o que Foucault diz a respeito de a relação entre o enunciado e aquilo que ele enuncia estar em seu correlato, alguma coisa outra que nada tem a ver com o que se possa a ele associar de modo imediato. A pretensão é mostrar que o correlato do enunciado, conforme Foucault, não está na busca do referente daquelas frases, sejam elas percebidas na forma escrita em português ou na forma falada em inglês pela voz over.

A voz over (voice over, em inglês) acontece no cinema toda vez que

o narrador conta ou descreve uma situação em que ele não está em

cena. Diferentemente da voz off (voice off, em inglês), em que não

se vê a personagem que está em cena, mas se escuta sua voz vindo

fora do campo de visão do espectador. Imaginemos uma cena em

que vemos uma mulher acabando de se arrumar para sair e escu-

tamos apenas a voz do marido gritando, lá de fora da casa, que já

estão atrasados.

Ao longo do filme sempre alguém fala. Mas, na perspectiva de Mi-chel Foucault, o correlato do que é dito nada tem a ver com quem fala, nem com a situação e o tempo imediato em que alguém fala. Tudo isso é válido quando se busca vencer a perturbação que nos causa a incompre-ensão, através de alguma estratégia de interpretação de ordem semânti-ca, lógica ou gramatical. Mas não vale quando se tenta buscar o que se constitui como condição de possibilidade do sentido procurado, antes e por trás de qualquer resposta.

Retomando o que lemos em A arqueologia do saber, o correlato do enunciado está numa contextualização mais ampla e de nível mais ra-dical, isto é, é o domínio de leis ou condições de possibilidade que dá existência ou torna possível que algo seja dito a partir do aparecimento de uma fala ou escrita, ou seja, a partir do proferimento oral ou da emissão escrita de uma sequência qualquer de signos. Na experiência que fazemos

Análise do Discurso

34

ao ver Blue, a palavra-título do filme, acompanhada pela constante tela vazia em azul, pode ser a formulação (acontecimento) de uma doença a partir da qual toda a narrativa se encadeia. Isso quer dizer que a sequência sonora que se diz ao longo do filme só faz sentido graças às condições de existência dadas em uma história em certo tempo e lugar.

Mas as alternativas de encontro de correlatos se multiplicam quando pela sinopse ficamos sabendo que Derek Jarman, além de cineasta, foi pin-tor e poeta, e filmou Blue quando sua saúde já estava bastante debilitada em decorrência da AIDS. Veja como esses dados podem fazer avançar nos-so exercício analítico. Essas informações não são diretamente o correlato

das formulações compostas de uma tela azul e uma sequ-ência de letreiros, acompanhadas de uma voz e de música constante. O que permite a correlação é a existência de um domínio em que esse conjunto de informações são possíveis. Tanto é assim que o correlato pode vir do domí-nio – jornalístico ou biográfico – em que se encontram as regras que tornam possíveis que o filme seja o enunciado de algo, por exemplo, o enunciado das ideias e reflexões pessoais do cineasta a respeito da arte, da poesia, da me-mória, do tempo e da morte. Da mesma forma, se con-siderarmos, no campo das artes plásticas, a existência de um pintor francês chamado Yves Klein, o mesmo filme

pode ser analisado como o enunciado da composição monocromática que se pode aplicar à arte da pintura, assim como à tela cinematográfica.

Este renomado artista é famoso por seu azul IKB (International Klein Blue)

e suas obras monocromáticas, mas seu trabalho ainda está por ser desco-

berto: Performances com a arte conceitual, projetos arquitetônicos, obras

sonoras, coreografia, sets de filmagem, as principais obras escritas [...] Yves

Klein pensa e age sem limites, expressando sua contemplação eferves-

cente sobre o papel do artista, cuja razão de ser não pode ser reduzida

ao simples ato de “produzir”, mas abrange todos os campos de expressão.

(Disponível em: <http://www.culturecuts.net/shortlist/2006/12/yves-

-klein.html>. Acesso em: 3 abril. 2011).

Figura 21 – Yves Klein.

Capítulo 06O correlato do enunciado

35

Veja então que a análise da função enunciativa aqui é proposta a partir de quatro perguntas básicas:

a) Qual a forma de expressão usada no filme?

b) Quem fala no filme?

c) Do que se fala no filme?

d) A que contextos e situações a voz conduz o espectador?

Essa é a mesma série de perguntas de que parte Foucault para elaborar seus conceitos de formulação, enunciado e função enuncia-tiva, o que respectivamente equivaleria a responder sobre a forma de expressão do enunciado, sobre o que se enuncia e sobre quem é o sujeito que enuncia. Foucault levanta essas questões de um modo que não precisa recorrer às operações de relação entre a frase e o seu sentido, entre a proposição e seu referente ou entre a frase e o sujeito. Isso porque seu propósito não é interpretar, decodificar conteúdo ou identificar individualmente o autor do enunciado, mas sim chegar às correlações e aos domínios associados, que tornam possível relacionar o enunciado com aquilo que se diz nele.

Por isso, como vimos, não é o caso de deduzir que no filme se fala o tempo todo do vírus do HIV, nem que o sujeito que enuncia o tempo todo é um doente de AIDS. Em resumo, para que as formulações do fil-me façam sentido, é preciso analisá-las em um nível diferente da análise linguística ou semântica. Elas podem ser associadas quer ao domínio de um indivíduo acometido pela cegueira, quer ao domínio em que se pode referir a alguém que faz poesia jogando com a palavra blue.

É importante que fique claro que não tomamos o filme de Derek Jarman como objeto de interpretação. Nos termos foucaultianos, a ex-periência de sermos expostos momentaneamente diante de uma tela vazia nos auxilia a compreender o que é o enunciado como sequência material de expressão e como função enunciativa.

Análise do Discurso

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Então é isso. Agora todos sabemos que o enunciado e o seu sujeito não têm origem no ato de apropriar-se da língua para falar. Não é ape-nas em um recurso poético como de Derek Jarman em Blue que falamos no escuro. Se, conforme diz Michel Foucault, é a ordem discursiva que instaura a posição de sujeito, então o ponto de partida para preencher o espaço escuro da formulação é correlacionar a que se escuta aqui com as formuladas antes em outros espaços enunciativos. Daí que o correlato do enunciado tem uma função fundamental. Quando o indivíduo pro-fere um enunciado, é como se acionasse interruptores e fizesse iluminar uma sala escura onde aparece a posição em que está colocado para ser o sujeito. Tudo depende do interruptor acionado, isto é, da correlação que se opera; cada operação tem sua própria potência ou alcance para distribuir luz indicando de que se fala, de que lugar de sujeito se trata. Todos esses elementos são constitutivos da função enunciativa.

Faltou ainda verificar como se define a função enunciativa a partir da pergunta – quem fala. Observem que continuamos, desde o início, si-tuados no ponto de vista da fala. Insistimos em não perder de vista que em Análise de Discurso o trabalho começa na fala. Só que, diferentemen-te da tradição interpretativa, não se começa procurando quem fala na fala.

Ao analisar uma frase, um texto, enfim, qualquer formulação, mais do que saber quem falou ou escreveu, pergunta-se como se produz o sujeito que enuncia; em termos mais precisamente foucaultianos, per-gunta-se pelo modo de operar a posição que ocupa o indivíduo falan-te para ser o sujeito do enunciado ou do discurso. De cara, temos que considerar que o sujeito do enunciado não é o elemento gramatical que ocupa uma posição sintática na frase. A diferença, por exemplo, entre “Pedro chegou” e “Eu cheguei” não é que nessa segunda frase o sujeito do enunciado coincide com o da enunciação, coincidência que não se verifica no primeiro exemplo. Como veremos adiante, há dois exemplos de operações indicando que a relação entre o enunciado e aquele que diz está na posição a ser ocupada pelo indivíduo falante. Por isso, a diferen-ça entre dizer em primeira ou terceira pessoa está no lugar a partir do qual o falante se relaciona com o que diz.

Capítulo 06O correlato do enunciado

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Deduzimos então que o sujeito do enunciado não é o indivíduo que usou sua voz ou suas mãos para produzir uma sentença ou um texto, mesmo se a formulação está composta em primeira pessoa. Mesmo porque, diz Foucault (1996, p. 105), “[...] não há signos sem alguém para proferi-los ou, de qualquer forma, sem alguma coisa como elemento emissor.” Essa dissociação entre o emissor de signos e o que Foucault propõe como sujeito de enunciado é do mesmo tipo da diferença entre o cantor e a personagem que interpreta ao can-tar. Chico Buarque, ao compor e interpretar canções no feminino, é o exemplo entre o indivíduo que emite os versos e a melodia com sua própria voz e o sujeito do enunciado da canção. Foi esse mesmo compositor que, na sua canção intitulada Olhos nos olhos, colocou sua voz no enunciado “Quantos homens me amaram/Bem mais e melhor que você”; no entanto, o “eu” dessa formulação linguística não coincide com o indivíduo que profere a frase. Exemplos como esses cabem na afirmação de que: “[...] ainda que o autor seja o mes-mo [...] não implicam a mesma relação entre o sujeito e o que ele está enunciando.” (FOUCAULT, 1996, p. 106).

Entende-se então que a busca do sujeito, nos termos discursivos, demanda uma operação outra que consiste em determinar, como diz Michel Foucault, qual a relação entre o enunciado e aquele que pro-duz. Essa relação se faz mediante a determinação qualquer que seja a estrutura da formulação. Nesse sentido, o sujeito do enunciado, ou aquele a quem se atribui sua escrita ou proferimento oral, não passa de uma relação específica que define o sujeito como posição, lugar ou função no exterior do enunciado. Daí que o sujeito não é o autor físico, nem a intenção ao produzir um enunciado. O sujeito do enunciado, ou o que responde pela sua emissão e aparecimento, é o lugar que ocupa o indivíduo ao enunciar. Quando Foucault diz se tratar de lugar vazio, justamente porque é resultado de uma operação que independe do autor concreto que nesse mesmo lugar vai exercer a função de ser o sujeito.

Esse lugar é o produto da relação entre uma formulação linguística e o quadro em que elas aparecem. As formulações podem ou não serem apresentadas na mesma estrutura. Por isso, na frase “Chove”, o lugar ou

Análise do Discurso

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a posição de sujeito varia conforme a formulação: é dita como notícia meteorológica ou como o verso de uma canção popular. Em cada uma dessas alternativas, o sujeito dela será o lugar que pode ser ocupado por qualquer um para dizer o enunciado. Ou seja, o mesmo indivíduo pode emitir esse enunciado, mas não será o mesmo sujeito conforme o lugar associado a essa formulação caracterizada como enunciado.

Estamos falando enfim do ato de enunciar que molda o sujeito como lugar ou posição, o que pressupõe uma operação realizada pelo indivíduo que emite o enunciado, mas que não vem dele, não é ele que estabele-ce. Para marcar o lugar que lhe corresponde como sujeito do enunciado, aquele que fala ou escreve deve então realizar uma operação. Que ope-ração é esta? Em vez de retomar o exemplo do Foucault, tomemos outro mais simples. Alguém pode escolher uma ou outra forma seguintes:

1) Constato que o país cresceu.

2) Constata-se que o país cresceu.

O que se observa no corpo de cada uma dessas duas frases são dife-rentes operações de produção de lugar ou posição de sujeito. Em ambas as formulações, o sujeito enunciante é o resultado da operação que o define como diferentes lugares ou posições de sujeito. Contudo, a dife-rença entre as duas conduz ao traço definidor da operação que gera o sujeito do enunciado como lugar.

Na primeira, o falante expõe que aquele que realiza a constatação é o mesmo que a enuncia. Já na segunda, o modo de formular mostra que o sujeito que apresenta a constatação não coincide com o que a realiza, isto é, ele toma como pressuposto que existe fora de si as condições de possibilidades estabelecidas anteriormente ao instante de sua enuncia-ção. Veja que não importa saber quem é o indivíduo que está emitindo uma ou outra frase, mas sim a operação que está realizando, a que dese-nha no modo de construir a formulação linguística o lugar que ocupa o mesmo falante para ser o sujeito do enunciado ou do discurso.

Capítulo 06O correlato do enunciado

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Podemos perguntar se o indivíduo que realiza operações de mar-cação de sujeito desse tipo tem consciência do que opera. A resposta é não. Ela decorre do que a análise foucaultiana atenta sobre “a posição específica do sujeito enunciante”: “[...] a posição do sujeito está ligada à existência de uma operação ao mesmo tempo determinada e atual.” (FOUCAULT, 1986, p. 108). Isso quer dizer que, mesmo se dando conta, as operações que ele deve efetuar em seu dizer não têm origem no sujei-to enunciante: o sujeito que enuncia apenas inclina-se às leis do dizer, já dadas antes dele, como condição para o sujeito do que diz. Isso significa para Foucault (1996, p.108) que “[...] enquanto sujeito falante ele aceita o enunciado como sua própria lei.”

É claro que se trata de operações que se apoiam e se realizam pela língua e pela ação do indivíduo falante. Só que essas operações não se definem nem ao nível de estruturas linguísticas, nem ao nível da consciência individual. Essas operações remetem ao lugar em que se determina, independentemente de quem profere o enunciado, a posi-ção que pode e deve ocupar o indivíduo para ser o sujeito. Em outros termos, é justamente pelo fato de essa função já estar determinada an-tes, é que a operação, no plano linguístico e no plano do ato de enun-ciação, funciona abrindo nela diferentes possibilidades de geração de posição de sujeito.

Unidade CDo discurso como objeto de análise ao modo da escola francesa

Figura 22 - Parangolés. Hélio Oiticica. 1964. Foto da coleção de César e Claudio Oiticica.

Capítulo 07

Figura 23 – Divã de S. Freud.

Da fala ao discurso: realções de força e sentido

43

Da fala ao discurso: relações de força e de sentido

Apresentar a concepção de discurso proposta por Michel Pêcheux e Eni

Orlandi no quadro da escola francesa de Análise de Discurso.

Começamos essa disciplina apresentando a conjuntura intelectual em que a fala e o indivíduo falante são deixados de lado na abordagem da língua como objeto de saber da linguística saussuriana. Destacamos a objeção que é feita tanto pela psicanálise lacaniana quanto pela escola francesa de Análise de Discurso. Ambas se interessam pela fala e pelo falante porque esses são o ponto de partida empírico para que, cada uma a seu modo – a Psicanálise e a Análise de Discurso –, investiguem o processo de constituição de sujeito. Nesse contexto, fizemos uma bre-ve passagem pela abordagem foucaultiana. Primeiro, mapeando como, ao desenvolver os elementos constitutivos da ordem do discurso, Fou-cault parte do evento da fala perfomatizando como o falar por si só carece da ordem discursiva para que haja sujeito e sentido. Em seguida, em A arqueologia do sa-ber nos detivemos no capítulo “A função enun-ciativa” justamente com o objetivo de reter a noção de sujeito como posição. Vimos que, sem entrar no terreno da Linguística, da Psicanálise e da Lógica, Foucault retoma a fala que pode se realizar de modo escrito ou oral. Nessa aborda-gem, a estratégia de Foucault é chamar qualquer emissão linguística de formulação e propor so-bre ela um tipo de análise que conduz ao con-ceito de enunciado. Em A ordem do discurso, o discurso é mostrado como uma força – prática social, histórica e anônima – que age sobre a fala e sobre o sujeito que fala.

Em A ordem do discurso, a fala não é definida, nem descrita em ter-mos precisos. Mas Foucault dá indicações de que ela é feita de frases, de palavras, de arranjos de palavras. Nessa mesma conferência, o pensador

7

Análise do Discurso

44

francês nos conduz a concluir que a fala e o indivíduo falante são con-trapostos ao discurso. O discurso é aludido como a voz que fala antes que fale o falante. Mas quem se refere ou faz apelo a essa voz que está por trás da palavra é o próprio indivíduo falante no momento em que é convocado pela voz a tomar a palavra.

Que natureza tem a voz do indivíduo falante? Ela não é da natu-reza da fala tomada como unidade linguística articulada segundo um sistema formal ou gramatical determinado. À medida que hesita e se recusa a entrar na ordem arriscada do discurso, essa voz é simples-mente ruído, som desarticulado.

Só que não é em relação a um sistema linguístico de-terminado que a voz não articulada se torna voz articulada. Para mostrar bem o que é o discurso em ato, Foucault precisa desconsiderar o som que se torna som linguístico e conside-rar o som que constitui sujeito e sentido pela intercessão da ordem do discurso. Nisso consiste a dimensão aleatória da fala. A cadeia falada irrompe indiferente à interpelação de uma ordem que caracteriza o discurso, o que, nos termos de

Michel Pêcheux, é provedor de sentido e de sujeito, e, para Foucault, é condição de possibilidade do saber e do sujeito que sabe.

Não é que qualquer ruído ou grunhido vale para a ordem discur-siva. É que o som enquanto som linguisticamente articulado, enquanto fala dotada de sentido já é um efeito da intervenção da ordem do discur-so, isto é, já é acontecimento discursivo.

Em resumo, não há a língua com suas regras de um lado provendo as condições para a formulação de um enunciado e de outro o discurso que atravessa fazendo sentido. O começo de tudo isso – a diferença entre som articulado e não articulado, fala e não fala, sujeito e não sujeito – é o próprio discurso. Foucault performatiza apenas esse começo que en-quadra toda fala e todo indivíduo falante, destacando no discurso o seu modo de ser como prática social de caráter institucional. Como já o fizera no livro A arqueologia do saber ele deixa de lado a dimensão linguística

Figura 24 – Noam Chomsky.

Capítulo 07Da fala ao discurso: realções de força e sentido

45

do discurso, porque justamente não se aventura a elaborar outra noção de língua e linguagem que se contraponha ao objeto formal e fechado, tanto da linguística chomskyana quanto da linguística saussuriana:

[...] o que se descreve como “sistemas de formação” não constitui a eta-

pa final dos discursos, se por este termo entendermos os textos (ou as

falas), tais como se apresentam com seu vocabulário, sintaxe, estrutura

lógica, ou organização retórica. A análise permanece aquém desse nível

manifesto, que é o da construção acabada: [...] se ela estuda as modali-

dades de enunciação, não põe em questão nem o estilo, nem o encade-

amento das frases, em suma, deixa em pontilhado a disposição final do

texto. (FOUCAULT, 1986, p. 83-84).

