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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 1 ISSN1415-4951 ISSN1415-4951 ISSN1415-4951 ISSN1415-4951 ISSN1415-4951

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Page 1: Anais Parte II para site EMERJ · Código Civil, parte I, fevereiro a junho 2002. Número Especial 2004. Anais dos Seminários EMERJ Debate o Novo Código Civil, parte II, julho/2002

Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 1

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© 2004, EMERJEscola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJDiretor-Geral: Des. Sergio Cavalieri Filho

Conselho Consultivo: Des. Celso Guedes, Des. Paulo Sérgio de Araújo e Silva Fabião, Des. Wilson

Marques, Des. Sylvio Capanema de Souza, Des. Luiz Roldão de Freitas Gomes, Desª. Leila Maria

Carrilo Cavalcante R. Mariano

Presidente do Conselho de Conferencistas Eméritos: Des. José Joaquim da Fonseca Passos

Diretor de Estudos e Ensino: Des. Sidney Hartung Buarque

Coordenador Administrativo: Des. Décio Xavier Gama

Coordenador Geral de Ensino: Paulo Roberto Targa

Chefe de Gabinete: Maria Alice da Cruz Marinho Vieira

Anais dos Seminários EMERJ Debate o Novo Código Civil - Parte II

Conselho Editorial:Min. Carlos Alberto Menezes Direito; Des. Semy Glanz; Des. Laerson Mauro; Des. Sergio Cava-lieri Filho; Des. Wilson Marques; Des. Eduardo Sócrates Castanheira Sarmento; Des. Jorge deMiranda Magalhães; Des. Luiz Roldão de Freitas Gomes; Min. Luiz Fux; Des. Letícia de FariaSardas; Des. José Carlos Barbosa Moreira; Des. Décio Xavier Gama; Des. Jessé Torres PereiraJúnior.

Coordenação da obra: Des. Décio Xavier Gama

Produção Gráfico-Editorial da Divisão de Publicações da EMERJEditor: Irapuã Araújo (MTb MA00124JP); Editoração: Wagner Alves e Valéria Monteiro de Andrade;Capa: André Amora; Revisão ortográfica: Suely LimaImpressão: Imprinta ExpressTiragem: 2.000 exemplares

Todos os direitos reservados àEscola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ

Av. Erasmo Braga, 115/4º andar - CEP: 20026-900 - Rio de Janeiro - RJTelefones: (21) 2588-3400 / 2588-3471 / 2588-3376 - Fax: (21) 2533-4860

www.emerj.rj.gov.br uuuuu [email protected]

Revista da EMERJ. v. 1, n. 1 - Rio de Janeiro:EMERJ, 1998.

v.

Trimestral -

ISSN 1415-4951

V.1, n. 4, 1998: Anais da 4ª Semana de Integração JurídicaInteramericana

Número Especial 2003. Anais dos Seminários EMERJ Debate o NovoCódigo Civil, parte I, fevereiro a junho 2002.

Número Especial 2004. Anais dos Seminários EMERJ Debate o NovoCódigo Civil, parte II, julho/2002 a abril/2003.

1. Direito - Periódicos. I. Escola da Magistratura do Estado do

Rio de Janeiro - EMERJ.

CDD 340.05

CDU 34(05)

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 3

ApresentaçãoDécio Xavier GamaCoordenador Editorial.

Direito de Empresa - V isão PanorâmicaPaulo de Moraes Penalva SantosProcurador do Estado/RJ.

Títulos de Crédito e o Crédito CivilJ. A. Penalva SantosDesembargador aposentado do TJ/RJ. Professor da EMERJ.

A Sociedade Limitada no Código CivilLuiz Alberto Colonna RosmanAdvogado. Professor de Direito Societário da Escola de Direito daFGV.

Os Alimentos no Novo Código CivilFrancisco José CahaliAdvogado e consultor jurídico. Professor da PUC/SP.

A União Estável no Novo Código CivilÁlvaro Villaça AzevedoAdvogado. Professor de Direito Civil da USP, de Direito Romano eDireito Civil da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Faculda-de de Direito da FAAP/SP.

Da Filiação no Novo Código CIvilFlávio LauriaProcurador do Estado/RJ. Advogado.

Juizado Especial de FamíliaFátima Nancy AndrighiMinistra do STJ.

As Relações de Parentesco no Novo Código CivilHeloísa Helena BarbozaProfessora titular da Faculdade de Direito da UERJ e ProfessoraAdjunta do Mestrado da Universidade Estácio de Sá.

O Estatuto da Criança e do Adolescente e os Desafios do NovoCódigo CivilTânia da Silva PereiraProfessora da UERJ.

Sumário

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107

32

55

69

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4 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

O Estatuto da Criança e do Adolescente no Novo Código CivilKátia Regina Ferreira Lobo Andrade MacielProfessora da UERJ.

Direito das CoisasLuiz Edson FachinProfessor Titular de Direito Civil da Universidade Federal doParaná.

O Novo Código Civil, Estatuto da Cidade, Direito de SuperfícieRicardo César Pereira LiraProfessor da UERJ. Procurador do Estado/RJ

O Direito de V izinhança no Novo Código CivilCarlos Edison do Rêgo Monteiro FilhoProfessor de Direito Civil da UERJ. Procurador do Estado/RJ.

Os Direitos Reais no Novo Código CivilGustavo José Mendes TepedinoProcurador Regional da República no Rio de Janeiro e Professorde Direito Civil/UERJ.

Do Direito do Promitente CompradorJosé Osório de Azevedo JuniorDesembargador aposentado do TJ/SP. Professor de Direito Civilda PUC/SP

Direitos Reais: Da Aquisição da Propriedade Imóvel. Dos Direitosda VizinhançaFábio Maria De MattiaAdvogado. Professor titular de Direito Agrário/USP

Sucessão dos Descendentes. Sucessão dos Cônjuges e Sucessãona União EstávelLuiz Paulo Vieira de CarvalhoDefensor Público de classe especial. Professor da EMERJ e doCEPAD.

132

140

145

158

168

177

182

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 5

O Direito Sucessório do Não Concebido ao T empo do Óbito e algu-mas inovações na Sucessão T estamentáriaCláudia NogueiraDefensora Pública/RJ. Professora da EMERJ e UCAM

Direitos de V izinhança e Política UrbanaJosé dos Santos Carvalho FilhoProcurador de Justiça/RJ. Professor da UFF e da EMERJ.

O Novo Código Civil e o Código de Defesa do ConsumidorRuy Rosado de Aguiar JúniorMinistro do STJ

235

207

221

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 7

Conferencistas

Álvaro Villaça Azevedo, 82

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, 158

Cláudia Nogueira, 207

Fábio Maria De Mattia, 182

Fátima Nancy Andrighi, 102

Flávio Lauria, 84

Francisco José Cahali, 69

Gustavo José Mendes Tepedino, 168

Heloísa Helena Barboza, 107

J. A. Penalva Santos, 32

José dos Santos Carvalho Filho, 221

José Osório de Azevedo Junior, 177

Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel, 132

Luiz Edson Fachin, 140

Luiz Alberto Colonna Rosman, 55

Luiz Paulo Vieira de Carvalho, 196

Paulo de Moraes Penalva Santos, 11

Ricardo César Pereira Lira, 145

Ruy Rosado de Aguiar Júnior, 235

Tânia da Silva Pereira, 116

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“EMERJ Debate o Novo Código Civil”

DÉCIO XAVIER GAMADesembargador aposentado - Coordenador Editorial

Quem já teve em mãos o primeirovolume destes Anais, sem dúvida notoucerta demora na prometida edição dasua segunda parte, que conclui o regis-tro de momentosos debates que se tra-varam, nos anos de 2002 e 2003, a res-peito da edição do novo CÓDIGO CIVILBRASILEIRO. As dificuldades do lança-mento de anais daqueles debates foramnotadas desde a reprodução das exposi-ções gravadas, sua cuidadosa revisãogeral, até o reexame natural pelos res-pectivos expositores, alguns residentesfora do Rio de Janeiro. A tarefa seriamesmo árdua, em se tratando de segui-das revisões por autores e debatedores.Nada impediu, contudo, que chegásse-mos ao fim dos trabalhos, desde que eranecessário emprestar maior empenho eacelerar os últimos passos para o fim daedição deste segundo volume.

Foi com esforço, pois, que nos de-dicamos a concluir esta segunda parte,completando os registros históricos dosDEBATES. Grande foi o incentivo e aexpectativa dos que nos indagavam pelofim desses trabalhos. Maior era, contu-do, a nossa expectativa, porque acompa-nhamos os trabalhos iniciais e pudemossentir o interesse de muitos em veremregistrados, para o futuro, todo o calordaqueles debates e, sobretudo, a cultu-ra jurídica que dali emanava para umpúblico numeroso, que chegou, em cer-tos dias, a 2.000 pessoas, em diversosauditórios providos de telões.

Na Parte 1ª desses Anais, alémdas palavras iniciais do DesembargadorRoldão tivemos a reprodução da EXPO-SIÇAO DE MOTIVOS do Supervisor daCOMISSÃO REVISORA E ELABORADO-RA do Código, Doutor Miguel Reale e daMensagem Nº 160, de 10/6/1975, doExmº Senhor Presidente da República,

bem como a Exposição de Motivos do Exm°Sr. Ministro de Estado da Justiça DoutorArmando Falcão. Uma VISÃO GERAL DONOVO CÓDIGO CIVIL nos foi dada, emseguida, pelo próprio membro ilustre daComissão, o Jurista Miguel Reale.

Basta-nos, pois, remeter à apresen-tação do primeiro volume, os que nos pres-tigiaram com suas presenças e os quedebateram e compararam as questõesmais importantes da legislação advindado velho e grande jurista CLÓVIS BEVI-LACQUA com a do Diploma Civil novo quea substituiu em 11 de janeiro de 2003. Alitivemos o Desembargador LUIZ ROLDÃODE FREITAS GOMES, cheio de entusias-mo pela matéria e sempre brilhante a nosexpor as regras adotadas em Lei nova.Naquele primeiro volume, que correspon-de aos trabalhos do primeiro semestre de2002, houve por bem a EMERJ publicar asEXPOSIÇÕES de Motivos, que acompanha-ram o então Projeto.

Também na Introdução do Primei-ro Volume, expôs-nos com a verve dogrande civilista de nossos tempos, o Pro-fessor MIGUEL REALE, que esteveconosco desde o primeiro DEBATE tra-vado em de 15 janeiro de 2002, até oúltimo do ano de 2002, em 4 de dezem-bro do mesmo ano. Acentuou ele:

“Compreendo o interesse em co-nhecer a nova Lei Civil, pois, como cos-tumo dizer, ela é a ‘constituição dohomem comum’, que estabelece as re-gras de conduta de todos os sereshumanos, mesmo antes de nascer,dada a atenção dispensada aos direi-tos do nascituro, até depois de suamorte, ao fixar o destino a ser dadoaos bens deixados pelo falecido, sen-do assim, a lei por excelência da soci-edade civil”. (fls. 38,. Parte I)

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 11

Palestra proferida no Seminário realizado em 12/07/2002

A preocupação dos Expositores, quediscorrem hoje sobre o Direito Empresa-rial no Novo Código Civil, é a de abordaras questões que em curto prazo serãotrazidas a debate no Judiciário. Desteângulo, três pontos se destacam: (a) ostítulos de créditos, regulados nos artigos887 a 926, cuja importância é óbvia, ten-do em vista que eles instruem a maioriadas execuções por títulos extrajudiciais;(b) o conceito de empresário, de socieda-de simples e a tormentosa definição deelemento de empresa; (c) o novo trata-mento dispensado à sociedade limitada.O primeiro tema será objeto da palestrado Desembargador Penalva Santos, e oProfessor Luiz Alberto Rosman discorre-rá sobre a sociedade limitada, cabendo amim, além de uma visão panorâmica des-se novo sistema, enfrentar as questõesligadas ao empresário, à empresa e à so-ciedade simples.

Visão panorâmicaO Novo Código Civil deve ser com-

preendido como uma lei básica, mas nãoglobal do Direito Privado, pois não repre-senta a unificação completa do DireitoCivil com o Direito Comercial. A unifica-ção ocorreu apenas no âmbito do Direitodas Obrigações, agora sem distinção en-tre obrigações civis e mercantis.

A parte do Novo Código, concer-nente às atividades negociais ou empre-sárias, é um desdobramento natural doDireito das Obrigações que trata da ati-vidade enquanto esta se estrutura parao exercício habitual de negócios. E a ati-vidade empresarial é uma das manei-ras dessa organização, quando tem porfinalidade a produção ou a circulação debens ou de serviços.

A razão pela qual se afirma que aunificação do Direito Civil com o DireitoComercial não foi completa é que não se

uniu o sistema da insolvência. A insol-vência civil, prevista no Código de Pro-cesso Civil, permanece em vigor para associedades simples e, de outro lado, aLei de Falências se aplicará ao empre-sário e à sociedade empresária, confor-me se depreende da leitura dos artigos1.044 e 2.037 do Novo Código Civil. Esseponto talvez seja o mais importante, poiso novo conceito de sociedade empresá-ria – que é bem mais amplo do que aantiga sociedade comercial – abrange-rá atividades como a de colégios, clíni-cas, hospitais, que estarão sujeitas aorigor da impontualidade, prevista no ar-tigo 1º da Lei de Falências.

O Código Comercial continuará emvigor apenas na Parte Segunda, que regeo Comércio Marítimo (artigos 457 e se-guintes). A unificação, assim, ocorreu: (a)em relação ao conceito de comerciante,que não existe mais, substituído agorapelo conceito de empresário; (b) as socie-dades previstas no Código Comercial sãoincorporadas ao Novo Código Civil, salvoa sociedade anônima, expressamenteressalvada no artigo 1.089; (c) e tambémhaverá a união dos contratos.

Os contratos mercantis, por exem-plo, têm regras próprias, consagradaspela sua informalidade, pela particula-ridade de dispensar solenidades queexistiam na atividade civil. A rapidez dasrelações comerciais tem claros reflexoscontratuais, como é o caso da tradiçãosimbólica que está presente em várioscontratos, como, por exemplo, no penhormercantil (arts. 200 e 274 do Código Co-mercial). Além disso, existem outras re-gras próprias, como a da mora (artigo138), lembrando que o conceito de paga-mento não significa apenas obrigação emdinheiro, pois em alguns casos o CódigoComercial equipara o pagamento em di-nheiro ao pagamento com efeitos comer-ciais, que são os títulos de crédito.

Direito de Empresa – V isão Panorâmica

PAULO DE MORAES PENALVA SANTOSProcurador do Estado/RJ

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Essas regras do Código Comercial serãoderrogadas, mas o que não significa dizer que todaa matéria comercial vai desaparecer, principalmenteem sede falimentar.

Veja-se, por exemplo, o artigo2.037 do Código Civil, na parte das Dis-posições Finais e Transitórias, queestatui o seguinte:

“Art. 2.037. Salvo disposição em con-trário, aplicam-se aos empresários esociedades empresárias as disposi-ções de lei não revogadas por esteCódigo, referentes a comerciantes, oua sociedades comerciais, bem comoa atividades mercantis.”

Da mesma forma, o artigo 1.044 re-fere-se expressamente à falência:

“Art. 1.044. A sociedade se dissolvede pleno direito por qualquer das cau-sas enumeradas no art. 1.033, e, seempresária, também pela decla-ração da falência.”

Esses dispositivos, de uma impor-tância extraordinária, indicam as pes-soas que se submetem ao processofalimentar, que são o empresário e asociedade empresária.

Em síntese, matérias que recla-mam disciplina especial, tais como ocheque, a nota promissória e todos ostítulos de crédito (art.903), a falência ea concordata (arts. 1.044 e 1.102, VII), oDireito Marítimo, o Direito Aeronáuticoexigem tratamento autônomo.

De outro lado, cumpre frisar queo conceito de Direito Empresarial já erauma realidade no Brasil, e não foi intro-duzido pelo Novo Código Civil, pois vemse desenvolvendo há muitos anos. E aprincipal característica do Direito Em-presarial em relação ao Direito Comer-cial está no fato de que o Direito Empre-sarial é por essência multidisciplinar.Há, no sistema brasileiro, normas sobreempresa na Constituição da República,no Direito Administrativo e no DireitoPenal Econômico, todas enfatizando essecaráter interdisciplinar. Essa caracte-rística do Direito Empresarial tornou-se

ainda mais marcante com a nova lei.Voltando ao Novo Código, cabe

destacar os tópicos mais importantes:O primeiro, e o mais relevante,

trata do empresário e da sociedade em-presária, conceitos que vão substituir ode comerciante e de sociedade mercan-til. Esse será o principal tema a ser abor-dado nessa visão panorâmica dos insti-tutos empresariais no Novo Código Civil.

Em seguida, o Código faz uma re-visão completa dos tipos tradicionais desociedade, ou seja, salvo a sociedadeanônima, todas as demais serão trata-das no novo Código Civil, que fixa osprincípios que vão governar as socieda-des. Há um capítulo geral sobre socie-dades e há a criação da sociedade sim-ples, que também terá aqui um desta-que especial.

Sociedade LimitadaOutro ponto de relevo é o minuci-

oso tratamento dispensado à sociedadelimitada. No dia-a-dia do advogado, aquestão ligada à sociedade limitada esuas alterações constituem problemaimportante a ser enfrentado. Isso por-que mais de 98% das sociedades consti-tuídas no Brasil têm a forma de socie-dade por cotas de responsabilidade li-mitada. A preocupação imediata é, por-tanto, a necessidade de adaptar os con-tratos sociais das sociedades por cotasao novo Código Civil.

A maioria absoluta das socieda-des adota a forma de sociedade limita-da, por uma vantagem extraordinária queé a ampla liberdade contratual. A liber-dade contratual da sociedade limitadajustifica que todos, desde o pequeno co-merciante, até as maiores empresas decapital estrangeiro, adotem a forma desociedade limitada. Tome-se como exem-plo a IBM do Brasil, a Gillette do Brasil,a Gessy Lever, a Kolynos, a Ford, todasessas grandes empresas de capital es-trangeiro utilizam a mesma sociedadeque interessa ao pequeno comerciante.

A vantagem, como já dissemos, éa autonomia da vontade das partes naelaboração do contrato social. E a análi-

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 13

se de um contrato social dessas empre-sas multinacionais revela que, por von-tade dos sócios, a sociedade se aproxi-ma mais de uma S.A do que das socie-dades tradicionais do Código Comercial.

No novo sistema que vigorará apartir de janeiro de 2003, nota-se que alei aproximou a sociedade limitada daS.A. fechada, mas com uma contradiçãoflagrante: determinou que, salvo dispo-sição contratual em contrário, aplica-sesupletivamente a regra geral das socie-dades simples (art. 1.053).

Conforme veremos a seguir, o ca-pítulo referente à sociedade simples(arts. 997 a 1.038) é confuso, pois con-tém normas típicas das sociedades depessoas do Código Comercial, como aresponsabilidade solidária dos sócios ea possibilidade de o sócio ingressar nasociedade sem capital (sócio de indús-tria), mas que não se aplicam à socieda-de limitada.

Por isso, para uma correta aplica-ção das normas da sociedade simples àsociedade limitada é preciso que o in-térprete saiba quais as regras especiaisda limitada que afastam a aplicação dasnormas gerais referentes às sociedadessimples.

Ainda sobre a limitada, outra des-vantagem evidente foi a criação de inú-meras formalidades que são desneces-sárias, tais como quorum elevado paracertas deliberações sociais, e necessi-dade de decisão judicial para excluir osócio da sociedade. Este último exem-plo foi uma solução para um problemaque não existia, pois na vigência do De-creto nº 3.708/19 a jurisprudência jáadmitia a demissão do sócio pela sim-ples alteração do contrato social, semque isso representasse qualquer incon-veniente.

No final deste ano, a Escola daMagistratura realizará um CongressoInternacional Sobre o Novo Código Civil,no qual o Professor Vittorio Santoro, Ti-tular de Direito Comercial da Universi-dade de Siena, discorrerá sobre a refor-ma da sociedade de responsabilidade li-mitada na Itália. Certamente, uma das

questões mais importantes será a auto-nomia das vontades dos sócios na limi-tada, que passará a ter enorme impor-tância na nova lei italiana.

Pelo que se percebe da reformaitaliana, a nova lei deverá abandonar arigidez do Código Civil de 1942, para in-centivar a autonomia concedida aos só-cios, com o objetivo de moldar a limita-da aos interesses privados dos sócios.Nesse ponto, o Novo Código Civil Brasi-leiro está copiando um modelo obsoleto,do qual o legislador italiano pretende seafastar.

Em seguida, o Código Civil cuida,em capítulo próprio, das sociedades co-ligadas, estabelecendo também normassobre a liquidação, transformação, incor-poração e fusão. Disciplina também associedades dependentes de autorização,bem como o estabelecimento, que repre-senta o instrumento ou meio de ação daempresa. E, finalmente, os denomina-dos institutos complementares, que sãoo registro, o nome e a preposição.

Sociedade Dependente de AutorizaçãoO Código Civil trata das socieda-

des dependentes de autorização, o queé de pouca relevância prática, porqueessa matéria era tratada no artigo 59na Lei de Sociedades por Ações anteriore, por força da atual lei (Lei 6.404/76),continua em vigor. Essa matéria chegou,num determinado momento, a ser tra-tada pela Constituição da República.Depois, foi modificada. Parece que a úni-ca diferença é que voltou a ter a sedena lei ordinária e não na Constituição.

EstabelecimentoÉ sabido que a estrutura jurídica

do estabelecimento varia de acordo como ramo da atividade a que se dedica oempresário. O vínculo que une entre sios elementos do estabelecimento é fun-cional, ou seja, depende da utilizaçãoque lhes é dada pelo empresário. O titu-lar pode explorar um estabelecimentosem que os bens sejam de sua proprie-dade, como ocorre nos contratos de lo-cação ou licença de exploração de in-

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14 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

vento. Em casos como este, a existênciado estabelecimento dependerá da ma-nutenção desses contratos, os quais de-vem ser protegidos como integrantes dofundo de empresa.

Nos artigos 1.142 a 1.149 é defi-nido o estabelecimento, pela primeiravez em lei:

“Art. 1.142. Considera-se estabele-cimento todo complexo de bens orga-nizado, para exercício da empresa,por empresário, ou por sociedadeempresária.”

A lei protegia sempre de forma in-direta o fundo de comércio ou estabele-cimento comercial, proibindo a concorrên-cia desleal, ou preservando o seu valoratravés da venda englobada prevista, porexemplo, na lei falimentar. Mas não ha-via uma definição de fundo de comércio,que já há muitos anos vinha evoluindopara o conceito de fundo de empresa.Antes da vigência da atual Lei de Loca-ções, a jurisprudência já admitia, porexemplo, a utilização da ação renovatóriapelas sociedades que não eram mercan-tis, como os colégios, hospitais, etc. Issonada mais era do que o próprio reconhe-cimento desse instituto ampliado, queseria o fundo de empresa.

Adiante, o Novo Código Civil defi-ne os efeitos da alienação, do usufrutoou do arrendamento do estabelecimen-to, dando grande importância ao regis-tro. É o que estatui o artigo 1.144:

“Art. 1.144. O contrato que tenha porobjeto a alienação, o usufruto ou ar-rendamento do estabelecimento, sóproduzirá efeitos quanto a ter-ceiros depois de averbado à mar-gem da inscrição do empresário,ou da sociedade empresária, noRegistro Público de EmpresasMercantis, e de publicado naimprensa oficial.”

Então, qualquer negócio jurídicoque tenha por objeto o estabelecimento,deve obrigatoriamente ser registrado. E,também, cabe frisar que o artigo 1.147

trata expressamente da concorrência,que agora depende de previsão explícitapara que o cedente continue naquelaatividade, senão vejamos:

“Art. 1.147. Não havendo autorizaçãoexpressa, o alienante do estabeleci-mento não pode fazer concorrência aoadquirente, nos cinco anos subse-qüentes à transferência.Parágrafo único. No caso de arrenda-mento ou usufruto do estabelecimen-to, a proibição prevista neste artigo per-sistirá durante o prazo do contrato.”

Assim, se por acaso o cedente qui-ser continuar na mesma atividade, hánecessidade de concordância expressado adquirente.

Nome EmpresarialEm seguida, há um tratamento

novo em relação ao nome. O nome tempor finalidade identificar a firma ou adenominação; a firma serve para desig-nar o nome pelo qual o empresário exer-ce a sua atividade, representando tam-bém a sua assinatura.

O sistema já existia e continuaem vigor. Algumas atividades só podemser representadas por firma, como é ocaso do empresário individual. E outrassó por denominação, que é o exemplo dasociedade por ações. É até razoável con-cluir que a sociedade anônima não pos-sa ter firma por uma razão muito sim-ples, por causa do anonimato, quer di-zer, não deve constar do estatuto os no-mes dos sócios.

Gerou uma certa polêmica o arti-go 1.164, ao estabelecer que o nomeempresarial não pode ser objeto de alie-nação. Mas essa interpretação deve serfeita em relação ao empresário e não àsociedade empresária, porque o nomeempresarial tem um valor patrimonialconsiderável e, muitas vezes, é uma par-cela substancial do próprio ativo. Não fazsentido que a lei possa impedir que umasociedade empresária aliene o seunome. Aplica-se, ainda, em relação aonome, a Lei 8.934/94, que trata do re-

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 15

gistro da atividade empresarial, na qualhá uma referência expressa aos princípi-os da veracidade, que proíbe a adoção deum nome que vincule uma informação fal-sa, e também ao princípio da novidade.

RegistroAinda nos denominados institutos

complementares, a lei trata do registrode empresa, salientando, basicamente,que a sociedade simples tem que ser le-vada a registro no Cartório Civil de Pes-soas Jurídicas e as sociedades empre-sárias na Junta Comercial.

Em relação à sociedade empresa-rial, aplica-se também a Lei nº 8.934/94, que trata de todo o sistema de regu-laridade do registro, das formalidades eda forma de controle. Esse sistema querege as formalidades encontra-se na Leide Registro de Atividades Empresariaise não no Novo Código Civil.

PreposiçãoAdiante, o Novo Código Civil rege,

nos artigos 1.169 a 1.178, a atividade dopreposto, matéria de pouca relevância.

O preposto, de fato, era uma pes-soa que tinha muita importância na vi-gência do Código Comercial no séculoretrasado, sob a conceituação de ummero auxiliar no exercício da atividadedo comerciante. Ele atuava sob as or-dens e orientação do comerciante, e ago-ra sob as ordens do empresário ou dasociedade empresária.

No capítulo referente ao preposto, alei define o conceito de gerente. E o ge-rente, a partir de então, não é mais o re-presentante na qualidade de órgão da so-ciedade por cotas de responsabilidade li-mitada. O gerente passa a ter apenas aqualificação do preposto mais especializa-do, ou seja, é o preposto mais graduadodentro do estabelecimento. Não há im-portância alguma essa alteração que in-clui no Código Civil o conceito de preposto:o que se considerava gerente, passa a seradministrador, e o gerente, agora, nadamais é do que um preposto especializado.

Sociedade CooperativaA lei trata, no artigos 1.093 a

1.096, da sociedade cooperativa.A partir da Constituição de 1988

houve um avanço muito grande com re-lação às sociedades cooperativas, que selibertaram da tutela estatal, que atéentão era a principal característica des-sa atividade.

Surgem, agora com o Novo CódigoCivil, normas gerais em relação às soci-edades cooperativas, cujas principaiscaracterísticas são as seguintes:1º) adesão voluntária;2º) número ilimitado de sócios;3º) variabilidade do capital social ou asua dispensa;4º) cotas transferíveis a terceiros;5º) cada sócio tem apenas um voto, ouseja, na sociedade cooperativa o voto nãoé proporcional à participação no capitalsocial;6º) a responsabilidade pode, ou não, serlimitada em relação ao sócio.

E a lei definiu como objeto o exer-cício de atividade econômica de proveitocomum, sem fins lucrativos, prevendoainda, expressamente, que a contribui-ção dos sócios pode ser feita através debens ou de serviços.

Empresário e empresaChegamos ao ponto central. Dis-

cutiremos os conceitos de empresa, em-presário e sociedade simples.

Como já dissemos anteriormente,apesar de o Livro II do Código Civil ter adenominação de Direito de Empresa, nãohá na lei definição de empresa, mas ape-nas de empresário. Aliás, da leitura daExposição de Motivos percebe-se que alei cuida da atividade negocial que semanifesta economicamente na ativida-de empresarial, de titularidade do em-presário e na forma como exerce suaatividade.

Seguindo a linha do Código CivilItaliano, a nova lei brasileira preferiunão dar um conceito jurídico de empre-sa, pois é um fenômeno preponderante-mente econômico, conforme a lição clás-sica de Alberto Asquini (“Profili

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dell’impresa”, in Rivista Del Diritto Com-merciale, 1943, v. 41, I).

Empresa seria então o exercíciode atividade economicamente organiza-da para a produção de bens ou serviçospara o mercado, e sociedade empresá-ria é a que tem por escopo a empresa.

A melhor definição econômica deempresa nos é dada pelo ProfessorBulhões Pedreira, ao afirmar que “em-presa é espécie do gênero ‘unidade deprodução coletiva’, que se distingue portrês características: (a) produz bens eco-nômicos destinados à venda no merca-do; (b) seu grupo social é formado porempresário e empregado; e (c) os riscosda sua atividade são assumidos peloempresário” (in Finanças e Demonstra-ções Financeiras da Companhia, Foren-se, 1989, p. 269/270).

A dificuldade que se percebe é queo fenômeno econômico da atividade em-presarial tem diversos enfoques jurídi-cos, destacando-se os seguintes: subje-tivo, quando a lei trata a empresa a par-tir da figura do empresário; objetivo,quando a empresa é sinônimo de coisaou de patrimônio; e, finalmente, quandoé referida nem como sujeito nem comoobjeto, mas como um perfil corporativoou institucional.

Feita essa distinção, conclui-seque o Novo Código Civil cuida da empresaapenas do ponto de vista do empresário,identificando-a pelo exercício da ativida-de definida no artigo 966, senão vejamos:

“Art. 966. Considera-se empresárioquem exerce profissionalmente ativida-de econômica organizada para a pro-dução ou a circulação de bens ou deserviços.Parágrafo único. Não se considera em-presário quem exerce profissão intelec-tual, de natureza científica, literária ouartística, ainda com o concurso de au-xiliares ou colaboradores, salvo se oexercício da profissão constituir ele-mento de empresa.”

Adiante, o art. 982 define a soci-edade empresária:

“Art. 982. Salvo as exceções expres-sas, considera-se empresária a soci-edade que tem por objeto o exercíciode atividade própria de empresáriosujeito a registro (art. 967); e, simples,as demais.”

O conceito de empresário é for-mado por três elementos: o de atividadeeconômica referente à circulação de ri-quezas, bens ou serviços; pela organiza-ção dessa atividade econômica; e, final-mente, pela profissionalidade do seu ti-tular, que exerce essa atividade habitu-almente e com o intuito de obter lucroou resultado econômico.

No absoluto rigor técnico, a pala-vra empresa é ligada à atividade e não àsociedade ou ao seu sócio. O empresá-rio não é o sócio, mas a própria socieda-de. A atividade empresarial pode ser ex-plorada pelo empresário individual oupela sociedade empresária.

Elemento de empresaA identificação do elemento de

empresa depende do perfil da unidadede produção. Um dos critérios de classi-ficação das unidades de produção dizrespeito aos recursos humanos nelasutilizados. Segundo essa classificação,a unidade de produção pode ser indivi-dual ou coletiva. A unidade individualde produção caracteriza-se pela ativida-de organizada preponderante pelo tra-balho, recursos de capital e naturais pró-prios. Na unidade de produção individu-al pode haver colaboradores ou empre-gados, mas desde que essa atividadeauxiliar seja sempre secundária.

Já a unidade coletiva de produ-ção é caracterizada pela existência deum grupo social que organiza fatores deprodução, utilizando capital e trabalhode outras pessoas para a produção debens ou serviços para o mercado.

Somente através do exame decada caso é que se pode saber se umapessoa que exerce profissionalmenteuma atividade econômica, de produçãode bens e serviços, pode ou não ser con-siderada empresária, especialmente

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 17

aquelas referidas no Parágrafo Único doart. 966.

Os elementos que diferenciam aunidade individual de produção da uni-dade coletiva seriam a existência de umgrupo social que exatamente identificas-se o elemento de organização dos fato-res da produção. Enquanto que na ativi-dade meramente intelectual de um pro-fissional autônomo o elemento de orga-nização dos fatores é meramente aci-dental, na atividade do empresário essaorganização deve ser preponderante epermanente.

O exemplo clássico é do dentistaque tem consultório próprio, no qualpresta serviços de odontologia, ainda quecom o concurso de auxiliares. Nessascondições, essa atividade não é consi-derada empresarial, pois a organizaçãodos fatores da produção é apenas aces-sória. Mas, se esse mesmo dentista seorganiza, unindo capital e trabalho deoutros dentistas, utilizando imóvel eequipamentos com recursos oriundosdesse grupo social, aí estará identificadaa atividade empresarial. Nesse segundoexemplo, o elemento organização é pri-mordial.

E o registro passa a ser elementoconstitutivo para a caracterização da ati-vidade empresarial, salvo quando a leiexpressamente o dispensar. Enquanto nodireito anterior (na vigência do C. Co-mercial de 1850) o conceito de comerci-ante não dependia de qualquer registro,pois se caracterizava pelo exercício ha-bitual da mercancia, agora só será em-presário quem estiver regularmente ins-crito no Registro de Empresas.

Empresário ruralAqui, o Novo Código Civil cria uma

classe especial de empresário facultati-vo. O empresário ruralista pode optarpela inscrição no registro de Empresas,caso em que terá o tratamento do em-presário definido no artigo 966. Salvohipótese de uma vantagem tributária,considero pouco provável que o empre-sário rural queira se submeter ao regi-me da sociedade empresária, por uma

razão muito simples: ele estará se su-jeitando ao rigor da impontualidade pre-visto na lei falimentar.

Cumpre salientar que a vantagemde se obter o benefício da concordatapreventiva não é suficiente para atrair oempresário rural para o regime da soci-edade empresária, pois quem tem o di-reito ao favor legal de impetrarconcordata preventiva é quem está su-jeito ao rigor da impontualidade e ao sis-tema do crime falimentar.

Essa distinção cria uma certa con-fusão, pois o Novo Código Civil estabeleceduas classes de empresários: aqueles su-jeitos a registro (arts. 966 e 967) e os em-presários ruralistas, cujo registro empre-sarial (art. 967) passa a ser facultativo.

O Anteprojeto de 1972, no art.1.031, definia o empresário rural como“o que exerce atividade destinada à produ-ção agrícola, silvícola, pecuária e outrasconexas, como a transformação ou alienaçãodos respectivos produtos, quando pertinen-tes aos serviços rurais.” Apesar dessa de-finição ter sido suprimida, a atividadenela contida serve para identificar oempresário ruralista.

Pelo fato de a lei não definir em-presário rural, alguns autores, adotandoum critério meramente geográfico, enten-dem que o minerador é empresário rural.

Com a devida vênia, trata-se deequívoco grave, provavelmente decorren-te da confusão entre minerador e ga-rimpeiro. O ato da lavra, que é da es-sência da atividade do minerador, émercantil, sendo que o art. 2.037 do NovoCódigo Civil determina que se apliquemaos empresários e às sociedades empre-sárias as disposições referentes aos co-merciantes. De outro lado, a atividadede garimpagem, regida pela Lei nº 7.805/89 define a garimpagem como atividadeindividual ou cooperativada, que tem otratamento de atividade rural. Portan-to, apenas o garimpeiro pode ser equi-parado ao ruralista.

Conceito de Atividade EmpresarialNa realidade, a utilização do con-

ceito de atividade empresária já vinha

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18 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

desde a vigência da Lei 8.934/94, regu-lamentada pelo Decreto 1.800/96, quetrata do registro dessa atividade. Logo,o conceito de atividade empresarial, emtermos de legislação ordinária, não sur-giu agora no Novo Código Civil. A Lei nº8.934/94 é muito importante, porque,para efeito de registro, já havia adotadoo conceito de sociedade empresarial,superando aquela idéia tradicional desociedade mercantil.

Na vigência do Novo Código Civil,não haverá dúvida de que atividadescomo as exercidas pelas sociedadesprestadoras de serviços, ou aquelas quetêm por objeto a compra e venda de imó-vel, estabelecimentos de ensino e hos-pitais serão todas empresariais. E, umavez que a sociedade se enquadre comoempresarial, a conseqüência séria é aaplicação da Lei de Falências.

Sociedade Simples e Insolvência CivilDe outro lado, se a sociedade for

simples (art. 997) não se aplicará a Leide Falências, mas a insolvência civil. Oartigo 955 do Novo Código Civil trata dainsolvência civil e estabelece, repetindoa norma do artigo 748 do CPC, que “asociedade é considerada insolvente quan-do as dívidas excedam a importância dosbens do devedor.” Em seguida, os artigos956 a 965 tratam da classificação de cré-ditos na insolvência civil. É claro queesse sistema do Código Civil novo já nas-ceu velho, porque, por força da Consti-tuição, as normas gerais do Direito Tri-butário são de natureza de Lei Comple-mentar, portanto, o Código Tributário Na-cional trata da prioridade do crédito tri-butário, reconhecendo, apenas, supre-macia absoluta do crédito trabalhista,nos termos do artigo 186 do CTN. E essesistema de classificação de créditos doCódigo Civil deve ser interpretado deacordo com essas leis que tratam daspreferências e privilégios dos créditostrabalhistas e tributários.

Formas SocietáriasQuanto às formas societárias, o

Novo Código Civil suprimiu apenas a so-ciedade de capital e indústria, manten-

do as demais, que são sociedade em con-ta de participação, em nome coletivo,comandita simples, por cotas de respon-sabilidade limitada e a comandita porações. Porém, salvo a limitada, as de-mais formas societárias caíram em de-suso a partir do Decreto nº 3.708/19 e,provavelmente, serão de pouca valia. Epor uma razão muito simples, porque nãofaz sentido alguém constituir uma soci-edade em nome coletivo, comandita sim-ples ou comandita por ações na qual pelomenos um dos sócios terá sempre a res-ponsabilidade solidária em relação àsobrigações sociais.

Sociedade Simples O Novo Código Civil dedica um

Capítulo inteiro (arts. 997 a 1038) à soci-edade simples, reproduzindo, em grandeparte, o sistema italiano de 1942, justa-mente criticado pelos juristas italianos,por ter sido uma sociedade sem história.Segundo Brunetti (in Trattato Del Dirittodelle Società), a sociedade simples nãorepresentava as necessidades do comér-cio no campo das sociedades, pois foi ape-nas a adoção do caráter meramente dou-trinário do Código de Obrigações suíço.

A dificuldade inicial decorre dofato de que o Novo Código Civil defineapenas a sociedade empresária, e não asimples. Vejamos o art. 982:

“Art. 982. Salvo as exceções expres-sas, considera-se empresária a soci-edade que tem por objeto o exercíciode atividade própria de empresáriosujeito a registro (art. 967); e, simplesas demais.”Como a lei diz somente que a so-

ciedade simples é aquela que não é em-presária, alguns autores consideram queessas sociedades são as que exercemas atividades listadas no parágrafo úni-co do artigo 966, e, outros, entendemque são aquelas que exploram ativida-des previstas em leis especiais, como éo caso da Lei nº 8.906/94 que rege oexercício da advocacia.

Sabemos que o Estatuto da Ordem(Lei 8.906/94) impede expressamenteque a sociedade de advogados possa terforma ou característica mercantil. Ve-jamos o artigo 16 e seu parágrafo 3º:

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 19

“Art.16. Não são admitidas a regis-tro, nem podem funcionar, as socie-dades de advogados que apresentemforma ou características mer-cantis, que adotem denominação defantasia, que realizem atividades es-tranhas à advocacia, que incluam só-cio não inscrito como advogado outotalmente proibido de advogar.“§ 3o. É proibido o registro, noscartórios de registro civil depessoas jurídicas e nas juntascomerciais, de sociedade que in-clua, entre outras finalidades, a ati-vidade de advocacia.”

Quanto ao objeto, é claro que tan-to o exemplo das atividades indicadasno parágrafo único do art. 966, quanto oda sociedade de advogados são hipóte-ses de sociedades simples, mas não sãosuficientes para conceituar esse novomodelo. Aliás, a sociedade de advogadosassemelha-se à sociedade simples so-mente quanto ao objeto, pois quanto àformalidade do registro haveria umdescompasso entre a exigência do arti-go 1.150 e o Estatuto da Ordem dos Ad-vogados que não permite o seu registrono Cartório de Registro Civil das Pesso-as Jurídicas.

O que se percebe, de uma leituraatenta do Novo Código Civil, é que a so-ciedade simples pode ter dois significa-dos: 1) seria um modelo básico, que po-deria ser aplicado a todas as sociedadesno caso de lacuna da lei, salvo a socie-dade anônima; 2) é um Capítulo desti-nado a regular um modelo de sociedadede pessoas, porque existem várias nor-mas de responsabilidade solidária (art.1.024), e até mesmo hipóteses de sóciode indústria (inciso V do art. 997).

Da forma como está disciplinadaa sociedade simples, os intérpretes se-rão chamados, a todo momento, paraesclarecer quais as regras das socieda-des simples que lhe são específicas equais as normas gerais que podem seraplicadas às demais formas societárias.E, sem dúvida, a maior dificuldade sur-

girá quando a sociedade simples adotara forma da limitada, que não admite só-cio prestador de serviço, como o inciso Vdo art. 997 permite, nem pode o sócioresponder com seus bens pessoais naforma do art. 1.024.

Portanto, caberá à jurisprudênciae à doutrina resolver esses evidentesconflitos entre as normas gerais previs-tas na sociedade simples e as normasespeciais das várias formas societárias,tarefa esta que será mais difícil quandoa própria sociedade simples for uma li-mitada.

Observado o critério de que a re-gra especial afasta a aplicação da regrageral, desaparecerá a aparente contra-dição entre vários dispositivos dessa par-te geral das sociedades simples e asnormas especiais dos artigos 1.052 a1.087.

Finalmente, em relação à socie-dade simples, destacam-se outras duasquestões relevantes.

Dissolução ParcialA primeira diz respeito ao direito

de retirada. Sabemos que a jurisprudên-cia mansa e pacífica do Supremo Tribu-nal Federal admite a denominada dis-solução parcial de sociedades, que sig-nifica o direito de o sócio minoritárioromper o vínculo societário e apurar osseus haveres pelo critério da dissoluçãoda sociedade. Essa avaliação das cotasera feita com base em balanço de liqui-dação, avaliando-se os bens pelo valorde mercado. Note-se que a jurisprudên-cia aplicava esse sistema fundamenta-do no art. 335, inciso V do Código Co-mercial, o qual permite que qualquersócio possa pedir a dissolução da socie-dade por prazo indeterminado.

Acontece que o Novo Código Civilnão reproduziu essa norma do art. 335do Código de Comércio, deixando a cri-tério das partes estipular a forma deapuração dos haveres do sócio que seafasta da sociedade. Ao contrário, o art.1.031 deixa claro que o contrato socialpode discriminar o critério de avaliaçãodas cotas, inclusive quanto a forma depagamento dos haveres.

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20 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

Cláusula Restritiva de GerênciaA outra mudança relevante diz

respeito aos atos de administração, es-pecialmente no que diz respeito aos de-nominados atos restritivos de gerência.

A jurisprudência, principalmentedo Supremo Tribunal Federal, já vinhaadotando há muitos anos o sistemagermano-suíço, entendendo que as limi-tações aos poderes de gerência não pro-duzem efeitos em relação ao terceiro deboa-fé, desde que o ato seja praticadode acordo com o objeto social, e no inte-resse da sociedade.

Agora, o Código Civil adotou lite-ralmente a regra do artigo 2.298 do Có-digo Civil Italiano, admitindo a validadeda cláusula restritiva de gerência emrelação ao terceiro de boa-fé, pois o arti-go 1.015 do novo Código Civil dispõe queo excesso de poder dos administradorespode ser oposto a terceiros quando ocor-rer uma das seguintes hipóteses: 1) se alimitação de poderes estiver inscrita noRegistro Empresarial; 2) provando-se queo terceiro tinha ciência dessa limitação;3) operação evidentemente estranha aoobjeto social. Além da oponibilidade aosterceiros dos atos restritivos de gerên-cia, o Novo Código Civil adota expressa-mente a teoria do ato ultra vires, pois osatos praticados em desacordo com o ob-jeto social não obrigam a sociedade, combase no inciso III do art. 1.015.

A partir da vigência do Novo Códi-go Civil, é fundamental verificar os po-deres dos administradores, pois essasrestrições serão oponíveis aos terceirosde boa-fé, como são exemplos os contra-tos sociais que proíbem o aval e a fiançaem nome da sociedade.

ConclusãoEm síntese, creio que a interpre-

tação das regras das sociedades simplese a ampliação do conceito de sociedadecomercial para sociedade empresáriaserão as questões que em curto prazovirão a debate no Judiciário. Na segun-da hipótese, preocupa-nos bastante o fatode que atividades como as exercidas porcolégios, hospitais, estarão agora sub-metidas ao rigor da Lei Falimentar, não

só pelo sistema da impontualidade, mastambém pelo crime falimentar. Impõe-se, portanto, uma reflexão sobre essasquestões, que passam a ter caracterís-ticas peculiares que não existiam até oadvento do Novo Código Civil.

DEBATESDr. Antonio Carlos Esteves Torres

As perplexidades exibidas pelo Dr.Paulo Penalva Santos a rigor são as nos-sas perplexidades. Estamos diante de ummomento ímpar na evolução social bra-sileira, porque introduzir alterações ouadaptar um monstro sagrado, como é oCódigo Civil de 1916, é tarefa hercúlea.Tanto é assim que não foi uma nemduas as comissões que estiveram encar-regadas de adaptar as circunstânciasmodernas ao novo Código Civil. Estamosdiante dele, aqui estamos diante dosoperadores do Direito e é obra para to-dos nós. O Dr. Penalva Santos ressaltoualguns pontos que realmente merecemnossa reflexão.

Em primeiro lugar, esta dicotomiaentre sociedades simples e empresarialnos deixa, para dizer no mínimo, curio-sos, porque, em termo vernacular, sim-ples é o que não é complexo, o que não éluxuoso, por exemplo, e como é que euvou classificar uma sociedade empresa-rial dentro dessa gama de conceitos deantinomia que se opõe ao termo simples?Tenho a impressão de que a dificuldadedo intérprete começa pela literalidadeporque o que é a sociedade simples emcontraposição à empresarial?

O professor deixou bem claro quenão entendeu, e parece-me que nenhumde nós também terá entendido, o que éelemento da empresa. Essa parte é im-portante, porque isso vai definir seestamos diante de uma entidade empre-sarial ou não. Veio-me à cabeça que a leilançou aos escaninhos subjetivos a defi-nição de empresa. Temos que tirar danoção de empresário o que é empresa.

Para mim, elemento de empresaé qualquer ato ou qualquer circunstân-cia que se introduza na cadeia entre pro-dução e circulação de bens. Não sei, pos-

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 21

so estar errado, mas nesse momento, eaí vem talvez a dúvida maior, quero res-saltar é que estamos diante de dificul-dades interpretativas e a interpretaçãoda lei no espaço e no tempo. Note que seformos avaliar um trabalho de mais detrinta anos, pois esse Código Civil é mes-mo difícil de ser alterado, porque é ummonumento legislativo, não é simples.Agora estamos nos momentos finais, quepara nós serão os momentos iniciais. Aí,professor, vem a grande questão: ondeestá a Lei de Introdução que ninguémdiz nada sobre ela? O que aconteceu quenão comparece aos debates e não é men-cionada?

Quando, a meu ver, neste mo-mento, e para nós que somos operáriosdo direito, a Lei de Introdução se tornoua lei mais importante do nosso sistema.Por que a Lei de Introdução não vem alume? Certamente ou estarei em algumerro de avaliação ou o legislador estáalterando o Código Civil (permita-me daresse tempo de verbo à vacatio legis). “Estáalterando” porque pelo menos tenho aquicomigo a notícia de que mais de trezen-tas emendas estão sendo observadas noCongresso. Mas o legislador achou quenão precisaria de regras de interpreta-ção da lei, ou então os debates, ossimpósios e os comentários estão a es-quecer da Lei de Introdução. Essa é umacuriosidade minha que certamente o Dr.Paulo Moraes Penalva Santos há deescoimar.

O novo Código, além dessa perple-xidade quanto à entidade empresarial eà simples, traz outras perplexidades maisgraves no meu entender. Por exemplo, oartigo que revoga as disposições em con-trário, artigo 2.045 dispõe: “Revogam-sea Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916 –Código Civil e a Parte Primeira do CódigoComercial, Lei nº 556, de 25 de junho de1850”. Quando o Código Civil entrou emvigor, o seu artigo 1.807 dizia que fica-vam revogados as ordenações, alvarás,leis, decretos, resoluções, usos e costu-mes. Os usos e costumes estão tratadosna Parte Geral do Código Comercial, queacabou de ser revogada. Confesso, senho-

res que, até por alguma deficiência inte-lectual, não sei como se revogam usos ecostumes a não ser por uso e costume.Ou é uso e costume ou não o é. Por lei,por decreto, jamais se revoga, porque issoé um fato social, é uma circunstância daevolução da sociedade que não dependede lei, depende da atitude, do comporta-mento, das reações humanas. Então, pro-fessor, fica aí uma questão difícil de serrespondida: como se revogam usos e cos-tumes? Além do mais, como umcomplicador, temos que a lei que cuidade registro, a Lei das Juntas Comerciais– e o Decreto 1.800 em seu artigo 87 dizisso claramente – continua prevendo oregistro de usos e práticas e não estárevogada. Como então vou considerar usoe prática, uso e costume perante a novadisposição do Código Civil que não é novo,é apenas adaptado? Evidentemente, quese voltarmos os nossos olhos para a Leide Introdução, tenho a impressão de queo trabalho estará reduzido em pelo me-nos 50%, pois sempre haverá dúvidas eproblemas. Mas, a Lei de Introdução pre-cisa ser lembrada, precisa ser utilizada.

O Código está montado em prin-cípios genéricos que o próprio ProfessorMiguel Reale nos lembrava, que são prin-cípios dessa qualidade: a eticidade, asocialidade e a operabilidade. Vejam bemquanto de subjetividade temos aqui.Quando a lei era lacunar, o artigo 4º daLei de Introdução dizia que o juiz podiausar os usos e costumes, a analogia, osprincípios gerais do Direito. Parecia quese engessava ali a figura do magistrado.A eqüidade, a cujo conceito dificilmenteé dado uma definição precisa, só eraaplicável também na lacuna da lei. Hoje,os legisladores em geral, assim como oslegisladores da nova Lei de SociedadesAnônimas, também usam a boa-fé obje-tiva como um dos princípios que regemas relações contratuais. Então, o juiz nãotem mais a lacuna para aplicar a gene-ralidade do artigo 4º da Lei de Introdu-ção ao Código Civil, que aliás curiosa-mente veio depois do Código, porque elafoi alterada (agora sim, ela pode voltarao seu lugar, ao seu tópico natural, que

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é anteceder o Código Civil). Agora, o le-gislador resolveu assumir a existênciadesses princípios intangíveis e eles cons-tam da própria letra da lei, não há maislacuna. Parece simples, mas não o é.Isso aumenta, no meu entender, a tare-fa do magistrado, porque ele vai ter maisdo que nunca que se ligar aos aspectossociais, aos usos e costumes da socie-dade para poder ser justo, reto e bom.

Às vezes há uma alteração sim-ples, mas o vocábulo que se introduz emum monumento como o Código Civil Bra-sileiro transforma a nossa vida de intér-prete em um verdadeiro inferno. Vejambem que a simulação com a qual estáva-mos tão habituados a tratar como fatorde anulabilidade, hoje o Código diz quese trata de nulidade. Mas a teoria dizque há a simulação absoluta e a relativa.Será que a simulação relativa tambéminduz à nulidade? Tenho dúvida e meparece que a lei não fez essa distinção.

Temos problemas de ordem pro-cessual que realmente vai aguçar a cu-riosidade: o caso da liqüidação das so-ciedades. O novo Código discorre lar-gamente, especificadamente sobreliqüidação de sociedade e, no final, dizque vai se aplicar o Código de ProcessoCivil no caso de liqüidação. Ele é bemclaro. E a dissolução, não poderá maisser judicial? O artigo quando fala emdissolução começa dizendo “dissolvidaa sociedade”, ou seja, já é ponto pací-fico. Ao final diz que a liqüidação pode-rá ser judicial. Evidentemente,estamos diante de um belo exemplo deconflito aparente de normas porqueninguém pode subtrair do Judiciárioqualquer tipo de conflito e para que adissolução seja definida, também podeser matéria judiciária. Evidentemen-te, temos que adotar aí os nossos cri-térios de interpretação e volto à mi-nha indagação: e a Lei de Introduçãoonde está? É ela que diz como é quevamos tratar as leis que vigem parale-lamente. Lamentavelmente, não estouvendo a devida importância.

Lord Denin, que foi talvez o maiorjuiz da História da Judicatura na Ingla-

terra, aos oitenta anos de idade escre-via um livro em que dizia que um irmãoera almirante, outro era parlamentar,e, de repente, pára de descrever a suafamília e diz o seguinte: “Sobre a minhafamília, falo depois, porque agora preci-so voltar aos meus processos. Nada quetiver que ser feito ficará sem ser feito”.Vejam bem que aos oitenta anos de ida-de, ele inaugura com um livro uma pas-sagem que seria mais ou menos assim:“Qual é o argumento do lado contrário -Apenas que não existe ação em que issotenha sido tratado antes - O argumentonão me seduz nem um pouco. Se nósnunca fizermos alguma coisa que nun-ca foi feita, não vamos a lugar nenhum.A lei permanece impassível, enquanto oresto do mundo progride e isto não é bompara ninguém”.

Dr. Paulo Penalva SantosClassifiquei aqui as três principais

indagações que vou tentar responder daseguinte forma: em relação à Lei de In-trodução ao Código Civil, sabemos quenão é um Diploma apenas aplicável aoCódigo Civil, é uma lei que trata da apli-cação da norma no tempo e no espaço,coordena as outras normas de direito,trata da vigência, da eficácia da lei. Por-tanto, todas essas dificuldades que ti-vemos desde o início, parece-me queseriam objeto específico de um sistemaque pudesse ter essa característica denorma coordenadora das demais. Então,tenha ou não essa denominação de Leide Introdução ao Código Civil, já sabe-mos que não cuida apenas dele, é deuma importância extraordinária. Outrasleis, como a Lei Complementar nº 95/1998, que trata do processo legislativo,têm normas sobre hermenêutica, sobreinterpretação que também são de umaimportância extraordinária. Ali, há umsistema que resolve uma série de con-flitos que é a questão da lei básica, ouseja, quando mais de uma lei trata domesmo assunto, qual o critério que setem que identificar para a interpreta-ção? É o critério da lei básica, ou seja,aquela lei seria própria para prever aque-

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le instituto. Então, todo esse sistemasempre foi objeto do que se denominoude Lei de Introdução ao Código Civil. Semdúvida, mais do que nunca, em um mo-mento como esse em que teremos umalegislação com mais de dois mil e qua-renta artigos, um sistema eficiente quepudesse coordenar a aplicação, a inter-pretação e a vigência de todas as nor-mas é mais do que nunca um sistemamuito importante.

Quanto aos usos e costumes, issofoi origem do Direito Comercial que nas-ceu dos usos e costumes dos comerci-antes. Apesar de a lei tratar de formabásica e de serem poucos os sistemasem que encontramos a vigência de usose costumes, mesmo assim continuasendo importante. Sabemos que o Códi-go Comercial, que está em vigor até ja-neiro do ano que vem, tem uma norma– artigo 291 – que diz que no caso desociedades, na omissão da lei comerci-al, antes de ir à lei civil, aplicam-se osusos e costumes. Então, para o siste-ma comercial, que é origem e será emseguida evolução do sistema do DireitoEmpresarial, na parte societária, osusos e costumes são tão importantesque eles afastam, em um primeiro mo-mento, a própria aplicação supletiva doCódigo Civil em relação ao Código Co-mercial. Encontramos, também, em re-lação aos contratos, regras importan-tes em relação aos usos e costumes.Durante muitos anos, o conceito de pa-gamento à vista era um conceito de usose costumes. No Rio de Janeiro, princi-palmente nos portos, até cinco dias eraconsiderado um pagamento à vista. En-tão são critérios, sistemas que sempresurgiram e foram, de certa forma, de-senvolvidos com os usos e costumes. Aotratar do contrato de comissão o NovoCódigo Civil dá enorme destaque a essafonte de direito, pois as principais clá-usulas contratuais, e até mesmo a re-muneração do comissário, devem serfixadas segundo os usos correntes nolugar (arts. 695, 699 e 701).

Apesar dessa revogação expressado artigo final do Código Civil, vejamos,

por exemplo, o artigo 113, que trata donegócio jurídico, o novo Código Civil dizo seguinte: “Os negócios jurídicos de-vem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebra-ção”. Então, os usos e costumes conti-nuam ainda em vigor por vários disposi-tivos do novo Código Civil, é uma normaexpressa do referido artigo.

Sabemos que com a unificação dodireito das obrigações não haverá maisa distinção entre contratos civis e con-tratos mercantis, serão todos contratosregidos pelo Código Civil. Essa regra im-põe, de forma clara, o critério da boa-fée do lugar como critério de interpreta-ção dos contratos do novo Código Civil.Portanto, apesar da revogação, creio queainda serão de muita importância osusos e costumes, principalmente para onosso Direito Empresarial.

Há uma questão referente à liqui-dação das sociedades. É certo que exis-te uma certa contradição, pelo menosaparente, no Código Civil em relação auma série de aspectos. Um é esse. Sa-bemos que a liquidação sempre se ini-cia com um processo de dissolução; en-tão, necessariamente, para liquidar temque dissolver. Em um primeiro momen-to, em uma conclusão apressada, eu di-ria que se for uma dissolução ou umaliquidação judicial, o sistema ainda é odo Código de Processo Civil de 1939. Sefor uma dissolução ou uma liquidaçãoextrajudicial, o sistema a ser aplicado éo do novo Código Civil.

Dr. Antonio Carlos Esteves TorresSem dúvida, professor, apenas o

artigo 1.102 dispõe: “Dissolvida a socie-dade e nomeado o liquidante na formado disposto neste Livro, procede-se à sualiquidação, de conformidade com os pre-ceitos deste Capítulo, ressalvado o dis-posto no ato constitutivo ou no instru-mento da dissolução”. Vejam bem que oartigo 1.103 dispõe: “Constituem deve-res do liquidante: ...”. Ele repete e acres-centa as regras da liquidação judicialdo artigo 655 do Código de 1939. Diz se-rem deveres do liquidante averbar e pu-

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blicar a ata e aí traz também a senten-ça. Mas é sentença de quê? No meu en-tender, só pode ser a de dissolução. E oCapítulo do Código de 1939 fala em dis-solução e liquidação. Talvez a impropri-edade da construção retórica, aqui, pu-desse ocasionar algum problema. O fatoé que ela existe, há uma dicotomia quenão está de acordo com o melhor verná-culo. Não sei se o senhor concorda.

Dr. Paulo Penalva SantosConcordo e acho que existe aqui

uma contradição porque, na realidade,começa falando sobre liquidação e fala desentença, o pressuposto seria uma liqui-dação judicial, e nesse caso se aplicaria oCódigo de Processo Civil. O artigo 1.111diz expressamente: “No caso de liquida-ção judicial, será observado o disposto nalei processual”. Considerando que a pre-missa da liquidação, que é a fase final deum processo de dissolução, apesar da im-perfeição dessa norma, concordo com osenhor, ou seja, se for judicial, tanto aliquidação quanto à dissolução, necessa-riamente se aplicaria a norma do Códigode Processo Civil de 1939. A meu ver, se-ria essa a melhor interpretação dada aoartigo 1.111 do novo Código Civil.

Dr. Antonio Carlos Esteves TorresVejam os senhores que sorte a nos-

sa. Já temos aqui uma interpretação quenão vai nos deixar perdidos nos mares dasdúvidas. Também penso isso, apenas ainterpretação literária – e já temos emdesfavor da interpretação literária os pró-prios vocábulos mal empregados, está aíessa dicotomia entre simples e empresa-rial, que não consegue descer de formatranqüila. Então cria uma perplexidade eé bom que saibamos. Não se iluda, meugrande professor, algum advogado inteli-gente há de trabalhar nesse vácuo, há dedizer que a dissolução não pode mais serjudicial. É claro, e devemos estar prontospara isso, que é apenas um exemplo.

Des. Sergio Cavalieri FilhoEu chamaria a atenção para o ar-

tigo 1.111 que estabelece claramente

que: “No caso de liquidação judicial, seráobservado o disposto na lei processual”.Então não há dúvida de que há uma li-quidação extrajudicial e uma judicial. Eo artigo 1.112 que ainda diz: “No cursode liquidação judicial, o juiz convocará,se necessário, reunião ou assembléiapara deliberar sobre os interesses da li-quidação, e as presidirá, resolvendo su-mariamente as questões suscitadas”.Então não há dúvida que há uma liqui-dação judicial comandada pelo juiz e aquise está estabelecendo algo que o juizpoderá fazer para conduzir melhor estaliquidação. O que pensa o Professor?

Dr. Paulo Penalva SantosTenho a impressão de que é exa-

tamente isso. Existe aqui uma imperfei-ção técnica em relação ao novo CódigoCivil, mas a premissa aqui dessa assem-bléia – e deve ser a isso que a lei serefere – é que seja uma dissolução ouuma liquidação judicial. Eu gostaria deouvir o Professor Luiz Alberto Rossman,porque ele vai tratar dessa matéria quan-do abordar a sociedade limitada.

Prof. Luiz Alberto RosmanSão duas coisas distintas, sabidas

por todos: a liquidação e dissolução. Adissolução é uma forma de se resolver ocontrato de sociedade; liquidar é – ces-sada a sociedade, permanecendo a per-sonalidade jurídica até o término da li-quidação – a apuração dos ativos, a suaavaliação, a sua venda ou então a suadivisão entre os sócios, depois de pagasas dívidas sociais. Para que haja a liqui-dação, primeiro é preciso que haja a dis-solução, e o Código Civil, em seu artigo1.033, trata das hipóteses de dissoluçãopor deliberação dos sócios, e o artigo1.034, dispõe: “A sociedade pode ser dis-solvida judicialmente, a requerimento dequalquer dos sócios, quando: I – anula-da a sua constituição; II – exaurido ofim social, ou verificada a suainexeqüibilidade”. Além de outras cau-sas que o contrato social pode prever.Creio que interpretaria esse dispositivo(que Dr. Antonio Carlos abordou no Ca-

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pítulo da liquidação, quando fala em sen-tença) como uma situação em que hou-ve um processo judicial para determi-nar a dissolução judicial em uma des-sas duas causas: exaurimento do fimsocial ou anular a sua constituição; po-rém a liquidação, ou seja, a apuraçãodos ativos, a sua venda, pagamento dasdívidas e distribuição do saldo remanes-cente para os sócios far-se-ia por formanão judicial. Então, aqui coloco essa in-terpretação para harmonizar os textos.

Des. Sergio Cavalieri FilhoNecessariamente, a liquidação não

precisa ser judicial, ainda que a dissoluçãotenha sido, se os sócios se entenderem.

Dr. Antonio Carlos Esteves TorresSe bem que se houver qualquer

movimento judicial, pela letra da lei, doCódigo de 1939, como é que vai se ex-trair da decisão judicial a devoluçãovoluntarial dos sócios para liquidarem asociedade, fora daquela ambiência? OCódigo de 1939 é impositivo, ele junta adissolução com a liquidação de formaindissociável. Há um ponto que o segun-do grau corrige com muita perfeição por-que são duas etapas. A etapadissolutória, em que o juiz define que asociedade está dissolvida, e a segunda,logo em seguida que é a liquidação. Te-nho a impressão de que é evidente quea provocação foi feita para que se desta-casse a importância da Lei de Introdu-ção, porque há conflito aparente de nor-mas e estaremos resolvidos. Mas preci-samos resolver o conflito com técnica,com disposição vocabular apropriada.

Des. Sergio Cavalieri FilhoProf. Penalva Santos, nos meus

parcos conhecimentos de Direito Comer-cial, faço, hoje, essa distinção: socieda-de civil e sociedade comercial. Na reali-dade, a rigor, não há muita distinçãoentre a atividade de uma e de outra. Asociedade comercial está registrada naJunta Comercial e a sociedade civil estáregistrada no Registro de Pessoas Jurí-dicas, mas muitas vezes a atividade de

ambas praticamente é a mesma. Pelo queestou percebendo, o novo Código vai es-tabelecer outra distinção: agora é soci-edade simples e sociedade empresarial.A sociedade empresarial, tirando do con-ceito do artigo 966, será aquela queexerce atividade econômica, organizadapara a produção ou a circulação de bensou serviços.

Como ficam as sociedades civis re-gistradas no Registro de Pessoas Jurídi-cas e que exercem, inquestionavelmen-te, atividade econômica? Como elas serãotratadas a partir de então? Juízes, comonós iremos enfrentar essa distinção? Seráuma sociedade empresarial ou uma soci-edade civil? Há inúmeras conseqüências.Então, gostaria de ouvir a opinião de Vos-sa Excelência a esse respeito.

Dr. Paulo Penalva SantosEsse é outro grande problema que

todos teremos que enfrentar. A diferen-ça que havia entre a sociedade civil e acomercial, salvo a anônima, era apenasquanto ao objeto social. Por exemplo, asociedade limitada poderia ser uma so-ciedade civil ou ser uma sociedade co-mercial. O objeto social, para essa novadiferença entre sociedade simples eempresarial, continua sendo muito im-portante porque se o objeto da socieda-de for aquele sistema do artigo 966 doCódigo Civil, que trata da atividade doempresário, agregado ao elemento re-gistro, caracterizará a sociedade comosendo empresária. A dificuldade que vejoé na prática, depois da vigência da Lei8.934/94, que trata do registro de ativi-dades mercantis e outras consideradasempresariais. Vários autores já vinhamdefendendo que o artigo 2º dessa Lei8.934 que dispunha que os atos das fir-mas mercantis individuais e das socie-dades mercantis são levados a registrona Junta Comercial, independentemen-te (essa expressão seria vista como pro-blemática) do seu objeto, e especifica-vam-se as atividades consideradas em-presariais.

Então, desde 1994, com base noartigo 2º da Lei 8.934, vários autores

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defendiam que já não havia mais a dife-rença entre a sociedade civil e a socie-dade comercial, para adotar o sistemade atividade empresarial, com o que eu,particularmente, não concordo. Achoque, naquele momento específico, umalei que tratava de registros empresari-ais não poderia revogar todo o sistema,não poderia revogar o Código Civil, o Có-digo Comercial, a Lei de Falências. Creioque a finalidade daquela norma do arti-go 2º da Lei 8.934 foi apenas alargar,ampliar as sociedades que eram leva-das a registro na Junta Comercial. Mas,agora, criou-se um problema: podemoster, e provavelmente temos, uma sériede atividades que não eram típicas dasociedade mercantil levada a registro naJunta Comercial, e agora podem estardentro desse conceito de atividade em-presária. O grande perigo, sabemos, é oproblema do requerimento da Lei de Fa-lências.

Essa dificuldade surgida com a Lei8.934, que ampliou a competência daJunta Comercial, na prática vai levar aesse problema, ou seja, temos uma sé-rie de atividades que não eram de soci-edades tipicamente mercantis, mas, ago-ra, cabendo dentro desse conceito maislargo de sociedade empresarial e carac-terizado o registro, acho elas podem teresse tratamento de sociedade empresá-ria. Na prática, há aquela dúvida: e asociedade de prestação de serviços? Ago-ra é empresária. Então aqueles grandesproblemas existentes sobre a sociedadede prestação de serviços, se ela poderiaou não ir à falência, agora considero quepodem.

Houve, sensivelmente, um alar-gamento do conceito de sociedade co-mercial, agora para a sociedade empre-sária. Então atividades como as de colé-gios, de hospitais – esse exemplo quedemos sobre o conceito de elemento deempresa, sem dúvida ele está presentenos colégios, nos hospitais, por exem-plo, em determinadas clínicas de den-tistas, universidades – agora, qual é oreceio? É o problema da lei de falência.O colégio tem um problema seriíssimo,

que há sempre um descompasso na re-ceita registrada na contabilidade, por-que ele não pode impedir o aluno de fre-qüentar o estabelecimento, ainda queesteja com a mensalidade atrasada. Umdescompasso, um requerimento combase na impontualidade, caracterizadoo atraso da escrituração, é crimefalimentar. A dificuldade que vejo é sub-meter, sem muita reflexão, uma sériede atividades que agora vão estar sujei-tas ao rigor da impontualidade e que nãoestavam anteriormente. Esse é o grandeproblema que acho que deve ser verifica-do com muita cautela. Temo que a partirde janeiro do ano que vem, quando entraem vigor o Código Civil, provavelmente, ogrande número de credores se anteci-pando e requerendo a falência de certassociedades (que não eram mercantis eque agora poderão ter essa característi-ca de sociedade empresária) será o gran-de problema que o Dr. Antonio Carlos,como eminente Juiz da Vara de Falênci-as e Concordatas, enfrentará.

Finalmente, quanto ao registro, asociedade que era civil e agora passa aser empresarial deve no prazo de um ano(art. 2.031) se adaptar ao nosso siste-ma, mudando o registro do Cartório dePessoas Jurídicas para a Junta Comer-cial. Se não o fizer, será consideradasociedade irregular, com as conseqüên-cias daí decorrentes. Mas enquanto issonão ocorrer, não creio que, por exemplo,seja possível pedir a falência dessa so-ciedade, cujo registro não está correta-mente feito.

Des. Sergio Cavalieri FilhoEntão, o principal critério distin-

tivo então não será mais o registro lá oucá, mas sim o conteúdo. As sociedadescivis, hoje, que exercem atividade em-presarial terão que fazer novo registroou permanecerão como estão?

Dr. Paulo Penalva SantosA nova sociedade empresária é

identificada pelo binômio objeto e regis-tro. Caracterizando-se a atividade em-presária, ela teria que ser levada a re-gistro na Junta Comercial, como deter-mina o art. 2.031.

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Des. Sergio Cavalieri FilhoE a Lei de Introdução? Já não tem

uma existência anterior à nova lei?

Dr. Paulo Penalva SantosVoltando ao enfoque falimentar,

imagino o seguinte: a uma sociedade quecaiba dentro desse conceito de sociedadeempresária, mas o registro é ainda no Car-tório de Registro de Pessoas Jurídicas enão na Junta Comercial, faltaria um ele-mento caracterizador para a sociedadeempresária, ou seja, a grande diferençapara o comerciante é que o registro nun-ca foi essencial, o comerciante poderia,descaracterizada a mercancia como ativi-dade profissional e regular, caber naque-le conceito. Agora não. Acho que além daatividade do empresário, tem que haver oregistro. Essa é a dificuldade.

Des. Sergio Cavalieri FilhoElas serão obrigadas a ter o re-

gistro no seu entender ou não?

Dr. Paulo Penalva SantosEssa é a questão, pois deveriam

ser, por força do disposto no artigo 2.031,que obriga todas as sociedades a regula-rizar o registro no prazo de um ano. Naprática, não sei se os advogados aconse-lharão que sociedades, que cabem den-tro desse conceito de atividade empresa-rial, como colégios e faculdades, passemimediatamente o registro para a JuntaComercial, por causa da falência.

Des. Sergio Cavalieri FilhoComo é que nós, juízes, vamos re-

solver essa pendenga depois? Temos, hoje,quase quatrocentos juízes aqui e todosmuito interessados em saber como é queterão que decidir. Quer dar um palpite?

Dr. Antonio Carlos Esteves TorresSalvo equívoco, a Lei 8.934 fala

em empresa mercantil, isso é muito im-portante, o vocábulo já está aí.

Dr. Paulo Penalva SantosÉ, essa questão já havia surgido

na vigência da Lei n. 8.934, que deu

margem a essa discussão. Como já disse,embora essas sociedades devessem trans-ferir o registro para Junta Comercial, nãocreio que isso vá ocorrer imediatamente.O colégio, a faculdade, as clínicas, natu-ralmente vão tentar protelar a transfe-rência do registro para a Junta Comerci-al, pois com isso faltaria o segundo ele-mento (registro) que caracteriza a socie-dade empresária. Insisto que o grandereceio é a possibilidade de falência.

Professor Luiz Alberto RosmanNão mexo muito com Lei de Fa-

lências, tenho alguns conhecimentos,mas fiquei pensando enquanto estavaouvindo esse debate interessantíssimoe realmente de repercussões seriíssi-mas. A Lei de Falência, que é de qua-renta e poucos, foi toda criada em cimado sistema anterior, que tinha uma di-cotomia entre comerciantes e os nãocomerciantes, submetendo os comerci-antes ao regime do concurso de credo-res da Lei de Falências.

Agora houve uma mudança de re-gime que não é mais entre comerciantese não comerciantes e sim entre socieda-des empresárias e aquelas que não sãoempresárias, são sociedades simples.Todos que são comerciantes, em um cer-to sentido, seriam inseríveis no conceitode sociedade empresária, mas nem todaa sociedade empresária, segundo a defi-nição do Código Civil, seria qualificávelcomo comerciante à luz do regime ante-rior. Acho que como tenho uma lei poste-rior ao Código Civil, que estabeleceu umregime diferente do anterior àquele combase no qual a Lei de Falências foi feita,que na aplicação da Lei de Falências, eunão deveria entender como igual a co-merciante, portanto submetido à Lei deFalência todo e qualquer sociedade em-presária. Mas, teria que buscar, dentreaquelas sociedades empresárias, quaisas que teriam a característica de comer-ciante. É só uma complicação maior.

Des. Sergio Cavalieri FilhoO artigo 1.015 dispõe: “No silên-

cio do contrato, os administradores po-

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dem praticar todos os atos pertinentesà gestão da sociedade; não constituindoobjeto social, a oneração ou a venda debens imóveis depende do que a maioriados sócios decidir. Parágrafo único: Oexcesso por parte dos administradoressomente pode ser oposto a terceiros seocorrer pelo menos uma das seguinteshipóteses: I – se a limitação de poderesestiver inscrita ou averbada no registropróprio da sociedade; II – provando-se queera conhecida do terceiro; III – tratan-do-se de operação evidentemente estra-nha aos negócios da sociedade”. Estousempre tentado a intrometer em todosos lugares o Código do Consumidor.

Então, faz-se um contrato sociale há uma série de restrições ao admi-nistrador, inscreve-se aquele contratoem um lugar em que nenhum consumi-dor tenha acesso e quando há o dano, oprejuízo, argumenta-se que o Código Ci-vil permite essas restrições, e, ergaomnes, valendo contra terceiros, desdeque esteja devidamente registrado. Oconsumidor é que deve buscar isso, fa-zer a pesquisa que bem entender. Nãohaverá aí um confronto, uma colidênciaentre os princípios que estão no Códigodo Consumidor como a transparência e,principalmente, toda confiança com essadisposição? Como é que Vossa Excelên-cia ajustaria os dois Diplomas?

Dr. Paulo Penalva SantosA oponibilidade aos terceiros das

denominadas restrições aos atos deadministração não se aplica nos casosde relação de consumo. Tratando-se dehipótese de aplicação do CDC, natural-mente essa regra do art. 1.015 do NovoCódigo Civil não se aplica. É absurdoafirmar que o Novo Código Civil revogaráo CDC. No exemplo do consumidor, pa-rece claro que ele não é obrigado a veri-ficar o contrato social da outra parte paraconstatar os poderes de cada adminis-tradores. Mas , de outro lado, tratando-se de negócio jurídico entre empresas,a regra do art. 1.015 do Código Civil de-verá ser respeitada. Algumas pessoasdisseram, no início da vigência do Códi-

go de Defesa do Consumidor, que nãose aplicava ao contrato comercial por-que aquela compra não era feita com ointuito de revenda. Isso não é verdade,pois sempre ficou muito claro que, comrelação aos contratos mercantis, o Có-digo do Consumidor poderia ou não seraplicado, dependendo da atividade. Sen-do uma atividade típica, regida pelo Có-digo de Defesa do Consumidor, não te-ria nenhuma dúvida em afirmar queessa regra aqui, por força de uma outranorma do Código de Defesa do Consu-midor, não se aplicaria. Mas, por exem-plo, a um contrato de fornecimento decombustível entre uma determinada dis-tribuidora e uma empresa de transpor-tes, acho que não se aplicaria o Códigode Defesa do Consumidor. Aí se aplicaessa regra do artigo 1.015.

Drª Maria Cristina de Brito LimaDr. Penalva, tenho dois

questionamentos: o primeiro seria comrelação aos artigos 2.031 e 2.032 quefazem a previsão para a alteração dassociedades empresárias. Caso a socie-dade empresária não respeite a adequa-ção no prazo estabelecido, eu poderiaconsiderá-la como sociedade em comum,irregular?

Dr. Paulo Penalva SantosÉ uma questão complexa, que

pode ser dividida em duas hipótesesdistintas. O primeiro caso, por exemplo,e o da sociedade que era civil e agorapassa a ser empresária. Aqui, não te-nho dúvida de que a sociedade tem aobrigação de regularizar o registro,transferindo-o para a Junta Comercial.Outra hipótese e a da necessidade deadaptar os contratos sociais às exigên-cias dos artigos referentes à limitada.Tenho dúvida em relação a esse segun-do exemplo, sob o qual já conversei como Prof. Luiz Alberto, que vai se encarre-gar disso. Temos uma série de dificul-dades. Será que não haveria aí um atojurídico perfeito, a ser regido pela leianterior? Confesso que tenho uma difi-culdade gigantesca. Por exemplo, umcritério de quorum de deliberação, que

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foi válido naquele momento, regido na-quela lei, será que não haveria algo pró-ximo do que conhecemos como ato jurí-dico perfeito? Sinceramente, gostaria deouvir a opinião do Prof. Luiz Alberto, masé um problema sério. A grande dúvidaque está ocorrendo na prática é o se-guinte: será que todo mundo precisaalterar os contratos sociais? Esse é oproblema. E quem não alterar, em quecondições será tratada essa sociedade?

Dr. Antonio Carlos Esteves TorresO artigo 2.031 dispõe: “As associ-

ações, sociedades e fundações, consti-tuídas na forma das leis anteriores, te-rão o prazo de um ano para se adapta-rem às disposições deste Código, a par-tir de sua vigência; igual prazo é conce-dido aos empresários”.

Prof. Luiz Alberto RosmanA rigor, os tipos societários que

existiam antes continuam existindo ago-ra, então não mudaria. O que há é umasérie de novas regras, por exemplo, a so-ciedade limitada que era uma lei de de-zoito artigos, agora é uma lei de cinqüen-ta, setenta artigos. Então, o que aconte-cerá, se não houver adaptação, é queaqueles dispositivos cogentes do CódigoCivil – tenha havido ou não a adaptaçãodos contratos sociais, dos diversos tipossocietários – passarão a ser aplicados nãopela forma que os sócios deliberaramdentre aquelas matérias em que eles têmuma autonomia de vontade. Basta apli-car as disposições do Código.

A senhora mencionou a socieda-de simples, que não existia antes. Amaioria das sociedades existente já ti-nha um tipo societário definido que foimantido, a grande maioria das socieda-

des por quotas continua.Drª Maria Cristina de Brito Lima

Na verdade, a minha preocupaçãovai além porque, hoje, até mesmo o ob-jeto social precisa fazer parte do nomeempresarial pelo novo Código. Se não ofizer, certamente essa sociedade vai pas-sar a uma posição diferente. Seria tidacomo uma sociedade irregular ou não?

De acordo com o novo Código, o objetoprecisa fazer parte do nome empresari-al, portanto a alteração se impõe.

Prof. Luiz Alberto RosmanNão necessariamente. Na socieda-

de limitada, por exemplo, a lei sugere que adenominação social pode conter qual o tipode atividade, mas não é uma exigência. Oque pode acontecer é haver uma irregulari-dade, mas não que a sociedade seja irregu-lar, quer dizer conseqüências sérias.

Drª Maria Cristina de Brito LimaCertamente, principalmente na

área falimentar. O meu segundoquestionamento e bastante objetivo é oseguinte: sabemos que, hoje, de acordocom o novo Código, as cooperativas sãotidas como sociedades simples e, por-tanto, seguindo a legislação pertinente,a lei reitora da matéria que trata de so-ciedade cooperativa, ela não pode falir,ela está sujeita à liquidação extrajudicialou judicial. Seria o caso de pensarmos,em passando o novo projeto de leifalimentar, que ela também poderia es-tar sujeita, como sociedade simples, àfalência? Hoje, já enfrento alguns pro-blemas dessa natureza, requerimentosfalimentares de cooperativas, que, naverdade, seriam de insolvência. Volta emeia encontramos discussões abertascom a Curadoria de Massas.

Dr. Paulo Penalva SantosNada impede que a nova lei unifique

o sistema da insolvência, incluindo a coo-perativa no sistema falimentar. Mas não seise isso funcionaria bem. As cooperativas têmcaracterísticas próprias que são incompatí-veis com o rigor da lei falimentar, principal-mente em relação ao crime falimentar.

Drª Maria Cristina de Brito LimaJá encontrei alguns posicionamen-

tos divergentes no Tribunal do Rio Grandedo Sul. Estou enfrentando esse problema.

Des. Sergio Cavalieri FilhoEssa é a beleza do direito e a fa-

cilidade do advogado, ele pode procurar

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um acórdão que vai encontrar, nem queseja do Piauí.

Drª Maria Cristina de Brito LimaAlguns julgados têm prestigiado a

falência de sociedade cooperativa peloexercício de atividade mercantil.

Dr. Paulo Penalva SantosGostaria de fazer uma pequena

observação: a Lei 8.934/94, nos artigos59 e 60, dispõe que se a sociedade mer-cantil não promover a alteração adequa-da, ou deixar de alterar alguma disposi-ção de seu contrato social no período de10 anos consecutivos, será consideradauma sociedade em extinção e perderá onome comercial. Essas são disposiçõesde que poucos se lembram.

Drª Elisabete AguiarA minha pergunta é para o Profes-

sor Paulo Penalva Santos, que quandofalou em sociedade simples, fez mençãoàquelas sociedades de advogados. Queropegar o gancho do Prof. Antonio CarlosEsteves e do Prof. Cavalieri. Em relaçãoà sociedade de advogados, há norma ex-pressa, a Lei 8.906. Na Lei de Arbitra-gem existem aquelas sociedades de ár-bitros em que há árbitros contratados eoutros avulsos. Poderia essa sociedadede árbitros requerer, por aplicaçãoanalógica, as normas da Lei 8.906? A essasociedade de árbitros se aplicaria o ins-tituto da falência ou o da insolvência?

Prof. Paulo Penalva SantosConfesso que não me recordo bem

desse dispositivo que trata dessa maté-ria de arbitragem. Não sei se essa enti-dade tem a característica de sociedade,e muito menos de sociedade empresari-al. Na questão da sociedade de advoga-dos, a lei impede expressamente que elatenha o tratamento e a forma da socie-dade mercantil. Então o problema é esse,uma sociedade de advogados não pode-ria ser constituída sob a forma de S.A.No sistema da arbitragem, não me lem-bro se haveria ou não algo semelhanteao Estatuto da Ordem. Agora, em um

primeiro momento, estaria inclinado adizer que deveria ser uma entidade nãoempresarial, mais uma associação do quepropriamente uma atividade típica doempresário (como a Bolsa de Valores, porexemplo, que é uma sociedade civil).

Dr. Paulo Roberto FragosoProf. Penalva, veja que citamos

muito aqui o artigo 1.015 do novo CódigoCivil, que afasta, então, a publicidadede que goza o registro do comércio, queafastaria então a teoria da aparência,para vincular a sociedade. Então o arti-go 1.053 criou uma norma nova no to-cante às sociedades por quotas porqueagora, pelo Código novo, os sócios podemoptar entre a aplicação supletiva da leidas sociedades simples ou, como diz oparágrafo único do artigo 1.053, a Leidas Sociedades por Ações. O que me cau-sa estranheza é exatamente isso, esseartigo 1.015 está no Capítulo atinenteàs sociedades simples, esse artigo queafasta a teoria da aparência, que temcomo condição a boa-fé. Os sócios pode-riam, então, optar, na estruturação deuma sociedade limitada, pela adoçãodesse regramento ou não. Essa situa-ção me causa tamanha perplexidade por-que posso dizer que se aplica a Lei dasSociedades Anônimas supletivamente,ou então dizer que se aplica a Lei deSociedade Simples incidindo esse arti-go 1.015. Nesse caso, a regra poderiaser aplicada ou não, ao alvedrio dos só-cios, à escolha deles, porque esse artigo1.015 constitui um verdadeiro retroces-so pois sempre, em nosso direito, apli-ca-se a Teoria da Aparência para vincu-lar a sociedade.

Então, gostaria de ouvir a sua opi-nião, porque, a meu juízo, se tivesse queenfrentar esse tema, continuaria apli-cando a mesma regra que sempre exis-tiu, de que a publicidade de que goza oregistro de comércio não afastaria a boa-fé. Ao meu juízo, essa regra do artigo 1.015seria inaplicável a uma relação de consu-mo porque se uma atividade empresarialimplica em circulação de bens e serviçose o Código do Consumidor se limita a qua-

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 31

lificar como fornecedor de bens e servi-ços, o fornecedor vai ser sempre o empre-sário. E aqui essa regra é específica à so-ciedade simples, que não é sociedadeempresária. Então penso eu que não hárisco desse artigo 1.015 ser invocado emrelação de consumo. Gostaria de saber suaopinião, de poder excluir ou não a aplica-ção desse artigo 1.015.

Dr. Paulo Penalva SantosNesse ponto já há um consenso.

Aplicaria o Código de Defesa do Consu-midor, ainda que fosse sociedade empre-sária ou simples. Esse artigo 1.053 é tãoproblemático, que o próprio relator doCódigo Civil, Deputado Fiúza, já apresen-tou um projeto que entre outras coisasrevoga, muda essas regras do artigo1.053. No caso de sociedade empresária,acredito que o parágrafo único do artigo1.053 permite a inversão dessa regra des-de que haja cláusula expressa, admitin-do a aplicação supletiva em um primeiromomento da lei de sociedade por ações(da Lei de Sociedade Anônima agora) em

relação ao Código Civil. Mas creio que sefor sociedade simples, não. Acho que ne-cessariamente, pelo objeto ser de umasociedade simples, não seria ao menoscoerente a aplicação supletiva de normasde atividades empresariais, que é a soci-edade anônima, em relação à sociedadesimples. O Professor Antonio Carlos estátrazendo aqui a nova redação do artigo1.053, que é exatamente invertendo essaregra dispondo que, no caso de omissão,aplica-se, no que for compatível com ocontrato social (que era a regra do artigo18 do decreto de quotas) a lei de socie-dade por ações. É claro mesmo esclare-cida essa questão, vamos ter um outroproblema: Mesmo se aplicando a lei dassociedades anônimas, surgirão questõessérias, pois só se aplicariam as normasdo anonimato que forem compatíveis coma sistemática da limitada. Exemplo denormas incompatíveis, são as quotas es-criturais, custódia de cotas fungíveis,certificado de depósito de cotas, partes

beneficiárias, bônus de subscrição etc..

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32 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

Títulos de Crédito e o Crédito CivilJ. A. PENALVA SANTOSDesembargador aposentado do TJ/RJ. Professor da EMERJ.

O novo Código Civil editado pela Leinº 10.406 de 10 de janeiro de 2002 re-presenta verdadeiro Código de DireitoPrivado por abranger o Direito Civil e oDireito Comercial, na linha do pensa-mento de Teixeira de Freitas no seuCódigo Civil-Esboço.

O objetivo do projeto de Freitas vi-sou a unificação do Direito Privado, umdos dois fundamentos da futura lei: aclassificação dos dispositivos e a unifi-cação do Direito Privado.

Na exposição elaborada por LeviCarneiro em edição da Imprensa Nacio-nal de setembro de 1952, na introduçãoao texto do “Esboço” de Teixeira deFreitas, o autor analisou o caráterunificador do Direito Privado.

No mesmo sentido o estudo de JoãoMangabeira publicado na Revista Fo-rense de 1939, p. 29 sobre o assunto.

A primeira manifestação a respei-to da unificação dos Códigos Civil e Co-mercial foi de Cimbali sob o título “NovaFase no Direito Civil, Unificação do Di-reito Privado". Em 1903 em Conferênciapronunciada em Milão, Cesare Vivanteadvogou a elaboração de um código uni-ficado abrangendo o Direito Civil e oDireito Comercial.

Posteriormente arrependido, no seuTratato di Diritto Commerciale, 5° edi-ção p. 1, mostrou a inviabilidade do sis-tema unificado, ao defender a elabora-ção de códigos separados.

Na Itália duas Comissões apresen-taram Projetos de Código de Comércio:a Comisão presidida por Cesare Vivanteem 1919 e a segunda, por Mariano D!Amélio de 1923. Nesse meio tempo a Su-íça editou o Código de Obrigações e o Códi-go Civil.

A favor da unificação manifesta-ram-se Vivante (que depois se retra-

tou), Percerou, Thaller, Wahl, Endemanne outros. Na Itália, no regime fascistade 1942, editou-se o Códice Civile noqual foram abrangidos o Direito Civil e oDireito Comercial, com exceção das ma-térias de Direito Marítimo, Falimentar,Títulos de Crédito e outras, destacadasdo diploma civil.

No Brasil publicaram-se os Projetosde Código Civil, de Felício dos Santos, Co-elho Rodrigues, Carlos de Carvalho e, re-centemente, Orlando Gomes.

Vieram à luz os projetos de Códigode Obrigações de 1941 elaborados porOrosimbo Nonato, Hanemann Guima-rães e Philadelpho de Azevedo e, em1964, por uma comissão presidida porCaio Mario da Silva Pereira.

Inglês de Souza apresentou o Projetode Código Comercial, engavetado no Con-gresso Nacional. Florêncio de Abreu elabo-rou o Projeto de Código Comercial de 1949,que também não se converteu em lei.

O novo Código Civil de 2002 seguiu aidéia de Teixeira de Freitas e adotou aorientação do Código Civil Italiano, de uni-ficação do Direito Privado, com exceçãodo Direito Comercial, das falências, dassociedades por ações e outros institutos.

Conseqüências da edição do novo Có-digo Civil no que concerne ao DireitoComercial

A revogação da Primeira Parte doCódigo de Comércio, composta de regrassobre sociedades, contratos e títulos decrédito. A Segunda Parte, referente aoDireito Marítimo, não foi revogada, porisso, quanto ao conhecimento de trans-porte ou carga a legislação pertinentecontinua em vigor.

Títulos de CréditoQuanto aos títulos de crédito, o

Código Civil editou as normas referi-Palestra proferida no Seminário realizado em 12/07/2002.

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 33

das nos arts. 887 a 926 abrangentes dasdisposições gerais dos títulos ao porta-dor, títulos à ordem e títulos nominativos.Cuida-se de normas que irão regular amatéria a eles afeta.

Art. 887O art. 887 adotou a definição de

Cesare Vivante para os títulos de crédi-to, com o acréscimo da parte final: “quan-do preencha os requisitos da lei”.

Essa definição já foi superada noque concerne aos títulos escriturais,como veremos posteriormente.

Art. 888No art. 888 destacou-se o título de

crédito da sua causa debendi, ou seja,do negócio jurídico que lhe deu causa,chamado por Ascarelli de relação fun-damental.

Art. 889Esse artigo indica os três princi-

pais requisitos dos títulos de crédito: adata da emissão, a indicação precisa dosdireitos que confere e a assinatura doemitente, relação incompleta na falta deoutros requisitos arrolados no art. 1º daConvenção de Genebra.

Parágrafo primeiro do art. 889Esse parágrafo primeiro trata dos

títulos à vista, os quais não contêm in-dicação da data do vencimento e sãoaqueles que se vencem com a apresen-tação ao devedor (art. 2º, alínea 2ª daLei Uniforme de Genebra).

Esses títulos também chamados tí-tulos à apresentação encontram-se noart. 17 da Lei Cambiária de 1908.

Carvalho de Mendonça, no seu Tra-tado de Direito Comercial, vol. 5°, parte2°, nº 789, ed., Freitas Bastos, admite umasegunda apresentação do título ao deve-dor, a fim de lhe dar uma oportunidadepara efetuar o seu pagamento.

Acresce o ilustre comercialista quea remessa de aviso ao devedor para pa-gamento não tem o mesmo efeito que asua apresentação.

Parágrafo segundo do art. 889O parágrafo segundo do art. 889

considera o lugar da emissão e do paga-mento quando não indicado no título odomicílio do emitente. Por força do dis-posto no art. 2º, alínea 3ª da Lei Unifor-me de Genebra na falta de indicaçãoespecial, consigna o lugar designado aolado do nome do sacado sendo o lugardo lançamento e ao mesmo tempo o lu-gar do domicílio.

Na alínea 4ª, o lugar onde foi pas-sada considera-se como tendo sido nolugar designado ao lado do nome dosacador.

TÍTULO ESCRITURAL

Parágrafo terceiro do art. 889Título escritural é aquele emitido

a partir dos caracteres criados em com-putador ou por meio técnico equivalentee que conste da escrituração do emiten-te, observados os requisitos do art. 889.O referido parágrafo cuida do títuloescritural.

O que são, na verdade, os títulosescriturais?

São títulos que não têm cártula;nascem e atuam por via de computa-dor, por e-mail, por internet.

Esses títulos não contêm assina-tura usual, mas, segundo Dr. GustavoTavares Borba, Revista de Direito Re-novar nº 14, maio/agosto 1999, p. 85 ess, na assinatura digital há uma trans-formação criptográfica da comunicaçãocriada e, com isso surge a cártula ele-trônica, o conjunto de dados do títuloconsubstanciado na memória do siste-ma eletrônico. As figuras virtuaisaparecidas na tela do computador, sãopreservadas na memória do sistema ele-trônico.

Por outro lado, é possível a trans-posição para o papel de um texto prove-niente do computador, v.g., o extrato deconta retirado do sistema eletrônico deuma instituição financeira administra-dora de ações escriturais de uma socie-dade anônima, na custódia de ações(arts. 34 e 41 da Lei nº 6.404/76).

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Quanto aos contratos eletrônicos,as mensagens eletrônicas por meio deproposta e aceitação, pela troca de da-dos eletrônicos se realizam através docomputador, porém a tradição de bens,por exemplo, na compra e venda, comobrigação de dar verifica-se mediante aentrega física da coisa.

De fato, na tradição de um veículocomprado através da internet, o compra-dor é obrigado a buscá-lo na agência.

Já as obrigações de fazer podem re-alizar-se por forma virtual, a exemplo dacompra de um programa pay per view.

ASSINATURA AUTOGRÁFICA

A assinatura manuscrita, como seviu, corresponde a um sinal da autoriade uma pessoa aposto em um documen-to, cujas funções são a) autenticidadedaquele que a apôs revelando a sua iden-tidade, a validade e a veracidade do do-cumento no qual a assinatura foiinserida, com efeito de autenticação,concordância com o seu teor e a segu-rança da forma que envolve esse docu-mento, nos termos do disposto nos arts.131 e 135 do Código Civil de 1916.Carnelutti atribui três funções à assi-natura: indicativa, declaratória eprobatória.

ASSINATURA ELETRÔNICA

Na obra Direito e Internet, RT,coordenada por Marco Aurélio Grecco eIves Gandra da Silva Martins, 2001, p.28, a assinatura eletrônica “consiste nouso de um procedimento confiável deidentificação da parte e de suavinculação ao ato praticado”.

A assinatura eletrônica asseguraa identidade do signatário e a integri-dade e conservação do ato por ele prati-cado, na segurança e confiabilidade dastransações eletrônicas realizadas, pro-teção do segredo das comunicações re-alizadas com fundamento nessa assina-tura e, finalmente no cumprimento doscontratos realizados por essa pessoa.

Se a assinatura digital constituiuma forma de assinatura manuscrita éproblema que, em nossos dias, constitui

objeto de polêmica, sendo que para unsnenhuma semelhança com ela apresen-ta, enquanto para outros, representauma forma de assinatura autográfica.

O certo é que o vocábulo “assinatu-ra” no âmbito digital, tem uma acepçãodiferente da assinatura autográfica.

Ao definirmos a assinatura digital,mostraremos as suas características, noque, em muito se diferencia da assina-tura manuscrita.

A assinatura digital é uma seqüên-cia de dígitos, computada com base emdados a proteger, o algoritmo da assi-natura a ser usado, que é a chave pri-vada utilizada na produção da assina-tura digital.

A chave pública é usada para veri-ficar se a assinatura foi efetivamenteproduzida por utilização de uma chaveprivada correspondente.

O importante é que o receptor tenhasegurança quanto à origem da mensagem.

A segurança do sistema de assi-natura digital decorre do seu método eda verificação de que a assinatura foiproduzida pela pessoa representada.

Para maior segurança é utilizadoum protocolo de autenticação baseadoem sistemas de cifragem com chavespúblicas, sendo os sistemas de navega-ção: o Navigator, o Netscape, o InternetExplorer.

A aplicação do algoritmo decifragem permite a confidencialidade. Aautenticação de identidade é essencialpara a segurança das transações ele-trônicas na medida em que uma auten-ticação confiável é necessária para quese possam manter controles de acesso,determinar quem está autorizado a acei-tar ou modificar informações, imputarresponsabilidade e assegurar o “nãorepúdio”.

Métodos de autenticação peloalgoritmo da cifragem permitem aconfidencialidade e o segredo das co-municações eletrônicas, e segundo osautores referidos (loc. cit) um algoritmode cifragem transforma um texto claroem um texto cifrado ilegível (cifragem) evice-versa (decifragem).

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 35

Logo, a assinatura digital represen-ta, para alguns, um método de autenti-cação de identidade eletrônico e, paraoutros, designa especificamente a assi-natura gerada mediante o uso decriptografia de chave assimétrica.

A assinatura digital tem três fun-ções, segundo os citados autores: a au-tenticação da identidade da pessoa queassinou a informação; a proteção da in-tegridade da informação, para evitar amodificação da mensagem e, finalmen-te o não repúdio, a fim de evitar que oque enviou a mensagem ou que a rece-beu neguem tal fato.

Em interessante estudo denomina-do “Assinaturas Eletrônicas eCertificação“ da autoria da ilustre ju-rista Ana Carolina Horta Barretto, no li-vro O Direito e a Internet, coordenadopor Valdir de Oliveira Rocha Filho, ed.Forense Universitária, ano 2002, a au-tora elabora um estudo sobre a assina-tura eletrônica, não ser ela imediata-mente legível, pois o veículo e o objetoassinado não são fisicamente relaciona-dos da mesma forma física e durável quea assinatura tradicional.

Tanto pelo aspecto visual, quantopelo formato eletrônico e vinculação àassinatura, tornam-no diferente da as-sinatura física tradicional.

Quanto aos métodos de assinar do-cumento eletronicamente, as assinatu-ras variam, desde métodos simples,como inserir uma imagem escaneada deuma assinatura manuscrita em um ar-quivo do texto a métodos mais avança-dos: como a criptografia simétrica à maisevoluída criptografia assimátrica daschaves pública e privada mais segura,ao conferir maior segurança dos dados,adotada na maioria dos Países.

Uma das primeiras leis sobre a as-sinatura digital foi a Lei do Estado deUtah, nos Estados Unidos, seguida poroutros Estados da União, na qual a assi-natura digital é uma transformação deuma mensagem utilizando um sistemade criptografia assimétrica que permi-ta a uma pessoa que detiver a mensa-gem inicial e a chave pública do signa-

tário determinar com precisão: a) se atransformação foi criada utilizando achave privada que corresponde à chavepública do signatário; b) se a mensa-gem foi alterada desde que a transfor-mação efetuou-se.

A citada lei estabeleceu a presun-ção de veracidade das assinaturas digi-tais, salvo em caso de suspeita de frau-de e, finalmente, cuidou das assinatu-ras com suspeita de fraude.

As Leis Uncitral da ONU e da UniãoEuropéia nº 36 de 13.12.1999 (Diretivanº 1999/93/ EC do Parlamento Europeue Conselho da União Européia, art. 2°)seguiram a esteira da Lei de Utah, comode resto a legislação brasileira.

Observe-se por oportuno que o ór-gão fiscalizador é representado pelas au-toridades certificadoras que emitem cer-tificados.

A Lei federal americana de01.10.2000 trouxe numerosos subsídiossobre o E-Sign Eletronic Signatures inGlobal and National Commerce Act.

Por outro lado, não se pode esquecerde que, entre os processos mais simplesna elaboração da assinatura eletrônicapodemos encontrar, além das senhas, astécnicas biométricas como oescaneamento das impressões digitais, daretina, da palma da mão, o reconhecimentoda escrita ou da voz; e a assinatura ma-nuscrita, vinculada a um veículo, uma fo-lha de papel que fornece os contornos e aestrutura à informação de um formatoimediatamente legível. Esse veículoindissociável para a informação, proporci-onado pelo veículo e pela assinatura re-presentando os padrões únicos da escritado emitente, permite ao leitor crer que oobjeto provém do indivíduo tido como seuautor, e o atributo da identidade é intrín-seco, e não dado ao signatário.

ASSINATURA ELETRÔNICA X TRADICIONAL

A assinatura eletrônica não éimediatamente legível e a assinatura,o veículo e o objeto assinado não sãofisicamente relacionados da mesmaforma física e durável que a assinatu-ra tradicional.

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36 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

A manipulação dos dados não deixarastros como a manipulação do ambientetradicional e partes de um objeto de in-formação assinado podem ser armaze-nadas em diferentes locais como, porexemplo, um disco rígido ou disquete.

O aspecto visual de uma assinatu-ra tradicional é substituído pela verifi-cação técnica de um objeto de informa-ção assinado, armazenado em um for-mato legível eletronicamente e vincula-do logicamente à assinatura.

Como o caráter que torna a assi-natura eletrônica única para o indiví-duo é outorgado, e não uma caracterís-tica inerente ao signatário, o processode assinatura pode ser realizado porqualquer pessoa que tenha acesso aosegredo e aos procedimentos.

A assinatura manuscrita forneceà informação um sinal fisicamente úni-co de autenticidade – é um exemplaroriginal. Os objetos assinados podemestar em poder de uma pessoa e conse-qüentemente constituírem um instru-mento de autenticidade (como seria ocaso de uma procuração) ou determina-do direito (letras de câmbio e outrosinstrumentos negociáveis).

O aspecto único de um instrumentoassinado eletronicamente precisa estarassociado a um patrão de dados, que podeser copiado, tendo a réplica exatamenteas mesmas qualidades que o “paradigma”.

Assim sendo, uma vez que a exis-tência única de material eletrônico éconstruída mediante a transmissão e oarmazenamento de conteúdos originais,certas aplicações eletrônicas (como oenvio de documentos, por exemplo) exi-gem alguma espécie de registro (loc.cit).

CONCEITO DE ASSINATURA DIGITAL

Existem diversos métodos para as-sinar documentos eletronicamente. Es-sas assinaturas eletrônicas variam demétodos muito simples, como inseriruma imagem escaneada de uma assi-natura manuscrita em um arquivo detexto, a métodos muito avançados, comoo uso da criptografia assimétrica ou dechave pública é importante instrumen-

to para o comércio eletrônico seguro.Aplicações da criptografia em um

ambiente eletrônico, das quais ressaltaduas: encriptação e assinatura digital.

Encriptação e a assinatura digitalsão seguras, a primeira a confidenciali-dade, de segurança sem que tenhamosconfiado a tal pessoa a chave que per-mite decodificar a mensagem, enquan-to a assinatura digital proporciona au-tenticação, ou seja a possibilidade de secomprovar que determinada pessoa en-viou a mensagem. A criptografia podetambém assegurar a integridade de da-dos, isto é, a certeza de que a informa-ção não sofreu alteração não autorizadaem sua forma original e conteúdo, per-mitindo que o destinatário de um amensagem enviada por meio de redeaberta assegure-se de que a mensagemnão foi alterada em trânsito.

Entre alguns exemplos de títulosescriturais podemos citar, além dasações escriturais, a duplicata virtual, naqual o vendedor saca a duplicata e aenvia ao banco por meio magnético, rea-liza a operação de desconto, ao creditaro valor correspondente ao sacado, expe-dindo em seguida guia de compensaçãobancária que, pelo correio, é enviada aodevedor da duplicata virtual para que osacado, de posse do boleto, proceda aopagamento em qualquer agência bancá-ria (cf. ROSA JR., Luiz Emygdio F. daTítulos de Crédito. Rio de Janeiro: Re-novar, 2000. p. 725-728).

No mesmo sentido, leia-se em Fá-bio Ulhoa Coelho (Curso de Direito Co-mercial, I, p. 458).

A duplicata virtual pode ser protes-tada de forma virtual, no vencimento.Ao receber, por meio magnético, os da-dos pertinentes à duplicata virtual, oCartório efetuará o respectivo protesto.O protesto é regulado pela Lei nº 9.492de 1997, art. 8°, parágrafo único. Nadaimpede promova o credor a execução portítulo extrajudicial da duplicata virtual.

Lei nº 9.800 de 1999Através da Lei nº 9.800/99, em pro-

cesso judicial, podem a parte, o repre-

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 37

sentante do Ministério Público, o assis-tente, o litisconsorte apresentar ao juizsuas petições e documentos pela via defac-símile (fax).

Entendemos ser viável a extensãoao e-mail, ao correio eletrônico ou àinternet, na aplicação da Lei nº 9.800/99, desde que o juiz possua os meiosnecessários à transmissão, devidamen-te autorizada.

Qualquer documento pode sertransmitido, exceto os atos judiciais re-lativos à oralidade, pela necessidade dapresença do juiz.

Art. 890O dispositivo repetiu a capitulação

do art. 44 do Decreto nº 2.044/08. A ex-clusão da cláusula proibitiva da apresen-tação da letra ao aceite do sacado cons-tante do item III do art. 44 da LeiCambiária, foi alterada pelo art. 22, item2° da Convenção de Genebra para Letrasde Câmbio e Notas Promissórias, ao ad-mitir a Lei Uniforme a letra sem aceite,salvo se se tratar de uma letra pagávelem localidade diferente da do domicíliodo sacado, ou de uma letra sacada a ter-mo certo da vista, além da cláusula “semdespesas e sem protesto”.

O art. 44 menciona a expressão“para os efeitos cambiais, retirada dotexto do art. 890 do novo Código Civil,sem motivo”.

Art.891Título incompleto-seu preenchimento

O título incompleto pode ser pre-enchido pelo portador, para tanto presu-me-se a existência de mandato a esteconcedido.

A Lei Cambiária no seu art. 4° es-tipula que se presume mandato ao por-tador para inserir a data e o lugar dosaque na letra que os não contiver.

Quanto ao valor lançado por alga-rismos e o que se achar por extenso,capitula o art. 5° da Lei Cambial preva-lecerá o segundo e a diferença não pre-judicará a letra, porem diversificando asindicações da soma de dinheiro no con-texto o título não será letra de câmbio.

Essa redação difere da contida naalínea 1 do art. 6° da Lei Uniforme deGenebra, na qual, a alínea 2 do mesmoartigo estatui que: “Se na letra a indi-cação a satisfazer se achar feita maisde uma vez, quer por extenso, quer poralgarismos, e houver divergências en-tre as diversas indicações, prevaleceráa que se achar feita pela quantia infe-rior”. Na letra sem data do pagamentoentende-se pagável à vista. (art. 2° al. 2da Lei Uniforme).

O art. 10 da Lei Uniforme de Ge-nebra estatui que a letra incompleta nãopode ser completada se for contrária aosacordos realizados pelo, que não pode serconsiderado motivo de oposição ao por-tador, salvo se este tiver adquirido a le-tra de má-fé, ou, adquirindo-a tenha co-metido falta grave.

Nas Comptes Rendus, p.131 cons-ta que, se a letra, depois de ter sido com-pletada, foi adquirida sem má-fé ou cul-pa grave, as exceções baseadas na in-serção da cláusula, não conforme aosacordos, não são oponíveis ao portadorde boa fé do título. É uma conseqüênciada idéia mais geral com respeito devidoà crença do portador com base na boa-fé. Se o adquirente do título preenches-se a parte em branco, mesmo abusiva-mente, e, em seguida fosse transmiti-da a letra de câmbio a terceiro de boafé, as exceções provenientes da inser-ção das clausulas abusivas não poderi-am ser opostas a este último.

O certo é que, por força do art.3°das Reservas (Anexo II) a redação cor-reta será a do art. 4° do Decreto nº 2.044de 1908, ainda em vigor.

Parágrafo Único do art. 891O dispositivo em exame consta do

art.10 da Lei Uniforme, com a exclusãoda parte final “ou adquirindo-a tenhacometido uma falta grave”.

Orientação idêntica adotou aSúmula nº 387 do Egrégio Supremo Tri-bunal Federal com a seguinte redação:“A cambial emitida ou aceita com omis-sões em branco, pode ser completadapelo credor de boa fé antes da cobrançaou do protesto”.

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38 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

Pelo que se vê, portanto, a redaçãodo novo texto do Código Civil contém aexpressão “...os ajustes previstos nesteartigo pelos que deles participaram” nãose encontra, nem no art. 4° da LeiCambiária, e, muito menos, na Súmulanº 387 do S.T.F.

