analisando significados de transgeneridade na … · a série liberdade de gênero estreou no dia...
TRANSCRIPT
1
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
ANALISANDO SIGNIFICADOS DE TRANSGENERIDADE NA SÉRIE
LIBERDADE DE GÊNERO
Thais Geraldo Oliveira de Aguiar1
Raquel Pereira Quadrado2
Resumo: Neste trabalho temos como objetivo analisar a rede de significados sobre transgeneridade
presentes na série documental Liberdade de Gênero, exibida no canal de televisão brasileiro por
assinatura GNT. Entendemos esta série como um potente artefato cultural para reflexão acerca da
transgeneridade, nela são apresentadas algumas histórias de pessoas que não se identificam com o
gênero designado para elas ao nascerem, negando qualquer determinismo biológico. Mulheres-
trans, homens-trans, não-binários, relatam suas trajetórias até assumirem o gênero com o qual se
identificam ou com o qual não se identificam, como os não binários. A metodologia consiste na
análise de cinco episódios da série Liberdade de Gênero. Nossos estudos têm como base os Estudos
Culturais, na sua vertente pós-estruturalista, destacando o efeito das mídias na produção dos corpos
e das sexualidades e também como produtora de saberes e conhecimentos, entendendo que os
discursos veiculados pela mídia acionam poderosos efeitos de verdade e que essa proliferação de
discursos vem atuando na produção do sujeito transexual.
Palavras-chave: Mídia televisiva; transgeneridade; gênero.
Contextualização
Vivemos a era da informação, em que somos bombardeados de notícias a todo instante, seja
pela televisão, pelo rádio, via internet e etc. Nesse contexto, a temática da transgeneridade tem
conquistado espaço nas mídias em geral. Nota-se que cada vez mais programas televisivos de
alcance nacional em rede aberta, como Fantástico, Profissão Repórter, Encontro, Bem Estar, entre
outros, abordam esse assunto a fim de conhecer sobre esses sujeitos que tanto sofrem com o
preconceito e o estigma social. Como escreve Stuart Hall (1997), vivemos em um tempo
caracterizado por uma verdadeira revolução cultural, propiciada pelas forças que assumem no
cotidiano da sociedade contemporânea as distintas formas de comunicação e informação.
Além disso, a temática da transgeneridade tem sido destacada em filmes, discutida em
novelas, documentários e séries, problematizando a luta desses sujeitos por condições melhores para
poderem viver como realmente eles são. É inegável que os discursos veiculados pela mídia acionam
efeitos de verdade. Não podemos subestimar o poder da mídia na construção de subjetividades3, tão
pouco ignorar a importância dela como ferramenta ao acesso de informações.
1 PPG em Educação em Ciências, Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Rio Grande/RS, Brasil. 2 PPG em Educação em Ciências e PPG em Educação, Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Rio Grande/RS,
Brasil. 3 Para Larrosa, a subjetividade “é algo que se vai fabricando e inventando, algo que vai se construindo e reconstruindo
em operações de narração e com a narração.” (2002, p.71)
2
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Fischer utiliza o conceito de “dispositivo pedagógico da mídia” para dizer que a mídia, e
particularmente a televisão, participa efetivamente da constituição de sujeitos e subjetividades, na
medida em que produz imagens, significações, enfim, saberes que de alguma forma se dirigem a
“educação” das pessoas, ensinando-lhes modos de ser e estar na cultura em que vivem.
Diante dessas discussões, o objetivo desse trabalho é analisar a rede de significados sobre
transgeneridade em cinco episódios da série Liberdade de Gênero, exibida no canal de televisão
brasileiro por assinatura, GNT.
Trazemos essa pesquisa a partir do campo teórico dos Estudos Culturais, na sua vertente pós-
estruturalista de análise, destacando o efeito das mídias na produção dos corpos e das sexualidades e
também como produtora de saberes e conhecimentos. Nesse sentindo, entendemos a série Liberdade
de Gênero como um potente artefato cultural para a reflexão acerca da transgeneridade, das
sexualidades e dos gêneros, uma vez que contém pedagogias culturais que ensinam significados
sobre os sujeitos transgêneros.
