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LEITURAS INTERDISCIPLINARES SOBRE RACISMO:QUARTO DE DESPEJO

DE CAROLINA MARIA DE JESUS

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Anais do VI Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & LiteraturaLEITURAS INTERDISCIPLINARES SOBRE RACISMO: QUARTO DE DESPEJO

SÉRIE CONGRESSOS, N. 6

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG)

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DA UFMG

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA DA UFMG

FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE MINAS GERAIS (FAPEMIG)

CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DE MINAS GERAIS

COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR

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CONGRESSO NACIONAL DE PSICANÁLISE, DIREITO E LITERATURA (6.: 2017:Belo Horizonte). C749 a Anais do VI CONPDL, 20, 21 e 22 de setembro de 2017, Belo Horizonte [ recurso

eletrônico]: leituras interdisciplinares sobre racismo – quarto de despejo / Coordenaçãogeral por Fábio Roberto Rodrigues Belo. [realização UFMG – Universidade Federal deMinas Gerais] ̶ Belo Horizonte: Ami Comunicação & Design, 2017.

406p. Il. Serie Congressos, n. 6

Apoio da UFMG, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Psicologia, CRP, FAPEMIG, CAPES.

Inclui Referências ISBN: 978-85-68483-34-3

1. Racismo – denúncia. 2. Quarto de despejo. 3. Violência. 4. Psicanálise. 5. Raça. 6.Exclusão social. I. Belo, Fábio Roberto Rodrigues. II. Título CDU 323.12

CDD 301.451 _____________________________________________________________________________

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© 2017. Congresso Nacional de Psicanálise, Direito & Literatura

É permitida a reprodução parcial ou total, desde que citada a fonte.

COORDENAÇÃO GERAL

Fábio Roberto Rodrigues Belo

COMISSÃO ORGANIZADORA

Bárbara Bastos Borges

Carlos Rohrmann

Daniel Bruno dos Reis

Érica Silva do Espírito Santo

Fábio Roberto Rodrigues Belo

Franz Galvão

Heloísa Moura Bedê

Hellen Karlla de Campos

Jhonatan Jeison de Miranda

Julinéia Soares

Laura Alves de Oliveira

Lucas Fernando de Carvalho Grossi

Marcela Maria Santos

Mariana Rúbia Gonçalves dos Santos

Marina Maciel Almeida

Michelle Aguilar Dias Santos

Raissa de Matos Ribeiro

Suellen Ananda Fraga

Thalita Rodrigues

Vanessa Biscardi Matos

Walef Batista Pereira

PRODUÇÃO, DISTRIBUIÇÃO, INFORMAÇÕES

Fábio Belo

E-mail: [email protected]

Homepage: www.conpdl.com.br

COMITÊ CIENTÍFICO

Aline Alves Arruda

Cristiane Felipe Ribeiro de Araujo e Cortes

Daniel Bruno dos Reis

Hellen Karlla de Campos

Jozeli Rosa Souza

Julinéia Soares

Laura Alves de Oliveira

Mariana Séptimo

Maria Thereza da Silva Pinel

APOIO

CRP-MG

FAPEMIG

FUNDEP

CAPES

UFMG

EDITORAÇÃO

Daniel Bruno dos Reis

Fábio Roberto Rodrigues Belo

Jhonatan Jeison de Miranda

REVISÃO DE NORMAS

Letras e Normas - Revisão de textos e

normalização ([email protected])

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

Amí Comunicação & Design

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As leitoras e os leitores têm agora acesso virtual e permanente aos Anais do VI Congresso

Nacional de Psicanálise, Direito e Literatura (CONPDL). O evento ocorreu no auditório do

CAD II, na Universidade Federal de Minas Gerais, nos dias 20, 21 e 22 de setembro de 2017.

O VI CONPDL teve como tema “Leituras interdisciplinares sobre o racismo: Quarto de

Despejo, de Carolina Maria de Jesus”.

Como nas versões anteriores, o VI CONPDL contou com a presença de pesquisadoras(es) das

três áreas que sustentam este projeto: a Psicanálise, o Direito e a Literatura. Os textos aqui

reunidos apresentam esta perspectiva interdisciplinar e possibilitam uma leitura plural sobre

um tema urgente em nosso país.

Os vídeos com a apresentação de alguns destes textos estão também de forma permanente,

pública e gratuita no canal do CONPDL no YouTube.

Esperamos que a discussão sobre o racismo nos auxilie na luta contra essa violência. Nós,

da comissão organizadora do CONPDL e também componentes do grupo de pesquisa

“Psicanálise e Política”, acreditamos que através de iniciativas dialógicas e públicas como este

evento podem fazer incidir, no um a um, de cada sujeito, o elemento de resistência e combate

a este tipo de injunção perversa (como o racismo) presente em nosso laço social.

A obra de Carolina Maria de Jesus é exemplar, a um só tempo, do horror sofrido por ela,

efeito da perversão racista, e também de alguma possibilidade de resistência. Dedicamos os

trabalhos aqui reunidos à memória desta escritora que nos convidou a conhecer seu “quarto

de despejo”.

Agradecemos pelo imprescindível apoio recebido nesta edição do CONPDL: à UFMG, à

Faculdade de Filosofia de Ciências Humanas, ao Departamento de Psicologia, ao CRP, à

FAPEMIG e à CAPES.

PROF. DR. FÁBIO ROBERTO RODRIGUES BELO

Professor de Psicanálise – Departamento de Psicologia – UFMG

Organizador geral do CONPDL

Coordenador do grupo de pesquisa CNPq – “Psicanálise e Política”

APRESENTAÇÃO

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SUMÁRIO

DO SILÊNCIO À DENÚNCIA, DA DENÚNCIA AO

TESTEMUNHO, DO TESTEMUNHO À CRIAÇÃO:

CAMINHOS DE ANÁLISE

Maria Lúcia Miranda Afonso

QUARTO DE DESPEJO COMO IMAGEM DA HISTÓRIA DA

PSICANÁLISE: O CASO VIRGÍNIA BICUDO

Patrícia Mafra de Amorim

Luiz Eduardo de V. Moreira

UMA FIGURAÇÃO DE AUTORIA

PARA CAROLINA MARIA DE JESUS

Luciene Azevedo

CONSTITUIÇÃO NARCÍSICA, RACISMO E MANEJO NA

CLÍNICA PSICANALÍTICA

Marina Almeida

Marcela M. Santos

Vanessa Biscardi Matos

A DIFERENÇA É A COR: O RACISMO COMO CÓDIGO

MITO-SIMBÓLICO A SERVIÇO DO RECALQUE EM

QUARTO DE DESPEJOFernando Cézar Bezerra de Andrade

RAÇA COMO CÓDIGO TRADUTIVO: UMA LEITURA

DE QUARTO DE DESPEJO

Fábio Belo

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O CORPO DESPEJADO: NOTAS SOBRE A EXPERIÊNCIA

URBANA NA CONTEMPORANEIDADE

Fernanda Canavêz

NÃO MAIS PARIRÁS COM DOR: INVERSÃO DO ÔNUS

DA PROVA NOS CASOS DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Bruna Di Fátima de Alencar Carvalho

A ATUALIDADE DE QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE UMA FAVELADA: REFLEXÕES SOBRE GÊNERO, RAÇA,

SEXUALIDADE E CLASSE NO BRASIL

Elisa Hipólito do Espírito Santo

Carolina Nunes Diniz

O USO DOS APARATOS DA SOCIEDADE

INTERNACIONAL PELOS GUARANI-KAIOWÁ

Heitor Maciel Cardoso

André de Sousa Ladeira

ESPAÇOS DE DESPEJO: REMOÇÃO E DESPEJO

ENQUANTO POLÍTICA DE ABANDONO

Taís Freire de Andrade Clark

EXCLUSÃO SOCIAL E INVISIBILIDADE:

DESDOBRAMENTOS TRAUMÁTICOS DO RACISMO

Camila Peixoto Farias

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RACISMO, FOME, TESTEMUNHO E HUMOR:

SOBRE QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE UMA

FAVELADA, DE CAROLINA MARIA DE JESUS

Daniel Kupermann

Karla Patrícia Holanda Martins

NEGRAS ROSAS DO MORRO: UMA REFLEXÃO

SOBRE AS VIDAS E CORPOS QUE HABITAM

O SALGUEIRO, DE LÚCIO CARDOSO

Diogo Andrade de Lima

VIDA NUA EM QUARTO DE DESPEJOMarília Novais da Mata Machado

RELATAR A SI MESMO: DA ESCRITA DO EU COMO

PERFORMANCE LITERÁRIA E INSCRIÇÃO NARCÍSICA EM

QUARTO DE DESPEJO – DIÁRIO DE UMA FAVELADA, DE

CAROLINA MARIA DE JESUS

Jacqueline Oliveira Leão

Fábio Roberto Rodrigues Belo

RACISMO INSTITUCIONAL:

DA FAXINA ÉTNICA A VIOLÊNCIA NA CIDADE

DE SÃO PAULO NOS ANOS DE 2010 A 2017

Monica Abud Perez de Cerqueira Luz

PSICANÁLISE, RACISMO E O ENCARCERAMENTO

DA JUVENTUDE NEGRA: QUESTÕES PARA

O SISTEMA SOCIOEDUCATIVO

Elisa de Santa Cecília Massa

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A SAÚDE MENTAL NAS OCUPAÇÕES HABITACIONAIS

URBANAS: (IM) POSSIBILIDADES DE INCLUSÃO SOCIAL

Ana Carolina Santos Miranda

Ana Paula Silveira Rodrigues

Cláudia Natividade

Elaine Cristina Pereira Ferreira da Silva

Fernanda de Cássia Barbosa

Flávia Gotelip Corrêa Veloso

Josiane Feliciano dos Santos

Macária Gomes Aroucha

ENTRE A NECESSIDADE E A FALTA: HÁ LUGAR PARA

A PSICANÁLISE NOS QUARTOS DE DESPEJO?

Anamaria Silva Neves

Giovana Leão C. Teixeira

Bruno Castro Ribeiro

ESCRITA DE SI E ARQUIVAMENTO DO EU

EM CAROLINA MARIA DE JESUS

Natália Vieira Pelegrino

PRÁTICAS RACISTAS EM CENAS DE ADOÇÃO:

UMA QUESTÃO DO DESEJO?

Tatiana Oliveira Moreira

Giovanna Marafon

AS POSSIBILIDADES DAS CARTAS PARA COMPREENSÃO

DO SUJEITO DE ENUNCIAÇÃO E SUJEITO DO ENUNCIADO

NAS CARTAS DA CAROLINA MARIA DE JESUS

Danielle Stephanie de Oliveira

OS DISCURSOS MACHISTAS, RACISTAS E

CONTRADITÓRIOS DE CAROLINA MARIA DE

JESUS EM “QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE

UMA FAVELADA”

Regina Augusta Ribeiro Pinto

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RELATAR A SI MESMO ATRAVÉS DA PSICANÁLISE:

UMA POSIÇÃO DA PROPOSTA ANALÍTICA DE RECUSA

ÀS MAQUINARIAS DE REPRESSÃO RACIAL

Walef Batista Pereira

SOBRE OS EFEITOS DO RACISMO:

INTERLOCUÇÕES DA CLÍNICA PSICANALÍTICA

E A LITERATURA TESTEMUNHAL

Raissa de Matos Ribeiro

Paula Paim de Almeida Lana

DIREITO À FANTASIA: UMA INVESTIDA CONTRA

O “DIÁRIO DE UMA FAVELADA”, DE CAROLINA

MARIA DE JESUS

Valeria Rosito

TEORIA E SUBLIMAÇÃO: A EXCLUSÃO

E A POSSIBILIDADE DE SER SUJEITO

Daniel Bruno dos Reis

PSICANÁLISE E ANTISSEMITISMO: DO MITO DO JUDEU-

SATÃ À ALTERIDADE DO PULSIONAL

Sarug Dagir Ribeiro

AS DIMENSÕES ÉTICA E POLÍTICA DO TRABALHO

PSICANALÍTICO EM UM HOSPITAL NO CONTEXTO

DO ATENDIMENTO AO SUJEITO NEGRO VÍTIMA DE

VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL

Marcela Ribeiro Lima Sant’Ana

Michelle Karina Silva

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DIÁLOGO E DIFERENÇA COM A TRADIÇÃO

NA OBRA DE CAROLINA

Rafael Guimarães Tavares da Silva

DESMENTIDO E TRAUMA NA CENA SOCIAL:

EFEITOS SOBRE A CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA

E VIAS POSSÍVEIS DE ELABORAÇÃO

Mariana Rúbia Gonçalves dos Santos

VIRGÍNIA LEONE BICUDO: UMA PIONEIRA DA

PSICANÁLISE BRASILEIRA

Érica Silva do Espírito Santo

Jhonatan J. Miranda

Julinéia Soares

Marcus Vinicius Neto Silva

Olívia Loureiro Viana

VIDAS DE CAROLINA MARIA DE JESUS

Antonio Marcos Pereira

QUARTO DE DESPEJO E A COMPULSÃO À REPETIÇÃO DA

REALIDADE NA VIDA DE MULHERES NEGRAS E POBRES

Julinéia Soares

O DIREITO E A ASCENDÊNCIA DO RACISMO COMO

FORMA DE MANIPULAÇÃO: REFLEXOS NO PODER

JUDICIÁRIO BRASILEIRO.

Cláudio Luiz Gonçalves de Souza

UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE

CAPITÃO AMÉRICA E RACISMO

Marcus Vinicius Neto Silva

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autoria

resumo

MARIA LÚCIA MIRANDA AFONSO

Psicóloga. Professora do Programa de Pós Graduação em Gestão Social, Educação e

Desenvolvimento Local, no Centro Universitário UMA. Mestre e Doutora em Educação pela

Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Pós-doutora em Psicologia Social pela UFSJ.

CONTATO: [email protected]

Neste artigo busco discutir alguns aspectos da clínica psicanalítica com pessoas negras,

levando em conta tanto os efeitos do racismo sobre o psiquismo quanto a capacidade dos

sujeitos de resistir aos processos de sociais de sujeição e despersonalização. Abordo o

racismo nas suas dimensões do ódio do outro aliado ao ódio de um si mesmo subjugado.

Discuto processos que se constroem na clínica: o silêncio que se rompe dando lugar à

queixa, porém a queixa é também denúncia. É preciso ouvir a denúncia para que ela passe ao

testemunho, um trabalho narrativo de onde surgem sentidos, abrangendo uma experiência

que envolve corpo e psiquismo. É da criação que se fazem caminhos, a capacidade de resistir

ao racismo, de se reconhecer como agente ativo no mundo e a reinventar outras formas de

relacionamento pessoal e político.

PALAVRAS-CHAVE: clínica, racismo, sujeitos negros, testemunho, criação.

Do silêncio à denúncia, da denúncia ao testemunho, do testemunho à criação: caminhos de análise

SUMÁRIO

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15INTRODUÇÃO

Gostaria de começar contando dois casos, que foram significativos para a minha visão das ações contra

o racismo.

Certa vez, estando uma analisanda em intenso processo de relatar as discriminações racistas a que era

submetida, dei a ela – que também é da área de Humanas – o texto “Da cor ao corpo – a violência do

racismo” (Costa, 1983) que, para mim, é uma rica análise do processo de sujeição psíquica que o racismo

pode provocar. Na semana seguinte, ela retornou vivamente indignada com o texto. “Não”, ela disse,

“o negro não é assim tão subjugado”. Isso é apenas um lado da história. E ela me fez ver que há outros

processos psíquicos implicados no racismo, que envolvem resistências e que os negros nem sempre

cedem à ideologia do embranquecimento, ou se deixam calar: há busca pelo próprio valor, pelo amor

próprio, por outras identificações e identidades. Prontamente acolhi a sua indignação e me abri para

aprender com ela e melhorar a minha escuta. E, embora o texto não tenha sido bem aceito, houve um

trabalho emocionante na análise.

Há alguns anos, eu tinha passado por uma experiência semelhante, quando fui convidada, como psicóloga

social, a discutir o livro Pele negra, máscaras brancas, de Fanon (2008), cuja 1ª edição em português data

de 1963, em um coletivo de pessoas negras. Psiquiatra que se implicou na resistência argelina pela

independência do país, Fanon faz uma crítica radical ao colonialismo e denuncia as ideologias racistas

que impõem a brancura como ideal de perfeição. Entretanto, apesar de reconhecerem o valor do autor,

os presentes queriam levar a discussão além. Buscavam outra reflexão e mobilização. Eram necessárias

outras vozes, vozes de orgulho pela negritude e de reivindicações de igualdade. Haviam quebrado o

silêncio. A denúncia já não lhes bastava. Era hora do testemunho e da luta. Era hora de ouvir, como Neuza

Santos Souza (1983) dizia:

Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade,

confundida em suas expectativas, submetida a exigências, compelida a expectativas

alienadas. Mas é também e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar

sua história e recriar-se em suas potencialidades. (pp.17-18)

Seguindo essas experiências, eu me pergunto – na clínica, sobre os processos psíquicos que precisam

ser superados, mas, também, aqueles outros que precisam ser investidos em um processo de análise de

uma pessoa negra –, como pesar o racismo no divã? Ou, mais além, como o divã sustenta o corpo negro,

o sujeito e sua luta pela autonomia?

Neste artigo, inspirada pela leitura de Carolina Maria de Jesus (1997), intenciono tecer reflexões

sobre a compreensão psicossocial do racismo e dos caminhos para a sua abordagem no trabalho

clínico psicanalítico.

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16O RACISMO E SUAS INTERFACES SOCIAL E PSÍQUICA

Na análise de Costa (1983), entende-se a dimensão do trauma que o sujeito negro enfrenta em uma

sociedade racista: “ser negro é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou

repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de Ego do sujeito branco e de recusar,

negar e anular a presença do corpo negro” (p.2)

Na dinâmica intrapsíquica, a violência racista é sentida como uma injunção à destruição da identidade

negra. Entre o Ego e seu Ideal cria-se uma fenda que é muito difícil de transpor e que pode ameaçar

o equilíbrio psíquico do sujeito negro. Como consequência, há uma inversão na dinâmica psíquica: o

princípio do prazer perde a hegemonia na organização dos processos mentais e “a economia psíquica

passa a gravitar em torno da dor, deslocando o prazer do centro do pensamento” (Costa, 1983, p.8).

Castoriadis (1990) busca levar a discussão mais além quando amplia as suas reflexões sobre o racismo

para a instância sociocultural. Assumindo o valor fundamental da igualdade entre os seres humanos e o

seu direito inalienável ao respeito, à dignidade. Todavia, nos lembra que o racismo é algo mais universal

do que gostaríamos de admitir: uma especificação monstruosa das sociedades humanas. Trata-se da

aparente incapacidade de uma sociedade se constituir como si-mesma sem excluir o outro, desvalorizá-lo

e odiá-lo. Trata-se de compreender que o imaginário social – impregnado nas instituições – e o psiquismo

do ser humano singular estão entrelaçados, mas que também existe entre eles conflitos e resistência.

Para Castoriadis (1990), a percepção do outro como igual exige que se admita a alteridade. O racismo,

ao negar a alteridade, institui a discriminação, o desprezo, o ódio e a aniquilação. E não haveria uma

explicação única na história sobre esse “delírio” racista. Cita exemplos de grupos que foram tolerados,

apesar de excluídos (Gregos na Turquia), e outros submetidos à repressão ou genocídio (Armênios

na Turquia).

No caso da escravidão, no Brasil, a história mostra que houve uma deliberada perseguição dos negros

para serem escravizados e que isto demandava da ideologia dominante, à época, uma justificativa,

uma mentira que sustentasse as relações de poder: eles não seriam tão humanos quanto os brancos.

Poderiam até mesmo ser mortos, individualmente, mas não poderiam ser dizimados como força de

trabalho coletiva.

A partir do momento em que existe a fixação de um imaginário racista, os outros são considerados

inferiores, como indivíduos e como coletividade. Ademais, passam a ser o suporte de uma cristalização

imaginária secundária, segundo a qual o explorado é revestido de uma série de atributos pejorativos e

perversos, destinados a culpa-lo e a justificar tudo o que se faz com ele em “represália”. Ou seja, haveria

uma combinação entre a vertigem de crueldade e o horror que a alimenta (Castoriadis, 1990).

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17Castoriadis (1990) sustenta que a única verdade específica do racismo é que ele não permite que o outro

exista em sua diferença. Nem permite que se iguale ao opressor, nem que abjure de suas características

(como na Inquisição religiosa). O que o racismo deseja, radicalmente, é a morte do outro (Castoriadis,

1990). E, se do ponto de vista dos interesses econômicos e políticos o oprimido deve manter-se vivo para

servir ao opressor, então se deve matar nele tudo o que for possível: sua identidade, sua cultura, sua

linguagem, seus vínculos, sua criatividade, sua história. Lembremos que muitas foram as tribos indígenas

dizimadas no Brasil e que estão ameaçadas hoje ainda.

O fenômeno racista é um veículo político para concretizar a dominação de grupos sociais, e isto acontece

não apenas como uma ideologia ou comportamento individual, mas como um sistema social. Eliane Costa

(2012) argumenta que o racismo estrutura o Estado brasileiro:

É um dos principais organizadores das desigualdades materiais e simbólicas vivida

pelo povo brasileiro. Estrutura condições e possibilidades de trabalho, de estudo, de

vínculos (incluindo o casamento e os vínculos amistosos), de liberdade, de lugar (ou

não lugar) onde morar, a forma de morrer, dentre outras coisas. (p. 16)

Nessa realidade sócio-histórica, podemos continuar a nos perguntar pelos processos psíquicos, ou

processos de subjetivação, ligados a esse sistema social racista. No psiquismo, como Castoriadis (1990)

discute, uma face do ódio ao outro poderia ser pensada como uma defesa diante do diferente. Um

pensamento como: se eu sou um ser humano, qualquer um que seja diferente de mim não pode sê-lo

também. Com isso, passo a acreditar que sou o único tipo possível de ser humano, o que me autoriza

a viver. Mas existe uma outra face menos explorada: o ódio do outro como um ódio inconsciente de si

mesmo. A existência do diferente questiona a validade da minha existência. E, do mais profundo da nossa

fortaleza, uma voz repete sutilmente: suas muralhas são de papel. A percepção de nossas fraquezas

nos leva a um ódio de nós mesmos, que é intolerável em sua forma explícita e aberta. Então esse ódio é

deslocado para outros, em suas manifestações mais cruéis e arcaicas (Castoriadis, 1990).

Gostaríamos de acrescentar que, no psiquismo humano, importa pouco se o racismo nasceu de uma

estratégia de expansão de poder econômico (como a escravidão negra no Brasil) ou se foi politicamente

incentivado para sustentá-la (como a perseguição aos judeus na Alemanha hitlerista). Em nível societário,

o racismo é sustentado pelo imaginário que, por sua vez, sustenta as relações de poder. Nos indivíduos,

a interiorização desse imaginário, que nutre o racismo no psiquismo, apoia-se no narcisismo das pequenas

diferenças (Castoriadis, 1990).

Segundo Fuks (2007), Castoriadis remete ao conceito freudiano de narcisismo das pequenas diferenças,

que teria inicialmente a função de resguardar a imagem narcísica, a percepção de si mesmo. Para a

autora, Freud entendia que, levado ao extremo, o narcisismo produz uma intolerância à diferença

do outro, que está na base do racismo, no que diz respeito ao indivíduo. Entretanto, no social, não há

reciprocidade total. A alteridade é, continuamente, negada e afirmada, no movimento da história.

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18Nessa perspectiva, Fuks (2007) sugere que, para além do narcisismo, devemos indagar o que uma

inferioridade atribuída ao outro encobre, nas relações de dominação, em uma sociedade expansionista,

com fins econômicos, políticos, culturais e ideológicos? E nos faz uma pergunta fundamental: Que

processos psíquicos se articulam a um processo social, de modo a engendrar relações onde outros são

tornados objetos de discriminação e até mesmo de aniquilamento físico ou subjetivo?

Voltando à minha analisanda, a sua reação me deixara perceber que era preciso aprofundar os sentidos

nessa reflexão e também indagar: Qual seria o trabalho psíquico que escapa, enfrenta, contrapõe-se e/ou

transgride os efeitos perversos do racismo?

Ao longo da história brasileira, há inúmeros relatos de pessoas que se rebelaram, de movimentos

abolicionistas, da constituição de quilombos, enfim, de diversos processos de resistência que têm a sua

história silenciada, mas que teriam também o seu poder de transmissão e de constituição de identidades

dos grupos e sujeitos. Como os excluídos, os explorados, os perseguidos transmitem a sua história?

Talvez seja isso uma das coisas que mais me co-move na literatura de testemunho, no Brasil e em outros

lugares. Pois, como opina Batista (2015), essas produções estão ligadas à construção de memórias

antiautoritárias e contra hegemônicas, com a emergência de narrativas dos que sofreram violências e

crimes contra a humanidade.

CAROLINA DE JESUS: UMA LITERATURA DE TESTEMUNHO

A literatura de testemunho é diferente no que diz respeito aos parâmetros estéticos da produção

literária. O escritor testemunhal pode ser visto como um narrador em confronto com um senso de

ameaça constante por parte da realidade. Primo Levi, escritor italiano, judeu membro da resistência

italiana, que passou um ano em Auschwitz, tem, dentre a sua vasta literatura, os livros do tipo

“testemunho”, que guardam, como observa Dias (2005), uma combinação de perplexidade e necessidade

de fala. Escrever é tomar a palavra, enfrentar a morte. Há um ponto tenso entre a necessidade da

memória e o desejo de esquecimento. Relembrar traz dor, mas também libertação, embora se perceba

que a linguagem é insuficiente para dar conta de vivência tão trágica e traumática. Para Ginzburg (2010),

o estudo da literatura de testemunho exige uma concepção da linguagem como campo associado ao

trauma, pois o silêncio é ainda mais mortal.

É por isto que considero que a literatura de testemunho vai além da simples quebra do silêncio, vai além

da denúncia, ou da queixa catártica. É um modo de expressão que começa a criar memória, valores,

outros pontos de vista. Uma criação que confronta uma realidade por mais dolorosa ou absurda que

seja. Romper o silêncio é um primeiro passo. Porém, a partir daí, o que dizer? Denunciar é preciso.

Entretanto, denunciar não basta. É preciso reafirmar o ser, a identidade, a subjetividade que almeja ter

voz, criar, criar-se.

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19O testemunho vem romper o silêncio, a subjugação sem palavras. Denuncia a brancura como valor. Dessa

forma, o racismo pode ser denunciado não apenas na forma de uma ideologia e sim como relações sociais

de poder e etnia. O testemunho coloca o sujeito como autor – autor de seu texto, de sua trajetória, por

mais vulnerável que essa possa ser. Uma literatura que expressa a dor, o horror, desmascara as máscaras

brancas, nomeia a violência, expõe a pele negra e busca seu nome (Nascimento, 2012).

Trata-se de desconstruir o racismo e a violência, desmascarando os seus sentidos e permitindo pensar

além: “Quem não conhece a fome há de dizer: ‘Quem escreve isto está louco’. Mas quem passa fome há de

dizer: - Muito bem Carolina. Os gêneros alimentícios devem ser ao alcance de todos” (Jesus, 1997 apud

Perpétuo, 2014, p. 39). Na clínica, também podemos observar esse caminho que vai da quebra do silêncio

à denúncia, desta ao testemunho e, daí, às possibilidades de novas construções de sentido.

NA CLÍNICA, A ELABORAÇÃO DO RACISMO E NOVOS POSICIONAMENTOS

Até hoje, as pessoas negras que atendi são mulheres. Provavelmente essa condição de gênero afeta o que

pude perceber e o que consigo relatar, neste curto artigo. Refiro-me aqui a três mulheres, na faixa etária

adulta, todas com educação de nível superior, mas com origem familiar em classe baixa ou média baixa.

Os pequenos relatos são cuidadosamente feitos de forma a não as identificar.

Acredito que, no processo individual de análise, algo semelhante à literatura de testemunho acontece.

Mas, claro, não só isso e nem sempre da mesma maneira. O caminho contém outros percalços e gostaria

de comentar (1) a relação entre a família e o espaço público e (2) a forte relação com a mãe, em busca

de identificação e apoio para se reconhecer positivamente como mulher negra, o que nem sempre foi

atendido na família.

A primeira percepção que as analisandas colocaram dizia respeito à relação entre o que se passava

na família e no espaço público. A percepção explícita da discriminação só veio quando começaram a

circular pelo mundo público: a rua, a vizinhança, a escola, a igreja, etc... Entretanto, em sua família, eram

reproduzidos os ideais da branquitude, sendo constantemente requisitadas a alisar os cabelos para

ficarem “bem arrumadas”. Nesses casos, tornava-se muito mais difícil se desembaraçar da ideologia

da branquitude.

Na análise, surgiram memórias e testemunhos de falas e ações racistas sofridas. Na infância,

comentários pejorativos, exclusão nas brincadeiras. Na adolescência, a rejeição dos garotos brancos

da escola ou da igreja. Agressões verbais sexistas ligando a cor a uma feminilidade pretensamente

fácil. No início, eram relatos cheios de dor e revolta. Com o tempo, passaram a ser objeto de reflexão.

O ódio já não era tão mobilizador. Outras relações começaram a substituir a dor. Os anos de análise

(entre 2 e 9 anos) ajudaram a quebrar o silêncio, a relatar violências sofridas, a valorizar a cor da pele

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20e outras características ligadas à sua singularidade, em diversos planos. O fortalecimento de outras

potencialidades que lhes permitiam enfrentar dificuldades, recontar sua história, não apenas o passado,

mas tudo aquilo que se fazia presente nos projetos na vida.

Em relação ao corpo, o que mais se destacou foi a questão dos cabelos. Uma delas já chegou à análise

com essa consciência e reafirmação. Outra parou de alisar o cabelo depois de alguns anos; passou a curtir

o seu cabelo ao natural e seu corpo, a fazer penteados afro nas crianças de sua família. Entretanto, a mãe

ainda é um espinho na carne, o que torna mais difícil deixar fluir o afeto, enfrentar as inseguranças e o ódio.

Um traço muito forte em todas foi a vontade de obter reconhecimento profissional, de serem

independentes, de terem um retorno financeiro. Isto lhes dá garra para enfrentar o mercado de trabalho,

mesmo em tempos difíceis como o atual. Isto aparece, muitas vezes, tanto como uma conquista (pela qual

tiveram que batalhar muito, sem apoio financeiro da família) como uma revanche: vejam, agora, do que

sou capaz! E são!

Para uma, quando adolescente, uma empregadora disse que ela jamais faria um curso superior. Pois fez e

trabalha na área em que se formou. Diz que quer ser uma das melhores profissionais da cidade. A relação

com a mãe, que inicialmente era muito conflitiva, tornou-se um pouco menos espinhosa. Ela consegue

pensar nessa mãe como uma mulher negra que enfrentou dificuldades. Embora não justifique alguns

conflitos, atenua a frustração e permite que vá desenvolvendo, hoje, uma relação possível.

É interessante que todas elas, no início de análise, me relatavam cenas sofridas, nas quais apenas

desconfiavam existir racismo. No entanto, mostravam-se hesitantes, ambivalentes, na dúvida se estavam

exagerando, ou... se aquilo era mesmo racismo... como se precisassem do meu reconhecimento para

desmascararem cada situação.

Na clínica, estou convencida de que situações limites, que envolvem alta vulnerabilidade do sujeito diante

das condições sociais, exigem da analista uma postura de sustentação e acolhimento, intervenções

que permitam à (o) analisanda (o) encontrar espaço/tempo suficiente para construção de alteridade, a

coragem de pensar de maneira transgressora, questionar a pressão social de que se re-sentiu. Sem fazer

discurso político, a cena analítica oferece continente a essa transgressão, acolher a angústia, reconhecer

seu nome, criar possibilidade de significação. Na clivagem desse sujeito, o silêncio do analista pode ser

ouvido como rejeição, reafirmação da ideologia racista hegemônica.

Assim, eu buscava oferecer continente para a denúncia, suporte para as reflexões, credibilidade para

a dor, escuta para as perguntas, sentidos para as angústias. Buscava dar suporte à quebra do espelho

racista, da fascinação/submissão à branquitude, ao narcisismo ferido... Há feridas narcísicas que são

provocadas pelas próprias relações sociais e que podem parecer “normais” ao olhar racista. É preciso que,

em algum lugar, em algum momento, com alguma pessoa, os sentidos instituídos sejam questionados e

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21transformados. Um desses lugares é o divã, que recebe os relatos de todos os demais lugares, inclusive

daqueles subjetivos e imateriais do sonho e da fantasia.

Há algum tempo, uma analisanda ficou brava com uma conhecida que a questionou sobre o valor de um

dos seus bens: “como se eu fosse alguém que não pudesse ter algo valioso”, disse. Bate na discriminação,

rebate e debate. Existem ainda momentos em que o fantasma do racismo dentro dela se torna forte. Ela

melhora profissionalmente... e sente-se culpada, angustiada como se estivesse usurpando um lugar que

não é seu. Ao mesmo tempo, é rápida em perceber isso, de novo e de novo, cada vez mais elaborado.

Descobrir, em si mesmas, traços de dominação do outro é sempre frustrante, deprimente. Dificuldade

de confiar. Trabalhar invejas e revoltas. Buscar, na transferência, a elaboração da relação com a mãe. A

busca de reconhecimento de sua feminilidade e negritude por parte da mãe mostra um processo que é,

ao mesmo tempo, de uma mulher e de uma mulher negra. Mesmo quando a mulher-mãe é branca.

Afeto e sexualidade começam a emergir sem tanta censura interna ou medo do julgamento social.

Começa uma procura por identificação que vai além da família: nos movimentos sociais, grupos

organizados, na literatura, no mundo profissional. Novos projetos surgem. Talvez um filho? Uma

filha? A análise continua. Para algumas no horizonte mais longo, para outras, em seus últimos

passos. A vida continua.

ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA E CONSTRUÇÃO DE AUTONOMIA

A análise do racismo, em nível intrapsíquico, revela que o ódio ao diferente (no caso, o negro) expressa o

ódio do branco a si mesmo. Como um conjunto de relações sociais e históricas, o racismo tem um outro

lado: o sujeito negro que, subjugado ao ideal da brancura, vê deterioradas as suas possibilidades de

desenvolvimento de identidade e seu prazer de viver. Porém, como lembram Ferreira e Camargo (2011),

o indivíduo, necessariamente, tem que vivificar seu corpo como fonte de vida e prazer, para construir

uma identidade centrada em valores positivos, buscando alívio em sua estrutura psíquica.

Na história de nossa sociedade, já podemos encontrar diversas pesquisas sobre movimentos contra

hegemônicos contra o racismo, que tiveram o seu poder de transmissão. Assim, é preciso entender

tanto os processos de subjetivação que coadunam com a repressão quanto aqueles que favorecem a

autonomia. Há um conflito, uma ambivalência, um desejo de viver que favorece o investimento do sujeito

nele mesmo, desde que haja apoio ao seu processo de desenvolver a dialética identidade-alteridade.

Aulagnier (apud Drubscky, 2008, pp.70-71) propõe que “todo existente é um efeito da onipotência do

desejo do Outro”, nele precisando se espelhar para se constituir como sujeito. Porém, ao mesmo tempo,

“todo existente tem uma causa inteligível, tornada acessível pelo discurso”, de onde se conhece, se

reconhece, se reinveste e, inclusive, transforma seus processos de subjetivação. Esse movimento pode

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22ser tenso, contraditório e sofrido, na sociedade e no indivíduo. Entretanto, por mais forte que seja um

sistema de relações de poder, as formas de resistência e de construção de subjetivação ainda resistirão

tanto na história coletiva quanto na história individual.

Ora, pois, não é assim em qualquer processo analítico? A relação com o próprio desejo e com o desejo do

outro? Sim, mas o que eu gostaria de enfatizar é que os processos identitários e alteritários de pessoas

negras em análise envolvem, além do re-investimento em seu corpo e sua vida, o desembaraço de uma

relação opressiva, a elaboração do ódio ao opressor, fora e dentro de si. Essa elaboração está ligada à

negritude e ser mulher: mulher-negra. E é essencial para que essa existente possa fortalecer as suas

capacidade e escolhas para agir e amar no mundo. Um processo que envolve vencer o silêncio, enunciar a

denúncia, construir o testemunho e criar novos sentidos para si mesma.

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23REFERÊNCIAS

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Maria de Jesus. XXVIII Simpósio Nacional de História. Lugares dos historiadores: velhos e novos desafios,

Florianópolis, SC.

Castoriadis, C. (1990). Reflections sur le racisme. In C. Castoriadis, Les carrefours du labyrinthe III - Le

monde morcelé. Paris: Ed. Seuil.

Costa, E. S. (2012). Racismo, política pública e modos de subjetivação em um quilombo do Vale do Ribeira. Tese

(Doutorado), Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.

Costa, J. F. (1983). Da cor ao corpo: a violência do racismo. In N. S. Souza, Tornar-se negro: as vicissitudes

da identidade do negro brasileiro em ascensão social. (pp. 1-16). Rio de Janeiro: Graal.

Dias, M. S. (2005). Primo Levi e o zoológico humano. In M. S. Dias (Org.), 71 contos de Primo Levi. São

Paulo: Companhia das Letras.

Drubscky, (2008). Até que ponto o narcisismo pode ser datado? Uma reflexão à luz das contribuições de

Piera Aulagnier. Tese de Doutorado, Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio

de Janeiro.

Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA.

Ferreira, R. F. F., & Camargo, A. C. (2011). As Relações cotidianas e a construção da identidade negra.

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Ginzburg, J. (2010). Linguagem e trauma na escrita do testemunho. Conexões Letras, 3, 61-66.

Jesus, C. M. de (1997). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática.

Nascimento, T.do. (2014). A literatura afro-brasileira e a reconfiguração da identidade negra. In M. A.

da S. Bento, M. de J. Silveira & S. G. Nogueira (Orgs), Identidade, branquitude e negritude: contribuições

para a Psicologia Social no Brasil, novos ensaios, relatos de experiências e de pesquisa. (pp. 261-273). São

Paulo: Casa do Psicólogo.

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24 Perpétuo, E. D. (2014). A vida escrita de Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte: Nandyala.

Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social.

Rio de Janeiro: Graal.

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problemática do corpo negro. In M.A. da S. Bento, M. de J. Silveira, & S. G. Nogueira (Orgs), Identidade,

branquitude e negritude: contribuições para a Psicologia Social no Brasil, novos ensaios, relatos de

experiências e de pesquisa. (pp. 245-259). São Paulo: Casa do Psicólogo.

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autoria

resumo

MARINA ALMEIDA

Psicóloga. Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

MARCELA M. SANTOS

Psicóloga. Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

VANESSA BISCARDI MATOS

Psicóloga. Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

O relato de Carolina Maria de Jesus nos apresenta um rico material a partir do qual refletimos

sobre o modo como vias facilitadas de tradução fornecidas pela cultura são utilizadas como

caminhos aos quais o sujeito fica submetido. Buscamos pensar sobre a possibilidade de

recursos simbólicos servirem como mecanismos de defesa contra o ataque interno das

marcas do racismo introduzidas pelo outro durante a constituição do seu psiquismo.Com

Laplanche podemos pensar nas intromissões do outro como constitutivas para o aparelho

psíquico, visto fornecerem tópicas defensivas frente ao pulsional, ao mortífero, ao sexual.

Mas como metabolizar, traduzir, uma invasão tão violenta como a do racismo? O racismo na

esfera social é estrutural e visa garantir a manutenção de certos jogos de poder através da

dominação dos corpos dos sujeitos. As mesmas mensagens que constroem o ideal do Eu de

um sujeito negro em uma estrutura social racista também constroem o ideal do Eu de um

sujeito branco. Como fazer resistência a essas traduções e romper com esse ciclo psíquico-

social de dominação? Acreditamos que para ambos os sujeitos há especificidades e caminhos

diferentes para as traduções dessas mensagens. O racismo como dispositivo micro e macro

político de dominação e segregação não interessa à psicanálise apenas pelos seus efeitos

Constituição narcísica, racismo e manejo na clínica psicanalítica

SUMÁRIO

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26na clínica. Torna-se necessário à psicanálise, como dispositivo que por excelência afirma o caráter

contingente e libidinal da constituição dos sujeitos, se posicionar sobre os nefastos efeitos políticos e

clínicos que uma sociedade estruturalmente racista e patriarcal produz. Concluímos que é urgente o

estabelecimento de uma escuta que considere, com todo o cuidado que a prática clínica exige, o contexto

do racismo estrutural em que vivemos no Brasil para que o processo analítico vise possibilitar traduções

mais livres do sistema de dominação do outro que o racismo provoca.

PALAVRAS-CHAVE: constituição narcísica, racismo, Laplanche, Carolina de Jesus.

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27“Com as agruras da vida somos infelizes perambulando aqui neste mundo.

Sentindo frio interior e exterior.”

(Jesus, 2014, p.179)

Ao ocupar-se do problema do narcisismo, Freud (1914/1974) preocupa-se com “os distúrbios aos quais o

narcisismo original de uma criança se acha exposto, às reações com que ela procura proteger-se deles e

os caminhos aos quais fica sujeita ao fazê-lo” (p. 99). Apesar de indicar isto, estes são temas que ele não

explora, embora representem um importante campo a ser trabalhado. Consideramos tratar-se de um

compromisso ético da psicanálise fazê-lo.

O relato de Carolina Maria de Jesus nos apresenta um rico material a partir do qual refletimos sobre o

modo como vias facilitadas de tradução fornecidas pela cultura são utilizadas como caminhos aos quais o

sujeito fica submetido. Buscaremos pensar sobre a possibilidade de recursos simbólicos servirem como

mecanismos de defesa contra o ataque interno das marcas do racismo introduzidas pelo outro durante a

constituição do seu psiquismo.

Nas páginas de Quarto de despejo, Carolina Maria de Jesus (2014) narra sua trajetória enquanto mulher

negra, mãe de três filhos, residente da favela do Canindé, na grande São Paulo. Foi no encontro com os

livros que a autora encontrou um refúgio psíquico frente às agruras da vida. Para continuarmos nosso

pensamento a respeito do conceito de narcisismo precisaremos investigar os elementos necessários para

sua constituição, o amor do outro.

Em Quarto de despejo, Carolina (2014) narra por vezes o grande carinho que tinha por sua mãe, e seu

desejo que a filha se tornasse professora. Atrelada a essa mensagem do ideal do Eu materno, Carolina

jamais se esqueceu de uma das falas de uma professora. Esta aconselhou a jovem Carolina a “ler e

escrever tudo que lhe surgisse na mente”, lhe assegurando a verdade de que os “instruídos vivem com

mais facilidade” (Jesus, 2014, p.195). Certa disso, ela catava papel fingindo que estava sonhando, e vivia,

psiquicamente, aquilo que sua mãe e sua professora lhe asseguraram: “Eu cato papel, mas não gosto.

Então, penso: faz de conta que eu estou sonhando” (Jesus, 2014, p.29).

No entanto, apesar da fonte narcísica encontrada na literatura, nos cuidados da mãe e da professora,

Carolina ainda falava do seu mal-estar pela sua condição, pela fome enfrentada todos os dias, pelos

olhares que lhe expressavam ódio. De que modo esses olhares podem interferir na constituição

narcísica? De que modo essas intromissões ilustradas a partir do relato de Carolina aparecem no relato

dos sujeitos na clínica psicanalítica? O que a psicanálise propõe quanto a isso? Com Laplanche podemos

pensar nas intromissões do outro como constitutivas para o aparelho psíquico, visto fornecerem tópicas

defensivas frente ao pulsional, ao mortífero, ao sexual. Mas como metabolizar, traduzir, uma invasão tão

violenta como a do racismo?

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28 McDougall (1989) nos diz da semelhança de alguns pacientes com a figura de Narciso em sua nascente.

Esses sujeitos, como se estivessem ajoelhados em busca de suas nascentes narcísicas extintas de suas

realidades psíquicas, almejam um reflexo que lhes ofereça uma fonte de amor. Freud (1914/1974)

apresenta as condições de reino da vossa majestade o bebê, cuja sua fonte narcísica é construída a partir

das mensagens oferecidas pelo outro.

A constituição do Eu como unidade psíquica ocorre à medida que é instituído o esquema corporal, sendo

tal unidade precipitada por uma determinada imagem de si mesmo adquirida segundo o modelo do outro

que exerce as funções de cuidado. A confluência de uma imagem unificada que a criança faz de seu corpo,

juntamente à revivescência do Eu ideal, ou seja, da imagem idealizada do Eu projetada pelos cuidadores,

atribuindo ao bebê perfeições e encobrindo seus defeitos, corresponde ao narcisismo primário.

Uma formação intrapsíquica relativamente autônoma, de origem principalmente narcísica, aparece

designada por Freud (1914/1974) como ideal do Eu. Trata-se daquilo que o sujeito projeta diante de

si como seu ideal uma vez perdido o seu narcisismo da infância em função principalmente da crítica

que os cuidadores exercem em relação à criança. Em contrapartida, as mensagens propagadas pelo

racismo impregnam a fonte narcísica do sujeito e permanecem ali à espreita secando-a, mostrando sua

incapacidade, sua fragilidade, sua passividade originária radical frente ao outro.

A constituição do sujeito procede à presença do outro nele mesmo. Essa radicalidade da alteridade faz

a emergência do sujeito ao custo de uma constituição enigmática e jamais capturada (Laplanche, 1992).

A noção de outro para Laplanche parte da cena originária num duplo sentido enigmático. Ao retomar

a teoria da sedução de Freud, Laplanche (1998) repensa o processo analítico e a fundação do aparelho

psíquico a partir do potencial hermenêutico dos sujeitos. Este potencial existe devido à tendência a

darmos sentido àquilo que vivemos.

O que experimentamos de mais primordial e buscamos traduzir tão logo nos ocorre, é o contato

assimétrico com o mundo adulto. A dissimetria dessa relação reside no fato de que a comunicação possui,

a princípio, uma única via: do adulto para a criança. As mensagens enviadas à criança parecem obedecer

meramente aos objetivos da autoconservação. No entanto, Laplanche (1998) chama atenção para o

fato de que tais objetivos se conciliam com o conteúdo inconsciente do adulto, com as suas fantasias

sexuais: “Eu te alimento, porém – inconscientemente – eu te enfio o alimento, no sentido sexual da

intromissão” (p. 89).

Uma vez que o racismo ainda é um elemento estrutural no nosso socius atual, podemos pressupor

que junto aos cuidados com fins de preservação do bebê, sejam endereçadas a ele mensagens

comprometidas com o inconsciente do adulto, violentas, carregadas de conteúdos racistas. Para

investigar essa questão é preciso pensar nas vias facilitadas do racismo, nas quais, diferente da

implantação necessária do outro para o recalque originário, são produzidas marcas devastadoras na

construção identitária e na constituição narcísica do sujeito: “Quando puis a comida o João sorriu.

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29Comeram e não aludiram a cor negra do feijão. Porque negra é a nossa vida. Negro é tudo que nos rodeia”

(Jesus, 2014, p.43).

A atribuição da cor negra do feijão, da vida, para designar algo pejorativo não é mera coincidência.

Nossas metáforas, equivalências simbólicas são contingências e dependem do socius vivido. Assim, é

mais do que razoável pensarmos nas feridas narcísicas deixadas pelo racismo aos sujeitos negros que

encontram na própria língua uma expressão da violência a seus corpos, à sua presença.

Em Quarto de despejo vemos as oscilações das maneiras pelas quais Carolina de Jesus se percebe no

mundo. Segundo ela, há momentos em que se revolta com a vida atribulada, se entristecendo, e outros

em que se conforma (Jesus, 2014, p.24). Esse movimento pendular de desligamento e ligação aos objetos

pode ser articulado com o conceito de retirada ou investimento da libido ao objeto. Freud (1914/1974)

nos diz que esse abastecimento de libido narcísica é colhido do outro: “Um indivíduo que ama priva-se,

por assim dizer, de uma parte de seu narcisismo, que só pode ser substituída pelo amor de outra pessoa

por ele” (p. 105).

Vejamos então que o conceito de narcisismo em Freud e a constituição psíquica a partir de Laplanche

deixam clara a questão das reverberações da alteridade no aparelho psíquico. A partir disso, é possível

perceber clinicamente e teoricamente a devastação psíquica que o racismo provoca. Indo mais longe,

diferente da ferida narcísica provocada pela sensação de terceiro excluído da trama edípica, o racismo

seria algo comparado a uma fratura exposta no psiquismo: “Agora deixei de cantar, porque a alegria

afastou-se para dar lugar a tristeza que envelheceu o coração” (Jesus, 2014, p.150).

Ao longo do diário de Carolina de Jesus é possível ler várias passagens como essa. Muitas dizendo

do seu desejo de suicídio. O Eu reage e cria defesas frente às representações do pulsional mortífero

que o ataca. O desejo de morte do Eu é uma defesa para se livrar desses ataques, dessas traduções

não metabolizáveis. Os ataques mortíferos, direcionados ao Eu, se tornam mais acentuados quando

encontram sua expressão nas representações provocadas pelo racismo. É preciso um trabalho extra de

elaboração, de tradução, de mecanismos defensivos para dar conta de uma excessiva carga pulsional

mortífera provocada pela violência do racismo.

Freud (1914/1974) nos diz da necessidade da construção do Eu ideal e a incessante busca ao seu

retorno para a sobrevivência psíquica do sujeito. Esse Eu ideal é construído através de elementos

sociais. O racismo na esfera social é estrutural e visa garantir a manutenção de certos jogos de poder

através da dominação dos corpos dos sujeitos. O racismo como dispositivo micro e macro político de

dominação e segregação não interessa à psicanálise apenas pelos seus efeitos na clínica. Torna-se

necessário à psicanálise, como dispositivo que por excelência afirma o caráter contingente e libidinal da

constituição dos sujeitos, se posicionar sobre os nefastos efeitos políticos e clínicos que uma sociedade

estruturalmente racista e patriarcal produz.

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30Como vimos, a partir de uma leitura psicanalítica de Quarto do despejo é possível visualizar como os

mecanismos impostos pelo racismo interferem negativamente na constituição narcísica dos sujeitos.

O racismo encontra via facilitada para os processos de constituição psíquica em nossa sociedade e

impregna o processo narcísico.

É importante visualizarmos a dualidade dos vetores que operam para a manutenção do racismo

estrutural em que vivemos. Neste trabalho falamos dos efeitos devastadores na constituição narcísica

das pessoas que vivenciam o racismo. No entanto, mesmo fugindo do escopo do presente trabalho,

cabe salientarmos a necessidade da psicanálise avançar nos mecanismos psíquicos que operam para

a manutenção da branquitude. As mensagens que comprometem a constituição narcísica das pessoas

negras vêm de um lugar específico.

As relações raciais estão intricadas em discursos históricos sociais construídos em prol da suposta

universalidade do homem branco. A branquitude é um lugar de conforto sobre um prisma que o sujeito

branco não se questiona enquanto sujeito de raça. (Schucman, 2012). Precisamos nos perguntar, a quais

mecanismos psíquicos nós brancos estamos submetidos a tal ponto de não conseguirmos avançar

efetivamente em ações antirracistas.

As mesmas mensagens que constroem o ideal do Eu de um sujeito negro em uma estrutura social

racista, também constroem o ideal do Eu de um sujeito branco. Como fazer resistência a essas traduções

e romper com esse ciclo psíquico-social de dominação? Acreditamos que para ambos os sujeitos há

especificidades e caminhos diferentes para as traduções dessas mensagens. Quais traduções o racismo

tem provocado nos sujeitos brancos? Uma fantasia de onipotência infantil não elaborada? Um sadismo

com vias facilitadas? Tais indagações ficarão à guisa de introdução para outros trabalhos. Neste momento

nos limitaremos a continuar a empreitada de entender mais um pouco as possíveis formas de traduções

das feridas narcísicas provocadas pelo racismo.

Ao que nos parece, Carolina de Jesus encontrou na literatura uma forma de resistência psíquica, narrar-

se a si mesma e o mundo a sua volta garantiu que ela pudesse reeditar seus contornos narcísicos e a cada

leitura ou escrita renovar sua fonte narcísica. O que Carolina de Jesus (2014) felizmente encontrou na

literatura é algo parecido com o processo analítico: “Eu fiz uma reforma em mim. Quero tratar as pessoas

que eu conheço com mais atenção” (p.28).

Falar de si, perceber o outro e reformar-se são sínteses psíquicas privilegiadas no processo psicanalítico.

O fortalecimento do Eu e a elasticidade psíquica são capacidades que percebemos na escrita de Carolina.

É uma das finalidades do processo analítico a re-tradução das mensagens que atacam e impelem o Eu à

compulsão à repetição suscitadas pelos efeitos do racismo. Além disto, a técnica analítica deve oferecer

continência e holding diante das feridas narcísicas provocadas pelo racismo.

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31Freud (1914/1974) aponta a sublimação como uma saída, uma maneira pela qual as exigências do Eu

formadas em decorrência de um ideal podem ser atendidas sem envolver repressão. Parece pertinente

indagar quais outras vias são possíveis.

A análise visa à retomada da situação originária. Para Laplanche (1998), isto acontece por meio da

relação transferencial e pela destituição de sentido do que fora outrora traduzido. Por isto, podemos

constatar que o analista age na contramão da atividade hermenêutica, já que sua atividade se realiza

nos pontos onde a alteridade precisa ser reconhecida. É preciso que se desfaça a antiga relação com o

enigma para que ela possa ganhar novos sentidos, outras traduções. A diferença, na análise, reside na

contratransferência, que serve para que o analista se relacione com sua própria alteridade, mas não no

sentido de integrá-la, e sim através de “um reconhecimento que é, ao mesmo tempo, uma realização à

distância e uma espécie de respeito” (Laplanche, 1998, p.94).

Ao pensarmos em termos da metapsicologia a constituição dos sujeitos, temos subsídio para sermos

capazes de estar atentos às reverberações do racismo no sofrimento psíquico de negros e negras. Os bebês

negros são afetados pelos efeitos do racismo no contato diário com seus cuidadores uma vez que precisam

lidar, a partir das mensagens enigmáticas transmitidas por estes adultos, com a alteridade radical do

inconsciente dos mesmos. Nesta alteridade contém a violência insuportável do racismo institucionalizado,

“a força dos discursos produzidos pelos grupos hegemônicos” (Silva, 2017, p. 87). Estes elementos marcam

psiquicamente estes sujeitos, encerrando-os em uma lógica de subordinação e inferiorização.

A partir de tudo isto, é possível e necessário fazer com que a teoria trabalhe em favor de um debate

sobre como o racismo atua no psiquismo, sobretudo no das mulheres negras, uma vez que a lógica do

racismo opera em consonância com o machismo (Rubin, 1984/2017). Desta forma, ser uma mulher

negra implica ter que enfrentar múltiplos desprivilégios dentro dos sistemas de dominação vigentes.

Quando consideramos o outro em nós mesmos, dizemos de uma realidade externa, política, histórica. A

singularidade do trabalho de historização do Eu não se furta ao mundo externo, pelo contrário: se utiliza

largamente das vias facilitadas de tradução fornecidas pela cultura: “A ideologia racial, portanto, se

funda e se estrutura na condição universal e essencial da brancura como única via possível de acesso ao

mundo” (Nogueira, 2017, p. 123) Assim, é urgente o estabelecimento de uma escuta que considere, com

todo o cuidado que a prática clínica exige, o contexto político no qual os negros e negras vivem e viveram

no Brasil. É necessário, a partir disso uma escuta atenta as relações raciais, aos mecanismos psíquicos

que mantém o sistema de dominação racial. E, sobretudo, que reconheça e legitime as feridas psíquicas

resultantes de uma longa história de injustiças e violência provocadas pelo racismo estrutural.

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32REFERÊNCIAS

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no poder público. Tese (Doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.

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Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (Jayme Salomão, trad., Vol. XIV, pp. 85-119). Rio de Janeiro:

Imago. (Trabalho original publicado em 1914).

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Laplanche, J. (1992) Novos fundamentos para a psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.

Laplanche, J. (1998). Objetivos do processo psicanalítico. Cadernos de Psicanálise, 14(17), 78-101.

Laplanche, J. (2015). Pulsão e instinto. In J. Laplanche, Sexual: a sexualidade ampliada no sentido

freudiano. Porto Alegre: Dublinense.

McDougall, J. (1989). Narciso à procura de uma nascente. In J. McDougall, Em defesa de uma certa

anormalidade. (pp. 115-132). Porto Alegre: Artes Médicas.

Nogueira, I. B. (2017). Cor e inconsciente. In N. M. Kon, M. L. Silva, & C. C. Abud, O racismo e o negro no

Brasil. São Paulo: Perspectiva.

Silva, M. L. (2017). Racismo no Brasil: questões para psicanalistas brasileiros. In N. M. Kon, M. L. Silva, &

C. C. Abud, O racismo e o negro no Brasil. São Paulo: Perspectiva.

Rubin, G. (2017). Pensando o sexo. In G. Rubin, Políticas do sexo. (pp. 63-128). São Paulo: Ubu editora.

Schucman, L. V. (2012). Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na

construção da branquitude paulistana. Tese (Doutorado), Instituto de Psicologia, Universidade de São

Paulo, São Paulo.

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autoria

resumo

PATRÍCIA MAFRA DE AMORIM

Psicanalista. Membro do psiA. Doutoranda em Psicologia Clínica na Universidade de

São Paulo – USP.

CONTATO: [email protected]

LUIZ EDUARDO DE V. MOREIRA

Psicanalista. Professor da UNIAN. Membro do psiA e do Instituto Vox de Pesquisa em

Psicanálise. Doutorando em Psicologia Clínica na USP.

CONTATO: [email protected]

Os autores propõem uma reflexão acerca do lugar histórico reservado à psicanalista negra

Virgínia Bicudo, pioneira no campo psicanalítico e fora dele, mas que parece não ter sido

reconhecida após o apogeu de seu trabalho na década de 60. Apresentando uma série de

psicanalistas “despejados”, sugere-se pensar a história da psicanálise como sendo composta

também por esquecimentos. A relação com a obra de Carolina de Jesus, e de outras autoras

negras marginalizadas ajuda a questionar os princípios da historiografia nos campos da

literatura e da psicanálise.

PALAVRAS-CHAVE: quarto de despejo, história, psicanálise, esquecimento, Virgínia.

Quarto de despejo como imagem da história da psicanálise: o caso Virgínia Bicudo

SUMÁRIO

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34INTRODUÇÃO

“La théorie, c’est bon, mais ça n’empêche pas d’exister”

(Charcot apud Freud, 1976, p. 23)

Propomos uma reflexão sobre a produção de figuras excluídas da história da psicanálise tomando como

organizador para a discussão a imagem do “quarto de despejo”1, tão bem descrita por Carolina Maria de

Jesus, para refletirmos acerca da construção histórica da psicanálise que, aparentemente, fez-se a partir

de um inumerável contingente de psicanalistas que foram “deixados de fora”, marginalizados tanto em

suas histórias pessoais quanto em suas obras e esforços nos círculos psicanalíticos.

O argumento que defenderemos é de que a narrativa e a história oficiais do movimento psicanalítico

se constituíram a partir da exclusão de diferentes figuras, por diferentes motivos, constituindo uma

verdadeira série de “saberes marginais” – eixo no qual inserimos este trabalho. Alguns exemplos são:

Wilhel Fliess (Masson, 1986), Carl G. Jung (McGuire, 1976; Birman, 1996a), Alfred Adler, Wilhelm Stekel,

Wilhelm Reich (Boadella, 1985; Albertini, 2016), Sándor Ferenczi, (Sabourin, 1988; Birman, 1996b),

Sabina Spielrein (Cromberg, 2014; Carotenuto, 1984; Richebächer, 2012), Viktor Tausk (Roazen, 1995) e

Otto Gross (Checchia, 2017a; Checchia, 2017b)2. Como operador dessa tese, escolhemos Virgínia Bicudo,

psicanalista mulher e negra pioneira dentro e fora do campo psicanalítico, mas que parece não ter sido

suficientemente reconhecida ou lembrada após o apogeu de seu trabalho na década de 1960 em São Paulo.

1 A imagem que utilizaremos do quarto de despejo diferencia-se daquela apresentada por Roussillon (1988) em sua teorização

acerca das dinâmicas psíquicas nas instituições, especialmente pelo autor considerar que os objetos que são deslocados para os

quartos de despejo das instituições o são para que, posteriormente, tenham a chance de serem inseridos nos espaços oficiais. Tal

possibilidade, a nosso ver, não é inerente ao processo que pretendemos descrever neste trabalho. 2 Além das referências indicadas, conferir Roazen, 1978.

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A PSICANÁLISE E SUA HISTÓRIA

É fato que a história da psicanálise é um campo vasto. Entre cartas, rascunhos quase perdidos,

documentos trancados na Biblioteca do Congresso em Washington e atas de reuniões, além de artigos,

revistas e livros publicados, material não falta, bem pelo contrário. Também não faltam modos de fazer

história da psicanálise: das primeiras histórias, escritas pelos próprios psicanalistas, até trabalhos feitos

por historiadores de formação sem nenhuma formação em psicanálise. Um exemplo já clássico é o

universo das biografias de Freud, desde A vida e a obra de Sigmund Freud, escrita por Ernest Jones, e cujos

três volumes foram publicados originalmente entre 1953 e 1957, até aquela escrita por Peter Gay em 1988.

De um lado, uma verdadeira hagiografia, colocando em marcha a ideia de Freud como um gênio solitário,

revolucionário e incompreendido, o verdadeiro inventor da psicanálise ou, pior, o inventor da verdadeira

psicanálise. De outro, um trabalho de historiografia feito de acordo com os padrões científicos e

acadêmicos usualmente aceitos para um trabalho do tipo, que resulta num Freud mais humano, fruto

de seu tempo, artífice de um edifício teórico e institucional que, não obstante seu protagonismo, é a

resultante de uma colaboração entre vários colegas.

Não é difícil perceber que duas figuras muito distintas emergem de cada um desses relatos. Também não

é difícil perceber que as implicações de cada uma delas para o modo como se entende a constituição do

movimento psicanalítico – grosso modo, o conjunto de instituições, publicações, regras e dispositivos

que compõem o campo no qual se formam e atuam os psicanalistas – em relação à figura do Freud.

Entre um gênio solitário e um gênio participante de um grupo, primus inter pares, o modo como o

movimento psicanalítico conta sua história é muito diferente. Para além de uma certa curiosidade

histórica – que, diríamos, é muito bem-vinda em tempos como o nosso, em que vigora o esquecimento

histórico – ou de preciosismos teóricos, isso possui consequências diretas na formação e na nomeação

de psicanalistas: quem se forma psicanalista, ou o que é preciso fazer para se formar um psicanalista? Se

Freud é falado como o gênio isolado e incompreendido, quem precisa ser excluído da narrativa para que ele

ganhe protagonismo?

Nesse sentido, argumentamos que esse tipo de narrativa opera a partir de um dispositivo que

poderíamos chamar de “quarto de despejo”, seguindo a nomeação de Carolina de Jesus: um lugar em que

se acumulam os indesejados, os que atrapalham a narrativa oficial, os que colocam em xeque o cânone

(seja histórico seja teórico). Um lugar que, avesso da utopia, configura-se como um não-lugar: quem

ali é posto não tem voz. No que diz respeito à Psicanálise, o trágico é que encontramos o início deste

“modo de contar” sob a pena do próprio Freud. Senão, vejamos o primeiro parágrafo de A história do

movimento psicanalítico:

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Não é de se estranhar o caráter subjetivo desta contribuição que me proponho trazer

à história do movimento psicanalítico, nem deve causar surpresa o papel que nela

desempenho, pois a psicanálise é criação minha; durante dez anos fui a única pessoa

que se interessou por ela, e todo o desagrado que o novo fenômeno despertou em

meus contemporâneos desabafou sobre a minha cabeça em forma de críticas. Embora

de muito tempo para cá eu tenha deixado de ser o único psicanalista existente, acho justo

continuar afirmando que ainda hoje ninguém pode saber melhor do que eu o que é a

psicanálise, em que ela difere de outras formas de investigação da vida mental, o que deve

precisamente ser denominado de psicanálise e o que seria melhor chamar de outro nome

qualquer [itálicos nossos]. Ao repudiar assim o que me parece nada menos que uma

usurpação, estou indiretamente levando ao conhecimento dos leitores deste Jahrbuch

os fatos que provocaram modificações em sua editoria e formato. (Freud, 1914, p. 16)

“O que seria melhor chamar de outro nome qualquer”: desde, pelo menos, As palavras e as coisas, de

Foucault, sabemos que nomear não é sem consequência. Quais as consequências de Freud se arrogar

o direito de dizer quem é psicanalista e, consequentemente, quem não é? Uma história em que se

acumulam “dissidentes”, como Adler e Jung, que não partilhavam do mesmo credo teórico de Freud;

os loucos, como Tausk, Ferenczi e Reich (que detém o privilégio de ter sido expulso da psicanálise por

ser comunista e do movimento comunista por ser psicanalista, portanto burguês), cuja obra e cujas

divergências teóricas são diminuídas em importâncias porque, (in)justamente, são obras de loucos. O

gênio incompreendido de Freud é uma figura construída a expensas de qualquer compreensão daquilo

que tende à divergência, porque questiona, ao invés de concordar.

Se essa história da psicanálise, portanto, vai sendo construída a partir da ideia de que o movimento

psicanalítico deve ser uno e indivisível em seus postulados teóricos, o que é um jeito de legitimar

teoricamente certa política institucional, não deveria nos surpreender que, até aqui, todos os nomes

citados sejam masculinos. Onde estão as mulheres nesse modo de contar a história da psicanálise? Se

é verdade que Freud escreveu a Marie Bonaparte que “A grande questão que nunca foi respondida,

e que eu ainda não tenho sido capaz de responder, apesar de meus trinta anos de pesquisa sobre

a alma feminina, é: ‘O que quer uma mulher?’”3 , por que havia tanta resistência em que as próprias

mulheres respondessem?

Para os fins desta apresentação, traremos a figura de Virgínia Bicudo, pioneira da psicanálise no Brasil.

Nascida em 1910, na cidade de São Paulo, neta de escravos e imigrantes italianos, Virgínia, sob forte

3 Jones (1989) menciona esta passagem, mas não dá nenhuma referência de sua publicação. Elms (2001) indica que Marie

Bonaparte anotou essa fala de Freud no diário em que registrava sua análise sob o dia 8 de dezembro de 1925.

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influência de seu pai, completou seus estudos na Escola Modelo Caetano Campos, continuando sua

formação na Escola de Higiene e Saúde Pública do Estado de São Paulo (Temperman & Knopf, 2011).

Criado em um momento de progressivo aumento da profissionalização das mulheres das classes médias

urbanas, o curso de Educadores Sanitários do Instituto de Higiene voltava-se para professores primários,

em sua grande maioria mulheres, fazendo parte do processo de modernização do país (Maio, 2010).

Enquanto trabalhava como Educadora Sanitária, Bicudo inicia, em 1936, o curso de Sociologia na Escola

Livre de Sociologia e Política (ELSP), no intuito de compreender melhor como as relações entre raças se

configuravam no país, interesse que parece ter surgido a partir de sua própria experiência como vítima

de preconceito. Durante o curso, que possui fortes influências da Escola de Chicago, tem contato com

alguns textos de Freud, interessando-se então pela psicanálise e, simultaneamente, conhece Durval

Marcondes, então médico escolar, com quem, na década de 50, empreenderia grandes esforços para a

institucionalização deste campo do saber em SP.

Em 1942, Bicudo ingressa na Divisão de Estudos Pós-graduados da ELSP e defende sua dissertação

intitulada Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo em 1945 (Maio, 2010). Neste trabalho,

os achados de Virgínia divergem das visões tradicionais dos sociólogos das décadas de 40 e 50 que

interpretavam o preconceito de cor como subsumido ao de classe. Bicudo faz importantes descobertas

durante essa pesquisa, como a questão da rejeição explícita de negros em relação a negros, a consciência

de cor, manifestada pelo entendimento de que mesmo ascendendo profissionalmente, negros continuavam

a sofrer violências no meio branco, entre outras descobertas.

Socióloga de formação, Virgínia foi a primeira não médica a se tornar psicanalista no Brasil, tendo

inaugurado o divã de Adhelaide Koch, primeira analista didata a emigrar para a América do Sul, pelos

esforços do grupo que daria origem à Sociedade Brasileira de Psicanálise em São Paulo, do qual fazia

parte. Quando do reconhecimento pela International Psychoanalytical Association (IPA) deste grupo em

1944, ocupou o lugar de tesoureira, a primeira das várias funções institucionais de que se encarregaria.

Os esforços pela institucionalização da psicanálise eram paralelos ao interesse de Virgínia pelas questões

raciais. Além de sua dissertação, Virgínia participou de pesquisa financiada pela Unesco sobre as

atitudes dos alunos dos grupos escolares de SP em relação à cor de seus colegas. Os trabalhos, frutos

de tal pesquisa, são publicados em 1955, no livro Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo. Um

ano antes, ela, Durval Marcondes, Lygia Alcântara do Amaral e Judith Teixeira Carvalho haviam sido

contratados pelo Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da Universidade

de São Paulo (USP) e possuíam o objetivo de expandir a psicanálise no Departamento de Psicologia.

Depois de ter passado 5 anos estudando psicanálise na Inglaterra com figuras como Melanie Klein, Bion

e Winnicott, Virgínia retorna ao Brasil na década de 60, tornando-se professora e diretora do Instituto

de Psicanálise da Sociedade Brasileira de SP. Em 70, continuando os esforços pela institucionalização

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da psicanálise, funda o Grupo Psicanalítico de Brasília, lecionando também na Divisão de Saúde Mental

da Universidade de Brasília (UnB).

Personagem ativa da institucionalização e disseminação da psicanálise no Brasil, Virgínia dispensaria

apresentações, no entanto, o que se nota é que aparentemente, também ela foi relegada ao quarto de

despejo da psicanálise brasileira, sendo que os nomes dos pioneiros se fazem muito mais presentes

na nossa história. Outro ponto que se faz notar é que nas obras psicanalíticas de Virgínia, as questões

raciais, tão presentes em suas elaborações no campo da sociologia, parecem apagar-se. Acreditamos que

esta circunstância talvez possa nos dizer algo em relação à abertura da psicanálise para a dimensão racial

e também das condições em que Virgínia atuava. De acordo com Maio (2010), Virgínia foi identificada

como “branca” em seu contrato de trabalho, revelando a ideologia do branqueamento presente na

cultura brasileira – algo que não podemos dizer que ficou em nosso passado.

UMA SÉRIE DE DESPEJOS

Percebemos que, não apenas na história da psicanálise, mas também em outros campos, a figura

do “quarto de despejo”, tão bem descrita por Carolina de Jesus, se faz presente. A própria Carolina

poderia ser incluída em uma longa lista de escritoras que, apesar das grandes forças operantes para

sua deslegitimização, conseguiram romper as barreiras do silenciamento imposto e adquirir certo

nível de reconhecimento. A título de exemplo, poderíamos citar Maria Firmina dos Reis e seu romance

abolicionista, Úrsula, de 1859. Maria Firmina, filha de uma mulher portuguesa e um homem negro, teria

sido a primeira romancista brasileira, mas, provavelmente devido a questões que remontam à sua raça,

seu lugar de pioneira foi objeto de disputa entre críticos e historiadores (Miranda, 2017).

A presença de escritoras, assim como psicanalistas, negras na história de nosso país não deveria causar

surpresa, tendo em vista as origens étnicas do que podemos chamar de “brasileiros” e “brasileiras”.

No entanto, como Conceição Evaristo colocou de forma explícita em sua comunicação oral da Festa

Literária Internacional de Paraty (FLIP), em 2017, as dificuldades enfrentadas por mulheres negras para

publicação de seus trabalhos é algo que até hoje persiste no país, o que, poderíamos pensar, provoca um

apagamento de tais autoras que, muitas vezes, sequer chegam a ser publicadas.

Relembrando as importantes discussões levantadas no V Congresso Nacional de Psicanálise, Direito e

Literatura, realizado ano passado, sobre as violências de gênero a partir das leituras de O remorso de

Baltazar Serapião, podemos notar uma repetição. O silenciamento imposto a estes grupos minoritários,

mulheres, negros/as, pobres, salta aos olhos quando pensamos nas consequências da dominação

histórica, especialmente em países como o Brasil. Espaços em que seja possível a transformação do

silêncio em linguagem, como coloca Audre Lorde, se mostram de extrema importância para a efetivação

de mudanças. Lorde, poeta e feminista afro-americana, citada por Miranda (2017), coloca que:

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Ao tomar forçadamente consciência de minha própria mortalidade, do que desejava

e queria de minha vida, durasse o que durasse, as prioridades e as omissões brilharam

sob uma luz impiedosa, e do que mais me arrependi foi de meus silêncios. O que

me dava tanto medo? Questionar e dizer o que pensava podia provocar dor, ou a

morte. Mas, todas sofremos de tantas maneiras todo o tempo, sem que por isso a

dor diminua ou desapareça. A morte não é mais do que o silêncio final. E pode chegar

rapidamente, agora mesmo, mesmo antes de que eu tenha dito o que precisava dizer.

... E, certamente tenho medo, porque a transformação do silêncio em linguagem e em

ação é um ato de autorrevelação, e isso sempre parece estar cheio de perigos. (p. 53)

Romper o silêncio, revelar o que estava escondido, se tornar vulnerável... Poderíamos dizer que estes são

alguns dos objetivos da psicanálise, ou melhor, das psicanálises. E poder reafirmar tais objetivos em nossa

própria história enquanto grupo – sujeitos que se autointitulam psicanalistas no território brasileiro –

é também uma forma de nos retirarmos do quarto de despejo em que fomos colocados.

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REFERÊNCIAS

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autoria

resumo

FERNANDO CÉZAR BEZERRA DE ANDRADE

Professor da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Membro da Sociedade Psicanalítica

da Paraíba.

CONTATO: [email protected]

Objetivo organizar alguns pensamentos sobre o racismo de uma perspectiva psicanalítica,

guiado pela escrita de Carolina Maria de Jesus (2014), uma mulher que viveu o que narrou,

num gênero textual – o diário. Primeiramente, examino o problema do racismo à luz da TSG.

Adiante, retomo a constituição do racismo como discurso a serviço de um binarismo (branco-

não branco), cujo sistema classificatório organizou e impregnou a cultura brasileira. Em

seguida, trato o racismo como organizador psíquico a serviço do recalque. Por fim, sugiro o

caminho no sentido contrário: a desconstrução do racismo para que novos códigos culturais

mais plurais possam advir e ser empregados, de modo a favorecer traduções psíquicas que

combatam o preconceito e valorizem a multiplicidade de possibilidades de ser, quebrando

com relações de poder injustas, construídas também pela naturalização da desigualdade e

pela assimilação desse indesejável binarismo discriminatório.

PALAVRAS-CHAVE: psicanálise, metapsicologia, Teoria da Sedução Generalizada, crítica

ao racismo, desconstrução do binarismo discriminatório.

A diferença é a cor: o racismo como código mito-simbólico a serviço do recalque em Quarto de despejo

SUMÁRIO

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43Gostaria de inicialmente agradecer pelo renovado convite com que a organização do CONPDL me honra:

sempre é para mim um prazer estar com vocês, que me provocam a refletir sobre psicanálise, literatura

e direito, tomando uma produção literária como eixo dos debates. Neste ano, a tarefa recai sobre Quarto

de despejo, de Carolina Maria de Jesus, e devo confessar que trago para vocês um esboço de ideias em

construção: longe de apresentar-lhes um pensamento acabado ou inovador sobre racismo e psicanálise,

meu objetivo é comunicar-lhes alguns pensamentos que me vêm à mente, quando penso no racismo de

uma perspectiva psicanalítica, guiado pela escrita de uma mulher que viveu o que narrou, num gênero

textual – o diário – revelador de um pensamento inteligente, uma sensibilidade aguçada e uma admirável

capacidade de superação da própria dor, características essas que se ressaltam ainda mais quando se

lembra que o texto autorreferente parece ter sido a única via para o registro da intimidade.

INTRODUZINDO O ARGUMENTO: ENTRE CRIANÇAS E ADULTOS, UMA CONFUSÃO

DE LINGUAGENS

Começo minha reflexão com a passagem do Quarto de despejo que me fez pensar no meu argumento para

hoje. Ela foi retirada do registro de 25 de junho de 1958:

Atualmente as crianças não mais emocionam quando vê uma mulher nua. Já estão

habituadas. As crianças acham que nas mulheres os corpos são iguais. A diferença

é a cor. Os meus filhos vem perguntar-me porque é que o corpo da mulher tem isto

ou aquilo. Eu finjo que não compreendo estas perguntas incomodas. Eles dizem:

- A mamãe é boba. Ela não compreende nada (Jesus, 2014, p.72).

Achei relevante essa tradução de Carolina de Jesus quanto à curiosidade infantil: ela indica uma

passagem que pretendo explorar, do sexual para o étnico-racial, num paralelo que, originalmente feito

pela escritora, revela um mecanismo importante: a diferença mais significativa não está nos genitais,

mas na fenotipia, na pele. Nessa forma de traduzir o sexual, a narradora acredita conhecer a verdade

(sobre o sexual), mas havemos que admitir a possibilidade de que as crianças tenham razão, ao manterem

a curiosidade: ao presumirem que a mãe delas “não compreende nada”, indicam que se mantêm, é claro,

no registro da curiosidade sexual, buscando entender diferenças anatômicas, enquanto a adulta situa

o peso da diferença noutra parte da anatomia: a pele e sua cor. Ao fazer isso, a mãe quer “proteger” as

crianças da explicitação do sexual genital, mas, numa passagem ambígua, indica que a diferença mais

determinante para quem reside no Canindé não está nos genitais, e sim na posição étnico-racial. É a esta,

então, que a tensão se associa mais fortemente, porque as crianças já estariam habituadas à nudez e o

que as atrairia seria apenas a variedade de cores - ou, ao menos, essa é a avaliação da narradora que, na

cena da conversa com seus filhos, de boba não tem nada… A dinâmica da sedução generalizada, como

descrita por Laplanche (2006c), parece bem próxima dessa cena de comunicações ambivalentes, dessa

confusão de linguagens quase intencional.

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44Nesse sentido, para lembrar o famoso aforismo freudiano, a anatomia continua a ser destino (Freud,

1925/1974), mas, obviamente, não de forma biologizante – como fazia o pai da psicanálise, ao pensar a

teoria da castração, e, sim, ideológica. Por esse caminho, tanto a diferença pode ser organizada pelas

especificidades genitais, como pela etnia. Laplanche (2006a), ao tratar das relações entre o gênero

e o sexual, já deu a direção fundamental: o sexual infantil perverso e polimorfo, objeto princeps da

psicanálise, é o resto do recalque do gênero (que é diverso) pelo sexual (que é binário).

O que proponho agora, num paralelo em construção, aberto às contribuições de vocês, é deslocar

o conteúdo dessa equação que explica a redução do múltiplo ao binário, cujo resultado produz

inconsciente, para o terreno da classificação étnico-racial: o sexual infantil perverso e polimorfo também

perpassa outras classificações identitárias – senão como seu resto, ao menos, também nos termos de

Laplanche, no ensaio sobre a “revolução copernicana inacabada”, como seu parasita.

Uma dessas classificações mais importantes a partir da Modernidade Ocidental diz respeito à raça/

etnia – e sua importância é ao menos dupla: porque, no plano cultural, cria e organiza relações com base

na desigualdade naturalizada; e porque, no plano subjetivo, funciona, em continuidade ao plano cultural,

fornece um código complexo, pregnante e fortemente naturalizado para recalcar e traduzir conteúdos

que, vindos do inconsciente, ameaçam o eu. A branquitude e seu presumido oposto inferiorizado,

a negritude (ou, senão, tudo que não for branquitude), são dois elementos que, num binarismo

reducionista, organizam toda uma variedade étnica, facilmente se associando, pela via do recalque

da passividade humana inicial na Situação Antropológica Fundamental, a movimentos da sexualidade

infantil inconsciente.

A passividade a que me refiro compõe, segundo Laplanche (2006c), no binômio característico das

condições originárias da humanização, par com a atividade. No jogo passividade-atividade, o racismo é

um código que, exercido ativamente por quem se presuma superior do ponto de vista étnico, concorre

para que os indivíduos não só ratifiquem seus narcisismos das pequenas diferenças (usando outra

expressão de Freud, de 1921), como se defendam, numa posição sádica, da passividade originária que

os ameaça, vinda da outra coisa interna, associada por Laplanche ao conceito freudiano de masoquismo

primário. Com isso, mediante práticas sociais em retroalimentação constante, mantêm objetos para

investimento pulsional sadomasoquistas e protegem suas identidades do pulsional sexual de morte,

que ameaça objetos mais vulneráveis, como um eu mais fragilizado por reconhecer em si também algum

elemento considerado pelo sistema cultural como periférico.

Como já podem ver, o racismo, nessa perspectiva, é mais um código identificatório que serve para

reassegurar e confortar eus defensivamente narcísicos. No racismo, a diferença étnica é submetida

à identidade, como Freud já fizera observar no tocante ao valor unificador dos mitos grupais, que

conservam os vínculos pela crença na igualdade dos seus membros, em detrimento à exclusão ou

redução de diferenças, projetadas nos indivíduos externos ao grupo.

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45Peço licença para fazer uma síntese de meu argumento antes de avançar: reconhecendo o racismo

como uma produção cultural que se presta a fornecer um código ideológico de criação e organização

de identidades com base na desigualdade, a partir do elemento étnico-racial, estendo a teorização

de Laplanche (2006b) sobre a produção de classificações e de códigos mito-simbólicos – a de que um

produto inconsciente (o sexual infantil) decorre do recalque de uma categoria social polimorfa (o gênero)

por outra categoria sociobiológica binária (o sexo) – ao caso do racismo. Como código mito-simbólico a

serviço do recalque da polimorfia étnica, o racismo fornece um sistema identificatório excludente e (des)

igualador e, ao criar duas categorias – “raças” e “desigualdade através de raças” – reduz a multiplicidade

étnica, associando-a a dois grupos organizados: os superiores (geralmente brancos, donos de prestígio

simbólico e poder material) e os inferiores (geralmente não brancos, escalonados em posições de menor

prestígio e maior vulnerabilidade, até o limite da periferia mais extrema).

Ainda que reconheça o risco epistemológico de que, na aplicação dessa equação laplancheana,

originalmente ligada a conteúdos sexuais, ao caso do racismo, eu incorra em desvios muito distantes

do sexual infantil, lembro que, a partir do recalque, o movimento tradutivo promove justamente isso:

desvios. Desde que não nos esqueçamos de onde viemos (e, de certo modo, para onde voltaremos), creio

podermos continuar. Outra observação, porém, ainda me parece importante neste momento inicial: a de

que o ganho compensa o risco: ou seja, a crítica a um dos fundamentos da ideologia étnico-racial solapa

ainda mais esse sistema mito-simbólico e concorre para sabotá-lo em um de seus alicerces mais preciosos

– o de sua naturalização, que, numa sequência, favorece sua disseminação e mantém sua eficácia

narcísica para conservar laços sociais em que as diferenças continuem a ser tratadas como ameaças

às identidades. Pois, como lembra Laplanche (1988, p.60), “a psicanálise [não sendo] uma disciplina

normativa ... pode ajudar a descobrir e a denunciar certas vias de alienação”.

Passo agora a alguns comentários ao texto de Carolina de Jesus, com duas advertências sempre a

guiarem minhas incursões e que merecem ser citadas, apesar de óbvias: nem pretendo que a teoria

psicanalítica dê conta do racismo como um todo, já que ele é um fenômeno social – e, como já observou

Laplanche (1988, p.60), a psicanálise não pode “enunciar uma teoria unitária do social” –; nem, tampouco,

Carolina de Jesus está sob análise, mas o que de sua narrativa transparece como mote – aproveitado em

passagens que evidenciam muito mais processos intersubjetivos do que exclusivamente individuais, e

que provavelmente nos tocam a todos.

UM RACISMO NADA CORDIAL

O binarismo racista no Ocidente Moderno, como lembra Santos (2005) ao retomar o raciocínio de

Todorov, funda-se sobre uma longa história em que a cor negra foi negativada. No século XVIII, porém,

o surgimento da doutrina racialista criou, objetivou e ancorou representações que constituíram raças

e, com isso, um sistema de classificação foi consagrado através da crença numa natureza contínua entre

fenotipia e moralidade, na universalidade e na hierarquia dos valores intrínsecos àquela organização:

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46decorrem a partir desse discurso “um julgamento moral e um ideal político (submissão das raças

inferiores, eliminação)” (Santos, 2005, p.46).

Uma vez estabilizado no século XIX e vulgarizado no senso comum, “o termo raça passa a ser utilizado

para designar a idéia de diferenças físicas transmitidas hereditariamente”, de caráter imutável e

hierarquizante, já que algumas seriam presumidamente menos evoluídas, mais primitivas e, em

decorrência, inferiores. “A idéia da existência de uma raça inferior (derrotada na luta pela vida) levou

à suposição da existência de uma ‘sociedade’ inferior que abrigasse resíduos dessa raça derrotada”

(Santos, 2005, p.52) - donde a ideia da necessidade de uma purificação genética e, no caso do Brasil,

do embranquecimento.

O embranquecimento decorreria do que a ideologia étnico-racial, difundida a partir de discursos

presumidamente científicos no final do século XIX e início do século passado, estabelecera como uma

manifestação racista tipicamente brasileira: a integração do negro na sociedade brasileira por meio de

sua submissão. “O Brasil, mais uma vez, seria retratado como um paraíso oposto ao inferno, à guerra,

à intolerância, ao preconceito reinantes ao norte do Equador” (Santos, 2005, p.87), ainda que nele a

imigração branca viesse a remediar a forte presença negra, cuja população gradualmente, pela ansiada

miscigenação em direção à branquitude, deveria ser eliminada, ao mesmo tempo em que os conflitos

étnico-raciais seriam desconsiderados: essa falsa harmonia se manifestaria por meio da cordialidade,

variável a assimilar negros e negras como integrantes do presumido povo brasileiro, numa posição

sempre inferior.

Essa visão racista ... operava em várias esferas: provar a todos de maneira sutil a

inferioridade dos negros e a superioridade dos brancos; atestar que no Brasil nunca

houve barreiras raciais, todos eram tratados igualmente ...; gerar um sentimento

de repulsa do branco pelo negro e de resignação do negro diante de sua própria

inferioridade (Santos, 2005, p.119).

Gradualmente, como lembram Nicolau e Muller (2015), diante das lutas e conquistas do movimento

negro, esse racismo científico perdeu totalmente sua legitimidade no discurso legal brasileiro: o racismo

tornou-se crime hediondo, mas nem por isso desapareceu. Como indica Rodrigues (1995), sua nova

faceta transparece nas práticas de um racismo cordial, que consiste em “ter atitudes preconceituosas

em relação a pessoas negras, mas ... minimizá-las. Uma demonstração de cordialidade, talvez, para não

ofender ainda mais aquele que se discrimina” (p.12).

Ora, talvez pelo momento de sua escrita - e certamente por sua posição periférica - o testemunho

de Carolina de Jesus escancara o contrário: mesmo no Canindé, as barreiras raciais são claras, a

desigualdade é nítida, nada há de cordialidade no racismo que divide os já periféricos, demonstrando

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47que a ideologia racial reproduz entre os mais vulneráveis níveis ainda mais profundos de submissão,

imbricando-se a outros atributos identitários posicionados em lugares de menor poder, como o gênero

feminino. Em 24 de julho de 1955, ela escrevia: “Sentei ao sol para escrever. A filha da Silvia, uma menina

de seis anos, passava e dizia: - Está escrevendo, negra fidida! A mãe ouvia e não repreendia. São as mães

que instigam” (Jesus, 2014, p.26).

O fato de que crianças tão pequenas já se comportem tão agressivamente com base na representação de

raça ilustra a precocidade com que esse caráter ideológico naturalizador de desigualdades pela biologia

penetra nas identidades em construção. Larrain (2003), numa perspectiva associada ao interacionismo

simbólico, lembra que, na formação das identidades pessoais, além da relação com objetos e bens

materiais, contam decisivamente conceitos coletivamente compartilhados (com os quais é possível

classificar-se e descrever-se) e a interação com outras pessoas.

No grupo das categorias coletivas empregadas para a autodescrição, encontra-se o conceito de raça/

etnia (entre outros, como gênero, classe social e religião), enquanto os outros humanos podem ser

significativos (em relação aos quais há assemelhamento) ou diferenciados: “Na construção de qualquer

versão de identidade, a comparação com o ‘outro’ e a utilização de mecanismos de diferenciação em

relação ao ‘outro’ têm um papel fundamental: alguns grupos, modos de vida ou ideias se apresentam

como fora da comunidade” (Jesus, 2014, p.35). É aqui que a metáfora que dá nome ao livro de Carolina de

Jesus bem parece aplicar-se:

Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus

lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na

favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de

despejo (Jesus, 2014, p.37).

Nesse universo de representações, as identidades constroem-se à custa de muita tensão, de muitos

atritos e conflitos: não há cordialidade, mas polarizações, em que a negritude é ideologicamente

posicionada como um dos atributos identitários mais desvantajosos, a que se associa, na posição de

Carolina, o do gênero feminino: mesmo apresentando uma crítica muito inteligente às contradições

que a situam nesse lugar periférico, Carolina vê-se abatida pela miséria, pela fome e pelo racismo que a

põe num dos últimos lugares socioculturais e econômicos: “estou no quarto de despejo, e o que está no

quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo” (Jesus, 2014, p.37).

Essas imagens autorreferentes são fortes, na mesma intensidade com que a escritora era alvo de ofensas

verbais provenientes de crianças bem pequenas, de certo modo atenuadas pela consideração que

Carolina de Jesus tinha por crianças e pela consciência de que às novas gerações o racismo é apresentado

como código de tratamento natural, sem questionamentos. “Cidadão indesejado, cidadão por acaso, por

força e vontade branca, o negro deveria resignar-se à sua condição de estranho à civilidade, de outro

indesejável”, lembra Santos (2005, p.132).

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48Outro indesejado, o negro é diferenciado nesse discurso, para servir como referência negativa de recusa

e distanciamento identitário: o que o torna objeto de racismo, então, constitui-se como um código de

natureza mítica, com sua linguagem, seus valores e suas classificações, construído ao longo de séculos

pelo discurso de intelectuais para referendar o etnocentrismo europeu branco e constituir identidades

marcadas pela desigualdade – no caso brasileiro, além da segregação, esse sistema representacional

desumaniza seus alvos pela associação com animais irracionais. Carolina de Jesus enxerga isso e expressa

essa inferiorização em alegorias:

E os favelados são os gatos. Tem fome ... Havia pessoas que nos visitava e dizia: -

Credo, para viver num lugar assim só os porcos. (Jesus, 2014, p.35)

Os favelados aos poucos estão convencendo-se que para viver precisam imitar os

corvos (Jesus, 2014, p. 41)

Essa animalização a que se associa o racismo é expressão cultural decorrente de séculos de escravidão,

regime que presumiu a desumanidade dos negros, como lembra Santos (2005), a respeito da ideologia

étnico-racial consolidada no século XIX no Brasil: “A descrição do comportamento do escravo

como próximo ao do animal ou semelhante ao de uma criança mal adaptada à sociedade atesta,

definitivamente, a inferioridade racial do negro” (p. 97).

O RACISMO COMO ORGANIZADOR PSÍQUICO A SERVIÇO DO RECALQUE

Se o racismo é uma ideologia a desigualar socioculturalmente, à custa da criação de uma alteridade

negativada que inferioriza e animaliza as pessoas negras, como pensar a crítica a esse sistema com apoio

na teoria psicanalítica? Não seria mais adequado tratar de repressão – palpável ao longo dos séculos,

contra as pessoas negras, sobretudo na escravidão e em suas consequências sócio-históricas, de que

também tratamos ao pensar Quarto de despejo – do que tentar recorrer ao conceito de recalque?

Como destaquei, ao referir-me a Larrain (2003), há, certamente, uma articulação entre o psiquismo

individual e os processos simbólicos culturais, em que a psicanálise tem algo a dizer acerca dos processos

inconscientes envolvidos. O primeiro a tecê-la a seu modo foi ninguém menos que o próprio Freud

(1938/1974, 1939/1974), que desde muito cedo se percebeu objeto de antissemitismo. Seu último grande

ensaio social tratou precisamente de responder sobre os motivos desse racismo envolvendo judeus, e

analisar criticamente a representação de Moisés revelou não só o caráter histórico e representacional

de convicções naturalizadas – como a da identidade hebraica, com base no personagem Moisés (Freud,

1939/1974) –, mas também os conteúdos recalcados que retornam sob a aparência de simpatia e

cordialidade para com as vítimas do preconceito (Freud, 1938/1974).

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49Ainda que bastante discutível, a hipótese freudiana de 1939 para explicar o antissemitismo interessa aqui

por sua arquitetura: a religião judaica estaria a meio caminho entre, de um lado, um conteúdo esquecido,

similar ao recalcado (o animal totêmico em substituição ao pai da horda primeva, assassinado); e um

conteúdo manifesto (a divindade), através da figura condensada (e condensadora) do heroi egípcio-

hebreu. Enquanto um compósito, as crenças sobre Moisés seriam o fundamento de uma identidade

coletiva reunindo tradições não só distintas, como opostas (a egípcia e a hebreia).

Em síntese, para analisar o preconceito, Freud (1930/1974c) examinou, então, a identidade que lhe é

correlata: desse modo, teorizou sobre o processo de constituição da identidade coletiva – consagrar

como verdade a invenção sobre um passado mítico – e seu produto – o conteúdo inventado sobre uma

superioridade étnico-religiosa que, paradoxalmente, atrairia para aqueles que a compartilhassem (no

caso, os judeus), o ódio dos grupos majoritários.

Os judeus não seriam senão a ilustração pungente de um processo sociocultural que envolve todos os

grupos humanos e que se volta contra esses próprios grupos, no contato com outras sociedades: o do

narcisismo das pequenas diferenças. No par complementar aos cristãos e aos europeus, eles estariam

no lugar do estranho, do outro de quem se distanciar, objeto no qual investir o pulsional destrutivo, ao

homogeneizar suas características e as atacar, ridicularizar e inferiorizar. O corolário disso é a conquista

e manutenção da coesão positiva e idealizada no interior do próprio grupo de iguais.

O preconceito, no plano social, como expressão da constituição e repressão do diferente, concorre,

então, para sustentar o recalque que, nessa dinâmica, mantém distantes, “no inconsciente,

representações ligadas a uma pulsão” (Laplanche & Pontalis, 1991, p.430), em função da ameaça que

elas, investidas libidinalmente, provocam a outras instâncias (notadamente o eu e seu ideal)”. O racismo,

por conseguinte, no plano cultural, naturaliza um código ideológico que oferece parâmetros binários

– branquitude e negritude – a uma polimorfia étnico-racial que se vê reduzida a duas polaridades –

simetricamente ao código sexual que converge apenas para machos e fêmeas, como base biologizada de

apenas dois gêneros, o masculino e o feminino.

Não à toa, o racismo se perpetua pela banalização da violência através da repressão a quem se rebelar

contra as desigualdades; ou, senão, o abandono, pelo Estado, das populações excluídas à instabilidade

socioeconômica e à insegurança pública. Tudo isso se estampa no texto de Carolina de Jesus:

E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome! (Jesus, 2014, p.32).

Devo reservar as palavras suaves para os operários, para os mendigos, que são

escravos da miséria (Jesus, 2014, p.61).

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50O departamento Estadual de Saúde publicou no jornal que aqui na favela do Canindé

há 160 casos positivos de doença caramujo. Mas não deu remedio para os favelados. ...

Eu não fiz o exame porque eu não posso comprar os remédios (Jesus, 2014, p.100).

... um preto que ... estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e

amarrou numa arvore. O guarda civil é branco. E há certos brancos que transforma

preto em bode expiatório. Quem sabe se guarda civil ignora que já foi extinta a

escravidão e ainda estamos no regime da chibata? (Jesus, 2014, p.108)

Recorrer à Teoria da Sedução Generalizada (TSG) para interpretar essa polarização binária permite

entender o racismo como organizador psíquico a serviço do recalque, mas sem supor, obrigatoriamente,

uma coextensão direta entre psiquismo individual e organização social nem uma escala transindividual

estabelecida pela linguagem1. O modelo laplancheano, ao situar a unidade de análise na situação

antropológica fundamental – o (des)encontro entre adulto com inconsciente sexual infantil e a criança

incialmente desprovida de sexualidade inconsciente –, permite uma análise historicista que abre tanto

possibilidades de diálogo com a teoria da mútua constituição entre identidade individual e identidade

coletiva (Larrain, 2003) quanto admite reconhecer na relação dos sujeitos consigo mesmos bem mais do

que uma posição decorrente de uma combinatória de categorias coletivas previamente estabelecidas:

ressalta-se o caráter único, original – quiçá mesmo irreproduzível – de cada tradução com que os códigos

mito-simbólicos do racismo são empregados.

Desse ponto de vista, parte-se do reconhecimento pelo qual o racismo, para ser interpretável

psicanaliticamente, precisa ser compreendido como parasitado pela sexualidade infantil perversa

polimorfa – conteúdo próprio ao inconsciente. Nesse sentido, dado o caráter pulsional dessa sexualidade,

ela investe sobre objetos que permitirão – como no modelo do narcisismo das pequenas diferenças,

mas numa escala intrapsíquica –, entender a relação do eu e suas defesas com o ataque pulsional por

ele sofrido: quando mais desligada estiver a pulsão, mais sexualmente mortífera poderá ser para o

eu, que a investirá narcisicamente fora de si, em objetos externos – no outro humano (assumindo,

aqui, um tratamento simétrico àquele dado ao grupo atacado pelo preconceito, no narcisismo das

pequenas diferenças).

1 Na esteira do paradigma coextensivo entre psiquismo individual e funcionamento social adotado por Freud com sua teoria

filogenética reinvocada em “Moisés e o monoteísmo”, por exemplo, um paradigma estruturalista também permite assim

interpretar: “o racismo se tornou um sintoma social, e o totalitarismo moderno nos mostrou até onde pode ir o humano quando se

acirram as diferenças .... Enquanto manifestação do mal-estar na civilização, o racismo tem a ver não apenas com um determinado

dispositivo social como também com a estrutura do sujeito, razão pela qual pode ser abordado pela psicanálise como um sintoma

social e histórico, significado pelo Grande Outro, algo capaz de mudar com o tempo, acompanhando as transformações do Grande

Outro – tanto no plano pessoal como no coletivo” (Koltai, 2008, p.66, grifos nossos).

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51O racismo, logo, ao inferiorizar as pessoas negras, passa a ser entendido como um código cultural

que envolve representações e práticas capazes de oferecer aos sujeitos dispositivos para recalcar

representações ameaçadoras ao eu e manter em relativo e provisório equilíbrio as forças desse pulsional

originalmente desligado no interior do psiquismo que, ativamente, busca controle sobre o inconsciente

através do investimento sobre o outro humano externo, que se torna, pela linguagem do preconceito,

objeto recorrente da destrutividade inerente ao sexual desligado.

A dinâmica que explica a necessidade desse processo, segundo o modelo laplancheano, é a do binômio

atividade/passividade na dissimetria própria à situação antropológica fundamental: uma vez investida de

mensagens enigmáticas, a criança, paralelamente à conquista da autonomia psíquica, buscará dar conta

da outra coisa interna, do outro psíquico que é o inconsciente, recorrendo, na intersubjetividade, ao outro

humano externo.

Aplicando-se essa dualidade ao par sadismo/masoquismo, entendo o racismo como expressão mítica que

transita entre esses dois motores: pelo sadismo, ativamente, um sujeito racista consegue suplantar sua

posição originalmente passiva e investir o excesso pulsional dela decorrente sobre um objeto que, caso

submisso, será posto na posição masoquista.

Os conteúdos recalcados no interior do psiquismo do racista sádico serão mantidos no seu inconsciente:

a identificação com a fragilidade do alvo do preconceito pode ser assustadora, terrível, e o eu racista é

preservado dessa proximidade com seus próprios limites identitários.

Por esse arranjo teórico, continuam a fazer sentido as interpretações propostas por algumas outras

teorizações, como a apresentada por Costa (1984), retomando o trabalho de Neuza Souza: o racismo pela

via masoquista implica na assimilação, pelo negro, dos atributos identitários desprestigiados: “Ser negro

é ser violentado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a

de encarnar o corpo e os ideais de Ego do sujeito branco e de recusar, negar e anular a presença do corpo

negro” (p.104). Já na posição sádica, encontra-se um constante representar negativamente, à semelhança

do já bem descrito pela análise de Santos (2005): “A violência racista do branco é exercida, antes de mais

nada, pela impiedosa tendência a destruir a identidade do sujeito negro” (p.104).

Ainda que esses pontos de chegada, apresentados por Costa, sejam um resultado teórico interessante,

o raciocínio que se percorre para alcançá-los parece desnecessariamente pesado: ao apelar para “regras

das identificações normativas ou estruturantes”, faz-se uma leitura que fundamentalmente retoma o

percurso edípico clássico e mantém a garantia da superação da violência na intervenção paterna, que

liberaria a criança para a cultura. Sem adesão a tais regras, manter-se-ia o acesso à cultura apenas pelo

fetiche da cor – no caso, a branca, privando negros de sua própria ordem identificatória.

Ora, um modelo cuja trajetória conserve as considerações sobre o Édipo a fim de analisar

psicanaliticamente os fundamentos do racismo incorre no sério risco de manter ideologias que esse

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52complexo nuclear atrai para si, no interior da teoria psicanalítica, como é o caso do tratamento ideológico

com que se trata o gênero (Laplanche, 2006b): parte considerável pelas causas da violência que alimenta

o racismo está nas origens da relação com a mãe, ficando a parte complementar, de introdução à cultura,

nas mãos paternas. Com isso, entendo que se perde a dialética entre ferir – traumatizando a criança pelo

excesso de excitação inerente à mensagem enigmática – e curar a ferida – criar condições para a criação

e o funcionamento do aparelho tradutor no psiquismo, como é o caso da oferta de um código para o

esforço de elaboração psíquica dos restos inconscientes. Não é demais lembrar que quem seduz também

pode ajudar a traduzir e que o fetiche – no caso, o da branquitude – é outra das facetas que assume o

enigma da sexualidade perversa polimorfa com que o adulto envolve a criança.

Na leitura da TSG, o racismo ganha o caráter de mito simbólico que apoia várias das formas subjetivas de

tradução para o problema da tensão entre atividade-passividade na sexualidade infantil – problema esse

que assume, com frequência, os traços sadomasoquistas. Esse mito, que consiste numa ideologia étnico-

racial, pode ser analisado, historiado para ser desmantelado, requerendo, da psicanálise, as condições

para que se entenda como, no âmbito das fantasias inconscientes ele entrou na hermenêutica que cada

sujeito desenvolve para dar conta das circulações pulsionais.

DESCONSTRUIR O MITO RACISTA PARA CONSTRUIR CÓDIGOS MAIS PLURAIS:

PARA CONCLUIR

Se o racismo é um esquema que se retroalimenta, como concorrer para seu abandono sem perder o

trabalho psicanalítico? A resposta laplancheana já foi sugerida, no início desta fala: descobrir e denunciar,

pela análise, as raízes da alienação a um projeto narcísico que se aproxima do que Freud começava a

descrever de forma mais distinta, a partir de 1914. Trata-se do superego sádico, intuído como sede

de vários pré-conceitos inflexíveis e fechados, capaz de aprisionar um eu mais vulnerável, a partir das

identificações do sujeito com idealizações rígidas, em decorrência de mensagens que se intrometem no

psiquismo, sem qualquer chance para a tradução (Dallazen & Kupermann, 2008).

Assim como nas relações sociais, repete-se, simetricamente, no coração da subjetividade, a dinâmica

complementar de dissimetria de poderes, até que um novo evento a descompense (como o trauma),

a substitua ou até mesmo a balanceie, no caso da oferta de códigos e mitos simbolicamente alternativos.

Para pensar ainda no Quarto de despejo, é difícil deixar de reconhecer algumas marcas que imagino terem

se contraposto na vida de Carolina de Jesus – como o eixo contínuo entre a filiação (em relação a sua

mãe) e a maternidade (em relação aos três filhos).

Mas é a própria atividade literária – envolvendo a leitura e a escrita – que Carolina aponta repetidamente

como estratégia de simbolização que não só informa, ilustra, mas desaliena. No que aparentemente seria

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53a confirmação do submeter-se, surgem a fantasia – e a partir dela, o exercício estético – como saídas

que retraduzem os excessos pulsionais – e as inúmeras, insistentes faltas materiais com que a moradora

do Canindé era obrigada a lidar: seu estilo testemunhal, autobiográfico, alcança, na forma como no

conteúdo, a capacidade de recusar os códigos racistas:

Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na

luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista

circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades. É preciso criar este

ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela. (Jesus, 2014, p.58)

Assim, como se referem Tirloni e Marinho (2014),

A estrutura fragmentada do diário de Carolina, marcada por frases curtas e

paratáticas, por síncopes e elipses, contribui para reforçar a expressão poética de uma

existência fragmentária, interrompida, feita de fatos que se empilham aleatoriamente

e se descartam displicentemente como objetos de despejo. Em construções

estilísticas. (p.263)

Tirloni e Marinho (2014), ao sublinharem o caráter ambivalente da escrita de Carolina de Jesus,

percebem apropriadamente:

o eu-lírico é também o objeto de seu próprio discurso. ... Essa dupla função sujeito-

objeto espelha o posicionamento e o lugar discursivo a partir do qual fala a escritora,

sua ambivalente visão de mundo, sua condição de autora à frente de seu tempo e de

seu entorno. (p. 264)

Nessa duplicação de si, Carolina de Jesus aponta para uma saída do circuito fechado do código racista:

postular-se em outro lugar, supor-se possivelmente outra, outras. Em vários tempos: a infância, o

presente duríssimo, a eternidade. Disso, talvez o melhor exemplo que me ocorre está na resposta ao

diretor do circo, que preconceituosamente lamenta:

- É pena você ser preta.

- Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. ... Se é

que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta. ... O branco é que diz que é

superior. Mas que superioridade apresenta o branco? ... A enfermidade que atinge

o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não

seleciona ninguem (16 de junho de 1958). (Jesus, 2014, pp. 64-65).

Diante disto, o contraponto também se faz: Carolina é capaz de resistir aos ataques racistas e, mesmo se

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54reconhecendo num dos últimos lugares da revela, só o faz pela posição econômica que ocupa, não pela

cor de sua pele: neste aspecto, investe sobre si uma positividade inteligente e poética, que impressiona.

No tocante às representações negativadas sobre a negritude, há uma expressão clara e recorrente sobre

a discordância da autora em relação ao conteúdo do preconceito racial, uma recusa explícita de submeter-

se de modo masoquista ao lugar inferior por conta da cor da pele, concomitantemente a uma insistência

sobre a positividade de suas identificações com a negritude.

Eis um trabalho que já não é psicanalítico, strictu sensu, mas é antropologicamente fundamental: aquele

de produzir negritudes e branquitudes polimórficas, sem que, com isso, os colonialismos atuais sejam

esquecidos ou negados, para que possam não mais servir como códigos de exclusão e desigualdade.

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55REFERÊNCIAS

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Laplanche, J. (2006c). A partir da Situação Antropológica Fundamental. In J. Laplanche, Sexual: a

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56Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (1991). Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.

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Tirloni, L. P., & Marinho, M. (2014). Carolina Maria de Jesus e a autorrepresentação literária da exclusão

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autoria

resumo

LUCIENE AZEVEDO

Doutora em Literatura Comparada. Professora da Universidade Federal da Bahia – UFBA.

CONTATO: [email protected]

O ensaio toma como ponto de partida as reflexões de Boris Groys (2014) sobre a relevância

que o papel do autor vem assumindo junto à sua produção para efetuar a leitura de Quarto de

Despejo de Carolina Maria de Jesus. Utilizando a noção de “desenho de si” do filósofo alemão,

o ensaio analisa a inscrição no campo literário brasileiro de Carolina Maria de Jesus e defende

que a autora assume a responsabilidade pelo desenho de si mesma de maneira ambivalente

em relação aos elementos fundamentais da autoprodução de si, principalmente em relação à

escrita do diário e à condição de favelada.

PALAVRAS-CHAVE: desenho de si, autoria, Carolina Maria de Jesus

Uma figuração de autoria para Carolina Maria de Jesus

SUMÁRIO

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58“Pra dizer a verdade, eu tenho nojo deste Diário”

(FBN rolo 1, 27-06-1960 apud Rosito, 2015, p. 278)

“A arte contemporânea deve ser analisada, não em termos estéticos, mas em termos de poética. Não

a partir da perspectiva do consumidor de arte, mas a partir da perspectiva do produtor” (Groys, 2014,

p.15). Leio a defesa de Boris Groys a favor do que ele considera uma virada necessária nos estudos

sobre a arte hoje. Na visão do filósofo alemão, parece mais contemporâneo pensar as “práticas artísticas

como transformações radicais que vão da estética à poética, mas especificamente na direção de uma

autopoética, na direção da produção do próprio Eu público” (Groys, 2014, p. 16).