ABUSO NO PREENCHIMENTO DE TÍTULO EM BRANCO

As principais regras sobre abuso nopreenchimento de títulos em branco sãoas seguintes:

1°) só o legítimo portador pode pre-encher a letra de câmbio;

2°) na pressuposição de que fê-lodentro do estipulado nos limites das obri-gações cambiárias, sendo o ônus da pro-va do obrigado cambiário, na ação cam-bial de preenchimento indevido;

3°) pelo convencionado em pactoabjeto com defesa a cargo do obrigado,em ação específica da causa ou excepci-onalmente na ação cambiária.

4°) aos endossatários e portadorescom o título já preenchido não podem seropostas as exceções de abuso no preen-chimento do título, exceto, aos de má-fé.

INTENÇÃO DO SUBSCRITOR

Segundo José Maria Whitaker (op.cit. p. 102/103), indagar da intenção dosubscritor é introduzir um elemento sub-jetivo numa questão de forma a permitirno processo cambiário uma discussãoque não interesse ao terceiro de boa fé.

Na opinião de Pedro Barbosa Perei-ra (loc.cit ), a letra em branco é um valorpatrimonial, expressão incompleta davontade, a se transformar em título po-tencial de uma obrigação, que para setornar perfeita depende apenas de umacooperação material do portador, semnecessidade de oposição do respectivosubscritor.

Para o direito cambial a letra decâmbio é um valor para efeito de circu-lação, posto que não seja um valor deexecução. A letra em branco pode sertransferida e alienada; é endossável.

Os endossatários que recebem otítulo na sua fase incompleta não gozamdas mesmas vantagens que os que re-

ceberam com a sua forma definitiva, peloque não têm, como estes, uma posiçãoautônoma, por exercerem, um direitoderivado, sujeito a todas as execuções edefesas oponíveis a qualquer de seuspredecessores.

Art. 892A capitulação deste artigo respon-

sabiliza o mandatário pelos atos por elepraticados sem poderes outorgados pelomandante ou com excesso desses pode-res, tornando-se o mandatário verdadei-ro obrigado cambiário, pelo princípio daforma nos títulos de crédito. (Súmula doSTJ nº 60)

Essa norma tem a mesma redaçãoque a do art. 8° da Lei Uniforme de Ge-nebra.

Art. 893Reza o art. 11, al. 1ª da Convenção

de Genebra que, mesmo que não envol-va expressamente a cláusula à ordem,a cambial se transmite por via de en-dosso.

Por essa forma de transferência dotítulo infere-se que se transmitem os di-reitos correspondentes às obrigaçõescambiárias, ou seja, apenas, ao valor dotítulo, exceto no caso do aceitante ou doavalista, cuja obrigação pode sofrer li-mitação.

O dispositivo inspirou-se no art.1995 do Código Italiano, e também doart. 14 da Lei Uniforme de Genebra.

Art. 894Os títulos representativos de mer-

cadoria são aqueles que envolvem atransferência da posse e a propriedadede mercadoria.

Vejamos um exemplo: a posse do co-nhecimento de depósito é aquela que per-mite ao seu titular considerar-se proprie-tário de mercadoria depositada em arma-zém geral; logo a sua transferência impli-ca a transferência dessa mercadoria.

A exceção pode ser encontrada nocaso da emissão do warrant, em que atransferência da propriedade da merca-doria referida no conhecimento de de-

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 39

pósito está subordinada, no vencimen-to, ao pagamento do valor do warrant,logo, em havendo emissão deste título,para que o titular do conhecimento dedepósito possa receber a mercadoria énecessário o pagamento prévio do valorreferido no warrant.

Logo, quem transfere o conheci-mento de depósito transfere ipso fac-to o domínio da mercadoria. O mesmofenômeno ocorre com a cédula de pro-duto rural.

Por outro lado, é preciso que seentenda que a entrega da mercadoriaestá condicionada à quitação dowarrant, caso seja este emitido.

Art. 895O título de crédito em circulação

pode ser dado em garantia, ou seja, podeser apenhado (caucionado), ou ser obje-to de medida constritiva judicial, mas odireito ou a mercadoria que representa otítulo não podem sofrer tais restrições ouônus, independentemente do título. (art.1458 e ss do novo Código Civil)

O dispositivo deve ser aplicado aostítulos de garantia real.

No caso do conhecimento de depó-sito não se pode constituir ônus ou im-por medida constritiva judicial sobre amercadoria depositada em armazém ge-ral, se sobre ela emitiu-se o conheci-mento de depósito. O mesmo acontececom o conhecimento de transporte.

Art. 896Da mesma forma, o título de crédi-

to não pode ser objeto de reivindicaçãopor terceiro, contra o seu legítimo porta-dor, desde que o título tenha sido adqui-rido de boa fé, também respeitadas asnormas que disciplinam a sua circulação(art. 1.994 do Código Civil Italiano e art.16, 2ª alínea da Convenção de Genebra).

Art. 897A disposição que admite a garantia

do aval refere-se aos títulos de créditode pagamento de soma em dinheiro, fatoque exclui os títulos representativos demercadoria.

Parágrafo ÚnicoA disposição proíbe o aval parcial

nesses títulos. Ora, o art. 30 da Lei Uni-forme de Genebra permite o aval parci-al, o aval dado por terceiro, na letra ouem folha anexa (alonge). Por essa ra-zão, na linha de princípio estatuído peloart. 903 do Código Civil, deve aplicar-seà hipótese a Convenção de Genebra enão o parágrafo único do art. 897 nosentido de se admitir o aval parcial, emque o avalista pode reduzir o valor dasua obrigação.

Art. 898O aval pode ser aposto no verso do

título, posicionado o avalista na mesmaposição do endossador, a ele equiparadopara efeito de responsabilidade cambiária.

Parágrafo PrimeiroNo aval aposto no anverso do título,

o avalista coloca-se na mesma posiçãodo devedor principal: o aceitante, osacador da letra de câmbio, o sacadordesta na letra não aceitável ou do emi-tente da nota promissória, dispensadaqualquer menção ao avalizado.

Parágrafo 2°Considera-se não escrito o aval can-

celado.A Súmula nº 26 do STJ dispõe que

o avalista de título de crédito vinculadoa contrato de mútuo também respondepelas obrigações pactuadas, quando nocontrato figurar como devedor solidário.

Art. 899A redação do referido artigo é seme-

lhante à do art. 32 da Convenção de Ge-nebra e, na falta de indicação do nome doavalizado presume-se tenha sido aposto peloemitente ou pelo devedor final, no caso, oúltimo endossatário, quando há endosso.

Convém lembrar que, na parte fi-nal do caput do art. 32 deve substituir-se o vocábulo “afiançado por avalizado”.

Parágrafo 1°O referido parágrafo dá ao avalista

que pagou o título o direito de regresso

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40 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

contra o avalizado e demais coobrigadosanteriores (os endossadores e endossa-tários anteriores e seus avalistas). Oavalista de coobrigado (endossador ouendossatário) que paga o título tambémtem direito de regresso contra o obriga-do principal.

Parágrafo 2ºNo caso de nulidade da obrigação

avalizada, subsiste a responsabilidade doavalista, salvo no caso de nulidade quedecorra de vício de forma.

Vício de forma é aquele que atingeo próprio título e gera a sua nulidadeque, por sua vez, alcança as obrigaçõescambiárias.

Essa disposição encontra-se no art. 32,2°alínea da Convenção de Genebra.

Art. 900O aval posterior ao vencimento do

título não o invalida, sendo consideradosos mesmos efeitos do anteriormentedado. A disposição em exame assemelha-se à do art. 20 da Convenção genebrinacom respeito ao endosso.

Quanto ao endosso, a capitulaçãodo art. 20 da Convenção, na primeiraparte, tem a mesma redação, porém oendosso, a nosso ver, aposto depois doprotesto, tem o efeito de cessão ordiná-ria de crédito, consoante disposição doart. 1.065 do Código Civil de 1916.

Art. 901O devedor que paga ao legítimo por-

tador do título, no vencimento, conside-ra-se quitado, ou seja, desonerado, sal-vo se agiu de má-fé.

Parágrafo únicoPago o título, assiste ao devedor o

direito de exigir do credor, além da en-trega do título, a quitação regular.

Art. 902Este artigo informa que o credor

não tem obrigação de receber a dívidaantes de seu vencimento, sendo o deve-dor responsável pela validade da obriga-ção, no caso de pagamento.

Parágrafo 1°No vencimento não pode o credor

recusar o pagamento.Observe-se que, ao devedor, assis-

te o direito de oferecer pagamento departe da dívida, cabendo ao credor fazermenção a esse fato, no título ou em do-cumento em separado.

Tal pagamento não invalida o títu-lo, não se operando a sua tradição, maso valor da dívida é reduzido ao saldo res-tante.

Por essa razão, no caso de paga-mento parcial, o credor conserva o títu-lo em sua posse, sendo, porém, obrigadoa dar quitação na cártula, pelo valorpago, consignando a parcela devida.

Também deverá o credor, em docu-mento em separado, a ser entregue aodevedor, consignar a mesma declaração.

Tratamento diferente dá o art. 314do Código Civil, pelo qual não está o cre-dor obrigado a receber parte da dívida.

Art. 903A capitulação em análise tem a

maior importância no que concerne aostítulos de crédito, pois o Código Civil deuprecedência à legislação regulada em leiespecial sobre o texto do novo Código Ci-vil. Então, no conflito entre uma lei ex-travagante e o Código, prevalece a pri-meira.

Assim, no conflito entre o art. 897parágrafo único do Código Civil e o art.30 da Lei Uniforme de Genebra aplica-se o segundo dispositivo de preferênciaao primeiro.

A dúvida é se saber da razão do le-gislador do Código em inserir dispositivoinútil, a menos que se possam admitirtítulos nos quais o endosso seja sempretotal.

Outro problema envolve o aval múl-tiplo omitido (co-aval) no Código e na LeiUniforme, cuja solução é no sentido dese considerar solidários os co-avalistas(solidariedade regida pela lei civil).

A Súmula nº 189 do S.T.F dispõeque os avais em branco superpostos con-sideram-se simultâneos e não sucessi-vos. A regra geral é que está em vigor

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 41

toda a legislação extravagante no quetoca aos títulos de crédito, sobrepondo-se esta às normas do Código Civil.

TÍTULOS AO PORTADOR

Art. 904Os títulos ao portador são aqueles

que se transmitem por tradição, desco-nhecendo-se-lhes o portador, até o mo-mento da transmissão.

Art. 905O requisito essencial é a apresen-

tação do título.

Parágrafo ÚnicoEste dispositivo decorre da aplica-

ção da teoria da declaração, pela qual,no momento em que o emitente apõe asua assinatura no título, este já existe.

Caso o título seja furtado, se,porventura, o ladrão colocá-lo em circu-lação, endossando-o, inclusive, caso oendossatário esteja de boa-fé, poderácobrá-lo do endossador ou endossadoresanteriores daquele que o transferiu,estará imune às investidas do subscritorou emissor do título, salvo diante dasdefesas com base em nulidade internaou externa do título, ou em direito pes-soal do emissor.

Pela teoria da criação não importaque o seu criador tenha sido injustamen-te desapossado, passando a circular o tí-tulo contra a sua vontade; logo, a partirdo momento em que a pessoa apôs a suaassinatura no título formalmente perfei-to, mesmo que dele tenha sidodesapossado contra a sua vontade, essetítulo pode circular regularmente, a me-nos que o endossatário esteja de má-fé.

Esta disposição já se encontrava noart. 1.506 do Código Civil de 1916, cujafonte foi o § 794 do BGB (Código Civilalemão), com base na teoria de Kuntze,Siegel e Bonelli.

O referido § do Código Civil alemãotem a seguinte redação:

“O emissor de um título ao portador seacha obrigado ainda que se lhe foi rou-bado, se lhe foi extraviado, ou, de quequalquer modo foi posto em circulaçãocontra a sua vontade”.

O criador fica ligado ao título coma sua assinatura e obrigado para com ocredor eventual e indeterminado, emconsiderando tratar-se de declaraçãounilateral de vontade ao se obrigar o cri-ador do título. A obrigação nasce com oaparecimento desse futuro detentor.

Para Kuntze, com a concepção do es-crito, nasce o título e com a entrada emcirculação do título nasce a obrigação.

Segundo Pontes de Miranda (Tra-tado de Direito Cambiário, v. 1°), loc.cit., por essa teoria adotada pelo CódigoCivil alemão, em mãos do subscritor otítulo já é um valor patrimonial, prestesa se tornar fonte de direito de crédito.

A vontade do devedor já não impor-ta para o efeito obrigacional, completaPontes, pois o título é o que o produz eque cria a dívida. A única condição quese impõe é a posse pelo primeiro porta-dor, qualquer que seja ele.

Essa teoria foi aceita pelo art.1.506 do Código Civil de 1916 e pelo novoCódigo, no art. 905, parágrafo único.

Art. 906As exceções suscetíveis de ser opos-

tas pelo devedor ao portador são as fun-dadas em direito pessoal ou em nulida-de do título.

Art. 907Diz o texto do art. 907 que, ao me-

nos que tenha sido autorizado por leiespecial, é nulo o título de crédito aoportador. A redação encontra a sua ma-triz no art. 1.511 do Código Civil de 1916.Convém chamar a atenção para o dispo-sitivo do art. 1° da Lei nº 8.021 de 12 deabril de 1990, pelo qual é “vedado o pa-gamento ou resgate de qualquer títuloou aplicação, bem como dos seus rendi-mentos ou ganhos, a beneficiário nãoidentificado”.

Ora, a referida lei proibiu por com-pleto a emissão de qualquer título aoportador, daí a necessidade de se sabera respeito da revogação da referida lei,atento ao fato de se tratar de norma li-gada à política do Governo, visando aimpedir a expansão do crédito.

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42 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

No início da República, já havia leiproibitiva de emissões de títulos dessanatureza e, há alguns anos editaram-seleis com exigência de registro de letrasde câmbio e notas promissórias, poste-riormente revogadas.

A conclusão, na interpretação doart. 907 é que:

a) só poderão ser criados títulos decrédito mediante lei especial;

b) a vedação de criação de títulosao portador por força do disposto no art.1° da Lei nº 8.021/ 90, a nosso ver, con-tinua em vigor, em razão de política go-vernamental.

Art. 908A disposição é polêmica, por se tra-

tar de questão dependente de prova, tantoassim que o título dilacerado pode, pormuitos, ser considerado inutilizado, tan-to assim que os bancos normalmente nãoaceitam cheques com rasuras ou peque-nas irregularidades no seu texto, comoerros de data e outras quebras do aspec-to formal do cheque. Muito pior será aexistência de dilaceração de um título.

De qualquer forma o dispositivomerece melhor exame na sua aplicação.No artigo seguinte será examinado o casodo art. 912 do Código de Processo Civil,em menção de destruição parcial de do-cumento.

Art. 907 – Código de Processo CivilO art. 907 trata de assunto ligado

à ação de anulação, de recuperação detítulo ao portador, quando o proprietárioperder ou extraviar título, ou for injus-tamente desapossado dele.

A origem da ação referida encon-tra-se no art. 36 do Decreto nº 2.044/1908, de redação mais ampla e adequa-da à hipótese, que a adotada no CódigoCivil de 2002.

Porém a lei em vigor é o Código deProcesso Civil nos seus artigos 907 a 913,sobre os quais nos pronunciaremos deforma sucinta.

O art. 907 da lei processual cuidade casos de perda ou de injustodesapossamento do título.

Os pedidos são:a) a reivindicação (petitória, ação

real do título contra quem o detiver);b) a anulação e a substituição por

outro título.Se se tratar de destruição total

pode o autor da ação de rito comum, or-dinário ou sumário, fazer citar o deve-dor para reconfeccionar novo título. Casoo título esteja em mãos de terceiro oautor pedirá o seu desapossamento econseqüente devolução ao autor da ação.

Segundo lição de Nelson Nery Ju-nior e Rosa Maria de Andrade Junior,Código de Processo Civil Comentado,5° ed. R.T. p. 1282, entende-se por in-justo desapossamento aquele “que de-corre de abuso de confiança ou de apro-priação indébita. O injusto desapossa-mento não precisa ser comprovado se aalegação do autor é de extravio ou perdado título. As cédulas de papel moedaequiparam-se a títulos da dívida pública(RF 253/325).

Na hipótese de reivindicação denota promissória, aduzem os ilustresautores (loc.cit.), exigem prova segura,pelo devedor, de ter sido entregue emconfiança, e não se tratasse de entregaem quitação, como seria de se presumir(JTA Civ. SP 49/52 e RJCPC, I, 75). Osmesmos autores ainda lembram que oautor não pode se servir da ação paradesconstituir relação jurídica de direitomaterial, pelo CPC, 907, II, em que o réué o detentor do título.

No caso do art. 907, II do C.P.C.,segundo o disposto no art. 908 do mes-mo diploma legal, apresentada a petiçãoinicial com os requisitos do seu caput ecitados o detentor e por edital os ter-ceiros interessados para contestarem opedido, os obrigados cambiais devemtambém ser cientificados do pedido. Opedido inicial deve requerer a intimaçãodo devedor para depositar em juízo o ca-pital, juros ou dividendos vencidos ouvincendos; intimada, outrossim, a Bolsade Valores para conhecimento de seusmembros - as sociedades corretoras - afim de não negociarem os valores mobi-liários.

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 43

Pede-se, também, na inicial que seintime o devedor a não pagar ao detentoraté que se resolva a ação de reivindica-ção ou de anulação, em trâmite.

Depois da intimação, completam osautores referidos (local citado), reputa-se de má-fé o pagamento feito e inválidaa quitação (art. 935 C.C.1916), ainda queo título tenha sido entregue ao devedor(art. 945).

Ainda segundo os referidos auto-res (p. 1283), cabe ao autor, a fim deevitar insegurança no mercado de valo-res mobiliários ou no mercado financei-ro, comprovar, de início, pré-constituira prova de perda, extravio oudesapossamento do título. Não justifica-dos a perda, o extravio ou o furto do títu-lo, o juiz julgará o autor carecedor deação (TR 649/83).

Conseqüência do julgamento final:o juiz declarará caduco o título recla-mado e ordenará ao devedor que lavreoutro em substituição dentro do prazoque a sentença lhe assinar (art. 911C.P.C.).

Esse artigo 911 é incompleto, poisnão abrange a ação de reivindicação pre-vista no art. 907, I, quando determinarque a propriedade do título sejatransferida de volta ao autor retirando-a do réu.

É possível que o réu se negue a con-feccionar novo título, e, nesse caso, ad-mitimos a possibilidade de o juiz profe-rir sentença com força executiva,substitutiva do título, valendo a decisãocomo se fora o próprio título, à seme-lhança do procedimento dos art. 639/641 do Código de Processo Civil.

CASO DE DESTRUIÇÃO PARCIAL

O art. 912 do Código de ProcessoCivil determina que o portador, exibindoo que restar do título, pedirá a citaçãodo devedor para em dez dias, substituí-lo ou contestar a ação.

O parágrafo único estatui que, emnão havendo contestação, o juiz proferi-rá desde logo a sentença ou mandaráseguir o rito ordinário. Observam os au-tores citados que “se estes vestígios não

existirem, o credor não tem como aten-der a exigência da lei, de exigir os res-tos reconhecíveis do título, na linha dopensamento do ilustre Professor Adro-aldo Fabrício, Coment. nº 239, p. 274 ede Mercato, Proced. Esp. nº 93.

No art. 909, aplica-se aqui a teoriada emissão do título prevista no art.1.509 do Código Civil de 1916 que tratade injusto desapossamento do título, desua perda ou extravio.

Art. 909 - Parágrafo ÚnicoEste artigo admite a possibilidade

de o pagamento efetuado pelo devedor aopossuidor do título antes da ciência daação por aquele exonerá-lo, exceto se eleteve ciência do fato, naquela ocasião.

TÍTULO À ORDEM

O título à ordem é aquele que setransfere mediante endosso, previsto noart. 11 da Lei Uniforme de Genebra.

Art. 910O endosso deve ser lançado no ver-

so do título, em branco ou em preto. Noprimeiro caso, o título transfere-se portradição; no segundo, consta o nome doendossatário, o verdadeiro beneficiáriodo título à ordem.

ENDOSSO A MAIS DE UMA PESSOA

No entendimento de Whitaker,quanto ao endosso a duas pessoas con-junta ou alternadamente, aquele quelegitimamente possuir a letra de câm-bio é o credor da obrigação, autorizado acobrar o título. Segundo anota WaldírioBulgarelli (Títulos de Crédito, 18ª ed.Atlas 2001), o mestre Carvalho de Men-donça negava a possibilidade de o en-dosso ser aposto no anverso do título,tese superada segundo o magistério dePontes de Miranda e João EunápioBorges op. cit. nº 80, p.75 desde quefigure expressamente tratar-se de en-dosso, na face do título; nesse caso, ad-mite a maioria dos autores a existênciade endosso aposto na face da cambial.

A nosso ver, na dúvida, prevalece atese de que o endosso deve ser aposto

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no verso. A dúvida reside em se saberqual a posição do endosso em branco in-serido no anverso, por se ignorar a datade sua aposição e da possibilidade deser confundido com o aval pelo devedorprincipal.

Quanto ao endosso aposto fora dotítulo, em nosso entender, pode sê-lo noalongamento ou anexo, representado poruma folha colada no título, porém temosdúvida sobre a validade do endosso dadoem escritura pública, como aceita o no-bre Professor Bulgarelli (op. cit. p. 173,nº 3.4.2).

O Código Civil, no art. 910, admitiuo endosso lançado no anverso, mas nãoexplicou em que condições pode ser in-serido.

Em nossa interpretação, poderá sê-lo nas condições acima referidas.

Parágrafo Primeiro do art. 910Esse parágrafo cuida do endosso em

preto, tanto no verso quanto no anversodo título transmitido à ordem.

O endosso em branco, quando nãose menciona o nome do endossatário,como se viu, o título é transmitido aoportador.

Há certa confusão na menção àparte final desse parágrafo, quando olegislador refere-se a “e para a validadedo endosso dado no verso do título é su-ficiente a simples assinatura doendossante”, podendo parecer que so-mente o endosso em branco aposto noverso do título tem validade.

Essa confusão advém da permissãodo endosso na face do título.

Parágrafo Segundo do art. 910A transmissão do título faz-se me-

diante dois atos: o endosso, representa-do pelo aspecto obrigacional sucedidopela transferência da sua posse – as-pecto real, representado pela transmis-são física da cártula; logo, o endosso dotítulo sem a transferência da posse dacambial não produz eficácia real em re-lação a terceiros, simplesmente porqueesse título é insuscetível de ser objetode cobrança ou de execução sem a res-

pectiva cártula, exceto nos títulosescriturais, nos quais não existe um do-cumento no sentido usado no direitocambiário tradicional, na forma da Con-venção de Genebra, em que a transmis-são verifica-se por meio de registro,como no caso das ações nominativas dasociedade anônima.

Anota José Maria Whitaker que oendossatário sucede ao endossante napropriedade do título, mas não na relaçãojurídica pela qual o endossatário o adqui-riu; adquire um valor e não somente umdireito a um valor. Em conseqüência, a in-capacidade do endossante não terá o efei-to de interromper a cadeia de endossos.

Parágrafo TerceiroO endosso cancelado considera-se

não escrito, norma inscrita no art. 16da Lei Uniforme de Genebra; a redaçãodo texto deste parágrafo na parte em quediz que se considera não escrito o en-dosso cancelado “total ou parcialmente”pode suscitar dúvidas, uma vez que setorna difícil aproveitar-se um endossoparcialmente riscado.

PACTO DE NON PETENDO

Segundo o magistério de Whitaker(op. cit. p. 273), o credor que concedeuprazo a um dos coobrigados, ou mesmose lhe prometeu nunca o acionar (pactumde non petendo), não terá prejudicado,com isso, o direito contra os coobrigadosposteriores, nem o destes contra o deve-dor, quando exerçam o direito de regres-so. Qualquer uma destas convenções temcaráter pessoal e não real atingindo comisso, apenas, aqueles que diretamenteas estabeleçam. Se o credor recusar opagamento que lhe for oferecido por umdos coobrigados não poderá mais exigi-lode um dos coobrigados posteriores, por-que tê-lo-ia privado injustificadamente deuma oportunidade de se liberar definiti-vamente da própria obrigação (cf. Bonelli,op. cit. nº 288).

Art. 911A série ininterrupta de endossos do

título assegura ao último endossatário

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 45

o direito de considerá-lo o seu legítimocredor.

Pelo magistério de Bulgarelli (p.175, nota 51), do endosso não resultasomente a transferência da proprieda-de do título, mas, também, a garantiada realização pontual da prestaçãocambiária e, por força da garantia oendossador assume em face dosendossatários ulteriores a responsabili-dade solidária pelo aceite (na letra decâmbio) e pelo pagamento da cambial.

Quanto à solidariedade, não se tra-ta da inserida no Código Civil, pois, nes-ta, a prestação pode ser exigida por quo-tas, os credores não têm entre si rela-ções de débito e crédito, a nulidade de-cretada em favor de um dos devedoresaproveita aos outros, ainda que não ativessem alegado.

No endosso da cambial, ao contrá-rio, a prestação é indivisível, os credoressão devedores uns dos outros, na ordemda sucessão dos endossos, e a anulaçãode qualquer das declarações cambiais,de nenhum modo afeta a validade ou efi-cácia de qualquer das outras. Mostra oilustre autor que, na cambial há tantasobrigações de garantia quantos com oúnico traço comum de se referirem to-das ao mesmo objeto. Daí a obrigação deo endossador garantir “a realidade-veritas- do título como a realização do valor.Bonitas - que ele representa. (Whitaker,nº 75, p. 121-122). Se o último endossofor em branco, a regra aplicável é a mes-ma, com a diferença de se tratar de umtítulo transferível por tradição, cujobeneficiário é desconhecido.

Parágrafo único do art. 911A regra tem o significado de exigir

que o beneficiário do título, ou seja, oúltimo endossatário, deva verificar aregularidade da série de endossos, nosentido de se identificar sobretudo onome dos endossatários em preto, masnão a autenticidade das assinaturas.

Admitamos que Francisco endosseo título a Carlos, e que, em seguida apa-reça a assinatura de Mario, nesse casoquebrou-se a série ininterrupta de en-

dossos, pois o endossatário deveria serCarlos e não Mario.

No caso dos endossos em branco,a sua circulação se fará por tradição,ignorando-se por quais pessoas circulouesse título.

Após o endosso em branco, pode otítulo voltar a circular por meio de en-dosso em preto, mediante identificaçãodo endossatário (art. 913).

Não cabe ao endossatário saber sealguma das assinaturas do endossadorese endossatários e seus avalistas é falsa.

Art. 912O endosso não está sujeito à con-

dição, conforme dispõe a segunda partedo art. 12 da Convenção de Genebra, porser o endosso a transferênciaincondicionada da cambial.

Parágrafo único do art. 912O endosso parcial é nulo, consoan-

te consta do item segundo do art. 12 daLei Uniforme de Genebra. No que dizrespeito ao art. 10 do Decreto Lei nº 413de 1969 sobre a Cédula de Crédito In-dustrial, admite o endosso parcial (art.10 paragrafo 2° c/c art.13) quando hou-ver amortização da dívida.

O Professor Bulgarelli, em nota 50da p. 174 da obra referida, assinala que,apesar de nulo o endosso parcial, em re-lação às partes imediatas, prevalece arestrição, “em relação aos endossadoresposteriores – não prejudicada a regulari-dade da série de endossos - aquela res-trição, vedada pela lei, mas, não o ne-cessariamente anulatória do endosso,será considerada não escrita, podendo opossuidor exigir a soma cambial de todosos coobrigados, inclusive do signatáriodaquele endosso parcial".

A norma a aplicar será a do art.44, IV, que considera não escrita paraos efeitos cambiais, a cláusulaexcludente ou restritiva da responsabi-lidade e qualquer outra, beneficiando odevedor ou o credor, além dos limitesfixados por esta lei. Assim, não serianulo o endosso parcial, apenas ineficaz– considerada cambialmente não escri-

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ta – a limitação ou parcelamento da somaconstante do referido endosso. JoãoEunápio Borges, op. cit. nº. 87, p. 77-78.(cf. Vivante, Trat. Dir Com., III, p.281).

Art. 913O endosso em preto - aquele em

que o endossador insere o nome doendossatário - pode converter-se emendosso em branco, no qual o endossadorapenas apõe o seu nome sem mencio-nar o nome do endossatário, em que acirculação do título se dá por tradição,no caso em que o nome dos seus pos-suidores são desconhecidos.

Se o portador do título endossadoem branco, fizer inserir o nome doendossatário, o título passa a ser en-dossado em preto, e assim por diante.

Art. 914Capitula o art. 15 da Convenção de

Genebra que o endossatário, sem cláu-sula em contrário, é garante, tanto daaceitação da letra, quanto de seu paga-mento. Mesma redação tem o art. 21 daLei nº 7.357 de 1985.

Ao contrário, o art. 914 do novo CódigoCivil dispõe que “ressalvada cláusula ex-pressa em contrário constante do endossonão responde o endossante pelo cumprimen-to da prestação constante do título”. Deve,a nosso ver, prevalecer a redação da Con-venção de Genebra dos arts. 14 e 15, naforma dos comentários anteriores.

Parágrafo PrimeiroA capitulação deste parágrafo impõe

a necessidade da assunção peloendossatário da responsabilidade pelo pa-gamento, tornando-se devedor solidário.

A solidariedade decorre da simplesaposição da assinatura do endossatáriono título.

Parágrafo Segundo do art. 914O dispositivo enunciado permite ao

endossatário que pagou o título o exercí-cio do direito de regresso contra osendossadores e endossatários anterio-res e seus avalistas e, em ação direta contrao devedor principal.

O dispositivo referido no Código Ci-vil omitiu a ação direta contra o devedorprincipal, ou seja, o aceitante da letra,o sacador da letra não aceitável seja oemitente da nota promissória, e seuavalista, a ele equiparado.

Art. 915O dispositivo trata das exceções pes-

soais, no sentido de que o devedor, alémdas exceções fundadas nas relações pes-soais contra o portador, só poderá opor aeste as exceções relativas à forma do tí-tulo e ao seu conteúdo literal, a falsida-de da própria assinatura, a defeito decapacidade ou de representação no mo-mento da subscrição e à falta de requi-sito necessário ao exercício da ação.

Vejamos cada uma dessas exceções.As relações pessoais diretas entre

autor e réu são aquelas que dizem res-peito aos efeitos das obrigações como opagamento, a subrogação, a imputaçãodo pagamento, a dação em pagamento,a novação, a compensação, a transação,o compromisso, a confusão e a remissãode dívida (arts. 930 e seguintes do Códi-go Civil de 1916, arts. 334 e ss do novodiploma civil decorrente do princípio dainoponibilidade das exceções pessoais.

Incluem-se nessas defesas erro,dolo, fraude, violência, causa ilícita nostítulos causais e simulação.

A forma do título e o seu conteúdoliteral referem-se à literalidade da cam-bial, princípio essencial aos títulos decrédito. (cf. José Maria Whitaker, Letrade Câmbio, nº 199, p. 242).

Com respeito à falsidade da própriaassinatura compreende a falsidade do-cumental ou ideológica.

O Professor Bulgarelli analisa commuito discernimento o problema da com-patibilidade das exceções cambiárias eextracambiárias (op. cit. p. 242), em queo réu pode, desde logo opor "em exceçãoaquilo que iria fundamentar aquela ação.Isto é, ao solve et repete o réu retrucavitoriosamente com o dolo petis quodmox restiturus es, isto é, pedes com doloaquilo que logo terás de restituir"(Eunápio Borges op, cit. nº 165, p. 129).

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 47

No que concerne à falta de requisi-to necessário ao direito de ação ressal-ta Bulgarelli (loc.cit.) referir-se àlegitimação do autor como credor, à fal-ta de posse da cambial, à falta ou nuli-dade, à prescrição e a outros. Além des-ses há, ainda, as defesas específicas doprocesso (coisa julgada, litispendência,falta de capacidade processual e outrasdessa natureza.

Art. 916As exceções são pessoais entre o

credor e o obrigado cambiário contraquem é proposta a ação; aquelas pro-postas contra outros endossadores ouendossatários ou avalistas precedentessomente poderão ser opostas ao porta-dor do título, quando este tenha agidode má-fé.

A má-fé, na redação do art.17 daConvenção de Genebra, significa a ci-ência da ação em detrimento do deve-dor (“agi sciemment au dètriment durebiteur”), considerado o momento daaquisição do título (art. 17).

Túlio Ascarelli (Teoria Geral dosTítulos de Crédito. 2ª ed. 1969, p. 293/294) alinha várias defesas do réu.

Comptes Rendus, 1.133. A conclu-são final da Convenção foi no sentido deque o portador deve, não só ter conheci-mento das exceções como ter agido coin-cidentemente em detrimento do devedor,suscetível de incidir na aplicação da re-gra “exceptio doli generalis a ser apre-ciada por cada Tribunal.

Art. 917O endosso-mandato ou procuração

é aquele em que o endossador outorgapoderes ao mandatário para praticar atosrelativos ao direito cambiário, inerentesao título.

Por força do parágrafo 1° do mesmoartigo, ao mandatário só é permitido osubstabelecimento ou o reendosso do títulodentro dos limites previstos no mandato.

Parágrafo 2° do art. 917Pelo parágrafo 2° a morte ou a in-

capacidade superveniente do mandante

não invalida o mandato, nem lhe retiraa eficácia.

Parágrafo 3° do art. 917As exceções opostas pelo devedor

ao mandatário ficam restritas às que ti-ver contra o endossador, dentro, natu-ralmente, dos poderes outorgados pelomandante.

Art. 918 e parágrafo 1ºNo caso do endosso-penhor ou en-

dosso pignoratício, o credor somentepode endossar o título na qualidade deprocurador, pelo simples fato de não setratar de endosso pleno, mas de consti-tuição de uma garantia real, como ocor-re com o penhor. (art.19 da Lei Unifor-me de Genebra).

Parágrafo 2° do art. 918Como o endosso pignoratício, o títu-

lo é dado em caução, dele não há trans-ferência da propriedade, sendo vedadoao devedor opor ao credor, exceções quetinha contra o endossador, dele devedor,exceto se tiver este agido de má-fé .

Na capitulação do art. 798 do Códi-go Civil de 1916, inseriu-se o vocábulo“caução” explicado por Clóvis Beviláquapor ser o mais adequado do que o pe-nhor, por expressar melhor a idéia deque não há transferência de posse, vis-to tratar-se de crédito de bem incorpóreo.

Aduz Maria Helena Diniz (CódigoCivil Anotado, 4. ed. aum., Saraiva,1998, p. 610):

“O objeto da caução de título de crédi-to é o próprio título em que se docu-menta o direito.O direito de crédito materializa-se aoincorporar-se no documento, sendo,portanto, seu objeto o documento re-presentativo do crédito (coisa corpórea)e não os respectivos direitos (coisaincorpórea).”No novo Código Civil, a redação do

art. 1.458 prevê o penhor de título decrédito, mediante instrumento públicoou particular ou endosso pignoratício,com a tradição do título ao credor.

No que tange à letra de câmbio e à

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nota promissória, o meio próprio é o en-dosso penhor, previsto no art. 918 do novodiploma legal.

No cheque as coisas se passam demaneira diferente, por não preverem oDecreto nº 2.591 de 1912, a Convençãode Genebra para cheques e a própria Leinº 7.357 de 1985 o endosso pignoratíciodo cheque.

Na doutrina, Lorenzo Mossa, cita-do em nossa obra Obrigações e Contra-tos na Falência (Renovar, 1997, p. 92),já excluía o endosso penhor no cheque.

No Código de Comércio de 1850, noart. 277, admite-se o penhor de títulosde crédito.

A Lei Uniforme de Genebra paraCheques não previu o endosso penhor,situação explicada nas Comptes Rendus(p. 98), transcrita no mesmo trecho denossa obra.

Por essa razão, tanto o texto da LeiUniforme quanto a Lei nº 7.357 de 1985não admitem essa forma de endosso.

Quanto ao instituto do penhor decambial, a nosso ver, é perfeitamenteadmissível no texto do novo Código Civil,no art. 1.458, além do endosso penhorinserido no art. 918.

Assim entendido, na linha do nos-so pensamento a respeito dessa garan-tia, admitimos a possibilidade de a letrade câmbio e a nota promissória seremendossadas por meio de endosso penhor.

Ao mesmo tempo, de acordo com ocapitulado no art. 1.458 do novo CódigoCivil, não temos dúvida em aceitar o pe-nhor de cambial, de forma diversa doendosso penhor, mediante instrumentoextracartular válido, na forma previstano nosso parecer acima referido, ao passoque, no cheque, é inadmissível o endos-so penhor, como se viu acima.

Art. 919A disposição do art. 919 não aten-

tou para os arts. 11, al. 2ª e 15, al. 2°da Convenção de Genebra, nos quais seestabeleceu, respectivamente, aclausula “não à ordem” e a cláusula"proibitiva de endosso". Na primeira,aposta pelo sacador da letra de câmbio

ou pelo emitente da nota promissória,tem a eficácia de cessão ordinária decréditos e a segunda, aposta no cursoda cambial, pelo endossador, proibitivade novo endosso, também com efeito decessão de crédito, cuja conseqüência éo fato de não garantir o pagamento àspessoas a quem a letra for posteriormen-te endossada. Em outras palavras,ambas as cláusulas dão ao endosso aconotação de cessão de crédito regidapelo art. 1.065 e seguintes do CódigoCivil de 1916 e pelo art. 286 a 298 donovo diploma civil.

No caso de nota promissória prosolvendo, ou seja, impropriamente cha-mada de vinculada a um contrato ou sir-va de garantia a uma obrigação, duasconseqüências podem resultar:

1°) na cobrança da nota promissó-ria tem o devedor a faculdade de invo-car as exceções da causa contra o cre-dor, tomando-se como exemplo, na com-pra de um imóvel, a emissão de certonúmero de promissórias vinculadas aonegócio jurídico.

Entre essas exceções na cobrançadas cambiais pelo credor, existe a apos-ta pelo devedor - comprador-emitentedas cambiais: a exceptio non adimpleticontractus, ligada ao descumprimentodas obrigações na construção do prédio.

Essa exceção tem cabimento e podeimpedir a execução dos títulos pelo cons-trutor, ao cobrar os títulos pro solvendoao devedor, caso fique provado que o cons-trutor deixou a obra inacabada. Nessecaso, se o credor-construtor da obra ti-ver endossado a promissória pro solven-do a terceiro, v.g., a um banco, e estepromover a execução do título contra odevedor do título, este não poderá exer-citar a exceção da causa que dispunhacontra o construtor, por serem elas denatureza pessoal, pelo princípio dainoponibilidade das exceções pessoais.

Em duas hipóteses é possível aapresentação dessa exceção que o de-vedor tinha contra a construtora:

1°) quando a promissória pro sol-vendo contenha a cláusula não à ordemdo art. 11, alínea 2ª da Convenção de

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Genebra, aposta pelo emitente da pro-missória, pela qual o título já nasce nãoendossável e a sua transferência tem aeficácia de cessão de crédito;

2°) quando a nota promissória prosolvendo contenha cláusula proibitiva deendosso, aposta no curso da promissória,pelo endossador, proibitiva de endosso,também com efeito de cessão de crédito,cuja conseqüência é o fato de não garan-tir o pagamento às pessoas a quem a pro-missória for posteriormente endossada.

Em outras palavras, ambas asclausulas dão ao endosso a conotação decessão de crédito, regida pelo art. 1.065e seguintes do Código Civil de 1916 earts. 286 a 298 do novo diploma civil.

O resultado final é que, por ser apromissória pro solvendo vinculada aum contrato, no caso, o contrato de cons-trução do prédio de apartamentos, o com-prador-devedor do título pode alegar asexceções da causa contra o banco-endossatário exeqüente do título comefeito de cessão de crédito, por se comu-nicarem a este as exceções que o deve-dor tinha contra o construtor-credor, porforça das cláusulas referidas nos arts.11, al. 2ª e 15, al. 2° da Lei Uniforme,pelas quais se comunicam as exceçõeslevantadas contra o construtor e contrao banco endossatário, em decorrência dacessão de crédito, em que o direito étransmitido a título derivado, e não emcaráter autônomo.

FORMAS DE TÍTULOS TRANSMISSÍVEIS COM EFICÁ-CIA DE CESSÃO DE CRÉDITO

Sobre as formas de títulostransmissíveis com eficácia de cessão decrédito, admitidas por Carvalho de Men-donça (Trat. Dir. Com. v. V. parte II, nº291), podemos arrolar as seguintes:

1°) a dação em pagamento - datioin solutum (art. 997 do Código Civil de1916) em que a transferência importaráem cessão de crédito, devendo ser noti-ficada ao cedido, responsabilizando-seo solvens, pela existência do créditotransmitido ao tempo da cessão (MariaHelena Diniz, Código Civil Anotado, ed.Saraiva, 1998. p. 735).

Dá-se um título em lugar da pres-tação devida, coisa diversa da avençada(Diniz, op, cit. p. 734); no caso a daçãoem pagamento tem fim confirmatório enão novatório.

Não há novação na dação em solutopor não haver substituição de dívida,pois o que se substitui é a prestação("aliud pro alio-nomen iuris pro pecunia").

Casos de datio in solutum:a) nota promissória pro solvendo (im-

propriamente chamada vinculada a con-trato);

b) substituição de duplicata por pro-missória dada em pagamento;

c) reforma e amortização de título.Conseqüências: o transmitente res-

ponde pelo valor do título e pelasolvabilidade do antecessor (ouantecessores) no título, no endosso.

Caso da datio in solutum de nota pro-missória em substituição de duplicata

Em conhecido Acórdão relatado peloMinistro Nelson Hungria no Recurso Ex-traordinário nº 14.065-RJ do STF, julga-do em 09/07/1951, publicado em 13/09/1951, o douto Relator esclareceu que ocaso envolve, segundo Bonelli, dação decambial em substituição de duplicata,com função de pagamento condicionadoque, no entender de Staub, a antiga re-lação jurídica não se extingue e a açãocorrespondente permanece em suspenso,para voltar a ser proponível, se a cambialnão é resgatada, passando a ação a seralternativa da relação causal.

Para Cunha Gonçalves “está hojecabalmente demonstrada a possibilida-de da coexistência de duas causaedebendi, quando o segundo contrato, ouseja, no presente caso de pacto de cam-biando.

Há a entrega da coisa “paraadimplir”.

CESSÃO A TÍTULO ONEROSO

Ainda segundo a posição de Pontesde Miranda (loc. cit), o cedente garante aexistência e a titularidade do crédito nomomento em que efetiva a transferên-

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cia, isto é, o cedente é obrigado a resti-tuir o que recebeu se o crédito não lhepertence quando o cedeu (veritas nominis)(cf. Orlando Gomes, loc. cit).

Essa garantia pode, de comumacordo, ser dispensada. Ainda nessa hi-pótese há de responder, segundo Pon-tes, pelo fato próprio, enquanto nas ces-sões a título gratuito, diz a lei, só é res-ponsável se tiver agido de má-fé (art.1.073, in fine, do Código Civil de 1916).

A segunda garantia é a solvênciado devedor, pois, para assumir essa res-ponsabilidade é necessário que se te-nha obrigado expressamente para ga-rantir a bonitas nominis.

Em princípio, não responde ocedente pela solvência do devedor (art.1.074 do Código Civil de 1916); ocessionário assume esse risco.

Modalidades de cessão de créditoDuas são as modalidades de ces-

são de crédito:A primeira é a cessio pro soluto

em que o cedente garante apenas averitas nominis isto é a existência docrédito sem responder, entretanto, pelasolvência do devedor (bonitas nominis).

Há cessão de direito, aplicando-seo disposto no art. 997 do Código Civil de1916.

Conseqüências:a) o crédito extingue-se imediata-

mente, pois o credor concordou em re-ceber o crédito em lugar do pagamento;

b) o cedente não responde pelasolvabilidade do que lhe transmitiu otítulo (bonitas nominis) , isto é, ocedente responde perante o credorcessionário pela existência do créditoainda que expressamente não o hajadeclarado (art. 1.073, 1ª parte do diplo-ma de 1916), mas não pela insolvênciaou falência do devedor cedido, salvo es-tipulação em contrário;

c) podem ser opostas ao cessionárioas exceções pessoais contra o cedente.

Casos:1) endosso tardio;2) venda de título de crédito;

3) quando em pacto adjeto assimse estipula;

4) quando o endosatário de títuloendossado por endosso-penhor for à fa-lência, o endossador pode pagar o título àmassa, mediante a sua devolução.

Não o fazendo, o síndico o aciona-rá, podendo vender o título em leilão.

Nota: a massa falida não respondepela solvência dos coobrigados no título.Os devedores devem ter ciência davenda(art. 279 do Código Comercial.

5) letra não a ordem (art. 11, al. 2°e proibição de novo endosso (art. 15, al.2° da Lei Uniforme de Genebra.

A segunda é a cessio pro solvendoem que o cedente garante a bonitasnominis, ou seja, obriga-se a pagar, seo debitor cessis for insolvente; tambémé possível uma cessão em que o cedentese responsabilize pelo pagamento, casoo devedor não o efetue.

Segundo essa figura o cedente nãoresponde por mais do que recebeu docessionário, com os juros respectivos.

Deve responder, outrossim, ao re-embolso ao cessionário pelas despesascom a cessão e à cobrança da dívida.

Essa garantia contra o risco de in-solvência do devedor cessa se a realiza-ção do crédito não se der, em conseqü-ência da negligência do devedor em ini-ciar ou prosseguir na execução e a res-ponsabilidade do cedente não pode seragravada ainda que se dê a sua aquies-cência, pois do contrário perderia sen-tido de garantia (cf. Orlando Gomes op.cit ps. 242/243). Na transferência docrédito por força de lei o credor originá-rio não responde pela realidade da dívi-da, nem pela solvência do devedor ( Art.1.076 do diploma civil de 1916).

Diz Pontes que a mesma regra doart. 1.073 aplica-se à dação de chequecom endosso ou pela tradição, se ao por-tador.

Observe-se que, no que concerneao cheque de valor acima de R$ 100,00é vedada a emissão ao portador.

No caso, extingue-se o título se ocredor aceitou recebê-lo em lugar dopagamento, ficando bem claro que a

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dação de cheque tem o caráter de daçãoem soluto e não cessão em soluto, emuito menos a cessio solvendi causa.

Esta ocorre no caso de cláusulaexpressa de assunção de dívida solvendicausa.

Se houve cessão, o devedor cedenteé responsável ao credor pela existênciado crédito ao tempo da cessão, ainda quenão haja responsabilidade por isso (art.1.073, 1ª parte), porém não pela solvên-cia do devedor cedido, salvo estipulaçãoem contrário (1.074).

Quando o cheque é dado com firmaalheia, é caso de dação em soluto.

Cessio solvendi causaÉ a transferência do título de co-

brança (para cobrar); quando alguémcede o crédito ao credor para que cobree fique, a título de pagamento, com oque foi cobrado. (Trat. Dir. Cambiário,IV, 1955, p. 205)

A extinção da dívida só se dá quan-do se recebe a quantia e na medida emque foi recebido, assumido pelo credor odever de diligência no cobrar. A entregade cambial pelo devedor é assunção dedívida (art. 299 do novo Código Civil), emlugar do pagamento e não da dação empagamento, salvo cláusula expressa.

É uma forma de cessão de direitoscom a peculiaridade de a dívida somen-te se extinguir quando se recebe o seuvalor na medida em que for recebido.

Cede-se o crédito para que seja co-brado e fique a título de pagamento como que for cobrado. Conseqüências: a) hámandato ínsito na transferência do tí-tulo; b) ocorre quando a cessão envolvepagamento de parte do título.

Art. 920O endosso posterior ao vencimento

produz os mesmos efeitos do anterior.Para o Decreto nº 2.044, art. 8° pa-

rágrafo 2°, o endosso posterior ao venci-mento tem os mesmos efeitos da cessãode crédito, redação idêntica à da Lei Uni-forme de Genebra, na primeira parte.

Nos termos do disposto no mesmo art.20 da Lei Uniforme de Genebra, o endos-

so posterior ao protesto por falta de paga-mento, ou tirado após o prazo para seefetuar o protesto, produz os mesmos efei-tos da cessão de crédito.

LETRA REFORMADA OU AMORTIZADA

Letra reformada é aquela quesubstitui outra de igual montante ou devalor inferior, com idênticas assinatu-ras, sem que tenha sido pagamento to-tal do numerário.

Tudo se passa como se efetivamen-te o devedor pagasse a primeira letra,obrigando-se em seguida ao pagamentode prestação cambiária idêntica. Não hánovação.

São os seguintes os casos de letrareformada:

a) reconstituição de título perdidoou destruído;

b) para diferir pagamento da obri-gação constante da letra renovada coma letra nova amortizou-se a antiga.

c) A relação subjacente é a mes-ma, a qual não se extinguiu.

d) Se ainda circula a letra antiga,quando renovada, se o portador da letraantiga perdeu o direito de regresso queesta lhe conferia, não pode invocar asubsistência da obrigação cambiária daletra nova, se estranho à operação dareforma. Há continuação da dívidaantiga.(Pontes de Miranda, op. cit. ed.Bookselleer, ed. 2000, p.157).

TÍTULOS DE FAVOR

As letras de câmbio têm como cau-sa econômica o crédito, logo, a causa serásempre o crédito aberto ou concedido.

Para Carvalho de Mendonça, as le-tras de favor não têm classificação jurí-dica, pois o favor consiste no negóciocambial. Na verdade, o favor consiste nainexistência da causa debendi.

Ora, todos os títulos de crédito de-vem ter causa, com a diferença de que,nos títulos abstratos, a causa não é le-vada em consideração, ao passo que nostítulos causais elas podem e devem serconsideradas.

Os títulos de favor, muitas vezes,envolvem casos de fraude, quando um

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52 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

comerciante, interessado em conseguircrédito, pede que outro lhe dê uma ga-rantia, ao emitir nota promissória ouavalizando títulos de crédito. No direitofalimentar, o abuso de responsabilidadede mero favor constitui crime falimentar(art. 186, IV do Decreto Lei nº 7.661/45);a nosso ver, o delito pode ocorrer na emis-são de um título fraudulento, tanto nocaso do saque de duplicata fria, quantona emissão reiterada desses títulos.

TÍTULO NOMINATIVO

Art.921O título nominativo é o emitido em

nome de determinada pessoa e, que, apar disso, a transferência se opera pormeio do registro no livro próprio da en-tidade emissora e só se completa apósesse registro.

A circulação do título nominativonão se faz pelo endosso como nos títulosà ordem, nem pela tradição, nos títulosao portador.

Segundo a mais moderna doutrina,consideram-se nominativos os títulosescriturais, cuja transferência verifica-semediante registro na entidade emissora.

No que concerne às açõesnominativas, elas são valores mobiliári-os, segundo dispõe o art. 2° da Lei 6.385de 1976, e a sua transferência ocorreno registro do livro de ações nominativasda sociedade anônima.

As ações escriturais criadas peloart. 34 da Lei nº 6.404/76, também con-sideradas valores mobiliários, despidasde certificado (cártula), têm a sua pro-priedade comprovada através do lança-mento efetuado pela instituição deposi-tária em seus livros, a débito da contade ações do alienante e a crédito da con-ta de ações do adquirente, à vista daordem escrita do alienante, ou de auto-rização ou de ordem judicial, em docu-mento hábil que ficará em poder da ins-tituição ou pela exibição do extrato deconta do depósito das ações escriturais(parágrafo 2° do mesmo artigo).

Os títulos nominativos são verda-deiros títulos de crédito, em virtude daorientação imprimida por Vivante (Riv.

di Diritto Commerciale, v. XI, 1913, p.437) e aceita com argumentos definiti-vos por Tulio Ascarelli.

Art. 922O art.922, exige que, no registro

do emitente do título nominativo, sejaeste assinado pelo proprietário e peloadquirente do título.

Art. 923O dispositivo introduziu o título no-

minativo endossável, inovação contida noelenco dos títulos de crédito, com altera-ção da sistemática reinante na legisla-ção sobre esses títulos, designadamentena Lei Uniforme de Genebra.

Restringiu o artigo à hipótese deendosso em preto, no qual figura o nomedo endossatário.

Parágrafo PrimeiroNos termos do capitulado no art. 13

da Lei Uniforme de Genebra, no título àordem, a validade do endosso em bran-co exige apenas a assinatura doendossador, ao passo que no endosso empreto é necessária a menção do nomedo endossatário.

No título nominativo, o endosso sóproduz eficácia perante o emitente depoisde feita a averbação no registro próprio.

Admite, ainda, o § 1° do art. 923, apossibilidade de o emitente exigir doendossatário a comprovação da autenti-cidade da assinatura do endossante.

Parágrafo SegundoO § 2° do mesmo artigo impõe uma

série de exigências que dificultam sobre-modo a circulação do título, em que oendossatário, para lograr a averbação noregistro do emitente deve obter: a) a provada autenticidade das assinaturas de to-dos os endossantes; b) que o endossatárioesteja legitimado por uma série regular eininterrupta de endossos.

Parágrafo TerceiroO § 3° do mesmo artigo permite ao

adquirente do título cujo original conte-nha o nome do primitivo proprietário, o

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 53

direito de obter novo título em seu nome,com a exigência de que conste novo re-gistro do emitente nome do primitivo pro-prietário.

O problema ligado aos títulosnominativos endossáveis apresenta si-milaridade com as ações nominativasendossáveis, cuja história, segundo omagistério do Professor ModestoCarvalhosa, nos Comentários à Lei dasSociedades Anônimas, ed. 1997, Sarai-va, p. 168, adveio em nossa legislaçãodo Decreto nº 434 de 1891.

O Decreto Lei nº 2.627 de 1940aboliu esse tipo de ações, porque, se-gundo Trajano Miranda Valverde “elasnunca tiveram aceitação entre nós” (So-ciedade por Ações, v.1, p.173)

A Lei nº 6.404 de 1976 manteve asações endossáveis, depois abolidas pelaLei nº 8.021 de 1990, a qual alterou oart. 20 da primeira.

Por esta Lei a titularidade dasações endossáveis exigia: a) o endosso ea posse da ação; b) a averbação do nomedo acionista no Livro de Registro deAções Endossáveis e no próprio título.

Daí ter Carvalhosa, na p. 169 assi-nalado que a simples posse da ação en-dossada não bastava para legitimá-la emnome do endossatário, pela necessida-de atribuir legitimidade ao titular docertificado, a fim de exercer os respec-tivos direitos perante a sociedade, ouseja: "esta só reconhece como titular dosdireitos legais e estatutários do sócioaquele cujo nome estivesse inscrito nolivro próprio”.

Ocorre, dessa forma, uma inversãode ordem: não era somente a posse dotítulo mediante endosso regular que con-feria legitimação ao possuidor.

A legitimidade dependia também dainscrição nos livros da sociedade, so-mente daí decorrendo a qualidade doacionista.

A inscrição vale como declaraçãoconstitutiva dos direitos de sócio. O en-dosso somente produzia efeito entre aspartes (alienante e adquirente) e não,perante a companhia.

Os direitos reais ou quaisquer ou-

tros ônus que gravassem as ações, de-veriam ser averbados, não só nos livrospróprios da companhia, mas também noscertificados (art. 39 e 40).

Daí se conclui, pela lição do ilus-tre comercialista que a introdução dasações endossáveis não encontrou res-sonância nos meios jurídicos, em facedo entrave causado pela exigência doregistro no livro próprio.

O mesmo entrave aconteceu na leiitaliana, cujo art. 2.023 do Código Civilexigiu para a transferência da ação, nãosó o endosso, como o citado registro. Talfaculdade, aduz Carvalhosa, “no entan-to, não logra tornar a ação nominativaum título à ordem: continua sendonominativo, porque a eficácia da cessãoperante a companhia e terceiros não sóse produz com a tradição do título en-dossado, mas com o registro no livro pró-prio ”(Brunetti, ci. v. 2, p. 137 eMessineo, I Titolo di Credito, cit. nº 395)(p. 170 da obra de Carvalhosa).

Com os títulos nominativosendossáveis previstos no novo Código Ci-vil, mutatis mutandis passa-se o mes-mo, ou seja, em virtude das dificulda-des criadas com a sua circulação, difí-cil será a aceitação deles nos meiosempresariais.

Finalmente, consoante lição contidana obra Novo Código Civil Comentado,coordenação de Ricardo Fiúza, ed. Sarai-va, 2002, p. 815, a emissão e a negociaçãodos títulos nominativos estarão restritasaos empresários e às sociedades empre-sariais no regime do novo Código Civil.

No que se refere ao § 3º deste arti-go, não vê o Dr. Antonio Mercado Juniormotivo para a emissão de novo título emnome do adquirente, pois o título origi-nal terá sempre o nome do proprietário(Of. Cit. p.132).

Art. 924Os títulos nominativos e endossáveis

não são aceitos na legislação sobre títu-los de crédito em geral e, muito menos asua transformação em títulos à ordem eao portador, com as características pre-vistas no novo diploma legal.

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54 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

Art. 925De uma leitura do dispositivo po-

der-se-ia chegar à conclusão de que oendosso dos títulos nominativosendossáveis não tornaria o endossador(em preto) solidariamente responsávelpela dívida constante do título, por forçade sua desoneração, consoante sedepreende da leitura do art. 925.

O problema envolve o fato de se sa-ber se o endosso em tais títulos vinculaou não o endossante, ao contrário do queconsta da regra contida no art.15, alí-nea primeira da Convenção de Genebra.

Art. 926Este dispositivo está de acordo com

os artigos 921 e 922, pela exigência deregistro da transferência do títulonominativo no registro próprio, comoacontece com as ações nominativas, emque a validade e eficácia da transferên-cia de uma ação depende do registro nolivro de ações nominativas (art. 31 daLei nº 6.404/76).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O capítulo referente aos títulos decrédito no texto do novo Código Civil con-tém várias imperfeições, já analisadaspelos Drs. Professores Rubens Requião eFábio Konder Comparato, infelizmentenão acolhidas pela Comissão do Congres-so Nacional que examinou a matéria.

Em nosso entender, achamos me-lhor que o Congresso Nacional aguardas-

se, pelo menos, um ano para melhor ree-xaminar a redação do novo diploma civil,a fim de suprir as notórias deficiênciasnele encontradas, designadamente naparte referente ao Direito Comercial.

De qualquer forma, cumpre-nos fi-xar algumas regras na interpretação dotexto em exame:

1o) No conflito entre uma normacontida em lei extravagante e o novo Có-digo Civil, nos termos do disposto no art.903 deste deve prevalecer a primeira;

2o) Continuam em vigor os disposi-tivos referentes aos títulos de crédito,tratados neste capítulo. Assim, a LeiUniforme de Genebra, a Lei Cambiáriade 1908, a legislação sobre títuloscambiariformes, sobre as cédulas de cré-dito, de conhecimento de depósito ewarrant, sobre letra de câmbio imobili-ária e cédula de crédito imobiliário e,em resumo, toda a legislação referenteaos títulos de crédito.

3o) Nos casos de conflito de leis notempo e no espaço, tendo em vista o fatode a nova legislação não dispor de Lei deIntrodução, teremos de enfrentar sériosproblemas em Direito Comercial; contu-do, no que concerne aos títulos de crédi-to, cabe aplicar-se a Lei Uniforme deGenebra, referente ao Direito Internaci-onal Privado, nas Convenções sobre Le-tra de Câmbio e Nota Promissória e so-bre os cheques, convenção, a nosso ver,não foi revogada, por força do disposto no

art. 63 da Lei nº 7.357 de 1985..

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 55

Regime Jurídico Atual - A lei bá-sica que regula as sociedades por quo-tas de responsabilidade limitada é o De-creto nº 3.708, de 1919, que, com ape-nas 18 artigos, não lhe dá uma estru-tura própria e completa. Trata-se de tiposocietário misto -- sociedade de pessoasou de capital, conforme o perfil que, emcada caso, lhe der o respectivo contratosocial - regulado por normas do CódigoComercial de 1850 quanto à sua consti-tuição (arts. 300 a 302), algumas nor-mas do próprio Decreto nº 3.708 e a pre-visão, em seu dispositivo final (art. 18),de que para os casos omissos no contra-to social, utilizar-se-á, no que for apli-cável, a lei das sociedades por ações.

O propósito do Projeto do novo CódigoCivil foi o de dar uma estrutura própria àslimitadas, como tem na legislação de ou-tros países. É o que declara a Exposição deMotivos (de 1975) do Prof. Miguel Reale(Supervisor da Comissão Revisor eElaboradora do Código Civil): "25.(d) - Minu-cioso tratamento dispensado à sociedade limi-tada, destinada a desempenhar função cadavez mais relevante no setor empresarial, sobre-tudo em virtude de transformações por que vêmpassando as sociedades anônimas, a ponto derequererem estas a edição de lei especial, porsua direta vinculação com a política financeirado País. Nessa linha de idéia, foi revista a ma-téria, prevendo-se a constituição de entidadesde maior porte do que as atualmente existen-tes, facultando-se-lhes a constituição de órgãoscomplementares de administração, como o Con-selho Fiscal, com responsabilidades expres-sas, sendo fixados com mais amplitude os po-deres da assembléia de sócios."

Nota Característica das Limitadas -Já há dezenas de anos que as socieda-des comerciais têm adotado a forma de

companhias ou de limitadas. Esta pre-ferência deve-se, primordialmente, à li-mitação da responsabilidade dos sóciosquanto às dívidas da sociedade. Nas so-ciedades limitadas a regra (art. 1.052) éa de que "a responsabilidade de cadasócio é restrita ao valor de suas quotas,mas todos respondem solidariamentepela integralização do capital social" --ou seja, nas relações internas da socie-dade o sócio responde apenas pelo valordas quotas do capital social que subs-crever; mas, nas suas relações exter-nas, enquanto o capital social não esti-ver totalmente integralizado, todos ossócios respondem solidariamente, peran-te terceiros, pelo valor que faltar paraessa integralização.

Em termos da responsabilidade dossócios, pode-se fazer uma comparaçãoentre as limitadas e outros tipossocietários, começando pelas sociedadesanônimas, nas quais o acionista tambémtem uma limitação de responsabilidade,mas nelas o acionista é responsável ex-clusivamente pela obrigação deintegralizar as ações que subscrever --não respondendo pela eventualinadimplência dos outros acionistas. Nassociedades em comandita por ações, osacionistas que forem diretores respon-dem subsidiária, mas ilimitada e soli-dariamente, pelas obrigações da socie-dade (art. 1.091).

A diferença específica das limita-das para os demais tipos de sociedadesregulados no Código Civil é que neleshá pelo menos um sócio que respondesolidariamente -- e em alguns casos ili-mitadamente -- pelas dívidas sociais.Assim, nas sociedades em nome coleti-vo, todos os sócios respondem solidáriae ilimitadamente pelas dívidas sociais(art. 1.039). Nas em comandita simples,

A Sociedade Limit ada no Código Civil(Uma Visão Panorâmica)

LUIZ ALBERTO COLONNA ROSMAN

Professor de Direito Societário da Escola de Direito da FGV. Advogado.

Palestra proferida no Seminário realizado em 12/7/2002.

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os sócios comanditados também respon-dem solidária e ilimitadamente pelasobrigações sociais, e os comanditáriosobrigam-se apenas pelo valor de suasquotas (art. 1.045). Nas sociedades sim-ples, introduzidas no nosso sistema ju-rídico pelo novo Código Civil, a respon-sabilidade dos sócios é subsidiária (art.1.024) e na proporção de que participemdas perdas, salvo cláusula de responsa-bilidade solidária (art. 1.023). Abro aquium parênteses para ressaltar que a par-ticipação nos lucros e perdas não é pro-porcional necessariamente à participa-ção no capital social, porque o contratosocial pode prever o rateio dos lucros edas perdas, entre os sócios,desproporcionalmente à participação decada um no capital social. Um ponto in-teressante, e que às vezes passa des-percebido, é que essa é a regra geral deresponsabilidade do sócio na sociedadesimples (que já constava do atual Códi-go relativamente às sociedades civis),mas a lei admite que o contrato socialestabeleça que os sócios não respondampelas dívidas sociais (art. 997, VIII); masé preciso cláusula expressa neste sen-tido: se o contrato for omisso, aplica-seo princípio geral de que os sócios res-pondem subsidiariamente pelas dívidas,caso o patrimônio da sociedade não sejasuficiente para solvê-las.

Normas Supletivas - O artigo 1.053dispõe que a sociedade limitada rege-se, nas omissões do Capítulo do CódigoCivil em que está regulada, pelas nor-mas da sociedade simples, admitindo,no seu parágrafo único, que "o contratosocial poderá prever a regência supleti-va da sociedade limitada pelas normasda sociedade anônima". Esse parágrafoúnico não constava do projeto original,tendo sido introduzido por emenda, noCongresso. Na forma desse artigo cabe-rá ao contrato social definir qual o regi-me legal supletivo que será aplicado acada sociedade limitada em particular:se o contrato nada dispuser a respeito,aplicam-se subsidiariamente as regrasdas sociedades simples; para que a re-gência supletiva se dê pelas regras da

lei das sociedades anônimas, é precisodispositivo expresso no contrato social.

Há um Projeto de Lei de Emendaao Código Civil que propõe modificar aredação deste artigo prevendo que, nasomissões do Capítulo que trata das soci-edades limitadas, serão aplicadas suple-tivamente apenas as normas das socie-dades anônimas -- e não mais as dassociedades simples. A justificativa daemenda é a seguinte: "Art. 1.053: A pro-posta pretende corrigir aparente contradiçãono art. 1053 que previa, simultaneamente, aregência supletiva das sociedades limitadaspelas normas das sociedades simples e dassociedades anônimas. É bem mais adequa-do que as omissões no regramento das limi-tadas sejam supridas pela lei das socieda-des anônimas do que pelas regras da socie-dade simples, não só pela maior afinidadeentre limitadas e anônimas, como pelo fatode ser esta a tradição do direito brasileiro".

Constituição - A sociedade se cons-titui mediante contrato escrito, instru-mento particular ou público, que, alémdas cláusulas estipuladas pelas partes,deve conter obrigatoriamente as seguin-tes determinações (art. 1.054 c/c 997):I - nome, nacionalidade, estado civil, pro-fissão e residência dos sócios, se pesso-as naturais, e a firma ou denominaçãosocial, nacionalidade e sede dos sócios,se jurídicas; II - firma ou denominaçãosocial, objeto, sede e prazo da socieda-de; III - capital social, expresso em mo-eda corrente, podendo compreenderqualquer espécie de bens, suscetíveis deavaliação pecuniária (nas limitadas nãoé admitida a contribuição para o capitalsocial em serviços, como o é nas socie-dades simples -- art. 997, V); IV - a quo-ta -- ou número de quotas de igual valor-- de cada sócio no capital social e modode realizá-la; V - as pessoas naturaisincumbidas da administração da socie-dade, seus poderes e atribuições; VI - aparticipação de cada sócio nos lucros enas perdas, valendo lembrar que, assimcomo já admitia o Código Comercial (art.330), o contrato social pode estabelecerregra de distribuição de lucros (e parti-cipação nas perdas) desproporcional ao

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percentual de cada sócio no capital so-cial -- vedada apenas a estipulaçãocontratual que exclua qualquer sócio departicipar dos lucros e das perdas (art.1.008).

É importante salientar que a pala-vra "limitada" não deve ser omitida aofinal da denominação social da socieda-de limitada, sob pena de daí resultar "aresponsabilidade solidária e ilimitada dosadministradores que assim utilizarem afirma ou a denominação da sociedade"(art. 1.158, § 3º).

Um outro dispositivo relevante é oparágrafo único do artigo 997, que dis-põe o seguinte: "É ineficaz em relação aterceiros qualquer pacto separado, con-trário ao disposto no instrumento do con-trato". Chamo a atenção para isso por-que na prática comercial de constitui-ção de sociedades limitadas mais sofis-ticadas é comum, muitas vezes, faze-rem-se acordos de quotistas -- por si-metria ao que ocorre nas sociedadesanônimas (em que há acordos de acio-nistas, que lá têm um tratamento espe-cífico, no artigo 118, e seus parágrafos,da Lei nº 6.404/76). Há discussão nadoutrina sobre se é válido ou não o acor-do de quotistas -- sendo em maior nú-mero as opiniões no sentido de sua vali-dade. O que é importante, e gostaria defrisar aqui, é que qualquer que seja oconteúdo das cláusulas desse acordo dequotistas, para que se pretenda que elastenham validade perante terceiros, parase ter segurança quanto à exeqüibilidadede suas disposições relativamente a ter-ceiros, é essencial que tais disposiçõessejam, tanto quanto possível, inseridasno próprio contrato social.

Capital Social e Quotas - A lei bra-sileira não estabelece valor mínimo oumáximo para o capital social ou para ovalor da quota, nem um número máxi-mo de sócios admitidos em função do tiposocietário escolhido, como ocorre na le-gislação de alguns países. Considero boaessa política porque não vejo muito sen-tido em se querer orientar a constitui-ção de sociedades para um tipo ou outroconforme o seu tamanho (por exemplo,

sociedades anônimas para as grandesempresas e sociedades limitadas ou sim-ples para as organizações menores).Para atingir esse objetivo é comum selimitar o valor máximo do capital socialde limitadas ou o valor mínimo exigidopara a constituição de uma companhia;ou ainda, como na França, que há umtempo atrás somente admitia o máximode cinqüenta sócios nas limitadas. NaArgentina também é assim. Todos essesmecanismos são utilizados para induzira escolha de um ou outro tipo societáriopara organizar a associação entre pes-soas. No Brasil, diferentemente, o le-gislador sempre preferiu não limitar ar-bitrariamente as opções de tipossocietários para a organização de asso-ciações, como expressamente declara-do na Exposição de Motivos com que oprojeto de Lei das S.A. foi encaminhadoao Congresso Nacional: "O Projeto nãoexige capital mínimo na constituição dacompanhia porque não pretende reser-var o modelo para as grandes empresas.Entende que, embora muitas das peque-nas companhias existentes no País pu-dessem ser organizadas como socieda-des por quotas, de responsabilidade li-mitada, não há interesse em limitararbitrariamente a utilização da forma decompanhia, que oferece maior proteçãoao crédito devido à publicidade dos atossocietários e das demonstrações finan-ceiras."

Formação do Capital Social - O ca-pital social pode ser formado em dinhei-ro ou em bens, de qualquer natureza,desde que passíveis de avaliação em di-nheiro -- vedada a contribuição que con-sista em prestação de serviços.

Diferentemente da sociedade anô-nima -- que exige, no artigo 8º da Lei nº6.404/76, a avaliação dos bens conferi-dos na formação do capital social, porperitos nomeados pela assembléia geral,os quais, informando os critérios aplica-dos na avaliação, devem confirmar queo valor do bem, com o qual o acionistapretende integralizar as ações subscri-tas, vale ao menos o montante atribuí-do pelo acionista -- no caso das limita-

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58 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

das não há exigência legal de avaliaçãodos bens por terceiros, mas a lei deter-mina a responsabilidade solidária de to-dos os sócios, pelo prazo de cinco anos,pela "exata estimação dos bens conferi-dos" (art. 1.055 e §§ 1º e 2º). Essa regraestá em linha com a de responsabilida-de solidária dos sócios pelaintegralização do capital social, na me-dida em que se o capital fosseintegralizado com bens por valor acimado econômico, o capital não estaria defato totalmente integralizado, pelo me-nos na parcela equivalente ao valor dasobreavaliação dos bens conferidos. Oart. 1.005, na mesma linha das regrasconstantes da Lei das S.A. (art. 10), es-tabelece a responsabilidade do subscritorpelos bens conferidos nos seguintes ter-mos: (a) na contribuição em bens paraformação do capital social, a responsa-bilidade do subscritor é igual à do ven-dedor (respondendo pela evicção); (b)quando a entrada consistir em crédito,o subscritor responderá pela solvênciado devedor;

Divisão do Capital em Quotas - Ocaput do artigo 1.055 diz que "o capitaldivide-se em quotas iguais ou desiguais,cabendo uma ou diversas a cada sócio".Essa nova redação tem um interessehistórico, porque põe fim a uma diver-gência que havia entre a letra do De-creto 3.708 e o que era adotado na prá-tica comercial. O Decreto-lei 3.708 di-zia que "para todos os efeitos são havidascomo quotas distintas a quota primitivade um sócio e as que posteriormenteadquirir". Isso dava a idéia de que naconstituição da sociedade cada sócio ti-nha apenas uma quota, que podia serde valor diferente da de outro sócio. Porexemplo, um sócio tinha uma quota cor-respondente a 30% do capital, outro ti-nha uma quota correspondente a 25%,outro X% até formar os 100%. A práticaque se adotou, por simetria com o quefunciona nas sociedades anônimas, foia de dividir o capital social em quotasde valores iguais, tendo cada sócio umnúmero de quotas correspondente ao seupercentual de participação no capital. A

redação do novo Código Civil resolve esse"problema legislativo", porque essa exi-gência de quota única não era aplicadana prática, e as Juntas Comerciais sem-pre registraram os contratos sociais como capital social dividido em quotas deigual valor nominal.

Quotas Preferenciais e Quotassem Valor Nominal - Um tema interes-sante, em que o Código Civil se omitiu,é sobre a possibilidade de a sociedadelimitada ter seu capital social represen-tado por quotas ordinárias e quotas pre-ferenciais, com ou sem direito de voto,e, ainda, não terem as quotas (ordinári-as ou preferenciais) valor nominal. Souda opinião de que, embora não previstono Código, nada há que impeça o con-trato social de estipular que o capitalserá dividido em quotas de duas espéci-es, inclusive porque sendo a Lei das So-ciedades Anônimas aplicável supletiva-mente às limitadas (sempre que o res-pectivo contrato social assim o estabe-lecer), pode-se entender que o sistemaque rege as limitadas admite, indireta-mente e como regulado na Lei nº 6.404/76, as quotas preferenciais - com ou semvoto -- e as quotas sem valor nominal.Nada obstante o Decreto nº 3.708 tam-bém ser omisso a esse respeito, há di-versas sociedades cujos contratos soci-ais dispõem sobre a divisão do capital so-cial em quotas ordinárias e preferenci-ais, sem direito de voto, atribuindo-se àsquotas preferenciais prioridade ou van-tagem na distribuição dos lucros ou noreembolso de capital, em caso de disso-lução da sociedade. Considero as quotaspreferenciais sem voto um instrumentomuito útil na composição de diferentesinteresses que podem existir na organi-zação de uma sociedade, ainda mais ago-ra que o novo Código Civil (como vamosver mais à frente) estabelece, para umasérie de deliberações, um quorum de vo-tação muito apertado. Em muitas jointventures que se organizem sob a forma deuma sociedade por quotas, a única solu-ção possível para contemplar e atendertodos os interesses será, muitas vezes, acriação de quotas preferenciais que se

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atribuirão a algum sócio, ou a pelo me-nos parte do seu investimento, com di-reito a uma vantagem patrimonial emcontrapartida da retirada do direito devoto.

Vale salientar que na Lei das S.A.o voto não é um direito essencial do aci-onista/sócio: o artigo 109 lista os direi-tos essenciais -- que são, basicamente,os direitos de participar dos lucros; doacervo social, em caso de liquidação; seretirar da companhia nos casos previs-tos em lei; fiscalizar a gestão dos negó-cios; preferência na subscrição de ações-- entre os quais não se inclui o de voto,admitindo expressamente o artigo 110que as ações preferenciais sejam cria-das sem o direito de voto.

As quotas sem valor nominal sãomenos usuais na prática porque, atéonde estou informado, não são aceitaspor Juntas Comerciais de alguns Esta-dos. Trata-se, todavia -- tal qual as açõessem valor nominal -- de um instrumen-to extremamente útil, cuja necessidadenem sempre é compreendida. Imagine-se a seguinte situação: uma sociedadecriada há vários anos que tem uma ati-vidade lucrativa e madura sendo por eladesenvolvida, e cujo valor patrimonial,constante do balanço, não reflete o va-lor de mercado de seus ativos e o poten-cial de rentabilidade que o negócio dasociedade tem. Vamos supor que (a) asociedade tenha um capital social de R$100.000,00, dividido em 100.000 quotasde R$ 1,00 cada uma, (b) um patrimôniolíquido (capital social mais reservas) deR$ 200.000,00 e (c) um valor econômico,com base na perspectiva de rentabilida-de futura, de R$ 500.000,00. Caso a so-ciedade esteja precisando de dinheiro eos antigos sócios se disponham a admi-tir um novo sócio que subscreva um au-mento de capital que lhe assegure 20%da sociedade, seria necessária a cria-ção de novas 25.000 quotas que deveri-am ser subscritas por R$ 100.000,00, istoé 20% do valor econômico (R$500.000,00) da sociedade. Se se tratas-se de uma sociedade anônima, comações sem valor nominal, a solução ju-

rídica seria muito simples: bastaria fi-xar o preço de emissão das 25.000 açõesem R$ 100.000,00 inteiramente desti-nados ao capital social. No caso, pelo fatodas ações terem valor nominal de R$1,00, o preço de emissão (também de R$100.000,00) seria assim dividido: umaparte (R$ 25.000,00), correspondente aovalor nominal das novas ações emitidas,seria destinada ao capital social, e a di-ferença (R$ 75.000,00), isto é, o ágio,contabilizada como reserva de capital.Isso está regulado na Lei das S.A. combastante detalhe, tanto no caso de açõescom valor nominal, como no caso deações sem valor nominal.

Não há qualquer razão substancialque impeça que se adote a mesma solu-ção para as sociedades limitadas. En-tretanto, se prevalecer o entendimento,equivocado em minha opinião, de que nãose admitem quotas sem valor nominal,a situação descrita no exemplo dado so-mente poderia ser resolvida segundo assoluções antes mencionadas, ou seja,com a criação de novas quotas cujo pre-ço de subscrição seria destinado, parte-- correspondente ao valor nominal dasquotas -- para capital social e a diferen-ça, correspondente ao ágio, registradacomo reserva de capital. A primeira so-lução -- de todo valor contribuído pelosubscritor destinar-se ao capital social-- somente é viável se admitidas as quo-tas sem valor nominal. O problema quesurge, na prática -- e que virtualmenteinviabiliza a adoção da primeira solução-- é de natureza fiscal, uma vez que aadministração do imposto de renda,numa interpretação literal e equivoca-da do artigo 38 do Decreto-Lei nº 1.598/77 (que adaptou a legislação do impostode renda à nova Lei das S.A., de 1976),entende que a norma só se aplica às so-ciedades anônimas ou companhias, nãose estendendo às pessoas jurídicas or-ganizadas sob outros tipos societários.Diz o referido art. 38, e seu inciso I, que"não serão computadas na determina-ção do lucro real as importâncias, cre-ditadas a reservas de capital, que o con-tribuinte com a forma de companhia

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60 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

receber dos subscritores de valores mobi-liários de sua emissão a título de ..... ágiona emissão de ações por preço superiorao valor nominal, ou a parte do preço deemissão de ações sem valor nominal des-tinada à formação de reservas de capi-tal". Dando interpretação literal a estedispositivo, os fiscais do imposto de rendapassaram a cobrar imposto das socieda-des limitadas que tivessem seu capitalsocial aumentado com ágio -- o que aca-bou por inviabilizar a adoção desta solu-ção simples em face dos riscos fiscais.

Cessão de Quotas - No Decreto nº3.708 não há qualquer dispositivo sobrea matéria, sendo todavia comum a esti-pulação de cláusulas nos contratos so-ciais subordinando a cessão de quota aterceiros à aprovação da maioria dos só-cios -- com o que se veda o ingresso deestranhos na sociedade que possam cri-ar qualquer embaraço no funcionamen-to das atividades sociais -- ou, ainda,estabelecendo o direito de preferênciados demais quotistas no caso de qual-quer um deles desejar ceder suas quo-tas a terceiros. O princípio geral é o deque as restrições à transferência de quo-tas a terceiros são legítimas desde quenão impliquem na sua incessibilidade.

No Código Comercial, havia a regrado art. 334 dispondo que "a nenhum só-cio é lícito ceder a um terceiro que nãoseja sócio, a parte que tiver na socieda-de, nem fazer-se substituir no exercíciodas funções que nela exercer sem ex-presso consentimento de todos os outrossócios; pena de nulidade do contrato ...".No novo Código Civil, o direito de prefe-rência continua a requerer, para suainstituição, cláusula específica no con-trato social; entretanto, a cessão de quo-tas a não-sócios requer -- a menos quehaja dispositivo expresso em sentido con-trário no contrato social -- que não hajaoposição de sócios que representem maisde 25% do capital -- não sendo maisexigida concordância de "todos os outrossócios", como previsto no Código Comer-cial. Esta regra consta do artigo 1.057:"Na omissão do contrato, o sócio podeceder sua quota, total ou parcialmente,

a quem seja sócio, independentementede audiência dos outros, ou a estranho,se não houver oposição de titulares demais de um quarto do capital social."

A cessão de quotas somente temefeitos perante a sociedade e terceiros-- inclusive para liberar o cedente daobrigação solidária de integralizar even-tual parcela faltante do capital social --a partir da averbação do respectivo ins-trumento, subscrito pelos sóciosanuentes (art. 1.057, parágrafo único).Vale ainda ressaltar que, conformeestatui o art. 1.003, parágrafo único, ocedente responde solidariamente com ocessionário, perante a sociedade e ter-ceiros, pelo prazo de dois anos depois deaverbada a modificação do contrato, pe-las obrigações que tinha como sócio.

Penhora de Quotas - Não há nocapítulo que regula as sociedades li-mitadas qualquer dispositivo específi-co sobre a matéria, de sorte que conti-nuará válida a jurisprudência dos Tri-bunais Superiores, na linha dosacórdãos relatados pelo Ministro Sálviode Figueiredo, que tem predominado -- pelo menos até onde tenho acompa-nhado a matéria -- depois de grandesdiscussões e calorosos debates. Hojeem dia o entendimento predominanteé o que admite a penhora das quotas,com respeito às limitações à transfe-rência de quotas estabelecidas no con-trato social. Se o contrato social nãoadmitir a livre transferência de quo-tas, um terceiro não poderá se tornarsócio (ou melhor dizendo, adquirir a po-sição de sócio, ou estado de sócio, comorefere a melhor doutrina) em razão daaquisição de quotas penhoradas, masnada impede a aquisição dos direitospatrimoniais (não os políticos, como ode votar) inerentes às quotas, seja ode participar nos lucros, quando distri-buídos, ou do acervo social que lhe com-pete em caso de dissolução da socieda-de. Vários julgados admitem que oadquirente de quota penhorada possarequerer a dissolução parcial da socie-dade como meio de receber a parcelaque lhe cabe do patrimônio líquido.

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Embora, como já referido, não hajaqualquer dispositivo sobre este tema noCapítulo relativo às limitadas, há o arti-go 1.026, cuja norma, mesmo situando-se no Capítulo das sociedades simples,seria aplicável às sociedades por quotas(mesmo na hipótese de vir a ser aprova-da a emenda que estabeleça a regulaçãosupletiva das sociedades limitadas ape-nas pela lei das sociedades anônimas).Esse artigo 1.026 estabelece o seguin-te: "O credor particular de sócio pode,na insuficiência de outros bens do de-vedor" (essa é uma limitação legal paraaplicação da norma) "fazer recair a exe-cução sobre o que a este couber nos lu-cros da sociedade, ou na parte que lhetocar em liquidação". E o seu parágrafoúnico dispõe que: "Se a sociedade nãoestiver dissolvida, pode o credor reque-rer a liquidação da quota do devedor,cujo valor, apurado na forma do art.1.031, será depositado em dinheiro, nojuízo da execução, até noventa dias apósaquela liquidação". Esse dispositivo vemao encontro do entendimento adotadopela jurisprudência mais recente doSuperior Tribunal de Justiça, como an-tes referido, no sentido de que a pe-nhora de quotas é admissível e se ma-terializa através da garantia ao credordo direito à participação nos lucros dis-tribuídos e o de requerer o pagamentode sua parte no acervo líquido, resolven-do-se a sociedade em relação a ele.

Administração da Limitada - A so-ciedade limitada é administrada por umaou mais pessoas, designadas no contra-to social ou em ato separado. Se a de-signação do administrador for em atoseparado, é preciso que tal ato seja aver-bado no registro público das empresasmercantis, ou junta comercial, de ma-neira que seja dado conhecimento a ter-ceiros, tal como já ocorre hoje no De-creto nº 3.708, através da chamada de-legação dos poderes de gerência. A leitambém admite que sejam nomeadosadministradores não-sócios e, nessecaso, a sua designação depende da apro-vação da unanimidade dos sócios, en-quanto o capital não estiver integraliza-

do; e, depois de integralizado, de ao me-nos 2/3 dos sócios. A investidura no car-go de administrador, sócio ou não, de-signado em ato separado, dá-se medi-ante assinatura de termo de posse nolivro de atas da administração, devendoesse termo ser firmado em até 30 diasapós a designação, sob pena de torná-lasem efeito.

Tal qual nas sociedades anônimas,os administradores de limitadas, mes-mo os sócios nomeados no contrato so-cial, são demissíveis a qualquer tempo,por decisão tomada pela maioria exigidaem lei ou, se maior, a que for previstano contrato social. Além de por demis-são, o exercício do cargo de administra-dor também se encerra pelo término doprazo fixado em sua nomeação, se nãohouver recondução. A redação do Códi-go a esse respeito pode criar um certoembaraço, se entendida literalmente,na hipótese em que haja a nomeaçãode um administrador com o prazo demandato de até, digamos, o dia 31 dedezembro de 2002. Chegou-se ao dia 1de janeiro de 2003 e não houve a nome-ação de um novo administrador, nem arecondução do antigo. Se aplicado o art.1.063 em sua literalidade, daria mar-gem a uma interpretação de que a soci-edade ficaria sem administrador, semrepresentação. Aplica-se, aí, por umaquestão de bom senso, mas também porregência supletiva da Lei das S.A., a nor-ma do § 4º do art. 150 da Lei nº 6.404que estabelece que o prazo de gestão doadministrador se estende até ainvestidura dos novos administradoreseleitos.

A forma pela qual a sociedade seobriga, isto é, a sua representação, devevir regulada no contrato social, sendoprivativa dos administradores que, agin-do isoladamente ou em conjunto, pos-suam os poderes necessários. É o con-trato social que define se o administra-dor pode agir isoladamente, ou se deveter a assinatura de dois administrado-res, ou, ainda, se a prática de determi-nado ato depende ou não de prévia au-torização da maioria dos sócios.

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Conselho de Administração e Con-selho Fiscal - Embora regule o conselhofiscal, a que vou me referir logo em se-guida, o código é omisso quanto à possi-bilidade de criação do Conselho de Ad-ministração. Existem várias sociedadeslimitadas, com a estrutura administrati-va um pouco mais sofisticada, cujo con-trato social regula a criação e o funcio-namento de um Conselho de Adminis-tração. Isto já era válido antes e conti-nuará válido na vigência do novo Código.Para tanto, bastará que o contrato socialpreveja e regule seu funcionamento, apli-cando-se supletivamente as regras quea esse respeito existem na Lei das S.A..

O Conselho de Administração atuacomo se fosse uma mini-assembléia, po-dendo ser composto por quotistas e/ouseus representantes. Trata-se de órgãocolegiado com capacidade para se reu-nir e tomar decisões -- que não se quei-ra deixar ao arbítrio dos administrado-res executivos -- muito mais flexível eágil do que uma assembléia ou reuniãode quotistas.

O artigo 1.066 dispõe que o contra-to social pode instituir um Conselho Fis-cal, que terá no mínimo três membrostitulares e suplentes, todos residentesno Brasil, sócios ou não, eleitos pelaAssembléia anual de sócios. A lei esta-belece uma série de requisitos e impe-dimentos para as pessoas que podemintegrar o Conselho Fiscal. Isso está re-gulado no § 1º do artigo 1.066, que dis-põe: "Não podem fazer parte do conselhofiscal, além dos inelegíveis enumeradosno § 1º do art. 1.011, os membros dosdemais órgãos da sociedade ou de outrapor ela controlada, os empregados dequaisquer delas ou dos respectivos ad-ministradores, o cônjuge ou parente des-tes até o terceiro grau". O artigo 1.011,§ 1º, por sua vez, determina que "Nãopodem ser administradores, além daspessoas impedidas por lei especial, oscondenados a pena que vede, ainda quetemporariamente, o acesso a cargos pú-blicos; ou por crime falimentar, de pre-varicação, peita ou suborno, concussão,peculato; ou contra a economia popular,

contra o sistema financeiro nacional,contra as normas de defesa da concor-rência, contra as relações de consumo,a fé pública ou a propriedade, enquantoperdurarem os efeitos da condenação".Este é um requisito geral para qualqueradministrador.

Também como previsto na Lei dasS.A., é assegurado aos quotistasminoritários que representem ao menosum quinto do capital social (nas S.A. opercentual é menor), o direito de elegerem separado um membro titular e res-pectivo suplente para o Conselho Fiscal.Nas suas atribuições legais -- além deoutras que lhes possam ser cometidaspelo contrato social -- os conselheirosfiscais têm poderes para - agindo indivi-dual ou conjuntamente - examinar, aomenos trimestralmente, os livros da so-ciedade, os documentos e o estado dacaixa, podendo exigir dos administrado-res todas as informações pertinentes.Devem lavrar num livro próprio - trata-se do Livro de Atas do Conselho Fiscal -o resultado dos exames a que procede-rem, cumprindo-lhes apresentar à as-sembléia de sócios seu parecer sobre ascontas sociais, os negócios e as opera-ções do exercício em que servirem. Com-pete também ao Conselho Fiscal denun-ciar os erros, fraudes ou crimes que des-cobrir, sugerindo providências úteis àsociedade, convocar a assembléia dossócios nos casos de omissão da Direto-ria e exercer suas funções durante operíodo de liquidação da sociedade.

É importante chamar a atençãopara a norma do artigo 1.021, que asse-gura a qualquer sócio o direito de exa-minar os livros sociais. Mesmo que nãohaja Conselho Fiscal -- que, como órgãoinstitucionalizado, tem a função de fis-calizar a administração e zelar para queo contrato social e a lei sejam cumpri-dos -- os sócios, individualmente, tam-bém têm poderes para fiscalizar os li-vros, o estado do caixa da sociedade eseus negócios, como previsto na regralegal, in verbis: "Salvo estipulação quedetermine época própria, o sócio pode, aqualquer tempo, examinar os livros e

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documentos, e o estado da caixa e dacarteira da sociedade". O contrato soci-al pode, não impedir ou restringir o exer-cício deste direito, mas apenas regularas épocas em que a fiscalização pelo só-cio pode ser efetivada; o que é bastanterazoável uma vez que há de se convirque se for admitido que os sócios, emqualquer dia, a qualquer hora, possamsolicitar papéis e informações sobre osnegócios da sociedade e suas contas, daípodem resultar sérios embaraços à ad-ministração.

Responsabilidade dos Administra-dores - Os administradores -- inclusiveos conselheiros fiscais e de administra-ção, quando em funcionamento tais ór-gãos -- "respondem solidariamente pe-rante a sociedade e os terceiros preju-dicados, por culpa no desempenho desuas funções" (art. 1.016 c/c 1.070).Vale ressaltar que a responsabilidade,em caráter solidário, é de natureza sub-jetiva e aplica-se apenas aos adminis-tradores que tiverem atuado com culpaou dolo. Com uma dicção um pouco di-ferente, é o mesmo princípio que constada Lei das S.A., na qual os administra-dores não respondem pelas dívidas eobrigações sociais se, agindo dentro desuas atribuições, não ofenderem o esta-tuto social ou a lei; todavia, se agiremcom culpa ou dolo, serão responsáveismesmo que pratiquem atos dentro desuas atribuições ou poderes. O padrãode conduta do administrador, tradicio-nal na legislação societária e reiteradono art. 1.011 do Código Civil, é o de queele deve atuar com o "cuidado e a dili-gência que todo homem ativo e probo cos-tuma empregar na administração deseus próprios negócios".

Deliberações dos Sócios - O prin-cípio geral, que está no artigo 1.010, in-serido no capítulo que regula as socie-dades simples, mas também aplicávelàs sociedades limitadas, é o de que asdeliberações são tomadas por maioria devotos, simples ou qualificada, conformeprevisto na lei ou no contrato social, con-tados os votos segundo o valor das quo-tas de cada sócio. O Decreto nº 3.708

não submetia a deliberação de qualquermatéria a maioria qualificada. Assim, oentendimento que acabou prevalecendofoi o de que se o contrato social nadadispusesse sobre o quorum de delibera-ções, toda e qualquer decisão poderiaser tomada por maioria simples dos só-cios, ressalvada a transformação do tiposocietário, de limitada em outro qual-quer, cuja aprovação somente poderiaser efetivada por decisão unânime dossócios (ou por maioria, caso o contratosocial expressamente o admitisse). Estaregra consta do art. 221 da Lei das S.A.-- parte do Capítulo XVIII, intitulado"Transformação, Incorporação, Fusão eCisão"-- que, nessa matéria de reorga-nização societária, é uma lei geral desociedades, não regendo apenas as so-ciedades anônimas.

Entretanto, o novo Código Civil re-gula expressamente a questão, exigindoquorum qualificado para a deliberaçãode uma série de matérias nas socieda-des limitadas, como a seguir sintetiza-do: (a) unanimidade dos sócios: (i) de-signação de administrador que não sejasócio, se o capital social não estiver in-tegralizado (art. 1.061); (ii) dissolução dasociedade por prazo determinado (arts.1.087 c/c 1.044 c/c 1.033, II); (b) 3/4 docapital social: (i) modificação do contra-to social; (ii) incorporação, fusão, cisão(embora omisso o Código), dissolução dasociedade, ou cessação do estado de li-quidação (art. 1.076, I) (vale destacarque, quanto à dissolução de sociedadespor prazo determinado ou indetermina-do, há uma contradição entre as nor-mas dos incisos II e III do art. 1.033, apli-cável às limitadas por força do art. 1.087,e a do inciso I do art. 1.076); (c) 2/3 docapital social: (i) designação de admi-nistradores não sócios, se o capital so-cial estiver integralizado (art. 1.061) e(ii) destituição de sócio nomeado admi-nistrador no contrato social, salvo dis-posição contratual diversa (art. 1.063, §1º); (d) mais da metade do capital soci-al: (i) designação e destituição de ad-ministradores, quando feita em ato se-parado; (ii) fixação de sua remuneração,

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quando não estabelecida no contrato (seestiver previsto no contrato, será neces-sário o quorum de 3/4, uma vez que ha-verá necessidade de modificação do con-trato social) e (iii) pedido de concordata(art. 1.076, II); e (e) maioria de votosdos quotistas presentes, nos demais ca-sos, como aprovação das contas dos ad-ministradores e do balanço, podendo ocontrato estabelecer quorum mais ele-vado (art. 1.076, III).

Ainda sobre as deliberações de só-cios, vale salientar a norma do art. 1.080-- cujo princípio já constava do Decretonº 3.708 -- que dispõe: "As deliberaçõesinfringentes do contrato ou da lei tor-nam ilimitada a responsabilidade dosque expressamente as aprovaram". Ou,em outras palavras, a lei considera queas deliberações sociais contrárias aocontrato ou à lei constituem atos ilíci-tos, e aqueles que os tiverem praticadorespondem ilimitadamente pelos pre-juízos causados.

Assembléia ou Reunião de Sócios -No regime do novo Código Civil, as deli-berações de sócios nas sociedades limi-tadas são tomadas em reunião ou emassembléia de sócios. A deliberação emassembléia (ao invés de reunião) é obri-gatória nas sociedades maiores, em queo número de sócios for superior a dez. Alei fixa o modo, o prazo e a competênciapara a convocação das assembléias oureuniões de sócios. O modo de convoca-ção previsto na lei é por meio de avisopublicado em jornal de grande circula-ção e no Diário Oficial, por três vezes,com pelo menos oito dias de antecedên-cia -- tal como regulado na Lei das S.A..Embora o Código seja omisso a respeito,entendo que nas sociedades limitadascom reduzido número de sócios (menosde dez) o contrato social pode prever aconvocação das reuniões de sócios atra-vés de carta, telegrama, fax ou e-mail --ou qualquer outro meio que possa com-provar o envio e recebimento do aviso deconvocação -- como alternativa à suapublicação no Diário Oficial e em jornalde grande circulação. É claro que as for-malidades de convocação ficam dispen-

sadas se todos os sócios se declararem,por escrito, cientes da hora e do dia emque a assembléia ou reunião vai se rea-lizar (art. 1.072, § 2º). A instalação dareunião ou assembléia exige a presençade sócios representando três quartos docapital, em primeira convocação; e comqualquer número, em segunda convoca-ção (art. 1.074). A principal diferençaentre assembléia e reunião de sócios éo maior formalismo das assembléias,como previsto no art. 1.075, que regulaaspectos como a nomeação de presiden-te e secretário da assembléia, e a ne-cessidade de lavratura de ata dos tra-balhos e deliberações, em livro próprio.Quanto às reuniões de sócios, o § 6º doart. l.072 (cuja norma é curiosamenterepetida no art. 1.079) prevê que, noscasos omissos no contrato social, sãoaplicáveis as regras sobre a assembléiade sócios. As decisões tomadas em as-sembléias e reuniões validamenteconvocadas, e realizadas na forma da lei,vinculam todos os sócios, mesmo aque-les que votarem contra ou os que nãoestiverem presentes.

O direito de voto do quotista deveser exercido no interesse da sociedade,sendo-lhe vedado, conforme estabeleceo artigo 1.074, § 2º, votar, por si ou nacondição de mandatário, qualquer ma-téria que lhe diga respeito diretamente.Há outro dispositivo do Código (o art.1.010, § 3º) que realiza este mesmo prin-cípio, ao dizer que "responde por perdase danos o sócio que, tendo em algumaoperação interesse contrário ao da soci-edade, participar da deliberação que aaprove graças ao seu voto". Na mesmalinha é a norma do § 2º do art. 1.078,que veda aos administradores votar aaprovação do balanço e de suas própriascontas.

Direito de Retirada - O artigo 15do Decreto nº 3.708 já dispunha sobre odireito do sócio de se retirar da socieda-de quando divergisse da alteraçãocontratual. O novo Código Civil regula amatéria no mesmo sentido ao dispor, emseu artigo 1.077, que "quando houvermodificação do contrato, fusão da socie-

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dade, incorporação de outra, ou dela poroutra, terá o sócio que dissentiu o direi-to de retirar-se da sociedade, nos trintadias subsequentes à reunião, aplican-do-se, no silêncio do contrato social an-tes vigente, o disposto no art. 1.031".Embora o Código seja omisso quanto aorecesso na hipótese de cisão, a regra éa mesma.

Quanto ao valor de reembolso, éaplicável, em caso de omissão do con-trato social, a regra do artigo 1.031 eseus parágrafos, segundo a qual a de-terminação do valor da quota do sóciodissidente se fará "com base na situa-ção patrimonial da sociedade, à data daresolução, verificada em balanço espe-cialmente levantado", devendo o valorassim apurado ser pago "no prazo de no-venta dias, a partir da liquidação, salvoacordo, ou estipulação contratual emcontrário".

Ainda quanto ao regime do direitode retirada nas limitadas, entendo que,mesmo o Código sendo omisso a esterespeito, será aplicável a regra do art.137, § 3º , da Lei nº 6.404/76, que facul-ta "aos órgãos da administração convo-car a assembléia-geral para ratificar oureconsiderar a deliberação, se entende-rem que o pagamento do preço de reem-bolso das ações aos acionistas dissiden-tes que exerceram o direito de retiradaporá em risco a estabilidade financeirada empresa".

Assembléia Anual - A lei prevê quetem que haver pelo menos uma assem-bléia anual dos sócios, dentro dos qua-tro primeiros meses do exercício, paratomar as contas dos administradores,aprovar o balanço social e o resultado doexercício, deliberar sobre a distribuiçãode lucros, designar os administradoresquando for o caso, ou tratar de qualquermatéria que seja de interesse social. Aaprovação do balanço e do resultado doexercício, sem qualquer ressalva, impli-ca na aprovação tácita das contas dosadministradores, a menos que haja erro,dolo ou simulação, conforme determinao § 3º do art. 1.078. O Código prevê umprazo prescricional de dois anos para

anular essa deliberação; e, portanto,passados dois anos da aprovação das con-tas sem qualquer ressalva, os adminis-tradores estão liberados de responsabi-lidade pela sua gestão naqueles exercí-cios.

Aumento e Redução do Capital So-cial - Após totalmente integralizado, ocapital pode ser aumentado por delibe-ração dos sócios (art. 1.081). Os quotistastêm direito de preferência na proporçãodas quotas de que sejam titulares, peloprazo de trinta dias contados da delibe-ração (§ 1º). A cessão do direito de pre-ferência é regida pelas mesmas regrasque a cessão de quotas, isto é, o direitode subscrever quotas em aumento decapital pode ser cedido livremente paraqualquer sócio, mas a sua cessão paraterceiros subordina-se à não oposição dequotistas titulares de mais de ¼ do ca-pital social. Subscrito todo o aumento decapital -- por sócios ou por terceiros -- oaumento será efetivado em reunião ouassembléia de sócios, que aprovará acorrespondente modificação do contratosocial.

O Código, tal qual a Lei das S.A.,estabelece diferentes regimes para aefetivação da redução de capital, com aconseqüente modificação do contratosocial: (a) no caso de compensação deprejuízos (a expressão do Código é "per-das irreparáveis"), já estandointegralizado o capital, a redução se dámediante a diminuição proporcional dovalor nominal das quotas, tornando-seefetiva a partir da averbação da ata daassembléia ou da reunião que a tenhaaprovado (art. 1.083); (b) no caso de re-dução do capital por ser excessivo "aoobjeto da sociedade" -- hipótese em quehá devolução de parte do valor das quo-tas aos sócios, ou dispensa das presta-ções ainda devidas para integralizar ocapital, "com diminuição, em ambos oscasos, do valor nominal das quotas" -- aefetivação da redução (e averbação darespectiva deliberação) somente podeocorrer após o transcurso do prazo denoventa dias -- contados da publicaçãoda ata que aprovar a redução -- desde

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que não tenha havido oposição de cre-dores quirografários, por título líquidoanterior, ou, havendo impugnação, se forprovado o pagamento da dívida ou depó-sito inicial do respectivo montante (art.1.084).

Exclusão de Sócio - O Código pre-vê as seguintes hipóteses de exclusãode sócio: (a) judicialmente, por iniciati-va da maioria dos demais sócios, por fal-ta grave no cumprimento de suas obri-gações, ou por incapacidade superveni-ente, conforme previsto no art. 1030; (b)no caso de sócio remisso, cujas quotasnão sejam integralizadas no prazo devi-do, determina o art. 1.058 que "os ou-tros sócios podem, sem prejuízo do dis-posto no art. 1.004 e seu parágrafo úni-co, tomá-la para si ou transferi-la a ter-ceiros, excluindo o primitivo titular edevolvendo-lhe o que houver pago, de-duzidos os juros da mora, as prestaçõesestabelecidas no contrato mais as des-pesas"; ou (c) desde que prevista a ex-clusão no contrato social por justa cau-sa, podem ser excluídos por decisão damaioria, mediante alteração do contra-to social. Os sócios minoritários que pra-ticarem atos de inegável gravidade queponham em risco a continuidade da em-presa (art. 1.085). Essa exclusão por jus-ta causa somente poderá ser determi-nada em reunião ou assembléia especi-almente convocada para esse fim, cien-te o acusado em tempo hábil para per-mitir seu comparecimento e o exercíciodo direito de defesa (parágrafo único).

Esses dispositivos mostram a preo-cupação do legislador em regular equili-bradamente a matéria, em atenção aoprincípio constitucional do devido proces-so legal, como ressaltado pelo Prof. Mi-guel Reale (em "As Diretrizes Funda-mentais do Projeto de Código Civil"):"A propósito desse assunto, para mostrar ocuidado que tivemos em atender à Consti-tuição, lembro que a lei atual sobre socieda-des por quotas de responsabilidade limita-da permite que se expulse um sócio que es-teja causando danos à empresa, bastandopara tanto mera decisão majoritária. Fui dosprimeiros juristas a exigir que se respeitas-

se o princípio de justa causa, entendendoque a faculdade de expulsar o sócio nocivodevia estar prevista no contrato, sem o quehaveria mero predomínio da maioria. Ora, aConstituição atual declara no art. 5º que nin-guém pode ser privado de sua liberdade ede seus bens sem o devido processo legal esem o devido contraditório. Em razão des-ses dois princípios constitucionais, mantive-mos a possibilidade da eliminação do sócioprejudicial, que esteja causando dano à so-ciedade, locupletando-se às vezes à custado patrimônio social, mas lhe asseguramos,por outro lado, o direito de defesa, de ma-neira que o contraditório se estabeleça noseio da sociedade e depois possa continuarpor vias judiciais. Está-se vendo, portanto,a ligação íntima que se procurou estabelecerentre as estruturas constitucionais, de umlado, e aquilo que chamamos de legislaçãoinfraconstitucional, na qual o Código Civil sesitua como o ordenamento fundamental."

Apuração de Haveres e DissoluçãoParcial - Na apuração de haveres, a ju-risprudência dominante determina aavaliação dos bens com base em um ba-lanço de determinação por seu valor demercado, incluindo os intangíveis. Umponto para o qual gostaria de chamar aatenção é o de que está subjacente nes-sas decisões o princípio, absolutamentecorreto, de que não deve haver o enri-quecimento da sociedade e dos demaisquotistas em detrimento do sócio queestá se retirando, devendo pagar-se aele o valor de seus haveres com baseem balanço que reflita efetivamente ovalor econômico de sua parte. Entretan-to, é preciso levar em conta que tam-bém não é razoável transferir para a so-ciedade e os demais sócios, ao determi-nar-se o valor de mercado do patrimônioa ser restituído ao sócio que se retira,os riscos da realização em dinheiro deuma sobreavaliação dos ativos tangíveise intangíveis da sociedade.

A dissolução parcial de sociedaderesulta de criação doutrinária ejurisprudencial, como sucedâneo do di-reito de requerer a dissolução total que,nas sociedades por prazo indeterminado,o Código Comercial assegurava a qual-

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quer sócio. Em uma conhecida decisãodo Supremo Tribunal Federal, da qualfoi Relator o Min. Décio Miranda, o casoem julgamento era o de pedido de disso-lução total de uma sociedade por quo-tas, por prazo indeterminado, havendo oTribunal -- ponderando os direitos dosdemais sócios e da sociedade, aos quaisinteressava a manutenção e continui-dade da empresa, e do autor da ação, aoqual a lei garantia o direito de dissolvera sociedade -- chegado a uma decisãosalomônica, através da introdução da fi-gura da dissolução parcial, garantindoassim, ao autor o recebimento (integral)de seus haveres, ou seja, de tudo aqui-lo a que teria direito caso ocorresse aefetiva dissolução total da sociedade.Para esse fim, o patrimônio da socieda-de, inclusive os bens intangíveis, seriaavaliado a preços de mercado, e combase no valor assim apurado seria pagaa participação do sócio requerente dadissolução. Do ponto de vista teórico-ju-rídico, a solução é brilhante, porém, naprática, é preciso muito cuidado na suaaplicação. A avaliação do patrimônio deuma sociedade, dependendo dos bens(tangíveis e intangíveis) que formem seuativo, é, em muitas situações, um pro-blema bastante complicado. A experiên-cia mostra que nas avaliações de em-presas e de bens com pouca liquidez, pormais eficientes que sejam os avaliado-res, há sempre uma carga desubjetivismo no estabelecimento das pre-missas e parâmetros adotados; e con-forme a variação dessas premissas eparâmetros, o resultado dessa avaliaçãopode apresentar grandes diferenças. Arigor, quando se trata de bens sem gran-de liquidez no mercado, toda e qual-quer avaliação traz o risco ponderávelde o bem, ou conjunto de bens avalia-dos, não ser realizável, numa venda efe-tiva, pelo valor avaliado. Assim, ao sepagar ao sócio que se retira o valor deavaliação do patrimônio da sociedade,muitas vezes está-se transferindo paraa sociedade (e os demais sócios) o riscode os bens não serem realizáveis em di-nheiro segundo aquele valor. No caso de

uma dissolução total e efetiva, esse ris-co não existe, porque os bens vão sertodos avaliados, vendidos (isto é, trans-formados em dinheiro), pagos os credo-res e o que se distribui entre os sóciosserá o saldo em dinheiro. Em uma dis-solução parcial -- hipótese em que a so-ciedade continua existindo -- ao ser cal-culado e pago, aos sócios que se reti-ram, o valor dos bens segundo uma ava-liação, se esta for exagerada o princípiode não enriquecimento dos demais só-cios em detrimento do que se retira aca-ba se invertendo: o sócio que se retiraacaba se enriquecendo em detrimentodos sócios que ficam.