Conforme destaca Soares e Meyer,
O conceito de pedagogias culturais remete, exatamente, para o reconhecimento e
problematização da importância educacional e cultural da imagem, das novas tecnologias da
informação, enfim, da relação entre educação e cultura da mídia nos processos de
organização das relações sociais e na produção das identidades. (2003, p.139)
Os conceitos de transgeneridade e transexualidade muitas vezes se confundem, mas, estamos
entendendo que o termo transgênero é muito mais amplo e abrangente, englobando todas as
categorias de identidade de gênero divergente nele, como; travesti, transexuais, dragqueen,
crossdresser, andróginos entre outros que estejam transgredindo com as regras de condutas
socialmente aceitas e estabelecidas.
Letícia Lanz (2014) diz que:
É importante notar que o termo transgênero tanto expressa a incongruência da identidade de
gênero com o sexo genital da pessoa, quanto tem o propósito de cobrir um amplo espectro de
comportamentos considerados transgressivos ao dispositivo binário de gêneros, que vão
desde a simples curiosidade de experimentar roupas/calçados/ adereços próprios do outro
gênero até a firme determinação de realizar mudanças físicas intensas e profundas, através do
uso de hormônios e cirurgias a fim de se converterem, inclusive fisicamente, em membros do
sexo oposto ao seu.
Ressaltamos que entendemos gênero como uma construção social, cultural, política e
histórica que é atravessada por relações de poder e não como algo que é dado e natural.
3
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Ao dirigir o foco para o caráter “fundamentalmente social”, não há, contudo, a pretensão de
negar que o gênero se constitui com ou sobre corpos sexuados, ou seja, não é negada a
biologia, mas enfatizada, deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre
as características biológicas. LOURO (2004, p.21)
A série Liberdade de Gênero estreou no dia 19 de outubro de 2016 e foi ao ar semanalmente
nas quartas-feiras, até 21 de dezembro de 2016. A série mostra em 10 episódios como se organizam
as vidas de quem assume a realidade de ter um gênero diferente do sexo biológico, procurando
exemplos em que essas pessoas se inserem de forma bem-sucedida e feliz dentro da sociedade.
Caminhos da pesquisa
A metodologia da pesquisa consistiu em analisar os cinco primeiros episódios da série
Liberdade de Gênero, dirigida e produzida pelo cineasta João Jardim, veiculada pela rede de TV
fechada GNT e também na internet, disponível na GNT Play, com aproximadamente vinte e dois
minutos de duração cada episódio. No presente trabalho buscamos analisar as falas dos/as
entrevistados/as sobre a transgeneridade, a partir de ferramentas da análise cultural.
De acordo com Rocha (2011), o que a análise cultural indica é o fato de que a televisão
corresponde a um dos principais domínios na contemporaneidade através dos quais a cultura circula
e é produzida. Dessa forma, entendemos que os programas televisivos, como a série Liberdade de
Gênero, constituem potentes artefatos culturais a serem analisados, visto que possuem uma
dimensão cultural, produzindo significados.
As análises culturais, de acordo com Wortmann (2007), visibilizam relações e aspectos que
geralmente não são considerados em análises tradicionais, tais como aquilo que acontece no
cotidiano das pessoas e que produz efeitos em suas vidas. Trata-se de analisar práticas culturais
considerando-as produzidas e imersas em relações de poder, constituindo formas interessadas de
lidar com tais práticas.
Neste sentido, analisamos o episódio da série que constituiu o corpus desta pesquisa a fim
de investigar o que foi narrado sobre transgeneridade nesse artefato cultural, buscando ressaltar o
modo como tais narrativas “se constroem discursivamente na cultura, produzindo significados que
atuam no estabelecimento de subjetividades e de configurações sociais” (WORTMANN, 2007, p.
78). Entendemos que ao falar sobre transgeneridade, a série atua também como “produtora de
saberes e formas especializadas de comunicar e produzir sujeitos, assumindo nesse sentido uma
função nitidamente pedagógica” (FISCHER, 1997, p. 61).
4
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Algumas Análises...
O primeiro episódio analisado conta a história de Amanda, que é uma mulher trans que fez a
cirurgia de redesignação sexual na Tailândia. Conhecida na internet como Mandy Candy, com mais
de 600 mil seguidores no Youtube, ela fala das suas experiências.