A colocação parece uma resposta implícita à ideia de estética relacional de Nicolás Bourriaud (2009), que

defende uma “forma de arte cujo substrato é dado pela intersubjetividade” entre observador e quadro”

(p.21). Ao chamar a atenção para a “produção de um efeito de visibilidade” (Groys, 2014, p. 17) percebido

no gesto de muitos artistas contemporâneos, Groys (2014) rejeita entender esse movimento como pura

“mercantilização do Eu” (p.17), pois acredita que parte do interesse da produção artística contemporânea

reside na possibilidade que nos oferece de observar o movimento realizado pelo artista que vai do

“interesse pelo mundo externo na direção da construção autopoética de seu próprio Eu” (2014, p. 16).

Groys (2014) parece sugerir que na relevância do papel do autor junto à sua produção está uma das

chaves para compreender a reelaboração crítica, política do papel das artes hoje. Interessado em

analisar como os artistas desenham-se artisticamente, Groys (2014) retoma brevemente a história do

design para pensar o “desenho de si”, no qual os artistas parecem investidos hoje. Segundo o filósofo, a

grande diferença entre o que chama de “artes aplicadas tradicionais” e o design moderno, nascido com

as vanguardas do início do século XX, está fundada na “oposição metafísica entre aparência e essência”

(Groys, 2014, p.21), pois enquanto as primeiras prezam o caráter meramente utilitário e mercadológico

do objeto, o desenho moderno, ou antidesenho, como o trata Groys (2014), “quer eliminar e purificar

tudo o que se acumulou na superfície” dos objetos a fim de permitir que o sujeito “seja capaz de descobrir

as coisas por si mesmo” (p. 22).

Groys (2014) reconhece aí uma dimensão ética na qual os “consumidores assumem a responsabilidade

por sua própria aparência e pelo desenho de suas vidas cotidianas” (p. 31). Ao constatar que nossa época

nos impinge a “obrigação do desenho de si”, Groys (2014) quer superar a dicotomia moderna entre a

“desinteressada contemplação estética” e o “uso das coisas guiado pelo interesse” (p.34) e recuperar a

aliança entre ética, estética e política, entendendo a manifestação do Eu, do autodesenho de si como uma

disposição que faz pensar o mundo.

O que Groys (2014) chama de autodesenho é a possibilidade de o próprio artista transformar-se em

obra, expondo-se de uma “maneira radical ao olhar do outro” (p.39). E aqui eu gostaria de aproveitar essa

reflexão para pensar a inscrição de Carolina Maria de Jesus como autora que quer “pôr o nome na capa”

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59de um livro assumindo a responsabilidade pelo desenho de si mesma de maneira ambivalente em relação

aos elementos fundamentais da autoprodução de si como autora, como a escrita do diário e a condição

de favelada.

* * *

Abel Barros Baptista analisa, o insólito método de Paulo Honório, que, nos dois capítulos iniciais de São

Bernardo, de Graciliano Ramos, pretende escrever um livro pela divisão do trabalho:

Dirigi-me a alguns amigos, e quase todos consentiram de boa vontade em contribuir

para o desenvolvimento das letras nacionais. Padre Silvestre ficaria com a parte

moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação e a sintaxe; prometi

ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio

Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria o plano,

introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria

o meu nome na capa. (Ramos, 2010, p.7)

Baptista (2005) afirma que o inusitado método de composição do livro é derivado da “incompetência

literária” para contar sua vida, tal como reconhecida pelo próprio Paulo Honório. E é aí que o crítico

identifica um paradoxo, pois ao tomar para si a tarefa de pôr o nome na capa, afirma Baptista (2005),

Paulo Honório reivindica a “responsabilidade da iniciativa e do resultado” (p.134) como se estivesse ao

mesmo tempo assumindo e desvestindo-se da condição de autor: Paulo Honório, diz Baptista (2005),

“faz da assinatura da capa a primeira marca de sua decisão: escreve tendo em conta o horizonte de

publicação, considerando o destino do que escreve enquadrado num livro, publicado e divulgado” (p.152).

Mas, ao ler os dois primeiros capítulos preparados por Gondim, a autoria delegada vai ladeira a baixo.

Gondin “acanalhou o troço” (Ramos, 2010, p.9), como afirma o personagem de Graciliano Ramos, e Paulo

Honório rejeita a assinatura. Para não ficar sem livro, no entanto, toma para si a tarefa de contar sua

história, mas é peremptório: “Não pretendo bancar escritor” (Ramos, 2010, p. 13).

O projeto de escrita de Paulo Honório dá o que pensar se imaginamos a figuração da autoria como uma

marca identitária para Carolina Maria de Jesus. Ao contrário de Paulo Honório, Carolina abriu um crédito

em seu próprio nome, incorporando a escrita à rotina dura de trabalho: “Eu cato papel, ferro, e nas horas

vagas escrevo” (Jesus, 1995, p. 93), reivindicando o reconhecimento de sua assinatura como escritora.

Segundo depoimento de sua filha, Vera Eunice, mencionado por Sergio Barcellos (2015) Carolina

“costumava confiar cadernos a qualquer pessoa que julgasse capaz de intermediar uma publicação ou de

promover sua obra” (p. 13) e aparições de seu nome em reportagens que datam da década de 40 podem

servir como indício de que “a escritora já vinha produzindo e acumulando seus escritos, pelo menos, a

partir do início dos anos quarenta” (p.15).

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60Assumindo para si a tarefa de “bancar-se escritora”, Carolina luta por uma assinatura de autor ou como

ela mesma diz “o que eu sempre invejei nos livros foi o nome do autor” (1961, p. 33). Ao escrever em

inúmeros cadernos, em diferentes gêneros, Carolina assume a responsabilidade pela iniciativa e almeja

como resultado “pôr seu nome na capa” de um livro.

A primeira oportunidade, bem conhecida de todos nós, instaura a assinatura de Carolina Maria de Jesus.

Ao visitar a favela do Canindé, onde Carolina estava morando à época, um jovem repórter, Audálio

Dantas, fica impressionado com a “competência literária” que encontra nos manuscritos. Como bem já

notou Sergio Barcellos, lendo com atenção a “apresentação” que Dantas faz à primeira edição de Quarto

de Despejo, é possível perceber que é Carolina quem o “atraiu para seu barraco a fim de entretê-lo com

seus cadernos” (Meihy, 2015, pp. 262-263).

Em 1960, o nome de Carolina Maria de Jesus aparece pela primeira vez na capa de um livro. Quarto

de despejo apresenta aos leitores uma figura de autora que ficará marcada pela assinatura da escrita

diarística e pela condição de “favelada”. O diário e a favela funcionarão como dispositivos que na

“representação que é o livro, apresentam o autor escritor e dão a ele um nome singular” (Marin, 1999,

p.131), criando assim uma figuração de autoria que funcionará ao mesmo tempo como veneno e remédio

para a autora.

Afinal, a publicação do livro inscreve o nome de Carolina Maria de Jesus como autora, desenhando

para si uma imagem de escritora há muito cultivada. Mas parte desse desenho, parte da “construção

autopoética de seu próprio Eu”, para falarmos como Groys, pode ser entendida como uma marca que

custa à autora assinar. O que estou sugerindo é que Carolina tinha de se dobrar à “obrigação do desenho

de si” construído desde seu surgimento para o campo literário. Mesmo antes da publicação de Quarto de

despejo, vários de seus comentadores assinalam a ambivalência notada em entradas de diário: “É um livro

horroroso! O livro que eu nunca pensei escrever. É o livro que vai desgraçar a minha vida e o livro que vae

regridir a minha existência pensei” (Jesus apud Perpétua, 2014, p. 248).

Por mais que a rejeição ao livro que põe seu nome na capa possa ser tomada como passageira ou como

um dado a mais da personalidade controversa da autora (afinal, sua fortuna crítica não cansa de alardear

o embevecimento da autora com a repercussão do lançamento), acredito que aí, nessa hesitação, é

possível ver uma contradição entre o desenho de si que Carolina gostaria de traçar ao longo de sua

trajetória como escritora e a maneira como o lançamento de Quarto de despejo projetou um efeito

de visibilidade para sua carreira, fazendo com que ela assumisse um compromisso com a “obrigação

do desenho de si”, como escritora de diários e “favelada”. Ou, nos termos de uma de suas estudiosas:

“O sonho de dedicar-se à escrita ficcional se expõe na escrita do cotidiano, a que ela continua fiel.

Essas contradições serão justificadas pelo retorno que a publicidade sobre o diário lhe dá, que é o seu

reconhecimento público como escritora” (Perpétua, 2003, p.73).

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61Assim, a expressão que retiro do filósofo alemão Boris Groys, “obrigação do desenho de si”, parece cair

como uma luva para explicar como Carolina está presa à transparência da representação com que os

leitores querem lê-la ou estão dispostos a aceitá-la. Apesar de acreditar que o retrato de autoria nascido

com o primeiro livro com seu nome na capa poderia ganhar uma dimensão transitiva, franqueando-lhe

a publicação de sua ficção (romances, poesias, peças teatrais), Carolina tem de se constituir como um

sujeito-autor que se identifica com a produção de sinceridade exigida pela escrita diarística. Assim,

Quarto de despejo é ao mesmo tempo um livro recusado e desejado, constituindo mais uma entre tantas

das ambivalências que compõem o desenho de si de Carolina Maria de Jesus.

Não é que não tenha havido resistência: a própria Carolina banca a publicação de seu romance

Pedaços da Fome; mas cada movimento realizado na intenção de desvelar uma figuração autoral ainda

desconhecida do público leitor é pautado pela “obrigação do desenho de si” construído por Quarto de

despejo. Como afirma seu tradutor para o inglês, David Saint Clair (1963), Carolina “não tenta ser artista.

Só é simplesmente sincera” ( p.8).

É possível ler em várias entradas de Quarto de despejo uma luta surda entre seguir à risca a obrigação

desse desenho de si e uma tentativa de se rebelar. Como sabemos, o diário divide-se em duas partes.

Depois de acompanharmos os registros relativos a apenas 14 dias de 1955, a segunda parte, traz uma

declaração reveladora: “Eu fiz uma reforma em mim” (1995, p.25). Não passou despercebido a quem

consultou os manuscritos originais, sem as supressões de Dantas, que a reforma mencionada por

Carolina pode sugerir uma modulação de sua assinatura motivada pela possibilidade de publicação.

Diante do entusiasmo de Dantas demonstrado pela leitura dos cadernos, a escritora investe na escrita do

diário motivada a escrever.

Numa das primeiras entradas da primeira parte, em 1955, antes do encontro com o jornalista, Carolina

já pensa em tomar a favela como cenário de sua produção: “Vou escrever um livro referente a favela.

Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com

estas cenas desagradáveis me fornece os argumentos” (1995, p.17). Por que não nomeia que espécie de

livro pretende escrever, não ficamos sabemos se está disposta a escrever a rotina diária dos moradores

da favela sendo fiel à representação (“Hei de citar tudo que aqui se passa”) ou se o cenário vai ser

aproveitado como mote da criação (“vocês com estas cenas desagradáveis me fornece os argumentos”).

A própria leitura leva a crer que a dicção vai perseguir a transparência da representação: “Cato papel,

lavo roupa para dois jovens, permaneço na rua o dia todo” (Jesus, 1995, p.9) a não ser pela última frase:

“E estou sempre em falta”. É claro que podemos ler a sentença literalmente: há muito trabalho a fazer

e, por mais que se ponha em movimento todo o tempo, o trabalho não diminui e nem é suficiente para

o sustento da casa, dos filhos, mas também seria possível ler a frase como a enunciação do fracasso da

escrita, do projeto, da tentativa de ser fiel à representação.

Carolina quer ser “sincera”: “Tenho de dizer que eu não escrevi nos dias que decorreram porque eu fiquei

doente. Vou recapitular o que ocorreu comigo nestes dias” (Jesus, 1995, p. 139), e o diário é como uma

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62caderneta de campo, seja para registrar o entorno da favela como a visita à comunidade do candidato

à político – “Comecei a escrever o que observava daquela aglomeração” (Jesus, 1995, p. 61) –, ou para

apaziguar as reviravoltas emocionais quando anota a decepção pela rejeição de uma publicação enviada

aos Estados Unidos ou a apreensão por um amor impróprio – “Eu puis o olhar no caderno e comecei a

escrever” (Jesus, 1995, p. 61).

Mas a transparência mimética da representação também parece cansar: “Vocês já sabem que eu vou

carregar agua todos os dias. Agora eu vou modificar o início da narrativa diurna, isto é, o que ocorreu

comigo durante o dia” (1995, p.110, 16-10-1958). A observação metalinguística chama a atenção para a

decisão de um gesto signatário, para um eu que escreve e coloca em abismo os modos de representar,

tornando um pouco mais complexa a obrigação do desenho de si seguida por Carolina Maria de Jesus

caracterizada pela crítica como a “simplicidade de quem nasceu assinalado pela vocação de escrever”,

como aponta o prefaciador de Pedaços da Fome, Eduardo de Oliveira (1963, p.11)

Talvez os impasses sobre a autoprodução poética do desenho de si ajudem a entender de outro ângulo

uma figura de autora considerada pela crítica como um “sema sem controle da própria imagem” (Meihy

& Levine, 1994, p.31). É fácil render-se ao patronato ideológico e creditar à Carolina a impossibilidade da

autonomia sobre o que escreve (tal como o fez Wilson Martins, acusando-a de “mistificação literária”),

mais difícil é lidar com as contradições do desenho de si, da produção de sinceridade.

Essas contradições não são visíveis apenas na figuração de autoria, como tentamos demonstrar, mas

também na imagem da “favelada”, que se cola à figura da escritora como um traço indelével na publicação

do segundo diário, Casa de Alvenaria, diário de uma ex-favelada, quando Carolina já não mora mais na favela.

Alguns críticos chamaram a atenção para a dicção politicamente incorreta da autora em contradição

com a apropriação de sua assinatura para as pautas de gênero e raça, por exemplo. Esse parece o caso de

Marisa Lajolo (1996) que, ao analisar a produção poética da autora, observa que

Os poemas em que Carolina tematiza o papel da mulher na sociedade são exemplares

da ambiguidade de seus pontos de vista que assumem, simultânea ou sucessivamente,

posições conflitantes. Muitas vezes, seus versos superpõem, ao registro doloroso

e expressivo da marginalidade social da mulher, a adesão a valores machistas da

ideologia familista. (p.57)

O gênero diário e o epíteto “favelada” constituem-se como pilares fundamentais à manifestação do

eu autoral de Carolina Maria de Jesus, e se aliam de forma indissociável na composição do desenho

de si. Não deixa de ser curioso o fato de que, na condição de moradora da comunidade do Canindé,

inscrevendo-se como autora, Carolina não seja reconhecida pelos favelados como representante deles,

ou, como observa Carlos Vogt (1983): “O ponto de estranhamento entre Carolina e os favelados é, sem

dúvida, o livro” (p.210).

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63Assim como Carolina parece encurralada pela produção de seu eu público a partir do lançamento de

Quarto de despejo, ao desenhar-se como autora de diários, que paga tributo à representação da realidade,

o epíteto da “favelada” é aceito como algo que se rejeita: “Ela nunca, jamais, se ajustou à vida favelada...

Era estranha e estranhava seus vizinhos” (Meihy, 1996, p.260)

Não vou insistir em comentar aspecto tão repisado pela crítica, selecionando passagens em que a ojeriza

à favela e aos modos de vida de seus moradores aparece no diário. Tampouco me interessa passar a

limpo uma recepção que se contentou em camuflar as contradições e preconceitos ali expressos, pois

me interessa mais explorar a dimensão do estranhamento mútuo entre a escritora e seus vizinhos, a

alteridade da semelhança, revelada pelo confronto entre a autoimagem, e a figuração dos favelados que

emerge da dicção do diário.

Em inúmeros momentos, falando de dentro, Carolina projeta-se como se estivesse olhando a favela

de fora. Ao comentar, por exemplo, a chegada de novos moradores, assinala que as pessoas estão

“esfarrapadas andar curvo e os olhos fitos no solo como se pensasse na sua desdita por residir num lugar

sem atração” (Jesus, 1995, p. 42). Mas, em outro momento reflexivo, a dicção modula o alheamento,

inscrevendo um matiz identitário: “Abri a janela e vi as mulheres que passam rápidas com seus agasalhos

descorados e gastos pelo tempo ... Devo incluir-me, porque eu também sou favelada. Sou rebotalho.

Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo” (Jesus,

1995, p.33).

Mas, o que mais chama a atenção, é a maneira como Carolina lança mão da sua condição como escritora,

atuando como uma espécie de “boca do inferno” da favela, para colocar sob ameaça a identidade dos

moradores, revelando-lhes seus nomes no diário:

Eu estava escrevendo. Ela perguntou-me: – D.Carolina, eu estou neste livro? Deixa

eu ver! ... – E porque é que eu estou nisto? – Você está aqui por que naquele dia que

o Armim brigou com você e começou a bater-te, você saiu correndo nua para a rua.

(Jesus, 1995, p.126)

Ou, ainda, utilizando o diário como denúncia catártica: “Pensei: hoje eu vou escrever e vou chingar a caixa

desgraçada do açougue Bom Jardim. Ordinaria!” (Jesus, 1995, p. 133).

Em momentos como esses, parece saltar aos olhos o fato de que é a identidade como escritora que dá

a ela a possibilidade de assumir a alteridade em relação à favela: “Aqui na favela quase todos lutam com

dificuldades para viver. Mas quem manifesta o que sofre é só eu” (Jesus, 1995, p.32).

Em outras entradas de Quarto de despejo também é possível ver a autora performatizando a favelada,

como no incidente em que se sente ameaçada por um homem na disputa por lenha, valendo-se dos

estereótipos para se proteger:

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64Eu sou da favela do Canindé. Sei cortar de gilete e navalha e estou aprendendo a

manejar a peixeira. Um nordestino está me dando aulas. Se vai me bater poder vir ...

Quando bebo umas pingas ficou meio louca. Na favela é assim, tudo o que aparece por

lá nós batemos e roubamos o dinheiro e tudo que tiver no bolso. (Jesus, 1995, p.73)

Valorizada em suas ambivalências, a autoria de Carolina Maria de Jesus pode se distinguir de si mesma,

abrindo o flanco a muitos outros desenhos de si, mas para isso talvez devamos acenar-lhe e à sua obra

com outras perspectivas de leitura. Escrever uma obra, tornar-se uma figura pública de autor, implica

em “estar sujeito de uma maneira radical ao olhar do outro” (Groys, 2014, p. 39). Nas últimas entradas de

Quarto de despejo, lemos “Quando passei diante de uma vitrine vi o meu reflexo: desviei o olhar, porque

tinha a impressão de estar vendo um fantasma” (Jesus, 1995, p. 160).

Mais uma vez, é possível também fazer uma interpretação literal da imagem, associando-a à

depauperação física, ao abatimento causado pela fome, mas, se nos lançamos à leitura de sua obra dando

à autora a chance de “se confrontar com a imagem de si para corrigir, mudar, adaptar ou contradizer”

(Groys, 2014, p. 39) a responsabilidade com que assumiu o compromisso com a obrigação do desenho de

si como autora da favela que escreve diários, talvez possamos entender a figura fantasmática, como uma

metáfora dessa mesma obrigação a que teve de se submeter para poder bancar-se escritora e pôr seu

nome na capa de um livro.

Se tomamos por dado que o empenho da autora em colocar seu nome na capa, em tornar-se escritora,

não foi vão, não podemos deixar de assinalar que ainda estamos em falta com a autora que Carolina

gostaria de se transformar, basta pensar nos muitos manuscritos inéditos de sua ficção, e talvez o grande

crédito que, na condição de leitores, podemos abrir em seu nome seja não a canonização de sua autoria,

mas a despersonalização do desenho de si trazido a público na ocasião do lançamento de Quarto de

despejo, oferecendo-lhe a chance de se redesenhar em muitas outras personas artísticas.

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Perpétua, E. D. (2003). Aquém do Quarto de despejo: a palavra de Carolina Maria de Jesus nos

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Perpétua, E. D. (2014). A vida escrita de Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte: Nandyala.

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autoria

resumo

FÁBIO BELO

Professor de Psicanálise na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestre em

Estudos Psicanalíticos pela UFMG. Doutor em Estudos Literários pela UFMG.

CONTATO: [email protected]

A literatura é inspiração para reavaliarmos nossos códigos morais. A escrita autobiográfica

de Carolina Maria de Jesus é um exemplo notável de elaboração do traumático. A partir dos

apontamentos de Jean Laplanche sobre gênero, consideramos a hipótese de que raça e seus

derivados são códigos tradutivos que operam no sentido de recalcar o sexual, organizando-o

e controlando-o, delimitando destinos para o masoquismo originário. A escrita de Carolina

é um relato notável para se perceber como tal código pode ser acolhido e/ou recusado.

Concluímos fazendo uma distinção entre racismo como posição perversa e o racismo como

código pré-consciente.

PALAVRAS-CHAVE: racismo, código tradutivo, Carolina Maria de Jesus, Jean Laplanche

Raça como código tradutivo: uma leitura de Quarto de Despejo

SUMÁRIO

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68INTRODUÇÃO

Neste artigo, gostaria de propor uma hipótese sobre o racismo, a partir da Teoria da Sedução

Generalizada, de Jean Laplanche, e inspirado pela leitura do diário de Carolina Maria de Jesus (2014).

Não se trata, portanto, de uma interpretação literária dessa obra, mas de um uso específico desse relato

a fim de pensar encaminhamento para uma questão clínica fundamental, a saber, como responder ao

racismo como prática perversa.

LITERATURA COMO INSPIRAÇÃO

Antes de apresentar a hipótese psicanalítica, apresento alguns pressupostos sobre o que é literatura

para mim. A literatura é um esforço contínuo e não teleológico que permite que nos vejamos como seres

passíveis de redescrições infinitas. Quanto mais narrativas inventamos sobre nós mesmos, mais somos

capazes de criar novos mundos e imaginar novas possibilidades de viver juntos. Acredito, como Rorty

(1989), que laços sociais são fixados por vocabulários e esperanças compartilhadas e que a literatura

aumenta continuamente essa rede de crenças e desejos. Rorty (1989) toma a metafísica como o desejo de

encontrar uma essência que consiga, de uma vez por todas, descrever o que somos e como devemos ser.

Nossa posição, entretanto, é aquela que ele chama de ironista, isto é, aquela que luta por impor a imagem

do humano como redes sem centro de crenças e desejos.

Parte do poder das redescrições tem a ver com a capacidade que temos de ouvir vozes por vezes

silenciadas. Ler o diário de Carolina Maria de Jesus é uma experiência que pode nos auxiliar a aumentar

nossa solidariedade, tornando possíveis identificações que sirvam de motor para luta contra as

brutalidades vivenciadas por negras e negros. Escritoras como Carolina podem nos ajudar “a estar

atentas à produção de crueldade em nós mesmas, tanto como ao fato de sua ocorrência em áreas nas

quais não a percebemos” (Rorty, 1989, p. 95).

Para Rorty (1998), grandes obras literárias nos inspiram. A literatura faz com que pessoas imaginem que

há mais formas de vida que conseguiram imaginar até então. “Se ela tem um valor inspirador, uma obra

deve ser autorizada a recontextualizar muito do que previamente você pensava que sabia” (Rorty, 1989,

p. 133). O que nos inspiram passagens como essas duas a seguir? “Pensei: porque é que o homem branco

é tão perverso assim? Ele tem dinheiro, compra e põe nos armazens. Fica brincando com o povo igual gato

com rato.” (Jesus, 2014, p. 148); ou ainda: “A unica coisa que não existe na favela é solidariedade” (Jesus,

2014, p. 16).

Gostaria de aproximar a posição de Rorty àquela de Laplanche, quando este situa a sublimação entre

o sintoma e a inspiração (Laplanche, 1999). A meu ver, tal articulação deixa evidente que não há, para

Laplanche, um destino não sexual para as excitações que nos constituem, ou seja, mesmo quando

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69conseguimos uma saída sublimatória, estamos fazendo soluções de compromisso entre desejos e defesas,

entre os aspectos mais disruptivos da pulsão e os mais ligados.

Ao recuperar a velha noção de inspiração, Laplanche critica a ideia de sublimação como uma saída

psíquica que apaga a alteridade. Na sublimação vista como inspiração é preciso reconhecer uma dupla

abertura: “estar aberto por e estar aberto a; abertura para o reencontro, que renova o traumatismo

dos enigmas originários” (Laplanche, 1999, p. 336). Uma das consequências da crítica de Laplanche é

tornar bastante borrada a fronteira entre sintoma e sublimação. A distinção produzida pela articulação

da sublimação a uma saída mais socialmente compartilhada e do sintoma a uma saída mais restrita ao

sujeito parece não resistir quando pensamos num arranjo como a escrevivência (Evaristo, 2008). A

escrita não é uma sublimação sem restos e sem conflitos; mas também não pode ser reduzida à solução

de compromisso entre defesas e desejos. Trata-se de pensar na escrita como uma ação “instituída pela

potência da escritura (po)ética de novas maneiras de existir que não aquelas instituídas pelo histórico

escravagista e colonial, mas buscando a criação de um campo simbólico que entrelaça história, memória e

experiência” (Barossi, 2017, p. 23). A escrevivência de uma autora como Carolina Maria de Jesus renova o

traumatismo dos enigmas originários.

Por um lado, o Quarto de despejo nos coloca a tarefa de pensar no que pode ter disparado esse movimento

sublimatório específico em Carolina: a escrita de si. Solução sintomático-sublimatória que a coloca aberta

ao e pelo enigma que impulsiona a escrita, mas também aberta para o outro a quem se endereça. Temos

uma indicação brevíssima: “Eu nada tenho que dizer da minha saudosa mãe. Ela era muito boa. Queria

que eu estudasse para professora. Foi as contingencias da vida que lhe impossibilitou concretizar o seu

sonho.” (Jesus, 2014, p. 48-9). O desejo de saber e transmitir o saber talvez inspire Carolina a produzir em

seus cadernos um espaço protegido de tantos ataques que sofre ao longo da vida. No diário o eu sempre

sobrevive, apesar de tudo.

Não deixam de ser curiosas as passagens nas quais Carolina diz do medo de algumas pessoas de serem

descritas em seus cadernos. Ela sabe do poder criador da escrita. Ao responder, a um sapateiro, se seu

livro era comunista, ela insiste que é realista, no que seu interlocutor responde: “não é aconselhável

escrever a realidade” (Jesus, 2014, p. 108).

A partir de Rorty e Laplanche, desconfiamos do realismo enquanto possiblidade de descrever as coisas

tais como são. Sempre estaremos atentos ao que respondem e ao que produzem as narrativas que lemos

e produzimos. Interessa-me neste artigo falar da inspiração que tal narrativa me trouxe.

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70RAÇA COMO CÓDIGO TRADUTIVO

Laplanche (2007a) propõe uma desconstrução importante de noções clássicas como castração e

complexo de Édipo. Segundo o autor, tais arranjos são “conjuntos organizados de representações

de fantasias, de afetos e de moções pulsionais” (Laplanche, 2007a, p. 293). Não se trata de ver em

tais esquemas algo hereditário ou universal, mas como um esquema narrativo, como um código que

auxilia e força a tradução de mensagens enigmáticas recebidas pela criança na situação antropológica

fundamental.

Um exemplo notável dessa teoria é sua aplicação ao estudo do gênero. Para Laplanche (2007b), “o

sexual é o resíduo inconsciente do recalcamento-simbolização do gênero pelo sexo” (p. 153). O gênero

seriam então os códigos e esquemas narrativos que são endereçados às crianças e que as auxiliam e

as forçam a traduzir seus corpos através desses códigos. De forma geral, o código de gênero é binário:

homem e mulher. Como tais códigos são veiculados por cuidadoras(es) são sempre comprometidos com

seus inconscientes. Isso faz com que nunca haja uma coincidência entre gênero e sexo. O resto dessa

operação, a cicatriz que tenta colar essas duas coisas, é o sexual: a força que faz circular os prazeres

nesse corpo de forma singular.

Podemos utilizar essa teoria como modelo para o que quero propor: há uma operação de recalcamento-

simbolização da diversidade humana para que se produzam diferenças específicas entre grupos e/ou

sujeitos. Além da diferença sexual e de gênero, há também a diferença de identidades grupais. Os códigos

identitários se apoiam em diferenças fenotípicas “criando” tais diferenças como identidades. No exemplo

político que Laplanche (1988) traz, isso fica claro: trata-se do exemplo da história de Bizâncio, no qual

a cidade se dividia em dois grupos, verdes e azuis, para ver os jogos. Essa distinção passou do campo do

esporte para o político, acarretando guerras e massacres. O autor resume sua tese:

A insígnia não é a imagem de outra coisa, mas é a insígnia que cria aquilo que

simboliza. É a atribuição da insígnia que acaba por criar campos políticos e não,

forçosamente, campos políticos preexistentes que se dão uma insígnia a título de

sinal de reconhecimento. É o símbolo que tem aqui uma função verdadeiramente

criadora e que modela inteiramente uma distinção social e política. Por conseguinte,

é importante distinguir o atributo como qualidade e o atributo como insígnia. (Laplanche,

1988, p. 45)

Ora, para já ir aproximando da problemática do racismo, é preciso lembrar que branco e negro são cores

como outras quaisquer, em meio a uma diversidade infinita de outras cores, sem contar os múltiplos

tons de cada uma. A grande questão é perceber como esse atributo “cor” passa do campo da qualidade

e deriva para o campo da insígnia, isto é, designa uma identidade diferente de outras. A passagem aqui

é da diversidade para a diferença. Num segundo momento, as diferenças podem vir a estabelecer entre

si diversas formas de se relacionar, dentre as quais destaca-se a garantida pelo ódio, a saber a oposição:

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71branco quer dizer não-negro; negro quer dizer não-branco. Tal distinção opositiva, observem, não existe

nas cores como qualidades, mas apenas como insígnias.

Assim como o gênero, a raça (ou descrições típicas, codificadas de fenótipos específicos) é endereçada

como mensagem enigmática. Isso explica porque, como salientado por Souza (1988), é possível (na

verdade, é quase impossível que não seja assim) que uma criança negra tenha um ideal de eu branco. Se

todas as mensagens que a criança recebe vão, por um lado, na direção de atrelar a cor negra ao que há

de pior, feio e mau, e, por outro lado, articular o branco ao melhor, bonito e bom, não surpreende que

a criança negra se veja em apuros para construir um narcisismo que tome seu corpo e sua pele como

objetos de amor e investimento.

É fundamental ressaltar que a cor só existe como designação e não como um fato perceptivo neutro,

fenomenologicamente universal, sem nenhum tipo de marcação histórica ou política. A pesquisa de

Pastoureau (2000) mostra que em grego e latim era difícil nomear a cor azul. Não se trata de pensar

que o sistema perceptivo de gregos e romanos era distinto do nosso, mas que o sistema de percepção,

na medida em que informado por léxico distinto do nosso, não tornava existente tal cor. Gregos e

romanos parecem não ter descrito o céu como azul. Atribuíam ao céu cores como vermelho, amarelo,

verde, mas nenhuma descrição antiga é encontrada mostrando a articulação entre o céu e a cor azul

(Pastoureau, 2000).

Um dos textos mais complexos de Freud (1927/1999) é o pequeno artigo no qual ele trata da negação. Ali,

Freud articula fortemente a percepção à função do juízo. Em outras palavras, para o autor, a percepção

não é passiva, mas um processo de incorporação ou expulsão. Uma leitura laplancheana desse texto –

projeto ainda a ser feito – mostraria que o eu presente nesse texto já está ativo demais desde o início.

Seria preciso ainda insistir que o que é introjetado ou rejeitado é aquilo que é proveniente do outro,

implantado ou intrometido pelo outro. O que nos importa aqui é: a cor não é uma percepção passiva, mas

uma mensagem endereçada pelo outro que cria o objeto designado pela cor. Se isso valeu para o céu,

também vale para a pele.

Tais reflexões nos conduzem a uma conclusão importante: o inconsciente não tem cor. Isildinha Nogueira

(2017) comenta que fora aconselhada a desistir do título que teria sua tese, “A Cor do Inconsciente”. A

autora queria enfatizar não a cor da instância psíquica, mas que a forte incidência do significante “cor

negra” está inserido, “num arranjo semântico, político, econômico e histórico” (Nogueira, 2017, p. 121).

Ora, tais arranjos são pré-conscientes e conscientes, funcionam regidos pelo processo secundário,

organizam o processo primário. Neste, próprio ao inconsciente, não pode haver nada que signifique algo,

não pode haver um sujeito do inconsciente e nem no inconsciente. A cor de alguém é atributo de um eu,

que dá sentido e localiza um eu, e não o inconsciente de alguém. Laplanche (1992) esclarece esse ponto:

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72O inconsciente não é o discurso-desejo do outro, é o resultado de um estranho

metabolismo que, como todo metabolismo, comporta decomposição e recomposição;

e não é gratuitamente que falamos aqui, de incorporação... . Na incorporação

há igualmente essa decomposição-recomposição. No início, há uma espécie de

mensagem enigmática, julgamento ou comunicação que se escode atrás de um

comportamento, julgamento que se pode tomar em seu sentido mais kafkiano, pois

desse “comunicado ao sujeito”, o sujeito não conhece nem os considerandos nem

mesmo o verdadeiro sentido. Tal como em Kafka, só lhe é transmitido o veredicto.

O que é o veredicto? Diremos, em síntese, que é o energético puro. A “mensagem”

desqualificada não veicula nada, exceto energia. (p. 101)

As representações-coisa são então como esse veredicto que, dessignificado em si mesmo, pode

ser ressignificado quando de sua passagem tradutiva para a consciência. Se as pessoas negras são

bombardeadas pelo olhar sádico-anal do branco que localiza a cor negra ao lado do dejeto, tal veredicto,

caso não encontre no mundo nenhuma outra mensagem que o desminta ou contraponha, tenderá a

encontrar nas redes pré-conscientes as vias de associação entre cor e sentido identitário. “O inconsciente

nada comunica” (Laplanche, 1992, p. 98), mas tão logo encontre um modo de se representar, a compulsão

a repetição tornará o que era veredicto dessignificado em significação impositiva.

Resumindo o que disse até aqui: gênero e traços fenotípicos (em especial a cor) são códigos tradutivos

ultra facilitados pela cultura que organizam o pulsional, que constituem como existentes tipos específicos

de sujeitos. Tais códigos são marcados por um binarismo que visa a recalcar a pluralidade infinita de

potenciais formações identitárias. Dessa tese, retiram-se duas consequências: uma política, outra clínica.

Observem que a operação psíquica que transforma a diversidade em diferença é uma operação

essencialista, que produz uma identidade opositiva a outras. Uma das consequências políticas da

hipótese que estou propondo é, acompanhando Bourdieu (2002), que há tantos racismos quanto grupos

que deles se beneficiam. Propor a existência de racismos, no plural, serve para denunciar justamente que

“todo racismo é um essencialismo” (Bourdieu, 2002, p. 264).

A consequência clínica dessa teoria é que o analista deve estar atento justamente a essa operação

essencialista e binária e deve auxiliar o sujeito em análise da desconstruir os mecanismos que tornam

as identidades muito submissas ao binarismo opositivo próprio dos tempos constitutivos. Tarefa nada

fácil, pois tal submissão, veremos na próxima seção, extrai sua força pulsional do masoquismo originário.

Um derivado dessa consequência é a questão fundamental sobre os efeitos contra e transferenciais dos

atendimentos inter-racial e intra-raciais: negras atendendo brancas, brancas atendendo negras, quais

os efeitos libidinais dessas variações de encontros analíticos? Há um enorme campo de pesquisa a ser

feito aqui.

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73RAÇA, IDENTIDADE E MASOQUISMO ORIGINÁRIO

O masoquismo originário é a posição de entrada de todo sujeito que se constitui: é preciso assujeitar-

se e fazer o princípio do prazer funcionar a partir das fronteiras daí advindas para que se constitua

um eu. Será sempre em resposta a esse masoquismo originário que as identidades irão se formar. Há,

certamente, vias facilitadas na cultura que mantém o sujeito atrelado à passividade e ao lugar de objeto.

Destacam-se duas vias régias para esse tipo de tradução: o gênero feminino e a raça negra. Imperativos

superegoicos incessantes vão conduzir aquelas e aqueles designados nesses lugares (mulheres, negras e

negros) à posição passiva, de ódio dirigido a si mesmo. Um dos objetivos do racismo é “negar ao negro a

possibilidade de autodefinição” (Nascimento, 2017, p. 94).

Quero destacar quatro passagens no livro de Carolina para mostrar como a insígnia preta/preto se

mostra ambivalente. Há uma luta por reconhecimento e por investimento em si mesma, mas há também a

articulação forte da insígnia ao pior.

Ao “é pena você ser preta”, Carolina nos diz:

Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho

o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto

onde põe, fica. É o obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça,

ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reencarnações, eu quero voltar

sempre preta. (Jesus, 2014, p. 64).

Comentando a proibição de negros na escola nos EUA: “Fico pensando: os norte-americanos são

considerados os mais civilisados do mundo e ainda não convenceram que preterir o preto é o mesmo que

preterir o sol.” (Jesus, 2014, p. 122).

Segue, no entanto, mais uma passagem na qual Carolina reconhece sua condição racial como causa

também de sua miséria: “A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós

quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido

preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.” (Jesus, 2014, p. 167).

Finalmente, observemos como Carolina trabalha a metáfora da escravidão / animalidade: “Pensei na

desventura da vaca, a escrava do homem. ... o mundo é como o branco quer” (Jesus, 2014, p. 70).

A metáfora do cabelo é ambivalente: mesmo que queira ressaltar a qualidade educada, incomoda a ideia

de atrelar, mais uma vez, a obediência a algo que é parte do fenótipo negro. De qualquer forma, trata-

se de uma resposta a alguém que lamenta o fato de Carolina ser negra, ao que ela sustenta o desejo de

“voltar sempre preta”. A mesma defesa de uma identidade irrecusável é feita quando ela comenta as

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74políticas segregacionistas norte-americanas. No entanto, segue presente em seu discurso a cor preta

atrelada a uma vida dura e ruim.

Finalmente, numa passagem fortíssima, Carolina associa livremente pensando na desventura da vaca,

designando-a como escrava e explicitando que há um outro em todas essas cenas, um outro que produz

efetivamente o negro como posição masoquista para um gozo sádico branco: “Devo incluir-me, porque

eu tambem sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo

ou queima-se ou joga-se no lixo.” (Jesus, 2014, p. 37). O branco queima, o branco joga no lixo, poderíamos

explicitar o sujeito dos verbos. O veredicto sádico-anal do branco encontra sua tradução facilitada na

cultura racista: da mensagem “tu não deves existir como sujeito” a tradução masoquista que se impõe é

essa: “sou rebotalho”.

Quais são as operações psíquicas e sociais que constroem e mantêm as vias facilitadas do racismo como

códigos tradutivos? O racismo já não seria uma forma de sistematizar e organizar o mal-estar de conviver

com a diversidade transformando-a em diferença opositiva? As operações racistas são descritas de

forma exemplar por Taguieff (2001): a recusa ao contato, a rejeição ou exclusão do outro, o desprezo e o

rebaixamento, a dominação e a exploração, e até o extermínio. Tais operações não seriam uma tradução

sádica do masoquismo originário dos brancos (e outros grupos hegemônicos) de tal forma a simbolizar

num só objeto a passividade a ser evitada e ao mesmo tempo excitantemente produzida?

RACISMOS

Há duas grandes perversões sociais que são vias facilitadas pré-conscientes que servem de tradução

para nosso masoquismo originário: o racismo e o machismo. Pode-se dizer que todas as pessoas se

constituem banhadas por mensagens – explícitas e/ou enigmáticas – que incitam e excitam o sujeito a

produzir seus arranjos pulsionais de tal maneira a sempre compactuarem em alguma medida com essas

duas perversões e suas múltiplas derivações.

Obviamente, tais perversões sociais, por mais universais que sejam, incidem no sujeito como código

tradutivo. Isto quer dizer que cada um fará uma tradução e um uso singular desses códigos: da adesão à

recusa mais ferrenha; da inibição intelectual quanto ao desejo de saber sobre essas perversões à crítica

aberta e solidária a essas perversões.

A adesão e a resistência a esses códigos encontram enormes variações, de tal forma que se torna

imperioso usar o plural para designar tais posições morais: machismos, racismos. As derivações do

primeiro compreendem a homofobia e a misoginia como exemplos. No segundo, as discriminações

por fenótipo (cor e formas de corpo) ou por pertencimento a grupos (religiosos, étnicos, nacionalistas,

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75p.ex.) são as derivações mais comuns. Cada sujeito pode circular por vários desses campos, ativa e/ou

passivamente, sendo alvo de ataques e/ou atacando.

Aceitas essas premissas básicas, declarar que alguém é racista e machista envolve uma distinção

importante. A adesão mais consciente e deliberada, a prática repetida mesmo depois das críticas e de

tempo razoável de elaboração: são critérios como esses que fazem distinguir a prática perversa atuada

como gozo particular daquela outra, generalizada e universal, que situa todos e todas, sem exceção,

no campo dos códigos perversos do racismo e do machismo. Neste último caso, a operação do código

perverso se dá a partir do pré-consciente. Uma vez reconhecida sua presença e atuação, aquela(e)

que persiste em utilizar o código, isto é, aquela(e) que “sabe, mas mesmo assim...”, é quem deve ser

considerado dentro do campo da perversão propriamente dito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, tentei avançar uma hipótese para um projeto de pesquisa de longo prazo. A psicanálise

brasileira tem ainda uma dívida considerável para com os estudos sobre o racismo. Há uma série de

questões clínicas e institucionais decorrentes do racismo no Brasil e que afetam diretamente o fazer

psicanalítico. Fica meu convite, a partir da organização VI CONPDL e também desse pequeno texto,

para que novas pesquisas sejam possíveis sobre esse tema tão fundamental para nosso ethos.

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Nascimento, A. (2017). O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo:

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Nogueira, I. (2017). Cor e inconsciente. In N. Kon, M. Silva, & C. Abud (Orgs.), O racismo e o negro no Brasil:

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Pastoureau, M. (2000). Bleu: histoire d’une couleur. Paris: Seuil.

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Taguieff, P-A. (2001). The force of prejudice: on racism and its doubles. (H. Melehy, trad.). Minneapolis:

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autoria

resumo

FERNANDA CANAVÊZ

Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal

do Rio de Janeiro – UFRJ. Professora do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-

Graduação em Psicologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ.

CONTATO: [email protected].

Inspirado pelo despejo de Carolina Maria de Jesus, relegada aos recônditos da cidade

em função de sua classe social, o trabalho trata do tema da experiência urbana na

contemporaneidade a partir do referencial psicanalítico. Parte-de da ideia de que a negação

do acesso à cidade pode produzir um excesso traumático, concorrendo, assim, para a redução

dos corpos a uma objetificação radical. Para a consecução desse objetivo, lança mão da

articulação entre o campo da psicanálise e das artes visuais contemporâneas, com destaque

para o comentário de trabalhos de dois artistas.

PALAVRAS-CHAVE: cidade, corpo, trauma, arte, psicanálise.

O corpo despejado: notas sobre a experiência urbana na contemporaneidade

SUMÁRIO

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79Eu li O quarto de despejo (2014) como se estivesse colocando em prática a atenção flutuante,

recomendação técnica mediante a qual nós, psicanalistas, devemos escutar sem privilegiar nenhum

elemento específico da fala do analisando (Freud, 1912/1969). Pois bem, essa leitura flutuante do livro

me conduziu ao tema do “direito à cidade”. Trata-se de conceito proposto por Lefebvre (2008) no quadro

mais amplo da prática de reapropriação dos processos de decisão e dos meios de produção da cidade

por seus habitantes. Na esteira dessa proposta, figuraria a possibilidade de o sujeito, reduzido a mero

consumidor, aceder à condição de cidadão1.

Vou tomar a expressão “direito à cidade” em um sentido mais ampliado, como possibilidade de

ressignificar a cidade para além dos modelos colocados por um planejamento urbano que impõe trajetos,

ritmos e formas de ver, docilizando os corpos, promovendo a expropriação de uma experiência mais

singular nesse território e, em última instância, do próprio corpo.

Esse tema está no livro de Carolina desde o título, uma vez que a favela é o “quarto de despejo” de uma

cidade3. É o relato de uma voz que fica à margem do planejamento urbano e que reclama o acesso negado

à cidade, um retrato da dinâmica social urbana à época, dinâmica esta que também coloca em pauta o

tema principal do Congresso, o racismo, já que evidencia um corte de raça: são as negras e os negros

os principais habitantes dos “quartos de despejo” de nossas cidades. Além disso, sabemos que uma

consequência da publicação do relato de Carolina foi ter engrossado o caldo do mal-estar produzido na

sociedade paulistana pelas favelas, o que acabou por suscitar a criação do Movimento Universitário do

Desfavelamento (MUD)3, na gestão do prefeito Prestes Maia (1961-1965).

Essas questões continuam pertinentes ainda hoje, atestando a atualidade dos temas que O quarto de

despejo suscita. Tive uma interessante prova disto enquanto preparava esta fala e tomei ciência de uma

ocupação urbana pelo direito à moradia, no centro de Belo Horizonte, desde o início do mês corrente, que

foi chamada de Carolina Maria de Jesus4, inspirada justamente pelo livro de Carolina.

1 Segundo Margier e Melgaço (2016), Lefebvre (2008) tende a identificar o cidadão urbano à classe trabalhadora, o que poderia

reduzir a análise da diversidade das identidades urbanas. 2 “Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos,

almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de

despejo” (Jesus, 2014, p. 37).3 Criado em 1961, o Movimento, de cunho assistencialista, mobilizou universitários para a atuação nas favelas mediante convênio

com a Prefeitura. “O esquema funcionava da seguinte forma: primeiro iam à favela os alunos de direito e assistência social,

resolver os casos de polícia, marginalidade, falta de documentos pessoais. Depois iriam os alunos de medicina e enfermagem,

examinar os favelados e tratá-los. Assim estariam preparados para receber os professores para serem educados. Chegariam após

os arquitetos, que iriam fazer os projetos das casas novas em loteamentos periféricos para onde os moradores seriam removidos.

Essa casa era financiada, com subsídio, para o morador” (Bueno, 2000, p. 53). 4 Ocupação Carolina Maria de Jesus (Av. Afonso Pena, 2.300 – Belo Horizonte), apoiada pelo Movimento de Luta nos Bairros (MLB).

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80Aliás, não por acaso a minha leitura flutuante me conduziu ao assunto. Isso porque sou carioca e

moradora da cidade do Rio de Janeiro, uma cidade cuja cartografia foi sensivelmente modificada

pelos megaeventos (a Copa em 2014 e as Olimpíadas em 2016), distanciando-me bastante da cidade

das memórias da minha infância, o que se oferece a ver na especulação imobiliária e no processo de

gentrificação de muitas áreas5. Além disso, sou professora da Universidade Federal Rural do Rio de

Janeiro, cujo campus sede está localizado no município de Seropédica, na região metropolitana do Rio

de Janeiro, a 60 quilômetros da capital do estado. Portanto, as questões relativas ao transporte coletivo

constituem um imperativo cotidiano para mim e para os nossos estudantes.

Sendo assim, proponho aqui uma reflexão disparada pela psicanálise a respeito das consequências, para

o sujeito, da impossibilidade de se apropriar de modo singular da experiência na cidade, o que farei a

partir do comentário dos trabalhos de dois artistas – Carmela Gross e Elilson – que tocam nesse tema

específico, em especial aquele do transporte coletivo, tomando-o como espaço performativo (Elilson,

2017)6. A investigação doravante apresentada constitui o desdobramento de uma pesquisa mais ampla

à qual venho me dedicando – Modos de subjetivação e contemporaneidade: o corpo na psicanálise e na arte

contemporânea –, e para essa investigação eu parto do lugar de espectadora para comentar algumas

obras artísticas.

A minha experimentação como espectadora desses trabalhos me leva a supor que a negação do acesso

à cidade pode produzir a coisificação dos corpos – reduzidos, assim, a uma objetificação radical – que

podemos compreender a partir da chave de leitura psicanalítica do trauma. Considerando que trauma

é um termo polissêmico no movimento psicanalítico, cabe escalerecer que tomo o conceito segundo a

ideia de um excesso com o qual o sujeito é confrontado, ultrapassando as possibilidades mais correntes

do psiquismo de dar uma resposta à altura da experiência traumática. O historiador e crítico de arte Hal

Foster (2014) fala nos termos de uma subjetividade em choque, desenvolvendo a noção de um “realismo

traumático” que coloca em pauta um sujeito “que assume a natureza daquilo que choca como defesa

mimética contra esse choque” (p. 126). A imagem privilegiada por Foster (2014) para ilustrar o realismo

traumático é aquela da repetição que podemos encontrar na pop art, colocando de forma seriada figuras

que remetem à cultura de massa.

5 Como objetivo comentar produções artísticas que se dão no espaço das ruas, convém mencionar que o processo de

gentrificação na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro veio acompanhado, por exemplo, da criação de dois museus: o Museu

de Arte do Rio (MAR) e o Museu do Amanhã, inaugurados em 2013 e 2015, respectivamente.6 É importante fazer esse recorte do transporte coletivo, pois há inúmeras iniciativas de produção de arte na cidade

contemporânea. A título de exemplificação, é possível citar Ronald Duarte com Fogo Cruzado (2002), Guga Ferraz com Bala

Perdida (2003-2009), Eleonora Fabião com Ações Cariocas (2008), Maria Baderna com Respiradores de Ar (2016) e Elilson com

Massa Ré (2016). Para comentários pormenorizados sobre alguns desses trabalhos consultar Campbell (2015).

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81É possível comentar essa produção a partir de dois pontos de vista: em primeiro lugar a partir da

repetição como tentativa de integrar o acontecimento traumático, que escapou à possibilidade de

elaboração pelo seu caráter excessivo. Em outros termos, o sujeito tentaria tomar as rédeas que lhe

teriam sido retiradas pelo trauma, relegando-o a um lugar de passividade face ao excesso. Desde Freud

(1920/1976b) está colocada a possibilidade de elaborar uma experiência traumática deslocando-se de

uma atitude passiva para aquela de agente da repetição. Além disso, há uma segunda chave de leitura:

a repetição dessas imagens não busca uma reprodução para integrar o trauma, mas a própria produção

do traumático. É como se esses trabalhos mostrassem que não há integração possível diante de uma

experiência tão excessiva, restando-lhe assumir a natureza do que choca como defesa contra esse

mesmo choque.

Por conseguinte, acabam por nos obrigar a revisitar o que compreendemos por “elaboração do trauma”

e, quase como consequência imediata, a problematizar os limites da representação. Trata-se de uma

questão de extrema relevância na contemporaneidade, tanto para a psicanálise quanto para o campo

das artes. Há diversos autores no movimento psicanalítico propondo a ideia de uma suscetibilidade ao

trauma na atualidade (Birman, 2012; Herzog, 2010), tese que se desdobra em discussões sobre a clínica

psicanalítica e a necessidade de reinvenção de seus postulados técnicos7. Em relação às artes, o desafio

do tema parece se impor, o que é possível ilustrar a partir da recente discussão sobre o cancelamento da

exposição Queer Museu pelo Santander Cultural8, episódio que disparou uma série de falas que partiram

da necessidade de explicar didaticamente que a representação de um objeto não corresponde ao

objeto em si.

Feita essa pequena digressão, uma questão parece se impor: como esse realismo traumático estaria

posto na experiência do sujeito que transita pela cidade contemporânea e, para os termos que estou

abordando, do sujeito-usuário dos transportes coletivos? Afirmo que o projeto de cidade que aí está

concorre para a coisificação dos corpos, agora reduzidos à dimensão do mero consumo. Tratados como

coisas, esses corpos são desinvestidos de afeto, de sua erogeneidade, para se tornar um pedaço de carne,

7 Digna de nota é a retomada cada vez mais evidente, no movimento psicanalítico, da obra de Sándor Ferenczi, psicanalista da

primeira geração que se dedicou a uma original formulação sobre o trauma e seus desdobramentos no campo da clínica. O mesmo

parece se aplicar para o pensamento de Wilhelm Reich, para quem o tema do corpo adquiriu estatuto central. 8 Santander Cultural, em nota divulgada via facebook: “Nosso papel, como um espaço cultural, é dar luz ao trabalho de curadores

e artistas brasileiros para gerar reflexão. Sempre fazemos isso sem interferir no conteúdo para preservar a independência dos

autores, e essa tem sido a maneira mais eficaz de levar ao público um trabalho inovador e de qualidade. Desta vez, no entanto,

ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição Queermuseu desrespeitavam símbolos, crenças

e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva,

perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana. O Santander Cultural não chancela um tipo de arte, mas sim a arte na

sua pluralidade, alicerçada no profundo respeito que temos por cada indivíduo. Por essa razão, decidimos encerrar a mostra neste

domingo, 10/09”.

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82gado prestes a ir para o abate. É essa realidade da coisificação dos corpos na cidade que os trabalhos a

seguir parecem colocar em pauta.

O primeiro deles é o ônibus-instalação intitulado Carne (2006), da artista paulistana Carmela Gross.

Ela foi convidada a fazer uma intervenção em um ônibus para integrar atividades de arte-educação nas

escolas da rede pública da cidade de São Paulo. Carmela cobriu todo o veículo com plásticos adesivos

vermelhos, os mesmos utilizados para encapar cadernos escolares, estampando a palavra “carne” em

luzes vermelhas na frente do veículo, letreiro onde em geral figura a rota a ser percorrida. Como observa

Dionísio (2016), o ônibus está protegido pela fita adesiva vermelha, mas

este excesso de proteção expõe ... a vulnerabilidade [itálicos nossos] desta matéria que

costumeiramente chamamos de carne. Vulnerabilidade e carne caminham, aqui, de

mãos dadas porque não é de um corpo erógeno que a obra está falando, mas daquilo

que vem antes, daquilo que está mais perto da origem da mesma coisa, isto é, a carne

que reside por debaixo da pele. Com efeito, não é um corpo o que está aí representado

(se é que a categoria de representação pode servir no momento), mas a sua carne

antes de se tornar subjetividade. (p. 210)

Figura 1 – Registros da instalação Carne, de Carmela Gross. Fonte: Fontes, 2012.

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83De maneira análoga, Elilson, recifense radicado no Rio de Janeiro, descortina a coisificação do corpo na

performance que intitulou Abate (2017). Elilson usou uma máscara de boi em arame eletroluminescente

para utilizar os serviços de trem e metrô na cidade do Rio de Janeiro em horários de pico. O que mais me

convoca como espectadora dessa ação é a reação dos seguranças da companhia de transporte: solicitam

que o performer retire a máscara pois poderia machucar alguém. Um dos seguranças explica que “o

problema não é a máscara. A questão é não machucar ninguém. O senhor vai embarcar no horário de

maior lotação. Pedimos, por favor, que tenha cuidado” (Elilson, 2017, p. 85). De saída a fala que demanda

cuidado contrasta com os corpos que se chocam violentamente em busca de espaço, mas podemos

seguir próprio Elilson (2017) em uma explicação possível para o paradoxo que a enunciação do segurança

carrega: são enunciados que controlam o transitar, os quais “estipulam previamente preceitos de conduta

e de utilização articulados com estratégias de poder sobre os corpos e, muitas vezes, inculcam noções de

pertencimento e cuidado para camuflar os cerceamentos que esgotam nosso agir social” (p. 20). Pedimos,

por favor, que tenha cuidado para que esses corpos permaneçam coisificados, circunscritos a uma lógica

e práticas que assim os engessam.

Figura 2 – Registros da performance Abate, de Elilson. Fonte: Fotografia de Tânia Grillo

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84Suponho que Carne (2006) e Abate (2017) rasgam o véu do choque produzido pela dimensão de coisa,

pedaço de carne e gado a que estamos submetidos no ir e vir da cidade contemporânea. Trata-se de uma

apresentação do traumático pelo traumático que, no entanto, convoca o corpo a se reinserir em uma

rede de trocas afetivas, a se reinvestir de Eros, a se lançar na ressignificação do espaço urbano. Rivera

(2007) afirma a potência de convocação do sujeito como central à arte, de modo que arte e psicanálise

partilhariam, desde a passagem do século XX, do convite endereçado ao sujeito a uma apropriação de

suas fantasias e, conforme quero sustentar, de seu corpo erógeno.

Cumpre esclarecer que Rivera (2007) está se referindo ao sujeito cindido, tal como abordado pela

psicanálise, portanto sujeito que extrapola os registros do eu para se apresentar justamente na

determinação inconsciente que escapa ao controle consciente. O eu não é mais senhor em sua própria

casa, assevera Freud (1916-1917/1976a) no descentramento que opera do registro da consciência. A

obra de arte, ao nos tocar, produziria um efeito de captura desse sujeito, que está escondido de si pelo

discurso do eu (da consciência), podendo advir a partir de seu descentramento. Estamos distantes de

um sujeito assegurado por sua representação (Vorstellung): Carmela não representa a carne, Elilson

não representa o gado. Trata-se antes da apresentação (Darstellung9) do traumático que a coisificação

do corpo-carne e do corpo-gado evoca. Retomo as palavras de Musa Michele Mattiuzzi que versam

sobre o corpo em performance, ao comentar Merci, Beaucoup, Blanco! (2013), performance em que

cobre seu corpo negro de tinta branca: “Eu tô fugindo muito da representação de um alguém. Eu não tô

representando algo, eu tô me apresentando. Então esse lugar da representação da Dança e do Teatro pra

mim já não cola mais...”10.

Apresentação que se dá em efeitos fugazes, no despertar dos afetos que podem reinvestir o corpo

despejado: o sujeito que não é mais senhor de sua própria casa “encontra-se convocado a retornar de

forma fragmentada, disseminada, em não mais que súbitos efeitos” (Rivera, 2007, p. 21). Súbitos efeitos

que podemos reconhecer, certamente, no corpo despejado de Carolina, na década de 1960. Corpo que

retorna fragmentado para reunir fragmentos de papel nos quais buscou ressignificar a sua experiência na

cidade11. Corpo-carne que estampou o ônibus de Carmela e, pouco mais de dez anos depois, corpo-gado

de Elilson que caminha com suas próprias pernas pelos coletivos12. Não apenas coletivo no sentido do

veículo que transporta consumidores, corpos coisificados, mas dos agenciamentos coletivos que podemos

construir para convocar os corpos despejados a ressignificar a experiência na cidade contemporânea.

9 Para a distinção entre os termos em alemão empregados por Freud – Vorstellung e Darstellung – sugiro os trabalhos da

psicanalista David-Ménard, discussão que não possui caráter central nos limites da presente comunicação. 10 Entrevista disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-IYnXBt8ZaE11 Andrade (2003) enaltece o que chama de realização estética do fragmento a partir de QD. Segundo a autora, “O trabalho do

escritor de diários é exatamente tornar inteligível para os outros sua experiência ‘fragmentada’, mostrar a ambivalência do eu

que se apresenta como tessitura e, assim, proclama sua multiplicidade e fragmentação … o espaço do diário se constrói pela

fragmentação no desejo de acompanhar uma completude, o que parece uma utopia” (p. 81). 12 Agradeço as contribuições do performer Caio Riscado, as quais não cessam de convocar, com afeto e pelo afeto, meu corpo

de espectadora.

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85REFERÊNCIAS

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(Mestrado), Programa de Pós-Graduação em Letras Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Mato

Grosso do Sul.

Birman, J. (2012). O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Bueno, L.M.M. (2000). Projeto e favela: metodologia para projetos de urbanização. Tese (Doutorado),

Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo.

Campbell, B. (2015). Arte para uma cidade sensível. São Paulo: Invisíveis Produções.

David-Ménard, M. (2000). A histérica entre Freud e Lacan: corpo e linguagem em psicanálise. (Maria da penha

Cataldi, trad.). São Paulo: Escuta.

Dionísio, G.H. (2016). A carne é fraca? Violência e ironia, psicanálise e arte contemporânea.

Psicologia Argumento, 34(86), 202-217. Recuperado de http://www2.pucpr.br/reol/pb/index.php/

pa?dd1=16427&dd99=view&dd98=pb

Elilson. (2017). Por uma mobilidade performativa. Rio de Janeiro: Temporária.

Freud, S. (1969). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In S. Freud, Edição Standard

Brasileira das Obras Psicológicas Completas. (José Otávio de Aguiar Abreu, trad., Vol. XII, pp. 145-159). Rio

de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1912).

Freud, S. (1976a). Conferências introdutórias sobre psicanálise. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das

Obras Psicológicas Completas. (Jayme Salomão, trad., Vol. XIII, pp. 13-85). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho

original publicado em 1916-1917).

Freud, S.. (1976b). ‘Além do princípio de prazer’. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras

Psicológicas Completas. (Jayme Salomão, trad., Vol. XVIII, pp. 13-85). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho

original publicado 1920).

Fontes, A.P.S. (2012). Carmela Gross em seus territórios poéticos. Dissertação (Mestrado), Programa de

Pós-Graduação em História Social da Cultura, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de

Janeiro.

Foster, H. (2014). O retorno do real: a vanguarda no final do século XX. São Paulo: Cosac Naify.

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86Herzog, R. (2010). A dimensão afetiva da linguagem na experiência psicanalítica. In C. Oliveira, Filosofia,

psicanálise e sociedade. Rio de Janeiro: Beco do Açougue.

Jesus, C.M. (2014). O quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo, SP: Ática.

Lefebvre, H. (2008). O direito à cidade. (Rubens Eduardo Frias, trad.). São Paulo: Centauro.

Margier, A., & Melgaço, L. (2016). Introduction au dossier <Whose right to the city?/Le droit à la ville,

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Rivera, T. (2007). O sujeito na psicanálise e na arte contemporânea. Psicologia Clínica, 19(1), 13-24.

Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652007000100002

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autoria

resumo

HEITOR MACIEL CARDOSO

Bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais –

PUC/Minas.

CONTATO: [email protected]

ANDRÉ DE SOUSA LADEIRA

Bacharel em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais –

PUC/Minas.

CONTATO: [email protected]

Uma situação complexa é enfrentada pelo povo guarani-kaiowá. O século passado foi

marcado por diversas ondas de expropriação de terras, exploração do trabalho, pobreza,

miséria, seguidos por reivindicações pelo direito de condições de vida decentes e a

possibilidade de dar linha para as tradições da etnia. Entretanto, desde o final do século

passado até os tempos atuais, pode-se testemunhar maiores ameaças e uso da violência

contra os indígenas, além das crises geradas pelo uso do álcool, pelo alto índice de suicídio

e miséria. Por outro lado, a luta do povo guarani-kaiowá por seus direitos garantiu alguns

importantes benefícios. Nesse contexto, busca-se analisar o aumento da visibilidade das

questões enfrentadas pelos guarani-kaiowá na sociedade internacional e o uso dos seus

aparatos para apoiar o movimento indigenista da etnia guarani-kaiowá.

PALAVRAS-CHAVE: guarani-kaiowá, sociedade internacional, movimento indigenista,

movimentos sociais, justiça.

O uso dos aparatos da sociedade internacional pelos guarani-kaiowá

SUMÁRIO

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88INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como temática a luta pelos direitos básicos dos índios do Brasil, minoria que é

marginalizada e possui grande dificuldade na consolidação e manutenção de suas liberdades frente

aos interesses de fazendeiros, garimpeiros e empresários. Nesse contexto, o caso específico que será

analisado é o da tribo guarani-kaiowá, que luta para recuperar a terra dos seus ancestrais, dignidade e

autonomia do seu povo. Ademais, é importante salientar que abordagem teórica que será utilizada é a

kantiana, pois se adequa de melhor forma na problemática dos direitos às minorias indígenas brasileiras.

Os guarani-kaiowá denunciaram e resistiram às violações de seus direitos de forma constante, porém

o ativismo apenas dentro do território brasileiro não demonstra resultar em mudanças estruturais da

sua realidade social, que levou a expandir suas ações e protestos para a esfera internacional. Porquanto,

a pesquisa buscará demonstrar como os índios guarani-kaiowá fazem uso dos aparatos da sociedade

internacional – ONGs transnacionais, instituições, regimes e sociedade civil internacional – para

consolidar seus direitos e liberdades.

Por conseguinte, o principal objetivo será analisar como o ativismo dos índios guarani-kaiowá nas ONGs

transnacionais, regimes e instituições internacionais influência nos seus direitos e liberdades no Estado

brasileiro. Assim sendo, para alcançar essas questões será identificado o posicionamento das ONGs

transnacionais, regimes e instituições internacionais após a interação com o ativismo dos guarani-kaiowá,

se analisará e demonstrará o posicionamento do Estado Brasileiro frente a esse protesto indígena e se

demonstrará a repercussão do ativismo na esfera internacional nos direitos e liberdades dessa tribo no

Estado brasileiro.

Desta forma, espera-se que o ativismo indígena dos guarani-kaiowá tenha como objetivo, a partir

da demonstração da realidade social, das privações de direitos e liberdades dos índios brasileiros,

sensibilizar ONGs transnacionais, instituições, regimes e sociedade civil internacional. Como

consequência, a sociedade internacional mobiliza-se e pressiona o Estado brasileiro a garantir certas

demandas e os direitos e liberdades dos indígenas guarani-kaiowá.

OS DIREITOS HUMANOS E A MINORIA INDÍGENA BRASILEIRA

Os Direitos humanos são estruturados a partir da noção de direitos, liberdade e justiça, intrínseco a

todos os indivíduos. Porquanto, esse fenômeno possui várias concepções e interpretações distintas

acerca dos direitos básicos que devem ser garantido às pessoas. As teorias libertárias, utilitarista e

kantiana apresentam visões diferentes referentes a esses elementos (Sandel, 2012).

O utilitarismo de Jeremy Bentham, por exemplo, é contrária a lógica de direitos naturais, o objetivo

moral e dos Estados seria baseado na maximização da felicidade. Como consequência, essa lógica preza

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89o desejo da maioria em detrimento dos direitos individuais e não admite uma concepção de direitos

universais (Sandel, 2012).

Contudo, outro ator utilitarista, John Stuart Mill, diverge de certos argumentos defendidos por Bentham,

que possibilita certa concordância com os Direitos Humanos. Segundo Mill, os indivíduos têm livre

arbítrio em suas ações, porém, contanto que não prejudiquem a liberdade de outros. Assim sendo, o

autor ainda agrega importância na lógica de maximização das utilidades, mas defende que é o respeito à

liberdade individual e a dignidade humana que possibilitará maior maximização de felicidade em longo

prazo para a sociedade (Sandel, 2012).

Por conseguinte, a lógica libertária defende que a liberdade é o principal e único direito inato dos seres

humanos, todos tem direito de fazer o que quiser com seus pertences, suas propriedades e seu corpo,

contanto que se respeite a liberdade dos outros. Nesse sentido, os libertários são contra políticas

paternalistas, redistribuição de renda e legislação sobre a moral, defendendo a lógica de mercado, justiça

nas aquisições de posse e nas suas transferências. Contudo, o libertarianismo possui alguns problemas

em sua análise, o mercado, por exemplo, garante apenas demandas de segurança, não possibilita e

propiciam estruturas de proteção coletiva e segurança protetora, como consequência, os marginalizados

seriam prejudicados em épocas de crise (Sandel, 2012).

Já a teoria kantiana é contra a lógica calculista de felicidade coletiva defendida pelo utilitarismo e a

concepção de liberdade defendida pela filosofia libertária. Segundo Kant (2007), a liberdade é baseada e

reforçada pela razão e pela dignidade e respeito às pessoas como fins em si mesmas, como consequência,

o indivíduo também deve ter respeito a si próprio. Ademais, de acordo com o autor, a liberdade plena só

é possível quando os indivíduos agem de modo autônomo, a partir da razão seria possível às pessoas a

autolegislação e a motivação do dever de agir de forma moralmente correta (Kant, 2007).

Os direitos humanos seguindo a lógica kantiana deve seguir uma lógica que garanta emancipação dos

indivíduos, possibilitando o surgimento de agentes racionais ativos e independentes na sociedade.

Ademais, deve-se respeitar a dignidade dos seres humanos e não utilizar as pessoas como meios para

alcançar objetivos e sim como fins em si próprios (Kant, 2007). Segundo Kant (2007),

O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo,

não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em

todas as suas acções, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem

// a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como

fim. (p. 68)

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90Dessa forma, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), criada em 1948 pela Organização

das Nações Unidas (ONU), representa de forma enfática a concepção de liberdade e direitos defendidos

pela teoria kantiana. A DUDH (2009) considera “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os

membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da

justiça e da paz no mundo” (p.2).

Os direitos humanos almeja a manutenção da dignidade de todas as pessoas, sendo assim, a DUDH

é uma forma de pressionar os Estados para que garantam o básico dos direitos e liberdade a grupos

ou indivíduos marginalizados nas sociedades. Porquanto, a minoria indígena brasileira corresponde

ao público-alvo dos Direitos Humanos, pois é perceptível a carência de certos direitos e liberdades

dos índios na sociedade brasileira, como por exemplo, o acesso a terra e a vulnerabilidade frente aos

interesses de fazendeiros e garimpeiros (Levy, 2009).

HISTÓRICO GUARANI-KAIOWÁ

Para que se prossiga o presente trabalho com análise histórica da etnia guarani-kaiowá, é necessário,

primeiramente, a compreensão de alguns elementos importantes da sua organização social. Sua forma

mais básica de estruturação socioeconômica é chamada de Te’yi, que segundo Susnik (1979-1980)

significa família extensa, ou seja, um grupo macrofamiliar unido por laços de parentesco. Uma unidade

acima, em quesito de organização social, está o tekoha. Amplamente mencionado pelos membros da etnia

guarani-kaiowá e pela literatura acadêmica, o tekoha se constitui a partir da associação de um número

superior a cinco te’yi (Susnik, 1979-1980).

Portanto, ele se caracteriza então por um vasto terreno que, por sua vez, não possui polos com densos

contingentes, mas aglomerações espalhadas de pequenas populações. Ainda há uma unidade de

organização acima do tekoha – o guára. Por ser constituído de vários tekohas, o guára conta com uma terra

ainda mais extensa, seus habitantes carregam um sentimento de pertencimento, mesmo que longe da

noção que levamos por nacionalismo nas sociedades modernas (Cavalcante, 2013).

Por conseguinte, estimativas chegam a afirmar que os guarani-kaiowá mantiveram sua tradição por

mais de 3.000 anos até o primeiro contato com os espanhóis no século XVI, mantendo a estrutura

organizacional supracitada (Noelli, 1993). Contudo, mesmo após a chegada do colonizador nas Américas

e o inevitável contato direto entre o povo guarani-kaiowá e o povo espanhol, Cavalcante (2013)

afirma que até o fim do século XIX a cultura guarani continuava mais marcada pela continuidade e

preservação de seus valores e de sua cultura tradicional. Nesse contexto, seus assentamentos não foram

extremamente modificados, sendo compostos basicamente por uma casa e um pátio, onde se hospedava

a Te’yi, e que eles dispunham de um amplo espaço territorial para suas atividades de caça, pesca e

agricultura, assim como suas práticas culturais, sociais e religiosas (Mellá, 1997).

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91Ademais, após a Guerra da Tríplice Aliança (1864 a 1870), o processo colonialista estava preparado para

se intensificar na região do Mato Grosso do Sul. A ideologia positivista e etnocêntrica dominante da

época impulsionou a criação das reservas indígenas criadas pelo Serviço de Proteção ao Índio, as quais

materializaram um processo de aldeamento compulsório da etnia guarani1.

Nesse sentido, oito reservas indígenas, que somavam apenas 17.632 hectares (FUNAI, 2017) foram

criadas de 1915 a 1928, para substituir os vastos guáras e tekohas assegurados pelos guarani-kaiowá.

A partir daí, a parcela da população indígena deslocada para dentro das reservas deixou de ter a terra

necessária para exercer suas práticas culturais e sociais. A utilização da terra para fins de subsistência

também deixou de ser possível (Cavalcante, 2014).

Os guarani-kaiowá residentes das reservas passaram a trabalhar como assalariados da cultura

ocidental, receberam uma educação que discriminava a língua falada tradicionalmente por sua etnia

e acompanharam um intenso processo de crescimento da densidade demográfica nas reservas. Tal

crescimento foi acompanhado de graves problemas sociais, como violência, – as diferenças de tekohas

não foram respeitadas no processo de relocação dos índios, muitas vezes colocando famílias rivais no

mesmo espaço – alta taxa de suicídio e de alcoolismo (Cavalcante, 2013).

No entanto, até a década de 40, boa parte dos guarani-kaiowá ainda resistia nos seus locais originais de

assentamento, vivendo em fundos de fazendas e em regiões ainda inexploradas pelo cidadão brasileiro.

Contudo, novas ondas de despejo passaram a ocorrer mediante os incentivos do governo e do mercado

para a execução de novas atividades econômicas, como a pecuária, a plantação de soja e de cana.

Desse modo, segundo Cavalcante (2013), a maior parte dos grupos indígenas foi expulsa dos locais que

passaram a ser propriedade privada dos fazendeiros (Cavalcante, 2013).

Nesse contexto, em 1970, os guarani-kaiowá enfrentavam imensas dificuldades sociais, os problemas

de suicídios, violência e alcoolismo, assolavam as comunidades existentes e eram obstáculos para a

reprodução de suas tradições milenares. É nesse contexto que o movimento indigenista guarani-kaiowá

começou a dar seus primeiros passos. A principal pauta defendida pelos índios dessa etnia: a demarcação

de suas terras de direito originário passou a ser reforçada com anos de luta (Cavalcante, 2013).

O primeiro líder do movimento, Marçal de Souza, ficou famoso por discursar ao Papa João Paulo II, em

1980, explanando abertamente os problemas sociais enfrentados pelos indígenas. Três anos depois

Marçal foi assassinado pela oposição do movimento indígena – ruralistas, empresários e garimpeiros. O

mesmo destino se sucedeu a diversas outras lideranças guarani-kaiowá em eventos de violência explicita

ou implícita geridos pela coligação ruralista (Carelli, Carvalho & Almeida, 2017).

1 Como mostra o documentário Martírio, de Vincent Carelli.

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92Todavia, a criação da nova constituição, em 1988, trouxe aos indígenas brasileiros, ao menos legalmente,

importantes avanços para a efetivação da justiça social. Segundo o Art. 231 (Brasil, 1988), “São

reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos

originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger

e fazer respeitar todos os seus bens.” Juntamente com esses avanços, outros vieram na forma de

demarcação de terras, mesmo que ainda de maneira tímida.

Contudo, a carência de representação e apoio às demandas indígenas ainda é demasiada no Estado

brasileiro. Segundo dados do CIMI:

até 31 de agosto de 2016, 654 terras indígenas no Brasil ainda aguardavam atos

administrativos do Estado para terem seus processos demarcatórios finalizados.

Esse número corresponde a 58,7% do total das 1.113 terras indígenas do país. Destas

terras que aguardam algum procedimento, 348 - pouco mais da metade (53%) - não

tiveram quaisquer providências administrativas tomadas pelos órgãos do Estado

(Sposati, 2017, s/p).

ATIVISMO DOMÉSTICO E INTERNACIONAL DOS GUARANI-KAIOWÁS

A história dos índios guarani-kaiowá, como demonstrado na seção acima, é representada por intenso

conflito com o Estado brasileiro, empresários, fazendeiros e outros grupos. Nesse contexto, os guarani-

kaiowá buscam utilizar estratégias de ativismo tanto na esfera doméstica e internacional com o objetivo

de garantir a promoção e consolidação dos direitos e liberdades, consequentemente, promovendo a

dignidade humana.

O movimento social e o ativismo englobam várias metodologias e formas de ação, que podem ser tanto

insubordinação, crítica dos símbolos e significados dominantes, protestos, motins, uso de coerção contra

propriedades privadas ou/e públicas e agressão contra outros indivíduos. Os guarani-kaiowá utilizam

grande parte dessas estratégias que se diferem de acordo com o local onde o ativismo é perpetrado,

internacionalmente ou domesticamente (Jasper, 2016).

O ativismo na esfera doméstica é caracterizado por ocupações de edifícios e instituições

governamentais, difusão de vídeos, palestras, seminários nas universidades e redes sociais na internet.

Essas estratégias têm como finalidade sensibilizar a sociedade e pressionar o governo brasileiro. Por

conseguinte, será demonstrado abaixo exemplos das ações exercidas por esse grupo, demonstrando a

diversidade e criatividade desses agentes sociais (Jasper, 2016).

Assim sendo, a criação do Aty Guasu é uma das formas de resistência domésticas mais importantes

para os guarani-kaiowá, já que representa tanto coordenação, unidade e cooperação. O Aty Guasy foi

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93criado na década de 80 e refere-se à grande assembleia guarani-kaiowá, no qual as lideranças se reúnem

com objetivo de fazer “frente ao processo sistemático de etnocídio, a expulsão e dispersão forçada

das famílias extensas indígenas do seu território tradicional” (Benites, 2017, s/p). Nesse contexto, ela

possibilita a formulação, coordenação e execução de agendas, objetivos e ações compartilhadas entre o

povo guarani-kaiowá.

Por conseguinte, a carta escrita, em 2012, pelos índios guarani-kaiowá foi uma das estratégias de

ativismo doméstico que causaram grande sensibilização e mobilização da sociedade brasileira. Essa

metodologia de ação dos índios tinha como objetivo impedir/revogar a ordem de retirada da tribo do

acampamento “Pyelito Kue/ Mbarakay, na fazenda Cambará, em Iguatemi, Mato Grosso do Sul (MS),

emitida pela Justiça Federal de Navira (MS), no dia 29 de Setembro de 2012” (Freitas, 2012, s.p). Nesse

contexto, os guarani-kaiowá escreveram uma carta no intuito de pressionar o setor judiciário e o governo

brasileiro, porém a mensagem foi interpretada erroneamente como “suicídio coletivo” que causou

demasiada comoção de todos os setores da sociedade.

Comemos comida uma vez por dia. Passamos isso dia-a-dia para recuperar o nosso

território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no

centro desse nosso território antigo estão enterrados vários os nossos avôs e avós,

bisavôs e bisavós, ali estão os cemitérios de todos nossos antepassados. Cientes

desse fato histórico, já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos

antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça

Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos o decreto

da nossa morte coletiva e para nos enterrar aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para

decretar a nossa dizimação/extinção total, além de enviar vários tratores para cavar

um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos

juízes federais. (Heck, 2012, s/p).

Segundo comunicado da Aty Guasu, o termo “morte coletiva” não expressa suicídio coletivo, e sim o

ato de luta contra o governo brasileiro e os pistoleiros contratados por fazendeiros, que insistem em

remover os guarani-kaiowá de suas terras. Assim sendo, as tribos continuarão a resistência, dispostos a

enfrentar todas as mazelas que podem resultar em longo prazo na sua própria extinção (Ameaçados de

despejo..., 2012)

O protesto, como supracitado, resultou em grande mobilização da sociedade, principalmente nas redes

sociais, que ocasionou em um abaixo-assinado entregue à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos

Deputados, intitulado como “Eu apoio a causa indígena”. Por conseguinte, em 19 de outubro de 2012,

os índios foram até a Esplanada dos Ministérios em Brasília e colocaram diversas cruzes no gramado,

que simbolizavam a morte dos guarani-kaiowá diante do conflito com fazendeiros e outros grupos

(Freitas, 2012).

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94Manifestações também foram realizadas, em 11 de novembro de 2012, com a finalidade de criticar as

ameaças sofridas pelos guarani-kaiowá, sendo realizadas em 50 cidades brasileiras2. Ademais, a Cúpula

Social do Mercosul, realizada em dezembro de 2012, também teve conhecimento do protesto e solicitou,

na Declaração de Brasília, o fim da perseguição e o aniquilamento de povos indígenas, em particular o

povo guarani-kaiowá (Freitas, 2012; Manifestação a favor..., 2012).

Portanto, a interpretação errada da carta dos guarani-kaiowá proporcionou a sensibilização e

mobilização da sociedade, que viabilizou a abertura de janelas de oportunidade política. Essa abertura

garantiu a mobilização do público em curto prazo, como consequência, facilitando a realização de

parte das demandas dos guarani-kaiowá. Assim sendo, frente a grande pressão popular e dos índios,

o Ministério Público Federal (MPF) em Dourados garantiu a permanência dos indígenas na fazenda

Cambará e acelerou o processo de conclusão de um relatório completo sobre a situação dos guarani-

kaiowás, no qual busca analisar se há vínculo desse grupo com a terra reivindicada. Contudo, grande

parte dos proprietários de terra da região proíbe ou dificultam a entrada dos antropólogos nas fazendas

(Jasper, 2016; Luta dos guarani-kaiowás…, 2012).

Por conseguinte, os principais exemplos de ativismo internacional perpassa pelas lideranças indígenas

guarani-kaiowá, pois possuem maior legitimidade e experiência para representar e discursas acerca

dos problemas vivenciados pela tribo no território brasileiro. Uma das lideranças que exerceu essa

metodologia de ação foi Ladio Verón, um dos líderes do Aty Guasu e cacique da comunidade guarani-

kaiowá Takuara, na região de Dourados (MS), que viajou sete países europeus, em março de 2017, com

objetivo de expor as problemáticas vivenciadas pelos guarani-kaiowá resididos no território brasileiro

(Rudnitzki, 2017).

Durante a viagem, em 27 de abril de 2017, a liderança palestrou, por exemplo, na Universidade de

Maynooth, na Irlanda, expondo a realidade social e a violação dos direitos dos índios guarani-kaiowá no

Brasil – assassinato das lideranças e demarcação de terras. Ademais, Ladio Verón também foi convidado

pelas Organización de Televisión Iberoamericana e rádio espanhola RTVE para debater a respeito da

situação dos guarani-kaiowá e das problemáticas já supracitadas na pesquisa, criticando também o

governo do presidente Michel Temer, que reduziu ainda mais a liberdade e os direitos indígenas no Brasil

(Maynooth University, 2017; RTVE, 2017; NCI Cooperación 11/5/2017, 2017).

2 As cidades que agendaram manifestação foram: Manaus (AM), Belém (PA), Bragança (PA), Porto Velho (RO), Maceió (AL),

Salvador (BA), Fortaleza (CE), Juazeiro do Norte (CE), Recife (PE), João Pessoa (PB), Teresina (PI), Natal (RN), Brasília (DF), Goiania

(GO), Cuiaba (MT), Campo Grande (MS), Iguatemi (MS), Naviraí (MS), Vitória (ES), Belo Horizonte (MG), Ouro Preto (MG), Viçosa

(MG), Rio de Janeiro (RJ), São Paulo (SP), Assis (SP), Bauru (SP), Botucatu (SP), Campinas (SP), Franca (SP), Guarulhos (SP), Marília

(SP), Osasco (SP), Ribeirão Preto (SP), Santos (SP), São José dos Campos (SP), São José do Rio Preto (SP), Sorocaba (SP), Taubaté

(SP), Curitiba (PR), Londrina (PR), Maringá (PR), Porto Alegre (RS), Canoas (RS), Novo Hamburgo (RS), Rio Grande (RS), Santa Cruz

do Sul (RS), Florianópolis (SC), Blumenau (SC), Brusque (SC), Joinville (SC) (Correio, 2012).

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95Além disso, Ladio Verón denunciou no Parlamento Europeu o genocídio indígena, que totalizam 400

assassinatos desde 2003, no qual grande parte são lideranças. O discurso da liderança indígena ganhou

apoio, principalmente, do eurodeputado Xavier Benito, que demonstrou preocupação acerca dos direitos

humanos e as atividades das empresas multinacionais no Brasil (Euro EFE, 2017).

Outra liderança que utilizou do ativismo internacional com a finalidade de sensibilizar a sociedade

internacional foi Elizeu Lopes, da aldeia Kurusu Amba, da cidade de Coronel Sapucaia. Assim sendo,

Elizeu viajou para a Europa e reuniu-se com deputados do parlamento sueco com a finalidade de debater

e protestar contra o acordo, aprovado em julho de 2017, entre a União Europeia (UE) e alguns municípios

do Mato Grosso do Sul, que autoriza treze municípios a exportação in natura de carne bovina para a

Europa (Sposati, 2017).

A liderança afirma que essas regiões são as principais áreas de conflitos entre fazendeiros e indígenas,

segundo Elizeu, “é nessas cidades que a maioria das nossas lideranças estão sendo mortas. É onde

tem maior conflito” (Sposati, 2017, s/p). Nesse contexto, a compra de carne dessas regiões propiciará

financiamento para os fazendeiros continuarem as hostilidades contra os gurani-kaiowás e dificultará na

demarcação das terras indígenas da região.

Ademais, Elizeu também contestou as informações referentes à demarcação de terras indígenas no Brasil

dado pelo governo brasileiro aos parlamentares suecos. Os dados divulgados pelo governo brasileiro

para os políticos suecos alegavam que 90% das terras dos indígenas já estariam regularizadas, porém essa

informação não condiz com a realidade, pois de acordo com o Conselho indigenista Missionário (CIMI):

até 31 de agosto de 2016, 654 terras indígenas no Brasil ainda aguardavam atos

administrativos do Estado para terem seus processos demarcatórios finalizados.

Esse número corresponde a 58,7% do total das 1.113 terras indígenas do país. Destas

terras que aguardam algum procedimento, 348 - pouco mais da metade (53%) - não

tiveram quaisquer providências administrativas tomadas pelos órgãos do Estado

(Sposati, 2017, s/p).

O líder guarani-kaiowá Elizeu Lópes também participou, em julho de 2017, do Encontro Mundial de

Movimentos Populares em La Paz, na Bolívia. Durante o evento Elizeu teve a oportunidade de encontrar

com o papa Francisco, no qual escutou as condições e as demandas dos índios guarani-kaiowá, que

incluíam, por exemplo, a solicitação da mediação do papa para solucionar a questões de demarcação de

terra indígena no Brasil (CGY, 2017).

Porquanto, tanto o ativismo doméstico quanto o internacional interagem, pois como as manifestações

da “carta” suscitaram mobilização na Cúpula Social do Mercosul, as manifestações e protestos

internacionais podem sensibilizar a comunidade internacional e também a doméstica, possibilitando

mudança na conjuntura dos guarani-kaiowá e dos índios brasileiros. Ambas as formas de estratégia

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96são importantes e interdependentes, garantindo arenas de ação para modificar a realidade social dos

guarani-kaiowá, propiciando a dignidade humana desse grupo social (Caldeira, 2016).

O ativismo dos guarani-kaiowá possibilita que o Estado e a sociedade garantam a dignidade humana e a

compreensão desse grupo social como fins em si mesmos, e não como meios ou indivíduos que devem ser

apadrinhados pelo Estado. São agentes no qual as políticas públicas devem condizer com suas demandas

e suas solicitações, pois eles são racionais e compreendem seus objetivos de forma clara (Kant, 2007).

O POSICIONAMENTO DOS APARATOS DA SOCIEDADE INTERNACIONAL FRENTE

AOS GUARANIS-KAIOWÁS

As intensas manifestações dos guarani-kaiowá domesticamente e, principalmente, na esfera internacional,

possibilitaram a sensibilização e mobilização de alguns aparatos da sociedade internacional, garantindo

a inserção de novos atores na adesão das demandas desse grupo social. Nesse contexto, representantes

do Parlamento Europeu e integrantes da Comissão dos Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos

Deputados (CDMCD) realizaram uma viagem até o Mato Grosso do Sul com a finalidade de compreender

a realidade social dos guarani-kaiowá e encontrar uma solução para a questão do genocídio indígena na

região. Ademais, após o ativismo e o protesto dos guarani-kaiowá o Parlamento Europeu aprovou uma

resolução condenando a violação dos direitos da tribo indígena e solicitou as autoridades brasileiras a

adoção de medidas que garantissem a dignidade dos guarani-kaiowá (Caldeira, 2016).

Por conseguinte, em 16 de março de 2017, Ladio Verón se reuniu com deputados e senadores do partido

espanhol Unidos Podemos (UP) e discursou a respeito da situação dos guarani-kaiowá. Assim sendo,

frente ao protesto da liderança indígena 39 senadores e deputados solicitaram formalmente que o

governo brasileiro demarque os territórios dos guarani-kaiowá, alegando que essa seria a única forma de

garantir os direitos humanos desse grupo social (Unidos Podemos solicita…, 2017).

Após a viagem de Ladio Verón a Europa e a exposição da realidade social e violação dos direitos dos

guarani-kaiowá outros parlamentares também foram sensibilizados, em curto prazo, pela compreensão

das problemáticas. Nesse sentido, “grupo Parlamentar de Direitos Humanos do Reino Unido se

comprometeu a monitorar abusos contra os guarani-kaiowá, assim como o movimento político irlandês,

Sinn Fein” (Woods, 2017, s/p).

Ademais, como já supracitado, algumas universidades e rádios propiciaram a divulgação pelas lideranças

indígenas, Elizeu Lopes e Ladio Verón, das suas vivências e das violações das liberdades e direitos

humanos dos guarani-kaiowá e dos indígenas brasileiros. Nesse contexto, a difusão pelos meios de

comunicação possibilita a difusão e a adesão do público europeu às demandas dos guarani-kaiowá,

garantindo maior pressão contra o Estado brasileiro. O caso da Cúpula Social do Mercosul e a Declaração

de Brasília é um exemplo nítido dessa situação, onde a mobilização da sociedade desencadeou a reação

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97da instituição regional Mercosul. Como consequência, a mobilização da sociedade europeia pode ter

desencadeado algumas reações descritas acima, podendo fomentar outras ações de outros aparatos da

sociedade internacional – ONGs, Estados, partidos políticos – a médio e longo prazo.

POSICIONAMENTO DO ESTADO BRASILEIRO FRENTE A ESSE FENÔMENO

O Estado brasileiro apresentou um posicionamento oscilante e fragmentado frente ao movimento

indigenista guarani-kaiowá. Oscilante, por causa dos diversos movimentos de avanços e retrocessos

acerca dos direitos indígenas, e, fragmentado, pela sua atitude desigual entre os âmbitos internacional e

doméstico, assim como no campo constitucional e no prático.

Analisando os avanços da política indigenista brasileira em ordem cronológica, temos como primeiro

marco importante à designação de um capítulo da Constituição de 1988 para os povos indígenas,

assegurando os direitos específicos que supostamente trariam justiça social a tais minorias. Esses direitos

específicos se agrupam em dois pontos principais, sendo eles o direito à diferença e o direito à terra

(Brasil, 1988).

Por conseguinte, a ratificação da Convenção nº169 sobre os Povos Indígenas e Tribais em Países

Independentes, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sinalizou a formalização de

compromissos do Estado brasileiro frente à sociedade internacional quanto à questão indígena nacional.

Contudo, a aplicação desta convenção foi marcada pela timidez. A resistência do STF à aplicação de

tal norma internacional em âmbito doméstico se mostrou como um obstáculo significativo para que tal

aplicação ocorresse de modo efetivo (Garzón & Valle, 2006).

A ratificação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (ONU, 2007),

demarca um terceiro ponto de relevância institucional para o avanço dos direitos indígenas brasileiros.

Com um texto extremamente avançado, a declaração se organiza em cinco pontos principais, sendo eles:

o direito de auto-determinação; direito ao consentimento livre, prévio e informado; propriedade cultural

e material; direito à reprodução cultural; direito à comunicação3 (Mathias & Yamanda, 2010).

3 Sobre os cinco pontos: autoafirmação, os povos indígenas têm o direito de determinar “livremente sua condição política e

buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural” (ONU, 2007, p.7). Direito ao consentimento livre, tange a

concretização de acordos por parte dos povos indígenas. Direito à propriedade cultural e material, assegura o direito à reparação

pelo furto de suas propriedades, exigindo dos Estados a reparação de terras, bens materiais e culturais. Reprodução cultural,

afirma o direito dos povos indígenas em “manter, proteger e desenvolver as manifestações passadas, presentes e futuras de suas

culturas”, sendo que, cabe ao Estado nacional prover mecanismos eficazes para tal reparação. Direito à comunicação assegura

aos povos indígenas o direito de manter seus próprios meios de comunicação, assim como acesso aos meios de comunicação não

indígenas (Mathias & Yamanda, 2010; ONU, 2017).

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98 No entanto, tanto no âmbito prático quanto no nível doméstico, percebe-se um posicionamento

dicotômico do Estado brasileiro, resultando em políticas que trazem tanto avanços quanto retrocessos

aos direitos assegurados nos contratos formais. Ademais, levando em conta a situação crítica em que se

encontram os guarani-kaiowá, é possível afirmar que o Estado brasileiro não teve sucesso em assegurar ao

povo guarani-kaiowá os direitos indígenas colocados na constituição, tanto quanto aqueles ratificados na

Convenção 169 da OIT e na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007

(Pimentel & Moncau, 2010).

Em relação ao direito às terras originárias, principal pauta levantada pelo movimento indigenista guarani-

kaiowá, houve tímidos avanços que não foram capazes de possibilitar que as comunidades conseguissem

tirar seu subsídio da terra, sequer que sua cultura tradicional fosse reproduzida de modo devido. Os

processos de demarcação de terra ocorrem a passos lentos, enfrentando diversos impasses e retrocessos.

Como afirma Cavalcante (2014), “em todas as áreas sobre as quais o governo federal desenvolveu alguma

ação fundiária, essa ação só ocorreu depois de muita luta protagonizada pelos grupos indígenas e por seus

aliados” (p. 9).

Nesse contexto, a situação administrativa dentre todas as terras identificadas a partir de 1980 se

mostra de maneira bastante diversificada, sendo que são “nove terras regularizadas com registro

cartorial, cinco terras homologadas, duas terras demarcadas, quatro terras declaradas e duas apenas

identificadas e delimitadas” (Cavalcante, 2014). Ademais, aqueles processos administrativos que estão sob

responsabilidade do Poder Executivo Federal, sendo conduzidos pela FUNAI e pelo Ministério da Justiça

normalmente ocorrem morosamente.

Em 2007, respondendo a diversas reivindicações institucionais, a FUNAI se comprometeu a fazer estudos

demarcatórios no Mato Grosso do Sul em pelo menos 39 áreas reivindicadas pelos povos indígenas. Para

tanto, foram formados Grupos Técnicos (GTs), em junho de 2008, que deveriam encaminhar ao Ministério

da Justiça os processos de delimitação de terras identificadas, com o prazo final de abril de 2010. Contudo,

as pressões contrárias às demarcações de terras se mostraram eficazes, impedindo que tais relatórios

fossem entregues e processados, com exceção de apenas um resumo de Relatório Circunstanciado de

Identificação e Delimitação que foi publicado (Cavalcante, 2014).

Ademais, durante sua história, a Fundação Nacional do Índio também retratou movimentos oscilantes e

fragmentados em relação à asseguração dos direitos indígenas. Criada em 1967 durante a ditadura militar,

a FUNAI manteve-se durante o período desse governo com escassos recursos políticos e financeiros.

Além disso, a instituição tinha caráter demasiado tutelar e assistencialista, as políticas da instituição

frequentemente eram contrárias aos objetivos indígenas, representando apenas os interesses do Estado

(FUNAI, 2017; Levy, 2009).

Suas primeiras décadas foram marcadas por duas falhas organizacionais: o excesso de burocracia e

a pouca interação com os indígenas. Em 1980, foi criado a Sociedade Brasileira de Indigenistas (SNI),

que tinha como objetivo solucionar esse problema. O órgão exerceria um canal de diálogo dos grupos

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99indígenas com a FUNAI, com a finalidade de expor os interesses e necessidades desse grupo social.

Entretanto, a FUNAI não reconheceu a legitimidade da SNI, afirmando-se como a única instituição

representante dos índios (Levy, 2009).

Dessa forma, demonstrou-se a importância da reestruturação da FUNAI, já que o órgão não

representava e não inseria os grupos indígenas na formulação e execução das políticas. Nesse sentido,

a Constituição de 1988 e o fim da ditadura militar são outros marcos importantes, pois modificaram

a lógica de ação da FUNAI, garantindo maiores direitos e democratização nas relações com as

comunidades indígenas, como previsto pela DUDH (FUNAI, 2017). Contudo, a reestruturação da FUNAI

só aconteceu formalmente em 28 de dezembro de 2009, pelo Decreto 7.056, no qual determinava:

alinhamento da política indigenista estatal aos marcos jurídicos nacionais e

internacionais que atuam na defesa, garantia e proteção dos direitos desses povos,

sinalizando a disposição governamental em fortalecer o processo de superação dos

projetos políticos anteriores que estavam amparados em práticas assistencialistas

e tutelares, caracterizadas por relações patrimonialistas e clientelistas, de troca de

favor, que contribuíram para agravar preconceitos, diferenças e desigualdades na

relação dos povos indígenas com o Estado e a sociedade brasileira.

A atuação da FUNAI se pauta pelo entendimento de que as políticas sociais devem prever ações

indigenistas que assegurem em seus serviços o respeito e a promoção das especificidades socioculturais

e territoriais dos povos indígenas, bem como o controle social e o protagonismo indígena, de modo que

eles sejam capazes de intervir nos espaços institucionais de diálogo entre os diversos atores do campo do

indigenismo e nos processos de formulação das políticas públicas (FUNAI, 2017, s/p).

Ademais, a reestruturação garante política previdenciária, saúde, combate a fome, acesso a

documentação básica e infraestrutura para as comunidades indígenas. A realização dessas políticas

sociais pela FUNAI deve ser feita a partir de consultas prévias com as comunidades indígenas, cabendo a

essas últimas à decisão de participar. A reestruturação também previa a contratação de 3 mil servidores

pela FUNAI, porém apenas 620 contratos foram realizados até o momento (Barros & Barcelos, 2016;

FUNAI, 2017).

Contudo, a aprovação da PEC 241, em 13 de dezembro de 2016, que congela os gastos sociais primários

por um prazo de vinte anos aponta para um enfraquecimento estrutural em longo prazo da FUNAI e de

outras organizações indigenistas governamentais. Entretanto, as ameaças à plena atuação da Fundação

do Índio se fazem mais presentes e penetrantes com o decreto de nº 9.010, apresentado pelo presidente

da República Michel Temer, apresentando cortes orçamentários expressivos. As áreas mais afetadas

pela reforma serão aquelas responsáveis pela identificação e demarcação de terras indígenas. Segundo o

decreto (2017), serão extintos 347 cargos do grupo Direção e Assessoreamento Superiores (DAS 1), 51

cargos nas Coordenações Técnicas Regionais (CTLs), dentre outros cortes (Brasil, 2017; Souza, 2017).

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100Portanto, maiores ameaças aos direitos dos povos indígenas, em específico dos guarani-kaiowá, são

esperados para os próximos anos. A crescente atuação dos ruralistas em cada um dos três poderes

configuram reais ameaças aos direitos básicos dos povos indígenas brasileiros. Tais retrocessos podem

ser observados em diversos decretos, projetos de lei ou de emenda constitucional criados em prol

dos interesses econômicos em oposição ao processo de demarcação de terras4 (Cavalcante, 2017).

Evidentemente, o avanço de uma política neoliberal adotada pelo governo brasileiro aponta para uma

tendência de endossar os interesses econômicos da bancada ruralista, frente às reivindicações dos

guarani-kaiowá.

Por fim, com relação ao ativismo internacional dos guarani-kaiowá e o posicionamento de alguns aparatos

da sociedade internacional em defesa desse grupo social, não houve respostas oficiais claras e diretas

por parte do Estado brasileiro. No entanto, os avanços alcançados pelos indígenas desde o início de seu

movimento político podem estar ligados indiretamente ao ativismo e pressão internacional, compondo

assim uma força não explícita que afeta os resultados sobre as políticas indigenistas nacionais. Por outro

lado, o governo brasileiro atual estimula as políticas de retrocesso aos direitos indígenas, apesar da

crescente reivindicação indigenista no âmbito internacional, se mostrando menos propenso a se alinhar

com tais demandas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os guarani-kaiowá e os índios brasileiros são grupos sociais extremamente marginalizados, como

consequência, a violação dos seus direitos e liberdades são extremamente recorrentes no Estado

brasileiro. Essas violações ocorrem, principalmente, por ruralistas, empresários, garimpeiros e pelo

próprio governo brasileiro, pois as demandas, os valores e o modelo de vida dos gurani-kaiowá entram

em conflito com os objetivos e interesses desses agentes, que estão vinculados pela lógica mercantilista

e capitalista.

Porquanto, frente a esses obstáculos o ativismo doméstico e internacional é utilizado de forma árdua

por essa etnia, que tem como finalidade modificar a realidade social e promover a dignidade humana do

seu povo. Nesse contexto, essas formas de ativismo são interdependentes, pois pressionam o Estado

brasileiro tanto pela sensibilização e mobilização nacional e internacional, garantindo assim maiores

possibilidades de ação pelos guarani-kaiowá.

O ativismo em diversos países propicia a difusão e compreensão da realidade social e das problemáticas

vivenciadas por esse grupo, propiciando a empatia e adesão de outros indivíduos às demandas desses

4 Vide Proposta de Emenda Constitucional nº 215/2000; Projeto de Lei Complementar nº 227/2012; Decreto nº 1.775/1996;

Petição nº 3.388/RR; Projeto de Lei Complementar nº 227/2012.

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101indígenas. Porquanto, as lideranças guarani-kaiowá são essenciais para o ativismo, pois garantem maior

legitimidade para o discurso e manifestações, já que possuem demasiada experiência e vivência da

condição dos índios brasileiros, especificamente a dos guarani-kaiowás.

Assim sendo, o assassinato das lideranças é uma prática recorrente dos grupos que buscam desarticular

a luta indigenista, porém a coordenação e articulação dos guarani-kaiowá é extremamente profícua

para solucionar essas mazelas. O Aty Guasy é um exemplo da unificação, solidarizarão e formulação de

políticas e objetivos conjuntos pelos guarani-kaiowá, sendo essencial para suplantar os obstáculos.

Ademais, apenas a curto prazo e em conjunturas específicas, o Estado brasileiro se preocupou com as

demandas e na promoção dos direitos e liberdades dos guarani-kaiowá. Nesse contexto, frente às atuais

manifestações, ativismo internacional praticado pelas lideranças indígenas e pressão de alguns aparatos

da sociedade internacional, – partidos políticos, parlamento europeu e rádios – o atual governo não

emitiu nenhuma declaração ou posicionamento oficial que demonstre, talvez, nenhuma preocupação com

a problemática dos guarani-kaiowá. Contudo, o ativismo é ainda essencial, pois apesar de não ocasionar

em mudanças conjunturais pode propiciar mudanças a médio e longo prazo pela conscientização da

sociedade nacional e internacional.

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autoria

resumo

BRUNA DI FÁTIMA DE ALENCAR CARVALHO

Graduanda em Direito pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB.

CONTATO: [email protected]

Tendo em vista a notoriedade e antiguidade dos episódios de violência obstétrica, bem

como a não criminalização de tal conduta, percebe-se a ausência de mecanismos jurídicos

eficazes para o combate de tal prática. Após o evento delitivo, a mulher encontra inúmeros

entraves para pleitear a responsabilidade civil do agressor, e, por conseguinte, ser indenizada

pelos danos suportados. Isto posto, faz necessário que seja repensado o ônus da prova em

pleitos que tratem da matéria em questão, sobretudo porque o Código de Processo Civil de

2015 vincula-se à teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova. Para tanto, pretende-

se expor o panorama sociocultural machista institucional no âmbito da atenção à saúde;

para tanto, contextualiza-se a referida prática na obra de José Saramago, com ênfase no

título Memorial do Convento, assim como busca-se repensar mecanismos jurídicos hábeis

a reprimir a naturalização da violência obstétrica. Para a produção do presente trabalho

utilizou-se o levantamento bibliográfico, a partir do método exploratório, para tanto utilizou-

se a obra de José Saramago, além de apontamentos da doutrina jurídico-normativa e da

jurisprudência acerca da dinamicidade do ônus da prova. Diante disso, conclui-se que tendo

em vista que a violência obstétrica é um viés da violência de gênero – qualificada em razão

da vulnerabilidade da vítima – e, somado a isso, tem-se sua falta de criminalização, quando da

sua ocorrência, faz-se necessária uma mudança de postura do judiciário quanto à apreciação

das provas nos casos em questão com o fito de reprimir tal violação.

PALAVRAS-CHAVE: violência obstétrica, violência de gênero, inversão do ônus da prova,

processo civil, José Saramago.

Não mais parirás com dor: inversão do ônus da prova nos casos de violência obstétrica

SUMÁRIO

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106INTRODUÇÃO

A violência contra a mulher é histórica e comporta as mais variadas formas de manifestação, de maneira

que pode ser identificada como aquela ocorrida dentro de uma rede institucional de assistência à

gravidez e ao parto, contexto no qual a gestante é posta numa condição secundária, subordinada aos

saberes técnicos dos profissionais da saúde.

Observa-se, então, que, embora a experiência psicofisiológica do parto para a mulher seja um momento

solitário, naturalmente marcado por subjetividade, ao corpo assistencial cabe minorar ao máximo o

sofrimento da parturiente, razão pela qual a ocorrência da violência obstétrica mostra-se especialmente

traumática, carretando à vítima sensação de desemparo em razão da sua vulnerabilidade.

Diante disso, nota-se que o discurso jurídico não pode excursar-se de absorver as subjetividades

femininas, e, de fato, começa a incorporá-la – em decorrência dos debates acerca do feminismo, Lei Maria

da Penha etc. – ao reconhecer e reprimir a violência de gênero.

Nessa toada, calha destacar que a violência obstétrica pode ser considerada como um viés de violência de

gênero, que, no entanto, não conta com tipificação penal, fazendo-se necessário que para que o agressor

receba sua devida reprimenda legal, a mulher adentre à seara cível e pleiteie sua responsabilização por

meio de um desgastante processo judicial.

Diante de tal panorama, tem-se, então, muito comumente, um quadro probatório comprometido

pela condição da outrora parturiente e, diante de tal hipossuficiência dos meios de prova da violência

suportada, bem como do Código de Processo Civil de 2015, faz-se necessário pensar a concessão

da inversão do ônus da prova como uma ferramenta de combate à referida violação, assim como de

sensibilidade, primando, portanto, por uma tutela judicial que considere as subjetividades decorrentes

do gênero.

O CONTEXTO SOCIOCULTURAL DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

“Por trás do muro do convento ouviam-se ladainhar as Freitas, mal sabem elas do que se livram, parir

um filho e tão violentamente pagar por ele” (Saramago, 1982, p. 26). As raízes históricas e culturais da

violência obstétrica encontram-se no mito judaico- cristão de Adão e Eva, de forma que este configura a

primeira representação de feminino e masculino. Assim, por ter induzido o homem a comer do fruto da

árvore proibida, a mulher haveria sido castigada por Deus a um parto aflitivo (Muraro, 1992).

A violência obstétrica desponta desde tempos remotos como um sofrimento inescapável imposto às

mulheres que venham a engravidar, seguindo os termos da praga divina rogada, uma vez que, segundo

a Bíblia, no livro do Gênesis (2017), capítulo 3, versículo 16, “E à mulher [Deus] disse: Multiplicarei

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107grandemente a tua dor, e a tua conceição [concepção]; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para

o teu marido, e ele te dominará”.

Somado a isso, segundo Griboski e Guilhem (2006, p. 108) o parto já adentra ao imaginário social e

cultural com inúmeros mitos além daquele mito bíblico, como o mito da “destruição do canal vaginal, o

que impediria as mulheres de terem relações sexuais prazerosas, incentivando- se, com isso, a realização

da episiotomia ou o parto cirúrgico” bem como o “medo de morrer no parto, transmitido por meio da

história de outras pessoas ou familiares” (Griboski & Guilhem, 2006, p. 108).

Assim, após a superação daquele episódio de sofrimento extremo, a mulher encontrava seu júbilo, de

forma que o parto passa a ser associado a ideia de que o sofrimento é indissociável gestação e do parto e,

se suportado pela mulher, a enalteceria. A própria Igreja Católica incutia no imaginário das mulheres que

a sua dor era resultado dos desígnios divinos, devendo ser suportada com resignação (Diniz, 2005).

“A arte de partejar é uma atividade que acompanha a história da própria humanidade e, particularmente,

da história da mulher” (Wolff & Vasconcelos Moura, 2004, p. 280). Dessa maneira, cabe destacar que

até ao longo da História da Mulher, a realização de partos e seu auxílio ficou a encargo apenas de outras

mulheres, as parteiras, por diversos motivos, estes vão desde vergonha na exposição de seus corpos,

desde a falta de sensibilidade masculina à dor da parturiente; por sua vez, as mulheres ofereciam uma as

outras auxílio pessoal e empático, de forma que, apenas excepcionalmente, a figura masculina imiscuía-se

no trabalho de parto, e ainda de forma deslocada (Wolff & Vasconcelos Moura, 2004).

No entanto, segundo Foucault (1998), a partir do século XVIII desponta a histerização do corpo feminino,

este configura um conjunto estratégico de “dispositivos específicos de saber e poder a respeito do sexo”1.

Nessa toada, ao longo do século XIX, deu-se a consolidação da histerização do corpo da mulher, de

forma que este passou a ser revalorado pelo imaginário social e, em decorrência disto, os procedimentos

de parturição sofreram uma alteração. Nesse viés, Oliveira (2017), ao analisar a referida histerização

apontada por Foucault, explica que se trata de:

1 Histerização do corpo da mulher: tríplice processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado — qualificado e desqualificado —

como corpo integralmente saturado de sexualidade; pelo qual, este corpo foi integrado, sob o efeito de uma patologia que lhe

seria intrínseca, ao campo das práticas médicas; pelo qual, enfim, foi posto em comunicação orgânica com o corpo social (cuja

fecundidade regulada deve assegurar), com o espaço familiar (do qual deve ser elemento substancial e funcional) e com a vida das

crianças (que produz e deve garantir, através de uma responsabilidade biológico-moral que dura todo o período da educação): a

Mãe, com sua imagem em negativo que é a “mulher nervosa”, constitui a forma mais visível desta histerização (Foucault, 1998).