Este é um problema muito delica-do e que deve merecer uma criteriosaatenção dos julgadores. Deve ser evita-do tanto o enriquecimento sem causados demais sócios, quanto a transferên-cia para a sociedade dos riscos de reali-zação do valor monetário de benssobrevalorizados. A este respeito é pre-ciosa a lição de Tulio Ascarelli ("Valori-zação do Ativo e Morte do Sócio", publi-cado em Ensaios e Pareceres, 1952, p.210): "As valorizações dos bens sociais --seja qual fôr sua origem: renda ricardiana,desvalorização monetária, incremento natu-ral e assim por diante -- constituem, enquantonão sejam realizadas à vista da alienação dosbens, apenas esperanças de lucros. Comefeito, podem elas, à luz dos fatos, resultarjustas ou erradas; pode o movimento domercado levar a uma diminuição do valor dobem anteriormente valorizado; poderá a va-lorização não encontrar correspondência nopreço de mercado à vista da dificuldade navenda do bem ou dos prazos que seja mistéroutorgar quanto ao seu pagamento; podemincidências fiscais diminuir o alcance da va-lorização ou até absorver esta por completo,devendo-se aliás levar em conta as incidên-cias que possam até se verificar no futuro atéque o bem não seja vendido. Lucro e perdanão podem com efeito ser, a rigor, avaliadosenquanto o bem não tenha sido objeto de umaoperação em virtude da qual passe a ser re-alizado seu valor monetário. Isto justamenteporque é a moeda a medida dos valores, re-sultando portanto, o lucro, do valor do bem

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68 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

em moeda, valor que só uma operação de tro-ca possibilitará verificar com certeza."

Ainda sobre a questão da dissolu-ção parcial das sociedades limitadas, éimportante ressaltar que o fundamentodas decisões judiciais que criaram essafigura -- como sucedâneo à dissoluçãototal, que o Código Comercial (art. 335,inciso 5º) garantia a qualquer sócio nassociedades por prazo indeterminado --não foi mantido pelo Código Civil: o art.1.033, III, somente admite a dissoluçãodas sociedades por prazo indeterminadomediante deliberação da maioria abso-luta dos sócios -- e não mais "por vonta-de de um dos sócios". É preciso aguar-dar a manifestação da doutrina e da ju-risprudência sobre este ponto, que cer-tamente passará a ser levantado nasações de dissolução parcial de socieda-des limitadas propostas após a entradaem vigor do novo Código Civil.

Adaptação das Sociedades Limita-das Existentes às Novas Disposições doCódigo Civil - O artigo 2.031 determinaque as sociedades constituídas na for-ma das leis anteriores têm o prazo deum ano para se adaptarem às disposi-ções do Código. Este dispositivo deve seraplicado com muita cautela, tendo emvista o princípio, que vige no direito bra-sileiro, de proteção constitucional ao di-reito adquirido e ao ato jurídico perfei-to. Em outros sistemas jurídicos, não háesta proteção com força de norma cons-titucional. Trata-se de um delicado pro-blema de direito intertemporal. Emboraa matéria não seja pacífica -- e certa-mente vai suscitar muitas discussões --sou de opinião de que nas sociedadesconstituídas anteriormente ao novo Có-digo Civil cujos contratos sociais conte-nham normas regulando direitos políti-cos ou patrimoniais de sócios de formaeventualmente divergente das regras danova lei, prevalecerá o contratado. Te-rão aplicação imediata, independente-mente da adaptação do contrato socialàs disposições do Código, apenas as suasnormas de natureza funcional e de or-ganização da sociedade (como as queregulam o modo e prazo de convocação

de reuniões e assembléias de sócios,procedimentos para aumento e reduçãode capital, requisitos e formalidades paraa nomeação de novos administradores,etc.), preservadas, todavia, as regrascontratuais (válidas ao tempo de suaestipulação) que regulem direitospatrimoniais e políticos dos sócios. Oscontratos sociais de sociedades cons-tituídas na vigência do Decreto nº3.708, de 1919, constituem atos jurí-dicos perfeitos, não podendo os direi-tos e obrigações das partes neles re-gulados ser alterados por lei nova. Umcaso típico, que certamente ocorrerácom alguma freqüência, será o da va-lidade, ou não, das regras de contra-tos sociais (firmados anteriormente aonovo Código) que estabeleçam que qual-quer deliberação social poderá ser to-mada com a aprovação de quotistas querepresentem a maioria absoluta do ca-pital social (mais de 50% das quotas).Entendo que essas cláusulas continu-arão válidas, e não serão afetadas pe-las novas regras do artigo 1.076 que,como vimos anteriormente, estabele-cem um quorum qualificado (superiora 50% do capital) para deliberação deuma série de matérias.

Como reiteradamente decididopelo Supremo Tribunal Federal, a pro-teção constitucional ao ato jurídico per-feito abrange os efeitos futuros de con-tratos firmados na vigência da lei an-terior. Cito, como exemplo, o seguintetrecho da Ementa do acórdão proferidono julgamento da ADIN nº 493: "Se a leialcançar os efeitos futuros de contratos ce-lebrados anteriormente a ela, será essa leiretroativa (retroatividade mínima) porquevai interferir na causa, que é um ato ou fatoocorrido no passado. O disposto no art. 5º,XXXVI, da Constituição Federal se aplicaa toda e qualquer lei infraconstitucional,sem qualquer distinção entre lei de direitopúblico e lei de direito privado, ou entrelei de ordem pública e lei dispositiva. Pre-cedentes do STF".

Termino por aqui e agradeço a boavontade e a paciência de todos. Muitoobrigado..

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As questões relacionadas a alimen-tos, em São Paulo, e acredito que em to-dos os outros Estados, sem dúvida, têmsido as que mais congestionam o PoderJudiciário e as que mais provocam litígiosquando falamos em Direito de Família.

Quando se discute uma relação fa-miliar, quer seja a separação do casal,a investigação de paternidade ou mes-mo a ação de alimentos independenteda existência de um vínculo anterior,como, por exemplo, o casamento dos pais,quase sempre há litígio.

Por que há essa característica?Porque a ação de alimentos está re-

lacionada, primeiro, a uma prestaçãoeconômica exposta às contingências daprópria modificação econômica do país.Em segundo, ela é uma prestação denatureza continuada diferente da sepa-ração judicial, do divórcio e da dissolu-ção da união estável, por exemplo, osquais se referindo ao vínculo pessoal daspartes, são processos que encerram como trânsito em julgado da sentença. Atémesmo a partilha de bens tem um mo-mento que leva à sua extinção, de acor-do com o regime de bens. Ocorre que naquestão relacionada aos alimentos, aprestação é de natureza continuada,assim, mesmo que o processo tenha seufim a obrigação se prolonga por muitotempo e por isso permite sua revisão.

Na maioria das vezes, quando háuma condenação, uma fixação impostapelo Judiciário contra a vontade das par-tes, não há uma acomodação dos inte-resses dos litigantes, porque não houveum acordo no que se refere à fixação dovalor dos alimentos. E sempre que háessa imposição judicial teremos duaspessoas descontentes, tanto aquela querecebe a pensão (por acreditar que o va-

Os Alimentos no Novo Código Civil

FRANCISCO JOSÉ CAHALI

Advogado e consultor jurídico. Professor da PUC/SP

lor deveria ser maior), como aquela obri-gada pelo pagamento da pensão. E exis-tindo esse descontentamento de ambas,evidentemente, na primeira oportunida-de que tiverem, vão querer rever essevalor. É aquela insatisfação que conti-nua e que se renova a cada prestaçãopaga ou recebida, assim, na primeiraoportunidade, as partes vão procuraressa revisão judicial da pensão, querpara aumentar quer para reduzir o valordos alimentos.

Por outro lado, existem estimativasno sentido de que, quando há o acordoentre as partes para a fixação do valorda pensão, a perspectiva de revisão, em-bora sempre possível, é mais remota umamodificação posterior, pois os envolvidos,afinal, concordaram com a acomodaçãodos interesses através da composição.

O novo Código Civil, por sua vez,também na matéria dos alimentos, an-tes de solucionar velhos problemas, traznovas questões e dificuldades a seremenfrentadas. Pretendemos agora anali-sar exatamente esse novo panorama naseara dos alimentos que pela nossa con-clusão, em função do texto apresentadogerará um grande número de novasações envolvendo a matéria.

De uma maneira geral, o novo Có-digo Civil mantém a obrigação alimen-tar decorrente do parentesco, decorrenteda dissolução do casamento e da disso-lução da união estável.

No entanto o novo Código concen-tra todas essas questões em um únicoTítulo e em um único subtítulo (arts.1.694 e seguintes). Assim, ao codificar otema dos alimentos o Código trouxe noseu regramento de forma concentrada,tanto as questões relacionadas aos ali-mentos decorrentes do casamento, comoda união estável (cada qual antes comlegislação própria, Lei do Divórcio, a LeiPalestra proferida no Seminário realizado em 09/08/2002

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8.971/94 e a Lei 9.278/96), e aquelasdecorrentes do parentesco, estas últi-mas até então tratadas exclusivamentepelo Código Civil, e eventualmente, pelalegislação especial de investigação depaternidade.

O novo Código Civil concentrou to-das as matérias em um único subtítulo.Com isso, acabou trazendo também umaconseqüência, qual seja: as regras porele tratadas valem para todas as espé-cies de alimentos. O que contraria nos-sa história legislativa e a tendência dou-trinária e jurisprudencial, pois até en-tão tínhamos regras próprias aplicadasem função da origem e da natureza dosalimentos.

Esclarecendo melhor: os alimentosdecorrentes do parentesco têm origemem um dever de solidariedade familiar,de caridade familiar; já os alimentos de-correntes da dissolução do vínculo con-jugal, pelo sistema antigo, tinham na-tureza indenizatório-punitiva, além, na-turalmente, daquele certo prolongamen-to do dever de assistência de um cônju-ge para com o outro. Esse caráterindenizatório-punitivo estava pautado naresponsabilidade pela dissolução do vín-culo, ou seja, quando o cônjuge ou o com-panheiro era declarado culpado, ficavaobrigado a prestar ao outro a pensão,sempre de acordo com a necessidade epossibilidade. O cônjuge culpado, sobreoutro ângulo, não tinha direito à pensãoalimentícia.

Ainda em relação ao cônjuge, ha-via a obrigação de manter o padrão devida, quando da dissolução do casamen-to o que diverge um pouco dos alimentosdecorrentes do parentesco.

Esse era o nosso quadro tratadopelo artigo 19 da Lei do Divórcio. Os ali-mentos decorrentes da dissolução daunião estável, por sua vez, também es-tavam vinculados à discussão sobre aculpa, embora houvesse divergência nadoutrina, e não na jurisprudência.

O nosso contexto até o advento doCódigo de 2002 era esse: a natureza dosalimentos determinava as regras a se-rem aplicadas. O novo Código Civil trata

a obrigação alimentar de forma única,independente da origem da obrigação,contrariando, inclusive, a tendência an-terior traçada pela doutrina e jurispru-dência, desapertando daí algumas con-seqüências.

A seu turno, fez o código distinçãoque até então era virtual, existia na dou-trina e na prática, mas não no textonormativo: identifica expressamente osalimentos civis (também chamados dealimentos côngruos, os destinados àmanutenção do padrão de vida das par-tes, principalmente quando os alimen-tos decorrem do casamento, por issoencontramos aquelas pensões milioná-rias, de quarenta, cinqüenta mil reais),e os alimentos naturais (aqueles neces-sários à subsistência).

Os alimentos naturais têm destinoà subsistência do alimentado, mas nasua amplitude, ao se fixar o valor, tam-bém se verifica a realidade econômicadas partes, para se relevar em certamedida o padrão de vida daquela famí-lia. Evita-se, nestas condições, o exage-ro, mas os alimentos continuam sendofixados com um certo parâmetro na con-dição econômica e social dos envolvidos.Computa-se na mensuração, por exem-plo, o valor de escola particular, de pla-no de saúde particular, transporte ade-quado, alimentação, lazer etc.

O novo Código Civil faz expressa-mente essa distinção entre os alimentoscivis e os naturais e por quê? A doutrina,até então, fazia a distinção tendo em vis-ta a origem da obrigação, mas sem gran-des repercussões quando os alimentossão decorrentes do parentesco.

O novo Código Civil faz a distinçãopois inova a sistemática ao prever de-terminadas situações em que os alimen-tos devidos são exclusivamente aquelesdestinados à subsistência, ou seja, oschamados alimentos naturais, e, em ou-tras, os alimentos são devidos na suatotal abrangência (alimentos civis).Como adiante com mais vagar se verá,havendo culpa de quem busca os alimen-tos, estes serão fixados apenas no in-dispensável à sua subsistência.

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De um modo geral, são essas as ca-racterísticas principais da pensão alimen-tícia, de acordo com o novo Código Civil.

Vamos enfrentar agora, separada-mente, os alimentos decorrentes do pa-rentesco, da dissolução da sociedadeconjugal e, por fim, aqueles oriundos dadissolução da união estável.

Em relação ao parentesco, a primei-ra novidade não está prevista no capítu-lo de alimentos, mas na Parte Geral doCódigo: consiste na redução da maiori-dade para 18 anos. Esta inovação inter-fere na obrigação alimentar indireta-mente, pois sua repercussão é limitada:enquanto menor, o pai deve alimentosao filho em decorrência da obrigação desustento inerente ao poder familiar.Então a necessidade é presumida, atéporque se o filho tem patrimônio, este éusufruído pelo pai ou mãe, titulares dousufruto destes bens. O menor não teráa renda direta, ela é auferida pelo seurepresentante legal. Nessas situações,existente a obrigação de sustento, a ne-cessidade é presumida.

Isso significa que a partir de 21anos (no passado) ou 18, no novo Código,levar-se-á à extinção da obrigação ali-mentar? Não.

Hoje (falo principalmente por SãoPaulo) é tranqüila a jurisprudência nosentido de se prolongar essa obrigaçãoalém da maioridade, quando o filho es-tiver estudando em um curso superiorcom limite em 24 anos, até porque aocompletar sua formação, se daria a opor-tunidade para esse filho atingir a inde-pendência econômica.

Utiliza-se um paralelo à dependên-cia especificada no imposto de renda, ouseja, até 24 anos, limite de idade emque o pai pode deduzir as despesas deinstrução com o filho. Excepcionalmen-te, a idade poderá ser de 25 anos.

Aliás, ao se estabelecer expressa-mente no novo Código que a pensão deveser fixada “inclusive para atender às ne-cessidades de sua educação” (art.1.694), fácil será sustentar a subsistên-cia da obrigação mesmo após alcançadaa capacidade civil com 18 anos, quando

destinado o valor para mantença de fi-lho estudante.

Recentemente, tivemos um casoem que o filho, com 25 anos, estudavaMedicina e estava no último ano de re-sidência. O Tribunal manteve opensionamento excepcionando a orien-tação de romper a obrigação aos 24 anos,ressaltando, dentre outros argumentos,que, não completando sua formação, ofilho estaria comprometendo o própriocurso. Apesar de a residência médicaser remunerada, essa não é suficientepara o término dos estudos.

Neste contexto, como inicialmentereferido, a obrigação de prestar alimen-tos ao filho não se encerrará automati-camente aos 18 anos (nova maioridadecivil), salvo se tiver alguma previsão ex-pressa em um acordo anterior e devida-mente homologado pelo Juiz, e sem pre-juízo, nesta hipótese, de vir o filho a bus-car a pensão embora com base no pa-rentesco, e não mais na obrigação desustento.

Aí surge uma dúvida: se a compo-sição firmada em juízo pelas partes falaque a obrigação se encerra com 21 anosou com a maioridade, independente decursar ou não a faculdade, agora, com onovo Código, haverá ou não a extinçãoda pensão aos 18 anos?

Se, o acordo, fala em 21 anos, deve-se aguardar este evento como termo daobrigação; porém, se fala maioridade,temos que refletir cautelosamente se opensionamento encerraria agora, com 18anos, até mesmo para aqueles com 20anos, por exemplo, recebendo regular-mente a pensão em janeiro de 2003.

No meu entender, não se deveriaaplicar de imediato esse critério da maio-ridade, mas, sim, se verificar em cada casoqual a necessidade efetiva do alimenta-do, pois, se não for pelo dever de susten-to, ao menos pelo vínculo de parentescoexiste a obrigação alimentar. Daí, cance-lar uma pensão, para, na seqüência outraser fixada, com movimentação exageradada máquina do judiciário para se chegarao mesmo fim, acaba por arranhar o prin-cípio da economia processual.

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A segunda observação que se faz apropósito do novo Código é relacionadaao parágrafo segundo do artigo 1.694, as-sim redigido: os alimentos serão apenasos indispensáveis à subsistência, quan-do a situação de necessidade resultarde culpa de quem os pleiteia.

Daí se cogitar: como dar rendimen-to a esse dispositivo que se refere a umcaput onde se prevê a obrigação alimen-tar decorrente do parentesco?

Seria o caso, por exemplo, do pai fa-lar ao filho: “Ou vem morar comigo, ou osalimentos serão apenas os necessários àsubsistência, porque, afinal, a culpa serásua ao optar em morar com a mãe”.

Essa não é a idéia. Não se podedar rendimento a esse artigo, no que serefere aos alimentos decorrentes do pa-rentesco, quando estamos diante de umdever de sustento do pai em relação aosfilhos. Não se pode, por exemplo, culparo filho por não morar com o pai.

A responsabilidade que poderia serdiscutida aqui - e aí estamos criando al-gumas situações que se acomodariamnesse dispositivo - é eventualmente deum pai ou de um avô que teve uma situ-ação econômica razoável, mas acabadilapidando o patrimônio com jogos, far-ras, viagens, gastando de maneira des-proporcional as reservas de toda umavida, chegando à idade mais avançadacom a necessidade de pensão. Nessassituações, se o credor deu causa à situ-ação de necessidade, podemos dar ren-dimento a esse dispositivo dizendo: “aqui,será reduzida a pensão às necessida-des para sobrevivência, nos termos doparágrafo segundo do artigo 1.694”.

Mas, como regra, não se destina odispositivo à obrigação alimentar decor-rente do poder familiar, decorrente daobrigação de sustento. Aí não se teriacomo imputar ao menor a responsabili-dade pela necessidade da pensão ali-mentícia. Esse parágrafo é mais útil,tem, na verdade, uma repercussão sig-nificativa quando tratamos da dissolu-ção do casamento, como adiante serátratado.

No tocante aos alimentos entre pa-

rentes tivemos uma outra novidade, comotexto legal e não como princípio - a cha-mada pensão complementar, suplemen-tar, prevista no artigo 1.698 do novo Có-digo. É uma pensão supletiva.

Quando aquele primeiro obrigadonão tem condições de suprir todas as ne-cessidades do alimentado, busca-se umsegundo obrigado. É a situação, por exem-plo, da conhecida pretensão alimentarem face dos avós, aliás, cada vez maiscomum.

O Código anterior, falava que na fal-ta de um, buscava-se o outro parente obri-gado. A linha ascendente é sempre obri-gada a prestar alimentos aos seus des-cendentes, como a recíproca também éverdadeira. Mas imaginava-se, sempre,na falta de um ou outro. A jurisprudên-cia, já com tranqüilidade, acomodava asituação dizendo que pode o neto preten-der alimentos contra os avós, também emcaráter suplementar. O que falta ao pai,para cobrir as necessidades (aqui sob umaspecto um pouco mais restrito, como umplano de saúde, escola etc.), o avôcomplementaria, de acordo com a suacapacidade.

Esse pilar necessidade-possibilida-de é da essência da obrigação alimentar.Não posso falar em alimentos sem pen-sar nesses dois vetores: necessidade epossibilidade. Então tudo o que falamospressupõe necessidade e possibilidade.Não se pode impor a alguém que não te-nha condições financeiras, o pagamentode uma pensão alimentícia, não é essa aidéia da lei, não é essa a essência daobrigação alimentar. Sempre falamos nanecessidade e na possibilidade.

Assim, agora por texto expresso noartigo 1.698, acolheu-se a orientação jáconsolidada na doutrina e jurisprudência,pela qual se pode pleitear alimentos com-plementares ao parente de outra classese o mais próximo não estiver em condi-ções de suportar totalmente o encargo.

Entretanto, e agora contrariando aorientação até então predominante, pre-viu-se a possibilidade de, proposta a açãocontra um, serem chamados a integrar alide todas as pessoas obrigadas.

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 73

Não foi feliz o legislador. Aliás, de-sastrosa a inovação.

Primeiro, faz incursão indevida nodireito processual, ao prever causa es-pecífica de intervenção de terceiro noprocesso, e, o que é pior, sem identifi-car o respectivo instituto processual,requisitos e efeitos desta intervenção.Lembramos processar-se a ação de ali-mentos pelo rito especial, e, como tal,ser avessa a incidentes processuais des-ta natureza.

Segundo, contraria o espírito cadavez mais acentuado de se buscar solu-ções rápidas aos processos, evitando tur-bulências nos procedimentos, especial-mente diante do caráter alimentar dapretensão.

Com ou sem o ingresso dos demaisobrigados, a responsabilidade doacionado é sempre quantificada diantede seus recursos, e, tratando-se de pen-são complementar, cabe ao próprio ali-mentando demonstrar a limitação derecursos do primeiro obrigado, e apertinência de sua opção, diante da res-trição econômica ou participação diretade outros, sob pena de não preencher orequisito “necessidade” (pois teria mei-os diversos para garantir sua subsistên-cia).

Daí se poder afirmar que, no con-fronto entre prós e contras, ainda me-lhor teria sido inexistir o artigo 1.698 donovo Código.

Apresentadas estas reflexões a res-peito da obrigação alimentar decorrentedo parentesco, vamos analisar os alimen-tos nascidos da dissolução da sociedadeconjugal.

Proveitoso avanço normativo encon-tra-se previsto no novo Código, consis-tente na previsão de fixação dos alimen-tos na dissolução litigiosa da sociedadeconjugal mesmo em favor do cônjuge res-ponsável pela separação, limitando-se,todavia, à obrigação destinada a supriro indispensável à subsistência.

Há na moderna doutrina, forte ten-dência em abolir definitivamente aperquirição da culpa na dissolução dovínculo familiar (casamento ou união

estável). E uma das principais preocupa-ções para quem assim se posiciona é aexagerada punição ao “culpado”, de se ver“condenado” a perder a assistência ma-terial, mesmo quando sua responsabili-dade tenha se limitado à busca da felici-dade sem ferir ou violar as obrigaçõesconjugais. De maneira mais arrojada, aassistência material ao desprovido derecursos seria o aluguel da sua tolerân-cia conjugal, mesmo falido de fato o ca-samento, e ausente a afeição recíproca.

Existentes outras formas de equi-librar a situação, optou o legislador emmanter, como regra, a obrigação alimen-tar ao cônjuge responsável pela separa-ção, em favor do inocente. Mas expres-samente prevê exceção à regra, ao es-tabelecer a possibilidade daquele consi-derado culpado reclamar alimentos, com-provando a necessidade, se “não tiverparentes em condições de prestá-los,nem aptidão para o trabalho” (art. 1.704,parágrafo único), limitado o quantum ao“indispensável à sobrevivência”.

Significativa a modificação introdu-zida no sistema atual, e, sem dúvida, po-sitiva a evolução legislativa. Certamenteeste novo aspecto será um fator positivopara diminuir a incidência dos processosde separação judicial onde se busca aculpa exclusivamente para se eximir daobrigação alimentar. E não pensando emrestabelecer o vínculo conjugal.

Outra questão tratada no novo Có-digo Civil é a renúncia aos alimentos.No quadro anterior ao novo código, en-contramos a Súmula nº 379 do SupremoTribunal Federal dizendo: “No acordo dedesquite amigável, não cabe renúnciaaos alimentos”. Essa súmula é anteriora 1.977 (Lei do Divórcio) e por ela, ao seadaptar o princípio à lei divorcista, nãose admite a renúncia aos alimentos emum acordo de separação judicial.

A matéria – renúncia à pensão ali-mentícia na dissolução amigável do casamen-to – encontrou fértil campo de discus-sões. Na doutrina, basta a referência àsautorizadas lições de Yussef Cahali, emdedicado estudo a respeito desta polê-mica, apontando a sua complexidade eainda existente divergência.

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74 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

Na jurisprudência, pela sua relevân-cia, a questão chegou a ser sumuladapelo Supremo Tribunal Federal, mas re-cente orientação do Superior Tribunal deJustiça vem rejeitando a aplicação daSúmula, reconhecendo a possibilidade derenúncia à pensão. Entre os TribunaisEstaduais, embora cada qual exercendoa autonomia a consignar entendimentodiverso, vem sendo prestigiada, em suamaioria, a tese sustentada pelo SuperiorTribunal de Justiça.

Contrariando a tendência doutriná-ria e pretoriana, o novo Código registraser irrenunciável o direito a alimentos,sem excepcionar a origem da obrigação,fazendo incidir, pois, esta limitação àpensão decorrente também da dissolu-ção da sociedade conjugal. E vai além:confirmando ser esta a sua intenção, es-tabelece expressamente a possibilidadedo cônjuge separado judicialmente vir apleitear alimentos do outro, diante denecessidade superveniente.

E, inexistente ressalva expressa nalei, quem na vigência do novo Código pos-suir o estado de separado judicialmen-te, poderá reclamar a pensão do ex-côn-juge, mesmo que a dissolução do víncu-lo tenha se consumado anteriormente ànova regra.

E se o cônjuge, na separação, re-nunciou, porque ficou com boa parte dopatrimônio? Não é uma renúncia purae simples, mas sim uma disposição dodireito em troca, por exemplo, de umimóvel com renda. Mas e se o imóvel pas-sa a não mais trazer frutos, ou acabasendo vendido, poderá ser resgatada,nesse caso, a pensão alimentícia? Aquestão é delicada, e a resposta depen-derá de uma aprofundada análise fáticada situação em exame. Com efeito, seno momento do acordo houve um motivoà renúncia (uma compensaçãopatrimonial), o julgador deverá ter ex-trema cautela em analisar a causa, paranão prestigiar a ociosidade ou dissipa-ção imotivada do patrimônio.

Falamos em separação judicial, equando há o divórcio, como fica? As pes-soas divorciadas podem propor ação de

alimentos depois de uns cinco, seis, sete,dez anos?

Considerando o atual estágio dadoutrina e jurisprudência, o encerra-mento definitivo do vínculo conjugalatravés do divórcio, e promovendo-se in-terpretação mais literal do art. 1.704,parece-nos razoável sustentar que a pos-sibilidade de busca dos alimentos norompimento matrimonial encontra seulimite no divórcio das partes, permitin-do-se o exercício da pretensão apenaspelos separados judicialmente (e nãodivorciados), se não estabelecida ante-riormente a obrigação (no acordo ou de-cisão da separação ou do divórcio).

Os senhores sabem que a lei tam-bém deve atender a expectativa da soci-edade, e será difícil a sociedade assimi-lar que, após a renúncia aos alimentos,e concretização do divórcio, venha um doscônjuges pretender pensão do outro.

Em nosso entender, o modelo idealé o que hoje existe: enquanto estão seseparando, e entre a separação e divór-cio que é o momento mais próximo, podeser revista a cláusula de renúncia, atéatravés de ação de alimentos pelaliteralidade do novo Código.

Já, no pós-divórcio não se poderiade forma alguma cogitar em ineficáciada renúncia.

O Código Civil fala em seu artigo1.707: “Pode o credor não exercer, porémlhe é vedado renunciar o direito a alimen-tos, sendo o respectivo crédito insuscetívelde cessão, compensação ou penhora”. Masquando fala que o credor de alimentos nãopode renunciar ao seu respectivo direito,refere-se àqueles alimentos previstos noartigo 1.694; e, por esta regra, existe aobrigação alimentar entre cônjuges, com-panheiros e parentes.

Assim, parentes não podem renun-ciar, assim como o cônjuge e os compa-nheiros (quanto a estes últimos, inclu-sive, a matéria foi objeto de nossa tesede Doutorado, a respeito do contrato deconvivência na união estável, firmando-se aí a conclusão de ineficácia da cláu-sula dizendo que os contratantes renun-ciam à obrigação alimentar).

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Porém rompido o vínculo pelo divór-cio, deixa de existir a previsão legal daobrigação alimentar recíproca, salvo sejá prevista ou acordada anteriormente.

Ainda, a lei fala expressamente queo separado judicialmente pode propor ação,mas nada diz em relação ao divorciado.

Assim, até o divórcio ainda há pos-sibilidade de discussão a respeito de ali-mentos entre os separados judicialmen-te, porém, após a dissolução do casamen-to, tendo ocorrido a renúncia ou até mes-mo se apenas não exercido o direito,desaparece definitivamente a obrigaçãoalimentar.

Na dissolução da união estável asolução deve ser idêntica ao divórcio, poisestes institutos, neste particular, seaproximam. Assim, não exercidos os ali-mentos quando do rompimento do vín-culo, a pretensão ficará prejudicada. Ex-companheiros não têm obrigação alimen-tar recíproca, pois não está prevista noartigo 1.694, e se entre eles houver re-núncia quando da dissolução (não a re-núncia prematura), a disposição seráválida e eficaz.

Já existe projeto para a reforma donovo Código Civil, e na proposta emtramitação haverá expressa referênciade que a impossibilidade de renúnciaatinge apenas a obrigação alimentar de-corrente do parentesco, não aquela de-corrente da dissolução da união estávele do casamento.

Para aqueles que desconsideram arenúncia mesmo após o divórcio, surgi-rá uma questão a ser enfrentada: ocor-rendo a dissolução do casamento diver-sas vezes, sempre seguidas de renún-cia aos alimentos, vindo o ex-cônjuge apretender pensão alimentícia, deverá sevoltar contra qual dos seus ex-parcei-ros? Ainda, proposta a ação contra umdeles, poderá o outro chamar à lide osdemais? São questões que não têm so-lução. Admitir a ação pós-divórcio temesse problema.

Poderíamos, aí, talvez pensar noque hoje existe quando a mulher, porexemplo, credora da pensão vem a con-trair novas núpcias perdendo o direito aos

alimentos, e, na seqüência, rompe estenovo casamento. A orientação atual é nosentido de que ela não resgata a obriga-ção alimentar do primeiro casamento.

Assim, aquela ex-esposa divorcia-da diversas vezes, com este raciocínio,só teria pretensão alimentar (para aque-les a admitem após o divórcio) em facedo mais recente ex-marido.

Vimos, até então, a questão da cul-pa e da renúncia, como ela é tratada.

Existe modificação pelo novo Códi-go, também com relação às causas de exo-neração dos alimentos. O artigo 1.708 es-tabelece o seguinte: “Com o casamento,a união estável ou o concubinato do cre-dor, cessa o dever de prestar alimentos”;e seu parágrafo complementa: “com re-lação ao cônjuge credor cessa, também,o direito a alimentos, se tiver procedimen-to indigno em relação ao devedor”.

Restrita a Lei do Divórcio (art. 29)à exoneração apenas na hipótese de novocasamento do credor, a jurisprudência,ressalvados raríssimos julgados diver-gentes, também autorizava a extinção daobrigação se verificada a união estávelde quem recebe a pensão.

Quanto à conduta irregular, embo-ra reprovável, superada a fase inicial denela igualmente se encontrar causa deextinção da pensão, atualmente já nãomais se valorava esta situação como aptaa ensejar o termo final da obrigação.

Na sistemática proposta, não ape-nas o concubinato (identificado no novoCódigo Civil como sendo as relações nãoeventuais entre o homem e a mulher,impedidos de casar – art. 1.727), masaté mesmo o procedimento indigno em re-lação ao devedor passa a representar fun-damento à exoneração.

No mínimo curiosa a situação, amerecer enorme dose de cautela paraevitar a perplexidade: se, por exemplo,adúltera contumaz a mulher na cons-tância do casamento, mas enquadradanaquela situação excepcional de neces-sidade, pode reclamar alimentos desti-nados à sua sobrevivência; a seu turno,esta mesma mulher, ao prolongar rela-ções íntimas com terceiros, já isenta da

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obrigação de fidelidade após a separa-ção judicial, pode vir a ser excluída dapensão antes fixada, se considerada vi-vendo em concubinato, ou apenasadotando procedimento indigno.

Aguarda-se, neste contexto, sejaprudente e razoável o aplicador da nor-ma, para não transformar o conceito vagoem perseguição do “ex” diante do pon-derado exercício da liberdade afetiva docredor, valendo-se do permissivo legalapenas para evitar abusos, rechaçando,o quanto possível, eventual parasitismopossível de ser criado pelo recebimentoda pensão. E uma das possíveis soluçõesseria também adotar para este efeito,dentre outros, os critérios da indignida-de conhecidos para a exclusão de her-deiro.

Para encerrar, temos a questão daunião estável, se há mudança ou nãopelo novo Código Civil.

Os alimentos decorrentes da uniãoestável foram tratados na Lei 8.971/94,a qual tratou também de sucessão en-tre conviventes; logo em seguida veio aLei 9.278 de 1996, destinando um arti-go à obrigação alimentar ao regulamen-tar a união estável; e, agora, em 2002temos uma única palavra quanto a estamatéria.

Ou seja, a obrigação alimentar en-tre os conviventes, partiu de uma leipara, na seqüência, vir a ser tratada porum artigo e terminou por ser regradaatravés de uma palavra no novo Código.A palavra está no artigo 1.694 que dis-põe: “Podem os parentes, os cônjuges oucompanheiros pedir uns aos outros osalimentos de que necessitem para viverde modo compatível com a sua condiçãosocial, inclusive para atender às neces-sidades de sua educação”.

Ao contrário do que possa parecer,este contexto foi positivo, pois o novoCódigo traz a companheira ao status docônjuge quanto à obrigação alimentar.

E, embora o novel legislador tenhadeixado passar desapercebidas outrasdisposições que deveriam ter sidoreformuladas para contemplar os ali-mentos devidos entre conviventes, a

exegese neste sentido pode tranqüila-mente ser feita.

Assim, extrai-se do novo Código Civilum tratamento igualitário aos cônjuges ecompanheiros nesta questão de alimentos.

Por exemplo, o artigo 1.709 dispõe:“O novo casamento do cônjuge devedornão extingue a obrigação constante dasentença de divórcio”. Leia-se esse dis-positivo no sentido de que o novo casa-mento, ou nova união do cônjuge, ou docompanheiro devedor, não extingue aobrigação constante da sentença do di-vórcio, na separação ou da dissolução daunião estável.

Cito apenas esse exemplo, com oobjetivo de mostrar que as regras desti-nadas aos cônjuges, para extinguir oupara deferir direitos, também se esten-dem aos companheiros.

Procuramos abordar os pontos maisimportantes, de maior significado, prin-cipalmente na rotina dos operadores dodireito, mas certamente, várias outrasrelevantes e palpitantes questões devemexistir.

Agradeço mais uma vez o convite anós formulado, e quero crer que os se-nhores, quando estiverem aplicando essenovo Código Civil, trarão boas soluçõesàs dúvidas decantadas. A idéia princi-pal, com estas palavras, foi despertar ointeresse para uma reflexão a respeitodesse assunto.

DEBATES

Des. Áurea Pimentel PereiraApós a esplêndida exposição que

acabou de ser feita pelo Professor Fran-cisco José Cahali, pouco teria restadopara o debate porque ouvimos as apreci-ações amplas feitas pelo ilustre profes-sor a respeito da classificação dos ali-mentos, inclusive, com a denúncia deum certo fascínio de Sua Excelência peladoutrina de Domazio, que empresta aosalimentos aquela característicaindenizatória em certos casos. Ouvimosa apreciação da inserção que foi feita nonovo Código Civil daqueles alimentos comaspecto novo, que só por construção

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jurisprudencial, anteriormente, era ad-mitido. Os alimentos eram só aquelesessenciais à subsistência, agora, elestêm que levar em conta a situação soci-al do credor de alimentos.

Ouvimos apreciações sobre aquelescritérios da condicionalidade, proporci-onalidade, os parâmetros que devem serobservados no momento da fixação dosalimentos. O eminente professor falousobre alimentos no divórcio, a impossi-bilidade, posteriormente, de quem nãofoi credor de alimentos reconhecido noprocesso de divórcio, de vir a pleiteá-los,e as referências feitas àqueles disposi-tivos do novo Código Civil, que exonera odevedor de alimentos da obrigação decontinuar prestá-los quando há procedi-mento indigno do credor de alimentos.Permito-me acrescentar, com todas asvênias daqueles que possam ter posiçãoem contrário, que indigno deve ser ha-vido sempre o procedimento homossexualde um cônjuge, o que é altamente ofen-sivo não só ao seu ex-cônjuge, mas tam-bém aos princípios éticos do Direito deFamília e da própria formação da famí-lia brasileira.

Mas, a despeito dessa grande ex-pressão que teve a exposição feita peloprofessor, pemito-me fazer a colocaçãode alguns temas para discussão. Paratanto tecerei breves comentários, parachegar ao ponto de destaque que seriaexatamente aquele ponto a ser discuti-do nesse nosso debate.

Como é sabido, nos primórdios dascivilizações, os alimentos constituíramapenas um dever moral, com base no di-reito natural. Eles eram concedidospietatis causae, seria uma regra adiscipliná-los. Só com o decorrer dostempos, com o nascimento do ius positum,é que realmente foram estabelecidas asregras para a fixação e a concessão dosalimentos.

No Brasil, a Carta Civil de 1916,inspirou-se, inicialmente, naquela tra-dição de formação patriarcal da famíliabrasileira. Daí porque o que nele se in-seriu inicialmente era o reconhecimen-to, sempre, da obrigação que tinha o côn-

juge varão de prover não só o sustentoda família, mas especificamente e sem-pre do outro cônjuge. Com o surgimentodo Estatuto da Mulher Casada - Lei4.121/62, e depois da Lei do Divórcio -Lei 6.515/77, tudo mudou de figura etambém, depois da própria Carta Políti-ca de 1988, com aquela simetria de di-reitos estabelecida entre o homem e amulher. Então, essa obrigação de pres-tar alimentos tornou-se reconhecidacomo recíproca entre os cônjuges. Nonosso novo Código Civil, que vai entrarem vigor em janeiro do ano vindouro, olegislador, nos artigos 1.702 e 1.704,caput, estabeleceu como requisitos paraque o cônjuge, quando há separação ju-dicial, possa reclamar alimentos emjuízo, a sua condição de necessitado,mas ao lado daquele outro requisito denão ter sido considerado culpado na se-paração. Todavia, no parágrafo único doartigo 1.704, em disposição que, na nos-sa visão, guardaria, na verdade, umafranca antinomia com as normas do ar-tigo 1.702 o legislador veio a garantir aocônjuge posto que tenha sido havidoculpado na separação, mas que futura-mente se revele necessitado, sem apti-dão para o trabalho, e sem parentes quepossam prover-lhe o sustento, o direitode vir reclamar, posteriormente, alimen-tos do seu ex-cônjuge. Essa disposiçãoinspirou-se na norma do artigo 2.016, IIdo Código Civil Português, buscando assuas raízes no princípio da eqüidade. Asolução importada, a nosso juízo (não seise essa seria a opinião do ilustre expo-sitor) não estaria porém a merecer aplau-sos, na medida em que será capaz decriar situações absolutamente absurdas,imorais e injustas. Dou um exemplo:após a separação judicial, vem o ex-ma-rido (ou a ex-esposa) necessitado, semaptidão para o trabalho, sem parentesque possam prover-lhe sustento, pediralimentos ao ex-cônjuge, mas o motivoda decretação da separação foi, porexemplo, tentativa de morte desse côn-juge credor contra o cônjuge devedor.Parece-me que isso criaria uma situa-ção absolutamente insólita, que não deve

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ter sido prevista pelo legislador quandodeu essa abrangência, essa generaliza-ção nesse dispositivo de lei. Em casostais, parece que não pode haver princí-pio de eqüidade que possa justificar tãoinsólita solução, que ademais, conformeo caso, poderá inclusive fazer letra mor-ta do artigo 1.708, parágrafo único doCódigo de 2002, forte a proclamar quecessa para o devedor a obrigação de pres-tar alimentos quando o credor tiver com-portamento indigno.

Então, feitas essas considerações,formularia a seguinte discussão: paraobviar as insólitas conseqüências, quepoderão advir da aplicação, em certoscasos, da norma do parágrafo único doartigo 1.704 do Código Civil, não seria ocaso de, interpretando cum grano salis areferida norma, levando em conta a pre-visão contida no parágrafo único do arti-go 1.708, inadmitir a concessão de pen-são em favor desse cônjuge ainda quenecessitado, sem aptidão para o trabalhoe sem parentes que lhe possam prover osustento, quando a culpa reconhecida naseparação envolver procedimento indig-no do cônjuge credor? Esse seria oquestionamento que poria em discussão.

Dr. Francisco José CahaliHá realmente essa situação de que

o culpado pelo rompimento pode recebera pensão alimentícia, mas se a culpa forposterior poderá levar à extinção da obri-gação. É contraditório, mas teríamos quetemperar esse comando da norma. Es-pera-se que a jurisprudência venha afazê-lo.

Quanto a questão em tese (respon-sabilidade pelo rompimento do vínculo ea obrigação alimentar), ainda faço algu-mas ressalvas. Acho que, em um primeiromomento, para a separação propriamen-te dita, não deveria mais ter a discus-são da culpa. Hoje, existe a discussãoda culpa em função da obrigação alimen-tar. No futuro, também, queira ou não,do jeito que está sendo proposto, vai terdiscussão de culpa em função da obri-gação alimentar, mas não concordo com

a necessidade de se discutir culpa paraa separação.

Entretanto, a solução que algunscolegas têm proposto é: “vamos acabarcom a culpa como causa para a separa-ção”. Mas não discutir a responsabilida-de para a imposição da obrigação alimen-tar é, para nós, um exagero.

Então, quanto à minha posição, con-sidero-a intermediária entre aqueles quequerem acabar de todo com a culpa, e osistema normal. Nesse ponto, acompanhoas colocações da Drª Áurea, só com essaressalva: na separação, não se tem maissentido discutir culpa, deve-se permitiraos cônjuges a separação pelo desamor,porque não querem mais continuar ca-sados. Ora, posso requerer o divórcio apósdois anos separado de fato. Não vou per-mitir uma separação, só porque eles nãose gostam mais, vou ter que exigir, imporum abandono, uma separação, uma situ-ação prolongada, irregular?

Quanto aos alimentos, concordo ple-namente com as colocações que foramfeitas. Não consigo assimilar obrigaçãoalimentar plena quando há condutaculposa do credor. Muda todo o contextoque está sendo apresentado hoje.Desvincula obrigação alimentar da se-paração judicial. Separação judicial éuma situação própria, e obrigação ali-mentar passaria a ser independente daseparação, quem sabe até do divórcio.

Des. Áurea Pimentel PereiraO segundo tema a respeito do qual

gostaria de ouvir a opinião do ilustre ex-positor, Prof. Francisco José Cahali, é oseguinte: a doutrina já estabeleceu quea obrigação de prestar alimentos é per-sonalíssima, portanto intransmissível.Aliás, foi atenta a essa circunstância queo legislador, no Código Civil de 1916,estabeleceu, peremptoriamente no arti-go 402 que a obrigação de prestar ali-mentos não se transmite aos herdeiros.A respeito dessa norma, inclusive quefoi lançada em termos peremptórios, aopinião de Pontes de Miranda sempre foide uma clareza solar. Ele afirmava que,realmente, a obrigação era intransmis-

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sível, ativa e passivamente, embora odébito, que pudesse ser deixado em vidado alimentante, evidentemente pudesseser cobrado dos seus herdeiros.

Quando foi editada a Lei 6.515/77,o artigo 23 declarou que a obrigação deprestar alimentos transmitia-se a seusherdeiros, mas o legislador teve o cuida-do de dizer: “na forma do artigo 1.796 doCódigo Civil”. Havia realmente, e se re-conheceu à época, uma certa antinomiaestabelecida entre as duas disposições,daí porque alguns doutrinadores susten-taram que o artigo 402 do Código Civiltinha sido revogado pelo artigo 23 da Lei6.515/77. A despeito de respeitáveis opi-niões que se assentaram sobre a maté-ria, à época, estivemos sempre alinha-dos dentre aqueles que entendiam que oartigo 402 do Código Civil não havia sidorevogado pela norma do artigo 23 da Lei6.515/77, sobrevivendo antes, para a apli-cação, o que podia ser reconhecido des-de que se desse a esse artigo 23 adequa-da interpretação.

Nessa linha de entendimentos, ti-vemos a oportunidade de nos manifes-tar na nossa modesta obra “Dos Alimen-tos no Direito de Família e no Direitodo Companheiro”, fazendo invocação aofato de que aquela alusão feita pelo le-gislador no artigo 23 da Lei 6.515/77 aoartigo 1.796 do Código Civil, parecia dei-xar claro que o que passava aos herdei-ros era realmente a dívida em vida dei-xada pelo alimentante, e não o próprioencargo alimentar, uma vez que esse,como obrigação personalíssima, não setransmitiria aos herdeiros.

No novo Código Civil, atransmissibilidade passiva da obrigaçãoalimentar foi com todas as letras pro-clamada no artigo 1.700, mas sem em-bargo desses termos, aparentementeperemptórios do artigo 1.700 do CódigoCivil, tendo presente a naturezapersonalíssima da obrigação alimentar,não seria o caso, (indagamos mais umavez interpretando cum grano salis a nor-ma do artigo 1.700), entender-se querealmente a transmissão passiva que háde se fazer prevista no artigo 1.700, se-

ria do débito alimentar, posto a cargodos herdeiros do alimentante e não daprópria obrigação? Gostaria de ouvir aopinião do eminente professor a respei-to dessa indagação.

Prof. Francisco José CahaliDrª Áurea, sempre que termino a

exposição, fico me concentrando, torcen-do para ninguém me fazer essa pergun-ta, pois considero este um dos maioresproblemas da atualidade sobre a maté-ria: a transmissão da obrigação alimen-tar. Realmente hoje existe esse conflitono novo Código Civil. Infelizmente o le-gislador não leu a sua obra, também nãoleu Pontes de Miranda e não imaginouas conseqüências da sua conduta, aoestabelecer que em um direitopersonalíssimo se transmite. O contra-to de trabalho, por exemplo, é uma obri-gação que não se transmite, com o fale-cimento se extingue, assim as obriga-ções personalíssimas como um todo, edentre elas, até então, também a obri-gação alimentar. Porque era pessoalesse direito e só poderia ser exercidopelo titular em face daquele obrigado.

Mas, constou a transmissibilidadeno novo Código e agora vem a dúvida: comose interpretar esse dispositivo? Um her-deiro menor paga alimentos para a ex-companheira do pai? Vai ter a sua he-rança comprometida e ainda, se passaaos herdeiros a dívida, será de acordocom as forças da herança?; daí três her-deiros menores recebem um imóvel e,ainda terão essa obrigação? É o repre-sentante legal que paga? Como solucio-nar? E se o falecido tiver umas três ouquatro obrigações? Porque, se pensarmosem obrigação para o filho, esta se trans-mite ao espólio, mas o filho já é herdeiroentão ele recebe a herança e a obriga-ção? Essas propostas de mudança do novoCódigo Civil até prevêem esse assunto eentendem que se o credor é herdeiro,ele não leva a transmissão da herança:“desde que o credor da pensão alimentí-cia não seja herdeiro do falecido”.

Enfim, é um transtorno. Gostariaque fosse aplicada a regra na forma apre-

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sentada pela Desª Áurea, na forma apre-sentada por Pontes de Miranda: só setransmitem as obrigações vencidas. As-sim como todas as dívidas se transmi-tem, nem precisaria de lei, o espólio res-ponde pelas dívidas da pessoa falecida,dentre elas a dívida decorrente de uma“obrigação alimentar”. Mas, não coloca-ria essa transmissão do direito de pres-tar alimentos. Esta obrigação continua-ria sendo personalíssima.

Des. Sergio Cavalieri FilhoCreio que o artigo 1.700 transfor-

mou a obrigação alimentar em obriga-ção previdenciária.

Dr. Ricardo Rodrigues Cardoso Quando o Professor Cahali falou

sobre o problema da prestação alimen-tar entre parentes, refleti muito sobreisso e sobre a necessidade, sobre o ritoque vamos impor a esse tipo de ação.Como Juiz de Família, defronto-me comesse problema. A obrigação de sustentoé extensiva aos pais em relação aos fi-lhos, aos filhos em relação aos pais, aoscônjuges, contudo, entre parentes nãoexiste obrigação de sustento, existe obri-gação alimentar.

Nessa ordem de idéia, quando a leifala em um rito especial, o Juiz é obri-gado a fixar, imediatamente, o pensio-namento provisório, que tem caracterís-tica de irrepetibilidade. Estou trazendoisso porque o senhor falou sobre a ques-tão da intervenção de terceiros, do litis-consórcio e aquela questão toda da im-possibilidade de se levantar essa ques-tão em se tratando de rito especial. Comoo senhor veria se o rito a ser adotadofosse o procedimento ordinário, nessecaso? Alguém poderia indagar sobre aurgência da prestação alimentar. Tería-mos a cautelar, em que se poderia, nes-se caso, mediante uma audiência de jus-tificação prévia, aferir rapidamente anecessidade alimentar, e o juiz, então,fixar alimentos provisionais. Aí resolve-ríamos a questão do litisconsórcio seaplicarmos o procedimento e evitaría-mos, com isso, a questão de um aventu-

reiro ou aventureira (e esse raciocíniose aplicaria também no caso da uniãoestável) a questão de uma pessoa quenão tem necessidade de alimentos, plei-tear e o juiz fixar a obrigação, a pensãoprovisória e ele vai ter que pagar até queaquilo seja definitivamente decidido.Essa questão me deixa muito preocupa-do. Na Vara de Família, na qual sou ti-tular, tento impor o procedimento ordi-nário, embora reconheça que não soumaioria. Mas isso me deixa sempre apre-ensivo. Trouxe essa discussão apenas emfunção do que o senhor falou na oportu-nidade própria.

Dr. Francisco José CahaliEu não veria problema nessa solu-

ção, de acordo até com o interesse daspartes, pois precisamos acomodar o in-teresse dos dois; é um valor adequado,mas desde que seja devido. Não veriaproblema, acredito que vá encontrar umacerta resistência porque seria “contra alei”, mas em São Paulo, eles têm adota-do, por exemplo, na dissolução da uniãoestável, como é minha posição, por ritoordinário. O juiz, de ofício, pode mandarprocessar a ação de tal forma, não pre-cisaria extinguir o processo ou determi-nar o aditamento. Não vejo problema quehaja um pedido, embora por outro rito,para o juiz apreciar a liminar e falar quea partir de então segue o rito tal.

Em São Paulo, como existe a audi-ência do 331 e, muitas vezes, a prova éfeita com expedição de ofício à ReceitaFederal, cartão de crédito, contas etc,os juízes, em algumas situações, nãoadotam o rito especial, mesmo na açãoproposta pelo filho em face do pai. Vári-as têm sido as decisões que marcandoprimeiro uma audiência de tentativa deconciliação para discutir quais são asprovas, para depois dar continuidade aoprocesso. Não se está adotando o ritoespecial porque este nem sempre resol-ve o problema, principalmente em SãoPaulo, onde temos um contingente enor-me de pendências e se deve garantir adefesa ampla nos processos desta na-tureza. Veja o problema: o juiz marca

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audiência pelo rito especial, e todoscomparecem, inclusive com as testemu-nhas, pois a audiência é de tentativade conciliação e instrução e julgamen-to, em que se apresenta a defesa; masse há necessidade de prova de fatosatravés de ofícios, e a própria defesatem direito de pedir ofício a bancos, parasaber a posição da parte contrária, aaudiência é suspensa e não se escutaa testemunha (pois a prova documentaldeve ser produzida antes da prova oral).A maioria das ações, em que na primei-ra audiência se leva testemunha, é adi-ada. As testemunhas perdem tempo enão são ouvidas.

Assim, tem sido comum não seadotar esse procedimento de audiênciade instrução e julgamento. Primeiro sefaz audiência de tentativa de concilia-ção e análise das provas a serem pro-duzidas, como expedição de ofícios.Transforma-se essa ação em um “pro-cedimento comum”. É uma maneira deacomodar o processo ao interesse daspróprias partes.

Dr. Osvaldo Henrique FeiximA sentença de divórcio aludida

no artigo 1.709 deve ser entendidacomo aquela proferida antes do novoCódigo, já que pelo artigo 1.694, nãohá obrigação alimentar entre ex-côn-juges?Prof. Fracisco José Cahali

Já existia, na Lei de Divórcio, essaprevisão, mas para a sentença do divór-

cio, leia-se para a sentença de dissolu-ção do vínculo. Pode ser divórcio ou podeser separação, ou dissolução da uniãoestável. Nesse sentido é esse diploma.Só para lembrar que o fato objetivo denova união, de novo casamento, de quempresta os alimentos não altera a obriga-ção estabelecida anteriormente.

Essa é a idéia, mas ao se provarque o novo casamento leva à redução dapossibilidade, pode-se rever obrigação ali-mentar pelo critério de possibilidade-necessidade.

A intenção da lei, aparentemente,foi deixar claro que o novo casamento, novaunião como um fato objetivo, não alterapor si só o dever de prestar alimentos ou oseu quantum, sendo o inverso em relaçãoao credor, pois se este se casar altera-sea obrigação alimentar que é extinta.

Esse artigo esta sendo revisto nareforma do Código Civil, prevendo o pro-jeto que a constituição superveniente defamília pelo alimentante não extinguesua obrigação alimentar anterior. É aproposta de nova redação ao artigo 1.709.

Assim, essa é realmente a inten-ção do legislador que, em nosso enten-der, mostra-se adequada. Considera-sea constituição de nova família, e tal fato(independentemente do seu modo deconstituição) não deve alterar a obriga-ção anteriormente assumida. .

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82 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

Texto elaborado a partir de transcrição fonográfica depalestra proferida na EMERJ em 9/09/2002.

O conceito de união estável, retra-tado no art. 1.723 do novo Código Civil,corresponde a uma entidade familiarentre homem e mulher, exercida contí-nua e publicamente, semelhante ao ca-samento. Hoje, é reconhecida quando oscompanheiros convivem de modo dura-douro e com intuito de constituição defamília. Na verdade, ela nasce do afetoentre os companheiros, sem prazo certopara existir ou terminar. Porém, a con-vivência pública não explicita a união fa-miliar, mas somente leva ao conheci-mento de todos, já que o casal vive comrelacionamento social, apresentando-secomo marido e mulher.

De acordo com o art. 1.724 do novoCódigo, lealdade, respeito e assistência,bem como, quanto aos filhos, sua guar-da, sustento e educação, são deveres edireitos que devem existir nessas rela-ções pessoais. Tanto o dever de lealda-de quanto o de respeito mútuo, provo-cam injúrias graves, quando descumpri-dos. Paralelamente à deslealdade estáo adultério, quebrando o direito-dever defidelidade. É certo que não existe adul-tério entre companheiros, porém, am-bos devem ser leais. O direito-dever derespeito mútuo é descumprido quandoum dos companheiros atinge a honra oua imagem do outro com palavras ofensi-vas ou gestos indecorosos.

A assistência material abrange oâmbito do patrimônio, principalmentedos alimentos entre conviventes. Nessepasso, a mesquinharia e a avareza con-figuram injúrias de caráter econômico,

No que diz aos filhos comuns, a guardados mesmos tem relação com a possedos pais, em conjunto ou isoladamente.Em caso de separação, essa relação éexercida em decorrência de seu poder-dever familiar (poder familiar), que cor-responde ao sustento – alimentos mate-riais indispensáveis à preservação dasubsistência e da saúde, bem como osrelativos á indumentária e à educação –alimentos de natureza espiritual, ima-terial, incluindo não só o ensinamentoescolar, como os cuidados com as lições,aprendizado e de formação moral dos fi-lhos.

Para aproximar o instituto da uniãoestável ao do casamento civil, inseriu-se um capítulo na Lei 9.278/1996 sobreregime de bens na união concubináriapura. Parte dessa idéia passou para onovo Código Civil, mais precisamente noart. 1.725, semelhante ao art. 5º damesma lei, informa que, não havendoestipulação em contrato escrito, os bensmóveis e imóveis adquiridos onerosamen-te por um ou por ambos os companhei-ros, no período em que durar a uniãoestável são considerados frutos do tra-balho e da colaboração comum, perten-cendo a ambos, em condomínio e empartes iguais. Assim, caso os concubi-nos comprem um imóvel e queiram res-saltar o direito de um maior que do ou-tro, podem mencionar na escritura pú-blica ou no compromisso particular des-sa aquisição um percentual diferente,como, por exemplo,70% ideal do imóvelpara um e 30% para outro. Podem tam-bém, de modo genérico, fazer contrato,programando toda a sua vida econômi-co-financeira, conforme possibilita esse

A União Estável no Novo Código Civil

ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDOAdvogado. Professor Titular de Direito Civil da USP; de Direito Romano e de Direito Civil daUniversidade Presbiteriana Mackenzie/SP ; Professor Titular de Direito Romano e Diretorda Faculdade de Direito da Fundação Armando Alvares Penteado – FAAP.

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artigo. O novo Código menciona, nessepasso, que se aplica no que couber o re-gime de comunhão parcial de bens, con-tudo, trata-se de condomínio, pois o re-gime de bens do casamento é incompa-tível com a natureza fática da união es-tável.

O artigo 1.725 é o único que aten-de à possibilidade de constante muta-ção no patrimônio dos companheiros,inclusive com a possibilidade de aliena-ção judicial para extinção do condomí-nio, o que é impossível em qualquer re-gime de bens onde exista comunhão,regulada pelo Código Civil. Mesmo quese equivoquem os companheiros na aqui-sição de quaisquer bens, as regras paranegociação por contrato escrito entre oscompanheiros encontradas nesse arti-go, podem ser alteradas, modificando-se, por exemplo, os percentuais ou co-tas condominiais entre eles existentes.O mesmo contrato escrito pode ser uti-lizado pelos companheiros para regula-rem outras situações não patrimoniais,relativas à sua convivência.

No que diz respeito à relação comterceiros, entendo que, em instrumen-tos firmados nessas circunstâncias, oscompanheiros devem mencionar a exis-tência da união estável e a titularidadedo objeto de negociação. Caso contrário,serão preservados os interesses dos ter-ceiros, resolvendo-se os eventuais pre-juízos em perdas e danos entre os com-panheiros e aplicando-se as sanções pe-nais cabíveis.

Para efetuar a conversão da uniãoestável em casamento, o art. 1.726 donovo Código Civil determina que as par-tes devem requerê-la ao juiz de direito,que, ante as circunstâncias, decretaráa conversão. Em caso de deferimento

judicial, é feito o devido assento no Re-gistro Civil, dispensando-se dessa for-ma o processo de habilitação para o ca-samento.

Seria mais viável aos companhei-ros a submissão ao processo de habilita-ção não para conversão, mas para ca-sar-se. Isso porque a conversão automá-tica é impossível. Jamais poderia a leimencionar que quem vive em união es-tável, por tanto tempo ou diante de cer-tas circunstâncias, seja casado. Alémdisso, o art. 1.727 do novo Código Civilexplica que no concubinato existe come-timento de adultério quando há relacio-namento de um homem ou de uma mu-lher casados, com quem não é seu côn-juge. Isso porque as pessoas impedidasde casar-se, por estarem separadas ju-dicialmente ou de fato, estão excluídasdessa situação concubinária impura,pois não mantêm qualquer relaciona-mento coabitacional com seu cônjuge.

Uma situação bastante questiona-da é a do casamento de colaterais deterceiro grau (tio com sobrinha e vice-versa), proibida no inciso IV do art. 1.521.Eu sugeri uma futura modificação nesseinciso, de forma a constar, em sua partefinal, que os colaterais estarão impedi-dos de casar-se, não até o terceiro, masaté o segundo grau. Esse inciso, comohoje redigido e vigente, impede a uniãoentre tios e sobrinhas e vice-versa. ODecreto-Lei nº 3.200, de 19-04-1941, quepossibilitava o casamento de colateraisdo terceiros grau (arts. 1º, 2º e 3º), ficourevogado nesse ponto, o que poderá criarum conflito com as pessoas que se casa-rem por essa regra. Esses casamento vêmsendo admitidos desde o advento desse

decreto-lei, pacificamente..

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84 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

Começo a exposição dizendo que não vejo como motivo de

comemoração nem de satisfação a apro-vação do novo Código Civil. Assim comoos Professores Gustavo Tepedino, LuizEdson Fachim e Maria Celina Bodin deMoraes, entendo que o novo Código Civilrepresenta um retrocesso. Os senhorespoderiam pensar: será que essa críticajá não é extemporânea, será que ela nãodeveria cessar já que o projeto foi apro-vado, está na vacatio e entrará em vigorno ano que vem? Na verdade, essa críti-ca é atual, porque devemos tomar o maiorcuidado para não pemitir que na entra-da em vigor do novo Código Civil hajaretrocesso em terrenos nos quais obti-vemos recentes conquistas importantís-simas, sobretudo pelo advento da Cons-tituição de 1988 e também pelos diplo-mas legais que sucederam a Constitui-ção de 1988, como o Código de Defesado Consumidor, o Estatuto da Criançae do Adolescente, a Lei 8.009/90.

Além disso, há outras áreas queprecisam e clamam por mudanças deperspectiva e de metodologia de traba-lho para permitir soluções adequadas aoatual panorama de demanda de tutelajurídica por parte da sociedade. É ver-dade que o código, em alguns pontos, temavanços positivos, mas creio que acodificação como metodologia ou comométodo legislativo não se apresenta deforma suficiente e eficiente para darconta dos atuais problemas jurídicos quetemos que resolver.

A codificação é uma técnicalegislativa desenvolvida a partir do Sé-culo XIX, tendo como precursor o CódigoNapoleão, expressão de uma metodologiaessencialmente burguesa, utilizada para

consagrar os institutos burgueses, porconta da ascensão da burguesia ao po-der e com todas as suas conseqüências.Alguém poderia dizer que vários paísessocialistas, no século XX, adotaram tam-bém a codificação como método e fize-ram os seus Códigos Civis. A codificaçãotraduz uma idéia de estabilidade, umaidéia de completude, uma idéia de ma-nutenção das coisas como elas estão.Essa idéia, essa perspectiva é muito com-plicada em um país que tem tantos com-promissos com a transformação. Vivemosem um país onde o Estado e a sociedadeestão em débito com os seus própriosmembros. O constituinte de 1988 assu-miu diversos compromissos sérios deerradicação da pobreza, de construçãode um país mais justo e igualitário. Aidéia de estabilidade, ou seja, manteras coisas como estão, implica em man-ter os miseráveis na miséria, em man-ter os ricos cada vez mais ricos.

A codificação traz também a idéiade que o Direito Civil seria um direitopróprio para se trabalhar com tipos. Issoé uma idéia muito forte, que contaminao nosso dia-a-dia. Vejam que quandoLarenz diz que a tópica não vai servir aramos do Direito próprios para se traba-lhar com tipos, que seria mais própriodo Direito Público, onde se trabalha comprincípios com maior facilidade, está aíexpressando uma idéia fundamental: deque os princípios não seriam bem-vin-dos no Direito Civil, que o Direito Civil éo direito do Código que dá segurançapara o juiz porque dá aquela solução apriori prevista na moldura do tipo legal,que vem acompanhado da respectiva con-seqüência. É essa a mudança de pers-pectiva que se tem que impor porque alegislação através de tipos não dá contados novos problemas da sociedade, que

Da Filiação no Novo Código CivilFLÁVIO LAURIAProcurador do Estado/RJ. Advogado.

Palestra proferida no Seminário realizado em 09/08/2002

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 85

impõe situações novas, transformaçõesque demandam solução urgente, que olegislador não consegue acompanhar,nem através de medidas provisórias.

Vimos, através da retórica, da ne-cessidade de regulamentação urgente eda morosidade do Congresso, o uso ex-cessivo de medidas provisórias, desde aedição da Constituição de 05/10/88. Enem esse uso excessivo de medidas pro-visórias, o Executivo legislando, foi ca-paz de dar conta, de resolver os novosproblemas, as novas situações que a todahora surgem e a toda hora exigem umdebate profundo e a utilização dos prin-cípios como instrumento fundamentalpara aproximar os interesses em confli-to dos valores estabelecidos. A partir daposição que esses valores ocupam na hi-erarquia estabelecida pela Constituição,ter-se-á a possibilidade de encontrarcom maior facilidade a solução do casoconcreto.

A codificação traz, ainda, umaidéia de completude. O Código Civil nas-ce com a pretensão de ser absoluto, comoo Código Napoleão. O que não está noCódigo, não existe para o Direito Civil.

Essa é a idéia inicial da codificaçãoe é uma idéia ainda muito forte. Nesseaspeecto temos vários problemas, porquequando temos leis especiais que disci-plinam institutos de forma detalhada, deforma atualizada, de forma mais compa-tível com os atuais parâmetros consti-tucionais, surge o Código com a preten-são de completude, criando áreas dechoque que nos vão levar a situaçõesbastante complicadas.

Há pareceres no sentido da incons-titucionalidade de diversos dispositivos,mas o mais importante é ter o cuidadona hora de interpretar as disposições donovo Código Civil, para não se deixar con-taminar pelo seu espírito. Um espíritoque tem muito mais a ver com o Códigode 1916 e com os valores que o Códigode 1916 tutelava, do que com os valoresconsagrados pela Constituição de 5 deoutubro de 1988, que como fonte hierar-quicamente superior de normas jurídi-cas, têm prevalência e não pode ser afas-

tada por nenhuma disposição infracons-titucional. Essa crítica pode parecer umaincoerência, pois vim aqui falar sobre onovo Código e começo criticando a pró-pria edição do novo Código, porém a crí-tica permanece atual por conta dessaadvertência que acabei de fazer às se-nhoras e aos senhores.

É preciso ler o novo Código Civil àluz da Constituição. É preciso interpre-tar cada um dos seus dispositivos de for-ma sistemática, de forma a compatibilizá-lo com os postulados constitucionais.Tendo essa preocupação, acredito queconseguiremos evitar os retrocessos,caso contrário, corremos o risco de an-darmos para trás em vários setores dodireito e da vida privada, que conquista-mos e nos quais avançamos nesses últi-mos quatorze anos.

Uma prova disso é a perspectivacom que o Código Civil trata da família.Sabemos que, no Código de 1916, a fa-mília era uma família organizada emtorno do casamento. O espírito dessafamília monolítica, matrimonializada doCódigo de 1916, permeou o novo Código.Vemos, por exemplo, que a união está-vel foi tratada de maneira bastante su-perficial. A estrutura do Código foi, ini-cialmente, projetada para a família ma-trimonializada.

É preciso voltar os olhos para asbases da família que constituiu o Códigode 1916 e compará-la com as bases dafamília constitucionalizada, da famíliacujos valores estão estabelecidos nosdispositivos da Constituição de 5 de ou-tubro de 1988. Quais eram as caracte-rísticas da família que inspirou o Códigode 1916? Orlando Gomes se referia àfamília pré-industrial, uma família queprovia o próprio sustento, uma famíliaque se constituía em uma verdadeiraunidade de produção.

Nessa perspectiva, o pater era o che-fe dessa unidade de produção e sob seuimpério estavam todos os membros dafamília, não apenas os membros ligadospor laços de sangue, mas todas as pes-soas que viviam e dependiam da produ-ção doméstica, desde o período da es-

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cravidão até o período pré-industrial. Éóbvio que com as transformações, com aindustrialização, com a urbanização dafamília, essa família vai mudando o seupapel, a sua função vai sofrendo umamutação, que vai ter repercussão no pla-no jurídico. Podemos mencionar, porexemplo, uma mudança de perspectivaquando os membros da família passama buscar o sustento fora da família, pas-sam a buscar os meios de prover a pró-pria subsistência nas fábricas, nas ins-tituições de estrutura empresarial.

Um outro momento fundamental éa emancipação econômica da mulher. Émuito mais fácil dominar quando se tema sujeição econômica. Na medida em quea mulher vai conquistando a sua inde-pendência econômica, ela começa a terinstrumentos fortes para resistir à do-minação do marido.

Nada acontece em um estanque.Trata-se de processo longo em que astransformações se verificam e há umconflito de valores permanente.

É interessante ver a função queteve, e falando já de filiação, a classifi-cação legitimidade e ilegitimidade. A dis-ciplina da filiação na famíliahierarquizada e matrimonializada é umadisciplina que gira essencialmente emtorno da filiação legítima, que é aquelaque está ligada ao casamento, a um ca-samento válido. Com isso, criaram-seobstáculos de inegável eficácia à distri-buição de riqueza. Houve uma época queo contato entre as classes maisfavorecidas e as menos favorecidas eramaior, principalmente na família pré-industrial. Na fazenda, onde se produ-zia tudo o que a família precisava para asua subsistência, conviviam os escravos,depois ex-escravos, libertos, capatazes,junto com os filhos do dono da terra, dopater. Sabemos, e os livros de Históriaregistram, que eram freqüentes relaçõesentre os senhores e seus escravos e ex-escravos. (Aliás o problema do assédioaté hoje preocupa; hoje, já sancionadodiretamente). Na época da escravidão,era inclusive uma das formas ordinári-as de se utilizar escravos. Imaginem o

que seria da distribuição de riqueza secada filho do senhor com escrava ou ex-escrava se tornasse herdeiro da famí-lia, se entrasse para a família.

Então, havia o matrimônio e o es-tatuto de acesso ao matrimônio, ao ladoda filiação legítima, como instrumentosfortíssimos que obstaculizavam esseacesso. Era como uma cerca protetora,um campo de força a proteger a família,e protegendo a família, na verdade, es-tava protegendo os valores das elitesdominantes. Com as transformações,isso tudo perde o sentido. Hoje, falar emfiliação legítima e ilegítima, independen-te da Constituição ter estabelecido aigualdade e ter sepultado esse códigodiscriminatório, hoje já não tem maisfunção, já não tem mais finalidade. Hoje,todos os filhos são filhos e pronto. Filhoé filho, tem pai e mãe, independente dequalquer vinculação dessa relação a umcasamento pré ou pós-existente. Então,é com essa visão que vejo a família emfunção da dignidade dos seus membros,como um instrumento de realização exis-tencial de seus membros. É com essesolhos que devemos interpretar, que de-vemos olhar todos os dispositivos do novoCódigo Civil.

De acordo com o princípio da inter-pretação conforme a Constituição, de-vem-se adaptar sempre que possível osdispositivos do novo Código de forma anão violar os preceitos constitucionais.Começo aqui, em inevitável análise maisdetalhada dos artigos, embora tenha mepreocupado em selecionar pontos queachei mais importantes, porque talveznão haja tempo de uma análise maisdetalhada de artigo por artigo. Muitosartigos do novo Código repetem disposi-tivos que já estavam no Código anteriorou em legislação esparsa.

Começamos com o artigo 1.596 donovo Código que diz o seguinte: “Os fi-lhos, havidos ou não da relação de casa-mento, ou por adoção, terão os mesmosdireitos e qualificações, proibidas quais-quer designações discriminatórias rela-tivas à filiação”. Essa redação resultoude emenda do Senado. A redação do dis-

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positivo no projeto original trazia o mes-mo código de discriminação: legitimi-dade/ ilegitimidade. Tratou-se de emen-da para adaptar o texto do novo Código àConstituição. Essas adaptações, todavia,não são capazes de modificar o espírito.Vamos ver, mais à frente que, apesardessas modificações, em vários pontoshá elos que nos conduzem à perspectivamatrimonializada, à perspectiva patrimo-nialista do Direito Civil Clássico.

Há um outro problema no artigo1.596. E aí acho que já é um problema dedimensão argumentiva. Esse dispositivopraticamente repete o texto da Consti-tuição. Vamos encontrar um outro pro-blema do Direito Civil Contemporâneo: aextrema dificuldade que se tem, na prá-tica, de se aplicar a Constituiçãodiretamente às relações privadas. Issoocorre muito por conta do que acostuma-mos a identificar como Direito Público eDireito Privado e a eficácia argumentativasubliminar dessa distinção.

Imaginem a seguinte situação: es-tamos em uma Vara de Fazenda Públi-ca; logo, não haverá nenhuma dificul-dade em anular, por exemplo, um ato dedemissão de um servidor público, casose tenha verificado que não havia sidoobservado o contraditório ou ampla de-fesa no respectivo processo administra-tivo com base no que está na Constitui-ção, no artigo 5º, inciso LV, independentede existir eventual lei ordinária esta-belecendo, para aquele caso, a observân-cia do contraditório e ampla defesa.

Quando transportamos o problemapara uma Vara Cível, a dificuldade deaplicar a Constituição diretamente àsrelações interprivadas é muito grande.Sempre se recorrerá a um dispositivo deconteúdo principiológico, por exemplo oartigo 6º do Estatuto da Criança e doAdolescente ou o art. 6º do Código deDefesa do Consumidor, para resolveruma questão que muitas vezes poderiaser resolvida (por exemplo uma questãode relação de consumo) com base no ar-tigo 170 da Constituição. Enfim, no Di-reito Privado ainda se resiste a isso por-que o Direito Constitucional, como um

ramo do Direito Público, tem lá a suaaplicação restrita. Há certa facilidade deaplicação quando a norma constitucio-nal é expressa, específica tendo umgrau de generalidade menor. Quando anorma constitucional é principiológica,há uma dificuldade flagrante.

A redação do art. 1.596 do CódigoCivil dá a impressão de que haveria anecessidade da intermediação legisla-tiva para a concretização desse valorconstitucional. Tal intermediação é, to-davia, desnecessária. A Constituição seaplica diretamente às relações privadaspor ser fonte formal de normas jurídi-cas. Não é preciso recorrer a maioresinstrumentos exegéticos para se chegara essa conclusão. A Constituição é umafonte formal, hierarquicamente supe-rior a todas as outras, inclusive o que, aprincípio, até excluiria a incidência dalei, porque se a Constituição é superiore está alcançando aquela área determi-nada, qualquer tentativa do legisladorinfraconstitucional de dispor sobre aque-la matéria, seria ineficaz, porque nãopoderia tocar ali por um problema de hi-erarquia normativa, fosse para modifi-car o que o constituinte estabeleceu, fos-se para confirmar.

Vejam o artigo 1.597, com o qualtemos uma preocupação muito grande.O referido artigo trata da presunção depaternidade. Temos algumas situaçõesprevistas que repetem o Código anteri-or, e alguns dispositivos novos que têmpor objetivo disciplinar situações novas,situações geradas pelo avançotecnológico, sobretudo em matéria dereprodução humana assistida. Aqui onosso cuidado tem que ser muito gran-de, porque esse ponto é extremamentecomplexo. Falar em reprodução huma-na assistida implica uma profunda dis-cussão sobre os valores fundamentais daordem jurídica. Todo o avanço científi-co, todo avanço tecnológico só se legiti-mam na medida em que seus resulta-dos servem à dignidade da pessoa hu-mana. Em algumas situações é bastan-te claro, é bastante fácil identificar oque serve e o que não serve. Em outros

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casos, só através do debate, só atravésde uma reflexão mais profunda é possí-vel chegar a uma conclusão a que, nagrande maioria das vezes, não encon-trará unanimidade.

Dispõe o artigo 1.597:“Presumem-se concebidos na constân-cia do casamento os filhos: I – nasci-dos cento e oitenta dias, pelo menos,depois de estabelecida a convivênciaconjugal;II – nascidos nos trezentos dias sub-sequentes à dissolução da sociedadeconjugal, por morte, separação judici-al, nulidade e anulação do casamen-to”.A presunção de concepção, aqui,

estaria ligada à presunção de legitimi-dade. Na realidade, quando o Código de1916 falava em presunção de concepção,“presumem-se concebidas na constân-cia do casamento”, estava fundado naidéia de que a filiação legítima (e esta éa única que importa em uma perspecti-va hierarquizada, patrimonialista) esta-ria ligada ao casamento.

Então, pelo texto do Novo Código, oque importa é saber se houve ou não con-cepção à época do casamento, quandoisso, na realidade, é um ranço dessaperspectiva conservadora.

Quanto aos incisos I e II do artigo1.597, alguns autores costumam falarno prazo de dez meses, outros falam emseis meses, mas, na verdade o prazo éem dia. É preciso ter atenção porque hádiferenças práticas. O prazo em dia seconta dia a dia, o prazo em mês não.Neste se repete o dia do termo a quo, eapenas se avança nos meses. Há umadiferença prática porque o dies ad quemdo prazo vai variar dependendo do prazoter sido estabelecido em dias ou emmeses. Com relação ao inciso I, se o prazoé de cento e oitenta dias e o dies a quo é5 de agosto de 2001, o dies ad quem seráno dia 1º de fevereiro de 2002. Se a leiestabelecesse o prazo em meses, o ter-mo final seria 5 de fevereiro de 2002. Épreciso apenas atenção, porque encon-tro com alguma freqüência alguns atoresafirmando que os prazos em questão são

de dez meses, e de seis meses, respec-tivamente.

Os outros incisos do referido artigovêm tratando do problema da reprodu-ção humana assistida. Aqui, a nossaatenção tem que ser total. No inciso III,o legislador dispõe o seguinte:

“III - havidos por fecundação artificialhomóloga, mesmo que falecido o mari-do”.A fecundação homóloga é aquela

onde só entram os gametas do casal in-teressado na reprodução - o óvulo damulher e o espermatozóide do homem.Há uma discussão profunda sobre o pro-blema dos limites da reprodução huma-na. Uma questão que surge, e aqui o le-gislador está tratando desse problemasó no que diz respeito ao casamento, ése haveria legitimidade na realizaçãodesse procedimento, por exemplo, emuma mulher que não fosse casada nemcompanheira? Nesse sentido, está emtramitação no Congresso Nacional, umprojeto-de-lei que tem por objetivo regu-lamentar a reprodução humana assisti-da. É um projeto que não traz nenhumadisposição sobre Direito de Família. Re-gulamenta apenas o procedimento – es-tabelece normas para a sua realização.Esse projeto foi elaborado de acordo coma Resolução 1.358/92 do Conselho Fe-deral de Medicina. Um problema muitobem analisado pelo Prof. Álvaro Villaça,em artigo que eu tive a oportunidade deler. E o que é que acontece? No projeto,a lei é expressa no sentido de admitir areprodução assistida em mulher não ca-sada e nem companheira. Sobre o tema,há posições e artigos como o do Prof. JoséManuel Soeiro, em que se combate essapossibilidade, afrimando-se que, se acriança tem direito a ter pai e mãe, àmulher solteira não seria recomendá-vel a realização desse empreendimen-to.

Mas só para se ter idéia de comoessa questão é complicada e o debatepode se aprofundar, vamos pensar namulher que optou por não se casar e temo desejo de ter filho - o que é, sem som-bra de dúvida, uma fonte incrível de re-

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 89

alização pessoal, pois tenho duas filhase posso dizer isso de conhecimento pró-prio. Então, seria algo trágico, por outroângulo, adotar uma posição mais radi-cal. Nesse sentido, há uma outra dispo-sição aqui que também merece nossocuidado porque se fala em “mesmo quefalecido marido” e aí vem a pergunta: Épossível realizar o procedimento com opai já falecido do ponto de vista físico?Não me refiro à possibilidade técnica,mas sim à possibilidade do ponto de vis-ta jurídico, de realizar o procedimentocom o pai já falecido. Há uma orienta-ção também contrária nesse sentido ex-pressa no artigo do Prof. José ManuelSoeiro.

No projeto de lei não há uma deci-são expressa do legislador sobre esseponto. E há um dispositivo que, inter-pretado de acordo com a norma do NovoCódigo, pode até autorizar uma conclu-são positiva de que seria possível a rea-lização desse procedimento com o paifalecido, que é a possibilidade (e issoestá previsto no Projeto de Lei, que re-produz a resolução do Conselho Federalde Medicina) de que o marido e a mu-lher estabeleçam, através de um docu-mento escrito, o destino que dariam aomaterial criopreservado, mesmo após amorte. Logo, pode-se deduzir que have-ria a possibilidade citada. Particular-mente, não vejo com bons olhos essasolução. Há um caso, narrado no artigodo Professor Álvaro Villaça, ocorrido emSão Paulo, no Hospital Albert Einstein:uma noiva queria engravidar usandoespermatozóide criopreservado do noivoque havia falecido. A questão foi subme-tida a exame do Conselho Regional deMedicina, que acabou entendendo quenão seria o caso de se autorizar esseprocedimento, o qual não foi realizado.Vejam que a questão é bastante com-plexa. Não vejo com bons olhos e tam-bém não há uma decisão clara do legis-lador aqui, porque a expressão, “mesmoque falecido o marido”, pode significar fa-lecido após o procedimento, mas antesdo nascimento. De qualquer forma, é ocaso de se verificar também a vontade

do marido. O Projeto de Lei, pelo menos,estabelece a obrigatoriedade de umadeclaração formal nesse sentido.

Ainda tratando da reprodução hu-mana homóloga, temos aqui o problemado inciso IV do artigo 1.597 do novo Có-digo Civil que dispõe:

“IV - Havidos a qualquer tempo, quan-do se tratar de embriões excedentári-os, decorrentes de concepção artificialhomóloga”.O que são embriões excedentários?

São aqueles que não são utilizados. Comoé feito o procedimento? Depois da coletado material, produzem-se vários oócitosou pré-embriões que serão depositadosna receptora. É possível que nem todosos embriões sejam utilizados. Os quesobrarem são considerados embriõesexcedentários. Sobre o ponto há uma dis-cussão ampla também, e inclusive, po-sições no sentido de que os embriõesexcedentários devam ser evitados, salvose houver risco para a saúde da mãe,porque ali já haveria o início da geraçãode um ser humano, sendo os seus inte-resses dignos de proteção. Entretanto,o projeto de lei, que trata da reproduçãoassistida, parece ter previsto a possibi-lidade de embriões excedentários, esta-belecendo uma disposição no artigo 11que, embora não esteja diretamente li-gada ao Código Civil novo, diz respeitoao problema dos embriões excedentáriose será útil na identificação das soluçõesdos problemas que virão pela frente. Estáassim redigido:

“Art. 11. As clínicas, centros ou servi-ços podem crio-preservar espermato-zóides, óvulos e pré-embriões”.A crio-preservação consiste na ma-

nutenção dos embriões em nitrogêniolíquido. Trata-se de processo muito caro,ao qual poucas pessoas têm acesso, mas,podemos concluir que o avançotecnológico, deve baratear esse procedi-mento, que pode vir a alcançar, se forpopularizado, uma dimensão que hojenão tem, como aceonteceu com o com-putador, por exemplo, que quando foi cri-ado era um privilégio de poucas pessoasporque custava milhões de dólares. E,

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hoje, está aí ao acesso de muitos.O parágrafo 1º, do artigo 11 do pro-

jeto disõe:“§1º. O número total de pré-embriõesproduzidos em laboratório será comu-nicado aos pacientes para que se de-cida quantos pré-embriões serão trans-feridos a fresco, devendo o excedenteser criopreservado, não podendo serdescartado ou destruído”.Está aí prevista expressamente a

possibilidade de embriões excedentári-os. O legislador, no projeto, está preo-cupado com a proteção da personalida-de desses embriões na medida em queveda a sua destruição ou o seu descar-te. E o que fazer, então, com esses em-briões excedentários? Eles seriam crio-preservados e o casal decidiria o seudestgino. Mas o legislador fecha a possi-bilidade de decisão quando proíbe a suadestruição e o seu descarte e quandoestabelece, no parágrafo 2º, o seguinte:

“§ 2º. No momento da criopreservaçãoos cônjuges ou companheiros devemexpressar a sua vontade por escritoquanto ao destino que será dado aospré-embriões criopreservados em casode divórcio, doenças graves ou de fa-lecimento de um deles ou de ambos equando desejam doá-los”.Seria o caso de imaginar a obriga-

toriedade da doação e “doá-los” significautilizá-los em um processo de reprodu-ção humana assistida heteróloga.

Então, aqui, estamos tocando emum ponto delicadíssimo, porque a con-servação dos embriões excedentários écaríssima. Imaginem a seguinte situa-ção: vamos supor que o casal tenha es-tabelecido a criopreservação por um lapsode tempo e não arque com as despesas.Seria lícito imaginar a utilização dessesembriões excedentários em outras pes-soas? Sem contar com o fato de seremfortes os argumentos dos que defendema vedação desse procedimento. O Códi-go Civil, nesse ponto está, até emsintonia com o projeto, prevendo impli-citamente a possibilidade de embriõesexcedentários. Acho que essa matériamereceria um maior aprofundamento

pelas repercussões que tem no plano dadignidade da pessoa humana.

Trataremos agora de um problemamaior ainda, o da inseminação artificialheteróloga. Dispõe o inciso V do art.1.597:

“V - Havidos por inseminação artificialheteróloga, desde que tenha prévia au-torização do marido”.A própria inseminação artificial

heteróloga é objeto de diversas opiniõesem contrário. Há quem sustente ser con-trária ao direito a própria realização dareprodução assistida heteróloga, aquelaque é feita com gametas de outras pes-soas, que não os do casal. E aí os proble-mas são vários. Não há como negar queo direito à identificação é um direito dapersonalidade. Mas o procedimento, tantono que diz respeito ao doador como aoreceptor, preserva o anonimato de todos.Há a obrigatoriedade de manter-se tan-to o doador como o receptor em sigilo.Eu dôo, não sei para quem vai e quemestá recebendo não sabe de quem veio.Como compatibilizar tal prática com odireito à identificação? E mais, há umproblema de relações incestuosas invo-luntárias. Existe a previsão de limita-ção de doadores gerando pessoas de se-xos diferentes a partir de um determi-nado número de habitantes por região.Mas isso também não elimina, emborareduza, os riscos dessas relações. É claroque se duas pessoas, um homem e umamulher foram gerados através de repro-dução assistida heteróloga do mesmodoador, são irmãos sem saber, então po-dem se conhecer e se interessar um pelooutro, iniciandouma relação incestuo-sa involuntária, com diversos problemasdecorrentes. Mas o Código admite, im-plicitamente, e nesse ponto está tam-bém em sintonia com o projeto - a inse-minação artificial heteróloga.

Quero aqui tecer três comentáriossobre a interpretação do dispositivo, queno meu modo de ver são fundamentais:em primeiro lugar, quando se admiteinseminação artificial heteróloga, a so-lução dada ao problema tinha que ser aadotada pelo Código Civil, não podia ser

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outra. Por que? Sem esse dispositivo, qualé a situação do filho gerado por insemi-nação artificial heteróloga? Ele sabequem é a mãe, mas não sabe quem é opai. Se o pai social, se o marido da mãe,registra o filho, não fosse essa disposi-ção, estaria cometendo uma “adoção àbrasileira” porque a verdade biológica édiferente do que está lá registrado, o queseria algo absolutamente problemático.Portanto, a se admitir a reprodução he-teróloga, o pai tem que ser o marido damãe e não o doador, em hipótese algu-ma. Isso, sem entrar na discussão daquestão do direito à identificação.

O pai tem que ser o marido damãe, e por conta disso (segundo comen-tário), a presunção aqui é absoluta. Ob-viamente, as presunções estabelecidasnos outros incisos podem ser afastadas,pois levam em consideração a verdadebiológica provável. Já no caso do incisoV, o legislador, de antemão, sabe que asolução dada ao problema se distanciada verdade biológica. O legislador sabemuito bem que o pai não é o marido, masestabelece a paternidade sobre o mari-do desde que tenha prévia autorizaçãodeste. Aqui pode surgir umaindagação:a autorização tem que ser por escrito oupode ser verbal, tácita etc? Na regula-mentação do Conselho Federal de Me-dicina, assim como no projeto de lei,qualquer procedimento de reproduçãohumana assistida, pressupõe o consen-timento informado por escrito de ambos:marido e mulher ou companheiro e com-panheira. No caso de a mulher preten-der submeter-se ao procedimento porconta própria, se for casada ou compa-nheira, precisa da autorização do com-panheiro ou do marido por escrito. Mascomo o projeto de lei, por enquanto éainda projeto, há de se levar, aqui, emconsideração que o Código não estabe-leceu exigência de forma, e não estabe-lecendo, por qualquer meio poder-se-iaprovar esse consentimento.

Uma outra questão: e quanto àunião estável? Nesse ponto o projeto delei sobre reprodução humana assistidaé mais avançado que o Novo Código Ci-

vil. Lá há previsão do procedimento porcasal casado e por casal que vive emunião estável. Já o dispositivo do Códigosó se aplicaria, numa primeira leitura,ao casamento. Mas vejam, ele tem queser aplicado também à união estável. Epor quê? Não por eventual alegação deequiparação ou de igualdade entre ca-samento e união estável, pois, como sesabe, são institutos diferentes, mas, so-bretudo, pela igualdade entre os filhos,advindos do casamento e da união está-vel. Porque, caso contrário, a conclusãoseria a seguinte: o filho advindo do ca-samento, é filho do marido da mãe; ofilho advindo da união estável, é filho debanco de sêmen, o que criaria uma si-tuação discriminatória, sem qualqueramparo. Dessa forma, em se tratandode reprodução heteróloga - isso é fun-damental, porque em uma reproduçãohomóloga não há problema, pois o pai vaiser sempre o companheiro - , o proble-ma é grave, porque se não se puder che-gar a uma conclusão jurídica de que opai é o companheiro da mãe, a verdadebiológica apontará para outro caminho.

E aqui temos um outro problemaque exigirá um esforço exegético, que équando se fala em inseminação artifici-al heteróloga. Pode se ter a impressãode inseminação em que se está usandoo material de outro homem, porém tam-bém há possibilidade de usar materialde outra mulher. E, aliás, havia me re-ferido, há pouco, à possibilidade de ocasal dispor e determinar quando osembriões excedentários seriam doados.Se eles serão doados, o serão para umoutro casal e o óvulo, logo, não será dareceptora. Então é preciso se interpre-tar isso para dizer: quem será a mãe?Deve ser considerada mãe a mulher ouacompanheira, porque seria desrespei-tar os princípios constitucionais aplicaresse dispositivo para considerar a pre-sunção aplicável apenas ao marido. Pode-se dizer que aqui temos duas presun-ções absolutas. E, como se sabe, presun-ção absoluta, na verdade, não é presun-ção, apenas é um delimitador da hipóte-se de incidência da norma jurídica. Na

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reprodução humana heteróloga, pai emãe serão o casal receptor, sempre, emqualquer situação. Mas, claro, desde quehaja o consentimento. E aí pode-se per-guntar: Mas e o consentimento da mãe?É pouco provável que a mulher se sub-meta ao procedimento sem o seu con-sentimento. Creio que seria algo dispen-sável, para efeito de determinação damaternidade, salvo se provasse que foiforçada. É uma situação um pouco difícilde acontecer, mas de qualquer maneirasão questões que ainda desafiam um de-bate muito mais amplo, um debate queultrapasse as fronteiras do Conselho Fe-deral de Medicina. Não há dúvida que aopinião médica é de fundamental impor-tância aqui, mas é preciso se ampliar essedebate, é preciso colocar nesse debateos trabalhadores do direito e os demaissegmentos da sociedade.

Temos aqui no art. 1.598 uma so-lução que o legislador deu para um pro-blema que tinha o Código de 1916, que éo problema do conflito de presunções.Quando se estabelece a presunção depaternidade de um filho no momento emque ele nasce a partir de cento e oiten-ta dias do início da convivência ou atétrezentos dias após a extinção, a sepa-ração, cria-se a possibilidade de haverum conflito de presunções. Porque ima-ginem, se a mulher, eventualmente, nãorespeita aquele prazo dilatório entre umcasamento e outro e vem a ter outro fi-lho que nasce a partir dos cento e oiten-ta dias do segundo casamento, mas ain-da dentro dos trezentos desde a disso-lução do primeiro, vamos ter aí duas pre-sunções apontando para pais diferentes.Então o que acontece? O legislador re-solveu essa questão, no artigo 1.598:

“Salvo prova em contrário, se, antes dedecorrido o prazo previsto no inciso IIdo art. 1.523, a mulher contrair novasnúpcias e lhe nascer algum filho, estese presume do primeiro marido, se nas-cido dentro dos trezentos dias a contarda data do falecimento deste e, do se-gundo, se o nascimento ocorrer apósesse período e já decorrido o prazo aque se refere o inciso I do art. 1.597”.

Na doutrina já se argumentava pelainexistência de presunção, cabendo aojuiz aplicar as provas que resultarem dainstrução e isso sempre, pois a presun-ção é relativa. Mas há quem sustente apresunção em favor do primeiro marido.O Código Alemão coloca a presunção emfavor do segundo, mas creio que a nossasolução, do ponto de vista da probabili-dade, está mais perto do acerto, pois agestação normal dura de 30 a 32 sema-nas, quando o filho é considerado nasci-do a termo. Antes disso, a probabilidadeé menor porque se trata de uma situa-ção excepcional. Então, acho que o le-gislador, aqui, andou muito bem.

Sendo assim, as questões princi-pais, no meu modo de ver, já foram abor-dadas, razão pela qual agradeço a aten-ção de todos e aguardo, ansiosamente,os debates.

DEBATES

Des. Maria Raimunda TeixeiraProf. Flávio Lauria ressaltou a im-

portância das normas da ConstituiçãoFederal, que vigoram desde de 1988 erealmente elas são de realce, tanto as-sim que há uma corrente doutrinária quechama de direito constitucional da fa-mília, o qual vem sendo aplicado larga-mente entre nós e o fundamento princi-pal da aplicação dessas normas é o prin-cípio da dignidade humana, aliás quetambém se espraiou pelos outros setoresdo Direito Civil e vem sendo aplicado lar-gamente, inclusive no Código de Defesado Consumidor. O princípio da dignida-de humana eu diria que é a síntese daética, da moral e dos bons costumes. Re-centemente, houve uma reunião de ju-ristas mineiros preocupados com esta si-tuação que trouxe o código no ramo dodireito de família. Eles se reuniram paraestudar a questão da ética e da moral ea prevalência desses valores no âmbitodo direito de família. E chegaram à con-clusão de que hoje deve prevalecer a éti-ca. Aliás, li um artigo muito importantedo Prof. Rodrigo - que, além de advoga-do, é psicanalista e presidente do Insti-

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tuto Brasileiro do Direito de Família -em que ele ponderou que já é hora deressaltarmos cada vez mais a ética e ob-servarmos que a moral hoje não é o fatorpreponderante para a aplicação do Di-reito de Família. Ele até ressaltou aquestão – perdoem-me o posicionamento,mas concordo com ele - da orientaçãoque foi dada com relação à guarda dofilho da Cássia Eller, entendendo que aquestão foi olhada pelo ponto de vistaético e não pelo ponto de vista moral. Sefosse pelo ponto de vista moral, a guar-da da criança seria concedida ao avô,mas a ética e considerando o maior in-teresse do menor, fez com que o juiz con-cedesse a guarda à companheira daCassia Eller.

Então ele trouxe ao palco um pen-sar que é uma realidade. Temos hojeque nos preocupar com os novos hori-zontes, com a nova realidade que nosapontam os ramos do direito de famíliae, como operadores da lei, não retroce-der no tempo e aplicarmos a lei de acor-do com a realidade da sociedade.

Uma questão também muito impor-tante que o professor ressaltou é a ques-tão da igualdade dos filhos. Esta igual-dade dos filhos também vem sendo pra-ticada desde o advento da Constituição.Filhos são iguais qualquer que seja anatureza. Às vezes o novo códigoclaudica, como ele próprio ressaltou,esquecendo esta igualdade que já foipreconizada pela Constituição há dozeanos atrás e ainda descamba algumasvezes para o lado do patriarcado. Os fi-lhos são iguais qualquer que seja a na-tureza e tal é o alargamento desta igual-dade que hoje também a sociedade sepreocupa com os filhos, as crianças mar-ginalizadas. Temos o Estatuto da Crian-ça e do Adolescente, que é uma leimaravillhosa e que vem ajudando a to-dos os que labutam na questão da cri-ança marginalizada. Ele deu rumos paraque essas crianças pudessem ser assis-tidas, acolhidas, agasalhadas. Ontem,estive participando de uma mesa, sobreética no Direito, na aplicação da lei ena família, onde foi abordada uma ques-

tão relevantíssima. É a questão da enti-dade familiar a ser enfocada de uma for-ma mais ampla para que nela sejamintroduzidas também aquelas situaçõesdas mães substitutas, das mães volun-tárias, que já constituem uma realida-de entre nós, e que não podemos desco-nhecer. Então, elas também constituementidades familiares e os filhos destascriaturas que são arranjos sociais, masque têm validade porque a lei prevê,merecem tanta proteção quanto os de-mais filhos, quanto os filhos nascidos domatrimônio, quanto os filhos nascidos deuma união estável, quanto os filhos nas-cidos de um concubinato, enfim, são ci-dadãos e merecem igual proteção.

Queria, apenas, indagar ao profes-sor uma questão, que me resta dúvida,da imprescritibilidade das ações de es-tado. As ações de estado, como sabemos,desde o advento da Constituição, vêmsendo consideradas imprescritíveis. Al-gumas das correntes a favor da impres-critibilidade, entendem que toda e qual-quer ação de estado é imprescritível.Como sabemos, a ação negatória de pa-ternidade possuía prazos curtos, peque-nos, que aliás, não eram de prescrição,mas sim de decadência, isso em rela-ção ao Código. O prazo para a propositu-ra da ação negatória foi revogado, inici-almente pelo Estatuto da Criança e doAdolescente, pois isso ficou sedimenta-do entre nós e posteriormente por umasúmula do Supremo Tribunal Federal.Agora o próprio código já faz menção ex-pressa de que a ação negatória de pa-ternidade é imprescritível. Por outrolado, o artigo 1.604 do Código Civil, re-produzindo o artigo 348 do código ante-rior, prevê a possibilidade de que sejaproposta a ação por quem tenha inte-resse econômico e moral contra o regis-tro de nascimento de qualquer pessoa.Mas ele condiciona a que esta proposi-tura da ação seja dirigida no sentido deque se demonstre o erro ou a falsidadedo registro, quer dizer ele já delimita ashipóteses em que isso é possível. A ques-tão que indago ao professor é a seguin-te: há esta possibilidade, como o próprio

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código prevê e como já viemos pratican-do no nosso dia-a-dia forense: terceiroajuíza uma ação pretendendo impugnara paternidade de alguém uma vez queele esteja investido de interesse jurídi-co e moral. Então, considerando que ocódigo se orientou quase que totalmen-te pelo princípio da paternidade biológi-ca e hoje a orientação é no sentido deque se deve prestigiar cada vez mais apaternidade sócio-afetiva, considerandotambém a segurança das relações jurí-dicas e considerando que algumas pes-soas ajuízem tais ações por interessesquase que exclusivamente econômicos,indago se não seria a hipótese nessescasos de ajuizações por terceiros, de seestabelecer prazo para esses ajuizamen-tos de ações.

Prof. Flávio LauriaA pergunta é muito boa, inclusive

acabei não tocando nesse tema porqueo tempo foi insuficiente. Mas essas ques-tões da impugnação da paternidade e dainvestigação da paternidade sofreramuma interessante evolução. O sistemacodificado de 1916 era o da limitação dalegitimidade, no qual só o marido podiaajuizar a ação de contestação . O prazocurtíssimo e as causas taxativamenteprevistas. Esse era um sistema terrível.A justificativa era a manutenção do po-der do pater, só ele podia decidir. E ointeressante é que uma das primeirasteorias para justificar a presunção depaternidade era a que explicava a pre-sunção a partir do direito de acessão. Opater, dono da mulher, teria direito àpaternidade dos filhos por serem esteso fruto da mulher.

Com o tempo houve progressos e ajurisprudência hoje admite tranqüila-mente a investigação independente dacontestação da paternidade. Todavia, noque diz respeito à medida adotada porterceiro, vários são os ângulos sobre osquais a questão tem que ser avaliada.Por exemplo, sob o ângulo da imprescri-tibilidade. Em primeiro lugar ressalve-se que, na verdade, não se trata de pres-crição, mas sim de decadência, como

bem lembrou a Desembargadora MariaRaimunda, o que demonstra que nesteponto o legislador cometeu uma incoe-rência. Na Parte Geral, preocupado como aspecto técnico, o lgeislador adotouuma redação diferente daquela usadano Código de 1916. O Código anterioradotava uma perspectiva concretista daação, ao proclamar que a ação estariasujeita à prescrição. O legislador atualfez como o Código Alemão de 1896, es-clarecendo que o que prescreve é a pre-tensão, o que hoje também se questio-na, pois, na verdade, a pretensão sub-siste à consumação da prescrição. Aprescrição atinge, na verdade, a eficá-cia da pretensão. Mas, provavelmente,daqui a cem anos, quando tivermos umcódigo proclamando a prescrição da efi-cácia da pretensão, já se terá chegado aoutra conclusão. É por isso, dentre ou-tros motivos, que a codificação é umaopção bastante questionável. Além dis-so, o legislador teve o cuidado de, aindana Parte Geral, distinguir prescrição dedecadência, corrigindo outra deficiênciatécnica da codificação do século passa-do. Mas, no que tange à impugnação dapaternidade, no Livro do Direito de Fa-mília, manteve o erro ao mencionar comoimprescritível um direito que, em reali-dade, não estaria sujeito à decadência(considerando que não existe previsãogeral de decadência, basta que a lei nãoestabeleça prazo na hipótese para quetal efeito naturalmente ocorra).

O Tribunal de Justiça do Rio Gran-de do Sul, por exemplo, vem aplicando oprazo de decadência na impugnação dapaternidade quando se verificar que umaeventual sentença de procedência dopedido seria prejudicial ao filho, à cri-ança, por conta do princípio do melhorinteresse. Vejam como a questão ganhauma outra dimensão. Embora não sejanegado o direito a impugnação, não se-ria aconselhável deixar a criança sempai. Não foi apenas uma decisão, há vá-rios precedentes do Tribunal de Justiçado Rio Grande do Sul neste sentido, oque caracteriza uma orientação. Eu achoque essa orientação se aplica à investi-

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gação por terceiros. Em primeiro lugar,não pode de maneira nenhuma, desteprocesso, resultar uma afronta ao prin-cípio do melhor interesse da criança e,de maneira nenhuma, a solução podeser orientada a partir de interessesmeramente patrimoniais, até porque aConstituição promoveu a despatrimoni-alização do Direito Civil. Despatrimoni-alização como a substituição do patrimô-nio pela dignidade da pessoa humana,como valor central da ordem jurídica.Então, nessa questão, os valores exis-tenciais também têm que estar em pri-meiro lugar.

Em resumo, temos que trabalharcom princípios, com valores, aproxima-ção e dissociação de valores e adotar asolução para cada caso, de acordo com ahierarquia de valores estabelecida pelolegislador constituinte.

Drª Conceição MousnierDesejo fazer uma dupla provocação,

tanto ao Prof. Álvaro Villaça, quanto aoProf. Flávio Lauria. Ao primeiro, porquejá o conheço de longas datas, acompa-nho as suas manifestações públicas eos seus artigos e sei que ele tem umgrande apreço pela família, pela moralda família e ao mesmo tempo um largoentendimento do que seja essa moral,um entendimento inovador, de acordocom os novos postulados modernos, cons-titucionais e da praxis do mundo moder-no e um grande apreço pela mulher.Então, com uma certa preocupação - semquerer ressuscitar a piada portuguesa -no que diz respeito à virgindade (que foiretirada do novo Código Civil a entrarem vigor, como causa de erro essencialpassível de anulação do casamento) sa-bemos que a ideologia do patriarcado, noque tange à educação diferenciada dosgêneros, atingiu o ápice do seu amadu-recimento nesse artigo 1.557, que reti-rou do elenco das causas de erro essen-cial o fato de não ser virgem a nubente.Mas, ao mesmo tempo, já existem vozesque estão interpretando o artigo 1.557,inciso I, no que diz respeito à identida-de da nubente, à sua honra e boa fama,

a situação também de erro essencialsobre pessoa. Sabemos que para certossegmentos sociais, dificilmente a virgin-dade da mulher será importante para onoivo nos grandes centros urbanos etc.pela revolução dos costumes. Agora, emalguns segmento sociais o interior doBrasil ou em alguns segmentos religio-sos - e falo aqui com maior respeito emrelação a tudo isso - o fato de não servirgem a mulher assume relevância; ojuiz tem que ser o intérprete para todaa população brasileira. Em muitos seg-mentos religiosos, o desconhecimento dodefloramento da mulher será muito sé-rio porque pregam e seguem a práticade não existir sexo antes do casamento.Então o defloramento da mulher ignora-do pelo marido, pertencente, por exem-plo, a esse segmento religioso, poderiadar margem a ele a entender insupor-tável a vida em comum no momento emque descobre o desvirginamento. O novoCódigo Civil tem inúmeros defeitos, mastambém é digno de muitos aplausos emvários aspectos. Entendo que o “grandebarato” do Código Civil moderno, que vaientrar em vigor, é o fato de conseguirdiscernir que a honorabilidade da famí-lia não se prende à virgindade da mu-lher. Uma coisa é a virgindade da mu-lher, que não está mais contemplada noelenco do art. 1.557 e outra coisa é amoral da família, a respeitabilidade doscônjuges, a sua honra, a sua boa fama,que continuam sendo prestigiados pelolegislador.

Então gostaria que Vossa Excelên-cia conciliasse essas duas questões.Com relação ao Prof. Lauria, tive o pra-zer de conhecê-lo fisicamente e acho queVossa Excelência tem uma grande van-tagem, por conciliar a maturidade do pla-no das idéias à sua extrema jovialidadebiológica. Então isso é uma grande van-tagem: amadurecido no plano das idéi-as e muito jovem e com muito tempo ecom muito gás ainda para refletir e con-tribuir para o avanço da ciência jurídi-ca. E consegui apreender a sua sensibi-lidade com relação à criança quandoVossa Excelência, ao se referir ao pra-

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zer, à realização que é vinda dos filhos,não se referiu à maternidade - é muitocomum se ouvir falar, e realmente con-sidero que a maternidade é a maior re-alização da mulher, pois coloco a mater-nidade acima até da realização profissi-onal, dentro da minha ótica e referindo-se à paternidade. Como é realizador serpai, trazer filhos, saber consagrada a suadescendência, saber que vai deixar umlegado para as próximas gerações.

Então queria saber de Vossa Exce-lência, dentro dessa sensibilidade, comrelação à filiação: o que o senhor me dizquanto ao princípio de igualdade abso-luta, sem qualquer possibilidade de dis-criminação, no que diz respeito à filiaçãoincestuosa - não expressamente contem-plado na redação final do Código Civil,apesar de previsto no projeto - o que osenhor entende quanto ao melhor inte-resse da criança no tocante à filiaçãoincestuosa? Deixo aqui uma indagação:Será do melhor interesse do filho inces-tuoso ver declarado na sua certidão denascimento que ele é fruto dessa filiaçãoincestuosa? Será que esse é o melhorinteresse da criança? Tenho certeza deque ele merece a filiação, tenho certezade que não pode haver discriminação,mas a este primado se levanta um tal-vez ainda maior: o do melhor interesseda criança. Esta é uma dúvida que jáestá ferindo a situação notarial no Bra-sil, pois será de responsabilidade do no-tário colocar ali a filiação incestuosadeclarada na certidão de nascimentoque poderá trazer pruridos de discrimi-nação muito maiores do que se não cons-tar a filiação incestuosa: pai e mãedeflagrando a filiação incestuosa a pú-blico, em um documento público como éa certidão de nascimento. Deixo ao Prof.Lauria essa indagação também.

Prof. Álvaro VillaçaNo caso do respeito à família etc.,

entendo que a pessoa que se casa ou quevive com outra pessoa – vale até para aunião homossexual - deve ter um senti-mento que é o mais importante e que nãodeve ser abalado. Não interessa se é emrazão de virgindade, de impotência, por

alguma doença ou a falta de algum órgãoque possa causar uma situação de de-sespero à outra parte por exemplo.

Então a idéia é a seguinte: primei-ro, foi importante tirar essa situação davirgindade da mulher como sendo umóbice, ou seja, algo que a lei oficializouporque não se fala também da virginda-de do homem, que é outro problema. Avirgindade do homem pode existir de talsorte que a sua inexperiência em umanoite de núpcias – há mais de mil casosjá - pode colocar em derrocada todo ocasamento. Sempre procurei a concilia-ção e percebi que, às vezes, há motivosque são personalíssimos, então entendoque a dignidade da pessoa deve ser con-siderada principalmente no âmbito dapessoa. Não adianta vir alguém de forae dizer: “- você tem que tolerar tal situ-ação”. “- Não é porque a mulher já édesvirginada que tem que romper comuma família”. É uma questão desuportabilidade. A pessoa tendo em vis-ta isso e conforme a criação que rece-beu - pois o ser humano é um animal -se sente um homem traído. A pessoacomeça a desenvolver um verdadeiro fan-tasma que os psicólogos entendem quedeva ser dissipado. É melhor jogar coma realidade e dizer: “- Se você não podeviver com fantasma, não adianta ir aocentro espírita, a não ser para fechar ocorpo, para tirar o fantasma”.

Outro problema: Em uma peça doGarcia Lorca, há um caso em que a mu-lher chega a matar o marido porque elatinha a expectativa de conceber uma cri-ança. Ela acaba tendo um amante. Euouvi casos no escritório em que a pes-soa fala que tem o sonho de ter filhos -é a peça do Garcia Lorca - e não conse-gue. Isso é um problema que chamo deminhoca na cabeça: a pessoa vai pondoisso na cabeça até que a vida em co-mum fica insuportável. Eu cheguei aponto, por exemplo, de em depoimentono escritório, ouvir a mulher dizer quenão podia olhar para o marido que sen-tia coceira. Então perguntei-lhe o por-quê e ela respondeu que era porque elegostava de jazz e ela de música clássi-

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ca. Tem-se que respeitar essa posiçãoda pessoa.