Fig 1- Amanda.
Fonte: Imagem retirada da série Liberdade de Gênero.
O segundo episódio conta a história de Letícia Lanz que é psicanalista e escritora, casada há
40 anos com Angela, com quem tem três filhos e três netos. Letícia nasceu Geraldo e fez a sua
transição de gênero aos 50 anos, após 30 anos de casamento.
Fig 2- Letícia Lanz.
Fonte: Imagem retirada da série Liberdade de Gênero.
O terceiro episódio é de Érick, que nasceu num corpo feminino, mas sempre se entendeu
como um menino. Aos 19 anos descobriu que era possível fazer a transição de gênero e iniciou o
seu processo para se tornar um homem trans.
5
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Fig 3 – Erick.
Fonte: Imagem retirada da série Liberdade de Gênero.
O quarto episódio conta duas histórias de jovens que não se reconhecem nem como homem,
nem como mulher. Liniker, cantora, e Lune, Jesse e Benett, tatuadores, relatam suas experiências
como pessoas trans não-binárias.
Fig 4 – Liniker. Fig 5 – Lune, Jesse e Bennet.
Fonte: Imagem retirada da série Liberdade de Gênero.
Por fim, o último episódio analisado conta a história da atriz e performer Wallace, que se
define como uma mulher trans não binária. Nascida no interior de São Paulo, decidiu fazer a sua
transição há sete anos e foi bem acolhida pela família.
6
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Fig 6 – Wallace Ruy.
Fonte: Imagem retirada da série Liberdade de Gênero.
As histórias analisadas apontam para necessidade de mais informação sobre três conceitos
diferentes: sexo, gênero e orientação sexual. Assim como as pessoas cisgênero, as pessoas trans
podem ser homossexuais, bissexuais e etc. porque independentemente do gênero, isso compete à
sexualidade. Para Guacira Louro (1997)
enquanto a identidade de gênero liga-se à identificação histórica e social dos sujeitos, que se
reconhecem como femininos ou masculinos, a identidade sexual está relacionada diretamente
à maneira com que os indivíduos experenciam seus desejos corporais, das mais diversas
formas: sozinhos/as, com parceiros do mesmo sexo ou não, etc.
Como exemplo, Letícia e Wallace nasceram pertencentes ao sexo masculino, mas, se
identificam com o feminino e se relacionam com mulheres, por conta disso enfrentam muito
preconceito, as pessoas chegam a questionar o porquê da transição de gênero por conta da
orientação sexual. Bento (2006) traz essa questão:
Quando uma pessoa diz “Eu tenho um corpo equivocado, sou um/a homem/mulher
aprisionado/a em um corpo de mulher/homem”, isto não significa que ser mulher seja igual a
ser heterossexual. Quando a sociedade estabelece que o/a homem/mulher de verdade é
heterossexual, deduz-se imediatamente que um/a homem/mulher transexual deverá sê-lo, e
são construídos dispositivos em torno dessa realidade. (2006, p.156)
Todas as histórias têm um ponto em comum: o apoio das famílias. E todos destacam o quão
importante foi esse apoio. Mas, Erick conta que mesmo recebendo apoio dos amigos e familiares, a
“barra” não é fácil por causa da sociedade contemporânea. Letícia nos provoca a pensar quando diz
“Eu não nasci no corpo errado, eu nasci na sociedade errada”. A sociedade em que vivemos é
impregnada por uma cultura patriarcal machista, que não respeita a diferença e é permeada por
preconceitos.
7
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Liniker, Lune, Jesse e Benett se consideram transexuais não-binários e suas falas apontam
para a fluidez do gênero quando uma delas diz: “Eu não nasci menina, eu nasci com pepeca,
designada pra ser mulher, mas não. Eu não sou mulher, nem o outro, eu sou eu. Eu não preciso me
encaixar”. Uma pessoa transexual não binária é uma pessoa cuja divisão binária de gênero
feminino ou masculino não a contempla. É quando a pessoa não se encaixa totalmente no feminino
e nem no masculino, e transita entre esses dois paralelos.