Nada a ver com a dimensão linguística, atravessada pela história e pela ideologia, que, necessariamente, está pressuposta em outra noção de discurso. Isso explica porque o autor inspirador e balizador da Aná-lise de Discurso que Eni Orlandi propõe não é Michel Foucault, e sim Michel Pêcheux. A partir desse autor, Orlandi marca o lugar teórico em que a linguagem é concebida como a forma material do discurso, e este como a forma material da ideologia. O vínculo entre língua e ideologia no plano do discurso é dado pela noção de inconsciente, conceito posto pela psicanálise lacaniana e retomado por Althusser e Pêcheux como dispositivo da Análise de Discurso.

Nesse ponto, já estamos avançando agora especificamente em di-reção ao campo da escola francesa de Análise de Discurso – a corrente analítica proposta por Michel Pêcheux, na França, e Eni Orlandi, no Brasil. É importante não perder o foco sobre o sujeito que se constitui na fala através do atravessamento de um processo discursivo, porque o discurso e o sujeito são problemas comuns aos pensadores franceses Foucault e Pêcheux. Eni Orlandi (2004, p. 67) observa que entre Mi-chel Foucault e Michel Pêcheux há um ponto de contato que se dá atra-vés do discurso. Só que ambos adotam diferentes pontos de vista para definir discurso. Preocupado com a produção dos saberes no universo das ciências humanas, Foucault (1959, p. 153) diz: “[...] chamaremos discurso um conjunto de enunciados enquanto derivam da mesma for-

Diz respeito à Teoria Gerativa, proposta por Noam Chomsky

Análise do Discurso

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mação discursiva.” Já para Pêcheux, na perspectiva do intelectual ligado diretamente nas lutas sociais, o discurso é “efeito de sentido entre locu-tores”. Duas expressões, conforme salienta Orlandi (2004), singularizam o conceito de discurso para cada um dos autores; a noção de enunciado para Foucault, com seus constituintes fundamentais conforme vimos antes, e a noção de efeito de sentido para Michel Pêcheux.

É assim que na escola francesa de Análise de Discurso o problema do sujeito, nunca antes considerado pela Linguística, aparece necessa-riamente ligado aos conceitos de língua e ideologia. Estabelece-se, nes-sa corrente, a ideia de sujeito como posição, porém, com um estatuto diverso daquele proposto por Foucault em A arqueologia do saber, ou seja, o de focar o discurso como materialidade específica da ideologia e a língua como materialidade do discurso. Vemos aí os pontos principais que devem fazer a diferença de uma Análise de Discurso filiada a Michel Pêcheux. A diferença se explica pelo modo como qual cada um escolhe sobre o que fazer o seu zoom em um campo de questões históricas e so-ciais que leva em conta a linguagem. Foucault quer compreender como se escala o jogo de constituição de objetos e de sujeitos de saber. Pêcheux, por sua vez, quer entender como as relações sociais de dominação e de transformação se estruturam mediante processos discursivos que se dão tanto dentro quanto fora das instituições políticas e acadêmicas.

Aqui é que achamos oportuno e importante inserir outra conjuntu-ra teórica: teoria materialista da ideologia de Louis Althusser e aborda-gem lacaniana do inconsciente estruturado como uma linguagem. Com esses ingredientes, Michel Pêcheux encontra um jeito de introduzir a noção de ideologia como um mecanismo de constituição do sujeito no discurso. Foucault jamais quis recorrer ao conceito de ideologia, por razões muito particulares. Mas a maneira com que Pêcheux recorre ao conceito leva a compreender que o que torna possível que o sujeito fale como se fosse a origem de si e do sentido do que diz é o esquecimento. É que, ao dizer, ele esquece aquilo que o falante na ordem do discurso, pela voz de Michel Foucault, não consegue esquecer, isto é, o fato de que ele mesmo e o sentido do que diz vêm de uma ordem que fala antes e o interpela como uma intervenção judicial. Sobre tal esquecimento como estruturante do sentido e do sujeito, conversaremos adiante.

Capítulo 08Análise de discurso: artefato de leitura

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Análise de discurso: artefato de leitura

Temos agora a conjuntura e o quadro intelectual que nos permitem definir a que vem a escola francesa de Análise de Discurso. Para início de conversa, essa escola põe em questão as noções de linguagem e de sentido. Como assim? Na abordagem discursiva, a linguagem não é sim-ples meio de transmissão de sentido. Dois aspectos se ressaltam aqui:

a) a linguagem é um processo inscrito na história e é por essa ins-crição que ela faz sentido;

b) o sentido não é uma entidade isolada e independente a ser transmitido pela linguagem, o sentido é relação a, isto é, efeito do contato ideologicamente atravessado entre um dizer aqui e outro lá (ORLANDI, 2003, p. 25).

A ideia de que o sentido é efeito de relação – relação a – lembra o que vimos em A arqueologia do saber, quando Foucault lança o ponto de vista da relação de enunciados. Só que Orlandi, seguindo Pêcheux, em vez de falar em relação de enunciados, fala em relação de sentidos, o que corresponde à diferença que já apontamos antes entre Michel Fou-cault e Michel Pêcheux, em que o primeiro vê enunciado e o segundo vê efeito de sentido. O mais importante, contudo, não é se deter só a dife-rentes objetos de análise, mas sobretudo a diferença da natureza da rela-ção que Orlandi enfatiza como sendo de natureza ideológica e pertinente à ordem das relações de força. Vamos voltar a esse ponto mais tarde.

Depois de colocar em suspenso o problema da linguagem e do sentido, Orlandi mostra como a conjuntura teórica referida por ela nos anos de 1960 leva a problematizar a noção de leitura. Isso acontece a partir de três regiões teóricas:

Teoria da sintaxe e da enunciação – o modo de pôr as palavras em ordem em formulações linguísticas de qualquer dimensão (frase, texto,

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etc.) é resultado do ato de enunciar, ato em que o vínculo entre o sujeito falante e a língua se dá pela história;

Teoria da ideologia – âmbito em que o falante se converte de in-divíduo em sujeito, indicando de que modo se constitui a posição que ele ocupa;

Teoria do discurso – relativo aos processos de constituição do sen-tido, ou de como objetos a serem lidos/interpretados produzem sentido.

Na medida em que o sujeito é ao mesmo tempo o efeito e o suporte dessa operação, esses três lugares teóricos pressupõem o atravessamento de uma dada teoria do sujeito de natureza psicanalítica, ou seja, dos mo-dos de produção de sentido que se efetuam à maneira do inconsciente. Assim é que a articulação dessas três regiões teóricas compõe o campo de discurso e permite colocar em questão uma ideia tradicional de leitu-ra, isto é, a leitura como relação direta e imediata entre o texto e o leitor.

Acontece que “[...] toda leitura precisa de um artefato teórico para que se efetue.” (ORLANDI, 2003, p. 25). Quando Althusser escreveu so-bre Marx, não é deste autor, mas da leitura dele que se tratava. A leitura que Althusser fez de Marx empregou o artefato teórico proposto pela psicanálise de Freud. Esta, por sua vez, não é um texto ou objeto primei-ro que traz um sentido em si. Freud é um campo de relações de sentido operado pela leitura que Lacan faz da psicanálise freudiana. Tudo isso tem a ver com certa concepção de leitura proposta por Roland Barthes, isto é, um texto ou qualquer objeto de linguagem ou simbólico sempre significa partir de escrituras operadas por procedimentos de leitura, a mesma que, segundo Orlandi (2003), “[...] mostra-se como não trans-parente [...]”, sendo ela própria, como é o caso da leitura que Althusser faz de Freud, resultado da articulação de dispositivos teóricos, no caso, o dispositivo da teoria saussuriana do linguístico articulado com o da teoria freudiana do inconsciente.

Em resumo, isso nos remete mais uma vez ao Foucault de A arque-ologia do saber, quando diz que enunciado não é uma unidade isolada,

Capítulo 08Análise de discurso: artefato de leitura

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mas resultado da relação com outros enunciados que a eles se ligam, formando um domínio correlato ou campo associado. Mas a remissão a Foucault para aqui, nessa ideia de que sentido e enunciado são efeitos de relação. Resta agora saber como a escola francesa de Análise de Dis-curso descreve tais relações, demonstrando como elas se dão a partir de dispositivos ou artefatos conceituais e práticos.

Assim, outro conceito que é posto em suspenso é o de interpreta-ção. É certo que ler é interpretar. Mas não do jeito que se faz em Her-menêutica, em que a interpretação não passa do ato de ler atribuindo sentido. De modo que leitura e interpretação são duas noções que fun-cionam solidariamente, e a primeira noção, a de ler, remete à segunda, o gesto de interpretar. Orlandi (2003) propõe aqui uma concepção de Análise de Discurso que visa a analisar os gestos de interpretação con-siderados como “atos no domínio do simbólico”. O que quer dizer isso? Certamente Orlandi (2003) refere-se a atos que colocam em relações múltiplos jogos e possibilidades de sentido. O grau zero do simbólico ou das relações possíveis de sentido é o real do sentido, ou seja, o ponto em que se cai no não sentido. Esse é o lugar que, conforme Orlandi, a Aná-lise de Discurso intervém, não para impor sentidos possíveis, mas para fazer compreender como eles se produzem. Isso explica como e porque

A Análise de Discurso não estaciona na interpretação, trabalha seus li-

mites, seus mecanismos, como parte dos processos de significação.

Também não procura um sentido verdadeiro através de uma chave de

interpretação. Não há esta chave, há método, há construção de um dis-

positivo teórico. Não há verdade atrás do texto. Há gestos de interpre-

tação que o constituem e que o analista, com seu dispositivo deve ser

capaz de compreender.(ORLANDI, 2003, p. 26).

Os gestos de interpretação de que fala Orlandi nada mais são do que a colocação do objeto a ser lido em uma rede de relações, porque os efeitos de sentido ocorrentes em um texto não se encontram ali pré-via e naturalmente dados – nem como o inteligível, advindo do conhe-cimento da língua em que se encontra uma formulação, nem como o interpretável, advindo de um estoque de sentidos, dos quais se escolhe

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o contextualmente mais adequado para interpretar um texto. Nesse sen-tido, cabe lembrar o que diz Jean-Luc Nancy (1982, p. 78) quando se refere ao trabalho de interpretação feito pelos filósofos: “Ele precisa de uma técnica que lhe permite controlar o incontrolável, que apare a voz do texto sobre um sentido tão claro quanto possível.”

Ao contrário, no campo da escola francesa de Análise de Discurso o analista não visa a um controle da interpretação. Nesse campo, o tra-balho de interpretação relaciona o que lê aos sentidos pré-construídos, ideologicamente pré-fixados. O dispositivo analítico provê o intérprete de uma técnica que consiste não a trabalhar a língua na relação com ela mesma, mas em relação ao quadro exterior em que tenta driblar a imprevisibilidade da língua e da história pela mediação da memória discursiva. Trata-se de focar a compreensão, isto é, o funcionamento da interpretação como gesto que põe sentidos em relação e tira dessas relações os efeitos que explicam de que modo, ao interpretar, o leitor já está tomado por um sentido.

Na visão de Orlandi (2003), há algo na própria organização textual que separa os atos ou gestos de interpretação. O próprio da Análise de Discurso é mostrar a maneira com que isso acontece. Tudo gira em tor-no da leitura como prática, prática de relação que pressupõe o contato imbricado entre sujeito e sentido, e de como esse contato pressupõe rela-ção de sujeito a sujeito: significar é sempre significar para, em um movi-mento que implica o próprio sujeito que se efetiva no ato de interpretar.

Dessa forma, é que se resume o dispositivo teórico da Análise de Discurso. Ao mesmo tempo em que se apresenta como prática que põe em questão a linguagem, a leitura, a interpretação, a Análise de Discur-so se provê de artefatos conceituais através dos quais o analista marca a responsabilidade de sua tarefa. Ele delimita parâmetros teóricos a partir dos quais lança seu trabalho de analista. Mas a responsabilidade do ana-lista não está na armadura do dispositivo teórico: “[...] o que é de sua responsabilidade é a formulação da questão que desencadeia a análise.” (ORLANDI, 2003).

Capítulo 08Análise de discurso: artefato de leitura

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Decorre daí que, se retomarmos o que vimos há pouco sobre a con-juntura intelectual que deflagra um novo modo de conceber a leitura, concluímos que ler é interpretar. Então, o mais importante do disposi-tivo analítico é levantar questão. Dito de outro modo, sem questão não há análise, isto é, o ato de compreender como determinado sentido se constrói só ocorre a partir da colocação de uma pergunta.

Tomemos o exemplo da última campanha Bombril, que foi veicula-da na televisão nos meses março e abril de 2011. Seu mote, para vender produtos de limpeza da marca, era a produção de textos publicitários que prestassem homenagem à mulher moderna. Assim, a campanha foi composta de uma série de vídeos em que aparecem mulheres, interpre-tadas por conhecidas atrizes, descrevendo situações em que a fragilidade dos homens está diretamente ligada à sua incapacidade de administrar um serviço de higiene doméstica. No final de cada vídeo, o depoimento sempre termina com a seguinte frase:

“Bombril, os produtos que evoluíram com as mulheres.”

Temos, nessa campanha publicitária, o exemplo de exposição de um objeto simbólico, no caso, uma série de vídeos: textos estrutura-dos por signos verbais e não verbais. O que cha-ma atenção aí é o encadeamento das palavras na fala, aliado à entonação e à postura corporal da personagem feminina. Todos esses elementos estão organizados de modo a fazer funcionar certos gestos de interpre-tação; ou seja, o ato de leitura que se pressupõe para essa propaganda se realizar através da relação dos dizeres presentes em cada vídeo com outros dizeres verificáveis na história. Assim, o sentido do enunciado-emblema de cada vídeo – “Bombril, os produtos de limpeza que evoluíram com as mu-lheres” – está ligado à forma com que as diferenças entre homem e mulher tornam-se históricas mediante a expressão guerra dos sexos. A declaração do diretor de marketing da Bombril marca precisamente o referencial de sentido a partir do qual todo destinatário deve ler esta propaganda: “Que-

A declaração está disponí-vel em <http://colunistas.ig.com.br/consumoepro-paganda/2011/03/10/bombril-lanca-mulheres--evoluidas/?doing_wp_cron>. Acesso em 19 de abril de 2011.

Figura 25 – Peça publicitária.

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remos colocar a mulher em evidência numa espécie de guerra dos sexos” (grifo nosso). Essa declaração aponta para o domínio simbólico em que o leitor deve ser interpelado a fim de que seja feito nele e por ele o sentido e a posição de sujeito, tanto do lado de quem fala nos vídeos quanto do lado de quem ouve. Ao escrever essa propaganda da Bombril, o seu redator ou criador deixou-se tomar por uma entre as várias interpretações disponíveis na história do dizer da mulher e sobre a mulher.

Isso explica porque o gesto de leitura deve ser, nesse caso e em ou-tros, um prolongamento do gesto de escritura: o ato de ler, ao produ-zir sentidos para um texto como o que exemplificamos aqui, recria o mesmo texto, fazendo com que ele seja remetido, ou não, às mesmas condições de produção com que foi escrito. Nesse ponto, mais um con-ceito vem compor o que Orlandi (2003, p. 30) chama de condições de produção: “[...] elas compreendem fundamentalmente os sujeitos e as situações.” Trata-se, obviamente, da produção da leitura ou da interpre-tação como o equivalente à produção do discurso.

Acontece que as condições em que se produz o discurso e, portanto, a interpretação que o pressupõe não são imediatamente apreensíveis ou acessadas. As condições de produção, conforme define Orlandi (2003), resultam do acionamento da memória e aparecem em dois níveis: es-trito e amplo. Voltemos ao caso da campanha publicitária da Bombril. A possibilidade de ser lida na direção de sentido em que é formulada exige determinar quem a produziu, para quem foi produzida e em que situação é veiculada.

No caso, dizemos que a Bombril, através de uma agência de pro-paganda, foi quem produziu o texto publicitário a ser transmitido na forma de vídeo. As mulheres, donas de casa, são o público-alvo para quem se destina a mesma peça publicitária. Temos assim os elementos do contexto imediato das condições estritas de produção:

Ӳ A veiculação da peça nos horários mais assistidos dos canais abertos da televisão;

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Ӳ Os agentes mentores da Bombril como sujeitos assinantes da propaganda.

O momento em que – no mês do Dia Internacional da Mulher – a Bombril suspende a sua maneira padrão de propagandear seus produtos e decide usar a campanha para render uma especial homenagem para as que denomina “mulheres evoluídas”.

Mas as condições estritas ou contexto imediato de produção do discurso que funciona na textualização dessa propaganda só garantem seus efeitos de sentido no quadro das condições mais amplas de produ-ção cujos elementos podem ser os seguintes:

Ӳ A forma com que a sociedade, em suas instituições jurídica, política, familiar, significa mulher em relação aos homens;

Ӳ O modo como a mulher reage ao domínio do masculino lutando através de acontecimentos que marcam sua luta por posição de igualdade.

O aparecimento de fatos na história marcando a contraposição de modalidades de feminismo; um propondo a sobreposição do feminino sobre o masculino, outro propondo a conquista de direitos iguais sem inversão e sobreposição de papéis da mulher em relação ao homem.

É possível deduzir que os elementos das condições amplas de produ-ção do discurso são acessíveis por acontecimentos datados e localizáveis em arquivos históricos. Só que não por meio de datas e fatos na historiogra-fia que esse contexto amplo funciona como o referencial da memória do discurso. Visto dessa maneira, fica parecendo que é tudo uma questão de intenção, isto é, tudo depende da intenção do sujeito que formula o texto.

De fato, o enunciado que se repete a cada veiculação “Bombril, os produtos que evoluíram com as mulheres” não tem origem na in-tenção de um sujeito. Ainda que de forma irônica e provocativa os sen-tidos que se induzem na propaganda não seriam possíveis não fosse a

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intervenção de uma memória que fala antes e fora do sujeito que cria a propaganda e dos leitores e espectadores a quem se destina. Seja para rir da ironia ali implícita, seja para tomá-la a sério, os sujeitos já se en-contram tomados por esses mesmos sentidos que, no caso da referida campanha publicitária da Bombril, podem ser ambiguamente negados e afirmados. Esse é o papel da memória que dá conta da produção do discurso que ecoa na base linguística da formulação e da leitura de qualquer objeto de linguagem.