Então, como o casamento e a uniãoestável são contratos, ninguém podeexistir ou persistir na relação contratualsem a affectio maritales et uxoria, ou seja,sem afeição do marido e da mulher esem afeição dos companheiros. De talsorte que nesse ponto, entendo que foiinteligente a retirada dessa situação davirgindade da mulher. Houve um casotambém no escritório em que as pesso-as mantinham relações sexuais antesdo casamento, uns cinco ou seis casosem quarenta e dois anos de advocacia,é meio raro acontecer. Então qual foi oproblema psicológico? A mulher tinha umfilho e ocultou a existência desse filhoao nubente, ao seu companheiro, quedepois viria a ser o seu esposo. E issocausou um trauma no nubente, ele foiao psiquiatra, ao psicólogo, quer dizer, asituação é exagerada, mas o Tribunal deSão Paulo anulou o casamento por errode pessoa, dizendo que o que traumatizouo homem foi o fato de a mulher ter men-tido para ele ou ter escondido que ela,embora fosse desvirginada, tivesse umfilho. Ele queria casar com uma mulherque, embora desvirginada, não tivessefilho. São situações muito subjetivas quetêm que ser analisadas pelo juiz. Ele teráque analisar cada uma delas e não adi-anta decidir. Vai dizer “vamos permane-cer juntos” e cada um vai para um lado, sesepara.

Então, quando não há possibilida-de de uma vida harmoniosa, é sempremelhor que exista a separação. Caso con-trário, fica um palco de desgraças e deincompreensões dentro da casa, causan-do uma vibração negativa incompatívelcom a dignidade humana.

E com relação ao parágrafo 6º, doartigo 227, mencionado pelo Prof. FlávioLauria, na minha tese do concubinatoao casamento de fato, propugnei para oBernardo Cabral colocar esse artigo naConstituição e não é invenção minha.Se pegarem o artigo 202, do Código deFamília, de Idalgo, que é um dos Esta-dos do México, lá cada estado tem umCódigo de Direito de Família, é a tradu-

ção exata que fiz deste artigo e que hojeé o parágrafo 6º do artigo 227. Semprefui a favor dessa completa independên-cia e de que não haja nenhuma restri-ção com relação à igualdade. Mas, naverdade, a igualdade e as proibições jáexistiam. O que esse artigo fez foi justa-mente possibilitar a igualdade dos filhosadotivos. Nenhuma lei anteriormentehavia falado nisso, nem a Lei 6.515 enem a Legislação Específica, que modi-ficou o Código de Registros Públicos, senão me falha a memória, a Lei 6.015/73.

Prof. Flávio LauriaQuanto ao problema de registro de

nascimento dos filhos incestuosos, umapergunta magnífica e bastante difícil. Opensamento sistemático não a resolve.Então vamos aos tópicos, o que interessaaqui. A relação incestuosa é algo absolu-tamente abominável na nossa cultura.Isso é tranqüilo, mas nem sempre foi as-sim, mesmo no mundo ocidental. Comovemos no filme “A Rainha Margot”, es-trelado pela brilhante Isabelle Adjani –no qual é retratada a matança da noitede São Bartolemeu, promovida porCatarina de Midicis (que depois virou en-redo de duas escolas de samba do Rio deJaneiro) a relação dos irmãos entre si, amãe com filho etc. (e naquela época nãohavia os recursos anticoncepcionais quetemos hoje). Imaginem a confusão.

Então, temos que a relação inces-tuosa é incompatível com a nossa cultu-ra, é reprovada de forma grave pela nos-sa cultura. Esse é um ponto. Aí, a pri-meira pergunta que temos que fazer:Tudo que é reprovável pela nossa cultu-ra merece ser oculto, merece ser com-batido (porque a cultura também está empermanente mutação)? Uma filiaçãoincestuosa se percebe na própria certi-dão de nascimento, não precisa de ne-nhum outro documento pois pela sua lei-tura se percebe que, por exemplo, o paie o avô paterno são a mesma pessoa. E apessoa gerada dessa relação terá pro-blemas por conta deste rótulo: “filho deuma relação incestuosa”.

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Agora, qual é uma das característi-cas do estado civil? O estado civil é oponívelerga omnes e por isso é público, está noregistro, todos têm possibilidade de conhe-cer. Haveria um inegável interesse de ter-ceiros a proteger, e aí entendo que exis-tam outros desdobramentos.

Porque a nossa cultura reprova ve-ementemente o incesto, essa filiaçãodecorre de uma relação, provavelmen-te, doentia. E aí terão outras repercus-sões no que diz respeito ao futuro da cri-ança, isso se ela não nascer com sériosproblemas de saúde, pois a possibilida-de do encontro das recessividades émuito grande e muitas doenças gravesdecorrem de gens recessivos. E como ficao interesse das outras pessoas de co-nhecerem ou reconhecerem esse esta-do de filiação? Porque se o estado é ergaomnes, tanto ele é oponível, quanto sepode dele conhecer, justamente pelaoponibilidade.

Não há dúvida que por mais que arelação seja incestuosa, o pai e a mãeserão os sujeitos da relação incestuosa.A uma primeira vista, estou tendendo aconsiderar que a informação do registroé relevante, até por uma razão: não pos-so afirmar aqui, com segurança absolu-ta, que esconder este fato seja o melhorpara aquela criança. E é só isso que mefaz chegar à essa conclusão preliminar.O que garante que ocultar este fato dasociedade vai ser melhor para a crian-ça, para aquele futuro indivíduo? O fatoninguém apaga, o fato vai acompanhar acriança para o resto da sua vida, querqueira, quer não. Não sou psicanalista,mas talvez não seria melhor que essacriança desde cedo pudesse trabalharcom isso, desenvolver isso, resolver oproblema?

Talvez lidar com isso desde cedoseja melhor. Como vamos saber? Pos-so dizer o seguinte: tenho essa con-clusão preliminar aqui, com base nes-sa especulação que acabei de apresen-tar aos senhores de que a princípio, ocorreto seria constar do registro, con-tudo acho que o debate precisa serampliado, inclusive interdisciplinar-mente.

Drª Conceição MousnierA lúcida inteligência de Vossa Ex-

celência caminha por uma estrada queé apontada por muitos, mas a psicologiauniversal entende que o melhor interes-se da criança é visto de forma regional.No Brasil, como Vossa Excelência colo-cou com muita propriedade, é um fatoabominável a relação incestuosa. Então,como os curadores terão que opinar, for-mar seu convencimento e os juízes te-rão que decidir, já me interessei pelalegislação internacional, que dá umasolução parcial para evitar, para aten-der também ao interesse público no sen-tido de que não conste da certidão comode um todo, para a escola etc., mas cons-te no momento, por exemplo, em que essefilho incestuoso pretenda um casamen-to. Então o nubente saberá que ele éfruto porque será extraído, mas essa éuma situação que no Brasil não foi pre-vista legalmente, então será um gigan-tesco esforço da construção pretoriana,mas a legislação espanhola, por exem-plo, resolveu isso assim. Mas, de qual-quer maneira, fico muito feliz que Vos-sa Excelência tenha abordado esse in-teresse público para que não se penseapenas no interesse da criança, pois, noBrasil, apesar de todos saberem do meucarinho pela criança, minha formaçãotoda voltada para a criança, hoje é um“ai, ai, ai” o interesse da criança, e ondefica o interesse público também? Fiqueimuito feliz com a resposta.

Prof. Flávio LauriaTambém fiquei muito feliz com os

seus comentários e elogios, os quaisagradeço, sinceramente. Já tive o pra-zer de assistir Vossa Excelênciapalestrando sobre temas ligados à famí-lia e posso dizer que o mesmo sentimen-to me preencheu. E digo que sempre foium incentivo muito grande para oaprofundamento dos meus estudos naárea do Direito de Família esse contatocom pessoas que desenvolvem tão bem otema como Vossa Excelência. Assimcomo acabou de demonstrar no comen-tário à minha resposta. Resolveu de for-

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ma brilhante a pergunta muito bem ela-borada e a qual também agradeço.

Dr. Ricardo CardosoApenas a título de esclarecimento,

aquele tal enunciado – ao qual o prof.Álvaro Villaça se refere – a Corregedoriafalava em 5 anos para a união estável, epara a sua tranqüilidade, ele nunca foiaplicado aqui no Rio, ficou só como enun-ciado. Pois bem, mas a pergunta não éessa.

Quanto à das inovações do códigoem relação à união estável, verifico queno artigo 1.723, parágrafo 1º, diz que aunião estável não se constituirá se ocor-rerem os impedimentos do art. 521, osmesmos do casamento. Então, em se tra-tando de casamento, temos o casamen-to putativo, que produz efeitos para a pro-le e para o cônjuge que estiver de boa-fé. Pergunto: na medida em que esseartigo impõe os mesmos impedimentospara a constituição da união estável, quecentraliza o instituto da união estávelaté na figura do casamento, poderíamosfalar em união estável putativa (ou seja,imaginemos aquele casal em que o va-rão esconde de má-fé o fato de ser casa-do?) E a mulher, na crença de que estáse relacionando com um homem soltei-ro, vive um período longo, duradouro e,em uma determinada localidade, apa-rentando uma verdadeira família aosolhos da comunidade local. Para ela, quedesconhecia esse impedimento, poderí-amos falar em produção de efeitos, ouseja, ela teria a aquisição de metade dosbens adquiridos na constância daquela“união”, ou seja, produzindo efeitos comose fosse putativo? Essa pergunta é parao Prof. Álvaro Villaça.

Também gostaria de deixar umapergunta rápida para o Prof. FlávioLauria: Em se tratando de investigaçãoe filiação, como o senhor vê uma possí-vel revisão da coisa julgada ante à qua-se certeza do exame de DNA, atribuindoa filiação a alguém, ou seja, imagine-mos um processo de investigação de pa-ternidade definitivamente julgada emuma época em que não se falava em exa-

me de DNA. Hoje temos o exame de DNA,que confere essa quase certeza, masteríamos o óbice da coisa julgada. En-tão, pergunto, como o senhor vê essaquestão. A sua ótica seria possível reverisso frente a esse novo exame que ates-ta a filiação de alguém? De ante mão,já agradeço a ambos pelas respostas queconferirão.

Prof. Álvaro VillaçaAgradeço ao juiz, pois é uma hipó-

tese interessantíssima. Certamente,essa questão da putatividade na uniãoestável, entendo que, em tese, existe,quando não houver impedimento para ocasamento, mas sim, a ocultação do fatode alguém ser casado. Então, nesse caso,sendo casado, existe a putatividade, aíaplica-se o artigo 1.727. Este fala em re-lações não eventuais, quer dizer, cons-tantes, entre um homem e uma mulher,impedidos de casar e tais relações cons-tituem concubinato. Ora, quem está im-pedido de casar? O separado, judicial-mente e de fato. Então, quer dizer, todaa base do desquite ficava completamenteinibido. Quando vai haver, então, a uniãoestável? Só entre viúvo, divorciado e sol-teiro. Quem estivesse separado de fatoou juridicamente não iria poder, pois es-taria impedido de se casar sem o divór-cio. E eu acho que é um desrespeito àdignidade da pessoa humana. Se a pes-soa for católico, pode ser contrária ao di-vórcio, então vai pela separação judicial,que seria a separação temporal do códigocanônico. Desde o código canônico de1917 ao atual de 1983, desde o Decretode Graziana de 1150, a igreja é semprecontrária ao divórcio.

Na verdade, briguei bastante noCongresso para eliminar o efeito desseartigo. A minha posição foi a de acres-centar a esse parágrafo 1° do artigo 1.723o seguinte: “Não se aplicando a incidên-cia do inciso VI, no caso de a pessoa ca-sada se achar separada de fato.” E pa-rava aqui o texto do projeto. Hoje, já temmais: “ou judicialmente”. Essa questão,“ou judicialmente”, achei melhor colo-cá-la nesse parágrafo 1° e eliminar o pa-

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rágrafo 3º, que falava que “também nãose aplica quando houver separação judi-cial”. O artigo estava, praticamente, emdissonância com o outro. Então ficou, no1.521, quem não pode se casar, não podeviver em união estável, a não ser o sepa-rado de fato e judicialmente. Então, so-brou o concubinato adulterino, que é odo artigo 1.727, acho que aí se aplica asúmula 380. Agora, enfrentando a ques-tão da putatividade, se a pessoa escondeo fato de ser separado, vamos supor queé divorciado, solteiro ou viúvo e vai vivercom uma pessoa, e é separado de fato oujudicialmente, a união estável está legi-timada, pois o separado judicialmente ede fato podem viver em união estável. Masessa omissão implicaria, vamos dizer as-sim, o fato da possibilidade de o outro seseparar alegando esse motivo. Então es-taria ele de boa-fé, o outro de má-fé, masno sentido de rescisão do contrato, nãochega nem a ser rescisão, seria a que-bra da boa-fé objetiva nas tratativas docontrato, porque o fato é anterior à vidaem união estável. Aí aplica-se aquele ar-tigo que está na Teoria Geral dos Con-tratos, que é o 422, que dispõe que “Oscontratantes são obrigados a guardar,assim na conclusão do contrato, como emsua execução, os princípios de probidadee boa-fé (que é a objetiva). Não é umaboa-fé estado de espírito – “eu, acho queestou agindo corretamente” - mas a ob-jetiva, quer dizer repudia-se o mau com-portamento na realização do contrato.Esse mau comportamento seria causa,no casamento, de anulação; no caso daunião estável, uma causa de desligamen-to pleiteando direitos na putatividade.Agora, se houver na situação da pessoaque é casada e que oculta deste fato, aísim vai haver a putatividade quer dizer apessoa é casada e vai viver em união es-tável e diz que é solteira ou é separadajudicialmente. Aí, então, cabe a putativi-dade também na união estável.

Prof. Flávio LauriaTrata-se de uma questão cuja res-

posta sabemos, mas é difícil de funda-mentar. Antes, não havia prova segura,

hoje tem-se a certeza, tem-se a infor-mação, através do exame de DNA. Porconta disso, todas as partes em que onovo Código ainda se preocupa em vin-cular valoração de prova em matéria deinvestigação de paternidade, hoje soamaté engraçadas por causa do advento doexame de DNA.

Poderia surgir algum problemaquando há recusa em se submeter aoexame. Nesse caso, pode-se mencionara orientação de considerar-se a recusade fazer o exame como confissão, embo-ra haja posição em contrário da Prof.Maria Celina Bodim de Moraes, no sen-tido de que os direitos à identificaçãoda filiação e do estabelecimento da cer-teza da filiação, estão ligados à perso-nalidade e que, no caso de recusa, émelhor procecder-se à coleta do materi-al coercitivamente, através, até, de apa-rato policial, se for necessário. É claroque tal procedimento vai causarincômodo para o sujeito, mas seria umaviolação menor, atingiria um valor me-nor do que o direito da personalidade doautor de saber quem é seu pai. É claroque uma medida tão dura só se justifi-caria se houvesse indícios fortes da pro-babilidade da paternidade.

Mas, no que diz respeito à pergun-ta, como resolver a questão? Uma análi-se fria e sistemática do texto da lei, im-pediria a revisão do julgado, porque oprazo da rescisória já teria se esgotadoe não haveria mais o que fazer. Ocorreque neste ponto temos um valor consti-tucional primário tutelado. Preocupei-meem dizer que é preciso estabelecer umanova forma de pensar as questões deDireito Privado - e aqui estamos até tra-tando uma questão de processo civil, ramodo Direito Público. É preciso pensar de umaforma diferente, romper, à princípio, comas soluções apriorísticas, não que se es-tejam renegando as soluções sistemáti-cas, do pensamento sistemático (pois sema segurança que o sistema oferece consi-dero impossível viver em sociedade), masé preciso nos acostumarmos a usar o bomsenso para decidir.

Qualquer norma jurídica encerra

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 101

uma decisão. O legislador quando editauma norma está decidindo, ele estáprestigiando um interesse em detrimen-to de outro, sempre alguém ganha e al-guém perde com uma disposição legal.A norma, como diz o Prof. Tércio SampaioFerraz, como ato de comunicação, é umadecisão.

Precisamos, portanto, pensar tam-bém do ponto de vista tópico. Estamostutelando um valor constitucional primá-rio. A segurança da coisa julgada é fun-damental também à sociedade. Sem asegurança da coisa julgada, não se con-segue organizar minimamente um siste-ma de composição de conflitos. Sem elanão se pode, a rigor, compor o conflito.Ele permanecerá sempre efetivo, sempre

presente. A segurança da coisa julgadaé fundamental. Mas a segurança da coi-sa julgada também está inserida em umcontexto hierarquizado de princípios. Elatem que realizar valores. Se da aplicaçãode qualquer norma jurídica, resultar aviolação dos valores primários tutelados,deve-se afastar a interpretação que con-duza a esta decisão e interpretar-se deforma a harmonizar a decisão com os va-lores constitucionais primariamente tu-telados. Entendo que nesse caso seriapossível a revisão por conta desses argu-mentos. Trata-se de uma questão deli-cada, porque a letra da lei é clara emsentido contrário. Faz-se necessária,

portanto, uma certa flexibilidade..

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A matéria a ser abordada –Juizados Especiais de Família –, é aquelaque na verdade desnuda a alma, por-que, em tal campo do Direito, somos cha-mados, como juízes, a participar dodesmantelamento da entidade familiar.

Ao analisar esses longos sete anosde vigência da Lei 9.099/95, que insti-tuiu os Juizados Especiais, foi possívelobservar a determinação e a habilidadedos Tribunais de Justiça Estaduais que,com muita criatividade aperfeiçoaram,e, porque não dizer (e cito como exemploo Rio de Janeiro), potencializaram o con-teúdo da referida Lei.

Sobre rodas itinerantes, de trânsi-to, do consumidor, do meio ambiente, embarcos, em inóspitas regiões do Amazo-nas, os Juizados resistem, faça chuvaou sopre o vento. É a criatividade mági-ca de uma legião silenciosa de juízesque os opera, e que muito têm feito pararesgatar a cidadania dos excluídos e,principalmente, a imagem do nosso Po-der Judiciário. São atividades que nosfazem transbordar de orgulho, como po-demos vislumbrar da experiência exem-plar dos Juizados Especiais do Rio deJaneiro, o “expressinho” e tantas provi-dências a que só se devem tecer elogiose mais do que isso: fazer a divulgaçãodesse trabalho.

Sem dúvida alguma que essasatividades nos fazem ufanar de orgulhoe nos mostram a tão sonhada face hu-mana do Poder Judiciário. Certamenteque os ótimos resultados e as inúmerasvantagens obtidas com os Juizados Es-peciais Cíveis e Criminais da Justiça tra-dicional foram o marco propulsor queincentivou os legisladores a instituíremos Juizados Especiais Federais da Lei10.259.

Amealhada à experiência necessá-ria com os Juizados Especiais Cíveis e

Criminais, será dado o passo mais sig-nificativo, que é a instituição dos Juiza-dos Especiais de Família. E nesse con-texto, é oportuno lançar uma indagação:quantas pessoas em nosso País gostari-am de regularizar a sua situação famili-ar e não têm acesso a uma Vara de Fa-mília por várias razões?

Tenho certeza de que é uma novajornada, e que ela depende de uma ver-dadeira catequese. No entanto, a nossamaior obrigação não é ver o que estáembaçado ou longe, mas o que está bemnítido perto da nossa mão. Por isso, é dese pensar na esperança que surge emcada um de nós quando nos deparamoscom exemplos alvissareiros como o pormim vivenciado nas férias de julho doano passado. Trata-se de experiênciaauspiciosa do Tribunal de Justiça de Per-nambuco, no Fórum de Recife, na assimdenominada, “Vara do Juizado Informalde Família”.

Esse Juizado informal é formadopor uma equipe de facilitadores, com vi-são interdisciplinar, constituída por psi-cólogos, assistentes sociais, terapeutasfamiliares, que agilizam a atuação doJudiciário. Tive a oportunidade de parti-cipar de uma sessão de sensibilizaçãodirigida por uma psicóloga, em que osjuízes das várias Varas de Família mar-cam audiência para um determinado diada semana e todos esses casais, em vezde serem encaminhados às Varas deFamília, são conduzidos a essa sala es-pecial, chamada de “sala de sensibiliza-ção”, preparada para recebê-los, todosno seu mais alto grau de angústia e afli-ção. São então apresentados ao psicólo-go, ao terapeuta e ao assistente social.

O ambiente da sala é adrede pre-parado, com cores delicadas, ilumina-ção diminuída, ar condicionado e músi-ca suave, no intuito de promover o de-sarmamento dos espíritos que por ali

Juizado Especial de FamíliaFÁTIMA NANCY ANDRIGHIMinistra do STJ

Palestra proferida no Seminário realizado em 13/09/2002

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 103

passam. Nas paredes de ambos os la-dos, são passadas, quase que de umaforma sublinear, transparências, que sãode paisagens repousantes. A palestra seinicia com a participação da psicóloga,que planeia a conscientização do casalno sentido de que os problemas familia-res devem ser por eles resolvidos, sema interferência de outras pessoas.

Ali, eles também recebem informa-ções concernentes à morosidade e àcomplexidade do processo e são incenti-vados, de várias formas, à conciliação. Étambém explorado o aspecto de eles es-tarem frente a frente e poderem con-versar com o auxílio de um mediador oude um profissional especialmente pre-parado, que aponte no sentido de quepoderão sair dali, naquele dia, com acópia da sentença da separação.

O terapeuta familiar explora muitoo desgaste físico provocado pelo ato dereviver as situações conflituosas, porocasião da futura audiência, se aconte-cer, de colheita de provas. Em muitoscasos, esses sentimentos são muito maisacirrados quando se dá o embate da provatestemunhal. Esse reviver de todo aque-le passado que só faz desgastar o pre-sente estimula os ímpetos de violênciae repercute desfavoravelmente, não sóno coração de cada um dos cônjuges,mas principalmente, na vida dos filhos,que passam a ser usados como verda-deiras balas de canhão.

Lembro que há pouco tempo, mes-mo quebrando todo formalismo e os li-mites constitucionais do Superior Tribu-nal de Justiça, e enfrentando até o ris-co de ser considerada uma Ministra re-belde, fiz uma audiência de conciliaçãoem um processo de guarda de famíliano meu gabinete. Convoquei a presençados pais, e cheguei à triste conclusão, eque era a minha primeira sensaçãoquando li o processo, de que a guardadaquela criança não poderia ser dadanem para o pai e muito menos para amãe. Contudo, só tive essa certeza quan-do vi os dois frente a frente discutindo.

E sob esse prisma é de relevo res-saltar que, no nosso sistema legal, os

prazos processuais são absolutamenteincompatível com os prazos emocionais.Não conseguimos saber quando podemosefetivamente decidir, e se devemos de-cidir rapidamente, ou se é melhor dei-xar o processo descansar. Não temosessa sabedoria, e só poderemos ter umaaproximação da decisão ideal se formosauxiliados por outros profissionais queestudam anos e anos e são amplamentetreinados nessas questões.

O trabalho técnico desses terapeu-tas procura demonstrar que os erros equeixas do passado devem ser deixadosde lado. O importante, naquele momen-to em que o casal está se encontrandodentro da Casa da Justiça, é como aspartes querem se preparar e se organi-zar para o futuro. De modo que o estí-mulo à conciliação passa, necessaria-mente, pela consciência de que cada umtem que recuar um pouco para ambosavançarem. Nós, juízes, não temos tem-po físico, na nossa pauta, para expor taisquestões a esses casais.

Com essa modalidade de atendi-mento terapêutico, o casal é conduzidoa priorizar a relação pai e mãe em lugarda relação marido e mulher, com o fitode valorizar o bem-estar dos filhos e ga-rantir-lhes o direito a uma convivênciatranqüila com ambos.

Todos nós sabemos que a psiquehumana ainda mantém compartimen-tos absolutamente inacessíveis. Existemressentimentos, frustrações, recalquesque explicam o comportamento das par-tes e que acabam ornando cada proces-so com características muito particula-res. Com efeito, torna-se imprescindí-vel que o juiz tenha disponível informa-ções técnico-científicas, capazes de tra-zer luzes para que o julgamento seja jus-to e adequado.

Para isso, torna-se primordial tra-çar um perfil do novo juiz que lida comconflitos de família e que precisa, ne-cessariamente, ser moldado de formaque ele se conscientize da adequada pos-tura que deve adotar nesses conflitos, aqual, sem dúvida nenhuma, é de pacifi-cador, de serenador de almas, devendo

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104 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

sempre se despir ao máximo de uma ati-tude moralista ou crítica diante do pro-cesso que está julgando.

Esse intento de modernização, semdúvida nenhuma, perpassa pelo Judici-ário, mas entrecruza-se, necessaria-mente, com a transdisciplinariedade,isto é, a exigência de se agregar ao co-nhecimento outras ciências para a me-lhor aplicação do direito. Assim, o con-flito familiar julgado pelo juiz, mas comelementos fornecidos por profissionaisna área médica ou psicossocial, atingi-rá mais a contento a paz da família.

Hoje, sem dúvida nenhuma, o mo-delo de processo oferecido aos cidadãosque recorrem ao Poder Judiciário é oadversarial, o qual inevitavelmente cau-sa um aumento de sentimentos de der-rota, de impotência em face das vidas emcontenda. Não esqueçam que aquele quesai perdendo na Justiça só faz acrescera tristeza e a sensação de derrota que étrazida com a sentença, porque o casa-mento que se desfaz, que se desmante-la, é uma empresa mal sucedida.

É inegável que a instituição doJuizado Especial pressupõe uma mudan-ça radical no modelo, o que é perfeita-mente preceptível nos Juizados Especi-ais Cíveis e Criminais. Mas, no JuizadoEspecial de Família, precisamos promo-ver, acima de tudo, a mudança de men-talidade dos profissionais que irão atuarnessas Varas.

O impacto do desmonte da famíliacausa mágoas recíprocas e dores inco-mensuráveis, principalmente nos filhos,que a despeito da vontade dos cônjugesde dissolverem os laços, não querem seseparar de nenhum de seus pais. O atojudicial de busca e apreensão de umacriança enternece o coração de todosaqueles que trabalham em uma Vara deFamília, tanto para nós juízes que te-mos que decidir com quem a criançapermanecerá, como também para o Ofi-cial de Justiça, por exemplo, que cum-pre a ordem, e a quem não se tem pres-tado, até então, na grande parte dessePaís, uma orientação técnica especi-alizada, e porque não dizer, até um pre-

paro espiritual que o habilite a auxiliaros contendores e, principalmente, ame-nizar para si os efeitos da gravidade dadiligência, com vistas a diminuir oestresse emocional sofrido pelo desem-penho desse trabalho tão delicado.

Nessa mudança de comportamen-to, precisamos incluir o advogado, figu-ra imprescindível e importantíssima nacena judiciária. Ao refletirmos sobre asua função no mundo contemporâneo,observa-se que ela não pode mais ser ade beligerância, ou seja, não se pode tercomo única solução diante de um relatode um problema jurídico, o imediatoajuizamento de uma ação, e de uma açãoque ainda tenha um pedido de liminar.Tanto o juiz quanto o advogado devemmanter uma postura de conciliador, denegociador ou mediador, o que vem acontribuir para a humanização do Judi-ciário, e propiciar um decorrer do pro-cesso menos traumático, especialmen-te nos conflitos de família.

Ao advogado carece, portanto, a to-mada de consciência de que seu escri-tório pode servir de anteparo ou de salade chegada ao Judiciário. Esse profissi-onal deve investir também na habilida-de de solucionar o maior número de con-flitos possível, só acionando o Poder Ju-diciário quando esgotados todos os mei-os pacíficos de solução.

Por isso, pensa-se que com o JuizadoEspecial de Família, necessitar-se-á deuma estrutura física e pessoal de formaque as partes, ao chegarem ao Tribunal,sejam recebidas e encaminhadas, em umprimeiro momento, a assistentes sociais,de quem receberão um imediato apoiotécnico, que possibilite sejam ameniza-das as emoções que envolvem aquelemomento. O ambiente não pode ser, deforma alguma, aqueles frios corredoresdo Tribunal, onde as crianças assistem,inevitavelmente, àquela cena dealtercação e de pesar que vai ficar grava-da indelevelmente em suas almas, de-turpando sua imagem de Justiça.

Devemos ter cuidado, pois sabemosque o tratamento da família é que vaievitar a germinação da semente da vio-

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 105

lência. Temos que cuidar carinhosamen-te dessas crianças que são levadas porseus pais ao Judiciário, as quais devemser recebidas e encaminhadas para quesejam distraídas e recebam até uma ori-entação técnica do que está acontecen-do naquele momento com os seus pais.

O novo Juizado manteria o mesmosistema judicial de resolver os conflitosde família: processo e procedimento,mas, a sugestão é que se aplicasse oprocedimento sumaríssimo, o qual de-monstrou grande eficiência quando seobedece rigorosamente aos princípiosque norteiam essa lei, que são o da sim-plicidade, informalidade e oralidade.

Evidentemente, que a adoção doJuizado Especial em um único ritosumaríssimo para todos os conflitos queenvolvem as questões de família, como aseparação de corpos, regularização de vi-sitas, separação judicial, guarda, buscae apreensão, pátrio poder, facilitaria so-bremaneira o trabalho dos profissionais.

Nesse sentido, antevemos umJuizado dotado de instrumentos proces-suais que assegurem a tutela cautelar etambém a tutela antecipada, cuja exe-cução seria inserida no seu bojo, sem ja-mais olvidarmos que o direito em litígio éo mais importante e representa um dosmais complexos problemas pessoais davida humana, o mais emocional e o maisromântico de todos os sonhos humanos.

Como sugestão, trago um esboço deprojeto de Lei, que pretende acrescer aaplicação por analogia do Código de Pro-cesso Civil, mais especificamente do art.461, sobre aquela ação de cumprimentode obrigação de fazer, que é hoje umadas mais completas ações que temos noCódigo, porque ela traz dentro dela, me-diante simples petição, providências denatureza cautelar e a possibilidade daantecipação de tutela. Obviamente quenão teríamos a execução e seria um pro-cesso contínuo, como é aquele do art.461, contudo, nesse Juizado, tenho comode suma importância a presença do ad-vogado de ambas as partes, em razão dotipo do direito que está em litígio.

Necessário seria também estabele-cer um limite de valor para que as pesso-

as pudessem ter amplo acesso ao Juizado,o qual deve ser opção da parte, como pos-tula a Lei 9.099, e essa participação doadvogado certamente demandaria na exi-gência de termos uma Defensoria queefetivamente trabalhasse.

O sistema recursal seria mantido,mas teríamos que ter mais um meca-nismo, talvez mais um recurso, paraimpugnar as decisões que versem sobrea antecipação de tutela e sobre as tute-las cautelares que seriam necessárias,como a separação de corpos, busca eapreensão, entre outras.

Importa gizar que, para o início doTerceiro Milênio, devemos dar uma novafeição ao rosto da Justiça, propiciando aocidadão proteção e acompanhamento ade-quado na vivência dos seus conflitos, como mínimo de regras processuais, que de-vem ser as mais flexíveis, de modo a seadaptarem ao caso concreto, mas sem-pre despojadas de todo excesso formal.

É de grande relevo que seja medi-tado a respeito do quanto é difícil duelarcom o formalismo. Imaginem se os cole-gas tivessem nas mãos os limites consti-tucionais em uma ação de investigaçãode paternidade, que apresenta condiçõesde ser julgada procedente, mas que, porfalta da certidão, da publicação doacórdão, ou por falta de uma cópia de umaprocuração, o agravo não pode subir eesse cidadão vai continuar sendo filho detrês pontinhos, como ele mesmo me dis-se: “Por falta desse documento a senho-ra está dizendo que não vai poder subir omeu recurso e por conta desse documen-to, que foi por esquecimento do advoga-do, a culpa não é minha, eu vou continu-ar sendo filho de três pontinhos”.

Não vim aqui, de forma nenhuma,ensinar nada. Vim aqui, com os colegas,que são mais jovens do que eu, meditarsobre essa questão tão importante, que éa questão da família e que talvez seja oponto que devemos abordar com maiscuidado e com isso, certamente, vamosamenizar a questão da violência no país.

Para encerrar, vem a propósito anarrativa da história de um rei que sedizia muito democrático, e vivia na luta

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por aumento de terras para o seu reino.Ele dizia que era democrático porqueoferecia duas opções aos seus prisionei-ros, que poderiam morrer por obra dosarqueiros que o rei mantinha em umcanto de uma sala, ou optariam em sairpor uma porta muito feia, sangrenta,cheia de desenhos de armas, uma portaassustadora.

Durante toda a guerra, nenhum pri-sioneiro escolheu a saída pela porta, to-dos preferiram morrer rapidamente comuma flechada. Quando a guerra termi-

nou, um soldado, que era o seu fiel es-cudeiro, perguntou ao rei o que haviaatrás daquela porta, pois ninguém a es-colhera para sair. O rei mandou que elefosse ver. Ele foi abrindo a porta, deva-garinho e na medida em que abria a por-ta, a sala que era escura, iluminava-secom raios de sol. Ele verificou, então,que aquela, nada mais era do que a saí-da para a liberdade.

Faço, portanto, um convite a todos oscolegas para tentarmos abrir essa porta.

Muito obrigada. .

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Falaremos sobre as relações de pa-rentesco, dando especial ênfase àfiliação, não só por sua grande impor-tância nas relações familiares, mas,principalmente, porque, sua disciplina nanova lei civil enseja várias dúvidas noque respeita a sua aplicação. Como otema é muito extenso, abordaremos oque parece mais importante em termosde inovação, e verificaremos queexatamente essas inovações nos trazem,às vezes, muitas dificuldades na inter-pretação da lei.

Geralmente se indaga como deve-mos encaminhar as soluções, já que nãobasta apresentar os problemas. Cada umdeverá dar a sua própria interpretação?Tem-se discutido muito como encontraras soluções, mas o que parece mais ra-zoável é buscá-las nas diretrizes cen-trais do nosso ordenamento jurídico, quese encontram na Constituição Federal.Em matéria de Direito de Família, a LeiMaior fixou princípios que deverão serrigorosamente observados, na medidaem que traduzem os valores maiores elei-tos por nossa sociedade. Nessa medida,toda a interpretação da lei, toda dúvidadeverá buscar resposta nos princípiosconstitucionais.

Quais princípios constitucionaispertinentes especificamente à matériaque ora abordamos? Primeiro o princí-pio da plena igualdade entre os filhos;esta foi uma das maiores conquistas danova Constituição - estabelecer a plenaigualdade entre os filhos, vedando qual-quer forma de discriminação.

O segundo é o princípio do melhorinteresse da criança e do adolescente,que traduz a doutrina da proteção inte-

gral, elevado ao patamar de norma cons-titucional.

Outro princípio que assume importân-cia, em particular diante de algumas ino-vações trazidas pelo Código Civil de 2002,é o princípio da paternidade responsável.

Dúvidas surgem, igualmente, quan-to à aplicação desses princípios, vistoque, por vezes, a aplicação de um prin-cípio cria uma tensão com um outro prin-cípio. É o que a doutrina tem designadocolisão de interesses. Há uma colisão en-tre dois interesses contrapostos. Sabe-mos (indispensável frisar) que a men-ção acima feita a alguns princípios nãomanteve qualquer sentido de ordem ouhierarquia, uma vez que os princípiosconstitucionais têm (todos) igual força,têm igual valor. A maneira de comporeventuais interesses deverá ser feitaatravés da ponderação entre eles (pon-deração de interesses), matéria da qualtêm se ocupado os constitucionalistas,propondo o adequado equacionamento doproblema, em inegável e relevante con-tribuição para efetivação dos direitosconstitucionalmente assegurados.

Feitas essas considerações iniciais,passemos às relações de parentesco. Deacordo com o Professor Caio Mário daSilva Pereira, mestre de todos nós, den-tre as variadas espécies de relações hu-manas, o parentesco é das mais impor-tantes e a mais constante, seja no co-mércio jurídico, seja na vida social.Qualquer reflexão, por mais rápida queseja, sobre as relações de parentesco nosconduz a ver a procedência dessa afir-mativa. Todo direito de família perpas-sa, necessariamente, pelas relações deparentesco, da mesma maneira que assucessões, em particular a sucessão le-gítima, baseada nas relações de paren-Palestra proferida no Seminário realizado em 13/09/2002

As Relações de Parentesco no NovoCódigo Civil

HELOÍSA HELENA BARBOZAProfessora Titular da Faculdade de Direito da UERJ e Professora Adjunta do Mestrado daUniversidade Estácio de Sá.

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tesco. Bastaria para tanto lembrar quenessas relações está compreendida afiliação, que é estrutural para o Direitode Família.

No novo Código Civil, as relaçõesde parentesco constituem um dos subtí-tulos (Subtítulo II), do Título dedicado aoDireito Pessoal (Título I), do Livro quedisciplina o Direito de Família (Livro IV).Compreendem as relações de parentes-co as relações pessoais que podem sur-gir ao ser constituída uma família, qual-quer família, seja oriunda do casamen-to, da união estável ou da comunidadeexistente entre um genitor e sua prole,que vem sendo denominada “famíliamonoparental”.

De acordo com a nova lei, o subtí-tulo “das relações de parentesco” con-tém cinco capítulos, a saber: “disposi-ções gerais”; “da filiação”; “do reconhe-cimento dos filhos”; “da adoção” e “dopoder familiar”.

Nas disposições gerais, encontra-mos, como já constava do Código ante-rior, uma definição do que é o parentes-co. Na realidade, de maneira muito sin-tética, lembrando a tradicional doutri-na brasileira (que foi toda construída combase no casamento, mas que ainda seaplica evidentemente no que couber),uma vez constituída a família, por forçado casamento (pela união estável ou pelofato da filiação), surgem entre aquelesque a integram várias espécies de vín-culos. Por exemplo, se há um casamen-to, surge o vínculo conjugal, e em de-corrência dele, surge o vínculo da afini-dade e a relação de filiação, que é estri-tamente ligada ao laço sangüíneo, fa-zendo surgir o parentesco.

A primeira novidade, digamos as-sim, é que o parentesco, para efeitos ju-rídicos, passa a ser limitado ao quartograu. Lembrando que essa limitação aoquarto grau já existia para efeitossucessórios, mas não para os efeitos ge-rais de direito. Assim que o Código en-trar em vigor, o parentesco, para todosos fins de direito, passará a estar limi-tado ao quarto grau.

Uma disposição que merece refle-xão de todos, e, em particular, a contri-

buição daqueles que vivenciam o “dia-a-dia” do Direito, é aquela que volta (jáque disposição similar - artigo 332 doCC de 1916, havia sido revogada pela Lei8.560/92) a mencionar expressamenteas espécies de parentesco. Segundo oartigo 1.593: “O parentesco é natural oucivil, conforme resulte de consangüini-dade ou outra origem”.

Primeira observação: a referênciaa “outra origem”, não mais limitando ochamado parentesco civil à adoção, in-dica a preocupação do legislador com ainclusão de dispositivos relativos àfiliação resultante da utilização de téc-nicas de reprodução assistida. Como sesabe, nem sempre a utilização das téc-nicas de reprodução assistida dará en-sejo a um parentesco consangüíneo.Também não lhe tem sido atribuída anatureza de adoção. Parece, assim, quea referência a outra origem estaria liga-da exatamente à possibilidade defiliação, oriunda de utilização de técni-cas de reprodução assistida com doador(heterólogas).

De questionar-se, porém, a utilida-de prática da distinção. Quais são as im-plicações jurídicas ou práticas, senãodidáticas, da manutenção dessa classifi-cação do parentesco? Observe-se o se-guinte: toda a estruturação do parentes-co, parte basicamente da relação defiliação. A filiação, qualquer que seja suaorigem, consangüínea, adotiva ou oriun-da de técnicas de reprodução assistida,não poderá receber juridicamente, por for-ça de norma constitucional, qualquermenção a sua origem, à natureza dessafiliação. O registro civil nada poderá con-signar nesse sentido. Por conseguinte, nãohaverá posteriormente como se identifi-car se aquele vínculo é originário de umarelação puramente jurídica ouefetivamente genética. Essa a razão doquestionamento, aguardando-se contribui-ções no sentido de saber se, além de umaquestão meramente didática, esse dispo-sitivo terá algum outro tipo de aplicação.

A afinidade, por sua vez, traz tam-bém uma inovação, ao incluir o compa-nheiro. O vínculo da afinidade é aquele

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que se forma, de acordo com o Código de1916, entre um cônjuge e os parentesdo outro e, pela nova lei civil, passa aincluir também os parentes do compa-nheiro. Isso corresponde à antiga afini-dade ilegítima que já existia no Códigode 1916, apenas para fins de impedimen-to para casamento. Por conseguinte, oque se deve deixar anotado é que, namedida em que o Código reconhece aafinidade com os parentes do compa-nheiro, tal vínculo constituirá impedi-mento para o casamento, conforme oartigo 1.521, II: “Não podem casar: II –os afins em linha reta”.

Aqui também peço colaboração paraver como vamos poder aferir isso na práti-ca. Imaginemos que um casal que tenhavivido em união estável se separe, ou umdeles venha a falecer e o sobreviventequeira casar com o sogro ou com o sogra.Haverá o vínculo de afinidade, decorren-te da união estável. Como é que vai serfazer essa aferição? A união estável éum fato, não há qualquer registro, nenhumdocumento. Mas, por força do 1.512, II,haverá impedimento, na medida em quesão afins em linha reta. Observe-se quese manteve a regra de que a afinidade nalinha reta não cessa com a extinção dovínculo que a originou (art. 1.595, § 2º).

Está estabelecido que a afinidadese limita ao segundo grau (art. 1.595, §1º). Embora não haja, há rigor, graus novínculo de afinidade, a doutrina sempreadotou, para efeitos de definição de li-nhas e de graus, o mesmo critério pre-visto para o parentesco.

Com relação à filiação, passandopara o segundo capítulo das relações deparentesco, temos a grande diretrizconstante do artigo 227, § 6º, da Consti-tuição Federal: o princípio da plena igual-dade entre os filhos. Essa disposição foiliteralmente repetida no artigo 1.596 donovo Código. Esse princípio é grandeorientador em termos de interpretaçãoe de solução de dúvidas que venhamosa enfrentar em matéria de filiação.

O novo Código Civil estabeleceuuma divisão entre os filhos. Temos adisciplina da filiação oriunda do casamen-

to, que é dedicada aos filhos havidos docasamento e a disciplina dos filhos havi-dos fora do casamento, que dependerãode reconhecimento, na medida em que,como sempre foi, os filhos havidos do ca-samento são beneficiados pela presun-ção da paternidade. Temos, ainda, os fi-lhos adotivos. A leitura do parecer queencaminhou a aprovação do projeto do Có-digo Civil aprovado, induz concluir quehouve uma tendência do legislador nosentido de sempre procurar estabelecera paternidade. É uma tendência que jávínhamos verificando na lei brasileira, deque é exemplo a Lei 8.560, que facilitou,e muito, a investigação de paternidade,o estabelecimento desse vínculo.

O que se verifica, depois de umaleitura mais aprofundada dos novos dis-positivos, é que não restou nítido o cri-tério adotado pelo legislador para o es-tabelecimento da paternidade. Sabemosque a doutrina, nos últimos anos, e es-pecialmente depois da Constituição de1988, refere-se a três critérios para oestabelecimento do vínculo de paterni-dade. O primeiro é a chamada paterni-dade jurídica, constante do Código de1916, construída mediante um jogo depresunções. Por esse critério, o legisla-dor escolhia ou determinava quem era opai, e muitas vezes impedia até, na le-tra original do Código de 1916, que seapurasse o verdadeiro vínculo (ou seja,o genético).

Em decorrência da popularizaçãodos exames de DNA, que indicam comalto grau de certeza (99,99%) se existeou não o vínculo genético entre o filho eo suposto pai, passou a haver uma fortepropensão a privilegiar a paternidadeque tem sido designada como “paterni-dade biológica”, que é aquela que se es-tabelece em função do vínculo genético.O exame das decisões dos nossos Tribu-nais, principalmente do STJ, revela umaforte tendência a se adotar a paternida-de biológica.

O terceiro critério refere-se à de-nominada paternidade sócio-afetiva, de-fendida, com propriedade, por muitosdoutrinadores. É a paternidade que se

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constitui pela própria vida em comum,pelo fato de uma pessoa educar outra,pelo vínculo afetivo que surge entreaquele que exerce o papel de pai e o fi-lho. Em outras palavras, entre aqueleque assume o papel de pai, muito embo-ra não o seja, nem jurídica oubiológicamente, e o filho.

Contudo, o exame dos dispositivosda nova lei quanto à filiação não deixaclaro, como assinalado, a qual critério olegislador deu preferência. À primeiravista, parece privilegiada a paternidadejurídica, atendendo à referida preocu-pação de sempre atribuir a paternidade.Mas, em outros momentos, se privilegiaa paternidade biológica, às vezes em de-trimento de uma paternidade jurídica delonga data estabelecida.

No tocante à presunção de pater-nidade, prevista no artigo 1.597, cons-tata-se que os dois primeiros incisos, doscinco que integram o citado dispositivo,retomam a concepção existente no Có-digo de 1916: estabelecer a presunção,tomando por base os prazos normais degestação, considerados os prazos máxi-mo e mínimo, para estabelecer a datada concepção. Assim se presume: se acriança vem a nascer até no mínimo 180dias depois de constituída a sociedadeconjugal, tudo indica que, embora nas-cendo prematuramente, ela teria sidoconcebida já na constância do casamen-to. Manteve-se o prazo de 300 dias apósa dissolução da sociedade conjugal, con-siderando o prazo máximo de uma ges-tação (dez meses), imaginando em talcaso que a concepção possa ter ocorridono final da convivência conjugal (art.1.597, I e II).

Com relação aos nascidos após adissolução da sociedade conjugal, deve-se analisar cautelosamente o artigo1.598. Observe-se que o Código de 1916tinha uma estrutura de presunções queincluía algumas hipóteses em que seestendia a presunção, mesmo havendopossibilidade da criança não ter sido con-cebida na constância da sociedade con-jugal (art. 339). Era o caso do homemque se casava sabendo que a mulher

estava grávida ou que assistia a lavra-tura do termo de nascimento do filho,sem contestar a paternidade. Clóvis Be-vilácqua, esclarecia a hipótese, dizendoque muitas vezes o homem casa, saben-do que a mulher está grávida, sabe queo filho não é seu, mas assim mesmo as-sume aquela paternidade. A presunçãocompreendia, portanto, uma concepçãosabidamente ocorrida fora da constân-cia do casamento. Esse artigo não exis-te mais. O que existe é o artigo 1.598que tenta compor as dificuldades decor-rentes desses nascimentos que se veri-ficam depois de rompida a sociedadeconjugal.

Dispõe o referido artigo: “Salvo pro-va em contrário, se, antes de decorridoo prazo previsto no inciso II do artigo1.523, a mulher contrair novas núpciase lhe nascer algum filho, este se presu-me do primeiro marido, se nascido den-tro dos trezentos dias a contar da datado falecimento deste e, do segundo, seo nascimento ocorrer após esse períodoe já decorrido o prazo a que se refere oinciso I do art. 1.597”. É uma redaçãocomplexa, pesada, que nos leva a contaros prazos, fazer as remissões para poderentender como é que funciona essa pre-sunção. Observe-se que não se leva emconsideração a possibilidade de dissolu-ção da sociedade conjugal por separa-ção judicial ou divórcio.

Na verdade, a presunção exige umesforço facilmente superável pelo exa-me do DNA, que afinal resolve todas es-sas questões, principalmente a se man-ter a tendência que os Tribunais têmtido de privilegiar a verdade biológica.

Indispensável fazer referência aoProjeto de lei nº 6.960/02 (também deautoria do Deputado Ricardo Fiúza), oratramitando na Câmara, que altera maisde dez por cento da lei aprovada. Esseprojeto modifica algumas das disposiçõesora em análise.

Para o artigo 1.597, propõe-se a in-trodução de um parágrafo único, preven-do que cessa a presunção de paternida-de, no caso do inciso II, (que se refereao prazo de 300 dias), se à época da

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concepção, os cônjuges estavam sepa-rados de fato. Isso é uma circunstânciaque certamente qualquer julgador toma-ria em grande conta. Essa mesmaredação também foi proposta como pará-grafo único do 1.598.

Ainda com relação aos filhos havi-dos do casamento, os três incisos finaisdo 1.597 tratam de hipóteses de repro-dução assistida, ou seja, de hipóteses emque foram utilizadas as chamadas técni-cas de reprodução humana assistida.

Impõe-se aqui observar que: pormais que se interprete extensivamenteo Código, o que verificamos é que a utili-zação de técnicas de reprodução assis-tida traz uma gama de questões jurídi-cas que exigem um tratamento em leiespecial. É quase impossível, com seestá tentando fazer, inserir três itensem um artigo e disciplinar a reproduçãoassistida como um todo. São inúmerosos questionamentos e recentemente foiaprovado pela Câmara um projeto de leique disciplina a reprodução assistida, éo projeto de lei nº 3.638/93, que tratade modo mais amplo da disciplina da re-produção assistida. Esse projeto foi apro-vado pela Câmara e já está no Senado.

Na verdade, o mencionado projetonão resolve as questões jurídicas, poisas maiores questões jurídicas relativasà reprodução assistida dizem respeito aoestabelecimento da paternidade e damaternidade. Ele não disciplina essamatéria. Dentre os inúmeros projetosque tramitam no Congresso relativos aessa matéria, o projeto de lei nº 90, de1999, do Deputado Lúcio Alcântara, pa-rece ser o mais completo.

O projeto de lei nº 3.638/93, comoassinalado, não se debruça sobre ques-tões jurídicas, estabelecendo apenas oque é possível ou não fazer, o que é per-mitido ou não, como por exemplo, o nú-mero de embriões (de dias) que se podeconservar in vitro etc. A impressão que setem (e isso é expresso pelo próprio autordo projeto) é que se procurou dar feiçãojurídica à norma de há muito editada peloConselho Federal de Medicina.

Insista-se, porém, que essa maté-ria está a exigir disciplina própria e

abrangente. Observe-se que, nos moldesem que foi feita essa tentativa de disci-plina no Código Civil, já nos surgem, deinício, algumas perguntas: pode haverreprodução assistida fora do casamen-to? As pessoas solteiras podem lançarmão dessas técnicas? E no caso da uniãoestável? Observem que a presunção depaternidade é aquela que já conhece-mos, é a que é firmada pelo casamento.O Código novo não estende a presunçãoaos filhos havidos da união estável. Oprojeto complementar (PL 6.960/02) éque cuida do assunto, como adiante ve-remos. Em síntese, a dúvida é essa: seráque o legislador limitou juridicamente aaplicação das técnicas de reprodução as-sistida aos casais casados?

Passando aos dispositivos propria-mente ditos, diz o Código em seu artigo1.597: “Presumem-se concebidos na cons-tância do casamento os filhos: III – havi-dos por fecundação artificial homólogamesmo que falecido o marido”. Sabemosque se denomina homóloga a técnica queusa material fecundante, ou seja,gametas, espermatozóides e óvulos do ca-sal, que será futuramente pai da criançaassim concebida. Ao mencionar “mesmoque falecido o marido”, o Código admitiu achamada fertilização pos mortem.

Já se cogitou de tal hipótese emnosso cotidiano: são os casos de homensque estão acometidos de doenças queexigem tratamentos que por vezes con-duzem à esterilidade, e antes disso, elescongelam o sêmen, na expectativa deque, recuperando a saúde, venham a terum filho. Acontece que nem sempre es-ses tratamentos têm o sucesso espera-do e o sêmen fica congelado. Há casosfamosos na França em que morrendo omarido, a viúva quis usar o material con-gelado para ter um filho do falecido.Houve enorme discussão, porque a fa-mília do falecido se opôs. Quem é quetem o direito de dispor desse material?

O nosso legislador simplesmentereferiu que é possível a inseminação“mesmo que falecido o marido” e maisnada. Se tal hipótese se verificar, ne-cessário será um enorme esforço do in-

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térprete para a sua adequada solução.Observe-se mais um detalhe: sabemosque pelas normas sucessórias, o herdei-ro deve estar pelo menos concebido àépoca da abertura da sucessão (art.1.798). Nesse caso, a concepção, osurgimento de uma nova vida pela jun-ção dos dois gametas, pode se dar muitotempo depois de aberta a sucessão ouaté mesmo de já ter terminado o inven-tário. O congelamento desse material(sêmen por exemplo) é por tempo indefi-nido. Se nasce uma criança dessa ma-neira, ela não terá que herdar? E o prin-cípio da igualdade dos filhos como fica?Haverá um herdeiro necessário. A ques-tão é bastante intrincada.

O inciso IV estabelece que tambémse presumem concebidos na constânciado casamento os filhos “havidos a qual-quer tempo quando se tratar de embriõesexcedentários, decorrentes de concepçãoartificial homóloga”. Os embriões exceden-tários são os que sobram, quando se utili-za a técnica de fertilização in vitro, ou seja,a concepção se dá em laboratório. Em talcaso, a concepção ocorre fora do corpo damulher. Normalmente, se fazem váriosembriões, porque nem sempre a tentativade implantação do embrião no útero ob-tém sucesso, resultando em gravidez. Éum processo que apresenta aspectos deli-cados que não podem ser preteridos: amulher mantém uma expectativa grande,muitas vezes frustrada; o procedimento écaro, além de doloroso para a mulher emtermos físicos. Por tais motivos, se fazemvários embriões, pois caso a primeira ten-tativa falhe, haverá outros embriões paraimplantar.

A recomendação, em nível interna-cional, tem sido de serem feitos no má-ximo quatro embriões, exatamente paraevitar essa sobra, esse excesso. O quese entende como embriões excedentáriossão os embriões que ficam congeladosapós um procedimento de fertilização invitro. Qual seria a hipótese que podería-mos imaginar? O casal está tentando terum filho, foram feitos vários embriões,tentou-se a gravidez e não se conseguiu,ficaram alguns embriões em laboratório

e o marido morre. A mulher, após a mor-te do marido, implanta um desses em-briões e vem a ter sucesso na gravidez.Parece-me que aqui retomamos algunsdos mesmos problemas que surgiram nahipótese anterior, não obstante a con-cepção tenha em geral ocorrido na cons-tância do casamento.

Já o último inciso, que trata da fer-tilização heteróloga, dispõe que se pre-sumem concebidos na constância do ca-samento os filhos “havidos porinseminação heteróloga, desde que te-nha prévia autorização do marido”. Porque essa prévia autorização do marido?Porque, ao contrário da inseminaçãodesignada homóloga, a inseminaçãoheteróloga tem a participação de um ter-ceiro, de um doador, e normalmente odoador do sêmen que vai fertilizar amulher. É a hipótese do marido que éestéril e concorda com que a mulherutilize material fecundante de um ban-co de sêmen para obter a gravidez.

Essa prévia autorização do maridotambém foi tratada de uma maneira sim-ples. Se o marido autoriza a mulher, epelo procedimento médico, ele deverádar um consentimento informado, porescrito. Trata-se de consentimento paraum procedimento médico, portanto, atransposição da sua eficácia para o mun-do jurídico, principalmente no que res-peita à constituição do vínculo defiliação, está a exigir melhor disciplina.A pergunta é: pode o marido revogar esseconsentimento, como aliás já aconteceu?Há decisões, como na Itália, por exem-plo, em que o marido deu autorização, amulher teve o filho e, depois, quando acriança nasceu ele não quis o filho, pro-pôs uma negatória de paternidade, di-zendo que o filho não era dele.

Efetivamente o filho não era deleporque a grande diferença entre as duasprimeiras hipóteses, que são deinseminação homóloga e esta, que é deheteróloga, é que nos dois primeiros ca-sos o filho é geneticamente do marido,mas no terceiro, não. Isso quer dizer quese o marido resolver realmente contes-tar a paternidade, e observem, a preva-

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lecer o critério biológico, ele realmentenão seria o pai.

A possibilidade de revogar ou não aautorização deve levar em conta a épocaem que ocorre. Deve-se considerar, o queparece razoável, que o marido queira revo-gar a autorização antes de a mulher en-gravidar, quando ainda em curso o proce-dimento médico. Deve-se analisar se nãoseria razoável lhe dar essa permissão.

Quanto à solução desse tipo de pro-blema, dependendo das circunstâncias,evidentemente, nos socorreriam doisprincípios constitucionais: primeiro, o domelhor interesse da criança, caso já te-nha nascido; segundo, o da paternidaderesponsável. A Constituição estabelece,em dispositivo que tem sido pouco exa-minado, o direito ao planejamento fami-liar (art. 226, § 7º), ou seja, o direito deter ou não ter filhos, mas fundamentandotal direito nos princípios da dignidadehumana e da paternidade responsável.Portanto, nessa linha, aquele que, mes-mo sabendo que não será geneticamen-te seu o filho, autorizou a utilização deuma técnica dessa, deve responsabili-zar-se pelos resultados.

No tocante à contestação da pater-nidade, vemos aqui alguns dispositivosque não estão de acordo ou não acompa-nham o que temos hoje em termos derecursos biomédicos ou biotecnológicos.Permita-se a insistência: por mais essemotivo, a disciplina jurídica das técni-cas de reprodução assistida deveriamsair do Código.

O artigo 1.599 repete regra, simi-lar a do CC de 1916, e assim dispõe: “Aprova da impotência do cônjuge para ge-rar, à época da concepção, ilide a pre-sunção da paternidade”. Ora, mas o casoque acabamos de analisar, ou seja, dainseminação heteróloga, é exatamente,em noventa e nove por cento das vezes,o de homens que não podem gerar. Comose ilidir a presunção quando do empre-go de técnicas heterólogas ? Era precisoque se excepcionasse a hipótese. Masisso não ocorreu e, na ausência de umanorma expressa, impõe-se a solução combase nos princípios acima referidos.

O artigo 1.601 dispõe: “Cabe aomarido o direito de contestar a paterni-dade dos filhos nascidos de sua mulher,sendo tal ação imprescritível”. É a co-nhecida ação negatória ou contestatóriada paternidade. Esse dispositivo tem ge-rado muita discussão. Repete-se a in-dagação anterior: qual a tendência dolegislador, qual o critério adotado paraestabelecer a paternidade? Se haviauma preocupação em atribuir a paterni-dade, mesmo em caso de inseminaçãoheteróloga, dando um pai à criança, aose permitir a contestação da paternida-de presumida, imprescritivelmente, re-vela-se uma tendência a se abraçar apaternidade biológica, porque toda dis-cussão certamente virá informada pelapaternidade genética.

Nesse aspecto o projeto comple-mentar, de nº 6.960/02, propõe inova-ções importantes para o artigo 1.601,incluindo quatro incisos, a saber: “O di-reito de contestar a relação de filiaçãoé imprescritível, e cabe, privativamen-te, às seguintes pessoas: I – ao filho, II –àqueles declarados como pai e mãe noregistro de nascimento, III – ao pai e mãebiológicos, IV – a quem demonstrar legí-timo interesse”. Será que o doador dosêmen, na eventualidade de saber quemé seu filho, poderia contestar a paterni-dade estabelecida em favor do maridoda mãe? Pela letra do inciso propostopareceria que sim, visto que ser ele opai biológico. Isso poderia ocorrer se odoador descobrisse quem imagina serseu filho, o que é difícil, porque de acor-do com a resolução do Conselho Federalde Medicina deve-se preservar o sigiloquanto à identidade do doador.

Contudo, o legislador acautelou-sequanto a essa possibilidade, inserindoum parágrafo (§ 3º), segundo o qual: “Omarido não pode contestar a filiação queresultou de inseminação artificial por eleconsentida”.

O mesmo parágrafo prevê que omarido não poderá contestar a filiaçãose declarou no registro que era seu ofilho que teve sua mulher, “salvo se pro-var erro, dolo ou coação”. Retorna-se, de

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certo modo, à previsão constante do ar-tigo 339, II, do CC de 1916, antes referi-da.

Igual ressalva foi feita com relaçãoà filiação oriunda da adoção, que nãopode ser contestada, de acordo com oparágrafo § 2º, proposto pelo projeto.

O último dispositivo é muito amplo,ao considerar legitimado para contestara paternidade: “a quem demonstrar le-gítimo interesse”. Em tese qualquer pes-soa poderá contestar a paternidade pre-sumida.

Há, ainda, um dispositivo que, seentrar em vigor, dará muita margem àdiscussão. Segundo o parágrafo 4º, pro-posto para o artigo 1.601, “a recusainjustificada à realização das provasmédico-legais acarreta a presunção daexistência da relação de filiação”. Pare-ce tratar-se de uma presunção absolu-ta. Há vários julgados que têm entendi-do que a recusa à realização dessa pro-va médico-legal, que é o exame de DNA,faz presumir a paternidade.

Diante de tais dispositivos, o proje-to parece inclinar-se no sentido de quedeve prevalecer é a verdade biológica.

Passando aos filhos havidos fora docasamento, que não são beneficiados pelapresunção, dependerão esses de reco-nhecimento. De maneira geral, o novoCódigo incorporou várias disposições daLei 8.560/92. Algumas, que ficaram fal-tando, são incluídas pelo projeto com-plementar 6.960/02, como por exemploa que diz respeito a investigação oficio-sa, promovida pelo Ministério Público.Não há mais indicação das causas, comohavia no antigo artigo 363, que autori-zam a investigação da paternidade.

O projeto propõe importante alte-ração do artigo 1.615 aprovado. De acor-do com a redação proposta : “Os filhostêm ação contra os pais ou seus herdei-ros para demandar o reconhecimento dafiliação, sendo esse direito imprescrití-vel”. Foram incluídos nove parágrafos,estabelecendo o parágrafo 5º: “se a mãeconvivia com o suposto pai durante a épocada concepção, presume-se a paternidade,salvo prova em contrário”. Parece que ins-

tituir-se-á a presunção de paternidadepara os casos de união estável. Teremos,assim, uma presunção legal de paterni-dade, que beneficiará os filhos de pes-soas não casadas que mantenham con-vivência na época da concepção. Sabe-mos que essa matéria tem sido ardua-mente debatida.

Mais uma vez, cabe lembrar que oDNA tem sido a solução de todas as ques-tões relativas à investigação de paterni-dade. Quanto à impugnação do reconhe-cimento, o artigo 1.614 repete a disposi-ção do Código de 1916: o filho maior nãopode ser reconhecido sem o seu consen-timento, e o menor pode impugnar o reco-nhecimento nos quatro anos que se segui-rem a maioridade à emancipação. O pro-jeto 6.960/02 retira o mencionado prazo.

Para encerrar algumas breves con-siderações sobre a adoção. O Código de2002 incorporou, em matéria de adoção,muitos artigos do Estatuto da Criança edo Adolescente. O projeto complemen-tar 6.960/02 inclui alguns dispositivosdo Estatuto que não constam do projetoaprovado. A idade mínima para a adoçãoé de 18 anos, o maior de 18 anos podeadotar. Prevê-se a dispensa do consen-timento dos pais desconhecidos ou des-tituídos do poder familiar e a expressanecessidade de concordância do adotan-do, se ele for maior de 12 anos. O con-sentimento dos pais é revogável até asentença constitutiva da adoção. Refe-re-se, expressamente, à adoção por com-panheiros.

Resolve-se uma antiga discussão,existente desde o advento do ECA, quan-to a se admitir ou não a adoção do maiorde 18 anos. Expressamente, o Código Ci-vil novo trata da adoção do maior de 18anos, que deve se efetivar mediante sen-tença constitutiva, a teor do projeto apro-vado. No projeto complementar, já não seexige mais sentença, mas uma escrituraque deve ser levada ao registro civil apósa homologação pelo Ministério Público.

Há, como se vê, proposta de mu-dança. O projeto 6.960/02 altera os ar-tigos que foram aqui citados e, na ver-dade, traz para o corpo do Código Civil

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 115

aprovado alguns dispositivos que tinhamficado no Estatuto da Criança e do Ado-lescente, e que em boa hora passarãopara a integrar a nova Lei Civil.

Registre-se, porém, que, em maté-ria de adoção de criança a adolescente,

não vamos poder abandonar os princípi-os que orientam a colocação em famíliasubstitua, que estão estabelecidos no Es-tatuto da Criança e do Adolescente, dan-do consecução à norma constitucional.

Muito obrigada. .

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Dando prosseguimento aos temasda tarde, gostaria de esclarecer inicial-mente que, pelo fato de termos partici-pado de inúmeros trabalhos juntas esermos, Dra. Kátia Maciel e eu mesma,professoras do Curso de Pós-Graduaçãode Direito Especial da Criança e do Ado-lescente da UERJ, e termos sido con-temporâneas na Primeira Vara da Infân-cia e Juventude (ela como Promotora eeu atuando como Coordenadora do PAPI-Posto Avançado Proteção Integral da OAB/RJ), propusemos à organização desteevento que dividíssemos este Painel, aoinvés de ela ser debatedora.

Dentro da programação, apresen-taremos aspectos gerais do Direito da Cri-ança em face do novo Código Civil, a Pro-fessora Kátia prosseguirá sobre a Tutelae Pátrio Poder (doravante Poder Familiar)e encerrarei expondo sobre o institutoda Adoção.

O grande desafio será, sem dúvi-da, compatibilizar da Lei nº 10.406/ 2002com as demais leis ordinárias e com ostextos internacionais ratificados.

É fundamental compreender a es-trutura legislativa em nosso país após aentrada em vigor do novo Código Civil;temos de assumir, em primeiro lugar, aConstituição Federal como coordenado-ra, convencidos de que o Código Civil,como afirma o Prof. Caio Mário da SilvaPereira “perdeu a sua função de DireitoComum”.

Seguindo a orientação da maisrecente Doutrina Constitucional, deve-mos reconhecer que os “princípios geraisde direito” foram, gradativamente, subs-tituídos pelos princípios constitucionais.As “Leis Especiais” são universo já im-

plementado no nosso sistema jurídicoabrangendo áreas destinadas a interes-ses especiais. Seria irresponsabilidadeafirmar, de forma genérica, a revogaçãodas mesmas.

Não podemos afastar a vigência deleis fundamentais, não só para a infanto-adolescência como no Direito de Famí-lia. A título de exemplo, podemos citar a“Lei de Alimentos”, bem como, não po-demos ignorar a grande discussão quese formou neste país quanto a vigênciaou não da “Lei do Divórcio”.

Para entendermos o nosso sistemalegislativo, parece-nos fundamental re-portar-nos ao artigo 5º, parágrafo 2º daConstituição Federal quando fala que,além dos direitos enumerados nos 77incisos do artigo 5º, como propõe J.J.Canotilho, existem outros “Direitos Fun-damentais dispersos” na ConstituiçãoFederal com o mesmo grau de impor-tância e eficácia. Não existem direitosfundamentais de segunda categoria.

Devemos reconhecer como DireitosFundamentais, aqueles decorrentes do re-gime e dos princípios assumidos pelaCarta Magna, assim como aqueles indi-cados nos tratados internacionais dosquais o Brasil seja parte. Aqui nos inte-ressa, diretamente, os Documentos In-ternacionais relativos à infância, porquefica muito claro que a doutrina consti-tucional, na sua maioria, reconhece,hoje, o princípio da não-tipicidade dosDireitos Fundamentais, de forma a con-firmar o não congelamento dos direitosenumerados no art. 5o – CF.

Existem princípios constitucionaisque vão nos interessar diretamente.Acrescentaria, além do planejamento fa-miliar, a proteção do Estado à comunida-de formada por qualquer dos pais e seus

O Estatuto da Criança e do Adolescente e osDesafios do Novo Código Civil

TÂNIA DA SILVA PEREIRAPROFESSORA DA UERJ

Palestra proferida no Seminário realizado em 13/09/2002

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 117

descendentes, reconhecendo-a comoentidade familiar. (Art. 226, § 4º, CF);proteção contra o abuso, a violência e aexploração sexual da criança e do ado-lescente. (Art. 227, § 4o, CF) e a equi-paração de filhos e a vedação de desig-nações discriminatórias relativas àfiliação (Art. 227, § 6º, CF)

Mas, a grande conquista, sem dú-vida (aliás, não é novidade para osconstitucionalistas), vincula-se à nãoexigência de ratificação das convençõese tratados de Direitos Humanos; bastaque o Brasil seja signatário para que osseus princípios sejam reconhecidos,como esclarece o Prof. Celso deAlbuquerque Melo.

Destacamos, especialmente, os “Di-reitos Fundamentais dispersos” conti-dos no artigo 227 da Constituição, ao re-conhecer criança e adolescente como ti-tulares de Direitos Fundamentais, comoo adulto. É muito importante que nós en-tendamos que eles não só têm os mes-mos direitos dos adultos como a eles sãoreconhecidos direitos especiais, própriosde pessoas em fase de desenvolvimento.

Nesta identificação de primazias,buscamos entender, em princípio, as“leis gerais” — diga-se o Código Civil —convivem com as “leis especiais” dentrodo critério estabelecido pelo art. 2º, §2º, da Lei de Introdução ao Código Civil,que assim dispõe: “a lei nova que esta-beleça disposições gerais ou especiais apar das já existentes, não revoga nemmodifica a lei anterior”.

Marco Aurélio Sá Vianna, civilistamineiro, no entanto, adverte: “devemosentender a questão em termos corretos:a generalidade de princípios numa leigeral não cria incompatibilidade comregra de caráter especial. A disposiçãoespecial disciplina o caso especial, semafrontar a norma genérica da lei geral,que, em harmonia, vigorarão simultane-amente. A lei nova que estabelece dis-posições gerais ou especiais a par dasexistentes não revoga ou modifica a leianterior”.

Neste contexto chamamos a aten-ção para a Lei Complementar 95/98, com

as modificações introduzidas pela LeiComplementar 107/2001 ao estabelecerque “a cláusula de revogação deverá in-dicar, expressamente, as leis e disposi-ções legais revogadas”. A regra do artigo9º da lei complementar referida veio re-solver para nós um problema importan-te ao indicar a necessidade de indica-ção expressa para a revogação. Com isso,se examinarmos as “disposições transi-tórias” no final do novo Código Civil, ve-mos no artigo 2.045: “Revogam-se a Lei3.071/16 - Código Civil e a Parte Primeirado Código Comercial, Lei 556, de 25 de ju-nho 1850”.

Na realidade, foram essas as úni-cas revogações expressas, o que nos au-toriza conciliar o novo Código com leisespeciais e microssistemas. O Profes-sor Caio Mário, atualmente trabalhandona atualização da sua obra, no Prefáciodas novas edições, chama atenção parao fato de que “o Código Civil exerce, hoje,um papel residual diante de uma novarealidade legislativa, no qual osmicrossistemas e as leis especiais cons-tituem pólos autônomos, dotados de prin-cípios próprios, impondo inovadora téc-nica administrativa”.

Eu gostaria de lembrar que em obrarecente, Paulo Afonso Garrido de Paulachama a atenção para a existência deuma tutela jurisdicional diferenciadapara a infância e a juventude, onde pon-tua aspectos básicos – aos quais tomei aliberdade de acrescentar alguns – paraidentificarmos questões relevantes quevão interessar, diretamente, no estudodo novo Código Civil.

Realmente, o Estatuto da Criançae do Adolescente determina a garantiapermanente do acesso à Defensoria Pú-blica, ao Ministério Público e ao PoderJudiciário. Da mesma forma, a Consti-tuição Federal indica o advogado comoindispensável à administração da justi-ça. Se em outras jurisdições elas sãoimportantes, aqui ela é permanente. OMinistério Público assume posição re-levante e assistimos com satisfação,inclusive, na Justiça da Infância e Ju-ventude, muitas vezes o Ministério Pú-

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blico ajuizar ações para defender inte-resse de uma única criança, como porexemplo, para garantir uma vaga naescola; acho que isso tem sido constan-te na Primeira Vara da Infância e Ju-ventude da Comarca do Rio de Janeiro,dentro da nossa experiência.

Cabe destacar em efetivo funcio-namento há quatro anos, fruto de umconvênio da OAB/RJ com a PrimeiraVara da Infância e Juventude do Rio deJaneiro, com o apoio da UERJ (os alu-nos da UERJ têm trabalhado lá também),onde desenvolvemos no PAPI – Posto Avan-çado Proteção Integral – onde realizamoso mesmo atendimento da DefensoriaPública.

Outra conquista significativa des-sa tutela jurisdicional diferenciada é agratuidade dos serviços judiciários najustiça menorista.

Destaque-se, ainda, a possibilida-de do “Juízo de retratação” : o artigo 198,VII do ECA fala da possibilidade de o juiz,antes de remeter a apelação, poder re-considerar a decisão, inclusive em ter-mos de mérito (é diferente da hipótesedo parágrafo único do artigo 518 do Có-digo de Processo Civil, que diz que “apre-sentada a resposta, é facultado ao juiz oreexame dos pressupostos deadmissibilidade do recurso”.

Efetivamente, temos aqui princípi-os finalísticos na tutela jurisdicional di-ferenciada. O Brasil adotou a DoutrinaJurídica da Proteção Integral: qualquercriança, em qualquer situação, deverá terprioridade no atendimento; não se resu-me apenas em ser sujeito de direitos,mas ser respeitado como pessoa em fasepeculiar de desenvolvimento, deixando deser apenas objeto passivo dessa proteção.Sem dúvida já se reconhece à criança eao adolescente a titularidade de direitosda personalidade.

Para Roberto Senise Lisboa, em setratando de crianças e jovens, o sofri-mento se presume para justificar aindenização por dano material e moral.

Eles devem ser ouvidos naquilo queseja de seus interesses. É importantedistinguirmos a hipótese do artigo 405

do Código de Processo Civil, que fala quemenores de 16 anos não podem depor.Ao mesmo tempo o Estatuto esclareceque “sempre que for possível, será ouvi-da a criança”. A eles será dado o direitode esclarecer o que é de seu pessoalinteresse.

Quando a Convenção Internacionaldos Direitos da Criança, (ratificada peloDecreto 99.710/90 ), no art. 12, assegu-ra “ criança que estiver capacitada a formu-lar seus próprios juízos o direito de expres-sar suas opiniões livremente sobre os assun-tos relacionados com ela, considerando a suaidade e maturidade”, garante-lhe, inclu-sive, a oportunidade de ser ouvida emtodo processo judicial ou administrativoque lhe afete diretamente, em confor-midade com as regras processuais dalegislação nacional. Portanto, a estru-tura do Judiciário deve ser preparadapara que possam ser ouvidos.

Uma decisão do Tribunal de Justi-ça do Distrito Federal esclarece na hi-pótese de uma criança vítima de maustratos: “mesmo sendo ela uma criança deapenas oito anos de idade, há que se lhedar o devido crédito se a sua narrativa semostra coerente com os outros elementos deprova”.

Outro desafio dentro desses prin-cípios finalísticos é responder à seguin-te indagação: para nós, operadores deDireito, o que representa a garantiaconstitucional de “prioridade absoluta”para menores de 18 anos? Parece-nos,inicialmente, um discurso vazio. O Pro-fessor Aluízio Azevedo, educador em SãoPaulo, afirma que a palavra “prioridade”não admite plural; para ele “priorizar pri-oridades é contra-senso”.

O “Estatuto” teve uma preocupaçãoem determinar o que é, em princípio,essa prioridade. O artigo 4º-ECA faz in-dicações próprias: a preferência em re-ceber proteção e socorro, a precedênciado atendimento em serviços públicos, aprimazia na formulação das políticas so-ciais, a destinação dos recursos.Quantas vezes as ações civis públicassão propostas com esse objetivo! Infeliz-mente, em graus de recurso, prevalece,

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quase sempre, a tese da não interferên-cia entre Poderes, o que leva as con-quistas judiciais a “morrerem na praia”.

Quando nos referimos ao princípiodo melhor interesse da criança, reportamo-nos ao instituto inglês do parens patriae(Século XIII) que representou a prerro-gativa do Rei de proteger aqueles quenão poderiam fazê-lo por conta própria.Foi recepcionado pela jurisprudêncianorte-americana em 1813, no casoCommonwealth vs. Addicks, no qual a Cor-te da Pensilvânia afirmava a prioridadedo interesse de uma criança em detri-mento dos interesses de seus pais. Nocaso em exame, a guarda da criança foiconcedida à mãe acusada de adultério,já que este resultado representava omelhor interesse para aquela criançamediante as circunstâncias dadas.

Por sua vez, a Convenção Internacio-nal dos Direitos da Criança de 1989 am-pliou a aplicabilidade deste princípio,destacando no art. 3.1: “todas as açõesrelativas às crianças, levadas a efeito porinstituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades adminis-trativas ou órgãos legislativos, devem consi-derar, primordialmente, o melhor interesseda criança”.

Existe um trabalho publicado poruma autora portuguesa, Marta SantosPaes, em que ela afirma que “na pro-mulgação de uma lei nova, ou na hipó-tese de revisão de uma lei existente, éessencial indagar se as soluções propos-tas são as melhores para a criança”.Emílio Garcia Mendes identifica-o comoum princípio obrigatório principalmentepara as autoridades, reconhecendo queé dirigido, precisamente, contra elas.

Gostaria de salientar um aspectoimportante: quando interpretamos umalei, é necessário revelar o seu sentidoapropriado à vida real. Pedro Demo con-voca interpretar a lei como um disposi-tivo motivador ao serviço da criatividade.

No que concerne ao princípio daequiparação de filhos, sobre o que a pro-fessora Heloisa Barboza expôs com seuhabitual brilhantismo, chamo atençãopara um aspecto relevante: após a Car-

ta de 88 passou-se a discutir, nesse país,o incesto, no contexto da violênciaintrafamiliar. É importante destacarcomo este assunto vem, cada vez mais,chegando ao sistema de Justiça. Apre-senta-se como um desafio enfrentar oproblema do abuso sexual no âmbito fa-miliar, quando a única testemunha é aprópria vítima.

Temos defendido a tese, inclusivejunto ao Poder Judiciário, identificandodecisões nas quais o objeto da tutelajurisdicional não é o conflito entre ospais, mas a da proteção da criança. Di-ante de flagrantes indícios de abuso se-xual e de situação de risco, há que sesobrepor a proteção da criança e do ado-lescente aos conflitos entre os pais, im-pedindo o progenitor de conviver com osfilhos, mesmo em regime de visitação.

Daí a competência da Justiça dainfância e Juventude. Destacamos aquia decisão precursora no Tribunal de Jus-tiça do Estado do Rio de Janeiro tendocomo Relator o Desembargador NagibSlaibi Filho, em decisão unânime juntoà 16ª Câmara Cível ao esclarecer que “aVara da Infância e Juventude possui com-petência absoluta em razão da matéria, paraprocessar e julgar o pedido de guarda quan-do, com base nos aspectos fáticos particula-res da hipótese, vislumbra-se a existênciade risco ao menor. No caso vertente, a sim-ples existência de indícios de abusos sexu-ais contra o menor exige a imediata adoçãode medida de cautela, até que a questão res-te completamente esclarecida.”

Ontem, recebi uma decisão de Mi-nas Gerais, com a mesma orientação, efiz um contato com dois juízes em SantaCatarina, constatando que esta tambémestá sendo a orientação no Tribunal da-quele Estado.

É da competência da Justiça da In-fância e Juventude prevista no art. 98,II- ECA as situações que envolvem a, “fal-ta, omissão ou abuso dos pais”, abrangen-do vasta Doutrina as situações de abusode caráter sexual. O parágrafo único,letra d do art. 148 do ECA também prevêa competência deste Juízo Especializa-do para “conhecer de pedidos baseados em

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discordância paterna ou materna, em rela-ção ao exercício do pátrio poder”.

Esta divergência, aliada às situa-ções de abuso sexual, autoriza a atuaçãodo Juiz da Infância e Juventude que, di-ante da denúncia de hipótese que tenhacomo agente um dos genitores, traz ínsitaa existência de atritos e desentendimen-tos, implicando na divergência no exer-cício do Poder Familiar.

Por outro lado, art.1.638 do CódigoCivil determina a perda do Poder Fami-liar “ao pai ou à mãe que praticar atos con-trários à moral e aos bons costumes”;

Diante da conveniência técnica de,sempre que possível, se especializar osjuízos e de se buscar maior agilidade eeficiência à prestação jurisdicional, de-verá o Sistema de Justiça reconhecer,em definitivo, a competência da Varada Infância e Juventude para o julga-mento de ações que envolvam a violên-cia sexual nas relações intrafamiliares,inclusive nos procedimentos cautelaresque visem o afastamento do agressor damoradia comum, na hipótese de indíci-os de violência sexual impostos pelos paisou responsáveis abrangendo as providên-cias que envolvam a suspensão davisitação, tratando-se de pais separados.

Destacamos ainda dois aspectosrelevantes indicados pelo Dr. Paulo Afon-so Garrido de Paulo na jurisdição dife-renciada para a infância: ela é preventi-va, no sentido de impedir a ação e a omis-são violadoras de algum direito lembran-do que a Constituição prevê no artigo 5º,XXXV a garantia da prestaçãojurisdicional em razão da ameaça a umDireito. Por outro lado a tutela da in-fância tem caráter de urgência: a crian-ça não pode esperar. Há necessidadeimediata de sua efetivação, de proteçãoem tempo próprio, senão estaremos con-duzindo-a à inocuidade e reduzindo a suaeficácia; o art. 4º- ECA determina a pri-mazia de receber proteção e socorro emquaisquer circunstâncias.

Devemos lembrar que o “Estatuto”tem procedimentos próprios a exemploda colocação em família substituta, des-tituição de o pátrio poder (doravante po-

der familiar) etc. Foi adotado pelo ECA osistema recursal do Código de ProcessoCivil, inclusive no caso de aplicação demedidas socioeducativas.

Outro aspecto relevante: os recur-sos têm efeito meramente devolutivo,com exceção apenas daquelas hipótesesprevistas no art. 198-ECA concernenteà Adoção Internacional e, quando hou-ver a concessão do efeito devolutivo, pos-sa acarretar dano irreparável. Cabe lem-brar, ainda, que, em grau de recurso,tratando-se de processo oriundo da Jus-tiça a Infância e Juventude dispensa-seo revisor.

Paulo Afonso Garrido de Paulo in-dica em sua obra o fundamento objetivodessa tutela jurisdicional diferenciada:temos um microssistema disciplinadordas relações jurídicas especiais parainfância e juventude e uma formadiversificada de distribuição de justiçadaquela habitual da codificação em ge-ral.

Fiz questão de apresentar essesaspectos iniciais porque, trabalhando naárea da infância, vemos como, muitasvezes, os advogados, os juízes e os pro-motores, não têm a visão nítida desta ju-risdição com características próprias.Considerei relevante, diante de um novoCódigo Civil a vigorar a partir de 2003,não só identificarmos como será aproteção dos menores de 18 anos nestenovo contexto em confronto com leis es-peciais e com o Estatuto, como também,a possibilidade de identificar a tutelajurisdicional diferenciada para infânciae juventude, que para nós é da maiorimportância, nos seus elementos básicos.

Adoção no Novo Código CivilRetomando,nesta tarde minhas re-

flexões, desta feita sobre o instituto daAdoção, cabe esclarecer que, após a en-trada em vigor do novo Código, que esta-remos tratando do Estatuto da Criançae do Adolescente sempre como um“microssistema” dentro de um contextode uma tutela jurisdicional diferencia-da; sua revogação, mesmo parcial, serácatastrófica.

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 121

Cabe lembrar que a figura do“Curador especial” sempre esteve pre-sente no Código Civil, no Código de Pro-cesso Civil e no Estatuto e nunca se dis-cutiu se seria revogado ou não;assim,considero que a adoção tem quepermanecer no Estatuto para atenderaos menores de 18 anos. Sua regula-mentação em ambos os diplomas legais,quando compatíveis e complementares,não representará qualquer problemapara o intérprete e operadores do Direi-to.

O artigo 1.618 diz que: “Só a pessoamaior de 18 (dezoito) anos pode adotar”condicionando a capacidade para adotarà maioridade civil. Assim, o adotantepoderá ter 18 anos e o adotado deveráser menor desta idade. Mantém-se, por-tanto, a competência exclusiva das Va-ras da Infância e Juventude quando oadotando for menor de 18 anos, na for-ma do art. 148 inciso III do Estatuto daCriança e do Adolescente. Esta mudan-ça representa um efetivo desafio para aequipe interprofissional ao analisar ascondições daquela pessoa que estáadotando com 18 anos ou mais. O legis-lador quis ser coerente com a capacida-de civil, reduzida para os 18 anos.

Consideramos que mantém em vi-gor a regra do art. 40-ECA ao determi-nar que o adotando “deve contar, nomáximo, 18 anos à data do pedido, salvose já estiver sob a guarda ou tutela dosadotantes”, permanecendo a competên-cia do Juiz da Infância e Juventude paraa concessão da medida.

Ao identificar as pessoas que po-dem adotar cabe ressalvar, salvo even-tual restrição eclesiástica, não existeimpedimento para um sacerdote teracesso à medida, inclusive lembrandoque, muitas vezes, o indivíduo casadotem filhos, fica viúvo e assume mais tar-de a vida eclesiástica. Não existe impe-dimento algum em relação à adoção.

Quanto aos índios - classificadospela lei 6.001/73 em “isolados”, “em viasde integração” e “integrados” – não se podeafastar a possibilidade da iniciativa daadoção de uma criança índia por pessoa

de outra cultura. Mesmo nestas hipóte-ses estamos diante da competência ex-clusiva da Vara da Infância e Juventu-de. A Constituição fala da competênciada Justiça Federal para disputa sobredireitos indígenas; no entanto, estamosfalando da Doutrina Jurídica da proteçãointegral, que conduz à competência doJuiz da infância na hipótese de adoção.

O projeto 6.960/2002 que a Profes-sora Heloisa lembrou, incluiu a proibi-ção da medida através de procuração eprevê a sua irrevogabilidade, atenden-do aos princípios estatutários; da mes-ma forma, o projeto prevê a proibição deadoção por ascendentes e irmão, umaflagrante omissão no Código Civil, queentrará em vigor no próximo ano.

Na realidade, estamos também di-ante de uma hipótese da qual venho mequestionando. O artigo 1.520 do novo Có-digo afirma a antecipação da capacidadecivil pelo casamento, para aqueles queainda não completaram 16 anos para evi-tar a imposição criminal ou no caso degravidez. Já que o legislador civil buscouunificar a adoção de maiores e menores,qual será o juízo competente para se ado-tar esse emancipado pelo casamento?Juízo da Infância e Juventude ou será oJuízo de Família? Desafios como este senos apresentam impondo a aplicação deprincípios diversos das regras legais. Con-sidero que sendo o adotando emancipadopelo casamento deverá ser competente aVara de Família, sem dispensar a inter-venção do Ministério Público e da equipeinterdisciplinar.

Manteve o art. 1.619 do novo Códi-go Civil a mesma diferença de 16 anosentre adotante e adotado, assumida, ori-ginalmente, pela lei civil e presente no§ 3.º do artigo 42 do ECA. Não se poderecusar a concessão da medida mesmose não existir a diferença indicada emrelação a um dos Requerentes. Esta foi,inclusive, a orientação do § 2.º do Esta-tuto ao admitir a adoção desde que umdos Requerentes tivesse atingido a ca-pacidade civil.

O novo Código acolheu no art. 1.620a regra do art. 44 –ECA ao exigir do tu-

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tor ou curador a prestação de contas desua administração para adotar o pupiloou curatelado. Cabe ao Ministério Públi-co, por força do art. 82-II-CPC intervir,obrigatoriamente, nos procedimentospertinentes, sob pena de nulidade.

O artigo 1.621 vai nos trazer algunspontos de reflexão. Primeiro, a necessi-dade de consentimento, o qual é incon-dicional e não pode ser objeto detransação. O adotando adolescente deveser obrigatoriamente ouvido; o jovem quevai ser adotado precisa, efetivamente,concordar com a medida.

O artigo 1.622 cometeu uma faltaque o Dr. Leonardo Gomes, Juiz auxili-ar da Primeira Vara da Infância, já indi-cou. Na hipótese, os divorciados e judi-cialmente separados podem adotar, des-de que constem do processo de separa-ção as cláusulas de visitação. No entan-to, se o casal viveu em união estável eencerrou-a após iniciada a adoção oudeferida a guarda provisória, pela leitu-ra rígida do parágrafo único não serápossível a concessão da medida, porqueo legislador restringiu-a aos “divorcia-dos e os judicialmente separados...”.Como o Estatuto não fixou condiçõesmínimas para a configuração da uniãoestável para fins de Adoção, limitando-se a exigir que seja comprovada a esta-bilidade da família (art. 42, § 2º, da lein.º 8.069/90 ), deve-se estender aosantigos companheiros o direito de regu-lamentar a convivência e ressalvar o di-reito de prosseguir na adoção, mesmoseparados. O Código de 2002, noart.1.723, mantém o critério anterior nosentido de exigir a comprovação de uma“convivência pública, contínua e dura-doura estabelecida com o objetivo deconstituição de família”.

O artigo 1.623 determinou que aadoção “obedecerá a processo judicial, ob-servados os requisitos estabelecidos nesteCódigo”, diverso do Estatuto que estabe-lece procedimentos comuns (arts. 165/170, ECA) para todas as formas de colo-cação familiar – guarda, tutela e adoção.

Destaque-se, no entanto, o pará-grafo único do artigo 1.623 ao indicar

que “a adoção para os maiores de 18 anosdependerá, igualmente, “da assistênciaefetiva do Poder Público e de sentençaconstitutiva.” Diante dessa determinaçãolegal, caberá ao Código de OrganizaçãoJudiciária dos Estados indicar o Juízo com-petente e promover as adaptações neces-sárias. Sugerimos a manutenção da com-petência absoluta da Justiça da Infânciae Juventude para os menores de 18 anose para aqueles indicados no artigo 40-ECA.(Art. 148, caput, da Lei nº. 8.069/90). Ca-berá à Justiça de Família promover osprocedimentos relativos a Adoção dos mai-ores desta idade.

Destacamos a impropriedade do art.10.º do novo Código ao prever a averbaçãoem registro público os “atos extrajudiciaisde adoção”, uma vez que o novo diplomalegal passou a exigir procedimento judi-cial para a adoção de menores e maioresde idade. Em jurisdição voluntária, nãovemos razões para excluir a escriturapública, cabendo ao Magistrado e aoMinistério Público fazer exigênciasconcernentes à assistência de umaequipe técnica, para posteriorhomologação. Cabe lembrar que o art.165-I-ECA exige a anuência do cônjugeou companheiro, o que não foirecepcionado pelo novo Código. Nãoconcordamos, no entanto, com a propostade mudanças no Código ao exigir dosoutros filhos o consentimento para aadoção e, se forem menores, serãorepresentados por curador especial.

O artigo 1.624 é objeto do meu pro-fundo questionamento. Nós sabemos quese as crianças estão abrigadas e os paisnão as visitam, o Doutor Siro Darlan,Juiz da 1ª Vara da Infância, tem feitoaudiências nas instituições de abrigopara forçar os pais a comparecerem, es-tarem presentes. Se não for dessa for-ma, por iniciativa do Ministério Públicoserão promovidas a suspensão e a des-tituição do pátrio poder (doravante po-der familiar) para que essa criança sejacolocada numa família substituta. Nes-te aspecto, há um grande mérito do Mi-nistério Público do Estado do Rio de Ja-neiro, pelo menos aqui na capital.

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 123

A expressão “infante exposto” melembra a roda dos expostos, extinta des-de o Código de Menores de 1927 comoforma anônima de abandono; também oCódigo de 2002 se refere ao “órfão nãoreclamado por qualquer parente por maisde 1 (um) ano”, se a criança órfã estáabrigada e não tem referência dos pais,deverá aguardar um ano numa institui-ção, até que um parente venha recla-má-la? O que representa um ano nodesenvolvimento de uma criança? Nóssabemos os efeitos nefastos da institu-cionalização; por mais perfeita que sejauma relação de maternagem na insti-tuição, sabemos a falta que faz a identi-ficação com uma determinada pessoa,mesmo que não seja o pai ou mãe bioló-gica. As instituições de abrigo trabalhammuitas vezes com regime de trabalho de12 horas, com folgas de 48 e, às vezes,até com intervalos de 72 horas. Consi-dero que isso foi um retrocesso em nos-sa lei civil.

O artigo 1.625 determina que amedida deve constituir “efetivo benefí-cio para o adotando”. Mantiveram-se,desta forma, as diretrizes do artigo 43do ECA ao indicar que a adoção deve“apresentar reais vantagens para oadotando e fundar-se em motivos legíti-mos”. As expressões “efetivo benefício” ou“reais vantagens” reportam-se ao princí-pio do “melhor interesse da criança”,presente na Cláusula 3.1 da ConvençãoInternacional dos Direitos da Criança,ratificada pelo Brasil através do Decre-to nº. 99.710/90.

Identificamos o “melhor interesse dacriança” nos dias de hoje, como uma nor-ma cogente, não só em razão da ratifica-ção da Convenção da ONU (através doDecreto n. 99.710/90), mas, também,porque estamos diante de um princípioespecial, o qual, a exemplo dos princípiosgerais de direito, deve ser consideradofonte subsidiária na aplicação da norma.

Omitiu-se a Lei n. 10.406/2002quanto ao estágio de convivência; previu oProjeto de Lei 6.990/2002 o acréscimodo parágrafo único ao art. 1.625, ao de-terminar que “a adoção será precedida

de estágio de convivência com oadotando, pelo prazo que o juiz fixar, ob-servadas as peculiaridades do caso, po-dendo ser dispensado somente se o me-nor tiver menos do que um ano de idadeou se, independentemente de sua ida-de, já estiver na companhia do adotantedurante tempo suficiente para a avalia-ção dos benefícios da constituição do vín-culo”. Pretendeu-se suprir, portanto, fla-grante omissão do texto original da Lei10.406/2002. Trata-se de procedimentoessencial à concessão da medida, o qualenvolve um período de tempo de adapta-ção do adotando à nova família.

O artigo 1.626 determina o rompi-mento do vínculo de filiação com a famí-lia de origem, admitindo duas exceções:nas hipóteses de “impedimentos matri-moniais” e quando “um dos cônjuges oucompanheiros adota o filho do outro”.

Como o art. 41-ECA, o novo textoressalva os impedimentos matrimoniais,os quais poderão ser invocados a qual-quer tempo para vetar o casamento en-tre pessoas indicadas na lei civil. Prevêo parágrafo único do mesmo artigo 1.626situação especial também indicada no §1.º do artigo 41-ECA, ao manter os vín-culos de filiação entre o adotado e o côn-juge ou companheiro do adotante e osrespectivos parentes”, se um adota o fi-lho do outro. Conhecida como “adoçãounilateral” sua peculiaridade se apre-senta quando a substituição se dá ape-nas na linha paterna ou materna. Naforma do art. 21, ECA, o cônjuge ou com-panheiro do adotante não perde o poderfamiliar, exercendo-o em conformidadecom o outro.

Considero que houve extremorigorismo do legislador brasileiro, mes-mo no Estatuto, em estabelecer comoregra geral o rompimento do vínculo coma família biológica. Poder-se-ia ter sidoum pouco flexível deixando ao magistra-do identificar situações especiais paradar tratamento diverso; temos assistidona 1ª Vara da Infância, principalmentequando as crianças são adotadas maisvelhas, que existe um vínculo familiarcom as famílias de origem. Por que não

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mantê-la como medida de proteção?Nada impede que uma criança sejaadotada e que seja estabelecido um acor-do de visitação com a família biológica, oque pressupõe, obviamente, um enten-dimento entre as partes.

O artigo 1.627 reafirmou o princí-pio estatutário ao afirmar que o vínculoda adoção constitui-se por sentença ju-dicial e autorizou a inscrição mediantemandado judicial no registro civil com onome dos adotantes como pais, bemcomo o nome de seus ascendentes, semqualquer observação sobre a origem doato. Esta foi a orientação do artigo 47 eparágrafos do ECA. Admite-se, inclusi-ve, a alteração do prenome, o qual cons-tará da sentença (art. 46, § 5.º, ECA). Asentença constitutiva dá nascimento aum novo estado civil ao adotado. Deve-se alertar aos adotantes quanto às ques-tões que envolvem a sua identificação.Se a criança já atingiu um nível de me-lhor compreensão deve-se evitar a mu-dança do prenome.

Como o § 6.º do artigo 47-ECA, onovo Código Civil admite no artigo 1.628a concessão da medida pos mortem, aoindicar seus efeitos a partir do trânsitoem julgado da sentença, “exceto se oadotante vier a falecer no curso do pro-cedimento, caso em que terá força retroa-tiva à data do óbito”. Temos aqui umaregra copiada do “Estatuto” ; se o pro-cesso se iniciou e o adotante vier a fale-cer no correr do procedimento, tendoficado manifestadamente provada a von-tade de adotar, essa adoção será con-cretizada e a sentença será retroativa àdata do óbito. A lei menorista declara,ainda, que as relações de parentesco seestabelecem não só entre o adotante eo adotado, como também entre aquele eos descendentes deste e entre o adotadoe todos os parentes do adotante.

Adoção internacional. O Código Civil,na redação inicialmente aprovada, sereportou à “lei especial”, quer dizer, aoEstatuto e aos Documentos Internacio-nais ratificados. Mas diante da hipótesede se revogar a adoção do Estatuto, oprojeto 6.960/2002 incorporou as regras

dos artigos 51 e 52 para efeito de adoçãointernacional.

Vivemos uma nova realidade no queconcerne às adoções internacionais apósa ratificação pelo Brasil da ConvençãoRelativa à Proteção e Cooperação Internacio-nal em Matéria de Adoção Internacional apro-vada em maio de 1993 na 17.ª Seção daConferência de Leis Privadas Internaci-onais. Através do Decreto n. 3.087/99,o Brasil ratificou-a, implementando-ainternamente, impondo-se, a orientaçãodo Ministério da Justiça que passou aexercer as funções da Autoridade Centralindicada na referida Convenção.

Em princípio, o entendimento con-solidado tem sido no sentido de que es-trangeiros e brasileiros residentes forado país devem submeter-se à ComissãoEstadual Judiciária de Adoção – C.E.J.A,os documentos para adoção emitidos pelaautoridade de seu país; os estrangeirosresidentes em território nacional, com-provado o ânimo de permanência, serãotratados como os nacionais, dispensan-do a apresentação dos documentos pre-vistos no artigo 51-ECA e submetendoaos procedimentos próprios da Justiçada Infância e Juventude.

O status de residente outorga, por-tanto, ao estrangeiro o direito de pleite-ar a adoção nas mesmas condições dosbrasileiros que vivem no Brasil, comodetermina o Estatuto da Criança e doAdolescente (Lei nº. 8.069/90).

O que se pretende priorizar é a per-manência do adotado no Brasil, semprivá-lo, bruscamente, de conviver comseu idioma, suas tradições, cultura eacarretando o rompimento com suasraízes. A adoção por estrangeiro residen-te no território brasileiro vai permitir quea criança mantenha seus costumes eadquira os hábitos do adotante, sembruscas mudanças.

Essas pessoas serão avaliadas emseu cotidiano pela Equipe Interprofissi-onal do Juizado da Infância e Juventu-de, o que permitirá uma melhor apreci-ação deste ânimo de permanência noBrasil. Nestas hipóteses devem ser con-siderados, primordialmente, os docu-

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mentos comprobatórios ou outros ele-mentos que indiquem, de forma irrefu-tável, o ânimo de permanência no territó-rio nacional.

É obrigatório o Estágio de Convivênciacumprido no Território Nacional (mínimo de15 dias para crianças com idade até 2 anose um mês para crianças maiores de 2 anos)previstos no art. 46, § 2.º, ECA. Será manti-do um registro estadual centralizado de in-teressados residentes no exterior e umregistro de crianças a serem adotadas.

No caso de recurso da sentença quedefere a adoção para residentes fora do país,será recebida a apelação com efeitosuspensivo uma vez que a decisão estarásujeita à revisão em instância superior. Evi-ta-se, desta forma, a saída da criança ouadolescente do país antes do trânsito emjulgado da sentença. Esta questão não estácontida no Código Civil de 2002, mas deveráser adequada à nossa realidade legislativa.

Merece referência especial a orienta-ção assumida pelo Ministério da Justiça naNOTA 2/2 de 2002, ao estabelecer a proibi-ção de Advogados atuarem nas Adoções In-ternacionais, senão através de Agências.

Esclareça-se que na Convenção deHaia/93 não há referência específica, entreos requisitos processuais, de procedimentoespecial de habilitação para a Adoção; refe-re-se a “relatório que contenha informaçõessobre a identidade, capacidade jurídica e ade-quação dos solicitantes para adotar” (art. 15), bem como, “relatório que contenha infor-mações sobre a identidade da criança, suaadotabilidade, seu meio social, sua evoluçãopessoal e familiar, e ainda, seu históricomédico pessoal e familiar, assim como quais-quer necessidades particulares da criança”(art. 16).

O Art. 51-ECA refere-se aos documen-tos necessários e o art. 52-ECA menciona olaudo de habilitação. Conclui-se, portanto,tratar-se os procedimentos administrativosprobatórios, identificados como “subsídios porescrito, mediante laudos” elaborados pelaequipe interprofissional e previstos no Art.151-ECA.

Sendo de natureza “pericial”, re-presenta um serviço auxiliar do Siste-ma da Justiça da Infância e Juventude

e, na forma do Art. 151- ECA, está sob aimediata subordinação da autoridadejudiciária. O laudo técnico deverá acom-panhar a petição inicial. Por outro lado,a CEJA é também qualificada como “ju-diciária” designando que a Comissãoatua naquele espaço de Poder reserva-do ao Judiciário.

O vínculo da adoção constituído porsentença judicial (art. 1623 do novoCódigo e no art.47-ECA) e a suairrevogabilidade prevista no Art. 48-ECA,dão à adoção o seu caráter definitivo.Tanto assim que, o art. 24 da Conven-ção determina que “uma adoção só po-derá ser recusada em um Estado Con-tratante se for manifestamente contrá-ria à ordem pública”.

Portanto, a atuação de um Advoga-do não pode ser afastada por um atoadministrativo do Ministério da Justiça.Trata-se de flagrante violação à regraconstitucional do art. 133 ao declarar oadvogado “indispensável à administraçãoda justiça”. Da mesma forma, a Lei nº.8. 906/94( Estatuto da Advocacia e daOrdem dos Advogados do Brasil) deter-mina no art. 1º ser atividade privativa doadvogado “a postulação a qualquer órgãodo Poder Judiciário”. Sendo explícita anorma constitucional, ficam afastadosentendimentos restritivos.

Mesmo após a ratificação da Con-venção não se pode falar em conflito deatribuições entre a CEJA e o Juiz da In-fância e Juventude no que concerne àAdoção; aquele órgão exerce atividadessubsidiárias à atividade jurisdicionalexercida pelo Juiz da Infância e Juven-tude. Sua natureza complementar nãopode afastar a atuação do Advogado.

Eu tenho defendido o critério da“residência habitual” para identificar aadoção como nacional, devendo ser fei-ta a prova da intenção dos adotantespermanecerem no país – não eternamen-te – mas enquanto estiverem aqui tra-balhando, a criança que for adotada porestrangeiro vai ficar um período no Bra-sil, vai se adaptar à cultura e aos hábi-tos dos adotantes, sem aquele rompi-mento no prazo máximo dois meses que

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ocorre na adoção internacional - isso àsvezes é um pouco drástico na vida dacriança. Vivemos o desafio da recons-trução e recomeço com o novo Código oque exigirá dos intérpretes e operado-res do Direito lucidez e criatividade.

A grande verdade é que a adoção,a cada dia, tem representado uma gran-de chance de colocação familiar. Eu que-ria lembrar, inclusive, que pela Lei10.421/2002, hoje temos a licença-ma-ternidade para adoção, quase nas mes-mas condições da medida na hipótesede gestação. Ao acrescer à CLT o art.392-A previu-a “no caso de adoção ouguarda judicial de criança” com prazosdiversificados, considerando a idade dacriança: até 1 (um) ano de idade, o perí-odo de licença será de 120 dias; a partirde 1 (um) ano até 4 anos de idade, alicença será de 60 dias; crianças commais de 4 anos até 8 anos de idade, operíodo de licença será de 30 dias. Exi-ge-se, para isso, a apresentação do ter-mo judicial de guarda à adotante ouguardiã. Configura-se como “interrupçãodo contrato de trabalho sem prejuízo do em-prego e do salário”; não se aplica, em prin-cípio, o aumento dos períodos de repou-so, de duas semanas, previsto no § 2.ºdo art. 392, salvo situações excepcionaisvinculadas às condições da criança. Opróximo passo será a regulamentação dalicença-paternidade na adoção e os direi-tos previdenciários já reconhecidos àadotante, permitindo ao adotante umperíodo de convivência com o adotado.

Eu gostaria, antes de agradecer aossenhores a atenção, lembrar que tenhoa honra de representar, no Rio de Janei-ro, o IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direi-to de Família – e maior é a minha honrade estar trabalhando, permanentemen-te, com o Fórum Permanente de Direitode Família, sob a coordenação da Des.Maria Raimunda, que tem desenvolvidogrande esforço no sentido de promoverfreqüentes debates sobre temas estraté-gicos dentro do Direito de família.

O IBDFAM existe em todos os Es-tados; temos o nosso site, revista trimes-tral e boletins, e desenvolvemos um tra-

balho muito importante, no sentido deidentificar essas questões maiores, prin-cipalmente ligadas ao Direito de Famí-lia e ao Estatuto da Criança e do ado-lescente.

DEBATES

Des. Áurea Pimentel PereiraDando início aos debates, eu inda-

go se o nosso colega, o juiz de família,Dr. Ricardo Cardozo tem alguma pergun-ta a fazer.

Dr. Ricardo Rodrigues CardozoEu estou satisfeito, Desembargado-

ra, com a exposição. Trata-se, principal-mente em relação à filiação, de um temapolêmico; até sugiro que, numa outraoportunidade, nós possamos renovarisso, porque certamente a ProfessoraHeloisa terá muito mais a dizer - eu co-nheço o seu trabalho, embora só a te-nha conhecido pessoalmente hoje. A Pro-fessora Tânia, também, fez uma brilhanteexposição sobre a adoção e a Dra. Kátia,de quem eu sou um admirador, Curado-ra de Família da 11ª Vara, da qual eusou juiz, conheço o seu trabalho, e te-mos discutido muitos pontos a respeitodisso. Eu me dou por satisfeito.

Dra. Heloisa Helena BarbozaCom relação a uma outra partici-

pação para discutir o tema de Família,estou inteiramente à disposição. Reite-ro que é com o maior prazer que eu ve-nho à EMERJ para fazer essas discus-sões, que só enriquecem esse trabalhode construção, como eu já tive a oportu-nidade de dizer, de um novo Direito Ci-vil. Eu só queria aproveitar essa oportu-nidade, já que me deram a palavra, paradeixar uma frase de reflexão final, semnenhuma pretensão. Precisamos ter umpensamento, um pressuposto para aná-lise de todas essas relações – e nesseponto quem me inspirou foi a ProfessoraTânia, com a sua brilhante exposição –especialmente das relações de família,em qualquer área do Direito, quer sejana Magistratura, quer seja no Ministé-

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rio Público, na Advocacia ou no Magisté-rio: não estamos lidando com um pro-blema jurídico mas, antes de mais nada,estamos lidando com um problema hu-mano. Então, nós temos que buscar nasregras jurídicas a melhor solução paraaquele problema humano, especialmen-te nas relações de filiação. Era só essareflexão final que eu queria deixar.

Des. Sergio Cavalieri FilhoConfesso que não fiz, ainda, um

estudo detalhado com relação ao novoCódigo Civil no Direito de Família e, porisso, as explanações de hoje me forammuito úteis e, ao mesmo tempo, me cau-saram certa perplexidade. Eu gostariaaté de ouvir o pensamento das ilustrespalestrantes. Ao longo do Código Civil,sempre se percebe uma linha, tanto noDireito das Coisas, como no Direito dasObrigações etc. No Direito de Famíliaanterior ao que está no Código, tínha-mos também uma certa linha, privilegi-ando um certo entendimento. Eu sintoque agora as coisas não ficaram assimmuito definidas, pelo menos para mim,ou não estão. Eu gostaria de saber o queé que a Professora Heloisa pensa a res-peito, e como é que vamos enfrentar essaquestão.

Dra. Heloisa Helena BarbozaDesembargador, acho que a sua

dúvida é de todo procedente - e foi umdos pontos que eu procurei indicar, de-pois de um estudo, principalmente daparte de Direito de Família, e em parti-cular da relação de filiação: não se con-segue sentir essa linha de orientaçãodo Código. Como eu tentei especificarem matéria de filiação, qual é o critériode paternidade? São três os critérios. Éo critério biológico que deve prevalecer,ou é o critério socioafetivo? Lembrando,por exemplo - a prevalecer, bem enten-dido, o projeto complementar - numarelação de filiação que tenha sido oriun-da de uma inseminação heteróloga (querdizer, o casal tem um filho com um doa-dor), caso se permita a esse doador vir acontestar essa paternidade, dando-se

primazia ao vínculo biológico, ele desfazuma paternidade já existente, e eu in-sisto: a figura do pai - e aí nós temosmuito o que aprender com os psicólogos- é importantíssima para a formação dapersonalidade, para a identidade de cadaum de nós; é a figura popular daproteção. Portanto, não se pode, de re-pente, desfazer uma relação de pater-nidade já existente, às vezes, há maisde uma década, para fazer prevaleceruma relação biológica. Principalmente ojulgador, deve ter muita sensibilidadenessa hora para medir, contrabalançaresses valores que estão envolvidos por-que, voltando ao início da pergunta doDes. Sergio Cavalieri, realmente o Có-digo nos deixa numa certa instabilida-de, ao ponto de que se esse projeto novovier a ser aprovado, qualquer interessa-do pode impugnar uma paternidade.Quem é interessado para impugnar umapaternidade? Nós não podemos esque-cer que, atrás de muitas discussões so-bre paternidade, existem, na verdade,interesses econômicos, porque o estadode filiação está diretamente vinculadoa questões patrimoniais graves, como asquestões de sucessão.