Wallace diz: “Não fiz modificação alguma, nunca tomei hormônios, nem nenhuma cirurgia
de modificação. A minha identidade de gênero é feminina, expresso minha identidade que também é
feminina. Então, se for pra colocar em caixas eu sou uma mulher trans não binária, porque eu
transito pelo masculino e pelo feminino. Eu sou o Wallace Ruy e sou mulher”.
Letícia, embora não se considere não-binária, também rompe com essa ideia de binarismo
quando diz: “Eu não me incluo nem como homem, nem como mulher, nem como trans eu sou
Letícia Lanz, uma construção de mim mesma”. Com isso, aponta para rupturas e transgressões das
fronteiras de gênero, remetendo à ideia de desconstrução e reconstrução dos binarismos de gênero,
o tempo todo.
Na sociedade em que vivemos existe um dispositivo binário de gênero que normatiza o
comportamento das pessoas e casos que escapam a essa normatização são tratados por muitos como
uma aberração. Para Louro:
estas representações já se tornaram tão naturalizadas que não mais questionamos o quanto a
constituição do que é dito como masculino ou feminino é uma construção de um determinado
momento histórico e que tem lugar a partir da forma como as características biológicas são
representadas, considerando o que se pensa e o que se diz sobre elas. (2004)
A exclusão social que o sujeito transgênero vivencia também foi mencionada por Letícia.
Hoje em dia, ela é escritora e psicanalista. Mas, enquanto era Geraldo, trabalhava como consultor e
era renomado em todo Brasil, logo após assumir a sua outra identidade de gênero, perdeu todos
os/as seus/suas clientes, tendo que trocar de profissão, como única alternativa. Lune, Jesse e Benett
são sócios num estúdio de tatuagem. Resolveram abrir esse negócio pela dificuldade que tinham em
conseguir um emprego por serem trans. Amanda diz que seu primeiro emprego foi com
telemarketing, porque na cidade dela era o único emprego que davam para uma pessoa trans. Hoje
em dia ela é Youtuber. Erick e Liniker são cantores e vivem da música.
8
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A pessoa cujo comportamento se desvia dos padrões oficiais de conduta de gênero, segundo
Lanz:
De maneira sutil ou ostensiva, ela passa a ser sistematicamente excluída do convívio com
pessoas “normais”, ou seja, as pessoas “generadas” (leia-se: obedientes, perfeitamente
enquadradas e submissas ao dispositivo de gênero). Dependendo de como a sociedade
enxergue a “natureza da sua transgressão”, pode passar a ser tratada como pervertida e
depravada ou como ‘doente mental’. Para “trans-gressores” de gênero, tudo que a sociedade
reserva é o estigma, a marginalização, a exclusão, o ‘limbo social’ (2008, p.65).
Amanda é a única trans mulher das histórias analisadas que se submeteu a cirurgia de
redesignação de sexo. Ela conta sobre as dificuldades que enfrentou até conseguir fazer a cirurgia, o
custo, o processo de recuperação. E diz: “Queria deixar claro que ninguém precisa fazer a cirurgia
pra se sentir mais mulher ou pra ser mulher. Queria eu ter essa sorte de não precisar fazer... Eu
teria me matado se não tivesse feito à cirurgia de redesignação sexual, eu preferia morrer a
continuar daquele jeito. Eu me olhava e olhava pra baixo e eu tinha nojo, tentava esconder, como é
que vou fazer sexo com uma pessoa tendo aquilo ali”?!
Para Ceccarelli,
O sofrimento psíquico do transexual se encontra no sentimento de uma total inadequação, de
um lado, à anatomia do sujeito e seu “sexo biológico” e, de outro, a este mesmo “sexo
psicológico” e sua identidade civil. Essas pessoas, cujo sentimento de identidade sexual não
concorda com a anatomia, manifestam uma exigência compulsiva, imperativa e inflexível de
“adequação do sexo”, expressão utilizada pelos próprios transexuais; como se elas, face esta
convicção de incompatibilidade entre aquilo que são anatomicamente e aquilo que sentem
ser; se encontrassem num corpo disforme, doente e monstruoso (1998, p. 2).
Bento (2006, p. 181) coloca que “a suposta relação de abjeção que os transexuais têm com
seu corpo gera outras interpretações, como, por exemplo, a ausência de sexualidade”. Como
percebemos na fala de Amanda, mencionada acima.