Pela memória que, silenciosamente intervêm no momento da enunciação, as palavras, seja qual for o modo com que vêm arran-jadas sintaticamente e combinadas com signos não verbais, estão já significadas, justamente porque a língua através da qual são emitidas só funciona em vínculo com a história. É porque já foram ditas antes, encarregadas de fazer sentido em contextos outros, que as palavras ditas aqui ligam-se à memória de seus acontecimentos para fazer sen-tido no aqui e agora da emergência de um discurso. Assim como o caso exemplar da faixa “Vote sem medo”, evocado por Eni Orlandi (2003), também a campanha da Bombril é uma amostra do processo em que condições imediatas do dizer, em verdade, fazem aparecer o modo com que condições históricas mais amplas compõem a possibi-lidade de efeitos de sentido ou de discursos. Há entre o âmbito restrito e mais amplo do processo discursivo uma espécie de eco em que o que se diz em certo instante é eco do que está dito lá atrás. O primeiro designa o plano do intradiscurso, o efeito de sentido a se fazer no aqui e agora da enunciação; o segundo, o das condições amplas, remete ao interdiscurso, ou propriamente o da memória definida como modo de constituição do sentido. Neste plano, define-se mais exatamente o que pode e deve ser dito. Relacionar semanticamente a evolução de uma li-nha de produtos de limpeza com a evolução da mulher é algo quem vem do dizível colocado na memória ou no interdiscurso. Há aí um jogo de sentidos que advém do encontro entre uma memória (constituição) e uma atualidade (formulação) (ORLANDI, 2003, p. 33). Apliquemos esse raciocínio analítico, em primeiro lugar, à atualidade verificável na formulação de uma homenagem e de uma propaganda de produtos de limpeza; e, em segundo lugar, à memória ou a constituição do sen-

Capítulo 08Análise de discurso: artefato de leitura

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tido do feminismo que torna possível a história do confronto ou das relações homem/mulher e suas consequências tanto no domínio dos saberes quanto no das relações sociais e políticas.

Veja bem. Basta agora voltar às páginas do nosso texto de refe-rência – de Eni Orlandi – e rever o mesmo raciocínio aplicado a outro exemplo. Com certeza, não restarão dúvidas sobre esses conceitos de condições de produção e de interdiscurso e todas suas consequências para o estatuto do sujeito, da leitura e da interpretação na perspectiva da escola francesa de Análise de Discurso.

Capítulo 09O esquecimento no jogo da memória ou do interdiscurso

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O esquecimento no jogo da memória ou do interdiscurso

A grande questão que se levanta é como se pode desvincular a pro-dução do discurso da intenção do sujeito, já que não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia. A resposta reside justamente nes-sa relação sujeito/ideologia. Essa é a razão porque propomos agora exa-minar um fenômeno e um conceito que é ao mesmo tempo inerente ao processo discursivo e ideológico, ou, em outros termos, do modo com que se produz simultaneamente o sujeito e o sentido. Trata-se do fenô-meno do esquecimento.

Voltemos um tanto ao conceito de interdiscurso para desmanchar o ilusório parentesco que ele entretém com a noção de intertexto. Con-sideremos o caso da criação de uns versos em que se pode acumular a ocorrência simultânea do intertexto e do interdiscurso. Na música popular brasileira, há duas canções cujos títulos são bem próximos. A primeira é Preciso aprender a ser só1, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, lançada em 1965. A segunda intitula-se Preciso aprender a só ser2, de Gilberto Gil, gravada em 1974. Antes de comentarmos o desloca-mento de um elemento que torna diferente um dizer de um título e o de outro, é interessante atentar para o trecho da canção de Gil que, à pri-meira vista, apresenta-se como o intertexto da composição dos irmãos Valle. Nos quatro últimos versos de Preciso aprender a só ser, lemos e ouvimos um trecho que diz assim:

E quando escutar um samba-canção.

Assim como: “Eu preciso aprender a ser só”.

Reagir e ouvir o coração responder:

“Eu preciso aprender a só ser.”

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2 GIL, Gilberto. Maracatu Atômico. [S.l.]: Philips, p1974. 1 compacto sim-ples.

Figura 26 – Fachada do Teatro Abril, antigo Teatro Paramount, em

São Paulo.

1 Em 1965, foi mostra-da pela primeira vez por Marcos Valle no espetáculo A bossa no Paramount, rea-lizado no Teatro Paramount (SP)

Figura 27– Gilberto Gil cantando no 3º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, transmitida por

TV e rádio em 21 de outubro de 1967.

Análise do Discurso

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À primeira vista, estamos diante de um evidente caso de intertex-to, o que equivale a dizer que Gilberto Gil, em uma diferente criação de letra e melodia, cita os compositores literalmente com o verso da canção de Marcos e Paulo Sérgio Valle, introduzindo-o no final de sua composição com o mesmo fraseado linguístico e melódico. À parte toda riqueza, pertinência e particularidade do trabalho do intertexto, pelo viés da Análise de Discurso podemos logo ver que se trata de outro processo, o que põe em foco o jogo do interdiscurso no intradis-curso. Ao emparelhar, mantendo em cada formulação o encadeamento sintático e melódico próprio a cada uma, vê-se, nesse trecho da canção de Gilberto Gil, aparecer o efeito de sentido que ali só acontece porque já está dado em formulações anteriores. O dizer “Preciso aprender a só ser” significa na relação com o sentido já posto na memória em que se localiza o dizer de “Preciso aprender a ser só”. Trata-se bem de abrir o feixe de formulações que, ao nível do interdiscurso, em suas respec-tivas possibilidades de formação de discurso, realiza o intradiscurso pertinente a uma e outra canção.

“O leitor atento, verdadeiramente ruminante, tem quatro estôma-

gos no cérebro, e por eles faz passar e repassar os atos e os fatos,

até que deduz a verdade, que estava, ou parecia estar, escondida.”

Machado de Assis, Esaú e Jacó, capítulo LV.

Em verdade, o verso “Reagir e ouvir o coração responder” fun-ciona como uma espécie de lembrete que o discurso lança sobre si mesmo marcando ali que há dois gestos de interpretação em con-fronto. Apresenta-se, assim, o mecanismo em que o esquecimento ou apagamento de um dizer – “Eu preciso aprender a ser só” – deter-mina o sentido posto em “Eu preciso apreender a só ser”. Feito esse esboço analítico, vem de imediato a consideração do esquecimento definido por Michel Pêcheux (1994) como um fenômeno enunciati-vo e discursivo operado em dois níveis, que o autor denomina res-pectivamente nível 2 e nível 1.

Capítulo 09O esquecimento no jogo da memória ou do interdiscurso

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Vamos ficar ainda especificamente no exemplo da canção de Gilberto Gil. No trecho em que o sujeito canta enunciando a dife-rença entre escutar “a ser só” e ouvir “a só ser” indica que em sua enunciação a escolha de uma entre duas maneiras de dizer, o que re-troativamente aponta como todos os versos anteriores de sua canção formam o que Orlandi (2003, p. 35) chama de “família parafrástica”. Isso significa que o texto de sua composição em relação interdis-cursiva com o texto da canção dos irmãos Valle assinala o quanto o dizer da solidão sempre pode trazer o mesmo em outras maneiras de formular. O efeito de sentido que aqui aparece leva a compreender que, ao proferir “Preciso aprender a ser só”, pode-se também proferir “Preciso aprender a só ser”.

E tudo isso parece ser resultado do pensamento do sujeito que diz, como se houvesse uma relação evidente entre o pensamento, a linguagem e o mundo. Ao deslocar um elemento no enunciado, co-mutando “a ser só” por “a só ser”, é como se Gil dissesse que o que pretende dizer somente pode ser dito da maneira com que organizou as mesmas palavras diferentemente empregadas por Marcos e Paulo Sérgio Valle. Tudo isso se explica pela crença necessária de que as pala-vras e as coisas guardam entre si uma correspondência natural.

Figura 28 – Pintura em 3D na parede de um restaurante criada por John Pugh.

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Trata-se, contudo, de uma ilusão referencial (ORLANDI, 2003) que determina a enunciação. O sujeito esquece que ele não é a origem do dizer que formula. No entanto, essa é a condição para que o que diz faça sentido no momento em que enuncia. Vemos aqui os traços do esquecimento no nível 2: “[...] é o chamado esquecimento enunciativo e que atesta que a sintaxe significa: o modo de dizer não é indiferente aos sentidos.” (ORLANDI, 2003, p.35). Daí que o detalhe do esquecimento enunciativo nos títulos das canções que analisamos está na estrutura sintática baseada na mudança da ordem de um único elemento na frase.

O que se passa é que o sujeito da enunciação é constituído de modo a não poder ter acesso às diferentes maneiras de dizer que vão lhe per-mitir se significar e significar o mundo ao qual se refere. O fato é que ele não tem acesso ao modo com que a diferença de sentido se aloja em diferentes maneiras de dizer. A isso a que o sujeito não tem acesso, em termos de constituição de sentido, é que se chama esquecimento no nível 2, ou esquecimento ideológico. O sujeito referido com o nome próprio Gilberto Gil pode ter sido genial ao encontrar outra maneira de dizer os sentidos interpretáveis na composição de Marcos e Paulo Sérgio Valle. Só que esse processo o tomou no plano do inconsciente, ou seja, no plano em que a diferença entre “ser só” e “só ser” é uma retomada de sentidos pré-construídos. Esses sentidos já aparecem como evidência e se representam como originados no próprio sujeito que enuncia.

De modo que o esquecimento no nível 1 caracteriza um horizonte de possibilidades de significar muito distante e fora do sujeito enuncian-te. Não se trata do que o sujeito um dia soube e esqueceu. Em verdade, a noção de esquecimento que se apresenta na Análise de Discurso, a partir de Pêcheux, é sinônima de desconhecimento. Então, em nível 2, o sujeito desconhece que não depende dele propor a distância entre uma maneira e outra de dizer. Ainda assim, age como se estivesse pleno desse saber: sei bem que sou eu quem determina a diferença ao dizer aprender a só ser, em vez de dizer aprender a ser só. No momento, porém, em que imagina ter a posse dos sentidos que o sujeito profere pelo modo e pelas palavras que escolhe, há outra voz que já decidiu e determinou antes: determinou inclusive que aquele que vai expressar a diversida-

Capítulo 09O esquecimento no jogo da memória ou do interdiscurso

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de do sentido, colocando-se em uma posição em detrimento de outra, deve ser feito junto e da mesma matéria que os efeitos de sentido que o interpelam ao enunciar. Essa matéria é a ideologia, uma espécie de tec-nologia inacessível de discurso e de sujeito. A eficácia dessa tecnologia ideológica consiste no funcionamento do esquecimento em nível 1, isto é, o sentido e sua fonte no sujeito devem ser absoluta e inquestionavel-mente evidentes. Cabe ao sujeito apenas pôr em questão o que ele diz na diferença com que o outro diz, mas nunca questionar a evidência de si como lugar da autoria e da responsabilidade do que diz. Tal é a forma da subjetividade que passou a imperar no trânsito entre a época clássica e a modernidade, conforme veremos mais tarde.

O exemplo do qual nos servimos para expor o conceito de esque-cimento, em nível 2 e em nível 1, vem a calhar porque mostra bem duas possibilidades de ocorrência de uma forma na língua. Mostra também o modo de essas operações linguísticas aparecerem não isoladamente, mas cumulativamente na qualidade de fato que se inscreve na história. Aqui se trata da história da música popular brasileira como plataforma de discursos que se confrontam, se comutam e se apagam mutuamente. Isso não anula os gestos singulares que propiciaram a criação das can-ções que analisamos. O próprio da subjetividade em Gilberto Gil e na dupla Marcos e Paulo Sérgio Valle está justamente na maneira com que cada um foi afetado pela história e pela língua. Não é no sistema linguís-tico que as diferenças de arranjos se estabelecem. Não é tampouco nos indivíduos falantes que está a origem dos sentidos interpretáveis nos diversos modos de ordenar seus elementos. Se na língua só há diferença, é justamen-te porque as maneiras diferentes de dizer se deixam atingir no movimento da língua e da história.

Segundo Orlandi (2003, p. 35): “Quando nas-cemos, os discursos já estão em processo e nós é que entramos nesse processo. Eles não se originam em nós.” Essa constatação está diretamente ligada ao processo de constituição da memória e de como o esquecimento é a condição da memória discursi- Figura 29 – Biblioteca bombardeada durante a 2ª Guerra

Mundial.

Análise do Discurso

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va. Nesse sentido, é que o “esquecimento é estruturante”, ou seja, a cons-tituição da memória vem da disposição e distribuição dos dados que a compõem operados pelo apagamento do que foi dito para que no dito o efeito de sentido se estabeleça como memória discursiva.

Na constituição da memória discursiva não se trata de resgatar para lembrar, mas, muito pelo contrário, de resgatar para decidir, de tudo que foi resgatado, o que deve ser esquecido para que uma memó-ria seja possível. É o caso de nações como a Alemanha pós-nazista que, para fazer a memória de sua identidade nacional enquanto discurso, há que sempre considerar esquecidos os vestígios do holocausto que im-possibilitam essa mesma memória. O filme Uma cidade sem passado ilustra bem esse processo. Nele, a protagonista, uma jovem estudante, vê-se impedida de realizar um trabalho sobre a atuação dos alemães diante das atrocidades de Adolf Hitler contra os judeus. Todas as insti-tuições públicas na cidade dificultam seu acesso aos dados de arquivo que remontam ao tempo em que a cidade vivia sob o regime do Terceiro Reich. O fato é que, depois de muito insistir, a protagonista descobre documentos atestando a participação dos habitantes de sua cidade na-tal no genocídio contra o povo judaico. Descobre ainda que a periferia

dessa cidade, a qual pretende construir e prolongar uma memória de heroísmo contra os nazistas, esconde terri-tórios que serviram de campo de concentração. O filme prossegue narrando muitas peripécias da personagem a fim de conseguir manter para a sua cidade natal e para toda a Alemanha uma memória possível, estruturada por sentidos de dignidade e solidariedade. Só que, para tanto, terá de contrapor o que encontrou de ruim nessa história ao que também encontrou de bom.

Nesse jogo entre os sentidos que concorrem para a sordidez ou para a nobreza é que se deve isolar o plano do a ser esquecido, para que o dizer possa encontrar o dizível da memória a se manter, isto é, a formação discursiva que sustenta a nacionalidade alemã, sob condição de apagar dela sentidos que remetem à memória do nazismo. Não é Figura 30 – Passagem.

Capítulo 09O esquecimento no jogo da memória ou do interdiscurso

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que o esquecimento tenha a ver com o que se oculta. Em verdade, o es-quecimento ideológico tem a ver com a presença inevitável de algo que só pode aparecer sob a dimensão do não sentido para dar passagem ao evidente, ao que não pode ser de outra maneira. Vale aqui repetir o que Orlandi (2008, p. 59) afirma sobre o interdiscurso em outro texto: “[...] o interdiscurso é o conjunto dos dizeres já ditos e esquecidos que deter-minam o que dizemos, sustentando a possibilidade mesma do dizer.” Por exemplo, no contexto do filme, a ausência da palavra judeu em toda a narrativa mostra como a palavra não pode ser pronunciada em um quadro de constituição de memória sem que mobilize sentidos vindos de outras palavras.

Daí que, no ato de dizer, o sujeito e o sentido do que diz já estão de-terminados no cruzamento entre a língua e a história. O fenômeno que se pode descrever na maneira com que as palavras significam de sujeito para sujeito é o da identificação involuntária ou inconsciente, justamente por-que o fundamental do esquecimento estruturante acontece em tempo an-terior ao dizer e fora do falante. A natureza ideológica desse fenômeno de esquecimento advém do fato de que, no momento em que são proferidas, as palavras já acontecem como se seus sentidos fossem pontualmente ori-ginados no sujeito no instante em que as profere. Isso é que se chama uma ilusão necessária: é preciso que o sujeito se tome como fonte do sentido para que esse aconteça mediante uma retomada do que antes fora dito.

Capítulo 10Os limites entre o mesmo e o diferente

65

Os limites entre o mesmo e o diferente

Quando Eni Orlandi (2003, p. 36-39) desenvolve os conceitos de pa-ráfrase e polissemia, entendemos logo a especificidade do interdiscurso em relação à formação discursiva. Fica claro que a palavra não é sim-plesmente formulações linguísticas diferentes para dizer o mesmo e que, por sua vez, a polissemia não é o emprego de formulações idênticas para designar sentidos diferentes. Paráfrase e polissemia definem respectiva-mente em todo dizer o sentido que se mantém e o que se desestabiliza. De modo que, voltando ao exemplo do título das canções que analisamos an-teriormente, a manutenção ou o deslocamento do sentido não vêm sim-plesmente da mudança de posição de um termo na frase. A despeito da mudança na estrutura de uma frase dada, seu sentido pode se conservar ou tender a se modificar conforme a memória, o dizível em que se pro-duz. Se duas formulações linguisticamente diferentes retomam a mesma memória discursiva, então elas mantêm entre si uma relação parafrástica. Por outro lado, tendo ou não a mesma estrutura sintática, há formulações que remetem a uma diversidade de significação. Esse é o jogo da polisse-mia: o dizer pode ser formulado de modo idêntico, mas se expõe de modo a produzir uma ruptura com lugares já estabelecidos de sentido. Foi o que vimos na diferença entre dizer “Preciso aprender a ser só” e “Preciso aprender a só ser”. O que se faz aqui é tanto uma relação de paráfrase, quanto de polissemia. Isso quer dizer que a comutação da expressão “a ser só” por “a só ser” só põe em crise o sentido sedimentado pela memória da primeira. Mas, ao mesmo tempo em que se estabelece uma nova memó-ria, o procedimento desloca o dizer da primeira para novo lugar, fazendo com que as duas formulações, nessa outra região do dizível, passem a re-cobrir entre si uma relação parafrástica.

Dessa forma, o funcionamento discursivo da paráfrase consiste em produzir mecanismos de controle da instabilidade interdiscursiva. Com isso, concluímos que a paráfrase é da ordem da formação discursiva, en-quanto a polissemia é da ordem do interdiscurso. Parafrasear é dizer po-sicionado sempre no mesmo lugar da memória discursiva. Já produzir

10

Análise do Discurso

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polissemia é formular na fronteira da formação discursiva, ou seja, a re-gião do interdiscurso (o dito e esquecido), em que o sentido tende a ser outro e por isso desestabiliza o processo discursivo. O intervalo aberto pelo confronto entre a paráfrase e a polissemia descreve o que Orlandi (2003, p. 36) refere como a “[...] tensão entre o mesmo e o diferente.”