Des. Sergio Cavalieri FilhoO Ricardo teve aí o privilégio de res-

saltar que a Professora Kátia é Curadorada Vara de Família de que ele é titular.Isso me traz à memória uns tempos bas-tante felizes: eu era juiz de FazendaPública, ainda jovem, e tive o privilégiode ter uma jovem Curadora de Fazenda,que era a Professora Heloisa, e comeceia admirá-la pelos seus pareceres - to-dos nós juízes sabemos o que é um bomparecer, como ajuda, como contribui, ecomo não ajuda um mau parecer - e,com o tempo, aquilo que era uma voca-ção despontante, tornou-se essa reali-dade que deixa todos nós cheios de or-gulho de vê-la atuando, não só no Rio deJaneiro, mas em todo o Brasil. E eu fa-ria a ela, ainda, uma outra indagação:Professora, observa-se ao longo de todoo novo Código Civil o propósito de deixarao juiz uma grande margem de respon-

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sabilidade no julgamento, através dascláusulas abertas, das cláusulas gerais,boa-fé, função social etc. Essa incertezacom relação a uma certa linha a adotar- e ora é essa paternidade, ora aquela -será que não é também um propósito dolegislador de deixar essa questão a serresolvida, caso a caso, pelo juiz?

Dra. Heloisa Helena BarbozaA pergunta foi muito bem formula-

da e há uma tendência, vamos dizer as-sim, contemporânea, do legislador emusar para disciplinar assuntos contro-versos e de difícil solução, pela suamultiplicidade de possibilidades fáticas,as chamadas cláusulas gerais ou os con-ceitos indeterminados. Terá sido essa aintenção do legislador no Código Civil,no que pertine ao Direito de Família?Poderá até ter sido, e vai acabar sendo,como o senhor bem disse, porque na ver-dade a solução para todas as dúvidas quesurgirão, certamente, na aplicação des-ses dispositivos, nós vamos buscar emconceitos, em cláusulas generalíssimas,digamos assim, que estão na Constitui-ção Federal...

Des. Sergio Cavalieri FilhoA Sra. começou a falar dos princí-

pios, não é?

Dra. Heloisa Helena BarbozaExatamente, são os princípios que

estão na Constituição Federal. Como éque o juiz vai decidir o que é melhor, porexemplo, numa determinada situação deestabelecimento de filiação com relaçãoa uma criança? Em última análise, eletem que sopesar, também, além do di-reito dos envolvidos, o melhor interesseda criança. Eu tenho até pensado e pro-posto o seguinte: em determinadas si-tuações, num conflito entre uma pater-nidade biológica e uma paternidadesocioafetiva já existente, como seria ocaso (alguém já é pai há muitos anos, ede repente aparece o pai biológico: “olha,eu sou o pai, eu quero essa paternida-de”), há de se considerar o que é me-lhor para a criança, principalmente.

Será que é bom para aquela criança, derepente, ver-se despojada daquela pes-soa que foi, a vida inteira, pai para ela?Quer dizer, esses princípios, com certe-za, trazem conceitos indeterminados econstituem cláusulas gerais que certa-mente serão aplicados.

Des. Sergio Cavalieri FilhoEu gostaria, ainda, de fazer uma

indagação à Professora Kátia. A Profes-sora Kátia destacou que o novo CódigoCivil, como o antigo, nada fala sobre orestabelecimento do poder familiar. Mas,na projeção feita, se não me engano,verifiquei que, no caso de destituição depoder familiar, a criança pode ser colo-cada em família substituta. A colocaçãoem família substituta, não tornaria in-compatível a eventual possibilidade derestabelecimento do poder familiar?

Dra. Kátia MacielSem dúvida, Desembargador, inclu-

sive, essa premissa da possibilidade dorestabelecimento está fulcrada,exatamente, no estabelecimento da re-lação jurídica continuativa. No caso dehaver uma adoção posterior, não existi-rá mais a relação jurídica com a famíliabiológica. Logo, por ser irrevogável aadoção, não há possibilidade de se res-tabelecer o poder familiar.

Dr. Ricardo Rodrigues CardozoEu até tinha me dado por satisfei-

to, mas depois das indagações doDesembargador Cavalieri à ProfessoraHeloisa me veio à mente, apenas a títu-lo de contribuição, um comentário sobrea parte prática, a vivência do juiz de fa-mília, e eu me coloco, nesse aspecto,como juiz de família há quase sete anos:talvez realmente, Professora Heloisa, omelhor seja deixar como essas cláusu-las abertas, porque eu me vi, ao longodesse tempo, diante de casos em queeu não tinha o suporte legal e, aindaassim, deferi; já permiti que avô viessequestionando a paternidade de neto, jápermiti, já julguei improcedentes pedi-dos em que eu tinha absoluta certeza

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de que o pai biológico era o autor, masque considerando a paternidadesocioafetiva, o aspecto socioafetivo, o me-lhor para a criança era manter aquela si-tuação. Então, talvez o melhor seja deixaraté que o bom-senso do Magistrado possadirimir isso, porque cada caso é um caso,do que nós ficarmos presos a dispositivosque nos limitam. Então, apenas a títulode contribuição, é a experiência de umjuiz de família diante de casos concretos.Apenas isso que eu gostaria de colocar.

Dra. Heloisa Helena BarbozaSe a direção da mesa me permite,

eu fico até satisfeita de ter essa contri-buição, que considero fundamental, doque é a realidade prática, porque o quenós verificamos, fazendo estudos doutri-nários mais aprofundados - e isso já vemda doutrina alemã - é que exatamente oque se superou, hoje, foi a pretensão quehouve, de uma época principalmente, di-gamos, do império do positivismo, de teruma lei exaustiva, uma lei que fosse aptaa disciplinar todas as hipóteses possíveisde serem verificadas, o que realmenteera uma ambição muito grande, e as clá-usulas gerais vêm permitir ao juiz daresse real e atual conteúdo da lei.

Des. Áurea Pimentel PereiraAntes de transmitir à Professora

Heloisa, as perguntas que vieram do au-ditório, eu quero me permitir ouvir a opi-nião da Professora Tânia, a respeito deum dispositivo que foi transportado doEstatuto da Criança e do Adolescentepara o nosso novo Código Civil, a respei-to do qual eu tive sempre uma visãomuito intransigente: o parágrafo únicodo artigo 1.622 repete o parágrafo 4º doartigo 42 do Estatuto da Criança e doAdolescente, permitindo que divorciadose os judicialmente separados possamadotar conjuntamente, contanto queacordem sobre a guarda e o regime devisita e desde que o estágio de convi-vência tenha sido iniciado com constân-cia da sociedade conjugal. Todavia, oartigo 1.625 do nosso novo Estatuto Civilé peremptório no sentido de dizer que

somente será admitida a adoção queconstituir efetivo benefício para oadotando. Então, a minha indagação é aseguinte: onde estará o benefício de emum lar desfeito, em uma família desmo-ronada, se permitir uma adoção?

Dra. Tânia da Silva PereiraEu acho que o fato de o casal estar

separado, não significa necessariamenteque tenha se desfeito esse laço deafetividade que exista com aquelas pesso-as. De modo que, em nome do melhor in-teresse da criança, o fato de estar o casalseparado, desde que estejam estabelecidasregras de convivência, seja como guardacompartilhada, ou mesmo num regime devisitação normal, é perfeitamente possívelessa convivência. Mesmo que não existamais uma relação de conjugalidade, masexista amizade e respeito, e eu consideroque o amor pelos filhos, sejam adotivos ounão, não se reduz pelo fato, pura e sim-plesmente, da separação.

Quando o art. 1.622, caput, estabe-lece que: “ninguém pode ser adotado porduas pessoas, salvo se forem marido e mu-lher, ou se viverem em união estável”, querdizer, se eles tiverem vivido em uniãoestável, mas já estiverem separados, etiverem um bom relacionamento, embo-ra não previsto legalmente, nada impe-de que se estabeleça um regime de guar-da e de convivência entre essas pessoasno que concerne aos filhos. Eu conside-ro que existe um espaço, efetivamente,em nome da relação de carinho e deamor, para esse casal, mesmo que este-ja separado possa prosseguir na adoção.

Eu queria, nessa oportunidade, lem-brar que no nosso convênio do IBDFAMcom o Fórum Permanente de Direito deFamília, no dia 1º de novembro vamos dis-cutir a maternidade no novo Código Civile a legislação correlata, de modo que aquina EMERJ vamos ter a honra em recebertodos aqueles que tiverem interesse noassunto e queiram participar.

Des. Áurea Pimentel PereiraEntão, prosseguindo os debates, a

primeira pergunta que é dirigida à Pro-

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fessora Heloisa Helena, pela debatedoraRegina Passos, juíza de São Gonçalo, éa seguinte: não seria uma limitação ao“cheque assinado em branco”, concedi-do ao marido na desistência da autori-zação para a inseminação heterólogado artigo 1.597, a criação de um prazodecadencial curto?

Dra. Heloisa Helena Barboza Olha, a idéia é a seguinte: eu acho

que na hora em que o marido consentecom a inseminação, ele assume umaresponsabilidade; ele está no exercíciode um direito constitucionalmente ga-rantido, o direito ao planejamento fa-miliar, no sentido de ter, constituir umaprole. Mas, nós não podemos esquecerque se esse marido – até na linha dapergunta que a Desembargadora formu-lou e que a Professora Tânia respondeu,como sempre, com muita perspicácia,com muita humanidade, no sentido darelação amorosa que pode ter-se consti-tuído – se arrepende daquele seu ato,poderia se dar um prazo para ele revogá-lo no máximo até que a mulherengravide. Se ela engravidar, ele nãopoderia mais revogar, porque isso signi-ficaria dizer que aquela criança ficariasem paternidade, inclusive a permane-cer a idéia do sigilo com relação ao paibiológico, que efetivamente pai jamaisdeveria ser, porque o doador de sêmenquer tudo, menos ser pai de alguém – oque ele está fazendo é um ato de solida-riedade, de colaboração com a soluçãode um problema alheio, masefetivamente não se tem notícia de quealgum doador tenha ido buscar o seu fi-lho, embora até a possibilidade exista.Eu não sei se foi essa a pergunta, per-doe-me, mas dever-se-ia colocar uma li-mitação a essa possibilidade de ele searrepender, digamos assim.Des. Áurea Pimentel Pereira

A segunda pergunta, também paraa Professora Heloisa, é da nossa colega,juíza Elizabete Aguiar, da 3ª Vara deFamília de Duque de Caxias, que inda-ga: O projeto de Lei 6.960, referido pelapalestrante, prevê alguma alteração

quanto ao prazo de 4 anos do artigo 1.614do novo Código Civil, para que o filho possaimpugnar a paternidade, considerandoque, a nosso ver, houve tratamento de-sigual quanto à impugnação da paterni-dade pelo pai, marido, no artigo 1.601do novo Código Civil?

Dra. Heloisa Helena BarbozaPrevê sim, pois ele tira o prazo, ele

simplesmente não se refere mais a pra-zo algum. Ele mantém a redação, supri-mindo a parte final, ou seja, o prazo ficaem aberto, não há mais prazo. Apenasuma observação: o projeto é muito ex-tenso, são vários artigos, e alguns de-les, especificamente dessa parte que nósexaminamos aqui rapidamente, são com-plexos, difíceis, são até, digamos assim,de benefício duvidoso. Mas algumas pro-postas são interessantes e vieram real-mente preencher lacunas que haviamrestado da redação original.

Des. Áurea Pimentel PereiraA terceira pergunta: Professora He-

loisa, como proceder diante do caso deum pai que trata os filhos da atual com-panheira com regalias, e diz que só dáuma vida digna para o seu primeiro filhose ele for morar com a nova família dopai, sabendo que todos os filhos têm omesmo direito e que esse primeiro filhonão desfruta de nenhuma dessas rega-lias?

Dra. Heloisa Helena BarbozaQue tratamento dar a esse pai? O

princípio básico que orienta todos essestipos de relação, é o princípio do melhorinteresse. Se realmente ele dá essasregalias para os filhos da companheirae não dá para o seu primeiro filho, eleestá fazendo chantagem material ouemocional com o primeiro filho. Se essachantagem, me permitam aí a expres-são, for de tal proporção que esteja cau-sando um prejuízo para a criança, euconsidero que cabem as medidas que opróprio Estatuto prevê, de chamar o pai.A autoridade para responder essa per-gunta é a Dra. Kátia, especialista no

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assunto. Mas o meu palpite, como leiga,é no sentido de que, se realmente essadiscriminação, que ele está promoven-do, está causando um malefício, o Esta-tuto tem algumas medidas para que sechame esse pai. Dever-se-ia ver se a dis-criminação é suficiente para motivar umprocedimento para a aplicação de san-ções administrativas, ou até penais. Eunão sei que tipo de discriminação, queregalia que ele está dando; será que eleestá deixando o filho mais velho semcomer? Não sei...

Des. Áurea Pimentel PereiraA seguinte pergunta, professora He-

loisa, não está assinada pelo debatedor;ele indaga: o artigo 41 do Estatuto daCriança e do Adolescente, Lei 8.069/90,prevê que a adoção rompe o vínculo doadotando com a sua família biológica,salvo para impedimentos matrimoniais.Esse dispositivo, além de fundamentomoral, tem fundamento na preservaçãoda prole, no aspecto biológico. O novoCódigo prevê a reprodução assistidaheteróloga. Qual a opinião da palestrantea respeito da ausência de previsão legalsemelhante ao artigo 41 do Estatuto daCriança e do Adolescente, face ao fun-damento biológico do dispositivo com re-lação à reprodução assistida heteróloga

do material? O anonimato do doador deveser respeitado sempre?Dra. Heloisa Helena Barboza

Se eu entendi bem a pergunta, elequer saber se, na ausência de dispositi-vo expresso, o fato da reproduçãoheteróloga, por si só, rompe o vínculo bi-ológico, o vínculo de parentesco, com odoador, que seria o pai biológico. Eu en-tendo o seguinte: a lei cria uma presun-ção de paternidade. Então, em princí-pio, o pai é o marido, por força do queestá na lei. A sua pergunta, talvez, sejaa seguinte: como a proposta decomplementação do Código diz que ospais biológicos podem investigar, teori-camente o doador poderia vir investigar,porque efetivamente, não há nenhumdispositivo nesse sentido. Um dessesprojetos que eu mencionei, que discipli-nam em particular a reprodução assis-tida, em todos os seus efeitos, especial-mente jurídico, diz expressamente, naúltima versão, que é o Projeto de Lei 90,que não surge vínculo de parentescoentre o doador e o filho – quer dizer,assim se resolveria esse problema. Mas,na ausência, e principalmente se pas-sar o projeto, nós vamos ficar com esserisco e que, na prática, vai ser de difícilverificação, mas nunca se sabe o que

vai no coração humano ... .

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Aspectos ligados ao Poder Familiar, àGuarda e à Tutela

Os temas que ficaram a nosso en-cargo são o poder familiar, a guarda e atutela, estes últimos entendidos comomodalidades de colocação em famíliasubstituta.

O primeiro exame que faremos dasinovações do Código Civil de 2002, refe-rentemente aos institutos relacionadosaos direitos da criança e do adolescen-te, diz respeito ao pátrio poder, que re-cebeu uma roupagem moderna, umafunção mais abrangente e passou a de-nominar-se “poder familiar”. Muita crí-tica fez-se à manutenção da expressão“poder” desse complexo de direitos e de-veres, uma vez que mantém aceso umresquício ultrapassado da terminologiada longínqua família patriarcal romana.Apesar das inúmeras sugestões doutri-nárias no sentido de mudar-se a nomen-clatura para “autoridade parental”, ou“autoridade familiar”, o legislador civilmanteve a expressão “poder” e acrescen-tou a qualificação “familiar”. Mesmo ina-dequada a denominação atual, o que nosinteressa enfocar é o conteúdo, e o quenele mudou.

Com efeito, o exercício compartilha-do dos pais apreendido pelo novo CódigoCivil já estava previsto no artigo 21 doEstatuto da Criança e do Adolescente.Trata-se de uma função que deve serassumida por ambos os genitores, e nãosomente pelo pai com o auxílio e a cola-boração da mãe, o que equivale a dizerque essa correta noção do papel dos ge-nitores vigora desde 1990, com o referi-do Estatuto, sendo incorporada, comoassinalamos, ao novo Código Civil

(art.1631). Porém, o conceito tornou-semais complexo, a partir da ConstituiçãoFederal de 1988, como analisaremos aseguir. Compreende-se o instituto comoa função compartilhada dos pais, comrelação à pessoa e aos bens do filho me-nor (a maioridade civil foi reduzida para18 anos), objetivando sempre o melhorinteresse desse filho.

No que tange às tradicionais obri-gações dos genitores elencadas no Có-digo Civil de 1916, basicamente não hánovidades na novel Lei Civil. A propósi-to, ao lado do dever de bem administraros bens do filho, de representá-lo ou as-sisti-lo destacamos os três deveres bá-sicos previstos no Estatuto da Criança edo Adolescente (art. 22), as quais sejam:o sustento, a guarda e a educação - obri-gações primárias dos pais.

Ressaltamos, todavia, uma omis-são importante do legislador civil. O di-reito da personalidade dos mais relevan-tes, fundamental para a individualiza-ção e a vinculação do ser humano a umadeterminada família - o nome (art. 16 doCC) - não foi expressamente previsto norol das obrigações legais dos pais comrelação ao filho. É o dever primário dosgenitores de conferir-se, imediatamen-te após o nascimento, o nome ao filhorecém-nascido, através do devido regis-tro civil, fornecendo os dados completos(maternos e paternos) para a lavraturada certidão.

Quem milita na área da infância ejuventude entende o constrangimento deefetuar-se um registro de nascimentocom dados de caridade de uma criançacuja origem de filiação é desconhecida.Por outro lado, são muitas as famíliascarentes, cujos pais são identificados,que não foram orientados e não se preo-cupam em registrar o filho. É indispen-

O Estatuto da Criança e do Adolescente noNovo Código Civil

KÁTIA REGINA FERREIRA LOBO ANDRADE MACIELProfessora da UERJ

Palestra proferida no Seminário realizado em 13/09/2002

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 133

sável que este direito fundamental sejacumprido e, para tanto, os órgãos públi-cos devem incentivar e facilitar o acessoao registro civil. O Ministério Público Es-tadual, notadamente os órgãos comatribuição de Registro Civil e de Família,precisam fiscalizar com mais eficiência osCartórios de Registro Civil de PessoasNaturais, quanto ao cumprimento do arti-go 2º da Lei nº 8.560 de 29/12/1992 queimpõe ao oficial desse Cartório a obriga-ção de perquirir junto à mãe da criançaque está sendo registrada os dados depaternidade para, a partir daí, notificadoo suposto pai, haver o reconhecimento vo-luntário ou a propositura da ação de in-vestigação para a complementação dacertidão com todos os dados de ascendên-cia biológica do menor. A defesa deste di-reito individual indisponível é uma atri-buição constitucional do Ministério Públi-co (art. 127). Certamente, com o apoio doPoder Judiciário, de mãos dadas, esse di-reito fundamental do ser humano serádevidamente respeitado pelos pais.

Não podemos esquecer, logicamen-te, dos direitos fundamentais do filhomenor de 18 anos previstos no artigo 227da Constituição Federal do Brasil de1988, como o direito à vida, à saúde, àeducação, à alimentação, ao lazer, à pro-fissionalização, à cultura, à dignidade,ao respeito, à liberdade, à convivênciafamiliar e comunitária. Também estesdireitos devem ser respeitados não sópela sociedade, pelo poder público, masprincipalmente pelos genitores.

Ocorre que, no exercício desse po-der familiar, é importante que os paisestejam preparados e imbuídos da res-ponsabilidade de exercer plenamenteessa autoridade. Na maioria dos casos,entre pessoas muito jovens, por não ha-ver qualquer planejamento ou orienta-ção inicial a imaturidade frente a novarealidade se transforma em ansiedade,nervosismo e, por vezes, em atitudes vi-olentas e negligentes. Existem outrostantos casos em que os pais querem exer-cer plenamente o poder familiar, mas afalta de recursos financeiros impede oudificulta o referido exercício. Em comu-

nidades mais carentes, existem inúme-ras famílias que, devido ao desempregoou ao subemprego dos pais, não conse-guem garantir a subsistência própriaquanto mais a educação e a assistênciamaterial dos filhos. Chamamos a aten-ção do leitor para o fato de que, apesarda falta de recursos não ensejar a per-da do poder familiar (art. 23 do ECA), efe-tivamente, no Brasil, a pobreza impedee dificulta o exercício desse poder, namedida em que os filhos, com muita fre-qüência, são entregues aos cuidados doPoder Público, como por exemplo o enca-minhamento a abrigo provisório (art. 101,VII do ECA).

A interferência de estranhos noexercício ineficiente do poder familiarpelos pais é um tema que diuturnamen-te alcança mais e mais discussões. Cha-mamos a atenção do leitor para a veda-ção inovadora do artigo 1.513 do novoCódigo Civil: “é defeso a qualquer pessoa,de direito público ou privado, interferir nacomunhão de vida instituída pela família”.Aparentemente, haveria uma limitaçãoao controle do poder familiar por consti-tuir política pública o respeito à digni-dade familiar. Na realidade, a proibiçãosó ocorre à primeira vista porque atra-vés de interpretação sistemática daquelanorma com o Estatuto da Criança e doAdolescente e, principalmente, com aConstituição Federal, é inevitável con-cluirmos haver um aumento progressivoda “socialização dos deveres familiares”(expressão formulada por Orlando Go-mes).

Realmente, é dever de todos zelarpela dignidade da criança e do adoles-cente, pondo-os a salvo de qualquer tra-tamento desumano, violento, aterrori-zante, vexatório ou constrangedor (art.18 do ECA). A obrigação, portanto, é con-junta da família, do Poder Público, dasociedade ou de qualquer pessoa salva-guardar o direito prioritário do filho ame-açado pelo atuar impróprio dos pais. Su-blinhamos, por exemplo, o artigo 226,parágrafo 8º da Constituição Federalquando estabelece que “o Estado assegu-rará a assistência à família na pessoa de cada

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um dos que a integram, criando mecanismospara coibir a violência no âmbito de suas re-lações” e o artigo 227 que dispõe ser de-ver da sociedade e do poder público, jun-tamente com a família, colocar a salvocrianças e adolescentes “...de toda for-ma de negligência, discriminação, explora-ção, violência, crueldade e opressão”.

Assim, pode e deve o poder públicoe toda a sociedade “denunciar” o des-cumprimento dos direitos fundamentaisde crianças e de adolescentes emanadodo mau exercício do poder familiar.

Enumeramos uma série de medi-das encontradas no Estatuto da Crian-ça e do Adolescente, de cunho protetivo,às vezes punitivo e, principalmente, pre-ventivo, aplicadas pela autoridade com-petente, dependendo do elemento voli-tivo dos pais, pelo exercício inapropriadodo poder familiar. São elas: a inclusãoem programas de auxílio à família (pará-grafo único do art. 23 do ECA); medidasprotetivas à criança ou ao adolescente(art. 101, I a VIII do ECA); medidas aplicá-veis aos pais (art. 129, incisos I a X doECA); medida cautelar de afastamentodo agressor (art. 130 do ECA); aplicaçãode multa por infração administrava emRepresentação (art. 249 do ECA); Desti-tuição do Poder Familiar (art. 155 a 163do ECA); medidas criminais (art. 232, 233e 238 do ECA), dentre outras.

O Estatuto da Criança e do Adoles-cente limita a aplicação das medidasprotetivas específicas do art. 101 a cri-anças e aos adolescentes que estejamna situação do artigo 98, ou seja, quan-do ambos os genitores sejam omissos oufaltosos. Para a aplicação das outrasmedidas, a lei não faz restrição, hajavista que o Estatuto visa a proteção detoda e qualquer pessoa em desenvolvi-mento menor de 18 anos de idade.

Em sede de Família, com lamentá-vel freqüência, constatamos a necessi-dade da pronta intervenção judicial paraevitar que os pais utilizem os direitosdos filhos como instrumento de vingan-ça e ódio um para com o outro. Nota-se,nestes casos, a urgência de aplicar-se amedida de advertência aos pais para que

cessem de causar prejuízos emocionaisao filho. Pergunta-se, então: Existe ve-dação quanto à aplicação do artigo 129do ECA nas varas de família, como umamedida preventiva em relação aos des-vios do exercício do poder familiar? Ocitado artigo não faz qualquer referên-cia à autoridade competente para apli-cá-lo. O art. 136 do ECA elenca dentreas atribuições do Conselho Tutelar, a deatender e aconselhar os pais ou respon-sável, aplicando as medidas previstas noart. 129, I a VII . Excluiu-se da relaçãode atribuições daquele órgão municipalde defesa da criança, as medidas judi-ciais de perda da guarda, destituição datutela e suspensão ou destituição dopátrio poder (art. 129, VIII, IX e X).

Ora, se o Conselho Tutelar (órgãonão jurisdicional) pode aplicar medidasaos pais, não vemos óbices à aplicaçãodaquelas pelos Juízes de Família. Nagradação das medidas aplicáveis aos paisdo art. 129 do ECA, têm-se, ainda, osencaminhamentos dos pais a programasde auxílio e a tratamentos diversos, aperda da guarda e a suspensão ou des-tituição do poder familiar, todas medi-das perfeitamente conciliáveis à compe-tência do Juízo de Família. Acreditamos- e vimos agindo assim - que essas me-didas podem e devem ser aplicadas tam-bém pelas varas de família, e não so-mente pelas varas de infância e juven-tude.

Além daquelas previstas no Esta-tuto, mister salientar a medida de in-tervenção ao poder familiar consistentena inclusão da família em programas deauxílio (art. 203 da Constituição Federal/1988), medidas cautelares de retiradado menor vítima do seio familiar (artigos839 e 888, IV e V do Código de ProcessoCivil) e sanções penais ligadas ao exer-cício do poder familiar (artigos 241 a 249do Código Penal).

Assinalamos que a infração admi-nistrativa tipificada no art. 249 do ECAmencionada acima, enseja a propositu-ra pelo Ministério Público (art.201, X doECA) de Representação em face dos paisperante as varas da infância e juventu-

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 135

de (art. 194 a 197 do ECA). Para essamedida punitiva, entretanto, há expres-sa indicação da competência exclusivada vara menorista (art. 148, VI do ECA).

Visto isso, passemos a comparar oque mudou com relação à extinção dopoder familiar. Basicamente, a altera-ção ocorreu no fato de ter sido acresci-da a decisão judicial (de perda do poderfamiliar) como causa de extinção, ou seja,esta passou a ser uma espécie do gêne-ro extinção do poder familiar.

Na relação de causas de extinçãodo novo Código Civil, além da morte, daemancipação e da maioridade civil, des-tacaríamos a adoção não só como formade extinção do poder familiar, mas so-bretudo de cessação dos vínculos de pa-rentesco com a família biológica. Melhoresclarecendo, a hipótese de extinção éa adoção com sentença transitada emjulgado, e não o mero consentimento dospais biológicos no sentido de que o filhoseja colocado em família substituta pelaadoção. Essa anuência é um pressupos-to para que não haja litígio na ação deadoção, mas não enseja a automáticaperda do poder familiar. É erro grave in-terpretar a concordância dos pais pre-vista no art. 45 do ECA como pressupos-to suficiente para transferir o parentes-co e sacramentar a adoção. Como vimos,portanto, somente através de decisão ju-dicial há a possibilidade da perda do po-der familiar.

Quanto à suspensão do poder fa-miliar, as hipóteses continuam sendoaquelas do Código Civil de 1916, a faltaaos deveres, a ruína dos bens dos filhos,a condenação dos pais por sentença cri-minal irrecorrível a mais de dois anos.Ressaltamos que o artigo 157 do ECApermanece vigorando, harmonioso queé com às regras do poder familiar doCódigo Civil de 2002, pois prevê decisãoliminar de suspensão do poder familiar,no curso da destituição desse poder. Aimportância da suspensão, nestes casos,consiste principalmente em resguardara integridade física e psíquica da crian-ça vítima de seu agressor.

Cabe, então, a pergunta: Perda do

poder familiar, o que mudou? Essenci-almente, as três causas enumeradas noCódigo Civil de 1916 continuam inalte-radas: castigo imoderado, abandono, atoscontrários à moral e aos bons costumes.Foi agregada a incidência reiterada nasfaltas previstas no artigo 1.637 do novoCódigo Civil nas causas de privação dopoder familiar. Ressaltamos, ainda,como causa propulsora da perda do po-der familiar o descumprimento dos de-veres básicos (aqueles que destacamosno início: a guarda, o sustento e a edu-cação). Todas as vezes que essas obriga-ções mínimas não forem observadas oudeixarem os pais de cumprirem ou faze-rem cumprir determinações judiciais,poderá configurar justa causa para afas-tamento do poder familiar (art. 24 doECA)

E o restabelecimento do poder fa-miliar? O Código Civil de 1916 não pre-via e o atual também silenciou a esserespeito. Diversos Códigos Civis como porexemplo o francês, o italiano, o portuguêse o espanhol, e aqui na América do Sul,o Código Civil argentino e o peruano, pre-vêem a recuperação do poder familiarquando os motivos que ensejaram a per-da ou a destituição estejam superados.Os pais destituídos poderão, através deação autônoma, reconquistar o poder fa-miliar perdido. Grandes doutrinadoresbrasileiros vêm sustentando esta tesehá bastante tempo. Apenas para citaralguns ilustres civilistas, Caio Mário daSilva Pereira, Orlando Gomes e SilvioRodrigues já externavam a viabilidadejurídica desta restauração. Muito em-bora omisso o Código Civil de 2002, écabível restabelecer-se o poder familiarcom fundamento no artigo 471, I, do Có-digo de Processo Civil, uma vez que a re-lação entre pais e filhos permanece ín-tegra através dos vínculos de parentes-co que os unem - apenas o poder famili-ar foi suprimido. O mérito a ser aprecia-do será o desaparecimento da causamotivadora da perda. A questão, toda-via, não é tão facilmente enfrentada,porque as conseqüências psicológicasdecorrentes daquela medida de perda

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136 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

por vezes são irreversíveis, enquanto queo afastamento físico dos pais e os filhosacaba por romper sentimentos de afetoe afeição. Por óbvio, se o liame de pa-rentesco entre o filho e os pais destituí-dos não mais existe, como na hipótesede adoção, não há mais como se recupe-rar o poder familiar (artigos 41 e 48 doECA).

Com relação ao procedimento e àcompetência para apreciação da suspen-são e da perda do poder familiar, o arti-go 2.043 do novo Código Civil expressa-mente dispõe que as normas de caráterprocessual estão mantidas em suas leisespecíficas. Logo as regras procedimen-tais dos artigos 155 a 163 do ECA perma-neceram, quais sejam, rito sumário, osmesmos prazos, a mesma cautela e li-sura deste processo tão delicado, porsuas drásticas conseqüências.

Referentemente à competênciapara o julgamento das ações de suspen-são e de perda do poder familiar, persis-te a concorrência entre as varas da in-fância e da juventude e as varas de fa-mília. O fator diferenciador continuasendo o artigo 98 do ECA: toda vez queambos os pais forem negligentes, falto-sos e omissos, a competência será dainfância e da juventude.

Existem, todavia, sugestões abali-zadas de militantes da área da infânciade tornar exclusivas dos Juizados asquestões de violência doméstica, de abu-so sexual etc. Contudo, como dissemosanteriormente, melhor será para os ju-risdicionados que ambas as varas, istoé, família e infância e juventude este-jam aptas para atender e aplicar as nor-mas preventivas, protetivas e punitivasda Lei 8.069/90, dentro de sua esferade competência.

Asseveramos, no entanto, que paraa aplicação das medidas preventivas doartigo 129 do ECA nas varas de família,torna-se indispensável capacitar-se osprofissionais atuantes nesta área, inclu-indo não somente a equipe técnica, masespecialmente Juízes, Promotores e De-fensores, de modo que a solução de situ-ações gravíssimas, como de violência do-

méstica, seja, tão ou mais, eficiente erápida quanto aquela emanada pela varaespecializada em infância e juventude.

Nossa experiência em longa atua-ção nas varas de infância e juventude etambém nas varas de família revelou-nos que existe uma discrepância enor-me no enfoque que se confere às açõesjudiciais de proteção à criança vítima deviolência. O abuso sexual de uma crian-ça pelos pais, encaminhado ao JuízoMenorista, com bastante freqüência re-dunda em medidas drásticas como oafastamento imediato do agressor, re-presentação e a perda do poder famili-ar, enquanto que, a violência sexual per-petrada por um só genitor, encaminha-da ao juízo de família pelo outro genitorou familiar, inicia-se e, com assiduida-de finaliza-se em mera suspensão de vi-sitação do agressor ou a visitação vigia-da deste, com acompanhamento psico-lógico da vítima fora do âmbito judicial.

Em pesquisa informal junto à Divi-são de Distribuição da Capital e do Car-tório da 1ª Vara da Infância e da Juven-tude da Capital deparamo-nos com nú-meros que comprovam o que acima evi-denciamos na prática. Com efeito, noperíodo de 1991 a maio de 2002, do totaldas ações de destituição do poder fami-liar 93% tramitaram na 1ª Vara da In-fância e Juventude, ou seja, nas 18 va-ras de família da capital houve apenas7% de ações desta natureza. Totaliza-ram-se 146 processos tramitando nas 18varas de família da Capital e 1987 açõesna 1ª Vara da Infância e da Juventude.

Deve-se considerar, por oportuno,que o perfil do jurisdicionado da varamenorista é bem diferente e que a atu-ação direta do Ministério Público e doJudiciário acarreta, realmente, umaabrangência maior de situações. Ade-mais, tem-se que acentuar que compe-te à vara de infância a regularização dasituação familiar de menores de 18 anosabrigados que estejam em abandono.

Nas varas de família, por outrolado, notamos a preferência dos famili-ares da criança vitimada pela busca desoluções fora do âmbito do Poder Judici-

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ário, como por exemplo a inserção doagressor e da vítima em terapia psicoló-gica ou psiquiátrica. Quando tais auxíli-os se mostram insuficientes, busca-sea via judicial através de ação de perdada guarda ou ação de suspensão de visi-tas do agressor, sempre deixando a me-dida de destituição do poder familiar comoum derradeiro instrumento jurídico.

Apuramos, ainda, um percentualsignificativo de ações de adoções, apósou concomitantemente, o julgamento dasações de destituições do poder familiar:76% das destituições acarretaram a me-dida de adoção (1.517 processos). Por seuturno, 24% das destituições restantesapenas regularizaram a situação famili-ar de crianças abrigadas (470 processos).Essas crianças e adolescentes são ca-dastradas regularmente, conforme dis-põe o art. 50 do Estatuto da Criança e doAdolescente, aguardando a indicaçãopara adoção por pessoa (a) habilitada(s).Essa última estatística corresponde aosprocessos de destituição do poder famili-ar que tramitaram na 1º Vara da Infân-cia de da Juventude da Capital, no perío-do de 1991 a maio de 2002.

Enfocaremos, a seguir, duas dasmodalidades de colocação em famíliasubstituta: a guarda e a tutela. A medi-da protetiva de colocação em famíliasubstituta (art. 101, VIII do ECA) se des-dobra em três modalidades: a guarda, atutela e a adoção e, para qualquer de-las, são utilizadas as normas previstasno Estatuto da Criança e do Adolescen-te. Neste sentido, vale relembrar o dis-posto no art. 28 do ECA: “A colocação emfamília substituta far-se-á mediante guarda,tutela ou adoção, independentemente da si-tuação jurídica da criança ou adolescente,nos termos desta lei.”

Com relação à tutela, o Estatuto daCriança e do Adolescente destinou ape-nas três artigos. O primeiro deles (art.36) remete toda a matéria de tutela paraa lei civil, e é exatamente assim que pro-cederemos: examinaremos primeiramen-te as principais alterações do novo Códi-go Civil no que tange a esse instituto.

Fundamentalmente, o instituto

não sofreu transformações em sua fina-lidade principal: conferir uma famíliasubstituta para o menor de 18 anos quenão a possui. Assim, depende-se da per-da do poder familiar ou da morte dos paispara que seja cabível a tutela (parágrafoúnico do art. 36 do ECA). A roupagem ju-rídica, portanto, é a mesma. A diferen-ça primordial repousa na ênfase à pro-teção da criança e do adolescente e àgarantia do seu direito a uma convivên-cia familiar. O importante a ser enfati-zado na análise da tutela do novo Códi-go é a apreensão da doutrina do melhorinteresse do menor e princípios estatu-tários já sedimentados.

A primeira alteração foi a nomea-ção do tutor pelos pais em conjunto (art.1.729 do CC). Tornou-se necessário queos pais em testamento, façam a nomea-ção conjunta (não se prevê mais a hipóte-se do avô nomear, mas somente os pais).Em segundo lugar, não é mais precisoestar o juiz vinculado à ordem de paren-tes próximos para a nomeação na tutelalegítima. O magistrado nomeará comotutor a pessoa que lhe afigurar mais aptaao exercício do múnus (art. 1.731 do CC).A terceira mudança é o fato de a mu-lher casada poder eximir-se de exercera tutela (art. 1.736 do CC). Na quarta al-teração, de ordem processual, o prazolegal para escusa do tutor foi ampliado,revogando a norma do Código de Proces-so Civil a respeito do assunto (serão dezdias a partir da sua designação e não dasua intimação para o ato) (art. 1.738 doCC). A opinião da criança ou do adoles-cente – regra vigente no parágrafo 1º doartigo 28 do Estatuto da Criança e doAdolescente – deve ser considerada esempre que razoável se procederá à suaoitiva. Essa é a quinta novidade: em setratando de pupilo adolescente sempreserá ouvida a sua opinião acerca da me-dida (art. 1.740, III do CC).

Novas figuras foram incluídas noâmbito da tutela: o pró-tutor e o co-tu-tor. Prevista nos Códigos Civis portugu-ês e italiano, o pró-tutor representa umlonga manus do juiz - é uma pessoa daconfiança do magistrado, que acompa-

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nha e fiscaliza de perto a administraçãoda pessoa e dos bens do tutelado. Essanomeação consiste em uma faculdadedo juiz (art. 1742 do CC). Igualmente es-tabeleceu-se a figura do co-tutor, quenão tem precedente legislativo no Bra-sil e no exterior. Assenta-se em umadelegação parcial de função do própriotutor a uma pessoa física ou jurídica,quando os bens do tutelado demanda-rem conhecimento específico ou admi-nistração mais minuciosa, mas sempredependerá da aprovação do juiz para essadelegação (art. 1.743 do CC).

Por fim, foi excluída a obrigatorieda-de da hipoteca legal (art. 1.745 do CC), se-guindo a orientação do art. 37 e parágrafoúnico do ECA que restaram derrogados.

As três primeiras novidades do ins-tituto da tutela mencionadas acima - no-meação pelos pais, tutela legítima e es-cusa da mulher casada - certamente so-frerão brevemente novas reformulações.A escusa da mulher casada não maispersistirá, por se cuidar de dispositivoevidentemente inconstitucional. Esta re-gra estabelece diferenciação inadmissí-vel entre homem e mulher, entre a mu-lher casada e a mulher solteira e, por-tanto, agride o artigo 5º da ConstituiçãoFederal. A tutela legítima e a nomeaçãopelos pais também sofrerão alterações.O Projeto de Lei 6.960, de autoria do De-putado Ricardo Fiúza, pretende que o juiznão fique adstrito, para a nomeação dotutor legítimo, às pessoas da família dopupilo, podendo escolher qualquer outrasem vínculo familiar com o órfão paraexercer a tutela deste. E, mais, o citadoProjeto possibilitará a nomeação do tu-tor pelos pais em separado.

Com relação ao procedimento datutela permanecem os ditames do Esta-tuto da Criança e do Adolescente (art.165 a 170) e do Código de Processo Civil(art. 1.194 a 1.198). Já referentemente àdestituição do tutor, seguir-se-ão as nor-mas do art. 1.194 a 1.198 do Código deProcesso Civil.

No tocante à competência, existeconcorrência entre a vara da infância, avara de família, e a vara de órfãos e su-

cessões. Depende, mais uma vez, paraa fixação da competência, da prévia ve-rificação da situação jurídica da crian-ça e do adolescente. Se a criança esti-ver na situação do artigo 98 do ECA, serácompetente o juiz da infância e da ju-ventude (art. 148, parágrafo único, a doECA). Contudo, sendo os pais falecidos edeixando patrimônio, competente será ajustiça orfanológica (art. 98, II, b do COD-JERJ). No entanto, se algum parente domenor requerer a tutela daquele junta-mente com pedido de destituição do po-der familiar dos pais, a competência seráda vara de família (art. 85, I, C do COD-JERJ).

Para finalizar, passemos à análiseda guarda. Excluímos, por evidente, asalterações do novo Código Civil no queconcerne à disputa dos pais pela guardanatural dos filhos, por se tratar de ma-téria diversa da guarda estatutária, en-tendida esta última como medida de co-locação em família substituta.

A guarda estatutária, portanto, ésempre deferida a terceiros. Pode essaguarda se revestir de instrumento deproteção quando destinada a crianças eadolescentes nas hipóteses do artigo 98do ECA (art. 101, VIII do ECA). Neste caso,o(a) requerente, normalmente é pessoafora do âmbito familiar. Ressalve-se, noentanto, a possibilidade de postulaçãode guarda estatutária, como medida pro-tetiva, por um parente da criança abri-gada pelo fato desta não poder retornarao convívio dos pais. É evidente que, incasu, os pedidos serão apreciados peloJuízo da Infância ao qual estiver vincu-lada a criança abrigada ou sob a hipóte-se do art. 98 do ECA.

Estende-se, igualmente, a guardaestatutária ao dirigente do abrigo que,por sua função, mesmo que provisória,protege e guarda a criança abrigada, re-presentando-a enquanto ela estiver nes-ta condição (parágrafo único do art. 92 doECA). Em qualquer caso, como dissemos,a guarda permanece sendo regida pelaLei 8.069/90.

Todavia, a guarda como modalidadede colocação em família substituta, como

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bem frisado anteriormente, independe dasituação da criança ou do adolescente (art.28 do ECA). Desta maneira, casos exis-tem fora do art. 98 do ECA, nos quais faz-se indispensável à transferência da guar-da dos pais para terceiros (dentro ou forado eixo familiar).

Nesta trilha, o Código Civil de2002, inova no parágrafo único do arti-go 1.584: “Verificando que os filhos nãodevem permanecer sob a guarda do pai ouda mãe, o juiz deferirá a guarda à pessoaque revele compatibilidade com a naturezada medida, de preferência levando em con-ta o grau de parentesco e relação de afini-dade e afetividade, de acordo com o dis-posto na lei específica”. A primeira ques-tão que se apresenta é a da competên-cia, tendo em vista que a norma atualamplia a transferência da guarda paraterceiros não familiares, diversamente doque rezava o parágrafo 2º do art. 10 daLei nº 6.515/77.

Parece-nos que a norma em tela,a princípio, trata de disputa pela guardado filho em vara de família. Dúvidas nãohá de que anuindo os pais à entrega dofilho em guarda para terceira pessoa,desde que lícita a motivação, o deferi-mento caberá ao Juiz de Família. Se ter-ceira pessoa postula a guarda de crian-ça que está sob os cuidados dos pais ouvice e versa a vara de família permane-ce competente. Em qualquer caso, sem-pre que possível, será resguardado aospais o direito de visitarem o filho coloca-do sob a guarda de terceiros (art. 1.589do CC), evitando-se o desfazimento doslaços de afetividade parental.

A questão torna-se tormentosa, en-tretanto, quando no trâmite de processode guarda ou mesmo de dissolução desociedade conjugal ou de união estávelperante a Justiça de Família, ficar evi-

denciado que ambos os pais são faltosos,negligentes, omissos ou violentos, ouseja, a criança estiver na hipótese doartigo 98 do ECA. Poderá o Juiz de Fa-mília apreciar a questão da guarda, ape-sar de ser o juiz menorista a autoridadecompetente? Como regularizar a situa-ção da criança observando o melhor in-teresse desta? Desmembrar o processoe encaminhar a solução da guarda dacriança para a Vara da Infância? Defe-rir-se a guarda provisória, até que a si-tuação seja regularizada pelo juízo com-petente? Decretar a perda da guarda (art.129, VIII do ECA)? Pode o direito indispo-nível e prioritário do filho à convivênciafamiliar (art. 227 da CF/88 c/c art. 4º doECA) aguardar a discussão, muitas ve-zes, demorada da dissolução do vínculoafetivo dos pais?.

Indubitavelmente, a aplicação doparágrafo único do art. 1.584 do CC me-rece reflexão apurada do leitor. Acredi-tamos, porém, que, em se tratando demedida de natureza urgente, mesmoincompetente, o Juiz de Família, de ofí-cio, deverá regularizar a guarda destacriança conferindo o múnus provisoria-mente à pessoa com quem esta possuaafeição e afinidade, preferencialmenteaos familiares. Prevê o art. 1.586 do CCque o juiz, em qualquer caso, havendomotivos graves, poderá a bem dos filhos,regular de maneira diferente a situa-ção deles para com os pais.

Por derradeiro, continua regida aguarda como modalidade de colocaçãoem família substituta pelo procedimen-to disposto no Estatuto, nos artigos 165 a170, e a competência, como já havíamosassinalado, é concorrente entre a varade família (art. 85, I, e do CODJERJ) e avara da infância (art. 148, parágrafo úni-co, a do ECA)..

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Do Código Civil Brasileiro nasce atarefa de uma apreciação crítica dessetexto legislativo, tarefa essa que não sepode afastar de uma consideração basi-lar, a de que um Código em verdade nãonasce Código, mas se faz como um pro-cesso contínuo de construção.

O estatuto jurídico concernente aosDireitos Reais trata de uma das circuns-tâncias essenciais contida tanto na basedesse governo jurídico, como na base daprópria formulação político-jurídica in-serida em uma dada sociedade. É poresta razão que tratar desse tema signi-fica, antes de tudo, procurar inferirquais foram as diretrizes que governa-ram a formulação da nova codificaçãosobre esse assunto.

Recentemente, o Ministro Sálvio deFigueiredo, ao comentar a nova codifi-cação, resumiu o que ele chamou de di-retrizes de trabalho da comissão presi-dida pelo Professor Miguel Reale, querespondeu pela formulação, pela revisãoe pelo acompanhamento da codificaçãoaté a sanção presidencial. Segundo oMinistro Sálvio, as diretrizes foram asseguintes: “Preservar, sempre que pos-sível, o Código de 1916; não se limitar àrevisão (do Código de Bevilácqua); apro-veitar os trabalhos até então elaborados(ele se referia, evidentemente, desde oprojeto de 43 - da tentativa de unifica-ção das obrigações - até os projetos dadécada de 70, passando pelo ProfessorCaio Mário, Professor Orlando Gomes etodas as formulações ali inseridas); uni-ficar o direito das obrigações e não o di-reito privado; dar nova estrutura ao Có-digo; somente inserir no Código matéri-

as já consolidadas ou com elevado graude relevância crítica, dotadas de plausí-vel certeza e segurança e, por últimopriorizar princípios essenciais e valoresda pessoa humana”.

Embora cada uma das diretrizesmencionadas demande uma explicita-ção, cabe destacar essa última, que ver-sa sobre os princípios essenciais e fun-damentais atinentes à pessoa humana.Uma questão introdutória se coloca nes-sa nova codificação no intuito de saberse o novo Código mantém a denomina-ção de código patrimonial imobiliário.Com os olhos guiados por essa miradadirecionada à estrutura da nova codifi-cação, pode-se dizer que ela, se de umlado apresenta indícios dessa preocupa-ção na parte geral (por exemplo, com ocapítulo atinente aos direitos da perso-nalidade), na parte relativa aos direitosreais, por outro lado, afora alguns capí-tulos indiciários que tratam da funçãosocial da propriedade e que versam, tam-bém, sobre uma modalidade de desapro-priação atípica por interesse social, aestrutura da nova codificação mantém,ao nascer do século XXI, as suas preo-cupações fundamentais assentadas noconceito de posse e de propriedade doséculo XX.

Nesse sentido, portanto, nasce aprimeira tarefa hermenêutica, anima-da por aquela dimensão construtiva a quejá se fez menção, a atualização. Por issojulga-se fundamental o papel criativo dajurisprudência, para que dentro do sis-tema jurídico, sem dele sair - porque osistema jurídico e o direito não se confi-nam à expressão legislada dentro do pri-meiro - dê respostas coerentes com arealidade contemporânea dos fatos, atu-alizando essa nova codificação, fazendocom que surja desta prerrogativa da arteuma preocupação central com a pessoa,

Direito das Coisas *

LUIZ EDSON FACHINProfessor Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná

* O texto mantém por completo a estrutura da exposi-ção oral (e é coerente com essa opção metodológica decoloquialidade), com ajustes feitos pelo autor, algumasexclusões e outras inclusões.

Palestra proferida no Seminário realizado em 11/10/2002

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como, por exemplo, na defesa do patri-mônio mínimo, que é uma das nossaspreocupações recentemente vertidas emum livro.

De modo que, em matéria de dire-triz, portanto, já aparece uma preocupa-ção de atualização do ponto de vista daprincipiologia filosófica, para que não setenha, no século XXI, de novo, um Códi-go Patrimonial Imobiliário; para que atutela do patrimônio reconheça antes aproteção à pessoa e a seus valores fun-damentais - do que é exemplo a prote-ção ao patrimônio mínimo - e que istoseja uma diretriz informadora, se possí-vel, da aplicação concreta e da densida-de real e efetiva que esse Código teráno cotidiano das atividades dos juízes,dos advogados, do Ministério Público edos operadores do Direito em geral.

Dito isso, cabe discorrer acerca dasalterações e permanências que a futuracodificação traz em matéria de posse epropriedade, de modo que ao lado de umareflexão principiológica esteja outra, mu-nida de uma intenção de aprofundar nadimensão informativa apenas os mencio-nados aspectos atinentes à nova codifi-cação, já que o universo jurídico legal quese apresenta é composto por dois mil equarenta e quatro artigos, cuja análisecomparativa de sua totalidade, mesmo quefacilitada pela publicação da EMERJ, se-ria tarefa extensa em demasia para asbreves linhas que ora são traçadas. Nadaobstante, no recorte analítico feito pro-cede-se a exames das diferenças entre otexto legislativo atual e o vindouro, o quala partir dessas semelhanças ou desse-melhanças, constrói a hermenêutica járeferendada. Apresenta-se a análise, do-ravante, em dois momentos, sendo queno primeiro serão abordadas as modifi-cações trazidas pelo novo texto legal, e,por fim, suas permanências.

Tem-se presente, primeiramente,significativa alteração, colocada em telano início do texto legislativo codificado,onde se lê o Capítulo atinente à proprie-dade, e dele se extrai a referência àsfinalidades econômicas e sociais do exer-cício da propriedade, destacando a tute-la da flora, fauna, do equilíbrio ecológi-

co, do patrimônio histórico e artístico,da qualidade do ar e das águas. Diantedisso, pode-se dizer que um conjunto deinteresses sociais “não-proprietários”,para usar a expressão do Prof. GustavoTepedino, foi elevado à categoria jurídi-ca de proteção ao lado da tutela que estáno Código, a do direito de propriedade.Isso significa, portanto, que ao mesmotempo em que se protege e tutela o di-reito e seu respectivo exercício, há umcondicionamento nesse exercício aoschamados “interesses sociais” ou “inte-resses não-proprietários”.

O parágrafo 4º do artigo 1.228 criauma modalidade de desapropriação, que,à falta de uma expressão melhor, temsido designada de “desapropriação judi-cial”. A lei prevê que, em uma área ex-tensa, havendo posse de boa-fé, tendodecorrido lapso temporal de cinco anos,e com considerável número de pessoas,o juiz poderá, em uma determinada de-manda, quer seja possessória ou petitó-ria, manter nessa área esse considerá-vel número de pessoas e decretar a in-denização ao titular, ao proprietário des-se bem. Esse é um dos parágrafos que oProfessor Miguel Reale acentuou comouma inovação na nova codificação, emfunção do binômio que ele designou deposse-trabalho.

O desafio que se apresenta ao Ju-diciário é o do entendimento acerca doslimites e das possibilidades desse dis-positivo, porque se de um lado dúvidanão há em um país como o Brasil, dastarefas do Poder Executivo, para que leveadiante e de fato realize uma redistri-buição da malha fundiária, que não sejacompatível com a fenomenal e inadmis-sível concentração de terra e de rendaque temos, de outro, parece que exigirdo Judiciário a realização dessa tare-fa... Esse dispositivo, ainda, não se re-fere diretamente a quem irá realizar aindenização: certamente não será o Ju-diciário e sim uma das três instânciasdo Poder Público Federal, Estadual ouMunicipal. Em uma hermenêutica cons-trutiva, provavelmente, pode-se dizer queem se tratando de áreas rurais, a atri-buição do pagamento indenizatório se-

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ria da União, e das áreas urbanas, dosMunicípios ou eventualmente dos Esta-dos onde os imóveis estariam inseridos.Desse modo, já se vê as diferenças econtrovérsias desta inovação, que decerta maneira traduz um problema so-cial e, de outra, um desafio para a juris-prudência.

Destaca-se, também, que o futuroCódigo reduz, de um modo geral, todosos prazos de usucapião; basta ver o quedispõem os artigos 1.238 e 1.239, emmatéria de imóveis. Soma-se a introdu-ção no futuro código da usucapião que,originariamente, começou com o Esta-tuto da Terra de 1964, em seu artigo 98e que com a Constituição de 1988 pas-sou a ser designada de usucapião cons-titucional que, aliás, também tem ori-gem na usucapião especial da Lei nº6.969 de 1981, admitindo usucapiãoqüinqüenal até cinqüenta hectares e emduzentos e cinqüenta metros quadrados.

Ademais, uma outra inovação queestá na futura codificação advém do dis-posto no artigo 1.197, que do ponto devista técnico, nos parece mais apuradaao menos do ponto de vista redacional -a expressão que atualmente se situa noCódigo de 1917. Esse artigo explicita abipartição entre posse direta e indireta,mencionando a defesa do possuidor di-reto em face do possuidor indireto, e eli-mina os exemplos que atualmente es-tão expressos no artigo 486, onde haviamenção ao usufrutuário, ao comodatá-rio e assim por diante. Não se trata denenhuma inovação substancial, apenasreconhece o que a jurisprudência já re-conhecia, que a tutela possessória dopossuidor direto se dirige em face de to-dos, inclusive do possuidor indireto sehouver turbação ou, em hipóteses maisofensivas, até mesmo esbulho. Mas, isto,de algum modo, está agora na legisla-ção e é curioso que esse dispositivo serefira a titular de direito pessoal ou realo que, de algum modo, introduz algunsgravetos a mais na fogueira doutrináriaque acende o debate sobre a naturezajurídica da posse e a inserção, nessedispositivo, de circunstâncias que estãonos direitos reais – usufrutuário, por

exemplo - e circunstâncias que estão nosdireitos obrigacionais - o locatário. Ter-se-á, nessa seara também, alguma es-grima do ponto de vista da configuraçãojurídica, mas, do ponto de vista prático, aalteração que se dá é, na verdade, umaadequação até onde foi à jurisprudência.

Outra alteração digna de nota estáno artigo 1.198, no qual a nova codifica-ção procura definir o que é detenção, ecria também uma presunção de deten-ção. É, de algum modo, uma tentativade avanço em relação à atual codifica-ção que, em diversos momentos, nãoexplicitou bem os lindes dos conceitos,do ponto de vista da dogmática jurídica,entre a posse precária, a posse propria-mente dita e a detenção.

Também a matéria de aquisição deposse foi alterada na codificação vindou-ra. Enquanto o Novo Código Civil, no ar-tigo 1.204 estabelece que somente a par-tir do momento em que se torna possí-vel o exercício de qualquer dos poderesinerente à propriedade, em nome pró-prio, ter-se-á sua aquisição, a codifica-ção anterior, no artigo 493 mencionavaa apreensão da coisa, fatos ou qualquerdos modos de aquisição. Trocou-se, por-tanto, uma disposição genérica pela in-trodução do exercício em nome próprio.Ver-se-ão em numerosos casos concre-tos a repercussão dessa distinção, a qualnão merece aplauso, porque a equaçãoanterior, genérica e aberta, era certa-mente mais adequada.

Do mesmo modo, sobre a perda daposse, há uma substituição no artigo1.223, do que está no artigo 520 do Có-digo atual, de maneira que este se refe-re a hipóteses específicas como o aban-dono, tradição e até mesmo constitutopossessório, e o Novo Código Civil traçauma regra geral falando que a perda é ado poder que se exerce sobre uma de-terminada coisa. Aliás, a futura codifi-cação não faz referência específica a di-versas figuras importantes nos direitosreais, tal como o constituto possessório,que tem uma função relevante em mui-tas hipóteses, quer de direito real, querde direito obrigacional - basta citar asdiversas modalidades do leasing como

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 143

exemplo. Logo, o fato de não estar nacodificação, não significa que não este-ja no mundo jurídico. Mesma circuns-tância se deu em algumas outras figu-ras na área das obrigações, tal como opacto comissório. De modo que o fato decertas figuras jurídicas não estarem in-seridas na nova codificação, não querdizer que efetivamente tenham sido ex-cluídas, ipso facto, pela circunstância denão terem previsão expressa - e o cons-tituto possessório é uma dessas figuras.

Outra circunstância é a prevista noartigo 1.210, com uma referência espe-cífica ao seu final, no tocante ao cabi-mento do interdito proibitório. É claroque, a rigor, não há inovação maior al-guma, mas apenas o compasso com umadas diretrizes a que se fez referência, euma delas, ditas pelo Ministro Sálvio, eraa de incluir, segundo a comissão formu-ladora e revisora do Código, matériaspacificadas. Não há dúvida alguma emincluir o interdito proibitório no conjun-to dos interditos, especialmente quandonão se consumou nem a turbação e poróbvio muito menos o esbulho. Como é deconhecimento, pela fungibilidade dosinterditos possessórios ou proibitórios,consumando-se a turbação e o esbulho,isso significará uma possibilidade de con-versão com as seqüelas daí decorren-tes. Assim, o que está aqui nesse arti-go, a rigor já estava na jurisprudência ena doutrina, mas, de qualquer modo, oque estava na jurisprudência e na dou-trina passa a ter vida explícita na futu-ra codificação.

Merece ainda referência a inclu-são de novos direitos reais. No atual rolexpresso no artigo 674 não se encontrao direito real de superfície, tampouco odireito real derivado do compromisso ir-retratável e irrevogável de compra e ven-da. O futuro Código introduz esses no-vos direitos, que suscitam já estudosespecíficos, como o do Professor RicardoCésar Pereira Lira, expresso no cotejoentre a nova codificação e o Estatuto daCidade, bem como num exame do resul-tado desses dois conjuntos de dispositi-vos a partir de janeiro de 2003.

No tocante ao direito do promiten-

te comprador, a matéria está reguladanos artigos 1.417 e 1.418, depois de tersido mencionada no artigo 1.225, e aquiloque a jurisprudência já reconhecia comoum direito real e a doutrina também,passa agora a ter vida explícita no âmbi-to da futura codificação. No rol do artigo1.225, do futuro código, não está a enfi-teuse e também não estão as rendasexpressamente constituídas sobre imó-veis. No tocante às rendas, a exclusãotem completo sentido, que já foi dadopela prática excludente dessa figura,mas no que se refere à enfiteuse, não épossível esquecer um dispositivo queestá no ato das disposições constitucio-nais transitórias e que a Constituiçãode 1988, de certo modo, recolocou o ins-tituto jurídico da enfiteuse para as di-versas conseqüências ali de fato previs-tas. Isso significa, portanto, que o fatodo rol do artigo 1.225 não conter refe-rência explícita à enfiteuse, não querdizer que o instituto jurídico tenha de-saparecido do cenário, ao contrário, osproblemas derivados do pagamento deforos, laudêmios e todas as circunstân-cias atinentes, inclusive as remissões,continuarão sendo objetos de análisejurídica.

Ademais, duas outras novidadesestão na futura codificação: a introdu-ção do condomínio em edificações a par-tir do artigo 1.331 e seguintes. Até essemomento era a lei especial do condomí-nio sobre incorporações e edifícios ur-banos, Lei 4.591/64, suas alterações le-gislativas posteriores, os ajustes juris-prudenciais e construções doutrináriasque governavam essa matéria. A partirde janeiro do próximo ano, esse temaestará na futura codificação gerandodescompassos, pois há diversos disposi-tivos da futura codificação que vão deencontro, não apenas com a lei especi-al, mas também com alguns entendimen-tos jurisprudenciais. Também geraráproblemas outra hipótese de direito in-tertemporal, que versa acerca de testa-mento.

Uma última novidade é a introdu-ção da propriedade fiduciária nos arti-gos 1.361 e seguintes. Essa questão, de

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algum modo, suscitará também bonsdebates e desafiará a construção juris-prudencial, porque nela há um conjuntode diretivas sobre alienação fiduciáriaem garantia e o tema polêmico da quali-ficação jurídica da situação em que estáo depositário é assumido pela nova codi-ficação (na perspectiva dele estar na con-dição de depositário) o que tem reper-cussões imensas em matéria de prisãocivil em face de inadimplemento.

Fez-se referência não a todos, masa um conjunto de aspectos que merece-riam atenção nessa perspectiva. Cabe,doravante, elencar algumas circunstân-cias que não se modificam.

A partir de um exame do Códigocomo um todo, e desta parte, pode-seafirmar que a estrutura da arquiteturajurídica encartada na futura codificaçãonão se altera. Não obstante as mudan-ças referidas e algumas outras, as quaisforam citadas muito rapidamente, e ou-tras que sequer foram mencionadas, aestrutura como um todo se mantém nadicotomia da propriedade e da posse, nosmecanismos de aquisição e perda da pos-se e da propriedade, nos direitos reaislimitados, excluídos os já mencionadose previstos os demais com algumas vari-ações, inclusive com relação ao penhor.

Do ponto de vista da base, tem-seum Código que efetivamente realizouuma compilação com o sentido de atua-lização e nem sempre com o intento re-alizado em relação aos institutos queforam vivenciados ao longo do século XX.Aliás, sua própria denominação, direitodas coisas, já é dessa idéia representa-tiva; parece óbvio que a denominaçãoatualmente empregada já superou essaantiga expressão “direitos das coisas”,“direitos reais” ou “direitos sobre as coi-sas”, mas até isso, de algum modo, efe-tivamente se mantém, como perduratambém o conceito de posse. Da críticaà atual codificação não se poderia dei-xar de reproduzi-la para a vindoura, jáque esta reproduz a dimensão subordi-nada da posse ao direito real de proprie-dade como se vê no atual artigo 485 eno futuro artigo 1.196.

Aspectos que também não foramalterados: o regime jurídico da compos-se, que está no artigo 1.199 e se man-tém enquanto tal; o conceito de possejusta e injusta, no futuro artigo 1.200; oregime jurídico da retenção por benfei-torias, como sabemos hoje, é o do artigo516, que admite, no tocante às benfei-torias úteis e necessárias, o exercíciodo direito de retenção, estando o pos-suidor demandado de boa-fé, e seu regi-me jurídico não sofre alterações em facedo futuro artigo 1.219. Não se trata evi-dentemente disso, mas sim de uma com-preensão diferenciada sobre o fenôme-no jurídico possessório. Mas enfim, es-sas e outras circunstâncias destacam-se como matérias que aguardam discus-são em sede de direitos reais.

Como conclusão, retoma-se a umtexto já mencionado do Ministro Sálvio,no qual disserta acerca do futuro Códi-go: “Além de um sem número de inova-ções, muitas das quais de grande relevopara a ciência jurídica e para a socieda-de brasileira dos nossos dias, e semembargo das múltiplas deficiências queo texto contém e que todos esperamossejam corrigidas legislativamente, ain-da antes da sua entrada em vigência,certo é que estamos a ingressar em umanova etapa do Direito Privado Brasilei-ro, com novas regras e a correção demuitas carências acumuladas ao longodo tempo, com a renovação de conceitose princípios e a esperança de dias me-lhores, nos quais tenham maior prote-ção os direitos do cidadão e da pessoahumana”.

Talvez teremos, por essa senda, aoportunidade de construir o Código, nasua concretude diária, quando poderáser transformado o Código de 2002 noCódigo do Século XXI. A instabilidade ea incerteza devem ser fenômenos ínsi-tos à própria riqueza do Direito, e é issoque faz a condição humana ineliminá-vel, nas possibilidades que o Direitoapresenta para algum mínimo de felici-dade pessoal, e algum necessário míni-mo de realização e felicidade coletiva.Muito obrigado..

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 145

Farei uma reflexão conjuntamen-te com os eminentes componentes des-sa seleta Assembléia sobre o tema queme é proposto, relativo ao Código Civil eao Estatuto da Cidade, com uma preo-cupação direta de endereçar-se à ques-tão do Direito de Superfície.

Antes de propriamente entrar naanálise de cada qual desses dois diplo-mas legais, realmente importantes pelasua própria substância - o nosso CódigoCivil a entrar em vigor no próximo dia11 de janeiro de 2003 e o Estatuto daCidade, a Lei nº 10.257 de 10 de julhode 2001 e efetivamente já em vigor – eume permitiria fazer um panorama geraldo que é o instituto do Direito de Super-fície, abordar a Teoria Geral do Direitode Superfície, que é deveras interessanteà luz do direito alienígena. Não tratareide direito comparado, pois minha pro-posta não é um trabalho de “compara-tista”, mas simplesmente respigando,aqui e acolá, algumas disposições inte-ressantes nos ordenamentos jurídicosestrangeiros.

Para chegarmos com precisão dog-mática à definição, ao delineamento doscontornos fundamentais do Direito deSuperfície, devemos partir do trabalho deconceituar o que seria a acessão. Comonós sabemos, a acessão é a união físicaentre duas coisas, formando de maneiraindissolúvel um conjunto, em que umadas partes, embora possa ser reconhecí-vel, não guarda autonomia, sendo subor-dinada, dependente do todo e seguindo-lhe o destino jurídico. Todos nós sabe-mos que a acessão pode ser discreta oucontínua. A discreta é aquela que resul-ta endogenamente de um desenvolvimen-

to natural da própria coisa, como aconte-ce com a cria dos animais, como aconte-ce com os frutos das árvores.

De outra parte, a acessão contínuaé a caracterizada por uma união exóge-na das coisas, fim de um processo defora para dentro, como ocorre na cons-trução, na plantação, sendo que, a ri-gor, a plantação pode talvez constituirum caso de acessão mista em que háuma fusão orgânica resultante de umaação mecânica, que é a seminatio. O fe-nômeno da edificação ou da plantação,da inedificatio ou da plantatio, entre nós édominado por um princípio que todos nósconhecemos que é superficies solo cedit,no sentido de que pertence ao dono dosolo tudo aquilo que adere permanente-mente ao solo, por maior valor que te-nha esse incremento, que permanente-mente adere ao solo; a propriedade des-se incremento será sempre a da titula-ridade do dono do solo, em princípio.Hoje, já temos, de lege lata, no Estatutoda Cidade, o direito de superfície comos limites e as características que vere-mos.

Então, prevalece ainda em nossoDireito o princípio superfícies solo cedit,em princípio, salvo se houver exatamenteuma pactuação, que é a do direito desuperfície, que vai interromper os efei-tos da acessão, utilizo a expressão nosentido científico ou jurídico da palavra,no sentido de que há realmente o nãodesdobramento, daí por diante, dos efei-tos da acessão, então teremos uma su-perfície perpétua, que não é uma super-fície constante nos ordenamentos jurí-dicos estrangeiros, salvo no Código CivilPortuguês de 1966 - ou, então, teremospor essa pactuação uma suspensão, ados efeitos da acessão, quando teremos,

O Novo Código Civil, Est atuto da Cidade,Direito de Superfície

RICARDO CÉSAR PEREIRA LIRAProfessor da UERJ. Procurador do Estado/RJ

Palestra proferida no Seminário realizado em 11/10/2002.Texto não revisto pelo autor.

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não uma interrupção, mas uma suspen-são e estaremos diante, portanto, deuma superfície temporânea ou tempo-rária.

Temos que, em face dessas noçõespreambulares, em que partimos da no-ção de acessão, para exatamente che-gar à noção da superfície ou do direitode superfície, conceituar o direito desuperfície como o direito real sobre acoisa alheia, autônomo, temporário ouperpétuo, de fazer uma construção ouplantação sobre ou sob o solo alheio, fi-cando a construção ou plantação da pro-priedade de quem constrói ou planta,bem como é o direito de manter essapropriedade sobre o solo alheio.

Sendo assim, vou me permitir dis-secar, em algumas palavras, essa con-ceituação de direito de superfície. É umdireito real autônomo, porque é um di-reito que, digamos, na linha dos orde-namentos jurídicos estrangeiros, se di-ferencia, se distingue, dos demais di-reitos reais sobre a coisa alheia. Ele,evidentemente, é adverso da enfiteuse.Embora na velha Roma tivéssemos si-multaneamente o instituto da superfí-cie e o instituto da enfiteuse (quer dizero instituto da superfície não exclui o ins-tituto da enfiteuse e vice-versa), este úl-timo, abstraída aquela noção que eviden-temente traz os seus pecados dogmáti-cos, em que se teria a enfiteuse comoconsiderando dois domínios divididos -um domínio direto e um domínio útil - oque é evidentemente uma imprecisão,pois nesse domínio útil não há domínioalgum. O que acontece na enfiteuse éaquela forma mais intensa da penetra-ção no conteúdo econômico da proprie-dade em que esse enfiteuta tem o direi-to de usar, gozar e até mesmo de dispor,através do pagamento de um canon enfi-têutico e através de um pagamento deum laudêmio no caso de transferênciadesse domínio útil. Então não encontra-mos nada disso na enfiteuse. A enfiteu-se é um instituto bem mais simples.

Embora digam alguns adversáriosdo direito de superfície que este direitoseria nada mais nada a menos do que

uma intenção daqueles que querem des-truir a propriedade nos seus contornosclássicos, pois criar uma propriedadedentro de outra é nada mais do que in-centivar e incrementar uma sementei-ra de litígios. Há aqueles que não com-preendem realmente que o direito desuperfície é até mesmo um instrumen-to capitalista, pois ele abre um leque dealternativas para novas possibilidades deuso do direito de propriedade. Quer di-zer, não há nenhuma intenção de des-truir-se o instituto clássico do direito depropriedade, mas, ao contrário, de au-mentar-se o leque de possibilidades dautilização da propriedade capitalista.

É evidente também que, por ser eleum direito real autônomo, também sedistancia, na sua dogmática, do usufru-to, em que temos um nu-proprietário, quedefere ao usufrutuário o uso e gozo dacoisa, havendo, então, aquele desdobra-mento da senhoria, do aspecto internoda propriedade, que também não ocorreno direito de superfície. Não há tambémcomo aproximarmos o direito de superfí-cie da servidão, porque nós não conse-guimos identificar, no direito de super-fície, um imóvel dominante e um imóvelserviente, embora o Código Civil Suíçoparta da noção de servidão para definiro que seja o direito de superfície.

Existe um instituto que foi criadoentre nós pelo Decreto-lei 271 de 28 defevereiro de 1967 - instituto muito im-portante, para nós que ficamos preocu-pados com o problema da legitimação dosassentamentos fundiários, pois temosque resolver esses problemas dessesassentamentos iníquos irregulares emgrandes centros urbanos brasileiros, comtodos esses problemas sociais imensosque temos visto e até com o desfaleci-mento da autoridade pública, o que énosso cotidiano.

O Decreto-lei 271 de 28 de feverei-ro de 1967 instituiu a concessão de umdireito real de uso. Ele tinha, originari-amente, a intenção do governo de quese fizesse um código no direito urbanís-tico, mas essa intenção não foi levada adiante. Essa tarefa havia sido entregue

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ao saudoso Prof. Hely Lopes Meirelles,contudo terminou não vingando. Ali en-contramos algumas disposições hoje su-peradas, evidentemente, pela lei de par-celamento, mais algumas definições so-bre parcelamento, desdobramento, lote-amento. E lá no artigo 7º encontramosexatamente a concessão do direito realde uso, de terrenos públicos, em que te-mos a entrega dos titulares de terrenosparticulares ou públicos para a utiliza-ção desse terreno em determinadas ati-vidades que o Mestre Caio Tácito, o nos-so eminente administrativista, meumestre de sempre, meu professor naUniversidade do Estado do Rio de Ja-neiro, onde há aquelas utilizações qua-lificadas daquele determinado terrenocomo matéria de edificação e matériasque podem ser utilizadas no Direito Ur-banístico com grande utilidade.

Mas se olharmos bem o parágrafo4º, desse artigo 7º, veremos que o con-cessionário tem o direito de usar e go-zar aquele bem, que é objeto da conces-são. Mas não há nesse parágrafo 4º doartigo 7º nem uma palavra de onde pos-samos com tranqüilidade inferir queocorra o princípio da suspensão ou dainterrupção dos efeitos da acessão. Demodo que tudo aquilo que se construaou venha a plantar-se, no terreno que éobjeto da concessão do direito real deuso, sofre os efeitos da acessão. Sendoassim, não se cria aquela suspensão ouinterrupção dos efeitos da acessão, ge-rando-se aquilo que exatamente é, di-gamos, a nota contemporânea do Direi-to de Superfície.

A grande concepção moderna e con-temporânea do Direito de Superfície, queentende que quando plantamos ou cons-truímos sob o terreno alheio, através deuma concessão ad plantandum ou ad edi-ficandum, não incidem os efeitos da aces-são e esse incremento, essa construçãoou plantação constitue uma proprieda-de separada superficiária distinta da pro-priedade do dono do solo. Então pode-mos distinguir a propriedade do dono dosolo e a propriedade, o incremento, queé o bem superficiário.

Como cheguei a dizer aos senho-res, o Direito de Superfície havia na ve-lha Roma. Tem um grande momento emque descreve-se essa evolução do Direi-to de Superfície na velha Roma, quandose diz que os romanos, apesar de suaimensa criatividade, pois todos sabemosque os romanos eram absolutamente cri-ativos e se interessavam mais pelos re-sultados pragmáticos da incidência doDireito no corpo social, eles jamais che-garam (segundo a maioria dos romanis-tas) a essa concepção de uma proprie-dade separada superficiária. Para eles,o direito de superfície sempre foi um di-reito real sobre a coisa alheia, em que otitular da propriedade superficiária es-tendia os seus direitos sobre o solo noqual a sua propriedade se assentava, masjamais se chegava a essa noção de umapropriedade do bem superficiário sepa-rada da propriedade do dono do solo, oque é fundamental do ponto de vista daconcepção moderna e contemporânea dodireito de superfície, porque é partindodela que vamos poder chegar à hipote-cabilidade do direito de superfície.

O Código Alemão, que, ao meu ver,está ao lado do Código Civil Italiano, de1942, é um dos monumentos científi-cos que ornam o pensamento jurídicouniversal. Com o primeiro conflito mun-dial, houve a necessidade de se alteraro Direito de Superfície, que apareciacomo deficiente para o atendimento dasnecessidades que resultaram daquelaguerra mundial, houve uma crise habi-tacional na Alemanha. Em 1919, modi-ficaram-se exatamente as regras doBGB sobre o direito de superfície exa-tamente para tornar expressa essa con-cepção da propriedade separada sob obem superficiário e, sobretudo, para es-tabelecer a hipotecabilidade sobre o bemsuperficiário, através da qual o titulardeste bem poderia hipotecá-lo para au-mentar, estender, por exemplo, os cô-modos da sua habitação da qual ele erahipotecário, em nome de um direito desuperfície.

Ainda dentro dessa concepção ge-ral e nesse panorama que estou me per-

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mitindo e tendo a ousadia de traçar paraos senhores, digo que a estrutura do di-reito de superfície era compósita. Va-mos imaginar a primeira modalidade deconstituição do direito de superfície, queé a concessão ad plantandum ou ad edifi-candum. Vamos ficar na ad edificandumapenas para facilitar o raciocínio da ex-posição. Se temos um determinado tra-to de terra, uma determinada gleba, so-bre a qual foi constituído um direito desuperfície, e portanto, eu, como titulardaquele determinado lote, fiz uma con-cessão e o outro me outorgou o direitode construir sobre a terra que é de suapropriedade, de tal maneira que eu cons-truindo sobre aquela propriedade alheia,vou ser o proprietário do resultado des-sa minha atividade construtiva. Mas en-quanto não existe essa construção, en-quanto essa concessão não se convolouem termos de realidade em um incre-mento, em um determinado bem super-ficiário, temos um bem incorpóreo - con-cessão ad edificandum.

Esse bem incorpóreo, evidentemen-te, se considerarmos a relação entre oconcedente e o concessionário, é pura esimplesmente um direito real sobre acoisa alheia, consubstanciado na prer-rogativa de construir sobre o solo de ou-trem, tornando-se proprietário dessaconstrução. Nesse primeiro momento éum direito real incorpóreo sobre a coisaalheia. Quando essa concessão se con-vola em algo concreto e completo, corpo-rificando o bem superficiário, temos queaí ainda existe um direito real sobre acoisa alheia que estava lá inserido noconceito que tive a ousadia de transmi-tir, que é o direito real de manter aque-le bem superficiário sobre a coisa alheia.Portanto, temos ainda um segundo mo-mento, o direito de superfície conside-rado um direito real sobre a coisa alheia.Mas já se considerarmos (não diria arelação, pois modernamente não pode-mos hoje admitir a relação evidentemen-te entre uma pessoa e um bem) essevínculo que liga o concedente ao bemsuperficiário um direito de propriedadeem todos os seus aspectos e em tudo

aquilo que seja compatível com a suaexistência sobre uma propriedade alheia.É evidente que esse fato, que de per si,gera essa circunstância complexa de umbem superficiário estar assentado, e épreciso que ele esteja assentado perma-nentemente, pois se assentarmos umcirco sobre a propriedade alheia, a in-serção dessa lona de circo não é defini-tiva. Não estamos, evidentemente, dian-te do direito de superfície, pois é preci-so que essa integração seja total, ou seja,haja penetração desse bem superficiá-rio no uso do solo. Então, teremos, aolado dessas duas modalidades de direi-to real sobre a coisa alheia, um direitoreal de propriedade do concedente so-bre o bem superficiário, que é um direi-to real como qualquer outro. Creio quepodemos admitir, embora eu pessoalmen-te entenda que os dois conjuntos de dis-positivos existentes sobre o direito desuperfície (tanto no Estatuto da Cidadecomo no Direito Civil, que entrará emvigor em janeiro de 2003) são pobres eum tanto deficientes, como veremos,porque faltaram algumas disposições queseriam fundamentais, como, por exem-plo, tornar expressa a existência do bemsuperficiário e tornar expressa a hipo-tecabilidade e outros aspectos desse bemque veremos.

É evidente que temos aí aspectossubjetivos, objetivos a considerar, a re-lação superficiária, a figura do conce-dente, a figura do concessionário, que éo superficiário, o solarium ou canum su-perficiarium, que a rigor, de acordo com asolução que prevalece no direito aliení-gena, no direito estrangeiro, temos que,para que esse solarium exista é precisoque ele seja expresso, da mesma ma-neira que é preciso que ele expresse,em princípio, salvo alguns dispositivos,como, por exemplo, na Lei Civil Espanho-la de 1956 é preciso esteja previsto ex-pressamente o direito de indenizaçãoque na chamada reversão quando nasuperfície temporária, que é aquela maisadotada e mais presente no direito alie-nígena. Caso contrário, a impropriamen-te dita reversão, pois a rigor ela jamais

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esteve em princípio no patrimônio do con-cedente, foi construída pelo concessio-nário e com a extinção da superfícietemporária, ela vai ingressar no patri-mônio do concedente. Mas em todos ostextos do direito e da doutrina estran-geiros vocês encontram a expressão re-versão, a qual, normalmente, se dá gra-ciosamente, a não ser que exista umadisposição expressa prevendo uma inde-nização, salvo em ordenamentos queestabeleçam expressamente o contrário,como, por exemplo, na Lei do solo espa-nhola de 1956, onde se diz que, na re-versão, o superficiário receberá umaimportância côngrua que reflita algo queevite um enriquecimento indevido pelaentrada daquele bem no patrimônio doconcedente.

Ao lado dessa constituição da su-perfície pela concessão, ad edificandumou ad plantandum, temos a chamada su-perfície por cisão - ponto que falta aosnossos dois diplomas. Quando o relatordo Código Civil era o nosso eminentemestre, uma figura de jurista e de par-lamentar excepcional, o eminente JosafáMarinho, estive em Brasília, onde fize-mos uma conferência e depois conver-samos muito e até cheguei a sugerir al-guns pontos que ele poderia introduziraperfeiçoando a fórmula do direito desuperfície, mas ele disse: “é melhor dei-xarmos a coisa mais simples”, porque eleteve raciocínio político. O Prof. JosafáMarinho, eminente Senador recente-mente falecido, era um homem de umespírito público extraordinário, contudoera mais publicista.

Outro dia em programa de televi-são, promovido pela Universidade do Es-tado do Rio de Janeiro, disse algo quenão deveria ter dito naquele momento,no Parlamento, se vocês pensarem bem,antes, tanto na primeira comissão dereforma do Código Civil, quando basica-mente a reforma esteve entregue ao meumestre, cujo nome pronuncio com mui-to respeito mas que era um grande ad-versário. Ele me examinou na titulari-dade do Direito Civil na UERJ e tivemosum debate imenso sobre Direito de Su-

perfície. Ele entendia que o Direito deSuperfície era uma sementeira de lití-gios, que ele não via nenhuma utilidadedo Direito de Superfície. Então, tivemossobre esse problema uma discussãoenorme, que foi muito útil e proveitosa.Em um primeiro momento de reforma,foi o professor Caio Mário, que, aliás, sesentiu muito constrangido e muito tris-te quando o governo retirando aquele pri-meiro movimento, aquela primeira fór-mula, onde nós de alguma maneira nosaproximávamos da solução suíça, porqueo Prof. Caio Mário ficou incumbido deredigir, e assim o fez, o anteprojeto doCódigo de Obrigações. O falecido e emi-nente jurista Prof. Orlando Gomes redi-giu a parte do anteprojeto de Direito dasObrigações.

No segundo momento de reformado Código Civil, já agora entregue aquem, a meu ver, é um dos maiores ju-risfilósofos brasileiros, o Prof. MiguelReale, a solução que se adotou foi diver-sa, incorporou o Direito de Obrigações,já sobre o color de um Direito Empresa-rial se incorporando ao Código Civil emuma solução semelhante, não tão exten-sa como aquela que acontece no CódigoItaliano de 1942, em que até a relaçãode direito entre o capital e o trabalhoestá dentro do Código Civil de 1942.

Hoje se adotou de alguma forma,sob o color do Direito Empresarial, aunificação naquilo em que seja possívela redução das obrigações a uma codifi-cação única, mas temos lá, a nossa es-pera, para uma reflexão mais madura oDireito Empresarial. Ao lado dessa pri-meira forma de constituição, que é aúnica que está prevista tanto no Estatu-to da Cidade como no Código Civil ex-pressamente, temos a possibilidade daconstituição da superfície por cisão. Nasuperfície por cisão, como é que ela ocor-re? Ela não está prevista no ordenamen-to jurídico brasileiro tal como ficou delege lata, no Estatuto da Cidade e de legeferenda, no futuro Código Civil. Temos,vamos admitir, um imóvel, uma surfacesobre a qual se tem realizado um incre-mento de uma construção em que se ope-

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raram pesadamente todos os efeitos daacessão, mas pretendo constituir, jun-tamente com, por exemplo, uma super-fície por cisão. Sendo assim, faço umcontrato em que alieno a construção eretenho o trato de terra, retenho o lotesobre o qual eu fiz aquela construção.Mas cedo, transfiro a outra pessoa essaconstrução, então temos o direito daque-la pessoa em manter aquela construçãoque adquiriu sobre a minha coisa. Ad-mito, embora isso não seja muito pre-sente no direito estrangeiro, a possibili-dade contrária de haver a alienação dosolo e eu retenho a construção. É outraforma também de constituição de super-fície sob a via da cisão, que volto a repe-tir, não está prevista expressamente noCódigo Civil.

A terceira forma de constituição dodireito de superfície, que aliás está ex-pressamente prevista no Código Portu-guês de 1966 que disciplina longa eexaustivamente o Direito de Superfície,foi outro ponto que discuti imensamen-te naquele tempo com o Prof. Caio Má-rio, pois eu tinha sobre essa matéria umdeterminado ponto de vista a propósitodo qual continuo raciocinando e pensan-do, que é a questão da possibilidade daconstituição de um direito de superfíciepor usucapião. Na tese que desenvolvi,quando fiz a titularidade na Universida-de do Estado do Rio de Janeiro, o princí-pio que dominou o meu raciocínio na-quele momento era o de que se eu ti-vesse a posse de uma determinada cons-trução sobre o solo de outrem e que essaposse fosse uma posse com animus domi-ni, com ânimo de tornar-me dono daquelapropriedade, construção, edificação, éevidente que como efeitos da posse adusucapionen sobre aquela coisa constru-ída, esses efeitos necessariamente ha-veriam de se desdobrar também sobre otrato de terra no qual estava assentadaaquela construção.

Então, quando houvesse o usuca-pião, este seria global, abrangendo o ditobem superficiário e também o trato deterra sobre o qual esse bem assenta ouassentaria. Sendo assim, não haveria

direito de superfície, pois eu teria umaedificação, que adquiri como efeito dousucapião, mas também adquiri o tratode terra sobre o qual assenta esse usu-capião. Então não haveria uma distin-ção entre a propriedade e um bem su-perficiário e a propriedade do trato deterra sobre o qual esse bem estaria as-sentado. O Prof. Cáio Mário entendeuque há a possibilidade de um determi-nado indivíduo imaginar que na realida-de exista um direito de superfície e otitular da propriedade dessa construçãofique pagando o cânon superficiário e dealguma forma reconheça o domínio dotitular daquele trato de terra sobre o qualassenta aquela construção.

Entendo que isso talvez seja possí-vel, mas de acordo com aquilo que nor-malmente acontece no comércio jurídi-co, na mercancia jurídica, no sentido dasrelações jurídicas que se processam en-tre as pessoas e os entes que podem serequiparados às pessoas, essa hipótese émuito rara, mas, de toda forma, talvezse possa admitir a possibilidade, que nãoserá muito freqüente, da aquisição dasuperfície por usucapião, que está pre-vista expressamente no Código Portu-guês. Então teríamos três formas de pos-sibilidade de constituição da superfície:pela concessão ad plantandum ou ad edi-ficandum, pela cisão e pelo usucapião poraqueles que possam entender que issopossa acontecer.

Apenas para que essa matéria nãofique de fora, vamos enfocar alguns as-pectos relativos ao exercício do direitode superfície. O primeiro deles, muitoimportante a meu ver urbanisticamen-te, está expressamente previsto no con-junto de disposições que estão no Códi-go Italiano de 1942. Há, aparentemen-te, uma contraditio interminis nessa pos-sibilidade, mas é a questão da consti-tuição do direito de superfície do subso-lo. O que, a meu ver, do ponto de vistada superfície urbanística é fundamen-tal, porque uma municipalidade, porexemplo, pode tomar um bem e não seise será preciso que ela desafete essedeterminado bem a uma praça pública,

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por exemplo. Vamos admitir que haja anecessidade da desafetação administra-tiva desse bem, mas com relação ele, amunicipalidade, por exemplo, concede aA a possibilidade da utilização desse sub-solo como um estacionamento e conce-de a B a possibilidade da construção deum asilo, de uma creche, de um hospi-tal nesse espaço aéreo assentado sobreo solo, havendo, portanto, na realidade,três proprietários: 1) O proprietário aquem é concedida a matéria que estáalcançando o espaço aéreo; 2) O propri-etário da surface, que seria a municipa-lidade; 3) O proprietário da superfície dosubsolo, que seriam todos aqueles equi-pamentos necessários a um estabeleci-mento desse determinado parqueamen-to ou estacionamento.

Acho que a situação ficou um poucoambígua, não no Estatuto da Cidade, masno Código Civil. Então será preciso que oPoder Judiciário traga a sua palavra nosentido de definir essa possibilidade daconstituição da superfície no subsolo. É,ao meu ver, uma modalidade muito im-portante com que a superfície pode apre-sentar-se, nesse concerto de instrumen-tos jurídicos podem ser utilizados.

A segunda forma interessante deexercício do Direito de Superfície é achamada sobreelevação, que está expres-samente prevista no Código Civil Suíço,que é a possibilidade de o titular da pro-priedade superficiária construir ou con-ceder a um terceiro que construa sobrea sua propriedade superficiária. Sendoassim, teríamos o solo, um bem superfi-ciário e um segundo bem superficiárioresultado dessa segunda concessão. Éevidente que eu estaria aqui dizendo oóbvio se dissesse que isso nada tem aver com o problema do condomínio emum edifício de apartamentos. No condo-mínio tem, dentro da nossa concepção,necessariamente, a divisão do solo emfrações ideais correspondente a cadaqual das propriedades exclusivas. O quenão acontece no direito de superfície emque o solo é de um, o bem superficiárioé de outro e a segunda superfície é deum segundo concessionário.

O interessante quanto à sobreele-vação, é que em certas formações fave-lares no Brasil, sobretudo na Rocinha,encontramos um instituto da sobreele-vação (concebido pelos juízes suíços) va-lendo entre os moradores de favelascomo a da Rocinha, onde há o direito delaje. O que caracteriza a propriedade éo assentamento da moradia sobre umaposse injusta, porque se a moradia esti-ver assentada sobre uma posse justa ehouver problemas urbanos de deteriora-ção, o problema é de cortiço, do qual SãoPaulo, aliás, é uma vítima permanente.Nesse caso não se trata de favela, masde cortiços. O que caracteriza a favela éo assentamento da moradia sobre umaárea que está injustamente possuída,uma posse injusta. Hoje, na Rocinha, éfreqüente o problema do direito de laje,em que aquele morador cede a um ter-ceiro o direito de utilizar a sua laje paraestabelecer ali uma moradia. Apenas,ultimamente, como fui informado, os tra-ficantes impõem que sobre a segundalaje não haja qualquer obstáculo quepossa obstruir a fuga deles.

Estabelecidas essas premissas,gostaria de abordar os direitos do su-perficiário. É evidente que, no caso daconcessão ad edificandum ou ad plantan-dum, ele tem o direito de imitir-se naposse do terreno para construir ou plan-tar. Ele tem a posse direta da área obje-to da concessão, incluindo o acesso aoentorno necessário ao exercício do di-reito de construir ou plantar. Essa su-perfície pode ser até permanentementemais abrangente, ou seja, abrangendoáreas laterais do bem superfíciário parapossibilitar um uso mais cômodo e maisútil a esse superficiário. Se prevista notítulo, tem o superficiário direito à in-denização do valor do bem superficiárioquando da extinção da superfície, quan-do o dito bem ingressa no patrimônio doconcedente, o que se chama impropria-mente de reversão. E dizemos impropri-amente porque o bem jamais esteve nopatrimônio do concedente. Ele tem, evi-dentemente, o domínio sobre o bem su-perficiário e, portanto, pode instituir re-

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lativamente a esse bem superficiário nãosó o direito hipotecário, mas também to-dos os outros direitos reais compatíveiscom aquela situação fático-jurídica quese estabeleça naquela determinadaárea. Por isso, seria muito importanteque esses textos sobre o Estatuto da Ci-dade e sobre o Código Civil estabeleces-sem a questão do nascimento e do fimdos direitos reais de garantia e de uso egozo estabelecidos sobre o bem superfi-ciário e quanto ao bem sobre o qual as-senta o bem superficiário. E não há umapalavra no nosso Código Civil e nem nos-so Estatuto da Cidade sobre isso.

O outro aspecto é que o superficiá-rio tem o direito de reconstruir ou re-plantar, se ocorrer a perda do bem su-perficiário dentro do prazo da concessão,salvo disposição contrária. Quais seri-am as obrigações do superficiário? Rea-lizar a construção ou plantação dentrodo prazo assinalado no título, sob penade caducidade do direito, pagar o sola-rium quando a superfície for remunera-da; pagar os tributos incidentes sobre obem superficiário na forma que a legis-lação fiscal aplicável venha determinar.(A meu ver, é preciso, inclusive, que hajauma alteração do Código Municipal paraque se estabeleça a forma de soluçãodessa obrigação tributária.) Há também,digamos, o dever de conceder preferên-cia ao concedente no caso de alienaçãoda superfície e a todos esses direitos eobrigações do superfíciário, existem osdireitos correspondentes também ao con-cedente da superfície.

Entendo que com relação aos usose vantagens do Direito de Superfície po-demos admitir que esse direito (ao con-trário de ser aquilo que meu mestre CaioMário dizia, que na realidade talvez erauma tentativa até de destruição do pró-prio sentido clássico de Direito de pro-priedade), abre um leque maior de pos-sibilidades de utilização do direito de pro-priedade. É um instrumento, a meu ver,nitidamente capitalista. Não é um ins-trumento destinado a fazer desaparecero direito de propriedade, ao contrário,ele aumenta a possibilidade de utiliza-

ção desse direito. E sob o aspecto damodalidade urbanística, vamos ter umproblema: Estive recentemente em An-gra, onde realizou-se um evento promo-vido pelo CEDES, em que participei deum determinado grupo do Direito dasCoisas em que estabelecemos algumasdiscussões sobre direito de superfície eeu entendia e entendo ainda que quan-do, depois da vacatio, sobrevier a vigên-cia do Código Civil nós teremos perfeita-mente “de pé” o direito de superfície talcomo disciplinado no Estatuto da Cida-de, que tem uma finalidade tipicamenteurbanística.

Temos o direito de superfície emvários sistemas de Direito Civil estran-geiro. Na França, o direito de superfícienão está regulamentado expressamen-te. Ele existe por uma presunção con-trária ao artigo 553 do Código Civil Fran-cês, que difere do nosso artigo 545 doCódigo Civil.

Art. 553 “Todas as construções, plan-tações e obras em um terreno ou sobre elepresumem-se ter sido feitas às custas doproprietário e pertencem-lhe, se não se pro-va ao contrário”.

Então, no artigo 553 do Código Ci-vil Francês há a possibilidade de esta-belecer-se a prova contrária de que aque-la construção sobre o terreno não per-tence ao proprietário. Portanto, há umdireito de superfície que não está ex-pressamente previsto. O artigo 545 doCódigo Civil Brasileiro ainda em vigor édiferente, não há essa presunção queexiste no artigo 553 do Código Civil Fran-cês. Observem o artigo 545 do CódigoCivil Brasileiro: “Toda construção ouplantação existente em um terreno, sepresume feita pelo proprietário e à suacusta, até que o contrário se prove”. En-tão, não existe a forma da possibilidadede termos uma propriedade pela provacontrária como existe no artigo 553 doCódigo Civil Francês. Os outros códigosestrangeiros, inclusive o próprio CódigoAlemão que disciplinou imensamente odireito de superfície e, sobretudo, de-pois da Primeira Guerra de 1918, o Có-digo Civil Italiano, de 1942, que é um

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código moderno a propósito do direito desuperfície, não admitem a superfície ve-getal. Temos o Código Austríaco e váriosoutros códigos estrangeiros. Para o Có-digo Suíço a superfície tem a modalida-de de uma servidão. O código portuguêsde 1966 disciplina imensamente, atra-vés de vários dispositivos, inclusive tra-tando de vários problemas que não fo-ram tratados por nós.

Entendo que a superfície entre nós,tanto a urbanística como a do CódigoCivil, teve um tratamento muito singe-lo. Poderíamos ter desenvolvido muitomais, contudo acho que esse é um pro-blema que devemos deixar para depois eesperar os resultados dessa aplicação nonosso Código Civil para, em princípio,termos a possibilidade de uma nova for-mulação do direito de superfície e deoutros institutos. Devemos experimen-tar o nosso Código Civil. A minha opi-nião é no sentido de que no momentonão era essencial termos um novo Códi-go Civil. Entendo que o Código Civil de1916 estava perfeitamente suplementa-do pela legislação que o completa demaneira praticamente definitiva, masresolveu-se fazer um novo código, o qual,estando aí, temos que trabalhar com ele.

Depois dessas considerações geraissobre a teoria geral do direito de super-fície, quero me referir à reforma do Có-digo Civil. É sabido que ela teve doismomentos: um, dos anos 60, em que foiseu grande coordenador o Prof. CaioMário da Silva Pereira e ao lado dele, oProf. Orlando Gomes e o Prof. OrozimboNonato. O texto inicial dos direitos re-ais no Código Civil foi elaborado pelogrande mestre, hoje saudoso, Prof. Or-lando Gomes, que era um defensor dodireito de superfície. Ele achava que estedeveria estar previsto no Código Civil.Ficou vencido dentro da própria comis-são e os Professores Caio Mário e Oro-zimbo Nonato, na fórmula final, resolve-ram não adotar o direito de superfície.No Anteprojeto de Código Civil, sugeridopelo Prof. Orlando Gomes, praticamentenão havia nada de novo, senão realmen-te aspectos que faltariam para uma re-

gulação completa do direito de superfí-cie. Contudo, havia de interessante apossibilidade do direito de superfície sobmodalidades específicas, que só vamosencontrar na fórmula final. A sugestãodo Prof. Orlando Gomes terminou nãoprevalecendo e, como vocês sabem, esseprojeto foi mandado ao Congresso e de-pois, para uma profunda tristeza do Prof.Caio Mário, tivemos, então, o segundomovimento do Código Civil, que come-çou com a coordenação do Prof. MiguelReale, grande coordenador do novo Có-digo Civil, com o Prof. Moreira Alves eoutros tantos que já faleceram e que,independentemente de outros tantos queainda vivem, como o Prof. Erbert Cha-moun foi incumbido da parte do Direitodas Coisas e não previu o direito de su-perfície, que veio a ser estabelecido emuma fase posterior quando o Prof. Mi-guel Reale alvitrou ao Ministro MoreiraAlves exatamente a existência e acusoua presença da concessão do direito realde uso e o Prof. Moreira Alves resolveuestabelecer o direito de superfície noProjeto de Código Civil, que, como sesabe, emitido ao Congresso terminouprevalecendo na fórmula final do direitode superfície que está aqui no nosso Có-digo Civil. As duas mudanças de subs-tância que foram sofridas pelo texto re-metido à Câmara dos Deputados e queterminaram prevalecendo, foram sobrea questão do direito de superfície no sub-solo.

O artigo 1.369 do Novo Código Civilacrescentou um parágrafo único vedan-do obras no subsolo, salvo quando ine-rentes ao objeto da concessão, estandoaludido o parágrafo único assim conce-bido. Então o art. 1.369, parágrafo únicodo Novo Código Civil, tem a seguinte for-mulação: “O direito de superfície nãoautoriza obra no subsolo, salvo quandofor inerente ao objeto da concessão”.Este dispositivo não prima pela clareza.Parece proibir a concessão da superfíciedo subsolo, mas na realidade ele inter-dita a realização de obras no subsolo seelas não são o objeto da própria conces-

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são. Entendo, portanto que, apesar des-sas disposições, o Código Civil terminouadmitindo o direito de superfície no sub-solo. Mas esse é um ponto que vai serobjeto de muita controvérsia.

A segunda novidade que o CódigoCivil, a entrar em vigor em janeiro de2003, estabeleceu em função do projeto634 de 1975 da Câmara de Deputados éa matéria que se contém no artigo 1.376do Novo Código, em que se estipula oseguinte: “No caso de extinção do direi-to de superfície em conseqüência dedesapropriação, a indenização cabe aoproprietário e ao superficiário, no valorcorrespondente ao direito real de cadaum”. Quer dizer, se é desapropriado umbem que contém o direito de superfície,a desapropriação será: uma relativa aosolo e outra ao direito de superfície. Nósestaríamos, de alguma forma, pecandopor omissão, se não nos referíssemos aodireito de superfície como ele está con-templado no Estatuto da Cidade. Tenhoo ponto de vista, de que o advento doCódigo Civil em janeiro de 2003 não vairevogar o direito de superfície como eleestá previsto no Estatuto da Cidade. Issoporque o direito de superfície previstono Estatuto da Cidade é urbanístico e odireito de superfície que está previstono Código Civil nitidamente não tem asfinalidades urbanísticas que se encon-tram no Estatuto da Cidade, de modoque, a meu ver, prevalecerá o direito desuperfície tal como previsto no Estatutoda Cidade com o advento do nosso Códi-go Civil.

Entendo que deveríamos aperfeiço-ar o direito de superfície tal como estáestabelecido no Estatuto da Cidade e noNovo Código Civil Brasileiro. Mas enten-do que já que não se adotaram aquelasdisposições que completariam o quadrodo direito de superfície, o mais pruden-te é aguardarmos a evolução da aplica-ção durante um certo tempo do direitode superfície e posteriormente tratar-mos do aperfeiçoamento desse institu-to, tanto no Estatuto da Cidade quantono Código Civil.

Essas eram as observações quegostaria de fazer, desculpando-me pelafalta de um preparo mais acurado da ma-téria, mas fico à disposição para qual-quer esclarecimento que se torne ne-cessário.

DEBATES

Dr. Marcos Alcindo de Azevedo TorresO artigo 1.369 diz que o proprietá-

rio pode conceder a outrem o direito deconstruir ou de plantar em seu terreno,por tempo determinado, mediante escri-tura pública devidamente registrada noCartório de Registro de Imóveis. O Códi-go nada falou e o Estatuto também nãofala a respeito da possibilidade de umlegado do direito de superfície. Então,gostaria de saber se é admissível, na sis-temática como está colocada, alguém,por testamento, instituir um direito desuperfície em favor de outrem, de formaem que ele seria legatário da superfí-cie, por exemplo.

Prof. Ricardo César Pereira LiraA meu ver, não há impedimento ju-

rídico algum em que se fizesse essa cons-tituição por mero legado. Inclusive, ter-mino nesse trabalho que escrevi, propon-do uma nova formulação, inclusive esta-belecendo, digamos, essas disposições tes-tamentárias do direito de superfície. Demodo que entendo que, em uma constru-ção positiva, seria possível estabelecermosessa forma da superfície mediante lega-do. Acho que não há princípio de ordempública algum que impeça essa constitui-ção. Não feriria a ordem pública, estariadentro dos interesses particulares.

Dr. Marcos Alcindo de Azevedo TorresGostaria de dar um exemplo do Prof.

Motta Pinto a respeito da questão dousucapião. E aí para, mais ou menosdentro do que o senhor tinha analisado,enquadrar a aquisição e a constituiçãoda superfície de usucapião. Pode perfei-tamente um indivíduo exercer atos deposse sobre uma casa que está constru-

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ída e exercê-lo com um animus, não ple-no de proprietário, mas superficiário,porque, por exemplo, lhe foi vendida porato nulo a casa separada do solo. Foiconstituído por escritura um direito desuperfície sobre a casa separada do solo,mas com título nulo. Ele não adquiriu asuperfície, mas passou a possuir a casanesses termos e com respectivo animus.Ao fim de um determinado número deanos, adquire por usucapião direito desuperfície e adquiriu um direito sobreaquela casa separada da propriedade dosolo. Evidentemente que no Direito Por-tuguês há previsão expressa, mas meparece que não haveria dificuldades jáque uma vez o direito positivo admitindoo direito de superfície, alguém non do-minus ou coisa semelhante, transfirapara outrem a superfície, a casa cons-truída, e aquele lá está na consciênciade que está exercendo um direito desuperfície. Seria talvez a superfície comusucapião por justo título, não sei sehaveria essa possibilidade.

Prof. Ricardo César Pereira LiraAcredito que talvez possa acontecer,

contudo não de ocorrência muito freqüen-te, mas não nego essa possibilidade.

Acho que temos que ser inteiramen-te abertos para ceder posições anterio-res que tínhamos. Fui muito radical con-tra a admissibilidade da constituição. In-clusive discuti muito com o Prof. CaioMário na defesa de tese em que tive apossibilidade de ferir essa questão do di-reito de superfície. Mas hoje tendemos apensar e raciocinar, não nos interessaimpor o nosso ponto de vista. Venho ten-dendo a admitir a possibilidade por usu-capião em hipóteses como essa mencio-nada. Agora, acho muito difícil a ocor-rência disso na prática, mas é possível.

Des. Sergio Cavalieri FilhoQual o aspecto prático e social, va-

mos dizer assim, do direito de superfície?

Prof. Ricardo César Pereira LiraMeu querido Mestre, nós, homens

do direito, temos vários momentos. Já

fui encantado pelo direito de superfíciecomo um instrumento de regularizaçãofundiária de terras públicas. Quandocomecei a pensar no direito de superfí-cie, imaginava usá-lo como instrumentode regularização fundiária. Depois co-mecei a achar que iria ser muito com-plexo e que não iria resolver. Então ca-minhei para uma outra solução que eraa concessão do direito real de uso, oDecreto-lei 271 de 1967 com uma opçãode compra pelo concessionário.

Certa ocasião, ajudei muito ao Car-deal Dom Eugênio e todo sábado, nós nosreuníamos com os favelados e com osadvogados de campo para discutir muitoesse problema. Eles diziam que não que-riam a posse, mas sim a propriedade,assim como eu tinha a propriedade demeu apartamento – aquelas pessoasqueriam a propriedade e não meramen-te a posse. Sendo assim, a concessão dodireito real de uso só concedia a posse.E pensando muito em certos problemas,fui depois tratar dos contratos de doisconjuntos favelizados que existiam aolado da Fundação Roberto Marinho. Látive uma idéia, pois me deram a conces-são do direito real de uso, então acabouprevalecendo no penúltimo artigo a op-ção de compra, pois o favelizado quer apropriedade como nós temos a proprie-dade, que é um “fetiche”, mas é um fe-tiche importante. No final da concessãodo direito real de uso, onde se entregaa posse, se estabelece, no penúltimo ar-tigo, uma opção de compra para que elepossa ter a propriedade também. Nessecaso, é feita a concessão do Decreto-lei271 de 1967 e só depois, ao final de maisou menos quarenta ou cinqüenta anos,faz-se a opção de compra. Agora, enten-do que o direito de superfície tem van-tagens urbanísticas interessantíssimas.Por exemplo: Se você desafeta uma pra-ça pública ou um bem público de uso co-mum para construir embaixo um estaci-onamento, por cima um hospital ou umaescola pública, acho que urbanisticamen-te ele tem a sua valia. Agora, do que medespreendi um pouco foi da verdade queeu imaginava que existisse no sentido

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de que a superfície pudesse ser utiliza-da como regularização de áreas faveli-zadas.

Des. Sergio Cavalieri FilhoProfessor, fiz as alegações exata-

mente em face do artigo 1.369. O pro-prietário pode conceder a outrem o di-reito de construir ou de plantar no seuterreno, por tempo determinado, medi-ante escritura pública devidamente re-gistrada no Cartório de Registro de Imó-veis. Contudo, registrar no Cartório deRegistro de Imóveis um direito de laje éuma dificuldade. É um problema. Quan-do a propriedade está regularizada, tudobem, é só registrar. Agora, a da Roci-nha, por exemplo, é um problema.

Prof. Ricardo César Pereira LiraO direito de laje é um problema que

tem que ser resolvido de outra maneira,pois é sério. Acho, realmente, que o direi-to de superfície não tem toda aquela ex-tensão de finalidades positivas para o so-cial que eu imaginei que tivesse, por issovoltei atrás naquilo em que acreditava.

Dr. Magno Alves AssunçãoGostaria que comentasse, se pos-

sível, como tratar a questão do direitode propriedade e do direito de superfí-cie, à luz do Registro Geral de Imóveiscompatibilizando as regras do Estatutoda Cidade, do Novo Código Civil e da LeiRegistros Públicos.

Prof. Ricardo César Pereira LiraJá houve um passo inicial, mas

entendo que é preciso trazermos as nor-mas, que alterem a Lei de Registros Pú-blicos, para possibilitar o assentamentoda propriedade superficiária, que é umagrande conquista da superfície moder-na e da contemporânea, o que não exis-tia no Direito Romano. No Direito Ro-mano, segundo a maioria dos romanis-tas, aonde se chegou mais longe foi noDireito Real sobre a coisa alheia. Agora,a concepção do direito de propriedadesobre o bem superficiário, a isso não sechegou. Nós vamos ter que imaginar

isso. Agora, vamos fazer uma matrículanova para o bem superficiário? Já deve-riam ter legislado sobre isso, pois issoirá criar dificuldades. Agora, eu quepensei que o direito de superfície pu-desse ter uma extensão social muitogrande, voltei um pouco atrás. O direitode superfície é um direito meio aristo-crático, lamentavelmente. Ele não é asolução para o problema da regulariza-ção fundiária. Hoje estou convencido deque a regularização superficiária e a re-gularização fundiária precisam ser re-gulamentadas enquanto é tempo, pois asfavelas já estão tomadas pelos trafican-tes.

Parece-me que o direito de super-fície não é a grande solução social. Creioque o direito de superfície do Estatudoda Cidade é interessante, acho que vocêpode criar até triplamente a possibilida-de da utilização da linha do solo e dosubsolo e da superfície, criando um es-tacionamento no subsolo e acima umhospital. Ela tem a sua utilidade, con-tudo, tem que se completar com a maté-ria do Registro de Imóveis, e o interes-sante é que ninguém pensa nisso.

Des. Áurea Pimentel PereiraProf. Pereira Lira, gostaria de lhe

submeter a um questionamento, depoisde ter ouvido a sua opinião, com a qual,aliás, concordo plenamente, de que onovo Código Civil, ao disciplinar o direi-to de superfície, absolutamente não re-vogou o Estatuto da Cidade, até porqueesse estatuto tem uma diretriz que é aexecução urbanística, tem uma nature-za eminentemente urbanística.