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108Um processo que, segundo ele, se consolidou durante o século XIX e teve como

característica o esquadrinhamento do corpo feminino a partir da articulação de

uma série de saberes: médicos, morais, pedagógicos. Enquanto corpo saturado de

sexualidade (histérico, necessitado de um homem), o corpo das mulheres burguesas

foi capturado pela medicina. Enquanto corpo reprodutor, ele se tornava um corpo

social: voltado para a missão de fazer das crianças os futuros cidadãos de uma nação

em crescimento. Enquanto reprodutora ainda, a mulher era aproximada, pelos

discursos religiosos, da imagem de Maria, a mãe abnegada que se aproximava da

santidade. Nesse sentido, a mulher, no século XIX, passou a ser definida por algo que

se produzia em seu corpo, em sua natureza: a maternidade (e todas as atribuições

decorrentes do fato de ser mãe) se tornou a principal identidade feminina das

mulheres burguesas nas sociedades ocidentais modernas (p. 99)

Diante da referida mudança sociocultural, no período observou-se o surgimento de uma especialização

médica voltada para a gestação e o parto, o que acabou por institucionalizar o processo natural feminino

em voga, surgindo então as maternidades, e é nesse momento então que, de acordo com Diniz (2005) “A

obstetrícia médica passa a reivindicar seu papel de resgatadora das mulheres” (p. 628). Assim, segundo

a referida autora, a mulher do século XIX “é descrita não mais como culpada que deve expiar, mas como

vítima da sua natureza” (Diniz, 2005, p. 628).

É diante desse contexto que eclode uma transformação radical na significação do processo de parto,

associando-se o acompanhamento da mulher grávida muitas vezes ao de um doente, e, segundo Wolff

e Vasconcelos Moura (2004) outra mudança foi que os outros profissionais não médicos, como os

enfermeiros e parteiras, passaram a ser entendidos como menos importantes que a figura do médico.

Seguindo esse curso, passou-se por uma “tomada de poder” dos homens no que concerne à realização

do parto, de forma que se deu o fim da feminização do parto, bem como “levou as parteiras para segundo

plano e marginalizou a comunidade de mulheres dos acontecimentos que marcavam o nascimento”

(Wolff & Vasconcelos Moura, 2004, p. 280). Assim, no curso da História, no século XX o parto hospitalar

passou a ser a regra.

Inicialmente restrito às elites e às indigentes que acorriam às maternidades-escola,

o modelo hospitalar se expandiu como padrão da assistência nas áreas urbanas. Na

metade do século 20, o processo de hospitalização do parto estava instalado em

muitos países, mesmo sem que jamais tivesse havido qualquer evidência científica

consistente de que fosse mais seguro que o parto domiciliar ou em casas de parto

(Tew, 1995 apud Diniz, 2005).

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109O modelo institucional exsurge então como vetor de mudança de administração do parto, já afastando

de pronto da mulher a opção da mulher de escolher quais profissionais a auxiliariam, posto que, mesmo

diante “da história da formação de parteiras e enfermeiras obstétricas, profissões que possuíam

um conhecimento próprio e um domínio feminino desse saber, e a medicina se apropriou dele e o

transformou em saber-poder masculino” (Wolff & Vasconcelos Moura, 2004).

Mesmo antes de dominar técnicas como o fórceps e a cesariana com sucesso para a

mulher e a criança durante o parto, a obstetrícia proclama a sua exclusividade desde

1840. Também a partir deste período, percebe-se o deslocamento do seu olhar para

questões tais como sexualidade, higiene e moral feminina. Assim, a partir da segunda

metade do século XIX, a medicina se articula a outras instâncias do social na produção

de uma nova imagem sobre a mulher, da relação desta com os filhos e sobre seu papel

em sociedade, esposa-mãe-dona-de-casa. (Brenes, 1991, p. 137)

A principal justificativa para a mudança de tratativa em relação ao parto é uma suposta necessidade

de tornar o processo mais higiênico e reduzir as taxas de mortalidade, tanto da mãe quanto da criança,

embora os próprios procedimentos advindos com a hospitalização do parto pudessem ser relacionados

com a não redução daquelas taxas2 (Diniz, 2005).

Uma outra consequência da mudança de postura sociocultural e também institucional em relação à

concepção humana é a exposição da gestante a um processo de medicalização, posto que “a histerização

das mulheres, que levou a uma medicalização minuciosa de seus corpos, de seu sexo, fez-se em nome

da responsabilidade que elas teriam no que diz respeito à saúde de seus filhos, à solidez da instituição

familiar e à salvação da sociedade” (Foucault, 1998, p. 136). A obstetrícia em razão do mito do período

de que a mulher seria vítima das circunstâncias e, portanto, sempre em uma posição passiva, passou

a medicar indiscriminadamente as mulheres, aliviando assim suas dores, mas tornando-as alheias ao

processo.

Assim, durante o referido período o parto perde seu lastro cultural e passa a ser visto pelo imaginário

social como algo tenebroso, um acontecimento natural, porém pavoroso, imerso em sangue, profissionais

vestidos de branco, isolados e fazendo uso de um gama diversificada de instrumentos perfurantes,

episódio que caberia ser vivido solitariamente pela parturiente e posto na mais cômoda invisibilidade

2 Para além da pobreza das relações humanas nessa forma de assistência e do sofrimento físico e emocional desnecessário que

causa, o uso irracional de tecnologia no parto levou ao seu atual paradoxo: é justamente o que impede muitos países de reduzir a

morbimortalidade materna e perinatal (Barros et al., 2005; Costello, 2005). Uma vez que esse uso irracional provoca mais danos

que benefícios, há cerca de 25 anos inicia-se um movimento internacional por priorizar a tecnologia apropriada, a qualidade da

interação entre parturiente e seus cuidadores, e a desincorporação de tecnologia danosa. O movimento é batizado com nomes

diferentes nos diversos países, e no Brasil é em geral chamado de humanização do parto (Diniz, 2005).

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110pelo meio social, de forma que “a obstetrícia médica oferece um apagamento da experiência. Durante

várias décadas do século 20, muitas mulheres de classe média e alta no mundo industrializado deram à

luz inconscientes” (Diniz, 2005)

Dessa forma, “A assistência à mulher tornou o momento do parto em um momento desconhecido e

amedrontador. Em contrapartida, esse evento transformou-se em mais conveniente e asséptico para

os profissionais de saúde” (Wolff & Vasconcelos Moura, 2004, p. 280) o processo de concepção passa a

ser entendido pelas próprias mulheres como “pertencente” aos profissionais da saúde, estes passam a

respeitados por serem os detentores do conhecimento necessário para a que o parto se realize, devendo

a mulher manter-se em sua natural condição de submissão leiga, e, portanto, entender-se como apenas

um veículo para o nascimento do bebê.

No entanto, a partir de meados do século XX, ao notar-se os efeitos deletérios da total sedação, a

obstetrícia mudou de postura, de modo que “nos países industrializados, as mulheres deveriam viver

o parto (agora conscientes) imobilizadas, com as pernas abertas e levantadas, o funcionamento de seu

útero acelerado ou reduzido, assistidas por pessoas desconhecidas” (Diniz, 2005). Assim, mais uma vez

as mulheres experimentam um abalo em sua dignidade ao vivenciar um processo biológico; a assistência

recebida demonstra “pobreza das relações humanas” (Diniz, 2005).

Assim, o modelo de prática médica novamente apresenta falhas e recebe críticas contundentes3, de

maneira que passa a ser rechaçado pelas organizações mundiais, configurando inclusive violação dos

direitos humanos. Isto posto, de acordo com o Boston Women’s Health Book Collective, deve-se destacar

que o “o feminismo em suas muitas versões, tem um papel central, desde o movimento de usuárias pela

Reforma no Parto, nos EUA na década de 1950, e nas décadas de 1960 e 1970, com a criação dos centros

de saúde feministas e os Coletivos de Saúde das Mulheres” (Diniz, 2005, p. 629).

A década de 1980 fez emergir discussões sobre a situação feminina e sua inserção

social e nos serviços de saúde. Diante disso, diversos órgãos governamentais e não-

governamentais passaram a debater o crescente número de mortes de mulheres,

principalmente aquelas ligadas ao ciclo gravídico-puerperal, o que desencadeou

uma mudança nas políticas de atenção à saúde da mulher (Griboski & Guilhem,

2006, p. 108).

3 Segundo Diniz (2015) o primeiro autor a apontar as falhas no modelo de saúde assistencial utilizado foi Roberto Calderon Barcia

em 1979, por meio da publicação de sua obra intitulada Bases fisiológicas y psicológicas para el manejo humanizado del parto

normal, Calderon Barcia então “Redescreve o modelo de assistência como inadequado e propõe mudanças na compreensão das

dimensões anátomo- fisiológicas e emocionais do parto” bem como “questiona a representação da mulher como vítima de sua

natureza, e do corpo feminino com ‘normalmente patológico’, evidenciando o viés de gênero da interpretação médico-obstétrica”.

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111A partir de então, passa-se a tratar de uma nova perspectiva de humanização da assistência, com enfoque

especial no parto. A Organização Mundial de Saúde (OMS) passa, então, a editar resoluções sobre o

tema, estas são “publicadas no Brasil pelo Ministério da Saúde, sob o título Assistência ao parto normal: um

guia prático, e enviada a cada um dos ginecologistas-obstetras e enfermeiras obstetrizes do país em 2000”

(Diniz, 2005, p. 631).

A âmbito nacional tem-se também como marco a A Conferência Nacional sobre a Organização de

Serviços para Maternidade Segura à Luz da Humanização, realizada em Fortaleza no ano de 1988, na

qual se discutiu a Atenção em Saúde com relação ao parto à luz da humanização, bem como as diretrizes

do evento contemplam a reformulação da visão do parto a partir da ótica holística ao invés de puramente

biomédica (Wolff & Vasconcelos Moura, 2004).

Exsurge então a retomada da atenção ao parto e a parturiente a partir da naturalidade do fenômeno

biológico-fisiológico-histórico, rechaçando-se a associação de gravidez e doença, além de orientar aos

profissionais da saúde que se evite posturas intervencionistas, atentando- se que a protagonista do

parto é a mulher (Wolff & Vasconcelos Moura, 2004), de modo que, embora até os dias atuais ocorra a

naturalização do sofrimento do parto, a evolução da atenção à mulher gestante permite reformular essas

concepções institucionais, e ao Direito cabe prover os meios para tanto.

Faz-se imperioso destacar ainda sobre o racismo institucional que permeia a violência obstétrica, posto

que as mulheres negras possuem uma experiência distinta das mulheres brancas quando do parto,

Centeno (2016) aponta inclusive políticas de humanização do parto do Governo Brasileiro em 2013, por

meio das quais de destacou a necessidade de superação do racismo no Sistema Único de Saúde (SUS).

Observa-se então que o racismo alcança o poderio institucional, comprometendo não só a atuação

dos profissionais, mas também o direito à saúde das pacientes negras. Assim, no que tange à atenção

hospitalar “não é algo que seja expresso verbalmente, mas que se traduz nas entrelinhas, a partir, por

exemplo, da abreviação de um atendimento. A pele negra especifica e delimita o tratamento a ser

oferecido” (Centeno, 2016, p. 61).

Assim, diante de uma assistência à saúde predominantemente branca e classista, as mulheres negras

sofrem com o mito de que o corpo negro é mais resistente a dor, e no que tange ao parto, recebem menos

anestesia e menos acompanhamento médico, mas, no geral, a atenção obstétrica da mulher negra é

discrepante da mulher branca do pré-natal até puerpério (Souzas, 2004)

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112Segundo dados da Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres, há 62 mortes

maternas por 100 mil partos no Brasil.

...

Mas o número de mortes maternas provocadas por intercorrências vem diminuindo

entre as mulheres brancas e aumentando entre as negras. De 2000 pra 2012 as

mortes por hemorragia entre mulheres brancas caíram de 141 casos por 100 mil

partos para 93 casos. Entre mulheres negras aumentou de 190 para 202 (Canuto,

2015, s/p).

O que exsurge então é que embora a estrutura de atenção à saúde esteja mudando e incorporando

uma postura humanizada de seus profissionais, as mulheres brancas passam a sofrer menos violência

obstétrica enquanto o caminho das mulheres negras grávidas aponta para a contramão da referida

tendência, posto que o racismo institucional as enquadrada como uma subcategoria de mulheres

(Centeno, 2016). O contraste da situação é histórico e metafórico, podendo ser bem expresso por Jesus

(1993) “Antigamente eram os pretos que criavam os brancos. Hoje são os brancos que criam os pretos”

(p. 22).

A QUESTÃO CONCEITUAL

A conceituação da violência doméstica não é de fácil feitura, pois, conforme Medina e Penna (2008)

“Existem vários fatores que dificultam a produção de registros sobre violência e gestação, entre eles a

principalmente pela falta de uma linguagem comum em relação ao tema e pela falta de conceitos que

reúnam o conhecimento em saúde ao de outras áreas”.

Para tanto, utiliza-se a diretriz apontada por Chaui (1985) sobre a caracterização da violência, de forma

que esta “deseja a sujeição consentida ou a supressão mediatizada pela vontade do outro que consente

em ser suprimido na sua diferença” (p. 35), demonstrando tratar- se de uma relação de imposição de um

ser humano sobre o outro em um contexto em que o agressor, em sua diferença de condições, se entende

como superior, abolindo a possibilidade de uma relação igualitária.

Entendemos por violência uma realização determinada das relações de força, tanto

em termos de classes sociais quanto em termos interpessoais. Em lugar de tomarmos

a violência como violação e transgressão de normas, regras e lei, preferimos

considera-la sob dois ângulos. Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e

de uma assimetria numa relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação,

de exploração e de opressão. Isto é, a conversão dos diferentes em desiguais e a

desigualdade em relação entre superior e inferior (Chauí, 1985, p. 35).

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113Isto posto, não se pode olvidar que a violência obstétrica também pode ser considerada espécie

de violência contra a mulher ou de gênero, conforme a Convenção de Belém do Pará (Convenção

Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher de 1994), promulgada

pelo Estado Brasileiro em 1996, por meio do Decreto nº 1.973. Assim, segundo o artigo 1º do referido

dispositivo legal, a referida violência configura-se diante de “qualquer ato ou conduta baseada no gênero,

que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como

na esfera “privada”.

Assim, deve-se entender o conceito de violência obstétrica como aberto, sem taxatividade quanto

à sua delimitação4, mas hígido ao contemplar as mesmas tendências conceituais (Medina & Penna,

2008), quais sejam: os aspectos de disparidade de forças na relação médico-paciente, a medicalização e

procedimentalização desnecessárias ou sem o consentimento da mulher, desrespeito a sua pessoa, sua

dor, ou quaisquer outras ofensas físicas ou morais à parturiente.

Dessa maneira, observa que a violência obstétrica é aquela perfaz-se diante do desrespeito à parturiente

e a sua natural condição como mulher que gesta, bem como o desrespeito aos seus Direitos – como,

por exemplo, o descumprimento da Lei do Acompanhante – assim, como pelos processos biopsíquicos

experimentados pela gestante, seja por meio de técnicas, seja pelo abuso e desuso de medicamentos,

em decorrência de uma ação ou omissão de um ou mais profissionais da saúde que apresentam-se

como superiores.

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E JUDICIALIZAÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRÁXIS FORENSE

Considerando o exposto, o parto apresenta-se como um momento de imenso relevo na vida da mulher

que gesta, no entanto os seus deslindes inevitáveis ainda causam apreensão à parturiente.

Uma mulher grávida, rainha ou comum, tem um momento na vida em que se sente

sábia de todo o saber, ainda que intraduzível em palavras, mas depois, com o

inchar excessivo da barriga e outras misérias do corpo, só para o dia de parir têm

pensamentos, nem todos alegres, quantas vezes aterradas por agoiros (Saramago,

1982, p. 39).

Já no que tange ao processo parturitivo institucional, tem-se uma situação ainda mais delicada, visto que,

de acordo com Griboski e Guilhem (2006, p. 108) “Apesar da argumentação sobre a humanização ao

4 No presente artigo optou-se por conceituar a violência obstétrica a partir de uma abordagem holística, não apresentando,

portanto, os procedimentos médicos em sentido estrito, posto que estes são campo de compreensão da ciência obstétrica e não

apresentam rol taxativo.

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114parto, ainda se observa uma vertente centrada no modelo biomédico”, de forma que apesar de todas

as tendências do discurso obstétrico incorporem uma mudança de tratativa quanto a atenção ao parto,

a relação de superioridade do corpo médico ao paciente ainda é um terreno propício para a prática

discutida por diversos fatores.

Pode-se indicar então a falta de informação das mulheres (Alvarenga & Kalil, 2016) como o principal

deles, e, no que tange ao Direito, nota-se que as mulheres se encontram alheias aos seus direitos como

parturientes antes e durante o parto, bem como posteriormente, quando se entendem de fato como

vítimas de um episódio de violência obstétrica, de forma que o conhecimento dos aspectos jurídicos-

processuais para a judicialização da referida violação faz-se pertinente.

Destarte, cumpre destacar que se entende por judicialização o fenômeno por meio do qual o indivíduo

leva ao judiciário a sua questão, busca-se então por meio da judicialização que o Estado aja, por meio de

sua função jurisdicional, orientado a concretizar os direitos daqueles que experimentaram um dano em

razão de ação ou omissão de outrem (Dutra Asensi, 2010).

A priori para adentrar aos aspectos legais cabe destacar que “ainda não há no Brasil uma legislação para

a violência obstétrica, e isso dificulta muito os processos” (Alvarenga & Kalil, 2016), ou seja, a violência

obstétrica não possui previsão legal estrita, visto que para isso seria necessário que aquela contasse com

tipificação no âmbito penal e/ou previsão expressa por meio de dispositivo cível, o que não ocorre. Assim,

a caracterização da violência obstétrica é reconhecida pelo judiciário e reprimida por meio de outras

previsões legais, posto que ao Direito não é dado deixar desamparado aquele que sofreu lesão, nem livre

de sanção aquele que causou o dano.

Nesses termos, o artigo 2º do Decreto nº 1.973 de 1996, que se baseia na já supracitada Convenção de

Belém do Pará, dispõe que a violência contra a mulher também abrange “aquela perpetra ou tolerada

pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra”. De modo que, de acordo com a leitura cominada

dos artigos 186 e 927 do Código Civil5 o Estado não pode escusar-se de sua responsabilização quando da

ocorrência de violência obstétrica, tampouco o profissional da saúde que a praticar.

À vista disso há de se grifar que a responsabilidade que se trata no presente trabalho é a de natureza civil,

e esta pode ser entendida como “dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da

violação de um dever jurídico originário” (Gonçalves, 2014, p. 25), e, também segundo Gonçalves (2014),

composta de quatro elementos:

5 Art. 186 CC “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem,

ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” e Art. 927 CC “Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado

a repará-lo” (Brasil, 2002).

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1151. a ação ou omissão do agente/agressor, que é a conduta de alguém que cause dano a outrem;

2. a culpa ou dolo do agente/agressor, a culpa podendo ser entendida como negligência6, imprudência7

ou imperícia8 e o dolo, como a vontade de violar o direito de outrem;

3. a causalidade, que “é a relação de causa e efeito entre a ação ou omissão do agente e o

dano verificado”;

4. O dano, que é um prejuízo de órbita material, moral, financeira ou estética. (pp. 51-53)

Assim, estando presentes esses quatro pressupostos – as vezes apenas três, conforme se verá adiante –

diante da ocorrência da violência obstétrica, surge para a vítima o direito de ser indenizada pelo mal que

lhe foi infligindo.

Destarte, há de se pensar a responsabilidade institucional no âmbito da saúde pública, por meio do SUS

e no âmbito da saúde suplementar, de caráter privado e regulado pela – Agência Nacional de Saúde

Suplementar (ANS), assim como também a responsabilidade pessoal do profissional da saúde. Para tanto

algumas considerações devem ser feitas:

Mas as responsabilidades pessoais e institucionais são diferenciadas tanto na

perspectiva legal como na dimensão ética. A responsabilidade dos profissionais de

saúde é analisada de forma subjetiva, o reclamante deve comprovar que o profissional

não agiu conforme as boas práticas médicas e que cometeu algum erro, imperícia

ou negligência que lhe causou o dano. A obrigação do Estado é objetiva, pois o

reivindicante deve apenas comprovar a relação causal efetiva entre a omissão/ação

do ente público e o dano reclamado pelo cidadão. Para ilidir sua culpa, o Estado que

deve comprovar que o referido dano não poderia ter sido evitado ou minimizado

(Ventura et al, 2013, p. 86).

Diante disso, fica expresso que a responsabilidade do Estado em razão da atenção pública à saúde é

objetiva, de forma que deverá ser apurada apenas com base na prova do ente federativo causador do

dano, bem como este decorreu da conduta – ação ou omissão – estatal, independentemente de culpa

6 Segundo Santos (2015), a negligência médica consiste em “uma conduta negativa, atuar em menor intensidade que a

circunstâncias estava a exigir, como no seu característico básico e essencial que é a inação, o esquecimento, a omissão diante de

um dever de agir” (p.254).7 Já a imprudência, “um comportamento positivo, um atuar desmedido, excessivo, apressado ou sem a reflexão necessária que

provoca um prejuízo” (Santos, 2015, p.254).8 Por sua vez, a imperícia “é o conhecimento técnico diminuído ou a total falta de ciência para o exercício da profissão médica”

(Santos, 2015, p.254).

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116(Gonçalves, 2014). Já no que tange à responsabilização das instituições de saúde suplementar, estas

ficaram vinculadas à responsabilização de seus médicos.

Diante de tantas pessoas – físicas ou jurídicas – a quem se pode imputar a responsabilidade e, por

conseguinte, o dever de indenizar a vítima em decorrência da violência obstétrica, deve-se ter em vista

a possibilidade de que se estabeleça um litisconsórcio entre elas, nos termos do art. 113 do Código

de Processo Civil de 2015, que dispõe que “Duas ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo,

em conjunto, ativa ou passivamente”, assim, torna- se possível que a ação em questão conte com uma

pluralidade de réus, uma pluralidade de pessoas que devem reparar a mulher pelo mal sofrido, de forma

que Alvarenga e Kalil (2016, p. 646) esclarecem que, “Além de processar o hospital e o profissional de

saúde envolvido, em alguns casos o plano de saúde também é incluído na ação”.

Ademais, cabe ainda lembrar que se apurada a existência da culpa ou dolo por parte do médico, em caso

de litisconsórcio, as pessoas jurídicas que o contrataram poderão posteriormente exercer o seu direito de

regresso contra ele (Gonçalves, 2014).

Isto posto, talvez a questão probatória mais tortuosa seja aquela que visa a caracterização da

responsabilidade médica, posto que esta é de meio, não de resultado, de forma “que não se compromete

a curar, mas a proceder de acordo com as regras e os métodos da profissão” (Gonçalves, 2014, p. 239)

ou seja, ao médico só caberá o dever de indenizar quando sua ação ou omissão não puder ser entendida

como típica.

Comprometem-se os médicos a tratar o cliente com zelo, utilizando-se dos recursos

adequados, não se obrigando, contudo, a curar o doente. Serão, pois, civilmente

responsabilizados somente quando ficar provada qualquer modalidade de culpa:

imprudência, negligência ou imperícia (Gonçalves, 2014, pp.239-240).

Desse modo, a vítima da violência obstétrica calha apresentar os meios de prova necessários para

caracterizar a conduta do médico como atípica, posto que “Ao prejudicado incumbe a prova de que o

profissional agiu com culpa” (Gonçalves, 2014, p.240) nos termos também do Código Civil em seu art.

951 que prevê a responsabilidade do médico quando este “causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal,

causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho”; na mesma toada também versa do Código de Defesa

do Consumidor por meio de seu art. 14, § 4º “A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será

apurada mediante a verificação de culpa”.

Observa-se então que ao debate sobre a judicialização da violência obstétrica e o direito da vítima de

receber a devida indenização em razão de quaisquer espécies de danos suportados – seja material,

moral ou estético – passa pela questão do direito probatório, posto que este, inicialmente, cabe a

mulher violada em seus direitos de parturiente, como é de praxe no meio jurídico, posto que, ao autor

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117da demanda cabe a prova dos atos constitutivos de seu direito, de acordo com o art. 373 do Código de

Processo Civil, podendo ainda o juiz inverter o ônus da prova diante das circunstâncias do caso concreto.

VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA E JUDICIALIZAÇÃO: A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NOS

CASOS DE VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA

Destarte, pode-se vislumbrar quão delicada é a posição da mulher que pretende provar que sofreu a

violência obstétrica, tanto que Alvarenga e Kalil (2016) aconselham que a parturiente tente “reverter

o quadro no momento, quando isso é possível”, no entanto muitas vezes esse posicionamento da vítima

não ocorre, tanto porque no momento da ocorrência da violação, por sua posição de vulnerabilidade, a

mulher vê-se impossibilitada de produzir as provas, ou até mesmo encontra-se tão abalada que passa a

aceitar o episódio resignadamente (Griboski & Guilhem, 2006).

Somado a isso, Alvarenga e Kalil (2016) apontam que os profissionais de saúde acabam por não fornecer

às gestantes as informações adequadas sobre o parto e todos os seus momentos adjacentes, o que cria

um terreno propício ao fácil convencimento da parturiente a fazer o que o profissional acha mais cômodo

para si, mesmo que muitas vezes isso signifique que a gestante acaba em uma situação secundária e aflitiva.

Destaca-se ainda que, para Braulio Zorzella (apud Alvarenga & Kalil, 2016) “No Brasil, a palavra do

médico é sempre a que vale mais. Mais do que a da grávida em si”, posto que o próprio meio sociojurídico

privilegia o conhecimento do médio em detrimento da percepção da gestante.

Já no que toca à prova da culpa ou dolo, muitas vezes exige-se que o autor da demanda, no caso a mulher

outrora gestante, leve ao judiciário provas da materialidade do seu sofrimento, que muitas vezes tornam-

se impossíveis ou excruciantes, além de que, no que toca à prova testemunhal, tem-se o problema do

corporativismo, posto que mostra-se raro que outro profissional da saúde que tenha vivenciado o caso

aceite testemunhar em desfavor do médico, indispondo-se com este e pondo a si mesmo em uma delicada

situação profissional, posto que, de “Em regra, o espírito de corporação impede que o profissional aponte

as falhas do colega” (Santos, 2015, p. 276).

Santos (2015) ainda aponta outro problema no que toca ao SUS, ao sustentar que “a Medicina

administrada pelo Estado (União, Estados-membros e Municípios) é tão despersonalizada” (p. 276) que,

muitas vezes, a mulher sequer chega a saber o nome dos profissionais que a atenderam.

Santos (2015) atenta também sobre a vulnerabilidade da mulher também quanto paciente, sedada e

inconsciente, permitindo que o seu corpo e todo o meio de prova possam ser maculados pelo médico.

Grifa-se ainda a gravidade da situação quando a mulher sequer possui um acompanhante, seja por ter

sido descumprido a lei do acompanhante, seja por ter dado entrada sozinha no hospital.

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118Não se encerra aí a dificuldade na prova da culpa médica. Não será difícil imaginar que

a maioria dos elementos que podem servir como suporte de uma demanda judicial,

está em mãos do próprio médico. A anamnese e todo o diário do que aconteceu com

o paciente, os medicamentos ministrados, as manobras efetuadas ... que poderá, até,

modificar o conteúdo. (Santos, 2015, p. 276).

Contudo tal panorama deve ser apreendido pelo judiciário, uma vez que “Para que o direito possa

apreender a ideia de Justiça é necessário compreender a subjetividade feminina. Essa foi a grande

contribuição da psicanálise para o direito” (Dias, 2016, p. 150) na medida que aquele não pode excursar-

se de pensar quão massacrante é ainda exigir que uma mulher que sofreu uma violação – e, por

conseguinte, um abalo psicológico – suporte todo o ônus probatório de um processo que naturalmente já

é custoso e demorado.

A justiça em demandas que tenham como matéria a violência obstétrica deve, pois, considerar que

“Mulheres e profissionais de saúde vivenciam o processo parturitivo de forma distinta” (Griboski &

Guilhem, 2006, p. 108) e primar pela mulher que outrora deu à luz sob condições adversas ocasionadas

pelo sofrimento de uma apurável violência.

O judiciário então deve considerar as subjetividades que alcançam as mulheres que concebem e sofrem

em razão de uma conduta institucional, posto que as circunstâncias do parto agravam os encargos

psíquicos decorrentes da gravidez, sendo considerado inclusive como um processo psicossomático,

provocando em especial nessas mulheres uma “dissociação, isto é, a separação ou desagregação do que

acontece com elas, como cidadãs, e com seus corpos” (Griboski & Guilhem, 2006, p. 110).

Assim, o magistrado deverá, para proferir uma decisão justa, levar em consideração todas as

particularidades fisiológicas e psíquicas da mulher que gesta; devendo reconhecer que, em caso de

insuficiência de provas apresentadas pela parte autora, tal falta de demonstração fático-probatória pode

ser resultado das circunstâncias do caso concreto, de modo que o ônus da prova, que é “o encargo que se

atribui a um sujeito para demonstração de determinadas alegações de fato” (Didier Jr., 2015, p.105), não

recaia sobre ela.

Diante disso, cabe lembrar que o Código de Processo Civil de 2015 vincula-se a teoria da distribuição

dinâmica do ônus da prova (Didier Jr., 2015, p. 107), e permite que o juiz, em razão das peculiaridades do

caso, determine quem tem melhores condições para suportar o encargo, garantindo assim o deslinde do

processo e corrigindo as desigualdades probatórias.

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119Ônus é o encargo cuja inobservância pode colocar o sujeito numa situação

de desvantagem. Não é um dever e, por isso mesmo, não pode exigir o seu

cumprimento. Normalmente, o sujeito a quem se impõe o ônus tem interesse em

observá-lo, justamente para evitar essa situação de desvantagem que pode advir

da sua inobservância.

A atribuição feita pelo legislador é prévia e estática (invariável de acordo com as

peculiaridades da causa); a distribuição feita pelo juiz ou pelas partes é considerada

dinâmica, porque feita à luz de uma situação concreta (Didier Jr., 2015, pp. 106-107)

Outrossim, a vítima de violência obstétrica deve, na peça inicial, relatar o ocorrido e juntar todos os

meios de prova que possuir, documentais, bem como rol de testemunhas etc. mas, se em razão de sua

hipossuficiência, encontrar-se diante de um caso de prova excessivamente difícil ou impossível, pode

pleitear ao juiz a inversão do ônus da prova, ou seja, que a parte ré – as pessoas jurídicas ou a pessoa

física na figura do médico – fique incumbida de demonstrar que o fato não ocorreu (Didier Jr., 2015).

Nessa toada, Gonçalves (2014) esclarece que que no que toca à prova pela vítima da culpa do médico,

esta constitui um encargo mais excruciante, permitindo também, além da inversão baseada da

hipossuficiência da vítima, a inversão do ônus da prova quando houver relação consumerista, visto que:

A prova da negligência e da imperícia constitui, na prática, verdadeiro tormento para

as vítimas. Sendo o médico, no entanto, prestador de serviço, a sua responsabilidade,

embora subjetiva, está sujeita à disciplina do Código de Defesa do Consumidor, que

permite ao juiz inverter o ônus da prova em favor do consumidor (art. 6º, VIII).

Deve ser lembrado, ainda, que a hipossuficiência nele mencionada não é apenas

econômica, mas precipuamente técnica. O profissional médico encontra-se,

sem dúvida, em melhores condições de trazer aos autos os elementos probantes

necessários à análise de sua responsabilidade. (p. 240)

Assim sendo, a inversão do ônus da prova nos casos de violência obstétrica representa uma forma de

respeito a subjetividade feminina, em especial a das parturientes, posto que embora o discurso jurídico

não consiga absorver e corrigir toda a carga de gênero herdada pelas mulheres, a proferição de decisões

que as considere configura mais um avanço no seu campo de luta por Direitos, além de configurar mais

uma forma de represália à referida violência.

quando Adão e Eva foram criados, tanto sabia um como sabia outro, e quando os

expulsaram do paraíso, não consta que tenham recebido do arcanjo uma lista de

trabalhos de homem e trabalhos de mulher, a esta só foi dito, Parirás com dor, mas até

isso há-de acabar um dia (Saramago, 1982, pp. 123-124)

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120CONCLUSÃO

Diante do panorama apresentado, observa-se que a própria história da parturição é a terreno para

relatos de violência obstétrica, se os analisarmos diante dos moldes atuais, contudo, cabe lembrar que

a própria humanização do parto possuiu outras acepções ao longo da história da obstetrícia, sendo

formulada de forma correlata um dado contexto histórico-econômico, assim como deve-se considerar

que os cuidados com a gestante após o advento da hospitalização do parto são muito recentes e análogos

ao avanço da ciência médica, além de acompanharem os movimentos pela independência e respeito

à mulher.

Assim, muito embora a aflição do parto pareça inerente ao ato de conceber, a assistência médica à

parturiente visa diminuir o seu sofrimento tanto quanto seja possível sem alterar a natureza fisiológica

do processo experimentado pela mulher, e sempre de forma orientada pela sua escolha, de forma

responsável e compromissada com a saúde da gestante e do bebê.

No entanto, nota-se que as percepções dos profissionais da saúde ainda orbitam entorno da supremacia

do médico no cenário parturitivo, o que retira a mulher da posição de protagonismo e a destina a um

papel secundário e submisso, especialmente vulnerável por seu gênero diante da relação médico-paciente.

Outroassim, a falta de previsão legal específica no sentido de criminalizar a violência obstétrica, além das

dificuldades probatórias quando do seu cometimento criam uma situação de desamparo legal da mulher.

No entanto, tal panorama pode ser corrigido em parte por meio da inversão do ônus da prova nos casos

da violência em pauta.

Assim, a vítima de violência obstétrica deve apresentar todos os meios de provas que dispuser, mas não

pode ficar desacreditada para o pleito em razão de não possuir provas específicas, posto que diante das

circunstâncias da situação fática, tais provas muitas vezes são de impossível acesso ou produção.

Destarte, a inversão do ônus da prova nos casos de violência obstétrica apresenta-se como um instituto

promissor do Código de Processo Civil de 2015, posto que este prevê a possibilidade da distribuição

dinâmica do ônus da prova pelo juiz em razão das circunstâncias do caso concreto, de forma que para o

judiciário representa um avanço na incorporação das subjetividades femininas ao discurso jurídico, e,

para as mulheres, uma frente de repressão à violência obstétrica na luta para que essa prática criminosa

seja refreada.

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autoria

resumo

TAÍS FREIRE DE ANDRADE CLARK

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestranda em

Arquitetura e Urbanismo pela UFMG.

CONTATO: [email protected]

A partir da obra Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, em que a autora retrata a

cidade como uma “sala de visita”, enquanto a favela é vista como um “quarto de despejo”,

pretendo analisar as políticas de remoção forçada, em um contexto marcado por graves

conflitos urbanos e pelo aumento da segregação socioespacial. Para isso, será analisado

o processo de urbanização das cidades brasileiras, com um especial enfoque nas políticas

públicas voltadas para vilas e favelas (ou a falta delas). Através do estudo da tentativa de

despejo da Ocupação Izidora, pretendo demonstrar como as remoções forçadas e despejos,

ainda hoje, são instrumentos utilizados pelo poder público como forma de deslocar e realocar

grupos subalternos e minorias sociais de acordo com os interesses do capital imobiliário.

PALAVRAS-CHAVE: Quarto de despejo, remoção forçada, espaço urbano, abandono.

Espaços de despejo: remoção e despejo enquanto política de abandono

SUMÁRIO

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124Este trabalho busca fazer um paralelo entre a obra Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, e a

tentativa de remoção da Ocupação Izidora, localizada na divisa de Belo Horizonte com Santa Luzia. A

ideia é a de que, se no passado, Carolina já se enxergava como um objeto em um “quarto de despejo”, na

atualidade, a remoção forçada se constitui como a institucionalização de uma política de abandono que

busca gerir esses espaços.

Em Quarto de despejo, a autora retrata a cidade como uma “sala de visita”, enquanto a favela é vista como

um “quarto de despejo”:

Às oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que

mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na

sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim.

E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de

estar num quarto de despejo (Jesus, 1963, p. 33).

Nas ocupações urbanas a realidade não é diferente. De forma semelhante com o que ocorre nas favelas,

esses espaços também são vistos e geridos pelo Estado como quartos de despejos. Nesse contexto, as

políticas de remoção forçada, ainda hoje, são instrumentos utilizados pelo poder público como forma de

deslocar e realocar grupos subalternos e minorias sociais de acordo com os interesses do capital imobiliário.

É interessante notar que a palavra “despejo” possui um duplo significado, primeiramente, enquanto ação

do poder público, relativo ao ato de remover uma comunidade, e, em segundo lugar, enquanto um estado

de abandono, fazendo menção ao espaço destinado aos objetos – nesse caso, pessoas – que perderam

sua utilidade. Nas duas situações, o termo é empregado em processos que evidenciam políticas voltadas

para a gestão da pobreza através da instituição do abandono, contribuindo para a invisibilização e

marginalização dos grupos subalternos e minorias sociais.

Ou seja, eu tenho entendido a remoção forçada enquanto a institucionalização de uma política de

abandono justamente por essas remoções, e tentativas de remoções, ocorrerem em conjunturas

específicas, para atender os interesses dos grupos hegemônicos. Isso pode ser percebido claramente no

caso da Ocupação Izidora, localizada na divisa de Belo Horizonte com Santa Luzia.

Tal como já indiquei em um trabalho recente1, a Izidora é constituída por três ocupações (Rosa Leão,

Vitória e Esperança), que, juntas, abrigam mais de oito mil famílias. Atualmente, essa Ocupação se

1 O trabalho, intitulado “A tentativa de criminalização da Izidora: quando a segurança pública se torna um pretexto para remoções

forçadas”, foi apresentado no Congresso de Pesquisa em Ciências Criminais (CPCrim), realizado pelo Instituto Brasileiro de

Ciências Criminais, em São Paulo, no Hotel Tivoli São Paulo Mofarrej, no dia 31 de agosto de 2017, e será publicado nos anais

desse Congresso (Clark, 2017).

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125configura como o maior conflito fundiário urbano da América Latina (tanto considerando sua abrangência

territorial, quanto seu número de habitantes), sendo tratado pela ONU como um dos sete conflitos

fundiários mais graves do mundo.

A maior parte do terreno ocupado atualmente pelas famílias pertence à empresa Granja Wernek e

desde 2013 se constituiu como objeto de um complexo entrave judicial que ultrapassou as fronteiras dos

tribunais, ganhando importância política no contexto nacional e, mais recentemente, global. Conforme

pesquisa desenvolvida pelo grupo Indisciplinar2 (2015):

Há pouco mais de um século o Município de Belo Horizonte doou área pertencente

à região da Izidora, à época qualificada como suburbana ou rural, para a família

Werneck, sob a condição de ali ser construído um sanatório modelo. Trata-se do

Decreto nº 82 de 1914 que foi revogado pela Lei Municipal 6.370/1993. Questiona-

se, embora não tenha ainda havido comprovação, de que parte da área doada pelo

Município de Belo Horizonte pertencia ao Município de Santa Luzia. (s/p)

O sanatório foi construído e o restante do terreno, caracterizado pela larga extensão de área verde

preservada, permaneceu intacto, sendo utilizado apenas para especulação imobiliária. Em 2000, os

investimentos feitos no vetor norte de Belo Horizonte (construção da Linha Verde, implantação da

Cidade Administrativa e requalificação do aeroporto Tancredo Neves em Confins), aliados ao interesse

do mercado imobiliário em explorar a última área não parcelada do município, transformaram a região do

Isodoro3 em um grande objeto de disputa.

Em um “emaranhado ambíguo de legislações que buscam combinar proteção ambiental, urbanização

técnica e social, habitação social e obras de infraestrutura, para proveito unilateral do mercado

imobiliário” (Indisciplinar, 2015), a Granja Wernek manifestou seu interesse em vender o terreno para a

construtora Direcional e em 2012 foi assinado um contrato de compra e venda objetivando a construção

de habitação de interesse social por meio do Programa Minha Casa Minha Vida, em parceria com a Caixa

Econômica Federal. A aprovação do empreendimento ocorreu em meio a denúncias de corrupção e

irregularidades nos instrumentos urbanísticos utilizados para viabilizar a construção.

2 O Indisciplinar é um grupo de pesquisa vinculado ao CNPQ, sediado na Escola de Arquitetura da UFMG, que tem suas ações

focadas na produção contemporânea do espaço.3 A região é conhecida formalmente como Isidoro (com “s” e no masculino), devido ao córrego do Isidoro que atravessa o terreno.

No entanto, os próprios moradores observando mapas antigos da capital mineira, descobriram que antigamente a região era

denominada Izidora (com “z” e no feminino), aparentemente em homenagem a uma escrava alforriada de mesmo nome a quem

foi doado o terreno. Embora não exista comprovação de que tal escrava existiu, fato é que os mapas antigos de Belo Horizonte

identificavam a região com o nome feminino, tendo sido alterado ao longo do tempo para o masculino. Ao tomarem conhecimento

da história do território, as lideranças das três ocupações optaram por alterar seu nome para Izidora, reafirmando também o

importante papel das mulheres na luta pela moradia hoje e sempre.

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126Paralelamente à disputa imobiliária pelo território, o aumento dos aluguéis da região metropolitana de

Belo Horizonte e o investimento feito no vetor norte começaram a despertar o interesse da população

local pelo terreno “vazio”. Em meados de 2013, de forma espontânea, milhares de pessoas começaram a

ocupar a região e fixar moradia, constituindo hoje a Ocupação que se denomina Izidora.

Desde então, os moradores da Izidora vêm sofrendo com a ameaça de remoção forçada, além de serem

vítimas de discriminação e de inúmeras violações de Direitos Humanos. É interessante ressaltar que a

região em que se localiza a Izidora historicamente é uma região formada por assentamentos irregulares,

mas, até a valorização do vetor norte, não havia nenhum interesse em retirar essas pessoas dali. Ou seja,

a região se constitui como um enorme “quarto de despejo”, formada por pessoas que se encontram à

margem das políticas sociais do Estado. Tal localidade, abandonada pelo poder público, exatamente nesse

sentido de haver pouca ou nenhuma política social voltada para sua população, é um ótimo exemplo da

política de abandono executada pelo governo, abandono este que funciona até o mercado imobiliário

manifestar algum interesse pelo território. Quando isso ocorre, as remoções são utilizadas para deslocar

essas pessoas indesejáveis para outro local, formando um mais novo “quarto de despejo”.

É essa a história de formação dos nossos grandes centros urbanos. O crescimento das cidades é marcado

por remoções atrás de remoções que constituem grandes “quartos de despejos” espalhados pela

malha urbana. Cada vez mais, esses “quartos de despejo” são formados nas periferias, em um processo

constante de distanciamento do centro da cidade e de toda infraestrutura urbana existente.

Ermínia Maricato (2000b), ao tratar do processo de urbanização brasileiro, considera que:

As reformas urbanas, realizadas em diversas cidades brasileiras entre o final do século

XIX e início do século XX, lançaram as bases de um urbanismo moderno “à moda” da

periferia. Eram feitas obras de saneamento básico e embelezamento paisagístico,

implantavam-se as bases legais para um mercado imobiliário de corte capitalista,

ao mesmo tempo em que a população excluída desse processo era expulsa para os

morros e as franjas da cidade. Manaus, Belém, Porto Alegre, Curitiba, Santos, Recife,

São Paulo e especialmente o Rio de Janeiro são cidades que passaram, nesse período,

por mudanças que conjugaram saneamento ambiental, embelezamento e segregação

territorial. (p. 22)

Também esse processo de expulsão dos pobres das centralidades urbanas é evidenciado nos diários

de Carolina:

Às vezes mudam algumas famílias para a favela, com crianças. No início são educadas,

amáveis. Dias depois usam o calão, são soezes e repugnantes. São diamantes que

transformam em chumbo. Transformam-se em objetos que estavam na sala de visita e

foram para o quarto de despejo. (Jesus, 1963, p. 34)

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127Embora esse processo de exclusão territorial não faça parte do plano central da narrativa, ele está

presente como pano de fundo em toda a obra, subjacente ao cotidiano daqueles moradores que

convivem diariamente com o aumento do custo de vida nas cidades e a chegada de novos habitantes.

Além da exclusão territorial, essas pessoas também são excluídas das políticas sociais, pois a exclusão

habitacional está diretamente atrelada à dificuldade de acesso à saúde, educação, transporte, lazer,

segurança, etc.:

A invasão de terras urbanas no Brasil é parte intrínseca do processo de urbanização.

Ela é gigantesca, como pretendemos mostrar aqui, e não é, fundamentalmente, fruto

da ação da esquerda e nem de movimentos sociais que pretendem confrontar a lei. Ela

é estrutural e institucionalizada pelo mercado imobiliário excludente e pela ausência

de políticas sociais. No entanto, a dimensão e os fatos são dissimulados sob notável

ardil ideológico. (Maricato, 2000a, p. 152)

Apesar da história do Brasil e da construção das cidades brasileiras estarem muito associadas aos

processos de invasão e de ocupação irregular do solo, existe uma crença comum, incentivada inclusive

pelos setores hegemônicos da sociedade e pela mass-media, que associa as atuais ocupações urbanas

à criminalidade, como se a pobreza estivesse inerentemente interligada ao crime. O fato é que a

forma como a gestão urbana foi conduzida, e ainda o é, aprofunda a desigualdade social e aumenta a

concentração de renda, uma vez que os investimentos públicos são feitos em bairros já privilegiados,

enquanto os bairros de baixa renda sofrem com a ausência de políticas públicas.

Para Wacquant (2008), o surgimento de um novo regime de marginalidade urbana é consequência de um

nítido direcionamento da estratégia governamental do Estado para a punição da pobreza e do abandono

do estado de bem-estar social, resultado da revolução neoliberal. Paralelamente a isso, a manipulação

da mass-media por forças políticas interessadas (Baratta, 2011) acaba intensificando o processo de

marginalização e segregação social das cidades, o que causa a cisão dos centros urbanos e consolida uma

dicotomia entre ricos e pobres: cidade formal e cidade informal. Quando falo em política de abandono,

portanto, me refiro ao abandono do Estado em relação à implementação de políticas sociais, e não

ao abandono completo, pois é sabido que áreas como favelas e ocupações são alvo sim de políticas

estatais, mas políticas criminais – essas políticas punitivas e repressivas muitas vezes voltadas para a

criminalização do pobre:

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128É evidente que a publicidade insistente e a mídia, de um modo geral, têm um papel

especial na dissimulação da realidade do ambiente construído e na construção da

sua representação, destacando os espaços de distinção. É evidente também que a

representação ideológica é um instrumento de poder – dar aparência de “natural” e

“geral” a um ponto de vista parcial, que nas cidades está associado aos expedientes de

valorização imobiliária. A representação da cidade encobre a realidade científica. Uma

intensa campanha publicitária leva uma ficção à população: o que se faz em território

restrito e limitado ganha foros de universal. Os investimentos na periferia não contam

para a dinâmica do poder político, como os próprios excluídos não contam para o

mercado. (Maricato, 2000a, pp. 165-166)

Quando o mercado imobiliário começa a se interessar pela periferia, essa dinâmica muda, como ocorreu

na região em que se localiza a Izidora. O que inicialmente era ignorado pelo poder público (através dessa

política de abandono) ganha destaque na mídia e começa a fazer parte central de uma disputa política por

território, território este que representa investimentos na casa dos bilhões de reais.

Perante o interesse do mercado imobiliário, as vidas das inúmeras pessoas que vivem nessas condições

ficam em segundo plano. A narrativa de Carolina revela justamente a discriminação e as violações de

direitos humanos sofridas pelos moradores da favela, denunciando a desigualdade e exclusão social

presentes em nossa sociedade. As ocupações como a Izidora, assim como tantas outras que existem e

ainda devem surgir mostram que as políticas estatais voltadas para essa parcela da população brasileira

não mudaram muito de 1940 para cá. Esse tipo de política é responsável pela cisão dos centros urbanos

consolidando uma dicotomia entre ricos e pobres: cidade formal e cidade informal; favela e asfalto. Ou

seja, de quartos em quartos de despejo, nossa forma de lidar com a pobreza é a mesma, o que muda é

apenas a localização desses depósitos de gente: “Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de

despejo ou queima-se ou joga-se no lixo” (Jesus, 1963, p. 33).

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autoria

resumo

ELISA HIPÓLITO DO ESPÍRITO SANTO

Graduanda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

CAROLINA NUNES DINIZ

Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

O presente trabalho versa sobre os marcadores sociais de gênero, raça, classe e sexualidade,

presentes na obra Quarto de despejo: diário de uma favelada de Carolina Maria de Jesus, mulher

negra moradora da favela do Canindé. Através do seu diário, com ricos e descritivos relatos sobre

as dificuldades enfrentadas em seu cotidiano na década de 50, sua percepção social e escrita

cirúrgica, a autora denuncia o racismo, a pobreza, o sexismo e a sexualização do corpo da mulher

negra. Propomos abordar a forma pela a qual as temáticas de raça, gênero, classe e sexualidade se

interseccionalizam na escrita da autora e, sobretudo, como muitas de suas denúncias permanecem

atuais entre os discursos de mulheres negras militantes mesmo após mais de cinquenta anos da

publicação de sua obra. Para tal, nossa metodologia consiste na análise dos discursos de feministas

negras do meio acadêmico e literário brasileiro e norte-americano, como Lélia Gonzalez, Conceição

Evaristo, Patricia Hill Collins, Bell Hooks, entre outras, bem como a etnografia do ciberespaço

nacional de importantes pensadoras e influenciadoras digitais negras, como Djamila Ribeiro e

plataformas como o site Blogueiras Negras. Os resultados do presente trabalho possibilitam um

melhor entendimento sobre a urgência das questões sociais e políticas pautadas pelas militantes

negras nos diferentes âmbitos da vida sociopolítica do país. Possibilita-nos ainda repensar o

sistema de classificação racial brasileiro associado a outros marcadores sociais e suas privações

e violências subsequentes, além da percepção dos diversos espaços de mobilização política de

mulheres negras no século 21. Consideramos, para tanto, as contribuições de Carolina Maria de

Jesus como fundamentais para a constituição do pensamento feminista negro no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: feminismo negro, ciberativismo, mulher negra, literatura.

A atualidade de Quarto de despejo: diário de uma favelada: reflexões sobre gênero, raça, sexualidade e classe no Brasil

SUMÁRIO

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131Quarto de despejo surgiu do diário de Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra moradora da favela do

Canindé, na capital de São Paulo, durante a década de 50. O livro relata as dificuldades do dia a dia de

Carolina, que era catadora de papel e que dessa atividade gerava o seu sustento, além do de três filhos

pequenos. Suas páginas expressam uma rica e forte descrição do cotidiano da favela naquele tempo.

Carolina demonstra em vários momentos seu senso crítico, seus posicionamentos políticos e seu amplo

entendimento sobre opressões sociais. Tratam-se de construtos de sua experiência prática, apesar da

pouca vivência teórica, tendo tido apenas dois anos de estudo e leituras esporádicas ao longo da vida.

As circunstâncias, contudo, não condicionaram o pensamento da autora, que apesar dos anos passados

desde o lançamento de sua obra, permanecem atuais.

Através da leitura do livro, escrito fora da norma culta da língua portuguesa, nota-se o grande interesse

que Carolina demonstrava pela política. Ouvindo rádio, acompanhando discursos e percebendo a

aproximação dos políticos na comunidade por vezes e outras, ela identificava interesses que não os

de ajudar os moradores da favela. Segundo a autora, “o Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa

que já passou fome. A fome também é professoral” (Jesus, 2014, p. 29). Trata-se da mesma carência

observada por outros autores, como Luiz Augusto Campos e Carlos Machado (2015), que afirmam que os

candidatos eleitos no Brasil são aqueles com mais acesso a bens materiais e simbólicos, representantes

de um específico e restrito extrato social, o qual os negros e os pobres são excluídos. O problema da sub-

representação conta ainda com o agravante do desconhecimento acerca de suas origens. É certo que o

racismo enquanto opressão estruturante da sociedade brasileira está por trás das mazelas enfrentadas

pela população negra no país. Mas, a partir disso, quais seriam os mecanismos sociais e políticos que

levam à falta de representação negra nos espaços políticos é o que Campos e Machado (2015) apontam

como desconhecido. Segundo os autores, isto ocorre, entre outros motivos, devido à politização da

desigualdade racial ser recente se comparada, por exemplo, à politização da desigualdade de gênero.

Carolina Maria de Jesus, também consciente das problemáticas de gênero que acometem as mulheres,

já constatava a sub-representação política de pessoas não brancas. A autora, ainda na década de 50,

afirma: “o Brasil é predominado pelos brancos” (Jesus, 2014, p. 115).

Compreender o racismo no Brasil se faz necessário não só para observar a falta de representação política

de pessoas negras, mas para apreender todo o projeto de nação operado aqui. Neste sentido, para

Antônio Sergio Guimarães (1995), o ponto de partida seria considerar que entre os brasileiros, o racismo

é um tema tabu. Acredita-se que aqui exista uma democracia racial, interpretação essa que conta com

origens históricas e literárias. Segundo Guimarães (1995), trata-se da ausência de segregação formal e de

conflitos raciais a partir da abolição, além do aparato de obras literárias que reforçam as relações raciais

como harmônicas. Carolina Maria de Jesus cumpre um importante papel ao romper com essa dinâmica

em suas obras. Ela é cirúrgica em suas colocações: “E assim, no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a

escravatura atual – a fome!” (Jesus, 2015, p. 32). O fator racial, portanto, é essencial para compreender

o contexto opressor em que se passa Quarto de despejo, bem como os dias atuais. E Carolina Maria de

Jesus, sob a ótica da miséria e da favela da década de 50, tanto contribui para o debate em questão que

sua leitura é essencial para quem queira entender raça, classe, gênero e interseccionalidade no Brasil.

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132Fanon (1983) faz um estudo clínico sobre a população negra e sobre a população branca e busca conduzir

ambas a liberar-se da herança aqui deixadas há séculos. O autor demonstra todos os malefícios sociais,

econômicos e psicológicos que esse embate causa na população negra, especificamente na população

das Antilhas, onde o seu estudo foi feito, mas serve para pensarmos as populações negras da diáspora.

O autor afirma que ser negro é carregar todo o preconceito que a raça branca imputa no corpo negro, é

carregar todos os arquétipos criados pelos brancos, levando a uma interiorização de inferioridade pelo

sujeito negro e de superioridade pelo sujeito branco. O autor ainda conclui que esses condicionantes

psíquicos do racismo sobre os negros impuseram a ele um desvio existencial, um sentimento não só

de inferioridade, mas também de inexistência. Sentimentos que são expostos durante toda a obra de

Carolina, principalmente quando a autora demonstra o seu desgosto por residir na favela e a sua vontade

de andar limpa:

Às oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que

mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na

sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim.

E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora do uso, digno de

estar num quarto de despejo. (Jesus, 2014, p.38)

Entretanto, sua afirmação identitária encontra um meio de conviver lado a lado com o descontentamento

pelas suas condições. Como sugere Pereira (2016) com o termo “quilombo mítico”. Esse termo se refere

ao corpo negro reinventado e autovalorizado diante das adversidades, reconstruído sob imagens

positivas que quebram a alienação. Ele é um símbolo da resistência, da disputa e conquista de territórios

físicos e simbólicos, que enfrenta e recusa a dominação e o referencial do dominador. É um corpo que,

através das pesquisas históricas e da busca das posições de sujeitos, deixa de ser objeto para se tornar um

sujeito histórico:

eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até acho o cabelo de preto

mais educado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica.

È obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do

lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.

(Jesus, 2014, p. 64)

“Refleti: preciso ser tolerante com meus filhos. Eles não tem ninguém no mundo a não ser eu. Como

é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar” (Jesus, 2014, p.19). A sexualidade, a

afetividade e a solidão da mulher negra é algo que é constantemente discutido por mulheres negras no

geral, mas que ganhou certo destaque nos grupos de feministas negras e acadêmicas após a dissertação

de Souza (2008) e a tese de Pacheco (2008). Elas demonstram o preterimento sofrido pelas mulheres

negras por homens negros e suas menores possibilidades no mercado afetivo, sobretudo devido à

sua inserção em uma sociedade moldada pelo racismo e pelo sexismo, que “são ideologias e práticas

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133socioculturais que regulam as preferências afetivas dos indivíduos, ganhando materialidade no corpo

racializado e sexuado” (Pacheco, 2008, p. 157).

Além desse celibato definitivo ao qual muitas mulheres negras estão propensas – 52,89% das mulheres

solteiras no Brasil são negras (IBGE, 2010) –, quando elas estão em um relacionamento são as principais

vítimas de violência doméstica. Entre 2003 e 2013, houve uma queda de 9,8% no total de homicídios de

mulheres brancas, enquanto que os homicídios de negras aumentaram 54,2% (Waiselfisz, 2015), além de

serem 56,8% das vítimas de estupros (ISP, 2015).

Diante desse contexto de violência contra mulher negra, Carolina Maria de Jesus (2014), já na década

de 50, relatava os abusos sofridos por suas vizinhas na Favela do Canindé e afirmava que, por mais que a

ausência de um companheiro machucasse, não valeria apena se tornar refém de um relacionamento que a

limitasse ou maltratasse:

Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. Elas tem marido.

Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de caridade.

... E nelas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas

pede socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Enquanto

os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus filhos dormimos sossegados. Não

invejo mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas. (p.16)

Entretanto, através da leitura de seu diário outro tipo de solidão nos chama mais atenção, que vai além da

ausência de uma relação afetivo-amorosa com um parceiro ou parceira, mas sim uma solidão a um nível

mais profundo e perverso, relacionada às relações familiares e os laços de amizade. A solidão na hora de

procurar a justiça, o atendimento médico e o acesso a serviços públicos; a solidão da mulher negra mãe,

dona de casa, trabalhadora e chefe de família que tem que alimentar sozinha os seus filhos, educá-los e

protegê-los, que tem que colocar comida dentro de casa e ainda tem que pagar as contas; a solidão da

mulher negra que não tem tempo para si, para o seu descanso, para sua autoestima, para o seu lazer, que

vive em função do outro, uma solidão que afeta a saúde emocional e mental dessas mulheres.

A afirmação é o primeiro passo para cultivarmos nosso amor interior. Usamos a expressão “amor

interior”, e não “amor próprio” porque a palavra “próprio” é geralmente usada para definir nossa posição

em relação aos outros. Numa sociedade racista e machista, a mulher negra não aprende a reconhecer que

sua vida interior é importante. A mulher negra descolonizada precisa definir suas experiências de forma

que outros entendam a importância de sua vida interior. Se passarmos a explorar nossa vida interior,

encontraremos um mundo de emoções e sentimentos. E se nos permitirmos sentir, afirmaremos nosso

direito de amar interiormente (Hooks, 2000).

São especificidades como estas, também denunciadas por Carolina Maria de Jesus, que permanecem

atuais no cenário social e que seguem sendo tema da escrita de mulheres negras.

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134No texto Mexeu com uma, mexeu com todas, publicado no site da revista Carta Capital em abril de

2017, a pesquisadora Djamila Ribeiro é pragmática ao colocar-se diante dos debates de gênero feitos

ultimamente no Brasil. A autora, que também é uma importante influência digital, traz o título em questão

fazendo alusão a uma movimentação que ocorreu no mesmo período, através das redes sociais, e que

tinha por objetivo denunciar o assédio sexual sofrido por mulheres no ambiente de trabalho. A campanha

contou com a adesão de várias atrizes e apresentadoras da televisão brasileira que compartilharam em

seus perfis nas redes sociais hashtags como #ChegaDeAssédio e #MexeuComUmaMexeuComTodas. O

que motivou toda essa mobilização foi um ato de assédio sexual, cometido pelo ator José Mayer, sofrido

por uma figurinista branca da TV Globo, que teve grande repercussão na internet.

Contudo, a campanha, que teve as palavras “sororidade”, “coletividade” e “consciência” como centrais,

se torna sintomática na medida em que reflete contradições que as feministas negras apontam

historicamente em suas produções.

Bell Hooks (2000) é uma das intelectuais que o faz com propriedade ao afirmar que, nos Estados Unidos,

o feminismo surgiu a partir das mulheres brancas, casadas, com formação universitária e da classe média

e alta, que estavam entediadas com a casa, os filhos e a vida que levavam. Essas mulheres, produtoras

dos primeiros trabalhos sobre feminismo nos Estados Unidos, levaram em conta unicamente as suas

experiências, excluindo toda a multiplicidade de vivências experimentadas por outras mulheres não

hegemônicas. Desviaram o olhar e excluíram do debate uma multiplicidade de outras mulheres, que são

mais vitimizadas cotidianamente pelas opressões machistas e conciliadas com o racismo, o classismo e a

homofobia – mulheres que muitas vezes eram impotentes para modificar a própria condição de suas vidas,

como foi exemplificado por Djamila ao citar Sojourner Truth, na Convenção dos Direitos das Mulheres

em Ohio: “E eu não sou uma mulher?” (Ribeiro, 2017, s/p). Dentre alguns questionamentos ela diz:

Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é

preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas devem ocupar sempre

os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por

cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem para mim!

Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros e homem

nenhum conseguiu me superar! E não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e

comer tanto quanto um homem - quando tinha o que comer - e também agüentei as

chicotadas! E não sou uma mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como

escravos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E

não sou uma mulher? (Ribeiro, 2017, s/p)

Lélia Gonzalez (1988) é outro exemplo de intelectualidade negra que contribui para o avanço do

feminismo latino americano refletindo sobre suas contradições internas, dando ênfase à questão racial.

Ela destaca o feminismo teórico e prático como fundamental para as lutas sociais pela sua capacidade de

mobilização, por analisar o capitalismo patriarcal, por explicar onde se fundamentam as opressões contra

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135as mulheres e ainda por refletir sobre o ser mulher. Djamila Ribeiro (2017), no texto Mexeu com uma,

mexeu com todas, também reflete sobre o que é ser mulher, argumentando que “é necessário nomear as

opressões, entender que mulheres partem de diferentes pontos e que existem variadas possibilidades de

ser mulher. Entender essas diferenças é essencial para o prosseguimento da luta feminista” (p. 2).

São várias as formas possíveis de ser mulher, e Carolina Maria de Jesus demonstra nas páginas de seu

livro que conhecia bem o que implicava ser mulher, negra e periférica.

Em Quarto de despejo são levantadas questões acerca da afetividade e do cotidiano da negra que se fazem

comuns entre as feministas negras atuais, como podemos observar não só nas produções de Djamila

Ribeiro, como também nas produções do coletivo Blogueiras Negras.

No texto Carolina Maria de Jesus: a mídia racista e a literatura no Quarto de despejo, publicado no site do

Blogueiras Negras, a autora Luma de Oliveira (2014) relata:

A primeira vez em que li foi um soco no estômago, mas ao mesmo tempo bateu a

identificação com a mulher que ali escrevia, em papéis achados em meio ao lixo,

costurou um retrato do Brasil, na época camuflado pelas classes dominantes – como

chamava a própria autora, a – sala de visita – (qualquer semelhança com o quadro

atual, não é mera coincidência). (s/p)

Luma Oliveira (2014) coloca ainda que:

Carolina Maria de Jesus foi agente de sua própria história, escritora, cantora, mãe

e mulher negra que través da escrita pintou a realidade que daquela época ainda se

arrasta aos dias de hoje. ... não devo esquecer de mencionar que até o fim da vida a

autora foi vítima da mídia racista, que a fotografou catando papeis pelas ruas, que fez

entrevistas com a escritora, cujos textos saíram a ridicularizando e sua vida após sair

da cidade grande e mudar-se para Palheiros (extremo sul de São Paulo). É necessário

investigar e levantar vários elementos que sustentam ideologias, que colaboram

diariamente para uma violência que passa muitas vezes despercebida, invisível. (s/p)

Luma Oliveira observa o lugar da subalternidade ocupado por Carolina Maria de Jesus e o processo

de apagamento sofrido pela mesma, apesar da repercussão de sua obra. Para a autora, o machismo e o

racismo, que são estruturantes em nossa sociedade e presentes fortemente na mídia, são o que justifica o

apagamento em questão.

Carolina Maria de Jesus usa o seu diário e a sua escrita como ferramenta para se libertar, por ora, da sua

situação de mulher negra periférica. Através dos seus relatos pessoais sobre a vida na favela, a fome, a

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136política, o alcoolismo e as violência físicas e simbólicas presentes ao seu redor, a autora consegue tirar

forças para continuar e sonhar com um futuro melhor.

Como diz a escritora Conceição Evaristo em entrevista ao jornal O Globo,

A pobreza pode ser um lugar de aprendizagem, mas apenas quando você a vence.

Se não, é lugar da revolta, da impotência, da incompreensão. E aí você não faz nada.

Hoje eu vejo que a pobreza foi o lugar fundamental da minha aprendizagem diante

da vida. ... Minha literatura não é pior nem melhor do que qualquer outra, só nasce de

uma experiência diferente da qual eu me orgulho e que não quero camuflar. (Evaristo,

2016, s/p)

O que a autora faz pode ser considerado uma escrevivência, conceito criado pela escritora Conceição

Evaristo e que se refere à ideia de escrever, viver e se ver. Através da escrevivência, a autora pretende

rasura a imagem da – mãe preta contadora de história para adormecer a prole da Casa Grande,

construindo a ideia de mulher negra que conta a sua própria história, escreve as suas vivências e as

das mulheres negras na sociedade brasileira, a partir da sua perspectiva. Histórias e escritas que são

contaminadas pelas suas condições de mulher negra na sociedade brasileira.

A nossa escrevivência não é para adormecer os da Casa Grande, e sim para incomodá-los

em seus sonos injustos. Eu Sempre tenho dito que a minha condição de mulher negra

marca a minha escrita, de forma consciente inclusive. Faço opção por esses temas, por

escrever dessa forma. Isso me marca como cidadã e me marca como escritora também

(Evaristo, 2016, s/p).

Apontar as semelhanças de discursos e denúncias entre Carolina Maria de Jesus, Feministas negras

acadêmicas e ciberativistas negras, apesar da grande diferença de anos e de contextos, é algo que

demonstra como a produção de conhecimento é também corporificada. Como é citado por Pereira

(2016): “[o]s saberes, como todas as outras formas de produção social, são pelo menos parcialmente

efeitos do posicionamento sexualizado [e racializado] de seus produtores e usuários” (Grosz, 2000, p. 79).

Pode-se comentar que essas mulheres, por terem uma unidade quanto ao seu pertecimento racial, já

teriam talvez um discurso militante parecido. Entrentanto pensamos que os seus discursos se constroem

não só em relação si mesmas e aos grupos que fazem parte – que apesar do compartilhamento de

algumas visões, há aspectos da vida e diferentes marcadores sociais que particularizam as suas

experiências – mas principalmente em relação ao outro, ao diferente de si.

Patricia Hill Collins (2016) utiliza de um conceito que se encaixa perfeitamente nesse contexto, o conceito

de outsider whitin, que está relacionado a viver à parte, ver de dentro para fora e de fora para dentro. Ao

realizar uma revisão cuidadosa da emergente literatura feminista negra, Collins observou que muitas

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137intelectuais negras, principalmente as marginalizadas academicamente, exploram esse ponto de vista

e produzem análises distintas acerca das questões de gênero, raça e classe. Isso porque ser uma mulher

negra escrevendo e observando sobre algo é ter um ponto de vista especial. Os nossos pontos de vista

são permeados pelo contexto em que estamos inseridos, somos construídos socialmente e a nossa

sociedade cria lentes pelas quais analisamos o mundo.

Entretanto a maneira que uma mulher negra periférica vê e experimenta o mundo é completamento

diferente da maneira em que uma mulher branca de classe alta vê, por exemplo. O acesso a bens

simbólicos e culturais e problemas enfrentados são distintos, criando assim perspectivas sobre o mundo e

suas questões também diferenciadas.

O status outsider whitin tem proporcionado às mulheres negras uma posição favorável de ponto de vista

relacionado ao self, à família e à sociedade. Mulheres negras acadêmicas utilizam desse status para

produzir análises distintas ao que se relaciona ao gênero, raça e classe, já que possuem uma habilidade

em ver padrões que dificilmente podem ser percebidos por aqueles e aquelas imersos na nossa sociedade

marcada pelo racismo, machismo e sexismo.

Ainda de acordo com a autora – e tendo em vista todo o exposto e as produções antigas e recentes de

mulheres negras, acadêmicas, literárias e digital influencers – apesar dos obstáculos, privações e dor da

marginalidade que esse status garante, ele pode funcionar como um estímulo à criatividade, e assim ele

enriquece a teoria feminista e o discurso sociológico contemporâneo, já que geram um ponto de vista

diferente em comparação com os paradigmas sociológicos existentes.

Por fim a autora afirma que o poder dessas mulheres vai muito além da modificação do discurso

sociológico. Elas independentemente do lugar que estejam: se ocupam cargos institucionais,

governamentais, se são acadêmicas, se transitam pelos espaços de poder, mas que não fazem parte deles

– por enxergar a realidade a partir do seu ponto de vista – podem modificar as estruturas da sociedade e

produzir ações coletivas e políticas públicas efetivas que beneficie e se atente para as suas singularidades.

A finalidade do presente trabalho foi elencar possíveis contribuições da autora para se pensar o gênero, a

raça, a condição social e a sexualidade. Além de cooperar com as discussões e os esforços de recuperação

da obra e pensamentos de uma escritora brilhante, mas que ao contrário dos seus pares brancos –

principalmente homens brancos – vê-se atualmente submetida à relutância da academia de letras em

reconhecer sujeitos negros, os quais só aparecem nas políticas de referências e memórias racializadas.

Essa exclusão é mais intensa para as mulheres negras que devido ao racismo e ao sexismo, tem suas

vivências, experiência, escrita e habilidades intelectuais relegadas. Como afirmou a escritora Elisa

Lucinda, que participou da mesa sobre a escrita da mulher negra ao lado de Conceição Evaristo no Ciclo

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138Carolina Maria de Jesus, evento que aconteceu em julho de 2017, na cidade de São Paulo, e que discutiu a

importância histórica e literária de Carolina Maria de Jesus:

Ela dizia que a favela era o quarto de despejo das zonas ricas da cidade, o lugar onde se

joga os trastes que não se quer ver. E isso, para mim, é o que até hoje nossa literatura

faz com Carolina Maria de Jesus, que é coloca-la no quarto de despejo. Não querem

que ela saia de lá, querem que ela fique na senzala. (Lucinda, 2017, s/p)

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140Pacheco, A. C. L. (2008). Branca para casar, mulata para f....., negra para trabalhar: escolhas afetivas e

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autoria

resumo

CAMILA PEIXOTO FARIAS

Psicóloga e Psicanalista. Professora Adjunta A da Faculdade de Medicina, Psicologia e Terapia

Ocupacional da Universidade Federal de Pelotas – UFPEL. Mestre e Doutora em Teoria

Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

CONTATO: [email protected]

Em nosso texto colocaremos em destaque à violência sofrida pelos negros, ou, melhor dizendo,

à violência que, desde os tempos da escravidão, os brancos dirigem aos negros. Procuraremos

discutir os desdobramentos psíquicos de tal violência. Faremos isso em articulação,

principalmente, com a concepção de “constituição subjetiva” de Laplanche – que fez da

prioridade do outro para a constituição psíquica a marca de seu arcabouço teórico – e com a

noção de “trauma” proposta por Freud (1920/2006) e por Ferenczi.

PALAVRAS-CHAVE: racismo, exclusão, invisibilidade, ameaça narcísica, trauma.

Exclusão social e invisibilidade: desdobramentos traumáticos do racismo

SUMÁRIO

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142Escolhemos as passagens abaixo, retiradas do diário de Carolina Maria de Jesus, porque as consideramos

emblemáticas dos efeitos, historicamente construídos, do racismo na vida dos negros no Brasil. Interessa-

nos destacar dentre esses efeitos a pobreza, a exclusão social e a invisibilidade.

“... eu luto contra a escravatura atual: a fome.”

(Jesus, 1992, p. 32)

“Como é horrível ver um filho comer e perguntar: ‘tem mais?’

Esta palavra ‘tem mais’ fica oscilando dentro do cérebro

de uma mãe que olha as panelas e não tem mais.”

(Jesus, 1992, p. 38)

“... é duro a gente vir ao mundo e não poder nem comer. ... quando eu não tenho nada

para comer, invejo os animais.”

(Jesus, 1992, p. 61)

“Como é horrível levantar de manhã e não ter nada para comer.

Pensei até em suicidar.”

(Jesus, 1992, p.99)

“Fiz café para o João e o José Carlos, que hoje completa 10 anos. E eu apenas posso

dar-lhe os parabéns, porque hoje nem sei se vamos comer.”

(Jesus, 1992, p. 106)

“Eu ando tão nervosa que estou com medo de ficar louca.”

(Jesus, 1992, p.116)

Audálio Dantas1 (1992), ao final do prefácio do livro Quarto de despejo, que intitula “A atualidade do

mundo de Carolina”, apresenta a seguinte frase: “Assim, Quarto de despejo não é um livro de ontem, é

de hoje. Os quartos de despejo, multiplicados, estão transbordando” (p.8). Estamos em acordo com o

jornalista e consideramos que “os quartos de despejo” espalhados pelo Brasil evidenciam o lugar que os

negros e negras ocupam em nossa sociedade na atualidade. Segundo estudos publicados em 2015 pelo

IBGE (Correio Brasiliense, 2015), na população que forma o grupo 10% mais pobre do país, os negros são

a maioria, percentual este que só aumentou nos últimos anos. Se, em 2004, 73,2% dos mais pobres eram

1 O jornalista Audálio Dantas foi quem, em 1958, em visita à favela do Canindé como repórter, conheceu a Carolina e travou

contato com seus escritos, registrados então em pedaços de folha de papel, que foram, então, organizados por Audálio e

encaminhados para sua primeira publicação, dois anos depois.

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143negros, esse número aumentou para 76% em 2014, o que indica que três em cada quatro pessoas do grupo

das mais pobres são negras. Portanto, é inegável que a pobreza, a exclusão social e a invisibilidade continuam

sendo as principais características da vida da maioria esmagadora dos negros no Brasil, características

estas que mantém íntima relação com o passado escravagista de nosso país preponderantemente negado e

silenciado e, talvez por isso mesmo, reproduzido de forma violenta e compulsiva na dinâmica social até hoje.

Uma história de servidão, submissão, violência e invisibilidade que se perpetua.

Para pensar a pobreza, a exclusão e a invisibilidade, queremos colocar em destaque e dar visibilidade à

violência sofrida pelos negros, ou, melhor dizendo, à violência que, desde os tempos da escravidão, os

brancos dirigem aos negros. Ao destacarmos tal violência, um paradoxo se evidencia: os brancos, que

desde a época da escravidão dirigiram as mais cruéis formas de violência aos negros, atribuem a estes o

lugar por excelência da violência, do descontrole, da ameaça à vida e à civilidade. Dessa forma, a violência

que os brancos dirigem aos negros é até hoje invisibilizada, o que tem como uma de suas principais

consequências a invisibilização dos negros enquanto sujeitos, enquanto cidadãos.

Tornar-se negro no Brasil, como indica Souza (1983), é um desafio doloroso: desafio de se constituir

em uma sociedade na qual o referencial é sempre branco. Em outras palavras, é constituir-se em

uma sociedade em que se é violentado constantemente. Os negros no Brasil não têm sua linguagem

reconhecida, sua cultura valorizada e suas histórias não integram o discurso social aceito. São situados em

categorias gerais, em sua maioria depreciativas – como “marginal”, “violento”, “vagabundo”, “preguiçoso”,

etc. –, determinadas pelo discurso branco dominante, que os dessubjetiviza, transformando-os em um

grande grupo no qual ninguém tem nome ou história, no qual ninguém é reconhecido como um sujeito.

Tendo em vista esse contexto e o relato tocante de sua vida feito por Carolina Maria de Jesus, nos

questionamos quanto aos efeitos psíquicos do racismo e de seus desdobramentos como a exclusão social,

a violência e a invisibilidade a que os negros são submetidos no Brasil. Evidentemente, o racismo é um

problema histórico, multifatorial, complexo e seria um grande erro tentar explicá-lo apenas a partir de

aspectos psíquicos. Porém, acreditamos que pensar em seus desdobramentos psíquicos é de grande

importância para avançarmos nas reflexões acerca dessa temática.

A psicanálise oferece ferramentas importantes que podem contribuir para as discussões sobre o

racismo, principalmente no que se refere à articulação entre o âmbito intersubjetivo e intrapsíquico.

Segundo Costa (1984), a relação com os outros, com a cultura na qual o sujeito está inserido, é um fator

determinante para a constituição psíquica, subjetiva. Assim, acreditamos que a violência do racismo,

preponderantemente ocultada e invisibilizada, tem também violentos efeitos para a constituição psíquica

dos sujeitos negros.

Procuraremos contribuir para a compreensão da singularidade do sofrimento psíquico dos negros

no Brasil, ou seja, para a compreensão da singularidade do sofrimento psíquico dos negros que se

constituem e vivem em uma sociedade racista. Faremos isso em articulação, principalmente, com a

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144concepção de “constituição subjetiva” de Laplanche (1987) – que fez da prioridade do outro para a

constituição psíquica a marca de seu arcabouço teórico – e com a noção de “trauma” proposta por Freud

(1920/2006) e por Ferenczi (1933/1992).

Dando continuidade à discussão, surge a questão: Como se dá o reconhecimento da própria existência, o

reconhecimento de si mesmo, quando se é socialmente excluído e invisível?

Segundo Bastos (2009), o sofrimento advindo da exclusão tem dimensões muito mais profundas e graves

do que aquele provocado pela renúncia pulsional, que garante a inclusão social, denominado por Freud de

mal-estar causado pela cultura. Esse sofrimento é suportado pelo ganho de ser reconhecido socialmente,

de ser incluído no pacto social. Para os negros, excluídos do pacto social, o sofrimento é outro: é da dor

de não existir, ou de existir somente como generalização, que o negro sofre. A ameaça que marca o

psiquismo dos sujeitos negros é a ameaça à existência, é uma ameaça narcísica, muito anterior à ameaça

de perda de amor.

O pacto social se constitui justamente na direção do recalcamento ou da criação de outros

direcionamentos – que não à violência contra o outro – para o pulsional destrutivo e violento que

colocaria em risco a vida em sociedade. Esse direcionamento do pulsional é indissociável do processo de

constituição psíquica, de constituição das instâncias psíquicas. É interessante notar que, na forma como

se estabelecem preponderantemente as relações entre brancos e negros em nossa sociedade, há uma

quebra do pacto social historicamente construída e aceita. Desde o início da história do Brasil, o lugar

designado aos negros é o lugar do escravo, do ameaçador, do demoníaco, do que precisa ser dominado. O

negro foi transformado em estranho em nossa sociedade, e o estranho torna-se ameaçador, como aponta

Freud (1915/2006).

O direcionamento, pelos brancos, do pulsional arcaico, violento e perverso aos negros está diretamente

articulado às construções histórico-sociais que situam o negro em uma posição de subalternização,

exclusão e invisibilidade. É preciso atentar para o fato de que a forma de construir respostas ao pulsional

vai em direção às facilitações sociais. Há uma ruptura histórica do pacto social realizada pelos brancos

na relação estabelecida com os negros que nos parece ter como principal consequência a exclusão

dos negros de tal pacto e a instauração de uma lógica traumática (e aí cabe o destaque: os brancos

rompem o pacto social dirigindo aos negros todo tipo de violência, mas são os negros que são excluídos

socialmente). Isso é evidenciado pela permissão que os brancos têm de direcionar o pulsional arcaico,

sádico e perverso – que o pacto social exige renuncia – para os negros. Butler (2015) destaca que o

reconhecimento do estranho que nos habita é uma fonte importante da nossa conexão ética com o

outro. Se projetamos no outro o estranho que nos habita comprometemos nossa conexão ética com ele,

comprometemos nossa responsabilidade por sua existência, por seu reconhecimento.

Como aponta Bastos (2009), a problemática da exclusão está relacionada de forma inquestionável a

economia financeira, mas também tem íntima articulação com a economia psíquica: “O sujeito excluído,

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145seja ele um indivíduo, um grupo ou um povo, sofre ao ser gravemente atingido na sua potência e no seu

sentido de existência” (p. 58). Assim a exclusão, a invisibilidade, a pobreza determinam uma fragilidade

material, mas também uma grande fragilidade psíquica, especialmente no que se refere a constituição

narcísica e seus desdobramentos para o funcionamento psíquico. Podemos pensar a exclusão como

um processo da ordem do traumático, da ordem do que ameaça as possibilidades de existência do

eu, que o fragiliza, que o aprisiona a um circuito mortífero sustentado e mantido não apenas por uma

dinâmica psíquica, mas também por uma dinâmica social. Assim, além da ameaça real à sobrevivência,

encontramos também a ameaça à existência subjetiva com a qual os negros precisam lidar e contra a qual

eles precisam se defender constantemente.

A exclusão é, portanto, uma patologia social que provoca em termos psíquicos uma ameaça ao narcisismo,

uma ameaça de fragmentação, representa uma ameaça subjetiva, uma vez que a vida psíquica se apoia no

reconhecimento do outro. Isso, segundo Bastos (2009), provoca um sentimento indizível, marcado pela

angústia de desligamento, de não pertencimento. A angústia que predomina, portanto, não é a angústia

de castração, mas a angústia de aniquilamento, de morte. Dessa forma, o racismo pode ser pensado

como uma experiência da ordem do traumático, da ordem da ruptura de possibilidades simbólicas, o que

provoca o empobrecimento das possibilidades de existência, o empobrecimento dos destinos possíveis

para o pulsional.

Freud (1920/2006) sustenta que o trauma seria a consequência do excesso de excitação, do rompimento

da proteção que defenderia o “órgão anímico” contra as excitações. Diante do traumático, o processo

de elaboração psíquica falha, e com ele, o domínio do princípio do prazer, pois o aumento do fluxo de

excitação estaria além do tolerável, impedindo o trabalho psíquico e submetendo o psiquismo, assim, a

uma única tarefa, a de tentar “dominar” tal excitação que ameaça as fronteiras do eu. A exclusão social e a

invisibilidade nos parecem ter esse efeito psíquico, efeito ameaçador da existência.

Em termos laplancheanos, o traumático pode ser pensado como a intromissão de mensagens no

psiquismo, mensagens que não puderam ser traduzidas, que não puderam nem ser integradas ao espaço

egóico e nem recalcadas permanecendo no psiquismo como enclaves. Segundo Cardoso (2002), o caráter

particular de determinadas mensagens se deve ao fato de que estão enclavadas no próprio outro que

as transmite. Isso aponta para a necessidade de considerarmos o estrangeiro que reside no interior

do próprio outro. Somos conduzidos a pensar no pulsional arcaico sádico e perverso – o estrangeiro, o

estranho/ familiar de nós mesmos – que nós brancos, histórica e culturalmente, aprendemos a dirigir aos

e localizar nos negros (claro que não só neles, mas principalmente neles, e também nos homossexuais,

transexuais, etc.).

Estamos diante da intromissão do outro no psiquismo, uma posição de passividade radical ligada à

impossibilidade de simbolizar aquilo que do outro é intrometido no psiquismo. Isso põe em destaque a

dimensão de poder absoluto do outro que transmite mensagens que não poderão ser processadas. Esses

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146elementos permanecem como elementos externos, como um outro externo no interior do psiquismo.

O sujeito fica situado em uma posição de passividade, de servidão diante dessa alteridade enclavada

no psiquismo.

Ferenczi (1933/1992) também nos ajuda a avançar na articulação entre racismo e trauma. O autor pensa

a questão do trauma relacionando-a à noção de desmentido. No desmentido, uma história contada pela

criança (relacionada a um fato real de natureza sexual) é relegada pelo adulto ao plano da mentira – o

adulto trata o acontecimento como ficção, não como acontecimento real. Deste modo, a situação vivida

fica sem possibilidade de compreensão para a criança, desmentida, relegada ao silêncio.

Em consonância com as ideias de Reis (2004), consideramos que, embora muitas vezes o desmentido

esteja referido na obra ferencziana a um abuso sexual stricto sensu, não se restringe a essa circunstância.

O desmentido também pode se fazer presente nas situações em que um outro desmente e desqualifica

o vivido do sujeito, não só o seu prazer ou sofrimento, mas também o seu modo de ver e significar o

mundo. Em outras palavras, o desmentido diz respeito ao não acolhimento da singularidade de um sujeito

ou de um grupo lhes impondo uma linguagem excessiva, traumática. O desmentido está relacionado

a uma linguagem à margem da lei, uma linguagem marcada pela violência. A forma de relação social e

culturalmente construída entre brancos e negros parece evidenciar a lógica do desmentido ferencziano:

o modo dos negros verem e significarem o mundo, o modo deles existirem, é desmentido pelos brancos

que impõe a sua linguagem, o seu universo simbólico, caracterizando uma relação de caráter traumático.

A violência do racismo intimamente articulada a exclusão e a invisibilidade social pode ser pensada a

partir da lógica do desmentido e como a intromissão de mensagens que permanecem no psiquismo como

enclaves, como um excesso pulsional que ameaça as fronteiras do eu. E é isso que queremos enfatizar: a

violência sofrida pelos sujeitos negros em função do racismo se apresenta como trauma, como o que não

pode ser dito, porque não pôde ser processado psiquicamente, como um enclave branco que faz parte do

psiquismo e que ameaça seu narcisismo, ameaça sua existência permanentemente.

Borges e Cardoso (2009) destacam que a impossibilidade de significar e narrar o que foi vivido é um dos

principais efeitos de uma experiência traumática. Nesse sentido, Kemper (2013) indica que “Quando uma

vivência não pode ser elaborada, transformada em narrativa e assim em experiência – quando não se

pode dar um sentido a ela – há um problema para o psiquismo” (p. 116).

Como vimos, os elementos ligados à vivência traumática permanecem no psiquismo como enclaves,

como fragmentos que não puderam ser integrados ao universo representacional do sujeito. Isso nos

ajuda a compreender porquê, para os negros, relatar, narrar a violência sofrida, é algo tão difícil. Borges e

Cardoso (2009) nos alertam que, embora o trauma aponte para uma narrativa impossível em função da

sua impossibilidade de representação e integração psíquica, é justamente em função disso que se torna

importante para aquele que vivenciou situações traumáticas relatar ao outro sua história, relatar a si

mesmo, dar testemunho do vivido. Como destacam as autoras, “É preciso que a vítima se transforme em

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147testemunha e isso só é possível a partir da escuta de um outro” (Borges & Cardoso, 2009, p. 121). Para

que o vivido ganhe expressões de vida é preciso que um outro o acolha e o reconheça. Mas quando os

negros querem contar suas histórias, há outros dispostos a escutar? Nós, brancos, estamos disponíveis

para acolher a perversidade e agressividade do pulsional que nos constitui (do estranho em nós) e que

por muito tempo atribuímos aos negros, esquecendo que essa é a matéria prima que constitui a todos

nós, humanos?

Segundo Kemper (2013), um dos recursos mais pontes para manutenção da exclusão social e da

invisibilidade é o silenciamento. Tendo isso em vista, um caminho fundamental para superação do

racismo a que os negros são vítimas no Brasil é a possibilidade de construção de narrativas de suas

vivências, de suas histórias, da construção de mais espaços de expressão de seu universo simbólico.

Diante da sociedade racista em que vivemos, a psicanálise precisa assumir a responsabilidade ética e

política da escuta, do reconhecimento, do acolhimento das narrativas dos sujeitos negros, sem repetir

a situação traumática de desmentido de sua existência, de desmentido das histórias relatadas, de

desmentido de seu sofrimento. Essa responsabilidade deve ser nossa, assumida por cada um e por todos

e ela é indissociável do reconhecimento do estranho que nos constitui e da construção de formas não

violentas, não colonizadoras, de encaminhá-lo, de traduzi-lo.

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autoria

resumo

DANIEL KUPERMANN

Psicanalista. Professor do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de São

Paulo – USP. Bolsista do CNPq – Brasil. Coordenador do psiA – Laboratório de pesquisas

e intervenções psicanalíticas. Membro do Grupo de trabalho “Psicanálise, subjetivação e

cultura contemporânea” da Associação Nacional de Pós-Graduação em Psicologia – ANPEPP.

CONTATO: [email protected]

KARLA PATRÍCIA HOLANDA MARTINS

Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Pós-doutora

pelo Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São

Paulo – USP. Membro do Grupo de trabalho “Psicanálise e clínica ampliada” da Associação

Nacional de Pós-Graduação em Psicologia – ANPEPP.

CONTATO: [email protected]

O presente trabalho discute, a partir das relações entre a psicanálise e a literatura de

testemunho, o livro Quarto de despejo: diário de uma favelada, destacando as temáticas da fome

e do racismo, examinadas sob a perspectiva da vergonha, da desautorização e do humor.

PALAVRAS-CHAVE: testemunho, fome, humor, racismo, psicanálise.

Racismo, fome, testemunho e humor: sobre Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus

SUMÁRIO

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150Ficamos muito satisfeitos em conhecer o livro Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina

Maria de Jesus (2014), sobretudo pelo fato de que nossa pesquisa atual debruça-se sobre o problema do

testemunho e da fome a partir da psicanálise. E é justamente a esse respeito que gostaríamos de trabalhar

aqui, partindo de algumas indagações: poderíamos situar Quarto de despejo na categoria da literatura de

testemunho? Em caso afirmativo, em que isso nos ajudaria a entender o estatuto da obra de Carolina? Uma

maneira mais simples de colocar o problema seria perguntar: o que a levou a escrever seu Diário?

TRAUMA, ESCRITA E TESTEMUNHO

Ao tomarmos como paradigma da literatura de testemunho a obra de Primo Levi, judeu italiano,

sobrevivente de Auschwitz, percebe-se que uma noção crucial para a compreensão da sua escritura

é a noção de trauma. Sua escrita tinha a função social de gravar definitivamente o acontecimento da

Shoah na memória da humanidade, ou seja, de não deixar que o mesmo pudesse ser esquecido (Levi,

1988). Paralelamente, caracterizava um trabalho psíquico, no sentido de uma tentativa de sublimação da

experiência traumática; isto é, no sentido de criar modos de expressão capazes de fornecer alguma forma

compartilhável para o horror vivido em sua experiência concentracionária, de maneira a sensibilizar

a comunidade humana para o irrepresentável traumático promovido pela fábrica da morte nazista

(Barbosa & Kupermann, 2016).

Guardando as evidentes diferenças existentes entre a realidade do Campo de Concentração e aquela

da favela do Canindé, podemos perceber também na escrita de Carolina Maria de Jesus uma tentativa

de sublimação, por meio da escrita de seu Diário, do caráter traumático da sua experiência de vida. De

fato, em ambas as experiências, reconhecemos a desmesurada humilhação provocada pela segregação

(antissemita ou racista), pela fome1 e pelo abandono traumático produzido pela indiferença do Outro

– nas formas dos poderes institucionais, bem como dos semelhantes que se recusam a constituir uma

comunidade de destino. Se Carolina nomeia a favela, repetidamente, de “inferno”, parafraseia Sartre:

o inferno são os outros. No caso, o outro que recusa a estabelecer uma comunidade de destino capaz

de dar alguma dignidade para a sua existência. Nesse sentido, podemos pensar a literatura de Carolina

Maria de Jesus como o instrumento por meio do qual ela buscava resgatar sua dignidade humana,

detendo, portanto, também uma função social.

A teoria do trauma concebida pelo psicanalista húngaro Sándor Ferenczi nos facilita o entendimento

da função sublimatória da escrita de testemunho. Tomando a figura da criança desamparada como

paradigmática da situação traumática frente a uma experiência de violência (Ferenczi, 1933/1992)

“É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la”, escreve Carolina (Jesus, 2014, p. 29).

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151 – considerado o primeiro tempo do trauma, que nomeamos de tempo do indizível –, o sujeito busca

um semelhante, um outro capaz de ajudá-lo a criar sentidos para a experiência, sempre dolorosa e

disruptiva. Esse é o segundo tempo da situação traumática, que nomeamos de tempo do testemunho.

É o encontro com a presença sensível do semelhante que permite ao sujeito atribuir sentidos ao que

sofreu, transformando a passividade traumatizante em atividade simbólica, livrando seu aparelho

psíquico da paralisia esterilizante. O trauma propriamente dito ocorre quando, ao invés do acolhimento

e do reconhecimento do seu sofrimento por parte do outro, o sujeito depara-se com a indiferença,

caracterizando o terceiro tempo do trauma, o tempo da desautorização. Sem a reverberação no

outro da sua indignação e da sua dor, a própria percepção da violência sofrida é deturpada, muitas

vezes mesmo transformada em seu inverso, e o sujeito passa a incorporar a culpa pela infâmia sofrida,

como se merecesse ser punido pelo simples fato de ser quem é, de constituir uma singularidade. No

caso dos racismos, pelo fato de que sua existência implica uma diferença indelével frente aos ideais

compartilhados por aqueles que lhe impõem a segregação.

Chamamos o efeito do trauma social ou político de desautorização porque, como indica Ferenczi

(1933/1992) o pior em uma situação de aviltamento da cidadania de alguém não é ter sido humilhado ou

espancado, mas deparar-se com uma versão “oficial” dos fatos que pretende que nada de excepcional

ocorreu, que nenhum ato de violência contra a integridade psíquica ou física de alguém foi cometido.

Ferenczi (1933/1992) utiliza o termo alemão Verleugnung para se referir a essa deformação dos fatos,

correntemente traduzido por “negação”, “descrédito” ou “desmentido”. Sugerimos como tradução

“desautorização”, uma vez que o que está em jogo é, efetivamente, a desapropriação subjetiva imposta ao

sujeito em estado de vulnerabilidade pelo encontro traumático com aqueles que detêm o poder de fato

ou de direito. Em português, a palavra “desautorização”, remetida a sua etimologia, permite-nos ilustrar

que, na situação traumática, o sujeito é destituído daquilo que lhe é mais próprio (Auto, em grego, significa

“de si mesmo”), impondo, como consequências, a perda da convicção em sua percepção dos fatos, que

possibilita que o traumatizado se identifique com seu próprio agressor e com os valores hegemônicos de

determinada cultura, bem como a anestesia da afetividade, que oblitera qualquer pensamento crítico.

Nos casos em que um trabalho psíquico sobre a experiência traumática pode seguir um novo curso, como

o de Carolina com a sua escrita, as condições de possibilidade para o pensamento se reestabelecem, e, no

sentido indicado por Freud em 1914, o efeito produzido é perlaborador (Durcharbeiten). Aqui, trata-se de

reintroduzir a sua dimensão ab-reativa, na qual afeto e linguagem se reintegram, colocando em ato (de

escrita) um pensamento que inclui, agora, uma posição frente ao Outro.

É importante notar que a negação da experiência do racismo e da fome em nossa cultura nos habilita a

colocá-las no rol das experiências-tabu, como já indicado pelo médico Josué de Castro nos idos dos anos

1940. Na importante leitura que ele faz do texto freudiano Totem e tabu (Freud, 1913/1984), aponta

uma relação entre a ordem do silêncio, associada ao tabu em falar sobre determinadas experiências (no

caso mais particular por ele analisado, a fome), e a perda humana da dignidade moral. Sua estratégia

de pensamento nos faz indagar sobre os destinos da culpa nas raízes do Brasil. Na ausência da culpa

do dominador, aquele que sofreu a dominação envergonha-se. Muito curiosamente, como sinalizou

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152Octavio Sousa (1994), a estratégia narrativa e subjetiva do colonizador resvala para o exotismo, diríamos,

instaurando a linguagem da paixão; em consequência, um dos avatares da passividade sofrida e,

simultaneamente, uma forma de subjetivação dessa passividade, é a vergonha. Podemos nos aproximar

aqui da proposição de Ferenczi (1933/1992) sobre os destinos da culpa do adulto, propondo a vergonha

como seu correlato.

Em sua proposição sobre esse afeto político, o filósofo italiano Giorgio Agamben, inspirado pela tese de

Levinas (1935 apud Agamben, 1996), sugere que, quando ficamos entregues a algo de que não conseguimos

nos desfazer, por exemplo, o amor, a nudez, as nossas necessidades fisiológicas, a vergonha do sujeito

não tem outro conteúdo senão a própria dessubjetivação, convertendo-se em testemunho do próprio

desconcerto. Todavia, a vergonha, paradoxalmente, é dessubjetivação e, simultaneamente, a afirmação de

uma posição do sujeito no limite de sua dignidade e do respeito de si. Neste sentido último, essa posição é

um chamado à denúncia e à crítica, e, aqui, a melancolia resignada transforma-se em lucidez.

Nesse sentido político do trauma e da desautorização, é ilustrativo reconhecer a crítica recorrente

de Carolina aos políticos da sua época e àqueles que só vêm à favela em época de eleições. Porém, o

que é mais revelador, ainda que não exatamente surpreendente, a partir do que vimos, é ler acerca da

reprovação dos seus vizinhos de favela à sua escrita, como se eles mesmos perpetuassem a interdição

da denúncia e do pensamento crítico a alguém “preto” e “miserável” como eles, perenizando a opressão a

que eram submetidos. Vejamos as seguintes passagens:

Sentei ao sol para escrever. A filha da Silvia, uma menina de seis anos, passava e dizia:

- Está escrevendo, negra fidida! (Jesus, 2014, p. 26).

1 de julho... Eu percebo que se este Diário for publicado vai maguar muita gente. Tem

pessoa que quando me vê passar saem da janela ou fecham as portas. Estes gestos

não me ofendem. Eu até gosto porque não preciso parar para conversar (Jesus, 2014,

p.78).

Uma vez que seu texto configura um autêntico testemunho da segregação racista, da opressão policial

e social e da indignidade existencial a que os moradores da favela do Canindé – “quarto de despejo”,

“rebotalho”, “lixo” da cidade de São Paulo (Jesus, 2014, p. 37) – eram submetidos pelos poderes políticos

daquele que é admirado por ser nosso grande, rico e poderoso Estado, sustentamos o argumento de que

a escrita de Carolina deve ser incluída na categoria da literatura de testemunho. Mais que isso, seu Diário

testemunha a desautorização da condição dos seus moradores de nomear a humilhação a que eram

submetidos.

Não deixa de ser profética a escolha do nome “marginal” para a via que foi construída às custas da remoção

da população da favela do Canindé e da destruição dos seus barracos. Cabe a nós que estamos aqui

reunidos oferecer uma escuta sensível, com tudo o que isso implica, para que seu testemunho, que parece

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153ser cada vez mais atual, não seja desautorizado. Mas, para isso, é preciso combater a tendência defensiva à

surdez com que o humano, muitas vezes, torna inaudível o grito de horror do sujeito traumatizado.

A FOME E O AMARELO

O jornalista Audálio Dantas, no prefácio a Quarto de despejo (Jesus, 2014), escreve: “Carolina viu a cor

da fome – a Amarela”. De fato, a fome e a comida ocupam lugar de destaque no Diário. Se hoje se fala

tanto em comida nos meios culturais, a ponto de um jornal como Folha de São Paulo criar um caderno

específico de culinária, e vários canais de televisão por assinatura dedicarem programas aos masterchefs,

celebridades da nossa contemporaneidade, no livro de Carolina lemos sobre pão, manteiga, arroz e

feijão, salsichas, sopa de osso e banha de porco... e cachaça, convém não esquecer (ainda mais estando

em Minas Gerais!). Ali a comida é, na maior parte do tempo, reduzida à sua função básica de nutrição e

de sobrevivência – como, aliás, em Primo Levi guardando, uma vez mais, as importantes diferenças entre

suas condições de vida. Curioso pensar que, não há tanto tempo, a fome foi a principal plataforma política

da campanha que elegeu Lula presidente pela primeira vez: “Fome zero”. Em tom profético, Carolina

propunha, inclusive, que “o Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também

é professora” (Jesus, 2014, p.29). E não é que foi mesmo?! Na Índia o número de balanças colocadas em

lugares públicos, nas quais se deposita uma moeda para saber quanto se está pesando, ao mesmo tempo

em que se recebe um papelzinho que permite conhecer a sorte que lhe está destinada, nos surpreende

pela associação entre peso e fortuna. Se o comum, em geral, é que as pessoas se pesem com frequência

para saber quanto engordam os indianos, pelo contrário, se pesam para se alegrar pelo fato de que

naquela semana não haviam emagrecido...2

Voltando à cor da fome, encontramos alguns sentidos para o fato de ela ser a amarela. O primeiro deles

se refere ao efeito da fome sobre os sentidos da pessoa privada de alimentos. Lemos em Carolina: “a

tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos

faz tremer” (Jesus, 2014, p. 44). E, mais adiante: “resolvi tomar uma media e comprar um pão. Que efeito

surpreendente faz a comida em nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves

tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos” (Jesus, 2014, p. 44). Uma outra

passagem indica que a fome colore, com tonalidade sádica, suas vítimas. Carolina relata:

2 Não conhecemos a fome, é verdade. Mas nossas gerações antepassadas sim, temos como exemplo os judeus que viveram

escondidos nas florestas da Polônia durante a Segunda Guerra. O curioso é o quanto essa experiência traumática vivida por uma

geração pôde ser elidida, ao menos conscientemente, já na geração seguinte! Claro, como psicanalistas, uma pergunta que sempre

se faz é o que resta dessa fome, dessa experiência.

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154tem um mocinho que mora na Rua do Porto. É amarelo e magro. Parece um esqueleto

ambulante. A mãe lhe obriga a ficar só na cama, porque ele é doente e cança atoa. Ele

sai com a mãe só para pedir esmola, porque seu aspecto comove. Aquele filho amarelo

é o seu ganha pão. (Jesus, 2014, p.137)

Gostaríamos de propor um sentido a mais, que não está explicitado no Diário. Trata-se do sorriso amarelo

provocado pela fome e pela pobreza em uma mãe que não tem o que dar de comer, nem o que transmitir

em termos de vitalidade erótica aos seus filhos. O sorriso amarelo, de acordo com a expressão popular, é

o sorriso constrangido pela vergonha.

Em uma passagem do dia 30 de julho, Carolina relata a alegria da sua filha Vera ao ganhar, finalmente, os

sapatos dos quais precisava: “fiquei olhando minha filha sorrir, porque eu já não sei sorrir” (Jesus, 2014,

p. 102). Dias depois, Carolina faz uma refeição na casa de dona Nenê, imagina que suas crianças teriam

adorado a comida e pensa “fiquei com dó dos meus filhos” (Jesus, 2014, p. 106). Em 18 de agosto, leva

Vera para catar coisas no lixo, e comenta: “eu tenho tanto dó da minha filha” (Jesus, 2014, p. 113). Estão

presentes nessas passagens tanto o dó, ou a dor, em relação à insuficiência frente aos filhos, quanto os

obstáculos à expressão de um sorriso de alegria autêntica.

Como dito anteriormente, Josué de Castro apontou um tabu social de se falar da experiência da fome,

que relega os sofrimentos por ela provocados ao silêncio (Castro, 2004). Já Vicent Gualejac (2008),

em seu estudo sobre as fontes da vergonha, destaca o modo segundo o qual a exposição a violências

humilhantes – nas quais inclui a fome e a pobreza – provoca nos sujeitos o afeto da vergonha. Claude

Janin (2008) propõe pensarmos a vergonha como expressão de um tempo originário de passividade,

tempo durante o qual a autoconservação está inteiramente ligada à vicariância do objeto, ou seja, aos

modos como o objeto que atende às necessidades do bebê se movimenta, introduzindo sua pulsionalidade

e, acrescentaríamos, sua transicionalidade. A vergonha seria, portanto, uma das heranças do narcisismo

primário, resto subjetivo de uma transmutação da aflição ou da incapacidade.

Em um trabalho em uma instituição de Fortaleza que se dedica ao atendimento de crianças

diagnosticadas com desnutrição e marcadas pela experiência de privação do alimento, psicanalistas

perceberam que as crianças apresentavam também atraso na fala e comprometimento na experiência

do brincar. Em relação às mães, de forma literal, a percepção era de “cansaço, silêncio, rostos vazios,

rígidos, desvitalizados em suas aparências, e narrativas estancadas por afetos que fizeram supor – dentro

de um quadro mais geral de impassibilidade – a presença de uma vergonha de si mesmas” (Martins &

Kupermann, s/d).

Sabemos, a partir das indicações do psicanalista e pediatra britânico Winnicott (1975), a importância de o

rosto da mãe refletir para o bebê e a criança pequena o élan vital que permite que a criança reconheça a

si própria e o “seguir sendo”3 – a potência do seu gesto criador –, no encontro com esse Outro primordial.

Se, em contrapartida, o rosto vivo da mãe se oculta, revelando apenas o constrangimento da dor ou da

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155vergonha, ele fracassa em função de espelho, impedindo a criança de se sentir reconhecida como parte

da comunidade a que deveria pertencer. Assim, amarelo é também o rosto da mãe morta proposta por

André Green (1998). A imagem sugerida pelo psicanalista nos remete à deserção da mãe que quebra

um fluxo de vivacidade recém-instaurado pelo transbordamento do seu próprio abandono. Muitos dos

sintomas observados nessa instituição eram menos produto da escassez concreta de alimentos do que

efeito da absoluta infelicidade experimentada pelas mães, abandonadas e desprovidas de laços afetivos

que pudessem ajudá-las a suportar a densidade do seu desamparo.

Recorremos, uma vez mais, a uma passagem relatada por Carolina que ilustra de maneira eloquente como

a vergonha se apodera não apenas da alma, mas também do corpo dos sujeitos atingidos na sua dignidade

pela violência da humilhação: “chegaram novas pessoas para a favela. Estão esfarrapadas, andar curvado

e olhos fixos no solo como se pensasse na sua desdita por residir num lugar sem atração” (Jesus, 2014,

p. 47). Difícil não insistir na associação com o relato de Primo Levi acerca dos chamados “muçulmanos”:

os prisioneiros que, perambulando como sombras pelo Campo de Concentração expressavam por meio

da sua postura corporal e do seu silêncio ensurdecedor a desistência de viver. O aspecto dos novos

chegantes descrito por Carolina, que parece expressar o total abatimento do desejo e a dessubjetivação,

bem como esconder o rosto envergonhado, fez-nos pensar, parafraseando-a, que a cor da vergonha

também é a amarela; ou ainda, como propôs Agamben (2008), a vergonha é afeto que coloca em cena a

subjetivação e a dessubjetivação.

RIR DO RACISMO?

Para concluir os comentários sobre Quarto de despejo: diário de uma favelada, colocamos uma última

questão: é possível rir da experiência de segregação provocada pelo racismo?

Quando falamos em rir do racismo não pretendemos, em momento algum, banalizá-lo, ou sugerir

que não se trata de um problema da maior seriedade que, aliás, se impõe como um dos maiores

obstáculos à criação de um laço social justo e saudável em nossa sociedade. Pois é isso, exatamente,

que o racismo é: herança da nossa cultura escravagista, fonte maior da segregação social em nosso

país e, consequentemente, da desigualdade social obscena à qual nos habituamos a assistir, na maior

parte das vezes nos sentindo impotentes para transformá-la. O humor, ao contrário, surge como uma

das ferramentas oferecidas por nosso aparelho psíquico para evitar que, conforme escreve Calvino

(1997,p.24), “o peso do real nos esmague”; para evitar que aqueles que sofrem segregação – seja

3 Tradução sugerida por Lucas Bulamah para a expressão “going on being”, utilizada por Winnicott.

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156pela cor da sua pele, por sua etnia religiosa ou por sua escolha de gênero, para citar alguns exemplos

bastante frequentes entre nós – sejam abatidos pela sombra que recai sobre a possibilidade de afirmar

sua cidadania, de desejar de modo pulsante e de investir em utopias capazes de inspirar a criação de

comunidades de destino e de ações transformadoras.

O humor, que Freud considerava ser a maior virtude do psiquismo humano frente ao trágico da

existência, é, justamente, a possibilidade de evitar a mortificação melancólica nas situações nas quais

o indivíduo tenderia a se identificar com aquele ou aquilo que o oprime, diminuindo sua autoestima

e sua dignidade humana. Bastante utilizado por minorias ou por comunidades que sofreram e

sofrem segregação e perseguição, o humor é a capacidade de rir de si mesmo e, assim, defender-se

antecipadamente das agressões oriundas do ambiente exterior. Rir de si mesmo, porém, convém

ressaltar, não é se autodenegrir (palavra que, aliás, traz a negritude em sua raiz). Rir de si mesmo, de

acordo com Freud, é zombar de toda e qualquer pretensão de onipotência, a nossa e a alheia, reiterando

a falibilidade e a finitude humanas, desinflando, assim, a arrogância dos que se pretendem superiores.

Por outro lado, é uma forma de extrair prazer – fazendo graça – nos momentos em que se esperaria o

desespero, o que vitaliza o sujeito, afirmando, mesmo no infortúnio, sua potência desejante e criadora.