“[...] a linguagem é o tecido da memória, isto é, sua modalidade de

existência essencial” (COURTINE, J.-J,. Le tissu de la mémoire: quel-

ques perspectives de travail historique dans les sciences du langage.

Langage, n.114, p. 5, jun. 1994.)

Em resumo, a paráfrase e a polissemia são maneiras de as relações de sentido se mostrarem na forma de um funcionamento de linguagem em ação no processo discursivo. Os sentidos sempre se mostram por relações que são de diferença ou de semelhança, mas a possibilidade de o sentido se produzir em uma dessas duas relações já está prevista na história e no modo como a língua se inscreve nela. Sempre que um dizer acontece fazendo sentido é porque ocorre na forma da convergência (o mesmo) ou na forma da colisão (o diferente) entre dizeres. “Um dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis” (ORLANDI, 2003, p. 39).

Esse processo mais amplo em que um discurso ou um efeito de sen-tido se dá sempre em contato com outro é algo exterior ao sujeito que diz. Mas, para que o jogo de relações se efetive em sua enunciação, é pre-ciso que o sujeito seja dotado de uma capacidade: a da antecipação. Não se trata de uma faculdade cognitiva, mas sim de uma peça do proces-so discursivo sem o qual nem o sujeito, nem o sentido se constitui. De modo que a antecipação (ORLANDI, 2003, p. 40) descreve um modo de interpretação através do qual o falante interpreta antecipando a po-sição de onde o sentido foi produzido. A cena emblemática é a de um debate em que um se dirige ao outro prevendo como suas palavras serão interpretadas pelo outro. Aqui cabe o cuidado: não estamos falando de

Capítulo 10Os limites entre o mesmo e o diferente

67

esquema behaviorista de comunicação. Em vez disso, trata-se de um processo a que Michel Pêcheux denomina de formações imaginárias.

 A diferença com o esquema de comunicação é que a interlocução não se dá de emissor e destinatário como pessoas físicas e psicológi-cas envolvidas na interação verbal. Em vez de emissor e destinatário, temos um complexo de formação de imagens (as formações imagi-nárias) do que A significa para B e vice-versa. O que interessa nessa intercambialidade de imagens mutuamente projetadas é que elas de-signam posições de sujeito já significadas. É o que vai explicar a dife-rença entre um falante ser escutado na posição de pai ou de filho, na posição de aluno ou professor. Ditas de um desses posicionamentos, as palavras significam conforme historicamente as mesmas posições se estabelecem como posições de discurso.

Fica assim explicado porque a antecipação não é uma simples capaci-dade cognitiva atribuída ao sujeito falante, mas sim uma propriedade dis-cursiva dentro da qual as palavras significam em relação com a posição de onde são ditas, e isso faz parte das condições amplas de produção do dis-curso. Aí está: se o sentido é relação a, como vimos através de Eni Orlandi, aqui avançamos para descobrir que o ponto de sustentação das relações de sentido é a posição em que é levado a colocar aquele que profere certas palavras. O que faz então com que as pala-vras façam sentido tem a ver com um jogo de posições. Mais um ponto que se esclarece aqui: não é por mera convenção que as pala-vras significam conforme a posição de onde são faladas. É bem outra coisa, muito pró-pria do processo das condições amplas de produção do discurso. Em verdade, o que faz com que um efeito de sentido dependa da posição em que se produz é a força his-toricamente anexada à posição. Portanto, é porque carrega força simbólica institucio-nal e histórica que a posição de onde se diz constitui o sujeito e o que ele diz.

Figura 31 – Cena do filme O grande desafio, de 2010. Baseado na trajetória acadêmica do professor Melvin B. Tolson e de sua equipe de debates da Faculdade

Wiley, no Texas (EUA), em 1935.

Análise do Discurso

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Por isso, as relações de sentido, dadas em seus movimentos pa-rafrásticos e polissêmicos, são diretamente correlativas às relações de força. Essa é mais uma maneira de pensar a entrada da língua na histó-ria: descrever paráfrase e polissemia é descrever um fato de língua que funciona por forças emergentes na história, cristalizando regimes de sentido. Fica ainda mais esclarecido como a Análise de Discurso cons-trói uma visão em que as condições de produção não dizem respeito simplesmente a contextos factuais e datados “pilotando” possibilidades de efeitos de sentido. As condições de produção têm como matriz dos elementos que a compõem as relações de sentido aliadas às relações de força: em outros termos, o dizer imbricado a posições de discurso ou a posicionamentos de produção do sujeito e do sentido.

Posição e força são termos que mostram que os sentidos têm luga-res e validade histórica e política, fazendo com que um mesmo indiví-duo proferindo uma mesma palavra se signifique como sujeito de modo completamente excludente. É o que exemplifica Orlandi (2003) quando ressalta: “[...] se o sujeito fala a partir do lugar de professor, suas palavras significam de modo diferente do que se falasse do lugar do aluno.” Dito desse modo, parece apenas uma questão óbvia de troca de papéis. Mas é muito mais que isso. Veja com esta outra explicação de Pêcheux:

[...] um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produ-

ção dadas: por exemplo, o deputado pertence a um partido político que

participa do governo ou a um partido da oposição; é porta-voz de tal

ou tal grupo que representa tal ou tal interesse, ou então está “isolado”

etc. Ele está pois, bem ou mal, situado no interior de relações de força

existentes entre os elementos antagonistas de um campo político dado:

o que diz, o que anuncia, promete ou denuncia não tem o mesmo esta-

tuto conforme o lugar que ele ocupa. (PÊCHEUX,1990, p. 77).

Como vimos, através da concepção de relações de sentido e de for-ça, só é possível prever e interpretar quem diz e o que é dito porque ambos, sujeito e sentido, são resultados do modo com que as palavras são jogadas em posições dadas com suas respectivas forças. Talvez isso explique como foi possível na história política brasileira ter havido um

Capítulo 10Os limites entre o mesmo e o diferente

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presidente – Luiz Inácio Lula da Silva – interpretado e criticado como alguém que falando na posição de sindicalista era um e na posição de presidente da República era outro sujeito. O que fica posto em questão é a literalidade e autenticidade do sujeito e do sentido, já que, pela língua e pela história, são produtos passíveis de se tornarem outro de acordo com a posição e força com que se realizam.

Retomemos o que já dissemos sobre as formações imaginárias. Por serem posição e força produtos de funcionamentos discursivos histo-ricamente passíveis de falha e ruptura, é que os sentidos e os sujeitos, enquanto efeitos desse processo, mostram-se como um jogo de projeção de imagens. Isso quer dizer que a existência da posição e a força que essa pode ter na história sedimentam-se como formações imaginárias, isto é, a imagem que se projeta sobre a fala e o sujeito fazendo-a significar em uma direção e não em outra. Segundo Orlandi (2003, p. 40): “Assim não são os sujeitos físicos, nem seus lugares empíricos como tal [...] que funcionam no discurso mas suas imagens que resultam de projeções.” Lembremos que era muito comum ouvir alguém dizer sobre o presi-dente Luiz Inácio Lula da Silva: “Lula não serve para ser presidente, ele é ignorante, nem sabe falar direito.” Não é da figura física do Lula, de sua fala ou da Presidência da República que se fala. O sentido de um comentário como esse está nas projeções de imagens que transformam o lugar empírico em que o indivíduo é tomado em posição de discurso.

Vale aqui aproveitar a celeuma em torno do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, no momento em que, ao mesmo tempo em que é pressionado a apresentar sua certidão de nascimento para comprovar sua nacionalidade norte-americana, é pressionado a apresentar a certi-dão de óbito para comprovar a morte efetiva do terrorista Osama Bin La-den. Não se trata da origem como lugar físico de nascimento, mas como posição e força de discurso em que se faz o sujeito presidente e o que ele diz. Do mesmo modo, não se trata da prova física da morte do terrorista, mas da posição em que o presidente se significa como sujeito ao cometer o gesto de mostrar uma certidão de óbito. Certidão de nascimento desig-na a posição e a força do discurso que constitui o presidente dos Estados Unidos. Já certidão ou atestado de óbito refere-se à posição em que Ba-

Análise do Discurso

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rack Obama se constitui como sujeito político diante da comunidade in-ternacional, ou seja, à posição em que se diz, é dito e celebrado por ser o chefe da nação cujas tropas militares mataram Osama Bin Laden. Dessa maneira é que o jogo das posições não remete simplesmente a um jogo de troca de papéis, mas sobretudo ao mecanismo que “[...] produz imagens de sujeito, assim como objetos do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-histórica.” (ORLANDI, 2003, p. 40). Podemos esquematizar esse mecanismo de produção e projeção de imagens da seguinte maneira:

Expressão das formações imaginárias

Significação da ExpressãoQuestão implícita cuja “resposta” subentende a formação imaginária correspondente

A Ia(A) Imagem do lugar de A para o sujeito colocado em A “Quem sou eu para lhe falar assim?”

A Ia(B) Imagem do lugar de B para o sujeito co-locado em A “Quem é ele para que eu lhe fale assim?”

B Ib(B) Imagem do lugar de B para o sujeito co-locado em B

“Quem sou eu para que ele me fale as-sim?”

B Ib(A) Imagem do lugar de A para o sujeito colocado em B “Quem é ele para que ele me fale assim?”

(PÊCHEUX, 1969)

Aplicando o funcionamento das formações imaginárias, tal como demonstra o quadro anterior, ao caso de Barack Obama, vemos que não importa a figura do presidente tomada empiricamente.

Pelo esquema, dizemos que o presidente Obama (A) faz uma ima-

gem da posição que ocupa como presidente da República (Ia(A)). Ao

mesmo tempo, dizemos que Obama (A), colocado na posição A, faz

uma imagem do lugar do povo americano (Ia(B)) assim como projeta

uma imagem do povo americano (B) sobre posição em que está co-

locado como presidente (Ib(A)).

Capítulo 10Os limites entre o mesmo e o diferente

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O que importa é como se constitui o sujeito presidente como po-sição discursiva e, anexada a esse, como se constitui para o presidente a imagem que seus eleitores têm da posição que ocupa quando se dirige aos cidadãos norte-americanos. A antecipação diz respeito a essa dinâ-mica das formações imaginárias em que o sentido dado em uma posi-ção já está previsto pelo modo com que é constituído na posição do ou-tro. Obama, ao aceitar comprovar sua condição de cidadão americano mostrando sua certidão de nascimento, o faz mediante a imagem pre-visível que o povo americano faz da posição em que ele toma a palavra. Explicita-se o modo discursivo com que o problema da governabilidade e da formação política historiciza-se. É por essa via que a questão su-cessória presidencial aparece como acontecimento discursivo em dadas circunstâncias para o povo dos Estados Unidos.

Capítulo 11Do jogo de posições à formação discursiva

73

Do jogo de posições à formação discursiva

Chegamos aqui a um ponto em que os mecanismos discursivos de antecipação dados pela distribuição do dizer segundo as posições definem a maneira como as relações de sentido e de força desenham regularidades ou formações discursivas. Tudo se resume na força com que a posição determina sentido e sujeito. Certamente para conceber formação discursiva Michel Pêcheux liga às relações de força uma de-terminação ideológica. Ou, dito de outro modo, a posição pela qual se faz o sujeito e aquilo que ele diz é constituída pela ideologia, isto é, pelo modo de produzir sentido marcado por circuitos de forças cuja permanência como formação discursiva depende da anulação de uma para colocação de outra força em evidência. Vemos aqui uma espécie de radiografia da formação discursiva pela qual Pêcheux identifica o funcionamento do que chama de formação ideológica, ou seja, a po-sição dada em certa conjuntura sócio-histórica a partir da qual fica determinado o que pode e não pode ser dito, o que deve e não deve ser dito. Daí que as palavras têm que ser necessariamente parte de uma formação discursiva para significarem. Isso equivale a dizer que, conforme a posição ideológica em que são faladas, as mesmas pala-vras acontecem com diferentes sentidos, tornando evidente que são proferidas a partir de uma formação discursiva ou outra. Portanto, o que define uma formação discursiva não é um conjunto particular de vocabulário, mas é o modo ou a posição ideológica com a qual certo vocabulário indica o processo de formação de discurso de que faz par-te, ou precisamente o mecanismo de efeitos de sentido que funciona nele. Em síntese, nos termos de Michel Pêcheux, sempre que se fala em formação discursiva, remete-se a algo como formação ideológica, caracterizando-a enquanto tal, isto é, enquanto processo histórico de efeitos de sentidos.

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Capítulo 12A definição discursiva de ideologia

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A definição discursiva de ideologia

Tocamos algumas vezes, em trechos anteriores, no termo ideologia. Mas vamos agora verificar como essa noção tem uma especificidade na Análise de Discurso. Entendam que nos refirimos a um modo de conce-ber a ideologia que não se encontra em versões variadas do marxismo, em filosofia ou sociologia.

Deixe-nos tentar ser ainda mais claros. Há um sentido historica-mente cristalizado para a palavra ideologia que, por mais que se tente fazê-lo deslocar e derivar outras possibilidades de sentido, sempre in-siste em se impor. Não é o caso de apresentar aqui toda a história de formação desse conceito. Além de não termos espaço suficiente para isso, fugiríamos do nosso objetivo. De qualquer modo, é preciso pelo menos indicar a rede conceitual que deriva e reverbera a forma com que certa acepção tradicional de ideologia circula nos mais diferentes contextos sociais e acadêmicos. Comecemos por esboçar de que modo as sucessivas derivações do conceito de ideologia sempre apresentam um elemento que se repete. Para irmos mais rápido, vamos partir da maneira com que o termo está dicionarizado, com base apenas em um competente dicionário de língua portuguesa: Dicionário Houaiss da lín-gua portuguesa, disponível no sítio da UOL.

Esse dicionário traça a origem das acepções de ideologia desde sua proposição, no âmbito do materialismo iluminista, do filósofo francês Des-tutt de Tracy (1754-1836). Depois passa imediatamente, já por extensão, às acepções recobertas pelo marxismo em que a ideologia aparece sempre como um conjunto de ideias e visão de mundo cuja propriedade é de mas-carar sua finalidade de dominação de um grupo econômico sobre outro.

Em seguida, considera uma perspectiva mais ampla em que a ide-ologia inclui tanto formas de consciência social que visam à dominação quanto as que visam reagir e se contrapor à dominação. Nesse caso, há ideologia tanto do lado do dominador quanto do lado do dominado.

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Figura 32 – Figura, prato e livro. Anita Malfati. 192-.

Análise do Discurso

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Na sequência, acrescenta a acepção de ideologia em voga no campo da sociologia, isto é, sua definição como sistema de ideias, crenças, tra-dições construídos e defendidos em função de interesses e compromis-sos institucionais de ordem moral, religiosa ou política. Desse modo, finalmente o dicionário chega ao senso comum da noção de ideologia como “conjunto de convicções filosóficas, sociais, políticas etc. de um indivíduo ou grupo de indivíduos.”

Notemos que em qualquer dessas acepções registradas nesse di-cionário repete-se o mesmo traço conceitual implícito e inseparável da noção de ideologia, ou seja, o fato de que a ideologia é o limite entre o falso e o verdadeiro, entre o sentido literal e o manipulado. Para sermos mais claros, basta lembrarmos os debates políticos em que as propostas de melhor governo sempre se tomam como as que mais per-to da verdade estão no que diz respeito aos interesses da sociedade em sua totalidade. Por isso é que se diz que, na universidade, o conheci-mento deve ser desvinculado de qualquer ideologia. E, ainda mais, a única via para chegar à verdade, seja ela social, política ou jurídica, é o saber científico. Na ciência, não há lugar para a ideologia, já que essa sempre se refere a conjuntos partidários de ideias e visão de mundos. Certamente, a definição comporta um preconceito contra os cientis-tas, do qual a Análise de Discurso não partilha. Trata-se aqui somente de observar as maneiras muito ortodoxas de definir ideologia.

Foi isso que fez com que Michel Foucault evitasse em toda sua obra empregar, de modo teórico e analítico, o conceito de ideologia. É que, do modo com que esse termo estabelece-se no campo das ciências humanas, o intelectual que o utiliza está comprometido com uma perspectiva que acredita na separação entre o que é desinteressadamente mais científico e verdadeiro e o que é apenas estratégia de manipulação e falsificação da realidade. Em últimos termos, fica aí implícito o compromisso com uma crença nos fatos como um dado natural sempre sujeito a ser falseado por esse ou aquele sistema de pensamento. Eis aí a razão porque o autor de A arqueologia do saber simplesmente evitou trabalhar com o conceito de ideologia. Vejamos como ele justifica a recusa do uso dessa noção:

Capítulo 12A definição discursiva de ideologia

77

Em certa concepção que o meio universitário faz do marxismo ou em

certa concepção do marxismo que se impôs à universidade, há sem-

pre no fundamento da análise a idéia de que as relações de força, as

condições econômicas, as relações sociais são dadas previamente aos

indivíduos, mas, ao mesmo tempo, se impõem a um sujeito de co-

nhecimento que permanece idêntico salvo em relação às ideologias

tomadas como erros.

Chegamos assim a esta noção muito importante e ao mesmo tempo

muito embaraçosa de ideologia. Nas análises marxistas tradicionais a

ideologia é uma espécie de elemento negativo através do qual se tra-

duz o fato de que a relação do sujeito com a verdade ou simplesmente

a relação de conhecimento é perturbada, obscurecida, velada pelas

condições de existência, por relações sociais ou por formas políticas

que se impõem do exterior ao sujeito do conhecimento. A ideologia

é a marca, o estigma destas condições políticas ou econômicas de

existência sobre um sujeito de conhecimento que, de direito, deveria

estar aberto à verdade. O que pretendo mostrar nestas conferências é

como, de fato, as condições políticas, econômicas de existência não

são um véu ou um obstáculo para o sujeito de conhecimento, mas

aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimento e, por

conseguinte, as relações de verdade. (FOUCAULT, 2002, p. 26).

O trecho pode ser um tanto longo, mas é justamente para mostrar que a razão pela qual o conceito de ideologia está ausente da Análise de Discurso de estilo foucaultiano é a mesma pela qual ele se encon-tra presente como o próprio fundamento da escola francesa de Análise de Discurso fundada por Michel Pêcheux. Explicitando as objeções ao conceito, Foucault eliminou o termo de seu vocabulário analítico. Mi-chel Pêcheux, por sua vez, encarando o mesmo obstáculo elabora uma outra noção de ideologia.