Gostaria de ouvir a sua opinião so-bre o seguinte questionamento: Nós sa-bemos que o artigo 1.369, no seu pará-grafo único, do Código de 2002, dispõeque o direito de superfície não autorizaobra no subsolo, salvo se for inerente aoobjeto da concessão; enquanto que o pa-rágrafo 1º, do artigo 21, do Estatuto daCidade, tem uma maior abrangência. Elediz que o direito de superfície abrange odireito de utilizar o solo, o subsolo ou oespaço aéreo relativo ao terreno, na for-

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ma estabelecida no contrato respectivo,atendida a legislação urbanística. Nãolhe quer parecer que, evidentementenão todo o Estatuto da Cidade, mas, es-pecificamente, esse parágrafo 1° do ar-tigo 21, que teve uma nova visão dadapelo parágrafo único do artigo 1.369 doCódigo Civil, será derrogado quando en-trar em vigor o nosso novo Código Civil?Seria essa a sua opinião?

Prof. Ricardo César Pereira LiraEntendo, Desembargadora, que o

direito de superfície fica inteiro porqueele é urbanístico, tal como ele foi pre-visto no Estatuto da Cidade. Agora, noparágrafo 1º do artigo 21, o direito desuperfície abrange o direito de “utilizaro solo, o subsolo” (quer dizer, o Estatutoda Cidade prevê expressamente a su-perfície no subsolo) e mais, “ou o espaçoaéreo relativo ao terreno”.

Outro dia dei um parecer interes-santíssimo em que havia o direito de su-

perfície em um espaço aéreo que não to-cava o solo. Em matéria de vernáculo, odireito de superfície no subsolo já é umacontradictio in terminus. Agora, o direito desuperfície no espaço aéreo, já é outra con-tradictio in terminus, mas, enfim, de contra-dictio em contradictio nós vamos caminhan-do para a frente do ponto de vista social,que é o que importa. É um problema inte-ressante e confesso que entramos em per-plexidade. E por que não confessar? Achoque a sinceridade é absoluta. E depois,nada é pior do que a certeza, pois só adúvida constrói para a grandeza da ciên-cia. A certeza destrói e estagna.

Agora, estou de acordo com VossaExcelência, e confesso que hoje enten-do, que o Código Civil não impede o di-reito de superfície no subsolo. Acho queaquele dispositivo que a senhora leu per-mite a construção da possibilidade dasuperfície no subsolo. Mas confesso quetenho dúvidas e penso que temos que

tentar construir. .

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1. IntroduçãoO direito de vizinhança é o ramo do

direito civil que se ocupa dos conflitos deinteresses causados pelas recíprocas in-terferências entre propriedades imóveispróximas. Não há necessidade, como sesabe, de serem as propriedades imóveiscontíguas; basta serem próximas para quepossa ter lugar a interferência, que será,então, coibida pelas normas protetoras dosdireitos de vizinhança.

Portanto, trata-se de normas quetendem a compor, a satisfazer os confli-tos entre propriedades opostas com o ob-jetivo de tentar definir regras básicasda situação de vizinhança. Busca-se,como disse, a satisfação de interessesde proprietários opostos.

2. Características do direito de vi-zinhança

São características dos direitos devizinhança, em primeiro lugar, regularsituações entre proprietários, estabele-cendo, nesse sentido, limitações, res-trições ao uso da propriedade, ou seja,trata-se aqui de deveres criados pela lei.

Uma outra característica do direi-to de vizinhança é que nesse tema nãose busca criar vantagens para os propri-etários, para qualquer prédio, ao contrá-rio, visa-se tão-somente a evitar prejuí-zos. Daí essas restrições serem deno-minadas pela doutrina restrições defen-sivas. As restrições, no direito civil, po-dem decorrer também da autonomia pri-vada. Como exemplo de restriçãonegocial, nós temos as servidões que,ao contrário do direito de vizinhança, vi-sam a conferir justamente maiores

vantagens para os proprietários, para osprédios dominantes. A servidão, portan-to, se distingue do direito de vizinhança,seja pela fonte, seja pela finalidade. Pelafonte, porque as servidões têm semprefonte convencional ou contratual; e pelafinalidade, porque as servidões visam àcriação de vantagem para a propriedadedominante, enquanto que a vizinhançasurge sempre da lei, por meio de normasimperativas que visam a evitar prejuízos.

Mais uma característica do direitode vizinhança: procura-se, mediante asnormas que compõem as relações de vi-zinhança, coibir as interferênciasindevidas nos imóveis vizinhos. Hoje emdia é adotado pela doutrina o termo in-terferência, que substituiu o termo ante-rior - imissão - por se entender que esteúltimo possui um significado algo mate-rial, concreto, palpável. Por isso, com aevolução do direito de vizinhança, o ter-mo técnico que significa o incômodo, odistúrbio indesejado passou a ser inter-ferência, para se ampliar a possibilidadede defesa do proprietário diante das in-gerências não corpóreas, não palpáveis.

Por outro lado, essas interferênci-as devem ser sempre indiretas oumediatas, decorrentes, portanto, da pró-pria utilização do imóvel vizinho, das pro-ximidades. Nunca deverá ser uma in-terferência direta ou com esse fim; casocontrário, não se está em sede de direi-to de vizinhança, mas sim de ato ilícito.Se, por exemplo, o particular atira umapedra em imóvel vizinho, esta situaçãoindepende das regras de vizinhança paraa sua composição, pois se trata mesmode ato ilícito e será sancionado como tal.Por outro lado, noutro exemplo, se emexploração de uma pedreira, voam frag-mentos para a propriedade próxima, aí

O Direito de V izinhança no Novo Código Civil

CARLOS EDISON DO RÊGO MONTEIRO FILHOProfessor de Direito Civil da UERJ. Procurador do Estado/RJ

Texto elaborado a partir da transcrição fonográfica depalestra proferida na EMERJ em 11 de outubro de 2002.

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 159

sim, inserem-se as normas do direito devizinhança.

O tema liga-se diretamente à fun-ção social da propriedade, de índoleconstitucional, que permeia toda a es-trutura do direito de propriedade.

Hoje em dia, já é quase pacífico quea propriedade tem – ao lado do seu as-pecto estrutural, formado por seus ele-mentos econômico e jurídico (elementoeconômico, ou interno, é a senhoria, apossibilidade de usar, fruir e dispor e oelemento jurídico, ou externo, é a pos-sibilidade de repelir as ingerênciasalheias) – um aspecto funcional, por forçade ditame constitucional, que devepermear os aspectos econômicos e jurí-dicos do instituto.

O fenômeno da urbanização, do de-senvolvimento das cidades, torna tambémmais e mais vasto o campo de incidênciados conflitos de vizinhança, sobretudo emedifícios de apartamentos, os condomí-nios regulamentados pela Lei 4.591/64 epelo novo Código Civil. A esse propósito,aliás, o Código de 2002, em passagem queainda não mereceu maior atenção da dou-trina, erigiu como dever do condômino “daràs suas partes a mesma destinação quetem a edificação, e não as utilizar de ma-neira prejudicial ao sossego, salubridadee segurança dos possuidores, ou aos bonscostumes” (artigo 1.336, IV).

3. Parte geral do direito de vizinhançaVamos abordar aqui, em primeiro

lugar, o que se denomina de parte geraldos direitos de vizinhança, que são asnormas que vão definir a possibilidadede uso da propriedade, os limites a esseuso e quais as interferências que serãocoibidas.

Nesse primeiro momento, vamosprocurar definir quais sejam essas in-terferências que devem ser tolhidas, re-primidas, dentro desse aspecto geral, de-marcando a diferença para com as ativi-dades que são toleradas, admitidas, paradepois, em um segundo momento, in-gressarmos nas regras especiais dos di-reitos de vizinhança, destacando, desdejá, que o novo Código consagrou, em

grandes proporções, o que vem sendodesenvolvido pela jurisprudência e tam-bém a tese do Prof. San Tiago Dantas,que é a origem e o melhor trabalho devizinhança em nosso território, em nos-sa literatura jurídica e que ganhou lar-ga aplicação, pacificando verdadeira-mente os tribunais.

Costuma-se dizer que interferên-cias sempre haverá; o simples fato doconvívio entre propriedades próximas jáé, por si só, um motivo de acirramentode ânimos e, portanto, costuma-se atédefinir a relação de vizinhança comouma relação de confronto e não de coo-peração, onde a satisfação do interessede um proprietário implica restrições aointeresse do proprietário vizinho. Então,se interferências sempre haverá, o queresta é distinguir quais são as conside-radas lícitas e que poderão ser pratica-das, daquelas que, ao contrário, não têmesse caráter e devem ser sancionadas,reprimidas pelo ordenamento jurídico.

San Tiago Dantas já afirmava, nasua tese de cátedra, que o direito devizinhança não tolera soluções unilate-rais, sob pena de se aniquilar o direitode uma das partes - ou se tolhe a ativi-dade e se priva o titular da propriedadede seu uso, da sua utilização, que con-siste em elemento integrante da senho-ria, do conteúdo econômico da proprie-dade, ou, por outro lado, caso se permi-ta esse uso, pode-se estar afetando di-retamente a propriedade próxima, queterá, já por sua vez, a sua utilização com-prometida pela interferência do vizinho.Logo, em tema de direito de vizinhança,a solução deve ser, preferencialmente,uma solução bilateral.

Voltando à questão central: quaisinterferências devem ser coibidas? Esseaspecto da parte geral do direito de vizi-nhança estava previsto no art. 554 doCódigo Civil de 1916, dispositivo que seconstitui em uma das poucas cláusulasgerais do antigo Código Civil. Esse arti-go, de fato, fixa verdadeira cláusula ge-ral cujo conteúdo, como se sabe, amol-da-se a permitir a evolução do direito ea construção de critérios seguros em

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cada etapa da evolução sócio-econômicaque se apresenta em nosso país. Ditacláusula geral, de certa forma, é pre-servada na sua essência, no novo Códi-go Civil, mas ela é desdobrada em trêsdispositivos: vale dizer, o artigo 554 doCódigo de 1916 desdobra-se, portanto,nos artigos 1277, 1278 e 1279 do Códigode 2002 e, nesse sentido, na busca dese distinguir quais são as interferênci-as que devam ser coibidas daquelas quedevem ser permitidas e toleradas, é queforam historicamente surgindo as teori-as do direito de vizinhança. Vejamos asprincipais delas.

3.1 – Principais teorias do direito devizinhança

A primeira teoria que se propôs acuidar da questão foi a teoria deSpangenberg, romanista alemão que em1826, com base na experiência do Direi-to Romano, sustentava a vedação daschamadas imissões corpóreas, as queeram palpáveis, portanto. Permitia-se aoproprietário vizinho qualquer atividade,contanto que o incômodo não fosse cau-sado por algo de material, e nessa teo-ria, como proibição à imissão corpórea,se inseriam a água, a fumaça e a poei-ra, consideradas interferênciascorpóreas e nocivas à propriedade.

A essa teoria opôs-se a crítica deque, por apenas alcançar as imissõescorpóreas, excluía os rumores, os baru-lhos e os maus cheiros, que freqüente-mente interferem na propriedade vizi-nha. Essa tese da imissão material aca-bou sendo completamente refutada, jáno século XIX, pela falta de um critérioseguro para se estabelecer a distinçãoentre as imissões corpóreas e as incor-póreas.

A segunda teoria que se propôs asolucionar a questão foi a teoria do usonormal, de Ihering, em 1862. Ihering pro-curava diferenciar os casos em que ainterferência devesse ser suportada,daqueles nos quais ela devesse serrepelida. Para isso propôs, então, umstandard do uso normal da propriedade,e para se aferir esse uso normal era

necessário perquirir os aspectos ativo epassivo do uso da propriedade.

Sob o aspecto ativo, é necessáriosaber se a utilização da propriedade estádentro dos parâmetros já consagradosem determinada região. Por outro lado,sob o aspecto passivo, cabe avaliar areceptividade abstrata do homem nor-mal, do homem médio, o que Iheringdenominou de grau médio detolerabilidade, naquela determinada épo-ca e localidade, no sentido de que essesstandards são sempre relativos, flexíveis.

Tal teoria, consagrada pelo CódigoCivil Alemão (BGB), tem maior relevoentre nós, porque aplicada em nossoordenamento desde o Código de 1916(que, no particular, se inspirou no BGB),sendo mantida pelo Código de 2002. Ali-ás, importa salientar que o novo Código,ainda sob a influência da teoria em co-mento, alterou a denominação da seçãodestinada aos direitos de vizinhança,abandonando a expressão uso nocivo dapropriedade para adotar a expressão usoanormal da propriedade.

Como desdobramento dessa teoriade Ihering, surge a subteoria dodesequilíbrio, de Ripert, em 1902, que seassemelhava, por seu turno, à subteoriada pré-ocupação, de Demolombe. ParaRipert, o conflito de vizinhança estariabaseado em uma ruptura do equilíbrioque vigorasse em uma dada região. Esserompimento seria causado pelo proprie-tário ou possuidor que iniciasse uma ati-vidade não ajustada aos parâmetros dasatividades normalmente desenvolvidasnaquela localidade. Sobre ele, então, querompia aquele equilíbrio, pesava a cor-respondente responsabilidade e, para sesaber quando isto acontecia, GeorgesRipert lançava mão do standard do usonormal, e a pré-ocupação é que definiao grau de normalidade. O que era nor-mal? Normal era a utilização que se fa-zia naquela região, naquela localidade,naquela vizinhança. Essa teoria se cons-tituiu em verdadeira arma da proprie-dade doméstica contra o surto de indus-trialização daquele momento, na medi-da em que as fábricas, naquelas circuns-

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tâncias, possuíam um alto grau de in-terferência nas propriedades vizinhas.

A terceira teoria que surge é a teo-ria da necessidade, de Bonfante. Ela surgejustamente em contraposição à teoria douso normal. O romanista italiano afirma-va não ser correto concluir que o usoanormal deveria ser sempre coibido, poishá interesse social no desenvolvimentodas indústrias, no progresso crescente.Daí essa teoria, que nasce emcontraposição à do uso normal, ter sidoconsiderada a defesa da propriedade in-dustrial, numa época de industrializa-ção crescente. Uma fábrica, mesmo quecausasse, com sua enorme quantidadede fumaça, interferência indevida naspropriedades vizinhas, poderia ter a ma-nutenção da sua atividade garantida porforça do que Bonfante denominava ne-cessidade geral do povo, e com base nes-sa necessidade, o juiz deveria manteressas atividades. Diferente do que ocor-reria, por exemplo, com uma lareira, poisse essa provocasse uma fumaça anor-mal, como ali só se estaria diante deuma situação de interesses particula-res, a atividade deveria cessar.

Finalmente, entre nós, quem me-lhor sistematizou o assunto foi o Profes-sor San Tiago Dantas. A sua tese de cá-tedra, apresentada à Faculdade Nacio-nal de Direito em 1939, denominada “OConflito de Vizinhança e Sua Composi-ção”, é uma obra clássica, do conheci-mento de todos. Este grande civilista,em sua teoria que depois denominou deteoria mista, propôs uma espécie de ali-ança, de combinação entre os principaissubsídios das teorias de Ihering e deBonfante.

A teoria mista de San Tiago, portan-to, se baseia em dois princípios funda-mentais. O primeiro é o da coexistênciados direitos, e se destina à situação ondevigore o interesse particular, ou seja, aorientar a vizinhança comum. O outroprincípio é o da supremacia do interessepúblico. Esse segundo princípio governa-rá a vizinhança industrial. Na hipótesede conflito, como deve atuar o magistra-do na investigação de uso nocivo? Deve,

em primeiro lugar, perquirir se o uso da-quela propriedade que está em jogo énormal ou não. Se o uso for normal, apartir dos standards de Ihering, dos as-pectos passivo e ativo do uso normal, eleproduz interferências lícitas e o ato éconsiderado lícito e, como tal, deve con-tinuar. Se o uso, no entanto, é conside-rado anormal dentro daqueles standardsa gerar, então, incômodos por demais ex-cessivos, deve-se pesquisar para se sa-ber se tal atividade é necessária social-mente ou se é, ao contrário, desneces-sária. Se a supremacia do interesse pú-blico legitimar esse uso excepcional, ojuiz manterá os incômodos inevitáveis,ordenando, no entanto, que se faça ca-bal indenização ao prejudicado, corres-pondente, aqui, a uma espécie de ex-propriação de direito privado.

O juiz deve também, já dizia SanTiago, na medida do possível, buscarcompatibilizar os interesses, ou seja,sempre que possível, o magistrado deve-ria (com base nas técnicas que vão sedesenvolvendo para contornar os distúr-bios causados por uma dada atividade)coibir aquela interferência mediante oemprego de filtros, de vedações acústi-cas, de equipamentos cada vez maismodernos que a impeçam. Esse deve sero caminho prioritário a ser tomado. Setal não for possível, todavia, passa-se àpermissão da atividade com a indeniza-ção cabal; ou, se o interesse público nãolegitimar o uso excepcional da proprie-dade naquela região, é de mau uso quese trata e o juiz, então, irá mandar ces-sar a atividade.

3.2- A disciplina no Código de 2002: ino-vações e o conteúdo da cláusula geral

Essa teoria foi amplamente consa-grada, seja em doutrina, seja pela ju-risprudência de maneira geral, e agorafoi incorporada expressamente no novoCódigo Civil, ganhando esse reconheci-mento na redação do eminente mestreProf. Ebert Chamoun, que foi o relatordo anteprojeto nesse tema de direitosreais e vizinhança.

A leitura dos artigos 1.277 e 1.278

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revela a adoção dos ensinamentos doMestre San Tiago Dantas:

“Art. 1.277. O proprietário ou o pos-suidor de um prédio tem o direito defazer cessar as interferências prejudi-ciais à segurança, ao sossego e à saú-de dos que o habitam, provocadas pelautilização de propriedade vizinha.Parágrafo único: Proíbem-se as inter-ferências considerando-se a naturezada utilização, a localização do prédio,atendidas as normas que distribuemas edificações em zonas, e os limitesordinários de tolerância dos morado-res da vizinhança”.“Art. 1.278. O direito a que se refere oartigo antecedente não prevalece quan-do as interferência forem justificadaspor interesse público, caso em que oproprietário ou o possuidor, causadordelas, pagará ao vizinho indenizaçãocabal”.

A leitura atenta desses dois dispo-sitivos parece revelar que o artigo 1.277regula aquilo que San Tiago denominoude interesse privado, interesse particu-lar, ou seja, de estatuto da vizinhança co-mum, estando nitidamente presente emseu teor a teoria do uso normal, de Ihering.Por seu turno, o artigo 1.278 cuida davizinhança industrial, em que prevaleceo interesse público, com base na teoriada necessidade, de Bonfante.

Também o artigo 1.279 (cujo teor,no entanto, se deve muito mais ao tra-balho da jurisprudência) tem a sua ori-gem na obra de San Tiago Dantas. O re-ferido dispositivo legal dispõe: “Ainda quepor decisão judicial devam ser tolera-das as interferências, poderá o vizinhoexigir a sua redução, ou eliminação,quando estas se tornarem possíveis”.Note-se que, em sendo possível, sempredevem ser tomadas as medidas neces-sárias para reduzir ou mesmo eliminaras interferências. Se, quando a questãovier colocada, for possível ao magistradolançar mão desses artifícios, isso deveser feito. Se não, sem embargo da de-terminação para que as interferênciasprevaleçam, se, em um momento futuro

for possível, pelo desenvolvimentotecnológico, o emprego dessas técnicas,aí sim, não obstante aquela determina-ção judicial, o proprietário, ou possui-dor, terá direito à aplicação desses me-canismos de redução.

Cumpre destacar, outrossim, umoutro aspecto que me parece fundamen-tal: o conteúdo da cláusula geral de vi-zinhança, à luz do texto do artigo 1.277do novo Código. Como bem destacado peloProfessor Gustavo Tepedino, o preenchi-mento desse conteúdo há de ser feitosob os ditames da carga axiológica cons-titucional. De fato, o magistrado deveráperquirir a função social, o atendimentoao meio ambiente, a dignidade da pes-soa humana, enfim todos os valores quesão carreados pela Constituição, paraque verifique se, naquele determinadocaso, o exercício é nocivo, se provoca in-terferências, melhor dizendo, que devamser coibidas. Já o parágrafo único con-tém em seu teor diretrizes para dar al-gum conteúdo à cláusula geral, como vis-to. Louvável a orientação. Porém, aintegração somente se completa medi-ante o recurso à fonte constitucional.

Para finalizar a abordagem acercada parte geral da vizinhança, ponham-se em destaque as inovações desse con-junto de artigos, quando comparadoscom o Código anterior. Os artigos 1.278e 1.279 do Código Civil de 2002, já vis-tos, não encontram correspondentes noCódigo Civil de 1916, e quando do cotejodo artigo 1.277 com o artigo 554 do Có-digo de 1916, seu correspondente noDireito anterior, merecem ser destaca-das três alterações, além da novidadetrazida no parágrafo único.

Em primeiro lugar, a substituiçãode “inquilino” por “possuidor”. O Códigoanterior afirmava “o proprietário ou inqui-lino de um prédio tem direito de impedirque o mau uso da propriedade vizi-nha(...)”. Em redação bastante melho-rada, contempla-se agora, também comogênero, o “possuidor”, porque o que im-porta é a posse, a relação direta com oimóvel, seja proprietário, usufrutuário,locatário, comodatário, o que for. Esta

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novidade reflete a exegese que já vigo-rava em relação ao alcance do artigo 554do Código de 1916.

A segunda alteração de destaque éa utilização do termo “interferências”.O texto fala em “fazer cessar as interfe-rências prejudiciais à saúde, à seguran-ça, ao sossego”, o que reflete a orienta-ção mais técnica da doutrina e da juris-prudência, como visto anteriormente.

O terceiro aspecto que merecemenção está contido na parte final docaput do artigo 1.277. É a afirmação deque tais interferências devem ser“provocadas pela utilização de proprie-dade vizinha”. Quer dizer, trata-se dainterferência mediata, a qual, como jáaverbamos ao tratar das característicasdo direito de vizinhança, não se confun-de com eventuais interferências diretas,dolosas, deliberadamente praticadas,sem relação com a utilização da propri-edade vizinha. Repita-se o exemplo dapedra que é intencionalmente lançadano imóvel vizinho, quebrando uma vidra-ça. Isto é um ato ilícito, e o dano deleresultante será tratado como tal.

Assim terminamos essas conside-rações iniciais sobre a parte geral do di-reito de vizinhança.

4. Parte especial do direito de vizinhançaVamos adentrar agora nas obser-

vações acerca da parte especial do di-reito de vizinhança, composto por regrasespecíficas que no Código Civil de 2002dizem respeito aos seguintes temas: ár-vores limítrofes, passagem forçada, pas-sagem de cabos e tubulações (que é umanovidade do Código), águas comuns, li-nha divisória e direito de tapagem, di-reito de construir e auxílio mútuo.

4.1. Árvores limítrofes Deste tema tratam os artigos 1.282

a 1.284 do Código de 2002. O novo Códi-go em praticamente nada alterou a dis-ciplina anterior, ou seja, continua va-lendo a presunção relativa, iuris tantum,de co-propriedade ou condomínio das ár-vores cujos troncos se encontrem noslimites de dois imóveis.

Além disso, as duas regras clássi-cas em termos de árvores limítrofes con-tinuam contempladas, tanto a de cortaros ramos e raízes que invadem a propri-edade vizinha, como a relativa àtitularidade, a propriedade dos frutosdaquelas árvores. Nesse sentido se afir-ma nos artigos 1.283 e 1.284 que os ra-mos pertencem ao dono, porém, o pro-prietário ou possuidor do imóvel vizinho,onde se deitam ramos ou raízes, podepodar ou cortar a árvore. É claro queessa poda observará também, necessa-riamente, as normas ambientais e ad-ministrativas aplicáveis à espécie.

Em relação aos frutos, enquanto naárvore estiverem, pertencerão ao propri-etário onde ela deite raízes; porém, secaírem naturalmente, pertencerão aoproprietário do solo onde caírem. Se oproprietário ou possuidor do imóvel vizi-nho de alguma forma interferir para queos frutos caiam, e essa queda se consu-mar de forma não natural, ele não temdireito a esses frutos. Aqui, não há qual-quer observação de relevância a ser fei-ta nesse tema.

4.2. Passagem forçadaO segundo instituto que merece a

nossa atenção é o da passagem forçada,prevista no Código de 2002 em um únicoartigo, o 1.285. O novo Código reproduz,nesse tema, a regra que permite ao pro-prietário encravado pela propriedade vi-zinha o acesso às vias públicas de ma-neira a preservar os contornos desseinstituto. Essa passagem forçada cons-titui, como assinalam Caio Mário da Sil-va Pereira e o saudoso Darci Bessone,uma verdadeira desapropriação de direi-to privado.

Há vários aspectos dignos de nota,quanto à passagem forçada.

Em primeiro lugar, ela não se con-funde com a servidão de passagem, quecomo se sabe, é resultante de consensoentre as partes – portanto, tem sua fon-te em convenção e existe para melhoraro acesso, para se criar uma vantagem,um benefício para o imóvel, para o pré-dio dominante. Enquanto que a passa-

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gem forçada é matéria de direito de vi-zinhança, com fonte na lei e para evitarprejuízo, como foi dito anteriormente,com fundamento no princípio da solida-riedade social.

O artigo 1.285, logo no caput, fixaum requisito importantíssimo ao insti-tuto da passagem forçada: “O dono doprédio que não tiver acesso à via públi-ca, nascente ou porto...”. Portanto, tra-ta-se do imóvel encravado, sem saída.Há um amplo debate nos tribunaispátrios, a fim de se apurar qual a solu-ção correta em hipóteses muito próxi-mas à do encravamento, quando há al-guma passagem, mas essa é precária,difícil, quase inacessível, se nessas hi-póteses se considera ou não viável a uti-lização da passagem forçada. Majorita-riamente, doutrina e jurisprudência seinclinaram pela resposta negativa, con-siderando que a passagem forçada im-põe uma restrição à propriedade privadado vizinho, somente na medida em queo prédio não encontre qualquer possibi-lidade de saída é que ele terá direito aessa passagem. Só, portanto, quando li-teralmente encravada é que terá direi-to à passagem forçada, é o entendimen-to que prevalece. O juiz, então, diantedessa hipótese, vai fixar o rumo da pas-sagem, de maneira a tentar minimizaro sofrimento e o ônus do prédio que temde suportar a passagem do vizinho; e,assim que cessar essa situação deencravado, seja pela abertura de novasvias, seja pela aquisição de novas ter-ras, cessa para o vizinho o dever de fran-quear a passagem.

O artigo 1.285, além disso, prevêuma indenização cabal, ou seja, trata-se de direito de vizinhança oneroso. Aonerosidade se faz presente na indeni-zação cabal.

Dentre as novidades trazidas nobojo do art. 1.285, destaca-se a do § 1º,que cuida da hipótese onde o imóvelencravado possa alcançar a via públicapor várias propriedades confinantes – hávárias possibilidades de acesso à via pú-blica. Então, a regra é que sofrerá oconstrangimento o vizinho cujo imóvel

mais natural e facilmente se prestar àpassagem. Como se vê, o novo Código es-tabelece regra de importância práticapara a definição de qual será o imóvelque suportará a passagem forçada. Masvale lembrar que este já era o entendi-mento consolidado da jurisprudêncianesse assunto. As inovações contidasnos demais parágrafos do art. 1.285 nãooferecem qualquer dificuldade para ointérprete, razão pela qual nos abstere-mos de as analisar nesta sede.

Finalizando este tópico, para nãoextrapolar o tempo que me foi concedi-do, importa registrar que alguns dispo-sitivos que eram controversos no CódigoCivil de 1916 não encontraram paralelono Código Civil de 2002, como os antigosartigos 561 e 562, que se dizia estaremerradamente posicionados, insertos en-tre as disposições referentes à passa-gem forçada quando, na verdade, se tra-tava de servidão.

4.3. Passagem de cabos e tubulaçõesChegamos, então, ao terceiro ins-

tituto específico, que é a passagem decabos e tubulações. Cuida-se, aqui, deuma novidade, uma inovação do Códigode 2002. São dois artigos que procuramestabelecer normas diante das novas ne-cessidades sociais da população, normasessas que se assemelham, na maioriados seus contornos, ao instituto da pas-sagem forçada, que acabamos de ver. Te-ceremos brevíssimas consideraçõesacerca de sua disciplina legal.

Em primeiro lugar, trata-se de di-reito de vizinhança oneroso, também. Opróprio caput do artigo 1.286 do Códigose inicia estabelecendo a onerosidade,pela fórmula “mediante recebimento deindenização que atenda também à des-valorização da área remanescente”.

Em segundo, pode-se concluir queterá lugar a passagem de cabos e tubu-lações somente quando indispensável. Éo que se depreende da parte final docaput desse mesmo artigo 1.286, que dis-põe o seguinte: “Mediante recebimentode indenização que atenda, também, àdesvalorização da área remanescente,

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o proprietário é obrigado a tolerar a pas-sagem, através de seu imóvel, de cabos,tubulações e outros condutos subterrâ-neos de serviços de utilidade pública, emproveito de proprietários vizinhos, quan-do de outro modo for impossível ou excessi-vamente onerosa” (grifou-se).

Além disso, vai-se procurar esta-belecer a passagem de forma menosgravosa à propriedade prejudicada, nostermos do parágrafo único do 1.286, queguarda coerência com a linha traçadapelo Código em todas as passagens acer-ca da situação de vizinhança: oenfrentamento bilateral dos problemas,a que nos referimos anteriormente. Porfim, se houver riscos potenciais, ou seja,se a passagem dos cabos ou tubulaçõestrouxer riscos (como é o caso das tubu-lações de gás e dos cabos de energia elé-trica), pode-se exigir, a teor do artigo1.287, que também é novidade, a reali-zação de obras de segurança.

4.4. Águas comunsO Código, em seqüência, passa a

disciplinar o instituto das águas comuns,e o faz entre os artigos 1.288 e 1.296.São muitas regras que o novo Códigoenuncia. Vamos tentar simplificá-las. Arigor, essas regras correspondem às con-tidas nos artigos 563 a 568 do CódigoCivil de 1916, os quais, no entendimen-to que prevalecia, haviam sido revoga-dos pelo Código de Águas (Decreto nº24.643, de 1934), que fixava a disciplinadas águas comuns sem maiores altera-ções em comparação com o texto do Có-digo de 1916.

Aqui, uma vez mais, a matéria nãomuda substancialmente o estado ante-rior do direito. O que há são algumasnovidades, como ocorre sobretudo na re-gulamentação do aqueduto, nos artigos1.293 a 1.296, e nas modificaçõestrazidas nas regras gerais dos artigos1.288 e 1.289.

A parte final do artigo 1.288 trazuma novidade, seguindo a ratio de bus-car um tratamento bilateral dos direi-tos de vizinhança. Desde o regramentoanterior já se dispunha que o dono do

prédio inferior é obrigado a receber aságuas que correm naturalmente para oseu imóvel. Noutras palavras, o proprie-tário a jusante é obrigado a receber aságuas que correm do proprietário a mon-tante, de maneira natural. Acrescentou-se, ao final do artigo 1.288, que, assimcomo a propriedade inferior é obrigada areceber as águas que naturalmente cor-rem da superior, o proprietário, ou o pos-suidor – como bem destaca o Código de2002 –, do prédio superior, por seu tur-no, não pode agravar, mediante a exe-cução de obras, a condição natural eanterior do prédio inferior.

O artigo 1.289 garante o direito dereceber indenização pelas águas que cor-rerem do prédio a montante quando nelecheguem artificialmente, ou quando aíforem colhidas. Aqui, a regra é diferen-te porque se trata de nascentes artifici-ais, então se fixa aqui a onerosidade, ouseja, aquele que é obrigado a suportaressas águas tem o direito à indeniza-ção, sempre que o outro não puderdesviá-las. O parágrafo único afirma que,quanto à essa indenização, vai se aba-ter o eventual benefício que aquela águavenha por eventualidade a conceder aoprédio inferior.

4.5. Linha divisória e direito detapagem

O tema é extenso e controverso; va-mos tentar suscitar suas diretrizes bá-sicas.

Se há dúvida quanto ao delinea-mento da linha divisória, faz-se a buscade títulos de propriedade para determi-nar os lindes, os limites entre os pré-dios. Se não for possível, com base nes-ses títulos de propriedade, fixar-se a li-nha divisória, demarcando-se as fron-teiras entre os dois prédios, como prevêo art. 1.297, lança-se mão dos critériosprevistos no artigo 1.298.

O primeiro critério é o da compro-vação da posse justa, que, de mais amais, já era consagrada no sistema an-terior. Não provada a posse de nenhumdos dois disputantes quanto aos limitesou, ao contrário, provada a composse, ou

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seja, não sendo possível se definir aquestão com base na posse, lança-se mãode um segundo critério que é a novida-de: a repartição em partes iguais. O Có-digo anterior falava em repartição pro-porcional, o que suscitava os maioresproblemas em encontrar-se omensurador desta proporcionalidade.Seria proporcional às respectivas áreasdos imóveis? Proporcional ao número devizinhos que estão interessados naque-le pedaço de terra? Então, diante dessaampla controvérsia que vigorava nessamatéria, vem o novo Código e simplifica,ou tenta simplificar, estabelecendo adivisão em partes iguais, restaurandoenfim o que já constava do próprio Pro-jeto de Clóvis Beviláqua, que deu ori-gem ao Código de 1916.

O terceiro critério, também já con-sagrado, é aplicado na hipótese de nãoser viável essa divisão em partes iguais,por não ser cômoda. Se assim for, o juizirá determinar a adjudicação da propri-edade a um dos imóveis – e é dada li-berdade a ele para escolher, a lei nãodefine parâmetros a tal determinação,indenizando assim o proprietário vizinho.

4.6. Direito de construirO direito de construir fixa, no arti-

go 1.299, como regra geral, a possibili-dade de o proprietário levantar a cons-trução que lhe aprouver. Em princípio,ele constrói como quiser, desde que res-peitadas as normas do direito de vizi-nhança e também os regulamentos ad-ministrativos, normalmente emitidospelo Poder Público Municipal no contro-le de zoneamento e de definição de uti-lização daquela propriedade imóvel.

Além dessa liberdade de construir,tolhida por esses dois aspectos, seja pelavizinhança, seja pelo Direito Adminis-trativo, pelas normas sobretudo munici-pais atinentes a gabaritos, a recuos etc,há algumas regras específicas, tambémno Código Civil. A primeira delas é a dasdistâncias legais. O novo Código aumen-tou a distância mínima para a constru-ção de edificações em relação aos limi-tes entre imóveis rurais - era de um

metro e meio no Código de 1916 e pas-sou a ser de três metros no Código de2002 (artigo 1.303). Portanto, hoje sãotrês metros até o limite do terreno paraerguer a construção rural.

A contrario sensu, como já se inter-pretava, o proprietário pode construir noseu imóvel urbano até o limite da divi-sória, mas a lei impede a abertura dejanelas a menos de um metro e meio deterreno vizinho. Isso se mantém no novoCódigo, expressamente (artigo 1.301);eis outra regra específica.

Os parágrafos do artigo 1.301, porseu turno, veiculam grandes novidades.

Dispõe o parágrafo primeiro: “Asjanelas cuja visão não incida sobre a li-nha divisória, bem como as perpendicu-lares, não poderão ser abertas a menosde setenta e cinco centímetros”. Dimi-nui-se pela metade a disposição do caput.Isso é uma novidade, contrariando atéum entendimento sumulado pelo Supre-mo Tribunal Federal, que não distinguea vista oblíqua da direta, na abertura dejanelas ou afins, naquela proibição deum metro e meio.

O parágrafo segundo também apre-senta uma outra novidade de monta, queé estabelecer-se para as aberturas me-nores, que não são tecnicamente consi-deradas janelas (ou seja, medem me-nos de dez por vinte centímetros), que apermissão para a sua abertura está con-dicionada a que estas aberturas este-jam a mais de dois metros de altura,para se evitar que se devasse o prédiovizinho, que se rompa a privacidade. Nosistema anterior não havia esse requi-sito de altura, que, aliás, foi de inspira-ção do Código Civil Italiano.

Concluindo, o artigo 1.300 aduzoutra regra específica, no sentido de quenão se pode despejar águas diretamen-te sobre o vizinho. É uma fórmula maisgenérica, melhorando-se a redação dadisposição legal em relação à anteriorcorrespondente. A depender das circuns-tâncias, poderá ser necessário o uso decalhas ou de qualquer mecanismocongênere a fim de evitar tal transtorno.

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4.7. Auxílio mútuoPor fim, cabe breve referência ao

instituto do auxílio mútuo ou direito deingresso na propriedade alheia que estáprevisto no artigo 1.313 do novo Código,apresentando os requisitos seguintes:deve ser temporário; deve se dar medi-ante prévio aviso; e deve ser indispen-sável o ingresso na propriedade vizinha.

Obviamente, se esse ingresso gerar danoao vizinho, há que se fazer acompanharda devida reparação. Essas eram as con-siderações que pude fazer dentro do li-mite do tempo que me foi designado.Agradeço a atenção de todos e me colo-co à disposição para eventual debate.

Muito obrigado. .

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1. Questões Preliminares ao Estudo doNovo Código Civil e das Principais Ino-vações no Âmbito dos Direitos Reais

A chegada de um Código novo geraidiossincrasias e ufanismos. Daí a ne-cessidade de sublinhar, preliminarmen-te ao estudo do Código Civil de 2002, apostura que se deve adotar diante danova codificação. Pessoalmente, por ho-nestidade científica, devo dizer que fuium dos mais rigorosos críticos do novoCódigo. O Texto me pareceu inoportuno,redigido substancialmente antes daConstituição, não absorvendo a recentehistória jurisprudencial brasileira – im-portantíssima para o direito privado, so-bretudo a partir da criação do SuperiorTribunal de Justiça.

Pretendeu-se realizar uma atuali-zação meramente técnica, uma espéciede purificação legislativa; na vã ilusão deque o Direito está apartado dos fatos so-ciais e de que, portanto, a partir das mo-dificações experimentadas pela socieda-de, bastaria vir o legislador e, com regasmais atuais, restaurar o tecido envelhe-cido, mantendo-se a mesma racionalida-de do passado. O equívoco maior do Códi-go, portanto, não está na sua omissão noque concerne às novas matérias e novastecnologias mas na sua própria concep-ção, fundada em tábua axiológica exces-sivamente voltada para a lógica patrimo-nialista e proprietária.

Tendo sido o Código promulgado,contudo, haveremos de construí-lo inter-pretativamente, com paixão e criativida-de, no sentido de buscar a sua máximaeficácia social, harmonizando-o com osistema normativo civil-constitucional.

Um novo tempo não se realiza coma produção de leis novas, desconhecen-

do-se a identidade cultural da socieda-de. É preciso que se ofereça aos profis-sionais do Direito, com esforço e inteli-gência, a interpretação mais compatívelcom a Constituição da República - comos valores da sociedade, com a experi-ência do Direito vivo, cunhado, em gran-de parte, pelos magistrados. Assim veri-ficaremos criticamente os aspectos quepoderiam estar melhor redigidos, ou quepoderiam estar regulados de outra ma-neira, procurando, de todo modo, esgo-tar as possibilidades hermenêuticas delege lata.

Neste contexto, causa uma imen-sa insegurança o fato de termos 180emendas ao Novo Código, em regime deurgência, tramitando no Congresso Na-cional. Tais propostas de reforma nãoguardam coerência interna, atendendoa solicitações as mais variadas. Expres-sam sentimentos individuais de colabo-radores, o que impede uma análise sis-temática das alterações propostas. Porisso, o mais prudente, neste momento,é desconsiderar as reformas e dedicarnossa atenção às normas em vigor, natentativa de extrair a melhor interpre-tação possível.

A segunda questão importante,também preliminar, diz respeito à crisede fontes normativas do momento pre-sente. No Séc. XIX, com as Ordenaçõesainda em vigor no Brasil, havia uma plu-ralidade de fontes normativas que con-fundia a aplicação do direito pelos ma-gistrados. A codificação àquela alturaexpressou uma identidade cultural emtorno dos valores liberais da revoluçãoburguesa, absorvidos pelas elites ruraisbrasileiras. Liberdade para o contratan-te e para o proprietário, que poderiam,sem entraves, adquirir e acumular ri-queza, eis a aspiração patrimonialista re-conhecida pelo Código de 1916.

Os Direitos Reais no Novo Código Civil

GUSTAVO JOSÉ MENDES TEPEDINOProfessor de Direito Civil da UERJ. Procurador Regional da República/RJ

Texto elaborado a partir de transcrição fonográfica depalestra proferida na EMERJ, em 8/11/2002.

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Tais valores logo se mostrariam in-suficientes, no começo do Séc. XX, pararegular nosso incipiente mercado e nos-sas relações jurídicas privadas, obrigan-do a uma intervenção crescente do le-gislador. A intervenção se faria impres-cindível já nos anos 30, em vista da ne-cessidade de reequilíbrio das relaçõesprivadas, que se mostrava urgente aoaperfeiçoamento do próprio capitalismo,uma vez que as diferenças sociais já seagravam no Brasil. Nessa época surgi-ram a Lei da Usura, as primeiras leislocatícias, em particular o decreto rela-tivo à renovação compulsória, e assimpor diante.

O longo processo de intervenção le-gislativa, durante todo o séc. XX, queensejou o chamado dirigismo contratu-al, foi intensamente auxiliado pela Ma-gistratura, delineando-se cenário deafirmação de direitos sociais paulatina-mente consagrados, processo históricoque tem o seu estuário na Constituiçãode 5 de outubro de 1988.

Com a Constituição de 5 de outu-bro, verifica-se, por um lado, a perda deimportância do Código Civil e, por outro,a necessidade de se conviver com umapluralidade de fontes normativas – asleis especiais, os chamados grandes es-tatutos. Os maiores exemplos destesestatutos são o Código de Defesa do Con-sumidor e o Estatuto da Criança e doAdolescente, que regulam inteiros seto-res do ordenamento, não somente emmatéria de direito substantivo, mas tam-bém de direito adjetivo, além de cria-rem tipos penais, regras de interpreta-ção, dispondo sobre questões de direitoadministrativo etc.

Esse conjunto de fontes normati-vas ainda é acrescido pelas normas con-sagradas em tratados internacionais,cujos princípios podem até ser incorpo-rados no rol dos princípios fundamen-tais, nos termos do art. 5º, § 2º, da Cons-tituição da República.

Tal conjunto de fontes normativashá de ser, de alguma maneira, harmo-nizado pelo intérprete, exigindo-se umesforço redobrado da magistratura, so-bretudo diante da entrada em vigor doCódigo Civil de 2002. Não é mais possí-vel imaginar que o Novo Código Civil irá

restaurar aquela unidade orgânica dascodificações do Séc. XIX, com perfil deverdadeira Constituição do Direito Privado.A complexidade da vida contemporâneaafasta esta pretensão e descarta a ve-lha dicotomia do direito público e do di-reito privado, ramos cada vez mais so-brepostos, diante das atuais demandasproblemas da sociedade.

Essa visão oitocentesca do CódigoCivil como Constituição do Direito Pri-vado deixa de ser verdadeira no momen-to em que se tem uma pluralidade defontes normativas e o surgimento denovos institutos e interesses insuscetí-veis de enquadramento no Direito Pú-blico ou no Direito Privado. Especialmen-te quando a Constituição da República,reunificando todos esses subsistemaslegislativos, elege a pessoa humana, asua dignidade, como o valor central detodo o ordenamento, permeando as re-lações jurídicas de direito público e dedireito privado.

Significa dizer que os princípios in-formadores do sistema hão de ser os fi-xados pela Constituição. E, à medida quea Constituição instrumentaliza as situ-ações jurídicas patrimoniais (empresa,propriedade) aos valores existenciais(dignidade da pessoa humana, solidari-edade social, igualdade substancial), abusca do significado funcional do insti-tutos de direito civil há de nortear a ati-vidade do intérprete mais do que a dis-cussão casuística de um ou outro pro-blema suscitado pelo Novo Código.

Examinem-se tais princípios fun-dantes no nosso sistema jurídico. Emprimeiro lugar, a dignidade da pessoahumana, prevista no art. 1º, inc. III. Osegundo é o valor social da livre iniciati-va e do trabalho, funcionalizando a au-tonomia privada e, portanto, também atransferência de bens móveis e imóveisaos valores sociais daí decorrentes.Quanto à solidariedade social, esta jus-tifica a vulnerabilidade tutelada peloCódigo do Consumidor, a pluralidade daconcepção familiar, a capacidade contri-butiva norteadora do Direito Tributárioetc. Finalmente, o princípio da igualda-

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de substancial, de que trata o art. 3º,III, e que, ao lado do art. 5º, segundo oqual todos são iguais perante a lei, esti-pula o dever de diminuição das desigual-dades sociais e regionais.

Até bem pouco tempo, tais princípi-os eram considerados vinculantes ape-nas para o legislador, já que o CódigoCivil era a Constituição do Direito Pri-vado. Os princípios constitucionais eramconsiderados, no máximo, como princí-pios gerais de Direito, aplicados comonorma de integração no âmbito do direi-to civil. Há quem ainda pense assim.

Entretanto, enquanto os princípiosconstitucionais encontram-se no vérti-ce da hierarquia legal, verdadeiras pon-tes normativas entre os valores, comograndes opções do ordenamento, e asregras jurídicas, os princípios gerais dedireito, ao contrário, nada mais são doque mecanismos de integração subsidi-ários do Juiz, aos quais, segundo a Leide Introdução do Código Civil, só se re-corre na inexistência de analogia possí-vel ou de costume reconhecido. Daí aimprescindibilidade de se separarem osdois conceitos.

Tais premissas devem servir de ba-lizas para o exame de todos os livros doCódigo Civil, sendo-nos dado agora en-frentar as principais inovações no cam-po do direito das coisas.

2. Os Direitos Reais no Novo CódigoCivil. Principais Inovações

O Livro dedicado ao Direito das Coi-sas foi redigido pelo meu grande e que-rido mestre, Prof. Ebert Chamoun. É umjurista de grande cultura e rigor técni-co, qualidades que transparecem emrelação à posse a diversas soluções aven-tadas no âmbito dos direitos reais.

Destaco dois aperfeiçoamentos téc-nicos, quanto à posse. Em primeiro lu-gar, no que toca à sua própria concep-ção. Passando ao largo da discussão se-cular acerca de sua natureza jurídica,na busca de sua definição como fato oucomo direito, a posse é definida como umexercício de fato. Independentemente,pois, de título, o simples exercício de uma

das faculdades inerentes ao domínio jáse constitui em posse, um direito autô-nomo, com ações próprias, independen-te em relação à propriedade.

Ihering concebeu a proteção da pos-se a partir da propriedade. A posse eraconsiderada uma espécie de vanguardaavançada da propriedade, que tinha tan-ta importância ideológica para o siste-ma que o seu mero exercício, por si só,já recebia tratamento autônomo, a fimde se proteger a simples aparência deproprietário.

Essa visualização do domínio, con-tudo, no âmbito e a partir da evoluçãolegislativa e jurisprudencial, torna-seuma proteção autônoma; a vanguardaavançada da propriedade mostra-se as-sim reconhecida independentemente dapresença do título dominical, até mes-mo sem o domínio, ou, em alguns casos,contra o domínio. Essa vanguarda avan-çada, escapando dos limites entrevistospela construção de Ihering, passa a terbases axiológicas constitucionais. Osvalores sociais da moradia, do trabalho,da dignidade da pessoa humana fazemcom que a estrutura normativa de defe-sa do exercício da propriedade seja as-segurada independentemente do domí-nio. A justificativa da posse encontra-sediretamente na função social que de-sempenha o possuidor, direcionando oexercício de direitos patrimoniais a va-lores existenciais atinentes ao trabalho,à moradia, ao desenvolvimento do nú-cleo familiar.

Essa concepção da posse se mani-festa no Código Civil e deve ser cons-truída pelo intérprete à luz da Constitui-ção. No Código de 1916, a aquisição e aperda da posse, ou seja, os antigos arts.493 e 520, eram reguladas por preceitosinfelizes. Dizia o primeiro: “Adquire-se aposse pela apreensão da coisa ou peloexercício do direito”. Ao que objetava oProf. Chamoun: “Nada mais impreciso,porque a rigor basta o exercício do direi-to para se verificar a posse”. Segundo in-ciso: “Pelo fato de se dispor da coisa oudo direito”. Replicava o Prof. Chamoun:“Quando disponho de alguma coisa, eu

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me despeço dela, eu deixo de ser possui-dor, não adquiro”. Terceiro inciso: “Porqualquer dos modos de aquisição em ge-ral”; rematava o Prof. Chamoun: “Qual arazão dos incisos I e II, se em seguida oinciso III faz referência a qualquer dosmodos de aquisição em geral?”.

Não era realmente feliz esse dis-positivo. O Novo Código Civil é bem maispreciso. Determina o art. 1.204: “Adqui-re-se a posse desde o momento em quese torna possível o exercício, em nomepróprio, de qualquer dos poderes ineren-tes à propriedade”. Trata-se de uma si-tuação fática, mas que se separa da pro-priedade e que tem sua autonomia re-conhecida pelo ordenamento.

Quanto à perda da posse, no atualart. 1.223, temos a mesma revisão con-ceitual. Afirma o preceito: “Perde-se aposse quando cessa, embora contra avontade do possuidor, o poder sobre obem ao qual se refere”. Vê-se que pos-se, no Novo Código, está posta como meroexercício de fato de alguma das facul-dades inerentes ao domínio, indepen-dentemente do domínio, sem o domínioe mesmo contra o domínio.

O segundo aspecto - agora não con-ceitual, mas prático –, atinente à funci-onalização da posse aos valores consti-tucionais, dá-se, em particular, no quetange à forma de aquisição da usuca-pião. Aqui, o Código absorveu as duasmodalidades que já conhecíamos do Có-digo Civil, diminuindo os prazos de 20 e10 anos para 15 e 10 anos, respectiva-mente, dependendo da presença do jus-to título. O Código Civil também absor-veu as duas modalidades constitucionaisdos arts. 183 e 186, ou seja, 5 anos paraa usucapião no caso de imóvel rural deaté 50 hectares, e, no caso de imóvelurbano, de até 250 m2, o que reflete apreocupação com a moradia.

Quanto ao usucapião urbano, aquino Rio de Janeiro há tendência de seaplicar esse instituto também a aparta-mentos, e não só a terrenos, quando setratar de comunidades pobres, rompen-do-se com a interpretação estritamenteliteral. Instrumentaliza-se o instituto à

moradia, ao trabalho, independentemen-te da estrutura física do imóvel. Ao ladodisso, temos a proteção na usucapião de5 anos, que foi uma novidade, para a hi-pótese de problemas registrais. Essanova modalidade resolve problemas gra-víssimos. É o caso do Rio de Janeiro,onde, em torno da Barra da Tijuca, doRecreio dos Bandeirantes, moram doismilhões de pessoas numa cidade sub ju-dice, devido a problemas registrais quevêm desde as Capitanias Hereditárias.O parágrafo único do art. 1.242 preten-de resolver esses problemas em muitascidades ao rezar: “Será de cinco anos oprazo previsto neste artigo se o imóvelhouver sido adquirido, onerosamente,com base no registro constante de car-tório, cancelada posteriormente, desdeque os possuidores nele tiverem estabe-lecido a sua moradia, ou realizado in-vestimentos de interesse social e eco-nômico”. É uma maneira de colocar-seum ponto-final, no prazo de cinco anos,à insegurança quanto à propriedade dobem imóvel adquirido por alguém queconfiou no registro imobiliário.

Com relação à função social da pos-se, não é preciso que ela esteja previstana Constituição, expressamente comoestá a da propriedade, para que seja exi-gível. No caso da posse, sendo um exer-cício de fato, já existe, de per se, a suajustificativa de acordo com a sua finali-dade. A função social da posse, segundorecente decisão do Tribunal de Justiçado Rio Grande do Sul, prevalece em faceda propriedade, mesmo quando a propri-edade tiver sua finalidade econômicaatendida, mas não atenda corretamen-te a sua função social. Então é uma pro-teção autônoma que se dá à posse. OCódigo aperfeiçoou isso do ponto de vis-ta técnico e há de ser interpretado à luzda Constituição.

No que tange à propriedade, o art.1.228 absorve, no §1º, ao lado do caput,que trata dos poderes do proprietário,sua função social. Até pouco tempo atrás,os juristas entendiam que função socialda propriedade era uma questão filosó-fica, política ou teológica – Santo Tomás

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considerava que a terra, no fundo, erauma propriedade coletiva e que, portan-to, estávamos aqui só por empréstimo.Mas, o fato de a função social da propri-edade ter-se inserido na Constituição daRepública e, em particular, agora, noCódigo Civil, reclama uma definição ob-jetiva de seu conteúdo jurídico

Como se sabe, a estrutura do di-reito de propriedade, prevista no CódigoCivil anterior e repetida no atual, é for-mada por um aspecto econômico e porum aspecto jurídico. O aspecto econô-mico é a senhoria: faculdade de usar,fruir e dispor; e é econômico porquemanifesta a possibilidade de utilizaçãoeconômica do bem. Já o aspecto jurídicopropriamente dito é a possibilidade deutilizar-se das vias judiciais para repe-lir a ingerência alheia, para reaver apropriedade com a ação reivindicatóriae protegê-la por meio das ações postas àdisposição do proprietário.

Ao lado deste aspecto estrutural dodomínio (que indica a estrutura de po-deres do proprietário), é de se conside-rar o aspecto funcional, considerando-se a função social como elemento inter-no, e não como mera restrição externa-mente imposta pelo Estado.

Como elemento interno do domínio,a função social é responsável pelo con-trole de legitimidade funcional do direi-to de propriedade, impondo ao titular odever de respeitar situações jurídicas einteresses não-proprietários socialmentetutelados, atingidos pelo exercício domi-nical.

A propriedade privada, pois, comodireito subjetivo, tem o aspecto estrutu-ral e o funcional. Se a propriedade, porexemplo, não preserva o meio ambiente,o direito de propriedade começa a perdera sua legitimidade funcional porque, se-gundo o art. 186 da Constituição, a fun-ção social só é atendida quando – e ago-ra o Código Civil o prevê expressamente– se respeita o meio ambiente.

A função social da propriedade con-fere, portanto, ao titular da propriedade,um duplo dever: o de deixar de praticar oilícito, como colocar fogo numa floresta,e o de promover o meio ambiente, sob

pena de perder a legitimidade constitu-cional. O Judiciário não poderia admitira tutela de um direito de propriedade quedesrespeita a sua função social.

Veja-se, no Código Civil, o §1º doart. 1.228: “O direito de propriedade deveser exercido em consonância com assuas finalidades econômicas e sociais ede modo que sejam preservados,” – aquiestá o conteúdo objetivo – “de conformi-dade como estabelecido em lei especial,a flora, a fauna, as belezas naturais, oequilíbrio ecológico e o patrimônio his-tórico e artístico, bem como evitada apoluição do ar e das águas”. Tais inte-resses, expressamente indicados pelocodificador, devem ser preservados pelotitular do domínio para que o seu direitosubjetivo seja assegurado.

O § 2º do mesmo art. 1.228 foi me-nos feliz: “São defesos os atos que nãotrazem ao proprietário qualquer comodi-dade, ou utilidade, e sejam animadospela intenção de prejudicar outrem”. Osatos emulativos, úteis no passado parase construir a doutrina do abuso do di-reito, tornam-se totalmente desneces-sários no sistema atual, sendo a funçãosocial um elemento interno do domínio,um pressuposto de legitimidade. Muitoantes do ato emulativo, a propriedadetem de se submeter a um controle soci-al da utilização positiva na promoção dosvalores sociais e constitucionais.

Com relação à propriedade, há ain-da uma inovação muito importante, pre-vista no § 4º do art. 1.228: “O proprietá-rio também pode ser privado da coisa seo imóvel reivindicado consistir em ex-tensa área, na posse ininterrupta e deboa-fé, por mais de cinco anos, de con-siderável número de pessoas, e estasnela houverem realizado, em conjuntoou separadamente, obras e serviços con-siderados pelo juiz de interesse social eeconômico relevante”.

É o problema dos núcleos irregula-res. Se for dada uma interpretação lite-ral ao dispositivo, será difícil caracteri-zar a boa-fé subjetiva, ou seja, o desco-nhecimento do vício possessório, nas si-tuações ali descritas. A interpretação há

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de ser, aqui, evolutiva, expandindo-se anoção de boa-fé e ampliando-se a legiti-midade dos títulos para este efeito.

Em seguida, o § 5º diz: “No caso doparágrafo antecedente, o juiz fixará a jus-ta indenização devida ao proprietário”.Isso pode também nunca ser aplicado, evai-se passar a vida discutindo quempaga. Se for o Estado, seria uma formade desapropriação, sendo necessária aprevisão orçamentária e regulamentaçãoprópria do direito administrativo. Se fo-rem os próprios possuidores, seria umaespécie de usucapião oneroso, uma mo-dalidade nova. E como definir o justo va-lor para uma propriedade que se desva-loriza justamente pela forma de ocupa-ção irregular? Tais aspectos hão de serainda debatidos e amadurecidos.

Uma curiosidade digna de nota dizrespeito ao art. 1.233, em tema de in-venção. Invenção vem de in venire: achar,encontrar; então, na verdade, não é ummodo de aquisição da propriedade. Poisbem, o novo codificador, preocupado comesta acepção não vulgar de invenção,cuidando-se de noção técnica, substi-tuiu-a por descoberta. A emenda ficoupior do que o soneto, porque invençãoexiste em todos os Códigos da famíliaromano-germânica, é noção vinda do la-tim inventare, é um termo técnico. Jádescoberta nem sempre é sinônimo deinventar. Ocorreu um desrespeito à tra-dição cultural do vernáculo das línguasneolatinas, a meu ver.

Há também duas novidades queresolveram problemas do direito de vizi-nhança: uma no que tange à construçãoem terreno alheio e outra no que con-cerne à servidão de janela.

Na construção de terreno alheio,havia dúvidas na solução do problemado proprietário que, invadindo uma nes-ga do terreno vizinho, construía um pré-dio de grandes proporções. Era um pro-blema grave porque, teoricamente, pelaacessão, a construção iria aderir ao pro-prietário do imóvel vizinho, que era umterreno baldio, por exemplo. E não seriarazoável mandar demolir um prédio de50 andares.

Agora o legislador regulou no art.1.258, como já alguns Juízes vinham fa-zendo. Quanto à construção em terrenoalheio, se com boa-fé e não superior a 1/20 do terreno, adquire a propriedadeaquele que construiu, se o valor da cons-trução exceder ao do terreno indenizadoevidentemente, pagando o valor do ter-reno mais o da desvalorização do imóvel.Se o valor não exceder ao do terreno nãoadquire, mas isso normalmente não ocor-re. Se superior a invasão a 1/20, adquirecom o pagamento de indenização, que leveem conta também a valorização do terre-no, o valor da faixa de imóvel perdida e adesvalorização do imóvel.

E se a invasão e construção se deucom má-fé? Mesmo com má-fé, é dra-mática a situação, porque a má-fé se tor-na menos importante se existem, porexemplo, duas mil pessoas morando noimóvel. Em homenagem à função econô-mica da apropriação dos bens, se a inva-são exceder a 1/20 do imóvel, seria ne-cessária a demolição, com perdas e da-nos. Mas, normalmente, é de menos de1/20 a invasão, e, neste caso, mesmotendo agido com má-fé, vai-se adquirir apropriedade, com uma indenização queé do décuplo da avaliação que foi feitapara a construção, indenização que se-ria cabal. Assim os arts. 1.258 e 1.259disciplinam esse tormentoso problema.

Um outro problema grave era o dajanela construída a menos de metro emeio do vizinho. Agora, pelo novo Códi-go, art. 1.301, § 1º, a referência é a dis-tância de 75 cm. Não se pode abrir jane-las tão próximas, evitando-se a bisbilho-tice alheia.

Antigamente, se alguém estivesseconstruindo uma janela a menos de ummetro da linha limítrofe, 75 cm a partirdo Novo Código, o vizinho poderia proporação de nunciação de obra nova. Con-cluída a obra, facultava-lhe ingressarcom ação demolitória no prazo de ano edia. Expirado o prazo da demolitória, oque fazer? Alguns, inclusive o Prof. Cha-moun, entendiam que se criava umaservidão de janela, devendo-se respei-tar a distância legal em relação à jane-

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la aberta e cujo fechamento não forapedido a tempo pelo vizinho. O ponto devista era minoritário, contudo. Tal solu-ção foi finalmente consagrada pelo NovoCódigo.

Temos, agora, art. 1.301, § 1º, se-gundo o qual não se pode abrir janelas amenos de 75 cm do limite do terrenovizinho; mas, caso isso ocorra e não te-nha sido proposta ação de nunciação ouação demolitória, o vizinho prejudicadonão pode pura e simplesmente vedar ajanela ali aberta, levantando um con-tra-muro. Embora prejudicado, terá querespeitar os 75 cm para nova constru-ção. Ou seja, criou-se, agora, a servidãode janela pela inoperância do vizinho noexercício da ação demolitória.

No que tange aos direitos de vizi-nhança em geral, o Código absorveu aconstrução jurisprudencial com seusarts. 1.278 e 1.279, adotando precisa-mente os critérios que, desenvolvidospela doutrina, especialmente por SanTiago Dantas, foram absorvidos ao longodo tempo pela jurisprudência brasileira,tal qual agora aparecem disciplinados.

Hoje, o mundo assiste a uma reco-dificação, não como a nossa, mas umarecodificação por meio de cláusulas ge-rais, como são os Códigos de Québec, daLouisiana, da Holanda, e o nosso Códigode Defesa do Consumidor e Estatuto daCriança e do Adolescente. Ou seja, naimpossibilidade de regular todas as ques-tões, as cláusulas gerais oferecem aosJuízes valores, descritos analiticamen-te pelo próprio legislador, por meio denormas especificamente concebidas paraeste fim.

No caso do Novo Código, a ausênciade uma definição clara, analítica, des-critiva, do significado das cláusulas ge-rais provoca insegurança quanto à ex-cessiva discricionariedade que tais nor-mas, de baixa concretude, poderiam ofe-recer aos magistrados. À míngua de umasolução técnica do próprio codificador, ointérprete deve buscar na Constituiçãoda República tais parâmetros ou critéri-os axiológicos, evitando subjetividade evacilações na aplicação dos novos dispo-

sitivos, especialmente quando se tratarde conceitos jurídicos indeterminados oucláusulas gerais.

E para os que julgam a magistratu-ra não suficientemente preparada paratal desafio, basta lembrar, em termosde direitos de vizinhança, a velhíssimacláusula geral do art. 554, do Código de1916, com base na qual a jurisprudên-cia criou, com bases seguras, toda a dog-mática relacionada à matéria.

A Magistratura desenvolveu comperfeição aqueles critérios que todos co-nhecem; definiu-se o uso normal da pro-priedade e o grau de tolerância admis-sível, levando-se em conta a região e adestinação. Não havendo interesse pú-blico, o Juiz manda cessar a atividadeilícita, a imissão indevida, consideran-do-a intolerável; havendo interesse pú-blico, ao revés, em zonas industriais, porexemplo, mantêm-se as imissões, masindeniza-se o vizinho prejudicado. E,enfim, em muitas hipóteses, a Magis-tratura tem resolvido o conflito impondomedidas de segurança ou de proteção,em favor dos vizinhos. Evita-se a solu-ção mais drástica que seria a indeniza-ção cabal ou a peremptória cessação daatividade. E tal solução foi também pre-vista nos arts. 1.278 e 1.279.

Tal construção hermenêutica, re-pita-se ainda uma vez, demonstra quenossa Magistratura sabe perfeitamentecomo dar densidade normativa à cláu-sula geral, aplicando-a com equilíbrio, ebuscando na solução interpretativa umcerto consenso social.

Com relação, finalmente, ao con-domínio, há alguns problemas. Penso quea Lei de Condomínio de 1964 merecetodas as homenagens. Temos, no Bra-sil, estruturas monumentais de condo-mínio, empreendimentos que abrigam,em seu bojo, a um só tempo, shoppingcenters, apart-hotéis, hotéis em sistemade time-sharing, prédios residenciais, pré-dios comerciais, tudo a partir da con-venção entre os condôminos, expressãoda autonomia privada. Isso demonstra oamadurecimento dos advogados, que cri-aram essas operações imobiliárias, e da

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 175

Magistratura, que soube absorver essarealidade.

Mas, a nova lei trouxe alguns pro-blemas. Alguns deles pontuais, como, porexemplo, o art. 1.334, que, ao fixar o quedeve constar na convenção, não faz pre-visão de fundo de reserva. Essa é umaquestão, que, na prática, dá muita briga,porque, se não há previsão, o sujeito nãoquer gastar dinheiro e é contra o fundode reserva. Só que o fundo de reserva, àsvezes, é essencial para a manutenção dopatrimônio econômico e social dos con-dôminos. Nos novos condomínios, se nãohouver previsão de fundo de reserva, pa-rece-me que a assembléia tenha compe-tência para deliberar, constituindo-o. Evi-dentemente, não se pode aceitar fundode reserva abusivo. Este deve ser compa-tível com o patrimônio imobiliário. A ad-missão de sua constituição pela Assem-bléia evitará a deterioração de grandeparte do acervo imobiliário.

A outra questão diz respeito ao art.1.335, segundo o qual só pode votar naassembléia - e votar é manifestação dafaculdade inerente ao domínio, porqueé forma de utilização do imóvel – quemestiver em dia com o condomínio. Poder-se-ia discutir a constitucionalidade dodispositivo. Aquele condômino inadim-plente, mal ou bem, tem o direito de pro-priedade. A proibição de votar, pura esimplesmente, por não estar em dia como condomínio, é muito drástica em ter-mos da expressão da propriedade, atéporque o inadimplente pode ter tido mo-tivos razoáveis, como estar em discus-são com a administradora. Creio que odispositivo útil e constitucional se lhefor dada uma interpretação razoável,assegurando-se o direito a ampla defe-sa e sempre que a proibição atingir asdeliberações concernentes à manuten-ção do imóvel e às benfeitorias. Parece-me de constitucionalidade duvidosa avedação do direito de deliberar quanto àalienação de parte comum ou à extin-ção do condomínio.

Para concluir, dois aspectos a se-rem destacados muito rapidamente. Emprimeiro lugar, o direito real do promi-

tente comprador. O art. 1.417 vem a con-sagrá-lo. Mais importante do que a regu-lamentação de um novo direito real, arigor já previsto em lei especial, parece-me a tendência, no Direito Obrigacional,de execução específica das obrigações.Sempre aprendemos, desde o Direito Ro-mano, que o normal, no Direito Civil, eraa indenização para o caso de inadimple-mento das obrigações. Só excepcional-mente haveria execução específica. O art.1.088 do Código Civil de 1916 - segundo oqual, quando um contrato exige formaespecial e a promessa não se revestir damesma forma, a recusa à sua celebraçãoensejaria perdas e danos – não foi man-tido pelo novo Código.

Ou seja, ao lado do direito real dopromitente comprador, que lhe garantea oponibilidade da promessa de comprae venda erga omnes, ressalta-se a ten-dência jurisprudencial e legislativa a seautorizar a execução específica e, emparticular, a adjudicação compulsóriasempre que possível, para se dar maiorefetividade aos contratos preliminaresem geral, mesmo em se tratando de do-cumento particular.

Por fim, o direito de superfície. Eleera uma exigência já de há muito tempocomo forma de reorganização urbana ede utilização melhor do patrimônio imo-biliário, possibilitando a separação dosolo e de suas diversas possíveis super-fícies, tantas quantas forem as formaspossíveis e autônomas de aproveitamen-to econômico (cogita-se de superfície deespaço aéreo, e dos diversos planos deuma construção). Em algumas comuni-dades carentes, tal separação entre osolo e a superfície já se pratica há mui-tos anos, na figura do direito de laje:constrói-se no plano inferior, vende-seo direito de laje para outro construir,tudo isso de maneira espontânea.

O problema jurídico para os senho-res magistrados aqui presentes é que oEstatuto da Cidade acaba de ser aprova-do, com outra disciplina para o direitode superfície. Surge, pois, a dúvida quan-to à convivência dos dois diplomas. A in-terpretação que parece estar prevalecen-

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do entre os especialistas - em particu-lar, é o que pensa o Prof. Ricardo CésarPereira Lira, que é um especialista noassunto – é no sentido de que estarãoem vigor as duas normativas. O direitode superfície inserido no Plano Diretorou no projeto urbanístico, capitaneadopela Prefeitura, avocará a disciplina doEstatuto da Cidade. E o direito de su-perfície feito por um particular atrairiaa disciplina dos arts. 1.369 e seguintesdo Código Civil. Na prática, parece-meque a disciplina do Estatuto da Cidade,por ser mais abrangente e flexível, aca-bará por absorver toda a matéria.

Eis aí apenas algumas considera-ções que me parecem interessantes parao início dos debates, chamando a aten-ção para o fato de que o Novo Código nãoé uma obra acabada. Não sou pessimistae, embora com o espírito crítico, pensoque o Novo Código será o Código que for-mos capazes de criar interpretativamen-te. Cabe, portanto, a nós, aos profissio-nais do Direito, em particular aos magis-trados, aos jovens estudantes, que terãode reescrever o Direito Civil, criar umDireito vivo e, assim, um Código Civil vivo

também em matéria de direitos reais. .

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O tema que me foi dado abordar éo compromisso de compra e venda, o di-reito do promitente comprador, que apa-rece no Código com essa denominação,integrando os direitos reais. A rigor, essedireito real já estava em nossa legisla-ção, como um direito real autêntico, masestava fora do Código. Agora, aparece emdois artigos, - 1.417 e 1.418, - como di-reito real do promitente comprador.

Na parte de contratos, não aparecenada. Então, fica-se em dúvida e difi-culdades e vou adiantando já o rumo daminha exposição, que é mais de ordemcrítica ao Código nesse ponto. Falo issocom muita tranqüilidade porque tenhoelogiado muito o novo Código Civil, prin-cipalmente quando notamos ali a con-sagração de princípios tão relevantes,como os que prestigiam a boa-fé, a eqüi-dade e o poder que está sendo dado aojuiz.

Parece-me que estamos ingressan-do em um novo e rico período do estudoe da prática do Direito Civil, como se vêaqui pelo interesse de um público seletocomo este.

Mas, nesse tema, que é objeto de nos-so estudo de hoje, lamentavelmente nãoposso dizer que está tudo bem. Por quê?

Primeiro porque o Código foi avaronesse ponto, é muito pouco o que estápresente no Código, apenas dois artigossobre o direito do promitente comprador.

É um dos contratos mais polêmicos,que mais gera controvérsias. Vocês ve-jam aí qualquer compêndio de jurispru-dência e vão notar que o verbete compro-misso de compra e venda é mais extensodo que o da própria compra e venda.

Vocês sabem que é um contratopopularíssimo. É rara uma negociaçãoimobiliária que não tenha começado porum compromisso. Ninguém vai direta-mente ao Cartório assinar uma escritu-ra. É algo muito vivo, ainda mais quandose lembra da grande quantidade de lo-teamentos, nem sempre conduzidos deforma regular do ponto de vista jurídicoe urbanístico. Nesses casos, a seguran-ça de quem adquiriu o imóvel, - quemuitas vezes é o único de sua vida - estáapoiada nesse contrato simples, peque-no, informal.

Era de se esperar, então, um tra-tamento jurídico mais abrangente, maissólido, porque o interesse social, no caso,é muito amplo, muito intenso.

Mas o Código não foi feliz.Manteve os pontos fundamentais

que foram trazidos pelo Decreto-lei nº58/37, incorporados na Lei 6.766/79, ena legislação posterior.

Esses pontos fundamentais são: odireito real; o direito à adjudicação com-pulsória, e conseqüente proibição de ar-rependimento; e a facilidade de formapara o contrato. Mas um desses pontos -o direito à adjudicação compulsória – fi-cou muito limitado pelo novo Código, queimpôs o registro do contrato como requi-sito para o exercício daquele direito.

Para o surgimento do direito real,é evidente a necessidade do registro,não podia ser de outra forma. Mas, parao exercício do direito à adjudicação com-pulsória, na verdade não é, como adian-te se verá.

Mas, por que será que o Código foitão acanhado no tratamento do caso?

Explica-se: Na Parte Geral dos Con-tratos, o Código inovou e dedicou toda

Do Direito do Promitente Comprador

JOSÉ OSÓRIO DE AZEVEDO JUNIORDesembargador aposentado do TJ/SP. Professor de Direito Civil da PUC/SP

Palestra proferida no Seminário realizado em 8/11/2002

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uma seção - a VIII - ao contrato prelimi-nar, matéria inteiramente ausente docódigo anterior. É bom lembrar que issonão quer dizer que não existisse o con-trato preliminar no sistema anterior,não só por causa da legislação especial,mas porque o contrato preliminar nãoera proibido, e, sendo assim, era permi-tido, como é regra do direito privado. Erealmente utilizava-se muito o contratopreliminar, mesmo na sua figura anteri-or ao Decreto-lei nº 58. Só que no con-trato preliminar do sistema anterior, es-tava ele submetido ao disposto no artigo1.088 e que dizia o seguinte: “Quando oinstrumento público for exigido como pro-va do contrato, qualquer das partes podearrepender-se, antes de o assinar, res-sarcindo à outra as perdas e danos re-sultantes do arrependimento, sem pre-juízo do estatuído nos arts. 1.095 a 1.097”.Foi essa consagração do direito de arre-pendimento que causava um dano terrí-vel aos adquirentes por contrato prelimi-nar. Daí o surgimento da legislação pa-ralela sobre o compromisso.

Então o Código novo tem essa mo-dernidade, no sentido de haver tratadodo contrato preliminar de uma formagenérica.

O contrato preliminar ganhou umadimensão imensa no Século XX, em to-dos os países. Em grande parte pelas di-ficuldades burocráticas que surgiram,com a complexidade da vida econômicae jurídica, havendo inúmeras dificulda-des para se fazer o contrato definitivo. Acriatividade dos advogados e dos empre-sários fez surgir e difundir enormemen-te o contrato preliminar. Se é impossí-vel, praticamente, celebrar o contratodefinitivo, celebra-se o preliminar, e onegócio está realizado.

No Brasil, o contrato preliminar vi-cejou enormemente, pois houve épocasem que a carga tributária nas transa-ções imobiliárias definitivas era aindamaior que a de hoje.

O Código novo trata do contrato pre-liminar genericamente, como já foi dito,permitindo, em princípio, que qualquercontrato possa ser precedido de um pre-

liminar, desde que a natureza da obri-gação não o impeça e desde que este-jam presentes os requisitos do definiti-vo, com exceção da forma. O que se com-preende porque, se fosse exigida a mes-ma forma, o contrato preliminar não te-ria razão de existir.

A falha, a meu ver, foi impor, comoregra, a obrigatoriedade do registro de todocontrato preliminar – art. 463, § único.

Vejam que pode existir contratopreliminar de quase todo tipo, como delocação, de prestação de fiança, de aval,de partilha, e não só de compra e venda.Para que registrar tudo isso? Essa críti-ca é feita respeitosamente ao Códigoporque parece que às vezes ele foi toma-do de uma certa volúpia registral.

O registro é necessário para fazervaler o contrato perante terceiros, maspara valer entre as partes; entre os con-tratantes, não há necessidade do regis-tro e a exigência deste só vai servir paraenfraquecer o contrato porque o contra-tante que quiser sair do vínculo vai bus-car mais essa desculpa para não cum-prir suas obrigações. O brasileiro é meiodisplicente, tem pouca disponibilidadefinanceira, o sistema de registro é rigo-roso e dispendioso. A maior parte doscontratos não é levada a registro.

Em suma, o abordagem do códigoao contrato preliminar em geral e ao di-reito real do promitente comprador émuito insatisfatório e está longe de con-tribuir para a solução de dificuldadesnovas, que não param de surgir em tor-no do tema.

Convém lembrar que a exigência doregistro para o exercício do direito à ad-judicação compulsória, constitui temaque já foi debatido ad nauseam no Direi-to Brasileiro.

Os tribunais estaduais concluíram,com jurisprudência firme, no sentido dese dispensar o registro para a obtençãoda escritura. Sob qual fundamento?

O fundamento está na naturezados dois tipos de direito subjetivo queestão presentes na hipótese: o direitoreal decorrente do registro, que opera

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contra terceiros; e o direito pessoal, exi-gível contra o contratante.

O direito à adjudicação compulsó-ria tem natureza pessoal, é um direitodo promitente comprador contra o pro-mitente vendedor. É só entre eles quese estabelece o vínculo; independente-mente de estar registrado ou não o con-trato, a obrigação de dar escritura deveser cumprida, da forma como foi combi-nada. Nesse sentido, formou-se fortíssi-ma corrente com apoio em grandes no-mes, como Pontes de Miranda e DarciBessone, corrente essa que se firmounos tribunais estaduais.

O Supremo Tribunal Federal, con-tudo, com apoio em interpretação literalde leis especiais, caminhou em um sen-tido oposto e exigia o registro, o que, evi-dentemente, estava enfraquecendo acorrente oposta, embora houvesse mui-tos Desembargadores e Juízes de Alça-da que, em respeitosa rebeldia, dispen-savam a exigência.

Aí, surge um fato importantíssimona vida jurídica brasileira que foi a novaConstituição e a criação de um novo tri-bunal, que é o competente para julgaressa matéria. O que aconteceu? O Supe-rior Tribunal de Justiça não aceitou aorientação do Supremo, a discussão vol-tou, predominando a tese oposta, a pontode ser editada a Súmula nº 239, a saber:“O direito à adjudicação compulsória não secondiciona ao registro do compromisso decompra e venda no cartório de imóveis.”

Agora, vem o Código novo e descon-sidera tudo isso.

Independentemente de uma teseser mais conveniente do que outra, - oque é sempre discutível – a verdade éque, com enorme sacrifício, a socieda-de, os advogados, as partes, os juízes,sofreram muito até a questão ser pacifi-cada. Nada justifica voltar-se ao climade vinte anos atrás.

Percebe-se o que aconteceu. O Pro-jeto é de 1974 e levou em conta, comonão podia deixar de ser, a jurisprudênciaentão dominante no STF. Ficou esqueci-do por quinze anos nas prateleiras do Con-

gresso e acabou sendo aprovado sem mai-ores discussões e atualizações, pelo me-nos nesse campo, pois não levou em con-ta a jurisprudência que se formou no STJ.

O que se pode prever é que o STJ,cioso de sua competência, dará uma in-terpretação larga ao texto do código emanterá a orientação sumulada.

O outro ponto em que me pareceter ocorrido grande omissão do Códigofoi o de perder a oportunidade para en-frentar tema também candente e de re-levância para o comércio jurídico atual.

Refiro-me à manutenção da chama-da escritura definitiva de compra e venda.

Hoje em dia, não se vê ninguém nadoutrina defender a tese de que há ne-cessidade concreta, objetiva, de se la-vrar um segundo contrato, lavrar-se umaescritura pública, quando já houve umcompromisso de compra e venda regis-trado e cumprido. O devedor pagou, ocredor deu quitação, a posse foi dada hámuito tempo e então é preciso formali-zar a transmissão da propriedade. Tem-se entendido que, pela legislação tradi-cional genérica do Código Civil, serianecessário lavrar-se um segundo con-trato. Será que isso é verdade? Será querealmente existe essa necessidade? Oque é transmitido pelo promitente ven-dedor nessa ocasião? Será que ele con-servou alguma coisa de útil, de válido,depois que o compromisso foi cumprido?

A realidade mostra que, no momen-to da celebração do compromisso, o pro-mitente vendedor tem algo muito valio-so e digno de proteção jurídica, que é agarantia do preço a receber, pois a ven-da se fez a prazo, o vendedor não sabese a outra parte vai pagar, e ele querusar a propriedade, o domínio, como ga-rantia do seu crédito, como a dizer quenão vende, que apenas promete vender,e que venderá na hora em que recebera totalidade do preço.

Aí está a estrutura real do compro-misso. Acontece que o contrato tem queser examinado no seu dinamismo, nasua vida, ele nasce, vive e morre. Entãoo contrato foi sendo cumprido: a dívidafoi sendo paga, o crédito foi se esgotan-

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do. Depois de tudo pago, o que sobroupara o promitente vendedor?

Vejam, que estamos diante de di-reito real de aquisição, alguém quercomprar, outro quer transmitir a propri-edade de um imóvel. O que é a proprie-dade, qual é o conteúdo do direito depropriedade? Todos sabem que esse con-teúdo consiste nos tradicionais poderes,o jus utendi fruendi et abutendi, o direitode usar, fruir e dispor. É isso que estáno cerne do direito de propriedade e queé objeto da transmissão.

Esses poderes estão na titularida-de do compromissário comprador ou nado compromitente vendedor? Este – de-pois de recebido o preço - tem apenas o“domínio em tese”, não pode usar, nãopode fruir e não pode dispor. Ele, de útil,não tem nada. A rigor, ele tem menosdo que nada, ele tem algo negativo, noseu passivo, que é a obrigação de outor-gar uma escritura. Tudo que representavalor econômico-jurídico está na esferade poder do compromissário. Este, en-tretanto, permanece na dependência daformalidade, vazia de conteúdo, que é alavratura desse segundo contrato, des-sa chamada escritura definitiva.

O Decreto-lei nº 58, que criou ocompromisso, gerou um sistema novo detransmissão de propriedade, paralelo aoCódigo Civil, só que ao invés de prosse-guir no rumo inovador, voltou para o Có-digo ao impor a necessidade da escritu-ra. Mas, o natural seria dar seqüênciaàquilo que se iniciou: houve um compro-misso, registrou-se o contrato, entregou-se o bem, deu-se a posse, pagou-se opreço, existe quitação. O normal é re-gistrar o instrumento de quitação e aver-bar-se a quitação no registro já existen-te e tem-se como completada a trans-missão da propriedade.

Isso já está muito entranhado nadoutrina e, agora, até mesmo na legis-lação brasileira. Vejam que, a par deuma disposição da Lei de Loteamentos,a Lei 6.766, temos, agora, uma lei, queé a Lei nº 9.785, de 29 de janeiro de1999, que trouxe importantes novidades.Esse diploma alterou alguma coisa das

leis de desapropriação e de registro deimóveis, para facilitar a implantação deconjuntos habitacionais. Mas acabou in-troduzindo um parágrafo 6º ao artigo 26da Lei 6.766, de natureza genérica, dis-pondo: “Os compromissos, as cessões, pro-messas de cessão uma vez registrados eacompanhados do instrumento de quitação,são títulos hábeis para a transferência dapropriedade”.

Então, isso tudo que acabei de di-zer, já está hoje, amparado por lei, nocampo do loteamento.

Agora vem o Código Civil, ignoraesses avanços e mantém o sistema ar-caico.

Essa me parece ser uma crítica fun-damental, principalmente quando nota-mos, também, que o Código, em seu ar-tigo 108 repete o artigo 134, § 2º que dizque para a transferência e aquisição dedireitos reais sobre imóveis acima dedeterminado valor, há a necessidade doinstrumento público. O Código pôs o li-mite de 30 salários mínimos, que estádando, atualmente, seis mil reais. OCódigo de 1916 falava em um conto dereis que era algo expressivo, algo quedava mais ou menos para a aquisição deum imóvel popular, o que era natural,para liberar as classes menos favoreci-das dessas despesas. Por seis mil reais,tenho que a impressão que não se com-pra nenhum imóvel popular. A disposi-ção idêntica do Código anterior semprefoi letra morta nesse país, ou vocês jáviram por aí, a não ser no ambiente doSistema Financeiro da Habitação, a es-critura particular de venda e compra?Ninguém viu, aquela disposição nuncafoi levada a sério.

Não fica bem a um Código novo con-ter uma disposição que parece ter nas-cido morta.

Por falar em valor que deve ser atu-alizado, lembro, respeitosamente, outrodeslize do código nesse art. 108. Mandacorrigir o valor pelo salário mínimo, o queé vedado pela Constituição Federal – art.7º, inciso IV, vinculação do salário míni-mo para qualquer finalidade, dispositivoesse que vem sendo prestigiado pelo STF.

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 181

O importante, parece-me, é ressal-tar que o novo código, que em tantos pon-tos, tem recebido justificados elogios,podia e devia dispensar aquela escritu-ra definitiva, ou pelo menos fazer comque esse escrito definitivo não precisas-se ser por instrumento público no casode um valor menos elevado.

Se o Código resolveu adotar o di-reito real do promitente comprador, se-ria bom que o fizesse de uma forma maisatual, e o respectivo contrato devia es-tar inserido na parte específica da com-pra e venda. Se o Código ainda mantéma retrovenda, sempre suspeita, a vendaa contento, a preempção, institutos quepositivamente não apresentam uma re-levância social maior, não devia ignoraro compromisso de compra e venda, quegera tantos problemas, como, por exem-plo, os relativos, ao arrependimento, àtransferência, à outorga uxória, à pur-gação da mora, à perda de importânciaspagas etc. Então aqui, acho que o Códi-

go merece crítica. Mas, pensando bem,às vezes, me pergunto se não é melhordeixar como está, porque para regularcomo ele regulou a questão do registro,seria melhor deixar por conta da legis-lação especial e da jurisprudência.

Muita discussão vai continuar. ODes. Sidney Hartung, disse no início des-ta sessão, que não é a entrada em vigorde um Código que muda inteiramente osistema jurídico de um país. As influên-cias vão continuar, o ambiente jurídicoé meio parecido com físico, às vezes. Co-locar uma coisa muito diferente, poucoadequada, leva a um processo de rejei-ção jurídica, e os advogados, juízes e pro-motores, aqueles que trabalham com odireito levarão a modificações.

Acho que teria mais alguma coisa parafalar, mas agora é a hora do Professor Fa-bio de Mattia. Estou à disposição para, nofim, tentar responder alguma questão queeventualmente seja levantada..

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O nosso tema a ser abordado se di-vide em duas vertentes: a primeira delasé a respeito dos direitos de vizinhança e,em seguida, a respeito da aquisição dapropriedade imobiliária. Mas, se houvertempo, seria interessante, ao invés defazer acenos a pequenas modificações emartigos no novo Código Civil, nós, ao fi-nal, falássemos um pouco do artigo 1.277do Novo Código Civil, que substitui o arti-go 554, e que é a grande matriz dos estu-dos a respeito dos direitos de vizinhan-ça, do conflito de vizinhança.

Então, vou me ater apenas a anali-sar os artigos onde realmente há umacontribuição – muitos deles são artigosnovos e muito importantes. Então, co-meço com o capítulo V, seção I, que abor-da “Do uso anormal da propriedade”.Quando se trata do uso anormal da pro-priedade, é neste campo que se criouliteratura a respeito do que é o conflitode vizinhança e, entre nós, o ProfessorFrancisco Clementino de San TiagoDantas, com sua grande competência,escolheu como tema para sua monografiade concurso “O Conflito de Vizinhança esua Composição” publicado em 1938 erepublicado pela Editora Forense, em1972. Esta tese para concurso para Pro-fessor Catedrático de Direito Civil, em1938, pela sua qualidade, realmente,não era o modelo vigente.

Na época, concedia-se ao candida-to um tempo para elaborar a tese – doismeses, três meses – e, na realidade, “Oconflito de vizinhança e sua composição”é um trabalho, de altíssima qualidade.Quando se estava preparando uma novaedição, o Professor estava muito doen-te, e ainda assim lembrou-se: há um

professor francês - Paul Leyat - que pu-blicou uma monografia que era uma tesede doutorado defendida um ano antesde o Professor San Tiago Dantas prestarconcurso para professor catedrático, naentão Universidade do Brasil em 1938 eeste trabalho do autor francês é de 1937.O Professor San Tiago Dantas me reco-mendou procurar esse livro e, sem ne-nhuma anotação, forneceu o nome doautor e o título da obra La responsabilitédans les rapports de voisinage.O Profes-sor Rubens Limongi França e eu fomosincumbidos de fazer notas de rodapé deatualização e, inclusive, conseguimosentregar as notas na versão definitiva,alguns dias antes do falecimento do ilus-tre advogado, professor e grande jurista.

E esta obra do Professor SAN TIAGODANTAS é o que há de texto, realmente,extraordinário entre nós, sobre o direitode vizinhança.

Começaremos a análise dos direi-tos de vizinhança, exatamente com o ca-pítulo onde estão as regras gerais e so-bretudo sobre o uso adequado da proprie-dade. O artigo 1.277, do Código Civil 2003,é o substituto do artigo 554 do Código Ci-vil de 1916. O artigo 1.277 dispõe: “O pro-prietário ou possuidor de um prédio temo direito de fazer cessar as interferênci-as prejudiciais à segurança, ao sossegoe à saúde dos que o habitam, provocadaspela utilização de propriedade vizinha.”

Devemos, então, inclusive, fazeruma referência: quando se fala dos di-reitos de vizinhança, não estamos ape-nas no campo dos direitos reais, mas tam-bém no campo dos direitos obrigacionais,como veremos no decorrer da exposição.

Por outro lado, há também umacontribuição importante do ProfessorJosé de Oliveira Ascensão, que é autor

Direitos Reais: Da Aquisição da PropriedadeImóvel. Dos Direitos de V izinhança

FÁBIO MARIA DE MATTIAAdvogado. Professor titular de Direito Agrário/USP

Palestra proferida no Seminário realizado em 8/11/2002.

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de duas monografias sobre os direitosreais, e numa delas cuida da Teoria daIntegração e, nessa teoria, ele defendeesse dualismo do direito obrigacional edo direito real juntos, quando se cuida,exatamente dos conflitos de vizinhança.

Então, comecemos com o artigo1.277 que, na verdade, resulta do textodo artigo 554. Naquele artigo, nós temosalguns acréscimos que atualizaram oartigo anterior. O artigo 1.277 dispõe:“O proprietário ou o possuidor de um pré-dio tem o direito de fazer cessar as interfe-rências prejudiciais à segurança, ao sosse-go e à saúde dos que o habitam, provocadaspela utilização de propriedade vizinha.” Osacréscimos são importantes, porque peloartigo 554 tinha-se a idéia de que o di-reito de vizinhança concernia só ao pro-prietário e não ao possuidor.

Então, no artigo 1.277 se acresceu,ao lado da figura do proprietário, a figu-ra do possuidor. Além do mais, acres-ceu também algo muito importante quepraticamente faltava no artigo 554 quan-do diz: “...tem o direito de fazer cessar asinterferências prejudiciais...”; então, haviafalta de uma indicação, de algo como “in-terferências prejudiciais”, que isto é quefacilitaria até a construção jurispruden-cial que, embora não havendo esta indi-cação, criou-se uma jurisprudência mui-to grande sobre o artigo 554.

Por outro lado, também, continuoua indicação à segurança, ao sossego e àsaúde dos que o habitam; porém, acres-centou-se algo que não parece importan-te mas o é: a indicação de “...provocadaspela utilização de propriedade vizinha.”Este é um aspecto importante porque,inclusive, o artigo 1.277 pode-se dizerque recebeu uma redação que talvez sejamelhor que a do artigo 554.

Mas, o artigo 1.277 tem um pará-grafo único que é novidade, e que é bas-tante importante, que dispõe o seguin-te: “Proíbem-se as interferências conside-rando-se a natureza da utilização, a locali-zação do prédio, atendidas as normas quedistribuem as edificações em zonas, e os li-mites ordinários de tolerância dos morado-res da vizinhança.”

Na verdade, este final, quando serefere a “...limites ordinários de tolerânciados moradores da vizinhança” é, na ver-dade, o fundamento da regra que se apli-ca quando há um conflito de vizinhança.Então, este parágrafo único, não há dú-vida de que ele é muito pertinente, ecomplementa a regra do artigo 1.277,dando mais parâmetros para se enten-der o que é o uso normal, o que não éuso anormal; este parágrafo único é umanovidade: proíbem-se as interferênciasconsiderando-se a localização do prédio,a natureza da utilização, a localizaçãodo prédio atendidas as normas que dis-tribuem as edificações em zonas, e oslimites ordinários de tolerância dos mo-radores da vizinhança. Na verdade, nósexaminaremos várias regras, contudo,este artigo 1.277 é o centro da discus-são sobre o conflito de vizinhança, sobreo uso normal da propriedade.

Dessa forma, uma pergunta que sepoderá fazer: bem, mas está evidente aligação do artigo 554 à obra de Von Ihe-ring mas, na verdade, não havia neces-sidade de outros subsídios doutrinários,porque nesses anos todos a jurisprudên-cia foi sinalizando o que deveria se en-tender por uso normal da propriedade eo que não é uso normal da propriedade.Isso é importante porque com relação aoconflito de vizinhança, há muitos estu-dos, muitas obras. E não só isso, exis-tem muitas correntes doutrinárias. Porexemplo, na França, existem muitas cor-rentes doutrinárias e com variedade deautores que abraçaram esta ou aqueladoutrina.

Mas, na realidade, nós estamosmuito bem, repetindo o artigo 1.277, nosmantermos fiéis à Teoria de Von Ihe-ring, porque a doutrina dele é muito an-tiga, mas a jurisprudência vem atuali-zando, vem mostrando realmente, commodernidade, o que é que se pode admi-tir como conflitos de vizinhança. Então,este parágrafo único é, realmente, bas-tante importante, porque ele nos dá oslimites, faz com que nós tenhamos umanoção do que sejam os limites ordinári-os de tolerância dos moradores da vizi-

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nhança – isto não está na lei, mas nósintuímos do artigo 1.277, o que deve-seentender como uso normal da proprie-dade e, em dificuldades, nós temos ajurisprudência que é muito rica a res-peito desse artigo.

Em seguida, temos também umoutro artigo novo, ainda no capítulo douso anormal da propriedade: “Art. 1.278.O direito a que se refere o artigo anteceden-te não prevalece quando as interferênciasforem justificadas por interesse público, casoem que o proprietário ou o possuidor, cau-sador delas, pagará ao vizinho indenizaçãocabal.” Então, é um artigo novo.

Em seguida, é interessante anotar,que esta regra geral do artigo 1.277 nãose aplica ao referido artigo 1.278; as-sim, repita-se, aqui nós estamos diantede um artigo inteiramente novo. Nós te-mos também o artigo 1.279, ainda nocapítulo do uso anormal da propriedade,que dispõe: “Ainda que por decisão judici-al devam ser toleradas as interferências,poderá o vizinho exigir a sua redução, oueliminação, quando estas se tornarem pos-síveis.” É um típico artigo de influênciade Von Ihering mas que, na verdade, nãohá problemas, porque nós vamos adap-tando a noção de uso normal de acordocom a orientação jurisprudencial. E, naconceituação do Professor FranciscoClementino San Tiago Dantas, nós en-contramos uma indicação dos grandescampos em que se desenvolvem os estu-dos dos direitos de vizinhança. Então,seria naquilo que nós poderíamos cha-mar uma parte geral dos direitos de vi-zinhança, que é esta parte toda cons-trução doutrinária e jurisprudencial, emrelação ao artigo 554, e em seguida, par-te especial que é muito particularizada;porém, nós veremos que há novas re-gras comportantes.

Quando falamos na aplicação daTeoria do Uso Normal, nós estamos fa-zendo uma opção, e esta opção é consi-derada como válida entre nós, e o Pro-fessor San Tiago Dantas, referindo-se aesse critério do uso normal, apontava:os prejuízos sobre o vizinho por causa douso legítimo da propriedade alheia não

podem ir além daquele ponto limite. Emoutras palavras: as interferências pre-judiciais do vizinho devem cessar lá ondeelas ultrapassam a receptividade ordi-nária dos prédios incomodados. É umaregra, e a jurisprudência vai adaptando- a interpretação vai indicando qual é overdadeiro conteúdo desta regra. E oProfessor San Tiago Dantas indicava queo estudo do direito de vizinhança se en-contrava em grandes campos em que sedesenvolvem os estudos e que ele cha-mava de uma verdadeira parte geral dosdireitos de vizinhança.

Então, o artigo 554, que agora é o1.277, é flexível e, então, permite essedesenvolvimento da parte geral dos di-reitos de vizinhança. Há umareceptividade normal ou média, que podeser o ponto limite da suportabilidade dasinterferências do vizinho no nosso pré-dio; não podemos pretender menos doque a média, ainda que nossasuscetibilidade seja maior, mas podemosser obrigados a suportar mais do que amédia, desde que fique concretamenteprovado que as interferências em causanão nos trazem prejuízo.

Sendo assim, o conjunto dos prin-cípios que regem a solução dos conflitosde vizinhança, essas regras surgem dainterpretação do artigo 554 do CódigoCivil. Estes princípios muitas vezes apa-recem sob formas que o legislador pre-viu, e para os quais fixou normas que sedestinam à composição e à prevenção doconflito de vizinhança. Prosseguindo noCapítulo V, Seção I, “Do Uso Anormal daPropriedade”, temos ainda um outro ar-tigo, mas eu não vou examiná-lo, porqueele nada mais é do que uma cópia doartigo 555 do Código Civil de 1916.

Ainda sobre o uso anormal da pro-priedade, há um artigo que tem algunsacréscimos – 1.281 – que permite queas regras do direito de vizinhança seapliquem tanto em caso de proprietário,como também de possuidor. Na verdade,o Código anterior só falava em proprie-tário, não se preocupava com a figura dopossuidor que poderia estar envolvidoem conflitos de vizinhança. Nesse arti-

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go 1.281 do novo Código Civil acresceu-se o seguinte: “...exigir do autor delas asnecessárias garantias contra o prejuízo even-tual.” Trata-se de novidade importante.

De acordo com a ordem dos artigos,há o 1.282, mas não há nenhum comen-tário a fazer. Com relação ao artigo 1.283,também, há apenas algumas modifica-ções de redação, não havendo nada deimportante para indicarmos. O mesmoocorre com o artigo 1.284. Com isto, aprimeira parte que concerne ao uso anor-mal da propriedade foi abordada.

Agora analisemos, ainda dentro dosdireitos de vizinhança, alguns institu-tos que foram melhor cuidados. Um de-les, é “Da Passagem Forçada”, onde fo-ram inseridos dois parágrafos e mesmono caput do artigo há mudanças. Dispõeo “Art. 1.285. O dono do prédio que não ti-ver acesso a via pública...” – então, “nãotiver acesso” é uma novidade; refere-setambém, não só à via pública, mas acres-centa-se “...nascente ou porto...” -“...pode, mediante pagamento de indeniza-ção cabal, constranger o vizinho a lhe darpassagem...” – o que o artigo inclui é aindicação de uma obrigação de que se ovizinho não tem saída para uma rua, eleé obrigado a dar passagem e o rumoserá judicialmente fixado.

Contudo, há um parágrafo primei-ro importante: “Sofrerá o constrangimen-to o vizinho cujo imóvel mais natural e facil-mente se prestar à passagem.” Então, en-tre a opção entre um vizinho ou outro,escolher-se-á aquele que sofreria me-nos danos proporcionando a passagem.Há o parágrafo 2º que é uma novidade:“Se ocorrer alienação parcial do prédio, demodo que uma das partes perca o acesso avia pública, nascente ou porto, o proprietá-rio da outra deve tolerar a passagem.”

Também há um parágrafo 3º que énovidade: “Aplica-se o disposto no parágra-fo antecedente ainda quando, antes da alie-nação, existia passagem através de imóvelvizinho, não estando o proprietário desteconstrangido, depois, a dar uma outra.”

Agora, passemos ao capítulo queaborda o critério normal do uso da pro-priedade, e nos deteremos em outros

institutos. Um deles é uma total novi-dade: é a Seção IV que cuida “Da Passa-gem de Cabos e Tubulações”. Então, oartigo 1.286 dispõe: “Mediante recebimentode indenização que atenda, também, à des-valorização da área remanescente, o propri-etário é obrigado a tolerar a passagem, atra-vés de seu imóvel, de cabos, tubulações eoutros condutos subterrâneos de serviços deutilidade pública, em proveito de proprietá-rios vizinhos, quando de outro modo for im-possível ou excessivamente onerosa. Pará-grafo único. O proprietário prejudicado podeexigir que a instalação seja feita de modomenos gravoso ao prédio onerado, bemcomo, depois, seja removida, à sua custa,para outro local do imóvel.”

Neste capítulo “Da Passagem deCabos e Tubulações”, temos ainda o ar-tigo 1.287 que dispõe: “Se as instalaçõesoferecerem grave risco, será facultado aoproprietário do prédio onerado exigir a rea-lização de obras de segurança.”

E com isto, examinemos o capítuloque cuida do chamado uso normal dapropriedade, correspondendo às regrasintrodutórias.

Capítulo V – Das ÁguasO artigo 1.288, praticamente, é novo,

e dispõe: “O dono...” – e já uma mudança:além do dono, também o possuidor estáobrigado – “...ou o possuidor do prédio infe-rior é obrigado a receber as águas que corremnaturalmente do superior...” – e agora, a no-vidade: “...não podendo realizar obras queembaracem o seu fluxo; porém a condição na-tural e anterior do prédio inferior não pode seragravada por obras feitas pelo dono ou pos-suidor do prédio superior.” É importante as-sinalarmos, que todo o capítulo “DasÁguas” do Código Civil – artigos 563 a 568– foi suprimido, porque nós temos o Códi-go de Águas que cuida da matéria nos ar-tigos 68 a 138.

Então, esse pequeno capítulo, comalguns artigos, foi excluído no Novo Có-digo. O Projeto do Código Civil, então,prevê seção V, “Das Águas”, do artigo1.288 ao 1.296, inserindo nele algunsartigos que são do Código de Águas. Hátrês artigos que são novos: 1.291, 1.292

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e 1.294. Vamos examiná-los. Quanto aoartigo 1.289, o importante é só o pará-grafo único, que é novidade: “ art. 1.289.Quando as águas, artificialmente levadas aoprédio superior, ou aí colhidas...” – e aí háuma novidade – “... correrem dele para oinferior, poderá o dono deste reclamar quese desviem, ou se lhe indenize o prejuízoque sofrer. Parágrafo único. Da indenizaçãoserá deduzido o valor do benefício obtido.”

Temos o artigo 1.290 que apenasacrescenta que “O proprietário de nascen-te, ou do solo onde caem águas pluviais...”– isto é novidade – “...satisfeitas as neces-sidades de seu consumo, não pode impe-dir...” – mas há um acréscimo – “...oudesviar o curso natural das águas...” – erefere-se, que não havia indicação –“...remanescentes pelos prédios inferiores”.Ainda quanto a águas, há o artigo novo,1.291: “O possuidor do imóvel superior nãopoderá poluir águas indispensáveis às pri-meiras necessidades da vida dos possuido-res dos imóveis inferiores; as demais, quepoluir, deverá recuperar, ressarcindo osdanos que estes sofrerem, se não for possí-vel a recuperação ou o desvio do curso arti-ficial das águas.”

Ainda sobre águas porque, na ver-dade, tínhamos eventualmente regrasparecidas no Código de Águas, e agorapassou para o Código Civil. Então, artigo1.292: “ O proprietário tem direito de cons-truir barragens, açudes, ou outras obraspara represamento de água em seu prédio;se as águas represadas invadirem prédioalheio, será o seu proprietário indenizadopelo dano sofrido, deduzido o valor do be-nefício obtido.” Quer dizer: indeniza, po-rém, se recebeu um benefício assimmesmo, ele vai deduzir. Então, tambémé um artigo sem correspondência. O ar-tigo 1.293 é uma novidade: “É permitidoa quem quer que seja, mediante prévia inde-nização aos proprietários prejudicados,construir canais, através de prédios alhei-os, para receber as águas a que tenha direi-to, indispensáveis às primeiras necessida-des da vida, e, desde que não cause preju-ízo considerável à agricultura e à indústria,bem como para o escoamento de águas su-pérfluas ou acumuladas, ou a drenagem deterrenos.”

Depois temos, ainda, no parágrafo1º do artigo 1.293 uma única mudança -mas muito importante: é uma referên-cia a ressarcimento. Então, o parágrafo1º do artigo 1.293 dispõe: “Ao proprietárioprejudicado, em tal caso, também assistedireito a ressarcimento pelos danos que defuturo lhe advenham da infiltração ouirrupção das águas, bem como da deteriora-ção das obras destinadas a canalizá-las.” Ouseja, a diferença é a respeito da indica-ção do direito a ressarcimento. O pará-grafo 2º do artigo 1.293 também é novo:“O proprietário prejudicado poderá exigirque seja subterrânea a canalização que atra-vessa áreas edificadas, pátios, hortas, jar-dins ou quintais.”

E o parágrafo 3º cuida de aqueduto,e é novidade: “O aqueduto será construídode maneira que cause o menor prejuízo aosproprietários dos imóveis vizinhos, e aexpensas do seu dono, a quem incumbemtambém as despesas de conservação”.

E há o artigo 1.294 que também éum artigo novo, que apenas faz uma re-missão: “Aplica-se ao direito de aqueduto odisposto nos arts. 1.286 e 1.287” – trata-se da remissão à seção IV “Da Passa-gem de Cabos e Tubulações”.

Ainda sobre águas, há um artigonovo, 1.295: “ O aqueduto não impedirá queos proprietários cerquem os imóveis e cons-truam sobre ele, sem prejuízo para a sua se-gurança e conservação; os proprietários dosimóveis poderão usar das águas do aquedu-to para as primeiras necessidades da vida.”

E o artigo 1.296, é um artigo novo:“Havendo no aqueduto águas supérfluas,outros poderão canalizá-las, para os finsprevistos no artigo 1.293, mediante paga-mento de indenização aos proprietários pre-judicados e ao dono do aqueduto, de impor-tância equivalente às despesas que entãoseriam necessárias para a condução daságuas até o ponto de derivação. Parágrafoúnico. Têm preferência os proprietários dosimóveis atravessados pelo aqueduto.”

Iniciemos a exposição da segundaparte sobre Aquisição da Propriedade.

Agora, abordando a aquisição dapropriedade, vamos tratar, por exemplo,do usucapião. É importante assinalar queem relação ao usucapião pro labore, que

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é regulado na legislação especial agrá-ria, agora foi inserido no novo Código Ci-vil. Sobre o USUCAPIÃO com relação aoartigo 1.238: “Aquele que, por quinze anos,sem interrupção, nem oposição, possuir comoseu um imóvel, adquire-lhe a propriedade...”–então, o que há de novo é a indicaçãodo prazo de quinze anos, e há uma refe-rência sobre a sentença, no final: “...aqual servirá de título para o registro no Car-tório de Registro de Imóveis”.

Há uma novidade no parágrafo úni-co, que é a indicação de um prazo redu-zido de quinze anos para dez anos: “Oprazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabe-lecido no imóvel a sua moradia habitual, ounele realizado obras ou serviços de caráterprodutivo.” Então, reduz-se de quinzepara dez anos o prazo deste tipo deusucapião.

Outra novidade é esta do usucapiãopro labore, que só estava previsto na le-gislação agrária, e agora foi inserido noCódigo Civil. Trata-se do artigo 1.239, quedispõe: “Aquele que, não sendo proprietá-rio do imóvel rural ou urbano, possua comosua, por cinco anos ininterruptos, sem opo-sição, área de terra em zona rural não supe-rior a cinquenta hectares, tornando-a produ-tiva por seu trabalho ou de sua família, ten-do nela a sua moradia, adquirir-lhe-á a pro-priedade.” É uma novidade que inseri-ram no Código Civil; este é um artigoimportante.

Mas, também, temos regulado noCódigo Civil, o usucapião citadino, urba-no: “art. 1.240. Aquele que possuir, comosua, área urbana de até duzentos e cinqüen-ta metros quadrados, por cinco anosininterruptamente e sem oposição, utilizan-do-a para sua moradia ou de sua família,adquirir-lhe-á o domínio, desde que não sejaproprietário de outro imóvel urbano ou ru-ral.” O parágrafo 1º dispõe o seguinte queparece adequado e justo: “O título de do-mínio e a concessão de uso serão conferi-dos ao homem ou à mulher, ou a ambos, in-dependentemente do estado civil.”

Então, o que há de importante éressaltar quanto a título de domínio econcessão de uso – tanto adquirir o do-

mínio de um bem particular como de bempúblico, porque falar em concessão deuso, não é instituto de direito privado –“...serão conferidos ao homem ou à mulher,ou a ambos, independentemente do estadocivil...” – Então, havendo comunhão devida, nada impede que ambos possamobter a usucapião. Parágrafo 2º: “O direi-to previsto no parágrafo antecedente nãoserá reconhecido ao mesmo possuidor maisde uma vez.” Artigo 1.241, também é no-vidade: “Poderá o possuidor requerer ao juizseja declarada adquirida, medianteusucapião, a propriedade imóvel.” E tem oparágrafo único: “A declaração obtida naforma deste artigo constituirá título hábil parao registro no Cartório de Registro de Imó-veis”.

No caput do artigo 1.242 não hánada de especial, apenas passaram ausar a palavra “propriedade”, mas o pa-rágrafo único é importante, porque criaum usucapião com o prazo de cinco anos:“Será de cinco anos o prazo previsto nesteartigo se o imóvel houver sido adquirido,onerosamente, com base no registro cons-tante do respectivo cartório, cancelada pos-teriormente, desde que os possuidores neletiverem estabelecido a sua moradia, ou rea-lizado investimentos de interesse social eeconômico.”

Com relação ao artigo 1.243, ape-nas há uma referência em relação aantecessores: “O possuidor pode, para o fimde contar o tempo exigido pelos artigos ante-cedentes, acrescentar à sua posse a dos seusantecessores (art. 1.207), contanto que todassejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art.1.242, com justo título e de boa-fé.”