Erick é o único trans homem que aparece nos episódios analisados que fez a cirurgia de
mastectomia e faz tratamento hormonal contínuo com testosterona. Ele conta que percebeu que
estava fadado a viver como menina quando veio à primeira menstruação, que se trancou no
banheiro e pensou em se matar. Ele diz: “Foi a minha sentença de morte! Todas as minhas
esperanças acabaram ali e a minha mãe batendo na porta e dizendo: ai, que legal, você virou
mocinha e eu querendo cortar os pulsos. Eu tinha a convicção de que nasci errado! Mas, que teria
que viver no corpo errado, até eu aguentar. Se eu não descobrisse que eu era transexual, eu teria
me matado”.
9
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
As histórias analisadas põem-nos diante da pluralidade de configurações possíveis à
experiência da transgeneridade. Enquanto uns tomam hormônios, submetem-se a alterações em seus
corpos através de cirurgias de redesignação sexual, a mastectomia ou a prótese de silicone, outros
simplesmente não fazem nada.
Outro fato marcante dos episódios analisados é que em todas as histórias o desconforto com
as condutas, com o comportamento e até com as brincadeiras do gênero estabelecido despertam
muito cedo, desde a infância. Por exemplo, Erick conta que na escola ele chegava a mudar as placas
de identificação de meninas e meninos para poder entrar no banheiro de meninos. Nos relatos da
infância Letícia, Liniker, Amanda e Wallace lembram que queriam usar as roupas, as maquiagens e
os sapatos de salto alto da mãe ou da irmã, marcadores da feminilidade, além de querer brincar de
bonecas, ao invés de carrinhos ou jogar bola.
Isso se justifica porque quando um bebê nasce junto com ele nasce um conjunto de
expectativas sociais que são estabelecidas a partir de seu sexo biológico, isto é, desde pequeno
somos ensinados que o nosso sexo biológico determina nosso gênero e que dependendo do gênero
determinado é preciso cumprir com determinados papéis, condutas e comportamentos que são
esperados dentro da nossa sociedade.
Muitas crianças que não correspondem a essa expectativa sobre o papel de gênero são
castigadas, como conta Letícia, lembrando sua infância, ela diz que “tinha medo de ir para o
inferno” porque os adultos diziam a ela que se ela brincasse de bonecas ao invés de carrinhos era
para lá que ela iria. A questão da religiosidade vem muito forte no caso de Letícia, que tinha uma
família católica dita tradicional.
Castro e Ferrari (2017) trazem apontamentos sobre o direcionamento moral dos
pensamentos, a partir de certas ‘leituras’ da bíblia cristã.
Tal direcionamento se organiza partir do pressuposto heteronormativo e cissexista, baseado
na ideia de que os sujeitos que vivem sexualidades não-heterossexuais e gêneros não binários
estariam em desacordo com o propósito sagrado e o plano divino, ameaçando crenças e
valores que sustentam as relações sociais. (2017, p.78)
Diante disso, ressaltamos a ideia de que a Igreja consolida um modelo de ser e estar dentro
da sociedade e quem rompe com esse padrão normativo sofre com a intolerância e o preconceito.
10
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Algumas considerações
Escolhemos a série Liberdade de Gênero para análise, por entendermos que os programas
televisivos contêm pedagogias que veiculam significados que nos ensinam modos de ser e de
entender a transgeneridade. Além disso, ao serem apresentados na mídia televisiva, tais significados
assumem efeitos de verdade, pois ao serem enunciados em um canal de TV vinculado a uma
emissora de grande repercussão no país, “isso se põe a funcionar na cabeça de milhares de pessoas
como verdade, unicamente porque foi pronunciado daquela maneira, naquele tom, por aquela
pessoa, naquela hora”. (FOUCAULT, 2003, p. 233)
A série busca mostrar histórias em que os transgêneros se inserem de forma feliz e bem
sucedida no contexto social. Enquanto a maioria dos programas foca em mostrar a marginalização
desses sujeitos, a questão do caráter patológico que essa temática envolve ou a excentricidade que
essa dita minoria desperta, neste programa vemos algumas rupturas com o discurso recorrente,
geralmente carregado de preconceito. “Todo sistema de educação é uma maneira política de manter
ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e poderes que eles trazem consigo”
(Foucault, 2009b:44)
Fisher (2013, p.146) coloca que “estamos sempre diante de uma concepção de discurso
como luta: luta pela imposição de sentidos, pela interpelação de sujeitos, pela conquista de voz”...