Vejamos algumas passagens nas quais Carolina tem sucesso em rir – e nos fazer rir – da fome, sua maior

fonte de sofrimento: “vi os homens jogar sacos de arroz dentro do rio. Bacalhau, queijo, doces. Fiquei

com inveja dos peixes que não trabalham e passam bem” (Jesus, 2014, p. 60). E, ainda: “os favelados aos

poucos estão convencendo-se que para viver precisam imitar os corvos” (Jesus, 2014, p. 41). No que se

refere a sua escrita, o estilo humorístico ao qual muitas vezes recorre tem sucesso em evitar recair na

vitimização que, na maior parte das vezes desperta apenas o desprezo alheio, mantendo, assim, vivo o

nosso interesse em seu testemunho. Em outras passagens, o humor é utilizado justamente para combater

a opressão racista, elevando nossa estima por ela e causando verdadeira admiração, apesar da condição

miserável na qual Carolina se encontrava. Um exemplo: “quando eu fui catar papel encontrei um preto.

Estava rasgado e sujo que dava pena. Nos seus trajes rotos ele podia representar-se como diretor do

sindicato dos miseráveis” (Jesus, 2014, p. 54).

Como conclusão, recorremos a mais uma passagem do Diário que faz rir e convoca a abrir bastante bem

os olhos para a escrita e as orelhas para a escuta das palavras densas de Carolina: “fico pensando na

desventura das crianças que desde pequeno lamenta sua condição no mundo. Dizem que a Princesa

Margareth da Inglaterra tem desgosto de ser princesa. São os dilemas da vida” (Jesus, 2014, p. 104).

Freud (1927/1984), em seu maior elogio, afirma que o humor não é resignado, mas sim teimoso e,

mesmo, rebelde. Com humor, Carolina se eleva à condição de rainha dos miseráveis, conquistando a voz

necessária para nos sensibilizar para o seu testemunho, que traz a denúncia daquilo que há de mais podre

em nosso belo e ilusório reino.

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autoria

resumo

JACQUELINE OLIVEIRA LEÃO

Professora da Rede de Ensino da Prefeitura de Belo Horizonte. Doutora em Literatura

Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Pós-Doutora em Estudos

Literários pela UFMG.

CONTATO: [email protected]

FÁBIO ROBERTO RODRIGUES BELO

Professor de Psicanálise na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestre em Estudos

Psicanalíticos pela UFMG. Doutor em Estudos Literários pela UFMG.

CONTATO: [email protected]

Através deste estudo propõe-se a travar um diálogo entre Literatura e Psicanálise, por meio da

obra ficcional, Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus. O recorte a

ser dado à análise centra-se, sobretudo, nas questões teórico-literárias que se acercam da escrita

do eu, especificamente, dos escritos nomeados por diário e autobiografia, e o desdobramento da

leitura de tais produções na perspectiva psicanalítica, mais precisamente sobre a esteira teórica

de Sigmund Freud. Carolina Maria de Jesus recorre ao processo de escrita, aos registros de sua

vida sofrida na favela como forma de organizar próprio pulsional, ou seja, o processo de escrever

o diário em si, de relatar a si mesma constitui-se na própria estruturação narcísica da autora: a

fantasia de ser reconhecida, a fantasia de ser lida pelo outro e por ela mesma. Se o conceito de

subjetividade, neste estudo, é compreendido na relação do sujeito com a alteridade, subjetividade

como marca do outro sobre o próprio sujeito, logo a escrita de Quarto de despejo: diário de uma

favelada é um recurso de simbolização, que reconstrói a subjetividade da diarista, instaurando e

instituindo o seu próprio narcisismo. Do narcisismo de Carolina Maria de Jesus, emergem suas

fantasias, sobretudo, aquelas advindas do seu processo criativo como escritora, o que, por outro

lado, insurge, no discurso literário, como ato performativo de escrita do eu.

PALAVRAS-CHAVE: literatura, psicanálise, Carolina Maria de Jesus, narcisismo, fantasia.

Relatar a si mesmo: da escrita do Eu como performance literária e inscrição narcísica em Quarto de despejo – diário de uma favelada,de Carolina Maria de Jesus

SUMÁRIO

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160Tendo como pano de fundo o cotidiano miserável da Favela do Canindé, favela que se expandia às

margens do Rio Tietê, na velha São Paulo dos anos 50, Quarto de despejo: diário de uma favelada tem

a fome como protagonista das páginas que compreendem o diário (que se pretende real), escrito por

Carolina Maria de Jesus. Ao longo dos longos relatos da autora, situados na década de 1950, mais

precisamente, no período de 15 de julho de 1955 a 01 de janeiro de 1960 (o ano de 1958 adquire maior

relevo no plano de escrita do texto), o leitor se depara com uma narrativa densa, sofrida, marcadamente

rotineira na sequência do tempo narrativo e, rotineiramente, marcada pela miséria, angústia e pelas

dificuldades encontradas por Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra e catadora de papel, e seus três

filhos: João, José Carlos e Vera.

Se comumente a expressão “quarto de despejo” refere-se ao cômodo isolado da residência, onde se

depositam os pertences de menor valor, as coisas que podem ser misturadas as outras coisas alocadas

no mesmo espaço, as coisas esquecidas e lembradas em ocasião útil específica, o lugar menos acolhedor,

menos valorizado da casa; na dimensão social, a expressão, metaforicamente, despeja todo o seu sentido

sobre os despejados das cenas urbanas, sobre aqueles que têm pertencimento na própria cidade, mas

são, paradoxalmente, esquecidos por ela. O “quarto de despejo” citadino é o lugar daqueles que não se

querem vistos pelo olhar da minoria, daqueles que são excluídos socialmente, daqueles que mendigam

nos semáforos, nas portas do comércio, nas escadas das igrejas, ou simplesmente, daqueles que têm, nas

ruas e calçadas, a sua moradia, daqueles que se misturam aos restos dos lixos da cidade.

Embora a problemática social ganhe dimensão extremamente relevante em Quarto de despejo: diário

de uma favelada, aliás, é a vida na favela que o constitui, no escopo, aqui, dimensionado, esse diário será

abordado enquanto construção literária, obra ficcional que propicia à Psicanálise discutir questões

referentes ao próprio processo de criação literária. Se Carolina Maria de Jesus recorre ao processo

de escrita, aos registros de sua vida sofrida na favela como maneira de organizar próprio pulsional, o

processo de escrever o diário em si, de relatar a si mesma, constitui-se na própria estruturação narcísica

da autora: a escrita do diário em si, desdobramento do gesto de relatar a si mesma, inscreve-se no

processo de construção subjetiva, e o narcisismo da autora redimensiona a sua própria fantasia, fantasia

de ser reconhecida e lida pelo outro (e por si mesma).

Em seu diário, Carolina Maria de Jesus projeta a si mesma na dimensão textual, como se, cotidianamente,

pintasse o seu autorretrato. Isso dá ao leitor a possibilidade interpretá-la e recriá-la a partir das cenas e

representações por ela sugeridas (inventadas, fabricadas): mais uma vez, um retorno à subjetividade e ao

narcisismo: Carolina se vê a si mesma através das linhas do diário (sejam os manuscritos rascunhados até

o texto já finalizado e publicado) e se deixa ser vista pelo olhar do outro, do leitor, da alteridade (e dela

mesma enquanto leitora de si mesma).

Embora este estudo se debruce sobre uma obra literária, Quarto de despejo: diário de uma favelada,

interessante é perceber como a autora se inscreve dentro de uma perspectiva sócio-histórica,

construindo-se numa relação dialética com o outro. O outro, no diário, é a contraparte da escritura, é o eu

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161implícito que, inegavelmente, constitui a imagem da própria diarista, isto é, a visão que ela tem de si e da

alteridade. Veja-se que desde o subtítulo da obra (que já demarca certo pertencimento –“diário de uma

favelada”), até a construção identitária da autora (o adjetivo favelada – de conotação pejorativa –, por si

só, já é também uma construção subjetiva do eu), fica evidente que Carolina Maria de Jesus escreve não

somente para ser lida, atestando a sua rotina na favela, como também ser construída enquanto corpo que

relata a si mesmo, ato performativo de estruturação narcísica. Contudo, importante dizer, o relato feito

por Carolina Maria de Jesus adquire uma transparência, apenas, e, sobretudo, parcial de si mesma.

Se “Há de existir alguem que lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira! Mas, as miserias são reais.”

(Jesus, 1995, p. 41), é essa leitura, esse relato do eu que permite, ao mesmo tempo, que o outro dê corpo

as recordações da autora, como também demarque a falta de inteireza da história do corpo da própria

Carolina Maria de Jesus. Isso equivale a dizer: se a autora se vê como favelada, essa visão do eu já carrega

em si a história de um corpo, e o oposto do que é relatado, por ela, traça, por meio de um processo

especular de se perceber a si mesma e o outro, o retrato daqueles que não são favelados, embora o relato

construído no corpo do diário garanta somente a transparência parcial do eu, tanto do eu autoral quanto

dos “eus” construídos ao longo do texto.

Ser capaz de escrever o diário é a pré-condição para que o relato de Carolina Maria de Jesus aconteça

e ganhe a dimensão sócio-histórica que a diarista pretende. Por outro lado, também é necessário que a

autora reconheça a si mesma enquanto eu que tem um corpo – corpo vulnerável ao jogo que o próprio

existir encerra –, e perceba as dimensões e incompletudes que o próprio relato de si também encerra:

relatar o eu dado a qualquer corpo é apenas reconstruir outra instância de eu, instância, parcialmente,

transparente, inscrita no seu próprio ato de relatar a si mesmo.

Relatar a si mesmo é uma ação performativa e dialética, que dá ao eu atarefa de se pintar, de se criar

(e até mesmo de se ficcionalizar) na sua própria existência. Mas, mediante o relato de si mesmo, surge,

em contrapartida, a possibilidade do eu (e do outro) de agir sobre a matéria relatada por meio de

interpelações e de questionamentos de si (e do outro). Parafraseando Judith Butler (2015), a partir do

momento em que o eu relata a si mesmo, por resposta ao que se supõe ser o si mesmo, o eu se torna

implicado numa relação dialética com o outro, porque o outro se interpõe diante de quem se fala e do

que se fala. Relatar a si mesmo é possibilitar uma verdade subjetiva, fragilizada e deslizante da instância

performática que se assume como eu.

Se o gesto de relatar a si mesmo cria um sujeito reflexivo diante do próprio eu, em Quarto de despejo: diário

de uma favelada, é a matéria relatada que leva o outro a interpelar e interpretar o eu criado por Carolina

Maria de Jesus. Nesse sentido, a autoria do diário torna-se uma performance, que, paradoxalmente,

revela a pulsão narcísica da autora de relatar a si mesma, de se representar através da escrita. Vale dizer

que, embora tente reconstruir-se numa perspectiva crítica e ampla de sujeito sócio-histórico, Carolina

Maria de Jesus, no diário, é apenas uma construção ficcional, mas a sua escrita também revela um eu que

acredita ser o que se está relatando, eu que se move e se constrói intersubjetivamente no discurso.

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162Carolina Maria de Jesus recria-se no âmbito de uma estética crítica (de si e do que o outro percebe de

si), o que lhe garante certo empoderamento, ou seja, a autora tem o poder de ser vista, no relato que faz,

como sujeito relacional, consciente e fundante de si mesma. Contudo, se o ato de relatar a si mesmo está

recortado pelos limites do inconsciente, conforme Judith Butler (2015, p. 33), o eu sempre fará um relato

de si para o outro, e seja esse relato inventado, seja esse relato pretensamente real, existente, é, ao outro,

que cabe a tarefa de decodificar, interpelar, o relato que o sujeito faz de si mesmo.

Relatar a si mesmo é colocar o sujeito numa perspectiva sócio-histórica, delimitando a sua singularidade

a partir de como o eu mesmo é contado para o outro, pois há uma espécie de engendramento entre o eu

e a sua constituição social, entre a norma e a suposta verdade pelo eu relatada. Dessa forma, é que se

constitui o processo reflexivo-crítico que governa a subjetivação do eu, a relação do eu com a verdade

de si mesmo quando se propõe a relatar sobre si mesmo. Em contrapartida, institui-se o reconhecimento

que o outro faz do eu relatado, do eu que, de fato, é; do eu que se pode ser e do eu reconhecido como tal.

Contudo, se a si se narra para o outro, este outro está implicado, não somente como sujeito interno da

narrativa, mas como sujeito que a lê e a interpreta, e esta é uma condição irredutível para o sujeito que

se corporifica no discurso como outro. Logo, no diário de Carolina Maria de Jesus, o corpo, que ganha

forma e relato (ficcionalizado ou não), se constitui na própria escrita do diário, nas interpelações e

questionamentos que a autora faz de si mesma ao mostrar-se, parcialmente transparente, para aquele

que a lê enquanto escritura.

Se o corpo se institui enquanto referência de um eu, eu a quem se faz apenas uma alusão, esse corpo

não pode ser narrado precisamente, pois há histórias que não são captadas pelo corpo a que a narrativa

se refere. O eu, em Quarto de despejo: diário de uma favelada, existe apenas como condição narrativa,

condição que não é inteira, porque sempre é reconstruída na tematização do próprio eu, possibilitado

pela escrita. Logo, o diário cria e revela várias faces para uma mesma Carolina: escritora, favelada, mãe,

lavadeira, catadora de papel; mulher que demanda sexo e sexo com vários parceiros, mulher forte,

sonhadora, debochada, todas essas Carolinas motivadas pela fantasia da própria autora – de si vê (e se

inventar) a si mesma – e pela dimensão que o próprio narcisismo a leva a se perceber, a se efetivar e a

se inscrever nas páginas do diário. Tudo isso, mais uma vez, processo subjetivo, implicado no desejo, na

pessoalidade da autora e daquilo que a instaura como personagem protagonista de suas representações

literárias: de si e do que ela acredita representar a si e por si mesma.

Outros personagens e cenas interagem com o mundo representado e as representações de Carolina

Maria de Jesus: o próprio universo da favela; os seus habitantes, as pessoas com suas angústias e sonhos,

com os seus mundos particulares, porém todos cercados pela fome e a miséria; os filhos da autora, cada

qual com seus mundos íntimos e desejos particulares; as pessoas que são externas à favela, aquelas que,

paradoxalmente, atestam a existência dos marginas, dos à margem da sociedade, nos guetos voluntários

do Canindé.

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163Nesse conjunto de relações identitárias para além da própria identidade de Carolina Maria de Jesus, tudo

que se cria nas páginas do diário parece atestar o próprio modo de se vê da autora, seja este advindo de

sua performance literária ou de sua estruturação narcísica. Se o conceito de subjetividade está implicado

na relação do sujeito com a alteridade, o eu criado em Quarto de despejo: diário de uma favelada carrega

em si a marca do outro sobre a própria maneira de Carolina se inscrever no texto, ou seja, se a diarista

se inscreve dentro de uma perspectiva sócio-histórica, em contrapartida, ela também se constrói numa

relação dialética com o outro; outro que, no diário, é a contraparte da escritura, é o eu implícito que,

inegavelmente, constitui a imagem da diarista e a imagem que a diarista tem de si (e do outro). Vale dizer

que ler e escrever constituem os dois lados de uma mesma moeda.

Por fim, se, no passado, antes de morrer, não na miséria, mas ainda, dentro de uma realidade de muitas

dificuldades financeiras, por algum tempo, através das páginas de seu diário já publicado, Carolina

Maria de Jesus também foi criada, recriada e lida por ela mesma, então, pode-se dizer que a autora

gozou, vicariamente, do prazer instituído por sua própria subjetividade. Além disso, da criatividade de

suas fantasias como escritora, o relato de si mesma ganhou corpo, instaurou e instituiu o seu próprio

narcisismo. Desse narcisismo (por que não dizer?), emergiu sua performance literária, que se presentifica

nas páginas de Quarto de despejo: diário de uma favelada.

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164REFERÊNCIAS

Butler, J. (2015). Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. (Rogério Bettoni, trad.). Belo Horizonte:

Autêntica Editora.

Jesus, C. M. de. (1995). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática.

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autoria

resumo

DIOGO ANDRADE DE LIMA

Bacharel em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

Publicado em 1935, Salgueiro, de Lúcio Cardoso, retrata a vida miserável de negros e

mulatos que habitam o morro carioca. Analisar-se-á aqui a gênese do romance Salgueiro,

especificamente no que concerne às motivações e interesses de Lúcio, pensando a sua relação

com a escrita e com as questões sociais. Em seguida, expor-se-á o modo de representação do

negro em sua segunda obra, apontando uma reiteração do processo de tipização do negro.

PALAVRAS-CHAVE: Lúcio Cardoso, Salgueiro, literatura brasileira.

Negras Rosas do Morro: uma reflexão sobre as vidas e corpos que habitam o Salgueiro, de Lúcio Cardoso

SUMÁRIO

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166INTRODUÇÃO

Ao estrear na literatura em 1934 com a publicação de Maleita, Lúcio Cardoso é recebido positivamente

pela crítica, sendo elogiado por figuras importantes como Eloy Pontes, Jayme de Barros e Agripino

Grieco. Apresenta-se como uma das causas deste sucesso de recepção o fato de a obra conter

elementos que a tornam passível de ser enquadrada no denominado romance regionalista – popular

durante a década de 30, especialmente nos anos pós-revolução. Com o golpe de Estado e todas as

mudanças sociopolíticas dele decorrentes, ter-se-ia despertado nos brasileiros um maior interesse

por aquilo concernente à nação, e este interesse teria se refletido inclusive na produção intelectual e

nos mercados editorais (Bueno, 2006). Os críticos, por sua vez, passam a supervalorizar a inclusão de

aspectos da realidade do país nas obras literárias e, consequentemente, inferiorizar as obras que não

adotam este tipo de engajamento. Os intelectuais assumiam como fundamental o conhecimento da

realidade (Oliveira, 1981), a apreensão do que realmente era o Brasil em suas mais diversas nuances.

Assim sendo, desconsiderando alguns apontamentos negativos como o de Jorge Amado que condenou

Maleita enquanto um romance catolicizante, ou o de Octávio de Faria que critica a escassa estruturação

psicológica das personagens e a mera narração dos fatos (Bueno, 2006), dir-se-ia que a história da

fundação da cidade de Pirapora, enquanto narrativa regionalista inspirada em parte da vida do pai de

Lúcio, teria projetado o escritor na cena literária nacional vigente.

O segundo romance de Lúcio Cardoso, Salgueiro, é publicado no ano seguinte à estreia do autor e,

de modo semelhante à obra anterior, é bem recebido pela crítica, apesar de ocorrerem divergências

decorrentes de posturas políticas. Os intelectuais de ideologia esquerdista teriam enaltecido a

representação do proletário e suas dificuldades, enquanto intelectuais de “direita” – contra este tipo de

abordagem – voltar-se-iam positivamente para aqueles personagens que, ao contrário de desejarem

alterar a realidade com a qual se deparavam, procuravam uma justificação divina para ela (Cardoso,

2010). Se em Maleita já eram encontrados alguns aspectos destoantes daquilo que caracteriza

propriamente a escrita regionalista, em Salgueiro estes aspectos se tornam mais intensos. A história que

se desenvolve a partir de uma narrativa fictícia da vida de habitantes do morro carioca não se limita à

mera descrição linear de fatos, mas explora o mundo interno das personagens, expondo a complexa

disposição do subconsciente através da descrição dos mais diversos sentimentos experienciados

pelos moradores da periferia. Octávio de Faria, que inicialmente havia criticado a superficialidade

da estruturação psicológica em Maleita, encontra no Salgueiro a “excelência”, enquanto Jorge de Lima

considera o romance falso, criticando a inserção de Deus como possível solução para as deploráveis vidas

do morro (Bueno, 2006). Nota-se, porém, que apesar de já ser possível perceber um maior afastamento

da escrita regionalista em prol do desenvolvimento da escrita psicológica, os elementos de cunho

sociológico pareciam ainda se mostrar mais explícitos – ao menos para uma crítica que, como aponta

Cássia dos Santos (2001), se mostrava propensa a somar ao grupo dos cultuadores do “romance do

Nordeste” mais um aliado.

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167Aspectos de um realismo social em Salgueiro surgiam atrelados a uma densa exposição anímica, mas esta,

perante uma massiva produção de romances que buscavam documentar o Brasil, não era percebida

enquanto possuidora do peso e da importância que vem a adquirir em obras cardosianas posteriores.

Mario Carelli (1988), mesmo considerando o caráter simbólico do texto, afirma que Lúcio Cardoso

teria se utilizado de todos os elementos que constituem um romance social ou “proletário”. Como

características deste gênero encontradas no segundo trabalho do autor mineiro, Carelli (1988) aponta

a “miséria, a segregação, a doença, o isolamento, a marginalidade, a prostituição, a violência” (p. 157),

bem como a escolha de um ambiente periférico como o morro carioca enquanto cenário para a história.

Percebe-se então uma estrutura textual que se apresenta dual: romance psicológico ou proletário?

Bueno (2006) parece acreditar que Salgueiro seria em essência um romance psicológico, porém suas

bases poderiam ser utilizadas em um romance social. Correlacionando o pensamento de Bueno ao de

Carelli, poder-se-ia dizer que todos os elementos listados por este último seriam produtos de “um mundo

sobre o qual agissem criaturas sem Deus” e, assim sendo, o elemento social seria reduzido a mero meio

que possibilitasse a lida com questões que se enquadrassem em um âmbito puramente existencial.

Há, contudo, outros pesquisadores – como Sousa (2008) – que afirmam existir uma função de denúncia

social na segunda obra de Lúcio Cardoso, e que o texto apresentaria questionamentos e proposições

de análises críticas e reflexivas sobre a sociedade e suas estruturas morais, bem como de suas tensões

internas. Aproximando-se deste viés, diz Carelli (1988): “a segregação racial segundo o grau de coloração

da pele é finalmente observada numa época de exaltação da miscigenação cordial” (p.157). A questão

étnico-racial adquire destaque na obra: negras a cantar, negras a lavar roupas, negras a buscar água,

negras a se prostituirem, negras a serem defloradas, negras a serem espancadas, negras impetuosas,

negras voluptuosas, negras vagabundas, negras a invejar mulatas, negros que roubam, negros que

matam, negros que espancam, negros que trabalham, negros miseráveis, negros musculosos, negros

a chalacear mulatos – corpos que habitam o morro do Salgueiro, vidas deploráveis e desgraçadas

a serem narradas.

Considerando-se a estrutura aparentemente dual de Salgueiro, buscar-se-á em um primeiro momento

compreender a gênese da obra, voltando-se para a relação do autor com o romance e com a temática

social, especificamente no que concerne ao negro, de modo a apontar uma tendência de Lúcio Cardoso

contrária à própria gênese do romance proletário. A partir daí, expor-se-á e avaliar-se-á a representação

do negro no texto em questão, para, finalmente, tomando-se as narrativas psicológicas como norteadoras,

refletir a postura das personagens perante a sua condição em uma possível passagem da mera resignação

à autoconsciência e uma busca pela libertação, mesmo que através de um Deus.

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168LÚCIO CARDOSO, O ROMANCE SOCIAL E A QUESTÃO ÉTNICO-RACIAL

Em depoimento à Almeida Fischer – publicado em novembro de 1946 no suplemento Letras & Artes,

do jornal carioca A Manhã –, Lúcio Cardoso afirma ter começado a escrever romances aos onze anos, e

cita títulos como A Força e A Vida Impossível (Fischer, 1946). Além de indicar que Maleita, apesar de ser

o primeiro trabalho publicado, não foi a sua primeira obra escrita, Lúcio também aponta uma diferença

substancial entre estes primeiros textos e o romance de estreia, que teria sido feito em “completa

discordância com o que fizera até aquela época e de acordo com a crescente leitura de romances

modernos nacionais, como Cacau, Os Corumbas, Menino de Engenho, e outros” (Fischer, 1946, p. 10). Ao

ser questionado sobre a mudança de escrita após Salgueiro, Lúcio responde: “O caráter documentário

a priori dos meus primeiros livros não podia me ser útil para o que pretendia mais tarde” (Fischer, 1946,

p. 10). Nota-se, a partir destas declarações, que a elaboração das obras de juventude que vieram a ser

publicadas sofreu fortes influências do romance regionalista de 30. Apesar de nada ser dito sobre o

tipo de escrita utilizada nos títulos anteriores à Maleita, há alguns indícios que poderiam ser levados em

consideração, como os Poemas do Colégio Interno:

Nunca eu soubera o segredo da alegria alheia.

Ouvia os risos que enchiam o pátio de recreio

e sofria dessa dor sem nome de sentir a vida

muito mais cedo do que os outros sentem.

... Mas que estranha maldição tinha tombado nos meus ombros

para que só eu sentisse o frio das grandes árvores solitárias?

... Ó noites sem termo do colégio interno,

naufrago na hora em que os outros repousam,

pressentindo o carro que voa nas trevas,

vazio, vazio meu Deus,

levado pela mesma angústia, pela mesma dor,

pela loucura inexprimível que me desperta

e me faz arder como a chama nascida

dos misteriosos detritos que fecundam as águas mortas (Cardoso, 2011)

Correlacionando estes poemas a dados biográficos do autor, conclui-se que Lúcio faz referência ao

ano de 1924 quando, aos 11 anos, volta sozinho para Belo Horizonte e dá continuidade aos estudos no

Colégio Arnaldo, como interno. O período no qual Lúcio vivencia a reclusão em uma escola para rapazes

condiz à idade apontada por ele como início de sua escrita literária. Esta, se decorrente da inquietação

existencial, do isolamento, do vazio descrito nos Poemas do Colégio Interno, possivelmente se assemelharia

ao estilo dos romances psicológicos.

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169Algumas declarações de Lúcio acerca do romance surgem como dotadas de especial relevância neste

momento: “é um grito do homem contra tudo o que o aniquila. É um gemido da criatura que não ignora

a extensão exata do pecado, que mede toda a profundeza de sua queda” (Cardoso, 1996, p. 760). Esta

afirmação, bem como a seguinte, em muito se aproxima da leitura que Silva (2004) faz de Lúcio Cardoso

ao apontar o estado agônico enquanto gerador de sua obra. O que aniquila o homem é aquilo que o

afeta existencialmente, é o desterro, o abandono, a solidão, o conflito entre desejo e pecado, entre a

consciência livre e a moral provinciana. Lúcio Cardoso (1996) afirma a sua crença no romance, mas

aponta o que considera verdadeiro:

acredito apenas naquele [romance] que é feito com sangue, e não com o cérebro

unicamente, ou o caderninho de notas, no que foi criado com as vísceras, os ossos,

o corpo inteiro, o desespero e a alma doente do seu autor, do que foi feito como

se escarra sangue, contra a vontade e como quem lança à face dos homens uma

blasfêmia”. (p. 763).

Nota-se aqui um viés que parece se opor integralmente ao que é característico de uma escrita social, e

esta, quando contraposta à escrita dilacerada do romance psicológico cardosiano, transformar-se-ia em

algo superficial, praticamente irrelevante. O próprio autor admite: “É verdade que não creio no romance

sociológico” (Cardoso, 2012, p. 553). A essência da escrita de Lúcio Cardoso não reside no mundo

exterior, extraída dos objetos dos sentidos, enquanto realidade a ser narrada. Os problemas sociais,

como afirma, só o afetam de maneira indireta (Cardoso, 2012). A essência de sua escrita está nos abismos

da consciência, nas mais escuras regiões da psique humana, onde a política ou os problemas sociais são

concebidos como instrumentos de representação de um outro tipo de miséria ou decadência – aquela do

homem que se lança nas próprias trevas, conturbado por sua natureza pecadora, longe da graça divina,

condenado à própria humanidade.

A partir das considerações realizadas acima, pensa-se que o estilo inicial da criança Lúcio Cardoso é

deixado de lado – mesmo que de forma parcial –, sendo então substituído em Maleita e Salgueiro, onde

ocorre a inserção de elementos regionalistas ou sociais que se fazem presentes apenas por influências

advindas tanto das leituras de autores contemporâneos a Lúcio quanto do contexto sociopolítico que

influía sobre a cena literária.

Sabendo-se de uma inexistência em Lúcio de qualquer interesse especial no romance social, depara-se

com um questionamento acerca da representação do negro favelado em Salgueiro, que parece desprovida

de um significado maior. A visão do autor acerca da cultura africana herdada pelo povo brasileiro não

apenas consolida a ausência de um engajamento pessoal no que diz respeito às questões étnico-raciais, mas

aponta uma reprovação a essa cultura. Em várias passagens dos seus Diários, Lúcio crítica a ausência de um

espírito nacional – que seria, para ele, “imprescindível a qualquer espécie de emancipação” (Cardoso, 2012,

p. 295). A herança africana agiria como um ópio sobre o povo, afastando-o do desejo ou da necessidade de

uma constituição identitária brasileira. A contribuição da cultura negra seria unicamente negativa:

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170Devorados por todas as molezas oriundas de uma raça de negros e imigrantes, não

fabricamos lanças para defender o que é nosso, pois nunca tivemos nada, e o que

temos, doado por exclusiva cegueira da natureza, nunca foi ameaçado de coisa alguma

– nunca relutamos em ceder, porque também nunca nos achamos perfeitamente na

posse de nada – e deixamos de ser Colônia, como deixamos de ser Império, como

abolimos a escravidão e proclamamos a República – sem sangue, sem conquista de

espécie alguma, graças a pequenos tumultos sentimentais, ingênuos e fanfarrões, que

nos caracterizariam perfeitamente como um povo secundário e sem personalidade.

(Cardoso, 2012, p. 235)

Ao criticar a passividade do povo brasileiro nos processos de “conquistas” do país, o escritor insere

a herança cultural negra como sendo uma das responsáveis por essa postura. Algumas declarações

polêmicas encontradas nos Diários incitam uma leitura que aponta um caráter discriminatório, como o

faz Vianna (2004) ao dizer de “um racismo que chega a incomodar o leitor” (p. 158). Lúcio Cardoso (2012)

acreditava que o espírito nacional a ser buscado se contraporia ao que ele chama de “velha onda de

mulatismo ... autêntico lado de sombra da nossa personalidade” (p. 236). O escritor é enfático em sua crítica:

Não sou dos que defendem o negro, pois as qualidades que neles nos apresentam,

de caráter sensível e plástico, são atributos eminentemente corrosivos, ou melhor,

aqueles exatamente que através do tempo e da formação de um povo, mais

contribuem para seu amolecimento e desvitalização. Tudo o que havia no negro de

forte e de autêntico no significado “bravo” da palavra, foi cauterizado na senzala.

O que herdamos foi o seu gosto nostálgico das músicas e das pequenas virtudes

familiares. Precisamos ser desumanos para recobrar a energia que nos falta. O

lado branco, que alimentou nossos únicos homens de estirpe, é aquele sobre o qual

devemos construir nossa possibilidade de existir. (Cardoso, 2012, p. 236).

Nesta passagem, torna-se claro que Lúcio Cardoso culpabiliza parcialmente a herança cultural africana

pela ausência de uma identidade própria ao povo brasileiro. O escritor parece opor o que ele chama

de “lado de sombra” – a “velha onda de mulatismo” – ao “lado branco”, mas não especifica o que seria

propriamente este último. Comum seria interpretar este ponto como se Lúcio estivesse fazendo

referência à raça caucasiana, e que seria a partir dela que o povo brasileiro seria capaz de estabelecer

uma identidade própria, começando com a negação e desvinculação da herança cultural negra. A

assimilação desta cultura – e Lúcio cita como exemplo os ritos africanos – seria parte do que ele

denomina “nostalgia do primitivo” (Cardoso, 2012, p. 257), e esta, por sua vez, conduziria à estagnação

e à ausência de vitalidade em um povo que precisaria lutar contra raízes que em seiva bruta já não

transportariam nutrientes, mas tóxicos de conformidade e apodrecida estabilização. Em sua busca por

uma “alma que seja realmente nossa” e por uma “realidade mais avançada, mais fundamentalmente

brasileira” (Cardoso, 2012, p. 256), o autor defende o esforço criativo em oposição à organização ou

coordenação do já existente – isto é, as heranças culturais.

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171 A assunção cardosiana do “mulatismo” como entrave ao processo emancipatório e de formação

identitária poderia, em certa medida, ser utilizada como chave de leitura para Salgueiro, especificamente

no que concerne ao modo de representação do negro nesta obra. Entretanto, a afirmação de Lúcio

Cardoso acerca de sua descrença no romance sociológico é passível de ser estendida e compreendida

também como uma possibilidade de negação da inserção de qualquer elemento político-social em seus

textos com vistas a um engajamento ou afirmação de posicionamento. Considerando-se esta ausência

de concretude no que tange às possíveis conclusões acerca das relações entre a visão pessoal de Lúcio

sobre a questão do negro e a sua obra, evitar-se-á realizar correlações entre este primeiro momento

acima apresentado com o momento seguinte, onde buscar-se-á refletir sobre a representação racial no

romance Salgueiro.

NEGRAS ROSAS DO MORRO: A REPRESENTAÇÃO RACIAL EM SALGUEIRO

“Viu-a como o símbolo inconsciente e vil daquele mundo onde todos agonizavam” (Cardoso, 2007, p. 225).

Esta é a percepção de Geraldo, uma das personagens de Salgueiro, acerca da negra Rosa. As descrições

que Lúcio faz dela, no que diz respeito à representação racial, parecem também sintetizar grande

parte das demais figuras. Em primeiro lugar, nota-se uma constante metaforização que encerra em si o

animalesco. O riso de Rosa é assemelhado ao de um “animal forte” (Cardoso, 2007, p. 10), sua braveza,

como de uma “fera ameaçada” (Cardoso, 2007, p. 56); seus olhos são olhos de “gata brava” (Cardoso,

2007, p. 11; Cardoso, 2007, p. 103); o seu cheiro é o de “suor animal” (Cardoso, 2007, p. 101); seus dentes

brancos são grandes como os de um “cão de fila” (Cardoso, 2007, p. 103); o desejo carnal é despertado

como o de um “animal que se liberta” (Cardoso, 2007, p. 113); ao ser espancada por seu amante, em um

movimento de luta ambos arfam “como dois animais” (Cardoso, 2007, p. 118); Rosa se espoja aos joelhos

do amante como uma “gata no cio” (Cardoso, 2007, p. 120); esbraveja como uma “fera furiosa” (Cardoso,

2007, p. 124); possuiria uma liberdade como a de uma “cachorra do morro” (Cardoso, 2007, p. 132); vivia

como um “bicho bravo” (Cardoso, 2007, p. 135); brigava com a amante do amante como “duas legítimas

feras açuladas pelo cheiro de sangue” (Cardoso, 2007, p. 216) .

Não apenas as metáforas indicam uma aproximação ao animalesco, mas a estruturação psicológica de

Rosa é colocada de forma semelhante. Negra de índole impetuosa e instinto aguçado, Rosa é também

descrita como voluntariosa, selvagem, volúvel, leviana e hostil. Todos os seus gestos e falas parecem

ser decorrentes unicamente de um movimento interno desprovido de atividade intelectiva, dando-se

integralmente em um âmbito instintivo, irracional. Isto pode ser percebido em inúmeras passagens, como

no momento em que o autor expõe o ódio de Rosa à Geraldo: “Não havia horizonte para limitar aversão

tão grande. Tudo se confundia, para a negra inconsciente, num enorme desejo de se ver livre do rapaz,

de afastá-lo o mais distante possível do seu olhar” (Cardoso, 2007, p. 255). Há uma incapacidade de

percepção e nomeação dos sentimentos experienciados pela personagem e, mediante este cenário, é o

instinto que norteia os atos, e estes, cuja motivação de igual modo é incompreendida por Rosa, ocorrem

sem um caráter volitivo, sem qualquer exercício racional maior.

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172Nota-se também a sexualização do corpo negro de Rosa – corpo este “já por si tão cheio de volúpia”

(Cardoso, 2007, p. 12), “corpo envenenado” que irradiava um “fogo diferente” (Cardoso, 2007, p.

58). Rosa é descrita como possuidora de uma “boca úmida e forte” (Cardoso, 2007, p. 17), olhos que

“ardiam de luxúria” (Cardoso, 2007, p. 57), cheiro de “suor animal” (Cardoso, 2007, p. 101), ancas fortes

(Cardoso, 2007), braços escuros e torneados (Cardoso, 2007), e a negra muitas vezes exibia os seios

nus. O seu corpo reagia automaticamente à música, ao ruído compassado dos pandeiros, ao som da

flauta, desejando então dançar e, assim como os negros no terreiro, saracotear ao som do batuque.

Entende-se haver aí uma representação que pressupõe uma relação intrínseca entre o negro e o legado

musical africano, e esta relação aparentemente se dá em um intermédio entre o memético e o genético,

considerando-se haver um aspecto inconsciente, instintivo, que impulsiona o corpo ao movimento,

quando este se depara com o som.

Se por um lado Geraldo vê Rosa como o símbolo do morro, poder-se-ia erigir esta personagem também

como símbolo do modo de representação dos demais negros no romance cardosiano em questão. No que

diz respeito à estruturação psicológica das personagens e à exposição de seu lado instintivo, impulsivo,

encontra-se o mesmo em outras negras. Arlete teria um corpo sujo, um corpo ardente, como se próximo

a um fogareiro (Cardoso, 2007). Ao descrever a relação sexual da negra com Geraldo, o autor descreve

os seus movimentos assemelhando-os aos de uma cobra (Cardoso, 2007) – cobra que é, em seguida,

espancada (a violência é outro elemento presente na vida dos negros, e o som de mulheres gritando

é elemento comum no morro). A construção de personagens “amulatados” em muito se assemelha ao

descrito anteriormente acerca de Rosa. Tem-se então Manuel, que em sua insignificância e ausência de

grandes exigências é aproximado a um cachorro (Cardoso, 2007); há Marta, que vigia Rosa, a “presa”,

“como um felino” (Cardoso, 2007, p. 28), e que possui uma “energia cheia de ferocidade” (Cardoso,

2007, p. 154); Genoveva, “como os mais obscuros animais domésticos” (Cardoso, 2007, p. 23); Geraldo,

dotado de uma “liberdade de cachorro vagabundo” (Cardoso, 2007, p. 127), muitas vezes irrequieto

psicologicamente, mas incapaz de compreender a causa deste incômodo.

Negros inominados fornecem o plano de fundo que compõem o ambiente do Salgueiro: lavadeiras,

pirralhos catarrentos, negras a dançar e a buscar água, com seus pés sujos de lama. Não caracterizados

apenas pela miséria, são relacionados também a algo próximo à preguiça, onde todos os negros do

Salgueiro “não trabalhavam e dormiam à sombra das árvores, horas seguidas” (Cardoso, 2007, p. 176).

Esta representação dos homens de cor que habitam o Salgueiro em muito se assemelha – ou melhor,

não contradize – o pensamento de Lúcio Cardoso apresentado em seus Diários, especialmente no que

concerne à crítica à herança africana enquanto elemento formativo do povo brasileiro.

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173CONSIDERAÇÕES FINAIS

A busca por uma constituição identitária nacional segundo a visão cardosiana deveria se afastar da

cultura africana e se emancipar através do completo abandono de influências desta cultura. Este

pensamento parece influenciar, mesmo que em grau mínimo, a estruturação do romance Salgueiro,

mesmo que não exposto de modo assertivo, declarativo. Nota-se que é ausente em Lúcio a preocupação

social, ao menos comparativamente aos contemporâneos do romance do 30, e seria errôneo conceber

Salgueiro como uma obra com conotações político-sociais. O desenvolvimento da escrita psicológica é

o afastamento de elementos próprios ao romance proletário podem ser tomados como fortes indícios

dessa ausência de interesse. A miséria, por sua vez, continua presente na representação de outros

personagens não negros em obras posteriores, o que aponta que não havia uma relação direta entre

a raça e condição / comportamento do indivíduo. Relações indiretas podem ser traçadas a partir das

colocações de Lúcio em seus textos pessoais, mas a importância que elas adquirem no projeto de sua

obra parece não ser dotado de grande significância. Tem-se então, por fim, um autor que se mostra

polêmico em suas afirmações e que reitera determinada tipização dos negros, mas por outro lado tem seu

interesse real direcionado para um lado que em nada toca certas causas, fazendo-nos pensar que estas se

tornam mero elemento estrutural de algo maior.

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174REFERÊNCIAS

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Cardoso, E. da P. (2010). Feminilidade e transgressão: uma leitura da prosa de Lúcio Cardoso. São Paulo: USP.

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Cardoso, L. (2011). Poesia Completa. São Paulo: Edusp.

Cardoso, L. (2012). Diários. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Carelli, M. (1988). Corcel de fogo: vida e obra de Lúcio Cardoso (1912-1968). Rio de Janeiro:

Editora Guanabara.

Fischer, A. (1946). Depoimento de Lúcio Cardoso. Suplemento Literário Letras e Artes, Jornal A Manhã.

10/11/1946, p. 10.

Oliveira, L. L. (1981). O romance e o pensamento político nos anos 30. Revista de Ciências Sociais,

12/13(1/2), 147-163.

Santos, C. dos. (2001). Polêmica e controvérsia em Lúcio Cardoso. Campinas: Mercado de Letras.

Silva, E. Q. R. e. (2004). Lúcio Cardoso: paixão e morte na literatura brasileira. Maceió: Edufal.

Sousa, G. R. C. de. (2008). O desencontro de duas cidades: uma leitura de Salgueiro, de Lúcio Cardoso.

Cadernos do CNLF 94, 11(14), 94-107.

Vianna, L. H. (2004). Lúcio Cardoso, o sujeito ex-cêntrico. Gragoatá, 17, 151-169.

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autoria

resumo

MONICA ABUD PEREZ DE CERQUEIRA LUZ

Doutoranda pelo Programa de Educação, Políticas e Culturas na Uninove.

CONTATO: [email protected]

O racismo no Brasil é um mecanismo fundado no poder e utilizado via de regra e

historicamente para dominar raças, povos, etnias de cor diferenciada (fator biologizante).

As estratégias e os dispositivos para operacionalizar o racismo combinam-se às diferentes

políticas e mecanismos de controle repressivo, distribuindo o mínimo a determinado grupo

para a sua sobrevivência. Este artigo discute as formas de poder exercidas pelo Estado sobre o

corpo negro, sobretudo a questão do uso da violência contra a referida população na cidade de

São Paulo.

PALAVRAS-CHAVE: raça, políticas públicas, Estado, limpeza étnica.

Racismo Institucional:da faxina étnica a violência na Cidade de São Paulo nos anos de 2010 a 2017

SUMÁRIO

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176O termo “racismo institucional” foi cunhado pelos ativistas americanos Stokely Carmichael e Charles

V. Hamilton, no final dos anos 60, durante o movimento Black Power. É entendido como qualquer

sistema de desigualdade baseado na raça, podendo acontecer em instituições públicas, governamentais,

empresas privadas e/ou públicas, universidades públicas e/ou privadas.

O racismo no Brasil é um mecanismo fundado no poder e utilizado via de regra e historicamente para

dominar raças, povos, etnias de cor diferenciada (fator biologizante).

Qualificar uma raça como inferior pelo tom da pele é exercer, como diria Foucault (2010) na obra

Em defesa da Sociedade, o exercício do biopoder – uma técnica que regulamenta ao fim quais grupos

exercerão poder sobre os demais, determinando quem vai viver ou quem irá morrer; muito similar ao que

Carolina Maria de Jesus desabafa em sua obra literária Quarto de despejo: “Temos só um jeito de nascer e

muitos de morrer” (Fernandes, 2008, p.240).

As estratégias e os dispositivos para operacionalizar o racismo combinam-se às diferentes políticas

e mecanismos de controle repressivo, distribuindo o mínimo a determinado grupo para a sua

sobrevivência. Desse modo, o Estado oferece às populações negras a ilusão de integração por meio

de políticas públicas, que na verdade já abandonaram há muito tempo os princípios básicos da justiça,

equidade e universalidade.

Este artigo é fundamentado em pesquisas da cidade de São Paulo e vem questionar as formas de

poder exercidas pelo Estado sobre o corpo negro. E em Foucault questiona a morte de negros e negras

representada por meio de números nas pesquisas relacionadas à violência na cidade de São Paulo. Seria

de fato uma faxina étnica?

O CORPO NEGRO

O percentual de negros assassinados no Brasil é 132% maior do que o de brancos, revela pesquisa

realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), intitulada Vidas perdidas e racismo no Brasil.

Desse percentual, 20% da causa da morte de negros pode vir a ser atribuída a questões socioeconômicas,

como por exemplo emprego, moradia, estudo e renda do trabalhador.

Os outros 80%, segundo Moura (2017), poderia ser explicado por características socioeconômicas

– quando falo de características socioeconômicas, refiro-me a diferenças de educação, diferenças

demográficas, diferença nas condições do mercado de trabalho, como taxa de desemprego, renda do

trabalhador, diferenças de tipo de moradia, densidade domiciliar. Assim, 20% da causa da morte de

negros pode ser atribuída a essas principais características socioeconômicas.

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177Dados do Censo e da Pnad de 2009 apontam que 1,8% da população que sofreu agressão física era

formada por negros e 1,3% era de não negros. A “mortalidade seletiva”, conforme classifica o estudo,

é observada pela diminuição de homicídios de brancos e crescimento de homicídios de negros. Os

homicídios em meio à população jovem aumentam de modo significativo. Na faixa de idade entre 15 e 24

anos morrem 237,4% mais negros que brancos no País.

Cerqueira (2012) observou as mais de 1 milhão de mortes violentas ocorridas no Brasil entre 1996 e

2010, relacionando-as com parâmetros como gênero, estado civil, escolaridade, local do incidente, dia

da semana e raça/cor das vítimas. Um dos resultados foi de que o indivíduo de cor preta ou parda (negro)

possui uma chance em torno de 7,5 pontos percentuais de ter sido vítima de homicídio em relação ao de

cor branca (p. 13).

Cerqueira (2012) acredita que os homicídios são explicados por dois canais. Um deles, indireto, é o efeito

do preconceito de raça no mercado de trabalho, que afeta a renda. Por outro lado, há um canal direto,

quando o indivíduo é “bombardeado” por estereótipos.

Waiselfisz (2013), coordenador do Mapa da Violência 2013, atribui o avanço da violência sobre a

população negra principalmente ao processo de terceirização de serviços básicos - segurança, educação,

saúde - e às políticas públicas influenciadas pela mídia.

Perversa e preocupante é a seletividade racial além de sua tendência crescente. Entre 2003 e 2014,

as taxas de homicídio por arma de fogo entre os brancos caem 27,1%, de 14,5, em 2003, para 10,6, em

2014; enquanto a taxa de homicídios de negros aumenta 9,9%: de 24,9 para 27,4. Com esse diferencial, a

vitimização negra do país, que em 2003 era de 71,7%, em poucos anos mais que duplica: em 2014, já é de

158,9%, ou seja, morrem 2,6 vezes mais negros que brancos vitimados por arma de fogo.

Como explicar tais números?

Talvez a herança do passado colonial e escravocrata possa explicar essa crescente seletividade racial da

violência homicida, além da progressiva privatização do aparelho de segurança.

Outra explicação poderia estar nas ações e na cobertura da segurança pública que são distribuídas de

forma inteiramente desigual nas diversas áreas geográficas, priorizando espaços segundo sua visibilidade

política; o que exclui os negros.

A corporeidade negra brasileira, tem a sua história contada a partir destas visões, o que reforça o racismo

e a discriminação racial.

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178Os corpos negros na atualidade brasileira têm em suas expressão e corporeidade, suas movimentações

e atitudes, ainda atribuídos à comportamentos desaprovados para o convívio em sociedade, sendo esses

atributos atrelados à sua condição social.

Segundo Schwarcz (2012) os corpos da população negra sofrem imposição e completa

Tudo isso indica que estamos diante de um tipo particular de racismo, um racismo

silencioso e que se esconde por trás de uma suposta garantia de universalidade e da

igualdade das leis, e que lança para o terreno privado o jogo da discriminação. Em uma

sociedade marcada historicamente pela desigualdade, pelo paternalismo das relações

e pelo clientelismo, o racismo só se afirma na intimidade, não se afirma publicamente.

No entanto, depende da esfera pública para a sua explicitação, numa complicada

demonstração de etiqueta que mistura raça com educação e com posição social e

econômica. (p.32)

O corpo negro naturalmente denuncia; uma vez que carrega consigo a ancestralidade que tanto se

busca esconder.

Para Foucault (2010), o corpo se tornou alvo do poder quando descobriu que ele poderia ser moldado,

rearranjado, treinado e submetido para se tornar ao mesmo tempo tão útil quanto sujeitado.

CORPOREIDADE E RACISMO

Na perspectiva de Foucault (2010, p. 214), “o racismo é o meio de introduzir, nesse domínio da vida de que

o poder se incumbiu, um corte entre o que deve morrer e o que deve viver”.

Segundo o filósofo, o racismo já existia no momento da articulação do poder disciplinar e da biopolítica,

mas foi o biopoder que inseriu o racismo nos mecanismos do Estado.

Na teoria foucaultiana o racismo tem duas grandes funções, sendo a primeira, de fragmentar, fazer

censuras no interior desse contínuo biológico a que se dirige o biopoder.

A segunda é de estabelecer uma espécie de relação outrora guerreira (para viver, é preciso que você

massacre seus inimigos) no sentido biológico.

O racismo para Foucault (2010) tem também dois grandes objetivos: a destruição das outras raças e a

regeneração da própria raça, mesmo que ela seja exposta à morte.

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179Desse modo, o racismo assegura a função de morte na economia do biopoder, segundo o princípio de que

a morte dos outros é o fortalecimento biológico da própria pessoa na medida em que ela é membro de

uma raça ou uma população.

O poder age sobre o negro na forma da punição exemplar investe na dor causada sobre o punido e no

medo despertado na plateia, com o intuito de desarticular as pessoas e consequentemente a raça negra.

Em 1975, em Vigiar e punir, Foucault (2000) problematizou o corpo como o alvo privilegiado da técnica de

poder disciplinar:

o corpo também está diretamente mergulhado num campo político, as relações

de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o

supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este

investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas,

à sua utilização econômica: é numa boa proporção como força de produção, que o

corpo é investido por relações de poder e de dominação. (p. 25)

Esse processo leva a construção do corpo oprimido e aprisionado do sujeito, que contribuiu para a

restrição de si nos diferentes espaços.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio do domínio total que acontece via corpos, mata-se a pessoa jurídica; declara-se sem pátria;

operacionaliza a morte moral do negro, que muitas vezes esquece de si próprio, pois vive em uma prisão

psicológica, provocando o esvaziamento do sentimento humano; a morte Individual; a falta do extinto

de sobrevivência, a morte material. O racismo trabalha através da morte do corpo e da alma do negro

gerando uma desumanização.

A escravidão carregou a perpetuação da maioria de seus pressupostos culturais de interiorização do

negro através da discriminação pelo cabelo, vestimenta, coibição de relacionamentos inter-raciais e dos

fundamentos religiosos de matriz africana.

A violência que o corpo negro sofreu durante a escravidão e pós-escravidão toma corpo nos dias vigentes

como um processo de exclusão e não garantia ao artigo 5°da Constituição Federal que é ambíguo

uma vez que coloca o racismo como sendo um crime inafiançável e imprescritível, o mesmo que visa o

princípio de igualdade que é vetado uma vez que se exclui pela raça e gênero.

Logo, os negros estão sendo sempre colocados às margens através do alijamento e exclusão das garantias

que o Estado tem por obrigação garantir educação, saúde, moradia, habitação. Sendo assim um negro

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180só se tornará parte significante da grande massa no momento em que consegui uma mobilidade e

consequentemente a ascensão social, seja no futebol onde o negro é exaltado, ou então se torna “um

negro de alma branca”, assim acontece na televisão, na moda, no mercado de trabalho.

O racismo no Brasil e totalmente mascarado, mas não deixa de ser mortal, como reiterava Foucault.

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Foucault, M. (2000). Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes.

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Janeiro: Laeser e Garamond.

Schwarcz, L. M. (2012). Nem preto, nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira.

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Waiselfisz, J. J. (2013). Mapa da violência 2013: mortes matadas por armas de fogo. Rio de Janeiro,

FLACSO/CEBELA.

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autoria

resumo

MARÍLIA NOVAIS DA MATA MACHADO

Professora Adjunta da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

Diante do tema “Leituras sobre o racismo a partir de Quarto de despejo de Carolina Maria

de Jesus”, busquei escritos filosóficos contemporâneos. Consultei Reflexões sobre o racismo

de Jean-Paul Sartre e seu Prefácio ao livro Os condenados da terra, de Frantz Fanon. De

Cornelius Castoriadis, li o capítulo intitulado “Reflexões sobre o racismo”. Busquei na obra de

Michel Foucault os principais momentos em que o filósofo se refere especificamente ao tema.

Finalmente, li Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, de Giorgio Agamben, reflexão sobre o

racismo a partir de figura do direito romano arcaico (o homo sacer), incluído no ordenamento

jurídico apenas como exclusão. Reli, então, Quarto de Despejo, procurando as aproximações

entre os escritos filosóficos e o de Carolina Maria de Jesus.

PALAVRAS-CHAVE: leituras sobre o racismo, Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo.

Vida nua em Quarto de despejo

SUMÁRIO

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183SARTRE E O RACISMO

Sartre (1963) escreve sobre a questão judaica: o antissemita (ou o racista, para os propósitos desta

escrita), é “um homem que tem medo ... de si próprio, de sua consciência, de sua liberdade, de seus

instintos, de suas responsabilidades, da solidão, da modificação, da sociedade e do mundo” (p. 30).

O que ele teme é a própria condição humana.

A escrita de Carolina é destemida, desafiante, provocadora. Nada racista se for considerada a definição

de Sartre. Não há medo de si, antes, o contrário – embora haja, aqui e ali, temor com relação à sua

condição humana, como no seguinte fragmento de discurso: “Hoje não temos nada para comer. Queria

convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida”

(Jesus, 1993, p. 153).

Sobre a questão das colônias europeias, Sartre (1948/1963) aponta um entrave para que os negros se

libertem da tutela dos colonizadores: “Dispersos pelo tráfico aos quatro cantos do mundo, os negros

não dispõem de uma língua comum; para incitar os oprimidos à união, devem recorrer às palavras do

opressor” (p. 98), armadilha que os coloca quase sempre no terreno dos colonizadores.

Com apenas dois anos de estudos formais, Carolina encara de peito aberto a escrita do opressor. Faz

erros ortográficos, como todos nós. Mas cria construções e expressões que tornam sua obra objeto de

teses e artigos literários, no Brasil e no exterior.

No prefácio sartreano ao livro de Frantz Fanon, encontra-se:

Quando se domestica um membro de nossa espécie, diminui-se seu rendimento e,

mesmo dando-lhe pouco, um homem nessa condição acaba por custar mais do que

rende. Por isso, os colonos são obrigados a interromper seu amestramento no meio do

caminho: o resultado, nem homem nem animal, é o indígena. Vencido, subalimentado,

doente, amedrontado, mas apenas até certo ponto. (Sartre, 2002, p. 24)

E continua: “O indigenato é uma neurose introduzida e mantida pelo colono entre os colonizados com

consentimento deles” (Sartre, 2002, p. 27). Conclui, expressando-se sobre os europeus: “Nossas belas

almas são racistas” (Sartre, 2002, p.28). Afirma, então, a necessidade de cada europeu se descolonizar e

extirpar de si o colono que existe em cada um.

Neta de escravos negros trazidos para o Brasil, Carolina é uma colonizada que com frequência se revolta

admiravelmente contra essa condição. Mas há momentos em que não escapa da armadilha colonial e

escreve como o indígena sartreano domesticado, como nas duas passagens abaixo:

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18413 de maio Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da

Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos.

... Nas prisões os negros eram os bodes espiatorios. Mas os brancos agora são mais

cultos. E não nos trata com despreso. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos

sejam feliz. (Jesus, 1995, p. 27)

O Brasil é predominado pelos brancos. Em muitas coisas eles precisam dos pretos e os

pretos precisam deles. (Jesus, 1995, p. 102)

Com frequência, é ela a ponte com a polícia em casos de brigas graves na favela. No telefone público ou

pessoalmente, é ela quem chama a Rádio Patrulha, em evidente “neurose” de “indigenato”, para usar as

palavras de Sartre.

Contudo, a leitura de Sartre não me pareceu satisfatória para discutir racismo em Quarto de despejo.

RACISMO EM CASTORIADIS

Para Castoriadis (1987), racismo trata-se, “em primeiro lugar, da aparente incapacidade de se constituir

como si mesmo, sem excluir o outro; em seguida, da aparente incapacidade de excluir o outro sem

desvalorizá-lo, chegando, finalmente, a odiá-lo” (pp. 31-32), e a institui-lo como inferior. Essa tese é

relativizada por Carolina:

O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade apresenta o branco?

Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge o preto, atinge o

branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém.

(Jesus, 1995, p, 58)

Castoriadis (1987) indaga: “por que o que deveria ter ficado como simples afirmação da “inferioridade”

dos outros torna-se discriminação, desprezo, confinamento, para exacerbar-se finalmente em raiva, ódio

e loucura assassina?” (p. 34). O próprio filósofo tenta responder a essa questão: “Uma face do ódio do

outro, na medida em que o outro é imediatamente compreensível, é, podemos dizer, o simples reverso do

amor de si mesmo, do investimento de si mesmo” (Castoriadis, 1987, p. 37). Noutra passagem, escreve:

“outra face do ódio de si ... parece-me, em geral, menos lembrada: o ódio do outro, como outra face de um

ódio de si inconsciente”.

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185 [Esse] ódio de si ... é um componente de todo ser humano; e, como todo o resto,

objeto de uma elaboração psíquica ininterrupta. E eu penso que é esse ódio de si,

habitualmente e evidentemente intolerável, sob sua forma aberta, que alimenta as

formas mais desenvolvidas do ódio do outro e se descarrega nas suas mais cruéis e

mais arcaicas manifestações. (Castoriadis, 1987, pp. 38-39)

Sua conclusão é a de que o racismo é, sociologicamente, a mais extremada das expressões do ódio do

outro. Deixo aberta a indagação se o ódio ao outro é necessariamente um “racismo sociológico”, como

o nomeia Castoriadis. Pois, do ódio, Carolina não escapa, seja como atora, como vítima ou testemunha.

Vejamos algumas passagens de Quarto de Despejo:

Eu quando estou com fome quero matar o Jânio, quero enforcar o Adhemar e queimar

o Juscelino. As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos. (Jesus, 1995, p. 29)

Os visinhos da alvenaria olha os favelados com repugnância. Percebo seus olhares de

odio porque eles não quer a favela aqui. Que a favela deturpou o bairro. Que tem nojo

da pobresa. (Jesus, 1995, p. 49)

Enquanto eu esperava na fila ... ia ouvindo as mulheres lamentar-se. Outra mulher

reclamava que passou numa casa e pediu uma esmola. ... a dona da casa surgiu

com um embrulho e deu-lhe. Ela não quiz abrir o embrulho perto das colegas, com

receio que elas pedissem. Começou a pensar. Será um pedaço de queijo? Será carne?

Quando ela chegou em casa, a primeira coisa que fez, foi desfazer o embrulho porque

a curiosidade é amiga das mulheres. Quando desfez o embrulho viu que eram ratos

mortos. (Jesus, 1995, p. 55)

As teses de Castoriadis sobre o racismo têm viés psicanalítico. Lembro que, além de filósofo, o autor é

também psicanalista (e economista). A tese de que a constituição de si a partir de uma diferenciação com

relação ao outro desemboca numa exclusão, desvalorização e ódio do outro certamente confirma-se em

determinados campos. Mas está longe de se ajustar bem ao caso de Carolina no seu quarto de despejo.

ESCRITOS DE FOUCAULT SOBRE O RACISMO

Encontrei a descrição de duas grandes inovações articuladas, ocorridas a partir da segunda metade

do séc. XIX e assentadas em racismo: a medicina das perversões, com sua teoria da “degenerescência”,

e os programas de eugenia, responsáveis por projeto médico e político de administração do sexo e

sua fecundidade:

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186A psiquiatria, mais a jurisprudência, a medicina legal, as instâncias do controle social,

a vigilância das crianças perigosas, ou em perigo, funcionaram durante muito tempo

“pela degenerescência”, pelo sistema hereditariedade-perversão. Toda uma prática

social, cuja forma ao mesmo tempo exagerada e coerente foi o racismo de Estado,

deu a essa tecnologia do sexo um poder temível e longínquos efeitos. (Foucault, 1977,

p. 112)

Dispositivos da sexualidade começavam então a garantir o exercício do poder político: a fim de garantir

a pureza do sangue, foram estabelecidas políticas de povoamento, família, casamento, educação,

hierarquização social, propriedade, além de outras que se exercem sobre o corpo. Para Foucault (1977):

“O racismo se forma nesse ponto (racismo em sua forma moderna, estatal, biologizante)” (p. 140).

Já então um novo discurso está sendo instituído: o da defesa conservadora da sociedade contra sub-

raças. Esse racismo é exercido pela sociedade sobre ela própria, seus membros e produtos. É um

racismo interno que visa uma purificação permanente e “que será uma das dimensões fundamentais da

normalização social” (Foucault, 2010, pp. 52-53).

No final dos oitocentos, as raças estavam valorizadas e o racismo recomposto em torno da prática

colonial e da intensificação do antissemitismo (Foucault, 2009, pp. 376-378).

Carolina, embora nascida em 1914 e em país periférico com relação às nações europeias, lócus das

teorizações de Foucault, pertence à formação discursiva que articula degenerescência e herança de

sangue. Suponho isso a partir deste fragmento de sua escrita: “Tem a Maria José, mais conhecida por

Zefa, que reside no barracão da Rua B numero 9. É uma alcoolatra. Quando está gestante bebe demais. E

as crianças nascem e morrem antes dos doze meses” (Jesus, 1995, p.14).

Já no século XX, conforme Foucault (2010), o racismo de Estado, biológico e centralizado passa por duas

transformações: o nazismo com o seu poder disciplinador e sua importante estatização, encarregando-se

“de proteger biologicamente a raça” (p. 69), acompanhado “pela exaltação onírica de um sangue superior”

(Foucault, 1977, p. 140) e por elementos e conotações como “o tema da volta do herói” (Foucault, 2010,

p. 69); e “a transformação de tipo soviético [que] consiste em retomar o discurso revolucionário das lutas

sociais ... e em fazê-lo coincidir com a gestão de uma polícia que assegura a higiene silenciosa de uma

sociedade ordenada” (Foucault, 2010, pp. 69-70).

Foucault (2010) nos convida a imaginar dois conjuntos: um diz respeito ao corpo, ao organismo, à

disciplina, à instituição; outro à população e à biorregulamentação estatal. Os dois conjuntos não

se excluem, mas comumente articulam disciplina do corpo e regulamentação da população. É o

caso da sexualidade, comportamento corporal e individual dependente de um controle disciplinar e

também objeto de processos biológicos amplos que dizem respeito à população, à hereditariedade,

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187à descendência. É também o caso da medicina, saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e

sobre a população, com efeitos disciplinares e efeitos regulamentadores.

A norma é o elemento que vai circular entre o disciplinar e o regulamentador. Aplica-se sobre um corpo

que se quer disciplinar e sobre uma população que se quer regulamentar. Incumbe-se da vida em geral,

com um polo no corpo e outro na população: “Biopoder, por conseguinte” (Foucault, 2010, p. 213). Sua

emergência “inseriu o racismo nos mecanismos de Estado” (Foucault, 2010, p. 214).

Com efeito, o que é o racismo? É, primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio

da vida de que o poder se incumbiu, um corte: o corte entre o que deve viver e o que

deve morrer. ... [Essa cesura de tipo biológico no interior de um domínio considerado

biológico] vai permitir ao poder tratar uma população como uma mistura de raças

ou, mais exatamente, tratar a espécie, subdividir a espécie de que ele se incumbiu

em subgrupos que serão, precisamente, raças. Essa é a primeira função do racismo:

fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo biológico a que se dirige o

biopoder. (Foucault, 2010, p. 214)

Carolina descreve muito bem a cesura na cidade de São Paulo:

Quando começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios, nós os

pobres que residíamos nas habitações coletivas fomos despejados e ficamos debaixo

das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma

cidade. Nós os pobres somos os trastes velhos. (Jesus, 1961, p. 17)

Voltando a Foucault (2010), ele afirma haver uma segunda função no racismo, compatível com o exercício

do biopoder:

De uma parte, de fato, o racismo vai permitir estabelecer, entre a minha vida e a

morte do outro, uma relação ... de tipo biológico: “quanto mais as espécies inferiores

tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eliminados,

menos degenerados haverá em relação à espécie – viverei, mais forte serei, mais

vigoroso serei, mais poderei proliferar”. (p. 215)

O racismo, numa sociedade de normalização, permite tirar a vida dos outros. Mas “a função assassina

do Estado só pode ser assegurada desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo”

(Foucault, 2010, p. 215). Conclui:

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188 o racismo está ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a

raça, a eliminação das raças e a purificação da raça para exercer seu poder soberano.

A justaposição, ou melhor, o funcionamento através do biopoder, do velho poder

soberano do direito de morte implica o funcionamento, a introdução e a ativação do

racismo. ... os Estados mais assassinos são, ao mesmo tempo, forçosamente, os mais

racistas. (Foucault, 2010, pp. 217-218).

Carolina, em Quarto de Despejo, refere-se exaustivamente à biorregulamentação e à aplicação dos

mecanismos do biopoder na favela do Canindé, alguns letais. Num raro momento, ela própria é a agente

do biopoder:

Recebi intimação para comparecer as 8 horas da noite na Delegacia do 12. ... Eu ia na

delegacia, ia levar o José Carlos. A intimação era para ele. O José Carlos está com 9

anos. (Jesus, 1995, p. 25)

Revoltei contra o tal Serviço Social que diz ter sido criado para reajustar os

desajustados, mas não toma conhecimento da existência infausta dos marginais.

(Jesus, 1995, p. 36)

Eu não vejo eficiência no Serviço Social em relação ao favelado. (Jesus, 1995, p. 37)

Chegou a Radio Patrulha, que veio trazer dois negrinhos que estavam vagando

na Estação da Luz. 4 e 6 anos. É facil perceber que eles são da favela. São os mais

maltrapilhos da cidade. O que vão encontrando pela rua vão comendo. Cascas de

banana, casca de melancia e até casca de abacaxi, que é tão rústica, eles trituram.

(Jesus, 1995, p. 40)

Eu já estava deitada quando ouvi as vozes das crianças anunciando que estavam

passando cinema na rua. ... Era a Secretaria da Saude. Veio passar um filme para os

favelados ver como é que o caramujo transmite a doença anêmica. Para não usar as

águas do rio. Que as larvas desenvolve-se nas águas.

Mandaram os favelados fazer mictórios. (Jesus, 1995, p. 51)

O Serviço de Saude do Estado disse que a agua da lagoa transmite as doenças

caramujo. Vieram nos revelar o que ignoravamos. Mas não soluciona a deficiencia da

agua. (Jesus, 1995 p. 71)

Dois meninos do Juiz estava vagando aqui na favela. ... Contaram-me os horrores do

Juizado. Que passam fome, frio e que apanham initerruptamente. (Jesus, 1995, p. 78)

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189Eu estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e amarrou numa

arvore. O guarda civil é branco. E há certos brancos que transforma preto em bode

expiatorio. Quem sabe se guarda civil ignora que já foi extinta a escravidão e ainda

estamos no regime de chibata? (Jesus, 1995, p. 96)

Eu estou à espera do oficial de Justiça senhor Feliciano Godoy. Ele deu-me umas

intimações para distribuir aqui na favela. A Isabel não foi porque quem bebe não

obedece. Ela fez as pazes com o negro dela. (Jesus, 1995, p. 110)

Pareceu-me, portanto, que a leitura de Foucault sobre o racismo permitiu articulações importantes com

o texto de Carolina.

AGAMBEN, A BIOPOLÍTICA E A VIDA NUA

Agamben retoma pesquisa que Foucault (1977) iniciara no final de História da Sexualidade I sobre como,

no limiar da Idade Moderna, “a vida natural começa ... a ser incluída nos mecanismos e nos cálculos do

poder estatal, e a política se transforma em biopolítica” (Agamben, 2014, pp. 12-13). Lembro que os

temas dessa nova política passam a ser: demografia, higiene pública, enfermidade e envelhecimento

populacionais, urbanismo, ecologia, entre outros.

Para Agamben (2014):

A morte impediu que Foucault desenvolvesse todas as implicações do conceito

de biopolítica e mostrasse em que sentido teria aprofundado ulteriormente a sua

investigação; mas, em todo o caso, o ingresso da zoé na esfera da pólis, a politização da

vida nua como tal constitui o evento decisivo da modernidade. (p. 12)

Agamben (2014) observa que Foucault abandonara decididamente o enfoque jurídico-institucional

tradicional de abordar o poder em favor de uma análise dos modos como concretamente o poder penetra

o próprio corpo do sujeito e suas formas de viver. De agora em diante:

A tese foucaultiana deverá então ser corrigida ou, pelo menos, integrada, no sentido

de que aquilo que caracteriza a política moderna não é tanto a inclusão da zoé na pólis,

em si antiguíssima, nem simplesmente o fato de que a vida como tal venha a ser um

objeto eminente dos cálculos e das previsões do poder estatal. ... o espaço da vida nua,

situado originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente coincidir

com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato

entraram em uma zona de irredutível indistinção. (Agamben, 2014, p. 16)

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190Assim, Agamben (2014) retoma a pesquisa de Foucault (1977) no ponto em que convergem as técnicas

políticas estatais de cuidado da vida natural do indivíduo e as tecnologias do eu que realizam o processo

de subjetivação. Agamben (2014) passa a pesquisar a “intersecção entre o modelo jurídico-institucional

e o modelo biopolítico do poder” (p. 14), análises que, para ele, não podem ser separadas. Ele afirma ser

necessário “perguntar-se por que a política ocidental se constitui primeiramente através de uma exclusão

(que é, na mesma medida, uma implicação) da vida nua” (Agamben, 2014, p. 14). Ele parte do pressuposto

de que “a dupla categoria fundamental da política ocidental não é aquela amigo-inimigo, mas vida nua-

existência política, zoé-biós, exclusão-inclusão” (Agamben, 2014, p. 15).

De meu lado, penso que, em Quarto de Despejo, Carolina traz clara e contundentemente o retrato da vida

nua na contemporaneidade, “vida insacrificável e, todavia, matável” (Agamben, 2014, p. 84):

A Silvia e o esposo já iniciaram o espetáculo ao ar livre. Ele está lhe espancando.

(Jesus, 1995, p. 10)

As vezes eu saio, ela [D. Rosa] vem até minha janela e joga o vaso de fezes nas

crianças. (Jesus, 1995, p.13)

Elas [as mulheres] tem marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas

por associações de caridade. ... E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece

tambor. (Jesus, 1995, p. 14)

Os meninos estão nervosos por não ter o que comer. (Jesus, 1995, p. 25)

A Vera começou a pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetáculo. (Jesus,

1995, p. 27)

Começo a ouvir uns brados. Saio para a rua. É o Ramiro que quer dar no senhor

Binidito. (Jesus, 1995, p. 28)

Os favelados comem quando arranjam o que comer. (Jesus, 1995, p. 30)

Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou

queima-se ou joga-se no lixo. (Jesus, 1995, p. 33)

Tem um adolescente por nome Julião que as vezes espanca o pai. Quando bate no pai

é com tanto sadismo e prazer. Acha que é invencível. Bate como se estivesse batendo

num tambor. (Jesus, 1995, p. 24)

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191 Quando eu fui buscar agua vi uma infeliz caída perto da torneira porque ontem

dormiu sem jantar. (Jesus, 1995, p. 36)

A tontura da fome é pior que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas

a da fome nos faz tremer. (Jesus, 1995, p. 39)

o meu estomago reclamava e torturava-me. (Jesus, 1995, p. 40)

O unico perfume que exala da favela é a lama podre, os excrementos e a pinga. (Jesus,

1995, p. 42)

Não mais se vê os corvos voando as margens do rio, perto dos lixos. Os homens

desempregados substituiram os corvos. (Jesus, 1995, p. 48)

O tal Valdemar hoje agrediu o senhor Alexandre com uma enxada. (Jesus, 1995, p. 54)

Mas aqui na favela várias crianças estão atacadas com vermes. (Jesus, 1995, p. 59)

Mas quem reside na favela não tem quadra de vida. Não tem infância, juventude e

maturidade. (Jesus, 1995, p. 82)

Eu não quero enfraquecer e não posso comprar. E tenho um apetite de Leão. Então

recorro ao lixo. (Jesus, 1995, p.83)

Saí pensando na minha vida infausta. Já faz duas semanas que eu não lavo roupa por

falta de sabão. As camas estão sujas que até dá nojo. (Jesus, 1995, p. 89)

Atualmente é difícil para pegar agua, porque o povo da favela duplica-se. E a torneira é

só uma. (Jesus, 1995, p. 97)

Passei no Frigorifico para pegar os ossos. No inicio eles nos dava linguiça. Agora nos

dá osso. (Jesus, 1995, p. 104)

Ontem comemos mal. E hoje pior. (Jesus, 1995, p. 107)

Morreu um menino aqui na favela. Tinha dois meses. Se vivesse ia passar fome. (Jesus,

1995, p. 110)

Não sei como havemos de fazer. Se a gente trabalha passa fome, se não trabalha passa

fome. (Jesus, 1995, p. 114)

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192Todos os dias aparece um pobre coitado aqui na favela. Encosta num parente e vão

vivendo. (Jesus, 1995, p. 132)

Também para Carolina, a política e os políticos operam no formato da biopolítica. O que está em jogo é

uma forma de organização que, nas palavras de Agamben (2014) “se revelaria mais eficaz para assegurar

o cuidado, o controle e o usufruto da vida nua” (p. 119). Passo a citar Carolina em momentos em que

disserta sobre questões políticas (ou, melhor, sobre políticos):

Quem nos protege é o povo e os Vicentinos. Os políticos só aparecem aqui nas épocas

eleitoraes. O senhor Cantidio Sampaio quando era vereador em 1953 passava os

domingos aqui na favela. Ele era tão agradavel. Tomava nosso café, bebia nas nossas

xicaras. Ele nos dirigia suas frases de viludo. Brincava com nossas crianças. Deixou

boas impressões por aqui e quando candidatou-se a deputado venceu. Mas a Camara

dos Deputados não criou um progeto para beneficiar o favelado. Não nos visitou mais.

(Jesus, 1995, p. 28)

Quando um politico diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-

se na politica para melhorar as nossas condições de vida pedindo o nosso voto

prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele

vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo. Olha o povo com os olhos semi-cerrados.

Com um orgulho que fere a nossa sensibilidade. (Jesus, 1995, p. 34)

A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está

enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os politicos fraquíssimos. E

tudo que está fraco, morre um dia. ... Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem

tem dó e amisade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem

não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. (Jesus, 1995, p. 35)

Mas eu já observei os nossos políticos. Para observá-los fui na Assembleia. A sucursal

do Purgatorio, porque a matriz é a sede do Serviço social, no palacio do Governo.

(Jesus, 1995, p. 47)

O tema racismo também é abordado por Agamben tendo a biopolítica como pano de fundo. Nesse

sentido, distingue-se de Foucault (2010): enquanto o filósofo francês vê o nazismo como um racismo de

Estado “biológico e centralizado” (p. 69), para o italiano, “o termo racismo (se entende-se por raça um

conceito estritamente biológico) não é ... a qualificação mais correta para a biopolítica do terceiro Reich”

(Agamben, 2014, p. 113):

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193 o hebreu sob o nazismo é o referente negativo privilegiado da nova soberania

biopolítica e, como tal, um caso flagrante de homo sacer, no sentido de vida matável

e insacrificável. O seu assassinato ... [constitui] apenas a realização de uma mera

“matabilidade” que é inerente à condição do hebreu como tal. A verdade ... é que os

hebreus não foram exterminados no curso de um louco e gigantesco holocausto, mas

literalmente, como Hitler havia enunciado, “como piolhos”, ou seja, como vida nua. A

dimensão na qual o extermínio teve lugar não é nem a religião nem o direito, mas a

biopolítica. (Agamben, 2014, p. 113)

Ainda em Agamben (2014), distinções políticas tradicionais como direita/esquerda, liberalismo/

totalitarismo, público/privado “perdem sua clareza e sua inteligibilidade, entrando em uma zona de

indeterminação logo que seu referente fundamental tenha se tornado a vida nua” (p. 119). Como

exemplo, há o deslize de ex-dirigentes comunistas no racismo extremo, caso da Sérvia (1992-1995) com

seu programa de limpeza étnica.

Agamben (2014) dá outros exemplos de vida nua: cita o caso de cobaias humanas usadas em experiências

científicas em troca de indulto – habitantes de campos de concentração ou condenados a morte,

vidas que podem ser mortas sem que se cometa homicídio: “no horizonte biopolítico que caracteriza

a modernidade, o médico e o cientista movem-se naquela terra de ninguém onde, outrora, somente o

soberano podia penetrar” (p. 155).

Agamben lembra ainda que, hoje, temos “uma vida exposta como tal e uma violência sem precedentes,

mais precisamente nas formas mais profundas e banais. O nosso tempo é aquele em que um weekend de

feriado produz mais vítimas nas autoestradas da Europa do que uma campanha bélica” (Agamben, 2014,

p. 113).

A vida nua não se restringe, contudo, aos quartos de despejo:

Se é verdadeiro que a figura que o nosso tempo nos propõe é aquela de uma vida

insacrificável, que, todavia, tornou-se matável em uma proporção inaudita, então a

vida nua do homo sacer nos diz respeito de modo particular. [...] Se hoje não existe

mais uma figura predeterminável do homem sacro, é, talvez, porque somos todos

virtualmente homines sacri. (Agamben, 2014, p. 113)

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194PARA FINALIZAR

Penso que Carolina teve a posição mais forte no meu texto. Mas, de diversas formas, fiz ingerências

em sua fala que, não obstante, fica muito melhor no seu território original, polissêmico e muitas vezes

inapreensível. Há que lê-la e relê-la. Quarto de despejo não se esgotou em 1960, nem agora, 57 anos depois.

Lamento não ter tido fôlego e tempo para outras leituras. Talvez Hannah Arendt fosse indispensável. Mas

fico contente por ter pensado na femina sacer, figura na qual Carolina e eu nos encontramos, matáveis e

insacrificáveis, vidas nuas, como a de todos nós, sujeitos a golpes pequenos e grandes, locais ou nacionais,

a acidentes de trânsito, atentados políticos ou religiosos, balas perdidas, rompimentos de barragens,

tsunamis, terremotos, furacões, desemprego, cortes salariais, precariado, judicializações.

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195REFERÊNCIAS

Agamben, Giorgio. (2010). Homo sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG.

Castoriadis, C. (1987). Reflexões sobre o racismo. In: C. Castoriadis, O mundo fragmentado: as

encruzilhadas do labirinto / 3. (pp. 27-41). Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Foucault, M. (1977). História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal.

Foucault, M. (2009). Eugène Sue que Eu Amo. In M. B da Mota (Org.), Estética: literatura e pintura,

música e cinema. Ditos e escritos III. (Inês Autran Dourado, trad.). (pp. 374-377). Rio de Janeiro: Forense

Universitária.

Foucault, M. (2010). Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.

Jesus, C. M. de. (1995). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Editora Paulo de Azevedo Ltda.

Jesus, C. M. de. (1961). Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada. São Paulo: Editora Paulo de

Azevedo Ltda.

Sartre, J. P. (1963) Reflexões sobre o racismo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro.

Sartre, J. P. (2002). Préface. In F. Fanon, Les damnés de la terre. (pp. 17-36). Paris: Éditions de la Découverte

& Syros. Recuperado de https://monoskop.org/images/9/9d/Fanon_Frantz_Les_damn%C3%A9s_de_la_

terre_2002.pdf

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autoria

resumo

ELISA DE SANTA CECÍLIA MASSA

Psicóloga e psicanalista. Mestra em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de

Minas Gerais – UFMG. Doutoranda e Mestra em Estudos Psicanalíticos pela UFMG.

CONTATO: [email protected]

Este trabalho levanta alguns dos pontos discutidos em pesquisa de doutorado em andamento,

sobre o saber psi no atendimento a adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa.

Para além de investigar as questões inerentes à adolescência, ao cometimento do ato

infracional e ao “conflito com a lei”, entendemos ser fundamental questionar não apenas qual

é a função dos profissionais de psicologia nesse acompanhamento – a partir do que é prescrito

pelas normativas das políticas públicas e dos conselhos – mas como se dá na prática o trabalho

destes profissionais. O principal paradoxo a ser localizado nessa discussão é a questão da

responsabilização do adolescente, objetivo primeiro da medida socioeducativa de acordo

com o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990. Na prática, o que se prescreve é a

necessidade de que o adolescente se responsabilize em relação ao ato infracional cometido,

para que seja capaz de construir novas respostas, apartadas da criminalidade. Contudo, tal

prescrição se depara com o contexto social vivido pelos adolescentes que são sentenciados, em

sua imensa maioria negros, moradores de periferia e do sexo masculino, e que sofreram com

uma série de omissões e violações de direito até se depararem com o viés punitivo do Estado.

Eis, portanto, a questão: em que medida os psicólogos podem oferecer ao adolescente uma

possibilidade de se reposicionar e de trilhar caminhos menos mortíferos, e em que medida

este profissional reedita preconceitos ao exigir do adolescente uma responsabilidade da qual o

próprio Estado se furta?

PALAVRAS-CHAVE: psicanálise, racismo, encarceramento, sistema socioeducativo.

Psicanálise, racismo e o encarceramento da juventude negra: questões para o sistema socioeducativo

SUMÁRIO

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197INTRODUÇÃO

O presente artigo apresenta uma discussão, em curso em pesquisa de doutorado junto ao Núcleo

PSILACS (Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo) da Universidade Federal de Minas Gerais, acerca

do trabalho do profissional de psicologia no contexto do atendimento aos adolescentes em cumprimento

da medida socioeducativa de internação. Uma parte dessa pesquisa se alinha a eixo de investigação

do Núcleo PSILACS sobre as consequências subjetivas da escravidão, detendo-se na discussão acerca

do contexto brasileiro no qual se insere o sistema de justiça juvenil, responsável por imputar medidas

socioeducativas a adolescentes que cometem atos infracionais.

As medidas socioeducativas estão previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que trata,

além dos direitos da criança e do adolescente, das medidas cabíveis juridicamente diante do cometimento

de um ato infracional por um adolescente. De acordo com o ECA, “considera-se ato infracional a conduta

descrita como crime ou contravenção penal”, e adolescentes são aqueles indivíduos que possuem idade

entre doze e dezoito anos. Uma vez verificada a prática do ato infracional, são aplicáveis as seguintes

medidas socioeducativas: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade;

liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade e internação em estabelecimento educacional.

De acordo com a Lei nº 12.594/2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo

(SINASE), compete aos Estados “criar, desenvolver e manter programas para a execução das medidas

socioeducativas de semiliberdade e internação” (art. 4º, inciso III), enquanto a execução das medidas

socioeducativas de prestação de serviço à comunidade e liberdade assistida são de responsabilidade

dos municípios.

Em uma unidade socioeducativa de internação, que receberá os adolescentes para o cumprimento da

medida privativa de liberdade após decisão judicial, há uma equipe técnica composta por profissionais de

diversas áreas, com a função de atender o adolescente e planejar, junto a ele, as ações que nortearão o

cumprimento da medida. A lei determina uma equipe mínima para o atendimento desses adolescentes na

instituição, que deverá ser composta, por “profissionais das áreas de saúde, educação e assistência social,

de acordo com as normas de referência” (SINASE, art.12).

No contexto das unidades socioeducativas de internação, as equipes técnicas são compostas por:

psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, terapeutas ocupacionais e analistas técnicos jurídicos. Além

disso, a equipe de segurança socioeducativa, composta pelos agentes de segurança socioeducativo,

coordenadores de plantão e supervisores de segurança, é responsável por garantir a integridade física

dos adolescentes e dos trabalhadores dentro da unidade, e acompanham os adolescentes em todas

as atividades que compõem a rotina institucional. Há também um corpo diretivo composto por três

membros, responsáveis pela gestão destas equipes e da instituição.

Pretende-se destacar pontos de inconsistências entre a letra da lei, tal como observada pela legislação

pertinente ao tema – como o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90) e a lei de execução

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198do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Lei n. 12.594/12) – e a situação, na prática, dos

adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa no contexto brasileiro.

De acordo com levantamento realizado pelo Programa Justiça ao Jovem vinculado ao Departamento de

Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Conselho Nacional de Justiça, o Brasil possuía,

entre julho de 2010 e outubro de 2011, 17.502 internos, distribuídos pelos 320 estabelecimentos de

execução de medida socioeducativa existentes no país. (Conselho Nacional de Justiça, 2012, p. 35)

Percebe-se ainda que a distribuição destes estabelecimentos no país não é homogênea, de forma que

a região Sudeste possui 46% dos estabelecimentos socioeducativos, sendo que o estado de São Paulo

responde por 75% desse total” (CNJ, 2012, p. 98), com 112 unidades.

O caráter protetivo das medidas socioeducativas, a série de encaminhamentos e ações que são, ou devem

ser, promovidos aos adolescentes acautelados acabam encobrindo a face punitiva, especialmente da

medida socioeducativa de internação, que em algumas situações é quase proposta como uma retomada

de garantias, uma ação benéfica para o adolescente desassistido.

Em relação à punição mais acirrada de adolescentes, um exemplo da prática retrata as distorções do

sistema, da mesma forma que evidencia a leitura precisa que alguns adolescentes conseguem fazer desse

contexto a partir da própria experiência. Uma adolescente que já tinha diversas passagens pelo sistema

socioeducativo, ao ser apreendida por um furto, relata um nome falso e diz ser maior de idade. Ela sabia,

acertadamente, que um adulto não ficaria detido pelo cometimento deste crime, mas que ela, por sua

trajetória de vulnerabilidades, seria acautelada por ser adolescente. A mesma adolescente relata essa

situação ao chegar na unidade socioeducativa, dizendo que precisou desfazer sua estratégia porque se

viu, por questões outras, em risco diante de uma adulta com quem dividiu a cela na delegacia.

Seriam estes hiatos a evidência de uma necessidade de ajuste, de adequação, ou há o que ser lido para

além da objetividade da lei nessa contradição? Os números da violência (IPEA, 2017) sofrida pelos

adolescentes jovens, negros e de periferia apontam para uma guerra civil silenciosa e silenciada, e fazem

suspeitar que a inoperância do sistema socioeducativo reafirma o lugar destinado a estes jovens na vida

das cidades.

Recente pesquisa promovida pelo Ministério dos Direitos Humanos do Brasil, o Observatório de Favelas

e o Laboratório de Análise da Violência, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em parceria

com a Unicef, indicam que o Brasil atingiu a marca alarmante de 3,65 adolescentes entre 12 e 18 anos de

idade mortos por cada grupo de mil jovens. O número é o mais alto desde que começou a ser medido, em

2005. O Índice de Homicídios na Adolescência (IHA) engloba os 300 municípios brasileiros com mais de

100 mil habitantes e se baseia nos dados do ano de 2014 do Sistema de Informação sobre Mortalidade

do Ministério da Saúde. Além disso, os números sobre a morte dos jovens no Brasil também trazem a

marca do preconceito racial. Segundo a mesma pesquisa, o risco de morrer de um adolescente negro é

2,85 vezes maior que o de um adolescente de outra raça. Principais vítimas de assassinatos e das diversas

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199formas de violência estatal (sobretudo violência policial e violação de direitos fundamentais expressos

em lei), estes jovens aparecem no discurso midiático e do senso comum como os “responsáveis pela

escalada da violência”.

A partir deste cenário construído e continuamente repetido a uma sociedade cada vez mais acuada e

temerosa, ganham força ideias como a redução da maioridade penal, a justificativa da violência policial, os

“autos de resistência”, a “pacificação” das favelas em operações que violam continuamente os direitos dos

moradores da periferia, entre outras muitas ações às quais a massa da classe média assiste inerte. A que

tipo de engrenagem interessa a construção dessa política que incide claramente no controle social sobre

determinados sujeitos, enquanto se esquivam de tratar as reais causas da violência?

Percebe-se que as medidas socioeducativas ainda são, de maneira geral, desconhecidas da população

brasileira, com exceção de seus momentos mais extremos e delicados, como as rebeliões que ocorreram

no Sistema FEBEM ao longo dos anos 90.6 Aqui vale ressaltar que, embora o ECA tenha sido promulgado

em 1990, na prática a sua implementação foi tardia nos estados brasileiros, não apenas em relação

à mudança de nomenclatura como, mais essencialmente, em relação à concretização de uma nova

lógica de trabalho com os adolescentes autores de atos infracionais. Podemos dizer, sem dúvida, que

ainda hoje o Estatuto da Criança e do Adolescente não alcançou sua plena efetividade no Brasil, o que

inclusive constitui argumento importante contra a alteração da legislação. Sem o devido empenho para o

cumprimento da lei, como se poderia dizer que ela se tornou obsoleta?

Contudo, apesar do desconhecimento do trabalho do sistema socioeducativo no Brasil, pesquisas

indicam que a maioria da população é favorável à redução da maioridade penal, proposta que tornaria

os adolescentes imputáveis juridicamente, ou seja, eles passariam a responder como adultos e

consequentemente, seriam responsabilidade do sistema penal, e não mais do sistema socioeducativo.

Segundo pesquisa realizada por Vox Populi e Carta Capital em 2013, 89% da população é favorável à

redução da maioridade penal de dezoito para dezesseis anos (Martins, 2014).

Esta resposta, porém, parece responder mais a um apelo midiático que alimenta a cultura punitiva e de

acirramento das ações repressivas dos órgãos de segurança, do que propriamente a proposição de uma

saída para a complexa questão da violência urbana. Há ainda a percepção de que esta enquete já induza

a resposta do entrevistado, já que a maioria não sabia dizer sobre as punições que atualmente já são

previstas por lei no caso de cometimento de atos infracionais por adolescentes.

Para esta discussão, convocaremos ainda a psicanálise a pensar para além da clínica individual, mas a

partir de sua verve política. Historicamente taxada de ser uma teoria burguesa, alheia às questões da

vida coletiva e focada unicamente no indivíduo, a psicanálise tem desempenhado um papel importante na

construção de modos de pensar o mundo, sem perder sua marca de nascença, a escuta da singularidade.

Assim, pretendemos discutir qual papel a psicanálise, a partir da lógica do sujeito, pode vir a ter na

invenção de novas possibilidades. Para compreender a construção desta poderosa ideia de que devemos

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200temer a vida em sociedade, que culmina na construção social do medo, recorreremos às contribuições de

Safatle (2015) em O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo.

A POLÍTICA DO MEDO: PERSPECTIVA POLÍTICA E SOCIETÁRIA

Safatle (2015) apresenta os modos como uma política do medo se constrói, de forma a manter o status

quo e justificar estratégias de controle social cada vez mais repressivas, em nome de uma ilusória

sensação de segurança. Nesse sentido, o autor esclarece ainda a importância e o papel fundamental que

os afetos, a princípio considerados como assunto privado e alheio à vida política, tem nessa construção.

O autor ressalta os modos sociais de gestão do medo, a partir de sua produção e circulação enquanto

estratégia fundamental de aquiescência à norma (Safatle, 2015). Aponta ainda como o medo é

apresentado como afeto intransponível, disposição sempre latente na vida social, ainda que o princípio

de realidade não justifique a intensidade com que este sentimento se expressa. Há uma fantasia iminente

de que não estar constantemente cercado por um aparato de segurança significa, necessariamente, estar

exposto à morte violenta. Se não estamos, de fato, tão expostos ao risco quanto nossa fantasia supõe, é

importante identificar então o que justifica a permanência desta fantasia.

Ainda nesta lógica, trata-se, principalmente e de maneira silenciosa, de definir a figura do indivíduo

defensor de sua privacidade e integridade como horizonte, ao mesmo tempo último e fundador, dos

vínculos sociais (Safatle, 2015). Da mesma forma que a propriedade privada ganha sua importância em

relação ao que é coletivo, e não individualizado, assim também o medo.

A propriedade privada, a concepção de indivíduo como portador de predicados que o definem e o

apartam do outro, estariam no fundamento desta lógica do indivíduo a ser defendido do ataque, sempre

iminente, da alteridade. Como efeito desta necessidade inventada, verifica-se a constante sensação de

insegurança e o medo. Mas algo ainda subjaz a esta lógica:

A espada que carrego, as trancas na minha porta e em meus baús, os muros da cidade na qual habito são

índices não apenas do desejo excessivo que vem do outro. Eles são índices do excesso do meu próprio

desejo. Como se Hobbes afirmasse: “Olhe para suas trancas e você verá não apenas seu medo em relação

ao outro, mas o excesso de seu próprio desejo que o desampara por querer levá-lo a situações nas quais

imperam a violência e o descontrole da força” (Safatle, 2015, p. 61).

Parece-nos que uma espécie de formação reativa aos nossos próprios impulsos violentos torna possível

a deflexão desta violência no outro, construído neste contexto como inimigo sempre pronto a atacar,

e diante do qual não se deve medir esforços repressivos para impedir que isso ocorra. O “inimigo”,

portanto, surge como a figura que encarna o mal que, precariamente, tentamos recusar em nós mesmos.

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201Este é um ponto no qual o aspecto afetivo da política se explicita, numa conjunção de contingências

que se reafirmam mutuamente. Se, por um lado, a violência que trago em mim é defletida no outro,

“encarnação do mal” a ser combatido, preso e eliminado, por outro lado, a violência que surge como

reação a uma política de exclusão e violação de direitos confirma aquilo que já se planejava constatar:

estes são os inimigos, e contra eles não devemos poupar esforços. Se a mão do Estado os oprime, há de

ser porque não resta outra alternativa.

Este inimigo, contudo, é contingente e historicamente este lugar pode ser ocupado por diferentes grupos.

A história da modernidade nos mostrou que sempre há novos ombros nos quais

esse peso [repressivo] cai (os judeus que estariam por trás do sistema econômico

explorador, as árabes e imigrantes que estariam por trás do déficit de seguridade

social e da crise do Estado-providência, isso quando não são vistos como meros

terroristas potenciais etc.) Daí a necessidade profunda de atualizar constantemente

práticas de segregação, não importa com quais atores. Tais práticas são fundamentais

já que elas permitem transformar a impossibilidade de o poder garantir a segurança

fantasmática desejada em identificação de um elemento que, no interior da vida

social, impediria a realização de tal garantia, quebrando a coesão social prometida

e fornecendo uma representação localizada para o medo cuja mobilização

permitirá a nossas sociedades se transformarem em “sociedades de segurança.

(Safatle, 2015, p. 106)

No contexto brasileiro, quem são os inimigos que justificam, no discurso do estado, que a política se

transforme na gestão da fobia? Qual é esse objeto desumanizado que se perpetua, que permanece como

uma contínua ameaça a “aterrorizar” nossa segurança e nossas possibilidades de controle social? Frases

que se tornaram quase banais como “bandido bom é bandido morto” nos trazem essa resposta sem

chance de engano.

A LÓGICA DO TRAUMA: PERSPECTIVA SUBJETIVA

Dentro desse grande conjunto de vidas, marcado pela segregação e pela reclusão, essa parcela do grupo

de jovens homens, negros e pobres, em nosso país, parece conformar uma resposta subjetiva à sua

condição histórica e afetiva traumática, evidenciando um liame entre a senzala e a favela, entre a antiga

condição escrava e a atual situação de violação de seus direitos.

Em termos das consequências subjetivas aí evidentes, supomos que o negacionismo do preconceito,

aliado à criminalização da pobreza (evidência traumática recidivante), produz como efeito a naturalização

do encarceramento da população jovem negra. Sua consequência subjetiva parece ser uma experiência

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202política de não pertencimento cidadão, numa espécie de sentimento de extraterritorialidade na posição

de estrangeiro.

No Brasil, há um silêncio negacionista quanto ao enfrentamento da questão histórica da escravidão,

atualizada pela maneira como vivenciamos o preconceito racial em suas consequências políticas e

subjetivas. O preconceito velado aparece em ações brutais, como aquelas que os jovens nos relatam

sofrer. As instituições públicas, que deveriam promover ações reparatórias e emancipatórias (escola e

polícia, por exemplo), tomam pelo avesso sua função e realizam o ódio silencioso (pulsão de morte) que

segrega e humilha, reiterando, de maneira atualizada, uma condição de humilhação e de cerceamento.

Os jovens afirmam uma condição de estrangeiridade em sua própria cidade como consequência subjetiva.

Eles falam de se “deslocar para o exterior” quando saem dos becos onde vivem nos aglomerados, de

“como estrangeiro, ter que esconder de onde vem”, “de usar talher para disfarçar sua origem quando

estão no estrangeiro”, sendo que o estrangeiro são as zonas centrais de suas próprias cidades. São jovens

brasileiros nascidos nas cidades onde ainda vivem, mas que se repartem em territórios “nacionais” e

“estrangeiros”, conforme a configuração subjetiva de pertencimento cidadão ganhe inscrição para eles.

Parece-nos haver, portanto, um efeito traumático que atualiza a antiga situação de desterritorialização

vivida pelo negro à época da escravidão, através da atual reprodução de um sentimento de não pertença.

Ele incide diretamente na condição de cidadania, de pertencimento político e de garantia de defesas que

esses jovens experimentam na relação com o poder formal e informal. Os jovens tornam-se verdadeiros

homo sacer, passíveis de serem mortos, sem que sua mortalidade seja inserida num código simbólico

de pertencimento cidadão (por exemplo, nos autos de resistência). Ela é naturalizada e acompanha a

criminalização da pobreza como sua consequência lógica.

Parece-nos, nesse sentido, que se trata menos do não-dito e mais do traumático, daquilo que não se

escreve, que não passa à história, mas resta vivo como intensidade que mobiliza afetos e movimenta os

corpos a partir de um circuito discursivo que inclui e tenta domesticar a pulsão de morte a serviço de uma

lógica segregatória.

É desse ponto – em que a falta do sujeito se encontra com a falta do Outro, como ponto opaco e sem

correspondência – que de forma fugaz ele pode se realizar. O trauma seria essa disjunção originária,

atualizada a cada encontro com uma alteridade estrangeiramente íntima. Lacan (1962-63/2005) define

o trauma como a própria aspiração de um meio intrinsecamente Outro. Essa disjunção opera com a

produção de um resto irredutível à simbolização no lugar do Outro ou resto singular da existência tal

como essa se impõe.

Como no século XIX, dizer-se negro ainda é basicamente identificar-se com a memória da escravização,

inscritas em práticas culturais e na pele de milhões de brasileiros. Esta é a base que empresta consistência

histórica à discussão atual sobre políticas de ação afirmativa no Brasil a partir da autoidentificação

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203como negro. “No Brasil, nomear a cor ainda hierarquiza, pois implica quebrar o pacto de silêncio sobre

o passado escravo [traumático], celebrado entre os cidadãos brasileiros livres em plena vigência da

Escravidão” (Matos, 2005-2006, p. 19)

Ademais, resta ainda uma questão central: qual é o papel da psicologia e da psicanálise nessa

engrenagem? Para a finalidade desta argumentação, é suficiente dizer que os adolescentes que recebem

uma medida socioeducativa são acompanhados, principalmente no caso das medidas restritivas de

liberdade, por uma equipe multidisciplinar, que envia periodicamente um relatório para o juiz responsável

pela execução da medida socioeducativa a qual o adolescente foi sentenciado. Essa equipe é composta

por profissionais de diversas áreas, dentre eles, o psicólogo. Dentre as orientações do Conselho Federal

de Psicologia, consta a necessidade de que o psicólogo abra para o adolescente um espaço de escuta

sobre a sua subjetividade, e sobre as questões que o atravessam ao longo do cumprimento da medida

socioeducativa. Da mesma forma, a lei preconiza que o principal objetivo da medida socioeducativa é a

responsabilização do adolescente.

Assim, vemos que, por um lado, o psicólogo deve auxiliar o adolescente a compreender a maneira como

se coloca no mundo, suas escolhas de vida e consequências, e esta reflexão pode munir o adolescente de

novas possibilidades de respostas fora da criminalidade, certamente um dos destinos que pode conduzir

o adolescente a um fim trágico e precoce. Por outro lado, é exigido do adolescente que se responsabilize

subjetivamente por seu ato infracional. Não é suficiente cumprir objetivamente os eixos da medida

socioeducativa, é necessário que o mesmo se reposicione em relação ao cometimento do ato. Esta

exigência é compatível com o artigo da lei que diz que, em nenhuma hipótese, o adolescente poderá ser

punido mais gravemente que o adulto?

Além disso, como sabemos, as políticas de segurança terminam por se inserir em uma lógica de controle

de determinadas camadas da população, considerada “perigosa”. Os relatórios e processos acabam por

desvelar que o que está em jogo não é apenas a objetividade do ato infracional cometido, como citado por

Vera Malaguti Batista (2015):

Em geral, os processos se relacionam às famílias ‘desestruturadas’, às ‘atitudes

suspeitas’, ao ‘meio ambiente pernicioso à sua formação moral’, à ‘ociosidade’, à ‘falta

de submissão’, ao ‘brilho no olhar’ e ao desejo de status ‘que não se coaduna com a vida

de salário mínimo’. (p. 24)

Vejam: se o “brilho no olhar” de um adolescente pobre, negro e da periferia é um argumento jurídico

para a fundamentação da sentença (atenção, não se trata de uma metáfora), qual pode ser o trabalho

da psicologia e da psicanálise com esses sujeitos, quando quaisquer sinais de sua expressão no mundo

já são lidos como uma questão de segurança pública? Até que ponto o psicólogo pode ser de fato um

profissional que auxilia o adolescente no cumprimento de sua medida socioeducativa, e até que ponto ele

se coloca a serviço da mão opressora do Estado?

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204CONCLUSÃO

Podemos dizer que, nas políticas públicas brasileiras, no que se refere à população jovem negra, deveriam

caminhar lado a lado ações protetivas e reparatórias e ações de promoção de direitos e emancipatórias.

Da parte da sociedade civil, dos movimentos sociais, destacam-se as ações afirmativas de recuperação da

história dos herois, dos processos segregatórios, da cultura afrodescendente, dentre outras iniciativas,

que forjam modelos de ação nas quais a identidade negra é valorizada e recuperada em suas raízes. Eles

questionam o modo como a história é ensinada, como o racismo é negado no Brasil, como os negros são

tratados pela polícia, enfim, como a diferença racial se estabelece e se perpetua ao não ser enfrentada

aberta e diretamente.

Assim, pensamos que seria central, em termos do tratamento das consequências objetivas e subjetivas da

atual situação:

1. enfrentar o negacionismo do preconceito racial no Brasil;

2. recuperar oficialmente a historicidade perdida entre a escravidão, sua abolição e suas consequências

subjetivas e políticas;

3. instalar uma política reparatória (como a da clínica do testemunho e da comissão da verdade, quanto

ao golpe militar) numa posição decidida do Estado;

4. valorizar e apoiar as iniciativas dos movimentos sociais raciais e da sociedade civil que já enfrentam

as consequências subjetivas da escravidão;

5. constituir novos espaços de resistência, escuta e escrita possíveis do traumático de suas vivências.

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205REFERÊNCIAS

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& R. T. Oliveira (Orgs.), Mitos e verdades sobre a justiça infanto juvenil brasileira: por que somos contrários à

redução da maioridade penal? Brasília: CFP.

Brasil. Lei n.12.594, de 18 de janeiro de 2012. Dispõe sobre o Sistema Nacional de Atendimento

Socioeducativo e dá outras providências. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-

2014/2012/lei/l12594.htm.

Brasil. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras

providências. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm.

Conselho Federal de Psicologia (CFP). (2010). Referências técnicas para atuação dos psicólogos no âmbito das

medidas socioeducativas em unidades de internação. Brasília: CFP.

Conselho Nacional de Justiça (CNJ). (2012). Panorama Nacional Programa Justiça ao Jovem: a execução

das medidas socioeducativas de internação. Recuperado de http://www.cnj.jus.br/images/programas/

justicaaojovem/panorama_nacional_justica_ao_jovem.pdf

Lacan, J. (2005). O seminário, livro 10: A angústia. (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho

originalmente publicado em 1962-63).

Lacan, J. (1992). O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. (V. Ribeiro, trad.). Rio de Janeiro: Jorge

Zahar. (Trabalho originalmente publicado em 1969-70).

Matos, H. (2005-2006). Remanescentes das comunidades dos quilombos: memórias do cativeiro e

políticas de reparação no Brasil. Revista USP, 68, 104-111.

Safatle, V. (2015). O circuito dos afetos: desamparo, corpos políticos e o fim do indivíduo. São Paulo:

Cosac Naify.

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autoriaANA CAROLINA SANTOS MIRANDA

Estudante do curso de Psicologia da Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais – FCMMG.

CONTATO: [email protected]

ANA PAULA SILVEIRA RODRIGUES

Estudante do curso de Psicologia da Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais – FCMMG.

CONTATO: [email protected]

CLÁUDIA NATIVIDADE

Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

Docente no curso de Psicologia da Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais. Conselheira

Presidente do Conselho Regional de Psicologia CRP04. Coordenadora do Centro de

Referência em Psicologia e Políticas Públicas – CREPOP.

CONTATO: [email protected]

ELAINE CRISTINA PEREIRA FERREIRA DA SILVA

Estudante do curso de Psicologia da Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais – FCMMG.

CONTATO: [email protected]

FERNANDA DE CÁSSIA BARBOSA

Estudante do curso de Psicologia da Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais – FCMMG.

CONTATO: [email protected]

FLÁVIA GOTELIP CORRÊA VELOSO

Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

Docente no curso de Psicologia da Faculdade da Ciências Médicas de Minas Gerais.

Conselheira do Conselho Regional de Psicologia CRP04.

CONTATO: [email protected]

A Saúde Mental nas Ocupações Habitacionais Urbanas:(im) possibilidades de inclusão social

SUMÁRIO

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resumoO presente trabalho visa elucidar as possibilidades de inclusão dos sujeitos em sofrimento

mental que são moradores das ocupações urbanas habitacionais, sendo estas marcadas por

trajetórias/historias que os situam socioculturalmente como sujeitos da exclusão social. Para

tanto, a discussão sobre a loucura e o direito à moradia toma um estatuto de causa que nos

mobiliza a discutir, destarte pautarmos as ocupações urbanas como um espaço que promove

a experiência de pertencimento ao sujeito e a possibilidade do mesmo sentir-se enquanto um

ator social visto para além dos estigmas sociais postos aqueles em situação de sofrimento

mental em nossa sociedade. Uma vez que nas ocupações estes são sujeitos que, como os

demais, ocupam e compõe a comunidade e suas lutas, a desigualdade (socioeconômico-

politico-cultural) fica atenuada dentro da ocupação frente ao paradoxal movimento de inclusão

por parte daqueles também se encontram à margem, gerando possibilidade da moradia e de

pertencimento benigno. Sendo assim, acreditamos que diante de vários enfrentamentos desse

grupo a ocupação urbana se torna um lócus de promoção de inclusão e exercício de cidadania

comunitária por meio de acessos e pertencimentos muitas vezes violados ou negligenciados

pelo próprio poder público como pela sociedade em geral. Pelo investigado, acreditamos

que indicam que a vida comum apresenta inúmeras possibilidades sendo que encontramos

relações que partem de conteúdos de aversão, apavoramento e o abandono das pessoas

com sofrimento mental quanto cuidado, interesse e apoio, denotando que, neste último caso,

organizam práticas de inclusão e cidadania comunitária.

PALAVRAS-CHAVE: saúde mental, inclusão, ocupações habitacionais urbanas, desigualdade.

JOSIANE FELICIANO DOS SANTOS

Estudante do curso de Psicologia da Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais – FCMMG.

CONTATO: [email protected]

MACÁRIA GOMES AROUCHA

Estudante do curso de Psicologia da Faculdade Ciências Médicas de Minas Gerais – FCMMG.

CONTATO: [email protected]

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208INTRODUÇÃO

O presente trabalho buscou pautar as ocupações urbanas como um espaço que promove a experiência

de pertencimento ao sujeito e a possibilidade dele sentir-se enquanto um ator social visto para além dos

estigmas sociais postos aqueles em situação de sofrimento mental em nossa sociedade. Uma vez que

nas ocupações estes são sujeitos que, como os demais, ocupam e compõe a comunidade e suas lutas, a

desigualdade (socioeconômico-politico-cultural) fica atenuada dentro da ocupação frente ao paradoxal

movimento de inclusão por parte daqueles também se encontram à margem, gerando possibilidade da

moradia e de pertencimento benigno.

A Secretaria de Saúde do Estado do Paraná (Governo do Paraná, 2017) afirma que não existe

definição “oficial” de saúde mental. Diferenças culturais, julgamentos subjetivos, e teorias relacionadas

concorrentes afetam o modo como a saúde mental é definida.

Em todo o caso, pode-se dizer que a saúde mental é um estado de bem-estar emocional e psicológico,

mediante o qual o indivíduo é capaz de fazer uso das suas habilidades emocionais e cognitivas, funções

sociais e de responder às solicitações ordinárias da vida quotidiana (Psicologia Consciências, 2017).

Convém destacar que a ausência de uma doença mental não implica que o indivíduo goze de boa saúde

mental. Há que ter em conta que a saúde mental não é uma dimensão que se possa dissociar da saúde

física, tal como nos relembra a famosa expressão latina mens san in corpore sano, que quer dizer “uma

mente sã em um corpo são”. Existem evidentes ligações entre as patologias mentais e as biológicas.