Tanto em um quanto em outro o problema passa pelo estatuto do sujeito. Mesmo quando se trata da produção do saber, o sujeito do co-nhecimento é sempre efeito das condições em que enuncia, nunca uma entidade a priori neutra e desvinculada do objeto de seu discurso. Lem-

Análise do Discurso

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bremos: para Foucault, o sujeito é feito das próprias relações de poder que anuncia ou denuncia. Isso em Pêcheux equivale ao postulado de que não há sujeito sem ideologia.

Bem, não vamos pensar que Orlandi quer justificar o uso do con-ceito se referindo ao conceito que Foucault rejeitou e Pêcheux acolheu. Nada disso. A ideia é radicalmente outra, isto é, criar uma definição dis-cursiva de ideologia, ou seja, uma definição que a mostre como um fun-cionamento no discurso. Fica fácil notar porque Orlandi (2003, p.45), logo de início, introduz o polêmico conceito dizendo que “[...] um dos pontos da Análise de Discurso é re-significar a noção de ideologia a partir da consideração da linguagem.”

“A ideologia não é, pois, ocultação, mas função da relação necessária

entre a linguagem e o mundo.” (ORLANDI, 1996, p. 31).

Pensemos na afirmação comum de que o sentido depende da in-terpretação. Daí logo se deduz que o que vem primeiro é o ato de inter-pretar. Em outros termos, o sentido não existe antes da interpretação, nem de modo figurado, nem de modo literal. O pressuposto é de que a relação entre homem e o mundo sempre leva a um ato de interpretação. Orlandi (2003, p. 45) deixa isso ainda mais claro: “[...] diante de qual-quer objeto simbólico, o homem é levado a interpretar, colocando-se diante da questão o que isso quer dizer?”

O caso é que esse movimento sempre se dá em rede na história e sempre como efeito de luta entre posições. Muitos sentidos entram em confronto estabelecendo relações que, como já vimos, levam ao mesmo ou ao diferente. Mas o sentido que deve responder à questão “O que isso quer dizer?” não pode ser qualquer um. É bem por isso que a interpre-tação deve aparecer como evidente e inquestionável. E como a interpre-tação se coloca ante a possibilidade de múltiplos sentidos para o dizer, é necessário um mecanismo para que uma relação de sentido se imponha como evidente em detrimento de outro.

Capítulo 12A definição discursiva de ideologia

79

Pensemos em como ficou mais do que evidente que o verso do samba Amélia, de Mário Lago e Ataulfo Alves, “Amélia é que era mu-lher de verdade” só pode literalmente ter um sentido machista, apesar de o compositor ter se defendido e argumentado que só quis mostrar como a mulher pode dominar o homem. Mas o deslocamento não se dá porque em sua historicidade o sentido produzido pelas inúme-ras vezes em que se repetiu o mesmo verso ficou tão evidente que se apagou nele a possibilidade de vir a ser outro. Nesse mecanismo é que está a definição discursiva de ideologia: a ideologia em Análise de Discurso é modo de produzir sentido.

Diz Hannah Arendt: 1. As ideologias desenvolvem sua tarefa tão bem

que preservam a pessoa de fazer qualquer experiência. 2. O poder

[...] não pode impedir o início, o acontecimento, mas pode tentar,

um instante depois, abortá-lo, ou seja, frear o que aconteceu, sepa-

rando-nos do acontecimento. Com efeito, o real desperta em nós

um maravilhamento que nos atrai. A ideologia nos “preserva” dessa

experiência, freia-a e nos separa dela; assim, nossos pensamentos

caminham sozinhos, separados de uma experiência. As ideologias

– diz ainda Arendt – não se interessam nunca pelo milagre do ser.

3. O pensamento ideológico torna-se independente de qualquer

experiência, por isso não pode comunicar nada novo, nem mesmo

quando se trata de um fato que acabou de acontecer. (ARENDT, H.

A condição humana. Tradução Roberto Raposo. Rio de Janeiro:

Forense Universitária, 2007.)

Vejamos o apelo contido no verso que se ouve na canção de Ca-zuza: “Ideologia, eu quero uma pra viver”. Ele pode ser tomado como uma alegoria da dimensão necessária do conceito de ideologia em Análise de Discurso. É isso mesmo. Não é que Cazuza criou sua can-ção como se fosse um analista de discurso. É que na letra e no título de sua música o cantor e compositor colocou sobre a ideologia o mesmo problema posto pela escola francesa de Análise de Discurso. Diante das contingências do mundo, nas mais variadas situações, o sujeito só

Figura 33 – O pintinho. 25 de agosto de 2011.

Análise do Discurso

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existe pelo trabalho da ideologia, isto é, pelo processo de linguagem o falante se constitui, de modo inconfundivelmente evidente e o sentido de suas palavras. A chave do processo está no ato incessante de in-terpretação. As pessoas precisam se colocar no mundo interpretando. Não dá pra viver sem sentido. Mas o sentido e o sujeito só se produ-zem à medida que se apaga para aquele que fala o fato de que o sujeito em que ele se torna e o sentido do que diz é efeito de interpretação. O homem está condenado a interpretar sejam quais forem as condições de existência em que se encontra. Mas ele precisa acreditar que o sen-tido que dá às coisas é um fato natural que preexiste a qualquer ato de interpretar. Daí que metaforicamente querer uma ideologia para viver, conforme gritava Cazuza em sua canção, era discursivamente apoiar--se na crença do sentido como dado natural, evidente e na imaginária impossibilidade de viver no não sentido.

“[...] a ideologia, então, é o apagamento, para o sujeito, de seu movimento de interpretação, na ilusão de ‘dar’ sentido.” (OR-LANDI, 1996, p. 95).

O que mais caracteriza a definição discursiva de ideologia é o fato de ela designar um processo que constitui a realidade. Note bem: a ideo-logia pensada como um funcionamento discursivo não representa, mas constitui, incluindo sujeito e sentido. A propósito, mesmo o formato das subjetividades ao longo da história é efeito de ideologia, analisável estritamente para cada época, ou para um estrato histórico e não outro. Isso aparece, por exemplo, no modo como alguém se definia na posição de quem trabalhava no século dezesseis, no século dezenove e no século vinte e um. Tudo depende do regime de memória disponível em arquivo e das modalidades de dizível para que o falante refira-se a si como sujei-to. Veremos a seguir como isso tem a ver com a passagem da forma da subjetividade do regime religioso para o regime jurídico.

“Na transparência da

linguagem, é a ideo-

logia que fornece as

evidências que apa-

gam o caráter mate-

rial do sentido e do

sujeito.” (ORLANDI,

1996, p. 51).

Capítulo 13A história das formas-sujeito

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A história das formas-sujeito

Eni Orlandi apresenta duas maneiras de o sujeito se referir a si mesmo enquanto fala. Na primeira, ele aparece sob a forma da contra-dição, ou seja, ele se mostra como livre e responsável por suas ações. No entanto, não se dá conta de que para responder livremente por seus atos, antes tem que se submeter a certa ordem de discurso. (ORLAN-DI, 1996, p. 50).

Tentemos compreender como isso acontece, através do diálogo a seguir, retirado do filme Viver a vida, de Jean-Luc Godard.

Retomemos o diálogo entre as duas persona-gens. Depois de ouvir a amiga contando como se tornou prostituta, Nana comenta:

- Isso não é nem um pouco divertido.

- Não mesmo. Mas não sou responsável, afirma a

amiga.

Imediatamente Nana retruca:

- Acho que somos sempre responsáveis pelo que fazemos. Somos livres.

Eu levanto a mão, eu sou responsável. Eu viro a cabeça, eu sou respon-

sável. Eu sou infeliz, eu sou responsável. Eu fumo, eu sou responsável.

Eu fecho os olhos, eu sou responsável. Eu esqueço que sou responsável,

mas eu o sou.

Para compreender em que consiste a contradição como caracterís-tica do sujeito na atualidade, conforme propõe Orlandi, temos de con-siderar as falas de Nana e de sua amiga como posições que compõem o mesmo sujeito. Isso quer dizer que o que a amiga de Nana diz pode ser dito também pela própria Nana, assim como o que diz Nana pode ser dito por sua amiga.

13

Figura 34 – Cena do filme Viver a vida, de Jean-Luc Godard.

Análise do Discurso

82

Assim, ambas as afirmações – “não sou responsável/sou respon-sável” – fazem parte da composição discursiva de uma mesma forma--sujeito, o da contradição. Proferir uma ou outra dessas afirmações é ocupar uma posição no discurso diretamente contraposta a outra. O que apaga o caráter contraditório da fala e do sujeito é o fato de ele não saber que, para dizer X, precisa necessariamente deixar de dizer Y. Isso sem que ambos os dizeres deixem de estar presentes na sua fala.

“A forma-sujeito histórica que corresponde à da sociedade atual re-

presenta bem a contradição: é um sujeito ao mesmo tempo livre e

submisso.” (ORLANDI, 2003, p. 50).

A subjetividade, portanto, tem uma história, isto é, nem sempre fomos como nos percebemos e como lutamos para ser hoje: coerentes e responsáveis pelo que fazemos e pelo que dizemos. Qual seria a traje-tória histórica que desenha formas diversas de ser sujeito? Examinemos um primeiro esquema proposto por Orlandi (2003):

Sujeito - Sua forma histórica

As formas-sujeito na histórica

Sujeito Religioso: Idade Média

Subordinação explícita ao discurso religioso; crença na Letra

(submissão a Deus)

Sujeito-de-direito: Idade Moderna

Subordinação implícita ao dircurso jurídico; crença nas Letras

(submissão ao Estado e às Leis)

Por esse esquema vemos que, ao longo da história, o sujeito não se faz nunca por ele mesmo. O que modifica são os sistemas e dispositi-

Capítulo 13A história das formas-sujeito

83

vos institucionais que geram formas de ser sujeitos. Primeiro, da Idade Média até o Renascimento, era a religião que ditava a maneira pela qual os indivíduos deveriam ser convertidos em sujeitos. É o tempo em que para ser sujeito o indivíduo deveria crer na letra da sagrada escritura e se submeter inteiramente à vontade e aos desígnios de Deus. Tem-se a forma do sujeito religioso em plena vigência na Idade Média.

Na passagem do Renascimento para a Modernidade, outros siste-mas institucionais entraram na história determinando o modo de o in-divíduo converter-se em sujeito. É a etapa da criação do Estado e das leis. Nesse momento, o que define o sujeito não é mais puramente a submissão, mas a contradição, pois o sujeito deve ser submisso e au-tônomo ao mesmo tempo. Eis o formato do sujeito--de-direito, ou aquele que responde pelos seus atos, define suas leis, mas só que desde que autorizado para tanto.

De modo que a melhor maneira de descrever e definir o sujeito--de-direito é através do regime de linguagem que passou a determinar o modo de dizer. Por isso, os termos sujeito-de-direito e sentido literal passaram a significar a mesma coisa. As características do sujeito-de-direito passam a ser definidas pela:

Ӳ crença na precisão sustentada pelo mecanis-mo lógico;

Ӳ preservação da ideia de autonomia, de liber-dade individual;

Ӳ respeito a não contradição;

Ӳ garantia de submissão ao saber.

Figura 35 - Trecho da adaptação de O processo para os qua-drinhos.

Figura 36 - Cena do filme The Trial, adaptação para o cinema da obra O processo, de Franz Kafka, dirigida por Orson Wells.

Análise do Discurso

84

Já os elementos que caracterizam o sentido literal, também presen-tes no conceito de sujeito-de-direito, são:

Ӳ independência do contexto;

Ӳ caráter básico, discreto, inerente, abstrato e geral.

Assim o sentido literal carrega a mesma sina que a forma do su-jeito-de-direito, isto é, deve identificar uma coisa a si mesma – um tapete é um tapete – estabilizando o fluxo das percepções ou do acon-tecimento. Do mesmo modo, a foma sujeito-de-direito deve sempre apresentar-se coerente a si mesmo, sem se dar conta de que o modo de o indivíduo subjetivar-se está propenso à falha ou ao deslize con-forme a determinação ideológica que ocupa no discurso para falar. Ocorre que o sentido literal é uma ilusão histórica, necessário, mas ilusório. Nesses termos, a ilusão do sentido literal é produto histórico, logo efeito de discurso. Longe de uma compreensão – histórica, bio-lógica e natural dada pelo senso comum –, a determinação do sujeito vem dos modos de assujeitamento constitutivo das formas-sujeito, no caso o da modernidade na forma do direito ou do regime jurídico. Daí que sua instituição histórica só pode se dar através da relação do sujeito com a língua. É a língua, portanto, que deve ser sistematizada a fim de garantir que o sujeito se constitua e sempre se apresente coe-rente e transparente como produto da relação do falante com a língua. A história da gramática com suas regras de bem falar está diretamente ligada à forma do sujeito-de-direito. Conclui-se, desse modo, a histo-ricidade da noção de sujeito em que se marca a ambiguidade da noção de sujeito: ele determina o que diz, ele é determinado pelo que diz. Aqui estão as bases do assujeitamento:

Ӳ contradição;

Ӳ liberdade sem limites;

Ӳ submissão sem falhas.

Capítulo 13A história das formas-sujeito

85

Esses traços devem ser estruturados na forma de um discurso que seja instrumento límpido do pensamento e reflexo da realidade. A gra-mática aqui entra como função primordial. Sujeito na gramática, ele deve fornecer ao sujeito ferramentas para que este ao falar torne-se mestre de suas palavras, sempre tendo presente a seguinte questão: quem garante que sou “eu”, o sujeito que diz “eu penso”, que pensa? A regra é que o pen-samento seja produzido como efeito de um sujeito. É pela gramática que se chega ao ideal de completude, o que se opera por elementos gramaticais sintaticamente categorizados: sujeito, predicado, agente, paciente, causa, efeito. À medida que essas categorias estruturam uma sentença, obede-cem a pressupostos conceituais a partir dos quais o mundo enunciado na sentença deve aparecer como logicamente estável.

Temos aqui o que Orlandi (2003) chama de o real da gramáti-ca, ou seja, o plano da realidade que possibilita que o mundo exista como efeito de estrutura lógico-gramatical da linguagem. Em outros termos, o mundo é o que é gramaticalmente possível; o mundo é efeito do discurso estruturado pelas regras fundamentais da lógica e da gramática. Fora da linguagem vinculada à história, o sujeito e o mundo não existem.

Mais uma vez voltemos ao mesmo ponto: o que compõe a maneira discursiva de constituir sujeito são os processos da língua, da ideologia e da história. Esses são elementos geradores da posição do sujeito no discurso. Basicamente, o modo de constituição do sujeito está fora dele, isto é, não se trata de um processo produzido na consciência do indiví-duo. Pelo contrário, a consciência individual, forma que corresponde a uma subjetividade, é produto de discurso.

Assim, de que maneira o indivíduo que fala pode ter acesso aos modos através dos quais ele está sendo levado a se tornar o sujeito do discurso? Em verdade, essa experiência é inacessível ao falante. Quan-do ele se pega sendo levado a falar, já se encontra à beira de se con-verter em sujeito de uma ordem discursiva que o interpela mediante o inconsciente.

Análise do Discurso

86

Vamos recorrer a outra cena do mesmo filme de Godard, Viver a vida, para ter uma tímida compreensão do que acontece na relação do sujeito com a língua e com o discurso. Nessa cena, Nana encontra um homem num café de Paris. Os dois conversam sobre a relação entre o indivíduo e a palavra.

Figura 37 – Outra cena do filme Viver a vida.

É estranho. De repente, não sei o que dizer. Isso sempre me ocorre. Sei

o que quero dizer. Estou pensando sobre o tempo. É isso que quero

dizer. Eu penso antes de dizer para saber se é bem isto que é preciso

dizer. Mas no momento de falar, eu não sou mais capaz de dizer. [...]

Por que é necessário sempre falar? Acho que muitas vezes não de-

veria falar, e sim ficar em silêncio. Por mais que alguém fale menos

as palavras significam.

Eu gostaria de viver sem falar. As palavras deveriam expressar exata-

mente o que queremos dizer. Será que as palavras nos traem? Falar

é um pouco arriscar-se a mentir. Como alguém pode ter certeza de

ter encontrado a palavra certa?

“[...] a noção de sujeito-de-direito se distingue da de indivíduo. [...]

há determinação do sujeito, mas há, ao mesmo tempo, processos de

individuação do sujeito pelo Estado.” (ORLANDI, 2003, p. 51).

Capítulo 13A história das formas-sujeito

87

Nana aqui está às voltas com a impossibilidade de não falar e com o fato de que as palavras quando caem em sua boca estão su-jeitas a falhas e expostas ao movimento de incompletude que é pró-prio do processo discursivo em incessante confronto e embate com descolamentos e rupturas. Vale a pena examinar o que diz Orlandi (2003, p. 52-54) sobre esse trajeto do discurso em pontos de desli-zamento. Aí, a luta do sentido para ser ideologicamente um tem que ver com o jogo, com a falha, com o acaso e também com a necessida-de. Em suas ocorrências escorregadias, as palavras tendem ao equí-voco significando de um jeito quando são proferidas para significar de outro. Da necessidade de encontrar a palavra certa, o sujeito se desestabiliza com o desencontro dos sentidos a que se vê exposto, daí a inquietação de Nana: “Como alguém pode ter certeza de ter encon-trado a palavra certa?” Mas o que é certo mesmo é que o movimento do discurso não se fecha, e isso é a propriedade que vem daquilo de que o discurso se serve para se fazer, ou seja, a materialidade da língua sempre transitando na história. Nunca é demais repetir: em Análise de Discurso, a língua não existe fora da história. E como o próprio da história é descontinuidade e ruptura, as produções de efeitos de sentido não se historicizam sem falha, sem equívoco. Tudo isso define também a condição com que o indivíduo é interpelado em sujeito. O falante se segura na língua e na história para se garantir como sujeito, mas tanto uma – a língua – quanto a outra – a história – são como corda ruindo em andaime sem apoio seguro.

Essa exposição ao deslizamento, essa permanência do movimen-to contra a estabilização, tudo isso é apagado pela ideologia. Acontece como a perda da experiência de que fala Hanna Arendt. Ao produzir o efeito de evidência, a ideologia satura o sentido e o sujeito apagan-do todos os seus vestígios materiais observáveis principalmente em uma língua que falha e uma memória ou história esburacada, o que Orlandi (2003) chama de “des-historização”. A evidência faz o sujeito significar como se tudo sempre fosse como aparece, destituído de seu laço com a historicidade. Mas é exatamente na superfície suturada do processo discursivo provocado pela ideologia que o trabalha que o analista de discurso atua. Do modo como Orlandi (2003) elabora

“Entre o jogo e a re-

gra, a necessidade e

o acaso, no confron-

to do mundo e da

linguagem, entre o

sedimentado e o a se

sedimentar na expe-

riência e na história,

na relação tensa do

simbólico com o real

e o imaginário, o su-

jeito e o sentido se re-

pelem e se deslocam.”