Em torno disso refletimos o quanto isso se relaciona com os discursos que neste artigo analisamos
discursos permeados de lutas e batalhas de pessoas que enfrentam tantas barreiras para poder ser
quem são.
Na série são apontados alguns significados sobre a transgeneridade importantes para que
possamos refletir acerca dessa temática, ainda pouco problematizada. Tais como: o caráter
construído dos gêneros e a fluidez de posições de sujeitos no que diz respeito à questão da
transgeneridade nos levando a pensar que somos todos construções de nós mesmos.
Referências
BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio
de Janeiro: Gramind, 2006.
CASTRO, Roney Polato de. FERRARI Anderson. Educação, experiências religiosa, gêneros e
sexualidades: algumas problematizações. In: RIBEIRO, Paula Costa. MAGALHÃES, Joanalira
Corpes (Org). Debates contemporâneos sobre Educação para sexualidade. Editora da FURG.
2017
11
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
CECCARELLI, Paulo Roberto. “Transexualismo e identidade sexuada”. In: VIVIANI, A.(org.).
Temas da clínica psicanalistica. São Paulo: Experimento, 1998.
FISHER, Rosa. Maria. Bueno. (1997, julho/dezembro). O estatuto pedagógico da mídia: questões
de análise. Educação e Realidade, 2, pp. 59-79.
________. Foucault. In.: OLIVEIRA, Luciano Amaral (Org.). Estudos do discurso: perspectivas
teóricas. São Paulo: Parábola Editorial, 2013. p. 123-151.
FOUCAULT, Michel. Poder-saber. In: ______. Ditos & Escritos IV. Estratégia, poder-saber. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 223-240.
________. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções do nosso tempo. Educação &
Realidade, Porto Alegre, v. 22, n. 2, p. 15-46, jul./dez. 1997.
LANS, Leticia. Uma Introdução Longa Porém Necessária. Disponível em
http://www.leticialanz.org/uma-introducao-longa-porem-necessaria. 2008, acesso em 18/05/2017.
LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, Tomaz (Org). O sujeito da
Educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 2002.
LOURO, Guacira. Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista.
Rio de Janeiro: Vozes, 2004.
ROCHA, S. M. Os estudos culturais e a análise cultural da televisão: Considerações teórico-
metodológicas. Rev. Interamericana de Comunicação Midiática, Santa Maria, v.10, n.19, sem. 2011
SILVA, Tomaz. Tadeu. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo.
BeloHorizonte: Autêntica, 2004.
SOARES, Rosêngela; MEYER, Dagmar. O que se pode aprender com a “MTV de papel” sobre
juventude e sexualidade contemporâneas?. Revista Brasileira de Educação, Porto Alegre, n. 23, p.
136-148, maio/jun/jul/ago. 2003.
WORTMANN, Maria Lúcia. Análises Culturais. In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Caminhos
Investigativos II: outros modos de pensar e fazer pesquisa em educação. 2 ed. Rio de Janeiro:
Lamparina, 2007. p. 71-90
12
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
Analyzing meanings of transgenderism in the series Gender Freedom
Astract: In this work we aim to analyze the network of meanings about transgenderism present in
the documentary series Freedom of Gender, shown in the Brazilian television channel GNT. We
understand this series as a potent cultural artifact for reflection on transgenderism, in which are
presented some stories of people who do not identify with the gender assigned to them at birth,
denying any biological determinism. Women-trans, men-trans, non-binary, report their trajectories
until they assume the gender in which they identify or do not identify themselves, as non-binaries.
The methodology consists of the analysis of five episodes of the Freedom of Gender series. Our
studies are based on Cultural Studies, in its post-structuralist, highlighting the influence of the
media in the production of bodies and sexualities and also as a producer of knowledge and
knowledge, understanding that the discourses carried by the media trigger powerful effects of truth
and that this proliferation of discourses has been influencing the production of the transgender
subject.
Keywords: Television media, transgenderism, gender.