No Brasil, destacam-se como diretrizes e princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) a universalidade de

acesso aos serviços de saúde, a integralidade da assistência prestada, a autonomia do usuário, a igualdade

da assistência à saúde, o direito à informação, o acolhimento, divulgação de informações sobre o serviço

aos usuários, entre outros. (Brasil, 2010). Por meio de Equipes de Saúde da Família, a proposta é de uma

“ideia de cuidado”, de modo que se garanta o acesso seguro do paciente pelos diversos níveis de atenção.

A referência de assistência à saúde praticado em Belo Horizonte é regionalizada e hierarquizada em

níveis crescentes de complexidade.

No contexto da atenção ao paciente em sofrimento mental, em 2004, o Ministério da Saúde, pautou uma

nova política de Saúde Mental. A legislação dispõe sobre direitos específicos do sujeito em sofrimento

mental na qual, destaca-se que o tratamento/cuidado desses sujeitos deve ser realizado em dispositivos

descentralizados e vinculados à região. Para isso, foram implantados os centros de atenção psicossocial

como, o Centro de Referência à Saúde Mental (CERSAM), os Serviços Residenciais Terapêuticos, os

centros de convivência, pensados para atender a esse fim.

Por meio da Lei 10.216 (Brasil, 2017) foi possível a efetivação da construção desses novos serviços de

atendimento territorial, que contribuem muito para o avanço na luta por uma Reforma Psiquiátrica plena,

aspirando rarear os estigmas sociais enfrentados pela loucura. Além disso, devemos pensar a dimensão

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209ética que, segundo Montero (2004), é algo que se equivale à inclusão do Outro no processo de produção do

conhecimento, principalmente no que se relata a sua participação efetiva na autoria e propriedade do saber

construído coletivamente. A ética está no (re)conhecimento e na aceitação do outro como sujeito autônomo

e com direitos iguais, o que provoca uma relação de reciprocidade e respeito às diferenças individuais.

Se outrora pensasse na possibilidade que o louco se ver livre de toda aquela violência que norteou as

técnicas da assistência psiquiátrica por muitos anos e de ser retirado de trás dos muros, há a possibilidade

deste sujeito introduzir-se aos territórios/espaços pertencentes à cidade e alicerçar o seu lugar social

dentro dela, lugar este que pode ser, e é por muitas vezes, limitado à exclusão ocasionada pela sociedade.

De acordo com Montero (2004), a comunidade tem linguagem própria e seus sujeitos são integrantes

ativos, com capacidade de tomar e executar suas próprias decisões e, consequentemente, precisam ser

incluídos no processo de construção do conhecimento e de ação comunitária.

Para se (re)estabelecerem no espaço social que lhes é de direito, buscaremos compreender como estes

sujeitos percebem as manifestações de inclusão e exclusão social. Os estigmas que envolvem o acesso

ao direito à cidade é o que objetiva esta pesquisa que, para tal, se utilizará da ocupação habitacional,

compreendendo-a como um lugar de possibilidades para sujeitos que por demasiado tempo tiveram seu

dilema silenciado. Assim sendo, o ideário desta pesquisa é colocar Ocupações Habitacionais Urbanas

como sendo um espaço possível de (in)clusão. Concebendo-as como um “próprio” ator social que se

estabelece e se (re)organiza junto àqueles que nela se inserem perante a forma de morada ou, que

estão apenas de passagem. O direito à moradia não é apenas ter um lugar para morar. Traz também uma

perspectiva de recomeço. A organização e a possibilidade dos sujeitos atuarem como protagonistas

de suas histórias é um processo necessário e fundamental, para a reflexão sobre possíveis formas

de enfrentar e resistir frente às questões que violam e negam a existência desses indivíduos como

integrantes da cidade.

METODOLOGIA

A metodologia adota a abordagem qualitativa. A partir da análise de pesquisas bibliográficas obtidas

em livros e artigos da internet, buscaremos definir, conceitualmente, os termos que são centrais para os

objetivos do presente trabalho: o sujeito em sofrimento mental, estigma e ocupações habitacionais urbanas.

Nossa proposta é pensar as ocupações habitacionais urbanas como foco de reflexão e investigação, para

ponderar como os moradores percebem as relações que estabelecem neste espaço e considerando como

sendo o lugar de possibilidades para os indivíduos em sofrimento mental.

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210RESULTADOS – SUJEITO EM SOFRIMENTO MENTAL

As discussões que se iniciaram, no Brasil, nos anos de 1970 foram fundamentais para pensar a

possibilidade do convívio social mais amplo dos pacientes em sofrimento mental. A Reforma Psiquiátrica

indicou a suspensão do modelo de internação hospitalar e por consequência a reinserção social desses

sujeitos, é necessário pensar sobre esta mudança visando romper com os estigmas e contribuindo para

um maior êxito da rede de saúde mental.

A mudança de paradigma da saúde mental não diz respeito somente ao lugar onde é realizado o

tratamento ou ao modo de cuidado; o sofrimento psíquico vai muito além da classificação dos sintomas

em categorias.

Em meio à reforma psiquiátrica, conquistada por intermédio das lutas sociais, surgem o Movimento de

Luta Antimanicomial que implementa novas propostas de trabalho, neste contexto surge a Lei 10.216

(Brasil, 2001), através qual a proteção e os direitos dos sujeitos em sofrimento mental são direcionados a

assistência em serviços de bases comunitárias.

Para Paranhos-Passos e Aires (2013), pode-se afirmar que as mudanças de paradigma na saúde mental

não devem ocorrer somente dentro dos serviços, mas também fora deles. A exclusão e o estigma do

sujeito em sofrimento psíquico estão arraigados na sociedade. É preciso, tão logo, proporcionar a

aproximação dos ditos normais dos loucos, indicando que possui vida dentro dos serviços de saúde

mental. Neste sentido, devemos direcionar uma reparação a toda a sociedade, visando promover

e acreditar na autonomia e na atuação independente doente mental. Somente quando a sociedade

conhecer a história desses sujeitos vitima dos estigmas, a aceitação da sociedade será admissível, e então

será possível falar sobre inclusão/reinserção.

RESULTADOS – ESTIGMA

O doente mental ainda sofre de outro fenômeno tão antigo quanto complexo, que vem a ser o estigma,

e que possui definições oriundas de campos de conhecimento distintos, que abrangem sociologia,

psicologia e à psiquiatria. Embora não haja um consenso quanto ao estigma, também não se encontra

controvérsias no que se diz respeito aos impactos na vida desses indivíduos em sofrimento mental. O

estigma já foi considerado como “uma segunda doença”, dado que ele se apresenta como “o obstáculo

mais importante na provisão de cuidados de saúde mental” (Xavier et al, 2013, p. 18). Sendo assim se faz

necessário não perder de vista o “cenário” em que este por sua vez se desenvolve, o da vida quotidiana.

De acordo com alguns autores o estigma é uma “experiência moral”, pois afeta “aquilo que mais

importância tem para as mulheres e os homens comuns… oportunidades de vida, saúde, emprego...”

(Xavier et al, 2013, p. 18). De forma que, combater o estigma é um fator para o qual todos os profissionais

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211de saúde podem e devem contribuir, visando um entendimento mais abrangente do fenômeno,

principalmente por intermédio da sua prática clínica quotidiana, acima de tudo humana e relacional.

É através desse convívio do profissional com os doentes, os familiares e com a articulação em rede com

outros profissionais de saúde que são solidificadas as bases da luta contra o estigma, através da educação

e reeducação acerca das pessoas em sofrimento mental e desse sujeito quanto doente mental na

sociedade. De tal maneira é de praxe que se marque e distinga entre fato de se ter um transtorno mental

e ser um doente mental, uma diferença ao que tudo indica bem sutil, mas com amplas implicações. Faz-

se necessário destrinchar, com clareza o fato de que as pessoas ultrapassam as suas doenças, e que ao

reforçarmos este pensamento não seja apenas uma contribuição para diminuir a discriminação associada

à doença, mas cumpre também uma importante função terapêutica que pode fazer com que se inicie o

processo de inclusão.

RESULTADOS – OCUPAÇÕES HABITACIONAIS URBANAS

O habitar é uma necessidade básica do ser humano e a maneira como é satisfeita nas sociedades é

indicativo da forma de organização social que se estrutura.

Dentre os inúmeros enfrentamentos presentes na problemática das cidades, o direito à moradia

constitui-se como direito básico. Tanto na Constituição Federal (Brasil, 1988) quanto na Lei Federal

10.257, de 2001, o direito à moradia digna, é destacado como sendo requisito básico para o pleno

exercício da cidadania.

De acordo com Nascimento (2016), o Poder Público não pode mais negar a existência das ocupações

urbanas e a necessidade delas se verem inseridas à cidade e aos serviços públicos nela oferecidos. As

ocupações se apresentam como solução de moradia para os mais pobres.

Por outro lado, sua representatividade está relacionada aos aspectos “sujos” da cidade, os lugares

abandonados, desprezados, descuidados, de onde o olhar comum se distancia. Paradoxalmente, estes

sujeitos notam essa simplicidade excluída e verbalizam sobre o afastamento, o que é comum também

às pessoas em sofrimento mental. Segundo Nascimento (2016), por meio das ocupações urbanas, a vida

urbana que se quer pode ser viabilizada. Elas existem em razão do exercício amplo do direito de moradores

de mudar a cidade quando decidem ocupar um terreno, de forma organizada, e emerge uma rede de atores

sociais, como ação política coletiva fixada por um desvio na forma em que a cidade se constrói.

A população se organiza, como resposta, em torno de movimentos sociais reivindicativos e críticos sobre

o acesso à moradia no Brasil. Pois sempre geram incômodo ao poder público, à ordem vigente e à classe

dos proprietários dos terrenos. Ainda assim, é frequente a política de remoções e despejos dessas

ocupações (Canettieri, 2014).

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212Entendemos como sendo interessante discutir a questão dos sujeitos da ocupação e os movimentos

sociais que reivindicam esse direito básico garantido na Constituição para o exercício pleno da cidadania,

salientando o processo recorrente de exclusão e luta da população envolvida.

DISCUSSÃO

O sujeito em sofrimento mental morador das ocupações habitacionais urbanas se situam sócios

culturalmente como sujeitos exclusos da sociedade, sendo estigmatizados e isso causa impactos

relevantes na vida destes sujeitos.

Esta pesquisa baseou-se nas bibliografias disponíveis nas quais encontramos limitações quanto ao tema

proposto, mas com o material colhido podemos fazer uma análise sobre o seu propósito.

Diante o que foi explicitado durante este trabalho, analisando pela vertente das ocupações urbanas, ela

surge como um lugar de estabilidade para esse sujeito em sofrimento mental, um lugar onde esse sujeito

não é estigmatizado e sim visto como membro e pertencente aquele lugar, esta sendo vista como um

espaço de inclusão concebendo a este sujeito o papel de ator social que fora perdido. Nas ocupações

habitacionais se estabelecem uma sociabilidade por meio da localização, que é segregada da cidade e os

levam a ter um maior sentimento de pertencimento.

A habitação se constitui como lócus de ação simbólica e constitui a ideia de inserção social. As moradias,

por mais diversas que possam ser entre si, constituem elemento fundamental no processo de reabilitação

psicossocial de portadores de sofrimento mental. (Furtado et al., 2010).

De acordo com as diretrizes e princípios do SUS apresentadas, esse sujeito tem direito aos serviços de

saúde, informações sobre estes serviços bem como sob a forma de usufruir deste direito, acolhimento

humanizado, entre outros. Mas na prática percebemos grandes limitações, entre elas, o acesso ao

serviço, onde perpassa por questões burocráticas. Mas dentro dessas comunidades ele tem acesso a

outros fatores mais subjetivos como o de pertencimento, há uma escuta, um compartilhamento de suas

vivências e histórias de vida, que vem a fortalecer esse sujeito e lhe empoderar para que lute por seu

espaço e seus direitos que durante um tempo lhe foram subtraídos. Para Saraceno (1999 apud Furtado

et.al 2010), existem dois eixos sobre os quais se apoia o aumento da capacidade contratual dos pacientes

psiquiátricos: amorada, que se ocupa da casa e da apropriação da habitação do espaço vital e a rede

social, onde a acontece as trocas sociais vivas.

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213CONCLUSÃO

A presente pesquisa mostrou-se como fundamento uma extensão do olhar crítico em relação aos

indivíduos com transtornos mentais e se utilizou de materiais que embasaram as teorias como sendo

unidade de análise para melhor entendimento do lugar destes sujeitos moradores das ocupações. Para

condução de tal pesquisa foi preciso elucidar a importância de um olhar critico e pondera as dificuldades

e as potencialidades existentes para contribuição na saúde e no bem estar destes sujeitos. Com o passar

dos anos as pessoas com sofrimentos psíquicos foram adquirindo direitos e ganhando lugar social.

A discussão que se norteou aqui se refere a uma melhoria na qualidade de vida para estes que se

encontram sobre uma visão ainda marginalizada e segregada e, principalmente, o lugar que estes ocupam

no cenário social. Dentre os vários impasses vividos, o direito à moradia e saúde ainda se encontram

em cunho principal, e embora hoje já existam leis que embasem os cuidados e garantam o lugar desses

sujeitos que ainda sofre. As mudanças no tratamento ou no cuidado não são suficientes para que estes

vivam bem, o que se procura pensar aqui é muito mais a frente do que se é feito além do louco e do “sem

teto” viver sem as mazelas da sociedade, queremos jogar luz ao direito dessas pessoas a uma moradia e

de inclusão nos espaços de convivência social.

Diante de vários enfrentamentos desse grupo que então se forma o direito de acessar os espaços

sociais, se encontra a problemática em comum, com isso a ocupação habitacional não é somente o lugar

da moradia, mas também da inserção e da inclusão sendo pensado como a possibilidade de acesso e

pertencimento, promotor de saúde mental.

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214REFERÊNCIAS

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psicologiaconsciencias.wordpress.com/2017/06/23/o-que-e-saude-mental-para-voce-ja-se-perguntou/

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autoria

resumo

TATIANA OLIVEIRA MOREIRA

Psicóloga da 2ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Capital, Rio de Janeiro/ RJ.

Mestranda em Políticas Públicas e Formação Humana na Universidade do Estado do Rio

de Janeiro – UERJ.

CONTATO: [email protected]

GIOVANNA MARAFON

Psicóloga. Professora da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense e do Programa de

Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) da Universidade do Estado

do Rio de Janeiro – UERJ.

CONTATO: [email protected]

O presente trabalho visa discutir práticas e discursos racistas no contexto psicojurídico da

adoção. É possível perceber na prática diária evidências de racismo em relação aos desejos que

se apresentam na filiação adotiva. Buscamos problematizar a questão, através de autores que

promovem discussões sobre questões raciais e com autores que localizam o desejo como uma

produção determinada por um momento histórico e cultural.

PALAVRAS-CHAVE: adoção, racismo, produção de desejo.

Práticas racistas em cenas de adoção: uma questão do desejo?

SUMÁRIO

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216ADOÇÃO E QUESTÃO RACIAL

A reflexão sobre o tema da adoção relacionada a uma discussão das questões raciais já acontece há

algum tempo no âmbito das equipes das Varas de Infâncias do Rio de Janeiro e na universidade. Tal

reflexão aparece a partir da atuação em equipes profissionais sociojurídicas, com a observação do que se

apresenta como “escolha” dos pretendentes à adoção, que por vezes deixam de marcar nos formulários

que crianças negras sejam uma possibilidade a adotar. Podemos pensar se tal questão expressa o

racismo e os preconceitos presentes socialmente, não sendo, a adoção, portanto, uma escolha isenta dos

processos de discriminação racial. Para fins de compreensão, neste trabalho, vamos seguir a seguinte

consideração sobre racismo: “qualquer fenômeno que justifique as diferenças, preferências, privilégios,

dominação, hierarquias e desigualdades materiais e simbólicas entre seres humanos, baseado no conceito

de raça” (Schucman, 2014, p. 85).

Um ponto discutido entre os profissionais é o chamado “lugar do desejo” para os habilitados à adoção,

de modo que, geralmente, recorre-se a ele para justifcar as “escolhas” dos pretendentes. Entretanto

podemos pensar se o desejo que se apresenta nos processos de habilitação é efeito de uma produção de

subjetividade racista que influencia a configuração dos perfis então desejados pelos adotantes.

Os pretendentes à habilitação para a adoção se apresentam às Varas da Infância e preenchem um

formulário de preferências no qual marcam uma série de características que almejam na criança a ser

adotada, inclusive a raça. Dados atuais do Conselho Nacional de Justiça (2017) mostram que 51,05%

dos adultos pretendentes à adoção aceitam crianças negras, 79,35% aceitam crianças pardas e 92,29%

aceitam crianças brancas.

No Brasil, 17.03% das crianças disponíveis para adoção são negras, 47,88% são pardas, 34.61% são

brancas, 0.16% são amarelas e 0,34% são indígenas.

Importante considerar que para o IBGE pardos e negros são contabilizados juntos, então soma-se 64,91%

de crianças negras acolhidas em instituições. Importante destacar aqui outros fatores que influenciam nos

números, como crianças com mais de dez anos, com grupos de irmãos ou com alguma doença ou deficiência.

Cabe considerar também a realidade das famílias das crianças acolhidas, em sua maioria negra e à

margem dos direitos sociais, como bem nos retrata Carolina de Jesus em Quarto de despejo, narrando

o cotidiano de uma moradora de favela. Em diversos momentos da obra é possível identificar pontos

convergentes entre a narrativa da autora e a realidade vivenciada pelas famílias de crianças acolhidas. A

separação de uma criança e sua família, por vezes é causada por um abandono do Estado e pela escassez

de políticas públicas. Muitas delas são sujeitos que vivem a exclusão social e a discriminação racial

diariamente. Quase sempre há um desconhecimento dessa realidade e da origem dessas crianças por

parte dos adotantes, existindo um hiato entre a criança idealizada e seu contexto social.

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217Souza (1983), no livro Tornar-se negro, nos fala que mesmo após o fim da escravidão, foi destinado ao

negro um lugar de inferioridade, que se agravou ainda mais com o capitalismo. Com a competitividade

imposta pelo capital, o negro sempre foi colocado como subalterno. Assim a lógica de vida branca era a

almejada pelo negro, inclusive para conseguir ascensão social. Tudo referente à negritude foi colocado

como negativo ao longo dos anos. Brancos e negros, ao longo da história e ainda hoje, associam a

negritude e as referências negras como inferiores em relação a um padrão cultural de branquitude,

como identidade racial normativa e, em meio à qual, brancos não costumam se pensar a si mesmos na

manutenção e legitimação das desigualdades raciais (Schucman, 2014).

Pensando nesse contexto é importante problematizar que os desejos, inclusive em relação à filiação por

meio da adoção, são produzidos em determinado momento histórico e cultural, não sendo neutros.

ADOÇÃO E DESEJO

Se pensarmos a subjetividade não como algo da ordem de uma interioridade, de algo que supostamente

estaria localizado no íntimo de cada pessoa, mas, diferentemente disso, pensarmos a subjetividade

produzida por instâncias sociais, midiáticas, familiares, institucionais etc., podemos questionar como se

produz a subjetividade e que forças subjetivas se produzem socialmente (Guattari, 1986).

Assim, podemos afirmar que somos constituídos por uma produção de subjetividade racista, que nos

atravessa diariamente e em distintos espaços, passando quase de modo despercebido, a menos que

passemos a observar seu trânsito em nós. Dito de outro modo, significa perceber e colocar em análise

como agimos, o que desejamos, no que acreditamos desejar e como nos convencemos de que somos

sujeitos desejantes, atentando a como esse desejo é fabricado, por quais instâncias passa a sua produção

e quais as forças que o agenciam.

Nessa direção, no Curso Território, Segurança, População, Foucault (2008) problematizou como o governo

das vidas e das condutas pelas políticas se utiliza da dimensão desejante, do desejo da população.

Como uma tecnologia governamental das condutas, penetra na naturalidade do desejo para produzir

o interesse geral da população, deixando o desejo agir dentro de certo limite e dentro de certo número

de relacionamentos e conexões, não de todos. É pelo jogo do desejo que se dá a produção do interesse

coletivo, em um jogo entre naturalidade e artificialidade possível dos meios criados para gerir a

população. São ações de fabricação e incitação que agem na população sob o ponto de vista de suas

opiniões, das maneiras de fazer, dos seus comportamentos, dos hábitos, dos temores, dos preconceitos,

das exigências. “É aquilo sobre o que se age por meio da educação, das campanhas, dos convencimentos”

(Foucault, 2008, p. 99).

Cabe ainda destacar um fator de fundamental importância, e que se cruza com o ponto da incitação

de certos modos de desejar, que é a imagem de marginalidade que ao longo da história foi associada a

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218crianças e adolescentes negros. Arantes (1995) nos fala, ao resgatar a história dos direitos das crianças e

adolescentes, que, com a Lei do Ventre Livre, os filhos das escravas passaram a ocupar as ruas das cidades

e assim surgiam as primeiras crianças que seriam conhecidas como “meninos de rua”. Mais de um século

depois, as crianças e os adolescentes com vivência de rua ainda são em sua maioria negros, tendo sua

imagem associada à criminalidade, sendo temidos por boa parte da sociedade. Há casos recentes, que

foram reportados pela mídia1, de pais adotivos de crianças negras que assistiram os filhos serem vítimas

de abordagens racistas por seguranças em estabelecimentos comerciais. Tal aspecto possivelmente

também se apresenta quando crianças e adolescentes negros são preteridos por grande parte dos

pretendentes à adoção que acompanhamos em nossas práticas profissionais no campo psicojurídico.

O RACISMO NAS CENAS COTIDIANAS DE ADOÇÃO

No dia a dia do trabalho, o racismo aparece de maneira sutil, mais insidiosa ou, ainda, mais aberta.

Há pretendentes que marcam nos formulários todas as definições de raça, menos a negra. Alguns

argumentam que não marcam crianças negras como opção porque querem uma criança parecida com

eles, nesse sentido cabe o questionamento se uma criança oriental ou indígena seria parecida com eles

(que, em sua maioria, são brancos).

Outras falas caminham no sentido de argumentar sobre a dificuldade em lidar com o preconceito racial

que existe socialmente no Brasil, o que muita vezes pode deixar subentendido que seria difícil lidar com o

próprio preconceito.

É possível exemplificar com uma situação concreta, na qual, em atendimento na Vara da Infância, um

pretendente à adoção, negro, que não se reconhecia como tal, disse que optaria por uma criança branca

ou parda porque queria uma criança parecida com ele ou com a esposa, que era branca. Eles marcaram

todas as definições raciais, menos crianças negras. Novamente podemos recorrer a Souza (1983), quando

a autora refere a negação da negritude pelo próprio negro para se sentir socialmente aceito em critérios

de pertencimento social pautados pelos brancos como regra. Tal fato acontece de maneira recorrente nas

cenas de adoção e nem sempre os pretendentes conseguem verbalizar claramente porque não aceitariam

adotar crianças negras.

Schucman e Fachin (2016) abordam como as políticas de reconhecimento são importantes para que

a associação de características ao negro não seja sempre vinculada ao que é negativo. Os referidos

autores completam:

1 Fontes: http://odia.ig.com.br/brasil/2017-07-25/pais-acusam-starbucks-de-racismo-contra-filha-negra.html; https://g1.globo.

com/sao-paulo/noticia/pai-acusa-seguranca-do-shopping-de-area-nobre-de-sp-de-racismo.ghtml; http://www.bbc.com/

portuguese/brasil-38072605.

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219 Assim, a representação negativa ou não representação dos grupos minoritários

dentro de uma sociedade atua de forma perversa sobre a própria subjetividade

da vítima: a própria autodepreciação torna-se um dos mais fortes instrumentos

de opressão sobre os sujeitos pertencentes a grupos cuja imagem foi deteriorada.

Portanto, o reconhecimento incorreto ou não reconhecimento de uma identidade

marca suas vítimas de forma cruel, subjugando-as através de um sentimento

de incapacidade, ódio e desprezo contra elas mesmas, e, dessa forma, a política

de reconhecimento não é apenas um respeito a esses grupos, mas também

uma necessidade vital para a constituição dos indivíduos. (Schucman & Fachin,

2016, p.188).

Então, o que se coloca em pauta é porque uma criança negra muitas vezes não se configura para muitos

adotantes como possibilidade no desejo destes em relação à adoção, diante de tal questão não podemos

deixar de pensar no contexto racista do país que desqualifica o negro e sua cultura.

Outro aspecto que pode estar ligado à chamada adoção interracial é que por vezes ela aparece como

altruísmo. Uma motivação que pode trazer questões, pois não tira o negro do lugar de inferioridade, de

alguém que precisa ser ajudado. Tal ponto traz a desqualificação do negro como um sujeito a quem é

possível amar e ter como filho. Levinzon (2004) destaca que a motivação altruísta pode trazer questões

que irão dificultar o estabelecimento de vínculos na relação entre as crianças e os pais adotivos, pois a

criança precisa ocupar um lugar de filho na família e não uma representação da bondade dos pais.

OLHAR PARA A QUESTÃO E NÃO SILENCIAR

Algumas possibilidades se configuram como forma de lidar com a questão do racismo que atravessa as

experiências com a adoção, não apenas para os adotantes, mas também para os profissionais envolvidos.

Entre elas, destacamos: trabalhar a temática das relações raciais e do racismo em grupos profissionais

(psicologia, serviço social, direito), bem como abordar a questão das “preferências” e os aspectos raciais

entre os habilitandos que devem participar de grupos em processos de habilitação, assim como, abordar

o tema do racismo nas entrevistas de futuros adotantes com as equipes das Varas de Infância. Tratar

o tema com famílias e poder acompanhá-las em sua constituição em meio à interracialidade também é

muito importante para que não se agravem dificuldades que porventura possam ocorrer no processo de

adoção e decorrer do convívio inter-racial em uma sociedade marcada pelo racismo.

É de fundamental relevância levar o tema do racismo aos grupos de habilitação, falando sobre cultura

racista e como ela atravessa nossas escolhas. É possível perceber que nos grupos alguns pretendentes à

adoção mantêm um discurso que nega a existência do racismo, corroborando o discurso da famigerada

democracia racial brasileira e considerando exagero algumas manifestações que põem em dúvida

essa premissa. Não raras vezes, encontramos também falas de profissionais que desconsideram as

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220desigualdades raciais e atribuem explicações unicamente ao desejo em um plano individualizado e como

se fosse inquestionável. Ao mesmo tempo, importante dizer que o grupo de habilitação para a adoção não

é uma tentativa de imposição aos adotantes do perfil de crianças a ser escolhido, mas uma possibilidade

de reflexão, importante para ampliar as percepções em relação à adoção e a sua condição de adotante, o

que implica em fazer variar e se deslocar o que poderia ser uma forma única de lidar com a questão.

O racismo está presente em vários momentos do cotidiano, entretanto há uma tendência de naturalizar

os episódios nos quais a discriminação racial acontece. Dizer que somente o desejo é o norteador

de escolhas diante de um perfil para adoção é desconsiderar que tal aspecto não está isolado de um

contexto cultural e que, no caso do Brasil, mostra-se historicamente racista. Ao colocar em análise esses

pontos não há uma intenção acusatória ou moralizante diante dos pretendentes à adoção, mas o intuito

explícito de trazer à tona o reconhecimento que o tema necessita ser abordado no âmbito da psicologia e

das atuações psicojurídicas.

Abordar o tema do racismo nas discussões sobre adoção constitui tentativa de não silenciar um aspecto

que nos atravessa cotidianamente e que por muitas vezes negamos, mesmo sem perceber. Fazer

pensar o que muitas vezes, nos discursos e nas práticas, contribui para deixar de fora a criança negra da

possibilidade de ser filha, reproduzindo assim um contexto de exclusão e discriminação.

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autoria

resumo

ANAMARIA SILVA NEVES

Doutora pela Universidade de São Paulo – USP e Professor Associado III do Instituto de

Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia – UFU.

CONTATO: [email protected]

GIOVANA LEÃO C. TEIXEIRA

Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário de Patos de Minas e mestranda em

Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU.

CONTATO: [email protected]

BRUNO CASTRO RIBEIRO

Graduado em Psicologia pelo Centro Universitário de Patos de Minas.

CONTATO: [email protected]

Este ensaio tem por objetivo colocar em questão o lugar que ocupa a psicanálise quando se

trata da necessidade – aqui colocada enquanto fome biológica – e da falta impulsionadora

do desejo tal como apresentadas por Carolina Maria de Jesus em seu Quarto de despejo. Para

tanto, faremos um recorte sobre a partir de qual espaço a autora escreve quando faz referência

ao nome da obra e também sobre de que lugar-espaço a psicanálise é convocada para discuti-

la. Tomamos como norteador desse trabalho o conceito de “desamparo discursivo” para, em

sequência, propormos que Carolina não está do lado de tal desamparo, mas daquele que

produz estranhamento e criações possíveis. A partir do estranhamento da autora em relação

ao seu estado de desamparo, a escrita é empenhada e inscreve, por um lado, a singularidade

da autora e, por outro, retrata vetores sociais e sua lógica produtora de desigualdades. O

lugar da exclusão é, principalmente, o lugar da ausência, marco do desejo de quem escreve.

A pertinência deste trabalho é dada pela necessidade de os pesquisadores que estudam a

psicanálise investigarem o papel de sua ciência na leitura de uma situação-limite como a da

autora. Na contramão do que as ciências tutelares seguem disseminando, considera-se que,

Entre a necessidade e a falta: há lugar para a psicanálise nos quartos de despejo?

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223 se há um espaço para a psicanálise discutir as desigualdades brasileiras e o real da falta que

envolve Carolina, este só poderá ser ocupado a partir da constatação de que existe o sujeito

do inconsciente, atravessado pelo social, e que não será abafado por discursos científicos que

assim o pretendem.

PALAVRAS-CHAVE: Carolina Maria de Jesus, quartos de despejo, psicanálise, falta.

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224Este trabalho, ao tomar como ponto de partida a obra Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, tem

como objetivo analisar qual o lugar destinado à psicanálise ao se deparar com os “quartos de despejo”

brasileiros. Com efeito, é por demais conhecida a ideia de que o psiquismo não é distinguido pela classe

econômica em que se encontra inserido o sujeito. Todavia, a miséria em que se encontram Carolina e seus

filhos não pode, simplesmente, ser relegada ao esquecimento de análise, sem que as particularidades da

ordem do afeto e do desamparo impostas à trama familiar sejam colocadas em cena.

Pensar uma obra psicanaliticamente incorre a possibilidade de impor conceitos que retirem de seu

cerne toda a riqueza que havia antes em seu não-sabido teórico. Por outro lado, coloca-la à margem

de qualquer análise possível pode acarretar uma perda inestimável ao deixar-se de interrogar sobre o

lugar da psicanálise ao tratar de uma vida escrita por necessidades gritantes, pela falta e pelo desejo de

inscrição de um lugar a partir da escrita.

Neste percurso, tomamos como norteadora desse ensaio a seguinte questão: afinal, o que quer a

psicanálise com os “quartos de despejo” brasileiros?

DAS NARRATIVAS EM PSICANÁLISE

Começamos esse texto fazendo menção à relação entre a psicanálise e sua escrita que, por vezes,

se aproxima de um fazer literário – o qual não deixa de estar ancorado em arcabouços teóricos e

metapsicológicos. Assim, o discurso freudiano construído por seus relatos clínicos foi, em seu tempo,

bastante criticado pela comunidade médica que refutava a metapsicologia, afirmando que a clínica de

Freud se aproximava, primeiramente, da literatura e, posteriormente, da arte (Birman, 2014). Sabe-se

que, em Freud, a figura da enfermidade, do doente, foi ultrapassada pela figura do sujeito (Birman, 2014),

que construía suas narrativas. Tais narrativas eram então passíveis de interpretações e de construções de

casos. Birman (2014) assinala que foi em decorrência disso que

as narrativas clínicas empreendidas pelo discurso freudiano provocavam ruídos

na comunidade médica, que reconheciam a diferença que estava em pauta. O que

sustentava esta diferença era a composição de um estilo de narrativa clínica centrada

na figura do sujeito, e não mais na da enfermidade. Além disso, se a narrativa clínica

psicanalítica foi aproximada do campo da literatura, articulando-a com a narrativa

romanesca, isto se deve à conjunção entre a figura do sujeito e a figura da personagem

literária. (p. 27)

O salto teórico empreendido por Freud foi, então, o de realizar um deslocamento decisivo do registro da

anatomia para o da linguagem. Seria justamente em decorrência desse salto que a concepção do corpo

falante se tornou possível e pensável (Birman, 2014). Nesse sentido, de acordo com o autor, a pulsão de

morte estaria representada pelo silêncio, enquanto a pulsão de vida estaria ligada à potência da palavra

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225e da linguagem. Daí porque, no ensaio de 1920, a respeito da pré-história da técnica analítica, Freud

“formulou como a técnica das associações livres a que os analisantes deveriam obedecer na experiência

analítica [que] se baseava no livre uso da imaginação realizada pelos escritores para forjar as suas

produções literárias” (Birman, 2014, p. 35).

A imaginação dos escritores, mencionada em Freud, utilizada na produção literária, é alimento para a

elaboração da rica obra de Carolina Maria de Jesus: autora que produziu romances, peças teatrais e

músicas, além de seu diário Quarto de despejo. Todavia, como se verá a seguir, em momentos vários sua veia

criativa foi entulhada por saberes editoriais que passaram a dizer o que seria ou não importante em sua

obra, além de criticar sua predileção por gêneros literários outros, bem como pela música. A ordem era para

que, depois de Quarto de despejo, nada mais fosse escrito, cantado ou falado. A ordem era a de silêncio.

Nesse misto de silêncio e voz, Carolina continuou a escrever e cantar, ainda que o reconhecimento de suas

obras pós-Quarto de despejo tenha sido bastante tímido. Com o intuito de se pensar sobre sua trajetória,

marcada pela necessidade e pela falta, passaremos adiante a uma análise acerca os discursos que tinham

por finalidade naturalizar uma figura pobre da favela, sem que quaisquer outras perspectivas além daquela

de ser uma favelada que escreve pudessem ser alcançadas. A fome marcou sua trajetória na Favela do

Canindé, enquanto a falta se fez presente em toda a vida, mesmo em sua posterior casa de alvenaria.

SOBRE A NECESSIDADE E A FALTA

É impossível pensar sobre a escrita de Carolina sem que a necessidade orgânica de seu corpo seja

contemplada. Não há psiquismo que sobreviva sem alimentos e, obviamente, a comida é um deles. A

amargura da fome na boca e o amarelado que turva sua visão da vida, por vezes, levam a autora a pensar

que foi marcada pelo destino a seguir, com a fome. Comer, ter o que comer, para Carolina, é “o mais

lindo dos espetáculos” – que retira o gosto da fome da boca e a cor amarela do céu, árvores e pássaros.

A privação chega ao seu limite existencial, empurra para um “hoje eu não canto”, para a quase-perda da

vontade de viver – que é mais uma vez preenchida a cada dia pelas invenções de catação e escrita de um

lugar, um espaço de pertencimento que é só seu.

Eu deixei o leito as três da manhã porque quando a gente perde o sono começa a

pensar nas miserias que nos rodeia. ... Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo

vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. ... É preciso

criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela. (Jesus, 1963, p. 52).

Freud (1908/1996), em seu texto “Escritores criativos e devaneios”, faz uma correlação entre o escritor

criativo e a criança que brinca: ambos criam um mundo de fantasia que, na verdade, levam muito a sério.

Neste, investem uma “grande quantidade de emoção”, ao mesmo tempo em que mantem uma nítida

separação entre o ambiente fantasioso e a realidade (Freud, 1908/1996, p. 135). Assim, ao deixar de

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226brincar, o adulto passa então a fantasiar, a devanear. Ao partir para o exame de algumas características

do fantasiar, o autor supõe a tese de que a pessoa feliz nunca fantasia, mas apenas a insatisfeita. Logo,

as forças que motivam as fantasias são os desejos insatisfeitos, sendo toda fantasia a “realização de

um desejo, uma correção da realidade insatisfatória” (Freud, 1908/1996, p. 137). Ao fantasiar estar em

um castelo que reluz na luz do sol, Carolina diz criar esse ambiente para esquecer que está na favela.

Enquanto houvesse espaço para a fantasia, haveria possibilidade de reinvenção de si. Fantasiando, a falta

intrínseca à sua vivência poderia ser sustentada.

Nesse sentido, se, por um lado, enquanto escritora, Carolina Maria de Jesus incontestavelmente usava

de sua imaginação para fazer de sua rotina, em certos momentos, poesia – ressaltamos, ainda que seu

lirismo tenha sido ofuscado por cortes editoriais –, por outro, sua escrita foi também calcada na tentativa

de dar conta do real de sua vida. Ao abordar esse real, em suas últimas consequências não-delineável,

ela diz: “É preciso conhecer a fome para saber descrevê-la” (Jesus, 1963, p. 26). A intimidade com a fome,

que habita os corpos de toda a sua família, suplica pela invenção de um faz-de-conta: um “faz-de-conta

que eu estou sonhando”. A invenção se faz diária, a catação de papéis e latas, a busca por água e ossos. A

comida assume na família lugar de afeto: “Hoje comprei marmelada para eles. Assim que dei um pedaço

para cada um percebi que eles me dirigiam um olhar terno. E o meu João José disse: – Que mamãe boa!”

(Jesus,1963, p. 17).

DOS CORTES E DA NARRATIVA

Ainda que a invenção diária esteja amplamente presente em seu cotidiano, como foi citada no tópico

anterior, não se pode deixar de mencionar a constante manipulação de sua escrita a partir da edição

que se interpôs nos trâmites de publicação do livro, que durou de 1958 a 1960 – tempo excessivamente

longo de espera, obviamente, para quem vivia com fome. De acordo com Valeria Rosito, em conferência

no VI Congresso Nacional de Direito, Psicanálise e Literatura, Maria Carolina de Jesus sugere ter nojo

do diário escrito, preferindo gêneros diferentes de literatura, como o romance e de peças teatrais. O

estilo diarístico foi, de acordo com Carolina (1960 apud Rosito, 2017), sugerido pelo editor em função de

sua maior atratividade pública. Supõe-se, aqui, que o sentimento de nojo mencionado pela autora não

esteja ligado ao gênero literário em si, mas às representações trazidas pelo diário, aos cortes e constantes

ordens recebidas pela forma com que ele deveria ser escrito. Imposições dramáticas de como se deve

escrever uma vida, em obra.

O empobrecimento do lirismo e de sua erudição, apresentadas por Rosito (2017) a partir da edição do

livro, dão lugar muito mais a uma escrita descritiva de seus arredores do que das reflexões feitas pela

autora, como se pode ver no trecho seguinte, em que as partes em itálico foram suprimidas da narrativa:

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227Quando comecei a escrever, ouvi vozes alteradas. Faz tanto tempo que não há briga na

favela, uns quinze dias. Pensei até que os favelados estavam lendo Sócrates: o homem

que não gostava de polêmica. Ele dizia que pode-se realizar uma assembleia e resolver os

problemas com palavras. Era Odete e seu esposo que estão separados, brigavam porque

ele trouxe outra mulher no carro que ele trabalha. (Jesus, 1960 apud Rosito, 2017).

A invenção de Carolina foi, em sentidos vários, cortada, distorcida: empobrecida. Aos olhos do corpo

editorial, o seu corpo, a sua linguagem, as suas vestimentas e a decoração de sua posterior casa de

alvenaria deveriam ser um todo que tinha por necessidade incorporar um simulacro da pobreza: a imagem

do dejeto e da autora favelada tinham que ser levadas às últimas consequências, por toda a vida. Carolina

deveria seguir como porta-voz de sua única possibilidade: ser uma favelada que, surpreendentemente,

escrevia. Entretanto, apesar de ter sofrido cortes em várias passagens em que demonstra conhecer

pensadores não populares e escrever liricamente a sua contemplação da natureza e das ambivalências

humanas, Carolina, em seu Quarto de despejo e em obras que não tiveram grande reconhecimento pela

mídia, “desafiou incontáveis códigos sociais e acadêmicos vigentes” (Rosito, 2017).

O desafio de tais códigos citados se dá a partir de suas construções narrativas. Carolina, ao abordar de

forma literária sua existência em um mundo de desigualdades sociais, fala sobre a errância de sua miséria

como condenação. A errância e a miséria a ela condenadas empurram para uma construção narrativa que

é muito própria. A autora diz: “Hoje não estou nervosa. Estou triste” (Jesus, 1963, p. 93). Ao nomear o

que sente, Carolina passa de uma pura existência não-refletida para criar seus discursos literários e suas

formas de estar no mundo. Seguindo por esse caminho, o conceito de “desamparo discursivo” de Rosa

(2016) será apresentado para, em sequência, apostarmos no estranhamento criativo apreendido pela autora.

DO DESAMPARO DISCURSIVO AO ESTRANHAMENTO CRIATIVO

A errância apresentada por Carolina é anunciada por Rosa et al (2009), ao dizerem que ser sujeito não

é ser essência, mas movimento, errância, um caminhar que não cessa em seu pensamento: vida sem

repouso. Todavia, existem “especificidades nas estratégias clínicas quando o exílio ou exclusão é imposto

pelo Outro que obriga a vagar sem pouso e o tratamento não é demandado” (Rosa et al, 2009, p. 501).

Depreende-se dessa afirmação que, apesar de os sujeitos estarem em posição de errância de si, na

clínica da exclusão, o Outro – aqui encarado enquanto tesouro dos significantes que constrói discursos

sociais – obriga homens e mulheres excluídos a se deslocarem incansavelmente rumo às suas reformas-

de-si. Nesse caminho, as experiências de exclusão, de acordo com Bauman (2001), são vivenciadas

como inteiramente pessoais e subjetivas, ao invés de serem inscritas em uma agenda pública. Para Rosa

(2016), é dessa forma que a “invisibilidade dos conflitos gerados no e pelo laço social recai sobre o sujeito,

individualizando seus impasses, patologizando ou criminalizando suas saídas” (p. 24).

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228A pobreza de Carolina, enquanto parte de uma massa favelada, foi patologizada enquanto vivia em seu

barracão na favela do Canindé. Após a publicação de sua obra, o discurso construído sobre a autora

continuou a nomeá-la enquanto favelada que escreveu denúncias, e não como autora que produzia arte.

Nesse caminho, passaremos a abordar o conceito de desamparo discursivo, apresentado por Rosa (2016)

para adiante fazermos um contraponto entre tal conceito e as narrativas produzidas por Carolina.

O conceito de desamparo discursivo é apresentado por Rosa (2016) e se refere à desqualificação

do discurso do sujeito colocado à margem da sociedade: ao culpabilizá-lo por sua condição social

plurideterminada, este é desarticulado dos discursos social e político que “promovem o seu desamparo”

(p. 47), produzindo neste um silenciamento. Logo, “sem endereçamento possível ao Outro, o sujeito

silencia, sendo lançado ao não senso e à dificuldade de reconhecer ele mesmo, seu sofrimento, sua

verdade, seu lugar no laço social e no discurso” (Rosa, 2016, p. 47).

A partir do exposto, apesar de a desigualdade de forças no campo social serem produtoras de enlaces

que, por muitas vezes, “condicionam a pertença social à submissão sistemática aos parâmetros

dominantes” (Rosa, 2016, pp. 24-25), a naturalização do desamparo discursivo não é afirmada por

Carolina Maria de Jesus em seu quarto de despejo. Ao contrário, a autora reconhece as mazelas

produzidas pela política, as formas desumanas com que os favelados são tratados pelos donos

de empresas alimentícias e etc. Ao sustentar seu estranhamento diante do sistema em que está

irremediavelmente inserida, Carolina se opõe ao silenciamento sistemático de sua vida – mais uma vez,

ainda que tenha sido por diversos lados barrada pelo discurso do Outro. Logo, é do estranhamento de

Carolina que advém a potência criadora que fez da palavra sua capacidade de singularizar a forma de

estar no mundo.

Assim, se o traumático está ao lado do instante perpétuo que se presentifica ao sujeito, promovendo

o silenciamento do mesmo, uma “mordaça da palavra” (Rosa et al, 2009) e, consequentemente, a

incapacidade de se metaforizar o sofrimento, a escrita de Carolina vai de encontro a tal silenciamento: ao

escrever e recriar metáforas diárias para o seu sofrimento, bem como o sofrimento de sua comunidade, a

autora inverte o giro do apagamento social, do “desamparo discursivo” (Rosa, 2016) e resguarda um lugar,

ainda que este lugar seja metaforizado por um Quarto de despejo .

Nesse sentido, a invenção de Carolina se dá a partir do estranhamento em relação ao seu estado de

desamparo: a escrita é empenhada e inscreve, por um lado, o desejo de Carolina – por mais que tal desejo

se transpareça em nojo – e, por outro, retrata vetores sociais e sua lógica produtora de desigualdades.

O lugar da exclusão é, principalmente, o lugar da ausência, marco do desejo de quem escreve. É nesse

sentido que Carolina está inscrita na concepção de contemporâneo referido por Giorgio Agamben

(2009 apud Rosa, 2016); e, para o autor, o contemporâneo

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229não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nestas a parte da

sombra, a sua íntima obscuridade; aquele que percebe o escuro do seu tempo como

algo que lhe concerne e não cessa de interpela-lo, que recebe em pleno rosto, o facho

das trevas que provém do seu tempo. (p.28)

Destarte, a autora não só inscreve sua singularidade criativa em Quarto de despejo como consegue

contemplar o quadro social em que vive. O Quarto de despejo representa tanto os seus próprios sofrimentos

escritos quanto aqueles relacionados às contemporâneas dimensões racial, migratória, de gênero, violência,

moradia e miséria. Em sua narrativa, por várias vezes a autora faz menção à desigualdade entre negros

e brancos, às desventuras vividas pelos “nortistas” e portugueses, bem como à violência sofrida pelas

mulheres que apanhavam em seus barracões e eram impelidas a saírem nuas pela favela para fugirem

de seus agressores, entre outras violências. É diante dessa conjuntura sócio política e subjetiva que nos

colocamos a questão: quais as possibilidades e potência da psicanálise nos quartos de despejo?

QUARTOS DE DESPEJOS PSICANALÍTICOS?

Quando estou na cidade tenho a impressão de que estou na sala de visita com seus

lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na

favela tenho a impressão que sou objeto fora de uso, digno de estar num quarto de

despejo ... Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-

se ou joga-se no lixo”. (Jesus, 1969, p. 33).

Maria Rita Kehl, ao escrever o prefácio de “A clínica psicanalítica em face da dimensão sociopolítica do

sofrimento”, livro de Miriam Debieux Rosa (2016), questiona: “o que pode o instrumental psicanalítico,

criado para investigar a razão inconsciente do sofrimento individual, diante do desafio de uma clínica

do social?” (p. 7).

Apesar de a clínica psicanalítica e a política terem sido, a princípio, constituídos em diferentes campos

(Rosa, 2016), como se não provocassem reverberações mútuas, havemos de considerar a existência

da prática psicanalítica clínico-política enquanto campo epistemológico ético e político que leva em

conta as “especificidades dos sujeitos e as vicissitudes de suas demandas em contextos de exclusão e

violência” (Rosa et al, 2009, p. 498). Logo, o cerne da subversão psicanalítica está em “não desenraizar o

sujeito de seu tempo” (Rosa, 2016), abordando a violência do capitalismo e de seus discursos dirigida aos

sujeitos contemporâneos.

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230Nossa perspectiva é de elucidar o sofrimento do sujeito dado os diferentes

lugares ocupados no laço social, questão que nos exigiu debruçarmos sobre o

desenvolvimento em Lacan acerca dos laços sociais como laços discursivos. Desta

concepção que pudemos detectar a artimanha dos discursos do poder de apresentar

o discurso social e político como se fosse o campo da linguagem disponível ao sujeito

(discurso do Outro), para confundir e enredar o sujeito em suas propostas de laço

social. Quando certos discursos sociais se travestem de discurso do Outro (campo da

linguagem) para obturar a polissemia do significante e impor a sua verdade ao sujeito

temos um problema político e clínico. (pp. 185-186)

Na contramão do que as ciências tutelares seguem disseminando, ao imporem seus próprios discursos

aos sujeitos colocados à margem da sociedade, considera-se que, se há um espaço para a psicanálise

discutir as desigualdades brasileiras e o real da falta que envolve Carolina, este só poderá ser ocupado

a partir da constatação de que existe o sujeito do inconsciente, atravessado pelo social e pela dimensão

sociopolítica de seu sofrimento.

Com efeito, a escuta psicanalítica – ainda que esta se dê a partir de uma leitura-escuta – das vivências

e experiências de Carolina se difere das práticas diagnósticas autoexplicativas das ciências que retiram

“artificialmente o sujeito da cena institucional e discursiva” de modo que este fique “abstratamente

suspenso da trajetória institucional, do contexto social e histórico” (Rosa, 2016, p. 196). Tal diferença

é demarcada ao se constatar que a escritora foi produtora de um discurso singular, marcado pelas

peculiaridades de um real que afetava toda a sua comunidade e que, dessa forma, sua escrita não tem

necessidade de ser preenchida e incansavelmente abafada por despejos analíticos.

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231REFERÊNCIAS

Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. (Plínio Dentzien, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

Birman, J. (2014). Escrita, trauma e violência em psicanálise. Cadernos de psicanálise, 30(33), 19-47.

Freud, S. (1996). Escritores criativos e devaneios. In S. Freud, Edição Standard das Obras Psicológicas

Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1908).

Jesus, C. M. (1963). Quarto de despejo: diário de uma favelada. Edição Popular.

Kehl, M. R. (2016). Prefácio. In M. D. Rosa, Psicanálise, política e cultura: a clínica em face da dimensão

sócio-política do sofrimento. São Paulo: Ed. Escuta/Fapesp.

Rosa, M. D. et al. (2009). A condição errante do desejo: os imigrantes, migrantes refugiados e a prática

psicanalítica clínico-política. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 12(3), 497-511.

Rosa, M. D. (2016). Psicanálise, política e cultura: a clínica em face da dimensão sócio-política do

sofrimento. São Paulo: Ed. Escuta/Fapesp.

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autoria

resumo

DANIELLE STEPHANIE DE OLIVEIRA

Mestranda do programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de

Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

As possibilidades das cartas para compreensão do sujeito de enunciação e sujeito do enunciado nas cartas da Carolina Maria de Jesus

A partir das sete cartas encontradas no acervo da escritora Carolina Maria de Jesus,

pretendemos abordar questões relacionadas ao sujeito e o conceito de verdade. Pretendemos,

além disso, realizar uma síntese teórica acerca da escrita autobiográfica para, então, nos

debruçarmos nas análises de algumas cartas da escritora, a fim de promover uma discussão

sobre a sua relevância na e para a literatura brasileira e os estudos da cultura popular negra.

Para a leitura das cartas, numa perspectiva teórica da escrita autobiográfica enquanto gênero

de fronteira, nos baseamos em Deleuze, Nietzsche e Elizabeth Muylaert Duque-Estrada, e,

para a releitura das cartas, utilizamos texto do sociólogo Stuart Hall e a biografia da escritora,

que contém textos organizados por José Carlos Sebe Bom Meihy e Robert M. Levine.

PALAVRAS-CHAVE: carta, sujeito, Carolina de Jesus, autobiografia

SUMÁRIO

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233“As cartas são um rizoma, uma rede, uma teia de aranha”. Essa frase compõe a definição do que é a carta

para Deleuze e Guattari (2014), em se tratando da literatura kafkiana, em Kafka: por uma literatura menor.

É interessante pensarmos a função de rizoma da carta através das possibilidades que ela proporciona,

inclusive por que, situada no entre-lugar, a carta figura como um gênero de fronteira; logo, pressupõe-se

que a sua definição é uma constante de ressignificação que implica nas diversas direções em que uma

rede pode ser tecida, ou seja, essas diversas direções são as possibilidades da carta, na sua capacidade de

ser multifacetada, plurissignificativa e pluri-interpretativa.

Sabemos que a carta possui um discurso híbrido, cujo tema principal é, geralmente, o sujeito. É

importante destacar que a participação desse sujeito, seja ele o remetente ou o destinatário, é

questionada constantemente, uma vez que, segundo Rodrigues (2015), ao se tratar da carta, estamos

“lidando com uma escrita complexa que flutua entre fronteiras do público e do privado, do autobiográfico

e da encenação, da verdade e da ficção, do histórico e do literário” (p. 223). Todavia, a carta está inserida

na perspectiva da escrita de si, com a ressalva de que esse tipo de escrita pressupõe um deslocamento e

essa ação implica no “eu” tornando-se o “outro”, que escreve para outro ou outros:

Mas como as cartas funcionam? Sem dúvida, em virtude de seu gênero, conservam a

dualidade dos dois sujeitos: no momento, distingamos sumariamente um sujeito de

enunciação como forma de expressão que escreve a carta, um sujeito como forma

de conteúdo do qual a carta fala (mesmo se eu falo de mim...) ... Em lugar de um

sujeito de enunciação se servir da carta para anunciar sua própria vinda, é o sujeito

de enunciado que vai assumir todo um movimento tornado fictício ou aparente.

(Deleuze & Guattari, 2014, p. 61)

A perspectiva deleuziana de funcionamento da carta estabelece a dualidade dos sujeitos: o que escreve

sendo o sujeito de enunciação e o sujeito do enunciado sendo de quem a carta fala. Ambos estão

inseridos na concepção de que “eu falo de mim”, o que faz com que o sujeito do enunciado se sobreponha

ao sujeito da enunciação não por meio dele mesmo. Ao se tornar sujeito do enunciado, a ação a seguir

é a de “um movimento tornado fictício ou aparente”, ou seja, o sujeito do enunciado deixa de ser ou de

representar a verdade absoluta do sujeito para tornar-se o sujeito ficcionalizado.

Situada no entre-lugar da autobiografia e da ficção, a carta, enquanto uma das possibilidades de

escrita de si, carrega um discurso que não tem compromisso com a verdade. O não compromisso com a

verdade surge por meio de Nietzsche, em Além do bem e do mal, por exemplo, através de um discurso de

deslegitimação na filosofia. O que se convencionou chamar de “verdade” pelos filósofos anteriores, por

ele foi colocado como oposto, a “inverdade”.

Ao se questionar a verdade, ocorre, então, o questionamento do sujeito, principalmente quando diz

respeito à sua subjetividade, que é do que trata a escrita de si. Duque-Estrada, apoiando-se em teóricos

como Foucault e Deleuze, sugere que, quando se trata do sujeito e da sua subjetividade, deve-se levar em

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234conta não a sua liquidação, mas, a partir dos questionamentos feitos, busca-se reinterpretá-lo, descentrá-

lo. Segundo a autora, citando Deleuze:

O abstrato não explica nada, deve ser ele mesmo explicado: não há transcendência,

não há Um, não há sujeito (nem objeto), não há Razão, há somente processos que

podem ser de unificação, de subjetivação, de racionalização, mas nada mais.”

A desconstrução inclemente da noção clássica de sujeito tem como horizonte,

independentemente das suas variadas formulações, a abertura para a compreensão

de uma subjetividade sempre em devir, de processos de subjetivação que não

atendem a nenhuma finalidade preconcebida, pois que elas só se processam no

acontecer contínuo e aleatório da própria vida. (Deleuze apud Duque-Estrada,

2009, p. 39)

Essa assertiva é, pois, uma das possibilidades do sujeito, colocando-o fora do seu posicionamento

clássico e que configura numa “movimentação topológica”. A subjetividade sempre em devir permite

ao gênero epistolar, ainda que situado no limiar dos gêneros textuais, a sua sobrevivência, por meio de

sua constante ressignificação, e por que multifacetada, permite que os processos de subjetivação, de

racionalização, de que fala Deleuze, ocorra. E, para além disso, permite afirmar que a escrita de si abarca

um conhecimento que não existe fora da vida, e que, para tal, é necessário que ocorra a inclusão de

elementos “subjetivos”:

Neste sentido, o filósofo, para Nietzsche sempre foi um autobiógrafo, e a inclusão de

elementos “subjetivos” no seu pensamento não constitui uma interferência indevida,

mas uma “reapropriação” do lugar que sempre lhe foi próprio. E é por isto que, embora

tenha sido o único filósofo que, lembra Derrida, trata a filosofia com o seu nome e

em seu nome, Nietzsche faz a sua crítica da subjetividade não a partir do lugar de

um sujeito/ autor fundador de sentido, mas, antes, de um sujeito performático, que

submerge na sua contingencialidade histórica, cultural e pulsional e percebe-se como

um ser corporificado, construído numa multiplicidade de máscaras e papéis. (Duque-

Estrada, 2009 p. 45)

Ao nos depararmos então com esta afirmativa, podemos considerar o caráter performático do sujeito,

associá-lo ao caráter multifacetado da carta e, assim, problematizar, pensando na proposta de sujeito/

autor e autor/ obra, a análise de qual é esse espaço fronteiriço que a carta ocupa, uma vez que, se o

filósofo é um autobiógrafo, o autor da carta é, então o personagem, que configura o sujeito do enunciado.

E assim, por meio dessa análise poder, a priori, considerar, categoricamente, a carta como “parte

integrante da máquina de escrita ou de expressão” de seu autor e, para além disso, retirá-la de um status

autobiográfico e documental, apenas. Segundo Deleuze e Guattari (2014):

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235Não há lugar para se perguntar se as cartas fazem ou não parte da obra, nem se

elas são fonte de certos temas da obra; elas fazem parte integrante da máquina de

escrita ou de expressão. É dessa maneira que se deve pensar as cartas em geral como

pertencendo plenamente à escrita, fora da obra ou não, e compreender também

porque certos gêneros como o romance tomaram emprestada naturalmente a forma

epistolar. (p. 63)

A partir disso, podemos considerar que a carta, como rizoma, tomou proporções que vão além de um

conceito puramente biográfico. Vão além de um objeto que participa exclusivamente de um arquivo

do escritor e que, inclusive, nos faz ponderar acerca da função do sujeito da enunciação e o seu

deslocamento para o sujeito do enunciado, uma vez que, a partir da perspectiva de que a carta é parte

incontestável da escrita, podendo fazer parte ou não da obra de um escritor, como um texto que se

apropria da memória e do confessional.

Pensando na problemática do sujeito e pensando nas várias facetas da carta, propomos uma breve

análise de algumas cartas da escritora Carolina Maria de Jesus. É importante ressaltar que Carolina

de Jesus não era uma missivista como foi Mário de Andrade, por exemplo, no sentido de um projeto

epistolográfico. Em seu arquivo foi possível localizar apenas sete cartas, todas escritas pela escritora e

não é possível saber se estas cartas chegaram a ser enviadas. Além disso, suas cartas contribuem para

reforçar aspectos gramaticais e ortográficos da escritora, bem como seu progresso na escrita. São cartas

que possuem certo valor afetivo1, mas que geralmente tratam-se de questões relacionadas a editoras, a

publicações, projetos literários e maneiras de promover esses projetos:

Espero que o senhor tenha conseguido falar com o senhor Arlindo da Silva. É que

eu tive um encontro com uns jovens que me visitaram quando eu residia na favela.

Eles eram estudantes e me davam livros e cadernos. Agora eles são editores. Vieram

procurar uns contos para publicar. Eles vão fazer umas reportagens só com os

escritores negros. Eu dei uns contos para eles lerem. (Jesus, 1976,. s/p)

Para além disso, temos que lembrar que, Carolina de Jesus era escritora de diários2, embora sempre

tenha declarado que seu projeto literário principal seria a escrita de romances e promover-se através

deles. A autora declara:

1 Em cinco das sete cartas, Carolina de Jesus inicia a carta desejando felicidades ao seu destinatário.

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236Se eu decidir escrever, quero que o senhor se interesse por mim. O senhor falará por

mim. Eu quero ficar semi-afônica como estes homens. E se arranjar dinheiro para

pagá-lo. E assim, poderei dizer: que eu tenho um advogado. Estou lendo muito. Vou

ler Jorge Amado. O Veríssimo eu já li. Mas não quero ser de escrever diários. Dá muita

confusão. Diário é coisa que se deve ser escrita dia-a-dia. Só que quem escreve arranja

inúmeros inimigos. (Jesus, 1976, s/p, grifos nossos)

As cartas da Carolina de Jesus são, geralmente, direcionadas a pessoas que, em certa medida, poderiam

beneficiá-las em sua empreitada. Na carta datada em 24 de maio de 1976, que não possui o nome do

destinatário, trata-se de um advogado que poderia ser o seu intercessor: “o senhor falará por mim” e em

outro trecho ela escreve “poderei dizer que eu tenho um advogado” (Jesus, 1976, s/p). Através das cartas,

podemos perceber que Carolina de Jesus tem consciência de que como mulher, negra e pobre, a voz dela

tem pouca ressonância. Apesar disso, ela não se conformava com essa condição.

Em outras duas cartas, datadas em 8 de junho de 1976, os destinatários são Naylor de Oliveira e o Sr.

Marinho. Naylor de Oliveira foi vereador e radialista, apresentava o programa “Bairros em Desfile”,

na Rádio Nacional de São Paulo. Seu programa relatava os problemas dos bairros de São Paulo. Além

disso, Naylor de Oliveira foi um dos representantes políticos que teve importante papel na legitimação

da Umbanda no estado de São Paulo, durante as décadas de 60 e 70. Em se tratando do destinatário

Sr. Marinho, por não mencionar o primeiro nome, mas por referir-se a um sobrenome de relevância na

comunicação nacional, acreditamos se tratar da Rádio Globo, que abriu a sua filial em São Paulo em 1966,

cujo proprietário na época era o Roberto Marinho. Entretanto, essas informações não são suficientes

para saber qual é o destinatário, com sobrenome Marinho, aludia Carolina de Jesus.

2 A autora tem quatro diários publicados. São eles: Quarto de despejo (1960), Casa de Alvenaria (1961) e Diário de Bitita (1986).

Para Philippe Lejeune, a escrita de diários estaria mais próxima da verdade, seria uma “antificção”. Entretanto, Silva discorda

de Lejeune quando alega que: “é inegável que podemos identificar no diário algo como as marcas e traços do presente de sua

escritura. O diário produz páginas que se embaralham com a vida de seu autor-protagonista. Nele somos tocados pelo ar que esse

personagem respirava. Tendemos a ver nele um testemunho, ou seja, um índice, metonímia, e não uma metáfora, que é tradução

imagética e mais distanciada dos fatos arrolados. Além disso, o diário possui também uma respiração, um ritmo, que expressa e

aponta para a situação anímica e corpórea de seu autor. Os traços materiais inscritos no diário – que muitas vezes se desdobram

em características bem sensíveis, matéricas, como o estado do papel, a caligrafia, os borrões de tinta, as rasuras, etc. – reforçam o

teor testemunhal do diário. Vemos o diário como parte do evento narrado, e não como observação de segunda ordem – por mais

equivocada que esta percepção possa ser. Não se trata de uma “antificção”, como quer Lejeune, mas de uma inscrição da vida – e

da morte, vale acrescentar, pensando em toda escrita como autotanatobiografia (Derrida, 1991) – na qual a fantasia e a literatura

não impedem que acreditemos no “real” que estava na sua origem. É como se no diário se fundissem “autor” texto e temporalidade

(Silva, 2009). Esse trecho reforça o posicionamento que diz respeito a questão do sujeito nos textos autobiográficos. Ora o sujeito

figura como personagem, ora como autor, por meio do relato, ou seja, da narrativa testemunhal.

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237Uma outra carta, datada em 31 de dezembro de 1976, cujo destinatário é o diretor de cinema Gerson

Tavares, talvez seja uma das mais importantes para a análise que propomos para este texto. A carta

começa com o relato de como surgiu a favela do Canindé. Pelo relato sabemos que o diretor estava

conversando com a escritora a respeito da produção de um filme sobre a vida dela3.

Senhor Gerson Tavares,

Desejo-lhe felicidade no ano que se inicia. E agradeço-lhe o cartão que me enviou.

Escrevo-lhe para relatar como é que surgiu a favela do Canindé.

No ano de 1948, o general Craveiros Lopes, de Portugal, vinha visitar o Brasil. Ele ia

percorrer várias ruas de São Paulo. Não havia casas para o zé povinho, que dormia

debaixo dos viadutos e nos terrenos baldios. Então, o Dr. Adhemar de Barros mandou

procurar um terreno às margens do rio Tietê, para que os pobres pudessem ficar ali e

construir seus barracões.

E o Dr. Adhemar saía à noite com os carros de bombeiros, carros do Estado,

caminhões e os pobres que eles iam encontrando pelas ruas, ia obrigando-os a

entrarem nos caminhões.

As mulheres choravam dizendo: “Eles vão nos matar, porque nós somos pobres. ”

Quando o Dr. Adhemar nos deixou nas margens do Rio Tietê disse: “Eu aqui vos deixo!

E vocês constroem os seus barracões. A prefeitura vai dar um lote de 8 de frente e 12

de fundo para cada família. Pretendo retirá-los daqui, quando eu for presidente do

Brasil. Vocês devem mandar os seus filhos às escolas, porque o homem analfabeto, é

um esbulho para o nosso Brasil. Quando necessitar de algo, procure a Dona Leonor.

Eu conto com os votos de vocês. ” Eram quatro horas da manhã. Enquanto o Craveiros

Lopes permaneceu em São Paulo, nós, os pobres, não podíamos sair nas ruas – outro

detalhe: quando o senhor Manoel dormia na favela, ele usava ceroula e camiseta. E as

vezes nós acordávamos com alguém batendo batucada nas tábuas do meu barracão.

– O senhor conta quantos personagens tem o livro? – Não anotei. Será que o senhor

conseguirá mostrar uma favela nas margens de um rio? (Jesus, 1976, s/p)

Nesse trecho podemos observar que, ao relatar esse momento de sua biografia, ocorre uma seleção, para

o enunciado da carta e, para além disso, esse enunciado encontra-se fragmentado, pois, bruscamente, a

escritora interrompe a história para citar nomes de editores com os quais ela teve contato.

3 “Estou reunindo roupas velhas para o nosso filme” (Jesus, 1976, s/p).

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238No transcorrer da carta, a autora retoma o relato, que revela as condições precárias e miseráveis em que

se encontrava na época em que morava na favela do Canindé:

Estou reunindo as roupas velhas para o nosso filme. Quando eu ia catar papel, ia com

as roupas rasgadas e os sapatos velhos e rotos. Usava paletó masculino e arregaçava

as mangas. As crianças da favela andavam descalços. A única que andava calçada era a

Vera. (Jesus, 1976, s/p)

Não nos prenderemos ao relato da escritora, pura e simplesmente, para falarmos sobre a sua

vida, enquanto um simples documento. Pensando nas possibilidades da carta, propomos aqui uma

investigação, de cunho teórico, que busca explicitar algumas nuances do lugar de sobrevivência em

que se insere Carolina de Jesus. Para tal empreendimento, a carta nos serve de apoio, dentro de sua

característica de ser plurissignificativa e pluri-interpretativa, na medida em que, durante o relato da

escritora, vão se descortinando diversas reflexões que corroboram para afirmar ou reafirmar discursos

que giram em torno de uma tentativa de entender o espaço da “cultura popular negra” a que se refere

Stuart Hall (2003), mais especificamente relacionada à memória da escritora negra, Carolina de Jesus.

De acordo com Hall (2003), há as formações sociais, que são as “sociedades complexamente estruturadas,

compostas de relações econômicas, políticas e ideológicas” (p. 307). Ao se considerar as formações

sociais, considera-se também que, dentro dessa estrutura, surja o momento da hegemonia, que

transcende o limite corporativo da solidariedade econômica pura, engloba os

interesses de outros grupos subordinados, e começa a “se propagar pela sociedade”,

promovendo a unidade intelectual, moral, econômica e política e “propondo

também as questões em torno das quais as lutas acontecem... criando, dessa forma,

a hegemonia de um grupo social principal sobre uma série de grupos subordinados”.

(Hall, 2003 p. 311)

Hall (2003) ainda nos alerta que a hegemonia é um “momento” historicamente muito especifico e

temporário, sendo passível de alternâncias e períodos de crise. Segundo o autor, é por meio dessas crises

que o sistema hegemônico se desintegra. A partir de uma perspectiva de formação da hegemonia dentro

de um consentimento coletivo e da sua desintegração por meio da crise, surge Carolina Maria de Jesus,

que figura em direção a uma necessidade, um apelo midiático, durante o fim dos anos 50 e início dos anos

60, para algo que viria ser a imagem da favela e isso se deu com o best-seller Quarto de Despejo (1960),

como uma tentativa de escancarar os problemas sociais brasileiro.

Ao passar por um processo de desintegração da hegemonia, ocorre então o que poderíamos chamar de

passar pelas frestas ou cisões que a desintegração proporciona, ou seja, fazer o movimento inverso e

ocupar temporariamente o que seria o espaço da elite brasileira. Segundo Hall (2003):

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239Dentro da cultura, a marginalidade, embora permaneça periférica em relação

ao mainstream, nunca foi um espaço tão produtivo quanto é agora, e isso não é

simplesmente uma abertura, dentro dos espaços dominantes, à ocupação dos de

fora. É também o resultado de políticas culturais da diferença, de lutas em torno da

diferença, da produção de novas identidades e do aparecimento de novos sujeitos no

cenário político e cultural. (p. 338)

Em consonância com essas afirmativas, podemos considerar que também havia em Carolina de Jesus

outro apelo, que atinge diretamente a cultura popular negra, a saber, o “da mercantilização, das indústrias

onde a cultura penetra diretamente nos circuitos de uma tecnologia dominante – os circuitos do poder e

do capital” (Hall, 2003, p. 341)

Tal mercantilização da cultura ocorreu em Carolina de Jesus com a apropriação que se fez dela.

Apropriação que se faz de mão dupla. De um lado, o contexto histórico do Brasil no início dos anos 60,

caracterizado por uma onda reformista na sociedade brasileira4, de outro uma mulher, negra e pobre, que

tinha como projeto intelectual escrever livros e que, para além disso, precisava comer.5

Na perspectiva do contexto histórico, Carolina fora feito mercadoria (Meihy & Levine, 2015). Seu livro,

Quarto de despejo, proporcionou à escritora o sucesso imediato.

A publicação do livro, ainda que a colocasse como um fenômeno exótico para

os leitores, revertia-se, para a autora, em uma promessa econômica capaz de

dimensionar suas aspirações. O contrato com a Francisco Alves lhe garantia 10% da

venda de cada livro, com um adicional de 5% destinados a Audálio Dantas. (Meihy &

Levine, 2015, p. 38)

Outro trecho da sua carta evidencia sua insistência em relação aos projetos literários, bem como seu

desgosto com a edição do livro Pedaços da fome, seu único romance publicado, além de reforçar o caráter

econômico intrínseco às suas aspirações:

4 O início dos anos 60 vinha como uma onda reformista caracterizada pelo prenúncio de que as camadas pobres poderiam

produzir figuras – no caso uma mulher negra – que levantariam a opinião pública. Esse tipo de percepção no passado era limitado

pela eficiência da máquina classista que não permitia mobilidades. Particularmente no caso das mulheres, estava definido um

papel de subserviência em que restava à condição feminina pobre, no máximo o direito de trabalhar servindo aos brancos como

cozinheiras, babás, faxineiras. O livro de Carolina servia de pretexto para se criticar um tipo de sociedade fechada e que se

autodesconhecia. Neste espaço reformulava-se o sentido da crítica nacional que teria que incluir novas situações para um país

que buscava se atualizar (Bom-Meihy & Levine, 2015).5 Esfomeada e em luta constante para conseguir comida para a sua família, a luta pela sobrevivência era – e sempre foi – o eixo

principal da argumentação de Carolina (Bom-Meihy & Levine, 2015).

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240Quando eu escrevi este livro, Pedaços da fome, o título era A felizarda, mas o

ilustrador Suzuki, muito antipático, trocou o nome do livro para Pedaços da Fome e

enfraqueceram a estória. A editora não pagou a gráfica, e o dono da tipografia deu-me

os livros. Mas está tão fraco, que eu não tenho coragem de pô-los a venda. Quando

eu puder, quero mandar imprimi-lo do jeito que eu escrevi. O livro é mais forte do que

Quarto de despejo. Tem mais críticas e mais desajustes para debates. Quando o senhor

voltar a São Paulo poderá ler os originais e se o senhor datilografar e fazer o prefácio,

poderemos ganhar muito dinheiro, e vender as traduções para os editores internacionais.

Se o dinheiro vier no meu nome, nós dividiremos os lucros. O senhor inda não me conhece

profundamente, mas eu não tenho preguiça. E não sou pernóstica. Eu vou reler os

originais novamente. Quando o senhor escrever para os editores diga-lhes que o

senhor vai publicar outro livro meu. (Jesus, 1976, s/p, grifos nossos)

Esse trecho da carta, somado ao que é exposto em sua biografia, é significativo para uma melhor

observação sobre a situação da Carolina de Jesus. É significativo também para compreendermos como a

escritora se sentia desconfortável por sua falta de autonomia nas decisões relacionadas ao seu livro.

Sabe, senhor Gerson, eu estou contente com o senhor. O senhor é mais agradável

do que o Dantas. Quando eu comprava um vestido, ele me xingava dizia que os

negros do Brasil estão habituados a viver de qualquer jeito. Que o negro não deve

ter pretensões. Por isso, e outras coisas mais, fui afastando-me dele – hoje faz 5 anos

que não o vejo. No dia 19 de agosto de 1970, completou-se 10 anos que lançamos o

Quarto e despejo – para mim foi “o quarto do diabo”. O José Carlos foi na Fermata pedir

a gravação da Valsa Rio Grande do Sul, mas desapareceu da fita. Tenho que gravar

novamente depois envio-lhe. Mas preciso tomar um xarope Recindal, porque a valsa é

estentórea6 e eu não estou muito boa para cantar. (Jesus, 1976, s/p. grifos nossos)

Carolina via em Gerson Tavares a possibilidade de recuperar o que o lançamento do Quarto de despejo

proporcionou-lhe: ascensão econômica e intelectual. Por acreditar que o cineasta poderia trazer essa

condição a ela, Carolina se sentiu confortável em dizer ao destinatário um desabafo sobre sua relação

com Audálio Dantas7. Sobre esse rompimento, Dantas (2015) declara que:

6 Refere-se aqui à voz forte.7 Jornalista que “descobriu” Carolina de Jesus e os seus diários.

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241Acredito que Carolina nunca entendeu a minha contribuição, porque depois quis

publicar outros livros e, com exceção de Casa de alvenaria, que é um diário de uma

outra situação, ou seja, de ela fora da favela, e possui uma importância muito grande

também, na medida em que mostra o choque cultural entre a favela e a cidade; o

resto foi besteira. Publicou mais três ou quatro livros, mas pagando as edições. Veja

que contradição: por que, ao invés de ela concentrar esforços...? Bem, não adianta

também dizer isto! Ela queria a glória, na sua cabeça aquilo era sucesso. A partir daí

fui me afastando, porque eu não concordava com aquilo e ela não aceitava a minha

interferência. Fui me afastando para não ter mais aborrecimentos. (p. 123)

Os dois relatos, da Carolina de Jesus e do Audálio Dantas, são delicados, revela a tensão que existiu entre

os dois e denota problemas que são mais complexos do que uma questão de relacionamento entre os

dois. De um lado está um jornalista que não via Carolina de Jesus como uma escritora, que poderia viver

em função desse ofício, pois para o jornalista, a escrita da Carolina era inferior. Além disso, do ponto de

vista da Carolina Maria de Jesus, é apresentado a nós um ambiente em que o racismo é ativo, já que o

“negro não pode ter pretensões” e, além disso, denota a “submissão” das vítimas do racismo aos embustes

das próprias ideologias racistas que as aprisionam e definem” (Hall, 2003, p. 333). Do outro lado, havia

uma escritora que tentava se promover sempre. Havia uma poeta nascitur, non fit,8 cujo esforço estava

no eixo que consistia em “matar” a sua fome e a dos filhos, alinhado à memória, que lhe proporcionou

escrever sobre ter nascido assim. Era uma condição a qual a escritora estava predestinada:

Nesta primeira obra poética que apresento, desejo relatar aos ilustres leitores como

foi que percebi minhas aptidões para a poesia. Quando completei sete anos, a minha

saudosa mãe enviou-me a escola.

...

E. Se o povo esta sorrindo então a cidade é boa. Aquela tristeza que senti foi

desaparecendo aos poucos. Só no interior eu era tranquila; mas percebi que o meu

pensamento ia modificando-se. Era uma transição que não me era possível domina-

la. Que desordem mental tremenda. Sentia ideias que eu desconhecia como se fosse

alguém ditando algo em minha mente.

Um dia apoderou-se de mim um desejo de escrever: escrevi.

...

8 Locução latina que significa “os poetas nascem, não se fazem”.

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242No fundo do meu coração eu agradeço ao saudoso e ilustre sr. Vili Aureli, por dizer-

me que sou poetisa, porque, com dois anos de grupo escolar eu não ia perceber.

Eu pensava que as coisas que brotavam na minha cabeça eram provenientes dos

meus dentes. Procurei um dentista, solicitando um exame, ele não quis extraí-los.

Eu não olvidava o sr. Vili Aureli. Era a primeira vez que eu falava com um homem

agiutadissimo e super-educado.

...

Não fiquei vaidosa com este presente que recebi da natureza, invejo as pessoas

que podem dominar a sua mente. Porque as pessoas de visões notam que a vida é

composta de cilícios e amarumes.9 (Jesus, 2015, pp. 198- 219)

Os trechos supracitados reforçam o ideal da escritora, sua necessidade em escrever constantemente

e, a partir do momento em que se viu como poetisa, sua compreensão do mundo expandiu-se, tendo a

capacidade de se colocar em um lugar superior ao da pobreza.

Voltando à escrita epistolar, podemos observar que a escritora ficou muito empolgada com a

possibilidade de fazer um filme sobre a sua história:

O senhor está ressuscitando o meu ideal e te agradeço por isso. Estive pensando:

depois que o senhor procurou-me para o filme, os que haviam se afastado de mim,

estão procurando-me novamente. Os que sabem que o senhor vai fazer o filme.

A gravadora está interessada na valsa Rio Grande do Sul. O senhor pode arranjar um

gravador, e eu gravo só para o Senhor, para que tudo seja surpresa no filme – temos

que arranjar uma cômoda velha e um pilão. O pilão eu vou arranjar. Às vezes eu socava

pão duro para os filhos. Quando eu andava pelas ruas catando papel, várias madames

me davam pães duros.

Eu não vou na Fermata gravar a valsa. Espero a sua decisão.

Outra coisa importante: a esposa do editor argentino é quem manda nele. O nome

dela é Beatriz Broide Sahavaller. Quando o senhor escrever-lhe cita o nome dela.

Enviando-lhe felicidades, etc

Creio que estamos entendidos nos pormenores referentes ao livro... e o filme tem a

cena da escola os meus filhos não tinham uniforme. (Jesus, 1976, s/p)

9 Minha vida é um texto original de Carolina Maria de Jesus. Uma versão posterior intitulada Um Brasil para os brasileiros foi

publicada na França e depois integrou a versão do Diário de Bitita. Além do mais, o fato de conter passagens relacionadas à sua

infância revela aspectos pouco valorizados de seu projeto de escritora. Um certo encanto e lirismo marcam a percepção da

pobreza antes da favela. Constatar a diferença entre a miséria que deixou saudade e a pobreza que virou denúncia possibilita o

entendimento da consciência de Carolina (Meihy & Levine, 2015).

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243Essa carta foi escrita em 1976, no dia 31 de dezembro. Carolina Maria de Jesus morreu um mês depois,

no dia 13 de fevereiro de 1977. Infelizmente, o filme não foi produzido, em decorrência também do

falecimento da escritora. Entretanto, deve-se levar em consideração que Carolina de Jesus batalhou

a vida toda para ter seus livros publicados e o seu nome em relevo na sociedade brasileira, ainda que,

contraditoriamente, a autora sempre reconhecesse o seu lugar de mulher, negra e pobre, apesar de

nunca concordar com isso.

As cartas da escritora, portanto, nos ajudam a compreender melhor a sua consciência, bem como a

compreender as condições em que ela estava inserida, enquanto sujeito da escrita epistolar, a saber, o

sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado. Numa perspectiva em que foi possível a nós observar

como era a situação desse sujeito enquanto mulher, negra e pobre.

Para além disso, pensando nos aspectos autobiográficos e ficcionais, que evidenciam e colocam sempre

em questionamento o sujeito e a sua verdade, a carta funciona uma força importante e, muitas vezes,

como iluminadora para a compreensão de tal questionamento.

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244REFERÊNCIAS

Dantas, A. (2015). Bom, eu acho que aí, modéstia à parte, é uma questão de sensibilidade. In R. M.

Levine, & J. C. S. B. Meihy, Cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus. (pp. 119-125). Sacramento:

Editora Bertolucci.

Deleuze, G., & Guattari, F. (2014). Kafka: por uma literatura menor. (Cíntia Vieira da Silva, trad.). Belo

Horizonte: Autêntica Editora.

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autoria

resumo

NATÁLIA VIEIRA PELEGRINO

Graduada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

Escrita de si e arquivamento do eu em Carolina Maria de Jesus

Este trabalho compreende uma análise, a partir dos livros Quarto de Despejo (1960), Diário

de Bitita (1986) e também da biografia de Carolina Maria de Jesus, aspectos da escrita de si

e do arquivamento do eu. Escrita de si no sentido de escrever-se, relatar a si mesmo, escrita

autobiográfica, por meio da qual a autora transita entre os espaços da memória e do passado,

entrando no espaço da ficcionalidade e no espaço psicanalítico, no qual será analisada a escrita

caroliniana sob a perspectiva da lembrança, repetindo o passado para elaborar e explicar

o presente. Levando em conta a proposta de que escrever-se é também arquivar-se, será

colocado o processo de arquivamento do eu pela escritora, posto que seu arquivo constitui-se

essencialmente de seus escritos autobiográficos.

PALAVRAS-CHAVE: escrita de si, memória, elaborar o passado, arquivo do eu

SUMÁRIO

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246INTRODUÇÃO

A escrita de Carolina Maria de Jesus desperta grande curiosidade em seu público leitor. Mulher negra

e da favela, a autora deixou uma grande quantidade de manuscritos autobiográficos surpreendentes,

a julgar pela sua pouca escolaridade e as condições em que vivia. Em consequência de seus esforços

na escrita e na sua grande produção literária, é notável seus inúmeros acervos pelo país: grande parte

da obra de Carolina é composta por escritos autobiográficos, mas a escritora se enveredou na poesia,

música, novelas, no teatro, e todo este arquivo é disponibilizado em formato de microfilmes para

pesquisas em diversos órgãos de guarda e preservação da memória.

Pensando nas definições de arquivo e de acervo, e na escrita de Carolina, o objetivo deste trabalho é

analisar – num sentido inverso ao título – a construção do arquivo pessoal da autora, e em seguida a

escrita de si, as trajetórias entre memória e passado feitas em sua escrita, como também apreender à

psicanálise, buscando não analisá-la clinicamente, no entanto, apontando sua escrita como forma de

repetição e elaboração do passado.

Para tanto, faremos, em primeiro lugar, uma breve descrição da trajetória biográfica da autora. Em

seguida, será analisado e discutido o processo de construção do seu arquivo pessoal, com um olhar

inverso, começando do arquivo público e voltando ao arquivo privado, ao espaço doméstico em que ele

foi constituído, e, em terceiro, será discutido o conceito da escrita de si em sua obra, onde também a

colocaremos como forma de perlaboração, utilizando o texto “Recordar, repetir, elaborar”, de Sigmund

Freud, tendo como corpus de análise os livros Quarto de Despejo: diário de uma favelada e Diário de Bitita.

Dessa forma, nossa análise irá explicitar a importância da guarda e conservação de seus manuscritos

como também a importância da sua escrita e testemunho como figura de resistência.

TRAJETÓRIA DA ESCRITORA

Filha de Maria Carolina e de pai desconhecido, Carolina Maria de Jesus, mulher negra, nasceu na

cidade de Sacramento, Minas Gerais, em 1914. Fruto de uma traição, a escritora soube pouco do pai,

e acreditava ter herdado dele o dom para a música e poesia. Vivia em uma casa simples, com a mãe e

o irmão, na parte pobre destinada aos negros de Sacramento. Quando pequena, teve a oportunidade

de estudar no Instituto Espírita Allan Kardec, onde cursou apenas os dois primeiros anos do ensino

fundamental, mas o suficiente para que ela tomasse gosto pela leitura e pela escrita.

Quando jovem, sofreu de uma doença desconhecida que afetava suas pernas, que a fez buscar tratamento

em cidades vizinhas. Ao voltar para sua cidade, a escritora foi presa, acusada de saber ler para fazer

feitiços e bruxarias, e logo após, quando solta, expulsa de casa pela sua mãe. Em 1937, Carolina muda-

se para São Paulo e passa a trabalhar como doméstica. Em 1948, engravida e muda-se para a Favela de

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247Canindé, localizada às margens do Rio Tietê. Mãe de três filhos (João José, José Carlos e Vera Eunice), a

escritora tira do lixo seu sustento, e dele os cadernos onde, em 1955, inicia a escrita dos seus diários.

Em 1958, o jornalista Audálio Dantas vai à favela escrever uma matéria sobre um playground instalado

pela prefeitura, e então conhece a escritora que dizia estar escrevendo um livro. Surpreso, o jornalista vai

até sua casa e conhece seus cadernos, inicia-se então, uma grande amizade, que culmina na publicação do

livro Quarto de despejo: diário de uma favela (1960), que teve grande repercussão na mídia e na cidade. Logo

após, Carolina pública Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961). Fadada ao esquecimento, Carolina

compra um sítio em Palheiros, no estado de São Paulo, e muda-se com os filhos. Neste sítio, ainda publica

O livro provérbios (1963) e Pedaços da fome (1963). O livro Diário de Bitita (1986) é publicado postumamente,

e é claramente um livro autobiográfico, em que a autora escreve suas memórias desde a infância até a vida

adulta e reflete sobre seu passado, e que também será colocado aqui como corpus de análise.

ARQUIVAMENTO DO EU

Atualmente, cinco instituições de guarda e preservação da memória mantêm o acervo da escritora

Carolina Maria de Jesus: a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro dispõe de uma coleção composta

por 11 rolos de microfilme, 14 diários autógrafos e 22 fotografias; o Arquivo Público Municipal

Cônego Hermógenes Cassimiro de Araújo Bruonswik, na Cidade de Sacramento, possui 37 cadernos

autógrafos contendo diário, romances, contos, provérbios, poemas, quadras, textos curtos e narrativas

autobiográficas; o Instituto Moreira Salles, também no Rio de Janeiro, possui dois cadernos autógrafos; o

Museu Afro Brasil, em São Paulo, possui um caderno autógrafo contendo entradas de diário; e, por fim, o

Acervo de Escritores Mineiros (AEM) do Centro de Estudos Literários e Culturais (CELC) da UFMG, que

possui 10 rolos de microfilmes idênticos aos existentes na Biblioteca Nacional e na Library of Congress:

um rolo de filme 16mm com o documentário FAVELA – Das Leben in Armut, (Favela, a vida na pobreza), de

1971, dirigido por Christa Gottman-Elter.

O agrupamento de centros de preservação da memória que mantém os acervos da escritora demonstra

a importância da recuperação e guarda do passado e reforça a discussão sobre os conceitos de “arquivo”

e “memória”. Contudo, segundo Derrida (1995), em seu texto Mal de Arquivo, não há nada menos certo

quanto o conceito de “arquivo”: “Tal conceito não é fácil de arquivar” (p. 8), uma vez que não podemos

pensar e distinguir arquivo à memória e o “retorno à origem”, pois um não se reduz ao outro. O arquivo se

constitui um lugar de autoridade e, ainda segundo o autor, “Não há arquivo sem o espaço instituído de um

lugar de impressão. Externo, diretamente no suporte, atual ou virtual” (Derrida, 1995, p. 08).

A palavra “arquivo” refere-se a arkhê, que designa ao mesmo tempo “começo” e “comando”. Tal nome

coordena, segundo o Derrida (1995), dois princípios, em suas palavras, “aparentemente”: o princípio

da natureza ou história, que seria onde as coisas começam, e o princípio da lei, onde homens e deuses

comandam, e onde se exerce a autoridade, o que leva ao sentido da palavra “arquivo” provindo do grego,

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248arkheîon: designa “local”, “casa” ou “domicílio”, a morada dos arcontes, que eram magistrados superiores,

aqueles que comandavam e detinham o poder do arquivo, em suas residências eram arquivados papéis

e documentos oficiais, dos quais eles eram os primeiros guardiões. Responsáveis não apenas pela

segurança física do arquivo, eles também detinham o poder de interpretá-los. Assim, nesta passagem

consensual, surgiram os arquivos, marcando a passagem do arquivo privado ao público. Ainda segundo

Derrida (1995), não possuímos um conceito de arquivo, apenas impressões, pois é o arquivo por si mesmo.

Carolina de Jesus possuía uma forte pulsão arquivística, e esta apresentação ostenta o poder da

escritora na sua produção, não apenas em acumular documentos, livros, papéis e tudo o que constitui

um arquivo – seus registros mostram que Carolina guardava livros e artigos de jornal, mas seu acervo

público é constituído apenas de seus manuscritos e suas fotografias –, mas também em mostrar sua

grande força produtora na escrita, visto que a maior parte do seu arquivo é composto por manuscritos

da própria escritora. Carolina arquivava-se todos os dias, através da escrita de si mesma, da potência

artística intrínseca.

Muito antes de partir para o espaço público, o arquivo da escritora esteve aos seus cuidados e a sua

predominante multiplicidade, guardado e protegido no seu arquivo doméstico: o seu barraco de dois

cômodos, feito de tábuas de madeira, na Favela de Canindé. No prefácio do livro Quarto de despejo: diário

de uma favelada, Audálio Dantas (1960) descreve brevemente o espaço físico de seu arquivo: “Carolina,

irmã nossa, colega minha, repórter, faz registro do visto e do sentido. É por isso que em sua sala quarto-

cozinha, no guarda-comida que tem lá, 35 cadernos foram guardados junto com os livros” (p. 2).

O laboratório de escrita da autora era estruturado apenas por uma mesinha velha no canto do barraco,

quando não estava a escrever no assoalho, estava a escrever no quintal enquanto tomava sol, ou na

fila da torneira enquanto esperava para encher a lata de água e voltar para casa. Nesses momentos,

Carolina observava a favela, e descrevia o que via e sentia sobre o ambiente em que residia e sobre ter

que estar junto aos seus filhos em um local tão propício à violência, dizia: “O desgosto que tenho é residir

na favela” (Jesus, 1960, p. 23). Seu material de escrita era também de onde vinha todo o seu sustento,

dos lixos da cidade de São Paulo. Quando encontrava cadernos, aproveitava as páginas em branco que

ainda restavam e ali escrevia seus diários. “Enquanto a panela fervia eu escrevi um pouco” (Jesus, 1960,

p. 20). Assim, Carolina ia buscando tempo durante suas tarefas de mãe e mulher provedora do lar para

escrever sobre o seu dia. Escrevia não apenas por necessidade própria, mas também como gesto de

defesa e denúncia dos acontecimentos da favela: “Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar

tudo que aqui se passa. E tudo o que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas

desagradáveis me fornece os argumentos” (Jesus, 1960, p. 21).

A maneira de a autora inscrever-se na sociedade e arquivar-se era por meio dos seus diários, pelo

relato cotidiano do seu dia, sem deixar falhar o arroz que ganhava e a quantidade de papel que catava.

Eram as penitências de um dia sem ter o que comer e o relato do que seus olhos viam ao seu redor.

Diferentemente do arquivo das sociedades burguesas, o arquivo de Carolina não contava com o acúmulo

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outros documentos. Sendo moradora da favela, tais papéis eram dispensáveis na ocorrência do dia, seu

trabalho como catadora de papel dispensava qualquer tipo de documento, a água que utilizava na favela

era de uma torneira compartilhada pelas 150 casas na favela de Canindé, e a luz era paga a algum tipo

de manda chuva da favela. Seu arquivo pessoal provinha do lixo, desde os livros aos cadernos com folhas

em branco. Assim, a única forma pela qual a autora respondia a uma “injunção social” era por meio do

mandamento “Arquivarás a tua vida”:

e o farás por meio de práticas múltiplas: manterás cuidadosamente e cotidianamente

o teu diário, onde toda noite examinarás o teu dia; conservarás preciosamente alguns

papéis colocando-os de lado numa pasta, numa gaveta, num cofre: esses papéis são a

tua identidade; enfim, redigirás a tua autobiografia, passarás a tua vida a limpo, dirás a

verdade. (Artières, 1998, p. 11)

Segundo Philippe Artières (1998), escrever e manter um diário são práticas do arquivo do eu. Escrever

um diário, guardar papéis, assim como escrever uma auto biografia, são práticas que participam mais

daquilo que Foucault chamava a preocupação com o eu. Arquivar a própria vida é se pôr no espelho, é

contrapor à imagem social a imagem íntima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma

prática de construção de si mesmo e de resistência.

A classificação do seu arquivo pessoal era por meio das entradas dos seus diários, dos inúmeros

cadernos que depois culminaram na publicação de Quarto de despejo. Neles, Carolina narra seu cotidiano

refletindo sua vida por meio do seu passado e suas escolhas. Além desses traços comuns ao diário e do

arquivamento do eu, ela realizava constantemente o ato de testemunhar, o que Artières (1998), em seu

texto Arquivar a própria vida, classifica como segundo traço comum da prática, “arquivar a própria vida é

querer testemunhar” (p. 28).

Em seu ato de testemunhar, Carolina se afasta dos outros indivíduos da favela, talvez se colocando

superior a eles, mas a partir da escrita se comparando aos outros e construindo uma identidade de

pessoa favorável aos costumes, honestidade e recato:

Fui catar papel e permaneci fora de casa uma hora. Quando retornei vi varias pessoas

as margens do rio. É que lá estava um senhor inconciente pelo alcool e os homens

indolentes da favela lhe vasculharam os bolsos. Roubaram o dinheiro e rasgaram os

documentos. (Jesus, 1960, p. 18)

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250ESCRITA DE SI

Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas. Não

casei e não estou descontente. Os que preferiu me eram soezes e as condições que

êles me impunham eram horrives. (Jesus, 1960, p. 18)

Em sua narrativa autobiográfica, Carolina de Jesus escreve-se no presente sempre refletindo o

passado, passeando, assim, entre o momento da escrita e do derradeiro. No trecho acima, a escritora,

após ser criticada pelas mulheres da favela por seu estado civil, reflete em seu diário não estar infeliz

com sua escolha. A rememoração é um processo constante na sua escrita, afirmando sua identidade e

esclarecendo para si mesma, através da escrita, o seu lugar no espaço. Concomitantemente, Carolina se

conforma com seu lugar, sua profissão e suas escolhas, nas reflexões em seu diário, a autora se mostra

revoltada com as peripécias do dia, e se contradiz: “Refleti: preciso ser tolerante com os meus filhos.

Eles não tem ninguém no mundo a não ser eu. Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um

homem no lar” (Jesus, 1960, p. 24). Diana Klinger (2006), em seu texto “Escritas de si, escritas do outro”,

resume as palavras de Foucault, em que diz que a escrita contribui para a formação de si. Neste aspecto,

em vários outros trechos do seu diário, Carolina se mostra apaziguada em sua relação com os homens, o

processo de escrita de si mesmo demonstra seus momentos de reflexão e de construção de uma opinião

e postura própria em relação a uma escolha.

A escrita era uma atividade cotidiana e necessária em sua vida: “Quando fico nervosa não gosto de

discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo” (Jesus, 1960, p. 24).

Intercala o exercício da escrita com a leitura: “Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro

é a melhor invenção do homem.” (Jesus, 1960, p. 26). Carolina demonstra uma constante preocupação

consigo e a escrita de si mesma, associado ao exercício do pensamento como colocado por Klinger (2006):

A escrita como exercício pessoal, associada ao exercício do pensamento sobre si

mesmo, constitui uma etapa essencial no processo para o qual tende toda a askêsis: a

elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em princípios

racionais de ação. (p. 26)

Os relatos da escritora demonstram que ela não tinha muitas amizades além de algumas vizinhas com

as quais as relações eram de empréstimos e favores. A pessoa mais próxima que Carolina tinha era

Manoel, um homem com quem mantinha um relacionamento casual, pois, segundo ela, que homem iria

querer casar-se com uma mulher que não dorme sem ler e deita com o lápis e o caderno na mão. Carolina

demonstra uma solidão, não apenas por ter poucos amigos, mas por considerar-se superior aos outros da

favela, e não haver com eles assuntos em comum. “Não gosto de ficar nas esquinas conversando. Gosto

de ficar sozinha e lendo. Ou escrevendo!” (Jesus, 1960, p. 26). Tal solidão é transferida para a escrita,

onde o caderno se torna seu mais próximo amigo e companheiro. Segundo Foucault (1992), a escrita

de si “atenua os perigos da solidão; dá o que se viu ou pensou a um olhar possível, o facto de se obrigar

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251a escrever desempenha o papel de um companheiro” (p. 129). Neste sentindo, Foucault (1992) ainda

esclarece tal reflexão propondo duas analogias:

aquilo que os outros são para o asceta numa comunidade, sê-lo-á o caderno de notas

para o solitário. Mas, simultaneamente, uma segunda analogia se coloca, referente à

prática da ascese como trabalho não apenas sobre os actos mas, mais precisamente,

sobre o pensamento: o constrangimento que a presença alheia exerce sobre a ordem

da conduta, exercê-lo-á a escrita na ordem dos movimentos internos da alma; neste

sentido, ela tem um papel muito próximo do da confissão ao director, do qual Cassiano

dirá, na linha da espiritualidade avagriana, que deve revelar, sem excepção, todos os

movimentos da alma. (p. 129)

Pode-se julgar que Carolina desenvolva o papel de um asceta, pessoa que se consagra a exercícios de

autodisciplina, não por desejo próprio, mas devido aos infortúnios de sua vida, e sendo ela uma das raras

pessoas na sua comunidade que sabia ler e escrever, como também detinha um senso tradicionalista,

como Foucault postula, as pessoas ao seu redor se tornaram assunto de notas em seu diário. Entretanto,

a escrita de Carolina e sua persona não se encaixam no papel de uma ascese em que existe a renúncia

do prazer e não satisfação própria de algumas necessidades primárias. Seus escritos demonstram uma

compreensão da não possibilidade da realização dos seus desejos, mas mostrando que tanto antes da

fama com a publicação e depois, Carolina entregava-se ao gozo de um agrado espontâneo, porém antes

de forma demasiada.

TERRITÓRIOS DA MEMÓRIA E DO PASSADO NA ESCRITA DE SI

Escrever-se é arquivar-se, e dificilmente seria possível falar sobre escrita de si sem entrar nos territórios

da memória e do passado. A respeito destes, a escrita caroliniana aqui será analisada tendo como

corpus principal o seu livro Diário de Bitita, publicado postumamente na França e depois no Brasil. O

livro é claramente uma narrativa autobiográfica ficcional. Neste livro, a autora se escreve buscando

encontrar, nas suas memórias do passado, um motivo para o seu presente. Phillipe Lejeune (1991)

define autobiografia como “relato retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua própria

existência, colocando ênfase em sua vida individual e, em particular, na história de sua personalidade”

(p. 48). Em Diário de Bitita, Carolina é narradora e personagem ora na infância, ora na vida adulta, e em

primeira pessoa conta a história da sua vida, desde a infância, passando por outros acontecimentos, até

a maturidade, dando título à suas memórias. Ainda no título, a autora estabelece o que Lejeune (1991)

postula como “pacto autobiográfico”: “o pacto autobiográfico é uma afirmação no texto desta identidade,

e nos envia em última instância o nome do autor sobre a capa do livro” (p. 48). É possível compreender

o título ainda nos primeiros capítulos do livro, “Infância”, em que a autora rememora acontecimentos

da sua infância, a casa onde vivia, o avô entre outros relatos. Ainda, segundo o autor, é comum em uma

autobiografia começar pelo relato da infância.

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252Nos capítulos que se seguem, Carolina rememora seu passado desde a infância, as madrinhas, a família, a

história do país em geral para explicar seu presente, explicar como e porque tornou-se escritora – não é

dito claramente por ela em sua narrativa, mas é possível encontrar como fato subjetivo na escrita. Certo

dia, após encontrar a filha inconsciente, a mãe de Carolina a levou a um médico espírita, que disse:

Minha mãe queixou-se que eu chorava o dia e noite. Ele disse-lhe que o meu crânio

não tinha espaço suficiente para alojar os miolos, que ficavam comprimidos, e eu

sentia dor de cabeça. Explicou-lhe que, até os vinte e um anos, eu ia viver como se

estivesse sonhando, que a minha vida ia ser atabalhoada. Ela vai adorar tudo o que

é belo! A tua filha é poetisa; pobre Sacramento, do teu seio sai uma poetisa. E sorriu.

(Jesus, 1960, p. 71)

Após a publicação de Quarto de despejo e de Casa de alvenaria, que passaram pela sua vida durante a

construção de uma trajetória, Carolina encontra, depois do sucesso, tempo e conforto para poder

voltar a sua infância, e escrevê-la, reescrever-se, dando assim espaço à imaginação, permitindo que as

lacunas entre memória e passado fossem preenchidas pelo imaginário. Em alguns momentos, a autora

se contradiz, e em outros floreia demasiadamente: “Então homem é melhor que cocada, pé-de-moleque,

batatas fritas com bife? Por que será que as mulheres querem se casar-se?” (Jesus, 1960, p. 9), dando

assim um caráter ficcional à sua obra.

A escrita de si memorialística de Carolina em’ inclui também a memória familiar, social e política, posto

que ela relata não apenas lembranças do eu, mas também traz em lembranças a descrição da história do

local, da cidade de Sacramento e a história familiar, assim como Diana Klinger (2006) coloca: “é verdade

que toda contemplação da própria vida está inserida numa trama de relações sociais, e portanto todo

relato autobiográfico remete a um ‘para além de si mesmo’” (p. 23).

ELABORAÇÃO DO PASSADO

As lembranças são algo inevitável ao ser humano, podendo serem elas traumáticas ou não. Podendo

estar esquecidas ou sendo repetidas inconscientemente. Na frase “Lembrar, repetir, elaborar”, Freud

(1914/1980) resume o trabalho de travessia entre a repetição irreflexiva daquilo que não se quer

recordar à sua interpretação e compreensão. Ao passar por uma experiência traumática, o indivíduo

tende a não recordar-se dela, podendo reprimi-la e repeti-la inconscientemente, sendo a repetição uma

forma de não lidar com determinada memória e também sendo ela consequência do esquecimento e

da ação não refletida/compreendida. A elaboração, processo de perlaboração, consiste em enfrentar a

lembrança, o que foi recalcado, interpretando seus acontecimentos e assim buscando a compreensão.

Neste ponto de vista, a escrita da memória assemelha-se ao processo de elaboração no sentido de fazer

parte dela, sendo a escrita uma forma de manter a memória, de interpretá-la e de, talvez, dizer o indizível

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253oralmente. Ter a escrita como um processo de rememoração, relembrança daquilo que foi vivido,

também compreende como um processo de perlaboração e a certeza que manterá a memória viva. Para

adorno, não apenas lembrar-se, mas lembrar para que não se repita, para que não aconteça novamente.

Seria impraticável analisar Carolina clinicamente, sendo necessária a presença e fala da autora. No

entanto, analisando a sua escrita cronologicamente e psicanaliticamente, é possível perceber traços

da repetição inconsciente de um trauma através da escrita. Em Quarto de despejo, Carolina relata

cotidianamente sua vida como favelada e catadora de papel, descreve o seu dia: quanto papel catou,

por quanto dinheiro trocou, e sucessivamente quanta comida conseguia comprar com o dinheiro. Ao

relatar tais fatos, a autora reflete e elabora inconscientemente sua vida, descreve seus pensamentos,

confessando a todo momento sua insatisfação em morar na favela.

Quando Carolina deixa Sacramento para mudar-se para São Paulo, leva na bagagem muitos sonhos

e expectativas, esperava estabilizar-se e comprar uma casa, acreditava ser a cidade um lugar de

transformação, onde as coisas seriam melhores e aquilo que se era desejado poderia ser alcançado. Ao

chegar, Carolina aproveita ao máximo a cidade, frequenta casas noturnas, se ausenta frequentemente do

emprego como doméstica, ocasionando demissões e mudanças para vilas e cortiços da cidade. Quando

engravida, em 1955, Carolina se vê obrigada a deixar o emprego, os sonhos que lhe trouxeram a uma

nova cidade, e sem perspectivas muda-se para a favela.

O abandono de suas expectativas, a gravidez, a mudança e o novo ofício configuram um trauma em sua

vida, deixar para trás tudo o que ansiava com a ida para São Paulo não a impediu de aceitar seu novo

destino, construir um novo lar e criar os filhos, porém direcionando a recordação desse trauma para

a repetição irreflexiva por meio da escrita. Assim, apropriando-se do conceito de “sublimação”, pode-

se dizer também que a autora consegue adaptar-se às suas novas mudanças e transformar a partir da

repetição em sua escrita seu novo enquadramento, que culminam em seus livros e na possibilidade de,

através da sua dela, tornar-se escritora, deixando assim a favela.

Em Diário de Bitita, é concebível a interpretação da trajetória da escritora, do seu crescimento à

construção de ideais sobre a migração para São Paulo. No último capítulo, “Ser cozinheira”, Carolina

descreve sua insatisfação com os diversos trabalhos que teve e o tratamento que tivera neles, conta

sobre a oportunidade de mudar-se, e sua alegria em poder ir atrás do que desejava. E termina de forma

a deixar o leitor perceber que, a partir dali, ele já saiba o que aconteceu. No final, uma reticências, era o

retorno ao Quarto de Despejo: diário de uma favelada:

Quando eu escrevi o meu diário não foi visando publicidade. É que eu chegava

em casa, não tinha o que comer. Ficava revoltada interiormente e escrevia. Tinha

impressão que estava contando as minhas magoas a alguém. E assim surgiu o “Quarto

de Despejo”. (Jesus, 1960, p. 181)

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254REFERÊNCIAS

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Klinger, D. I. (2006). Escritas de si, escritas do outro: autoficção e etnografia na narrativa latino-americana

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Lejeune, P. (1991). El pacto autobiográfico. In: A. N. Bobarro (Org.), La autobiografía y sus problemas

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autoria

resumo

REGINA AUGUSTA RIBEIRO PINTO

Graduada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Especialista

em Língua Portuguesa pela PUC Minas.

CONTATO: [email protected]

Os discursos machistas, racistas e contraditórios de Carolina Maria de Jesus em Quarto de despejo: diário de uma favelada

Nesta pesquisa investigaram-se as contradições nos discursos machistas e racistas de Carolina

Maria de Jesus, no livro Quarto de despejo: diário de uma favelada. A metodologia utilizada foi a

revisão bibliográfica, fazendo uso de fontes primárias e secundárias, sobre a obra e sua autora,

além da leitura reiterada do livro, do estudo do momento histórico em que ele está inserido, e

da investigação, no interior do diário, das ações sociais no entorno da protagonista. A proposta

de entender as incoerências presentes nos discursos machistas e racistas de Carolina teve

como motivação estudar o período histórico em que o diário está inserido e relacionar esses

discursos observados e suas oposições às situações de violência promovidas pelo próprio meio.

Atingidos esses objetivos, compreendeu-se de que maneira as contradições nos discursos da

autora contribuíram para que ela fosse esquecida por grupos e movimentos importantes da

história brasileira, como o das Feministas e o Movimento Negro.

PALAVRAS-CHAVE: discurso machista, discurso racista, contradições, Carolina Maria

de Jesus, Quarto de despejo

SUMÁRIO

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256A pesquisa literária de obras de autoras negras no Brasil ainda é um campo pouco frequentado,

apesar do aparente crescimento. Analisam-se obras diversas de escritoras consagradas, mas escritos

especificamente produzidos por afro-brasileiras ainda são pouco pesquisados e divulgados.

Considerando a importância das produções literárias dessas mulheres para a história do país, uma vez

que evidenciam situações de vulnerabilidade e violência a que muitas são submetidas, analisou-se neste

trabalho a contradição presente nas ações e nos discursos machistas e racistas construídos por Carolina

Maria de Jesus em Quarto de despejo: diário de uma favelada (2000). Editada e publicada pelo jornalista

Audálio Dantas, em 1960, essa obra vai além da representação, ela é uma verdadeira mimese da história

de vida miserável, violenta, mas cheia de sonhos de várias mulheres negras do Brasil.

A situação de fragilidade da escritora e de seus filhos é mostrada nas páginas de seu diário, um livro

autobiográfico, no qual ela relata os diversos momentos em que passou fome, foi discriminada e

violentada por ser mulher, negra e pobre. Além disso, os sonhos, a esperança de um futuro melhor,

as tristezas e angústias de viver em um país repleto de desigualdades e preconceitos também são

destacados em sua obra.

Os cenários dos acontecimentos políticos e sociais ocorridos no Brasil durante a escrita e a publicação do

diário, foram cruciais para a construção da ambiguidade existente entre as ações e os discursos machistas

e racistas de Carolina. Observa-se a existência de uma mulher feminista, buscando sua ascensão e

valorização como mulher, mas com ideias conservadoras e machistas; negra, violentada, mas com

conceitos racistas, renegando sua cor. Essas contradições são o objeto de análise desta pesquisa.