Agora, passemos a um outro insti-tuto que está regulado sob a terminolo-gia “Da Aquisição pelo Registro do Títu-lo” – “Art. 1.245. Transfere-se entre vivos apropriedade mediante o registro do títulotranslativo no Registro de Imóveis. Parágra-fo 1º. Enquanto não se registrar o títulotranslativo, o alienante continua a ser havi-do como dono do imóvel.”

E há um parágrafo 2º: “Enquanto nãose promover, por meio de ação própria, adecretação de invalidade do registro, e orespectivo cancelamento, o adquirente con-

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tinua a ser havido como dono do imóvel.”Artigo 1.247: “Se o teor do registro

não exprimir a verdade, poderá o interessa-do reclamar que se retifique ou anule.” Nãohavia artigo com correspondência.

Ha o parágrafo único: “Cancelado oregistro, poderá o proprietário reivindicar oimóvel, independentemente da boa-fé ou dotítulo do terceiro adquirente.” Depois, naordem viria a regulação da acessão; ape-nas, no artigo 1.248, ao lado de “planta-ções” se acresceu “construções”. Ao cui-dar das ilhas: “Artigo 1.249. As ilhas quese formarem em correntes comuns ou parti-culares pertencem aos proprietários ribeiri-nhos fronteiros, observadas as regras se-guintes...” – Aqui, não há muita novida-de, são três itens mas não tem nada demuito especial.

Com relação ao aluvião, o artigo1.250 acrescenta: “Os acréscimos forma-dos, sucessiva e imperceptivelmente, pordepósitos e aterros naturais...” – novidade– “...ao longo das margens das correntes,ou pelo desvio das águas destas, pertencemaos donos dos terrenos marginais, sem in-denização.”

Quanto à avulsão, há novidades noartigo 1.251. A primeira parte é do Códi-go antigo : “Quando, por força natural vio-lenta, uma porção de terra se destacar deum prédio e se juntar a outro, o dono desteadquirirá a propriedade do acréscimo, seindenizar o dono do primeiro ou, sem inde-nização, se, em um ano, ninguém houverreclamado. Parágrafo único. Recusando-seao pagamento de indenização, o dono do pré-dio a que se juntou a porção de terra deveráaquiescer a que se remova a parte acresci-da.”

Sobre álveo abandonado, tem sódois acréscimos e, agora, um capítulointeressante, com algumas regras dife-rentes, sobre construções e plantações.No artigo 1.253 – “Toda construção ou plan-tação existente em um terreno presume-sefeita pelo proprietário e à sua custa, até quese prove o contrário.” A inserção “presu-me-se” é muito importante, pelos seuseventuais efeitos.

A seguir temos o artigo 1.254, emque não há mudanças, a não ser a indi-

cação “edifica em terreno próprio”:“Aquele que semeia, planta ou edifica emterreno próprio com sementes, plantas oumateriais alheios, adquire a propriedadedestes; mas fica obrigado a pagar-lhes o va-lor, além de responder por perdas e danos,se agiu de má-fé.”

No artigo 1.255, também há umaindicação da conduta de boa-fé: “Aqueleque semeia, planta ou edifica em terrenoalheio perde, em proveito do proprietário, assementes, plantas e construções; se proce-deu de boa-fé, terá direito a indenização.”Há um parágrafo novo: “Parágrafo único.Se a construção ou a plantação exceder con-sideravelmente o valor do terreno, aqueleque, de boa-fé, plantou ou edificou, adquiri-rá a propriedade do solo, mediante paga-mento da indenização fixada judicialmente,se não houver acordo.”

Há o artigo 1.256, em que há ape-nas uma referência a valor das acessões;o artigo anterior não se referia aacessões.

Depois, o artigo 1.258, que é umtexto novo: “Se a construção, feita parcial-mente em solo próprio, invade solo alheio emproporção não superior à vigésima parte des-te, adquire o construtor de boa-fé a proprie-dade da parte do solo invadido, se o valorda construção exceder o dessa parte, e res-ponde por indenização que represente, tam-bém, o valor da área perdida e a desvalori-zação da área remanescente. E há um pa-rágrafo único neste artigo novo: “Pagan-do em décuplo as perdas e danos previstosneste artigo, o construtor de má-fé adquire apropriedade da parte do solo que invadiu,se em proporção à vigésima parte deste e ovalor da construção exceder consideravel-mente o dessa parte e não se puder demolira porção invasora sem grave prejuízo para aconstrução”.

E, mais um artigo novo - 1.259 -também, que é quanto a exceder a umdeterminado percentual da construção:“Se o construtor estiver de boa-fé, e a inva-são do solo alheio exceder a vigésima partedeste, adquire a propriedade da parte dosolo invadido, e responde por perdas edanos que abranjam o valor que a invasãoacrescer à construção, mais o da área perdi-

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da e o da desvalorização da área remanes-cente; se de má-fé, é obrigado a demolir oque nele construiu, pagando as perdas edanos apurados, que serão devidos em do-bro.” Isto quanto a esta parte da aquisi-ção da propriedade.

DEBATES

Des. Luiz Roldão de Freitas GomesEminente Professor Fábio Maria de

Mattia a quem me coube apenas susci-tar algumas questões em torno dos di-reitos de vizinhança e cuja exposição,todavia, é informada pela sua sapiência,com que tem sempre tratado desse as-sunto, não só atualizando a obra do Pro-fessor San Tiago Dantas, mas tambémcomentando textos e obras estrangeiras,das quais V. Exa. foi até tradutor, inclu-sive das Instituições de Ruggiero, emsuma, Professor, V. Exa. abordou de umaforma abrangente, e que na verdade nostransmite toda uma visão do novo Códi-go nesse tema. A questão se prende,basicamente, a um critério de orienta-ção para os juízes, que a partir de janei-ro próximo, terão que aplicar essa ma-téria inúmeros conflitos que surgirãonão só no campo, mas também nas aglo-merações urbanas. E se prende, sobre-tudo, a quais diretrizes, ou diretivas, de-verão se apegar os juízes quando nãohouver uma previsão específica no diri-mir esses conflitos de vizinhança. É sa-bido, e já se comentou aqui, que o Pro-fessor San Tiago Dantas quando escre-veu a sua obra magnífica, o fez diantede um conflito entre a chamada vizinhan-ça industrial e a vizinhança doméstica,em que ele não quis sacrificar a vizi-nhança industrial, a bem do desenvolvi-mento econômico, em função apenas davizinhança doméstica. Hoje, V. Exa. men-cionou aqui aquele parágrafo do novo ar-tigo do código, que remete à legislaçãoadministrativa – em síntese, sobrezoneamento etc. – critérios para aferi-ção do chamado uso normal – não maisuso nocivo – da propriedade. Eu indagoa V. Exa., uma vez que esse artigo pare-ce reiterar a preocupação que se tinhadiante da vizinhança industrial pela vi-

zinhança doméstica, vale dizer, ouresidencial, uma vez que esse artigo seremete, basicamente, a essa legislação,eu indago a V. Exa. se poderiam ser le-vados também em conta, para aferiçãodo uso normal como critérios gerais pe-los juízes, aqueles do uso do exercíciodo direito de propriedade previsto no ar-tigo 1.228, vale dizer, os juízes hoje de-veriam levar em consideração, não sópela matriz constitucional, mas tambémem função daqueles critérios, a preocu-pação com o ambiente, com a poluição,em síntese, com todos esses aspectosque cercam, hoje, o exercício do direitode propriedade. Em síntese, se poderiahaver uma conjugação entre os parágra-fos 1º e 2º do artigo 1.228, com este,sobre o uso anormal da propriedade, queconcede ao juiz um elastério bem gran-de na apreciação e no dirimir dessesconflitos?

Dr. Fábio Maria De MattiaNa realidade, justamente, deixa-se

uma flexibilidade. Acredito que não háimpedimento algum, até porque, nas mu-danças do novo Código, se vê bem a pre-ocupação, não só da vizinhança que tal-vez no Código revogado se destinava maisà moradia, mas também com relação aempresas, poluição, acredito que a teo-ria do uso normal será suficiente por-que já há uma jurisprudência, mesmocom relação à vizinhança industrial.Acredito que não haverá problema. Naverdade, o artigo 1.277 permite que seconstrua a jurisprudência. Ele não é her-mético, estreito; na verdade, ele dá opor-tunidade de se alargar o entendimento,e tanto é verdade, que nunca se recla-mou que o artigo 554 seria um empeci-lho ao uso normal da propriedade, porfalta de sanção.

Des. Luiz Roldão de Freitas GomesPois bem, Professor, só desdobran-

do essa indagação, uma vez que o 1.277e seu parágrafo remetem à legislaçãoadministrativa de um modo geral, sobrezoneamento, como critério também, parase aferir a anormalidade ou não do uso,

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essa remissão implicaria em que o vizi-nho pudesse invocar esses diplomascomo fonte de direito subjetivo que fos-se tutelável por via de mandado de se-gurança, contra aquele que esteja a cau-sar-lhe um incômodo ou interferência?

Dr. Fábio Maria De MattiaExistem normas administrativas dos

municípios, mas, não havendo podemosaplicar a regra do artigo 1.277 do CódigoCivil que é flexível, sendo certo que foramsendo construídas novas regras ou prece-dentes judiciais, permitindo a defesa dovizinho que estava prejudicado, assim.

Des. Luiz Roldão de Freitas Gomes Professor, uma segunda indagação,

já agora em matéria da aquisição do domí-nio, da propriedade imóvel, por via do re-gistro de título. O artigo 1.245 - que V. Exaleu e comentou – no parágrafo 2º estabele-ce: “Enquanto não se promover, por meio deação própria, a decretação de invalidade doregistro, e o respectivo cancelamento, oadquirente continua a ser havido como o donodo imóvel”. E o seguinte: 1.247: “Se o teor doregistro não exprimir a verdade, poderá o inte-ressado reclamar que se retifique ou anule.”

Alguns juristas, examinando essetexto, na fase de projeto ainda, argumen-taram que a redação seria dúbia, demodo a se pôr em xeque que a eficáciado registro de imóveis no direito brasi-leiro, já não seria mais absoluta, nãoseria mais substantiva relativa, mas sim,se teria tornado absoluta, em funçãodesta redação. V. Exa. acredita que pos-sa haver alguma vertente nesse senti-do, mesmo depois de solidificadas a ju-risprudência e a doutrina pátrias no sen-tido de que a eficácia do registro ou datranscrição é substantiva relativa e nãosubstantiva absoluta? V. Exa. admite quepossa interferir nessa orientação?

Dr. Fábio Maria De MattiaRelativa.

Des. Luiz Roldão de Freitas GomesContinua sendo relativa. Ao ver de

V. Exa. também, né? Perfeito, seguindo,

inclusive, as linhas que foram adotadasentre nós, por Eminentes Magistrados eJuristas, como Des. Serpa Lopes, Pro-fessor Cláudio Paulo da Rocha, na suatese “Da Eficácia da Transcrição”, querdizer, não poderia induzir de forma al-guma uma eficácia substantiva absolu-ta como a do direito germânico puro. V.Exa. afastaria também, né? Só para queos juízes não tenham dúvidas, assim, deinício, quanto à controvérsia que possasurgir nessa matéria.

Des. José Osório de Azevedo JuniorEu estou inteiramente de acordo

com V. Exa. de deixar claro que é relati-va mesmo, ainda mais o sistema registralnosso, no país inteiro, com tantas falhas,se nós formos extrair uma consequênciade presunção absoluta de verdade, euacho que seria um desastre, e acho queo Código, nesse artigo 1.247 tambémmantém a situação anterior, no sentidode que, se não exprimir a verdade, pode-se reclamar, ou se retifica ou se anula.E mesmo aquela disposição a que V. Exa.se referiu, de que, enquanto não anula-do, se presume verdadeiro etc. aindaestá sujeito a alguma antecipação detutela, alguma coisa, porque às vezes agente encontra casos de nulidades fla-grantes, principalmente na área dosgrileiros, e, no entanto, consegue-se pro-telar e uma sentença vai demorar mui-to tempo, e recurso. Então, eu acho queessa linha aventada pelo senhor é mui-to mais adequada – estou inteiramentede acordo.

Des. Luiz Roldão de Freitas GomesPois não. E uma terceira questão,

ainda associada também à matéria deordem prática, em decorrência dessanova impostação da posse do Código Ci-vil, sobretudo do usucapião especial, emque o Novo Código procura valorizar achamada posse trabalho e que, comoenfatiza também o Des. Erbert Chamounem sua exposição de motivos: a despeitode a posse trabalho ser o fundamentodo usucapião especial, todavia, esse plusdo trabalho poderia passar a ser recla-mado na prova da posse para usucapião

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de um modo geral, como algo que a qua-lificasse, independentemente apenas doexercício do poder de fato sobre a coisa,vale dizer, os juízes deveriam procurarvalorizar mais, na posse ad usucapionem,o elemento também trabalho, no senti-do de poder dar à coisa a sua devidadestinação, e não apenas a situaçãofática? Qual o pensamento de V. Exa. aesse propósito?

Dr. Fábio Maria De MattiaTendo presente a natureza do

usucapião pro labore, o sentido seráprestigiar quem trabalha a terra, naomissão de atitudes de quem eventual-mente é proprietário e não cuidou, tan-to é que o prazo é menor. Cabe, então,prestigiar, e incentivar aquele que tra-balha a terra.

Des. Luiz Roldão de Freitas GomesPerfeito. Como uma forma até de evi-

tar as grilagens que possam conduzir ausucapiões ilícitos. Eu agradeço muito.

Prof. Melhim Namem ChalubEu gostaria de cumprimentar os con-

ferencistas e perguntar ao Des. JoséOsório, no que tange à inserção da pro-priedade fiduciária em garantia no NovoCódigo Civil, parece que também aí ocor-reu aquele problema da dormida do Có-digo no Congresso Nacional, não só por-que não acompanhou – num certo senti-do – a jurisprudência, mas também por-que deixou de lado outras figuras de ga-rantia fiduciária, pelo menos a aliena-ção fiduciária dos bens imóveis, a cessãofiduciária, alienação fiduciária de ações,e outras titularidades fiduciárias; gosta-ria de ouvir V. Exa. sobre essa matéria.

Des. José Osório de Azevedo JuniorO Dr. Chalub lembrou muitíssimo

bem que é um sinal evidente de que re-almente o Código se esqueceu de fatosque aconteceram na legislação recentee na jurisprudência mais recente. En-tão, ignorou inteiramente a alienaçãofiduciária de imóveis – aliás, eu estouachando até que há três alienaçõesfiduciárias agora: a alienação fiduciária

do DL 911 (para as entidades financei-ras); depois a do Código Civil (que gene-ralizou, pela leitura da lei parece quetodos podem se utilizar dela, mas nãopor inteiro, porque como é que um parti-cular iria promover aquele leilão? Preci-sa ter um mínimo de organização em-presarial para levar avante; então, a exe-cução para o particular, terá que seruma execução comum, e não a execu-ção prevista na lei anterior); e, parale-lamente ao Código, há a alienaçãofiduciária do bem imóvel. Eu acho que éum sinal bem positivo, ou melhor, bemnítido mas negativo, de que o Código ig-norou. Eu fiz muitas críticas sobre es-ses pontos que eu tive que abordar, masno cômputo geral, eu acho que o Códigoé positivo, eu acho que para o direitonosso, vai ser um impulso maior, então,é só para ressalvar, amenizar um pou-co, que a minha crítica é setorial.

Des. Áurea Pimentel PereiraEu gostaria de ouvir a opinião do

Professor Mattia a respeito do direito davizinhança sobre a seguinte questão: oanterior Código Civil, que ainda está emvigor até o final do ano, no seu artigo554, quando ele cuida do direito da vizi-nhança, fala em mau uso da proprieda-de. O novo Código fala do uso anormalda propriedade. Inicialmente, eu indago– e essa é a minha opinião – se deveentender-se que no novo Código já nãoconstituiria pressuposto para a caracte-rização de ofensa a direito de vizinhan-ça, que esteja havendo o uso nocivo dapropriedade, bastando agora que se pro-ve que do uso, de certa forma havidocomo anormal – e assim diz o capítulo –estejam resultando interferências parao proprietário ou possuidor do outro pré-dio. Ao preferir o legislador, no novel có-digo, falar simplesmente em interferên-cias prejudiciais, e não mais em uso no-civo da propriedade, não estar-se-ia am-pliando muito os horizontes, permitindoo surgimento futuro de querelas muitasvezes absurdas e caprichosas, sem em-bargo da preocupação que se lê no pará-grafo único do artigo 1.277, que teve o

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legislador de estabelecer certosparâmetros para essas interferências,que ele chamou de limites ordinários detolerância. Não haveria esse risco, deuma ampliação muito grande dos hori-zontes com essa expressão assim, am-pla, genérica, simples interferência?

Dr. Fábio Maria De MattiaAcredito que não há nenhuma pro-

blemática, porque a leitura do artigo 554do código revogado, revela a adequaçãoda Teoria do Uso Normal, que é a Teoriade Ihering. Então pode-se dizer: mas aessa altura, invocar a Teoria de Ihering?Mas, na verdade, é a jurisprudência quefoi se adaptando aos tempos e, na verda-de, costumamos dizer é o artigo 554 queestá inspirado na Teoria de Ihering, empaíses como Itália e França, surgirammuitas correntes doutrinárias a respeitode responsabilidade no direito de vizi-nhança. Pode-se dizer que a Teoria doUso Normal é adequada, porque surgi-ram na França e na Itália, por exemplo,várias doutrinas, mas não adquiriramgrande prestígio. Mas pode-se indicarpelo menos umas dez. Mas o que entrenós impressionou mais foi a teoria deIhering, porque de fato ela adquiriu mui-ta importância, foi muito divulgada. Ago-ra, se consultarmos alguns livros de di-reito de vizinhança, o próprio professorSan Tiago Dantas com a sua monografiaextraordinária, tese de concurso em1938, concluímos que o artigo 1.554 com-provou sua pertinência até hoje porquenão houve interferência teórica. Na ver-dade, os Tribunais, de acordo com a rea-lidade e as necessidades, foram adap-tando, modernizando a jurisprudência.

Provavelmente, é por causa dissoque quando se cuida do artigo 554, nin-guém teve interesse em invocar a Teoriada Pré-ocupação, ou enfim, várias outrasteorias que surgiram quanto à responsa-bilidade na vizinhança. Então, por exem-plo, os autores falam sempre no critériodo uso normal, tudo bem, houve outrasteorias, mas talvez a do uso normal sejasuficiente, porque não é uma questão sóteórica porque a jurisprudência indicoucomo se deve resolver os conflitos.

Então, os autores, até hoje, assimse referem: o nosso código ligou-se ao cri-tério do uso normal de Ihering. Mas, naverdade, tudo é uma construção da juris-prudência, começou com essa teoria deIhering, que tornou-se conhecida, masexistem muitíssimas outras, na Itália, naFrança. Eu até gosto muito de estudarproblemas por causa do conflito de vizi-nhança, mas são teorias que não tiveramgrande projeção. Então, é melhor que fa-lemos na teoria de Ihering adaptada, por-que a nossa jurisprudência que determi-na o que se deve entender por uso normalou não, através da jurisprudência.

Des. José Osório de Azevedo JuniorHá três questões aqui. Uma, é relati-

vamente ..... do acadêmico Elias de MattosMarins que diz que: “apresentando o Códi-go Civil algumas partes que ferem a Cons-tituição, ele pode ser vetado?” Não podemais ser vetado, ele já foi sancionado, en-tão não há nenhuma possibilidade. Pode-rão ser levantadas algumas questões deinconstitucionalidade, mas jamais ser ve-tado. E há duas questões que se casam esão muito interessantes, sobre o tema deque tratamos antes, do Doutor MarceloFerro, que aliás participou dos trabalhoslá em Brasília, naquele Simpósio tão im-portante, e do Doutor Magno Alves de As-sumpção, Eminente Juiz de Direito, quepedem para comentar a plausibilidade desustentar que as regras constantes do novoCódigo são regras gerais, enquanto a hipó-tese do registro e averbação do compro-misso, e cessão etc., seriam normas que –com o pagamento do preço etc. – deveriampermanecer sob a força do princípio da es-pecificidade, de aplicação da Lei de Regis-tros Públicos. Com a lei nova que permiteeste registro da quitação, passando a vigo-rar tanto o dispositivo do novo Código Civil,quanto as disposições reguladas pela lei9.785, integrando-se os sistemas.

Eu achei muito interessante estahipótese aventada, que bate com aquiloque aconteceu em Brasília, agora hápouco tempo que é, no fundo, essa pos-sibilidade de mesmo com o Código novo,registrar-se o instrumento de quitação

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nos contratos comuns, porque nosloteamentos já se tem a lei. Eu confessoque em Brasília fiz uma proposta e timi-damente apresentei, e disse, de legeferenda, quer dizer, vamos dar um jeitode estender para os casos comuns dosimóveis não loteados – que é a grandemassa – também se submeterem a essesistema. Qual não foi a minha surpresaquando lá vi que tudo estava na linhaaqui do Doutor Magno – quer dizer, va-mos dar um jeito de interpretar para di-zer: por que não aplicar-se a todos os sis-temas, se a ratio legis ali é a mesma paraas duas hipóteses? E, realmente, eu iriaficar vencido na tese que era mais avan-çada do que a minha; e não tive dúvidaentão, e digo então, ao doutor Magno, queo rumo que eu vejo é exatamente este,não tanto de admitir um código civil aquicomo regra geral, a outra como regra es-pecial; eu vejo como foi visto lá, como umalinha de interpretação, fazendo com quemais uma vez – o que foi muito comumno sistema brasileiro – o regime do imó-vel loteado influencie o regime do imóvelnão loteado; como aconteceu com a ces-são, por exemplo, não podia ceder: não,pode ceder, e não pode cobrar taxa ne-nhuma, etc. Isso vigora para o imóvel nãoloteado também. Então, eu vejo um alar-gamento da interpretação da regra doimóvel loteado já existente para o outro,mas acho que é meio lento, há forças ter-ríveis, interessadas em manter o status,porque tudo é uma forma – a inocuidadedessa escritura é conhecida por todos –de reserva de mercado que exige, aliás,não só dos tabeliães, mas isso aqui é paratodos. O que existe de advogados commuito serviço requerendo alvarás paraessa inocuidade, indiretamente para nós,juízes, também, que ficamos chamados ajulgar assuntos de terceira categoria,quando podíamos estar tratando de coi-sas mais importantes como esses alvarás.Então, eu vejo, Doutor Magno e DoutorMarcelo, esta possibilidade de registrosendo alargada paulatinamente.

Então, acho que são essas três aqui.Eu comecei por esta, dizendo que nãopode ser vetado mais - está aí: mais três

dias está em vigor. O que se discute aí,é se eventualmente seria aumentado oprazo de vacância, o que não está pare-cendo que vai ocorrer e eu, pessoalmen-te, acho que também não devia ser au-mentado, porque isso só iria aumentara insegurança. Nessas alturas, já estãotodos aí estudando, agora é ir para afrente, para ir definindo, tirando as ares-tas, mas retirar para resolver no Con-gresso, jamais – vamos ficar mais vinteanos lá.

Dr. Fábio Maria De MattiaA primeira pergunta é: o proprietá-

rio de uma fazenda que possui um poçoé obrigado a dividir a água do poço com afazenda do vizinho pelo fato de ele estarsofrendo com a seca? Bom, aí é um pro-blema muito complicado. Tecnicamente,não poderia, porque o vizinho estariaobrigado a estar permitindo fazer cana-lizações e digamos, levando a água quepoderá faltar para a sua propriedade parao outro. Mas, poderia haver um acordo,através de negociação de uma servidão,evitando prejuízos para quem está dan-do a água, evitar invasões de funcioná-rios, nesse sentido.

Des. José Osório de Azevedo JuniorPosso dar um palpite? Eu acho que,

realmente, precisa de mais, ver o casoconcreto para dizer melhor; só com es-ses dados pôr a tese eu acho que é mui-to perigoso. Mas, eu acho que se for paraas primeiras necessidades, já que o Có-digo se refere expressamente a essasprimeiras necessidades no artigo 1.293,talvez já esquentasse mais. Só que esseartigo também fala “sendo ressarcido”.Agora, um coitado que está nessa situa-ção, não vai ter dinheiro para ressarcirninguém. Mas eu acho, em tese, e aí,diante das primeiras necessidades, euacho que sim, e o Poder Público que válá ajudar a fazer o ressarcimento, algu-ma coisa assim.

Dr. Fábio Maria De MattiaQuanto a essa pergunta a respeito

de servidão aparente, é difícil entenderpor que é que teria o legislador aumen-

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tado em cinco anos. Então, consideran-do que o prazo máximo da usucapião ex-traordinária é de quinze anos, teria ha-vido cochilo do legislador ao fixar no ar-tigo 1.379, parágrafo único, em vinteanos o período máximo para aquisiçãopor usucapião da servidão aparente?Realmente, eu não sei por que razãodar-se-ia um tratamento diferente.

A outra pergunta: o novo Código Ci-vil também faz uma menção ao uso anor-mal da propriedade quando dispõe sobreo condomínio edilício, em especial, arti-go 1.336, IV, e seu parágrafo, com con-seqüências na fixação dos valores dasmultas nas cotas condominiais. Aí, sãoduas situações: uma, se levar em contao critério do uso normal no uso da pro-priedade que, na verdade, quem crioufoi Ihering; na verdade, em matéria dedireito de vizinhança, existem muitascorrentes doutrinárias, sobretudo osfranceses são especialistas em inven-tar muitas correntes e os italianos tam-bém. Mas, em nosso caso, dizer que nósadotamos, que o Código Civil adotou aTeoria de Ihering no artigo 554, e maisou menos, está um pouco mudada; a re-dação no projeto lembra um pouco influ-ência do Código Italiano. Os italianos aténão falam na teoria do Ihering, elesusam outra terminologia. Então, isto émuito relativo.

O novo Código também faz mençãoao uso normal da propriedade quandodispõe sobre o condomínio edilício. Nãotem dúvida de que a Teoria do Uso Nor-mal de Ihering, que está no artigo 554mas não é nenhuma antigüidade por-que na verdade é a jurisprudência bra-sileira que fixa os parâmetros. Os auto-res brasileiros se habituaram, se refe-rem à Teoria de Ihering, mas há muitasoutras Teorias, mas nenhuma delas ad-quiriu grande significação. Então, entrenós, continuam os autores falando daTeoria de Ihering, porque mesmo que aTeoria de Ihering, digamos, no seu con-teúdo àquela época, fosse muito diferen-te, na verdade são os nossos Tribunaisque dão as diretrizes do que é normal edo que não é. Agora, tudo bem. Podería-

mos evitar de falar que adotamos a Teo-ria de Ihering, porque na verdade, o con-teúdo dela quem tem dado é a nossa ju-risprudência, e porque na verdade, sefossemos procurar, só na Itália existemvárias tendências – eu estudei esse as-sunto e sei – mas nenhuma delas teveuma significação maior, e a de Ihering éno sentido como fala o que é normal e oque é anormal, e a jurisprudência é quevai dizer hoje o que é normal e o que éanormal na conduta entre vizinhos. En-tão o que há é a criação da jurisprudên-cia continuamente; basta que haja o res-peito, mas a Teoria do Uso Normal, naverdade, é até um absurdo nós insistir-mos, é a Teoria de Von Ihering. Mas,como ele é quem sinalizou para essa ex-pressão “uso normal”, continua-se utili-zando, mas são os nossos Tribunais quesinalizam o caminho certo.

Então, qual era uma outra pergun-ta? “O artigo 1.337, parágrafo único, fazespecial menção ao comportamento anti-social do condômino ou possuidor e aofinal do parágrafo dispõe: “...até ulteriordeliberação da assembléia”. O que podeacontecer é que ulterior deliberação daassembléia pode ser contrária a estecondômino, mas vai-se discutir na justi-ça se realmente a assembléia poderiatomar essa decisão ou se ela foi abusiva.Depois: “após leitura desses artigos, ob-servando o aumento significativo dasmultas, é possível a hipótese de, em de-liberação da assembléia com quorum es-pecial excluir um condômino do condo-mínio edilício, em razão de seu compor-tamento anti-social?” É complicado por-que há o direito de propriedade; haverásanções e talvez até na convenção exis-tam multas, mas excluir é complicado, anão ser que algo de maior gravidade, umapessoa que infringe realmente regras,que pode prejudicar até o prestígio doscondôminos morando num prédio em queuma pessoa se dedique a tal atividade.

Des. Sidney Hartung BuarqueEntão, me parece que as questões

foram todas respondidas e, mais umavez, realçar a atuação magnífica dos pro-

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fessores aqui presentes, e o tema real-mente demonstrou o interesse geral,dado, inclusive, ao número de pergun-tas; me parece que poucas vezes se vi-ram tantas indagações, tanto interesseem um tema sobre o qual realmentesempre vai haver dúvidas. Inclusive, paraencerrar, lembrando - já que o Profes-sor muito se referiu ao Von Ihering -

que na matéria da posse, justamente olegislador vai dar uma guinada de 360º,ao entender que a posse tem apenas afunção social afastando-se, portanto,aquela discussão na qual, agora, me pa-rece que a doutrina não vai mais se cen-tralizar: da Teoria Objetiva e Subjetivada Posse..

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196 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

O tema “Direito Sucessório no NovoCódigo Civil” tem despertado, eu diria,muitas paixões, até porque todos nósmorreremos e, portanto, alguma coisaacabamos por deixar para as nossas ge-rações seguintes.

Ao contrário do que muitos afirmam- conheço alguns palestrantes que dizemque a melhor solução é rasgar o novo Có-digo - acredito que o Código, como diz omeu amigo Capanema, é uma obra im-perfeita, por ser humana, cabendo àque-les que gostam do Direito, que decidemas questões, que militam nos fóruns dia-riamente, aperfeiçoá-lo. Já há um proje-to (n° 6.960 de 2002) em tramitação noCongresso Nacional, que visa a reformaro Código atual, modificando-o em muitosartigos, principalmente nas questõesmais relevantes do Direito Sucessório.

O tema sobre o qual me coube con-versar com os senhores e com as se-nhoras é a sucessão legítima e, especi-almente, a ordem de vocação hereditá-ria em relação aos descendentes, aosascendentes, ao cônjuge sobrevivente eao companheiro na união estável - que,até pouco tempo, era chamado de convi-vente pela Lei 9.278/96.

Essa ordem de vocação hereditáriaé uma ordem preferencial em que o le-gislador decide, na falta de testamento,quem é que vai recolher a herança, deacordo com a vontade presumida do fa-lecido. Hoje está disposta no artigo1.829, incisos I a IV, que diz (substituin-do o artigo 1.603, I a V do Código de 1916,que entrou em vigor em 1917): “A suces-são legítima defere-se na ordem seguinte: I– aos descendentes...” – ou seja, o pri-meiro na ordem de vocação hereditáriaé o descendente, é o preferido pelo le-

gislador; diz-se sempre, ou se dizia noantigo sistema, que a afeição descia,depois subia e depois ia para o lado, emrelação ao cônjuge sobrevivente – “... aosdescendentes, em concorrência com o côn-juge sobrevivente...” – o cônjuge sobrevi-vente, seguindo a esteira do Código Ci-vil Português, do Código Civil Mexicanoe outros, passa a ser herdeiro necessá-rio (há agora regra expressa no artigo1.845: “São herdeiros necessários os des-cendentes, os ascendentes e o cônjuge”),porém, nessa hipótese do inciso I do ar-tigo 1.829, ele concorrerá com os des-cendentes, que estão em primeiro lugarna ordem de vocação hereditária - “...salvo se casado este com o falecido no regi-me da comunhão universal...” - porque olegislador, aqui, prevê o seguinte: se oregime é o da comunhão universal, nor-malmente, salvo as exceções legais, osbens presentes, passados e futuros secomunicam. Então, o cônjuge sobreviven-te em concorrência com o descendentejá estaria economicamente amparado.Isso não é uma realidade, porque podeacontecer que a pessoa seja casada peloregime da comunhão universal e nãotenha havido comunicação (os bens to-dos são particulares), por exemplo, nahipótese em que alguém deixa uma he-rança ao seu filho com cláusula de in-comunicabilidade, ou inalienabilidadeque abrange a incomunicabilidade. Mas,de qualquer modo, normalmente o queocorre é que o cônjuge já está amparadocom a meação, e todos nós sabemos quemeação não é herança, e sim uma co-municação decorrente do regime de bensde casamento.

Na segunda hipótese, que é umaexceção - se for casado pelo regime da

Sucessão dos Descendentes, Sucessão dosCônjuges e Sucessão na União Estável

LUIZ PAULO VIEIRA DE CARVALHODefensor Público de classe especial. Professor da EMERJ e do CEPAD.

Palestra proferida no Seminário realizado em 17/1/2003

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 197

separação obrigatória de bens, que estáno artigo 1.641, - aqui já há um enganodo legislador. Uma das causas, a maisfamosa, do regime de separação legal ouobrigatória imposta pelo legislador, noCódigo de 1916, é a do homem maior de60 anos e da mulher maior de 50 anos.O legislador demonstra entender que,na realidade, quando alguém se casacom uma pessoa maior de 60 anos estáse casando com um homem totalmentedesprovido de encantos e, portanto, vaihaver interesse econômico no casamen-to, e em havendo interesse econômico,impõe-se o regime da separação. Inclu-sive, há um acórdão do Tribunal de SãoPaulo, que considera a regra do Códigode 1916, artigo 258, parágrafo único,inciso I, inconstitucional por ofender ascláusulas constitucionais da tutela dadignidade humana e da igualdade.

Mas o novel legislador o que faz? Emvez de retirar a regra, aumenta a idadepara a mulher, sendo obrigatório o regi-me da separação de bens do casamentopara as pessoas que o contraírem semobservância das causas suspensivas - sãoos antigos impedimentos impedientes - eda pessoa, homem ou mulher, maior desessenta anos de idade. Numa época emque existem academias de ginástica euma série de outras alternativas rejuve-necedoras, acho absurda a manutençãodeste dispositivo. Finalmente, há o inci-so III, que é uma tradição no nosso direi-to, uma regra protetiva de todos aquelesque dependerem, para casar, de supri-mento judicial.

Ocorre que o legislador, excluiu ocônjuge sobrevivente casado pelo regi-me da separação legal ou obrigatória daherança, quando concorrer com descen-dentes. Pelos debates do Congresso – euparticipei, inclusive, do grupo de juris-tas que foi ao STJ propor enunciados so-bre o Novo Código Civil – neste caso,como o legislador prefere o descenden-te, vamos excluir o cônjuge sobreviven-te, porque ele já estaria amparado pelaSúmula 377 do STF que diz que, no regi-me da separação obrigatória, os aqües-tos, os bens adquiridos a título oneroso,

sem que haja sub-rogação ou substitui-ção, se comunicam ao outro cônjuge.Acontece que essa súmula se baseou noartigo 259 do Código de 1916, que se re-feria à separação convencional, ou seja,no silêncio do contrato, os aqüestos secomunicariam ao outro cônjuge. O Mi-nistro Moreira Alves, defendeu uma in-terpretação que hoje é minoritária emrelação a essa súmula e dizia que bas-tava que a pessoa tivesse se casado peloregime da separação obrigatória; se umdeles adquire um aqüesto, se comunicaao outro, por analogia ao artigo 259.

Mas o STJ não entendeu dessa for-ma e, sim que, na realidade, só haveriaessa comunicação se houvesse esforçocomum na aquisição desse aqüesto, sen-do esta a interpretação mais recente.Acontece que muitos já estão entenden-do que a súmula 377 do STF perdeu aeficácia, porque o artigo 259 do CódigoCivil de 1916 não foi mantido pelo Códi-go atual. E, como há uma previsão nasdisposições transitórias dizendo que onovo Código Civil revoga inteiramente oCódigo anterior, já há quem afirme - nãoé um posicionamento majoritário ainda- que essa súmula não tem mais aplica-ção. Isso pode provocar uma profunda in-justiça, por exemplo: um cônjuge sobre-vivente, “do lar”, que for casado pelo re-gime da separação legal ou obrigatóriaficará sem amparo algum; nem vai con-correr à herança, nem terá direito àmeação. No entanto, o legislador enten-deu por bem que, no regime da separa-ção obrigatória, não haverá direito deherança se concorrer com descenden-tes do falecido, o cônjuge sobreviventecasado por esse regime.

Uma outra exceção a essa regra daconcorrência é se, no regime da comu-nhão parcial, o falecido não houver dei-xado bens particulares. O meu amigo,Professor Cahali, já falou sobre isso e,aqui, surge uma dúvida que é a seguin-te: vamos supor que alguém tenha ca-sado e adquirido, na constância do ca-samento, dois imóveis. Não existem bensparticulares e o falecido deixou um des-cendente. Nesse caso, o cônjuge sobre-

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vivente, casado pela comunhão parcial,como já está garantida a meação nes-ses aqüestos, não concorre na herançaem relação aos descendentes, é o quediz a parte final do inciso I do artigo1.829.

Por conseguinte, se existirem bensparticulares, a herança do cônjuge su-pérstite vai ser composta da meação dofalecido e dos bens particulares? Ou sódos bens particulares? Segundo o próprioProfessor Cahali, existe uma pessoa queestá escrevendo junto com ele a respeitoda matéria, que discorda de sua opinião.Ele, como eu, entende que se o legisla-dor não distingue, não cabe ao intérpre-te distinguir. A herança é o conjunto debens, direitos e obrigações do falecido. Éuma universalidade de direito. Então,portanto, se o cônjuge sobrevivente, ca-sado pelo regime da comunhão parcial,concorrer com descendentes porque exis-tem bens particulares, a herança a queele vai concorrer, já sendo meeiro da-quela parte que é dele, será composta dameação do falecido e mais dos bens par-ticulares. Eu não vejo como restringiressa herança apenas em relação aos bensparticulares.

E uma outra observação muito im-portante: o advogado brasileiro é supercriativo. Vamos supor que uma pessoaesteja advogando para uma viúva, casa-da pelo regime da comunhão parcial.Existe a ser inventariado, em princípio,apenas um imóvel adquirido na constân-cia do casamento a título oneroso – umaqüesto. E, o que será arrolado no in-ventário para que ela possa concorrercom descendentes do falecido, principal-mente se não forem filhos comuns? Sefor assistida pela Defensoria, os defen-sores vão arrolar aquele conjunto de mó-veis comprados nas Casas Bahia, juntocom aquela meia-água; ou então, até umliquidificador, ou o retrato do bisavô queestá na parede – são bens particulares.A coisa, como dizem os alemães, é o bemjurídico material com valor econômico.Então, sempre existirão, a meu ver, bensparticulares. Se for uma família de clas-se média, existirá sempre o quê? Um

automóvel. Esse automóvel pode não serum aqüesto. Pode ser recebido por he-rança, ou então o valor da herança podeter sido empregado na aquisição do au-tomóvel.

Tenho a impressão de que o legis-lador foi infeliz aqui, ou seja, essa in-clusão dos bens particulares vai darmuito problema para os magistrados. NaDefensoria Pública, podem ter certeza,de que quando se vai fazer um inventá-rio, ao ser perguntada sobre o que tempara inventariar, a viúva afirma que temsomente uma meia-água que o maridocomprou na baixada fluminense etc. Ago-ra, surgirão os bens móveis também.Normalmente, bens móveis não sãoinventariados para que não haja paga-mento de imposto – essa é a realidade.Mas nessa hipótese, vão surgir o tapete,o ar condicionado de 18.000 BTU’S etc,especialmente se os filhos não foremcomuns. Se os filhos forem comuns, euacredito que não vá acontecer esse pro-blema, mas se os filhos descenderemexclusivamente do falecido, os bens par-ticulares irão surgir como um milagre,sabendo-se que todas as questões serãodecididas pelo juiz do inventário. E se aquestão for de alta indagação, remeter-se-á às vias ordinárias. Mas, atenção:as notas fiscais a partir de agora serãode suma importância. Todos juntem asnotas fiscais dos tapetes e doliquidificador. E, ainda: se eu disser paraos assistidos ser um bem desprezívelaquele conjunto que pagaram em dezprestações nas Casas Bahia, eles nãoaceitarão isso nunca!

Dessa maneira, quais são os regi-mes em que podemos admitir, sem dis-cussão, a concorrência do cônjuge so-brevivente com o descendente? O regi-me da separação convencional - e euentendo que, com a supressão do artigo259, será sempre separação convencio-nal absoluta - e o regime da participa-ção final dos aqüestos. Na comunhãoparcial, nós temos os problemas antesmencionados para resolver.

E como será feita a partilha? O ar-tigo 1.832 diz o seguinte: “Em concorrên-

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cia com os descendentes (art. 1.829, I) ca-berá ao cônjuge quinhão igual ao dos quesucederem por cabeça...” - isso é uma re-produção imperfeita do artigo 2.139 doCódigo Civil Português – “...não podendoa sua cota ser inferior à quarta parte da he-rança, se for ascendente dos herdeiros comque concorrer”. Aqui, se garante ao côn-juge sobrevivente, uma cota mínima,como explicou o Professor Cahali. Se ofalecido deixa um descendente comum,a partilha se faz por cabeça, dividindo-se a herança pelo número de herdeiros:metade para o descendente comum, me-tade para o cônjuge sobrevivente; se doisdescendentes comuns, 1/3 para um des-cendente, 1/3 para o outro descenden-te e 1/3 para o cônjuge sobrevivente; setrês descendentes comuns, 1/4 paracada herdeiro. A partir de quatro des-cendentes comuns, garante-se uma cotamínima para o cônjuge supérstite. Se osdescendentes não forem comuns não háque se falar, a contrario sensu, em cotamínima.

O legislador, porém, não discipli-nou a hipótese de existirem filhos co-muns e filhos não comuns (filiação hí-brida). Neste caso haverá a garantia dacota mínima? Eu entendo particular-mente o seguinte: se o legislador prefe-re o descendente, primeiro lugar na or-dem de vocação hereditária, ao cônjugesobrevivente que é mero concorrente, in-serido em terceiro lugar nesta mesmaordem, não é possível se prejudicar umfilho não comum com a aplicação do prin-cípio da cota mínima. Acho que essa cotamínima só terá garantia quando existi-rem apenas filhos comuns. Havendo,repito, filiação híbrida, não haverá a ga-rantia da cota mínima e a partilha sefará por cabeça.

Mas será que aqui não estaria ha-vendo discriminação proibida (e aí, euentendo que é inconstitucional) como jálevantou o Desembargador Sidney? Peloartigo 227, parágrafo 6º da Constituição,os filhos não podem ser discriminadosentre si, inclusive, em relação a direi-tos sucessórios. No caso de garantir-seuma cota mínima para o cônjuge com

prejuízo dos descendentes comuns, oque não ocorre com os descendentes nãocomuns, vão-se gerar juridicamente di-ferenças entre eles e, ao meu ver, po-deremos argüir a inconstitucionalidade,pelo menos no caso concreto, desse ar-tigo 1.832. É uma questão que deve serdecidida futuramente, mas devemospensar sobre ela.

Regra importante que foi mencio-nada pelo Professor Cahali, o artigo1.830 diz o seguinte: “ Somente é reco-nhecido direito sucessório ao cônjuge sobre-vivente se, ao tempo da morte do outro, nãoestavam separados judicialmente, nem se-parados de fato há mais de 2 (dois anos),salvo prova, neste caso, de que essa convi-vência se tornara impossível sem culpa dosobrevivente”. Tal dispositivo, na realida-de, é uma reintrodução no nosso Direi-to de dispositivo das Ordenações Filipi-nas. E o que o Superior Tribunal de Jus-tiça vem entendendo atualmente? O quejustifica meação no casamento e o quejustifica direito sucessório entre os côn-juges, é a affectio maritalis. Os romanosjá diziam, na sua sapiência: “o que inte-ressa no casamento é a afeição entre osnubentes, é a intenção de permanênciana sociedade conjugal”. Ora, se os côn-juges estão separados de fato, há umtempo suficiente para que qualquer umdeles possa propor o chamado divórciodireto, numa situação jurídica que a ju-risprudência vem denominando de divór-cio de fato, não há justificativa para umapessoa separada de fato, se não há maisafeição marital, ser sucessora, herdei-ra, continuadora da pessoa do falecido.É exatamente o que dispõe o artigo 1.830.

Ao mesmo tempo, que sofreu críti-ca pelo Professor Cahali, o legisladoracrescenta: “...salvo prova, neste caso, deque essa convivência se tornara impossívelsem culpa do sobrevivente”. Eu entendoque essa culpa, aqui, é a que nós temosque extrair, por analogia, do artigo 5º daLei do Divórcio, e que continua sendomencionada no Código Civil novo. Eu melembro de uma palestra feita aqui naEMERJ. O tema era a Separação Judici-al com Culpa e um juiz de Minas Gerais

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ministrou também uma palestra sobreSeparação Judicial sem Culpa. Acabei aminha palestra dando todos os aspectosda separação no novo Código, inclusivequanto às demandas judiciais e suascausas: você é culpado, houve adulté-rio, houve conduta desonrosa, violaçãograve de um dever do casamento, etc....E eu lembro que esse juiz – que é umapessoa ótima – começou sua palestra depé, dizendo assim: “eu não aceito sepa-ração com culpa, porque todo ser huma-no é falível e quando alguém trai, narealidade, a culpa é do outro que indu-ziu a traição, porque o ser humano é re-cheado de imperfeições”.

Ocorrendo esta hipótese, o juiz doinventário terá que remetê-la às vias or-dinárias, pois trata-se de questão de altaindagação, haja vista a necessidade deprova substancial. Vamos supor que umsujeito tenha expulsado a mulher decasa. Ele a seviciava, batia, maltratava,injuriava seu cônjuge, e ela foi obrigadaa se retirar do lar conjugal. Dois anosdepois, já convivendo com uma outra,ele vem a falecer, e essa primeira mu-lher está numa situação muito difícil pa-trimonialmente; ela foi uma perfeita es-posa, porém foi expulsa de casa e troca-da por outra. Neste caso, será que nãose poderá conceder direitos hereditári-os a esse cônjuge? Os Defensores emVara de Família que estão aqui presen-tes se deparam com isso a toda hora. Ohomem a seviciou, a expulsou; e ela nãovai poder reivindicar a sua qualidade desucessora, quando não teve nenhumaresponsabilidade sobre o ocorrido?

Tal questão deverá ser enfrentada.Vamos supor que em ação própria, numaação declaratória, utilizando-se do arti-go 4º do CPC, a pessoa prove que foi ex-pulsa de casa por tornar-se insuportá-vel a vida em comum. E aí, surge o pro-blema: a quem o juiz vai deferir o direitosucessório? É à atual pessoa que vivianuma união estável, numa união de fatocom o falecido, ou é ao cônjuge – queainda é cônjuge – que foi afastado do larconjugal? Se o legislador concede umaoportunidade para ela fazer essa prova,

Vossas Excelências terão que decidir.Eu, particularmente, embora defensorintransigente da união estável, pensoque nesse caso, mormente, se ela foiexpulsa de casa para o homem ficar coma outra mulher, deferiria o direitosucessório ao cônjuge sobrevivente, enão à companheira. Mas vai depender,a meu ver, e muito, do caso concretoapresentado em juízo.

Não se aplica o mesmo raciocíniose uma pessoa simplesmente se retiroude casa por acordo, por conveniência, ouse saiu de casa porque não quis maiscontinuar a viver junto, passando o ou-tro cônjuge a constituir uma união es-tável. Aliás o novo Código hoje é expres-so: é possível união estável numa meraseparação de fato. Está no artigo 1.723.Neste caso, é completamente diferente.Um cônjuge saiu de casa, o outro pas-sou a viver uma nova união, numa famí-lia protegida constitucionalmente.

O direito sucessório, em regra,como veremos, tem que ser deferido paracompanheira, e não para o cônjuge so-brevivente. Porém, no caso de culpa - eela existe, habemus legis, está regula-mentada a separação com culpa no Có-digo novo também – (infelizmente, parao meu amigo juiz e Professor de MinasGerais), eu o deferiria para o cônjugesobrevivente. Mas, de qualquer forma, omais importante é nós voltarmos às Or-denações, ao direito romano primitivo.Não justifica, ausente a affectio maritalis,que um cônjuge herde do outro nessasituação jurídica. Prosseguindo, não ha-vendo descendentes, o inciso II do arti-go 1.829 diz: “A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: II - aos ascendentes,em concorrência com o cônjuge...”. E, aqui,com um detalhe: haverá essa concorrên-cia sucessória independentemente do re-gime de bens. Não existem aquelas ex-ceções previstas no inciso I do artigo1.829. Qualquer que seja o regime debens, não existindo descendentes, ocônjuge sobrevivente concorre com os as-cendentes.

E como será feita a partilha?“Art.1.837. Concorrendo com ascendente

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em primeiro grau...” - ou seja, pai e mãedo cônjuge falecido – “...ao cônjuge tocaráum terço da herança...” - 1/3 para o pai dofalecido, 1/3 para a mãe do falecido, 1/3 para o cônjuge sobrevivente – “...ca-ber-lhe-á a metade desta se houver um sóascendente...” - pai ou mãe do cônjugefalecido, do hereditando – “...ou se maiorfor aquele grau”.

Pode então ocorrer a hipótese demorrer o filho e concorrer à herança, deum lado, o cônjuge sobrevivente, qual-quer que seja o regime de bens e, deoutro lado, a sogra: metade para cadaum - será a vingança do cônjuge: “Ora,você impôs o nosso casamento, eu tiveque ir a um cartório, fazer um pactoantenupcial pelo regime da separaçãoconvencional, mas agora eu me vingo:metade do patrimônio é meu, e metadedo patrimônio é seu. E, no caso de umoutro regime qualquer, eu ainda estoucom mais do que você, e por quê? Por-que eu tenho meação, e meação não éherança. Então, eu tenho a minhameação e vou disputar meio a meio comvocê, minha querida sogra, a herança” –essa será a vingança das noras, futura-mente, no novo Código Civil.

Reparem no antigo Código Civil aordem de vocação hereditária. Temosque continuar estudando o antigo Códi-go porque o que interessa na sucessão,pelo princípio do direito alemão incorpo-rado ao Código de Napoleão, é a saisine,ou seja, a transmissão imediata da pro-priedade e da posse aos herdeiros le-gais e testamentários no momento dofalecimento, sendo regida pela lei entãoem vigor. Pode acontecer que alguémtenha falecido semana retrasada, antesda entrada em vigor do novo Código, e oinventário vai ser aberto daqui a cincoanos. A ordem de vocação hereditárianão será essa ordem do novo Código – esim a ordem prevista no Código de 1916(artigo 1.603, I a IV).

Finalmente, no inciso III do artigo1.829, em não havendo descendentes ouascendentes, o cônjuge sobrevivente re-cebe toda a herança legal ou legítima. Élógico que pode não receber tudo. Mes-

mo como herdeiro necessário, uma re-gra que continua fundamental no novoCódigo é aquela regra do artigo 1.789 -“Havendo herdeiros necessários...” re-gra Justiniana, na Novela 115 – “...o tes-tador só poderá dispor de metade da he-rança”. Só pode dispor da parte disponí-vel da herança. O cônjuge sobreviventeentão, receberá, ou toda a herança nafalta de testamento válido, ou apenas ametade.

Por derradeiro, em relação aoscolaterais, o sistema do novo Código con-tinua o mesmo, com uma observação quefoi até objeto do último concurso do Mi-nistério Público: antigamente, pelo Có-digo de 1916, quando a doutrina e a ju-risprudência analisavam o artigo 1.617,caput, que dispunha: “em falta de ir-mãos, herdarão os filhos destes”, ao con-correrem tios e sobrinhos, colaterais deterceiro grau, afirmavam que a heran-ça seria somente deferida para os sobri-nhos, que são geralmente forças maisnovas e conseqüentemente estariammais necessitados. Agora, tal entendi-mento ficou claro. O artigo 1.843 do novoCódigo esclarece: “Na falta de irmãos,herdarão os filhos destes e, não os ha-vendo, os tios”.

Tenho uma observação importantea fazer a respeito da palestra do Profes-sor Cahali. Ouso dele divergir com rela-ção ao seguinte: ao dispor, em termosde Direito de Família, a respeito da pre-sunção “o pai é o que as núpcias demons-tram”, (que continua a existir, emboramuito mitigada), o legislador diz, no art.1597, III, que se presumem concebidosna constância do casamento,os filhoshavidos por fecundação artificialhomóloga, mesmo que falecido o mari-do, ou gerados a qualquer tempo (incisoIV), quando se tratar de embriõesexcedentários decorrentes de concepçãoartificial homóloga.

O que é que existia no Código de1916? Vamos supor que o marido comum câncer terminal, por testamento par-ticular ou instrumento público, manifes-tasse a vontade de uma reprodução as-sistida com o seu próprio sêmen. Nesse

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caso, há um entendimento de uma pro-fessora aqui no Rio de Janeiro, da UERJ,de que por analogia ao antigo artigo 1.718– da prole eventual – mesmo que a con-cepção se dê depois da morte, ferindo,em princípio a saisine, que é a transmis-são imediata da propriedade e da posseaos sucessores no momento do faleci-mento, que nesse caso dever-se-ia res-peitar a vontade do falecido e esse filhotambém concebido post mortem recebe-ria direito sucessório. Esse era o enten-dimento incipiente sobre a questão.

Entretanto, vários autores diziamque isso não seria possível, ou seja, seno Direito Brasileiro a transmissãosucessória se faz no momento da morte,se um filho foi concebido post mortem,embora havendo a vontade do autor daherança – do testador – esse filho nãoreceberia a herança e isso é até regrano Código Civil Francês.

Agora, o novo Código, inovando umpouco na matéria, quando trata da voca-ção hereditária, diz no artigo 1.798: “Legi-timam-se a suceder as pessoas nascidas oujá concebidas no momento da abertura da su-cessão”. Que tipo de sucessão? A legítimae a testamentária. E no artigo 1.799 – aDra. Cláudia Nogueira vai falar sobre isso– admite a possibilidade de sucessão tes-tamentária para o concepturo, como tam-bém admite o fideicomisso beneficiandocomo fideicomissário o concepturo (art.1952). Artigo 1.799: “Na sucessão testamen-tária, podem ser chamados a suceder: I – osfilhos ainda não concebidos de pessoasindicadas pelo testador, desde que vivas es-tas ao abrir-se a sucessão”. Assim, literal-mente, pelo Código Civil novo, não vai serpossível ao concebido post mortem, na su-cessão legal, tornar-se sucessor. Se alegitimação para receber a herança, legalou legítima, está no artigo 1.798, uma re-gra que não existia no Código de 1916, sópoderá recolher a herança ou uma pes-soa já nascida, desde que reconhecida,voluntariamente ou judicialmente, ou umajá concebida no momento da morte – onascituro. Como afirma o Direito Roma-no: para efeitos sucessórios, o nascituroconsidera-se nascido.

Mas, de qualquer maneira, enten-do que, mesmo com a regra do artigo1.798 do Código atual, o concepturo terádireito sucessório, por um motivo muitosimples: pela aplicação a ConstituiçãoFederal. Todos sabem que há regra deigualdade de direitos entre os filhos dequalquer natureza, inclusive sucessórios– artigo 227, parágrafo 6º da Constitui-ção. Ora, se o legislador diz com todasas letras, nem precisaria dizer, que háuma presunção de que o filho é do mari-do da mulher casada, desde que haja,pelo menos, essa reprodução assistidahomóloga, ora, ele é filho, jurídica e bio-logicamente falando. Portanto, se ele éfilho, jurídica e biologicamente falando,a regra Constitucional tem prevalênciaimediata no Direito Civil.

Então, a meu ver, Vossas Excelên-cias – Magistrados - não poderão excluirdo direito sucessório esse filho concebi-do após a morte, desde que, a meu ver,haja algum tipo de manifestação do fa-lecido nesse sentido. Eu entendo, e amaioria dos doutrinadores entendem,inclusive o Prof. Tepedino, que examinaprofundamente essa questão, que as re-gras constitucionais são de aplicaçãoimediata ao direito infraconstitucionale, portanto, não pode haver discrimina-ção entre filhos de qualquer natureza.

Repito: se o legislador o considerafilho, a filiação produz vários efeitos ju-rídicos, inclusive efeitos sucessórios, poisele não pode ser discriminado. A solu-ção é a do Professor Arnoldo Wald para oconcepturo: o juiz terá que reservar,nessa hipótese, uma cota hereditária e,posteriormente, realizar uma sobrepar-tilha. Essa é a minha opinião. Eu seique existe corrente dizendo que não vaiser possível, pelo sistema da saisine, atépelo direito adquirido de outros eventu-ais filhos que o concepturo possa rece-ber herança legítima. Entendo que sim,por força da matriz constitucional. Emtermos de ordem de vocação hereditá-ria dos descendentes, ascendentes, côn-juge ou sobrevivente, acho que essa é aprincipal modificação.

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Em relação ao Poder Público, achoque agora o assunto ficou claro. O Supe-rior Tribunal de Justiça vem entenden-do que o Poder Público não é herdeiro,mas meramente sucessor e que para elenão há saisine, não há transmissão ime-diata da propriedade da posse, sendopreciso um procedimento de herançajacente e depois uma sentença quetransforme essa herança em vacante,havendo propriedade resolúvel e propri-edade definitiva se a sentença for pro-ferida cinco anos depois da abertura dasucessão, vide o artigo 1.822.

No novo Código Civil não constamais na ordem de vocação hereditária opoder público, ele não está mais relaci-onado no artigo 1.829. Sendo assim, ameu ver, está consagrada a tese do STJ– ele não é herdeiro, mas sim sucessor,e o único sucessor obrigatório. Não va-mos confundir herdeiro necessário comsucessor obrigatório. O único sucessorobrigatório é o poder público porque nãopode renunciar a herança, uma vez queos bens são devolvidos à comunidadeonde o defunto tinha o seu centro deocupações. Assim, ele é um sucessorobrigatório. Defendo tal tese até porqueem termos de Defensoria Pública elamuito me interessa para efeitos deusucapião. A título de exemplo, alguémestá possuindo com posse ad usucapioneme falta meio ou um ano para a consuma-ção da aquisição da propriedade pelaprescrição aquisitiva e de repente mor-re a pessoa em cujo nome está registra-do o imóvel, sendo arrecadado seus bensno procedimento de herança jacente.Antes da sentença que transforma aherança jacente em vacante, consuma-se o prazo para o usucapião. O meu en-tendimento, logicamente, como sou De-fensor Público, é de concordância com oSTJ, ou seja, em que na realidade a pro-priedade do Poder Público só se inicianão com a morte, mas sim com o mo-mento da sentença que transforma aherança jacente em vacante. A partirdeste momento o bem não pode mais serusucapido. A Súmula 340 dispõe que osbens públicos não podem ser objetos de

usucapião. Isso está no novo Código Ci-vil no art. 102. Antes disso, como elenão é um herdeiro e sim um mero su-cessor, consuma-se o usucapião em fa-vor, provavelmente, dos nossos assisti-dos, na qualidade de usucapientes.

Vamos examinar agora o artigo1.790, que é um artigo que traz inúme-ras dificuldades: “A companheira ou com-panheiro participará da sucessão do outroquanto aos bens adquiridos onerosamentena vigência da união estável nas condiçõesseguintes: ....” Em primeiro lugar, essaregra é, a meu ver, duplamente incons-titucional, como veremos adiante. Não oé, porém, para aqueles, como o relatorRicardo Fiuza - que “graças a Deus” estámudando de opinião - ao afirmar que ocasamento é uma instituição fim e aunião estável é uma instituição meio,ou seja, uma instituição de segundaclasse, em sentido jurídico, dizendo, comtodas as letras, no seu relatório que estádiscriminando sim e que pode discrimi-nar porque o objetivo do legislador é pro-teger o casamento. Deste modo, afirma-se: “A companheira ou companheiro partici-pará da sucessão do outro quanto aos bensadquiridos onerosamente na vigência daunião estável nas condições seguintes: .....”restringindo-se, a meu ver, absurdamen-te o direito sucessório da companheiraou companheiro apenas à eventual exis-tência de aqüestos no patrimônio do fa-lecido. Se não existirem aqüestos, elesnada receberão, a não ser que, em ter-mos de meação, haja contrato escrito emcontrário, determinando que o regimede bens seja o da comunhão de bens.Entretanto essa regra, mesmo para osque entendem que pode haver discrimi-nação, é inconstitucional. Vejam o se-guinte: casei pelo regime da comunhãoparcial e comprei na constância do ca-samento dois apartamentos, que não sãofruto de substituição por outro bem quejá tinha anteriormente. Neste caso, sehouver descendentes, meu cônjuge nãoparticipará da minha herança. Agora senão me caso e fico só vivendo em uniãoestável, minha companheira vai partici-par na minha herança em relação a es-

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ses aqüestos, mesmo havendo descen-dentes, ou seja, se a Constituição Fe-deral dispõe que a família tem especialproteção do Estado, art. 226, “caput”, in-cisos I, II, III, se a Constituição Federaldiz que a União Estável é família, en-tendo que não pode haver qualquer dis-criminação entre as pessoas casadas,comparando-as com os companheiros.Neste caso, estar-se-á se deferindo maisdireitos sucessórios ao companheiro doque ao cônjuge sobrevivente, o que éevidentemente inconstitucional.

E mais. Se você entender como eu,como o Prof. Leoni, como a Des. Bereni-ce Dias - isso foi dito no próprio Con-gresso Nacional onde ela esteve presente- que não pode haver discriminação en-tre cônjuge e companheiro a par da re-dação do parágrafo 3º do artigo 226 daConstituição Federal, que dispõe que alei tem que facilitar a conversão da uniãoestável em casamento, também se en-tenderá inconstitucional o mesmo arti-go. O seu caput traz uma restrição quenão alcança o cônjuge. Este participa detoda a herança; já o companheiro, só emrelação aos aqüestos. E continua a dis-criminação no inciso I: “Se concorrer comos filhos comuns, terá direito à uma cotaequivalente a que por lei for atribuída ao fi-lho”. Então a partilha se fará por cabeçaem relação apenas à eventuais aqües-tos. Inciso II: “Se concorrer com um des-cendente só do autor da herança, tocar-lhe-á metade do que couber a cada um daque-les”. Outra iniqüidade. Se o cônjuge con-corre com o descendente, ele recebe amesma porção, sejam filhos comuns, ouseja, filiação híbrida. Aqui é diferente.A companheira ou o companheiro rece-berá a metade, menos direitos do que apessoa casada. E mais, e se existiremfilhos comuns e não comuns, qual seráa regra a ser aplicada? Já existem auto-res, como meu amigo Mário Roberto Fa-ria, professor da EMERJ (publicará umnovo livro de Sucessões em breve), queme disse pessoalmente entender queneste caso, à falta de previsão legal, apartilha se faz com base no inciso III doartigo 1.790: “... III – se concorrer com ou-

tros parentes sucessíveis, terá direito a 1/3(um terço) da herança...”. Não participodesta opinião. Entendo que no caso defiliação híbrida, teremos que aplicar oartigo 1.790, inciso I. Se concorrer comdescendência híbrida, o companheirosobrevivente terá direito à cota equiva-lente que por lei for atribuída aos filhos,à semelhança do cônjuge supérstite, ematenção à igualdade constitucional an-tes mencionada. E todos os descenden-tes receberão a mesma cota hereditária(art. 227, § 6º da C.F /88).

O inciso III, do artigo 1.790, é ou-tra aberração jurídica, a meu ver: “Seconcorrer com outros parentes sucessíveisterá direito a um terço da herança”. Obser-vem o seguinte: Vivo há trinta anos comuma companheira em união de fato comtodos aqueles requisitos da união está-vel, presentes os elementos objetivos,durabilidade, affectio maritalis, fidelidade,vida em comum, publicidade, e a inten-ção de constituir família, que é o ele-mento subjetivo.

Venho a falecer sem ter feito tes-tamento, sem descendentes, ascenden-tes, deixando somente um tio-avô. Tio-avô é colateral de quarto grau. O que diza lei? Se concorrer com outros parentessucessíveis (ascendentes, colaterais, eoutros descendentes que não os filhosna hipótese do artigo 1790, I), terá di-reito a um terço da herança. Assim, otio-avô receberá dois terços da herançae a companheira de trinta anos recebe-rá um terço da herança! Isso, a meu ver,é a primeira heresia jurídica deste inci-so, consagrando uma profunda injusti-ça. Com relação à segunda heresia jurí-dica, o Prof. Cahali entende, e eu nãoconcordo, que é possível aqui o legisla-dor discriminar a companheira ou com-panheiro contemplando-os, apenas, emrelação aos aqüestos. Mas neste incisoIII do artigo 1.790, o legislador dispõeque se o companheiro concorrer comoutros parentes sucessíveis, ou seja,ascendentes e colaterais, de segundo,de terceiro e de quarto grau terá direitoa um terço da herança. Não será possí-vel se defender, embora talvez de técni-

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ca duvidosa, que o inciso III está desvin-culado do caput ? Porque herança é todoum conjunto de bens, direitos e obriga-ções do falecido. Se a lei aqui se utilizada expressão herança, para um juiz queprocura a eqüidade e queira, no caso con-creto, fazer justiça, ele pode até dizer quehouve uma má técnica e contemplar ocompanheiro sobre todo o acervo heredi-tário e não só sobre eventuais aqüestos.Na verdade, entendo estar esse incisoapartado do caput, dele não dependente.Seria a melhor interpretação, embora dedifícil aceitação na doutrina.

E no inciso IV, então, vejam o se-guinte: o legislador diz que, em não ha-vendo parentes sucessíveis, o compa-nheiro terá direito à totalidade da he-rança. O que significa isso? Somente aherança em relação aos aqüestos? Ora,totalidade da herança é todo o conjuntode bens, direitos e obrigações transmis-síveis do falecido. Então, por esse incisoIV, também afirmo que é possível racio-cinarmos que a totalidade da herançanão se limitaria apenas aos aqüestos.Sei que tal posicionamento é discutível,pois com a discriminação em relação aocompanheiro ou companheira, na reali-dade o legislador pretendeu incentivara transformação da união estável emcasamento. No entanto, o próprio rela-tor Ricardo Fiúza disso se arrependeuporque no projeto de lei n°6.960 de 2002foi modificada a redação do art. 1.790,caput: “O companheiro participará da suces-são do outro na forma seguinte:” A expres-são “quanto aos bens adquiridos onerosa-mente na vigência da união estável” restaráafastada devido, a meu ver, aos proble-mas de inconstitucionalidade antes men-cionados.

Esta será uma maneira de se re-solver o assunto, mas até lá, até que amodificação seja aprovada, Vossas Ex-celências terão que decidir. Se enten-derem que há efetivamente, in casu, de-pendência dos incisos ao caput, a restri-ção continuará. A meu ver, de qualquermodo, certamente será alegada ainconstitucionalidade não só do caput doartigo 1.790, mas também de seusincisos.

Menciono a existência de outra ins-tigante questão e acho que fui o primei-ro a levantá-la em palestras proferidasno Hotel Glória e aqui na EMERJ, anopassado dentre as primeiras sobre otema. Data vênia, meu amigo Prof. Caha-li, o Prof. Gustavo Tepedino e eu estamosentendendo que o companheiro é herdeironecessário. Isso pelo seguinte: em pri-meiro lugar, o legislador diz que ele par-ticipará da herança, de modo imperativo.Em segundo lugar, quem participa de umaherança, ou participa como herdeiro, ouparticipa como legatário. E aqui se elerecebe quinhão não individualizado, nomomento da morte, é um herdeiro. Emsegundo lugar, o que é um herdeiro ne-cessário? É aquele que não pode ser afas-tado da sucessão por testamento válidodo autor da herança. É aquele que só vaiser afastado da sucessão, pelo menos emrelação à sua cota legitimária, se re-nunciar a herança ou for excluído da su-cessão por indignidade ou deserdação.Ora, reparem os senhores, o companhei-ro sobrevivente, desde que haja aqües-tos, pela letra fria da lei, ou, então demodo amplo, como eu defendo, sempreparticipará da sucessão. E inclusive sesobrepõe ao Poder Público, nos termos doart. 1.844, em que “não havendo cônjugeou companheiro, nem parente algum su-cessível ou tendo eles renunciado à he-rança, esta se devolve ao município, aoDistrito Federal”.

Porém, o mais importante está si-tuado no art. 1.850: “Para excluir da su-cessão os herdeiros colaterais, basta que otestador disponha de seu patrimônio sem oscontemplar”. Ora, regra restritiva de di-reito patrimonial se interpreta de modoestrito, não sendo possível utilizar-seaqui da aplicação analógica. Esquecen-do o legislador ou não, o companheiroou a companheira não figuram no artigo1.850. Se não figuram neste artigo, ocônjuge sobrevivente não pode excluí-losda sucessão por testamento. Sendo as-sim, eles são herdeiros necessáriosmesmo que suas cotas estejam reduzi-das, a meu ver inconstitucionalmente,pelo caput do artigo 1.790 e seus incisos.

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Ouso defender essa posição até comoutro argumento constitucional: se a fa-mília é composta pelo casamento e tam-bém pela união estável, não pode haverdiscriminação de direitos entre o cônju-ge e o companheiro, ex vi os artigos 5°caput, 3º, III e 226 caput e inciso III, 1ªparte da Carta Magna. Então um “plus” àregra infraconstitucional seria defenderque o companheiro ou a companheira éherdeiro necessário por força até daigualdade constitucional, apesar da re-dação da 2ª parte do artigo 226, § 3º, daConstituição, que dispõe que a lei infra-constitucional deve facilitar a conversãoda união estável em casamento. E mais,a propósito desse assunto, o direito realde habitação, que é deferido expressa-mente no novo Código para o cônjuge so-brevivente, não o foi em relação ao com-panheiro também. E não há nenhumajustificativa plausível para isso. Muitosdoutrinadores, inclusive os professoresque se reuniram em setembro no STJ,entendem que, nesse aspecto, continuaem vigor a Lei 9.278/96, que concede di-reito real de habitação no art. 7º, no pa-rágrafo único, ao companheiro ou com-panheira. Porém a questão vai ser resol-vida mais uma vez no Projeto Legislativo6.960, em que o próprio relator do novoCódigo Civil insere um parágrafo no arti-go 1.790 com a seguinte redação: “Ao com-panheiro sobrevivente, enquanto não consti-tuir nova união ao casamento, será assegura-do, sem prejuízo da participação que lhe cai-

ba na herança, o direito real de habitação re-lativamente ao imóvel destinado à residênciada família desde que seja o único que daque-la natureza a inventariar”.

Sendo assim, temos três caminhos:o juiz pode afirmar que não há direitoreal de habitação para a companheiraporque não há previsão legal para tanto.O segundo caminho é argüir a igualdadeconstitucional e conceder o direito. O ter-ceiro caminho é entender que a Lei9.278/96, nesse aspecto, por ser lei es-pecial, continuaria em vigor a partir donovo Código Civil para resolver essa ques-tão. E finalmente quanto ao usufruto le-gal sucessório do art. 1.611, § 1º, do códi-go atual, não há mais previsão para o côn-juge sobrevivente, e também não há, comoera na Lei 8.971/94, em favor do compa-nheiro sobrevivente. Isso por um motivomuito simples – qual era o fundamentodo direito de usufruto legal sucessóriopara o cônjuge sobrevivente e para o con-vivente na união estável? Ser um direitoassistencial para proteger a pessoa quenão recebia herança em propriedade, aantiga cota uxória do direito romano quecontemplava o cônjuge sobrevivente semrecursos. Agora isso está terminado. Senão há mais usufruto legal para o cônju-ge, mesmo que não se defenda, como eu,que o companheiro é herdeiro necessá-rio, também não haverá mais necessida-de dessa proteção ao companheiro, estam-pada, embora de modo imperfeito, no art.1.790 e seus incisos. Muito obrigado. .

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O Direito Sucessório do Não Concebido aoTempo do Óbito e algumas inovações na

Sucessão T estamentária

CLÁUDIA NOGUEIRADefensora Pública/RJ. Professora da EMERJ e da UCAM

O tema que me coube é a aborda-gem do direito à sucessão legítima e tes-tamentária do não concebido ao tempodo óbito do autor da herança e as inova-ções na sucessão testamentária. A su-cessão do não concebido ao tempo damorte decorre principalmente do fato deque o direito à procriação é inerente àpersonalidade. Contudo, agora transcen-de. Não termina mais com óbito. É pos-sível haver a procriação mesmo após amorte de uma determinada pessoa. En-tende-se, e a maioria entende dessa for-ma, inclusive na Europa e em diversospaíses, que é indispensável que aqueleque depositou o seu sêmen em um ban-co especializado diga, expressamente,qual será o destino do material genéti-co, se para fins de pesquisa, de repro-dução, se a esposa ou a companheirafuturamente poderá utilizá-lo, mesmoapós sua morte. O próprio depositantetem que especificar a finalidade e a apli-cação dos gametas.

Em razão desta possibilidade deprocriação após a morte da pessoa quecrioconservou seu material genético,surgem alguns problemas de direito su-cessório. O art. 1.597, inc. III, tem a se-guinte redação:

“Presumem-se concebidos na constân-cia do casamento os filhos:III – havidos por fecundação artificial ho-móloga, mesmo que falecido o marido;”Fecundação artificial homóloga é

aquela que emprega o material genéticodo próprio casal, diferenciadamente daheteróloga, que utiliza o material repro-dutivo de um terceiro. Realmente, bio-

lógica e juridicamente, o marido é o pai,dissipando-se qualquer dúvida com oexame de DNA que confirmará o vínculoparental, se questionado. A problemáti-ca não recai sobre o parentesco, massobre o direito à sucessão legítima doconcebido após o falecimento de seu ge-nitor. A pergunta crucial e geradora defortes debates na doutrina, principal-mente estrangeira: Esse filho concebi-do após a morte do pai por inseminaçãoartificial homóloga tem direito à suces-são legítima? Porque, quanto à testa-mentária, é possível, mas quanto à su-cessão legítima podemos apresentarduas correntes. Há uma divergência jábastante acentuada, que apesar de serum tema mais a nível doutrinário, comcerteza os senhores poderão se depararfuturamente com um problema desses:a primeira corrente sustenta que o filhonão sucede. Autores de porte, comoEduardo Oliveira Leite1 e Silvio Veno-sa2 entendem que o filho concebido pos-teriormente ao óbito do autor da heran-ça não tem direito à sucessão legítima.Quais seriam os fundamentos? Inicial-mente, a interpretação do art. 1.798, quetem a seguinte redação: “Legitimam-se asuceder as pessoas nascidas ou já concebi-das no momento da abertura da sucessão”.Portanto, para ser herdeiro, ele tem que,ao menos, existir, ter sido concebido atéo momento do óbito. Logo, se o potencialherdeiro ainda não foi concebido, eleainda não existe, por isso, não vai terdireito à sucessão legítima.

1 LEITE, Eduardo Oliveira. Comentários ao Novo Códi-go Civil, v. XXI. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.105.2 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil, v. VI. SãoPaulo: Atlas, 3ª ed. 2003, p. 283.Palestra proferida no Seminário realizado em 17/01/2003

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Outro fundamento a respaldar estaposição é aplicabilidade do artigo 1.798,para a sucessão legítima e para a su-cessão testamentária.

Um grande problema que tem aquicomo pedra de toque nesta corrente se-ria a segurança, a estabilidade das rela-ções jurídicas. Como podemos admitir queo concepturo, aquele que ainda não foiconcebido - e não sabemos quando o será- terá direito a receber esses bens? Quan-to tempo esse patrimônio vai ficar aguar-dando que haja uma concepção que podenunca ocorrer? O prazo para pleitear osbens seria o mesmo da petição de he-rança para este que foi concebido após oóbito, nascendo com vida? Isso intran-qüilizaria inclusive os demais herdeirose interessados na sucessão, causandotambém um outro problema sucessórioque seria a intenção da viúva. Ela, aofazer a inseminação artificial, pode nãoestar imbuída no melhor dos sentimen-tos – o sentimento materno. Poderá es-tar interessada em uma sucessão dife-renciada, querendo ter mais direitos su-cessórios, especialmente, porque o Có-digo Civil atual prevê direito à sucessãoda propriedade dos bens ao cônjuge queconcorre com os descendentes do fale-cido, dependendo do regime de bens.Tendo um filho do morto, a sucessãoserá de uma forma. Se o falecido deixouapenas descendentes não comuns a suaesposa, a sucessão se dará de outra for-ma, ou, ainda pior, supondo que o fale-cido não tenha deixado descendentes,mas apenas ascendentes. Concorrerãoos ascendentes e o cônjuge sobreviven-te independentemente de regime ma-trimonial. Ela tendo um filho dele, e en-tendendo-se que o filho sucede, os as-cendentes perdem o direito à sucessãoe os bens são destinados ao filho e aocônjuge sobrevivente, este último depen-dendo do regime de bens. E caso o con-sorte não tenha direito à sucessão legí-tima concorrendo com o descendente,terá durante o período do exercício dopoder familiar, direito à administraçãoe usufruto legal dos bens do filho me-nor, devendo ser dispensado um cuida-

do muito grande no reconhecimento dodireito sucessório da mulher que fez in-seminação artificial post mortem, se amesma for beneficiada patrimonialmen-te com o nascimento deste filho, até paraque as viúvas não se sintam estimula-das com a maternidade para proveitoeconômico, concebendo filhos após o óbi-to do genitor. Se admitirmos a sucessãodesse filho concebido após a morte, quese lhe dê esse direito, mas o direito damulher, da esposa, não deverá jamaisser alterado para beneficiá-la. Seu di-reito poderá ser mantido ou alterado,sim, para ter redução do seu quinhãohereditário ou a perda do mesmo, nun-ca para angariar vantagens, por con-ceber um filho do falecido, pois senãoestaríamos chancelando, de uma certaforma, a procriação - não para a forma-ção de família ou o direito à procriação –mas, apenas por um fim econômico emque o menor, evidentemente, seria ogrande prejudicado.

Ainda nesta primeira corrente, po-demos suscitar o direito adquirido dosherdeiros concebidos e já nascidos à su-cessão legítima, por terem direito de sai-sine. O artigo 1784 prevê que: “Aberta asucessão, a herança transmite-se desde logo,aos herdeiros legítimos e testamentários”. Como falecimento, imediatamente o domínioe a posse são transmitidos aos herdeirosexistentes e a Constituição da Repúblicaassegura o direito adquirido e o direito àherança, ambos em seu artigo 5º, protegi-do como cláusula pétrea. Admitirmos queo concebido após o óbito suceda, contrariaeste preceito fundamental.

Em sentido contrário, a outra cor-rente sustenta que o filho concebido de-pois do falecimento sucede, por força do§ 6º, do art. 227, da Constituição Fede-ral, que estabelece que todos os filhossão iguais, independentemente de ori-gem. Sendo assim, não tem justificativao filho concebido antes da morte suce-der e o concebido depois, não ter direi-to à sucessão legítima. Todos são filhos,todos são herdeiros. Se todos são filhos,têm iguais direitos, logo, mesmo conce-bido após a morte do autor da herança,

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nascendo com vida, ele tem direito a essasucessão. Outro fundamento tambémcom base na Constituição poderia ser adignidade da pessoa humana. Não sepode sustentar um comportamento fa-miliar, uma convivência digna numa fa-mília de um filho com o patrimônio deixa-do pelo falecido pai e um outro filho, sempatrimônio, dependente, completamente,dos seus familiares. Por isso, a dignidadeda pessoa humana também pode ampararesse que venha a ser concebido após amorte do autor da herança.

Ganha reforço a tese favorável àconcessão do direito hereditário com ocaput do art. 1597 que cria uma presun-ção jurídica, ainda que fictícia, de que ofilho foi concebido durante o casamen-to, portanto, como se vivo fosse o mari-do.

Nesta esteira de entendimento etambém com amparo na Constituição, odireito de herança e o direito de proprie-dade e sendo filho, deve ser consideradocomo herdeiro, tendo direito de saisine.

Mas, é possível a contraposição des-se argumento em favor da primeira cor-rente dizendo: mas os outros filhos, osoutros herdeiros, também têm direito desaisine, porque o domínio e a posse foramimediatamente transmitidos na hora doóbito - se foram imediatamente transmi-tidos no exato momento do falecimento,eles têm direito adquirido a um determi-nado percentual daquela herança, têm odireito de propriedade e o direito de he-rança garantidos pela Constituição aosbens que compõem o acervo hereditário.

Na verdade, existe um conflito denormas fundamentais que deve ser di-rimido pela teoria da ponderação dos in-teresses. As duas linhas argumentati-vas trazem à cena a inevitabilidade decolisão de direitos e princípios funda-mentais, dentre os quais se destacam:o direito do filho à sucessão, com basena dignidade da pessoa humana, direitoà propriedade, à herança, a igualdadede tratamento a ser dispensado aos fi-lhos, o princípio da paternidade respon-sável que pode ultrapassar o período devida do genitor, propiciando aos filhos

meios materiais de sobrevivência e vidadigna, ou em contraposição para a outralinha de pensamento, o direito dos de-mais que existiam à época do óbito, combase na segurança das relações jurídi-cas, na previsão do artigo 1798 do CC, etambém no direito de propriedade, no di-reito de herança e no direito adquirido.

Sem dúvidas, deparamos-nos como antigo conflito, que sempre acompanhao direito: de um lado, a estabilidade dasrelações jurídicas; de outro, a justiça nocaso concreto - porque pela justiça no casoconcreto, deveria prevalecer a segundacorrente. Claro, é filho, todos os filhossão iguais, dignidade da pessoa huma-na, direito à herança, os filhos não po-dem ser tratados diferenciadamente, ga-rantindo-se-lhes a sucessão. É a justiçano caso concreto. Para a outra vertente,a estabilidade das relações jurídicas,impedindo-se que sejam criadas situa-ções indefinidas de patrimônios que fi-cariam aguardando uma possível concep-ção - que pode não ocorrer.

Situação diversa é a da prole even-tual, dos filhos ainda não concebidosde pessoas indicadas em ato de últimavontade, como preceitua o artigo 1.799,I do CC: “Na sucessão testamentária podemainda ser chamados a suceder:

I – os filhos, ainda não concebidos, depessoas indicadas pelo testador, desde quevivas estas ao abrir-se a sucessão;”

A controvérsia se o concebido apóso óbito é legitimado para suceder residena sucessão legítima. Na sucessão tes-tamentária há previsão legal.

Mas, como ficarão os bens do mor-to até o nascimento? E se o herdeiroesperado não for concebido ou não nas-cer com vida, qual o destino do acervohereditário? O artigo 1800, responde, emparte, estes questionamentos. Em prin-cípio, o patrimônio será administradopelo curador nomeado judicialmente,que preferencialmente será a pessoa quegerará o futuro herdeiro, caso não dis-ponha diversamente o testador.

E o prazo para a concepção? Há al-gum prazo que deve ser aguardado? O pa-rágrafo 4º do artigo 1.800, assim dispõe:

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“Se, decorridos 2 (dois) anos após a aber-tura da sucessão, não for concebido oherdeiro esperado, os bens reservados,salvo disposição em contrário do testador,caberão aos herdeiros legítimos”.Será este prazo inconstitucional por

restringir o direito de herança? E a segu-rança das relações jurídicas, como fica?

Pontue-se que estamos tratando desucessão testamentária. Se essa suces-são é legítima, poderemos, dependendoda corrente, ficar presos ao disposto noart. 1.798, que entende que somenteaquele ao menos concebido pode suce-der. Se ainda não foi concebido, não élegitimado.

Esse período de dois anos do pará-grafo 4º limita o tempo de indefinição,de insegurança, porque dá um tempopara que ocorra a concepção, – e enten-do que tal prazo não é aplicável para ofideicomisso, o que será analisado pos-teriormente. Não sendo concebido o her-deiro esperado nesse prazo de dois anos,os herdeiros legítimos existentes ao tem-po da morte seriam os sucessores.

Cabe salientar um tormentoso pro-blema teórico e bastante prático, quan-to à propriedade dos bens nesta fase emque se aguarda a concepção. Não ouvinenhum comentário ou questionamen-to a respeito. Se o herdeiro não nascer,os herdeiros legítimos do testador suce-dem, se o testador não dispuser de for-ma diversa. E se ele for concebido apóso óbito e nascer com vida? Quem será otitular do direito de propriedade nesteperíodo de tempo entre a morte e o nas-cimento com vida do herdeiro testamen-tário, se ele ainda não existia ao tempodo falecimento? Quem não existe nãopode ser titular de direitos ou obriga-ções. O legislador admitiu a sucessãodo não concebido ao tempo do óbito, po-rém não regulou como ficará a cadeiadominial. Exemplificando, o titular dosdireitos falece e somente um ano de-pois do óbito o herdeiro é concebido.Quem deve figurar como proprietário atéo nascimento com vida? Questiona-seisso por não ser possível a vacuidadedestas relações jurídicas patrimoniais.

Será razoável a criação da ficção de queo herdeiro era titular dos bens desde amorte, apesar de não ter sido nem mes-mo concebido à época do óbito? Terá oCódigo previsto uma exceção de herdeirosem direito de saisine? Porque como eleainda não existe não pode ser titular dodireito de propriedade no momento doóbito, contudo o artigo 1.784 prevê a trans-missão da herança, ou seja, propriedadee posse, desde o momento do falecimen-to aos herdeiros. Bem, estas são apenasalgumas indagações para serem discuti-das sobre este enfoque do problema emerecem ser estudadas pela doutrina.

Relativamente à sucessão do nãoconcebido, uns dos problemas mais inte-ressantes a enfrentar são: a) se o filhoconcebido após a morte terá direito à su-cessão legítima; b) qual e se terá a geni-tora do concebido posteriormente ao óbi-to direito à sucessão, com base nos arti-gos 1.829, I c/c 1.832; c) Quem será oproprietário dos bens entre o período doóbito e a concepção com nascimento comvida, se o herdeiro não existia ao tempodo falecimento? Estes são, acredito, al-guns questionamentos que devem serenfrentados nos planos teórico e prático.

Outro aspecto interessante a serabordado, também em razão do artigo -1.597, IV - é o dos embriões excedentá-rios e o direito à sucessão legítima: “Art.1.597. Presumem-se concebidos na constân-cia do casamento os filhos (...) IV – havidos, aqualquer tempo, quando se tratar de embri-ões excedentários, decorrentes de concepçãoartificial homóloga....” Nesta hipótese, en-tendendo-se que já ocorreu a concepçãoe a mesma foi antes do óbito, esses em-briões – lógico, havendo nascimento comvida – irão suceder, terão direito à suasucessão. Se entendermos que a concep-ção só ocorre com a implantação do em-brião no útero, voltamos a mesma diver-gência suscitada anteriormente quantoao inciso III do artigo 1597 do CC.

O problema é que os embriões po-dem ficar congelados durante muitosanos e o artigo 1.800 § 4º, é relativo àsucessão testamentária, podendo ficarem aberto qual seria esse prazo para o

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nascimento, pois como o embrião foi ge-rado com material genético do próprioautor da herança, este é o genitor. Aquestão aqui delineada é que na suces-são legítima não há qualquer previsão deprazo, pois o art. 1798 prevê que o herdei-ro deve ter sido ao menos concebido aotempo do óbito do autor da herança.

Outra novidade que envolve o con-cepturo são as novas regras sobre o fidei-comisso, artigo 1.951 e seguintes, especi-almente o 1.952, ambos do novel Código.

O 1.951 conceitua o fideicomisso,sem alterá-lo, permanecendo a duplavocação. A primeira, com a morte dofideicomitente os bens passam para o fi-duciário e a segunda, quando ocorre amorte do fiduciário, o cumprimento deuma condição ou termo, adquirindo o fi-deicomissário o bem fideicomitido e porcausa desta dupla transmissão que adoutrina e jurisprudência, há muito, re-pudiam este instituto, defendendo suaabolição.

A modernidade trazida pelo art.1.952 é a admissão do fideicomisso sópara aqueles que ainda não foram con-cebidos. O fideicomissário tem que sernão concebido ao tempo do óbito do tes-tador. O art.1.952 determina que: “Asubstituição fideicomissária somente se per-mite em favor dos não concebidos ao tempoda morte do testador”.

Já o parágrafo único estabelece que:“Se, ao tempo da morte do testador, já hou-ver nascido o fideicomissário, adquirirá estea propriedade dos bens fideicomitidos, con-vertendo-se em usufruto o direito do fiduci-ário.” Nascendo o fideicomissário antesdo óbito, há uma transmutação do fidei-comisso e o fiduciário será usufrutuárioe o fideicomissário nu-proprietário.

Feitas estas considerações de cu-nho genérico, aprofundemo-nos no es-tudo do instituto. Primeiramente, alei não regulou a hipótese do benefici-ado ter sido concebido mas não nasci-do ao tempo do óbito. Menciona que vaiser fideicomissário se não concebido,e se nascido, será nu-proprietário. Ese estiver em fase de gestação? E sefor um nascituro? Este nascituro terá

direito a sucessão testamentária? Elepode ser contemplado com esses bens?Ou a sucessão necessariamente seráa legítima?

Não há solução pacífica. O Códigonão regulou e, se não há regulamenta-ção legal atribuindo direito ao nasciturode receber como fideicomissário ele nãosucede, caducando esse fideicomisso -consolida-se a propriedade nas mãos dofiduciário. Enfatize-se, pelo art. 1.952 sóse admite como fideicomissário o nãoconcebido. Se caduca esse fideicomis-so, a sucessão passa a ser uma suces-são testamentária simples, com apenasuma única transmissão de patrimônio.Por lado, pode-se sustentar que a lei ci-vil antiga e atual põe a salvo os direitosdo nascituro e negar-lhe o direito deherança, data vênia de entendimentoscontrários, fere o preceito constitucio-nal que garante a todos, sem distinçõeso direito de herança. Repise-se, por as-saz relevante, que o direito do concep-turo foi regulado, bem como o daquelenascido ao tempo do óbito. Entendo quea omissão do legislador civilista criouuma inconstitucionalidade.

Uma questão que pode ser levan-tada de particular relevo, como antessalientado: O artigo 1.800, § 4º pode seraplicado também para o fideicomisso?Isso porque esse § 4º refere-se à suces-são testamentária, e o fideicomisso sóocorre se houver testamento. A lei nãofaz regulamentação quanto ao prazo paraque o fideicomissário seja concebido. Emrazão disso, Silvio Venosa3 sustenta quedeve ser aplicado o referido dispositivo,no fideicomisso, e aí ouso divergir doeminente mestre, porque esse artigo1.800, parágrafo 4º, como lido, é refe-rente à sucessão testamentária sim,mas a parte final dele é contrária à pró-pria essência do fideicomisso, ao deter-minar: “... salvo disposição em contrário dotestador, caberão aos herdeiros legítimos”.Se ele não for concebido no prazo assi-nalado, data venia, os herdeiros legítimosnão podem ficar com o patrimônio; quem

3 idem

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tem que ficar com o patrimônio é o fidu-ciário, em decorrência da caducidade dofideicomisso. Então sempre que, por al-gum motivo, a segunda transmissão nãose realiza, há a consolidação da proprie-dade plena e irrestrita do fiduciário.

Entendo que não podem os herdei-ros legítimos suceder na segunda voca-ção. Eles não poderiam assumir o lugardo fideicomissário. O artigo 1952 caputsó admite como fideicomissário o nãoconcebido ao tempo do óbito do testador,não teria como esse herdeiro legítimosuceder na qualidade de fideicomissá-rio se ele já era concebido ao tempo damorte do testador. Raciocínio diversodesconfigura completamente a essênciado instituto do fideicomisso como pre-visto no atual Código, criando uma ile-galidade. Como a matéria é recentíssi-ma, merece detida atenção, pela incon-veniência que seria permanecer emaberto sem um termo especificado, paraa concepção desse fideicomissário.

Quando terá o fideicomissário direi-to à propriedade dos bens? A pessoa éconcebida após a morte do testador, nas-cendo com vida. Ele vai ter direito a essepatrimônio, mas este patrimônio serátransmitido no momento do seu nasci-mento, ou pode-se aguardar um tempofuturo ou alguma situação futura?

Entendo que dependendo do que foidisposto no testamento, ele vai receberos bens ou terá apenas mera expectati-va de direitos, tendo que cumprir certacondição ou aguardar o termo previstono testamento ou a morte do fiduciário.Nesses casos, esse fideicomissário, nas-cendo, não necessariamente terá a pro-priedade e a posse dos bens, porque senão fosse assim, dificilmente poderíamosexplicar a possibilidade do cumprimentoda condição, porque quem cumpre a con-dição é o fideicomissário; se ele aindanão foi nem concebido, claro que não po-derá cumpri-la. Por isso, pode-se dar umlapso temporal além do nascimento, paraque ele venha a receber – nasce, depoiscumpre a condição; nasce, espera que otermo se complete; portanto, o nascimen-to com vida é essencial para garantir o

direito sucessório, mas não tem que serimediata a transmissão com o nascimen-to, por força do regulado na lei nos arti-gos 1.951 e 1.952, que, repetindo, esta-belece que: “Pode o testador instituir her-deiros ou legatários, estabelecendo que, porocasião de sua morte, a herança ou o legadose transmita ao fiduciário, resolvendo-se odireito deste, por sua morte, a certo tempo ousob certa condição, em favor de outrem, quese qualifica de fideicomissário”. Se o fidei-comissário, nascendo, sucede, ele jamaisteria essa condição, a não ser que fosseimposta, por exemplo, uma condiçãocomo: “ele vai ter direito a receber os bensse for filho homem, ou filha mulher”4.–não deixa de haver a possibilidade de umacolocação, dessa forma, pelo testador.Fora isso, se é o próprio que tem quecumprir a condição, não pode haver atransmissão no exato momento do nasci-mento, até porque não tem previsão le-gal para isso.

Outro questionamento. O fideico-missário pode casar pela comunhão uni-versal e o artigo 1.668 estabelece que:“São excluídos da comunhão: (...)II – os bensgravados de fideicomisso e o direito do her-deiro fideicomissário, antes de realizada acondição suspensiva...”. Se ele tivessedireito ao patrimônio no momento emque nascesse, não haveria esta regra.O direito à sucessão pode se cristalizarposteriormente ao nascimento do fidei-comissário. O importante é que a con-cepção seja posterior ao óbito do testa-dor. O que dispõe, aqui, o legislador, quetem uma redação idêntica ao 263 doCódigo Civil anterior (de 1916), que en-quanto os bens estão com o fiduciário,esse patrimônio não comunica com ocônjuge do fiduciário, por ser proprieda-de resolúvel, havendo o cumprimento dacondição, o termo ou a morte do fiduciá-rio, todos os bens terão que ser entre-gues para o fideicomissário.

Quanto ao fideicomissário, essesbens podem se comunicar se, ao tempodo cumprimento da condição, ele for ca-sado pelo regime da comunhão univer-

4 Nesse sentido a monografia de pós-graduação da Dra.Monica Reisky sobre substituição fideicomissária.

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sal, porém se for separado judicialmen-te, à época do cumprimento da condi-ção, mesmo que fosse casado ao tempodo óbito, o cônjuge do fideicomissárionão tem direito à meação do bem fidei-comitido, o bem não comunica. Antes documprimento da condição, o fideicomis-sário tem mera expectativa de direitos.

Como nosso tema abrange as ino-vações na sucessão testamentária, alémda sucessão do concebido após o óbito,valem algumas anotações sobre as cláu-sulas restritivas de direitos. O entendi-mento já consagrado na hermenêuticajurídica e sumulado pelo Supremo Tri-bunal Federal, Súmula 49, de o beminalienável ser incomunicável e impe-nhorável foi elevado ao patamar de leicivil no seu art. 1911: “A cláusula de ina-lienabilidade, imposta aos bens por ato deliberalidade, implica impenhorabilidade eincomunicabilidade”.

O artigo 1.848, estipula: “Salvo sehouver justa causa, declarada no testamento,não pode o testador estabelecer cláusula deinalienabilidade, impenhorabilidade, e de in-comunicabilidade, sobre os bens da legítima”.

Quanto à disponível, não há ne-nhuma novidade. Sobre a disponível,pode o testador impor a cláusula de ina-lienabilidade, de incomunicabilidade, deimpenhorabilidade, independentementede justificativa, apesar de estas cláusu-las sempre terem sido duramente criti-cadas pela doutrina e pela jurisprudên-cia, por retirarem o bem do comércio erestringirem o direito de herança, cons-titucionalmente garantido.

A justa causa vem sendo exigidasó em relação à legítima. Mas, o que podeser considerado como justa causa paraque se mantenha a cláusula restritiva?Evidentemente que isso vai variar mui-to caso a caso, vai depender do conven-cimento do juiz a respeito da questão.Pode-se entender, por exemplo, comouma boa justificativa: “deixo os bens quevão para o meu filho fulano de tal grava-dos com cláusula de inalienabilidadeporque ele é toxicômano, ou porque eleé alcoólatra, ou viciado em jogo, ou umperdulário, ou um gastador compulsivo”.

Uma providência do autor da herança,acautelando o futuro de seus herdeirosnecessários.

Similar o entendimento quanto àimpenhorabilidade, podendo ser usadosos mesmos argumentos da cláusula deinalienabilidade, assim como aquele quesabe que seu filho tem inúmeras dívi-das e não quer que os bens deixados nasucessão legítima e/ou testamentáriacaiam nas mãos dos credores daqueleherdeiro necessário, podendo o testa-dor gravar seu patrimônio com a cláu-sula de impenhorabilidade para a prote-ção do filho devedor.

O mais difícil é justificar a cláusulade incomunicabilidade. Qual a justifica-tiva para que o patrimônio não comuni-que? O interesse se revela se o herdeironecessário for casado pelo regime da co-munhão universal de bens, porque todosos bens se comunicam e o cônjuge doherdeiro sofre de algum dos problemasacima citados, por exemplo. Este é o alvodo preceito. Em situação diversa não sejustifica a cláusula. Caberá ao magistra-do a cognição profunda em contraditóriopleno e com ampla tessitura probatóriajulgar o pedido de “levantamento” de qual-quer das cláusulas restritivas.

Estas cláusulas podem ser “levan-tadas”? O que pode justificar a alienaçãode um bem inalienável? A jurisprudên-cia com o aval da doutrina vem admitin-do a alienação em casos urgentes e jus-tificados, como um problema de saúde dopróprio herdeiro ou de seu filho que nãotem recursos próprios e o tratamento ofe-recido pela rede pública é insuficiente,gerando necessidade de complementa-ção. É um justo motivo para o levanta-mento, mesmo tendo havido uma justacausa prevista no testamento. A aliena-ção desse patrimônio pode ser a soluçãopara salvar a vida do herdeiro, até por-que os direitos à vida, à propriedade comfunção social e o direito de herança sãogarantidos constitucionalmente. O direitoà vida é hierarquicamente superior aobem jurídico tutelado patrimonial.

O parágrafo 1° do mesmo artigo,contém a novidade que proíbe o testador

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de estabelecer a conversão dos bens dalegítima em outros de espécie diversa.Antes, o testador podia determinar queos bens fossem convertidos. Agora, a leiveda a determinação de conversão dosbens da legítima em outros bens. Serápossível somente quando for a conver-são dos bens da disponível, não haven-do restrição legal.

Parágrafo 2º “mediante a autorizaçãojudicial e havendo justa causa, podemser alienados os bens gravados, con-vertendo-se o produto em outros bensque ficarão sub-rogados nos ônus dosprimeiros”.A outra novidade a apontar é o tes-

tamento aeronáutico. Uma nova modali-dade de testamento especial, que, na ver-dade, não trouxe nenhuma variante dotestamento marítimo, exceto a situaçãofática. Ele vem regulado da mesma for-ma como o testamento marítimo, não tra-zendo nenhuma disposição significativa.

O número de testemunhas testa-mentárias foi reduzido. Não há mais anecessidade de cinco testemunhas parao testamento, em alguns casos podemser três testemunhas e em outros ape-nas duas, dependendo da espécie do atode última vontade.

Na parte relativa à colação, infeliz-mente, o Código obrigou apenas os des-cendentes em seu artigo 2002, que tema seguinte redação: “Os descendentes queconcorrerem à sucessão do ascendente co-mum são obrigados, para igualar as legíti-mas, a conferir o valor das doações que deleem vida receberam, sob pena de sonega-ção”. Para cálculo da legítima, o valordos bens conferidos serão computadosna parte indisponível sem aumentar adisponível. E a finalidade da colação éigualar a legítima dos herdeiros neces-sários. Contudo, dependendo do regi-me, é admissível doação de um cônjugeao outro, até mesmo em pacto antenup-cial. Mas o legislador não exigiu que ocônjuge donatário ou o ascendente do-natário traga o bem doado à colação noinventário do doador. A lei só exige queo descendente, que recebeu o bem, tra-ga-o à colação. Os demais herdeiros ne-

cessários não precisam colacionar asdoações.

Esses são apenas alguns pontos ecríticas em relação à sucessão do herdei-ro não concebido ao tempo do óbito, sobredisposições fideicomissárias e algumasinovações na sucessão testamentária.Realmente, as sucessões do cônjuge e docompanheiro apresentam maior repercus-são prática, com o maior número de deba-tes por ser o nosso cotidiano. As hipóte-ses aqui abordadas são bem mais raras,por não ter o brasileiro hábito de fazer tes-tamento. Ele é avesso à sucessão testa-mentária por questão cultural e as su-cessões do cônjuge e do companheiro mu-daram a estrutura do direito sucessóriocom a concorrência de classes.

Novamente, quero agradecer a to-dos, especialmente à EMERJ pela opor-tunidade de poder apresentar essas con-siderações.

DEBATES

Prof. Marco Aurélio Bezerra de Mello1 - Observei que houve um equívo-

co do legislador, em meu modo de ver,no artigo 1.831 quando é deferido ao côn-juge sobrevivente o chamado direito realde habitação. Sabemos que o direito realde habitação, assim como o usufruto vi-dual, ingressou no ordenamento jurídi-co com a função de proteger, no caso, àépoca nas mãos de Nelson Carneiro, amulher casada.

Então isso tudo sempre teve umaspecto excepcional e protetivo, de modoque o contemplar de direito ou contem-plada de direito real de habitação, seele constituísse nova união estável jácom o ordenamento constitucional atua-lizado, atualizando o Código Civil, o ou-tro casamento perderia a sua função edeveria ser extinto. Contudo, na reda-ção do novo Código Civil, em 1831, seesqueceram, só posso entender dessaforma, a temporariedade. O Código dis-põe que ao cônjuge sobrevivente, qual-quer que seja o regime de bens, seráassegurado, sem prejuízo do que lhe cabena herança, o direito real de habitação

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relativamente ao imóvel destinado...Será que criaram um direito real de ha-bitação perpétuo? O que seria um totalabsurdo.

Sendo assim, gostaria que VossaExcelência enfrentasse a seguinte ques-tão: Se podemos, apesar do silêncio dalei, dar uma interpretação extensiva? Ese o projeto do Deputado Fiuza, que ob-jetiva corrigir, quer dizer que ele incluia temporariedade do instituto no 1.831,está correto ou não.

Prof. Luiz Paulo Vieira de CarvalhoO art. 1.831 traz um direito real,

que é ambulatório, que adere à coisa,que acompanha a coisa e realmente nãohá redação do Código Civil de 16. Essecódigo dispunha que o cônjuge sobrevi-vente casado pelo regime da comunhãouniversal, o novo código não traz qual-quer regime, enquanto viver e perma-necer viúvo será assegurado, sem o pre-juízo da participação da herança, o di-reito real de habitação. O novo Códigonão traz essa situação, ou seja, passa aser um direito vitalício ao cônjuge so-brevivente, o que vai criar uma situaçãodeveras embaraçosa. Imaginem a situa-ção em que uma pessoa, casada por qual-quer regime e que tenha um filho foradessa união, venha a falecer. Esse filhorecebe a propriedade daquele único imó-vel a ser inventariado com a madrastadentro. O Direito Real adere à coisa. Emais a madrasta arranja um outro ho-mem e o traz para a sua residência. En-tão, o que o filho pode fazer? Aguardar amorte, somente. Isso somente será cor-rigido se o projeto for aprovado. No pro-jeto 6.960, o relator aperfeiçoou e voltoua dizer o seguinte: artigo 1.831: “Ao côn-juge sobrevivente, qualquer que seja o regi-me de bens, será assegurado, a finalidadeassistencial, fornecer habitação, enquantopermanecer viúvo ou não constituir uniãoestável, será assegurado sem prejuízo daparticipação que lhe caiba na herança, o di-reito real de habitação”.

Enquanto não houver modificaçãolegislativa, será um direito real vitalício,como é, por exemplo, o usufruto testamen-

tário em que não haja limitação temporalpara o exercício do direito de usufruto.Realmente virou vitalício, mas vai ser cor-rigido, espero, o mais breve possível.

Prof. Marco Aurélio Bezerra de MelloAté entendo e até por uma experi-

ência prática de todos os meus amigos,pois não tive nenhum amigo que conver-tesse a união estável em casamento.Então foi um lamentável equívoco dizerque o objetivo de quem vive em uniãoestável é converter em casamento. Con-tudo, esse lamentável equívoco foi cons-titucional, porque no art. 226, parágrafo3º, da Constituição, na sua parte final,é estabelecido que deve a lei facilitar asua conversão em casamento. Então nãome parece, com redobrada vênia, que oherdeiro, agora dito pela lei, companhei-ro, possa ser entendido como herdeironecessário porque, em meu modo de ver,o legislador quis deliberadamente colo-car o companheiro de fora da idéia doherdeiro necessário e se nós observar-mos a redação do 1.790, é diferente daredação da vocação hereditária. A com-panheira ou companheiro participará dasucessão do outro, a idéia do legisladorfoi exatamente, não que a união estávelseja uma relação de segundo plano, evi-dente que não, mas essa diferenciaçãofoi feita de acordo com a Constituiçãoda República.

Nesse passo, na Jornada de Direi-to Civil, a qual participamos no STJ, naparte do Direito de Família, foi aprovadoo enunciado 97, que coloca a questão noseu devido lugar. Ele dispõe o seguinte:“No que tange à tutela especial a família,devem ser estendidas as regras do CódigoCivil que se referem apenas ao cônjuge, àsituação jurídica que envolve o companhei-rismo”. Como, por exemplo, na hipótesede nomeação de curador dos bens doausente. Porque lá no artigo 25, da par-te geral, esqueceram-se do companhei-ro. Na hora de prever a legitimação paraa declaração da ausência, não colocaramo companheiro, foi um lamentável esque-cimento porque ausência envolve tutelada família. Aqui, no 1.790, apesar da sua

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péssima colocação e horrorosa vedação,pois a impressão que dá é que o compa-nheiro só recebe tudo se não tiver se-quer um tio-avô, como está no artigo1.790. Entendo que o companheiro nãopode ser visto, em hipótese nenhumacomo herdeiro necessário. Essa omissãodo legislador foi deliberada e de acordocom o artigo 226, parágrafo 3º. Sendo as-sim, abro espaço para a réplica.

Prof. Luiz Paulo Vieira de CarvalhoO próprio relator do projeto do atu-

al Código Civil está evoluindo. Ele, noartigo 1.790, diz que o companheiro par-ticipará da sessão do outro no projeto doLegislativo na forma seguinte – como dis-se aos senhores aquela disposição alta-mente, a meu ver, inconstitucional, foisuprimida. Inclusive ele procura equi-parar ao máximo. A redação do projeto,para o artigo 1.790, reparem, dispõe:

“Em concorrência com o descendente,terá direito a uma quota equivalente à meta-de do que couber a um desses (continua adiscriminação), salvo (ou seja, ele seaproxima da redação do cônjuge sobre-vivente) se tiver havido comunhão de bensdurante a união estável, o autor da herançanão houver deixado os bens particulares ouse o casamento dos companheiros, se tives-se ocorrido, observada a situação existenteno começo da convivência, fosse pelo regi-me da separação obrigatória”. Então, re-parem que há uma evolução no sentidode realmente equiparar os direitos su-cessórios da companheira ao do cônjugesobrevivente, apenas mantendo uma di-ferença de metade. Agora, peço uma re-flexão aos senhores: muitos dos nossoscolegas da EMERJ, inclusive os Profes-sores Sylvio Capanema e Leone, achamque é absolutamente inconstitucionalqualquer tipo de discriminação entrecônjuge ou sobrevivente e companheiro.Isso porque o fato de a Constituição terafirmado que a lei deve converter uniãoestável em casamento, não significa quepossa haver a discriminação e que aunião estável é uma união de segundaclasse. Na realidade, é um tipo de famí-lia. E o caput do art. 226 da Constituição

Federal, que é a regra de incidência ime-diata à Lei infraconstitucional, dispõe quea família tem especial proteção do Esta-do. Não consigo entender e aceitar essadiscriminação. O próprio relator estámudando de idéia a respeito disso. Ago-ra, mesmo nos abstraindo da redação daConstituição, como poderíamos interpre-tar o artigo 1.850? E para excluir da su-cessão só os herdeiros colaterais? “Bastaque o testador disponha de seu patrimônio semos contemplar”. O que é um herdeiro ne-cessário, independentemente do tamanhode sua cota? É aquele que não pode serexcluído da sucessão por ofício de pieda-de da “novela” 119, do Imperador Justini-ano, por vontade do hereditando, do fale-cido. Ora, na realidade, pelo art. 1.850,não haverá possibilidade de aplicação deuma regra restritiva de direito por analo-gia. Então, o companheiro não pode serexcluído da sucessão, independentemen-te do tamanho de sua cota, por vontadedo testador, mesmo o testamento válido.