(ORLANDI, 1996, p.

50-51).

Análise do Discurso

88

as proposições analíticas da escola francesa de Análise de Discurso, o que fica perdido como processo em movimento nas condições de produção do sentido torna-se legível e interpretável. É o caso que va-mos ver a seguir do projeto de análise cujas bases estão no trabalho de interpretação que não se interessa em procurar sentidos ocultos, mas em se mostrar trazendo à tona gestos de interpretação apoiados e determinados pela ideologia.

Unidade DConstruindo a análise

Figura 38 – Do escritor e jornalista Millôr Fernandes.

Capítulo 14Do conceito ao trabalho de escavação do processo discursivo

91

Do conceito ao trabalho de escavação do processo discursivo

Aplicar os conceitos desenvolvidos nas unidades anteriores em exemplos

pontuais de análise.

Os conceitos e as considerações teóricas que desenvolvemos até aqui nos levam a compreender que o discurso como objeto de análise não é previamente dado, mas construído pelo próprio procedimento analítico. Nesse sentido, a escola francesa de Análise de Discurso tem uma maneira muito própria de conceber seu objeto de estudo. Esse objeto não é de natureza empírica, isto é, ele não é imediatamente per-ceptível nas palavras escritas ou faladas, muito embora seja na superfí-cie textual dos proferimentos escritos ou orais que o discurso se cons-trói. Lembre-se de que uma das primeiras coisas ditas no início deste livro é que a Análise de Discurso se interessa por homens falando.

Observemos agora como essa afirmação diz respeito a dois as-pectos implicados no procedimento analítico. O primeiro é que, ao falar, o homem se faz e é feito por discursos que atravessam sua fala. Segundo é que, na fala ou no exercício da linguagem oral ou escrita, há sempre um processo discursivo que determina a possibilidade de a fala derivar coerência e coesão em certos arranjos de palavras, e, por consequência, derivar efeitos de sentido. Pois bem, é esse processo que é construído pela análise. Daí o discurso é concebido como ob-jeto teórico. Isso quer dizer que, antes de ser o processo que se busca na análise, o discurso interessa como conceito que permite abordar a problemática do sentido no contexto onde se exerce a fala e como as coisas ou fatos são falados.

Tudo isso envolve o modo como a linguagem funciona e de como, a partir desse funcionamento, deve-se proceder à análise. Essa é a questão fundamental que Orlandi (2003) levanta ao atingir o dispositivo de análi-se, depois de haver exposto o aparato teórico que baliza a Análise de Dis-

14

Análise do Discurso

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curso de linha francesa. O mais importante é que o analista atente para opacidade do texto, isto é, de ele não remeter a sentido nenhum a não ser pelo atravessamento de uma ordem de discurso. De que maneira? Ele não deve se deixar levar pelas evidências que compõem a superfície textual, ou seja, o analista deve escutar o discurso que ali ressoa para além das aparentes estruturas de coerência, de coesão, enfim, do encadeamento de palavras que caracterizam a superfície de um texto tomado como solo, em que o discurso se organiza saindo da dispersão que lhe é própria.

O discurso acontece, como efeito de sentido, no plano textual; aí ele se encontra deslocado em nível diferente daquele em que, aparentemen-te, ele se organiza mediante uma frase determinada ou um conjunto de parágrafos, tal como se estrutura um texto ou um livro. O processo de formação de discurso tem a ver com relações de força e de sentido sob as quais se edifica uma textualidade.

Isso é o que diz a Análise de Discurso sobre o que ela se sustenta como dispositivo de interpretação. Não se trata de interpretar. O pro-blema não é saber se um discurso tem ou não tem sentido. A questão da Análise de Discurso é saber como se produz discurso como efeito de sentido. Nesse caso, analisar discurso é como desmontar uma peça para examinar de que maneira foi fabricada e de que modo ela funciona. Sim, porque, como diz Michel Foucault, se o discurso é algo fabricado, então ele tem um funcionamento, como peça fabricada ele produz seus efeitos. Mas isso só se pode descobrir desmontando-o a partir de sua superfície aparente, para assim restituir o processo pelo qual o discurso se faz.

A interpretação está presente em toda e qualquer manifestação da

linguagem. Não há sentido sem interpretação. Mais interessante

ainda é pensar os diferentes gestos de interpretação, uma vez que as

diferentes linguagens, ou as diferentes formas de linguagem, com

suas diferentes materialidades, significam de modos distintos. (OR-

LANDI,1996, p. 9).

Capítulo 14Do conceito ao trabalho de escavação do processo discursivo

93

Para restituir o processo que levou à fabricação do discurso, ou o que chamamos processo discursivo, é imprescindível adotar critérios. O primeiro é de ordem conceitual e pressupõe todo o estudo que rea-lizamos até aqui. O que significa partir dos conceitos e não dos dados empíricos, isto é, da forma e do conteúdo do texto? Pensemos na for-mulação de promessas de campanha eleitoral. Na forma como o can-didato se dirige a seus eleitores e promete um conjunto de melhoria para a cidade, não importa o lugar empírico a que remete o nome da cidade, interessa sim observar a cidade se produzindo como discurso ou como efeito de sentido.

Analisando por esse viés, têm-se consequências tão fortes a ponto de ser possível afirmar que a cidade como discurso na fala de um can-didato não se constrói da mesma maneira que na fala de seu oponente. Ou, de modo ainda mais radicalmente constitutivo do discurso, diz-se que as condições de produção de discurso sobre certa cidade em um regime socialista não podem ser as mesmas que se observam em um regime capitalista. Veja que o que está funcionando aqui como critério conceitual da análise tem a ver com conceitos, como:

a) interdiscursivo (memória discursiva) – o conjunto de formu-lações que disputam múltiplos sentidos dando lugar à cidade como efeito de discurso;

b) imaginário – as imagens de cidade projetadas a partir de dadas posições de enunciação;

c) real – o que escapa a qualquer ordem simbólica de determina-ção de sentido para a cidade.

Esse exemplo mostra tanto o discurso como produção quanto como objeto de análise. Esses elementos podem ser detectados a partir de uma hipótese temática. É o que Orlandi (2003) aponta em termos da construção do corpus e do objetivo do trabalho analítico. A sugestão de Orlandi é a descrição baseada na escolha temática. Acabamos de lançar o exemplo da campanha eleitoral focalizando a sucessão administrativa

Análise do Discurso

94

de uma cidade. A proposta é que os conceitos sejam o princípio a partir do qual o analista vai abordar o material bruto, isto é, as formulações sob as quais certo discurso está sendo fabricado.

Pensando nos conceitos como elementos do artefato analítico, co-meça-se por observar fatos de linguagem levando em conta a materia-lidade linguística e a memória discursiva. Trata-se de buscar que pala-vras, que estruturas sintáticas formam um enunciado e que memória de sentidos pode estar relacionada a certo modo de dizer a cidade. Nesse ponto, fica claro como critérios teóricos orientam o trabalho de produzir montagens discursivas. O que isso quer dizer? Por exemplo, mediante o conceito de interdiscurso, levantam-se várias outras pos-sibilidades de dizer; mediante o conceito de imaginário, observam--se os modos de dizer que não podem ser formulados diferentemente; mediante o conceito de real, observa-se o problema que desencadeia uma crise de sentidos, uma indecidibilidade de interpretações. Desse modo, chega-se por fim a mostrar como funciona o discurso ao se produzir como efeito de sentido.

Isso equivale a definir quais são as propriedades do discurso ana-lisado. Obviamente tais propriedades não existem a não ser como ob-jeto construído pelo viés do analista. É isso: a construção do analista diz respeito ao fato de que o discurso a ser analisado não está dado de imediato no material de linguagem levantado. O discurso não se dá como algo já posto. Para se chegar a tal construção, é preciso consi-derar que o corpus discursivo só é produzido e organizado em função do material selecionado e da pergunta do analista. No caso, a pergunta que se aplica é a seguinte: em dado regime discursivo de campanha eleitoral, que cidade pode se produzir como efeito de discurso?

Veja que o discurso é, portanto, o objeto a que se chega por proce-dimentos conceitualmente amparados. Mas não basta dispor e dominar conceitos. É preciso colocar as mãos na massa, assim como faz o confei-teiro depois de se inteirar teoricamente dos elementos que distinguem a consistência de um pão de trigo da de um pão de aipim.

Capítulo 14Do conceito ao trabalho de escavação do processo discursivo

95

Bem, quando se trata da matéria bruta de uma formulação dis-cursiva, é preciso efetuar a passagem da superfície material – o texto tal qual se apresenta – para a dessuperficialização – o discurso como efeito de sentido que se procura. É uma questão de método, diz Or-landi (2003). A travessia do ponto de partida ao de chegada na análise compõe-se de duas etapas. Nos termos de Orlandi, a primeira descre-ve a passagem da superfície linguística ao objeto discursivo. Trata-se de dessuperficializar o discurso examinando na materialidade da lin-guagem o como se diz, quem diz, em que circunstâncias se diz. Isso se aplica ao processo de enunciação em que se sinalizam pistas do modo pelo qual certo discurso – no caso do exemplo anterior a eleição em uma cidade – se textualiza no material levantado.

Ao levar em conta a enunciação, é o caso de levantar a imagem que se tem de um eleitor, de um cidadão, de um candidato a prefeito, de um movimento e espaço urbano. O conceito de que se serve nesse levanta-mento é o de formação imaginária, ou seja, o que permite chegar aos traços que remetem ao lugar de que fala X, Y, formando as relações de força na trama do discurso, ou da produção de efeitos de sentido. Nessa primeira etapa da análise, ficam desmontados os efeitos da ilusão do que o que é dito só pode ser dito de uma maneira. Assim é que da matéria bruta, por fim, atinge-se o objeto teórico, isto é, o discurso. Esse objeto resulta da análise do que é dito em uma enunciação e o que é dito em outras, segundo outras condições de produção e outras determinações da memória discursiva.

A segunda passagem é aquela em que o analista já está de posse do discurso em seu processo de produção e funcionamento. Nesse ponto, o analista vem do objeto ao processo discursivo. A análise nessa eta-pa consiste em sair do nível do objeto acabado – o discurso em suas propriedades – e analisar a discursividade. O analista deve se colocar de tal modo que, mesmo implicado como sujeito que analisa <inserir quadro lateral> “[...] o analista não só procura compreender como o texto produz sentidos, ele procura determinar que gestos de interpreta-ção trabalham aquela discursividade que é objeto de sua compreensão. Em outras palavras, ele procura distinguir que gestos de interpretação

Análise do Discurso

96

estão constituindo os sentidos (e os sujeitos, em suas posições).” (OR-LANDI,1996, p. 88). <fechar quadro lateral>, ele deve tomar distância e expor os funcionamentos linguísticos e ideológicos que compõem o objeto discursivo. Pensemos no que seria tomar um determinado enun-ciado de campanha ou fragmento dele como este:

Você tem um terreno de posse?

E relacioná-lo com outro, como:

Você é dono de sua propriedade?

O exemplo se aplica à campanha eleitoral da prefeitura da cidade de Florianópolis, em 2000, em que, ao fazer a pergunta, o candidato se referia à situação problemática de vários proprietários de terrenos. Es-ses, embora possuindo documento comprovando a compra, não conse-guiam retirar a escritura do imóvel devido à situação de clandestinidade de vários loteamentos na cidade.

Relações desse tipo permitem desmontar o objeto discursivo, fa-zendo aparecer o processo que lhe dá forma.

O que exercitamos aqui é apenas uma possibilidade de atingir um processo discursivo. Ele sempre pode ser outro. Em qualquer ponto que se pegue na superfície textual, o analista nunca deve ficar seguro de seu fechamento em torno de uma relação de sentido dada de uma vez por todas. Por isso, é preciso recorrer, não por dentro da planície textual; é preciso deixar de lado o fio condutor de sua coesão e coerên-cia. É preciso rachar sua superfície e encontrar por baixo ou entre seus fragmentos de palavras e frases outros vindos de alhures, prestando-se a compor, desde uma região do interdiscurso ou da memória discur-siva, um efeito de sentido. É quando ali na imagem que a superfície

“A noção de interpre-tação passa por ser

transparente quando na realidade são muitas

e diferentes suas defi-nições. Na maior parte das vezes os teóricos a

utilizam como se ela fos-se evidente [...]” (ORLAN-

DI,1996, p. 9).

“Com efeito, pode-se considerar que a interpretação é um gesto, ou

seja, ela intervém no real do sentido.” (ORLANDI, 1996, p. 84).

Capítulo 14Do conceito ao trabalho de escavação do processo discursivo

97

textual dá, de unidade e coerência, de atribuição segura de autoria, percebemos que o que se diz ou escreve de uma maneira bem pode ser de outra. Chega-se assim ao objeto discursivo. É quando ainda, sem nos contentar com o ponto a que se chega na interpretação, aceitamos o risco de cair em abismo, renunciar ao imaginário de que nem tudo está completo e nos deparar com o vazio do real. O analista toca o processo discursivo e o movimento múltiplo e incessante dos sentidos no âmbito do interdiscurso.

Capítulo 15Textualidade e discurso: vivem Marias e Clarices

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Textualidade e discurso: vivem Marias e Clarices

O procedimento analítico que acabamos de expor e exercitar nos serve para deixar claro que a textualidade não passa de plataforma a partir da qual o discurso se superficializa. Os conceitos que aplicamos a esse processo analítico indicam os pontos a partir dos quais se verifi-cam jogos de superfície que constituem o discurso com seus efeitos de autoria e de sentido. Isso equivale a dizer que a dessuperficialização do discurso nos leva à textualidade e à função-autor como produto do pro-cesso discursivo que atua por baixo da superfície textual.

Para ampliar a compreensão, vamos trabalhar agora sobre o exem-plo que tem um texto como ponto de partida. Propomos aqui o diálogo entre Clarice Lispector e Maria Martins:

- Se você tivesse que recomeçar sua vida do início, que destino escolhe-

ria, se é que se escolhe destino?

- Eu seria uma artista como sou, livre e libertada.

- Maria, a vida é difícil. Mas vale a pena viver?

- Vale, Clarice, porque a morte, afinal, é a última coisa de onde a gente

não pode voltar. Apesar de tudo, acho a vida uma beleza.

(LISPECTOR, Clarice. De corpo inteiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 81.

Trecho da conversa entre Maria Martins e Clarice Lispector.)

Aplicando-se a esse diálogo, muitas interpretações podem ser fei-tas. Mas lembremos que não interessa precisamente o sentido que se venha atribuir ao enunciado dessa conversa. O que interessa é compre-ender como, entre muitas, alguma interpretação se pode fazer aqui.

Tomemos um caso bem concreto de leitura: a cena em que o pro-fessor e crítico de literatura, Raul Antelo, propõe certa interpretação

15

Análise do Discurso

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no ponto em que Maria Martins lança certas palavras a Cla-rice Lispector tematizando a relação entre vida e morte. Nesse preciso trecho da enunciação, o crítico inscreve a fala de Maria Martins no discurso nietzschiano. Veja bem que trabalhar so-bre esse exemplo de gesto interpretativo é ousado e desafiante. Por isso, ao retomar as ponderações de um respeitável especia-lista em literatura brasileira, temos de atentar que não se trata de discutir a validade ou pertinência da interpretação. Isso não é o interesse do analista de discurso. O que interessa é com-preender como, a partir do dispositivo teórico da Análise de Discurso, pode-se explicitar a interpretação proposta por An-telo, nome que tão somente deve indicar a posição de sujeito na leitura, nunca a figura empírica da pessoa do leitor. É hora de tomar os conceitos analíticos considerados até aqui para expli-citar o funcionamento de um processo interpretativo. A inter-pretação proposta pelo crítico é a seguinte:

Há aí um ultrapassamento da noção de limite, de vanguarda, de ruptu-

ra, relacionada, em primeiro lugar, com uma teoria como a do eterno

retorno, e, em segundo lugar, com uma clara definição da felicidade

como gaia ciência. A felicidade, dizia Nietzsche, consiste em ingerir in-

termitentemente, à maneira dos homens dionisíacos. Só podemos ter

esperança, dizia o filósofo, quando uma ruminação permite conhecer

tanto o infortúnio quanto a felicidade, de modo que, assim como o

pensamento da vida inclui, a seu modo, o da morte, da mesma for-

ma, o pensamento dionisíaco nos dá acesso à concepção trágica da

vida, a concepção do entre - lugar marginal. É o que, mais tarde, será

retomado por Adorno em Mínima moralia. (Fonte: Fala oral comen-

tando um projeto de dissertação.)

Vê-se logo que o texto da conversa entre a escritora Cla-rice Lispector e a escultora Maria Martins é aqui interpretado nos termos do que podemos chamar a discursividade nietzs-chiana, ou seja, do que se pode e se deve dizer a partir de uma dada posição inaugurada no campo da filosofia, em relação colateral com o espaço discursivo da teoria literária. Emprega-Figura 40 - O Impossível III. Maria Martins. 1946.

Figura 39 - Clarice Lispector e Maria Martins.

Capítulo 15Textualidade e discurso: vivem Marias e Clarices

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-se aí um dispositivo analítico, quer dizer, um conjunto de conceitos próprios do espaço discursivo a que se remete o texto da conversa. Den-tre eles, destacam-se os conceitos de eterno retorno e de gaia ciência. Tais conceitos remetem aqui a precisas relações de sentido. Mas o que importa é que os conceitos ou os sentidos não seriam os mesmos se o texto em questão fosse levado a interpretar a partir de outro lugar discursivo. É isso que Orlandi (2003) propõe como sendo da ordem da especificidade do dispositivo analítico, isto é, o campo de questões em que se efetua a análise – no caso o cruzamento entre uma teoria literária e uma perspectiva filosófica.

Retomemos ponto por ponto o procedimento analítico que está por baixo da interpretação formulada. É como se acompanhássemos, a modo de making-off, o trajeto dos gestos interpretativos procedidos pelo professor e crítico de literatura Raul Antelo.

1) Dessuperficializando o discurso teoricamente pressuposto no texto tomado como objeto de análise, o primeiro gesto consiste em pinçar da superfície do texto o fragmento “[...] a morte é a última coisa de onde a gente não pode voltar”, resposta de Maria Martins a Clarice Lispector.