A partir da leitura atenta da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada, de um estudo analítico do

momento histórico no qual o livro está inserido, da investigação, no interior da obra, das ações sociais

no entorno de Carolina e de uma revisão bibliográfica sobre a obra e sua autora, é possível afirmar que a

oposição existente entre as ações da protagonista e os discursos machistas e racistas reproduzidos por

ela é construída como uma tentativa de a autora se excluir da violência sofrida por negros e mulheres.

Em um contexto histórico e social em que mulheres, principalmente negras e pobres, não tinham voz,

comportar-se de forma paradoxal foi uma solução encontrada por Carolina para que pudesse tentar se

inserir no discurso dominante da sociedade e não se sentir atingida pela violência sofrida, o que não foi

possível, conforme se tentará adiante demonstrar. Além do estudo da contradição mencionada acima,

buscou-se nesta pesquisa relacioná-la ao contexto social, histórico e político em que Quarto de despejo

está inserido.

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257FEMINISMO E MACHISMO: A CONTRADIÇÃO NO DISCURSO E NAS AÇÕES DE CAROLINA

Como já destacado, é indiscutível a importância da obra de Carolina para a literatura nacional. Feminista,

negra, oriunda e detentora de uma cultura popular, ela infringiu todos os modelos aceitáveis de escritores

para a época, ao se enquadrar nessas três esferas. Pagou um preço alto por isso. Carolina tem sido

excluída da lista de mulheres importantes para a construção literária do país. Muito além disso, segundo

Meihy (1998), foi desmerecida e reduzida a um único texto, embora tenha publicado quatro livros e ter

escrito diversos poemas e canções.

Quando Quarto de despejo foi publicado, em 1960, várias outras escritoras ganhavam destaque no

cenário literário. Entretanto, a singularidade da obra de Carolina já seria suficiente para manter a autora

em destaque junto às outras escritoras; não foi. Foi rechaçada do ambiente literário, e sua história, sua

luta, suas causas, suplantadas. Meihy (1998), fazendo referência ao papel da mídia e da elite no declínio de

Carolina, afirmou que:

Não deixa de ser estranho o fato de Carolina poder ter sido símbolo da causa literária

feminista. O avesso dessa questão sugere a crueldade da elite nacional que, através

da redefinição constante do chamado código culto, elide uma participante que, apesar

de sua obra extensa e original, deixou de ser considerada. Causa espanto, inclusive, o

abandono dessa escritora que sequer teve sua obra colocada à luz. (p. 89)

O perfil totalmente fora dos padrões ao qual Carolina estava inserida, mulher solteira, negra, mãe de

três filhos, sendo cada um de um pai, deveria ser suficiente para que o discurso empregado em Quarto

de despejo fosse disseminado pelas feministas, mas isso não aconteceu. A escritora pouco é citada

nas discussões de mulheres sobre esse assunto, que, ainda segundo Meihy (1998), destacam figuras

estrangeiras.

No Brasil, não são raras as vezes em que movimentos feministas e publicações diversas referenciam

escritoras e artistas estrangeiras, como Simone de Beauvoir, Frida Kahlo e Virginia Woolf, brancas, ao

retratar temas relacionados a essa causa. Quando mulheres brasileiras são lembradas pela participação

na luta por igualdade de gênero, Carolina quase nunca é mencionada. Ela não se autodeclarava feminista.

Esse rótulo pode ser atribuído a ela observando os discursos apresentados em seu diário. Sempre

afirmava não precisar de homem para viver, já que prezava pela sua liberdade. Mantinha essa fala

principalmente quando questionada pelas moradoras da favela sobre a ausência de um homem em

sua vida:

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258Os meus filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer especie

de trabalho para mantê-los. E elas, tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor.

A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas

vienenses. Enquanto os esposos quebra as tabuas do barracão eu e meus filhos

dormimos sossegados. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de

escravas indianas. (Jesus, 2000, p. 14)

Teve três filhos, cada um de um pai. E em uma época em que mãe solteira era motivo de rechaço da

sociedade, ela se impôs, conquistou seu lugar e criou sozinha todos os filhos, vivendo dentro de uma

favela onde a violência imperava. Apesar de Carolina se mostrar convicta da escolha de cuidar sozinha

dos filhos, é possível perceber em alguns trechos de seu diário a contradição dessa ideia: “Refleti: preciso

ser tolerante com os meus filhos. Eles não tem ninguém no mundo a não ser eu. Como é pungente a

condição de mulher sozinha sem um homem no lar” (Jesus, 2000, p. 19).

Embora haja contradição entre a ideia machista contida nessa passagem e o que Carolina

defendeu em seu diário, ela ocorre pelo contexto em que o discurso foi produzido. A ausência de um

homem não significa um problema para a Carolina mulher, e sim para a Carolina mãe, que não pode suprir

a ausência da figura paterna na vida de seus filhos.

Em uma das passagens de seu diário, retrata o assédio praticado por um homem. A reação dela

evidencia que já sabia lidar com esse tipo de situação, já que não há espanto ou qualquer surpresa ao

retratar o ocorrido:

Fui no senhor Eduardo comprar querosene, óleo e tinta para escrever. Quando pedi o

tinteiro, um homem que estava perto perguntou-me se eu sabia ler. Disse-lhe que sim.

Ele pegou o lápis e escreveu:

A senhora é casada? Se não for quer dormir comigo?

Eu li e entreguei-lhe, sem dizer nada. (Jesus, 2000, p. 106)

Ao questionar Carolina se ela era casada, o homem desnuda também a ideia de que mulheres solteiras

são “disponíveis” a esse tipo de intervenção. Carolina, quebrando o modelo da mulher casada e mãe, se

enquadra em um perfil de luta por igualdade, mas uma luta sutil, silenciosa, desprezando o assediador.

O machismo no discurso de Carolina fica mais explícito quando ela se refere a mulheres casadas. Em um

episódio em que ela narra a relação sexual de um vizinho com uma mulher casada, refere-se a esta de

forma extremamente depreciativa:

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259Dei o jantar aos filhos, eles foram deitar-se e eu fui escrever. Não podia escrever

sossegada com as cenas amorosas que se desenrolavam perto do meu barracão.

Pensei que iam quebrar a parede!

Fiquei horrorizada porque a mulher que estava com o Lalau é casada. Pensei: que

mulher suja e ordinária! Homem por homem, mil vezes o esposo.

Creio que um homem só chega para uma mulher. Uma mulher que casou-se precisa

ser normal. (Jesus, 2000, p. 111)

A sutileza na escrita de Carolina, ao retratar questões relacionadas ao machismo, e mesmo os discursos

machistas realizados por ela podem ser a razão pela qual ela seja descartada e esquecida pelos

movimentos feministas no Brasil. Os contextos histórico e social em que ela estava inserida durante a

escrita de seu diário mostram que a contradição que a escritora apresentou foi a estratégia usada por ela

para que pudesse se enquadrar em um ambiente machista. Independentemente da classe social e da cor,

homem sempre foi visto como superior à mulher. Entretanto, ser mulher negra, no Brasil, exige ainda mais

cautela quando se quer conquistar um espaço na sociedade, e foi o que Carolina fez.

Os resquícios escravocratas que imperam na sociedade brasileira fazem com que mulheres negras ainda

sejam destacadas pelos seus corpos, atribuindo a elas um caráter duplamente objetificado, o de mulher e

negra, e acentuando os casos de violência contra pessoas desse grupo.

Observa-se, portanto, que a contradição presente nas ações e nos discursos de Carolina não foi bem

compreendida pela sociedade, que desconsiderou os contextos histórico e social em que aconteceu.

Carolina defendeu a liberdade da mulher para amar e transitar livremente pela sociedade. A contradição

existente em seu discurso evidencia sua fragilidade em lidar com a ausência da figura paterna, e também

por nascer e viver em um período, século XX, em que mulheres casadas ainda eram vistas como

propriedade de seus maridos.

Sua negritude também foi um dos elementos que incidiram na sua exclusão dos movimentos feministas

no Brasil, uma vez que predomina neles a figura da mulher branca e estrangeira. Esses mecanismos

seletivos e excludentes apenas corroboraram para que Carolina não recebesse o devido reconhecimento

pela sua contribuição na luta pela igualdade de gêneros e fosse esquecida pela sociedade brasileira.

RACISMO E XENOFOBIA

Quarto de despejo escancarou para o Brasil e para o mundo o lugar destinado ao negro pobre, às favelas,

além do racismo enfrentado diariamente por pessoas desse grupo. “Carolina fez nos seus textos, nos

diários como na ficção e nos pensamentos, o melhor diagnóstico do racismo no Brasil. Não só quando foi

explícita, mas ainda melhor quando relacionou preconceito e dominação social” (Santos, 2009, p. 133).

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260Aparentemente, Carolina não aceitava sua cor, mas, na verdade, não aceitava as condições de miséria

e servidão em que vivia a população negra. Procurou de alguma forma defender-se da violência

praticada contra os negros, se referir a eles em terceira pessoa, como se não fosse negra. Mas era, e,

contraditoriamente, defendia isso:

Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos.

Eles respondia-me:

-É pena você ser preta.

Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu ate acho

o cabelo d negro mais iducado do que o cabelo de branco, é só dar um movimento na

cabeça e ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reicarnações, eu quero

voltar sempre preta. ... O branco é que diz que é superior. Mas que superioridade

apresenta o branco? Se o negro bebe pinga, o branco bebe. A enfermidade que atinge

o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro tambem. A natureza não

seleciona ninguém. (Jesus, 2000, p. 58)

Sobre o racismo praticado e vivido por Carolina, Santos (2009) ainda destacou que, na “sua história,

como na de qualquer negro, a consciência é sempre consciência possível, sobe por degraus. O primeiro é

a consciência de si: eu sou negro; o segundo, a consciência do sistema em que sou negro: o mundo dos

brancos” (p. 133).

Carolina tinha essa consciência, e mais do que isso, sabia que a condição imposta aos negros era um

resquício da escravidão instaurada no Brasil. Em uma passagem de seu diário narra, com evidente senso

crítico, uma situação que destaca o racismo presente na sociedade, e comprova que há nítidos resquícios

da escravidão nas ações cotidianas da população:

11 de agosto... Eu estava pagando o sapateiro e conversando com um preto que estava

lendo um jornal. Ele estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e

amarrou numa arvore. O guarda civil é branco. E há certos brancos que transforma

preto em bode expiatorio. Quem sabe se guarda civil ignora que já foi extinta a

escravidão e ainda estamos no regime da chibata? (Jesus, 2000, p. 96).

O preconceito presente em Quarto de despejo não está vinculado apenas à cor da pele. Carolina migrou da

cidade de Sacramento, em Minas Gerais, em busca de melhores condições de vida. Com poucos recursos,

assim como várias outras pessoas que migraram para São Paulo e foram viver na favela do Canindé,

Vive uma situação de miséria nesse local. Todavia, contraditoriamente, rechaça os imigrantes baianos e

pernambucanos, a quem chama de “nortistas”, inferiorizando-os em relação aos demais migrantes que vivem

na favela e agrupando-os em um único núcleo, desconsiderando as características de cada povo e região:

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261Na rua A residem 10 baianos num barracão de 3 por dois e meio. Cinco são irmãos. E

as outras cinco são irmãs. São robustos, mal incarados. Homens que havia de ter valor

para o lampeão. Os dez são pernambucanos. E brigaram os dez com um paraibano.

(Jesus, 2000, p. 57)

A partir do ano de 1940, houve um grande fluxo migratório no Brasil, mais especificamente para a

cidade de São Paulo. Como consequência desse movimento, as favelas começaram a aumentar, dentre

elas está a favela do Canindé, onde Carolina morou. A população nordestina era conhecida pelo seu

temperamento explosivo e, por isso, a rotatividade de trabalhadores dessa região nos empregos era

muito grande.

Essa relação entre Carolina e os imigrantes baianos e pernambucanos da favela do Canindé

evidencia uma relação de atração-repulsa, explicitada por Joel dos Santos (2009):

Todos os preconceitos, no fundo, são da mesma natureza: atração-repulsão pelo

outro. A repulsa é fácil de se ver, expressa em epítetos, xingamentos, piadas contra um

bode expiatório que povoam a fala comum. A atração, contida nessa repulsa, é menos

fácil. Antropólogos batizaram essas tendências opostas mas justapostas da nossa

espécie com nomes sonoros: etnofobia, o que nos afasta do diferente, etnofilia, o que

nos aproxima. Sem ela não seríamos o que somos hoje, uma só raça. (p. 130)

As críticas e as denúncias de maus tratos à população negra foram registradas em Quarto de despejo e

serviram para escancarar a situação em que o negro pobre vivia, assim como os imigrantes das regiões

norte e nordeste do país. Entretanto, o que se observa é que a contradição entre os discursos e as ações

de Carolina, depreciando sua cor e desprezando migrantes, mesmo ela sendo negra e imigrante, fez com

que ela fosse esquecida pelos movimentos negros. Mais uma vez, a falta de um olhar mais apurado para

o contexto de produção de um discurso pode ter sido crucial para se entender a contradição existente na

ideia proferida.

Carolina era negra, sabia e defendia isso, mesmo que de forma contraditória. O que ela não aceitava era

o abandono, o descaso e a violência com que eram tratados os negros pobres. Imaginou que, sentindo-se

fora desse grupo, seria isentada do racismo cotidiano; mas isso não aconteceu. Foi discriminada até sua

morte, e seu diário, que é um legado importantíssimo para o estudo e entendimento da história do Brasil,

pouco é destacado.

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262CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura de autoria negra feminina, conforme exposto nesse artigo, ainda é pouco pesquisada e

divulgada no Brasil, apesar da sua notória importância para o país, já que desvela a violência a que muitas

mulheres negras são submetidas. Carolina Maria de Jesus, em Quarto de despejo: diário de uma favelada,

trouxe à tona essa situação, além de revelar como o contexto histórico foi importante para contribuir com

esse cenário.

Ao longo de seu diário, a autora escancara as mazelas vividas pela população negra pobre e pelas

mulheres, apresentando contradições em seus discursos, questão norteadora desta pesquisa. Ela

apresenta ideias feministas e bastante desenvolvidas para a época em que o diário foi publicado, década

de 1960, mas se mostra machista em alguns conceitos. Além disso, mesmo sendo negra e migrante,

comete racismo e xenofobia em várias de suas falas contra moradores da favela do Canindé. Entender

as situações política e social da época é essencial para a compreensão dessas incoerências, já que elas

acontecem dentro desses cenários, que são norteadores dessas ideias.

O Brasil, entre as décadas de 1950 e 1960, período em que há registros no diário publicado, passava

por mudanças importantes no setor político. A entrada de Juscelino Kubitschek acentuou a segregação

social e racial no País, e a construção de Brasília, efetivada entre os anos de 1956 e 1960, desnudou essa

situação, uma vez que o número de pobres cresceu, assim como o número de favelados.

É na favela do Canindé que Carolina viveu a maior parte das situações conflituosas narradas em seu diário.

É também nessa favela onde os discursos machistas, racistas e contraditórios da autora são produzidos.

O que se percebe nos relatos feitos pela protagonista é que ela era uma mulher totalmente fora dos

padrões de sua época. O próprio fato de ser mãe solteira e negra já a torna exceção em uma sociedade

patriarcal e racista. Entretanto, mesmo defendendo sua liberdade como mulher e mãe solteira, Carolina

revela, contraditoriamente, ideias machistas. Todavia, essa contradição se dá pelo fato de esse discurso

ser referente à ausência da figura paterna e não do homem provedor da casa, conforme observado

nesta pesquisa.

Além do machismo, a escritora também se mostrou racista e xenofóbica, apesar de sua origem e cor.

Assim como na construção daquela ideia, o racismo e a xenofobia são praticados por ela, não como

uma aversão por pessoas negras ou migrantes, mas sim por sentir-se inferiorizada pela sociedade por

pertencer a esses dois grupos. Como uma tentativa de se proteger da violência racial, Carolina comete

esse tipo de preconceito, acreditando que isso a isentará dessa violência.

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263O que se observa, portanto, é que Quarto de despejo é uma obra atemporal e, assim como sua autora,

merece maior reconhecimento e estudo por parte do meio acadêmico, por quebrar paradigmas

linguísticos, estéticos, literários e sociais. Entretanto, o que se percebe é que tanto Carolina como seus

escritos nesse livro foram esquecidos pela sociedade e, principalmente, por grupos como os movimentos

feministas e os Movimentos Negros. Embora tenha apresentado de forma límpida problemas sociais que

ocorrem ainda hoje, principalmente envolvendo mulheres e negros, a escritora ainda é desconhecida por

grande parte dos brasileiros.

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264REFERÊNCIAS

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autoria

resumo

WALEF BATISTA PEREIRA

Graduando do 10º período de Psicologia na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

Relatar a si mesmo através da psicanálise: Uma posição da proposta analítica de recusa às maquinarias de repressão racial

O presente artigo tem o objetivo de apontar a necessidade da psicanálise voltar-se para

discussão sobre as questões sociais de exclusão que atingem os sujeitos que chegam ao

ambiente de análise. Ao não se posicionar, a psicanálise reforçaria o silenciamento operado

nestes sujeitos que os condicionam a uma posição de subalternidade sem condições de

representação e reinvindicação dos direitos. A proposta é que a análise enquanto espaço

de cuidado e relato de si seja um dispositivo que proporcione ao sujeito falar, além de suas

questões subjetivas, sobre as repressões sociais a que está submetido, e que isso se torna

uma potente ferramenta de emancipação. No caso do racismo, que aparece de várias

formas veladas em nosso país, o primeiro passo é proporcionar ao sujeito negro vias de

reconhecimento de sua identidade, como acontece, por exemplo, na grande obra de Carolina

Maria de Jesus “Quarto de despejo: diário de uma favelada”.

PALAVRAS-CHAVE: psicanálise, racismo, subalterno, Laplanche, cuidado de si.

SUMÁRIO

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266Noto que é muito difícil falar de racismo no Brasil. As inúmeras tentativas de discussão sobre o assunto

apontam a recusa do brasileiro em admitir as dimensões do racismo no país. A psicanalista Maria Lúcia da

Silva, em seu livro O racismo e o negro no Brasil: questões para psicanálise, nos fala dessa condição nacional:

O racismo à brasileira é hoje um crime perfeito. As crenças da democracia racial e da

mestiçagem encobrem e mascaram a brutalidade do cotidiano. As representações

negativas estão enraizadas no imaginário social, e os golpes sofridos no dia a dia por

negros e não brancos frequentemente caem na condição da “não existência”, pelo seu

desmentido no discurso coletivo. (Abud, Kon & Silva, 2017, p. 66)

Fala-se muito na igualdade da desigualdade, aos moldes do que já notava Sartre (1968): o discurso

implica que o trabalhador negro, assim como o trabalhador branco, estaria submetido à uma estrutura

de violência social capitalista que criaria uma estreita horizontalidade, além das matizes de pele. Como

aponta o filósofo Michel Foucault (2001), acerca das formas de repressão:

Tal seria a característica da repressão, aquilo que a distingue de proibições mantidas

pela simples lei penal: a repressão funciona bem como uma sentença que desaparece,

mas também como uma determinação ao silêncio, uma afirmação de inexistência,

e, consequentemente, declara que de tudo isso não há nada a ser dito, visto ou

conhecido. (p.119)

Isso incita o sujeito a projetar uma sociedade sem privilégios em que a cor da pele não influencia em sua

posição em relação às grandes forças que o envolvem. Entretanto, sabemos que essa prática na verdade

existe e beneficia apenas aqueles que pretendem ignorar e marginalizar o negro, não o reconhecendo

enquanto sujeito. O racismo vence se consegue introduzir na subjetividade do sujeito negro que ele

não existe.

Fazer com que o sujeito negro tenha a oportunidade de afirmar-se e buscar sua identidade como negro é

uma das maiores armas contra isso. Sartre (1968) aponta em suas Reflexões sobre o racismo:

Posto que o oprimem em sua raça, e por causa dela, é de sua raça, antes de tudo, que

lhe cumpre tomar consciência. ... O negro não pode negar que seja negro ou reclamar

para si estra abstrata humanidade incolor: ele é preto. Está pois encurralado na

autenticidade: insultado, avassalado, reergue-se; apanha a palavra “preto” que lhe

atiram qual um pedra. Reivindica-se como negro, perante o branco, na altivez. (p. 94)

Em seu uso no contexto das lutas políticas, a identidade é, segundo Márcia Tiburi (2017), uma força

de alto impacto potencial. No entanto, como poderia o negro encontrar essa identidade? Quais as vias

culturais para isso? Sartre apontava, à sua maneira, uma grande e valiosa ferramenta do negro: sua

poesia. A poesia de fala e escrita, que fala do e para o negro; que, sem caráter satírico ou imprecatório,

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267caracteriza-se necessariamente como uma tomada de consciência de si mesmo através de uma

experiência poética. Das antigas canções de trabalho às contemporâneas formas de expressão cultural

do movimento, existe uma só ideia: manifestar a alma negra.

O impasse dessa proposta é que nem sempre a luta pode ou deve se manter na poesia. O objetivo

é alcançar cada vez mais lugares onde sua identidade possa ser afirmada. Sendo assim, proponho

pensarmos nos espaços destinados à proporcionar aos sujeitos a oportunidade de encontrar sua

identidade singular, levando em conta o caráter provisório das identificações. Penso que a psicanálise

deve se encaixar justamente nesse espaço, sendo uma ferramenta de acesso, inclusive da população

negra, aos equipamentos sociais de qualquer ordem; Mas como o seu aparato teórico é voltado para

a suspensão daquilo que é efeito da visão normativa e tem seu foco na produção singular, devemos

questionar se essa forma de se apropriar da própria história funciona do mesmo jeito nos casos em que o

racismo produz efeitos profundos na subjetividade do sujeito e no reconhecimento de uma identidade.

Seguindo os pensamentos da filósofa estadunidense Judith Butler, é impossível se atentar apenas

para o singular em detrimento do social que o atravessa. Ao se contrapor à visão da também filósofa

e psicanalista Monique David-Ménard, Butler (2015) afirma que “poderíamos dizer que o normativo

está suspenso, posto fora do jogo, numa sessão analítica, justamente para que possa ser reintroduzido

pelo analisando. O roteiro do normativo pode ser reproduzido com todas as suas complicações dentro

da sessão” (p. 326). O normativo vai aparecer na análise, e ignorá-lo seria mais uma forma de apagar a

identidade do sujeito e, consequentemente, trabalharia a favor do seu silenciamento dentro do campo

social. Essa carência na psicanálise tem feito com que as minorias políticas desconfiem e se distanciem

de sua prática, ou encontre outros recursos para acessá-la, como os Psi Safe; profissionais considerados

capazes de receber pessoas cujas identidades e orientações são marginalizadas e que sofrem

discriminações sistêmicas específicas; o que nos remete a questão: não deveria toda a clínica psicanalítica

operar dessa forma? Os profissionais Psi Safe ainda acreditam no potencial da psicanálise no tratamento

do sujeito, mas reconhecem algumas reproduções de discriminação dentro dos espaços da clínica atual

(Santos & Polverel, 2016).

Acredito ser essencial que a análise leve em consideração, além da história do sujeito, a história cultural

do grupo no qual ele faz parte e as implicações disso em seus processos subjetivos. Nesse momento, a

psicanálise deve assumir a sua posição política de resistência contra as formas de governo eugênicos

de repressão, como aponta Foucault (2001). Foucault (2001) afirma que a psicanálise desconfia dos

mecanismos de poder que objetivam controlar e gerir o cotidiano, recusando “a lei da aliança, da

consangüinidade interdita, do Pai-Soberano, em suma, para reunir em torno do desejo toda a antiga

ordem do poder” (p. 141). Esse caráter político da psicanálise desempenha, para Foucault (2001), “um

papel liberador. E em certos países ainda (eu penso no Brasil), a psicanálise desempenha um papel político

positivo de denúncia” (p. 150).

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268A psicanálise, portanto, opõe-se a ideais de exclusão e impede que sua estrutura teórica fundamente a

qualquer ideal racista, através da perspectiva que a análise, bem como seus objetivos, é uma forma de

ato político, e entende que as experiências de opressão subjetivas podem ou não aparecer no ambiente

analítico, e quem toma a decisão sobre a sua inserção é exclusivamente o próprio sujeito, que comparece

às sessões justamente na tentativa de entender os efeitos disso em si. Falta isso aparecer na prática. Se

fizermos o papel de limitar o acesso do sujeito a qualquer âmbito de sua constituição, nos desviamos dos

objetivos do processo analítico.

Retornando a Butler (2015), a autora aponta que nosso conhecimento de nós mesmos só se dá enquanto

sujeitos em relação a um mundo social mais amplo, que nos precede e nos organiza de uma maneira que

é impossível acessar completamente. Seríamos então opacos a nós mesmos em nossa fala. Butler sugere

o reconhecimento de que compartilhamos certa “cegueira” a respeito de nós mesmos. A proposta da

filósofa é que a nossa formação enquanto sujeito não é dada exclusivamente através do conhecimento

singular, mas a partir das nossas relações com os outros. Com sua ideia de interpelação, a autora aponta a

circunstância que inaugura as nossas capacidades de seres reflexivos: é a partir do momento que alguém

nos convoca que sentimos a necessidade de contar uma história sobre nós mesmos. Como consequência,

ao mesmo tempo em que falamos sobre nós mesmos e nos reconstruímos nesse processo, estabelecemos

uma relação com nosso interlocutor, agindo sobre ele. Tomemos então a figura do analista, tendo a sua

importância dentro do ambiente analítico enquanto arquétipo do outro e que possui, dentre outras

funções, o papel de “guardião do enigma e provocador da transferência” (Belo, 2009, p.5), convocando

assim o sujeito para que fale de si, sempre em direção ao outro enquanto reconhece sua identidade em

sua própria fala.

Relatar a si, falar de si mesmo, possui sua importância em seu caráter de formação para o sujeito; ao

mesmo tempo, entretanto, é importante para aquele que escuta o reconhecimento da identidade além

do singular daquele que relata. Nesse movimento, Butler aponta uma determinada despossessão,

onde mesmo que a princípio um indivíduo reconheça o outro, há uma linguagem que enquadra esse

encontro, que não pertence aos dois. Haverá portanto uma incompletude, uma opacidade nessa relação

e consequentemente na percepção de si mesmo pelo sujeito, pois as condições do inconsciente não estão

ao seu alcance, e sua subjetivação é limitada pelos códigos que regem o reconhecível a partir do racional,

com os quais ele deve negociar para falar de si, de modo que, segundo a autora, “sou usada pela norma

precisamente na medida em que a uso” (Butler, 2015, p. 51). Esse cenário de ignorância frente à própria

subjetividade é muitas vezes utilizado para que haja uma violência epistêmica contra o sujeito subalterno

ou colonizado. É o que diz a crítica e teórica indiana Gayatri C. Spivak, em seu famoso ensaio Pode o

subalterno falar? sobre a tática que consiste em tornar o sujeito invisível, expropriando-o de qualquer

possibilidade de representação, de forma a silenciá-lo.

Enquanto Butler continua sua discussão no livro na direção da responsabilização ética do sujeito,

podemos evoluir suas contribuições a um outro ponto, onde articula com a presente proposta crítica à

psicanálise. Acredito ser possível para a psicanálise se modificar de seu panorama atual, para que esta

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269siga seus ideais de ser uma ferramenta que dê voz e autonomia ao sujeito, mas sem nunca colocar-se na

posição de falar por este, de julgar-se capaz de representá-lo, e que seja uma interlocução entre o sujeito

e o outro social, para que este seja reconhecido a partir não só de seu desejo, mas também a partir de

uma identidade; o que não significa necessariamente cristalizar a imagem dessa identidade em uma

espécie de “inconsciente coletivo” regulado por valores que não representam aquele grupo. O objetivo da

psicanálise é, justamente, desvincular o sujeito de qualquer imagem que não o represente. Isso fica claro

nas bases psicanalíticas, justificado, a partir da obra de Jean Laplanche, no mecanismo transferencial que

rege a análise e o seu ambiente analítico, para falar da posição que a psicanálise deve assumir em relação

aos sujeitos silenciados e ignorados; em conjunto com a discussão da obra de Spivak (2010), que propõe

uma descolonização do pensamento e considera necessário “questionar o lugar do investigador” (p. 19).

O objetivo é encontrar o caminho para que a psicanálise possa “criar espaços por meio dos quais o sujeito

subalterno possa falar para que, quando ele ou ela o faça, possa ser ouvido” (Spivak, 2010, p. 14), ao que a

autora entende como subalterno aquele que pertence “às camadas mais baixas da sociedade constituídas

pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade

de se tornarem membros plenos no estrato social dominante” (Spivak, 2010, p.12), onde podemos

encaixar a situação da população negra e pobre no Brasil.

Laplanche (1993) percebe a transferência dentro do setting analítico não como algo arbitrário, tampouco

como um ritual puramente técnico. Ele aponta um caráter de instauração da transferência na situação

analítica: “Trata-se de um gesto, de um conjunto de gestos instauradores, onde o arbitrário deve

ceder passo ao essencial” (Laplanche, 1993, p. 165). Essa instauração parte de um lugar pulsional, que

determina a direção do processo analítico. O papel do analista no setting é o de ajudar na tradução das

representações que são trazidas pela fala filtrada do sujeito; representações estas em que o inconsciente

se encontra investido, mas que nunca conseguem tocá-lo propriamente. Portanto, o analista não deve

partir de um determinismo do que o sujeito deve ou não trazer em sua fala; a análise deve ser um espaço

onde o inconsciente possa circular livremente, sem “se preocupar” com as barreiras do mecanismo

psíquico ou qualquer outra. A contenção fica a cargo do analista, mas apenas para a manutenção do

equilíbrio entre as forças internas e externas, regulando o interno de acordo com o externo; em um

espaço de liberação de energia, é necessário algo que mantenha a constância de seu interior para que a

energia livre possa circular. A isso Laplanche (1993) dá o nome de “tina transferencial”, uma espécie de

estrutura que constitui o ambiente analítico. Em uma explanação sintética, o sujeito dentro do ambiente

de análise pode desalienar-se da fala do outro sobre si, enquanto percebe os efeitos dessa nominação, e

tem a oportunidade de encontrar sua identidade e emancipar-se ou identificar-se a partir dela.

Para a psicanálise, o inconsciente não localiza suas singularidades a partir de nenhuma diferença entre

gênero, raça ou condição social. Mas será que ele se mantém indiferente em relação à interação do

sujeito com o seu contexto, que prolifera situações de desigualdade, preconceito, segregação, etc? A

psicanálise, portanto, deve se posicionar para que o sujeito em caráter de repressão se articule e seja

ouvido, não apenas representado por um tradutor intermediário, que Spivak (2010) classifica como

“tarefa quase impossível” (p. 9). Para a autora, não cabe aos em lugar privilegiado se colocarem em uma

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270posição de poder falar pelo sujeito oprimido e construir o seu discurso de resistência. Isso é “reproduzir

as estruturas de poder e opressão, mantendo o subalterno silenciado, sem lhe oferecer uma posição, um

espaço de onde possa falar e, principalmente, no qual possa ser ouvido.” (Spivak, 2010, p. 12).

Spivak insiste que, por mais nativo que seja o investigador de uma cultura, “o sujeito subalterno

colonizado é irremediavelmente heterogêneo” (Spivak, 2010, p.57). Assim como Carolina Maria de Jesus

e sua obra, a qual possui as características impostas que lhe conferem uma condição de subalternidade:

a da cor e da marginalização, que lhe impõe o silenciamento enquanto negra e pobre, possuindo ainda

as vicissitudes do gênero, que fazem com que a negra mulher permaneça ainda mais marginalizada no

cenário da produção colonial dominado pelo gênero masculino. Citando Spivak (2010):

Entre o patriarcado e o imperialismo, a constituição do sujeito e a formação do objeto,

a figura da mulher desaparece, não em um vazio imaculado, mas em um violento

arremesso que é a figuração deslocada da “mulher do Terceiro mundo”, encurralada

entre a tradição e a modernização. (p. 119)

Mesmo assim, com sua obra capital de resistência, Carolina Maria nos mostra a importância da recusa

ao silêncio, de não determinar o que se deve falar ou não; se é literatura ou não. Entendo que em vários

trechos do seu livro Quarto de despejo: diário de uma favelada (1993), Carolina Maria mostra como

encontra na escrita a oportunidade de falar de si de forma transformadora. Trechos como “Suporto as

contingências da vida resoluta. Eu não consegui armazenar para viver, resolvi armazenar paciência” (p.

15); ou então “Eu sou muito alegre. Todas as manhãs eu canto. Sou como as aves, que cantam apenas ao

amanhecer. De manhã eu estou sempre alegre” (p. 23); ou ainda “eu adoro a minha pele negra, e o meu

cabelo rústico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo

de preto onde põe, fica... Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta” (p. 58); entre vários

outros trechos importantes, que mostram como a escrita lhe serviu também como afirmação de sua

identidade, a partir de análises pontuais sobre os mecanismos racistas e machistas do seu cotidiano. Ao

escrever seu diário, a autora encontra um processo contíguo com a situação analítica, uma via de escape,

que lhe é útil como suporte para vivenciar as mazelas e violências cotidianas: “Enquanto escrevo vou

pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol... é preciso criar este ambiente de

fantasia, para esquecer que estou na favela. As horas que sou feliz é quando estou residindo nos castelos

imaginários” (Jesus, 1993, p. 52).

É esse caráter de ferramenta libertadora que a psicanálise deve assumir em sua prática. Nosso papel é

trabalhar contra os mecanismos de repressão, sejam do inconsciente, sejam das formas hegemônicas de

poder. Portanto, para se implicar na resistência contra a opressão racial, é necessário para a psicanálise

ir além e propor uma estruturação de sua prática para que os sujeitos submetidos as maquinarias de

repressão encontrem espaços para se emanciparem. Para isso, é importante que nos debruçemos sobre

obras importantes como a de Carolina Maria, que retratam a realidade do racismo e machismo no país,

para assumir definitivamente que esses fenômenos existem e que o primeiro passo é admiti-los (tanto em

reconhecer sua existência, quanto em acolhê-los) na clínica.

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271REFERÊNCIAS

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São Paulo: Perspectiva.

Belo, F. (2009). Transferência: reabertura da situação originária. Recuperado de: http://www.fabiobelo.

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Butler, J. (2015). Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica.

Butler, J. et al. (2015). Judith Butler et Monique David-Ménard: d’une autre à l’autre. L’evolution

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Foucault, M. (2010). A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: WMF Martins Fontes.

Foucault, M. (2001). História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal.

Jesus, C. M. de. (1993). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Editora Ática.

Laplanche, J. (1993). Problemáticas V - A tina: a transcendência da transferência. São Paulo: Martins Fontes.

Santos, B., & Polverel, E. (2016). Procura-se psicanalista segurx: uma conversa sobre normatividade

e escuta analítica. Lacuna: uma revista de psicanálise, 1(3). Recuperado de: https://revistalacuna.

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Sartre, J P. (1968). Reflexões sobre o racismo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro.

Spivak, G. C. (2010). Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG.

Tiburi, M. (2017). Lugar de fala e ético-política da luta. Revista Cult. Recuperado de: https://revistacult.uol.

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autoria

resumo

DANIEL BRUNO DOS REIS

Graduado em Psicologia pelo Centro Universitário Newton Piava. Especialista em Teoria

Psicanalítica pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestre em Estudos

Psicanalíticos pela UFMG.

CONTATO: [email protected]

Teoria e sublimação: a exclusão e a possibilidade de ser sujeito

A psicanálise desde seus primórdios se propõe a pensar sobre vários temas e questões para

construir conceitos que componham seu cabedal teórico. Mas nem sempre a psicanálise se

atenta as questões sociais, já que muitas vezes justifica que trata do inconsciente e que este é

subjetivo apenas, e portanto, trata do indivíduo. Este artigo se presta a discutir o papel político

social da psicanálise no que diz respeito ao racismo e a produção teórica da psicanálise que de

acordo com as conclusões ainda não da conta de dizer muito sobre este tema. Para tal analise,

apresento a leitura do livro Quarto de despejo, de Maria Carolina de Jesus, diário que conta

uma parte da história da autora, mulher, preta, favelada, escritora que mudou os rumos da

literatura com seu texto.

PALAVRAS-CHAVE: racismo, psicanálise, política, sublimação.

SUMÁRIO

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273Começarei minha apresentação com a seguinte questão: Pode a psicanálise falar sobre Carolina e seu

texto? Bom, poder, pode, eu diria, no sentido de uma certa autorização concedida pelo social a todas

as áreas do conhecimento para que pensem sobre uma tal realidade e produzam algo sobre, algo que

responda a essa realidade de maneira direta e horizontal. Pensando nisso, talvez eu possa dizer, que não,

a psicanálise, não pode falar sobre Carolina e seu texto, pelo menos não no sentido da capacidade de fala,

já que precisaria falar a partir de um lugar que na verdade se recusa a ocupar, o lugar do social.

No ano passado, ao falarmos sobre violências de gênero, na quinta edição deste congresso, produzi

um texto trazendo uma boa dose de crítica à maneira como a psicanalise ao longo de seu processo

de desenvolvimento histórico e teórico produziu conceitos que reforçam ideologias que por sua vez

sustentam violências de gênero. Enquanto homem branco integrante de um grupo de pesquisa intitulado

psicanálise e política me vejo na obrigação, de repensar mais uma vez o papel da psicanálise na produção

de teorias que, desta vez, não observam as realidades sociais, as realidades das pessoas, das pessoas

pretas, das violências que cometemos, e que cometemos em nossa produção, mas insistimos em somente

observar os sintomas de uma sociedade branca burguesa centrada em torno de si.

Por que digo isso? Oras, há tempos psicanalistas defendem o lugar da clínica para a psicanálise como

se ela não pudesse ocupar outros campos, construir outros settings terapêuticos, e fazer outras

intervenções, somente pelo fato de que o que se produziu até hoje diz respeito a esse lugar clínico, ao

consultório, sala, divã, elementos que fazem parte de uma cena social que não comtempla de maneira

nenhuma a realidade do social no qual Carolina está inserida, a favela, a pobreza, a fome, a feminilidade,

a negritude. Em alguns casos instituições psicanalíticas defendem inclusive que até mesmo a academia

não é o lugar de produção da psicanálise, que se produziria apenas na clínica, a partir da transferência, no

meio do inconsciente que aparece somente em análise, etc., reforçando a ideia de que o social não tem

acesso a psicanalise, pois o inconsciente é subjetivo e não social, enquanto na verdade isso mostra que

a psicanálise não está interessada em acessar o social enquanto lugar mais que especial do acontecer

psíquico. Como falar de Carolina, mulher, preta, pobre, e de seu texto, produzido a partir do lixo e da fome

enquanto ilustração da favela? Não é possível olhar para este objeto pensando a partir da psicanálise,

mas talvez seja possível olhar para as duas realidades, a social e a teórica, para de maneira crítica, retirar

a psicanalise do livro, fazendo-a olhar para Carolina e então dizer algo a respeito do texto que ela produz

como elemento de sua subjetividade ou como elemento de subjetivação.

Em minha primeira leitura do livro, a sublimação foi o conceito que me veio à mente, ingênuo como sou,

na tentativa de produzir algo psicanalítico sobre o texto tão sublimemente apresentado por Carolina

de Jesus, texto riquíssimo de subjetividade, de testemunho, de crítica, de revolta, mas, sobretudo, de

revolução e de esperança. Seria o livro uma sublimação? Para respondermos a essa questão, tendo em

mente a questão que coloquei sobre a capacidade da psicanálise de falar sobre Carolina e seu texto,

precisamos pensar sobre alguns elementos dessas questões.

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274Carolina Maria de Jesus, mineira, nascida em 14 de março de 1914 em Sacramento, mulher, preta,

estudou num colégio espírita durante pouco mais de dois anos, período de onde tirou toda sua potência

de fala e escrita. Apesar de ter largado os estudos nunca deixou de ler e escrever. Depois de sofrer numa

situação de racismo na qual tinha sido acusada de roubar um dinheiro, apanhar junto com sua mãe,

Carolina, por volta de 1947, viaja a pé por 537km até São Paulo para recomeçar uma nova vida na extinta

favela do Canindé na zona norte da cidade (Palmares Fundação Cultural, 2017). No Canindé, Carolina,

como ela mesma diz, cata papel, metal e escreve, enquanto ainda cuida e cria João José, José Carlos e

Vera Eunice. Protagonista do seu texto e de sua vida, Carolina, guarda velhos cadernos achados no lixo

para escrever, para transmitir, para falar, apontar uma realidade que a circula e que ao mesmo tempo a

constrói enquanto sujeito que ocupa espaço naquela cena social.

De acordo com o site Vida por escrito, que se dedica à organização, classificação e preparação do

inventário da obra da autora, Carolina Maria de Jesus representa, no contexto da produção literária

brasileira, uma convergência valiosa de condições de ‘impossibilidades’ para uma carreira literária: é

uma mulher negra, semialfabetizada, favelada, mãe solteira e, acima de tudo, dona de um gênio forte e

inflexível ao ponto de frustrar os projetos de moldá-la ao gosto público (Barcellos, 2014). Essa visão de

Carolina enquanto escritora reconhecida, representante da literatura, por vezes foi questionada, como,

por exemplo, no evento ocorrido na Academia Carioca de Letras em homenagem à autora, o professor de

literatura Ivan Cavalcanti Proença após elogiar Carolina diz:

Só tem uma coisa, isso não é literatura. Isso pode ser um diário e há inclusive o

gênero, mas, definitivamente, isso não é literatura. Cheia de períodos curtos e

pobres, Carolina, sem ser imagética, semi-analfabeta, não era capaz de fazer orações

subordinadas, por isso esses períodos curtos. (Lucinda, 2017, s/p).

Sobre esse comentário é interessante ressaltar o quanto as formatações brancas aparecem nos discursos

provendo racismos numa atitude de deslegitimar processos de subjetivação, existência e resistência de

pessoas negras o tempo todo na sociedade. E talvez seja isso que a psicanálise faça também, quando olha

para Carolina e tenta interpretá-la.

Continuemos. Se escrever está na mesma categoria que catar papel e metal, como coloca Carolina ao

nos contar seu ofício, a escrita se torna também um elemento de sobrevivência, e, assim como sobrevive

dos catados que troca por pequenas quantidades de dinheiro para comprar o essencial para si, seus

filhos e sua filha, sobrevive do seu texto que lhe serve como dispositivo de subjetivação. Mas, com esse

dispositivo texto Carolina sobrevive ao quê, a fome? À favela? Às doenças? A sociedade injustamente

dividida que forçadamente a mantem no quarto de despejo? Uma leitura e interpretação apressadas

levam a crer, já que Carolina, ao longo do livro, apresenta várias queixas sobre a favela, e em alguns

pontos sua dificuldade de se identificar com o lugar onde mora, que ela escreve para fugir da favela,

da realidade dura de sua vida, como se reclamasse o tempo todo pela sua existência; como se, a partir

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275da fantasia do texto, subjugasse às faltas que vê marcadas em si sempre que vai a cidade, visita outros

cômodos da vida e não quer voltar para o quarto de despejo.

Seria essa a sublimação de Carolina, o texto que a retira da favela? Pensada a partir de sua frase:

Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz

do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que minha vista circula

no jardim e eu comtemplo as flores de todas as qualidades. ... É preciso criar esse

ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela (Jesus, 2014, p. 58).

Mas afinal, o que é sublimação? Torezan e Brito (2012) apontam o fato claro de que Freud não dedicou

nenhum texto exclusivamente ao conceito de sublimação e consideram, portanto, insuficientes os

esforços de tratar esse conceito sem se debruçar exclusivamente a sua elaboração. Laplanche (1989), na

segunda parte de sua problemática sobre a sublimação, escreve uma seção, intitulada “Insuficiências de

certas formulações freudianas”, na qual aponta a fragmentação das elaborações freudianas aparentes nas

diversas formas ou vias pelas quais abordou a sublimação, sem chegar a alguma conclusão que modelasse

um conceito metapsicológico. Nesta seção, Laplanche (1989) inicia sua exposição questionando se

não seria melhor abandonar o conceito já que “ele nada tem de claro” (p. 100). Tavares e Hashimoto

(2016), ao criticar a insuficiência das tentativas de Freud em elaborar a sublimação, ressaltam também a

fragmentação do conceito de sublimação ao longo de diversos textos da obra freudiana, afirmando que

esse é o motivo de se haver tantos mal-entendidos com relação ao conceito e sua aplicação. Os autores

apontam que, ao perpassar pela obra em busca de compreender a sublimação, duas coisas ficam claras: a

questão da dessexualização da pulsão e a sublimação enquanto possível destino pulsional.

No vocabulário de psicanálise, Laplanche e Pontalis (2011) definem que a sublimação

é “o processo postulado por Freud para dizer das atividades humanas aparentemente

sem relação com a sexualidade, mas que encontram sua força motriz na força da

pulsão sexual. Freud descreveu como atividades de sublimação principalmente

a atividade artística e a investigação intelectual” (p. 465, tradução nossa). Marco

Antônio Coutinho Jorge (2000) ressalta que uma pulsão encontra-se sublimada

quando está visando um alvo não sexual ou objetos socialmente valorizados. E Freud

(1924/2004), ao falar sobre o masoquismo moral, define essa categoria como uma

forma do masoquismo que parece afrouxar as vinculações com o que ele identificou

como sexualidade.

Bom, na minha dissertação discuti bastante o conceito de sublimação, defendendo a ideia de que

não é possível pensar numa dessexualização da pulsão, já que a pulsão é o sexual, aquele sexual que

Laplanche (2003) defende em relação ao gênero e ao sexo. Dessexualizar a pulsão seria o mesmo

que impedir seu movimento e permanência no aparelho psíquico, e por consequência sua satisfação.

Talvez possamos dizer que, se fosse realmente possível fazer isso – dessexualizar –, seria o mesmo que

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276facilitar formulações mortíferas tanto quanto a melancolia, na qual a pessoa vivencia exatamente o

desinvestimento pulsional, esvaziando-se de si mesma, enquanto a pulsão permanece livre, desligada. Ou

seja, não seria funcional do ponto de vista da integridade do eu e por consequência da manutenção do

psiquismo (Reis, 2017).

Afirmo aqui então, que sublimar, não é dessexualizar, mas deserotizar a pulsão, sexualizá-la na relação

com o outro, tanto o outro interno, quanto o outro da relação. E, sendo assim, poderia aferir que Carolina,

com seu texto, cria uma conexão com o mundo, sublima seu sofrimento, a fome, e a realidade da favela que

vive, a parir da possibilidade da contação da sua história, do seu testemunho, que extrapola os cadernos

encontrados no lixo para chegar até, por exemplo, a este Congresso, enquanto uma voz que fala de si.

Mas que sentido tem fazer esse tipo de interpretação, afirmando que Carolina tenta fugir de sua

realidade dura que aponta por vezes ao longo do diário, através do seu texto, se, na verdade, a fuga de

Carolina representa apenas uma das facetas de seu testemunho, que no fundo representa um ato de

coragem, de resistência, de afirmação de sua existência, e não somente sua, mas de existência da mulher

negra favelada, que também pode falar? Posso continuar pensando no texto enquanto sublimação,

movimento da subjetividade nessa busca pela voz, mas fico aqui me perguntando onde estaria na

construção do conceito de sublimação alguns elementos: a feminilidade, tão recalcada na psicanalise

de modo geral, a realidade social da favela, a pobreza, a fome, e sobretudo a negritude, a experiência

violenta da existência negra, etc.

Retomo agora minha questão sobre a capacidade da psicanálise de falar sobre Carolina e seu texto.

Quando eu, psicanalista, homem, branco, leio o texto pensando num conceito que não foi construído

levando-se em conta o social, a feminilidade e a negritude, estou caindo numa armadilha produzindo o

que vou chamar a partir de hoje, de agora, de um movimento interpretativo colonizador. Esse movimento

é o de olhar para a realidade social a partir da teoria, tentando reproduzir um modelo, que no caso

da psicanalise é eurocêntrico, branco, burguês. Freud (1923/1996) propõe, em “Dois verbetes de

enciclopédia”, que a pesquisa em psicanálise deve advir da prática clínica, ou seja, deve ser produzida a

partir da realidade com que se depara o analista. Acrescento que não somente da prática clínica, mas do

social, de onde as pessoas estão vivendo, sofrendo, construindo, produzindo, morrendo, etc. A psicanálise

precisa entender o seu papel político social e assumir que precisa ocupar o campo social para produzir

uma teoria válida para falar sobre Carolinas diversas que precisam aparecer para pensarmos questões

como o racismo.

Ao falar sobre Carolina e seu texto, não se pode deixar de considerar que a ambiguidade das falas de

Carolina em relação à favela, a fome, a pobreza, etc., apontam uma denúncia sobre um processo de

homogeneização da população nos moldes de um estilo de vida branco burguês, processo este que se

serve da psicanálise cada vez que ela se coloca nesse movimento interpretativo colonizador, que busca

encaixar sujeitos nos livros teóricos que não explicam o social. Ao pensar sobre o texto de Carolina

enquanto dispositivo de sublimação, não posso pensar que os objetos sublimados têm a ver com a fome,

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277com a pobreza, com a eliminação da crueldade da favela. É preciso considerar que Carolina está na favela,

vive a favela e se faz dessa realidade, se constrói enquanto mulher favelada, massacrada pelo racismo,

e isso faz parte de sua identidade. Dizer que Carolina sublima a favela e sua realidade de vida seria dizer

que Carolina sublima sua própria identidade, e se fizesse isso estaria se desfazendo no seu próprio texto,

enquanto na verdade o texto de Carolina aparece enquanto elemento estruturador de sua identidade

como mulher negra favelada que denuncia uma realidade de vida que, mesmo a massacrando, faz com ela

se coloque numa posição de resistência.

Para concluir, eu diria que a psicanálise, para poder falar de Carolina e seu texto, precisa sair dos

livros, olhar para o social, assumir sua posição política, considerar a realidade da negritude, pensar nas

violências produzidas pelo racismo, inclusive no seu próprio processo de produção teórica, para de

alguma maneira conseguir se aproximar da pessoa humana de Carolina e começar a compreender do que

se trata o texto que ela apresenta.

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278REFERÊNCIAS

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Psicológicas Completas de Sigmund Freud. (Vol. XVIII, pp. 249-274). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original

publicado em 1923).

Freud, S. (2004). O problema econômico do masoquismo. In S. Freud, Escritos sobre a psicologia do

inconsciente (L. A. Hans, trad., Vol. III, pp. 103-124). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em

1924)

Jesus, C. M. (2014). Quarto de despejo: diário de uma favelada. Sãao Paulo: Ática.

Jorge, M. C. (2000). Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan (Vol. 1). Rio de Janeiro: Zahar.

Laplanche, J. (1989). Problemática III: a sublimação. (A. Cabral, trad.) São Paulo: Martins Fontes

Laplanche, J. (2003). Le genre, le sexe, le sexual. Em A. Green, & outros, Sur la théorie de la séduction. (pp.

69 - 103). Paris: In Press.

Laplanche, J., & Pontalis, J. B. (2011). Vocabulaire de la psychanalyse. Paris: PUF.

Lucinda, E. (2017). Carolina de Jesus é literatura sim! Recuperado de http://www.publishnews.com.br/

materias/2017/04/24/carolina-de-jesus-e-literatura-sim

Palmares Fundação Cultural. (2017). A vida e obra de Carolina de Jesus: um manifesto para a literatura

periférica e da afro-brasileira. Recuperado de http://www.palmares.gov.br/archives/40983

Reis, D. B. (2017). O masoquismo e a melancolia: vida, morte, prazer, dor e sadomasoquismo no cinema de Lars

von Trier. Dissertação (Mestrado), Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais.

Barcellos, S. Sobre Carolina e sua obra. Recuperado de https://www.vidaporescrito.com/about1-ctqi

Tavares, L. A., & Hashimoto, F. (2016). Sublimation as a paradigm of the psyche constitution: metapsychology

and theoretical-clinical developments. Ágora: estudos em teoria psicanalítica, 19, 295-310.

Torezan, Z. F., & Brito, F. A. (2012). Sublimação: da construção ao resgate do conceito. Ágora: estudos em

teoria psicanalítica, 15, 245-258.

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autoria

resumo

RAISSA DE MATOS RIBEIRO

Psicóloga. Atua na clínica com orientação psicanalítica. Mestranda em Psicologia pela

Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

PAULA PAIM DE ALMEIDA LANA

Psicóloga clínica da Rede de Atenção Psicossocial da cidade de Betim, no CERSAMi e no

CERSAM Citrolândia. Pós-Graduada em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal de

Minas Gerais – UFMG. Mestre em Psicologia pela UFMG.

CONTATO: [email protected]

Sobre os efeitos do racismo: interlocuções da clínica psicanalítica e a literatura testemunhal

Nesse trabalho discutimos a omissão da psicanálise em tratar do racismo enquanto

situação social que precisa ser posta em relevo na clínica das pessoas negras. A partir

disso, sustentamos o lugar do livro “Quarto de despejo” de Carolina Maria de Jesus como

literatura de testemunho, demonstrando como a questão do testemunho tem uma intrínseca

relação com a clínica dos sobreviventes de catástrofes sociais. Procuramos traçar algumas

consequências clínicas, a partir dessas interlocuções, apontando como o analista precisa estar

atento a momentos em que uma suposta neutralidade pode ser tomada como uma omissão,

podendo causar, no analisando, um sentimento de abandono, e impossibilitando-o de se

construir singularmente enquanto parte de uma história que o extrapola.

PALAVRAS-CHAVE: racismo, trauma, testemunho, clínica psicanalítica.

SUMÁRIO

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280TEORIA E TÉCNICA PSICANALÍTICA INTERPELADAS PELO RACISMO

“Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo” (Jesus,

1960, p. 33), escreveu Carolina Maria de Jesus em seu diário, no dia 20 de maio de 1958. A autora, nessa

mesma data, se descreve como um rebotalho, isto é, aquilo que sobra de inútil e sem valor após a retirada

do que há de melhor. Não é sem razão que Carolina se sente dessa forma, se identificando com esse

lugar: nesse dia, tomada pelo frio e pela fome, não apenas a sua como a dos seus filhos, entende que para

alguém sobreviver na favela é preciso abrir mão de sua humanidade e, em suas palavras, “precisam imitar

os corvos” (Jesus, 1960, p. 37).

Frente a um sofrimento como esse, concreto, de difícil superação e que deixa importantes marcas

identitárias, como um analista deve se portar? Como a fome, a pobreza extrema, a violência física e o

descaso social podem ser ouvidos numa análise?

Nesse trabalho temos o intuito de propor uma discussão a respeito da condução e da finalidade da análise

de pessoas cuja trajetória é marcada por situações de sofrimento e violência, nas quais o que há de

mais elementar à vivência humana está ameaçado, principalmente devido à discriminação racial. Nossa

argumentação terá como fio condutor o relato de Carolina Maria de Jesus, presente no livro Quarto de

despejo (1960), e visa questionar os limites e as possibilidades de uma clínica psicanalítica implicada no

campo social em que está inserida, podendo, assim, oferecer verdadeiramente, um lugar de fala e escuta

a essas experiências.

É sabido que a psicanálise pouco se debruçou sobre a imbricada relação entre psiquismo e raça. Ana

Paula Musatti-Braga (2015), em sua tese de doutorado sobre as contribuições clínico-políticas da

psicanálise acerca das mulheres negras, nos chama atenção para a escassez de pesquisas psicanalíticas

que abordem questões relativas à desigualdade econômica e social. Segundo a pesquisadora, são

usados argumentos como “o inconsciente e o psiquismo não têm cor” (Musatti-Braga, 2015, p. 22) como

justificativa para o fato da psicanálise não se debruçar sobre essas questões.

Esta esquiva em reconhecer a especificidade do sofrimento das pessoas negras e sua relação com a

desigualdade econômica e social pode trazer efeitos importantes na prática clínica. Nesse sentido, José

Tiago dos Reis Filho (2005), psicanalista negro, relata que, ao perguntar para seus colegas brancos se

eles atendem negros, estes geralmente respondem afirmativamente sem, contudo, terem se questionado

sobre questões raciais. Neste mesmo trabalho, sua tese sobre a negritude e o sofrimento psíquico, o

autor aponta que há uma preferência das pessoas negras por psicólogos negros. Essas relatam que,

em processos anteriores de análise, conduzidos por profissionais brancos, a questão racial se tornou

invisível, não se constituindo como um ponto relevante do processo analítico.

Essa invisibilidade na clínica pode ser entendida como parte do antigo processo de desumanização que as

pessoas negras sofrem. Caterina Koltai (2016), ao tratar das barbáries que ocorreram no início do século

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281XX, nos diz que o esquecimento do extermínio faz parte do extermínio. Julgamos que esta ideia tem seu

sentido potencializado quando estamos diante de uma catástrofe histórica que tem antecedentes, um

passado, mas que ainda está em andamento. Desta forma, a desumanização das pessoas negras precisa

ter sua importância histórica reconhecida nos consultórios de psicologia, deixando de ser escondida

por uma falsa inclusão, como a de que todos são iguais sob a égide do inconsciente. Segundo Koltai

(2016), a psicanálise não pode se reservar num lugar de exceção, se esquecendo de que lida com sujeitos

depositários de uma história. Assim, esclarece a autora, ao remeter tudo ao plano da individualidade, o

analista causa, no paciente, um sentimento de abandono, e o impossibilita de se construir singularmente

enquanto parte de uma história que o extrapola.

Há aí uma certa contradição com o que, de modo geral, a situação psicanalítica preconiza. Jean Laplanche

(1993), em A tina, traz uma discussão prolongada acerca do estatuto da realidade na análise, e propõe

que cabe ao analista dar igual valor aos elementos trazidos, sejam eles da realidade objetiva ou da

fantasia. No caso de uma pessoa que teve sua humanidade rechaçada devido à cor de sua pele, sendo a

pele aquilo que num certo imaginário social, e inclusive nas reflexões psicanalíticas sobre a constituição

da subjetividade, é parte das primeiras designações de nosso Eu, como não tratar da realidade e das

implicações dessa pele na análise?

Mesmo entendendo que um processo psicanalítico sempre se dá em um contexto que merece

atenção, hipotetizamos que nos casos de pessoas negras a realidade objetiva do racismo merece uma

consideração especial. Isso se mostra claro em Quarto de despejo, no qual Carolina nos conta sobre sua

rotina enquanto uma favelada, denunciando essa estreita relação, estabelecida historicamente, entre a

pobreza e a raça negra, num Brasil ”predominado pelos brancos” (Jesus, 1960, p.102). Destacamos isto no

relato a seguir:

Eu estava pagando o sapateiro e conversando com um preto que estava lendo um

jornal. Ele estava revoltado com um guarda civil que espancou um preto e amarrou

numa árvore. O guarda civil é branco. E há certos brancos que transforma preto em

bode expiatorio. Quem sabe se o guarda civil ignora que já foi extinta a escravidão

e ainda estamos no regime da chibata? (Jesus, 1960, p.96)

Esse aspecto está presente em vários outros trechos da obra, como quando Carolina (1960) trata,

especificamente, da exploração sexual de mulheres negras, ao narrar os abusos dos “purtuguês” (p. 83)

que ofereciam comida a elas em troca de sexo. Também ao nos contar sobre cor da pele daqueles que

eram presos pela rádio patrulha, como no episódio dos “dois negrinhos” (p. 40) de 4 e 6 anos que, pela

fome, trituravam até casca de abacaxi. Até mesmo numa compra no empório, no qual seu dono compara

os gastos de Carolina aos de uma senhora, equivalentes naquele momento, a autora diz “ela é branca.

Tem direito a gastar mais” (Jesus, 1960, p.108).

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282Essa noção está clara até para Vera Eunice, filha de Carolina, que ao ver as panelas cheias, num dia de

jantar farto, com arroz, feijão, pimentão, chouriço e mandioca frita, comemora: “hoje é festa de negro”

(Jesus, 1960, p. 43). Esses exemplos servem para nos mostrar como, na obra de Carolina e nas suas

vivências, a favela e a negritude estão intimamente ligadas, não podendo uma ser ouvida sem a outra.

Também estão presentes no relato de Carolina Maria de Jesus figuras que ocupam, ou deveriam ocupar,

um lugar de auxílio à vida de uma favelada, como o judiciário, o serviço social, a educação e até mesmo

a religião. O primeiro, na figura do Juiz, que frente ao pedido de Carolina de internar seu filho João

José, na tentativa de protegê-lo da perseguição na favela, responde que caso as crianças fossem para

o abrigo, voltariam de lá ladrões. Se perguntando sobre a postura dos Juízes, questiona Carolina, “o

que é que lhes falta? Interesse pelos infelizes ou verba do Estado?” (Jesus, 1960, p. 79). O serviço social

ocupa um lugar de total descrédito no discurso de Carolina, pois “a única coisa que eles querem saber

são os nomes e os endereços dos pobres” (Jesus, 1960, p.37). Carolina nos conta de um episódio no qual,

peregrinando pelos serviços sociais a procura de auxílio devido à doença, é atendida pela Dona Maria

Aparecida, que a ouviu, respondeu várias coisas, porém, sem dizer nada. No campo religioso, na figura

do Frei José, e seu discurso acerca da necessidade da humildade e resignação, Carolina se pergunta: se o

Frei tivesse filhos e ganhasse um salário mínimo será que seria humilde? Como sofrer com resignação ao

testemunhar os próprios filhos se alimentando de “gêneros deteriorados, comidos pelos corvos e ratos”

(Jesus, 1960, p. 76)? Outro exemplo está na professora da escola de João José, Dona Nenê, que ao ouvir

um sofrido desabafo de Carolina sobre “andar muito nervosa e pensar em se suicidar” (Jesus, 1960, p.92),

recomenda-a que fique mais calma, mesmo que o motivo de seu desespero seja a fome e a incerteza

quanto à possibilidade de garantir alimento diário para si e para os filhos.

Podemos relacionar essas posturas frente ao sofrimento humano, que não o reconhecem enquanto

uma realidade violenta e invasiva, e os sentimentos que elas evocam naquele que fala, à postura de um

analista que não legitima essa realidade. Com isso, se corre o risco de incorrer na banalização daquilo

que está sendo trazido pelo paciente, o que caracteriza uma nova violência. Pior ainda, pode incidir

na responsabilização da pessoa negra pela violência que ela própria sofre, remetendo unicamente ao

plano da posição subjetiva uma violação que é atualizada externamente a todo momento. A violência de

circunscrever o problema do racismo como algo que só compete ao negro, apontado por Maria Aparecida

Silva Bento em “Branqueamento e branquitude no Brasil...” (2002), nos parece uma advertência que

enseja a procura de outras formas de intervenção do psicanalista diante de casos em que o sofrimento se

inscreve muito especificamente no campo social.

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283O QUARTO DE DESPEJO E A LITERATURA DE TESTEMUNHO

Tais reflexões, provocadas pela leitura do diário de Carolina Maria de Jesus em diálogo com a nossa

prática clínica, nos remeteram a pesquisa acerca do lugar do psicanalista diante de pacientes que trazem

vivencias sociais traumáticas. A partir disso, nos debruçamos sobre trabalhos que fazem uma relação

entre a psicanálise e o gênero literário denominado de literatura de testemunho. Algumas características

comuns a obras deste gênero, enumeradas por Salgueiro (2012), nos forneceram subsidio para isso,

dentre as quais destacamos: o registro feito em primeira pessoa, o desejo de justiça, a apresentação de

um evento coletivo, a presença do trauma, o vínculo estreito com a história e o sentimento de vergonha

pelas humilhações e pela animalização sofridas. O seguinte trecho do livro de Carolina Maria de Jesus

(1960) exemplifica as características citadas:

21 de maio: eu ontem comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer, porque em

1953 eu vendia ferro lá no zinho. Havia um pretinho bonitinho. ... Um dia eu ia vender

ferro quando parei na avenida bom jardim. No lixão, como é denominado o local.

Os lixeiros haviam jogado carne no lixo. E ele escolhia uns pedaços. Disse-me: leva

Carolina. Dá pra comer.

Deu-me uns pedaços. Para não magua-lo aceitei. Procurei convence-lo a não comer

aquela carne. Para comer os paes duros ruídos pelos ratos. Ele disse-me que não. Que

há dois dias não comia. Acendeu o fogo e assou a carne. A fome era tanta que ele não

poude deixar assar a carne. Esquentou-a e comeu. Para não presenciar aquele quadro,

saí pensando: faz de conta que eu não presenciei esta cena. Isto não pode ser real num

paiz fértil igual ao meu. Revoltei contra o tal serviço social que diz ter sido criado para

reajustar os desajustados, mas não toma conhecimento da existência infausta dos

marginais. Vendi os ferros no zinho e voltei para o quintal de são Paulo, a favela. No

outro dia encontraram o pretinho morto. Os dedos do seu pé abriram. O espaço era de

20 centímetros. Ele aumentou-se como se fosse de borracha. Os dedos do pé parecia

um leque. Não trazia documentos. Foi sepultado como um zé qualquer. Ninguém

procurou saber seu nome. Marginal não tem nome. (pp. 35-36)

Entendemos, assim, que este gênero literário é constituído de narrativas de traumas que se vinculam a

situações sociais extremamente graves. Ainda que geralmente tal denominação encontre-se atrelada

aos contextos de grandes guerras ou regimes ditatoriais, encontramos em Seligmann-Silva (2008),

por exemplo, a ideia de que os eventos que geram o testemunho podem ser também vinculados à

perseguição violenta em massa de determinada parcela da população. Salgueiro (2012) fala de um

alargamento da noção de testemunho para abarcar “genocídios e massacres contra índios e negros; ou

em relação a misérias e opressões” (p. 291), inclusive propondo que a obra de Carolina Maria de Jesus

possa ser considerada pertencente a este gênero literário.

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284Mussati-Braga (2015) propõe uma reflexão que nos parece ratificar isto que estamos explorando, e,

tendo em vista o relevo da mesma, trazemo-la em uma citação:

Diferentemente de outros episódios traumáticos da humanidade, sobre os quais se

produziu posteriormente algum tipo de reconhecimento coletivo da sua existência

e gravidade – como o extermínio dos judeus durante o nazismo, por exemplo – a

escravidão brasileira ainda não recebeu tratamento digno à sua memória. Não

bastasse não poder saber de onde vieram e a origem de seus familiares, os negros

brasileiros foram e são submetidos a uma versão da história, que os descreve como

passivos, hipersexualizados e pouco afeitos a relações familiares. Além disso, o mito

da democracia racial recobriu por muito tempo com seu manto o horror da submissão

e violência, inclusive sexual, com que os negros foram tratados ao longo de séculos.

Fossem os castigos e a violência sobre os negros algo do passado, já seria terrível.

No entanto, a desigualdade racial foi sendo reatualizada a cada momento histórico,

o que fica evidente no número de mortes e encarceramento da população negra

atualmente. (pp. 24-25)

Lembramos aqui do álbum do grupo Racionais MC’s, de 1990, chamado de Holocausto Urbano, e, mais

recentemente, das passeatas sobre o genocídio das pessoas negras, para mostrar a ressonância desta

relação que propomos com outras leituras que já circulam socialmente.

A pessoa negra, a partir desta leitura, é a testemunha de uma situação de horror. Tal como Seligman-

Silva aponta, baseado no relato de Primo Levi acerca dos horrores do campo de concentração, a

testemunha é um sobrevivente, de modo que conseguiu se manter a alguma distância do epicentro da

violência, não tendo sido aniquilado em sua existência física ou subjetiva, tendo condições de relatar

algo acerca do ocorrido. A partir daí, destaca duas características do testemunho, vinculando ambas a

pontos específicos da teoria psicanalítica: ressalta que o trauma que o evoca é sempre presente, por mais

que possa efetivamente ter sua origem num outro tempo, e é dotado de tamanha violência que pode

não parecer vinculado à realidade. Julgamos possível apreender esta percepção da inverossimilhança

do vivido por Carolina Maria de Jesus (1960) quando ela escreve: “Há de existir alguém que lendo o

que eu escrevo dirá... isto é mentira! Mas, as misérias são reais” (p. 41). A autora traz, em seu diário,

representações de seu cotidiano marcadas por uma literalidade que, contraditoriamente, podem remeter

ao plano da imaginação, da hipérbole. Ao se dirigir, porém, a este possível leitor, ocorre também uma

aposta no reconhecimento do vivido, gancho que iremos explorar para finalmente apresentar o diálogo

entre as produções acerca do testemunho e a clínica psicanalítica.

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285LUGARES DO ANALISTA DIANTE DO TESTEMUNHO DO RACISMO: ALGUMAS REFLEXÕES

Tendo sustentado alguns pontos que nos fazem relacionar o lugar da pessoa que sobrevive aos efeitos do

racismo como uma testemunha, passamos à interlocução com a hipótese de Gondar e Antonello (2016),

de que em casos marcados por situação de sofrimento social extremo estamos diante de uma função do

analista enquanto testemunha do testemunho, tendo este a atribuição primordial de reconhecer e dar

espaço ao paradoxo presente em narrar o inenarrável, distanciando-se da lógica interpretativa e também

da função continente.

Os autores nos mostram que a palavra “testemunha” condensa duas palavras do latim, uma que diz

respeito ao lugar de um sobrevivente, e outra que fala de alguém que viu, presenciou algo, um terceiro.

Assim, nos apontam que todo testemunho diz respeito a estes dois lugares. Jeanne Marie Gagnebin

(2006), dirá também de um outro tipo de testemunha, que não é somente a que presenciou, e sim aquela

que não vai embora, e que consegue ouvir a narração insuportável e disponibilizar suas palavras para

a história do outro. É aquele que aposta que a transmissão simbólica pode ser uma forma de esboçar

uma nova história, a partir do presente. Julgamos que o lugar apontado por esta autora dialoga com a

proposição de Gondar e Antonello (2016): ao se colocar como testemunha do testemunho, o analista

aposta no reconhecimento, que

implica dar crédito ao trauma, validando as percepções e sentimentos daquele que

sofreu a violência. Disso nos falam nossos pacientes, quando desconfiam de suas

próprias percepções ou da gravidade de seu sofrimento: “talvez eu esteja exagerando,

não é possível que tenha ocorrido desse modo, isso não pode ter acontecido”. A

importância e a forma afetiva desse reconhecimento dificilmente são levadas em

conta em um trabalho psicanalítico clássico, quando um analista se orienta pela

estratégia da suspeita. (p. 19)

Entendemos aqui, apesar de isso não estar explícito no texto citado, que esta estratégia de suspeita teria

a ver com um pressuposto que orienta a escuta do psicanalista em alguns casos, de que por trás daquilo

que o paciente fala há um outro conflito, e não exatamente aquilo sobre o que o conteúdo manifesto de

sua fala versa. Não há dúvida de que o conceito de inconsciente nos remete, de fato, a tal postura. Nos

casos, porém, em que há um trauma de origem social tão proeminente, julgamos importante a evocação

de uma dimensão afetiva que se dá no trabalho do analista, em especial em se colocar no lugar de receber

afetos não elaborados, e muitas vezes em estado quase que incomunicável. Para isso, julgamos que é

importante dar alguma consistência ao conteúdo manifesto da fala, por vezes inclusive ressaltando o

caráter absurdo da experiência social do racismo.

É um lugar desafiador, na medida em que o analista precisa estar atento para uma posição que não se

configura como uma espécie de compaixão ingênua, que o levaria a supor que poderia sofrer como o seu

paciente, ou ainda a apontar suas intervenções na direção de uma generalização social do sofrimento

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286racial, posturas que remetem a uma desconsideração da singularidade da experiência do paciente.

Retomando a reflexão de Koltai, em casos de sujeitos profundamente traumatizados por circunstancias

sociais, precisaremos estar atentos à construção de um setting em que o paciente confie que o analista

está presente, ao seu lado, e se esforçando, de alguma forma, para imaginar (e não julgar que sabe) o

horror por ele vivido. A partir disso, apostamos, em consonância com a autora, na abertura de novos

modos de integração da comunidade humana.

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287REFERÊNCIAS

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Pontifícia Universidade Católica, São Paulo.

Gagnebin, J. M. (2006). Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Editora 34.

Gondar, J., & Antonello, D. (2016). O analista como testemunha. Psicologia USP, 27(1),16-23.

Jesus, C. M. (1960). Quarto de despejo: diário de uma favelada. Edição Popular.

Laplanche, J. (1993). Problematicas V: A tina. São Paulo: Martins Fontes.

Koltai, C. (2016). Entre psicanalise e historia: o testemunho. Psicologia USP, 27(1), 24-30.

Mussatti-Braga, A. P. (2015). Os muitos nomes de Silvana: contribuições clínico-políticas da psicanálise

sobre mulheres negras. Tese (Doutorado), Instituto de Psicologia, Universidade Federal de São Paulo,

São Paulo.

Seligmann-Silva, M. (2008). Narrar o trauma: a questão dos testemunhos de catástrofes históricas.

Psicologia Clínica, 20(1), 65-82.

Silva Bento, M. A. (2002). Branqueamento e branquitude no Brasil. In I. Carone, & M. Aparecida Silva

Bento (Org.), Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. (pp. 25-

58). Petrópolis, RJ: Vozes.

Salgueiro, W. (2012). O que é literatura de testemunho (E considerações em torno de Graciliano Ramos,

Alex Polari E André Du Rap). Matraga, 19(31), 284-303.

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autoria

resumo

SARUG DAGIR RIBEIROT

Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestre em

Letras pela UFMG. Doutoranda em Psicologia na UFMG.

CONTATO: [email protected]

Psicanálise e antissemitismo: do mito do judeu-satã à alteridade do pulsional

Interpelamos o antissemitismo nas suas razões históricas, sociais e psicológicas.

Reconsideramos as análises freudianas sobre Moisés como herói, introdutor da circuncisão,

até a tese do seu assassinato. Em seguida, analisamos as pesquisas bonapartianas sobre

a formação do “mito do judeu-satã” e as causas psicológicas do antisemitismo recaindo

na “pulsão de agressão”. Nosso propósito metodológico é do ponto de vista laplancheano

considerarmos os argumentos ptolomaicos e copernicanos, sobretudo, esses últimos,

pois, estão compromissados com o papel do outro no pulsional. Feito esse percurso nossas

conclusões visam que as raízes pulsionais ou agressivas do antisemitismo abarcam tanto a

esfera individual como coletiva.

PALAVRAS-CHAVE: antissemitismo, judeu, mito, pulsão, agressão.

SUMÁRIO

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289Interpelamos o tema do antissemitismo, racismo com um furor irracional que auferiu aos judeus a

flama mais violenta da nossa civilização com o nazismo e que muito persuadiu os últimos dias do pai da

Psicanálise, que como sabemos: ele fora salvo pela princesa Marie e por seu mais famoso biógrafo, que

o levaram para a Inglaterra (Bertin, 1989; Edmundson, 2009). Desde essa época muitos psicanalistas

foram impelidos a lançar reflexões sobre as implicações psicológicas do antissemitismo. Então, nossa

pergunta de pesquisa é saber quais são as razões históricas, sociais e psicológicas do antissemitismo?

Para responder as duas primeiras questões teremos como objetivos: trazer as considerações apontadas

por Freud (1939/1976; 1938/1976) sobre a figura de Moisés como herói; o costume da circuncisão,

responsável por dá a esse povo um status diferenciado aos demais povos; e, por fim, discutir a tese do

assassinato de Moisés, e nesse ponto será inevitável realizarmos um jogo de idéias com outro texto

freudiano sobre a hipótese do assassinato do Pai Primevo e suas repercussões (Freud, 1913/1976). Por

fim, para responder a última questão, trataremos das pesquisas de Bonaparte (1951a; 1951b; 1951c) que

nos esclarecem desde os motivos religiosos (a diáspora), sociais (o isolamento imposto ao povo judeu)

e todos os demais ordenamentos do fenômeno privilegiado que foi o programa nazista que copilou a

formação do “mito do judeu-satã” (Bonaparte, 1951a). Mito que foi redigido pelas notas tomadas em

meio à população em geral, principalmente de soldados, que em forma de depoimentos, ajudaram-

na a escrever as histórias dos mitos que surgiram durante todo o período das duas Grandes Guerras

Mundiais (Bertin, 1989), e oportunamente publicado na obra que aqui nos serve de guia. Sobremaneira,

compreendemos a complexa explicação das causas psicológicas do antissemitismo, tanto na proposta

freudiana do dualismo pulsional (Freud, 1920/1976) e do medo da castração suscitado pela circuncisão,

como também pela “pulsão de agressão” (Bonaparte, 1951c).

Feito esse percurso, nosso propósito metodológico será a partir do ponto de vista de Laplanche (2008a)

reconsiderarmos os avanços e os recuos da reflexão bonapartiana. Primeiro, elucidando seu argumento

ptolomaico que a biologia vem situar a sexualidade como em continuidade com o desenvolvimento do

organismo, pensamento muito comum entre os psicanalistas de sua época1, e, também, a adoção da

tradução do termo alemão trieb por instinct ou impusion (“impulsão”) (Bonaparte, 1951d). Segundo, após

ter explorado esta limitação, propomos indicar os avanços da autora, eixo copernicano, compromissado

com a concepção totalmente exógena da sexualidade, que se refere ao papel do outro humano no

pulsional (Laplanche, 1992). Nessa seara verificamos que a visão bonapartiana privilegia o momento

reflexivo (selbst ou “auto”) na relação entre masoquismo e sadismo, de maneira semelhante à visão

laplancheana, (Laplanche, 1985/1970), mas isso não significa necessariamente algo copernicano, o que

investigaremos a logo a seguir. Feito esse caminho nossas conclusões visam declarar a que a importância

dos textos bonapartianos vai além da psicanálise e configuram uma ação política muito eficaz não só

no seu tempo, mas que, também, em nossos dias atuais, contra o racismo, cujas raízes pulsionais ou

agressivas do antissemitismo abarcam tanto a esfera individual como coletiva.

1 Como P. Federn (Carvalho, 1996) e W. Reich (1942/1975).

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290O MOISÉS DE FREUD E O JUDEU-SATÃ DE BONAPARTE

Será no cenário da ocupação nazista da Áustria e do inevitável exílio em Londres que o principal texto de

Freud (1939/1976) sobre o antissemitismo é publicado, no qual surge o desabafo: “Estamos vivendo num

período especialmente marcante. Descobrimos, para nosso espanto, que o progresso aliou-se à barbárie”

(p.71). De fato, um texto notável, no qual são lançados alguns pontos sobre o antissemitismo, dos quais

não podemos ignorar, caso queiramos continuar pensando na Psicanálise frente aos fatos sociais: a

violência perpetrada contra os judeus.

O primeiro ponto que elucidamos é a figura de Moisés como herói do povo judeu, tese de Freud

(1939/1976) que coloca que:

Moisés era um egípcio – provavelmente um aristocrata – sobre quem a lenda foi

inventada para transformá-lo em judeu. ... Ao passo que normalmente um herói, no

correr de sua vida, se eleva acima de seu começo humilde, a vida heróica do homem

Moisés começou com ele descendo de sua posição elevada e baixando ao nível dos

Filhos de Israel. (p. 28)

Essa hipótese, de que Moisés fora egípcio, é baseada na tradução da fórmula judaica que diz: “Ouve,

Israel, nosso deus Aten (Adonai) é o único deus” (Freud, 1939/1976, p.39), então, sendo Moisés um

egípcio, a religião que ele transmitiu ao povo judeu, deveria ser também uma religião egípcia. A religião

do faraó Amenófis IV ou Akhenaten, cujas principais características eram a proibição das representações

pictóricas de qualquer tipo, resistência ao pensamento mágico e a crença de uma vida após a morte.

Daí surgiu o monoteísmo, a idéia de um deus universal, o deus Aten. Desse ponto de vista, podemos

considerar que foi Moisés quem, de fato, forneceu as leis e a religião ao povo judeu. Entretanto, será o

costume da circuncisão introduzida por ele a característica responsável por dá a esse povo um status

diferenciado aos demais povos.

Transformou-os em santos pelo sinal da circuncisão. Essa distinção do povo judeu,

datada desde o século V a.C., após o Exílio. É curiosa que os regulamentos da religião

judia visavam a tornar santo o povo inteiro; sua separação quanto aos vizinhos foi

tornada efetiva pela proibição ou casamentos mistos. (Freud, 1939/1976, p. 58)

Isso significa que num nível mais profundo, para Freud (1939/1976) a raiz inconsciente do antissemitismo

está no complexo de castração representado pela circuncisão, retomaremos esse ponto logo adiante.

Sabemos que o povo judeu possui uma copiosa literatura onde se encontram as lendas e mitos sobre o

desenvolvimento de seu povo, e segundo Freud (1939/1976) tais textos canônicos foram alterados de

acordo coma as necessidades históricas e sociais. E essas alterações nos textos deixaram suas marcas

neles, pois “a deformação de um texto assemelha-se a um assassinato” (Freud, 1939/1976, p.59). Vemos,

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291então, o autor introduzir a tese do assassinato de Moisés: “Os judeus eram obstinados e indisciplinados

para com seu legislador e líder, levantaram-se contra ele um dia, mataram-no” (Freud, 1939/1976, p.78).

É inevitável a semelhante com as idéias de outro trabalho de Freud (1976/1913), publicado quase 20

anos antes, do assassinato do Pai da horda primitiva, cujos filhos lamentaram sua morte e para celebrá-la

construirão o totem, da mesma forma que o povo judeu “chegou um tempo em que começou a lamentar o

assassinato de Moisés” (Freud, 1939/1976, p. 65). Constatamos que o texto freudiano realiza um paralelo

entre as tensões do povo judeu (esfera coletiva) e o problema da neurose traumática (esfera individual).

Contudo, não vamos desenvolver o paralelo entre a psicologia de grupo e os fenômenos religiosos, tal

como nos é sugerido, por extrapolar nossos propósitos. Entretanto, é importante dizer que, para Freud

(1939/1976),

Os motivos mais profundos do ódio pelos judeus estão enraizados nas mais remotas

eras passadas; operam desde o inconsciente dos povos ... o ciúme para com o povo

que se declarou o filho primogênito e favorito do Deus Pai ainda hoje não foi superado

entre os outros povos. (p.111)

De acordo com Freud (1939/1976), Moisés pertencia à entourage de Akhenaten, e “para ele, a morte

de Akhenaten e a abolição da religião deste significaram o fim de todas as suas esperanças. Só poderia

permanecer no Egito como fora-da-lei ou como renegado” (p. 77). Temos aqui a raiz de todo o estigma

perpetrado durante séculos ao povo judeu, ou seja, o seu líder desde sempre fora um fora-da-lei, assim

como será o seu povo, que, depois de matá-lo: “o povo judeu estava fadado a experimentar uma série

de graves provas e penosos eventos; seu deus tornou-se duro e severo e, por assim dizer, envolto em

tristeza” (Freud, 1939/1976, p.81). E, ainda,

O orgulho de ser um povo escolhido: foi à religião de seu pai primevo que ligou sua

esperança de recompensa, de distinção e, finalmente, de domínio mundial. Essa última

fantasia de desejo, há muito tempo abandonada pelo povo judeu, ainda sobrevive

entre os inimigos desse povo. (Freud, 1939/1976, p.105)

Somando-se a isso, enquanto minoria entre os povos, também a sua debilidade numérica encoraja a

hostilidade dos outros povos contra eles. Em outro trecho o autor afirma: “a herança arcaica dos seres

humanos abrange não apenas disposições, mas também um tema geral: traços de memória da experiência

de gerações anteriores” (Freud, 1939/1976, p.120). Consideramos essa explicação enigmática, e, de

fato, o autor não se solidariza com a noção de inconsciente coletivo de Jung (1981), pois, para Freud

(1939/1976), “não foi fácil, com efeito, introduzir a idéia do inconsciente na psicologia do grupo” (p. 150):

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292Não acho que ganhemos alguma coisa, introduzindo o conceito de um inconsciente

coletivo. O conteúdo do inconsciente, na verdade, é, seja lá como for, uma propriedade

universal coletiva, da humanidade. (Freud, 1939/1976, p. 156)2

Então, podemos pensar que será pelo costume da circuncisão, por meio da qual a temida castração

é relembrada, que os judeus se tornam separados dos demais povos e o ódio contra eles é

provavelmente sedimento.

Entretanto, não nos esqueçamos que foi a princesa Marie quem desenvolveu essa problemática em

toda sua abstração, elucidando dela o “mito do Judeu-satã”. Para descrever a configuração desse mito, a

autora discute três pontos de vista: os passionais, os históricos e os funcionais. Com relação ao ponto de

vista funcional, ela descreve três funções: a função mágica, a função social e a função política. Veremos a

seguir um pouco de cada uma dessas:

1. Ponto de vista passional: Bonaparte (1952a) começa essa seção do texto nos lembrando que a

paixão responsável por fazer surgir na Alemanha o nazismo foi a derrota dos alemães ocorrida

na Grande Primeira Guerra, em 1918. A partir de então, surgiu entre os alemães um sentimento

de revanche e de vingança. Desse modo, eles procuraram um culpado ou um bode expiatório,

que levasse a culpa por todos os seus infortúnios: “descobriram um inimigo interior contra o qual

mobilizaram suas jovens tropas, que se lançaram em violento assalto” (Bonaparte, 1951a, p. 131,

tradução nossa)3. Notamos que a autora explica a origem da agressividade germânica contra os

judeus reportando inicialmente aos fatos de guerra, pois Hitler promoveu uma grande conversão em

massa ao antissemitismo via a propagação das idéias do partido nacional-socialista, que dentre as

suas especificações ensinava como identificar um judeu, seja através de uma tipologia que elencava

seus traços físicos, seja pelos trajes que usavam, ou ainda, pelas características próprias de sua raça

(Lacoue-Labarthe & Nancy, 2002). Assim, várias propagandas antissemitas são propagadas. Houve

todo um empenho na crença de que os judeus pertenciam a uma raça inferior, e com isso a sua arte,

ciência, e tudo que fosse obra dos judeus eram destruídas. Por sua vez, para o judeu, seu “diadema é

ser a coroa mortuária da humanidade”, expressão que Bonaparte (1951a) tira de Hitler (Mein Kampf),

que, na compreensão bonapartiana, foi o deus do racismo, decretou a inquisição contra os judeus

pelos campos de concentração, pois fez acreditar que todas as doenças (lepra, peste, sífilis, varíola,

e inúmeras outras) físicas ou morais da humanidade eram vindas dos judeus. Isso acaba produzindo

o chamado “mito do Judeu-satã”, então: “Não há outro lugar no nosso povo da personalização do

2 Esse tema da transmissão das experiências ancestrais também já foi tratado no seu outro texto sobre a psicologia de grupo dos

tempos primevos (Freud,1976c/1913), já mencionado antes.3 “découvrir un ennemi intérieur contre lequel d’abord mobiliser ses jeunes troupes avant de les lancer à l’assaut de l’univers”

(Bonaparte, 1951a, p. 131).

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4 “Il n’y a pas lieu de s’étonner si dans notre peuple la personnification du diable comme emblème de tout ce qui est mauvais emprunte la

forme corporelle du Juif” (Bonaparte, 1951a, p. 144-145).5 “Toutes les démonstrations des anthropologues tendant à établir que les Juifs contemporains, dispersés par le monde, constituent un

agrégat panaché de races diverses agglomérées” (Bonaparte, 1951a, p. 133). 6 “L’antisémitisme apparît pluridéterminé: ses causes sont multiples” (Bonaparte, 1951a, p. 145).7 Uma das explicações simplistas, na vertente mono-causal, aponta, por exemplo, que a perseguição dos judeus pelos cristãos,

se deve ao fato que os judeus são responsáveis pela liberdade de Barrabás e a condenação de Jesus Cristo de Nazaré ao suplício.

Então, por isso condenaram os judeus a viverem em guetos, sempre fugindo. Desse modo, uma causa religiosa é colocada para o

antissemitismo (Bonaparte, 1951a; Lacoue-Labarthe & Nancy, 2002).8 Alinhamos nossa ideia com a visão bonapartiana que o antissemitismo é um fenômeno que apresenta a intensidade e a

perenidade de um ódio contra os descendentes do povo hebraico, que deve ser naturalmente fundado sobre mais de uma causa, e

provavelmente essas causas possuem raízes profundas e secretas (Bonaparte, 1951a; Lacoue-Labarthe & Nancy, 2002).9 “Il faisait par suite partout figure d’étranger et l’on sait que pour de primitif, comme pour inconscient où le primitif survit donc dans chacun

de nous, étranger est synonyme d’ennemi” (Bonaparte, 1951a, p. 148). 10 “O estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho e há muito familiar” (Freud,

1996/1919, p. 277).

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293diabo como emblema de tudo que é mal como o que é tomado emprestado na forma corporal do

Judeu” (Bonaparte, 1951a, p. 144-145, tradução nossa)4. Assim, a ideologia nazista produziu esse

mito, segundo o qual o judeu permanece como uma diabólica encarnação do mal, uma personalização

do Diabo. E esta encarnação do mal pode, então, aglutinar a agressão dos demais povos “honestos”,

pelo que psicologicamente é explicado pelo mecanismo de projeção. Nesse texto, Bonaparte (1951a)

corajosamente rebate veementemente a ideia da crença numa raça judia: “Todas as demonstrações

dos antropólogos tendem a estabelecer que os Judeus contemporâneos, dispersos pelo mundo,

constituem um agregado misturado de raças diversas” (p. 133, tradução nossa)5. Entretanto,

a explicação das causas psicológicas do antissemitismo exige mais da autora, e, então, serão

apresentados os demais pontos: o ponto de vista histórico e político.

2. Ponto de vista histórico: a autora parte da Diáspora (anos 70), passa pela época das Santas Cruzadas,

Idade Média, até as perseguições aos judeus dos dias de sua época. Por conseguinte, afirma que:

“O antissemitismo aparece pluri-determinado: suas causas são múltiplas” (Bonaparte, 1951a, p.

145)6. Esse fato é discordante entre os especialistas, uns acreditam numa única causa7, e há outros

que acreditam em várias causas8. De fato, devido às práticas de perseguições persistentes durante

séculos aos judeus, passado de gerações em gerações, esse fenômeno acaba atingindo a esfera

coletiva, em termo psicanalíticos, via inconsciente: “Se faz, por conseguinte, para toda figura

estrangeira, e se sabe para o primitivo, para o inconsciente onde o primitivo sobrevive em cada

um de nós, o estrangeiro é sinônimo de inimigo” (Bonaparte, 1951a, p. 148, tradução nossa)9. Esse

caráter de estrangeiro (estranho)10 que o judeu adquire com o tempo, incluiu responsabilizá-lo por

todo o mal infligido a ele mesmo e sobre a nação que o acolhe. A autora retoma o texto de Freud

(1939/1976) e reconhece o mérito da tese do assassinato de Moisés, que, em termos do inconsciente,

está relacionado com a morte do pai da Horda primitiva (Freud, 1913/1976). A morte de Moisés

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294seria uma “atualização histórica do crime pré-histórico da humanidade” (Bonaparte, 1951a, p. 149,

tradução nossa)11. Esta passagem nos confronta e nos implica dizer que também está em jogo o

assassinato de Deus e suas reencarnações ulteriores, e isso faz com que as diversas acusações que

o antissemitismo inflige ao povo judeu, sejam todas acusações justificadas. Bonaparte (1951a) vai

desconstruindo, ponto por ponto, as acusações infligidas aos judeus pelos nazistas para justificarem

suas perseguições cruéis, mas não vamos explorá-las por delongar nosso tema.

3. Pontos de vista funcionais: Nessa seção do texto a autora inicialmente trata de responder: qual a

função do antissemitismo nas nações? Compara-o com o fenômeno comum nas tribos selvagens,

da crença de que se pode transmitir culpa e sofrimento a alguma outra pessoa ou criatura viva,

ou mesmos, seres inanimados, que assim sofrerão em seu lugar. Esse fenômeno é chamado

de “transferência do mal” (Frazer, 1925), foi estudado em tribos indígenas das Ilhas Salomãos,

Mandagascar, Nigéria, Guiné, e Ilhas Banks. Esse costume constitui numa espécie de cerimônia

mágica, por exemplo, entre os aborígenes Sihakanas de Mandagascar, quando um homem se

encontra muito doente é ordenado aos seus parentes expulsar o mal do meio deles por meio da

destruição de alguns objetos, por exemplo, um bastão de madeira proveniente de uma árvore

particular. Desse modo, na reflexão bonapartiana, a hipótese plausível da função do antissemitismo

nas nações, dá-se nessa mesma esfera de “transferência do mal”, transferência essa que só é

possível apenas na dimensão do pensamento mágico, típico dos povos primitivos. Essa proposição

de causa psicológica do antissemitismo implica incluir o outro, uma vez que, quem é responsável por

transmitir ao bebê as crenças é o pequeno grupo familiar no qual os pais estão inseridos e eles são os

transmissores para a criança (Laplanche, 1985), tema que retomaremos logo adiante.

Como dito anteriormente, com relação ao ponto de vista funcional, tem-se 3 pontos considerados:

a. Função mágica: Bonaparte (1951a) coloca que: “O mal, explicado segundo Frazer, pode ser

transferido também a objetos inanimados, a pedras, bastões, a plantas, a animais e aos homens.”

(p. 152, tradução nossa)12. A autora defende a ideia que o que acontece com o antissemitismo seja

um fenômeno análogo, uma crença e uma prática análoga. Como exemplo da “transferência do mal”

aos homens, na tribo Onitsha na Nigéria, a cada ano são sacrificados dois seres humanos, sobre os

quais são transferidos os pecados e o livramento da tribo de todo o mal. Essas pessoas para serem

sacrificadas são escolhidas entre aqueles acusados de serem ladrões, incendiários, adúlteros,

feiticeiros, dentre outros. As vítimas sofrem, então, castigos públicos, e são sacrificadas para

expurgar todos os crimes abomináveis daquele povo. Nas situações de guerras esse bode expiatório

serve para libertar os guerreiros de qualquer mal que possa lhes atrapalhar. Bonaparte (1951a)

11 “actualisation historique du crime préhistorique de l’humanité” (Bonaparte, 1951a, p. 149).12 “Le mal, expose ensuite Frazer, peut être transféré ainsi à des objets inânimes, à des pierres, à des bâtons, à des plantes, à des animaux, à

des hommes” (Bonaparte, 1951a, p. 152).

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295acredita que a crença da “transferência do mal” dos povos primitivos pode ser transposta para nossa

sociedade (“civilizada”), assim são as causas psicológicas do racismo ou do antissemitismo. E para

fundamentar ainda mais essa hipótese, ela lembra que mesmo na civilização antiga mais civilizada

como a Grécia, também era comum vê-se a prática de se tomar muitos homens pobres como bode

expiatório, principalmente nos tempos de calamidades públicas como peste, fome, e extrema seca.

“Se sacrificava uma das vítimas para os homens, e a outra para as mulheres.” (Bonaparte,1951a,

p.155, tradução nossa)13. E lembra: “sabe-se que a cada ano, na festa de Targélios, em maio, acontece

fora de Atenas, o assassinato a pedradas de duas vítimas.” (Bonaparte,1951a, p. 156, tradução

nossa)14. Esse fenômeno acontece também na cidade de Leucádia, em Trácia (Grécia), onde os

sacrifícios humanos atuais são em um lugar que remonta a época dos sacrifícios a Apolo, no século VI

a. C. Em suma, a configuração da prática do antissemitismo como prática da “transferência do mal”,

remete a uma época onde a Alemanha se preparava para a Segunda Grande Guerra, onde o combate

contra os males sociais são habilmente colocados sobre os judeus, numa Weltanschauung (espírito de

época) muito precisa. E, então, o “mito do Judeu-satã” se realiza. Há nessa explicação, um caminho

copernicano, pois de uma maneira muito particular ela inclui o outro, onde pela teoria da sedução

generalizada (Laplanche,1992), a mensagem do adulto endereça a criança, está comprometida com

seu próprio inconsciente (Laplanche, 2008b), que por sua vez, está também contaminada com as

crenças do meio social mais próximo, como os tios, tias, primos, avós, bisavós até os integrantes da

comunidade local, regional.

b. Função social: segundo Bonaparte (1951a), a acusação mais frequente nos seus dias contra os judeus

é que eles são o “fermento da dissolução “, numa Alemanha que queria unir a nação para a guerra.

Então, a autora se pergunta, qual judeu? É o judeu bolchevista, acusado por Israel? Ou o judeu

caricaturado por Hitler na sua propagando nazista como um diabo encarnado? Ou o judeu operário

cujo desejo é despertado pela esperança de modificar suas condições existentes, na luta pela

democracia e o fim da ditadura do proletariado, numa vontade de justiça social? Ou ainda, o judeu

intelectual? É importante que o leitor saiba que nesse ponto da sua reflexão a própria princesa Marie

corajosamente veste a pele do judeu, e numa atitude de extrema bravura afirma: “Escrevendo este

modesto estudo, eu mesma sou um fermento de dissolução. ... Pela simples razão que todo intelectual

é um fermento de dissolução no seio de grupos religiosos místicos” (Bonaparte, 1952a, p. 163,

tradução nossa)15. Entendamos que esses grupos religiosos místicos a qual a autora se refere são os

próprios nazistas. Então, segue uma lista de nomes de judeus intelectuais que naquele tempo viviam

na França: Marcel Proust, André Maurois, Henri Bérgson, dentre outros; todos esses morreram em

13 “On sacrifiait l’une des victimes pour les hommes, et l’autre pour les femmes” (Bonaparte,1951a, p.155).14 “il semble que chaque année, à la fête des Thargélies, en Mai, on emmenait hors d’Athènes et on tuait à coups de pierres deux victimes”

(Bonaparte,1951a, p. 156).15 “En écrivant cette modeste étude, je suis moi-même un ‘ferment de dissolution’. ... Pour la simple raison que tout intellectuel est un

‘ferment de disssolution’ au sein de groupements religieux mystiques.” (Bonaparte, 1952a, p. 163).

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296Paris na ocasião da ocupação das tropas nazistas. E para a autora a perseguição dos nazistas aos

judeus intelectuais se daria, menos porque eles são judeus, do que porque eles são intelectuais. Eis o

poder do intelectual numa revolução ou guerra!16 Acreditamos que a própria revolução copernicana

(Laplanche, 2008a) pode ser pensada pelo prisma do “fermento de dissolução”, haja ocorrido à

situação de Copérnico ter sido chamado a comparecer diante do Tribunal, como os livros do pai da

Psicanálise sido queimados (Edmundson, 2009) pelos nazistas.

c. Função política: de acordo com Bonaparte (1952a), o mito do Judeu-satã apareceu em toda sua forma

sangrenta na Segunda Grande Guerra, quando houve o maior massacre de inocentes da história, com

o horror dos campos de concentração alemães que tinham por base a estrutura ideológica sobre o

qual repousava todo o edifício nacional-socialista, ou seja, a crença na superioridade da raça ariana,

os chamados Aryen, que definiam um império onde o judeu, o Syrien, o maldito, o arqui-inimigo, o diabo,

por sua vez, presente, visível, discernível no seio da cada povo vencido, deveria ser exterminado.

Auspiciosamente a reflexão bonapartiana propõe uma re-formulação que: não só o judeu era o

diabo, também Hitler encarnou a figura do mal e toda a Alemanha foi o diabo. Hitler fez organizar um

espetáculo para edificar sua ambição de dominação mundial que provocou “a regressão a barbárie

primitiva do homem – o gorila lúdico e feroz de Taine – é sempre possível. ... talvez até mesmo suscetível

de regressar a barbárie original.” (Bonaparte, 1952a, p. 174, tradução nossa)17. Nossa hipótese é que a

autora não apenas faz uma interpretação histórico-filosófica do nacional-socialismo, mas abre o acesso

ao antissemitismo na sua essência, ou seja, o que o singulariza.

DA PULSÃO DE AGRESSÃO À RELEVÂNCIA DO OUTRO NO PULSIONAL

Nesta parte da nossa reflexão, propomos investigar a teoria dos instintos de Bonaparte (1951c; 1951d)

pelo crivo laplancheano da relevância do outro no pulsional, na medida em que pela teoria da sedução

generalizada (Laplanche, 1992) reconhecemos que o sexual (pulsional/inconsciente) do adulto faz

“intromissões” e “implantações”, para usar as expressões laplancheanas (Laplanche, 2008b), no corpo

e no psiquismo da criança, na situação antropológica fundamental, situação de desamparo do bebê

frente ao cuidado dos adultos. O que nos permite melhor formular a idéia do chamado “instinto de

agressão” bonapartiano como sendo uma pulsão estabelecida também contra o ataque da mensagem

16 É inevitável não rememorarmos as palavras de Foucault (2002) numa determinada entrevista sobre os intelectuais e o poder,

então, num dado trecho ele afirma: “O papel do intelectual na é mais o de se colocar um pouco na frente ou um pouco de lado

para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder... .” (p. 71). Em muito essa ideia coaduna com a

postura bonapartiana.17 “la régression à la barbarie primitive chez l’homme – le gorile lubrique et féroce de Taine – est toujours possible. ..) peut être succeptible de

régresser à la barbarie originelle.” (Bonaparte, 1952a, p. 174).

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297sexual que vem do outro. E constatamos a concordância das idéias bonpartianas com a laplanncheanas

no prevalecimento do tempo auto (selbst) na articulação do masoquismo e sadismo, o que não

necessariamente nos levaria ao caminho copernicano na obra bonapartista, mas, pode nos colocar perto.

É útil esclarecer ao leitor, que re-ler os principais textos bonapartianos sobre a teoria dos instintos

(Bonaparte, 1951c; 1951d), bem como o antissemitismo (Bonaparte, 1951b)18 nos faz entrar na atmosfera

de mistura entre a vida pessoal da princesa Marie com a sua vida acadêmica. Exemplo disso é a presença,

constante durante todo o texto, da marca da sua amizade com o pai da Psicanálise, onde lhe é atribuído

o generoso epíteto de: mon grand maître (“meu grande mestre”). Em um trecho a autora diz: “Eu conheci

meu grande mestre Freud, sendo feito um adversário deste flagelo social que é o antissemitismo, como

todas e quaisquer intolerância irracional, eu sempre me ressenti, com qualquer um que foi afetado.”

(Bonaparte, 1951b, p.480, tradução nossa)19. Essa característica do estilo bonapartiano de misturar auto-

análise e ciência é uma marca que tanto produz, por um lado, críticos severos que a depreciam20, quanto,

por outro lado, críticos que, mesmo apontando que a neurose pessoal da princesa sempre esteve muito

impregnada nos seus escritos teóricos, defendem que de maneira alguma se deve por em descrédito o

conjunto de sua obra (Bourgeron, 1997; Amouroux, 2012). Nos seus escritos clínicos, ela nos entrega sua

auto-análise de uma maneira como jamais algum outro psicanalista tenha feito tão intimamente, daí a

grandeza de seu estilo.

Num modo que muito mais “prefere a verdade que o amor” (Bourgeron, 1997), a autora propõe

refletir as causas psicológicas do antissemitismo vinculadas às teorias dos instintos. Inicialmente, ela

partir da causa religiosa, como já mencionada anteriormente, “Pois os Judeus ... não eram somente

incrédulos de Cristo: deveriam ser assassinados.” (Bonaparte, 1951b, p. 483, tradução nossa)21, e uma

lei implacável foi decretada: Perseguido tu foi, perseguido tu permanecerá!. Outra causa apontada por

Bonaparte (1951b) está no estilo de vida errante do judeu, que acaba atribuindo-lhes uma qualidade

passageira e de estrangeiro. Na condição de refugiado que passa de um país a outro, “todo Judeu

aparece voluntariamente na imaginação popular como eterno judeu errante” (Bonaparte, 1951b, p. 485,

tradução nossa)22, mesmo aqueles estabelecidos depois de um longo tempo num país, ainda temem as

perseguições que seu povo sofre persistentemente no decorrer da história.

18 Esse texto foi fruto da Conferência pronunciada pela princesa Marie na Associação B’naï B’rith, em 28 de janeiro de 1952,

publicada um ano antes na Revue Française de Psycchanalyse.19 “Je connusse mon grand maître Freud, avaient fait de moi de toujours, une adversaire de ce fléau social, qu’est l’antisémitisme, comme

d’ailleurs de toute intolérance irrationnelle. J’ai toujours ressenti, chez quiconque en était affecté, l’antisémitisme comme une tare mentale,

marquant fâcheusement tout un esprit”. (Bonaparte, 1951b, p.480).20 Como os trabalhos de Roudinesco (1994; 2009).21 “Car les Juifs ... n’étaient pas les incroyantes du Christ: ils en étaient les assassins.” (Bonaparte, 1951b, p. 483).22 “Tout Juif apparaît ainsi volontiers à l’imagination populaire comme l’éternel juif errant.” (Bonaparte, 1951b, p. 485).

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298Sublinhamos que a reflexão teórica e clínica sobre a agressão, em Psicanálise, remonta desde a primeira

teoria freudiana das pulsões, que inicialmente as dividem em: libido do ego e libido do objeto, que por sua

vez, “... se originam do estudo das características íntimas dos processos neuróticos e psicóticos” (Freud,

1914/1976, p. 94). Por conseguinte, sabemos que essa teoria será restabelecida na segunda teoria dos

instintos (Freud, 1920/1976).

No que tange à doutrina bonapartiana das pulsões, comentemos cuidadosamente a compreensão

da tradução de Bonaparte (1951d) do termo alemão Trieb (“pulsão”) por instinct (“instinto”). A autora

esclarece que a etimologia do termo instinct (“instinto”), desde o século XVII, possui o sentido original

latino de impulsion (“impulsão”). Ela explica também que: “Convém então chamar de instinto de morte,

o termo de instinto implicado etimologicamente como pulsão, idéia de algo pulsante (de instinctus,

particípio passado de instinguere).” (Bonaparte, 1948, p.205, tradução nossa)23. O ponto de vista da autora

é bem claro, pois:

É porque eu creio poder chamar, me referenciando na etimologia, que as forças que eu

sustento hoje são instintos; bem que um instinto que pulsa contra a morte parece em

contradição com o sentido corrente vital do termo instinto. Mas eu prefiro preservar

o conceito psicanalítico de pulsão às diversas pulsões parciais ... e designar pelo termo

mais amplo de instinto um conjunto com dois grandes grupos de forças que, de acordo

com a segunda teoria dos instintos de Freud, regem toda a vida, os instintos de vida,

e os que a esses se opõem, e possuem igual poder, os instintos de morte. (Bonaparte,

1951d, p. 65, tradução nossa)24

Nesse ponto constatamos um caminho ptolomaico. Ao contrário, acreditamos que “na sexualidade

humana, o instinto, força vital, se desqualifica e se perde na pulsão, seu produto metafórico-metonímico.”

(Laplanche,1985, p. 128). Deixemos as inflexões latentes do vocabulário latino e suas diferenças de

sentido para os especialistas em etimologia; contudo, cabe ressaltar que: “é somente esse elemento

abstrato, o fator econômico, que vai permanecer invariante na derivação que nos fará passar do

instinto para a pulsão” (Laplanche,1985, p.18). Ainda dentro desse eixo ptolomaico, também sabemos

que a biologia possui um papel fundamental nas reflexões bonapartianas (Lebovici, 1983), que situa

a sexualidade como em continuidade com o desenvolvimento do organismo. Essa orientação mais

23 “Convient-il cependant de l’appeler instinct de mort, le terme d’instinct impliquant étymologiquement, tel celui de pulsion, l’idée d’une

poussée en avant (de instinctus, participe passé d’instinguere).” (p.205).24 “C’est pourquoi j’ai cru pouvoir appeler, m’en référant à l’étymologie, les forces dont je vais aujourd’hui vous entretenir instincts ; bien

qu’un instinct qui pousse vers la mort semble en contradiction avec le sens actuel courant vital du terme instinct. Mais je préfère reserver le

concept psychanalytique de pulsion aux diverses pulsions partielles ... et désigner du terme plus large d’instinct l’ensemble des deux grands

groupes de force qui, d’après la seconde théorie des instincts de Freud, régiraient tout ce que vit, les instincts de vie et, s’opposant à eux dans

une majesté égale, les instincts de mort.” (Bonaparte, 1951d, p. 65).

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299marcadamente biológica e vitalista é, de fato, uma inflexão deixada pelo próprio Freud (1915/1976), que

afirma que: “o estudo das fontes pulsionais ultrapassa o campo da psicologia e o problema deveria ser

finalmente, resolvido pela biologia” (p.149). Ou ainda:

Os fenômenos de que estamos tratando não pertencem somente à Psicologia; têm

um lado orgânico e biológico também, e por conseguinte, no decorrer dos nossos

esforços para a Psicanálise, fizemos também algumas importantes descobertas

biológicas e não pudemos evitar a estruturação de novas hipóteses biológicas.

(Freud, 1940/1976, p.224)

A propósito dessas novas descobertas e hipóteses biológicas às quais o autor se refere, arriscamos a

pensar que no campo da sexualidade feminina a princesa Marie fez sua descoberta biológica: a tese da

causa anatômica da frigidez, assunto que não iremos tratar aqui25.

De fato, a elaboração bonapartiana do fenômeno do antissemitismo se inspira na segunda teoria das

pulsões de Freud (1920/1976), e a autora explica que:

Os instintos de agressões humanas procuram se satisfazer ao bom termo e sem riscos,

e ele (o judeu) parece, então, aos perseguidores que os castigam como sendo eles os

seus supostos causadores de seus próprios males, e são mais livres para procurarem

os maus instintos hospedados neles mesmos para projetá-los sobre os perseguidos.