Sendo assim, quando ele pode serexcluído da sucessão? Só se ele renun-ciar ou houver indignidade ou deserda-ção, ambas confirmadas por sentença ju-dicial. Acho que é perfeitamente possí-vel defender-se a par da inexistência deredação expressa sobre o assunto emrelação ao companheiro, que lhe é, emsimetria com o cônjuge sobrevivente,herdeiro necessário. Essa é a minhaposição, a do Prof. Gustavo Tepedino...Vamos ver o que vossas excelências vãodecidir a respeito do assunto, agora re-flitam: no Direito Brasileiro existemmuitas companheiras que estão há dez,vinte, trinta anos com um homem e nahora da sucessão vamos dizer isso: Quemmandou viver em uma união de segun-da classe? Por que não casou? Por quenão converteu?

O Estado está interferindo na fa-mília, impondo uma conversão. Muitasvezes, o casal é feliz dessa maneira. Voudar um exemplo: Uma das melhores ami-gas da minha mãe vivia super feliz há trintaanos em união estável com um senhor.Um belo dia, me consultaram porque que-riam converter a união estável em casa-

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 217

mento. Então, redigi uma escritura públi-ca declaratória de união estável e elesentraram com um pedido de habilitaçãode casamento. Então, com essa escrituradeclaratória de união estável, com cincotestemunhas, que compareceram ao ato,houve a conversão em casamento. Contu-do, seis meses depois, o casamento aca-bou e eles não se falam mais.

Dessa forma, não entendo como oEstado, que tem tanta coisa para fazer,além de matar a fome do nosso povo, comodiz o nosso Presidente, vai se preocuparem dizer: Olha é melhor que os que vi-vem em uma união de segunda classe secasem, pois, caso contrário, o seu com-panheiro ou companheira será prejudi-cado. Ora, é muito melhor deixar as pes-soas decidirem como querem ser felizes,sem interferência do Poder Público. Achoque essa regra de igualdade, a par daredação do § 3º do art. 226, é uma impo-sição da Constituição Federal.

Prof. Marco Aurélio Bezerra de MelloAntes de mais nada, queria deixar

bem claro que concordo com essa posi-ção de defesa da união estável. O proble-ma que estou apresentando como con-traponto é que antes desse raciocínio deemergência do novo Código Civil, talveztivéssemos que pensar na emenda cons-titucional. O final do parágrafo 3º do ar-tigo 226, é péssimo, mas está na nossalei maior. Então, dizer que o companhei-ro, apesar da omissão legal, é herdeironecessário, é malferir o ruim final do pa-rágrafo terceiro do artigo 226, na medidaem que o constituinte disse que a lei devefacilitar a conversão da união estável emcasamento. A meu ver não foi uma boaopção constitucional, não devia constarisso. E outra coisa: no projeto de lei doDeputado Fiuza, o artigo 1.845, que apre-senta quem são os herdeiros necessári-os, vai continuar intocado, ou seja, seesse projeto de lei for aprovado, continu-arão, no ordenamento jurídico brasilei-ro, como herdeiros necessários, os des-cendentes, os ascendentes e o cônjuge.Então, além da alteração legal, deve-sepensar na constitucional.

Prof. Luiz Paulo Vieira de CarvalhoÉ uma questão de ponto de vista,

interpreto de uma maneira e meu gran-de amigo interpreta de outra. Agora, sóuma observação: a natureza jurídica dascoisas não se define, às vezes, por umaexpressão da lei, mas sim por uma in-terpretação sistemática no conjunto e aregra constitucional, a meu ver, inter-pretada da maneira que acho a mais cor-reta, tem que ser aplicada imediatamen-te ao Direito infraconstitucional.

Prof. Marco Aurélio Bezerra de MelloÉ só uma indagação, porque o novo

Código Civil não fala da possibilidade deo Ministério Público propor ação exclu-indo o herdeiro por indignidade. Nós vi-venciamos, há pouco tempo, um caso ter-rível, em São Paulo, em que a filha ma-tou os pais e, em seguida, com a pres-são dos jornalistas, o filho, que poderiaexcluí-la por indignidade, perdoou. Ra-pidamente, de plantão, foi levantada aseguinte possibilidade: de o MinistérioPúblico propor essa ação. No meu modode ver, é um lamentável equívoco por-que é uma questão meramente patrimo-nial. Contudo, foi objeto de uma aprova-ção unânime na jornada de Direito Ci-vil. Quer dizer, o enunciado número 116,dizendo que o Ministério Público podepropor ação de exclusão do herdeiro porindignidade quando presente o interes-se público. Gostaria de saber a opiniãodos senhores.

Prof. Luiz Paulo Vieira de CarvalhoOs enunciados do STJ, os quais par-

ticipamos com muito orgulho inclusiverepresentando a EMERJ e a DefensoriaPública, são na realidade a opinião deum grupo de juristas naquele momento.Mas o próprio enunciado dispõe que oMinistério Público, por força do artigo1.815 do novo Código Civil, “desde quepresente o interesse público”, contudo,a meu ver, aqui não há interesse público,mas sim exclusivamente patrimonial.

E na hipótese supracitada do meni-no, se ele for absolutamente incapaz, quemvai agir por ele é o seu tutor, já que os pais

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faleceram. O tutor vai poder entrar com aação de indignidade. Se ele for relativa-mente incapaz, não sei qual é a idade dele,ele é quem terá a legitimação para propora ação assistido pelo tutor. Sendo assim,dependerá dessas circunstâncias. Agora,não admito que o Ministério Público possaentender isso como interesse público. Nãohá de se confundir clamor público com ofato, com o interesse público que não estápresente na hipótese.

Des. Sergio Cavalieri FilhoGostaria de fazer uma rápida inda-

gação ao Prof. Luiz Paulo. Sua Excelên-cia afirmou que o Estado não sucederiaimediatamente após a morte do de cu-jus, mas só posteriormente. Então a in-dagação é a seguinte: E nesse período,a quem pertence a herança, a quem per-tence o patrimônio?

Prof. Luiz Paulo Vieira de CarvalhoO posicionamento do Tribunal de

Justiça do Estado do Rio de Janeiro, lem-bro-me muito bem, se não me engano,de um acórdão relatado pelo Des. Thia-go: como não existe vácuo sucessório nodireito brasileiro e como a sentença quetransforma a herança jacente em vacan-te, o próprio CPC e o Código dispõem queo juiz declarará por sentença, esse é oposicionamento do Tribunal de Justiçado Estado do Rio de Janeiro, que real-mente o poder público é herdeiro sim,ou seja, porque a sentença retroage seusefeitos ex tunc à data da abertura da su-cessão, portanto há o fenômeno da saisi-ne para o poder público. Mas esse posici-onamento não é o do STJ atualmente. Odo STJ defende, inclusive para questõesdo usucapião, que como o momento emque a propriedade passa ao poder públi-co é o momento da sentença, ou seja,entendendo que a eficácia será ex nunce, portanto, ele não é herdeiro e simmeramente sucessor obrigatório. A meuver, o mais correto posicionamento é odo Tribunal de Justiça do Estado do Riode Janeiro, tecnicamente falando.

Porém, o posicionamento do STJ aca-bará, se o recurso especial for conhecido

pela divergência, prevalecendo. Tambémexiste aquele outro aspecto de normal-mente o Defensor Público defender ousucapiente. É muito difícil ver um De-fensor Público defender o proprietário ouo ex-proprietário. Sendo assim, é umaquestão apenas de posicionamento. En-tendo que tecnicamente é mais corretaa posição de que a sentença tenha eficá-cia retroativa e que exista essa saisine.O STJ entende diferentemente e talvezseja o indício de aceitação pelo novo le-gislador da posição do STJ, porque nãoestá mais constando como acontecia no1.603, inc. 5º, da ordem de vocação he-reditária o poder público. No novo Códigotemos na ordem de vocação hereditária:descendente, ascendente, cônjuge ousobrevivente e colateral até o quarto grau,afastou-se, por isso é que entendo que onovo Código acaba optando pela correntedo Superior Tribunal de Justiça, emboraentenda que não é mais técnica.

Des. Sergio Cavalieri FilhoSe o Estado não sucede, seria coi-

sa de ninguém nesse período, pois nãoé do morto. Veja bem, o herdeiro é her-deiro porque recebe, porque houve umasucessão. Então, se não é coisa de nin-guém, aí sim explica muito bem o usu-capião, estou adquirindo. Mas se não há,se nesse período é coisa de ninguém,como é que houve a sucessão? Então oproblema: de quem é a propriedade nes-se período entre a morte e a efetiva su-cessão do Estado?

Prof. Luiz Paulo Vieira de CarvalhoTecnicamente, a posição que foi

defendida, muitos anos, pelo Tribunal deJustiça do Estado do Rio de Janeiro émais acertada, ou seja, a sentença devacância é declaratória e retroage osseus efeitos à data da abertura da su-cessão e não pode haver vácuo sucessó-rio no direito brasileiro, porque nós ado-tamos o princípio da saisine, o Des. Ca-valieri tem toda razão. Mas quanto à po-sição do STJ, existem acórdãos sobreisso, de que não, ou seja, de que nãoseriam herdeiros, para eles não haveria

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 219

saisine para o poder público, seria ummero sucessor obrigatório, pois não poderenunciar a herança delegada. Inclusi-ve já houve manifestação em caso deusucapião, que pode consumá-lo depoisda morte e antes da sentença que de-clara a herança vacante.

Des. Sergio Cavalieri FilhoNo art. 1.798, legitimam-se a su-

ceder as pessoas nascidas ou já conce-bidas, o que já foi colocado no momentoda abertura da sucessão, e aí veio aque-le questionamento todo da fecundaçãoposterior etc. Só que o artigo 1.597 fala“presumem-se concebidos”. Então temos,no meu entender, duas situações. Te-mos a situação de concebido e temosuma definição legal de concebido. Con-cebido não será só aquele que já foi efe-tivamente concebido, mas também aque-le que a lei presumir que é concebido. Equando estudamos Introdução à Ciên-cia do Direito, vemos a diferença entrepresunção e ficção jurídica. Presunçãoé uma realidade que a lei estabelece apriori, mas com base nas probabilidades.E que me parece que são as hipótesesdos incisos I e II. O filho nascido duran-te os trezentos dias etc. E ficção jurídi-ca é a mentira jurídica, aquela situaçãoque a lei estabelece como verdade, em-bora sabendo que aquilo não é verdade,nunca será verdade, mas precisa ser.Um exemplo é dizer que todos conhe-cem a lei, pois é publicada. Tinha umprofessor que dizia que quando a lei dizque o peixe é porco, fica sendo. Entãonão parece aos senhores que as hipóte-ses, principalmente do inciso IV e V, sãode ficção jurídica de concepção? Querdizer a lei estabeleceu aqui, no meuentender, uma ficção jurídica. Obser-vem: “São também concebidos, para efeitosde lei, (ou seja, faz de contas que forampara todos os efeitos), aqueles que havi-dos a qualquer tempo, quando se tratar deembriões etc. e aqueles havidos por insemi-nação artificial. E me parece que assimnem precisaríamos chegar a tanto debuscar um fundamento constitucional deisonomia etc. porque a lei estabeleceu

um novo conceito de concepção. É algoque coloco para reflexão.

Prof. Luiz Paulo Vieira de CarvalhoDes. Sergio Cavalieri, entendo que

o problema não vai acontecer quandohavidos por fecundação artificial homó-loga ainda em vida do hereditando. Oproblema é essa parte final depois davírgula (mesmo que falecido o marido).

Des. Sergio Cavalieri FilhoE aí não é uma ficção jurídica? A

lei quis que isso fosse considerado con-cepção. Quando a lei chama o peixe deporco, fica sendo. A lei disse: - isso étambém concepção.

Prof. Luiz Paulo Vieira de CarvalhoVamos fazer um caso concreto. Va-

mos supor que eu estivesse morrendo eque estou casado com alguém e que parauma resolução do Conselho de Medici-na para que haja a reprodução assistidaé preciso expressa autorização do mari-do. Homóloga ou heteróloga, esta commuito mais sentido. Aí digo que dou au-torização em vida, pois estou morrendo,que você, através da reprodução assisti-da, conceba alguém depois da minhamorte. Então retira-se o sêmen e con-gela. Qual seria o momento da concep-ção? Já faleci e nesse momento o sê-men é introduzido no útero materno oucom o embrião excedente que fica in vi-tro já congelado, só vai acontecer a con-cepção depois que se insere no ventrematerno. Ali é que vai haver a concep-ção. Nesse ponto é que existe o proble-ma. E eu já faleci, a minha sucessão jáfoi aberta pelo sistema da saisine. De-pois que eu faleci, através de uma auto-rização que dei em vida é que foi feita aintrodução do sêmen no útero materno.E aí é que surge o problema: essa crian-ça, que nasceu depois do meu falecimen-to, terá direito à herança ou não?

Des. Sergio Cavalieri FilhoMas a lei quis assim. Existem ca-

sos de presunção e outros de ficção. Fazde conta que foi concebido, assim como

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220 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

todos presumem a lei, está disposto quetodos conhecem a lei, contudo não é bemassim. É uma realidade jurídica que elaquis estabelecer, não é verdade hoje enão será nunca.

Prof. Luiz Paulo Vieira de CarvalhoAgora, mesmo se dependesse ape-

nas da Constituição, defenderia o se-guinte: se há uma presunção de que opai é o que as núpcias demonstram. Ese o marido autorizou (e terá que auto-rizar), essa presunção vai vingar. E o queacontece: o legislador diz: você é filho,conforme o art. 1.597, mas você não podereceber o direito sucessório. A meu ver,isso é incoerente, tanto no sistema in-fraconstitucional quando no sistemaconstitucional, mas essa polêmica foilevantada porque existem autores reno-mados, como, por exemplo, Silvio Veno-sa, Eduardo Leite, que lançou pela Fo-rense uma obra que defende que filhopode ser, mas não vai receber herançaporque a transmissão já ocorreu anteri-ormente, os direitos já foram adquiridospelos herdeiros e não vai acontecer. Épor isso que acho que dá para defenderessa questão dentro do ponto de vistaconstitucional.

Des. Sergio Cavalieri FilhoVou formular uma indagação que

foi feita à Profª Cláudia: De acordo com

o art. 1.668, inc. II, o direito ao fideico-missário não se comunica antes de rea-lizada a condição suspensiva. Mas seconsiderarmos que o fideicomisso este-ja subordinado ao termo, haverá a co-municação, principalmente consideran-do o art. 131 do nosso Código?

Profª Cláudia NogueiraEntendo que quanto à questão da

comunicação ou não do bem pelo cônjugedo fideicomissário, depende que ele es-teja casado ao tempo da morte ou do cum-primento da condição ou do termo. Se eleestiver casado pelo regime da comunhãouniversal, esse bem vai comunicar. Se aépoca em que ele cumpre a condição ouquando ocorre o termo ele já é separado,esse bem não comunica, mesmo que fos-se casado ao tempo do óbito do testador.Portanto, o importante, aqui, na análisedessa segunda transmissão não é a aná-lise ao tempo da morte do testador, massim quando há o cumprimento da condi-ção ou quando há o termo estabelecidopelo testador ou ainda quando há a mor-te do fiduciário. Nesse momento é quevai ser avaliado se o fideicomissário vaiou não suceder e se o cônjuge desse fi-deicomissário terá ou não direito à mea-

ção desse bem hereditário..

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 221

Preparei, aqui, de forma objetiva,uma sinopse para que não haja perdade tempo na análise do tema a ser ex-posto. O objetivo do tema - registro atéque estou, deliberadamente, inauguran-do esse estudo em face da interdiscipli-nariedade do assunto – é o exame, queme pareceu muito pertinente, de umapequena parte do Código Civil - o direitode vizinhança - conjugada com as nor-mas sobre vizinhança e a propriedade,que compõem a nossa legislação urba-nística.

A finalidade básica é essa, por umarazão simples: tenho observado que avizinhança, como criadora de direitos edeveres, ou tem sido estudada de formaestanque no Código Civil (em virtude deseção nominada com tal matéria), ou temsido estudada à luz, exclusivamente, doDireito Público, porquanto a vizinhança,mal ou bem, introduz aspectos ligados aodireito urbanístico, que é tipicamente deDireito Público. Então, a finalidade é fa-zer essa conjugação do direito privado edo direito público, no que toca a esse as-pecto específico da vizinhança.

Meu objetivo na exposição - e eugostaria de, antecipadamente, deixarisso bem claro - é examinar a aplicabili-dade direta, concreta, do direito, ou seja,me proponho ao exame do direito posto,vigente, do jus positum, sem teorizações,sem filosofias jurídicas das quais, queroacreditar, nós já estamos um pouco can-sados. Eu, aliás, gostaria até de lhes di-zer que só é, a meu ver, concebível oestudo de filosofias jurídicas, na medi-da em que elas têm uma visão de apli-cabilidade concreta. Do momento em queas teorias jurídicas são meras divaga-ções filosóficas e teóricas, sem que sir-vam para que você aplique o direito, elas

não nos servirão, nem a nós como intér-pretes nem como aplicadores do direito.Então, a nossa proposta não é fazer, aqui,exercício de erudição - até porque nãome acho capaz desse tipo de exercício -mas sim examinar, exatamente, o nos-so direito concreto.

E sobre esse aspecto - “Direito deVizinhança e Política Urbana” - o primei-ro ponto que gostaria de considerar, e nãopodia deixar de falar nisso, porque é opressuposto lógico, é a questão do direitode propriedade. Quem está voltado paraa área do Direito Público e dirige seusestudos para o Direito Constitucional,sabe muito bem que a propriedade, em-bora tenha sido considerada tradicional-mente como matéria própria do DireitoCivil, na verdade, dentro da Constitui-ção hoje vigente (não era assim na Cons-tituição de 1967), não se pode nem dizerque a propriedade é matéria objeto decompetência constitucional da União Fe-deral, até porque a própria Constituiçãobiparte as competências.

Daí porque o primeiro ponto a con-siderar-se no que toca à vizinhança – queé um aspecto da propriedade – é que odireito de propriedade, primeiramente,vem sofrendo um processo depublicização. Quem está voltado para osautores mais modernos que vão fazendoo histórico dos períodos da evolução dapropriedade observa que esta se encon-tra cada dia mais longe daqueles concei-tos individualistas que vigoraram nas épo-cas anteriores do Direito e que, se bempercebermos, a cada dia mais se estájungido a certas restrições. E por querazão? Porque hoje a propriedade – e estána Constituição – não é mais senão umdireito condicionado a uma função soci-al. Esse é o outro aspecto. Então, todavez que qualquer vetor representar al-gum tipo de benefício social, e esse be-

Direitos de V izinhança e Política UrbanaJOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO

Procurador de Justiça/RJ. Professor da UFF e da EMERJ.

Palestra proferida no Seminário realizado em 14/03/2003.

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222 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

nefício social tiver prevalência sobre odireito individual da propriedade, na ver-dade estaremos aí diante de uma restri-ção ao direito de propriedade.

Em relação à questão da competên-cia (é o ponto inicial, me parece), que-ria lembrar que a propriedade, desdelogo, está, em primeiro plano, garantidano artigo 5º da CF; mas quem lê o artigo5º na parte da propriedade – e há cincodispositivos que tratam dela: XXII, XXIII,XIV, XV e XVI – vai verificar que a Cons-tituição, depois de dizer que está garan-tido o Direito de Propriedade, ressalva,no inciso XXIII, que “a propriedade aten-derá a sua função social”, como que a di-zer o seguinte: “eu garanto o seu direitode propriedade, desde que atendida afunção social”. Portanto, o que a Consti-tuição deu com uma das mãos, no incisoXXII, ela retirou com a outra no incisoXXIII, para mostrar o círculo deinterdependência exatamente em rela-ção à função social.

Depois, vemos no artigo 22, I, da CartaPolítica, que a União tem competência paralegislar sobre Direito Civil, e aí a genteimediatamente se volta para o Direito Ci-vil, Direito de Propriedade, Código Civil,Livro III, Título próprio “Das Coisas”.

Mas a própria Constituição, logoadiante, no artigo 24, I, quando se refe-re à competência concorrente - no caso,ali, ela se refere à União, aos Estados eao Distrito Federal - menciona como ob-jeto da competência legislativa concor-rente o Direito Urbanístico. Observe-seque ela não fala em propriedade, massim em Direito Urbanístico. A Consti-tuição não se refere ao Município, nocaput do artigo 24, mas se conjugarmosessa norma com o artigo 30, veremosque o Direito Urbanístico, evidentemen-te, integra a competência municipal.

Conclusão: apesar de termos a pro-priedade dentro do Direito Civil comoobjeto da competência da União Fede-ral, temos uma competência legislativaconcorrente das três esferas sobre Di-reito Urbanístico, e quando examinamosas regras do Direito Urbanístico, vere-mos que, sem dúvida, nelas existem vá-

rias limitações ao direito de proprieda-de. No fundo, no fundo, e principalmen-te, a lei municipal, como vamos verifi-car, vai ter, em nosso atual sistema,grande relevância no arquétipo forma-dor do direito de propriedade.

Outro aspecto interessante: fica-mos normalmente nas competênciasConstitucionais dos artigos 21, 22, 23,24, 25 e 30, mas esquecemos que, lá nafrente, no capítulo da “Política Urbana”,há competências próprias, e essa Cons-tituição inovou, criou um capítulo com oqual - desculpem o termo - “descobriu apólvora”, porque a política urbana, a po-lítica agrária, a política fundiária já exis-tem nos sistemas europeus há décadas;nós conseguimos inaugurar agora, em1988, capítulos próprios, colocados den-tro da Ordem Econômica.

Desse modo, quando os artigos182 e 183 são examinados, percebe-se que ali existem competências. Porexemplo: lá descubro que a União Fe-deral recebeu competência para tra-çar regras gerais de política urbana, eque, além dessas regras gerais fede-rais, existem regras específicas deimplementação das políticas urbanís-ticas, que vão ficar a cargo do Municí-pio. Quando vemos que o Município temo poder de criar obrigações urbanísti-cas (como obrigar a construir, a parce-lar imóvel, a edificar), percebemos,sem demora, que essas regras tratamdo direito de propriedade, que, na ver-dade, forma um conjunto não só den-tro da parte das competências consti-tucionais, como também lá na parte quediz respeito ao direito urbanístico – nãosó o urbano, artigos 182 e 183, comona parte rural, agrícola, artigos 184 a191. Se forem analisados os dispositi-vos um a um, veremos quantos são per-tinentes ao direito de propriedade.

Agora, examinando a segunda par-te: como o direito de vizinhança, que éobjeto do tema, está dentro do Direitodas Coisas e, por sua vez, do Direito dePropriedade, temos que fazer umatrelamento inevitável entre o Direitode Vizinhança e a Propriedade. Em nos-

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so sistema vigente, do Código Civil atu-al, temos o Livro III, que trata Das Coi-sas; aí vem o Título I, que trata Da Pos-se; o Título II que trata dos DireitosReais; e o Título III que trata Da Propri-edade. O Título III está dividido, por suavez, em capítulos, que tratam de váriosaspectos ligados à propriedade.

Um desses capítulos do Título III -“Da Propriedade” - é, exatamente, o ca-pítulo V, que trata dos direitos de vizi-nhança. Nesse capítulo, o Código Civilfaz, com algumas alterações que exa-minaremos concretamente, divisão emsete espécies contidas no chamado di-reito de vizinhança.

Uma primeira parte, que trata douso anormal da propriedade, é considera-da por Orlando Gomes como sendo a Par-te Geral do Direito de Vizinhança. Coi-sa interessante é que deveria até cha-mar-se “Disposições Gerais”, porque asSeções seguintes são todas ligadas a fa-tos de vizinhança específicos.

A seção I, “Do uso anormal da pro-priedade”, trata das regras gerais do uso,e nas Seções seguintes, II a VII, vamosencontrar os aspectos específicos da vi-zinhança, quais sejam, árvoreslimítrofes, passagem forçada, passagemde cabos e tubulações – tema novo, fa-remos breves comentários sobre isso –águas, limites entre prédios e direito detapagem e direito de construir.

Conclusão: nosso direito de vizi-nhança, na verdade, integra um elo deligação com o direito de propriedade emeu foco vai se centralizar exatamenteno aspecto ligado ao chamado uso anor-mal da propriedade; duas palavras sobreo direito de construir e o que está vigo-rando no Direito Positivo – no DireitoCivil e no Direito Administrativo Urba-nístico – esse é o projeto básico do tema.

Duas palavras, primeiro, sobre achamada vizinhança (já que o tema é“Direitos da Vizinhança”): trata-se derelação jurídica múltipla, plurilateral, eevidentemente, todos sabemos aqui, éuma relação jurídica de naturezaconflituosa. Os romanos, até por curio-sidade, usavam um brocardo dizendo

mais ou menos assim: “Vicinitas est materdiscordiarum”. Tradução: a vizinhança éa mãe das discórdias.

O próprio Digesto já tinha preocu-pação com as questões de vizinhança econsta, de acordo com os nossoscivilistas, que o próprio Ulpiano, ao rela-tar as linhas da propriedade, teria tidoo cuidado de dizer o seguinte: “use asua propriedade, mas respeite a propri-edade vizinha”. Para a idéia de “respei-tar” foi usado o verbo imitat, de imitere,que deu imitio, imissão, imitir. Só que anoção do Ulpiano era a de uma imissãomaterial, uma introdução de benscorpóreos no terreno vizinho – essa aidéia que o romano tinha. Evidentemen-te que essa idéia evoluiu e o que era achamada imitio, hoje se transformou noque o Código denominou - e o anteriornão denominava - de “interferências”, ex-pressão trazida por Ihering para dizer quetanto faz se o imitere é de lançamento decoisas materiais – frutos ou galhos quecaem da árvore – como também se hárepercussão de coisas incorpóreas.

A noção de vizinhança hoje implicaa noção de coisas corpóreas e incorpó-reas. Os princípios que regem as nor-mas da vizinhança, basicamente, sãotodos calcados no princípio da conciliaçãoou da harmonia social, porque a vizinhan-ça tem um aspecto específico: ela é decaráter permanente, é uma relação ju-rídica que se protrai no tempo. Os lití-gios, então, são sempre prejudicialíssi-mos, visto que o caráter permanente darelação jurídica tem que levar a concili-ações sociais e harmonizações, e não aconflitos. Por isso, é que quando se exa-minam as normas do Código Civil, hojeregedoras do Direito de Vizinhança –começam no artigo 1.277 – observa-seuma coisa interessante: existem ali pre-ceitos que são de ordem pública – impo-sitivos à vontade dos vizinhos – assimcomo preceitos de natureza dispositiva -em que os vizinhos vão poder se ajustar,enfim, vão poder, harmonicamente, bus-car objetivos comuns - a base é essa.

Apenas como questão de identifi-cação de temas, há uma discussão en-

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224 - Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil”

tre os autores - a meu ver até sem granderelevância - mas que vale a penamencioná-la, já que estamos estudan-do aqui com muita brevidade: qual é anatureza jurídica do direito de vizinhan-ça? o que ele implanta na ordem jurídi-ca? implanta um tipo de limitação à pro-priedade ou tipo de servidão predial?

Quando lemos essas duas últimasdisciplinas - as servidões e os direitosde vizinhança - em alguns momentosvemos linhas assemelhadas. Mas, se-guindo na esteira dos civilistas, pelomenos domina o entendimento de que acaracterização do direito de vizinhançaé, tipicamente, de limitação ao direitode propriedade. Isso porque ele apresen-ta, de fato (e estou convencido de queas servidões prediais têm um caráter di-ferenciado mesmo) - e isso me parecedefinitivo - o caráter da reciprocidade.

Não sei se é fácil notar esse fato:quando tratamos do direito de vizinhança,verificamos que a existência desse direitoimplica a criação de um dever de vizinhan-ça, mas o indivíduo sujeito ao dever de vi-zinhança, por seu turno, tem um direitode vizinhança contra o titular do direitooriginário. Portanto, essa reciprocidade quecaracteriza o direito de vizinhança não apa-rece nas servidões prediais, porque nestassó há o regime da unilateralidade - só umse beneficia, só um sofre o gravame - daías expressões que se usam lá: prédios do-minante e serviente porque, na verdade,um é serviente mesmo e não tem benefí-cio algum.

Um outro aspecto que indica dife-rença é que, quando se estuda a servi-dão e suas formas de criação, nota-seque ela sempre retrata um direito eleva-do, ampliado para o titular do prédio do-minante; é como se tivesse conquistadouma vantagem jurídica: o seu direitomelhorou, porque além do prédio, ele temuma servidão. No direito de vizinhança,não há essa ampliação de direito, porqueos seus valores são totalmente diferen-ciados dos valores da servidão; trata-sede uma relação bilateral.

E, por fim, um último aspecto dis-tintivo, também merecedor de análise:

é que na servidão a natureza do direito éreal, até porque ela está elencada entreos direitos reais, e os direitos de vizi-nhança são alguns reais e outros pesso-ais. Portanto, em última análise, o quese tem, dentro do que os civilistas per-cebem, é que a melhor caracterizaçãoda vizinhança, hoje, é a de que estampaa configuração de limitações à proprieda-de ou, para quem quiser, ao direito depropriedade.

Vizinhança e licitude. É preciso quea conduta do vizinho seja ilícita para queo seu vizinho tenha um direito em facedele? Para os autores modernos,liceidade ou iliceidade são fatoresirrelevantes para a vizinhança. Em con-sulta a que procedi, pareceu-me inte-ressante o seguinte fato: o ProfessorOrlando Gomes e o nosso saudoso Mi-nistro Aguiar Dias chegam a considerarque as condutas geradoras de direito devizinhança do vizinho são condutas muitomais aproximadas a um tipo de fato ge-rador de responsabilidade objetiva - oupor ato abusivo, ou por abuso de direito,como dizia Aguiar Dias - do que a qual-quer vislumbre de elemento subjetivo deculpa ou de dolo. Por isso é que o CódigoCivil usou a expressão “uso anormal”,na qual está longe qualquer idéia desubjetivismo, um pouco diferente da ex-pressão anterior, “uso nocivo”. Permito-me, humildemente, dizer que, por umaquestão de verificação do sentido, en-contramos realmente no aspecto de“nocividade” muito maior elemento decaráter subjetivo do que você encontrano aspecto da “anormalidade” do uso –esse é outro aspecto.

Na classificação do direito de vizi-nhança (porque são muitos aqui), encon-tramos no Código Civil capítulos desti-nados à “passagem forçada”, “árvorelimítrofe” e outros que são fatos que sóeventualmente acontecem. Outros as-pectos, ao contrário, têm ocorrência co-mum e ensejam aplicabilidade direta. Éo caso, por exemplo, da classificaçãoatinente à onerosidade do direito de vi-zinhança. Todos são direitos, mas há di-reitos gratuitos e direitos onerosos.

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Há direitos onerosos em que o seutitular tem, ao mesmo tempo, um deverde indenização; trago aqui, como exem-plo, o direito à passagem forçada. O ob-jeto do meu direito é a passagem força-da em direção a uma fonte, a um portoetc., mas eu tenho um dever de indeni-zar. Repare-se: se a própria lei disse queo titular tem direito à passagem forçadamediante indenização; se a própria leidisse que o proprietário tem o direito defazer passar cabos, dutos, e outros tiposde tubulações na propriedade vizinha,mediante indenização, o fato estáindiciando que o legislador criou um casode dano presumido, porque não deixouàs partes a composição imediata do even-tual litígio. Já, por exemplo, o direito decolher frutos que caem da árvore do vi-zinho no seu imóvel, é um direito gra-tuito – você já tem direito a esses frutossem nenhum dever indenizatório. Por-tanto há, de fato, direitos conexos a de-veres indenizatórios, e os chamados di-reitos gratuitos (que se pode exercer,muito embora só eventualmente), vãogerar um dever indenizatório - esse“eventualmente” significa dizer que, en-quanto no direito oneroso há um danopresumido, nos chamados direitos gra-tuitos só vai haver indenização quandohouver dano ou prejuízo real. Há umadiferença, realmente, de concepção.

Passo, pois, a examinar diretamen-te a parte, agora, do Código Civil. A parteaté agora comentada referiu-se à vizi-nhança em suas linhas básicas. Exami-nando o direito positivo, daremos realce- é claro - às vírgulas e pontos e vírgulasque o novo Código apresentou em rela-ção ao Código anterior. Começo pelo tí-tulo da Seção, porque o capítulo é “DosDireitos de Vizinhança” (artigo 1.277).

A primeira Seção tem o nome de“Do Uso Anormal da Propriedade”. De-veria ser “Disposições Gerais”, porqueessa Seção trata de aspectos gerais davizinhança; as outras seções dizem res-peito a aspectos especiais, a fatos espe-ciais geradores da interferência chama-da prejudicial. Esse o primeiro aspecto.E aqui já vimos esse primeiro aspecto,

ou seja, a expressão “Uso Nocivo” foisubstituída por “Uso Anormal” – elimi-nou-se o eventual subjetivismo do “no-civo” e criou-se o objetivismo da “anor-malidade”. Vantagem? Muita vantagem,porque só revela o seguinte, a expres-são “anormalidade do uso”: que não im-porta, especificamente, se a minha con-duta na minha propriedade causa reper-cussões prejudiciais ao vizinho, em re-lação à minha própria intenção préviade fazê-lo; ela revela apenas um cará-ter objetivo de que, este uso, mediantecertos paradigmas, está fora dosstandards normais do uso da proprieda-de – essa é que é a idéia que me parecemuito mais objetiva; foi valiosa a altera-ção na minha visão.

Há um probleminha que surge, ode se saber o seguinte: quando o uso éanormal? Porque acabamos desaguan-do na questão dos chamados conceitosvalorativos, plurissignificativos ou jurídicosindeterminados. Sim, porque o conceitode “anormalidade” é um conceitovariadíssimo. O que pode ser normalpara um, pode não o ser para outro; por-tanto, é um conceito valorativo, subjeti-vo. Então, o que é que cumpre dizer di-ante do Código Civil? Qual seria oparâmetro que eu teria que admitir paraque pudesse traçar uma linhademarcatória entre o que é normal eanormal no uso?

Parecem-me aplicáveis dois crité-rios para exame da questão. Primeiro, ocritério da tolerabilidade, porque quan-do você encontra a idéia da chamada “in-terferência prejudicial”, o Código Civildisse, no parágrafo único do 1.277, quea interferência proibida é aquela quedeve levar em conta as edificações emzonas e os limites ordinários de tolerân-cia; quando é que um limite de tolerân-cia é ordinário ou é extraordinário? De-saguamos novamente num conceitovalorativo. Síntese: de um lado, o fator éo da tolerabilidade – esse é um primeiroparadigma para tentar objetivar, positivaro conceito de uso anormal.

Por que se fala em tolerabilidade?Porque sempre pensamos, em termos de

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vizinhança, naquelas situações em quese critica o vizinho, ou em que alguémse acha merecedor ou titular de um di-reito em face de uma conduta do vizi-nho que lhe desagrada. Mas a tolerabi-lidade tem que levar em conta a situa-ção do imóvel em vários aspectos. E issopor quê? Os romanos já diziam isso: avizinhança já traz, naturalmente, algunsdesconfortos, alguns dissabores, algunsaborrecimentos. Isso para quem vive emregime de vizinhança, é fácil verificar.

Esses aspectos – até citei casosassim - esse desconforto e os sofrimen-tos naturais da vizinhança são aquelassituações que vivemos no dia-a-dia: fes-tas de vizinho, som alto de vizinho, pes-soal que acorda cedo, às 7h da manhã,e fala alto. Esse horário para muitos ébastante cedo, mas já é uma hora razo-ável para se falar um pouco mais alto,mas o vizinho não gosta muito.... Há opessoal que não gosta do latido do ca-chorro, mas o latido ocorreu às onze ho-ras da manhã e foi um latido eventual.Há quem não goste nem do choro do bebêdo vizinho... Esses são casos concretos,do dia-a-dia. Então, vejamos como pri-meiro ponto a destacar: não vai havervizinhança em que você se ache titularexclusivo do seu próprio conforto, por-que o vizinho tem que saber convivercom uma coisa, a colateralidade; esse é oaspecto da chamada tolerabilidade.

Em segundo lugar, o outroparadigma aproximado é o que leva emconta os chamados usos e costumes locais,porque as propriedades se situam emlocais diferenciadíssimos. Não se podemcomparar propriedades situadas, porexemplo, em zona de asilos para pesso-as idosas com propriedades situadas emregiões balneárias (Salvador, por exem-plo). Imagine-se o centro de Salvador nocarnaval? Quem vai poder ter um silên-cio absoluto escutando os trios elétri-cos? Ninguém. Então, alguém vai ter quese sujeitar ao desconforto decorrente douso e costume próprios do carnaval deSalvador, que, todos sabemos, abrangeperíodo maior do que o normal. Mas aqui-lo é o uso, é o costume da cidade; a fes-

ta é conhecida assim, faz parte da tra-dição cultural da cidade. Essas coisastêm que ser levadas em consideração;tudo isso faz parte da vizinhança.

Há um aspecto da vizinhança, umaquestão que eu achei muito interessan-te, que vale a pena comentar: a teoria daanterioridade. Não sei se já houve opor-tunidade de a matéria ter sido estuda-da, mas é interessante – anterioridadeou pré-ocupação. É um tema interessan-tíssimo. Há uma teoria – que hoje estásuperada felizmente – a respeito do in-divíduo que, num loteamento, é o pri-meiro a colocar a casa dele ali (ele estásozinho). Então, o uso dele não sofre pra-ticamente nenhuma restrição; e entãovão começando a chegar os vizinhos. Comexceções honrosas, o morador exclusivodaquele canto começa a dizer assim parasi mesmo: “Ah, que bom que eu estousozinho!”. Aí, quando vizinhos começam,por exemplo, a construir duas casas de-pois, ele já pensa diferentemente: “Hum,vai ter obra ali do lado, vai fazer baru-lho, e daqui a pouco vai ter gritaria ali,aqui estava tão bom...” Como regra, háum desejo de o indivíduo fazer daquelapropriedade um mundo ao seu feitio, e avizinhança não vai deixá-lo criar essemundo.

Nesse momento, seria de indagar-se: a pré-ocupação ou a anterioridadegera o amoldamento do vizinho posteri-or às condutas e aos usos do proprietá-rio precedente? Houve uma teoria queachou que o primeiro proprietário tives-se o direito adquirido ao uso da formaque ele começou a usar. Mas se se fos-se admitir esse absurdo, era como seele estivesse estabelecendo o paradigmalocal do uso da propriedade, ou, em ou-tras palavras, como se ele estivesse cri-ando o comando normativo de uso.

Esse ponto nos faz recordar aquelavelha história da serraria (já houve umlitígio dessa ordem): o indivíduo cons-truiu a sua casa num local isolado, nãotinha ninguém e ele, como aposentadoque era, montou nos fundos de sua casauma serraria privada. Como gostavamuito da atividade, que praticava como

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hobby, trouxe um parente para traba-lhar com ele na serraria, e enquanto nãotinha ninguém, aquele pó oriundo damadeira serrada não fazia mal a tercei-ros. Mas quando começaram a chegaros vizinhos, começou a haver reclama-ção de que da serraria emanava um póque prejudicava a saúde dos vizinhos.Lembremo-nos de que o direito de vizi-nhança tem três “S”: saúde, sossego esegurança.

Então – observemos - se fôssemosadotar a teoria da pré-ocupação, todosiam ter que continuar respirando o arde madeira picada, em pó, para que seadaptassem ao uso implantado pelo pre-cedente, o que raiaria ao absurdo. En-tão, não há paradigma de anteriorida-de; continua havendo o limite datolerabilidade normativa.

E aqui, ainda no artigo 1.277 - tudoisso é a respeito do primeiro artigo doDireito de Vizinhança - e eu me permitoler o dispositivo, porque sempre ajuda acompreensão: “O proprietário ou o possui-dor de um prédio tem o direito de fazer ces-sar as interferências prejudiciais...” – essaé a novidade – “... à segurança, ao sosse-go e à saúde dos que o habitam, provocadaspela utilização de propriedade vizinha.” Ve-jamos, quando lemos o artigo 554 doCódigo anterior, vemos a expressão: “Oproprietário, ou inquilino de um prédio temo direito de impedir que o mau uso...” – “omau uso” foi em bom momento substitu-ído pelas “interferências prejudiciais”,porque o “mau uso”, novamente, dá umaidéia de conceito relativo: o que é “bom”e o que é “mau” uso? O que acarretariao uso? Na norma do Código Civil, na ex-pressão “interferências prejudiciais”, há aidéia de repercussão ou – como dizemos civilistas – de propagação dos efeitosda conduta do vizinho, em relação àque-le que se julga titular da proteção jurí-dica.

Há algumas curiosidades; eu mes-mo me fiz algumas indagações e me per-mito, aqui, dividir com os presentes. Emprimeiro lugar, essa regra diz que o pro-prietário tem o direito de fazer cessar,quer dizer, o texto pode dar a impres-

são, aqui, que a única forma de prote-ção seja efetivada por uma conduta re-pressiva, porque fazer cessar pressupõeque a conduta ofensiva já se tenha ini-ciado, e se quer impedir a continuida-de. Mas, nesse ponto, temos que daruma interpretação extensiva, porque di-ante da nossa tutela preventiva, hoje, acada dia, mais expandida no sistemajurídico, nós temos o direito não só defazer cessar as interferências prejudi-ciais, como o de impedir o início dessasatividades, desde que consigamos com-provar que a atividade a ser deflagradavai causar interferências prejudiciais.

Então, o primeiro aspecto a consi-derar: parece-me que o “fazer cessar”,que dá uma idéia só de tutela repressi-va, envolve também a tutela preventiva.

Outro aspecto interessante - tam-bém é novidade, em termos, vamos di-zer assim, mas houve uma melhoria detécnica: o código anterior dizia assim:“O proprietário, ou inquilino de um prédiotem o direito...”. A idéia ficou muitorestritiva. Por que só o inquilino? Por quenão o usufrutuário, o titular do direitode uso, o enfiteuta? Estava limitado otexto. Então, o Código melhorou. Hoje,diz assim: “O proprietário ou o possui-dor...”. E mais: possuidor é aquele pos-suidor a qualquer título, sem conside-rar aquela clássica divisão de posse di-reta e indireta. Portanto, o inquilino, queestava sozinho como titular do direito,hoje está dentro de um grupo de titula-res de posse, sejam posses melhores,piores, como direito reais, como direitospessoais. Realmente, pouca diferença fazse eu sou enfiteuta, ou se sou inquili-no, ou comodatário, tanto faz. O direitode vizinhança tem que abranger todomundo, não importa a relação jurídica,pessoal ou real.

Ainda, o artigo 1.277, parágrafoúnico, diz assim: “Proíbem-se as interfe-rências considerando-se a natureza da uti-lização, a localização do prédio, atendidasas normas que distribuem as edificações emzonas, e os limites ordinários de tolerânciados moradores da vizinhança”.

Duas pequenas observações: pri-

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meiro, quando dizemos “...as normas quedistribuem as edificações em zonas...”,estamos aqui fazendo um elo direto como direito urbanístico administrativo, por-que só quem cria normas em zonas deedificação são as normas de zoneamentourbanístico – aliás, é um dos capítulosdo Direito Urbanístico: zoneamento. Emalgumas cidades, podemos até não tera divisão em áreas zoneadas – quer di-zer, zona residencial, industrial, comer-cial, portuária, militar, mista. Mas issose deve ao fato de que culturalmentenão se está acostumado a tratar do pla-no diretor de Município. Isso, porém, éfundamental para a cidade, até paraacarretar a tutela ao direito de vizinhan-ça. Então, está aqui a idéia da lei, per-feita no meu entender. Leva em consi-deração essas edificações em zonas,como também leva em consideração aquestão dos limites ordinários de tole-rância. Portanto, voltamos à questão datolerabilidade que vai tomar em consi-deração, evidentemente, o chamado usonormal da propriedade.

Outra coisa que me pareceu aquisuscetível de ser comentada: o Códigonovo diz que essas interferências sãoprovocadas pela utilização da proprieda-de. O Código Civil anterior dizia assim:“...que o mau uso da propriedade vizinhapossa prejudicar a segurança, o sossego e asaúde dos que o habitam.” O sossego, asegurança e a saúde não são mais sódireitos dos habitantes; existe, hoje, emdireito urbanístico, a figura do chamado“usuário permanente”, que é aquele in-divíduo que fica mais tempo em seu lo-cal de trabalho do que na sua casa. Esseindivíduo tem que ser objeto da mesmatutela de vizinhança do que a dispensa-da ao habitante. Então, essa idéia dohabitante, que antes se relacionava ape-nas ao único titular do direito de vizi-nhança, realmente foi muito bem colo-cada no novo Código, que abriu a possi-bilidade de que o direito de vizinhançapossa expandir-se para alcançar outrostipos de usuários da propriedade.

Uma outra observação que eu citeiaqui é a de que o Código Civil, ao usar o

termo “moradores”, no artigo 1.277, pa-rágrafo único (não chegou a usar o ter-mo “habitam”, como fazia o Código ante-rior), melhorou em parte a redação doCódigo anterior apesar de nele, “mora-dores”, não estarem incluídos os “usuá-rios permanentes”, que deveriam estar.Já no Direito Urbanístico, são sempreincluídos: toda vez que lermos o Estatu-to da Cidade, podemos verificar que su-jeitos da proteção não só os moradores,mas também os usuários permanentes,comerciantes, enfim, pessoas que efeti-vamente usam a cidade – daí o Estatutoda Cidade.

Gostaria de fazer uma breve refe-rência quanto à chamada “Passagem deCabos e Tubulações” . Trata-se de umanovidade; aqui, houve realmente umainovação do Código Civil, nos artigos1.286 e 1.287.

O artigo 1.286, caput, diz assim:“Mediante recebimento de indenização...” –portanto, é direito oneroso – “... que aten-da, também, à desvalorização da área rema-nescente, o proprietário é obrigado a tolerara passagem, através de seu imóvel, de ca-bos, tubulações e outros condutos subterrâ-neos de serviço de utilidade pública, em pro-veito de proprietários vizinhos, quando deoutro modo for impossível ou excessivamen-te onerosa”. O que é que se nota na nor-ma? Que essa norma, realmente, nãopoderia estar presente mesmo em 1916,mas, hoje, se tem um tema que tem atu-alidade jurídica, é o uso subterrâneo,no caso, o uso do subsolo. E digo issoporque a questão, hoje, não é meramen-te de Direito Privado. Se eu preciso pas-sar um duto subterrâneo, para obter umserviço de utilidade pública – é o que dizaqui – e não tenho outro meio, menosoneroso ou gravoso, para utilizar esseelo, esse duto, esse conduto, então, te-nho que usar a propriedade vizinha. En-tão, pago a indenização, mas tenho apossibilidade de me socorrer do serviçode utilidade pública. Esse tema é muitoatual - e quem está aplicando concreta-mente o Direito, sabe disso – e a dis-cussão se estende ao Direito Público.

Aliás acho, hoje, que – e aqui está

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o meu mestre Jessé Torres, que depoispode responder e podemos até discutirisso – no Direito Público, nessa questãodo uso subterrâneo de dutos e tubula-ções, o tema e as soluções são muitomais problemáticos do que, me parece,ocorreu aqui no Direito Privado – até por-que lá nós temos problemas, primeiro,de círculos federativos diferentes, deprestadores de serviços diferentes. Tempessoa que presta serviço público por-que é pessoa pública mesmo; tem outroque é privado, mas o faz por delegação;aí o privado quer executar o serviço so-bre um bem público, que é de um entepúblico de maior abrangência.

Nós estamos vivendo um momentode transição, com níveis de afetação di-versos, justamente nível de afetação e,a cada dia, vou absorvendo a lição doAdilson Dallari, de que o Estado tem queparar de ficar com picuinha de dizer: eusou União, você é estado e você é muni-cípio; então, não mexa comigo, essa ruaé minha, essa aqui já é sua. O PoderPúblico tem que ser um só. Então, se oserviço é público, as entidades públicasfederativas têm que se ordenar no sen-tido de que o objetivo maior seja alcan-çado: a prestação do serviço público.

Afinal, qual é o problema de eu terque passar um duto, para um serviço doestado, de gás canalizado por debaixo deuma avenida que tem regulação federal?Todo mundo devia estar de braços dados.Então, lá, os probleminhas têm sido mai-ores dos que agora vão nascer daqui. Aqui,não tanto. Aqui, o que o titular do direitovai dizer é o seguinte: “ - Olha, eu queropassar aqui o duto, para receber um ser-viço de utilidade pública” e o máximo queo vizinho vai poder dizer é o seguinte: “Es-cuta, não tem um jeito menos oneroso,menos gravoso? Se tiver, eu não vou dei-xar não; se não tiver, tudo bem: se nãotem jeito, me pague e passe a tubulaçãopor aqui”. Então, a questão hoje está, ameu ver, bem definida.

O Código ainda teve a preocupaçãode dizer que se o tal proprietário preju-dicado pelo duto subterrâneo, pela tu-bulação, encontrar amanhã um meio de

utilização menos gravoso, mais benéficopara ele, ele então que providencie asalterações às suas expensas, mas issonão elimina o direito do titular do servi-ço público. A solução me parece, aqui,bastante razoável.

Bom, o momento já é o de conju-gar-se o direito de vizinhança do CódigoCivil com o da política urbana. Por que éque eu lhes digo isso? Porque quando oartigo 182 da Constituição criou o siste-ma de política urbana, quem já se dete-ve ali vai ver o seguinte: que o grandeinstrumento da política urbana é o Pla-no Diretor. Observará que a Política Ur-bana é para o desenvolvimento das fun-ções sociais da cidade e que leva em con-ta, portanto, o interesse coletivo dosMunicípios.

Quando o artigo 182 e seus pará-grafos previram as linhas básicas da po-lítica urbanística, todos devem ter ob-servado uma coisa interessante: que noartigo 182 § 4º, a Constituição chegou acriar, em relação ao direito de construir,obrigações positivas - uma coisa interes-sante. Até então, o direito de construir,que é inerente à propriedade, condicio-nado aos regulamentos administrativose ao direito de vizinhança – está lá econtinua no Código Civil – sempre foi umdireito objeto de restrições, de non facere;essas imposições do artigo 182 § 4º tor-nam obrigatório um facere, porque foi cri-ado aqui na Constituição um Direito Po-sitivo de edificar, ou seja, o comandonormativo permite que o ato administra-tivo imponha ao proprietário um facere.Qual facere? Por exemplo, que o proprie-tário edifique... - “Não, mas eu não que-ro edificar”, poderia retrucar o proprie-tário. E o governo municipal definiria: -“Aqui não é questão de querer, eu estouimpondo a você um facere”.

Com base nisso, a Constituiçãopreviu que o Município vai ser o grandeimplementador da política urbana, masquem vai traçar as diretrizes gerais é alei federal e agora, em 2001, foi editadaa Lei 10.257, de julho de 2001, que im-plantou o Estatuto da Cidade, que nadamais é do que a lei federal que traça as

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normas gerais previstas no artigo 182da Constituição. E, de fato, antes dela,o Município não poderia implementarsuas políticas urbanas, porque essa leifederal era uma conditio sine qua paraimplementação das leis municipais e,evidentemente, criadoras dos direitosurbanísticos. Veio então a lei federal.Agora, é aguardar que os municípios atu-em (embora eu note uma certa lentidãonesse processo...).

Mas o que eu quis destacar do Es-tatuto da Cidade - eu fiz até umas obser-vações para vermos quantas coisas exis-tem ligadas à vizinhança - é que umadas suas diretrizes é o direito a cidadessustentáveis. Sustentabilidade de uma ci-dade é aquela que leva em conta o bem-estar do habitante e do usuário perma-nente; leva em conta vários aspectos:lazer, transportes, serviços públicos; éaquela em que não deve prevalecer o po-der econômico, mas sim o intuito social.

Depois, o Estatuto fala em ofertade equipamentos urbanos, que são to-dos aqueles de que se servem o PoderPúblico ou delegados para implantar osserviços públicos. Sabemos muito bemque equipamentos urbanos podem gerarproblemas de vizinhança. De vez emquando eu ouço – não sei como está de-finida a solução jurídica – algunsquestionamentos sobre os efeitos preju-diciais de antenas de telefonia móvel; émais ou menos isso. Quer dizer, o fatopoderá estar prejudicando os vizinhos –isso é problema de vizinhança. Ondemoro, há duas ruazinhas; numa delas,o dono alugou um terreno residencial;próximo à minha casa, então, existe umaantena enorme. Não tem mais nada noterreno; é alugado só para aquele fim.E há outros casos. Agora, ter-se-ia, evi-dentemente, que comprovar se a ativi-dade, ou o fato, enfim, causa dano à saú-de, pois fala-se em alguns emissores deenergias, ou algo semelhante, que cau-saria danos à saúde. É preciso averiguar,pois que se cuida de parte técnica.

O Estatuto da Cidade fala em or-denação e controle do uso do solo. Àsvezes, as limitações do direito de cons-

truir têm como objetivo evitar aconflituosidade intensa – que o italianochama de “conflitualitá massima” (máximaconflituosidade); a redução do direito deconstrução às vezes visa a prevenir a for-mação de litígios de vizinhança.

E, para finalizar, foi criado um ins-trumento novo, chamado Estudo de Impactode Vizinhança, abreviado no Estatuto comoEIV. É um instrumento urbanístico comovários outros previstos lá. Qual é a gran-de novidade – está aqui no artigo 36 doEstatuto da Cidade – do Estudo de Im-pacto de Vizinhança? A grande novidadeé que poderá a lei municipal delinearquais as atividades e empreendimentos,que pela sua peculiaridade poderão re-percutir na esfera dos vizinhos. O CódigoCivil menciona interferências prejudiciaisaos vizinhos pelo tipo da construção ou daatividade - aqui, eu estou vendo questõesligadas, por exemplo, a shoppings (o pro-blema do shopping não é o shopping emsi, são as suas cercanias) e a outras ati-vidades, ou ainda a entidades e estabe-lecimentos religiosos (aí o problema nãoé de construção, mas de sossego, de ruí-do; tem havido problemas de vizinhançanesse aspecto).

Então, vejamos, o que eu querialembrar é que esse chamado Estudode Impacto de Vizinhança - que, aliás,não prejudica o Estudo de Impacto Am-biental, ou seja, a lei ressalvou os dois,que vão conviver harmoniosamente – vaipossibilitar a criação de um mecanis-mo prévio à concessão de licenças e au-torizações do Poder Público para imple-mentar empreendimentos e executaratividades, para evitar exatamente queprejudique a vizinhança, pois se o nomedo estudo é Estudo Prévio de Impactode Vizinhança, o objeto da proteção temque ser a vizinhança; essa será a suagrande vantagem.

Lembro ainda, porque é importan-te esse dado: sempre se considera quevizinhança tem correlação com contigüi-dade, mas, em nosso sistema, a vizi-nhança tem correlação com a proximida-de, porque se todo imóvel contíguo é vi-zinho, nem todo imóvel vizinho é contí-

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guo; portanto, o critério hoje é de proxi-midade. E até onde vai a proximidade?Até onde se propagarem os efeitos dochamado ato abusivo, ou ato excessivo -esses serão os limites da chamada pro-ximidade.

E realço também, só para fazermosuma reflexão sobre isso: já se percebeua importância da lei municipal na outor-ga do ato de autorização - atribuição quea lei geral, o Estatuto, deu para ela? Ela,a lei municipal, vai ser a definidora dasatividades e empreendimentos para osquais tenha que haver um estudo espe-cial, uma licença especial como condi-ção para implementação, ou seja, em úl-tima análise, estou vendo aqui o PoderLegislativo Municipal editando indireta-mente normas pertinentes ao direito devizinhança e, conseqüentemente, ao di-reito de propriedade.

Conclui-se: posso dizer que o direitode propriedade é do Direito Civil? Não.Hoje, a propriedade na qual se situa a vi-zinhança, é um direito que a doutrinaeuropéia moderna chama de multidisci-plinar, ou seja, ela recebe a incidência denormas de direito público em relação àsquais a vontade das partes é irrelevante;prevalece o interesse público na ordemurbanística. Mas, de outro lado, tambémimplementa normas dispositivas, que ape-nas possibilitam a chamada convivênciapacífica, a harmonia social.

Uma coisa é certa: se não houveressas normas, a vizinhança nunca vaise compor sozinha. Conhecemos exem-plos dos condomínios verticais, às vezescom cinco ou seis apartamentos, e to-dos os condôminos brigam entre si e nãoconseguem fazer nada. Imagine-se umavizinhança formada por alguns tipos deimóveis onde a propagação dos efeitosdo ato se estenda muito além dos limi-tes da simples contigüidade dos imó-veis verticais... Portanto, dentro do tem-po que me foi dado aqui, estão aí as li-nhas, sinteticamente apresentadas, quemostram a conjugação, a harmonia, amultidisciplina que hoje incidem sobreo direito de propriedade e os direitos devizinhança.

DEBATES

Des. Jessé Torres Pereira JúniorEu vou lhe fazer a indagação desde

logo; em seguida, farei uma breve digres-são que vai explicar as razões da indaga-ção. A indagação é de cabeça de juiz, nosentido de que é a preocupação que euimagino que esteja na cabeça de todoaquele que terá de examinar essas maté-rias nas circunstâncias do caso concretoe decidir os conflitos. A indagação é: o novoCódigo Civil desafia o juiz a exercitar juízode eqüidade, ou a construir o conteúdode conceitos jurídicos indeterminados emmatéria de direitos de vizinhança e políti-ca urbana, ou ambos, conforme o caso?Nos sistemas romano-germânicos, a queo nosso se filia, cabe a eqüidade, típica dosistema anglo-saxão?

Agora, eu vou fazer uma breve jus-tificativa, enquanto você se põe a medi-tar sobre isto. Vemos que a Constitui-ção da República, no artigo 182, dedica-do a definir Política Urbana, estabeleceser esta uma política entregue à execu-ção da competência do Poder PúblicoMunicipal, tendo por objetivo ordenar opleno desenvolvimento das funções so-ciais da cidade, e garantir o bem-estarde seus habitantes. Sempre que a nor-ma faz uso de adjetivações, cria dificul-dades para a aplicação. O que seria “de-senvolvimento pleno”? E o que seria“bem-estar” dos habitantes? Há toda umadoutrinação em torno do sentido dessasqualificadoras.

Mais adiante recapitulamos, hojede manhã, que o artigo 1º da nossa Cons-tituição enuncia, como fundamentos daRepública Federativa do Brasil, entreoutros, a dignidade da pessoa humana,os valores sociais do trabalho e da livreiniciativa, o pluralismo político. Seriamesses os grandes princípios informadoresda nossa República, com repercussõessobre pleno desenvolvimento de funçõessociais da cidade, e sobre a garantia dobem-estar de seus habitantes?

Acabamos de ver, pela exposição doProfessor Carvalho, que os artigos 1.277e seguintes do novo Código Civil fazem

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alusões a numerosas figuras abertas;aludem a “limites ordinários de tolerân-cia”, a “interferências prejudiciais” - oque já reduz, bastante, como mostrou oProfessor Carvalho, a dificuldade quedecorria da expressão “uso nocivo da pro-priedade” mas, ainda assim, temos quedosar esta “prejudicialidade”: prejudici-alidade segundo que padrões, que crité-rios, que parâmetros? A prejudicialida-de seria a mesma num bairro da ZonaSul e na favela da Maré? O bem-estarda população da cidade encerra o mes-mo sentido para os bairros da Zona Nor-te e as favelas?

Adiante, esse mesmo conjuntonormativo trazido pelo novo Código Civilfaz alusão à possibilidade de o vizinhoprejudicado poder exigir a redução da-quelas interferências prejudiciais, mes-mo quando resultarem de decisão judi-cial – está na letra da lei. Quem arbi-tra, quem dosa esta redução? Até queponto vai esta redução? Vejam, eu es-tou fazendo referências mostrando ques-tões que, certamente, serão desafiado-ras, na composição de conflitos concre-tos. Preocupa-me aqui, por exemplo, apossibilidade de o vizinho que se sintaprejudicado pela atividade do outro, emrazão de uma decisão judicial, quererobter esta redução do prejuízo decorrentedessa atividade e o juiz ficar embaraça-do para decidir entre o que está abran-gido pela força preclusiva da coisajulgada e o que não está. Todas essasconsiderações me trouxeram à lembran-ça uma antiga colocação que viemos de-senvolvendo quanto à importância dosprincípios no Direito Contemporâneo. Asnormas tendem a remeter o intérprete,o aplicador, o operador do direito, paraconsiderações principiológicas.

Certa feita, desenvolvi uma idéiaque na ocasião foi muito bem recebida,mas que agora, diante deste quadro denormas recheadas de conceitosindeterminados, talvez perdesse a ex-pressão. Lembram-se de que as gran-des navegações ocorreram, dando origemàs grandes descobertas de um MundoNovo, quando o homem não dominava

uma tecnologia que o impulsionasse comsegurança pelos mares desconhecidos;guiava-se pelas estrelas. Mal comparan-do, a relação entre a norma e o princí-pio saía à relação entre a bússola e aestrela. Se você tem a bússola para con-duzi-lo, e tem a estrela para indicar ocaminho, e se a bússola e a estrela en-trarem em conflito (por um defeito deimantação, a bússola apontar o Norte,quando deveria estar apontando o Sul, ea consulta às constelações indicar queo Sul está na direção oposta àquelaindicada pela bússola), com que orien-tação será que ficariam esses grandesnavegadores da Idade Média? Certamen-te que ficariam com as estrelas. Por isso,a comparação: a norma está para a bús-sola como o princípio para as estrelas. Acomplicação do desdobramento no seuaplicativo ao campo do jurídico, está emque as estrelas não mudam, foram cria-das de uma vez para sempre por um Cri-ador, ou por qualquer outra força, de-pendendo da convicção de cada um, e láestão, fixas, imutáveis, permanentes. Osprincípios acabam sendo obra do enge-nho humano, de toda natureza, de todasorte e, mesmo quando dotados de umaproposição teórica perene, estão sujei-tos a interpretações que vão dando sen-tido histórico e cultural, cambiante, deacordo com o tempo, com a cultura, como espaço – esta é a dificuldade.

Então, diante de todo este quadro,também já ouvi comentários de Eminen-tes Juristas, considerando que o novoCódigo Civil estaria a deixar para o juizo trabalho, o exercício de juízos de eqüi-dade. Tantas são as normas abrindo es-sas figuras de conceitos indeterminados,que o juiz deveria preencher com o seusenso de justiça, e a isso se estaria dan-do o nome de eqüidade - fico em dúvidaquanto a isso, estou transferindo essadúvida para você, Carvalho. Seria isto,efetivamente, juízo de eqüidade? Pelaslições que ainda consigo reter na me-mória, na eqüidade não há a norma, ojuiz cria a norma, por isso a eqüidade -faz o papel substitutivo, porque o siste-ma não prevê a norma, e nem está cal-

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cado nela, a norma não é a sua fonteprimacial: isto é eqüidade.

Se você tem a norma, ainda queestabelecendo figuras abertas, concei-tos indeterminados, de eqüidade não setrata. Estaríamos diante da vetusta fi-gura do conceito jurídico indeterminadoque, embora desafiante, é velha conhe-cida dos juristas; nada de novo debaixodo sol nesse aspecto. Mas, como o novoCódigo Civil é abundante nessas figuras(se tem aqui algumas, dentro dessa nos-sa área: “limites ordinários de tolerân-cia”, “interferências prejudiciais”, “bem-estar da população”, “funções sociais dacidade”) - são conceitos abertos, que de-vem ser preenchidos - se justifica estapergunta que eu agora leio de novo: onovo Código Civil desafia o juiz a exerci-tar juízo de eqüidade, ou a construir oconteúdo de conceitos jurídicosindeterminados em matéria de direitosde vizinhança e política urbana, ou am-bos, conforme o caso? Lembrando, nossistemas romano-germânicos, a que onosso se filia, cabe a eqüidade, que étípica do sistema anglo-saxão?

Dr. José dos Santos Carvalho FilhoEu pretendo, numa síntese de dois

minutos, esclarecer dois pontos: em pri-meiro lugar, eu acho que a colocação doProfessor Jessé tem toda a pertinência.Eu considero que o papel do Magistrado,toda vez que há o enfrentamento comconceitos jurídicos indeterminados, vaiexigir que ele, na verdade, preencha oconteúdo de precisão que o conceito ju-rídico não tem.

Para tratar deste tema, preciseireestudar um pouquinho Direito Civil,propriedade e, ao reler, eu achei umacoisa interessante: nunca poderia ha-ver padrões de objetividade para regulara vizinhança, porque há dois fatores im-peditivos: primeiro, porque se trata deconflitos de interesses de pessoas, comtoda a marca natural de sua heteroge-neidade, quando não antagonismo deinteresses, e de outro, pela variadíssi-ma dinâmica casuística dos fatos quepodem acarretar as chamadas interfe-

rências prejudiciais.Então, do momento em que não há

como estabelecer standards objetivos,que facilitariam muito a atuação do juiz,a mim me parece que o juiz vai, aqui,exercer um papel talvez mais importan-te, que é o de dar concretude ao juízovalorativo, ao caso concreto e, nessemomento – na minha cabeça, com todoo respeito - o juiz, mais do que o intelec-tual do direito, tem que ter sensibilida-de. Ele tem que ter um juízo - eu atévou completar o que o Professor Jessédisse - de eqüidade onde não tem nor-ma; eu vou dizer que é um juízo de razo-abilidade, ou seja, a partir da instaura-ção, hoje reconhecida, do princípio darazoabilidade, e da sua metodologia daproporcionalidade, eu quero acreditarque o papel do juiz se elevou não só emamplitude, como em importância. E, po-deríamos até dizer que quando o juizcompleta concretamente o conteúdo deum conceito indeterminado plurissigni-ficativo, ele está criando uma norma ju-rídica especial para o caso concreto. Eaí, nesse momento é que ele terá quevaler-se dos seus mecanismos de sen-sibilidade jurídica, como disse muitobem o Professor Jessé: de eqüidade, derazoabilidade, de proporcionalidade. Sóassim poderesmos definir “uso anormal”,“interferências prejudiciais”.

Quanto à questão que o ProfessorJessé disse aqui muito bem, do conteú-do do trânsito em julgado na norma (eutambém tive essa dúvida da res judicata)- “Art. 1.279. Ainda que por decisão judici-al devam ser toleradas as interferências,poderá o vizinho exigir a sua redução, oueliminação, quando estas se tornarem pos-síveis” - a única forma que eu encontreide traduzir esse preceito normativo foi,primeiro, supondo que a decisão judicialteve, por conteúdo, apenas o reconheci-mento do direito de utilizar – trata-se,aqui, de “uso normal” e “uso anormal” –a sua propriedade, ou de utilizar umaconduta que cause interferência.

Em outras palavras, o que o juiz de-clarou foi o reconhecimento de que eutenho o dever de tolerar as interferênci-

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as do meu vizinho; isto não quer dizer,ao se reconhecer isso, que eu, ao ter quetolerar, tenha que tolerar coisas maisgravosas. O que a lei está me parecendoquerer dizer é que, embora eu esteja su-jeito a um dever legal imposto judicial-mente, no sentido de tolerar a interfe-rência do vizinho, eu, a meu lado, soutitular também de um direito de exigirque essa interferência seja o menos one-rosa ou gravosa possível, sendo que essedireito de exigibilidade que a lei contem-pla, no meu entender, parte de um pres-suposto: haver possibilidade, porque seeu não tiver a possibilidade de exigir umacoisa menos onerosa, eu vou ter que fi-car com o reconhecimento judicial domeu dever de tolerância.

Há um segundo ponto: essas possi-bilidades podem surgir superveniente-mente, ou seja, o juiz julga hoje, por

exemplo, que eu tenho que tolerar estainterferência. Amanhã, com a nova tec-nologia, eu digo que a interferência podeser um pouco menos gravosa; eu vou,então, exercer o meu direito de apre-sentar outra pretensão (de redução oude eliminação). Sim, porque eu estou como dever de tolerar, mas quem sabe se,amanhã, algum fator novo pode até cri-ar a eliminação da interferência? En-tão, pode ocorrer a solução superveni-entemente. Essa é a razão por que meparece que o legislador completou essetema. Mas, de qualquer maneira, queroaplaudir aqui o meu amigo especial egrande Professor Jessé Torres, pela sen-sibilidade e pela adequação da indaga-ção, que diz bem mesmo do papel impor-tante que o magistrado vai desempenharna concretização desses conceitos plu-rissignificativos..

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Anais do “EMERJ Debate o Novo Código Civil” - 235

I – Do Aparente Conflito de Leisno Tempo

Venho tratar das relações que sepodem estabelecer entre o Código Civile o Código de Defesa do Consumidor.

O primeiro tema a examinar é oaparente conflito de leis no tempo entreos dois diplomas. A questão está em sa-ber se, com a promulgação do Código deDefesa do Consumidor, as relações deconsumo permanecem reguladas intei-ramente pelo Código de Defesa do Con-sumidor, ou se algumas dessas relaçõespodem ser afetadas pelo Código Civil.Para encontrar uma solução, faço algu-mas considerações.

Todos sabemos que a ordem jurídi-ca é um sistema, com condições de de-terminar as regras para a criação e re-produção de normas e assim se auto-alimentar. É um sistema, porque esta-belece a validade dessas normas que sãocriadas ou reproduzidas; e também, por-que diz como será feita a aplicação des-sas normas válidas.

É um sistema aberto, que pode so-frer a influência de valores externos,metajurídicos ou extrajurídicos, que atu-am diretamente sobre ele. Não é um sis-tema fechado, como se estivesse distan-te do que acontece fora desse mundo denormas, que ele mesmo cria e sobre asquais dispõe, mas é algo que sofre, ne-cessariamente, a influência de valoressociais, econômicos, morais, que estãofora dele e sobre ele atuam. MesmoLuhman, que entende ser a ordem jurí-dica um sistema fechado, admite que ele

funciona como se fosse uma bolha, a so-frer alteração no seu contorno, por efei-to de fatores externos que atuam sobrea sua conformação externa. Essa influ-ência externa altera, internamente, oconteúdo e a disposição das normas.

Então, temos um sistema aberto -a ordem jurídica nacional, na qual seinclui o sistema de Direito Privado - emicrossistemas, entre eles o Código deDefesa do Consumidor.

O Código de Defesa do Consumidorregula uma relação específica e temseus princípios e regras. Por um para-doxo nosso, por uma situação muito es-pecial do Brasil, esse microssistema -que normalmente deveria ser influenci-ado pelos princípios do sistema - na ver-dade terminou influenciando o sistemamaior de Direito Privado, porque esteque tínhamos era extremamentedesatualizado, reproduzindo idéias demais de duzentos anos.

Quando surgiu o Código de Defesado Consumidor, em 1990, veio com eleuma nova visão do mundo negocial, e osprincípios que esse Código adotou ter-minaram influenciando a interpretaçãoe a aplicação do sistema civil. Tantoassim que, se observarmos a jurispru-dência depois de 1990, e a própria dou-trina, veremos o quanto a interpretaçãoe a aplicação do Direito Civil mudaramno Brasil à luz dos princípios do Códigode Defesa do Consumidor. Embora esteesteja inserido num microssistema, ter-minou atuando, decisivamente, para in-fluir sobre o próprio sistema.

O Código de Defesa do Consumidorpossui alguns princípios: proporcionalida-

O Novo Código Civil e o Código de Defesado Consumidor

(Pontos de Convergência)

RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIORMinistro do STJ

Palestra proferida no Seminário realizado em 11/04/2003.

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de, publicidade, igualdade, equivalên-cia das prestações, informação, consen-timento informado, defesa do hipossufi-ciente etc., e os usou com certa freqüên-cia, diferentemente do Código Civil, decláusulas gerais.

Agora, surgiu e está em vigor o Códi-go Civil de 2002, que introduz novos prin-cípios e reproduz alguns outros presen-tes na Constituição de 1988. Então, noDireito Civil, para aplicar alguns daque-les princípios que antes só estavam con-sagrados na lei do consumidor, não maisnecessitamos fazer remissão ao CDC, por-que já os temos no próprio sistema.

A primeira idéia que tenho é a de que,no microssistema do direito do consumidor,inserido dentro do sistema maior do Direi-to Privado, devem ser aplicados os princípi-os do sistema. Se fizermos uma distinçãoentre princípios e regras, entendemos queprincípio é o preceito que apreende um cer-to valor e o revela em um enunciado, quehá de servir para a interpretação de outrosdispositivos, e as regras são aquelas nor-mas de conduta reguladoras do comporta-mento e de suas conseqüências dentro doordenamento jurídico.

Pois bem, hoje, os princípios que te-mos no Código Civil podem ser, penso eu,usados e aplicados no microssistema dodireito do consumidor. Se, por acaso, sur-gir conflito entre um princípio do CódigoCivil e outro do Código de Defesa do Con-sumidor, a prevalência há de ser em fa-vor do princípio do Código de Defesa doConsumidor para interpretar e aplicar àrelação de consumo, porque essa rela-ção é específica e há de atender, princi-palmente, aos princípios do microssiste-ma. Assim, por exemplo, o princípio deque a prova é ônus de quem alega, repro-duzido, de um certo modo, no artigo 877do Código Civil, onde está dito que “Àque-le que voluntariamente pagou o indevido in-cumbe a prova de tê-lo feito por erro”, nãoprevalece no âmbito do Código de Defesado Consumidor porque neste admite-se,em tese, a presunção da veracidade daalegação do consumidor.

E com isso chego a uma primeiraconclusão, no sentido de que, no confli-

to entre princípios, aplica-se à relaçãode consumo o do Código de Defesa doConsumidor.

No que tange às regras que enun-ciam condutas e suas conseqüências, atoda relação de consumo aplica-se o Có-digo de Defesa do Consumidor. Porém,se o Código Civil, em vigor a partir de2003, tem alguma norma que especifica-mente regula uma situação de consumo,nesse caso, há de se aplicar a norma doCódigo Civil, isso porque se trata de leimais recente. Como exemplo, lembro asdisposições que temos hoje sobre o con-trato de transporte de pessoas e coisasque integram o novo Código Civil e com-põem um capítulo próprio, não constan-tes do Código Civil de 1916. Ora, todossabemos que o transporte é uma relaçãode consumo estabelecida entre um for-necedor de serviço e um consumidor des-se serviço. Embora o legislador tenha pos-to isso no Código Civil, na verdade, eleestá regulando uma relação de consu-mo, à qual se aplica o Código Civil, não oCódigo de Defesa do Consumidor.

Assim, no art. 740, o novo Códigodispõe sobre a desistência da viagem an-tes de iniciada e garante a restituiçãodo valor da passagem, desde que feita acomunicação ao transportador em tempode a passagem ser renegociada. E, umavez já iniciada a viagem, há a possibili-dade de o passageiro que desiste obter adevolução correspondente ao trecho nãoutilizado, demonstrando que houve arevenda para outro. Também dispõe que,em todas essas situações, tem o trans-portador o direito de reter 5% a título demulta compensatória. Quanto ao trans-porte de coisas, há uma regra que asse-gura o direito de o transportador ser in-denizado – e tem um prazo de 120 diaspara fazer esse pedido – dos prejuízos quelhe causou o proprietário remetente dacoisa, se não avisou dos perigos. É umaregra específica, que estabelece prazo de120 dias para a reclamação.

Essas disposições específicas paraa relação de consumo em caso de trans-porte de pessoas e coisas são aplicadas,penso eu, em detrimento de outra qual-

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quer que possa estar no Código de Defe-sa do Consumidor, por se tratar de umdireito superveniente que veio dispor, demodo específico, sobre uma relação deconsumo. É uma questão de lugar, ten-do o legislador escolhido regular a ma-téria no Código Civil, e não no Código doConsumidor.

Porém, embora em casos tais tenha-mos de aplicar regras do Código Civil asituações específicas de consumo, emdetrimento do Código de Defesa do Con-sumidor, continuam todavia prevalecen-do para elas os princípios gerais do CDC.Portanto, nessa relação de transporte, porexemplo, a questão da prova a respeitodo prejuízo será regulada pelos princípi-os que estão no Código de Defesa do Con-sumidor, e não no Código Civil.

Assim, não se pode dizer que sem-pre se aplica o Código de Defesa do Con-sumidor à relação de consumo, nem éde afirmar-se que o Código Civil revo-gou as disposições do Código do Consu-midor. Os princípios são os do Código deDefesa do Consumidor, as regras são asdo Código de Defesa do Consumidor, sal-vo quando o Código Civil dispuser espe-cificamente sobre uma relação de con-sumo, de que é exemplo o contrato detransporte de pessoas e coisas.

II – Das Cláusulas GeraisTrato, agora, das cláusulas gerais

do Código de Defesa do Consumidor edo novo Código Civil. Sabemos que a clá-usula geral é uma norma que impõe aojuiz o dever de, no momento de fazersua aplicação, determinar previamentequal a norma de conduta que deveriater sido observada naquele caso. Em fun-ção da regra que ele cria para aquelasituação, fará então a avaliação da con-duta em exame. Se essa conduta esti-ver de acordo com a norma de dever,assim criada para aquele caso concreto,ela será considerada lícita; se em desa-cordo, será então ilícita.

O Código Civil de 1916 pouco usoudas cláusulas gerais. Podemos encontrarali o art. 159, que definia o ilícito absolutocomo sendo o ato praticado com negligên-

cia ou imprudência, causador de dano, eatribuía ao autor dessa infração a obriga-ção de reparar o dano. Como o art. 159não disse em que consistia a culpa, emque consistia o descuido que caracteriza-ria a existência da infração, cabia sem-pre ao juiz dizer qual a conduta devidaem cada situação que examinava e, a partirdali, concluir se houvera ou não a infra-ção, se houvera ou não o descuido.

Além dessa disposição do art. 159 –que era uma cláusula geral –, tambémtínhamos a do art. 924, que permitia aojuiz, em certos casos, reduzir a multaaplicada, prevista para o descumprimentodo contrato. O art. 924 foi usado, peloSTJ, como uma cláusula geral para ga-rantir ao promissário comprador a devo-lução do que havia pago, entendendo-seque a retenção pelo promitente vendedorcorresponderia a uma multa, reduzidapara 10 ou 20% do que fora pago. Issoserviu para afastar a cláusula dedecaimento, normalmente prevista noscontratos de promessa de compra e ven-da de imóveis, e amenizar a situação docomprador, ainda que inadimplente. Fez-se do art. 924 uma aplicação extensiva,para permitir a solução de tais casos, peloque poder-se-ia ver, nesse artigo, umaoutra espécie de cláusula geral.

No art. 964 do Código de 1916, so-bre o pagamento indevido, havia uma dis-posição dizendo que: “Todo aquele que re-cebeu o que lhe não era devido fica obrigadoa restituir...”. Essa mesma regra foireproduzida no Código Civil de 2002, noart. 876 que tem, no entanto, uma reda-ção melhor, mais ampla. A regra do enri-quecimento injusto, que garante ao pre-judicado a possibilidade de ser indeniza-do, consta do atual art. 884: “Aquele que,sem justa causa, se enriquecer à custa deoutrem, será obrigado a restituir oindevidamente auferido...”. É uma regrasubsidiária mas, de qualquer forma, estáinserida no nosso Código, para permitir oreequilíbrio em favor daquele que perdeucom o enriquecimento injusto do outro.

Além dessas disposições, poderiaainda mencionar, como cláusula geralno Código de 1916, o art. 1.056, que dis-

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punha sobre a responsabilidade do con-tratante que descumpre o contrato.

Todas essas poderiam ser tidascomo cláusulas gerais, porque permiti-am ao juiz estabelecer a regra de con-duta que, no caso, deveria ser obedeci-da. Mas a verdade é que no Código de1916, ou por despreparo da nossa ciên-cia jurídica, que não sabia como lidarcom esse tipo de norma, ou pordesnecessidade prática de qualquer re-ferência a essa técnica, a cláusula ge-ral não era conceito corrente. Foi o Có-digo de Defesa do Consumidor que in-troduziu a presença da cláusula geralem alguns dispositivos de grande apli-cação a casos práticos, como a hipóteseda cláusula geral da boa-fé e a daonerosidade excessiva.

O Código Civil de 2002 segue commais vigor por esse mesmo caminho, e temvárias cláusulas gerais. Veremos o queestava no Código de Defesa do Consumi-dor com relação a essas cláusulas, o queestá no Código Civil de 2002 e de que modopodemos usar essas disposições – as doCódigo Civil e as do Código de Defesa doConsumidor – na atualidade.

III – Da Boa-FéComeço pela cláusula da boa-fé ob-

jetiva. No art. 4º do CDC está dito que apolítica nacional das relações de consu-mo será harmonizada com a valoraçãodos interesses, de acordo e com base naboa-fé; o art. 51 reza que são nulas ascláusulas incompatíveis com a boa-fé.Enquanto a primeira é uma orientaçãopara o legislador e para o Estado comoum todo, que deve compatibilizar os in-teresses da produção e do consumidorcom base na boa-fé, há a regra específi-ca contratual do art. 51, dizendo sernula de pleno direito a cláusula incom-patível com a boa-fé.

Sobre a boa-fé, o Código Civil de2002 tem disposições mais amplas ecompletas. Como já constavam do Proje-to de 1975, que se transformou no Códi-go de 2002, verificamos que o legisladorcivil de 1975, nesse ponto, foi maisavançado do que o do Código de Defesa

do Consumidor e melhor, até, do que ofoi o de outros países em que se dispôssobre a cláusula da boa-fé.

O artigo 422 do Código de 2002 rezaque “Os contratantes são obrigados a guar-dar, assim na conclusão do contrato, comoem sua execução, os princípios de probida-de e boa-fé”. É uma cláusula geral quedispõe sobre a boa-fé no contrato, emtodos os contratos. A boa-fé objetiva é oprincípio de lealdade que deve orientaras relações humanas, de sorte que to-dos devem permitir sejam realizadas asexpectativas que os outros têm nas re-lações mantidas na vida social, princí-pio ético que preside o ordenamento,está presente e serve de guia para to-das as relações no campo do Direito Pri-vado, e também no âmbito do DireitoPúblico. Diz o art. 422 que esse princí-pio, em se tratando de relaçãoobrigacional, deve ser observado desdea celebração até a execução.

Acrescento eu que o enunciado ain-da admite maior extensão, pois a boa-fédeve estar presente mesmo antes da re-alização do contrato, isto é, já nastratativas, porque é a boa-fé que susten-ta a idéia da responsabilidade pré-contratual. Antes de celebrar o contrato,as partes estão obrigadas umas com asoutras a ser honestas, probas, a não cau-sar danos injustificados, a não criar ex-pectativas inatingíveis, a não frustrar oque legitimamente delas era esperado.Por isso, aquele que inicia uma negocia-ção e sem nenhuma justificativa dela sai,deixando para o outro, que nela acredi-tou, o prejuízo de nele ter confiado, res-ponde pelo dano causado; não é com baseno contrato, uma vez que contratoinexiste, nem na lei, que lei também nãodispõe sobre isso; responde com base noprincípio da boa-fé objetiva, que cria odever de indenizar, antes do contrato.

Há de se entender, também, queessa boa-fé preside as relações mesmodepois de extinto ou de integralmenteexecutado o contrato. Aquele que, de-pois de cumpridas todas as prestaçõescontratadas, frustra as expectativas dooutro, pode ser obrigado a indenizar por

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ter violado o princípio da boa-fé. Quemaliena o seu estabelecimento, entrega obem e recebe o preço, não pode depoisdisso ter conduta contrária ao que delese poderia esperar, de acordo com a boa-fé. Assim, o vendedor de uma mercearianão há de, no dia seguinte, estabelecera mesma mercearia ao lado daquela queele vendeu, porque isso significaria umaconcorrência desleal para com o compra-dor. O ilícito acontece depois de extintoo contrato, independentemente de cláu-sula contratual prevendo essa situação.Quero dizer que a boa-fé objetiva, crian-do obrigações ou limitando direitos, atuaantes, na celebração, na execução, e atédepois de extinto o contrato. O art. 422do CC permite essa interpretação.

O art. 187 diz assim: “Também co-mete ato ilícito o titular de um direito que, aoexercê-lo, excede manifestamente os limitesimpostos pelo seu fim econômico ou social,pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Aquise definiu o abuso de direito como sen-do um ato ilícito e com isso ultrapassa-mos toda uma dificuldade teórica paraconceituá-lo. O conceito de abuso de di-reito acolhido pelo Código não tem ne-nhum elemento intencional. Sabe-se quenossa antiga doutrina apenas admitia oabuso quando demonstrado que o titu-lar do direito excedera-se com a inten-ção de prejudicar terceiro, com o propó-sito maligno de causar dano ao outro.Abandonou-se essa exigência meramen-te subjetiva para se dizer que o abusode direito corresponde ao exercício deum direito além da boa-fé, dos limitesimpostos pelo seu fim econômico ou so-cial, ou pelos bons costumes.

Com isso, a boa-fé é posta no Códi-go Civil como uma couraça de todo oordenamento jurídico para informar quetodos os direitos subjetivos por ele asse-gurados somente poderão ser exercidosno limite da boa-fé, e isso vale para ocontrato, para o Direito Civil de um modogeral, e também para o Direito Público.Essa é, acredito eu, a regra mais impor-tante do Código Civil.

Essas disposições do Código Civilsobre a boa-fé completam as que cons-

tavam no Código de Defesa do Consumi-dor. Por isso, a cláusula geral da boa-féno Código de Defesa do Consumidor eas cláusulas gerais sobre boa-fé no Có-digo Civil podem ser aplicadas comple-mentarmente.

IV – Da LesãoA lesão é um vício que está pre-

sente na celebração do contrato. Se nes-te são estipuladas condições altamentedesvantajosas para uma das partes, háali a possibilidade de existir um vícioque atinge o próprio contrato. É uma idéiaque nos veio do Direito Romano, passoupelo Direito Português, estava na Con-solidação de Teixeira de Freitas, mas foiproibida de ser invocada pelo Código Co-mercial de 1850, e esquecida no CódigoCivil de 1916. Ela ressurgiu no nossodireito pela lei de 1951 sobre a econo-mia popular, que enumerou entre ascausas de nulidade do contrato a usurareal, existente sempre que uma das par-tes obtivesse vantagem superior a 20%do que era corrente ou justo (art. 4o daLei 1.521/51). Mas, nesse caso, somen-te se reconheceria a nulidade se de-monstrado o abuso da situação de ne-cessidade premente, da inexperiência ouda leviandade da outra parte.

O Código de Defesa do Consumidor,no artigo 6º, inciso V, veio retomar a idéiada lesão para permitir a modificação decláusula que estabeleça prestações des-proporcionais, isto é, quando as presta-ções não forem equivalentes. No artigo 51,diz-se que são nulas as obrigações consi-deradas iníquas, abusivas, ou que colo-quem o consumidor em desvantagem exa-gerada. Com isso, o CDC trouxe para onosso sistema aquela idéia presente noantigo direito, de reconhecer a lesão sem-pre que houver, objetivamente, na cele-bração do contrato, uma prestação des-proporcionada (se era de 20%, lesão enor-me; se era de 50%, lesão enormíssima),bastando a simples presença da despro-porção, independentemente do requisitosubjetivo de estar o contratante debaixode necessidade ou sendo explorado em suainexperiência ou leviandade.

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Já o Código de 2002, retornando aoespírito da lei de 1951, introduziu nova-mente, na idéia de lesão, o requisito dapremente necessidade ou dainexperiência, conforme está no art. 157.Nesse ponto, o Código Civil disse menosdo que deveria, e não se aplica essa re-gra à relação de consumo. O juiz civil -para os outros contratos sobre os quaisincide - terá de interpretar a regra doart. 157 do Código Civil - que dispõe so-bre a lesão e impõe o elemento subjetivoda necessidade ou da inexperiência - paraverificar até que ponto, na verdade, vaiser exigida a prova dessa premente ne-cessidade ou inexperiência. A rigor, pen-so eu, ele deverá entender que quem seobriga a uma prestação absolutamente exa-gerada e desproporcionada à situação domercado ou ao que era justo, estava agin-do, presumidamente, por extrema neces-sidade. É o único meio que terá o juiz docível – estou aqui falando não do juiz darelação de consumo, mas do juiz do cívelem geral – de garantir que o contrato sejajusto, naquela idéia de Aristóteles, quan-do nele se entra ou sai com o mesmo, ouentão, nas palavras que ele usou na Éticaa Nicomacos: “O justo no contrato consiste emter um quinhão igual antes e depois da ação”.Caberá ao juiz do cível, portanto, ao inter-pretar o art. 157, dar-lhe uma feição ade-quada à idéia de justiça.

V – Da Onerosidade ExcessivaDiferentemente da lesão, defeito

que está na gênese do contrato, aonerosidade excessiva é a conseqüên-cia de um fato posterior, e surge em ra-zão de fatos ocorridos depois da celebra-ção do contrato. Pode acontecer que, porrazões supervenientes, haja uma alte-ração objetiva da base do negócio, istoé, daquelas circunstâncias objetivas queestavam presentes no momento em queo negócio foi celebrado e em razão dasquais foi feito. A modificaçãosuperveniente vai gerar uma dificulda-de que tornará mais onerosa a obriga-ção a uma das partes.

Não se tratando de contrato instan-tâneo, isto é, aquele que se realiza e se

completa em um momento, quando umdá e outro recebe, mas de contrato queprevê prestações a serem cumpridas emum tempo futuro, seja em razão de exe-cução diferida (prestações mensais nocontrato de compra e venda), seja por-que a execução é continuada ou dura-doura (prestações no contrato de loca-ção, ou no contrato de fornecimento),nesses casos a idéia é a de que deveráhaver, no futuro, quando a prestação viera ser cumprida, a manutenção daque-las bases presentes quando da realiza-ção do negócio. Se houver modificaçãocapaz de colocar uma das partes em si-tuação de grave dificuldade para supor-tar o cumprimento do contrato assimcomo avençado, haverá também a possi-bilidade da modificação daquela presta-ção, ou da própria extinção do contrato.Esse fenômeno é tratado sob diversasdenominações: teoria da imprevisão, daonerosidade excessiva, da alteração dabase do negócio, da pressuposição etc.,mas, na verdade, é uma coisa só, e to-das procuram explicar quais as caracte-rísticas que deve ter esse fatosuperveniente para ter eficácia sobre onegócio já concertado. A questão estáem saber que requisitos deverão estarpresentes para que se aceite a modifi-cação ou a extinção do contrato.

O Código de Defesa do Consumidor,nesse ponto, tem uma regulação objetiva,isto é, basta que ocorra um fatosuperveniente que altere objetivamente oequilíbrio entre as prestações para queseja possível a revisão ou a modificaçãodo contrato (art. 6o, V). Já o Código Civilde 2002 veio dizer, no art. 478 que, nes-ses contratos de execução diferida ou con-tinuada, se a prestação de uma das par-tes se tornar excessivamente onerosa,pode haver a modificação ou a resolução,mas desde que – e aqui impôs dois requi-sitos, que não estão no Código de Defesado Consumidor – haja, em favor da outraparte, uma vantagem exagerada, e desdeque esses fatos sejam imprevisíveis.

Ora, esses dois requisitos que nãoestão no Código de Defesa do Consumi-dor na verdade, a meu juízo, não deveri-

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am estar também no Código Civil. Em pri-meiro, porque esse fato supervenientepode até ser previsível, – no Brasil, a in-flação é um fato previsível –, mas essefato superveniente previsível pode tornarabsolutamente insuportável o cumpri-mento do contrato para uma das partes.Além disso, não faz parte do conceito deonerosidade excessiva, e nunca fez, orequisito da vantagem exagerada da ou-tra parte. A onerosidade excessiva justi-fica uma modificação do contrato ou asua extinção desde que uma das partessofra de forma insuportável; pouco inte-ressa se a outra tenha com isso uma van-tagem, que poderá não ter. Assim, a re-dação do Código Civil, nesse ponto, pe-cou ao introduzir duas condições para aonerosidade excessiva que não deveriamali constar, daí por que há de se aplicarà relação de consumo o disposto no Códi-go de Defesa do Consumidor.

Agora, também acredito - e aqui façouma observação aplicável ao juiz do cívelem geral - que essa disposição do art. 478há de ser interpretada juntamente com oart. 317 do Código Civil para os contratosque não sejam de consumo. Ao dispor so-bre pagamento, o Código Civil disse que,se o juiz verificar ter a prestação perdidoo valor, poderá determinar um reajusta-mento da prestação. Ora, se é possível aojuiz, simplesmente considerando o fato ob-jetivo da desvalorização da prestação, re-compor a obrigação em favor de quem éfeito o pagamento, penso eu que essemesmo princípio há de se aplicar, tam-bém, para quem vai pagar. No caso do art.317, ao que parece, o legislador quis pro-teger o credor, para dizer que ele terá di-reito de solicitar o aumento da presta-ção. Mas essa mesma regra há de funcio-nar, também, atendendo ao princípio deisonomia, em favor do devedor. Com isso,poderemos conciliar essas duas disposi-ções do Código Civil para afirmar que bas-tam os dados objetivos para que, com basena modificação superveniente das circuns-tâncias, tornando a prestação exageradaou desvalorizada, seja feita a alteraçãodo contrato.

VI – Da Redução da Cláusula PenalEstou retornando ao tema da re-

dução da cláusula penal do art. 924 doCódigo Civil porque é uma regra impor-tante, que permite seja aplicada, a títu-lo de redução da multa, a todas as situ-ações em que o devedor inadimplentepede a extinção; obtendo-a, a reduçãoda cláusula penal que previa a perda dasprestações garante ao devedor a devolu-ção de uma parte do que pagou. A regrado art. 924 está reproduzida no art. 413do Código Civil de 2002, e com maioramplitude, isto é, agora está dito clara-mente que o juiz poderá reduzir a multaimposta toda vez que ela se mostrarmanifestamente excessiva, independen-temente da proporção de cumprimentoda obrigação, como estava no Código re-vogado (art. 924), e com isso estará au-torizando o comprador a receber a resti-tuição de uma parte do que pagou, por-que a multa, que corresponderia à per-da total, é excessiva. Por isso, penso, odisposto no art. 413 do Código Civil apli-ca-se também à relação de consumo.Essa observação tem pertinência porqueno art. 53 do Código de Defesa do Con-sumidor havia o parágrafo 5º, que vinhaexpressamente dispor sobre a possibili-dade de o devedor inadimplente reterou receber de volta aquilo que havia pagona execução do contrato que, depois, elenão conseguiu cumprir. Essa disposiçãofoi vetada. Portanto, no âmbito do Códi-go de Defesa do Consumidor, o compra-dor ficou desprotegido em tal hipótese.Com a interpretação que se propõe queseja dada ao disposto no art. 413 do Có-digo Civil, esse artigo deverá ser aplica-do em favor do consumidor, pois o CCconcede mais que o CDC.

VII – Da Desconsideração da PessoaJurídica

A desconsideração da pessoa jurí-dica não estava prevista no Código Civilde 1916, mesmo porque o seu art. 20consagrava a absoluta separação entrea pessoa física e a pessoa jurídica. Essaregra do art. 20 não está reproduzida noCódigo Civil de hoje, e o Código de Defe-

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sa do Consumidor, no art. 28, tem umaregra amplíssima a respeito da respon-sabilidade dos sócios quando, na dire-ção ou na administração da sociedade,tenham agido contra o contrato e/oucontra a lei, causando dano ao consu-midor ao administrar mal a empresa,levando-a à insolvência ou à falência.

Sobre a desconsideração, o CódigoCivil traz uma regra específica no art.50, no sentido de que a desconsideraçãoda pessoa jurídica será possível em duassituações: quando demonstrado ou o des-vio da pessoa jurídica ou a confusãopatrimonial entre os sócios e a socieda-de. Portanto, apenas nesses dois casosé que o Código Civil permite adesconsideração. As hipóteses previstasno Código de Defesa do Consumidor, naverdade, acredito, são apenas hipótesesde extensão da responsabilidadepatrimonial da sociedade que se passaaos sócios, não sendo, propriamente,uma situação de desconsideração dapessoa jurídica.

A desconsideração da pessoa jurí-dica ocorre, no caso de desvio, quandoaquele ato praticado pela pessoa jurídicaé, em si, lícito, mas é ilícito se pensar-mos que foi praticado para encobrir o atodo sócio. Isto é, ao ver-se o ato da pessoajurídica, ele é lícito; visto como sendoum ato do sócio, é ilícito. Nesse caso, apessoa jurídica é usada para encobrir oato ilícito do sócio, desviando a sua fina-lidade. Em tal circunstância, é possívelafastar a pessoa jurídica para atingir osócio que, na verdade, estava praticandoo ato. O exemplo clássico é daquele que,estando proibido de exercer uma certaatividade como pessoa física, constituiuma pessoa jurídica e por ela pratica oato que a ele não era permitido.

Também se tem a desconsideraçãoda pessoa jurídica quando já não há aseparação entre o patrimônio dela e odos sócios, distinção que é a razão deser da pessoa jurídica. Então, estou di-zendo e concluindo que as disposiçõesdo Código de Defesa do Consumidor so-bre a desconsideração da pessoa jurídi-ca, na verdade, não são hipóteses de

desconsideração, mas de extensão deresponsabilidade por atos ilícitos dosadministradores - regra que nós já tí-nhamos na lei que tratava da sociedadede responsabilidade limitada - e que ashipóteses de desconsideração que estãono Código Civil também se aplicam emfavor do consumidor.

VIII – Da Responsabilidade CivilTocante à responsabilidade civil, devo

fazer duas observações: uma é sobre aresponsabilidade objetiva, outra é quantoà indenização do dano moral.

No que diz com a responsabilidadeobjetiva, as disposições do Código deDefesa do Consumidor atribuem essaresponsabilidade ao fornecedor. No novoCódigo, há duas novas regras, que tam-bém dispõem sobre responsabilidade ob-jetiva: a do art. 927, que atribui a res-ponsabilidade objetiva a todo aquele quenormalmente exerce uma atividade pe-rigosa e em razão disso causa um dano,e a regra do art. 931, que atribui a res-ponsabilidade objetiva ao empresário quepõe em circulação um produto, isto é,um bem ou um serviço e que, em razãodessa circulação, haja dano.

A norma do art. 927 dispõe sobreresponsabilidade por ato ilícito; ilícitoabsoluto, independentemente de contra-to, daí por que, de um modo geral, nãoterá também aplicação na relação de con-sumo que, em princípio, pressupõe a exis-tência da relação contratual (tirante oscasos de responsabilidade pré-contratu-al). A outra norma, a do art. 931, queatribui responsabilidade ao empresárioque põe em circulação produtos, não seaplica à relação de consumo, porque aprópria disposição legal esclarece que elaserá usada se não houver disposição es-pecífica de outra norma. Como temosuma legislação específica para o consu-mo, ela em princípio não se estende àrelação de consumo.

IX – Da Valoração do Dano MoralEm primeiro lugar, esclareço que

trato sob a denominação de dano moralo dano extrapatrimonial, e mantenho

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essa designação porque assim constouna Constituição e tem sido com certauniformidade usado na doutrina e najurisprudência.

Cuido da valoração do dano moralpor ser assunto cada dia de maior inte-resse para nossa sociedade. E ainda por-que a experiência do foro revela que asações de indenização por descumprimen-to de contrato (na sua grande maioria,contratos de consumo) incluem um pedi-do de reparação do dano material, cor-respondente ao dano emergente ou aolucro cessante, facilmente aferíveis, eoutro, de reparação do dano moral, quecorresponderia ao dano sofrido pelo con-sumidor com a frustração pelo inadim-plemento do fornecedor, causa de trans-tornos e aborrecimentos. Na verdade,essa segunda parcela (que não se incluinos danos emergentes e nos lucros ces-santes) contém também um aspecto quenão é só moral, e que consiste na faltada prestação em si, que deixa de se in-corporar ao patrimônio jurídico do con-sumidor. Isto é, os consumidores que so-frem os efeitos do descumprimento ou documprimento imperfeito do contrato têmobtido indenização por esse fato não a tí-tulo de dano material, que existe e queresulta do simples inadimplemento, mascomo se fora uma reparação ao dano mo-ral. Com isso, o dano moral passou a serusado como vocativo para a definição deprejuízos causados pelo descumprimen-to de um contrato. Toda vez que um cida-dão compra um automóvel defeituoso, elepede a restituição do numerário ou asubstituição por um outro veículo, e ain-da a reparação do “dano moral”, a signi-ficar que ele está querendo é ser indeni-zado pelo mais que lhe resultou do des-cumprimento do contrato.

Por isso, o dano moral é algo muitoimportante para o dia-a-dia do nosso foro,e traz consigo uma terrível dificuldade:a avaliação desse dano. Não temos leisque estabeleçam critérios ou parâmetrospara a fixação de dano; todas as disposi-ções legais que tínhamos quanto à in-denização por danos morais foram afas-tadas depois da Constituição de 1988,

que veio garantir a indenização pelo danomoral. Com essa regra, o nosso Tribu-nal passou a entender que não existemais nenhuma limitação legal, nem dalei de imprensa, nem da lei de teleco-municações, nem do Código Penal, como que o juiz, o advogado e a parte fica-mos com a dificuldade de avaliar o danomoral. Penso que esse critério é, paratodos os casos, a eqüidade.

X – Da EqüidadeNo Código Civil, no capítulo que tra-

ta da indenização, no art. 944, parágra-fo único, o legislador assevera que: “Sehouver excessiva desproporção entre a gra-vidade da culpa e o dano, poderá o juiz re-duzir, eqüitativamente, a indenização”. Re-feriu-se, portanto, à eqüidade. E depois,no art. 953, quando tratou da injúria eda indenização pelo dano por ela causa-do, disse que, se a parte não conseguirprovar o dano material - o que normal-mente acontecerá, porquanto é muitodifícil que da injúria decorra dano ma-terial -, o juiz fixará a indenização eqüi-tativamente. Há, pois, nesse mesmo ca-pítulo, duas referências à eqüidade.

Em razão disso, o conceito de eqüi-dade é, no meu entender, o parâmetroque o legislador forneceu ao juiz para afixação da indenização do dano moral.

Segundo Aristóteles, a eqüidade fazparte da idéia geral de justiça, como sinô-nimo de moral, de virtude. A eqüidade vaialém da lei, porque ela procura garantir aaplicação do espírito da lei. São Tomásafirma que a eqüidade não é contra o jus-to em si, mas contra a lei injusta; quan-do ao juiz é permitido o uso da eqüidade,ele pode ir além da lei, para garantir aaplicação do justo. O direito, que é obrada justiça para estabelecer uma relaçãode igualdade entre as partes, na justa pro-porção do que cabe a um e a outro, permi-te ao juiz aplicar a eqüidade.

Para aplicar a eqüidade ao caso con-creto, no sentido de que é preciso afas-tar a lei injusta para obter a aplicaçãodo princípio de justiça, disse o filósofoque o juiz deve usar a régua dos arqui-tetos de Lesbos, flexível e maleável, que

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permite ao engenheiro, no medir o obje-to, acompanhar os contornos desse obje-to. Essa, diz ele, é a régua da eqüidade.Essa é, acredito com firmeza, a régua dojuiz, pois sempre que tratar de aplicar alei, deve usar uma régua que lhe permi-ta ajustar a sua decisão à hipótese emexame, ajustá-la àquela situação, parafazer a justiça do caso concreto. Nessesentido, a eqüidade é um princípio e umatécnica de hermenêutica, sempre presen-te em toda a aplicação da lei.

Mas essa eqüidade a que se refereAristóteles na Ética a Nicômacos é aeqüidade corretiva, aquela que o juiz vaiaplicar quando tiver a necessidade deafastar uma injustiça que resultaria daaplicação estrita da lei. E é a essa eqüi-dade que se refere o legislador quando,no art. 944, parágrafo único, diz que ojuiz poderá, quando o grau de culpa forpequeno e a extensão do dano muitogrande, fazer uma correção para deixarde aplicar a regra geral constante docaput, de que a indenização há decorresponder à extensão do dano. Podeo juiz afastar essa disposição para ade-quar uma indenização que seja mais jus-ta em razão do grau da culpa do agente– é uma eqüidade corretiva.

Além dessa eqüidade, ou além des-sa função que se dá à eqüidade,Aristóteles, na Retórica, disse que,quando houver um vazio ou uma lacunana lei, pode o juiz também usar da eqüi-dade, não no sentido de que ele vá criaruma norma, como se fosse o legislador,para resolver aquele caso (como equivo-cadamente estava no art. 114 do Códigode Processo Civil de 1939, que atribuíaao juiz, na lacuna da lei, criar uma nor-ma como se ele fosse o legislador e, combase nessa norma, dispor para o caso).A eqüidade como supridora de lacuna,essa eqüidade integradora que o juiz vaiusar no vazio da lei, não funciona dessemodo, mas sim no sentido de que, nes-ses casos, o juiz parte especificamentedas circunstâncias que está enfrentan-do e, a partir delas, chega a uma con-clusão, independentemente da necessi-dade de criar nova norma. A regra do

art. 953, parágrafo único, do Código Ci-vil permite ao juiz o uso da eqüidadeintegradora, suprindo a lacuna a respeitode qualquer critério para a estipulaçãodo dano moral decorrente da injúria.

Seja para arbitrar o valor da indeni-zação pelo dano moral com o uso da eqüi-dade corretiva (diminuir o valor que seriade outro modo mais elevado), seja para fazê-lo por meio da eqüidade integradora (pre-encher o vazio com o uso da eqüidade), deveo juiz procurar expressar, na fixação da in-denização, aquilo que corresponda à idéiade justiça presente na sua comunidade,que satisfaça à consciência média da so-ciedade para a qual se dirige a sentença eonde convivem autor e réu. Por isso, serásempre um juízo fundamentado, com aexplicitação das razões pelas quais ele che-gou àquela conclusão.

As regras da eqüidade do CódigoCivil, para a avaliação do dano moral,são aplicáveis às relações de consumo.À falta de outro critério, é o único que alei nos fornece para esse arbitramento.

XI – Dos JurosOutro tema que está no Código Ci-

vil e interessa também ao Direito doConsumidor diz com os jurosremuneratórios e moratórios. Tínhamosregras do Código Civil que estabeleciamcritérios para a taxa de juros, e depoisveio a Lei de Usura de 1933, estabele-cendo como limite máximo de juros 12%a.a. Mais tarde, tivemos a Lei 4.595/64,que regulou o sistema bancário e per-mitiu ao Conselho Monetário Nacionallimitar juros, regra que o Supremo Tri-bunal Federal interpretou como sendo apossibilidade de o Conselho MonetárioNacional ir além do limite, interpreta-ção expressa na Súmula 596, até hojeaplicada.

O Código Civil trouxe duas regrasa respeito de juros: a do art. 591, sobreos juros remuneratórios (aqueles que sãodevidos pelo uso do capital), no qual seestabelece que eles não podem excedera taxa que a Fazenda Nacional aplicaaos contribuintes pela mora no pagamen-to de impostos, e a regra do art. 406,

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sobre os juros moratórios (devidos de-pois do vencimento), que permite sejameles convencionados, e se por acaso nãoo forem, terão o limite dos cobrados pelaFazenda Nacional. A situação que se põe,então, é a seguinte: os juros remunera-tórios, que devem ter um limite do qualnão podem exorbitar, e os moratórios,que devem ter o mesmo limite se nãoconvencionada outra taxa, devem aten-der a que limite? Ao da taxa Selic?Quando se realizou a Jornada de Direi-to Civil promovida pelo Conselho da Jus-tiça Federal, em Brasília, há pouco tem-po, decidiu-se que essa taxa Selic (quecompreende, além de juros, também acorreção monetária) não pode ser usadacomo critério para fixação da taxa de ju-ros. Com isso, poderia, talvez, ser apli-cada uma outra regra do Código Tribu-tário Nacional, que estabelece um limi-te de juros de 12% ao ano? A verdade éque essa questão, de se saber qual o cri-tério a ser usado para definir a taxa dejuros remuneratórios, está em aberto.Mas tem grave repercussão no foro, umavez que a conta de liquidação judicial,que antes incluía juros moratórios de0,5% ao mês, hoje deve ser elaboradaatendendo ao disposto no novo Código,isto é, incluir a taxa aplicada pela Fa-zenda Nacional. Enquanto não criado umíndice que contemple apenas juros emfavor da Fazenda Nacional, pode ser ado-tado o quantitativo do CTN, ou a Selic,descontada a inflação.

XII – Dos PrazosPor fim, uma breve observação a

respeito da lei no tempo. Em princípio,os contratos têm sua validade regulada

pela legislação anterior, e os seus efei-tos, determinados pela legislação nova(art. 2.035). Os prazos serão os da legis-lação antiga, quando reduzidos pelo Có-digo de 2002, se na data de sua entradaem vigor já houver transcorrido mais dametade do tempo estabelecido na leirevogada. Quer dizer, se nós tínhamosum prazo de vinte anos e já transcorre-ram mais de quinze, aplica-se a lei ve-lha; se tínhamos um prazo de dez anose passaram-se apenas quatro, aplica-se,a partir dali, o prazo da lei nova.

Isso tem um certo interesse para oCódigo de Defesa do Consumidor, por-que a ação de reparação de dano, cujoprazo prescricional, pelo Código de 1916,era de vinte anos, pelo novo Código Civilpassou a ser de três anos, enquanto apretensão indenizatória prevista no Có-digo de Defesa do Consumidor tem a suaprescrição em cinco anos. Pergunto seessa disposição nova do Código Civil, quereduz o tempo de prescrição da preten-são indenizatória para três anos, tam-bém se aplica à relação de consumo.Acredito que, em razão de suaespecificidade, que se denota inclusivepela regra própria sobre o início de suacontagem, mantém-se para o cálculo daprescrição da pretensão de reparação dodano causado ao consumidor a regra doCDC, permanecendo o prazo de cincoanos. Quanto aos prazos de decadência- que significam a extinção do direitoformativo ou potestativo de reclamar oude algum modo protestar -, continuamregulados no Código de Defesa do Con-

sumidor, no art. 26..