2) Em seguida, o gesto é de contrapor esse segmento a outros.

2.1) Em outra entrevista, anterior a essa, a mesma Maria Mar-tins, quando perguntada sobre como aguardar a morte, dis-se: “Tenho alma de cigana e ser-me-ia profundamente in-grato ter que fincar os pés na terra, em determinado lugar, até a visita da morte (aliás, não morremos, são os outros que morrem) […]” (O JORNAL, 9 nov. 1956).

2.2) A frase acrescentada como que en passant – “aliás, não mor-remos, são os outros que morrem” – é o epitáfio de Marcel Duchamp que só viríamos a conhecer em 1968: “D´ailleurs, c´est toujours les autres qui meurent.”

Análise do Discurso

102

2.3) A mesma frase é ainda o título de um roman noir de Jean François Vilar, em que o pesquisador Victor Blainville é chamado a investigar a morte de uma mulher cujo corpo jaz no passage du Caire, exatamente na mesma posição em que Maria Martins posou para Etant donnés.

2.4) Essa mesma frase é ressonância de outra escrita por Nietzs-che, pela primeira vez, em Humano, demasiado humano, e que foi copiada por Maria Martins em 1965, quando estava no Rio escrevendo uma biografia de Nietzsche, publicada naquele ano pela Civilização Brasileira: Os deuses maldi-tos I: Nietzsche. A frase do filósofo é assim: “A verdadeira imortalidade é o movimento, o retorno, e o retorno é tudo aquilo que, uma vez em movimento, se mescla com uma ca-deia integral de todo o ser como um inseto que, aprisiona-do em uma substância resinosa, torna-se imortal e eterno.”

O que se explicita nessa análise de Antelo é o movimento que parte da desmontagem do texto em análise (o da conversa entre Maria Martins e Clarice Lispector). Observa-se que o gesto associa ao dizer colocado em foco a outros atestáveis em outros espaços e tempos. A dessuperficialização consiste em mostrar o modo de circulação dos di-zeres destacando em seu acontecimento discursivo o quem diz, o quan-do diz, o onde diz – elementos da memória discursiva. Levanta-se assim a maneira como o gesto de interpretar mostra nele mesmo as diferentes possibilidades de leituras que produzem os sentidos do texto em foco. Veja que, em termos de procedimento, a análise consiste em perseguir, na história do dizer, os vestígios linguísticos que levam ao processo dis-cursivo em funcionamento no objeto analisado.

No recorte exemplificado, ocorre a passagem do objeto para o pro-cesso discursivo no ponto em que, a partir da relação de um dizer com outro, delineiam-se os contornos da formação discursiva, ou seja, aqui-lo que pode e deve ser dito a partir de uma posição ideologicamente constituída. Trata-se, no caso, de explicitar como se constitui o sentido do dizer “a morte é a última coisa de onde não se pode voltar”, tomado como eixo condutor do texto da conversa. Ao relacionar esse dizer com

Capítulo 15Textualidade e discurso: vivem Marias e Clarices

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outros em uma rede de filiação de sentidos, pode-se anotar como seu efeito se faz num ponto da memória discursiva conectando-o à forma-ção discursiva que aqui pode ser denominada nietzschiana. Isso pode acontecer independentemente do conhecimento do locutor, daquele que fala ou comete o ato de enunciação, porque a memória discursiva nada tem a ver e não depende da memória pessoal ou individual. Mesmo quando há intenção de fazer um dado proferimento, fazer cadeia com outros atestáveis na história, tal intenção já está implicada na memória discursiva, isto é, a intenção é apenas um dispositivo pelo qual o sujeito foi feito e tomado em seu dizer em certa posição de discurso.

A interpretação de Antelo, por mais que se apoie em elementos do-cumentais atestáveis em arquivos de bibliotecas, se pensada do ponto de vista discursivo, não toma os textos interpretados como “[...] documen-tos que ilustram idéias pré-concebidas.” (ORLANDI, 1999, p. 64). Ou seja, a fala de Maria Martins, tomada como fragmento textual em uma situação de entrevista com Clarice Lispector, não deve ser lida como mera ilustração das ideias de Nietzsche, como se essas fossem o sen-tido oculto daquela. Não. No momento, em que dados segmentos tex-tuais são recortados da superfície em que ocorrem para ser colocados em relação com outros ocorrentes em outra superfície linguística, são considerados como “[...] monumentos nos quais se inscrevem múltiplas possibilidades de leituras.” (ORLANDI, 2003, p.64).

Por isso, o texto analisado não se esgota em uma única leitura. O que Antelo faz aqui é recortar o discurso no qual funciona a fala de Ma-ria Martins, que é recortada em um processo discursivo mais amplo. O recorte observado nessa interpretação mostra a maneira como a análise ou a interpretação funciona, isto é, pela colocação de fragmentos textu-ais em redes de possíveis filiações de efeitos de sentido.

Capítulo 16Da dispersão do sujeito à unidade do autor

105

Da dispersão do sujeito à unidade do autor

Já vimos que tornar-se sujeito é ocupar posição no discurso, ou seja, enunciarno lugar de cruzamentos de dizeres em que o dizer que se realiza faz sentido em uma direção e não em outra. Vimos também que isso impli-ca que em um mesmo falante pode haver diferentes possibilidades de ser sujeito. Tudo depende da posição em que ele vai jogar com as palavras. No entanto, a partir do momento em que o falante enuncia em certa posição de discurso, ele define para sua fala certa orientação de sentido atingindo a coerência. Nesse ponto é que o sujeito passa da dispersão para unidade. É quando, ao se relacionar com o texto, ele não pode mais se expor à deriva do sentido, sem assumir a responsabilidade do lugar do efeito de sentido de suas palavras. Essa é a condição para que ele se torne enfim autor. Por isso, Orlandi pondera que, ao contrário da relação do sujeito com o texto, relação que é caracterizada pela dispersão, a autoria distingue-se pela dis-ciplina, organização e unidade. Observemos os textos a seguir, um escrito por uma escritora e outro escrito por um jornalista, e analisemos de que maneira eles podem e não podem ser remetidos à mesma autoria.

As caridades odiosas

Foi uma tarde de sensibilidade ou de suscetibilidade? Eu passava pela

rua depressa, emaranhada, nos meus pensamentos, como às vezes

acontece. Foi quando meu vestido me reteve: alguma coisa se engan-

chara na minha saia. Voltei-me e vi que se tratava de uma mão peque-

na e escura. Pertencia a um menino a que a sujeira e o sangue interno

davam um tom quente de pele. O menino estava de pé no degrau da

grande confeitaria. Seus olhos, mais do que suas palavras meio engoli-

das, informavam-me de sua paciente aflição. Paciente demais. Percebi

vagamente um pedido, antes de compreender o seu sentido concre-

to. Um pouco aturdida eu o olhava, ainda em dúvida se fora a mão da

criança o que me ceifara os pensamentos.

– Um doce, moça, compre um doce para mim.

16

Análise do Discurso

106

Acordei finalmente. O que estivera eu pensando antes de encontrar o

menino? O fato é que o pedido deste pareceu cumular uma lacuna, dar

uma resposta que podia servir para qualquer pergunta, assim como uma

grande chuva pode matar a sede de quem queria uns goles de água.

Sem olhar para os lados, por pudor talvez, sem querer espiar as mesas

da confeitaria onde possivelmente algum conhecido tomava sorvete,

entrei, fui ao balcão e disse com uma dureza que só Deus sabe explicar:

um doce para o menino.

De que tinha eu medo? Eu não olhava a criança, queria que a cena,

humilhante para mim terminasse logo. Perguntei-lhe: que doce você...

Antes de terminar, o menino disse apontando depressa com o dedo:

aquelezinho ali, com chocolate por cima. Por um instante perplexa, eu

me recompus logo e ordenei, com aspereza, à caixeira que o servisse.

– Que outro doce você quer? perguntei ao menino escuro.

Este, que mexendo as mãos e a boca ainda esperava com ansiedade

pelo primeiro, interrompeu-se, olhou-me um instante e disse com deli-

cadeza insuportável, mostrando os dentes: não precisa de outro não. Ele

poupava a minha bondade.

Precisa sim, cortei eu ofegante, empurrando-o para frente. O menino he-

sitou e disse: aquele amarelo de ovo. Recebeu um doce em cada mão, le-

vantando as duas acima da cabeça, com medo talvez de apertá-los. Mes-

mo os doces estavam tão acima do menino escuro. E foi sem olhar para

mim que ele, mais do que foi embora, fugiu. A caixeirinha olhava tudo:

– Afinal uma alma caridosa apareceu. Esse menino estava nesta porta

há mais de uma hora, puxando todas as pessoas que passavam, mas

ninguém quis dar.

Fui embora, com o rosto corado de vergonha. De vergonha mesmo? Era

inútil querer voltar aos pensamentos anteriores. Eu estava cheia de um sen-

Capítulo 16Da dispersão do sujeito à unidade do autor

107

timento de amor, gratidão, revolta e vergonha. Mas como se costuma dizer,

o Sol parecia brilhar com mais força. Eu tivera a oportunidade de... E para

isso fora necessário um menino magro e escuro... E para isso fora necessá-

rio que outros não lhe tivessem dado um doce.

E as pessoas que tomavam sorvete? Agora, o que eu queria saber com

autocrueldade era o seguinte: temera que os outros me vissem ou que

os outros não me vissem? O fato é que, quando atravessei a rua, o que

teria sido piedade já se estrangulara sob outros sentimentos. E, agora

sozinha, meus pensamentos voltaram lentamente a ser os anteriores,

só que inúteis.

(LISPECTOR, Clarice. As caridades odiosas. In: A descoberta do mundo.

Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 249-250.)

Mendicância chique

Nada mais familiar aos brasileiros do que as esquinas cheias de gen-

te pedindo esmola. Entre os pedintes há os que se apresentam em

cadeiras de rodas ou muletas. Há os velhos, os barbudos, os bêbados

e as mulheres com bebês no colo. Há as crianças, sobretudo, muitas

crianças. De uns tempos para cá elas se especializaram em fazer ma-

labarismo na frente dos carros. Algumas são realmente competentes

na arte de manter no ar três, quatro ou cinco bolinhas. Demonstram

que tiveram sagacidade e persistência para aprender, o que pode ser

sinal de talento também para outras coisas na vida. Outras vão mal,

constrangedoramente mal. Fazem papel de pequenos palhaços invo-

luntários no show das esquinas. Todos têm em comum os andrajos

com que se vestem e a fuligem da pobreza que lhes cola à pele, sinais

do desvio social em que estão metidos.

Todos? Não. Há uma exceção: uma tribo de mendigos chiques que

sazonalmente invade as ruas. Vestem roupa de butique. Não raro,

terminado o expediente nas esquinas, dirigem-se ao carro que esta-

cionaram nos arredores – carro bom, de modelo recente. O compro-

misso seguinte será uma compra no shopping center ou, se estiver

Análise do Discurso

108

na época, uma sessão da Fashion Week. A noite terá o restaurante da

moda e a balada. São os novos alunos das faculdades. Nesta época,

de divulgação dos resultados dos vestibulares, eles se postam nos

cruzamentos, monitorados pelos “veteranos”, para pedir dinheiro.

Não dizem que estão pedindo esmolas. Dizem que é para arrecadar

fundos para a festa dos calouros, para a cervejada, algo nessa linha.

O.k., assim é mais elegante para com a clientela, ainda que cruelmen-

te deselegante com quem pede para comer mesmo. [...] Há algo de

deprimente, no entanto, nessa gente bem-posta, bem-vestida e, em

regra, claro, branca – a cor de pele da esmagadora maioria dos que

entram nas faculdades – reunida nas esquinas para mendigar. Para

começar, os calouros pecam contra os princípios da sadia concorrên-

cia. Drenam os trocados que, de outra forma, poderiam destinar-se ao

andrajoso de pele escura da esquina seguinte.

Mas esse é um aspecto secundário da questão. Importante é o significado

que o exercício da mendicância chique assume no plano mais simbólico.

Outrora, uma das cenas favoritas, nos desenhos ou nas gravuras que ex-

ploravam a estética do grotesco, era o festim dos mendigos. Em torno

de uma mesa farta, reuniam-se os maltrapilhos, os sujos, os desdentados.

Considerava-se muito divertida a inversão dos papéis. Na mesa dos ricos,

por vezes até provida de finas toalhas e cristais, os pobres se esbaldavam.

No caso da mendicância dos calouros, observa-se a mesma inversão de

papéis, mas em sentido contrário: são os ricos que imitam os pobres. É

a velha história do príncipe e do mendigo, na faceta não do mendigo

reinando no palácio, mas do príncipe esmolando pela rua.

[...] A caricata versão do mendigo de camiseta de grife é o Brasil achinca-

lhando a si mesmo. É a encenação, na avenida, para usar da linguagem

carnavalesca, do enredo da imitação da miséria, campeão indiscutível,

num país já suficientemente aquinhoado de miséria, no quesito escár-

nio. [...]. Ainda não chegamos, porém, ao pior efeito da mendicância

chique. O pior, porque melancolicamente ilustrativo de uma sociedade

fragmentada, é a inter-relação que se estabelece entre pedintes e doa-

dores, esmoleiros e esmoleres. Há uma relação de cumplicidade. Com o

Capítulo 16Da dispersão do sujeito à unidade do autor

109

mendigo de verdade, a reação é de medo, de asco ou, mesmo quando

há simpatia, de distância e instintivo alerta. Os sentidos põem-se em

guarda. Todo cuidado é pouco. Com o falso mendigo representado pelo

calouro, relax, ele é um dos nossos. São os nossos meninos. As nossas

meninas. Ah, essas nossas crianças e suas travessuras! Não são como

aquelas outras, assustadores seres de um mundo que não conhecemos

senão por raros vislumbres através da janela do automóvel. Pode-se até

não dar esmola alguma, mas sai-se com a alma leve. Foi como encon-

trar um amigo, como rever-se na juventude. No caso do mendigo de

verdade, pode-se até dar a esmola, mas a alma sai pesada de temores. O

contraste entre as duas situações magnífica, nas esquinas, o sulco que,

além de dividir no plano objetivo a sociedade brasileira, se prolonga in-

sidiosamente para dentro de cada um de nós.

(TOLEDO, Roberto Pompeu. Veja, 12fev. 2003.)

Temos aqui o que poderíamos chamar dois pontos de vista sobre o mesmo tema, desenvolvidos em dois textos. A autoria aqui não deve ser identificada pelo nome do indivíduo que escreveu, mas pela maneira de o tema ser convertido em texto. De modo que essa primeira percepção não passa de arranjos sem uma composição textual predefinida e sem uma determinação de autores apreensíveis fora de um jogo discursivo. O ato de pedir e dar esmola tomados em certas formações discursivas derivam ao mesmo tempo autor e texto. A derivação vem de duas linhas de partida que se contrapõem de forma complementar. Ao perguntar quem é o autor em cada uma das textualizações anteriores, encontra-mos a primeira linha que já definimos como discurso, ou os efeitos de sentido entre locutores. A outra linha que se junta a essa é a que mostra os efeitos de sentido múltiplos e dispersos organizados em texto. Nes-se sentido, é que Orlandi (2003) demonstra como a textualidade é o discurso exposto e veiculado na ordem da organização. Isso equivale a definir o texto “[...] como sendo uma unidade que podemos, empiri-camente, representar como tendo começo, meio e fim, uma superfície lingüística fechada nela mesma.” (ORLANDI, 2003, p. 73).

Análise do Discurso

110

Não é que em cada um dos textos aqui exemplificados tenhamos a representação da prática de dar esmolas. Do ponto de vista do discurso, é bem outra coisa de que se trata, tanto no primeiro texto quanto no segundo. Algo na escrita de cada um garante ou não a cristalização de certa representação da prática da mendicância, e esse algo tem a ver com o processo discursivo. Lembremos bem o que Orlandi (2003, p. 73) esclarece sobre isso: “[...] há na base de todo discurso um projeto totali-zante do sujeito, projeto que o converte em autor”.

Fica claro, portanto, que o autor é uma função e nunca a descri-ção e nomeação do indivíduo que escreve. Como se caracteriza anali-ticamente essa função? A característica do autor como lugar de apaga-mento do sujeito, como dispersão e de sua construção como unidade está nos traços definidores do texto, isto é, a unidade traduzida em termos de coerência e coesão. Estamos perto de compreender de que maneira o texto é o lugar da constituição do sujeito como autor. Trata--se de uma operação em que, ao se enunciar, falando ou escrevendo – com coesão, coerência e completude ou fechamento – o escrevente ou o falante transforma-se em autor do que diz. Isso acontece porque cumpre a tarefa de fazer texto a fim de que o discurso seja organizado pela indicação de onde parte, por onde passa e onde quer chegar em termos de efeitos de sentido.

Acontece que a pretensão de unidade e de coerência é apenas ima-ginária, pois o real do discurso é descontinuidade, dispersão, incom-pletude, falta, equívoco, contradição. Vemos então que há a articulação necessária entre o real, – plano do disperso – e o imaginário – plano do unificado. É articulando-se nesses dois movimentos que o discurso se realiza e funciona. Nos termos dessa articulação, localiza-se do lado do real, a relação sujeito/discurso, e do imaginário, a relação autor/texto. O que diferencia os pontos precisos dessa relação é que a primeira é marcada pela escorregadela, pela falha, pelo lapso, enquanto a segunda marca-se pelo efeito de amarração, definição, certeza, evidência, clareza, coerência, exatidão. É assim que do discurso se faz a posição sujeito, sempre passível de deslocamento, à diferença, e do texto se faz a função--autor, sempre submetida à permanência, ao mesmo.

Capítulo 16Da dispersão do sujeito à unidade do autor

111

Eis a primeira razão porque colocamos em confronto os dois tex-tos citados anteriormente: As caridades odiosas e Mendicância chi-que. Se examinarmos em detalhes as características textuais de cada um, logo observamos que, em relação à discursividade de que são par-te, o primeiro desliza na confluência dos sentidos. Ali a função-autor opera na contramão da textualidade porque os sentidos, embora se in-sinuem nas palavras e construções sintáticas, não chegam a se fechar. Ao contrário do segundo, que por deixar organizar-se e fechar-se em dada região da formação discursiva de onde retira sua condição textu-al, torna-se imaginariamente completo, coeso e coerente.