(Bonaparte, 1951b, p. 489, tradução nossa)27

Notamos aqui a convergência desta observação com uma ideia de Freud (1940/1976) de que: “Dentro

desse id operam os instintos orgânicos, que são, eles próprios, compostos de fusões de duas forças

primevas (Eros e destrutividade) em proporções que variam. O único e exclusivo impulso destes

instintos é no sentido da satisfação” (p. 227). O racismo hitleriano conquistou o espírito da juventude

alemã e permitiu as pessoas projetarem seus maus e seus pecados em um bode expiatório: o judeu. O

antissemitismo também possui uma raiz ancestral mergulhado no terror religioso. “O homem permanece

sem dúvida um animal mítico com tudo isso que comporta de fanatismo e intolerância irracional”

(Bonaparte, 1951b, p. 490, tradução nossa)27. A ideia do instinto de agressão bonapartiana é também

coerente com a ideia de Freud (1940/1976) no seguinte ponto:

25 Porém, indicamos ao leitor a leitura do texto de Lemel (2010).26 “Les instincts d’agression humains y trouvent à se satisfaire à bon marché et sans risques, et il semble alors aux persécuteurs qu’en

châtiant ces supposés fauteurs de leurs maux, ils s’en délivrent et qu’ils se sont de plus délivrés par procuration des mauvais instincts

hébergés en eux-mêmes et projetés sur les persécutés.” (Bonaparte, 1951b, p. 489).27 “L’homme restera sans doute à jamais un animal mystique avec tout ce que cela comporte de fanatisme et d’intolérance irrationelle.”

(Bonaparte, 1951b, p. 490)

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300Enquanto esse instinto opera internamente, como instinto de morte, ele permanece

silencioso; só nos chama a atenção quando é desviado para fora, como instinto de

destruição. ... nossa justificativa para incluir na libido os impulsos agressivos baseia-se

na opinião de que o sadismo constitui uma função instintiva de impulsos puramente

libidinais e puramente destrutivos, fusão, que, doravante, persiste ininterruptamente.

(pp.175 e 179)

É nessa seara que reencontramos as linhas de força do pensamento bonapartiano e então, captamos o

seu eixo copernicano:

Mas a libido apossar-se-á em boa hora dos instintos de morte que estão no interior

dos seres vivos, que os projetam para fora sob a forma do instinto de agressão, de

sadismo. A parte dos instintos de morte que, apesar dos esforços vitais, a libido

não chega a rejeitar o que vem de fora e a ele se liga, assim, institui o masoquismo

primário. O masoquismo secundário se encontra constituído pelo retorno do sadismo

sobre o próprio sujeito. (Bonaparte, 1948, p. 205, tradução nossa)28

Na noção de “retorno” é que faremos uma convergência com Laplanche (1985) que reconheceu o primado

da auto-agressão sobre a hetero-agressão. E também conta com: “o uso da noção de apoio (étayage) na

teoria do sadomosoquismo e a prioridade do tempo masoquista na gênese da pulsão sadomasoquista”

(p.90). Os avanços do pensamento bonapartiano nos levam a identificar seu eixo copernicano: “o sadismo

não será, aliás, um fenômeno primário, seguindo a primeira doutrina de Freud, o masoquismo o faz

secundário, pelo retorno do sadismo sobre si? Os grandes sádicos nos mostram, de maneira exemplar, o

retorno do sadismo do objeto ao sujeito” (Bonaparte, 1948, p.208, tradução nossa)29. Segundo Laplanche

(1985/1970), para a sexualidade é o momento reflexivo (selbst ou auto) que é constitutivo, o momento do

retorno sobre si mesmo, em que:

28 “Mais la libido s’emparerait de bonne heure des instincts de mort se dangereux à l’intérieur des vivants, et les projetterait au dehors sous

forme d’instincts d’agression de sadisme. La part d’instincts de mort que, malgré tous ses efforts vitaux, la libido ne parvient pas à rejeter au

dehors en se liant à celle-ci, instituerait le masochisme primaire, le masochisme secondaire se trouvant constitué par le retour du sadisme

sur le sujet lui-même.” (Bonaparte, 1948, p. 205).29 “Mais la libido s’emparerait de bonne heure des instincts de mort se dangereux à l’intérieur des vivants, et les projetterait au dehors sous

forme d’instincts d’agression de sadisme. La part d’instincts de mort que, malgré tous ses efforts vitaux, la libido ne parvient pas à rejeter au

dehors en se liant à celle-ci, instituerait le masochisme primaire, le masochisme secondaire se trouvant constitué par le retour du sadisme

sur le sujet lui-même.” (Bonaparte, 1948, p. 205).

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301A pulsão sexual sadomasoquista, gozar na dor, encontra sua origem no tempo

masoquista, mas na base do retorno de uma hetero-agressividade originária. ... Então,

podemos pensar que é no retorno da agressividade em auto-agressão que está ligado

o aparecimento do componente sexual, por apoio (étayage), de modo que é sempre ao

tempo auto que corresponde à emergência da sexualidade. (pp. 95-96)

Essa passagem permite-nos compreender a “posição reflexiva originária” na base do retorno da hetero-

agressividade originária. Desse modo, por masoquismo reflexivo entende-se:

Fantasiar a agressão é voltá-la para si, agredir-se: tempo do auto-erotismo, no qual se

confirma a ligação indissolúvel da fantasia como tal, da sexualidade e do inconsciente.

... Se levarmos essa ideia até o fim, somos conduzidos a acentuar o caráter

privilegiado do masoquismo na constituição da sexualidade humana. (Laplanche,

1985/1970, p.105)

Isso remete à posição passiva da criança em relação ao adulto na situação antropológica fundamental,

contudo, não é somente passividade na relação real com a atividade adulta, mas passividade com relação

á fantasia do adulto que faz intrusão nela. Trazendo essa discussão para a agressão perpetrada no

antissemitismo, é “no interior das diversas sociedades onde ele está integrado, o homem tem roubado,

matado, até mesmo prejudicado a seu próximo, e renunciar estas últimas não vem sem muito sofrimento,

toda renuncia instintual implica em coação e dor.” (Bonaparte, 1952a, p.313, tradução nossa)30. É

nesse imbróglio que a natureza do homem, a fim de fazer reinar sobre a terra em concórdia e bondade,

encontra sua dificuldade pulsional. É, então, aí, que a etnografia aliada à psicanálise pode projetar sobre

a sociologia alguns lampejos, onde “a agressão não desaparecerá da face do mundo” (Bonaparte, 1952a,

p.317, tradução nossa)31. Desse modo, do ponto de vista da agressão, o homem jamais pode ser feliz ou

bom, pois, o preço de se frear os instintos agressivos é o sofrimento, do contrário, é o outro, a vítima, que

sofre: “Sem contar os grupos supranacionais que precipitam-se uns sobre os outros no interior mesmo

das nações, em nome do fanatismo, na mesma proporção os mais violentos são os mais jovens: velhas

ou modernas guerras de religião” (Bonaparte, 1952a, p.317, tradução nossa)32. A agressão, seja auto,

contra o próprio sujeito, ou hetero, contra o próximo, aparece como um dinamismo primitivo, uma força

elementar inerente a vida, assimila as coisas do meio para se apoderar delas ou destruí-las. E,

30 “A l’intérieur des diverses sociétés où il intégré, l’homme n’a plus droit à voler, à tuer, voire à trop nuire à son prochain, et ces dernières

renonciations ne vont pas non plus sans souffrance, tout renonciation instinctuelle impliquant contrainte et douleur.” (Bonaparte, 1952a,

p.313)31 “L’agression n’a pas disparu de la face du monde” (Bonaparte, 1952a, p.317).32 “Sans compter les groupes supranationaux qui ruent l’un sur l’autre à l’intérieur même des nations, au nom de fanatismes d’autant plus

violents qu’ils sont plus jeunes : vieilles ou modernes guerres de religions.” (Bonaparte, 1952a, p.317).

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302de maneira concomitante, a agressão própria e primitiva do sujeito investida desta

instância e se encontra neste fato do retorno do fora para dentro, ela servirá

doravante contra o próprio sujeito. É nesta última, pois que a ambivalência essencial

do homem contra ele mesmo aparece mais claramente. (Bonaparte, 1948, p.208,

tradução nossa)33

Apoiados nas reflexões laplancheanas, podemos dizer que o ataque pulsional sexual do outro é um

ataque de conteúdo inconsciente, do outro interno. Mas, isso só é claro desde que as fronteiras da tópica

psíquica do Eu já estejam estabelecidas (Carvalho, 1996). A propósito da relação com o outro no campo

da sexualidade, Laplanche (1992) afirma que a criança é para o adulto um objeto sexual, um objeto de

suas pulsões parciais e também um objeto de amor. Notamos aqui a convergência desta observação com

uma ideia de Freud (1940/1976), que afirma:

O longo período da infância, durante o qual o ser humano em crescimento vive na

dependência dos pais, deixa atrás de si, como um precipitado, a formação, no ego, de

um agente especial no qual se prolonga a influencia parental. ... Esta influencia parental,

naturalmente, inclui em sua operação não somente a personalidade dos próprios pais,

mas também a família, as tradições raciais e nacionais por eles transmitidas, bem como

as exigências do milieu social imediato que representam. (p.171).

O sentido freudiano do termo “milieu social” é o mesmo dado por Laplanche (2015) para termo “socius”,

que corresponde ao pequeno grupo imediato e mais próximo da criança, cujas crenças e valores morais e

éticos são representados e transmitidos pelos pais.

Nessa pesquisa, o esforço de encontrar o eixo copernicano nos textos bonapartianos implica em

desbiologizá-los, tirar a pulsão sexual do modelo do instinto, como resposta a uma necessidade natural.

A pulsão sexual apóia-se numa função não sexual, vital, função corporal essencial a vida (sucção do seio,

função alimentar, chupar.) no auto-erotismo conferindo-lhe uma nova dimensão. A sexualidade infantil se

desenvolve apoiando-se numa função corporal, daí a importância da ideia de “étayage”:

33 “De façon concomitante, l’agression propre et primitive du sujet investit cette instance et se trouve de ce fait retournée du dehors vers le

dedans ; elle sévira désormais contre le sujet lui-même. C’est dans ce dernier cas que l’ambivalence essentielle de l’homme envers lui-même

apparaît le plus clairement.” (Bonaparte, 1948, p.208)

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303A efração da sexualidade a partir do outro implica, é verdade, numa referência

biológica, mas muito especial. Ao contrário do que se pensa não é através da

florescência que a ordem vital resulta na sexualidade, mas é pela sua insuficiência que

ela solicita a intrusão do universo adulto. (Laplanche, 1985, p. 54)34

As zonas erógenas, oral, anal, uretal, genital, atraem os cuidados particulares e especiais por parte

do adulto, como a higienização, o banho, etc. Assim, há uma sedução à qual não escapa praticamente

nenhum ser humano, a sedução dos cuidados maternos.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Nosso percurso permite revelar a sofisticação conceitual na elaboração bonapartiana do “mito do Judeu-

satã”. De algum modo, devemos reconhecer a posição política da princesa Marie, autorizada a falar do

lugar e como uma judia, que sob as causas psicológicas do antissemitismo faz pensar o impensado do

nacional-socialismo: o mito. Ela permite compreender que o que está em jogo é interpretamos a “pulsão

de agressão”. Vimos que a agressão coloca, desde o início, a relação e a representação do outro no centro

da vida psíquica e na origem das motivações mais fundamentais do ser humano. A ocorrência do trauma

sexual de origem externa deriva da experiência passiva de sedução infantil (Laplanche, 1985/1970), que

acarreta conseqüências de grande envergadura. O outro faz-se constante e necessariamente presente

no psiquismo individual. E o antissemitismo, caso um dia desapareça, virão sem dúvida outros ódios que

ocuparão seu lugar.

Não vamos aliarmos a lamentação ou a uma concepção pessimista, que geralmente acreditava que:

qual seja os objetos variáveis tomados pelos pulsões agressivos do homem, esse traço indelével de seu

psiquismo o perseguirá até o fim. Sem dúvida a agressão é um componente vital sem o qual ninguém

sobreviveria. Mas, cabe finalizar essa empreitada com uma nota de atenuação otimista deixado pela

própria Bonaparte (1951b), que diz: “O homem poderá aprender a dirigir sua agressão de maneira mais

humana, coisa que ele não o fez até aqui. ... orientarão mais e mais sua agressão vital para os objetivos

úteis a humanidade” (p. 491, tradução nossa)35. Sabemos que entre os judeus, que são as vítimas do

antissemitismo, uns, por um lado, adquirem uma característica de hostilidade dissimulada, de rude

vingança contra seus opressores. Outros, ao contrário, “os mais fortes temperam sua alma e brilham

34 Há nessa afirmação uma convergência de idéias com o pensamento freudiano, que afirma que: “A obstinada persistência do

bebê em sugar dá prova, em estágio precoce, de uma necessidade de satisfação que, embora se origine da ingestão da nutrição

e seja por ela instiga, esforça-se todavia por obter prazer independentemente da nutrição e por essa razão, pode e deve ser

denominada sexual .” (Freud, 1940/1976, p. 179).35 “L’homme pourrait apprendre à diriger son agression de façon plus humaine qu’il ne le fit jusqu’ici... orienteront de plus en plus leur

agression vitale vers des objectifs utiles à l’humanité.” (Bonaparte, 1951b, p. 491)

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304mais pela nobreza de seu pensamento do que pela vingança de seu caráter” (Bonaparte, 1951b, p. 486,

tradução nossa)36, os que fazem parte desse último grupo, podemos incluir se nenhuma dúvida o pai da

psicanálise, o grande mestre da princesa Marie. Por fim, há necessidade de outras e novas pesquisas

crítica sobre os textos da obra bonapartiana, inclusive sobre um determinado conjunto terminológico

específico do seu estilo, ligado de maneira precisa ao seu corpo doutrinal.

36 “les plus forts, y trempèrent leur âme et brillèrent autant par la hauteur de leur pensée que par la vigueur de leur caractère.” (Bonaparte,

1951b, p. 486)

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autoria

resumo

VALERIA ROSITO

Professora Adjunta de Literatura Brasileira na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

(Instituto Multidisciplinar/Departamento de Letras). Mestre em Estudos Literários pela State

University of New York at Buffalo. Doutora em Literatura Comparada pela Universidade do

Estado do Rio de Janeiro (2004).

CONTATO: [email protected]

Direito à fantasia: uma investida contra o “diário de uma favelada”, de Carolina Maria de Jesus

Essas considerações decorrem da provocação lançada pela tríplice aliança entre psicanálise,

direito e literatura no exame de Quarto de Despejo diário de uma favelada, de Carolina Maria de

Jesus. O confronto entre a edição final do best seller de 1960 e os caudalosos manuscritos, que

abrigam a maior parte da produção da escritora, ainda inédita, sugere hipóteses intrigantes

para o referido tripé. Entre elas a de que a natureza da edição aos escritos diarísticos e

não diarísticos, estes de natureza ficcional, dramática, poética e proverbial implique um

achatamento da figura complexa de Carolina Maria de Jesus. Traça-se um esboço da tensão

entre o publicado e o impublicável com amostras de material inédito, assim como se desenha a

sugestão de que a escritora tenha sido capaz de fazer frente aos limites gênero, lato sensu, por

meio da carnavalização dos limites que lhe foram impostos.

PALAVRAS-CHAVE: Carolina Maria de Jesus, manuscritos, interdito, carnavalização, estudos

de gênero.

SUMÁRIO

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309Não são poucas as passagens em seus manuscritos inéditos nas quais Carolina Maria de Jesus reitera sua

dedicação à escrita não diarística, seja ela em forma de romance, como sugerido na passagem abaixo, ou

de peças, poemas, além de pensamentos, provérbios e canções:

Falamos [Carolina e o Sr. Dilnério, ilustrador] do Audálio. Ele êlogiou-o e que esta com

uma parte do nosso livro que êle esta lendo alguns trechos.

Eu disse-lhe que estou concluindo uns romances que iniciei a tempos

Aconselhou-me para escrever ao Diário. Que é um estilo que agrada.

(Carolina Maria de Jesus. Manuscritos inéditos 03 jun 1960)

... pra dizer a verdade, tenho nojo deste diário.

(Carolina Maria de Jesus. Manuscritos inéditos 27 jun 1960)

Frequentes são também as vezes em que a escritora expõe seu desagrado com o desequilíbrio entre

o caloroso acolhimento por parte do mercado editorial do gênero documental e de suas ambições no

campo literário e performático, aparentemente “incompatíveis” com a sobriedade esperada de quem tem

verdades incômodas a revelar. As citações expõem não somente a concorrência entre gêneros diferentes

na produção da escritora, mas ainda a percepção de que a escrita diarística exerce apelo maior sobre

seus editores e, consequentemente, sobre o público leitor da década desenvolvimentista. Nesse sentido,

desde os anos 1990 alguns esforços bem sucedidos lançaram contra argumentos ao retrato “decisivo”

de 1960 apresentado pelo best seller Quarto de despejo, a começar por The life and death of Carolina Maria

de Jesus (1995), dos historiadores Robert. M. Levine e José Carlos S. Bom Meihy. Publicações adicionais

ainda trouxeram à luz os poemas de Carolina (Jesus, 1996), registros completos de parte de seus diários

sem edição (Jesus, 1999), ou ainda elaboraram análises comparativas entre alguns de seus manuscritos e

o próprio Quarto de despejo (Perpétua 2014).

Vale ainda ressaltar que embora a sequência de “diários” subintitulando a produção da escritora – “diário

de uma favelada”, “diário de uma ex-favelada” e Diário de Bitita” – possa visar à continuada celebração

do primeiro livro, mal consegue se aproximar, nos dois últimos, do sucesso atingido pelo primeiro em

território nacional. Na verdade e apesar do título, Diário de Bitita nem sequer se configura como um diário

stritu senso, mas, ao contrário, se constitui como uma narrativa memorialística, como quer o historiador

Bom Meihy, cumprindo “o papel oficializador de uma de uma memória que corresponderia à intenção

mistificadora de Carolina” (Meihy, 2004, p. 43).

Afastado do primeiro registro epigrafado apenas por alguns dias dentro mesmo mês, o segundo registro

ainda sugere que, por momentos, não tenha sido pacífico o processo de composição de Quarto de despejo,

a dois meses apenas de vir à luz depois de uma incubação editorial de dois anos. Sem dúvida, uma longa

espera para quem vive em condições precárias de vida no aguardo de um evento ‘salvacionista’, como

a publicação de um livro, torna óbvias as razões para aquele desabafo. Observemos o concurso entre

o drama diário da sobrevivência, alimento constante do celebrado best seller, e o exercício espontâneo

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310de Carolina em gêneros dramáticos, por exemplo, sem qualquer referência em matérias de jornais ou

simplesmente elidido do diário publicado:

Choveu a nôite molhou a cama.

Tive que levantar e introduzir umas tabuas no mêio das latas para impedir as goteiras.

Eu estou anciosa para normalizar a minha vida. Quero trabalhar.

Não sei ficar inativa.

Fiz arroz, e fêijão. Esta chovendo.

Passei o dia escrevendo um drama _ A senhora perdeu o direito. Que lamaçêrio horrivel.”

(FBN rolo 1, 23/06/1960).

A segunda peça, Obrigado senhor Vigario, ganha ainda referência no mês seguinte, julho de 1960, um mês

apenas antes da publicação do seu diário famoso:

Disse para a Dona Celestina que não tenho tempo de lavar as roupas bem lavadas

porque preciso escrever.

- O que está escrevendo?

- Drama.

- Como é o nome do drama?

Obrigado senhor Vigario.

(FBN rolo 1, 20/07/1960)

Uma contabilidade rápida, portanto, expõe um romance e duas peças em andamento às vésperas da

publicação de Quarto de despejo. Para alguém como Carolina, cuja leitura e escrita pródigas traduziam

um mergulho espontâneo no que lhe era mais caro, a demanda por cada vez mais páginas de “diários por

encomenda” transtorna, para se dizer o mínimo, o estado de sua aparente comunhão com seus desejos.

É ainda Bom Meihy quem aponta para as duas partes em Quarto de despejo, sequencialmente escritas

antes do momento que Carolina e Audálio Dantas, seu editor, se conhecem – o material “espontâneo” – e

a parte final, já extraída dos diários “provocados” pela demanda do editor. (Meihy, 2017). Sua imaginação

criativa transparece de forma generalizada quando observamos, entre outros momentos, a assiduidade

com que ela estetiza situações ou figuras que lhe atravessam o caminho.

Na passagem em que ela e Bibi Ferreira se conhecem, a escritora comenta: “Olhando-a, eu idealizava uma

peça para ela. Já havia pensado na peça e relatado o argumento ao Audálio.” (FBN rolo 1, 14/08/1960).

Prossegue ainda ao observar um dos jornalistas na redação: “O dr. Lélio estava sentado sozinho na sua

escrivaninha. Ele tem o perfil de Olavo Bilac. Cumprimentei-lhe” (FBN rolo 1, 10/08/1960). Com efeito,

Elzira D. Perpétua (2014) já se debruçou sobre a natureza da alterações editoriais, dentre as quais o

empobrecimento do lirismo da escritora ou mesmo o de sua erudição saltam aos olhos nos seguintes

trechos suprimidos de Quarto de despejo:

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311[Fitei o espaço com sua côr azulada e as nuvens girando, em direção ao póente. O sol

com seus reflexos côr de ouro estava calido. E eu, começei a transpirar.Dei graças a

Deus, quando a brisa surgiu para arrefeçer um póuco.

Fitava as avês que deslisavam no espaço como se fossem impelida pela viração.]

(Perpétua, 2014, p.159)

E ainda em colchetes, a seguinte elisão editorial:

Quando eu começei escrever ouvi vozes alteradas. Faz tanto tempo que não ha

briga na favela. [Uns 15 dias pensei até que os favelados estavam lendo Socrates. O

homem que não gostava de polemica. Ele dizia: que pode se realizar uma Assembleia e

resolver os problemas com palavras.]

Era a Odete e o seu espôso que estão separadós. Brigavam porque ele trouxe outra

mulher no carro que êle trabalha. (Perpétua, 2014, 161)

Na perspectiva relativa aos afetos da escritora, durante o período em que se relaciona com os editores

(1958-1961), podemos assinalar a brusca mudança do tempo do desejo para o tempo da mercadoria.

Aquele é marcado pela própria ausência do relógio em “Eu não tenho relógio – Despertei às sete

horas. Fiz café e o João foi comprar pão e preparar-me para ir à escola. Eu estou confusa” (FBN rolo 1,

01/06/1960). Ou seja, é seu ritmo biológico e natural que dá compasso à sua rotina diária. Este, o tempo

fragmentado da mercadoria, ao contrário, é constituído por momentos em que jornal, jornalismo e

jornalistas se figuram como expoentes de um processo de acelerada reificação e espetacularização da

vida, em que a escritora alterna funções de entrevistada a entrevistadora e comentarista:

- Eu mostrava os livros para o repórter e João disse-nos

Olha eu aqui.

Indicou os miseraveis

-E que eu digo que ele e misseravel avarento.

O repórter despédiu-se dizendo que tem hóra para entregar o serviço.

- O seu nome para o Diario? Sinão, o Audálio repreende-me.

José Roberto Pena.

O senhor esta estudando?

parece médico!

- o jornal não me da tempo. (grifos nossos)

(FBN rolo 1, 15/06/60)

Tratada ela própria como “repórter” pelo editor (FBN rolo 1, 21/08/60), Carolina se alça a observadora-

participante da mídia, ainda que, por vezes, desconfortavelmente assistindo ao seu próprio destino

escapar-lhe do controle. A respeito dos efeitos da flagrante presença midiática sobre a escrita de

Carolina, deve-se ainda sublinhar a emergência de um formato ‘dialógico’ por meio do qual a escritora

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312encena, como uma personagem o faria num palco, diante de câmeras, uma troca com um público ou

patrocinadores presumidos, ausentes no momento da escrita ou da fala:

Esquentei a comida e dei aos filhos ... E fui comprar genéros no empório do japonês

na Avenida Tiradentes – Eles vendem mais barato. Mas o povo dava-me os parabens.

Quando passo perto de um onibus ouço!

- Olha a mulher que escreve!

E os onibus diminui a marcha para os passageirós olhar-me.

Aos motoristas, o meu agradecimento. (grifos nossos)

(FBN rolo 1, 17/05/1960)

A incorporação da segunda pessoa do diálogo imaginário, portanto, ganha tônus adicional em sua escrita

quando se trata daquele/a que, de fato, integra o circuito midiático, como intelectuais ou patrocinadores.

São estes, ao fim e ao cabo, que forjam a persona testemunhal, extraída das margens sociais, aos sentidos

estupefatos do público consumidor:

Quando iniciou o programa eu fui para o palco. Entre as meninas que iam tocar

seléções de Dolores. A plateia estava lotada. Quando o senhor Durval anunciou-me

eu entrei no palco. Ele disse que eu sóu a maior revelação litéraria

Ele entregou-me uma canêtaa de ouro presente dos produtos Kibon. – Aos produtos

Kibon, o meu eterno agradecimento.

Eu sóu fan numero um dos sorvetes Kibon.

É bem fêito.

Não faz mal a ninguem. A massa e finíssima. Duplamente filtrada. (grifos nossos)

(FBN rolo 1, 22/05/1960)

Percebe-se na passagem não só o agradecimento a Kibon, mas um segmento “comercial” incorporado

à fala de Carolina, em indisfarçável performance dialógica com um dos patrocinadores. Segue ainda, em

sequência e num crescendo, o efeito espetacular da fama quando a escritora confidencia: “Quando eu

ganhei a canêta pensei: vou guarda-la. Vou estrea-la quando assinar o premio Nobel: Quem sabe ganho

aquêle premio.” (Ibid, idem)

A passagem do anonimato para a fama, preservadas ainda as condições adversas de sua vida como

moradora da favela do Canindé, não pode senão doar-lhe percepções antagônicas relativas a seus

editores, já nos momentos que antecedem a publicação de Quarto de Despejo. A passagem seguinte,

sobre seu principal editor e interlocutor, é contraste flagrante com a segunda passagem epigrafada.

Distantes apenas um mês, lá a expressão da náusea gerada pela demanda dos diários, aqui a de enlevo:

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313Estou no mundo das estrêlas luminósas. O mundo que o Audalio reformou-o para mim.

O mundo era negro. ficou névio igual as nuvens que vaguêiam no espaço.

Era amarume, transformou-se em mel. Era cilício. agóra é aveludado. Eu vivia

chorando. Mas o Audalio esta vedando tudo que afligia-me.

Tenho a impressão que o Audálio vêio do céu acondicionado num estôjo de plumas.

com um cortêjo de anjos acompanhanado-o. cada anjo condusia uma vela de ouro.

As chamas das velas tinha o brilho dos diamantes.

O dia que o Audálio nasceu quem estava predominando, era a Deusa Bondade. sua

protetora. pórisso ele, é bom.

(FBN rolo 1, 19/05/1960).

A coexistência de sentimentos mistos - “Tem dia que eu adoro o Audálio. Tem dia que xingo-o de tudo,

carrasco, dominadôr, etc.” [FBN rolo 1, 27/06/1960] - vai cedendo lugar ao desgosto generalizado e

preponderante da escritora quanto aos editores, especialmente porque, percebemos, se chocam as

imagens de favelada e ex-favelada, calculadas pelo circuito editorial, e a liberdade sem freios desejada

por Carolina Maria de Jesus, para falar, escrever e encenar aquilo que sua imaginação criativa lhe urgia.

Suas contrariedades não se restringem, portanto, somente ao tempo de seu constrangimento à favela

do Canindé ou até a publicação demorada de Quarto de Despejo, mas estendem-se para além da estreia

gloriosa da escritora e de sua mudança de bairro, até o rompimento definitivo, declaradamente manifesto

em 1962, ano seguinte ao da publicação de Casa de Alvenaria. Reiteradamente, são expostas em termos

como os seguintes:

Com o dinheiro que o senhor Audalio Dantas, comprou a casa em 1960, comprava-se

uma grande extensão de terras. Mas o senhor Audalio Dantas queria me dominar. Não

gostei principiei a reagir. Não nasci na época da escravidão. Eu não tinha dirêito de

fazer nada que o senhor Dantas, disseminava-me.

Uma noite, êle chegou na minha casa e criticou-me porque eu coloquei vários quadros nas

paredes. Obrigou-me a retirar aludindo que a minha casa estaria antiquada parecendo

galeria. Retirei os quadros em silêncio. Mas xingando o senhor Dantas mentalmente

Quando vesti uma saia japonêsa êle criticou dizendo que eu deveria ser mais simples no vestir

Tudo que eu fazia êle observaria. E assim minha adimiração por êle ia arrefeçendo.

(grifos nossos)

(FBN rolo 3, 12/12/1962)

Palavra, cenário, e figurino são elementos constitutivos de uma personagem. No eco a Bom Meihy,

“ingredientes do processo de mitificação de Carolina: o sucesso – nacional e internacional – até então

nunca visto” (Meihy, 2004, p.30).

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314A imagem da favelada Carolina Maria de Jesus lançada pela Francisco Alves se insere em cenário

naturalista, literalmente reconstituído numa vitrine no dia do lançamento do best-seller: “preparei

umas latas para o Audalio preparar a vitrine. Demonstrando um quarto de despêjo. ... O João foi levar

os vasilhames para o Audalio preparar a vitrine. para o meu livro.” (FBN rolo 1, 13/08/1960). E, mais

adiante: “Vai levar um pouco de terra para por na vetrina . terra que as faveladas passam na penêira para

aproveitar os fêijões que estão misturadós com a terra. E a fome. Para demónstrar o terror do custo de

vida.” (FBN rolo 1, 15/08/1960). Como rezam seus registros diarísticos, “o Audalio disse-me que escritor

não pode ser cantor” (FBN rolo 1, 10/08/1960). Ou seja, a imagem composta para Carolina, qual seja, a

de escritora-favelada, expressão gritante das margens sociais, figura-se incompatível com qualquer outra

pincelada reveladora de seus desejos paradoxais, que exponham sua humanidade de forma mais plena.

Muito ao contrário da maneira como seus editores insistem em forjar sua imagem, imagem essa insistente

aos nossos dias, a personagem autorretratada por Carolina literalmente enverga figurinos com plumas,

brilhos e lâmpadas, carnavalizando os alicerces erigidos para seu testemunho coerente das margens sociais:

Trabalhei o dia todo. A Ivete vêio convidar-me para ir ao teatro da igreja com o meu

vestido eletrico prometi ir.

...

Quando cheguei a igreja entramos pelos fundos. Eu estava cansada. Não aguentava a

dór na perna e o sono. pensava: na confusão de minha vida. Faz nove meses que dêixei

a favela. para mim representa nove mil anos.

A Maria do Carmo ia levando a minha sacola com o vestido elétrico.

Fui préparar o meu vestido ligar para ver se acendia As personagens que iam tomar

parte na peça.circulavam trocando seus vestidos normaes por trages exoticós. Os pretos so

usavam calças, e o tronco nu e o chapeu de palha.trajes que simbolizava um passado. Eu

iniciei o epetaculo, declamando as noivas de maio. Agradeci o convite para participar

da festa. Estava presente algumas pessôas de minha terra que focou olhando-me

como se eu fôssee o gagarim soviético

Sai do palco fui desligar o vestido. Retirar lampada por lampada.tem hóra que eu

tenho pavôr de ter inventado [sic] êstes vestidos complicadós. (grifos nossos)

(FBN rolo 2, 14/05/1961)

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315Percebamos no trecho grifado o flagrante contraste entre a representação do negro no imaginário

teatral da época e a liberdade com que Carolina rejeita tais representações e governa fantasiosamente

sua performance de vedete, sugerida no figurino que, luminoso e extravagante, desdiz, de outro lugar, os

versos que declama em consonância a uma arquitetura de gênero conservadora:

Figura 1 - Figurino confeccionado por pesquisadores graduandos do Curso

de Letras UFRRJ/IM para o projeto CNPq/GEDIR- Gênero, Discurso e Imagem

Na palma da mão: intimidade e espetáculo em Carolina Maria de Jesus.

Ó minha filha querida/ Parabéns pois vai casar:/ Queres ser feliz na vida,/ Ouça-me

o que vou citar.// Dizem que é a mulher/ Que faz feliz o seu lar,/ É feliz se ela souber/

Viver e pensar.// Trate bem o teu marido/ Com toda a dedicação./ Não o deixes

aborrecido/ Não lhe faças ingratidão.//Se teu marido falar/ Não lhe custa: obedecer./

O que passa no lar/ Ninguém precisa saber.//Se tens filhos dá-lhes prazer/ Enquanto

são meninos,/Porque, depois de crescer,/ Ninguém sabe seus destinos.// Conforma-

te e não protesta/ As contingências da pobreza/ Ser pobre e honesta/ É uma grande

riqueza.//Seja muito carinhosa/ E agradável no falar,/ Uma mulher nervosa/ Não

prende o esposo no lar.// Seja uma mulher decente/ Quando o teu esposo ausentar-

se/ Ele há de ficar contente/ Encontrando-lhe no lar.// Como é bonito um lar/ Onde

reina paz e amor./ O casal que divorciar/ Perde todo o valor.// A mulher que quer

predominar/ Como se fosse uma imperatriz,/ Estas desfazem o seu lar:/ Não deixam

o homem ser feliz.// A mulher que é prepotente/ E quer ver o seu desejo realizado:/ O

amor que o homem sente/ Vai esfriando, vai esfriando.

(Jesus, 1996, pp. 132-134)

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316 É, no mínimo, exuberante o choque ideológico entre o figurino exibido por Carolina para a ocasião de sua

declamação e o conservadorismo de gênero dos seus versos em Noivas de maio. Com efeito, há vinte e um

anos Marisa Lajolo já defendia na publicação póstuma dos poemas de Carolina Maria de Jesus (Lajolo,

1996, pp. 46-47), sem reedição aos nossos dias, que “[Carolina] se identifica sem sombra de dúvida pela

feminilidade, pela negritude, pela pobreza e pelo desatavio intelectual”. E acrescenta: “Traços que não

tornam sua literatura menos literária. Nem menos conservadora e problemática...” (Lajolo, 1996, pp.

46-47). No entanto, o exame das circunstâncias externas aos enunciados dos poemas em tela, estes, de

fato, conservadores, agrava a problematização que a crítica sugere, e tonifica a resistência da escritora,

certamente despercebida ou subdimensionada quando da recepção de leitura de seu texto.

No caso em questão, a disparidade entre “figura e fundo” – enunciados e enunciação – se firma numa

carnavalização radical do que é destinado aparentemente a ocasiões e espaços profanos, como o teatro

ou a praça pública, acrescida de uma dessacralização do espaço eclesiástico, onde a performance é

realizada. Ou seja, se a figura feminina negra e pobre é construída em obediência aos limites de gênero e

classe, como querem editores e intelligentsia, Carolina esvazia essa “ideologia de gênero e de classe” por

meio do deslocamento ou subversão dos enunciados de seus próprios versos, em paródia ao culto do

casamento e da família, encenação jocosa de simultânea negação e afirmação (Bakhtin, 2008).

Se a índole estética de Carolina Maria de Jesus se deixa flagrar já em seus trechos diarísticos de natureza

documental (Rosito, 2012), assim como em práticas alternativas de vivenciar seu cotidiano, não se pode

deixar de atentar, com especial ênfase, para sua escrita teatral stritu senso. Sua sensibilidade acentuada

para domínio de cena revela não só uma dramaturga sensível aos códigos das radionovelas da época, que

acompanhava com assiduidade, mas, sobretudo, uma diretora em pleno comando da mise-em-scène, para

onde faz convergir personagens, adereços, figurinos, diálogos e sonoplastia. O trecho seguinte da peça

Obrigado, senhor Vigario nos permite um relance da conjugação de tais elementos:

Quinze anos depois. Dona Helena está sentada lendo uma revista. A sala é mobilhada

com luxo. Tapetes, e uns quadros nas paredes.

Em Cena

Helena- Toca a campanhinha.

Clara Ruiz –Entra usando trages de criada. Os cabêlos trançados. As tranças caem

pelas costas, e tamanco nos pés.

(FBN, Coleção Vera Eunice, rolo 5, caderno 10)

Seu trabalho com ritmos diversos imprimidos ao timing de seus personagens em cena é notável. São

constantes as entradas e saídas do elenco, seus movimentos na ocupação do procênio e dos fundos do

palco e as alterações de entonação demarcadas por direções de cena. Registram-se ainda culminâncias

dramáticas, que incluem uma cena de valsa e uma “ressurreição” em um necrotério na peça A senhora

perdeu o direito ou até um duelo de esgrima, ouvido nos bastidores na melhor das tradições do gênero

“capa e espada” na peça Se eu soubesse. Ressalta-se ainda a veia cômica da escritora em seu repertório

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317melodramático. Ao tornar aparentes os códigos do gênero melodramático, suas peças ainda exibem

autocrítica, em tradução vigorosa das dimensões caras às transmissões do rádio teatro.

Em conclusão, esperamos que as amostras inéditas de material diarístico e não diarístico apresentadas

tenham sido capazes de demonstrar uma caracterização mais densa de Carolina Maria de Jesus, mulher

negra, escritora e performer, celebrada meteoricamente no Brasil nos primeiros anos da década de 1960,

mas com reputação internacional sustentada aos nossos dias. Brilhante e coerentemente construído

na sua edição de uma persona marginalizada, Quarto de despejo apaga a densidade de Carolina Maria

de Jesus ao lhe furtar dimensões agônicas, contraditórias e incabíveis dentro dos limites esperados da

retratação da miséria. Considerados ainda os fatores macro políticos do início da década de 1960, que

passam a dividir a atenção do mercado editorial, é flagrante também como a edição do best seller passa

a se ostentar como representação única e definitiva da escritora, malgrado o próprio material publicado

em seguida, como Casa de Alvenaria (1961) e Diário de Bitita (1986), este último, já postumamente. As

diversas camadas de interditos à sua produção e ao seu “estar no mundo” se estendem do plano mais

pessoal e íntimo, como os limites impostos ao seu modo de vestir-se, ou à organização e decoração de sua

nova casa de alvenaria, ao plano mais propriamente social, em que “gênero” pode ser compreendido em

sua face literária e/ou sexual.

O mercado editorial da década de 1960 celebra “retratos fieis” das alteridades marginalizadas. A

escritora favelada se afigura oportuna, pois, tal e qual um “repórter”, nos termos de seu editor, se expõe

como espetáculo ambulante das distorções sociais do desenvolvimentismo. O exercício de sua fantasia e

delírio, forjados por sua imaginação criativa em um volume notável de gêneros literários e transgressões

performáticas, se e quando considerados, são rejeitados antes mesmo de examinados, com base em

argumentos calcados na “carência” de sua produção: faltam-lhes literariedade, escolaridade e outros

ingredientes caros à crítica elitista. No entanto, percebe-se que essa estrela solitária desafiou incontáveis

códigos sociais e acadêmicos vigentes Dessa forma, pode contribuir para a releitura da história literária

brasileira, em que pese sua adoção carnavalizada de códigos de produção estética consagrados.

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318REFERÊNCIAS

Bakhtin, M. (2008). A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais.

(Yara Frateschi Vieira, trad.). São Paulo, Brasília: Hucitec, UnB.

Fundação Biblioteca Nacional. Setor de Arquivos. Coleção Vera Eunice. MS 565.

Jesus, C. M. de. (1996). Antologia pessoal. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

Jesus, C. M. de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2006.

Jesus, C. M. de. (1999). The unedited diaries of Carolina Maria de Jesus. (Nancy P. Naro e Cristina

Mehrtens, trad.). New York: Rutgers University Press.

Levine, R. M., & Meihy, J. C. S. B. (1995). The life and death of Carolina Maria de Jesus. Albuquerque: The

University of New Mexico Press.

Lajolo, M. (1996). Poesia no quarto de despejo, ou um ramo de rosas para Carolina. In C. M. de Jesus,

Antologia pessoal. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.

Meihy, J. C. S. B. (2017). Repaginando Carolina Maria de Jesus. In A. Chiara et al, Bioescritas, biopoéticas:

corpo, memória e arquivos. (pp. 263-280). Porto Alegre: Editora Sulina.

Perpétua, E. D. (2014). A vida escrita de Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte: Nandyala.

Rosito, V. (2012). Postcolonial female fiction: from the solitary stand in Carolina Maria de Jesus to the

solidary diction in Conceição Evaristo. Revista Brasileira de Literatura Comparada, 21.

Rosito, V. (Org.) Carolina Maria de Jesus: incômodos de ¼ chamado despejo / Carolina Maria de Jesus: a

misfit in a room not of her own. Rio de Janeiro: Mauad. [No prelo.]

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autoria

resumo

MARCELA RIBEIRO LIMA SANT’ANA

Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Técnica de

Medidas Socioeducativas em Meio Aberto no Município de Contagem.

CONTATO: [email protected]

MICHELLE KARINA SILVA

Psicóloga, Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

As dimensões ética e política do trabalho psicanalítico em um hospital no contexto do atendimento ao sujeito negro vítima de violência institucional

Esse trabalho visa a demonstrar como a intervenção psicanalítica feita através da construção

do caso clínico pode contribuir para a elaboração de uma posição ética e política do cuidado.

Busca-se ilustrar essa proposta com o relato de uma experiência da clínica psicanalítica

na instituição de saúde, no tratamento do paciente negro vítima da violência institucional.

PALAVRAS-CHAVE: psicanálise, tratamento hospitalar, racismo institucional.

SUMÁRIO

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320Nesse trabalho pretende-se apresentar uma experiência de atuação com o modelo psicanalítico na

condução clínica de um caso de atendimento a um jovem negro vítima de violência do tráfico em uma

instituição hospitalar pública de saúde. Há sete anos os profissionais de psicologia desta instituição

têm trabalhado e aprimorado por via de sessões clínicas, supervisões, formação de estágio-residência

e publicações de trabalhos científicos as ferramentas teórico-conceituais da psicanálise para criação de

um modelo de intervenções clinicas mais comprometido com a dimensão ética e política de realidade do

cuidado em saúde no Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se de uma atuação que opera com um modelo

de construção de caso clínico, o qual distancia-se da clínica que utiliza a ótica da definição estrutural do

sujeito, de concepções que privilegiam teorias sobre as versões de inscrição paterna como função na

organização do funcionamento psíquico, e, ainda mais, da prática hierarquizada de supervisão clínica

concebida na figura de uma autoridade técnica externa e não envolvida em algum nível com o cuidado

do sujeito na instituição. Em outro caminho, a construção do caso clínico dentro do modelo proposto

compromete-se com o fortalecimento da prática psicanalítica democratizada e racializada na instituição,

com um saber que se faz compreender, sem perder sua identidade teórico-conceitual, mas esforçando-se

para definir seus limites e alcances enquanto técnica de tratamento e teoria explicativa dos fenômenos

sociais e do corpo. Mais do que isso, a construção de caso clínico neste padrão busca, além de abrir

espaço aos mecanismos de reconstrução de modos sintomáticos de sofrimento de vivência do sujeito,

também traduzir o modo como o inconsciente dos atores envolvidos na cena de cuidado atua de forma

mais ou menos destrutiva, em ato ou discurso, na composição desse circuito assistencial.

Obviamente, dentro dessa complexa operação, na qual a subjetividade de quem cuida é ferramenta

essencial para sustentação da vida do outro, a construção resgata sua função de trabalho psicanalítico

arqueológico, numa referência do conceito na própria obra freudiana (Freud, 1937/1996), no qual a

tradução dos velhos monumentos do psiquismo faz falar a história da origem da doença, refletindo na

construção do caso no hospital também o sintoma coletivo parasitado pelo inconsciente, atualizando sua

condição originária do cenário de constituição psíquica de cada sujeito (Almeida, 2000).

Na dimensão do desenho objetivo da realidade de cuidado na qual essa psicanálise se insere, é

importante caracterizar que a prática clínica ocorre em meio a tragédia do genocídio da população jovem

e negra da periferia. Dados da gestão assistencial da psicologia do ano de 2015 e primeiro semestre de

2016 indicam que 253 casos de agressão de perfuração por arma de fogo e por perfuração por arma

branca foram atendidos pela psicologia, sendo 87% homens, e 51% dessa população composta por

adultos jovens menores de 26 anos e menores de idade. A maioria esmagadora desse grupo é de pessoas

negras moradoras das periferias do eixo norte e região metropolitana de Belo Horizonte.

O hospital opera com aproximadamente 360 leitos, organizando-se por um modelo específico de

gestão por linhas de cuidado, no qual o eixo de atendimento à vítima de trauma externo é uma demanda

recorrente. Nesse sentido, essa instituição assegura assistência em saúde para uma população que

vive em uma realidade socioterritorial caracterizada por índices socioeconômicos muito preocupantes

de pobreza e pobreza extrema, além de ser esse o polo da Região Metropolitana de Belo Horizonte

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321onde são encontrados os mais altos índices de violência, inclusive de criminalidade violenta com maior

representação de homicídios (Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, 2009).

Essencial dizer que esses dados não refletem o drama vivido no trabalho assistencial de um Hospital de

Urgência que enfrenta, junto à lesão do corpo gravemente traumatizado, vários obstáculos, tais como:

a) a forma de organização da assistência à vítima de violência (greves, desfalques, negligência política);

b) a ameaça real de um corpo desestabilizado gravemente do ponto de vista somatopsíquico pela lesão;

c) os desdobramentos que se associam com o risco à integridade física pela ameaça ainda em vigor

associada à cultura da guerra do tráfico; d) o histórico de direitos violados e de precariedade de acesso a

bens e serviços presentes na história do paciente; e) a relação do sujeito com o uso da droga, sendo ela,

em alguns casos, um sintoma do funcionamento psíquico; f) o modo como a subjetividade do outro na

assistência aparece em ato no cuidado na relação com o sujeito atingido pelo crime/violência.

No caminho pela inclusão e reconhecimento dessa visão no campo da saúde, muitos estudos de saúde

pública já apontam que “o espaço social que homens e mulheres, brancos e negros, ocupam na sociedade

afeta diretamente o processo saúde, doença e morte.” (Lopes, 2012, p.130) sendo imprescindível

tomar esse fenômeno como elemento essencial para construção resolutiva do cuidado em saúde. A

desigualdade condiciona modos de vida e define a realidade da saúde pública no Brasil. Nesse sentido, a

própria criação de uma Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (Brasil,2010), oficializada

em 2009, concretiza a necessidade de incorporação de estratégias assistenciais e de gestão voltadas para

a saúde da população negra e para o combate das desigualdades raciais.

Mais do que uma política com estratégias assistenciais de saúde, o compromisso de operar com a

dinâmica de racismo deve nortear ações de gestão assistencial para distribuição de capital social,

tecnologia humana, insumos, bens e recursos visando uma ótica mais igualitária de ações. Naturalmente,

isso não pode se dar sem a avaliação da seleção biopolítica dos corpos doentes e dos mecanismos de

tratamento empregados para tratamento dos grupos sociais na passagem pelas instituições de saúde

(Sampaio, 2013).

Com a contribuição do pensamento de Foucault (1996apud Lopes, 2012), é essencial se fazer uma leitura

sobre o modo como o racismo produz seus efeitos práticos nos discursos locais na instituição de saúde,

constituindo ficções desqualificantes e aniquiladoras da legitimidade das diferenças sociosubjetivas do

outro através de sistemas naturalizados supostamente científicos e neutros de poder-saber. Muitas ações

do coletivo que se inscrevem na história da construção do cuidado individualizado do sujeito devem ser

objeto dessa reflexão na instituição de saúde. Sem esse esforço, não reconhecemos na micropolítica do

cuidado a macropolítica constituída pelas tecnologias de governo para a regulação de processo vitais

como um sistema biopolítico de controle de Estado (Lopes, 2012).

De forma mais precisa, é necessário que se compreenda que esse fenômeno sustentando por uma

tecnologia de conhecimentos e técnicas opera seletivamente no “fazer viver” aqueles que encarnam os

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322protótipos de normalidade e humanidade. Nesse sentido, também ocorrem, através de uma espécie de

seleção naturalizada pela tecnologia biomédica, e objetivamente letal, modos de se “deixar morrer” um

número imenso de pessoas negras e pobres. É assim que os dispositivos biomédicos operam no sentido

racialista de aniquilar de forma “neutra e científica” os corpos marcados pela cor, pela pele preta tomada

como menos digna de cuidados e de vida.

Buscar uma clínica psicanalítica capaz de dar visibilidade ao modo como esses dispositivos sociais

pactuam com horizontes mortíferos da subjetividade no campo inconsciente, operando de forma violenta

na instituição, em uma dimensão que vai da relação subjetiva de tratamento na história de cuidado do

corpo e da doença à dimensão social de funcionamento da organização com mecanismos disciplinar

de docilização e seleção de corpos e grupos sociais, é o que tentamos demonstrar com a exposição da

construção do caso na dinâmica própria da clínica psicanalítica na cena hospitalar.

Tomando-se os aspectos dessa realidade como elementos que fundam e caracterizam a clínica

psicanalítica no SUS, não seria possível ignorar que a psicanálise deve fazer o esforço de se remodelar e

de se prestar como ferramenta que questiona mecanismos racistas no contexto de produção biomédica,

sendo ela também um dispositivo de denúncia da racialização do cuidado, dando visibilidade aos atos de

apagamento das identidades fundantes da população negra.

Cabe que a clínica psicanalítica no campo do cuidado assistencial se ofereça como ferramenta ético-

política de combate ao racismo e que se preocupe em desconstruir os modos de subjetivação violenta que

desidentificam, destroem e fragmentam arranjos subjetivos fundantes da existência autêntica dos sujeitos.

Para essa orientação política da clínica, partirmos das concepções teóricas sobre o racismo institucional

para demonstrar o modo como temos buscado que a psicanálise se preste como dispositivo de

enfrentamento de situações de violência no hospital, em um contexto institucional no qual o racismo é

fundador de formas de subjetivação que fracassam na dimensão subjetiva e transubjetiva de produzir

cuidado. Isso através de atos objetivos que refletem como a “organização falha ao não prover um serviço

apropriado e profissional para as pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica.” (Sampaio,

2003, p. 79)

Trata-se de assumir que a clínica não é um dispositivo neutro. Ela está mergulhada numa dimensão de

valores, ideologias e representações ético-políticas, contribuindo para a dinâmica de jogos de poder a

favor ou contra o sujeito vulnerável. Nesse sentido, cabe que, como teoria clínica, a psicanálise também

se abra para identificação de quais modos de subjetivação sua existência como método de tratamento

e cuidado tem ajudado a reforçar. Está sendo ela também uma ferramenta de defesa de direitos e de

formas mais plásticas e diversificadas de existência humana?

A psicanálise é capaz de denunciar, por exemplo, no campo da contratransferência do cuidado da equipe,

qual o lugar ocupado pelo sujeito na dinâmica libidinal de investimento do desejo do outro, interpelando,

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323de forma tradutiva como isso se reflete nos modos de cuidado objetivamente, tal como ocorre na

diversidade de estratégias de cuidado mobilizadas, nos tempos de respostas as demandas de alívio do

paciente e diagnóstico do corpo do sujeito, no quantum de recursos mobilizados para seu tratamento

efetivo, na definição de proporcionalidade biomédica de recursos e insumos. Enfim, há uma dimensão

do capital social da instituição de saúde que se reflete de forma decisiva nas estratégias pensadas para

o cuidado e que só podem ser ampliadas e desenvolvidas de forma eficiente através do investimento

feito pela disponibilidade subjetiva de tecnologia humana que se oferta como alteridade cuidadora. Na

fundação dessa realidade material da subjetividade está a dinâmica libidinal em sua expressão mais ou

menos mortífera de composição das relações humanas racializadas.

Finalmente, vamos ao relato de caso.

CARACTERIZANDO A REALIDADE DO CUIDADO DO PACIENTE

O presente relato de caso refere-se a N., jovem de dezoito anos, com história de envolvimento com o

tráfico de drogas, uso regular de maconha e pontual de outras drogas, que chega ao hospital trazido pela

polícia. N. foi vítima de perfuração por arma de fogo na região cervical, o que resultou em tetraplegia

imediata. O disparo teria sido dado por um policial em uma operação em área de tráfico com alegação de

envolvimento do paciente e com a acusação relatada de ter sido ele o assassino de um policial semanas

antes. N., por esse motivo, é hospitalizado já em condição de prisão preventiva, sendo escoltado por

agentes prisionais durante toda a internação.A mãe era a figura de referência familiar presente na

internação. N. foi criado por avós já falecidos, filho de pai preso e estranho a sua vida, morador da região

metropolitana de BH.

Destaca-se que, durante o início da internação, a condição de perda funcional permanente do paciente já

havia sido instalada, evoluindo em piora progressiva, tendo o paciente várias condições de dependência,

tais como: dependência de Sonda Nasogástrica para comer, de Sonda Vesical de Alivio para urinar, de

ventilação mecânica para respirar. Em uso de frauda, sem mobilidade alguma, com dores excruciantes,

já com escaras no corpo com exposição de tecido ósseo. Além disso, a falência respiratória progressiva

impediao desmame ventilatório, sendo ele por isso, traqueostomizado, N fazia sua comunicação por meio

de gestos bucais afônicos contando com a leitura labial do outro. Interessante dizer que a privação da

fala, em casos diferentes com mesmo impedimento, faz por si que ocorra o abandono simbólico do outro

no investimento da correspondência comunicativa nas instituições públicas de cuidado.

Durante a internação, N passou por várias unidades do hospital com equipes distintas e variadas: Pronto

Socorro, Cuidado Semi-intensivo; Centro de Terapia Intensiva (CTI), Unidade de Clinica Cirúrgica,

Unidade de Clínica Médica. Somente a psicologia, por definição de modelo de cuidado assistencial com

orientação psicanalítica e por avaliação da demanda do caso, manteve o mesmo profissional atendendo o

paciente ao longo de sua trajetória de 6 meses de internação na instituição.

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324Aponta-se para o fato de que este serviço de psicologia faz busca ativa e triagem de demandas com o

objetivo de organizar e antecipar o atendimento dos casos que indicam perfis específicos que devem ser

objeto de cuidado da psicologia, dentre eles os perfis de violência.

O CUIDADO INTENSIVO

Durante permanência de quase quarenta dias no CTI, N. teve alguma estabilização respiratória,

investindo mais na comunicação. Apesar disso, o tecnicismo frio, bem como a ausência de oferta subjetiva

de desejo do outro nesse ambiente, foram causa de intenso sofrimento físico e subjetivo para o paciente.

Ademais, nesta unidade o acesso de visitantes aos pacientes é bastante limitado.

Um evento ocorrido no setor foi objeto de atenção da psicologia. Uma profissional da equipe disse à

psicóloga ter sido falsamente reconhecida por N. como alguém de seu convívio. “N me perguntou se moro

em X, se era prima de um vizinho dele, insistiu. Dizem que ele é muito perigoso. Eu estou com muito medo.”

Em conversa particular, intervimos para desconstruir a defesa egoica infantil e neurótica (pactuada com o

racismo) dizendo do mecanismo da doença. O fenômeno dito era um sintoma psíquico típico da confusão

mental, talvez do parasitismo inconsciente, no qual o paciente faz um falso reconhecimento do outro por

estar mergulhado no onirismo da obnubilação da consciência. Demos também visibilidade a extrema

fragilidade do sujeito e do fenômeno subjetivo de tentativa de N. de criar uma atmosfera de familiaridade

em um ambiente de um cuidado tão técnico e impessoal.

O CUIDADO CIRÚRGICO

Na enfermaria de cuidado cirúrgico, o paciente teve uma melhora no humor e passou a investir mais

na comunicação. Contudo, o sofrimento não foi objeto de maior alívio. Sem indicação de isolamento

infeccioso, N. foi mantido em enfermaria sozinho, à mercê da escolta, que antes tinha acesso restrito ao

paciente no ambiente de cuidado intensivo. Sob essa exposição, o estado de terror em função do medo de

represália policial era tônica frequente dos atendimentos psicológicos que, não raro, eram também objeto

de assédio dos agentes.

Para piorar a situação de violência policial e institucional, a sede prisional fez valer nos limites da lei

todas as restrições de visita, que antes diárias no CTI, passaram a ser semanais com duração de uma hora

e somente após retirada da autorização no presídio. Não houve nenhuma preocupação da equipe em

relação ao fato. Nesse caso em específico, não viam nenhum absurdo em uma mãe ser condenada a ver

seu filho moribundo uma hora por semana, sem poder lhe ofertar cuidados necessários ao alívio de seu

sofrimento somatopsíquico e acompanhar sua luta cotidiana pela vida.

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325A psicologia então fez contato com o diretor da instituição prisional, que acolheu a possibilidade de envio

de um relatório alegando indicação médica e psicológica para flexibilização das visitas. O documento foi

então confeccionado, com orientação também feita à mãe para ser leva-lo ao judiciário, um instrumento

construído pela psicologia como laudo detalhado e bem fundamentado sobre o estado de incapacidade

do sujeito, assinado também equipe médica. Todavia, não houve resposta.

A partir daí, começaram os inúmeros pedidos e insistências do serviço de psicologia para que a equipe

de serviço social instrumentalizasse a família para o trabalho jurídico de acesso ao paciente e pedido de

prisão domiciliar, com dispensa imediata da escolta.

Dentro da instituição, a psicologia dava visibilidade ao caso em discussões na assistência, sobretudo junto

a supervisão de enfermagem, para transferência de N. para uma enfermaria coletiva, onde a presença

de outras pessoas tornaria o ambiente menos favorável ao assédio dos agentes. Em uma dessas tantas

ocasiões, teve como resposta a falta de desejo do outro: “É impossível. Não entendo... Vocês têm muito

dó desses meninos”.

Ainda na unidade cirúrgica, o ato racista e violento ganhou contornos mais perigosos. Houve, segundo

relato da equipe de enfermagem, o testemunho de que os agentes teriam feito atos diretos de ameaça

à vida do paciente. Nessa situação, a instituição acionou por oficio a instituição prisional e os agentes

foram trocados.

Essa relação com a escolta foi sempre muito tensionada, através de uma estratégia de assédio direto com

ameaça à integridade física do paciente e com emprego de desqualificação pública, calúnia e difamação

dentro da comunidade hospitalar. Isso como tentativa de provocar um pacto de punição coletiva do

paciente por sua suposta experiência de marginal perigoso e assassino de policial.

DE VOLTA AO CUIDADO INTENSIVO

As estratégias da escolta estavam alcançando seus resultados: Neste período, N permaneceu ainda

mais deprimido e hipobulico, tendo sido rendido por um quadro infeccioso que o fez retornar ao CTI.

Na segunda passagem pelo CTI, N. mostrou-se desesperançoso, trazendo pela primeira vez em sua

fala o desejo de morte como forma de endereçamento de um pedido de alívio do intenso sofrimento

experimentado. Foi nesse contexto que, durante visita de sua mãe, N. pediu a ela que negociasse com

equipe de saúde o desligamento dos aparelhos.

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326DE VOLTA AO CUIDADO CIRÚRGICO

De volta à enfermaria cirúrgica, mesmo após a intervenção do presídio, mantiveram-se os padrões de

comportamento abusivo da escolta: em diversas situações a construção de uma imagem criminosa foi

exposta à equipe assistencial e outras equipes, bem como aos acompanhantes dos pacientes internados.

As falas atribuídas aos agentes penitenciários e alimentadas pelo imaginário sádico e punitivo de

um coletivo da instituição, associavam a vida de N a crimes diversos, inclusive de natureza sexual,

desenhando a imagem já condenada, mesmo sem sentença, de um criminoso de alta periculosidade.

Naturalmente, como parte da estratégia de punição perpetua do paciente, as falas chegavam ao seu

conhecimento, sendo objeto de imenso sofrimento subjetivo. Ao ouvir tais conteúdos, N. reivindicava

o direito à própria honra, indicando a destrutividade da construção perversa do coletivo que gozava

ao construir projetivamente o criminoso perigoso e infame presente na natureza humana comum,

localizando-o, exclusivamente, através do código-simbólico racista no corpo negro marginalizado.

O sofrimento narcísico de N. diante dessas falas levianas e criminosas era imenso. No relato de

atendimento, a fala em sua própria defesa dizia da ética do gênero que o fazia se sentir moralmente

diminuído e impuro por ter de si roubada a imagem coletiva de moral, tendo a si imposto a imagem

narcísica monstruosa refletida pelo outro como animal brutal que é incapaz de acessar a sexualidade de

uma mulher sem o uso da força.

Depois dos eventos ocorridos com a escolta, o jovem desenvolveu sintomas que o acompanharam até a

morte: um estado ansioso extenuante, um psiquismo alerta, com pensamentos catastróficos, sensação

de morte, alterações de sono, angústia intensa, choro abundante, hipervigilância, humor deprimido e

uma demanda marcada pela agonia pela presença do outro. Uma aparente neurose fóbica reativa ao

ambiente ameaçador.

A psicologia, ciente da limitação da oferta de cuidados na clínica cirúrgica, marcada pela questão racial

invisibilizada de forma cínica no cuidado do sujeito, depois de não colher efeitos das várias discussões,

conseguiu, com insistência, que N. fosse transferido ao setor da clínica médica. A sugestão foi

comemorada pela equipe da Unidade remetente em função da desoneração de complexidade do cuidado

causado pelo perfil assistencial do caso.

A psicologia acreditava assim ser possível a produção de um olhar que enxergasse N. para além do corpo

negro criminalizado, operando, naquele momento, uma espécie de desracialização para racializar de

outro modo depois.

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327O CUIDADO EM CLÍNICA MÉDICA

Uma vez realizada a mudança, foi nítida a diferença na oferta de cuidado. Agora essa se dirigia a um

corpo frágil, debilitado e condenado à imobilidade. Desse modo, N. estava mais desligado da estereotipia

totalizante e racista construída pela comunidade hospitalar desde sua chegada à instituição.

Ainda assim, após a mudança, houve mais um evento de ameaça por parte dos agentes. O relato de N.

era de que eles ameaçavam rotineiramente desconectar o tubo do ventilador. Em uma dessas situações,

a psicologia foi testemunha da experiência terrificante para o paciente. N. se encontrava hipervigil, com

fáceis de pânico, sudorético, verborrágico, com pensamento acelerado e anunciando as angústias de

morte suscitadas pelo evento que parecia ter acabado de ocorrer.

Após tal episódio, em uma articulação entre o serviço de psicologia e de enfermagem dessa unidade,

foram traçadas estratégias para minimizar os efeitos da tortura psicológica da presença da escolta. Foi

decidido mantê-lo em enfermaria localizada em frente ao posto de procedimentos da enfermagem, que

tem circulação intensa de pessoas, para inibir a ação dos agentes e possibilitar resposta imediata ao

sinal sonoro disparado pelo respirador. Além disso, foi acordado manter sempre em sua enfermaria um

paciente que dispusesse de acompanhante em tempo integral também para triangular a relação agente-

sujeito. Em reunião de equipe, outros profissionais que assistiam o paciente foram convidados pela

psicologia a visita-lo mais vezes no dia, mesmo que não fosse para atendimento, provocando uma presença

de defesa inibidora da ação dos agentes. A psicologia, em especial, dobrou a intensidade das visitas.

Nesse momento, diante da situação de difícil desmame da ventilação mecânica, a presença de múltiplas

escaras e declínio das reservas vitais, a equipe médica em conjunto com N. e familiares, optou pelo

cuidado não invasivo, com intuito de proporcionar conforto e dignidade ao paciente. A oferta de cuidado

de recuperação e reabilitação não era mais eficaz com base na avaliação da resposta do organismo às

medidas de tratamento invasivo adotadas até então. A construção da proposta de cuidados paliativos

foi feita com várias intervenções da psicologia junto à equipe médica para que o paciente fosse

instrumentalizado em sua autonomia com o conhecimento e informações para tomada de decisão de não

ser encaminhado novamente ao CTI. Algo acolhido por N. com alívio, em função do pavor que tinha da

unidade, – apesar do sofrimento da mãe com o início da concretização do caminho até a perda do filho.

Já em cuidados paliativos, a melhora em seu humor, aos poucos foi sendo sentida, bem como o

desenvolvimento de estratégias de comunicação ativa com o outro foram alcançados. Parcerias foram

estabelecidas pelo paciente com seus vizinhos de enfermaria. Nos atendimentos psicológicos, N. foi capaz

de trazer elementos de sua história de vida e ressignificar vivências de seu romance familiar, descrevendo

de forma simbólica rica uma rede de afetos extensa, trazendo em sua fala o desejo de reencontro com os

seus familiares e a necessidade de reparação de relações.

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328N. reconheceu, nessa altura do tratamento, as medidas tomadas pela equipe de saúde e dizendo-

se contemplado por um cuidado afetivo, muito diferente do de outros tempos. Os atendimentos

psicológicos duravam mais tempo porque a voz como objeto era investida de mais libido, sua fala era

mais compreensível e notou-se uma riqueza maior dos recursos psíquicos empregados no processo de

elaboração da própria experiência de vida. Muito da história da relação com o par parental de avós, já não

presentes na vida do paciente, foi objeto de intervenções da psicologia e ressignificação importantíssimas

para N., inclusive com uma implicação responsável de atos criminosos praticados.

Finalmente, na semana que antecedeu sua morte, foram realizados dois atendimentos. No primeiro, ele

encontrava-se excitado pela expectativa de audiência marcada para o fim da semana, quando poderia

então ser concedida a prisão domiciliar, com a retirada imediata da escolta. N. expressou o que gostaria

de dizer para cada um de sua família, fantasiando o reencontro (ou deixando suas heranças simbólicas

para o encontro com a morte)Reconheceu-se em seu adoecimento a condição de um reposicionamento.

No segundo atendimento, N. estava ainda mais radiante e afetivo. Mostrava com vivacidade um presente

que lhe havia sido dado por alguém da equipe para presentear a mãe no dia das mães. Segundo ele, um

empréstimo que seria pago após a alta. O objeto representava um símbolo de gratidão a quem lhe deu vida e

talvez uma perpetuação como única herança deixada diante do pouco tempo de vida do corpo em processo

de morte. Não por acaso, N. pode dizer de conversas com Deus em que se dizia pronto para a partida.

Passados seis meses e três dias de sua internação, N. veio a óbito em um fim de semana, num processo de

sofrimento físico pouco comum no contexto de morte no hospital, tendo recebido apenas intervenções

que visavam à minimização de poucos desconfortos sintomáticos dentro do quadro de patologias maior

que vivia.

O RELATO MATERNO

Nos momentos de acolhimento psicológico à mãe de N., a família contava sobre os 4 meses de tentativa

de acesso ao Judiciário, com auxílio da Defensoria Pública, na busca pela concessão de mudança no

regime prisional. A fala materna descrevia o sofrimento vivido pelo filho na internação prolongada,

marcando, principalmente, a ausência de melhoras significativas no quadro clínico, reconhecendo o

intenso desprazer vivenciado por N. Apesar disso, a mãe ressignifica o processo de adoecimento do filho,

reconhecendo neste a condição de um reposicionamento de N., o qual pôde responsabilizar-se pelos

caminhos até então trilhados.

Após acolhimento pela equipe médica, que pôde em uma conversa extensa dizer dos pormenores da

condição clínica de N. e das medidas de conforto adotadas, a mãe do paciente mostrou-se bem mais

aliviada. Em conversa posterior, a genitora indicou que naquele momento entendeu que seu filho estava

sob cuidados de uma equipe de saúde que o reconhecia enquanto sujeito de direitos, digno de respeito e

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329cuidados. Pôde, finalmente, acomodar a ideia da finitude que se anunciava, tendo inclusive a possibilidade

de dizer ao filho que sobreviveria a seu descanso.

OS MOMENTOS DERRADEIROS

Seis meses e três dias após dar entrada no hospital, a mãe de N. entrava em contato com a psicologia

para dizer da morte de seu filho. Em contato telefônico, o que se escutava era uma mulher apaziguada,

que descrevia as pequenas alegrias vivenciadas com o filho no contexto hospitalar nas últimas semanas.

Como que tentando presentificar o objeto perdido pelos sentidos do cotidiano, a mãe descrevia de

forma detalhada as demandas do filho por situações que lhe conferissem uma base identitária subjetiva

descolada do organismo doente e devastado e, sobretudo, da imagem do negro traficante e violento

muitas vezes espelhado pela perversidade do outro. Em um tom de reconforto e gratidão, a genitora

descreveu seu último encontro com o filho, afirmando que pela primeira vez desde o início da internação

teve um encontro com maior dignidade com o paciente, tendo privacidade para estar com N. Declarou

como foi possível mostrar-lhe vídeos de familiares e áudios, com vozes que antes só habitavam sua

memória afetiva. Pôde ainda fazer registro fotográfico e passar uma hora menos sofrível em sua presença.

No contato, contou do pedido do paciente de ser enterrado com o Salmo 23 sobre o corpo, o que

descobrimos depois ser a oração feita com ele por uma estudante de medicina e por uma fisioterapeuta, a

seu pedido, durante visitas. Tal situação pôde ser alcançada em função da intervenção da enfermagem de

afastar os agentes da porta da enfermaria, medida essa não intermediada pela psicologia.

Por fim, essa mãe deu à psicologia então a missão de transmitir à equipe os seus préstimos, conforme

transcrição literal: “Quero que você agradece todos os funcionários que cuidou do meu filho cm carinho

muito obrigado de coração. Vc [sic] também foi muito atenciosa comigo que Deus te abençoe vc [sic] e

sua família”.

A psicologia, aproveitando as falas de comoção da equipe com a morte do paciente e compreendendo o

papel fundamental das mudanças na oferta do cuidado, bem como percebendo o quase apagamento da

história real e ambivalente da instituição na construção do cuidado até o alcance de uma assistência mais

digna, organizou uma reunião com toda a equipe multiprofissional que esteve envolvida no caso.

Diante de médicos clínicos, do controle de infecção hospitalar e dos cuidados paliativos, bem de como

enfermeiros, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, residentes e acadêmicos, foi descrito o percurso

de N. ao longo da internação com uma descrição rica em detalhes institucionais e leituras dos processos

de subjetivação que afetaram o paciente, principalmente com os atos de ódio visibilizados no modo

racista de oferta assistencial. Ao fim, foi exibido um vídeo produzido e enviado pelos familiares de N.

em que este aparecia em fotos de seu cotidiano, inserido em seu círculo familiar e afetivo como o sujeito

autêntico e complexo que era.

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330Comentando o caso, a equipe da clínica médica parecia ter recebido a intervenção com um sentimento de

dor, alívio e compaixão austera por ter conseguido romper em alguma medida com os modos de violência

tão repetidos no cuidado dessas crianças vítimas da violência do tráfico e do racismo da sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na apresentação da construção do caso à equipe, tentamos demonstrar objetivamente como a dimensão

do lugar da raça foi sendo objeto de abordagem e defesa de direitos para que esse sujeito tivesse um lugar

de reconhecimento racializado na produção socioafetiva de cuidado da instituição, tendo como resultando

o reconhecimento singular de sua existência sociosubjetiva como sujeito. Isso tendo sempre a equipe de

psicologia como o outro consistente que reafirmava e reconhecia sua trajetória histórica e subjetiva na

instituição hospitalar e fora dela, sendo, nesse sentido, a alteridade guardiã de sua identidade, autonomia

e autencidade de sujeito. Esse relato de experiência permite concluir que, a partir da construção do

caso, podem ser elaboradas intervenções decisivas no tratamento hospitalar para que se alcance,

multiprofissionalmente, formas de cuidado mais protetivas e sustentadoras da existência do indivíduo em

suas diferenças e diversidade de experiências, como sujeito de autonomia, de direitos e de desejos.

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331REFERÊNCIAS

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Freud, S. (1996). Construções em análise. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas

Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 23, pp. 290-304). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho

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autoria

resumo

RAFAEL GUIMARÃES TAVARES DA SILVA

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da

Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

Diálogo e diferença com a tradição na obra de Carolina

Carolina Maria de Jesus tem uma obra de imenso potencial teórico para quem se disponha a lê-la

com a devida atenção. Imbricando as múltiplas dimensões do fenômeno literário – como a obra,

a biografia, a realidade social, a linguagem, a edição e a recepção – numa amálgama capaz de

promover, pela palavra, um poderoso trabalho de subjetivação e emancipação, a autora faz um

diagnóstico agudo de seu tempo e sugere um dos prognósticos possíveis para que se faça frente

ao longo processo histórico de violência contra o negro, a mulher e o pobre. As resistências

à sua obra, contudo, não são menores do que aquelas que a própria Carolina encontrou para

estabelecer os meios de sua sobrevivência em vida: a tarefa da crítica literária é não permitir que

sua voz seja envolta pela mais terrível forma de resistência a uma obra, o silêncio.

PALAVRAS-CHAVE: teoria literária, escrita de si, desconstrução, literatura brasileira,

Carolina Maria de Jesus.

SUMÁRIO

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333Carolina Maria de Jesus é uma artista de visão arguta e de palavra afiada. Sua obra, marcada

profundamente pela história do Brasil – com suas violências, desmandos e misérias – , é uma referência

literária incontornável para quem quer refletir não apenas sobre os traumas de nosso passado mas

também sobre suas permanências no presente. Sua escrita é dotada de um estilo direto e ágil, crivado

de expressões orais e comentários sucintos, revelando-se, por isso, uma ferramenta apta a pintar com

cores fortes uma realidade invisibilizada pelas grandes mídias, pelos livros da seção de “mais vendidos”

e por uma parte do cânone literário nacional. Mas sua escrita consegue ser ainda muito mais do que

isso: uma substância riquíssima em que se misturam os registros culto e informal, as palavras raras e as

corriqueiras, arcaísmos e neologismos, humor e terror, gracejos e denúncias, os sonhos de uma poeta

e a realidade de uma miserável. Essas são algumas das características que fazem com que Carolina

se destaque da produção literária brasileira como uma escritora sem igual e que merece ser lida com

máxima atenção.

Antes de continuar, é preciso ressaltar que, se escolho apresentar minha leitura da obra de Carolina aqui

hoje, não é sem alguma hesitação: sabemos que, enquanto mulher, negra e pobre, essa escritora sempre

esteve marcada por diferentes formas complementares de exclusão. Tal como sugerido por Spivak

(2005), um subalterno jamais pode falar de fato. E uma das maneiras tradicionais de se silenciar alguém

com a capacidade intelectual de Carolina é justamente colocando-se a falar em seu lugar, por ela: isto é,

silenciá-la por meio da imposição de um discurso alheio ao seu e, muitas vezes, contrário ao seu. Esse é o

risco que assume quem queira ir até a obra de Carolina a fim de escutá-la e dar-lhe a escutar. E esse risco

deve ser assumido, de maneira consciente e atenciosa, para que sua abordagem não seja responsável por

abafar sua voz, mas sim por tornar-se apenas um meio pelo qual ela encontre novas maneiras de ecoar.

O potencial teórico das obras de Carolina é imenso. Muito mais do que o produto de uma educação

esmerada e de uma reflexão de gabinete, sua agudeza de espírito deve-se a uma experiência profunda

da realidade. Ela só é capaz de tratar tão bem da miséria, pois a experimentou na carne. Ela só é capaz de

descrever de forma tão precisa a exploração humana, pois foi inúmeras vezes explorada. E ela só é capaz

de empregar a palavra como um instrumento tão apto à transformação, pois em suas mãos a palavra foi

responsável por transformá-la. Sua sabedoria, sua escrita e – no limite – até a forma como estabelece

seu diálogo com a tradição literária têm origem mais numa experiência do mundo do que numa imersão

em bibliotecas.

Ainda assim, o interesse de Carolina pela literatura começa desde quando é alfabetizada. Em Diário de

Bitita, após narrar o lado emancipatório que a educação e a alfabetização desempenharam em sua vida,

ao tornarem possível uma conscientização de si como sujeito e, por conseguinte, propiciando o próprio

desmame (em idade já avançada), a autora narra que uma de suas primeiras leituras foi Escrava Isaura

(Jesus, 2014, p. 129). E, em pouco tempo, muitos outros títulos juntaram-se a esses:

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334Nas horas vagas, eu lia Henrique Dias, Luís Gama, o mártir da Independência, o

nosso Tiradentes. Todos os brasileiros atuais, e os do porvir, devem e deverão render

preito ao saudoso José Joaquim da Silva Xavier. Não foi salteador, não foi pirata, foi

um dos que também sonhou em preparar um Brasil para os brasileiros. Lendo, eu ia

adquirindo conhecimentos sólidos. (Jesus, 2014, p. 133)

Educava-se, portanto, na tradição literária brasileira e mundial, cultivando com especial predileção os

autores clássicos. Mas certas passagens de seus escritos – sobretudo onde dá asas a um lirismo cru e

direto – não poderiam extrair sua força e acuidade de um mero diálogo com a tradição. O poder dessas

passagens não vem de uma retomada de tópoi retóricos, figuras de linguagem da literatura ou de imagens

convencionais, mas sim de uma expressão simples e brutal daquela que vive na carne a potência da

palavra e a miséria da realidade:

7 de maio de 1959. ... Lavei todas as roupas. Jurei nunca mais matar porco na favela. Eu

estou tão nervosa que recordei o meu provérbio: não há coisa pior do que a própria vida.

Favela, sucursal do Inferno, ou o próprio Inferno. (Jesus, 1993, p. 145)

18 de julho de 1959. ... Temos só um geito de nascer e muitos de morrer. (Jesus,

1993, p. 161)

Pouco importa se Carolina conhecia a literatura grega e tudo quanto se afirmou sobre o sentimento

trágico existente em muitas de suas obras, pois em 28 de maio de 1959 ela escreve:

A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós

quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha,

até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro. (Jesus,

1993, p. 147)

Trata-se de uma retomada perspicaz – muito mais complexa, é certo, posto que enriquecida da metáfora

da vida como livro e da denúncia do racismo – por meio da qual se opera uma releitura de uma célebre

passagem das Histórias de Heródoto, onde o sábio grego Sólon afirma o seguinte ao rei da Lídia:

Creso, eu sei que a divindade é em tudo invejosa e perturbada, [mas] interrogaste-

me sobre os assuntos humanos. Pois, na longa vida humana, houve muitas coisas

que ninguém quis ver, e ainda, muitas vezes, sofrer. ... É preciso examinar o fim de

cada coisa, de que modo resultará; pois, para muitos, após conceder um lampejo de

felicidade, o deus arruína-os até a raiz (Heródoto, Histórias, 1.32)

Trata-se da partilha de uma mesma visão trágica sobre a existência humana, mas Carolina a pinta com

cores que pensadores de uma educação aristocrática antiga – como Sólon e até mesmo o próprio

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335Heródoto – jamais poderiam alcançar. Numa das passagens suprimidas dos diários de Carolina, tal como

editados por Audálio Dantas, temos ainda a seguinte anotação para o dia 3 de junho de 1958:

Quando eu começei escrever ouvi vozes alteradas. Faz tanto tempo que não ha

briga na favela. Uns 15 dias pensei até que os favelados estavam lendo Socrates. O

homem que não gostava de polemica. Ele dizia: que pode se realisar uma Assembleia e

ressolver os problemas com palavras. (Jesus apud Perpétua, 2014, p. 161)

Não parece que Carolina estivesse se referindo ao Sócrates que figura no Górgias ou em algum dos

diálogos platônicos nos quais a polêmica do debate termina em aporia, mas a referência ao poder do lógos

(“palavra”) como meio de resolver os problemas na Boulé (“Assembleia”) é uma interpretação possível de

uma das mensagens políticas mais práticas do sábio ateniense. Outros exemplos de intertextualidade

explícita com as tradições clássica e bíblica ainda seriam possíveis em suas obras,1 mas o mais

interessante seria notar como – no seio desse diálogo com a tradição – Carolina instaura sua palavra

sempre em diferença.

Poderíamos sugerir algo análogo no que diz respeito à sua relação com a tradição da poesia moderna,

principalmente quando levamos em conta a experiência da modernidade dessa autora. Embora não

tenhamos encontrado nenhum registro de que Carolina apreciasse a obra poética de um Charles

Baudelaire, por exemplo, é impossível não considerarmos sua obra – literária e autobiográfica – à luz da

leitura que Walter Benjamin propõe quando cita os seguintes versos do poeta francês e, na sequência,

tece seu próprio comentário:

Vê-se vir um trapeiro, abanando a cabeça

Tropeçando e esbarrando em tudo, qual poeta,

E, sem ligar nenhuma aos polícias, seus súbdito,

Abre o seu coração em gloriosos projectos.

Ele presta juramento, dita leis sublimes,

Derruba os malfeitos e reanima as vítimas,

E sob o firmamento, num pálio suspenso,

Delira com o esplendor de sua própria virtude.2

1 A título de exemplo, conferir Jesus, 1993, p. 117 e p. 129, e Jesus, 2014, p. 27 e p. 133.2 Esses versos citados por Benjamin pertencem ao poema Le vin des chiffoniers (“O vinho dos trapeiros”), cujos originais são os

seguintes: “On voit un chiffonnier qui vient, hochant la tête,/ Buttant, et se cognant aux murs comme un poëte,/ Et, sans prendre

souci des mouchards, ses sujets,/ Épanche tout son cœur en glorieux projets.// Il prête des serments, dicte des lois sublimes,/

Terrasse les méchants, relève les victimes,/ Et sous le firmament comme un dais suspendu/ S’enivre des splendeurs de sa propre

vertu” (Baudelaire, 1868, p. 297).

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336Os trapeiros começaram a aparecer em grande número nas cidades quando lixo

passou a ter certo valor, devido aos novos processos industriais. Trabalhavam para

intermediários e representavam uma espécie de indústria doméstica situada na rua. O

trapeiro fascinou sua época. Os olhares dos primeiros investigadores do pauperismo

recaíam sobre ele com a pergunta muda: até onde irão os limites da miséria humana?

(Benjamin, 2015, pp. 20-21, trad. João Barrento)

Como se vê, a figura do trapeiro encarnada por Carolina em suas obras – e em sua vida – tem estirpe

literária que remonta pelo menos a Baudelaire. A retomada dessa figura, contudo, não se dá nas mesmas

linhas daquilo que se dava nos versos do poeta francês, nem nas análises do estudioso alemão, pois,

ao invés de fazer figurar o trapeiro como um exemplo, como uma figura externa que é apenas vista de

fora, Carolina converte-se ela própria em trapeira, dando voz a essa figura subalterna em sua obra ao

confundir-se, enquanto autora, com ela:

7 de junho de 1958. Os meninos tomaram café e foram a aula. Eles estão alegres

porque hoje teve café. Só quem passa fome é que dá valor a comida.

Eu e a Vera fomos catar papel. Passei no Frigorifico para pegar linguiça. Contei 9

mulheres na fila. Eu tenho a mania de observar tudo, contar tudo, marcar os fatos.

Encontrei muito papel nas ruas. Ganhei 20 cruzeiros. Fui no bar tomar uma media.

Uma para mim e outra para a Vera. Gastei 11 cruzeiros. Fiquei catando papel até as 11

e meia. Ganhei 50 cruzeiros. (Jesus, 1993, p. 48)

O gesto de Carolina é muito mais radical do que Baudelaire ou Benjamin jamais poderiam ter sonhado

em ser: embora esses autores compartilhem, em certos momentos de suas obras, um olhar empático com

os subalternos, nenhum deles poderia estar onde Carolina esteve. Nenhum deles poderia, portanto, ter

tratado a linguagem, a obra, a tradição literária e a própria vida como uma trapeira foi capaz de fazê-lo,

isto é, dando voz a quem se vê sempre silenciado.

Antes de avançarmos, um breve comentário sobre um desdobramento triste que essa subalternidade

implica para a obra da autora: mencionamos acima um trecho do diário de Carolina que foi suprimido

por Audálio Dantas. A superfície do corpus literário publicado dessa autora é crivado pelas marcas das

supressões que, evitando tornar “a repetição da rotina favelada” algo “exaustiva” (Dantas, 1993, p. 3),

constituem uma primeira forma de silenciamento pela reticência (ou antes, pela marca das reticências: ...).

Em todo caso, a dimensão editorial é algo que deve ser levado em conta por quem queira escutar Carolina

para além de uma das formas de silêncio que lhe foi imposta.

Nesse sentido, essa autora é um dos exemplos mais paradigmáticos de que uma crítica literária

efetivamente atenta deve adotar uma perspectiva teórica capaz de abarcar as inúmeras dimensões

do fenômeno literário: para além apenas da obra, é preciso que o crítico leve em conta a linguagem,

a realidade representada por ela, a vida da autora, a recepção que lhe foi oferecida em diferentes

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337momentos, além, é claro, do processo editorial a que foi submetido.3 E, em todas essas dimensões, as

tentativas de silenciar Carolina só não são mais fortes do que seu próprio desejo de sobrepujá-las e fazer

sua voz ecoar livremente, tal como demonstrado pelo estudo de Elzira Divina Perpétua (2014), A vida

escrita de Carolina Maria de Jesus. Por isso é importante que não privilegiemos nenhum aspecto de sua

literatura em detrimento de outros: todos estão implicados numa mesma lógica e se rebelam contra ela.

Essa é a lógica do despejo. Carolina denuncia esse arranjo social – de motivação primordialmente

histórica, embora tenha variadas implicações práticas na realidade –, representando não apenas

uma realidade miserável, mas também a miséria de sua vida de autora e a miséria do processo de

mercantilização a que foi submetida durante a recepção de sua obra (tal como narrado principalmente em

Casa de alvenaria).4 Vemos, portanto, de que forma as várias dimensões da obra literária são convocadas

por Carolina para servir à denúncia social, ao combate contra o silêncio imposto aos miseráveis e ao

desenvolvimento de uma conscientização histórica, política e social. Mas essa autora faz muito mais do

que isso: trazendo a miséria para a própria linguagem, Carolina inventa uma forma de expressão na qual

rompe com algumas das hierarquias sintáticas, com algumas das imposições gramaticais, e, misturando

variados registros linguísticos, torna possível que as mais graves desgraças não destruam completamente

o desejo de continuar vivendo.

Que se leve um trecho como o seguinte em consideração:

31 de dezembro de 1958. ... A favela está agitada. Os favelados demonstram jubilo

porque findaram um ano de vida.

Hoje uma nortista foi para o hospital ter filhos e a criança nasceu morta. Ela está

tomando soro. A sua mãe está chorando, porque ela é filha única.

Tem baile na casa do Vitor. (Jesus, 1993, p. 131)

A troca súbita dos tempos verbais, a justaposição de quadros de felicidade e de tristeza, a presença de

palavras raras – como “júbilo” e “findar” – combinadas com expressões cotidianas são responsáveis por

destacar a linguagem de Carolina como um aspecto único de sua obra, idiossincrático com relação ao que

se vê tradicionalmente na literatura brasileira. Exemplos disso abundam em sua obra e restringimo-nos

aqui ao mínimo apenas por uma questão de espaço.

3 Para uma abordagem desse problema de teoria literária, conferir Compagnon, 2010 e Adam e Heidmann, 2011.4 Esse processo também foi estudado por Perpétua (2014, p. 180-215).

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338O potencial teórico da obra literária de Carolina encontra-se no emprego dessa arma afiada que ela

forjou para si – qual seja, sua língua ágil e ácida, concisa e precisa – com o fito de denunciar a triste

lógica do despejo e sugerir formas de escapar dela. Espero ainda ter a possibilidade de sugerir com mais

detalhes o funcionamento dessa lógica na representação proposta por Carolina, mas gostaria de pelo

menos apontar as linhas gerais desse processo. A sociedade representada nos diários e outros escritos

da autora organiza-se de modo hierárquico, em grupos socialmente demarcados (os políticos, os homens

brancos, as mulheres brancas, os homens subalternos, as mulheres subalternas, etc.), cada um deles

composto por pessoas que despejam manifestações de violência não apenas entre outros membros de

sua própria classe, mas sobretudo contra aqueles que pertencem às classes hierarquicamente inferiores.

É por isso que gestos de violência são tão frequentemente representados partindo de homens contra

mulheres ou de brancos contra negros (raramente num sentido que contrarie essa lógica). A violência

é sempre repassada adiante e só termina quando é por fim despejada contra um dos grupos que são

incapazes de compreendê-la ou de revidá-la (como é o caso das crianças e dos animais, ambos dignos da

profunda empatia de Carolina).

A escritora descreve esse arranjo de forma precisa e incisiva em toda a sua obra. Em Quarto de despejo,

contudo, a metáfora do despejo revela todo o seu potencial teórico: trabalhando não apenas com as

implicações jurídicas, urbanísticas e domésticas do termo, Carolina faz alusão por meio dessa imagem a

algo que é também de ordem psicológica (que se pense no recalque, no resto ou naquilo que poderíamos

entender como o “quarto de despejo” da consciência), além de literária e linguística (que se pense no

despejo de palavras, às vezes descontroladamente, entre alusões clássicas, bíblicas e contemporâneas,

ou ainda, entre prosaísmos, arcaísmos e neologismos, numa amálgama pulsante e viva). Em todo caso,

a potência de pensamento dessa autora se dá a ver plenamente na incisão com que essa imagem nos

permite refletir sobre os mais diversos campos epistemológicos voltados para uma compreensão da

experiência contemporânea.

E Carolina oferece não apenas o diagnóstico da realidade miserável brasileira – à qual se misturava a

miséria de sua própria vida –, mas indica o prognóstico mínimo para que seja possível revertê-lo pouco

a pouco. A esse respeito, a autora não titubeia sequer um instante: ela afirma incansavelmente o poder

da palavra. Pela palavra ela conscientiza-se da predominância masculina como um processo histórico de

longa data (Jesus, 1993, p. 48). Pela palavra ela denuncia a continuidade da escravização do negro sob as

ordens do capital – com apoio num de seus mais cruéis e duradouros ajudantes, o racismo (Jesus, 1993,

p. 27). Pela palavra, enfim, o sujeito toma consciência da sua condição de sujeito e reivindica um espaço e

um tempo propícios para que sua sobrevivência seja assegurada e sua existência encontre os meios para

se tornar plena: esse poder transformador da palavra ganha na obra de Carolina Maria de Jesus uma

dimensão emancipatória fundamental cuja lição ainda hoje deve ser levada em conta.

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339Não é um acaso, portanto, que os mais abjetos atos de violência contra a autora visem justamente o seu

domínio sobre esse instrumento de transformação. Lutando para impedir o seu desenvolvimento pleno, a

lógica do despejo busca silenciar de todas as formas possíveis a manifestação de uma palavra desejosa de

se conscientizar e se emancipar.5

Tomo a liberdade de citar um trecho mais longo do Diário de Bitita, no qual temos algumas memórias

da infância e da adolescência de Carolina, pois acredito que tudo o que foi afirmado sobre o potencial

teórico e a consciência aguda dessa grande escritora brasileira é revelado aqui de forma evidente:

Eu passava os dias lendo Os Lusíadas, de Camões, com o auxílio do dicionário. Eu ia

intelectualizando-me, compreendendo que uma pessoa ilustrada sabe suportar os

amarumes da vida.

Por intermédio dos livros, eu ia tomando conhecimento das guerras que houve no

Brasil, a guerra dos Farrapos, a guerra do Paraguai. Condenava essa forma brutal e

desumana que o homem encontra para solucionar os seus problemas.

Eu sentava no sol para ler. As pessoas que passavam, olhavam o dicionário e diziam:

- Que livro grosso! Deve ser o livro de são Cipriano.

Era o único livro que os incientes sabiam que existia e existe. Começaram a propalar

que eu tinha um livro de são Cipriano. E comentavam:

- Então ela está estudando para ser feiticeira, para atrapalhar a nossa vida. O feiticeiro

reza, e não vem chuva; o feiticeiro reza, vem a geada.

Quando a minha mãe soube, avisou-me:

- É melhor você parar de ler esses livros, já estão falando que é livro de são Cipriano,

que você é feiticeira. (Jesus, 2014, pp. 179-180)

Diante de tudo o que foi dito, não será surpresa para ninguém o desenlace dessa história: presa sob uma

acusação qualquer de calúnia e difamação, Carolina foi levada para uma cadeia – em companhia de sua

mãe –, na qual dois dias se passaram sem que lhes servissem nada de comida. No terceiro dia, após um

interrogatório sumário e altamente arbitrário, mãe e filha são submetidas a uma sessão de tortura física:

O sargento mandou um soldado preto nos espancar. Ele nos espancava com um

cacete de borracha. Minha mãe queria proteger-me, colocou o braço na minha frente

recebendo as pancadas. O braço quebrou, ela desmaiou, eu fui ampará-la, o soldado

continuou espancando-me. Cinco dias presas e sem comer. (Jesus, 2014, p. 182)

5 A tentativa recente de criminalização do funk é de mesma ordem, ainda que os deslocamentos contextuais impliquem nas

especificidades de cada situação. Para detalhes da história do funk e de sua criminalização, cf. Facina et al (2013).

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340A acusação de feitiçaria, argumento tão comum na história do silenciamento das mulheres ao ser

empregado como justificativa para os mais bárbaros atos de violência, visa destruir a habilidade mais

estimada por Carolina: seu domínio da palavra escrita. Aqui seria necessário destacar a amplitude

histórica desse processo, repetido inúmeras vezes nos mais diversos locais, tendo por vítimas sempre

aquelas pessoas que esboçam uma possibilidade de se voltar contra a lógica do despejo, como é o caso de

Tituba, nos EUA, por exemplo6.

Os agentes da lei – e da lógica do despejo – tentam constantemente silenciar as vozes incansáveis dessas

pessoas, mas elas continuam lutando e não têm se deixado abater. No caso de Carolina, erguendo-se

contra todas as dificuldades impostas por uma sociedade que se recusava a conferir dignidade a uma

mulher negra e pobre, ela manteve a perseverança no poder quase milagroso da palavra: falando,

escrevendo, vivendo, Carolina traçou um caminho e desenvolveu uma obra que constituem um legado

inestimável para a literatura e o pensamento não apenas do Brasil, mas de todo o mundo.7 Darmo-nos

conta desse legado – com todas as suas riquezas e possibilidades, considerando também as contradições

inerentes à obra de alguém sob a mais nefasta influência da lógica do despejo – é somarmos nossa voz à

voz de Carolina e contribuirmos para a continuidade de uma luta que está sempre apenas começando,

pois “[s]e é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.” (Jesus, 1993, p. 58).

6 A estudiosa Nathália Izabela Rodrigues Dias, avaliando um processo análogo na condenação que pesou sobre Tituba nos Estados

Unidos – não apenas em sua vida, mas também na imagem que se formou em torno dela, posto que seu injusto processo jamais teve

ocasião de ser revisto –, indica que sem uma tomada de consciência do poder transformador do discurso não há possibilidade do

subalterno reverter sua situação. A reescrita da história de Tituba por Maryse Condé é uma clara afirmativa da necessidade de que

diferentes vozes se unam a fim de amplificar os ecos das primeiras vozes que nos indicaram uma saída possível. O trabalho de Dias,

intitulado Desestabilização e ressignificação das imagens em Maryse Condé: uma nova leitura de Tituba, foi apresentado no XV Congresso

Internacional da ABRALIC, no dia 09 de agosto de 2017 no Rio de Janeiro, mas ainda não foi publicado em formato de texto.7 Sobre a recepção de Carolina no estrangeiro, conferir ainda Perpétua (2014).

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341REFERÊNCIAS

Adam, J. M., & Heidmann, U. (2011). O texto literário: por uma abordagem interdisciplinar. (J. G. da S. Neto

e M. das G. Soares, trads.). São Paulo: Cortez.

Baudelaire, C. (1868). Les Fleurs du Mal. Paris: Michel Lévy Frères, Librairies Éditeurs.

Benjamin, W. (2015). Baudelaire e a modernidade. (J. Barrento, trad.). Belo Horizonte: Autêntica Editora.

Compagnon, A. (2010). O demônio da teoria: literatura e senso comum. (2a ed., C. P. B. Mourão e C. F.

Santiago, trads.). Belo Horizonte: Editora UFMG.

Dantas, A. (1993). A atualidade do mundo de Carolina. In: C. M. de Jesus, Quarto de despejo: diário de uma

favelada (pp. 3-5). São Paulo: Editora Ática.

Dias, N. I. R. (2017). Desestabilização e ressignificação das imagens em Maryse Condé: uma nova leitura

de Tituba. In XV Congresso Internacional da ABRALIC. Rio de Janeiro: RJ. (No prelo.)

Facina, A. et al (Org.). (2013). Tamborzão: olhares sobre a criminalização do funk. Rio de Janeiro: Revan.

Heródoto. (2015). Histórias: Livro I, Clio. (M. A. de O. Silva, trad.). São Paulo: Edipro.

Jesus, C. M. de. (2014). Diário de Bitita. São Paulo: SESI-SP Editora.

Jesus, C. M. de. (1993). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Editora Ática.

Perpétua, E. D. (2014). A vida escrita de Carolina Maria de Jesus. Belo Horizonte: Nandyala.

Spivak, G. C. (2014). Pode o subalterno falar? (S. R. G. Almeida, M. P. Feitosa e A. P. Feitosa, trads.). Belo

Horizonte: Editora UFMG.

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342

autoria

resumo

JULINÉIA SOARES

Psicóloga e psicanalista crítica. Mestra em Estudos Psicanalíticos pelo Programa de Pós-

Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

Quarto de despejo e a compulsão à repetição da realidade na vida de mulheres negras e pobres

E se, em vez de sonhar com a fartura, Carolina Maria de Jesus tivesse sonhado com a fome?

Essa é a pergunta que norteia o trabalho apresentado no VI Congresso Nacional de Psicanálise,

Direito e Literatura que tenta transmitir, através deste texto, a discussão proposta no evento. O

cenário hipotético deve servir para fazer com que psicanalistas possam refletir sobre o trabalho

que estão realizando dentro dos seus consultórios e avaliar até que ponto o mesmo está a serviço

da análise ou da manutenção do status quo, especialmente quando a analisanda ou o analisando

é uma pessoa negra. Realidade e fantasia são colocadas lado a lado, passando pela abordagem

feita por Freud em “Além do princípio do prazer” acerca da compulsão à repetição e da realização

dos desejos através dos sonhos; e a “repetição” presente na vida das mulheres negras e pobres e

ocasionada pelo racismo e pelo machismo é associada ao conceito psicanalíticos de “compulsão à

repetição” de modo provocativo.

PALAVRAS-CHAVE: mulheres negras, pobreza, compulsão à repetição, desejo, sonho

SUMÁRIO

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343Conforme Audálio Dantas, jornalista que descobriu Carolina Maria de Jesus, uma mulher preta catadora

de materiais descartados e escritora autora do livro Quarto de Despejo, no Prefácio ao livro, “A fome

aparece no texto com uma frequência irritante. Personagem trágica, inarredável. Tão grande e tão

marcante que adquire cor na narrativa tragicamente poética de Carolina” (Jesus, 2016, p. 3). Na vida real

de Carolina, a fome poderia facilmente ser interpretada por analistas contemporâneos como algo que

fizesse parte da compulsão à repetição da autora e personagem, desde quando se caracteriza como algo

que persegue a mulher durante todo o quadro literário e que lhe provoca tanto desprazer.

Tomando-se a irritação de Audálio Dantas (homem branco de classe privilegiada) diante da personagem

do livro – “fome” –, e colocando-a ao lado de certas impressões e intervenções feitas hoje por analistas

e outras e outros psicoterapeutas (como denunciado por analisandas, analisandos e clientes negras e

negros1), e somando-se a isso ainda a interpretação de Freud de que mesmo as experiências em que o

sujeito se encontra posicionado de modo passivo implicam na revelação de uma compulsão à repetição

inconsciente, torna-se fácil fazer a leitura de que Carolina Maria de Jesus provavelmente gozava com

sua fome, trabalhando para mantê-la, ainda que não se saiba muito bem explicar como. Tratamos aqui

da máxima tentativa de responsabilização do sujeito que encontramos nos consultórios de psicanálise.

Mas como responsabilizar Carolina dessa forma, quando a narrativa da mulher negra evidencia toda uma

atividade voltada para o sonho de não encarar mais a fome?

Segundo Freud (1920/2006),

Essa ‘perpétua recorrência da mesma coisa’ não nos causa espanto quando se refere a

um comportamento ativo por parte da pessoa interessada, e podemos discernir nela

um traço de caráter essencial, que permanece sempre o mesmo, sendo compelido

a expressar-se por uma repetição das mesmas experiências. Ficamos muito mais

impressionados nos casos em que o sujeito parece ter uma experiência passiva, sobre

a qual não possui influência, mas nos quais se defronta com uma repetição da mesma

fatalidade. É o caso, por exemplo, da mulher que se casou sucessivamente com três

maridos, cada um dos quais caiu doente logo depois e teve que ser cuidado por ela em

seu leito de morte. (p. 33)

De acordo com Freud (1920/2006), ainda no texto clássico Além do princípio do prazer, a impossibilidade

de que o organismo seja preservado quando a principal lei que governa o funcionamento psíquico é o

princípio do prazer decorre na apresentação do princípio de realidade que, ainda que tenha o objetivo

principal de fazer com que a satisfação libidinal ocorra finalmente, exige e efetua o seu adiamento, faz

1 A título de exemplo, em postagem na rede social Twitter de 10 de outubro de 2017, Nega Drama relata o seguinte: “queria uma

psicóloga preta e politizada pra chamar de minha. a minha eh uma branca sem noção nenhuma da vida q fica me aconselhando

baseada na vida de branca classe média dela”.

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344recusar inúmeras oportunidades de obtê-la e promove a tolerância de certas doses de desprazer para

que a satisfação possa então ocorrer. Analisando, contudo, a realidade da mulher negra e pobre Carolina

Maria de Jesus, podemos ver que ali se impõe reiteradamente uma objeção à satisfação libidinal que

muitas vezes nem chega a passar pelo sujeito. Trata-se do impedimento de satisfação colocado pela

realidade mesma.

Na vida das mulheres negras e pobres, é como se houvesse uma compulsão à repetição da realidade

se impondo sobre suas vidas; algo tão mortífero e tão complexo quanto é a compulsão à repetição de

que falamos em psicanálise, porém operando desde fora do sujeito e se impondo sobre ele em todos os

níveis da sua existência. Apesar de haver brecha para que o sujeito possa agir de forma a quebrar o ciclo

(de miséria, em Quarto de despejo) e buscar ascender socialmente, como faz Carolina Maria de Jesus ao

encontrar Audálio Dantas e seduzi-lo até que o mesmo vá publicar o seu livro, é fato que a repetição das

experiências de frustração da realização do desejo imposta pela realidade social na vida desses sujeitos

dificulta ainda mais seu desenvolvimento subjetivo e se apresenta como algo que não pode ser tratado

senão desde uma perspectiva social.

Felizmente, em Quarto de despejo, Carolina se utiliza de uma proteção brilhante diante da possível

interpretação de psicanalistas que poderiam fazer retornar sobre ela a condição de mulher que tem

fome: Carolina sonha! Mas Carolina não sonha com a fome que lhe persegue – ao contrário, ela sonha

com a fartura:

21 de maio [de 1958] Passei uma noite horrível. Sonhei que eu residia numa casa

residível, tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada. Eu ia festejar o

aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas panelinhas que há

muito ela vive pedindo. Porque eu estava em condições de comprar. Sentei na mesa

para comer. A toalha era alva ao lírio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e

salada. Quando fui pegar outro bife despertei. Que realidade amarga! Eu não residia

na cidade. Estava na favela. Na lama, as margens do Tietê. E com 9 cruzeiros apenas.

Não tenho açúcar porque ontem eu saí e os meninos comeram o pouco que eu tinha.

(Jesus, 2016, p. 35)

Os sonhos e as fantasias de fartura protegem Carolina do olhar de psicanalistas que poderiam se

identificar com Audálio Dantas no recebimento da sua narrativa. Se, como Freud (1920/2006) entende, o

sonho é uma realização de desejo, então o desejo de Carolina não pode ser lido como desejo de continuar

com fome, pelo contrário: seu desejo que mais se pronuncia é o desejo de sair daquela condição, é o

desejo de ter o que comer e de ter lugar confortável para morar.

Entretanto, me preocupa a seguinte pergunta: e se Carolina sonhasse com a fome e estivesse em um

consultório qualquer de psicanálise? Que interpretações lhe seriam reservadas? A de que a manutenção

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345da condição de fome seria ou poderia ser uma compulsão a repetição sua? Um desejo de continuar

vivendo em condição de miséria? A vivência do prazer através da desgraça?

Também em Além do princípio do prazer, Freud (1920/2006) apresenta a hipótese de que o sonho pode

ser não só uma realização do desejo, mas que pode ser também um artifício de elaboração de algo de

fundo traumático. É muito comum, ele diz, que uma pessoa que tenha passado por um evento traumático

como um acidente ou a guerra, tenha sonhos que fazem repetir e repetir aquela cena, acrescentando aos

sonhos da neurose traumática uma nova interpretação:

A realização de desejo é, como sabemos, ocasionada de maneira alucinatória pelos

sonhos e sob a dominância do princípio de prazer tornou-se função deles. Mas não

é a serviço desse princípio que os sonhos dos pacientes que sofrem de neuroses

traumáticas nos conduzem de volta, com tal regularidade, à situação em que o trauma

ocorreu. Podemos antes supor que aqui os sonhos estão ajudando a executar outra

tarefa, a qual deve ser realizada antes que a dominância do princípio de prazer possa

mesmo começar. Esses sonhos esforçam-se por dominar retrospectivamente o

estímulo, desenvolvendo a ansiedade cuja omissão constituiu a causa da neurose

traumática. Concedem-nos assim a visão de uma função do aparelho mental, visão

que, embora não contradiga o princípio de prazer, é sem embargo independente dele,

parecendo ser mais primitiva do que o intuito de obter prazer e evitar desprazer. (p. 64)

Ou seja, nas neuroses vistas como “neuroses traumáticas”, os sonhos que repetem a cena traumática são,

em verdade, sonhos de elaboração. Mas não poderia ser vista a experiência da fome tal como descrita

por Carolina Maria de Jesus (e que tem o poder de irritar as elites, tal como é evidenciado por Audálio

Dantas, muito mais do que despertar a empatia desse grupo) uma experiência traumática? Ou só pode ser

vista como neurose traumática aquela que acomete um grupo socialmente privilegiado que representa

uma minoria social?

É verdade que os sonhos de ansiedade não excluem em absoluto a presença do princípio do prazer e da

compulsão à repetição tal como a conhecemos em psicanálise. Mas, como explica Freud (1920/2006),

esses sonhos não trazem consigo a função original de realizar um desejo. Então, não pareceria razoável

interpretar que os sonhos de guerra representem o desejo do sujeito de vivê-la indefinidamente. Por que

então pareceria razoável a interpretação imediata de que Carolina desejaria continuar a viver na miséria

caso ela sonhasse não com a fartura, mas novamente com a fome?

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346Esse, então, pareceria ser o lugar para, pela primeira vez, admitir uma exceção à

proposição de que os sonhos são realizações de desejos. Os sonhos de ansiedade,

como repetida e pormenorizadamente demonstrei, não oferecem essa exceção, nem

tampouco o fazem os ‘sonhos de castigo’, porque eles simplesmente substituem a

realização de desejo proibida pela punição adequada a ela, isto é, realizam o desejo

do sentimento de culpa que é a reação ao impulso repudiado. É, porém, impossível

classificar como realizações de desejos os sonhos que estivemos debatendo e que

ocorrem nas neuroses traumáticas, ou os sonhos tidos durante as psicanálises, os

quais trazem à lembrança os traumas psíquicos da infância. Eles surgem antes em

obediência à compulsão à repetição, embora seja verdade que, na análise, essa

compulsão é apoiada pelo desejo (incentivado pela ‘sugestão’) de conjurar o que

foi esquecido e reprimido. Dessa maneira, pareceria que a função dos sonhos, que

consiste em afastar quaisquer motivos que possam interromper o sono, através da

realização dos desejos dos impulsos perturbadores, não é a sua função original. Não

lhes seria possível desempenhar essa função até que a totalidade da vida mental

houvesse aceito a dominância do princípio de prazer. Se existe um ‘além do princípio

de prazer’, é coerente conceber que houve também uma época anterior em que o

intuito dos sonhos foi a realização de desejos. (Freud, 1920/2006, p. 43)

Então a pergunta que eu gostaria de fazer neste texto é a seguinte: não poderia, caso Carolina ou outra

mulher negra e pobre que estivesse em nosso divã e que sonhasse com a fome, não poderiam ser esses

sonhos compreendidos como uma tentativa de elaboração em nenhuma hipótese? Que via facilitada é

essa que, mesmo nos consultórios de psicanálise, onde se supõe que as discussões sociais não devam

aparecer, se apresenta para responsabilizar unicamente os sujeitos que se encontram nos níveis mais

baixo na hierarquia social e “culpar (novamente) a vítima”? O que as intervenções psicanalíticas que

seguem nessa direção revelam sobre as e os analistas? Trabalharão essas intervenções mais para a análise

do sujeito ou para a manutenção do status quo?

Não é o caso, obviamente, de retirar desde o princípio das mulheres negras e pobres que se submetem

à análise toda e qualquer responsabilidade sobre suas vidas e erradicar da sua análise a possibilidade

de que talvez haja gozo com a sua condição. Afinal, cada caso, cada analisanda e cada analisando é

única e único; e não deve o tratamento psicanalítico em nenhuma hipótese furtar-se de trabalhar com a

singularidade. Entretanto, faz-se urgente, além de necessário, pensar sobre o lugar ocupado socialmente

por analistas dentro dos consultórios de psicanálise e voltar a atenção para as formas de atendimento

que podem, em vez de buscar tratar o sujeito, tornar ainda mais grave o seu traumatismo e provocar o

surgimento de novas e novas feridas narcísicas. É preciso que os sujeitos negros e que as mulheres negras

e pobres possam ser efetivamente escutadas nos consultórios de psicanálise e que estes se apresentem

como um lugar seguro para que elas e eles possam de fato se colocar a trabalho.