Vejamos na montagem que se pode proceder mostrada na figu-ra a seguir. Nela recortamos ou dessuperficializamos fragmentos de cada uma das superfícies textuais dadas em separado e, em seguida, colocamos lado a lado, confrontando a maneira com que se procede a textualização do discurso significando a situação em que se verifica uma prática urbana em que um passante cede esmola a um pedinte. É o modo como essa prática social encontra ou não encontra uma ma-neira de significar que está em questão.

[...], a reação é de medo, de asco ou, [...], de distância e instintivo alerta.

Os sentidos põem-se em guarda. Todo cuidado é pouco. [...], assustado-

res seres de um mundo que não conhecemos senão por raros vislum-

bres através da janela do automóvel. [...], pode-se até dar a esmola, mas

a alma sai pesada de temores.

(Roberto Pompeu de Toledo)

“Fui embora, com o rosto corado de vergonha. De vergonha mesmo? Eu

estava cheia de um sentimento de amor, gratidão, revolta e vergonha.

[...] Eu tivera a oportunidade de... E para isso fora necessário um menino

magro e escuro... E para isso fora necessário que outros não lhe tivessem

dado um doce.”

(Clarice Lispector)

Análise do Discurso

112

Admitamos que os recortes aqui remetem ao trabalho de textu-alizar um processo em curso na memória discursiva de grandes cen-tros urbanos em contexto de capitalismo. Vê-se aqui a cena do que é possível dizer acerca da relação entre o que dispõe do que lhe sobra e o que nada tendo só resta pedir. O ponto que se toca nessa discursi-vidade é de como se significa aquele que tem a palavra na posição de doador e também de como significa o outro que lhe demanda esmola. Mais ainda: o dizer tenta textualizar o modo como o próprio pedinte se significa diante da suposta generosidade de quem lhe estende a mão oferecendo-lhe a esmola.

Na posição ideológica do que se pode e deve ser dito a partir das regras de formação de discurso sobre as diferenças socioeconômicas, em A mendicância chique, as expressões “a reação de medo”, “de asco”, “de alerta”, “de distância instintiva” devem ser ditas coerentemente re-lacionadas às palavras do outro texto, proferindo que se pode até dar a esmola. Esse, por sua vez, entra na mesma cadeia enunciativa em que se junta a expressão contraditória da “alma sai pesada de temores”.

Temos, nesse breve exercício analítico, as relações de sentido que se podem atestar na série de enunciações que destacamos através dos textos escolhidos. Nela deve-se, sobretudo, pressupor, como acontece no encontro entre a língua e a história. As mesmas palavras fixam sen-tidos mutuamente excludentes. Entretanto, mesmo que díspares, do jeito com que as palavras se juntam protocoladas em certa formação discursiva, garante-se, nesse arranjo, unidade textual e, portanto, efei-to de completude. Assim, o nome do jornalista Roberto Pompeu de Toledo pode designar um lugar de autoria exatamente por garantir o fechamento do sentido em torno de uma posição em discurso.

Podemos dizer que As caridades odiosas enceta uma textualidade na mesma direção discursiva. Com a ressalva de que aqui a textua-lização acontece sob difíceis condições por mal conseguir apagar os vestígios do real, da dispersão do sujeito e do discurso que assombra a obrigação da autoria e da unidade textual. Ao formular a retirada realçando linguisticamente as circunstâncias com o rosto corado de

Capítulo 16Da dispersão do sujeito à unidade do autor

113

vergonha, tem-se a impressão de uma significação que entra na con-tramão do que se diz no outro texto – não mais superioridade diante do pedinte, mas constrangimento perante o escancaramento da dife-rença. Só que logo em seguida a pergunta: “De vergonha mesmo?”. Mais do que as palavras sintaticamente encadeadas, ponto de interro-gação é também o ponto de inflexão do dizer, marcando nele a contin-gência do deslize, do lapso da falha. Tem-se aí a marca da dificuldade de o discurso se fechar em uma unidade textual e também o flagrante do sujeito em dispersão, tomado entre uma e outra posição: ou ele se diz tomado de vergonha, ou ele repete a palavra vergonha para, pela interrogação, fazê-la escorregar para outro lugar de sentido. É quando o deslize irrompe de modo quase incontrolável e onde se diz vergo-nha, se pode também dizer amor, gratidão, revolta. Palavras que não dizem nada por si mesmas a não ser pelos percursos não coinciden-tes que fazem até que possam organizar uma discursividade em texto. Assim que o nome de Clarice Lispector, fora do campo da literatura brasileira, não chega a estabelecer uma remissão do texto a autoria, ou vice-versa. O que se pode ter é a explícita mostração das vicissitudes do sujeito capturado pelo movimento do discurso cujo destino é o de sempre abrir para múltiplos sentidos.

Até aqui podemos então concluir que a autoria é uma das possibi-lidades ou um dos lugares – previstos no processo discursivo – de o su-jeito se constituir. Isso quer dizer que pode haver sujeito na passagem entre uma posição e outra, isto é, no movimento equívoco dos senti-dos ideologicamente monitorados: ao ser um em dado lugar, o sujeito sempre pode resvalar-se para se constituir em outro. Já com a função--autor se passa bem ao contrário, pois é preciso que a ela corresponda o sujeito imaginariamente fixado como o eu que é fonte e princípio de completude de seu discurso. Por isso mesmo, reportando-se ao Michel Foucault de A ordem do discurso, é que Orlandi (2003) assinala que a autoria é uma função de sujeito, ou seja, um dos efeitos de subjetivação discursiva mais social e historicamente controlada. Aí está o espectro da exterioridade, condição material da efetivação do sujeito, aqui cir-cunscrito na forma da autoria.

Análise do Discurso

114

Desdobrando-se nas funções enunciativas de locutor e enunciador, o sujeito-autor deve se representar como o eu que se responsabiliza pela tomada da palavra e apresentar, na qualidade de enunciador, que pers-pectiva ele toma a palavra, seja no plano oral, seja no escrito. É dessa forma que, enquanto autor, o sujeito se faz “[...] produtor de linguagem, produtor de texto.” (ORLANDI, 2003, p. 75).

Voltamos aqui ao nosso ponto de partida: no atravessamento que submete a fala à ordem do discurso o que se espera é a concretização do sujeito-autor. O que a ordem discursiva garante é certeza de o sujeito, falando na posição de autor, ser visível, calculável, identificável, contro-lável. O que faz Orlandi (2003) é ampliar a noção de sujeito de discurso tal como vimos Foucault desenvolver em sua aula A ordem do discurso. Vimos como ali o sujeito que se apresenta hesitante ao falar se apresen-ta como um problema das instituições de saber. Esse é o lugar restrito da aplicação das regras discursivas para ser sujeito-autor. Mas Orlandi (2003), como dissemos antes, amplia a aplicação dessas regras – coerên-cia, clareza, não contradição – a toda situação em que se demanda que o sujeito se faça desempenhando sua fala ao modo do que se estabelece socialmente como texto bem formado.

Retomemos as características que separam o texto Caridades odio-sas do texto Mendicância chique. O que se vemos no primeiro é o modo com que se opera uma textualização situando-se mais do lado da mul-

“[...] o princípio do autor limita o acaso do discurso pelo jogo de uma

identidade que tem a forma da individualidade e do eu.” (ORLANDI,

2003, p. 75).

Não basta falar para ser autor. A assunção da autoria implica uma

inserção do sujeito na cultura, uma posição dele no contexto histó-

rico-social. Aprender a se representar como autor é assumir, diante

das instâncias institucionais, esse papel social na sua relação com a

linguagem, constituir-se e mostrar-se autor. (ORLANDI, 1988).

Capítulo 16Da dispersão do sujeito à unidade do autor

115

tiplicidade das representações possíveis da prática de dar esmola. Já o segundo texto é mais eficaz em uma economia de posições excludentes, que organiza sua dispersão garantindo coerência, dando lugar ao apa-recimento do autor, assumindo-se naquilo que diz e ostentando a pers-pectiva de onde seu dizer faz texto.

De sua parte, como adverte Orlandi (2003), o leitor deve se ver refletido nessa mesma dinâmica em que a função-autor se concretiza. Cabe ao leitor adotar procedimentos de interpretação como suporte da apreensão dos vestígios discursivos da autoria. Certamente, a auto-ria há que ser o mesmo lugar em que o leitor deve se constituir como sujeito-autor de sua leitura, ainda que em sua relação com o texto ele se depare em posição diferida com respeito ao jogo discursivo que cir-cunscreve a unidade do texto e de seu autor. Tudo isso varia conforme o regime histórico no qual os textos são dados à leitura. A liberdade de acesso ao ato de ler nem sempre é vigente em todas as épocas, e naquelas em que a distribuição da leitura é rarefeita, isto é, não é para todos, a leitura se define como a mediação que a autoriza nas direções discursivamente dadas segundo a época; “[...] não se é autor (ou leitor) do mesmo modo na idade média e hoje”, diz Orlandi (2003, p.76).

Ainda nos detendo sobre os textos aqui propostos como ilustra-ção de processos textuais submetidos ao discurso, vale exercitar de que maneira, contrapondo um e outro, pode-se fazer vir à tona os processos discursivos que ora afastam ora aproximam uma formulação e outra em termos de efeitos de sentido. No que toca às aproximações de relações de sentido, explicitam-se os mecanismos parafrásicos. É quando o lugar de onde fala Clarice Lispector coincide com o lugar de onde fala Ro-berto Pompeu de Toledo. Pincemos um fragmento enunciativo de cada texto e os coloquemos lado a lado. É o caso do seguinte exemplo:

“[...], mas a alma sai pesada de temores.”“Fui embora, com o rosto corado

de vergonha.”

Dessa maneira, dessuperficializados os fragmentos bem podem ser remetidos à mesma formação discursiva, ou seja, à mesma posição em

Análise do Discurso

116

que na relação entre dar e pedir esmola se põe em questão o que signi-fica ser doador de esmola. Não importa se em cada formulação alude-se a modos diferentes de focalizar o sujeito que dá esmola. As palavras da língua aqui se inscrevem na cena induzindo a diferença entre quem diz “alma pesada de temores” e aquele que diz “rosto corado de vergonha”. O que importa é que uma mesma memória discursiva aloca as duas maneiras de dizer, e é isso que as torna uma paráfrase da outra. A enun-ciação se habilita a partir do que pode e deve ser dito no interior de uma posição ideologicamente estabelecida para significar a relação entre o doador e pedinte.

Em contrapartida podemos, por dessuperficialização, proceder ao confronto de outros dois fragmentos, nos quais os dizeres remetem a lu-gares irredutíveis de sentido, portanto a formações discursivas diferentes.

“[...] Os sentidos põem-se em guarda. Todo cuidado é pouco.” “Eu estava

cheia de um sentimento de amor, gratidão, revolta e vergonha.”

Trata-se apenas não de propor uma interpretação, mas de expor o gesto ou o procedimento pelos quais duas maneiras de dizer não podem se encontrar no mesmo lugar de discurso. Nos fragmentos anteriores, o da esquerda induz uma maneira de significar o pedinte que não pode ser incluída no modo com que é significado no fragmento à esquerda. Digamos que, mediante a história das relações de diferença social, a po-sição de quem vê o pedinte só pode tomá-lo como suposto perigo. É que alude discursivamente a formulação da esquerda; “Todo cuidado é pouco”. À direita, a formulação indica alusivamente o pedinte como suposta vítima definindo-se na situação como alguém pleno “[...] de um sentimento de amor, gratidão, revolta e vergonha”.

É claro que precisaríamos projetar a análise em um quadro maior de memória discursiva em que se poderia expor a historicidade dos sen-tidos em regiões de discurso que tornam possível um dizer e não outro. Mas o objetivo aqui é demonstrar o jogo interpretativo que, a partir de Michel Pêcheux, Orlandi (2003) define como efeito metafórico.

Capítulo 16Da dispersão do sujeito à unidade do autor

117

Orlandi refere-se ao deslize que é próprio de toda língua. Isso quer dizer que nenhuma forma linguística está presa a um sentido permanente. Por mais que se torne literal na história, o sentido das palavras entra em deriva a cada vez que é empregado. Justamente nisso que consiste a cone-xão entre língua e história. É que a cada vez que a língua é mobilizada em dadas circunstâncias, uma vez que o significado que pode instaurar não é evidente, é preciso interpretar. A interpretação é, portanto, o procedimento inerente ao próprio modo de a língua funcionar em conexão com a história.

Bem, o que isso tem a ver com a metáfora? A metáfora designa a maneira com que, pelo movimento deslizante das palavras, pode-se descrever a ação discursiva que constitui o sujeito e o sentido. O que se descreve exatamente nesse movimento não é desvio, mas transferência (ORLANDI, 2003, p. 79).

É o que propusemos fazer ver no confronto entre os dois frag-mentos anteriores. Ao dizer “os sentidos põem-se em alerta”está pre-sente também “eu estava cheia de um sentimento de amor”. Palavras e estruturações linguísticas diferentes que estão mutuamente em re-lação de paráfrase e polissemia, já que respectivamente a diferença de sentido de uma formulação está contida em outra. Aquele que diz alerta está sujeito a dizer gratidão e assim sinalizar a articulação de formações discursivas, o que evidencia o efeito metafórico determi-nado pelo deslocamento dos lugares de sentido aplicado a palavras alocadas e significadas em lugares outros.

Pode-se dizer que, no que concerne ao dar esmola, Clarice Lispec-tor e Roberto Pompeu falam a mesma língua, mas em modos diferentes. Lembremos aqui o que já foi dito de o interdiscurso ser esse movimento aberto à multiplicidade dos sentidos. O que está apresentado aqui são

O efeito metafórico, nos diz Michel Pêcheux (1969), é o fenômeno

semântico produzido por uma substituição contextual, lembrando

que este deslizamento de sentido entre x e y é constitutivo tanto do

sentido designado por x como por y. (ORLANDI, 2003, p. 78).

Análise do Discurso

118

dois textos organizados em estilo, em gêneros que lhe são próprios po-derem ser capturados na mesma e na diferente formação discursiva.

Veja que é do movimento que se trata, ou do ponto em que a super-fície textual é rasurada para fazer fragmentos se encontrarem com outros reconhecendo-se na coincidência e se confrontando na não coincidência. É como se imaginássemos os dois autores falando entre si do mesmo tema e na mesma língua, contudo tendendo a dizer com as mesmas palavras sentidos diversos, e com palavras diversas os mesmos sentidos. Mas é importante pontuar que a textualização de Clarice Lispector deixa mais escancarado o deslize, enquanto que a de Roberto Pompeu tende mais ao fechamento e ao apagamento da deriva que lhe é inerente. É só quan-do confrontado com o que diz Clarice que o dizer de Roberto mostra-se mais deslizante. O que está em destaque no jogo metafórico é a função inevitável da alteridade; o sentido não se dá nunca como o mesmo sem ter o outro como seu referencial, o que acontece não como dado natural da linguagem, mas como efeito da história, ou da historicidade.

Praticar Análise de Discurso como princípio e como procedimento fica bem mais interessante se o analista assimila o jogo que caracteriza a relação entre a língua e o discurso. A definição de base para língua é a que propõe Michel Pêcheux, isto é, “sistema sintático intrinsecamente passível de jogo.” (PÊCHEUX, 1980). Já a definição própria para a dis-cursividade consiste em pensá-la como inscrição de efeitos linguísticos materiais na história.” (PÊCHEUX, 1980). Tudo se passa como se para haver história fosse necessário a passagem dos fatos pela dinâmica pró-pria da língua. Por outro lado, para haver sentido, é como se a língua cravasse suas formas e mecanismos nos fatos dando forma ao dizer e ao sujeito que diz. Tudo isso resume o que é a historicidade.

“[...] a historicidade deve ser compreendida em Análise de Discurso

como aquilo que faz com que os sentidos sejam os mesmos e tam-

bém que eles se transformem.” (ORLANDI, 2003, p. 80).

Considerações Finais

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Considerações Finais

Com esse exercício, ao mesmo tempo de desconstrução e de bus-ca de lugar discursivo determinante do autor, chegamos ao final des-te plano. O intuito foi propor uma maneira de apresentar a Análise de Discurso dando conta do exercício da linguagem tanto no campo das Letras como no das Ciências Humanas em geral. Começamos mos-trando como a fala do indivíduo é a medida do sentido do que ele diz e da possibilidade que ele tem de tornar-se sujeito; palavras que diz em contextos bem determinados, seja de âmbito político, científico, ou no mais amplo sentido social do exercício da linguagem.

Fechando no que concerne à linguagem, ficou estabelecido pela Análise de Discurso que essa tem certa precedência frente ao que social e historicamente se dá como realidade. É que, ao relacionar-se com o mundo e interagir com outro, o homem precisa da linguagem. Fora dela, nem ele, nem o mundo significa; e, sem sentido, a realidade não existe. O que se apresenta como conceito de linguagem refere-se ao trabalho simbólico do discurso, que, conforme radicalmente adotamos com Or-landi (2003, p.15), “[...] está na base da produção da existência humana”. Basta a exposição dessa radicalidade conceitual para que a linguagem, nas palavras de Orlandi (2003, p.15), se imponha analiticamente como “[...] mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social.”

Decorre daí que a linguagem é forma material do discurso porque nela se observam analiticamente homens falando, dito de outro modo, observa-se o aspecto constitutivo do fazer da língua, submetida ao pro-cesso histórico e ideológico que descreve o modo como, através do exer-cício da fala, se produz sujeito e sentido.

O que é analisar discurso? Para analisar discurso, é preciso consi-derar falas efetivamente produzidas, de modo oral ou escrito. Não im-porta se a fala produzida está ou não conforme as regras gramaticais, tal como seria o caso de uma abordagem estritamente normativa. O que interessa é descrever como qualquer coisa dita, do jeito que é formulada, faz sentido. Essa descrição de como qualquer coisa dita pode fazer sen-

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tido define o que é analisar discurso, ou seja, é descrever as condições – de natureza histórica, social, ideológica – nas quais uma fala qualquer produz sentido.

Trata-se não de associar uma fala a um quadro contextual de datas e fatos, mas de relacionar a fala, tomada como ponto de partida a outras produzidas em diferentes tempos e lugares. Considerar, portanto, o his-tórico, o ideológico, o social, na escola francesa de Análise de Discurso, é considerar atos de enunciação atravessados por domínios de memória feitos de enunciados efetivamente realizados. Enfim, o que se faz em Análise de Discurso é descrever, mediante artefatos teóricos e procedi-mentos analíticos, modos de aparecimento do sentido e do sujeito.

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