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347Para tanto, é necessário que as analistas e os analistas não deixem de buscar compreender a organização

social de que fazem parte nem que cedam à sedução neoliberal de tomar o consultório de psicanálise

por um lugar completamente protegido dos conflitos da organização social e das disputas de poder.

Uma posição mais crítica socialmente certamente permitirá à e ao profissional ver que a realidade das

mulheres negras e pobres não é a mesma realidade de outros sujeitos e que pode ser que muitas vezes

essa realidade se imponha de um jeito que a tradicional análise da fantasia já não se apresente mais

como suficiente.

Especialistas na fantasia, analistas não podem se eximir da responsabilidade de olhar também para

as realidades dos sujeitos. A fim de contribuir para essa não eximição, evoco a alta dose de realidade

presente no discurso de Viola Davis quando recebeu o prêmio de melhor atriz de série dramática – a

primeira mulher negra a receber tal prêmio:

Na minha mente, vejo uma linha. E depois dessa linha, vejo campos verdes, flores

adoráveis e lindas mulheres brancas com seus braços esticados na minha direção,

depois dessa linha. Mas não consigo chegar lá. Não consigo passar dessa linha. Quem

disse isso foi [a ex-escravizada e abolicionista americana] Harriet Tubman, nos anos

1800. E deixem-me dizer algo a vocês: a única coisa que separa as mulheres negras de

qualquer outra pessoa é a oportunidade. Você não pode ganhar um Emmy por papéis

que simplesmente não existem. (Pécora, 2015, s/p)

A única coisa que separa as mulheres negras, aquelas que são a base da hierarquia social, de qualquer

outra pessoa é a oportunidade. É crucial que nós, psicanalistas, não percamos de vista que essa ausência

de oportunidade não está localizada do lado da fantasia.

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348REFERÊNCIAS

Freud, S. (2006). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas

Completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 18, pp. 13-75). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho

original publicado em 1920)

Jesus, C. M. (2016). Quarto de despejo. Recuperado de https://historiaafrosuzano.files.wordpress.

com/2016/10/1960-quarto-de-despejo-p1.pdf

Pécora, L. (2015). Veja o discurso de Viola Davis no Emmy 2015. Recuperado de http://mulhernocinema.

com/noticias/veja-o-discurso-de-viola-davis-no-emmy-2015/.

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autoria

resumo

MARIANA RÚBIA GONÇALVES DOS SANTOS

Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

Desmentido e trauma na cena social: efeitos sobre a constituição subjetiva e vias possíveis de elaboração

O presente texto se vale das noções de desmentido e trauma formuladas por Ferenczi

para a compreensão da violência racista experienciada pelos sujeitos negros na cena

social brasileira. Partindo do caráter relacional e, portanto, alteritário dos processos de

subjetivação, problematiza as condições de possibilidade bem como os efeitos que a recusa do

reconhecimento, engendrada pelo racismo, pode acarretar para a constituição subjetiva.

PALAVRAS-CHAVE: psicanálise, racismo, Ferenczi, Laplanche, história da África.

SUMÁRIO

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350“Construímos o que somos a partir daquilo que recebemos do outro” (Belo, 2015). Decidi começar este

ensaio com essa frase – diga-se de passagem, uma das mais bonitas e significativas que já ouvi – proferida,

há alguns semestres, por meu orientador durante um dos encontros do grupo de estudos do qual faço parte.

E inicio com ela não apenas por sua beleza, mas por sua capacidade de resumir de forma simples e

profunda uma noção muito cara a todos aqueles que se dedicam ao estudo da constituição psíquica, a

saber: a importância da alteridade nos processos de subjetivação.

Ao analisar os períodos iniciais da vida humana, Laplanche (1992) enfatiza o estado de desajuda do

recém-nascido e sua incapacidade de se sustentar sem o auxílio de outrem. O contato com o adulto e,

por extensão, com o mundo adulto faz-se, portanto, inevitável e configura-se como uma situação comum

a todos os que foram inseridos em uma comunidade humana, arranjo nominado pelo autor de situação

originária ou situação antropológica fundamental.

A partir deste contato, isto é, das interações diárias e da dispensação de cuidados, os adultos

transmitiriam aos bebês uma série de mensagens que, aos poucos, e com a ajuda desses mesmos adultos,

tornar-se-iam passíveis de serem traduzidas, metabolizadas e elaboradas; dando, por fim, origem tanto

às concepções que o sujeito tem de si (representadas por seu ego e por tudo aquilo que reconhece como

seu), quanto à sua alteridade interna (ou dimensão inconsciente) (Laplanche, 1998).

Já em Ferenczi, a ênfase recai sobre a vulnerabilidade do sujeito na relação. Em seus trabalhos são

frequentes as reflexões acerca dos modos de acolhimento dos bebês e crianças por suas famílias.

Para o autor, o mau acolhimento bem como o tratamento inadequado dispensado pelos adultos às

crianças durante as primeiras fases da vida – seja ele advindo da falta de tato na condução dos cuidados,

da hipocrisia ou mesmo do excesso de paixão – poderiam acarretar em efeitos nocivos e mesmo

devastadores para a constituição psíquica. Conforme pontua em seu artigo de 1929, “queria apenas

indicar a probabilidade do fato de que crianças acolhidas com rudeza e sem carinho morrem facilmente e

de bom grado” (Ferenczi, 2011a, p.58), seja se valendo de meios orgânicos para tal ou das diferentes formas

de afecção psíquica capazes de transformar a vida em uma experiência aversiva e desprovida de prazer.

Essa ênfase no aspecto relacional e, portanto, alteritário da constituição da subjetividade ressaltada

por esses dois autores, ganha relevo na noção de trauma formulada por Ferenczi. Conforme nos explica

Gondar (2012), para Ferenczi, o caráter patogênico de um traumatismo estaria menos vinculado

à violência do evento em si, considerado excessivo para o psiquismo, do que à desconsideração do

ocorrido, à afirmação de que nada aconteceu e, por conseguinte, à negação do sofrimento vivenciado

pelo sujeito que poderia ter lugar num segundo tempo.

Nesse sentido, a incompreensão, a punição, a banalização do ocorrido e mesmo o silêncio de morte

dos adultos diante da injúria sofrida e do pedido de ajuda da criança, desempenhariam papel central

na dinâmica do traumatismo descrita por Ferenczi (2011b, 2011c). A nosso ver, o caráter patogênico

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351dessa forma de lidar com a comoção e com o sofrimento de outrem se torna compreensível na medida

em que se alcança o entendimento de que, nas palavras de Gondar (2012), em última instância “o que se

desmente não é o evento, mas o sujeito” (p. 196) em sua capacidade perceptiva, afetiva e subjetiva.

Ainda que a noção ferencziana de “trauma” tenha sido formulada tomando por base o psiquismo

infantil, mais especificamente, os traumas decorrentes de abuso sexual durante a infância, a ênfase

dada pelo autor à dimensão relacional e ao papel do outro diante do sujeito violentado parece autorizar

a transposição deste conceito para a cena social, uma vez que, tanto nossa vulnerabilidade diante de

ações violentas quanto à necessidade de reconhecimento e validação enquanto sujeitos não nos parecem

características restritas ao período da infância.

Gondar (2012) demonstra a pertinência deste movimento ao comentar os trabalhos que vem sendo

desenvolvidos no campo da sociologia com base no conceito de trauma social; nos quais os pesquisadores

voltam-se para o estudo de coletivos e sociedades traumatizadas pela ação de grandes catástrofes, sejam

elas fruto de acidentes naturais ou da violência humana.

Nessas situações verificou-se que as catástrofes causadas por acidentes ecológicos ou naturais não

possuíam por si só o potencial de desagregar uma comunidade, podendo mesmo vir a reforçar os laços

entre seus membros (Gondar, 2012). De modo geral, o sentimento de aniquilamento, as situações capazes

de destruir os vínculos entre os sujeitos e de quebrar a confiança básica em si e no mundo, nas palavras da

autora, seriam aquelas “provocadas por outros seres humanos que não reconhecem o seu erro” (Gondar,

2012, p.198). Ainda de acordo com Gondar (2012), citando Kai Erikson,

O mais doloroso para as vítimas, escreve [Erikson], é “que as pessoas encarregadas

de uma empresa neguem toda responsabilidade quando ocorre uma desgraça

grave, não ofereçam nenhuma desculpa, não expressem nenhum arrependimento e

desapareçam de vista, por trás de um muro de advogados e legalismos”. (p. 198)

Constatação que permite dimensionar a importância do reconhecimento nos processos de elaboração

psíquica, autorizando-nos mesmo a formulá-lo como uma “necessidade vital que possui todo indivíduo de

ser visto, ouvido, aprovado e respeitado pelo seu entorno” (Gondar, 2017, p. 193).

No entanto, se é verdade que a cultura nos fornece um universo simbólico possível, no qual iremos nos

inserir e constituir a partir das mensagens fornecidas pelos outros – estando incluídos nessa categoria

os cuidadores primários, a família ampliada, os grupos de pares e o meio circundante –, ela nos fornece

também esquemas tradutivos com maior ou menor grau de estruturação, isto é, vias facilitadas de

tradução capazes de conferir alguma ordem ao nosso caos pulsional. Estas últimas, é importante

ressaltar, em grande medida influenciadas pelas concepções dominantes no meio social.

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352Diante dessas formulações que apontam para a importância da alteridade, do meio cultural e da

dimensão do reconhecimento para a constituição do si mesmo, bem como para o efeito traumático

que pode advir a partir da ação do desmentido, talvez caiba formular a seguinte pergunta: e quando

a catástrofe em questão iniciou-se há anos atingindo, em cheio, gerações passadas? Uma catástrofe

que, embora seus efeitos continuem a serem sentidos e duramente experienciados pelos sujeitos na

contemporaneidade, teve a clareza quanto aos responsáveis anuviada com o passar do tempo e distorcida

com o auxílio de mecanismos ideológicos? Esse nos parece o caso da violência racista experienciada hoje

pelos sujeitos negros na cena social brasileira.

Ao prefaciar o livro de Neusa Santos Souza (1983) dedicado à investigação das vicissitudes da identidade

do negro brasileiro em ascensão social, Jurandir Freire Costa (1985) afirma que

ser negro é ser violentado de forma constante, continua e cruel, sem pausa ou

repouso, por uma dupla injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de Ego do sujeito

branco e a de recusar, negar e anular a presença do corpo negro. (p.104)

Esta, de acordo com o autor, se configuraria como a espinha dorsal da violência racista. Porém, para

entendermos as condições de possibilidade do estabelecimento dessa dupla injunção ou, em outras

palavras, para compreendermos um pouco melhor o solo em que ela se sustenta e do qual tira suas forças

far-se-á necessário direcionarmos nossa atenção para eventos ocorridos séculos atrás.

Lopes (1995) fala sobre a existência de “três grandes momentos de interpretação da história de

África” (p. 21) ou das três grandes historicidades. Nosso enfoque irá se deter na primeira delas devido

à profundidade de suas raízes e à extensão de seus efeitos sobre a constituição psíquica dos sujeitos

negros e não negros. Composta em sua maioria pelos trabalhos de africanistas estrangeiros, a primeira

grande historicidade foi denominada por Lopes perspectiva da inferioridade africana.

Essa perspectiva, que na classificação proposta pelo autor leva em seu nome seu pressuposto de base,

monopolizou as produções sobre a história da África até a metade do século XX, quando tiveram início as

produções teóricas de africanistas africanos (Wedderburn, 2005).

Nesse sentido, talvez caiba abrir aqui um parêntesis e lembrar, juntamente com Wedderburn (2005),

o fato de que a história, assim “como todas as disciplinas humanísticas, ... é um campo movediço,

prestando-se a múltiplas distorções. O conjunto de elementos que compõem a subjetividade é de fato o

que determina a ‘interpretação’ ou ‘tradução’ da realidade do outro” (p. 134). O produto historiográfico,

portanto, completaria Lopes (1995), não possui “nenhuma independência ou autonomia. Depende

inteiramente do momento e ideologia que influenciam a sua concepção” (p. 27).

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353De acordo com Wedderburn (2005), desde o primeiro milênio a.C. “a África tem sido o lugar do mundo

que sofreu as mais prolongadas e devastadoras invasões” (p. 138), cuja extensão do impacto cumulativo

negativo sobre a realidade do continente, de seus povos e descendentes ainda estaria por ser determinada.

E, no caso desse continente, à violência dos ataques e espólios acrescenta-se ainda aquela derivada da

construção de uma narrativa mitológica preconceituosa acerca da África e dos africanos que faz com

que tudo a eles associado passe a ser apreciado a partir dos clichês e estereótipos que tiveram origem

no pressuposto de inferioridade. Mitologia que parece ter encontrado sua premissa e respaldo nas bulas

papais do século XV, “que deram o direito aos Reis de Portugal de despojar e escravizar eternamente os

Maometanos, pagãos e povos pretos em geral” (Lopes, 1995, p. 22).

Como bem nos lembra Wedderburn (2005), nunca se questionou se os outros povos do globo “criaram ou

não com suas próprias mãos as suas civilizações. Aceita-se facilmente que eles desenvolveram formas de

escrita, construíram impressionantes complexos arquitetônicos, realizaram descobertas científicas, ou

criaram sistemas filosóficos e religiosos originais” (p.139). Atitude semelhante, porém, não é encontrada

quando revisitamos grande parte dos escritos sobre a história da África. Conforme denuncia Lopes

(1995), quando se trata dos povos africanos “a técnica da estatuária dos Yoruba é vista como vinda do

Egipto; a arte do Benin associada aos portugueses; as infra-estruturas arquitectónicas do Zimbabwe obra

provável de técnicos árabes; as cidades malinas obras de influência oriental” (p. 23). Mesmo os cereais

utilizados na África têm sua origem atribuída à Ásia do Sudeste, e os extraordinários conhecimentos

astronômicos desenvolvidos pelos Dogon, quando comparado aqueles desenvolvidos pelas outras

sociedades pré-científicas, atribuídos a um gaulês mais avançado que a ciência da época que um dia

poderia ter se aventurado por aquelas paragens (Lopes, 1995).

Mais do que proporcionar uma visão histórica distorcida, a nosso ver, esses exemplos expressam uma

clara recusa da alteridade, cujo potencial de aniquilamento subjetivo se faria presente ainda hoje, na

medida em que reforçam o pressuposto da inferioridade africana ao mesmo tempo em que minam as

possibilidades de os sujeitos negros construírem uma representação e identificação com as gerações

passadas enquanto coletivos capazes de protagonizarem suas próprias histórias.

Parece-nos que, ao negarem a existência do fato histórico africano antes da colonização – que, diga-se de

passagem, “só pode ser factualmente demonstrada no último quartel do século XIX” (Lopes, 1995, p.22)

– ou, ainda, ao descreverem a história da África como isolada da história do resto do mundo, furtando-se

a nomear as maneiras pelas quais “a evolução dos povos africanos interferiu e/ou influenciou eventos

nas diversas sociedades do mundo e não somente o inverso” (Wedderburn, 2005, p.141), segue-se a

mesma tendência, dificultando a inteligibilidade da história do continente, bem como a identificação

com modelos de agência e protagonismo, contribuindo uma vez mais para o reforço dos estereótipos

associados à perspectiva da inferioridade africana e para a reiteração do trauma e do desmentido através

da violência racista.

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354Em um cenário como este, a proposição e aprovação de medidas como a Lei n. 10.639 que estabelece

a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira em escolas públicas e particulares de

ensino fundamental e médio, se configura como uma atitude de extrema importância (Brasil, 2003). Pois

ao mesmo tempo em que reconhece o tratamento inadequado historicamente dispensado aquele grupo

étnico, abre espaço e investe em ações para evitar que esse tratamento continue a ser reproduzido.

Por fim, cabe ressaltar que ainda que optemos por não abordar esses temas de maneira abstrata ou por

não nos engajarmos nas muitas frentes de atividade, luta e movimentos políticos e sociais, ao optarmos

pela clínica – e aqui tomo a liberdade de parafrasear Gondar (2012) –, lidaremos com essas questões

concretamente por meio de sujeitos traumatizados pela violência racista tenha ela ocorrido em ato, seja fruto

dos desmentidos históricos ou da hipocrisia social, cujos efeitos poderão ser dos mais variados e implicar em

diferentes níveis de sofrimento. Costa (1985) elenca alguns deles: internalização de um ideal de ego branco

inatingível; desvalorização dos próprios atributos em favor da norma psico-sócio-somática imposta; relação

persecutória com o corpo que, pela ação dos ideais, não pode ser vivido como fonte de prazer; ou mesmo o

aniquilamento subjetivo. E neste ponto desta argumentação, estabelece-se um imperativo, conforme explicita

Gondar (2012), não é possível a adoção “de uma postura neutra a respeito: ou se reconhece alguém ou se o

desmente, sendo a neutralidade uma atitude produtora de desmentidos” (p. 200).

Diante de sujeitos atingidos por ações traumáticas caberia ao analista em primeiro lugar reconhecer,

“dar crédito ao trauma, validando as percepções e sentimentos daquele que sofreu a violência” (Gondar,

2017, pp. 193-194). Em outras palavras, caberia a ele contribuir para a criação de um espaço potencial

em que as narrativas dos sujeitos, ou a ausência delas, possam ser acolhidas sem a expectativa de

sistematização ou coerência, um espaço isento da postura de suspeição que busca flagrar no relato uma

posição subjetiva ou formação inconsciente (Gondar, 2017). Com a adoção dessa postura por parte do

analista e através da reabertura da situação originária, tal qual proposta por Laplanche (1992, 1998),

acreditamos ser possível inaugurar uma experiência capaz de fazer frente à ação do desmentido, bem

como recolocar em jogo os processos de tradução e destradução capazes de proporcionar a construção

de novas concepções de si.

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355REFERÊNCIAS

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116). Rio de Janeiro: Edições Graal.

Ferenczi, S. (2011a). A criança mal acolhida e sua pulsão de morte. In S. Ferenczi, Obras Completas Sándor

Ferenczi. (pp. 55-60). São Paulo: Martins Fontes.

Ferenczi, S. (2011b). Análises de crianças com adultos. In S. Ferenczi, Obras Completas Sándor Ferenczi. (pp.

79-95). São Paulo: Martins Fontes.

Ferenczi, S. (2011c.). Reflexões sobre o trauma. In S. Ferenczi, Obras Completas Sándor Ferenczi. (pp. 125-

135). São Paulo: Martins Fontes.

Gondar, J. (2012). Ferenczi como pensador político. Cadernos de Psicanálise – CPRJ. 34(27), 193-210.

Recuperado de http://www.cprj.com.br/imagenscadernos/caderno27_pdf/16-CADERNOS_DE_

PSICANALISE_27_2012_Ferenczi_como_pensador_politico.pdf.

Gondar, J. (2017). O analista como testemunha. In E. S. Reis, & J. Gondar (Eds.), Com Ferenczi: clínica,

subjetivação, política. (pp. 186-198). Rio de Janeiro: 7 Letras.

Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise. (C. Berliner, trad.). São Paulo: Martins Fontes.

Laplanche, J. (1998). Objetivos do processo psicanalítico. Cadernos de Psicanálise, 14(17), 80-99.

Brasil. Lei n. 10.639/03, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que

estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a

obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Recuperado de

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm.

Lopes, C. (1995). A pirâmide invertida: Historiografia africana feita por africanos. Actas do Colóquio

Construção e Ensino da História da África. (pp. 21-29). Lisboa: Linopazas.

Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social.

Rio de Janeiro: Edições Graal.

Wedderburn, C. M. (2005). Novas bases para o ensino da história da África no Brasil. Educação anti-

racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº 10.639/03. (pp. 133-166). Brasília: Ministério da Educação,

Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade.

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autoria

resumo

CLÁUDIO LUIZ GONÇALVES DE SOUZA

Advogado. Mestre em Direito Empresarial. Doutorando em Direito Público na Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais. Professor do Curso de Direito da PUCMinas.

CONTATO: [email protected]

O Direito e a ascendência do racismo como forma de manipulação: reflexos no Poder Judiciário Brasileiro.

Exsurge o alvorecer de um novo tempo, em que se completam 130 anos da “abolição” da

escravatura no Brasil, com a promulgação da “Lei Áurea” em 1888. Da mesma sorte, aproxima-

se também a data comemorativa dos 30 anos da promulgação da Constituição Federal de

1988 que, por muitos, é denominada de “Constituição Cidadã” num Estado Democrático de

Direito, conquanto reconhece a dignidade do homem e dos seus direitos, iguais e inalienáveis,

como fundamento de liberdade, da justiça e da paz. Não obstante, ao refletirmos sobre os

aspectos de natureza política e jurídica que permeiam o Estado Democrático de Direito no

Brasil, não podemos afastar a notória ascendência do racismo como forma de manipulação

em nossa sociedade, bem como seus reflexos no Poder Judiciário. O racismo no Brasil tem por

característica a prática de discriminação indireta, onde a mesma costuma aparecer de forma

dissimulada e de difícil identificação até mesmo para aqueles que sofrem “literalmente” na pele

seus nocivos efeitos. Ainda que se vislumbre alguma ascensão social, a mesma não elimina a

discriminação racial. Lado outro, inegável que a questão do racismo também impacta nos filtros

subjetivos nas decisões dos magistrados brasileiros. Destarte, o objetivo precípuo do presente

artigo é o de abordar sobre o Direito e a ascendência do racismo como forma de manipulação e

seus reflexos no poder judiciário brasileiro, sob a visão de importantes pensadores e ao lume da

jurisprudência sobre o crime de racismo e injúria racial num jogo perverso de manipulação.

PALAVRAS-CHAVE: direito, racismo, injúria racial, preconceito, jurisprudência.

SUMÁRIO

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357INTRODUÇÃO

O presente texto traz à baila uma análise sobre a questão concernente ao racismo no Brasil, sua

ascendência e utilização como mecanismo de manipulação de classes sociais e a operação do

Direito, como ferramenta de homologação. A identificação do crime de racismo perpassa pelo

debate e compreensão da sua tipificação legal, mas, e, principalmente, sobre o contexto fático da sua

concretização. O Direito como ferramenta de construção e inclusão social deve-se atentar para sua

utilização na faceta perversa que permite que casos sejam minimizados ou aliviados sob a desqualificação

normativa de injúria racial.

Sobressalta o problema acerca das nuances que configuram o racismo e suas derivações, externadas pela

prática da discriminação e do preconceito que, por sua vez, ocupam margem nebulosa que desembocam

no crime de injúria racial, que sabidamente é um crime com menor potencial punitivo.

A reflexão recai sob a aplicação da interpretação de casos práticos, que migram entre o crime de racismo

e de injúria racial que são introduzidos pelos operadores do Direito, destacadamente, pelos julgadores,

que preenchem o conteúdo normativo pelo jogo da linguagem e, por vezes, promovem verdadeira

sabotagem ao crime de racismo.

Evidentemente, não é possível apurar números consolidados de julgados (sentenças e acórdãos) que

adotaram essa prática, mas sim é possível ver criticamente que por ínfimas decisões o jogo indecifrável

da linguagem é manipulado pelos intérpretes, que por vez expressam os interesses dominantes ou,

quiçá, refletem as próprias práticas racistas ou injuriosas, mas legitimadas (e camufladas) pela roupagem

inquestionável das decisões do Judiciário.

Para tanto, o primeiro pilar de esclarecimento perpassa pelo entendimento da ideologia racial que,

por sua vez, está atrelada ao regime capitalista que se utiliza do racismo como instrumento de

dominação estrutural e estruturante para nortear as suas ações. Sob o contexto brasileiro, também,

torna-se imperativa a menção histórica ao período escravocrata que estigmatizou a raça negra no

país, arremetendo-lhes uma condição de subserviência e de inferioridade no conceito e concepção de

inúmeros círculos sociais.

Feitos esses esclarecimentos, existirão elementos históricos e culturais que viabilizarão a discussão

sobre os crimes de racismo e de injúria racial, com análise de casos concretos a fim de ilustrar o debate

e criticamente identificar a visão sobre o racismo não apenas como fato punível, mas também pela ótica

racista (da própria sociedade) que o Judiciário está embebido.

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358A IDEOLOGIA RACIAL E O RESQUÍCIO HISTÓRICO

Em precipitada busca, a compreensão de racismo poderia ser reduzida à definição disposta no dicionário,

como um substantivo masculino que representa a “tendência do pensamento, ou modo de pensar em que se

dá grande importância à noção da existência de raças humanas distintas” ou “conjunto de teorias e crenças

que estabelecem uma hierarquia entre as raças, entre as etnias” (Ferreira, 1999, p. 1.696), ou poder-se-ia

buscar outros significados, que certamente seriam rasos para a importância e o significado do termo.

Para o presente debate a palavra “racismo”, em sua essência, transcende os indigitados significados

lexicográficos na medida em que se manifesta como uma ideologia e, por sua vez, atribuindo pela origem

das idéias humanas às percepções do mundo exterior de que existe o poder de uma raça com força de

manipulação em relação à outra.

Ao longo da história inúmeros excertos poderiam ser exemplificados para denunciar o significado de

racismo apropriado pelos atores ao seu tempo, como ferramenta de dominação, sendo emblemático na

Segunda Guerra Mundial como relata Hanna Arendt (2007) sobre a tentativa ideológica de construir

uma “raça superior”. É notório que o racismo exsurge não como uma espécie de ufanismo ou um tipo

de nacionalismo exagerado, conquanto não é cientificamente sustentável apontar que seria o racismo

condição natural ou intrínseca ao ser humano. Destarte, o corte para a compreensão de racismo é que

o mesmo se manifesta como uma ideologia de dominação, de conquista do poder, negando em todas as

instâncias possíveis a alteridade.

Francisco Silva (2015) nos diz que cada sociedade, cada regime escolhe o que ele denomina de o “outro

conveniente” (p. 96) ou o “inimigo objetivo” (p. 96) como difusão do regime de ódio das massas para se

prevalecerem e, dessa forma, dominar.

Até o período da denominada “corrida para a África”1, a empreitada do imperialismo utilizou-se do racismo

para que a mesma desse certo. O racismo foi utilizado como mecanismo de organização política e de

dominação dos povos estrangeiros para o desenvolvimento e crescimento indiscriminado do capitalismo.

De acordo com Hannah Arendt (2007), extraímos a seguinte assertiva: “Sem a raça para substituir a nação,

a corrida para a África e a febre dos investimentos poderiam ter-se reduzido – para usar a expressão de

Joseph Conrad – à desnorteada ‘dança da morte e do comércio’ das corridas do ouro” (p. 216).

1 Partilha da África, também conhecida como a Corrida a África ou ainda Disputa pela África, foi a proliferação de reivindicações

europeias conflitantes ao território africano durante o período do neoimperialismo, entre a década de 1880 e a Primeira Guerra

Mundial em 1914. Envolveu principalmente a França e o Reino Unido, mas também a Itália, Bélgica, Alemanha, Portugal, Espanha

e, com menos intensidade, os Estados Unidos. Disponível em <https://pt.wikipedia.org> – acesso em 15/07/2017.

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359Com efeito, o racismo não é um fenômeno natural inerente a todas as sociedades humanas e, em face

disso, afirmar que em decorrência de fatores associados ao grau de desenvolvimento social, econômico

ou moral, alcançados por determinados grupos humanos, não lhes atribui uma condição de superioridade

ou inferioridade que, que por sua vez possa repercutir numa relação de domínio que, em decorrência

de fatores históricos, alguns ficam subjugados a uma posição subordinada. Trata-se de um discurso

ideológico capitalista que se reverbera e maximiza a força da sua dialética para se impor e que, lado outro,

manifesta-se de formas diferentes de acordo com o momento histórico, a oportunidade e conveniência

daqueles que almejam o poder.

Entrementes, importante ressaltar que conforme aportado na introdução do presente texto, o

racismo quando mencionado doravante sempre reproduzirá essa concepção de fenômeno social,

cunhado pela predileção dominante, especialmente, pelo capital econômico. Obviamente, não

comporta aqui aprofundar. Com vista histórica, mas especificamente sobre a realidade brasileira, a

escravidão que se iniciou em 1539 e se arrastou até 1888 (Sousa, 2017) – pelos registros históricos

–, evidenciando as marcas indeléveis que vieram moldar a nossa alma e, mormente, da elite brasileira

com seu comportamento autoritário. Notoriamente, o racismo no Brasil foi sedimentado pela prática

escravocrata, que externa o interesse econômico por detrás da exclusão social de negros, principalmente

trazidos da África.

Decerto que é patente o interesse econômico como influência decisiva para construção de uma

sociedade manchada pelo tratamento desigual e desumano de pessoas. Ou seja, o escopo econômico

elevou à última instância em prol da dominação, com a exclusão racial como fator decorativo do

verdadeiro interesse de alguns privilegiados na sociedade brasileira.

Nesse sentido, Jessé de Souza (2009) afirma que o que temos é uma espécie de projeto dominante que

foi a escravidão. Destarte, é a partir de uma origem escravocrata que se pode, consoante sustenta o

referido autor, justificar a existência desta (in)diferença da classe média alta com a classe pobre e, por

conseqüência, a prevalência de governos que se encontram volvidos para ajudar e compactuar com o

poder econômico e que repudiam os programas voltados a amparar as classes sociais menos favorecidas.

Não é preciso nenhum esforço hercúleo para que possamos identificar quais são as pessoas que integram

a denominada classe alta no Brasil, ou seja, os proprietários dos grandes latifúndios; os donos das

poucas indústrias brasileiras que ainda subsistem; os grandes banqueiros; os controladores da mídia

nacional e alguns altos executivos que concentram e controlam toda a economia do país. Trata-se de

percentual ínfimo da população brasileira que detêm todo esse poderio econômico, aliados a grandes

conglomerados econômicos de origem estrangeira, que se manifesta por meio de um requintado e

açodado “entreguismo” das riquezas do Brasil.

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360Refere-se a um racismo econômico, oriundo de uma Teoria Econômica da Discriminação que, neste

desiderato, têm seu viés nos resquícios de uma perene escravidão do povo brasileiro, especialmente

os mais pobres.

Infelizmente, ainda prevalece no Brasil a lei do mais rico ou a do “grande senhor de terras”. Nota-se ainda

que, desde a colonização do Brasil, o poder dos afortunados é quase ilimitado e, portanto, por meio da

força e do poder econômico, criam, desfazem e recriam legislações quando e porque querem.

Sob o pálio da conveniência e oportunidade, a elite econômica coloca e retira os representantes políticos

que defendem ou não os seus interesses, a qualquer tempo, e, enxergam no povo brasileiro apenas

um grupo de pessoas a ser dominado pelo “racismo econômico”. É de se lamentar que os resquícios da

escravidão deixaram marcas tão profundas e difíceis de cicatrizar e que, infelizmente, esse sentimento se

prolifera e não é muito diferente daquele que a denominada “classe média” brasileira alimenta em relação

à classe mais pobre do país, mormente em relação aos negros.

Nessa toada, desde o Brasil colônia, a elite moldada no tráfico de escravos e no latifúndio, não possui

um projeto digno para o país e, na verdade, enxerga o Brasil como um simples objeto a ser explorado

e obter o máximo de lucro no menor tempo possível, tornando-a uma terra arrasada por meio das

desmedidas explorações.

Há o preconceito velado, em que o debate do racismo é camuflado pela hipócrita afirmação de negação

do racismo, quando a sociedade é evidentemente pautada pela desigualdade racial, como bem esclarece

Lilia Schwarcz (2013):

Distintas na aparência, as conclusões das diferentes investigações são paralelas:

ninguém nega que exista racismo no Brasil, mas sua prática é sempre atribuída a

“outro”. Seja da parte de quem age de maneira preconceituosa, seja daquela de quem

sofre com o preconceito, o difícil é admitir a discriminação e não o ato de discriminar.

Além disso, o problema parece ser o de afirmar oficialmente o preconceito, e não o de

reconhecê-lo na intimidade. Tudo isso indica que estamos diante de um tipo particular

de racismo, um racismo silencioso e que se esconde por trás de uma suposta garantia

da universalidade e da igualdade das leis, e que lança para o terreno do privado o jogo

da discriminação. (p. 25)

Com efeito, o racismo encontra-se diretamente relacionado com os fatos sociais que, por sua vez, estão

imbricados nas inter-relações com os ideais políticos que, por conseguinte, refletem nas normas que

guindam o Direito.

Por outro lado, existem aqueles que, com fulcro no conceito de “democracia racial”2, sustentam que

não existe discriminação ou preconceito no Brasil contra os negros e seus descendentes, mas tratam-

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361se apenas de furtivos e inocentes, quando não, descuidados gracejos ou zombarias que não podem ser

considerados como racismo.

Ora, saltam aos olhos que não se tratam de pueris brincadeiras, mas de um racismo velado que, por

sua vez, resultam em diversos tipos de violência, sejam de natureza física ou psicológica. Novamente,

oportuno e imprescindível o esclarecimento de Schawarcz (2013): “Com efeito, em uma sociedade marcada

historicamente pela desigualdade, pelo paternalismo das relações e pelo clientelismo, o racismo só se

afirma na intimidade. É da ordem do privado, pois não se regula pela lei, não se afirma publicamente” (p. 25).

O racismo se manifesta como um dos principais fatores que geram agressões aos negros e aos seus

descendentes, sejam elas através das abordagens truculentas por parte da polícia ou, ainda, pelo

assassinato de um jovem inocente em razão da sua origem e cor da pele.

Decerto que racismo não está morto e, lamentavelmente, carreia consigo a violência. Ademais disso, o

racismo está cada vez mais evidente e, para não deixar dúvidas, estudo recente realizado pelo Instituto

de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) – Atlas da violência 2017 – revelou dados críticos sobre a situação

dos negros na sociedade brasileira.

De acordo com os números levantados, o Brasil registrou, no ano de 2015, 59.080 (cinqüenta e nove mil

e oitenta) homicídios que representam em média aproximadamente 29 (vinte e nove) assassinatos para

cada 100.000 (cem mil habitantes). Indigitado estudo analisa os números e as taxas de homicídios no

país entre os anos de 2005 e 2015, detalhando os dados por regiões e municípios que possuem mais de

100.000 (cem mil) habitantes.

Impressiona constatar que nada se alterou em relação aos estudos realizados anteriormente e que a

cada 100 (cem) pessoas assassinadas no Brasil, 71 (setenta e uma) são negras. Consoante as informações

contidas no Atlas da Violência, os negros possuem chances de 23,5% (vinte e três vírgula cinco pontos

percentuais) maiores de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças, já descontando

aspectos concernentes à idade, grau de escolaridade, sexo, estado civil, condição social e local de residência.

2 Democracia Racial é um termo usado por alguns para descrever as relações raciais no Brasil. O termo denota a crença de que

o Brasil escapou do racismo e da discriminação racial vista em outros países, mais especificamente, como nos Estados Unidos.

Pesquisadores notam que a maioria dos brasileiros não se veem pelas lentes da discriminação racial, e não prejudicam ou promovem

pessoas baseadas na raça. Graças a isso, enquanto a mobilidade social dos brasileiros pode ser reduzida por vários fatores, como

sexo e classe social, a discriminação racial seria considerada irrelevante. A Democracia Racial, no entanto, é desmitificada por

sociólogos e antropólogos que estudam casos de preconceito racial e por dados de violência motivada por diferenças raciais. O

preconceito está intrínseco à sociedade: ainda que a maioria afirme não ser preconceituosa, afirma que conhece alguém que o é.

Portanto a democracia racial é uma meta que ainda está longe de ser atingida e um mito da sociedade brasileira que tenta criar uma

imagem positiva que não coincide com a realidade. <https://pt.wikipedia.org> – acesso em 15/07/2017.

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362O Atlas da violência 2017, no que se concerne à maior identidade de homicídios entre os negros no Brasil

assim se manifesta, in verbis:

Esse caráter discriminatório que vitima proporcionalmente mais a juventude negra

também foi documentado no estudo “Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e

Desigualdade”. Neste trabalho, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública incorporou

um indicador de desigualdade racial ao indicador sintético de vulnerabilidade à

violência dos jovens (mortalidade por homicídios, por acidente de trânsito, frequência

à escola e situação de emprego, pobreza e desigualdade). Foi constatado que em todas

as Unidades da Federação, com exceção do Paraná, os negros com idade entre 12 e 29

anos apresentavam mais risco de exposição à violência que os brancos na mesma faixa

etária. (IPEA, 2017)

De acordo com o Relatório de número A/HRC/31/56/Add.13, datado de 09 de fevereiro de 2016, exarado

pela especialista independente sobre questões das minorias da Organização das Nações Unidas (ONU),

Sra. Rita Izsák, ficou registrado que aproximadamente 23.000 (vinte e três mil) jovens negros são

assassinados anualmente e, muitos dos indigitados assassinatos, são perpetrados pelo próprio Estado.

Referido cenário, por si só, já evidencia uma espécie de dimensão racial da violência, em que alguns

movimentos sociais já descrevem como um verdadeiro “genocídio” da juventude negra. De acordo com os

estudos realizados pela especialista da ONU, a Polícia Militar se valendo muitas vezes de forma indevida

do que se denomina de “auto de resistência”, praticam atos de absoluta e abusiva violência respaldados

por esse “escudo da impunidade”, consoante quedou consignado no relatório.

A relatora destacou em seu estudo no ano de 2016, portanto, bastante recente, que, no Brasil, os negros

correspondem a 75% (setenta e cinco por cento) da população carcerária e por cerca de 71% (setenta e

um por cento) dos aproximadamente 16.200.000 (dezesseis milhões e duzentos mil) brasileiros vivendo

em condições de extrema pobreza. Nessa linha, conclui a relatora que os homicídios cometidos pelos

policiais são pouco investigados e grafados pela impunidade.

Dessa forma, Rita Izsák constatou em suas avaliações sobre a conjuntura brasileira ao Conselho de

Direitos Humanos da ONU que, no Brasil, a violência, a criminalização e a pobreza possuem uma “cor” e

que, tal circunstância, afeta de forma desproporcional a população negra do país.

Destarte, o que se verifica é que o negro é duplamente discriminado no Brasil, por conta da cor da pele

e da condição socioeconômica e, uma vez tais discriminações combinadas, explica toda a perversidade

dessa prevalência de homicídios de negros vis-à-vis o restante da população brasileira.

3 Relatório Especial sobre questões minoritárias sobre sua missão ao Brasil – Relatório n. A/HRC/31/56/Add.1 de 09/02/2016.

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363Essa agressão é uma incoerência, pois enquanto a sociedade tenta negar a existência do racismo,

dissimulando o preconceito e a discriminação, por outro lado os números da violência contra os negros

demonstram uma forma explícita de racismo que, por sua vez, se arvora no culto ao “biopoder”4 que,

na perspectiva de Michel Foucault (2010) se traduz na seguinte expressão: “o racismo é o meio de

introduzir, nesse domínio da vida de que o poder se incumbiu, um corte entre o que deve morrer e o que

deve viver”.

DO RACISMO E O RESSENTIMENTO SOCIAL

Dúvidas não sobejam de que o racismo trata-se, em sua substância, da construção de extensão

intelectual muito intensa e que, por essa razão, impregnou a mentalidade das pessoas.

De acordo com Foucault, o racismo já se manifestava no instante da articulação do poder disciplinar e da

denominada “biopolítica”, mas que o mesmo se inseriu na engrenagem do Estado por meio da ascensão

do “biopoder”.

Destarte, nessa acepção, seria lídimo para o poder político reclamar ou determinar a morte não apenas

de seus inimigos, como também dos seus próprios cidadãos como forma de controle, manutenção da paz

e da ordem social.

Para Foucault (2010), o surgimento, distinção e hierarquia das raças e, por conseguinte, suas respectivas

qualificações, isto é, algumas são boas e outras são ruins, se amparam numa espécie de fragmentação do

campo biológico de que o poder se incumbiu.

Na teoria do autor o racismo apresenta duas funções precípuas, quais sejam: (i) a de fragmentar e

estabelecer censuras no âmago do contínuo biológico ao qual se dirige o biopoder e; (ii) manter a cultura

de suplantação de uma raça em relação à outra, ou seja, para que você possa viver é necessário que

destrua seus inimigos.

Mas quem são os inimigos? O racismo é a expressão da mais pura eugenia nazista, com o fito de “purificar”

a sociedade germânica dos “seres indesejáveis”. No Brasil, o sentimento é ainda mais maquiavélico,

porquanto acobertado por um ressentimento social.

4 “Biopoder” é um termo criado originalmente pelo filósofo francês Michel Foucault para referir-se à prática dos estados

modernos e sua regulação dos que a ele estão sujeitos por meio de “uma explosão de técnicas numerosas e diversas para obter a

subjugação dos corpos e o controle de populações”.

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364Não se pode generalizar, mas também não podemos omitir que existe um grande número de brancos

que guardam ressentimento com relação aos negros, em especial, em relação àqueles que conseguem

uma ascensão social. Com efeito, poder-se-ia contra-argumentar que os negros é que guardariam

ressentimentos em relação aos brancos; todavia poderíamos também inferir que esse ressentimento não

teria eficácia.

Para que o ressentimento tenha eficácia, ele terá que estar amparado pelo poder e, nesse caso, a vez e a

voz do negro no Brasil, de uma maneira geral, não tem esse poder.

Nessa esteira, duas conclusões antecedentes se afiguram, isto é, não há dúvidas de que o racismo existe no

Brasil e, que o mesmo possui uma considerável dimensão histórica que carreia todo um ressentimento social.

Indigitado ressentimento também está atrelado à ideologia da inferioridade dos negros que, por sua vez,

foi concebida ao longo dos séculos pela cultura eurocêntrica e por meio das elites brasileiras alicerçadas

em teorias de natureza científica ou teológica. Com isso, os negros sempre foram levados a viver à

margem da sociedade.

Todo esse processo repercutiu na formação de uma imagem negativa do negro no Brasil, colocando-o

como um “marginalizado” diante de toda a sociedade e, muitas são às vezes, que não tem oportunidades

de desenvolver-se, seja econômica, seja socialmente, em face do racismo e de seu corolário traduzido por

um ressentimento social.

Feitos estes esclarecimentos, doravante, cabe a análise de decisões judiciais, que apresentam como pano

de fundo a discussão sobre o racismo. Contudo, por todos esses fatores acima denunciados, por vezes a

questão é desnivelada, com interpretações destoantes, que revelam aspectos subjetivos, evidentemente,

não teorizáveis, mas que de alguma maneira externam as razões denunciadas sobre o surgimento e a

manutenção o racismo na sociedade brasileira.

DO RACISMO E DA INJÚRIA RACIAL E CASOS CONCRETOS DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO

Ao compulsarmos a doutrina e a legislação brasileira, verificaremos que o conceito jurídico acerca do

racismo e da injúria racial, malgrado estejam imbricados, são apresentados de forma diferenciada na

legislação de regência sobre o tema.

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365Brevemente, é possível identificar o crime de a injúria racial regulado pelo Código Penal (artigo 140,

§ 3º5), cuja pena é de reclusão de 01 (um) a 03 (três) anos, além do pagamento de multa.

Destarte, trata-se de um crime de ofensa à dignidade ou ao decoro, utilizando-se, para tanto, dos

vocábulos ou elementos concernentes à raça; à cor; à etnia; à origem; à religião de uma pessoa de raça

diferente; ou ainda à origem ou à condição de uma pessoa idosa ou portadora de deficiência.

Nesse sentido, a injúria racial é direcionada a uma pessoa determinada que, por sua vez, se efetiva por

meio do uso ou emprego de palavras depreciativas em relação à pessoa atingida que seja de outra raça,

credo, etnia ou religião.

Noutra banda, o crime de racismo encontra-se previsto nos termos da Lei n. 7.716/896, que considera

como conduta discriminatória os atos que são dirigidos a um grupo ou a uma coletividade de indivíduos.

Em outras palavras, fala-se da prática de crimes mais amplos ou com maior extensão.

Desse modo, o crime de racismo é de competência do Ministério Público que, por sua vez, assume a

responsabilidade de processar o ofensor que, dentre inúmeras condutas poderá impedir ou recusar o acesso

de pessoas, em razão da discriminação ou preconceito; impedir ou recusar acesso a estabelecimentos

públicos ou comerciais; cercear ou recusar o uso de entradas sociais em elevadores ou a edifícios públicos ou

privados; recusar emprego a pessoas de outras etnias, dentre inúmeras outras situações.

Nessa toada, a injúria racial é considerado um crime que tem prescrição em 08 (oito) anos, antes de

transitar em julgado a sentença final; enquanto o crime de racismo é inafiançável e imprescritível, em

consonância com o que dispõe o texto constitucional (art. 5º, XLII7).

Não obstante, o que causa estranheza é que no Brasil poucos casos de injúria racial e de racismo ganham

repercussão nacional e, em sua maioria, somente aqueles casos que envolvem pessoas públicas ou com

notoriedade midiática. Inúmeros são os casos que poderiam ser exemplificados, mas são desconhecidos

pela ausência de repercussão midiática. Neste desdobramento, certo é que as questões raciais ainda são

muito pouco debatidas no âmbito jurídico, circunstância que permite que muitas manifestações racistas

permaneçam impunes no Brasil.

5 Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: [...] § 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos

referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº

10.741, de 2003) Pena - reclusão de um a três anos e multa. (Incluído pela Lei nº 9.459, de 1997) Disposições comuns.6 Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou

procedência nacional.” 7 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros

residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

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366Com o fito de exemplificarmos a questão em debate no Judiciário, sobre o racismo e injúria racial,

colacionamos as ementas de alguns julgados que, por sua vez, demonstram a efetividade da justiça no

reconhecimento dos crimes e na determinação das punições e, outras vezes, desconsidera o assunto e,

sob o manto da ausência de elementos probatórios e exasperação das partes em face de uma discussão,

não leva adiante a aplicação das sanções cabíveis aos casos de injúria e racismo, aumentando as

estatísticas da impunidade e, o que é pior, abrindo precedentes para que o comportamento racista e

discriminatório se perpetue, senão veja-se:

Ementa: APELAÇÃO CRIMINAL - QUEIXA-CRIME - INJÚRIA QUALIFICADA -

RACISMO - AUSÊNCIA DE DOLO - OFENSAS PRATICADAS NO AUGE E CALOR DE

UMA DISCUSSÃO - DÚVIDA QUANTO À INTENÇÃO CRIMINOSA DO ATO - CRIME

NÃO CONFIGURADO - ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE - RECURSO PROVIDO Não

se caracteriza o crime de injúria se as expressões foram proferidas no calor e no auge

de uma discussão. havendo dúvidas quanto a intenção criminosa, não se configura

o delito. Em sede de crime de racismo, o que a lei pune não são as expressões, mas

sim o preconceito que cause prejuízo, distinção ou discriminação, em idênticas

oportunidades, a pessoas de raças diferentes.8

Nessa decisão o Judiciário entendeu que “não se caracteriza o crime de injúria se as expressões foram

proferidas no calor e no auge de uma discussão”. Dessa forma, toda e qualquer ofensa e/ou injúria que for

perpetrada contra outrem em razão de sua cor de pele será perdoada, uma vez que proferida no “calor”

de uma discussão e, portanto, o que a lei pune “não são as expressões, mas sim o preconceito que cause

prejuízo...”. Será que nesse caso, nenhum prejuízo foi causado? Como aferir esse prejuízo?

Ementa - Ameaça Condenação - Não cabimento Violência e grave ameaça não

demonstradas Absolvição mantida Recurso ministerial não provido. Injúria qualificada

Racismo Ausência de dolo Palavras proferidas no calor de uma discussão Dúvida

quanto à intenção criminosa do ato Crime não configurado Absolvição Necessidade

Apelação da ré provida.9

8 TJ-SC - Apelacao Criminal : APR 264402 SC 2002.026440-2 - Processo APR 264402 SC 2002.026440-2 - Orgão Julgador:

Primeira Câmara Criminal - Partes: Apelante: Vera Lucia da Silva Albino, Apelados: Salete de Aquino Campos e outro -

Publicação - Apelação Criminal n. 2002.026440-2, da Capital.- Julgamento: 15 de Abril de 2003 - Relator: Solon d´Eça Neves9 TJ-SP - Apelação : APL 00434006520128260577 SP 0043400-65.2012.8.26.0577 - Processo: APL 00434006520128260577

SP 0043400-65.2012.8.26.0577 - Orgão Julgador: 16ª Câmara de Direito Criminal

Publicação: 24/04/2014- Julgamento: 15 de Abril de 2014 - Relator: Pedro Menin

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367Da mesma sorte, nesse segundo exemplo de decisão judicial, entenderam os julgadores pela “ausência de

dolo” nas palavras proferidas, novamente, “no calor de uma discussão”.

Referidas decisões são, no mínimo, preocupantes, no momento em que as mesmas abrem um perigoso

precedente para que todas as injúrias raciais ou manifestações de racismo sejam toleradas, uma vez que as

ofensas foram exaradas num momento de mera exaltação, de acordo com a manifestação dos magistrados.

Lado outro, o Judiciário também apresenta inúmeras decisões elogiáveis de condenação pelos crimes

de injúria racial e de racismo que, por sua vez, deveriam ser tomadas como exemplos para coibir o abuso

que, lamentavelmente, se verifica diuturnamente na sociedade brasileira e que fica totalmente impune.

As decisões exemplificativas que colacionamos a seguir demonstram a efetividade do Judiciário em coibir

as práticas delituosas, em comento:

Ementa: DANOS MORAIS. TRATAMENTO PATRONAL HUMILHANTE E

VEXATÓRIO. PRECONCEITO RACIAL. É mister que haja um esforço infatigável de

todos para que a chaga do racismo, ainda presente no nosso país, seja curada, e para

que nossa sociedade, que conviveu durante três séculos com a escravidão, com a

discriminação e o sofrimento dos negros, caminhe definitivamente rumo à civilização

e ao convívio respeitoso e democrático, sem distinção de qualquer espécie. E foi em

combate ao racismo e também como reconhecimento de sua existência, que vigorou

a Lei Afonso Arinos e posteriormente à Constituição Federal de 1988, a Lei nº 7716,

de 5 de janeiro de 1989, tornou o racismo um crime inafiançável. Desse modo, não

bastasse a atitude patronal configurar violação aos preceitos constitucionais, revela

também uma conduta grave e lesiva, que vilipendia a honra, imagem e dignidade do

empregado, estigmatizando-o, além de marcar de forma indelével sua vida pessoal

e social. Pelo exposto, a atitude empresarial exorbitou sobejamente do seu poder

diretivo e disciplinar, acarretando danos irremediáveis à dignidade, caracterizando-se,

portanto, como ato ilícito (art. 186 do CC), gerador do dever de indenizar (art. 927 do

CC c/c o art. 8º da CLT). Assim sendo, nega-se provimento ao apelo.

“ ... a Sra. que Aida esta costumava se exaltava a se e referir frases constantes à cor do às

reclamante, fls. 14 da dizendo inicial as e dava razão tratamento da sua diferenciado cor;

que o ao tratamento reclamante era em semelhante a todos os negros e morenos” 10

10 TRT-2 - RECURSO ORDINÁRIO RO 00020542820105020059 SP 00020542820105020059 A28 (TRT-2)

Data de publicação: 10/04/2015

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368Com fulcro nessa decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, ficou evidenciada a prática por

parte do empregador que extrapolou sua conduta e desrespeitou não apenas os direitos trabalhistas e

sociais do empregado, mas, principalmente agredindo-o em face da sua cor de pele.

Ementa: PENAL. RACISMO E INJÚRIA RACIAL. DISTINÇÃO. EXPRESSÕES

OFENSIVAS COM ALUSÃO À RAÇA DA OFENDIDA. CONDENAÇÃO PELO CRIME

DE INJÚRIA RACIAL QUALIFICADA. 1. No crime de racismo, o ofensor visa a atingir

um número indeterminado de pessoas, enquanto na injúria racial ele atinge a honra de

determinada pessoa, valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião,

origem ou à condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. 2. Comete o

crime de injúria racial qualificada o réu que, na fila do caixa para comprar ingresso

para o cinema, na frente de diversas pessoas, profere palavras ofensivas à ofendida,

responsável pela venda de ingressos, com alusão à sua raça, dizendo-lhe que “é muito

grossa, por isso é “dessa cor” e “volta para a África”, para cuidar de orangotangos. 3.

Recurso do Ministério Público parcialmente provido para condenar o réu por injúria

racial qualificada e desprovido o do réu.11

Já a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal demonstra um lamentável e típico

episódio de injúria racial que se presencia no Brasil e, que, no “calor de uma discussão”, uma atendente do

caixa de um cinema ofende a cliente afirmando que a mesma “é muito grossa, por isso é dessa cor e volta

para África, para cuidar de orangotangos”.

Nota-se que, nesse caso, o judiciário não levou em consideração tratar-se de mera “ausência de dolo” nas

palavras proferidas em razão de um desentendimento que ocorreu “no calor de uma discussão”.

Não existe uma coerência nos julgamentos para aferir qual foi realmente a extensão da injúria racial ou

manifestação de racismo para se proferir uma decisão por parte do judiciário. E nessa toada, o racismo e

o preconceito encontram campo fértil para permanecer e, mais do que isso, para prosperar.

11 TJ-DF - Apelação Criminal APR 20120110758157 (TJ-DF) - Data de publicação: 10/10/2014

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369inúmeros são os julgados12 pelo país afora que acolhem a compreensão que o crime de racismo seria

apenas na hipótese de ofensa ao grupo de pessoas, conquanto o crime de injúria racial seria o crime

externado pela prática ofensiva à honra da vítima. Todavia, não seria o crime de racismo toda e qualquer

ofensa de conotação racial, sendo indistinto o número de pessoas ofendidas; ou mesmo, não seria o

próprio indivíduo ofendido um representante legítimo de todo “grupo” a que pertence.

Neste sentido, mais uma vez Lilia Schwarcz (2013), após trabalho exaustivo no levantamento de dados sobre

o racismo, aponta sobre a ineficiência da Delegacia de Crimes Raciais no Estado de São Paulo e arremata:

Nos três primeiros meses de 1995, a instituição registrou 53 ocorrências — menos de

uma por dia. Tal constatação parece revelar, porém, não a inexistência do preconceito,

e sim a falta de credibilidade dos espaços oficiais de atuação. A lei é para poucos,

ou como afirma o ditado brasileiro: “Aos inimigos a lei, aos amigos tudo”. Na falta de

mecanismos concretos, a discriminação transforma-se em injúria ou admoestação de

caráter pessoal e circunstancial. (s/p)

Ainda nesta perspectiva, não seria o crime racial detentor do espaço para repressão de toda e qualquer

conduta condizente à raça e, por sua vez, o crime de injúria, apenas aqueles atos ofensivos à moral

subjetiva, desde que não concernentes ao crime racial. O fato concreto ao tentar mensurar o número de

pessoas ofendidas, apenas não confere abertura semântica para diferenciar a mesma ofensa de cunho

12 Decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Pará: EMENTA: APELAÇÃO PENAL CRIME DE RACISMO NÃO

CONFIGURAÇÃO DESCLASSIFICAÇÃO PARA O DELITO DE INJÚRIA RACIAL PROCEDÊNCIA OFENSAS QUE SE

DESTINAVAM A DENEGRIR TÃO SOMENTE A HONRA SUBJETIVA DA VÍTIMA E NÃO DE UM GRUPO DETERMINADO

DE PESSOAS POR CONSTA DA COR DA PELE EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELA DECADÊNCIA QUEIXA CRIME QUE

NÃO PODE MAIS SER OFERECIDA NO PRAZO LEGAL RECURSO CONHECIDO E PROVIDO DECISÃO UNÂNIME. 1.

Desclassificação do crime de racismo para o de injúria racial. Opera-se a desclassificação do crime de racismo para o de injúria

racial quando as provas contidas nos autos demonstram que as ofensas proferidas pela apelante, embora com conotação racial,

se dirigiram tão somente contra a honra subjetiva do ofendido e não de segregar pessoas em razão da cor da pele, ou seja, não

ficou configurado o dolo do delito previsto no art. 20 da Lei nº 7716/89 . Doutrina e precedente do STJ. 2. Extinção da punibilidade

pela decadência. A ação penal pelo crime de injúria racial tem natureza privada, sujeita, portanto, à decadência. Desse modo,

após desclassificada a infração para este tipo penal e tendo o fato ocorrido em 15/10/2001, não é mais possível o oferecimento

da respectiva queixa crime, pois já transcorreu o prazo decadencial de 06 (seis) meses, previsto no art. 38 do CPP. 3. Recurso

conhecido e provido. Decisão unânime. (2013.04113662-46, 118.251, Rel. ROMULO JOSE FERREIRA NUNES, Órgão Julgador 2ª

TURMA DE DIREITO PENAL, Julgado em 2013-04-09, Publicado em 2013-04-15)

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370racial, Veja que em julgamento proferido pelo TRF da 2º Região13, o referido órgão reconhece que o crime

de injúria ofende o mesmo bem tutelado pelo crime de racismo, todavia, mais uma vez o Judiciário cria

elemento para fundamentar a desclassificação o crime:

2 - Todas as expressões utilizadas pelas rés possuíam como escopo depreciar as

vítimas, calcando-se em elementos referentes à raça. Por certo que a própria

qualificação da injúria pelo seu conteúdo racial denota, em alguma medida, o

preconceito de quem as profere. É evidente também que qualquer injúria de

cunho discriminatório dirigida a membro de grupo ou minoria historicamente

discriminada presta-se, invariavelmente, a perpetrar a manutenção de estereótipos e,

consequentemente, ao fomento desses preconceitos combatidos. Todavia, na esteira

da diferenciação realizada pelo legislador entre os delitos, há que se considerar a

finalidade imediata do agente ao proferir tais ofensas, sob pena de esvaziamento do

tipo penal do art. 140, § 3º do CP.

A incerteza que permeia o discurso hermenêutico das decisões judiciais, buscam referências para a

desqualificação do crime de racismo, com intuito de amenizar a punição constitucional. Nos casos

apresentados, embora ínfimos, ressoam como exemplo de prática do Judiciário que por certo também

está situado na sociedade que adota práticas racistas.

13 Ementa: PENAL. PROCESSO PENAL. OFENSAS PROFERIDAS NO SITE DE RELACIONAMENTOS ORKUT. CONDENAÇÃO

PELO CRIME DO ART. 20, § 2º DA LEI 7.716/86. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME DE INJÚRIA QUALIFICADA. ART. 140,

§ 3º DO CP. CRIME PRATICADO ANTES DA LEI 12.033/09. AÇÃO PENAL PRIVADA QUE SE PROCEDE MEDIANTE QUEIXA.

DECADÊNCIA. ART. 103 DO CP C/C 38 DO CPP. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. APELAÇÕES CRIMINAIS PROVIDAS. 1 -

Distinguem-se os delitos de injúria qualificada e Racismo pelos bem jurídicos protegidos e os tipos subjetivos de cada um deles.

A tipificação do crime de Racismo visa proteger a dignidade da pessoa humana e a igualdade, enquanto a injúria qualificada tem

como fim precípuo o resguardo da honra subjetiva do ofendido. Para configuração do delito do art. 20 da Lei 7.716/89 é exigível o

dolo, aliado à intenção de ofender a coletividade dos membros de determinada raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Em contrapartida, o dolo necessário para considerar-se o crime previsto no art. 140, § 3º do Código Penal é aquele atinente à

intenção de ofender pessoa determinada (vítima individualizada). 2 - Todas as expressões utilizadas pelas rés possuíam como

escopo depreciar as vítimas, calcando-se em elementos referentes à raça. Por certo que a própria qualificação da injúria pelo

seu conteúdo racial denota, em alguma medida, o preconceito de quem as profere. É evidente também que qualquer injúria

de cunho discriminatório dirigida a membro de grupo ou minoria historicamente discriminada presta-se, invariavelmente, a

perpetrar a manutenção de estereótipos e, consequentemente, ao fomento desses preconceitos combatidos. Todavia, na esteira

da diferenciação realizada pelo legislador entre os delitos, há que se considerar a finalidade imediata do agente ao proferir tais

ofensas, sob pena de esvaziamento do tipo penal do art. 140, § 3º do CP. 3 - O objetivo primordial das rés era ofender a vítima

pessoalmente por motivos pessoais e não proferir manifestações preconceituosas generalizadas. Desclassificação do crime

do art. 20 da Lei 7.716/86 para o crime do art. 140, § 3º do CP. 3 - Considerando-se que os fatos típicos configuram a injúria

racial que, antes da Lei 12.033/09, era considerada de ação penal privada, que só se procedia mediante queixa, reconhece-se a

decadência, nos termos do art. 103 do Código Penal c/c art. 38 do Código de Processo Penal. 4 - Reconhecimento da extinção da

punibilidade, nos termos do art. 107, IV do Código Penal. 5 - Apelações criminais providas. (TRF da 2ª Região - Órgão julgador: 2ª

TURMA ESPECIALIZADA - Data de decisão 19/07/2016 - Data de disponibilização 02/08/2016) Disponível em: < http://www10.

trf2.jus.br/consultas/?q=&site=v2_jurisprudencia&client=v2_index&proxystylesheet=v2_index&filter=0&getfields=*&lr=lang_

pt&oe=UTF-8&ie=UTF>. Acesso em: 02 de agosto de 2017.

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371Em outros dizeres, ao identificar as práticas racistas, seja por herança histórica ou pela consolidação

pelos interesses econômicos sórdidos e dominadores, é evidente que todos envolvidos processualmente,

partes litigantes e o Juiz (Tribunais), estão inseridos neste contexto.

Logo, debater imparcialidade de pessoas contaminadas pelo ambiente que aplaca o racismo pela

dominação é o mesmo que esperar uma intervenção divina na execução da Justiça.

Para consolidar as razões acima expostas, em breve levantamento realizado junto ao Tribunal de Justiça

de Minas Gerais, acerca da jurisprudência, envolvendo racismo e injúria racial, foram encontradas 24

decisões14 sobre o tema. Em nenhuma das decisões analisadas restou identificado o crime de racismo,

sendo nos casos que ocorreram condenação restou apenas a hipótese de injúria racial, desde os

primeiros acórdãos proferidos nos idos de 200115, como os mais recentes nesta década16.

Assim, diante dos dados apurados que nos casos envolvendo racismo há, na verdade, predominância pela

interpretação de que se tratam de crimes de injúria racial, foi realizada nova pesquisa, com critérios17

distintos e especificamente em todas as Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Neste

giro, foram apurados 13 acórdãos, sendo que em única oportunidade houve a decisão18 pela condenação

14 Como critério de pesquisa foram utilizadas as expressões “racismo” e “injúria”, no dia 14 de agosto de 2017.15 INJÚRIA QUALIFICADA POR PRECONCEITO RACIAL - Caracterização - Caracteriza-se o crime se o agente age imbuído

de “”animusinjuriandi””, isto é, com a vontade livre e consciente de praticar o fato injurioso, com intenção de ofender a vítima,

utilizando-se de elementos referentes à raça ou cor - Recursos conhecidos e improvidos. (TJMG -Apelação Criminal(Queixa)

1.0000.00.238524-3/000, Relator(a): Des.(a) GudesteuBiber , 1ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em 27/11/2001, publicação

da súmula em 30/11/2001)

Injúria qualificada por preconceito racial - Crime não caracterizado - Ausência de ânimo calmo e sereno - Não se caracteriza o

crime de injúria se as expressões são proferidas no auge da discussão, por faltar ao agente o dolo, o “”animusinjuriandi””. (TJMG

-Apelação Criminal(Queixa) 1.0000.00.255840-1/000, Relator(a): Des.(a) Kelsen Carneiro , 3ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento

em 06/08/2002, publicação da súmula em 22/08/2002)16 EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - LESÃO CORPORAL, AMEAÇA, INJÚRIA QUALIFICADA PELO PRECONCEITO RACIAL

E DESACATO - MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS - DOLO CARACTERIZADO - CONDENAÇÃO QUE SE IMPÕE.

01. Comprovados, quantum satis, a materialidade, a autoria, e o elemento subjetivo dos crimes de lesões corporais, ameaça,

injúria qualificada pelo preconceito racial e desacato, a condenação, à falta de causas excludentes de ilicitude ou de culpabilidade,

é medida que se impõe. (TJMG -Apelação Criminal 1.0382.14.005466-1/001, Relator(a): Des.(a) Fortuna Grion , 3ª CÂMARA

CRIMINAL, julgamento em 13/10/2015, publicação da súmula em 23/10/2015) 17 Como critérios para pesquisas, foram levantados todos os acórdãos das Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça de Minas

Gerais, cujas decisões colegiadas tenham tratado de “racismo”, com exclusão de injúria18 APELAÇÃO CRIMINAL - CRIME DE RACISMO - IMPEDIMENTO DE ACESSO A CLUBE SOCIAL ABERTO AO PÚBLICO

- ABSOLVIÇÃO - RECURSO MINISTERIAL - CREDIBILIDADE DAS PALAVRAS DA VÍTIMA, CORROBORADAS PELAS

DECLARAÇÕES DE SEU MARIDO E PELOS DEMAIS ELEMENTOS DE CONVICÇÃO ABSTRAÍVEIS DA ROBUSTA PROVA

TESTEMUNHAL COLIGIDA -COTA DE CLUBE NÃO VENDIDA À OFENDIDA EM FUNÇÃO DE SUA COR NEGRA, POR

ORDEM DA PRESIDÊNCIA DO ESTABELECIMENTO - DELITO COMPROVADO - INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA

A AMPARAR O VENDEDOR DA COTA - ACUSADO QUE AGIU APENAS POR ORDEM SUPERIOR, IMBUÍDO DO VEROSSÍMIL

TEMOR DE PERDA DE SUA ÚNICA FONTE DE SUBSISTÊNCIA HÁ LONGOS ANOS - CONDENAÇÃO APENAS DO PROLATOR

DA ORDEM ILEGAL - RECURSOS CONHECIDOS, PARCIALMENTE PROVIDO O MINISTERIAL, PREJUDICADO O EXAME DO

APELO DEFENSIVO. (TJMG -Apelação Criminal 1.0701.01.007044-2/001, Relator(a): Des.(a) Márcia Milanez , 1ª CÂMARA

CRIMINAL, julgamento em 05/08/2008, publicação da súmula em 22/08/2008)

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372pelo crime de racismo. Nos demais casos, em regra as decisões até debatem o crime de racismo,

mas sistematicamente adotam a interpretação que o crime é prescritível19, logo, necessariamente

extinguiram a punibilidade.

Portanto, a pesquisa não analisou todo o universo de decisões no TJMG, mas pelos critérios adotados

é possível aferir que no Judiciário do Estado de Minas Gerais, ao menos em análise às decisões de 2ª

instância, há uma única decisão de condenação criminal pelo crime de racismo; lado outro, há uma gama

de decisões que interpretam o crime de racismo como prescritível e nas demais, como verdadeira regra, o

crime de racismo é reduzido ao crime de injúria racial.

Os casos citados não esgotam todas as decisões do Judiciário, mas representam pequenas amostras da

sofisticação do discurso racista, que legitima a violência da exclusão, bem como cria mecanismos que, ao

invés de apaziguar o conflito, apenas acelera a desigualdade de tratamento, desta vez homologada pela

requintada atuação estatal.

19 EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - ART. 366/CPP - SUSPENSÃO DO PROCESSO E DO PRAZO PRESCRICIONAL

- PRAZO INDETERMINADO - IMPOSSIBILIDADE - REGRA CONSTITUCIONAL - PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA -

PRESCRIÇÃO PELA PENA IN ABSTRATO - POSSIBILIDADE - POSIÇÃO DO STF.

- A prescritibilidade é regra, devendo a imprescritibilidade ser tomada como exceção, porquanto a Constituição da República

expressamente prevê as duas únicas hipóteses de crimes imprescritíveis, quais sejam, o racismo e a ação de grupos armados, civis

ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado democrático (art. 5º, incisos LXII e LXIV, CR).

- A suspensão do prazo prescricional nos termos do art. 366/CPP não pode se dar indefinidamente, devendo a prescrição ser

regulada pelo art. 109 do Código Penal, adotando-se o máximo da pena abstratamente cominada ao delito. (TJMG -Rec em

Sentido Estrito 1.0024.12.013807-8/001, Relator(a): Des.(a) Júlio Cezar Guttierrez , 4ª CÂMARA CRIMINAL, julgamento em

03/03/2015, publicação da súmula em 10/03/2015)

EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - ABUSO DE AUTORIDADE E RACISMO - EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE PELA

PRESCRIÇÃO PROJETADA OU EM PERSPECTIVA - SOLUÇÃO NÃO PREVISTA EM LEI - CASSAÇÃO DA DECISÃO - RECURSO

PROVIDO.

- Como vêm decidindo os tribunais pátrios, ao aplicador do Direito não é dado, substituindo-se ao legislador, criar hipótese de

extinção de punibilidade não prevista na lei, como tal se tendo a dita prescrição pela pena projetada ou prescrição em perspectiva.

A prescrição ou se funda na pena em abstrato ou na pena concretizada em sentença, não em pena hipoteticamente calculada.

- Súmula 438 do STJ.

- Recurso provido. (TJMG -Rec em Sentido Estrito 1.0105.05.153138-9/001, Relator(a): Des.(a) Flávio Leite , 1ª CÂMARA

CRIMINAL, julgamento em 28/08/2012, publicação da súmula em 12/09/2012)

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373CONCLUSÃO

A história brasileira contemporânea tem como marco legal a Constituição da República de 1988 que, por

sua vez, carrearam os princípios e regras que balizam a construção de um Estado Democrático de Direito.

A identificação do racismo por meio de práticas violentas, camufladas pela atuação estatal, foi a

pretensão do presente trabalho. Há muito o Judiciário se autolegitima detentor da aplicação da lei, mas,

contudo, insere discursos não democráticos, como o da exclusão pelo racismo.

Assentar no jogo interpretativo a desqualificação do crime, em que pese todo o esforço semântico para

distinção de racismo e injúria racial, faz sentir o interesse prévio, não tangenciável pelos intérpretes

processuais, que é fonte de legitimação do discurso racista.

Não existem níveis de racismo, logo, é crucial que a ciência jurídica perceba o contexto social formato

pela desigualdade e pelo tratamento não isonômico, sendo o Judiciário apenas uma matriz de repetição

do sofrimento enfrentado pelos ofendidos e excluídos.

Quando a dominação se legitima pelas funções estatais, a sofisticação das decisões judiciais, as teorias

argumentativas, mostram-se apenas como alavancas para o agravamento da desigualdade social e, por

óbvio, da manutenção do racismo em um nível não criticável.

O exercício da alteridade é uma das balizadas possíveis para exigir que o julgador se coloque no lugar do

outro e ao invés de investigar elementos não fiscalizáveis ou mesmo impossíveis de serem identificados

(como exemplo, o dolo na ofensa verbal), enxergue-se no lugar do ofendido.

Portanto, a reflexão sobre os desserviços prestados pelo Judiciário ao amenizar crimes raciais ao

patamar de injúria, por mais que tais julgados detenham preciosa construção técnica, sob o ponto de vista

do combate ao racismo, apenas convalidam o menosprezo pelo próprio Estado que pessoas ao serem

ofendidas pela sua raça, sofrem meramente infortúnios de ordem moral, afinal, a coletividade ofendida é

um ser estrategicamente ocultado, para jamais ser indigitado pelos criminosos (não) racistas.

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1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e acrescenta parágrafo ao art. 140 do

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Brasil. TJ-SC - Apelacao Criminal : APR 264402 SC 2002.026440-2 - Processo APR 264402 SC

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Albino, Apelados: Salete de Aquino Campos e outro - Publicação - Apelação Criminal n. 2002.026440-

2, da Capital.- Julgamento: 15 de Abril de 2003 - Relator: Solon d´Eça Neves. Diário da Justiça,

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Brasil. TJ-SP - Apelação: APL 00434006520128260577 SP 0043400-65.2012.8.26.0577 - Processo:

APL 00434006520128260577 SP 0043400-65.2012.8.26.0577 - Orgão Julgador: 16ª Câmara de

Direito CriminalPublicação: 24/04/2014- Julgamento: 15 de Abril de 2014 - Relator: Pedro Menin. Diário

da Justiça, São Paulo/SP.

Brasil. TRT-SP - RECURSO ORDINÁRIO RO 00020542820105020059 SP 00020542820105020059

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autoriaÉRICA SILVA DO ESPÍRITO SANTO

Psicóloga. Mestra em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal de Minas Gerais –

UFMG. Doutoranda em Estudos Psicanalíticos na UFMG.

CONTATO: [email protected]

JHONATAN J. MIRANDA

Psicólogo. Especialista em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal de Minas Gerais –

UFMG. Mestrando em Psicologia na UFMG.

CONTATO: [email protected]

JULINÉIA SOARES

Psicóloga e psicanalista crítica. Mestra em Estudos Psicanalíticos pela Universidade Federal

de Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

MARCUS VINICIUS NETO SILVA

Psicólogo. Especialista em Teoria Psicanalítica Universidade Federal de Minas Gerais –

UFMG. Mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. Doutorando em Estudos Psicanalíticos

pela UFMG.

CONTATO: [email protected]

OLÍVIA LOUREIRO VIANA

Psicóloga. Bacharel em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

Virgínia Leone Bicudo: uma pioneira da psicanálise brasileira

SUMÁRIO

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resumoApresentando a vida e a obra de Virgínia Leone Bicudo, pretendemos discutir de que modo

Sociologia e Psicanálise se conjugam em sua produção. Isso se justifica por ela, psicanalista

negra, ter publicado, no período inicial de sua produção, uma dissertação que investiga as

atitudes raciais de pretos e mulatos. Além disso, a autora é uma das principais responsáveis

pela expansão do movimento psicanalítico no Brasil. Vários trabalhos dividem sua obra em um

primeiro período sociológico seguido de um período psicanalítico. Tendo em vista essa extensa

produção psicanalítica, nosso interesse é questionar se o viés sociológico permanece em suas

produções posteriores.

PALAVRAS-CHAVE: Virgínia Bicudo, psicanálise, racismo.

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378O presente trabalho apresenta o percurso de Virgínia Leone Bicudo a partir da discussão de sua obra e

biografia. Nosso intuito é refletir sobre o entrelaçamento da psicanálise com a sociologia na produção

dessa autora. Partimos de uma leitura detalhada de publicações selecionadas que demonstram a

relevância de seu trabalho teórico, clínico e institucional como uma das pioneiras da psicanálise no Brasil,

bem como de artigos que abordam sua vida e sua escrita.

Nosso interesse nessa empreitada se justifica a partir de três vias: a) pelo fato da autora ser uma

psicanalista negra, num contexto majoritariamente branco e elitista; b) por ela ter escrito uma

dissertação na década de 1940, cujo título é Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo, evidenciando

a importância do tema do racismo em sua trajetória; c) por sermos um grupo dedicado ao estudo de

psicanalistas pioneiras, nos interessa visibilizar Virgínia Bicudo, dado que se trata de uma das principais

responsáveis pela difusão da psicanálise no Brasil.

A VIDA DE VIRGINIA BICUDO

Aos 10 anos de idade, a imigrante italiana Joana Leone, mãe de Virgínia Leone Bicudo, chegou ao Brasil.

Morou e trabalhou com sua família na Fazenda Matto Dentro, no interior de São Paulo. Joana conheceu

Theofilo Julio Bicudo, negro nascido na própria fazenda. Supõe-se que Theofilo, pai de Virgínia, fosse

filho do Coronel Bento Bicudo com uma mulher escravizada da fazenda. A família se muda para a cidade

de São Paulo em 1905, mesmo ano do casamento de Joana e Theofilo. Lá, eles tem 6 filhos entre 1906

e 1919. Virginia, a segunda filha, se destaca muito cedo entre os irmãos, e esse papel se solidifica após a

morte do pai, em 1933. (Abrão, 2010).

É importante destacar que Virginia foi descendente de escravizados e de imigrantes, num período em

que a escravidão era algo muito mais vivo na memória social brasileira do que nos dias de hoje e em que a

presença de imigrantes era apenas tolerada. Sua origem em meio a diversas discrepâncias econômicas e

sociais não pode ser ignorada ao abordarmos sua trajetória.

Virginia iniciou seus estudos em 1918, no Grupo Escolar do Brás, e posteriormente passou para a Escola

Normal Caetano de Campos, uma instituição prestigiosa e frequentada geralmente por pessoas de

camadas sociais mais elevadas. Formou-se em 1930 como normalista. Em seguida, em 1932, iniciou uma

formação como educadora sanitária no Instituto de Higiene. Como relata Abrão (2010), “tratava-se de

um curso de nível médio com duração de um ano, destinado a promover a difusão das ideias relativas

à saúde pública entre professoras primárias, que teriam atuação direta junto aos pais e aos alunos

matriculados nas escolas” (p.53).

Depois disso, ela ingressa no curso de Ciências Sociais, em 1936, na Escola Livre de Sociologia e Política

de São Paulo. Aí entra em contato com a psicanálise pela primeira vez. Conclui a graduação em 1938. Em

entrevista, Virgínia Bicudo (1994) conta sobre esse período:

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379O que me levou para a psicanálise foi o sofrimento. Eu queria me aliviar de sofrer.

Imaginava que a causa do meu sofrimento fossem problemas sociais, culturais. Então

me matriculei na Escola de Sociologia e Política. Isso foi em 1935.

Eu tinha conflitos muitos grandes comigo mesma, mas achava que a causa era social.

Desde criança eu sentia preconceito de cor. Queria o curso de sociologia porque, se

o problema era esse preconceito, eu deveria estudar sociologia para me proteger do

preconceito, que é formado ao nível sociocultural.

No segundo ano do curso, com a professora Noemy Silveira, tive contato com a

psicologia social. Comecei a ler e ali encontrei a psicologia do inconsciente de Sigmund

Freud. Aí disse: “É isso que estou procurando”. (p.6)

É a partir desse ponto que ela decide estudar psicanálise e encontra Durval Marcondes, que é quem

a encaminha para análise com Adelheid Koch, analista didata recém chegada ao Brasil. Segundo a

própria Bicudo, o valor cobrado pelas sessões era quase todo seu salário como educadora sanitária,

o que a obrigou a pegar um empréstimo por um ano para arcar com essa despesa. Após um ano de

análise, Virgínia Bicudo passa a atender pacientes, o que a alivia financeiramente, mas que vem lhe

gerar problemas, já que os analistas, em sua maioria, eram médicos. Isso culmina nas acusações de

charlatanismo na década de 1950 (Braga, 2016).

Na década de 1940, lecionou Psicanálise e Higiene Mental na Escola Livre de Sociologia e Política,

período em que também iniciou um curso de mestrado concluído em 1945, com a defesa de sua

dissertação Estudos de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo, que abordaremos adiante. Ainda

nesse período, com a fundação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em 1943, ela passa

a integrar a diretoria e produz diversos textos com intenção de registrar a história desse movimento e

auxiliar em sua divulgação e expansão.

Na metade da década de 1950, Virgínia estabeleceu-se em Londres e aprofunda seus conhecimentos na

teoria kleiniana. Teve contato pessoal com Bion, Segal e com a própria Klein. Em 1960, Bicudo retornou

ao Brasil e, a partir de então, participou ativamente da difusão das ideias kleinianas no país e da expansão

das sociedades de psicanálise pelo território nacional. Também teve papel indispensável na fundação de

revistas como o Jornal de Psicanálise e a Revista Brasileira de Psicanálise. Na década de 1970, fundou

o Grupo Psicanalítico de Brasília e o periódico Alter. Ela prosseguiu com as atividades de formação e

trabalha na divulgação da psicanálise no rádio e em jornais.

A partir da década de 1980, Virgínia Bicudo se afastou gradualmente das atividades de direção

direcionando seus esforços para supervisões e análises didáticas. Os trabalhos publicados nessa época

também deixam de ser debates sobre conceitos e passam a ter como foco a tentativa de estabelecer a

história da psicanálise no Brasil ou recontar suas próprias memórias. Já na década de 1990, começou

a ter problemas de saúde, que a forçaram a restringir cada vez mais suas atividades. Faleceu em 26 de

setembro de 2003, aos 92 anos de idade (Abrão, 2010).

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380A OBRA DE VIRGÍNIA LEONE BICUDO

Virgínia Leone Bicudo escreveu sobre os temas mais diversos. Muito de sua produção estava voltada

para a divulgação da psicanálise e expansão das instituições, mas havia também trabalhos clínicos que

demonstravam uma aguçada percepção, bem como discussões teóricas de problemas variados. Suas

publicações carregavam a marca de sua formação na Inglaterra, valendo-se com muita frequência das

ideias de Klein e Bion.

Dada a dificuldade em organizar sua produção, seja por um recorte temático, seja por um ordenamento

cronológico, faremos uma breve exposição dos trabalhos que consideramos mais relevantes na

apresentação da autora como psicanalista brasileira negra e como uma pioneira da psicanálise brasileira.

Virgínia Bicudo é frequentemente lembrada por sua dissertação, escrita ainda quando seu contato

com a psicanálise se iniciava. Com o título Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo, ela parte

de entrevistas realizadas com pessoas que ela separou em dois grupos, pretos e mulatos, cada um se

subdividindo com relação à classe social.

Valendo-se desse material, chega a algumas conclusões que poderiam ser resumidas da seguinte

maneira: os pretos de classe social inferior se relacionam com brancos pautados por um forte sentimento

de inferioridade, o que ocorre simultaneamente à rivalidade entre pretos; os pretos de classe social

intermediária, por outro lado, embora altamente sensíveis com relação à cor, se veem identificados

com brancos e buscam conseguir a aprovação e aceitação destes. Com relação aos mulatos, a autora

nota que os de classe social inferior tentam a todo custo evitar a ofensa de serem chamados de negros.

Identificados com os brancos, com quem tem muitas oportunidades de convívio, sofrem muito com

as atitudes de rejeição deste grupo. Já os mulatos de classe intermediária evitam de forma ainda mais

marcada o contato com pretos ou até mesmo com mulatos; e se valem de argumentos que colocam em

evidência a ideia de que todos os brasileiros são mestiços. De toda forma, também os mulatos de classe

intermediária sofrem pela violência racista na medida em que seus traços sejam mais marcadamente de

origem africana.

Em sua produção, é marcante o interesse de Virgínia Leone Bicudo em conciliar as perspectivas social e

subjetiva através da união entre sociologia e psicanálise. A autora propõe pensar o ser humano como um

ser “bio-psíquico-cultural e ecológico” sem esquecer que o mesmo também está submetido a dinâmicas

do inconsciente. Para ela, “a superação de resistências inconscientes é perceptível tanto em um plano

individual da personalidade como em um plano social, tendo em vista que psíquico e social se encontram

intrinsecamente estruturados” (Bicudo, 1969, p. 285).

Em vários de seus trabalhos (Bicudo, 1969, 1970, 1972; Bicudo & Filho, 1980), Bicudo reflete sobre as

críticas feitas à psicanálise em sua época, entre outras, o papel que tal disciplina teria nas reações de

rebeldia das gerações mais novas contra os padrões, no comportamento sexual dos jovens; e em sua

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381omissão em apresentar propostas para uma vida melhor. Nesses trabalhos, procura pensar sobre as

possíveis contribuições do psicanalista, da psicanálise e das instituições de psicanálise à sociedade e às

ideologias sociais. Ela compreende que o ser humano está muito longe de ter completo controle sobre o

seu destino, principalmente na medida em que conhece pouco sobre a sua própria natureza.

Muito investida na criação e consolidação de instituições psicanalíticas, Bicudo (1972) tenta estabelecer

os requisitos mínimos para que uma pessoa possa ser psicanalista. Entre os requisitos pessoais estão:

(1) estar dotado de certas condições de ajustamento e qualidades da própria personalidade; (2) ser

capaz de tolerar angústias e de receber as identificações projetivas de seus pacientes sem se envolver

emocionalmente; e (3) desvencilhar-se, tanto quanto possível, de suas ideologias, porém sem perder de

vista a pergunta sobre até que ponto é possível libertar-se dela. Entre os requisitos ligados à formação, ela

destaca: (1) possuir conhecimentos sobre a dinâmica do inconsciente e experiência no manejo da técnica

psicanalítica; e (2) passar pela análise didática depois de ter superado provas de seleção constante em

entrevistas psiquiátricas e testes de personalidade. Em resposta a algumas críticas dirigidas à psicanálise,

Virgínia Bicudo defende que o psicanalista se concentre em fazer aquilo que é possível dentro do que se

propõe - o que ela enxerga como uma contribuição satisfatória da psicanálise frente ao social.

Ainda sobre o investimento de Virgínia Bicudo em um pensamento e em uma prática profissional que

concilia as perspectivas social (através da sociologia) e subjetiva (através da psicanálise), merece destaque

o artigo “Incidência da realidade social no trabalho analítico” (Bicudo, 1972). Nele, a autora desenvolve

uma trabalho muito consistente que pode, inclusive nos dias atuais, contribuir para incrementar a leitura

psicanalítica de mundo e dos sujeitos com uma leitura sobre o impacto que a realidade social tem tanto

do ponto de vista do paciente no trabalho analítico quanto do ponto de vista do analista na situação

analítica. Em resumo, a autora entende que

A realidade social se insere inevitavelmente na situação analítica através das

personalidades do paciente e do analista. Entretanto, as posições de paciente e de

analista são diametralmente opostas. Enquanto o primeiro revive suas experiências

pretéritas no relacionamento com o analista, este se utiliza da técnica psicanalítica

para obter um conhecimento sobre a realidade psíquica elaborada sob a influência de

fatores míticos e místicos, ideológicos e doutrinários, científicos e tecnológicos, em

suma sob a elaboração de processos das estruturas sociais. (Bicudo, 1972, p. 303)

A abordagem do impacto da realidade social no contexto clínico evidencia como a psicanálise não se pode

colocar como uma ciência focada exclusivamente na subjetividade. Afinal, como Bicudo mostra, o caráter

social do ser humano se faz presente também (e com muita força) no contexto clínico.

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382COMENTÁRIOS E SELEÇÃO DOS TEXTOS TEÓRICO-CLÍNICOS

No rastro de seu retorno ao Brasil, após o período de formação na Inglaterra, Bicudo produz um grande

número de trabalhos teóricos e clínicos com um intenso colorido kleiniano. Essa influência é sentida desse

ponto em diante em seus escritos. Além disso, nesses textos teórico-clínicos de Bicudo, encontramos

frequentemente fatos importantes da história da psicanálise brasileira, tornando difícil essa divisão

didática-temática que tentamos realizar, embora isso seja importante para destacar sua importância

tanto clínica quanto teórica.

Caberia uma discussão de alguns termos da psicanálise kleiniana para termos uma justa medida do

posicionamento de Bicudo, o que faremos em momento mais oportuno.

Em seu breve texto de 1962, Falso luto e falsa reparação através de recursos paranóide e maníaco, a autora

promove uma discussão sobre o processo analítico de pacientes que ao entrarem em análise regridem

a angústias esquizo-paranóides. Trata-se de um texto de orientação kleiniana que demonstra o que

deve esperar um analista e de que forma deve-se agir diante do falso-luto e da falsa reparação enquanto

recursos defensivos desses pacientes.

Em Relação econômica entre splitting e sintomas obsessivos, a autora discute um caso clínico partindo de

uma perspectiva freudiana. Bicudo demonstra uma habilidade descritiva à respeito dos fenômenos tão

raramente encontrados nos pacientes neuróticos obsessivos. A autora elenca mecanismos defensivos

levados em conta na abordagem mais freudiana (isolamento/anulação), mostrando, em seguida, a

presença de outros mecanismos (splitting, deslocamento da angústia, identificação projetiva, sublimação

dos impulsos pré-genitais) quando se parte de uma interpretação mais kleiniana. Ao longo do texto

são discutidas técnicas amparadas na teoria psicanalítica de autores da Escola Inglesa de psicanálise

(Bion, Klein, Winnicott) no sentido de fortalecer e integrar o eu cindido do paciente obsessivo, para que

posteriormente se possa interpretar inveja e culpa.

Damos destaque para esse trabalho da autora na medida em que ele consiste em uma contribuição muito

rica por se tratar, ao mesmo tempo, de um esquema de divulgação da teoria kleiniana e de instrumento de

evidenciação do arcabouço teórico-clínico da autora.

Outro tema que tomou a atenção de Bicudo no final da década de 1960 foi a regressão. Em dois trabalhos

do período, Mito, instinto de muerte y regresion en el proceso analitico e Regressão no processo analítico,

aborda esse conceito e advoga em favor dos processos regressivos no tratamento analítico, que julga

serem inevitáveis e, se conduzidos com habilidade, extremamente úteis para que o paciente entre em

contato com conteúdos muito primários.

Em Contribuições de Melanie Klein à psicanálise segundo minha experiência, podemos destacar, novamente,

o entendimento da autora acerca das finalidades do tratamento psicanalítico. Segundo a autora, o

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383tratamento psicanalítico bem conduzido tem como efeito a diminuição do medo e da inveja, assim

como enfatiza sua possibilidade de confiar “nas forças construtivas e reparadoras e na capacidade de

amar do sujeito. Tanto para si quanto para o outro, o sujeito analisado passa a ter uma tolerância maior

com as próprias limitações assim como com a limitação do objeto” (Bicudo, 1981, p.15). Bicudo (1981)

mantém uma posição esperançosa em termos do aumento da capacidade do sujeito para o amar, reparar

e construir. Por isso mesmo enfatiza tanto em sua prática, como figura fundamental de expansão

da psicanálise brasileira, tanto técnica quanto teoricamente, que um dos modos de contribuição da

psicanálise para a sociedade seria levar a cabo a análise de figuras poderosas e de influência social como

presidentes, governadores e homens em posição de poder.

O mesmo artigo contém diversos elementos autobiográficos, já que a psicanalista introduz sua fala

relatando como foi seu encontro com a psicanálise. Enfatiza a importância de Durval Marcondes

e Adelaide Koch para a implantação da psicanálise no Brasil. Em 1953 inicia sua análise com Frank

Philips e sua consequente inserção na psicanálise inglesa, passando 5 anos fazendo sua formação na

Inglaterra, entre os anos de 1955 e 1960. No texto a autora elenca alguns fatores interessantes, como

por exemplo, destaca a influência da psicanálise freudiana na educação sexual das crianças. Ainda

nesse texto, a autora afirma: “Cabe ao analista divulgar seus conhecimentos para serem redefinidos em

processamentos sócio-econômico-culturais.” (Bicudo, 1981, p.11) Aqui, percebemos a consideração

social e analítica em relação ao que se espera da psicanálise em termos de mudanças sociais. Bicudo

pretende divulgar algumas contribuições de Klein à Psicanálise, fazendo a seguinte seleção de temas: A

retomada de Klein dos conceitos de Pulsão de Vida e Pulsão de Morte freudianos; o desenvolvimento

realizado pela autora sobre a teoria das fantasias e os mecanismos de defesa denominados: identificação

projetiva e introjetiva, splitting, negação e idealização; Posição Depressiva; Teoria dos Objetos Internos;

desenvolvimento da técnica de análise de crianças utilizando brinquedos; análise da transferência

negativa e positiva nos destinos da angústia.

Impressiona em Bicudo a capacidade de síntese, sempre que em seus textos ela realiza um resumo

teórico para avançar em suas ideias. Por fim, temos o texto As múltiplas faces do self. Neste texto, a

autora discute os mecanismos de defesa e sua relação com proteção da vida, quando sob dominância da

pulsão de vida. Aborda isso em Freud para, posteriormente, relacionar com os conceitos kleinianos de

identificação projetiva e introjetiva. Faz o mesmo no que diz respeito à identificação em Freud para então

utilizar tal conceito sob a ótica kleiniana: “Do intercâmbio das identificações projetivas e introjetivas, vão

se construindo as imagens do self e de seus objetos.” (Bicudo, 1986, p. 11).

Como procuramos destacar nos trabalhos acima apresentados, o recurso à psicanálise de Melanie Klein

e teóricos das relações de objeto parecem exercer uma função na trajetória de Virgínia Bicudo que

busca relacionar o âmbito interno e externo: “Movendo-se do sonho para a realidade externa, e desta

novamente para o sonho, o homem constrói seu mundo interno sobre o qual se assenta sua identidade.

Nesse movimento de ir e vir entre o mundo psíquico e o mundo externo desenvolve-se o aparelho

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384psíquico.” (Bicudo, 1986, p.11). Entendemos que esta seja uma continuação condizente com a trajetória

pessoal e profissional da autora que se dá, de diferentes maneiras, entre o subjetivo e o social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para encerrar, notamos então que a produção de Virgínia Bicudo carrega a marca dos dois campos

de sua formação, a psicanálise e as ciências sociais. Percebemos uma preocupação de transformação

social através da psicanálise, tanto em sua dedicação institucional quanto nos textos mais teóricos.

Concluímos que, sob a luz de sua biografia, Virgínia Bicudo cientista social e Virgínia Bicudo psicanalista

são indissociáveis.

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385REFERÊNCIAS

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Bicudo, V. L. (2010). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. São Paulo: Sociologia e Política.

Bicudo, V. L. (1967). Relação econômica entre splitting, sublimação e sintomas obsessivos. Revista

Brasileira de Psicanálise, 1(1), 67-79.

Bicudo, V. L. (1968). Falso luto e falsa reparação através de recursos paranoide e maníaco. Jornal de

Psicanálise, 2(6), 4-6.

Bicudo, V. L. (1968). Mito, instinto de muerte y regresión en el proceso analítico. Revista de Psicoanálisis,

25(3/4), 749-766.

Bicudo, V. L. (1968). Regressão no processo analítico. Revista Brasileira de Psicanálise, 2(4), 491-517.

Bicudo, V. L. (1969). Sobre a função de psicanalista. Jornal de Psicanálise, 5(11), 1-2.

Bicudo, V. L. (1970). Contribuição do psicanalista à sociedade. Jornal de Psicanálise, 4(12), 1.

Bicudo, V. L. (1972). Incidência da realidade social no trabalho analítico. Revista Brasileira de Psicanálise,

14(2), 282-305.

Bicudo, V. L. (1972). Os institutos de psicanálise frente às ideologias sociais. Jornal de Psicanálise, 6(18), 1-2.

Bicudo, V. L. (1981). Contribuição de Melanie Klein à psicanálise segundo minha experiência. Alter, 11(1), 9-17.

Bicudo, V. L. (1986). As múltiplas faces do self: imagens refletidas das identificações introjetivas. Revista

Brasileira de Psicanálise, 20(1), 9-18.

Bicudo, Virgínia Leone. Já fui chamada de charlatã. Depoimento a Cláudio João Tognolli. Folha de São

Paulo, São Paulo, Caderno Mais, p. 6, 5 de jun. de 1994. Recuperado de: http://acervo.folha.com.br/

fsp/1994/06/05/72.

Bicudo, V., & Filho, O. F. (1980). Dilemas na produção científica da psicanálise no Brasil. Jornal de

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Braga, A. P. M. (2016). Pelas trilhas de Virgínia Bicudo: psicanálise e relações raciais em São Paulo. Lacuna:

uma revista de psicanálise, 2(1). Recuperado de: https://revistalacuna.com/2016/12/06/n2-01/.

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autoria

resumo

MARCUS VINICIUS NETO SILVA

Psicólogo. Especialista em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal de Minas

Gerais – UFMG. Mestre em Estudos Psicanalíticos pela UFMG. Doutorando em Estudos

Psicanalíticos na UFMG.

CONTATO: [email protected]

Um breve comentário sobre Capitão América e racismo

Capitão América é um personagem criado em 1940 que já nasce como propaganda política.

Steve Rogers, um soldado frágil, se oferece como voluntário para um programa experimental

do exército americano para a criação de supersoldados. Após esse procedimento, se torna

um herói da Segunda Guerra. Embora lute contra o fascismo e pela liberdade, nessa época

os EUA ainda mantinha práticas segregacionistas de todo tipo, algo que não é abordado

nos quadrinhos. Em 2016, outro personagem assume o manto de Capitão América: Sam

Wilson, o Falcão, um homem negro do Harlem. Sam e Steve são quase opostos: um luta pelo

sonho americano, o outro pelo cidadão comum. Os autores abordam nas histórias de Sam

Wilson como Capitão diversos problemas atuais dos EUA: imigração, grandes corporações

que operam acima da lei, abuso da força policial contra a população negra, etc. Em 2003 é

lançada a minissérie “Truth: red, white and black”, que narra a história dos testes do soro do

supersoldado em negros, o que causa a morte de vários. Os sobreviventes são enviados para

a guerra, em batalhões formados apenas por negros. Um desses soldados, Isaiah Bradley,

sobrevive e realiza missões como Capitão América. Articulando quadrinhos, história e

literatura, discutiremos o tema do racismo presente nesse material, considerando o contexto

em que foram produzidas, assim como seu potencial tanto na confirmação de ideologias

segregacionistas quanto na crítica delas.

PALAVRAS-CHAVE: quadrinhos, racismo, representatividade.

SUMÁRIO

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387Quando pensamos no Capitão América, imediatamente nos vem à mente a imagem do homem branco,

loiro, de olhos azuis, vestindo as cores da bandeira dos Estados Unidos (ver Figura 1). Criado por

Joe Simon e Jack Kirby em 1940, já em seu primeiro número notamos seu uso como ferramenta de

propaganda, ao aparecer em uma capa socando Hitler antes mesmo de os Estados Unidos entrarem na

Segunda Guerra.

Vários heróis patriotas foram criados antes do Capitão. Com a Segunda Guerra Mundial acontecendo,

norte-americanos pareciam divididos. Havia grupos que apoiavam nazistas e outros que demandavam

que o governo intervisse na guerra antes que fosse tarde demais. Como resultado dessas tensões,

diversas editoras lançaram verdadeiros panfletos pró-guerra, como The Shield, Tio Sam, Mr. America (ver

Figura 2) (Yanes, 2009).

Figura 1 - Primeiro número de Capitão América. Figura 2 - Tio Sam.

Voltando à história de origem do Capitão: Steve Rogers, um órfão frágil, decide se alistar no exército após

ver os horrores praticados pelos nazistas. Rejeitado por problemas de saúde, é abordado por um oficial

que oferece a ele a oportunidade de participar de um projeto secreto onde recebe uma injeção do soro

do super-soldado. Steve se torna incrivelmente forte e ágil, o ser humano perfeito. Os nazistas matam o

médico que inventou o soro antes que fosse possível criar outros soldados similares.

Capitão América representava os ideais de liberdade, honra e coragem do povo norte-americano. Em

sua carreira, combatia essencialmente super-vilões com pretensões de domínio mundial, como o Caveira

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388Vermelha 1. No período inicial da Guerra Fria, foi brevemente usado como instrumento de propaganda

anticomunista, mas sua série de quadrinhos eventualmente veio a ser cancelada. É trazido de volta em

1964, após passar alguns anos congelado no Ártico. Não acompanharemos aqui todas as mudanças

sofridas pelo personagem ao longo de sua extensa carreira; mais informações podem ser obtidas nos

seguintes trabalhos: Dittmer (2013), Lima (2012), Weiner (2009) e Wright (2001).

Os ideais representados pelo Capitão eram, no mínimo, ambíguos. Em um país onde leis segregacionistas

ainda vigoravam, e brancos e negros eram proibidos de lutar no mesmo batalhão2, pareceria contraditório

tomá-lo como representante da liberdade. Nos quadrinhos, a representação de personagens negros era

também altamente problemática: ou sequer apareciam, ou eram apresentados de forma estereotipada.

O exemplo mais chocante disso foi o personagem denominado Whitewash Jones, que fazia parte da série

Young Allies, uma espécie de história paralela às aventuras do Capitão, estrelando Bucky Barnes, seu

companheiro, e outras crianças igualmente caricatas (ver Figura 3) (McWilliams, 2009; Yanes, 2009).

1 Curioso notar que inicialmente o Caveira Vermelha era George Maxon, um empresário norte-americano que apoiava Hitler. Em

1965, sua história de origem é modificada e ele passa a ser um órfão europeu criado próximo a Hitler, que assassina e toma o lugar

de Maxon (Hayton & Albright, 2009).2 Somente após o término da Segunda Guerra Mundial, e mesmo assim com muita resistência, a situação mudou, com a Ordem

Executiva 9981, de 1948. De toda forma, ainda permanecia o fato de que a quase totalidade dos oficiais serem brancos; apenas

3% dos oficiais do Exército eram negros. (Butler, 1999, p.9)

Figura 3 - Whitewash Jones.

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389Nesse período, o Capitão se mostrava alheio à questão do racismo, quando não abertamente racista. A

igualdade e a liberdade pelas quais lutava eram apresentadas como sendo valores do povo americano,

apagando qualquer referência possível às diferenças que existiam no interior da cultura norte-americana.

Somente ao longo das décadas de 1960 e 1970 veremos o tema ressurgir nas histórias sob outro prisma,

especialmente após o aparecimento de outro herói, o Falcão (Nama, 2011).

O personagem que se tornaria o Falcão aparece pela primeira vez em Captain America #117, criado por

Stan Lee e Gene Colan em 1969. Sam Wilson encontra Steve Rogers quando o Caveira Vermelha troca

de corpo com ele (usando o cubo cósmico) e o envia para uma ilha cheia de inimigos. Lá, Steve se alia

a Sam e lidera os nativos em um combate, após treiná-lo e ajudar na criação de um uniforme e de seu

novo nome: Falcão. Sam é um homem negro, nascido no Harlem, que tem uma afinidade por pássaros e

mantém um falcão como companheiro (posteriormente fica claro que ele mantém uma ligação telepática

com o pássaro). Em seguida, o Falcão e o Capitão derrotam o Caveira Vermelha e frustram seus planos de

dominação mundial.

O Falcão passa a ser uma presença constante nas histórias do Capitão, chegando ao ponto de a revista

ser renomeada a partir de 1971 como Captain America and the Falcon, o que persiste até 1978. A relação

entre os dois personagens sempre foi complexa e ultrapassa o estereótipo do herói branco com um

ajudante negro. Surgem com frequência nas histórias momentos em que a dinâmica de poder entre os

dois personagens é colocada em questão. Sam insistia em não ser apenas um ajudante, tentava sempre

estabelecer seu lugar como equivalente ao do Capitão. A relação, porém, não era livre de tensão, e por

vezes o tema surgia de modo problemático em determinadas histórias, onde movimentos negros eram

criticados por recorrer à violência (Nama, 2011).

Tomaremos uma história em particular para pensar na relação entre os ideais representados pelo

Capitão e como eles entravam em conflito com a posição do Falcão (ver Figura 4). Em Captain America and

the Falcon #153, Steve sai de férias com a namorada e deixa Sam cuidando das coisas no Harlem. Quase

imediatamente começam a surgir relatos de que o Capitão América está espancando negros no bairro,

fato que é investigado pelo Falcão. Ele descobre que alguém idêntico ao Capitão em todos os sentidos

está atacando moradores do Harlem. Posteriormente é revelado que se trata de William Burnside, um

historiador fascinado pelo Capitão, que descobre a fórmula do soro do super-soldado em um arquivo

nazista e decide se tornar o Capitão, que havia aparentemente morrido no final da Segunda Guerra. Ele

aplica o soro em si mesmo, se submete a cirurgia plástica para ficar idêntico ao seu herói e até mesmo

muda legalmente seu nome para Steve Rogers. Ele tem uma breve carreira combatendo comunistas, mas

sua versão do soro era defeituosa e ele passa a ver inimigos em todos os lugares (uma crítica aberta dos

autores ao período mais intenso da Guerra Fria).

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Figura 4 - Capitão América vs Falcão. Figura 5 - O duplo do Capitão ataca “comunistas”.

Interessante notar que os autores aqui fazem uso de uma narrativa revisionista para criar esse duplo

do Capitão, que perseguia os mesmos ideais, mas que em algum momento enlouquece. Não seria difícil

supor que está em questão aqui uma reflexão sobre como esse ideal defendido pelo Capitão poderia ser

usado para justificar violências e produzir segregação (ver Figura 5).

De toda forma, ao longo de sua carreira como super-herói, o Falcão passa por modificações que podem

ser vistas como representações simbólicas da maior mobilidade social e econômica dos negros nos

Estados Unidos durante a década de 1970. Ele primeiro consegue uma garra que lança através de uma

1 Curioso notar que inicialmente o Caveira Vermelha era George Maxon, um empresário norte-americano que apoiava Hitler. Em

1965, sua história de origem é modificada e ele passa a ser um órfão europeu criado próximo a Hitler, que assassina e toma o lugar

de Maxon (Hayton & Albright, 2009).2 Somente após o término da Segunda Guerra Mundial, e mesmo assim com muita resistência, a situação mudou, com a Ordem

Executiva 9981, de 1948. De toda forma, ainda permanecia o fato de que a quase totalidade dos oficiais serem brancos; apenas

3% dos oficiais do Exército eram negros. (Butler, 1999, p.9)

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391manopla e que pode içá-lo para o alto de prédios. Não muito depois, recebe de outro personagem, o

Pantera Negra3, asas feitas especialmente para ele e que asseguram agora uma capacidade que não é

compartilhada pela maioria dos heróis (Nama, 2011, p.73).

Em 2015, acontece algo que muda definitivamente a dinâmica entre esses dois personagens: o soro do

super-soldado, que mantinha o Capitão no auge de sua forma física, para de fazer efeito, e ele envelhece

rapidamente. Com isso, ele passa o manto de Capitão América para seu amigo Sam Wilson (ver Figura 6).

Podemos compreender esse envelhecimento súbito de Steve Rogers como uma forma simbólica de dizer

que os ideais que ele representava estavam também ficando velhos, ou talvez que seus ideais da época da

Segunda Guerra já não tinham mais a mesma força.

3 O Pantera Negra foi criado em 1966 por Stan Lee e Jack Kirby e antecede a criação do Partido dos Panteras Negras, que seria

criado alguns meses depois.

Figura 6 - Primeiro número de Sam Wilson

como Capitão América.

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392De toda forma, temos aqui um momento interessante, em que a narrativa ficcional se encontra com o

mundo real. Pouco depois de ser lançada a revista Sam Wilson: Captain America #1, fãs criticaram os

autores e a editora, Marvel Comics, por estarem pervertendo o personagem do Capitão América e até

mesmo o canal Fox News fez uma reportagem indignada contra o rumo das histórias de Sam Wilson

como Capitão, afirmando que ele agora combate os conservadores, as pessoas que sustentam a nação,

e apoia imigrantes ilegais4. No mundo ficcional, Sam enfrenta o mesmo tipo de dificuldade, após romper

com o governo e com autoridades e passar a operar de forma independente. Ele decide atender aos

pedidos das pessoas comuns, o que leva muitos a rotularem-no como Capitão Anti-América, Capitão

Comunismo e outros apelidos similares.

Acompanharemos dois momentos específicos em que fica clara a posição de Sam e que o colocam em

rota de colisão com a parcela conservadora dos Estados Unidos. O primeiro é quando ele atende a

um chamado de uma imigrante mexicana que o leva a descobrir uma organização chamada Filhos da

Serpente, que estava raptando mexicanos que tentavam fazer a travessia para os Estados Unidos e

utilizando-os como cobaias em experimentos genéticos. No meio do deserto, Sam confronta os vilões e

eles respondem com indignação: “Ora, vejam quem está aqui! Capitão Socialismo chegou para salvar o dia!”.

Essa história apresenta uma crítica direta à agenda conservadora do então candidato Donald Trump,

com seus discursos contra imigrantes. Os autores, em números posteriores, mostram como os Filhos

da Serpente se convertem em uma empresa, a Serpent Solutions, o que parece significar que grandes

corporações passam a funcionar como vilãs.

Num momento posterior, empresas privadas decidem criar um corpo de policiais que são meio humanos/

meio robôs, programados para fazer cumprir a lei, chamados de Americops (ver Figura 7). Logo começam

a surgir denúncias de uso excessivo da força contra jovens negros, e um outro herói, apropriadamente

chamado Rage, intervém durante uma dessas abordagens. A tensão aumenta, e protestos começam a

ocorrer, com risco de um resultado violento. Capitão América aparece e apazigua as coisas removendo

Rage do local. Eles trocam algumas palavras e Rage acusa Sam de estar trabalhando a favor do sistema e

contra seus irmãos.

4 O comentário pode ser acessado no link: https://www.youtube.com/watch?time_continue=135&v=5v46yDz70X8.

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Figura 7 – “Americops”.

Pouco depois, Rage é incriminado por um roubo que não cometeu e recusa ajuda de Sam, mesmo

sabendo que seria condenado e iria pra cadeia sendo inocente. Sam consegue uma filmagem que inocenta

Rage, mas o juiz desconsidera isso, afirmando que são evidências obtidas ilegalmente. O desfecho disso é

que Rage vai preso e morre ao ser espancado na prisão por vários criminosos que ele ajudou a encarcerar.

Esses eventos fazem eco à onda de protestos ocorridos nos Estados Unidos após denúncias de abusos de

policiais, uso excessivo da força e até mesmo policiais atirando em negros pelas costas. O debate entre

Sam e Rage surge como uma reflexão sobre qual caminho tomar, Sam representando a saída diplomática,

daqueles que ainda confiam no sistema para regular as relações e Rage no polo contrário, dos que creem

que tem de tomar a luta para si e partir para a ação.

A passagem de Sam como Capitão América é, como vimos, carregada de discussões complexas e que não

apresenta saídas fáceis. O tema do racismo é debatido abertamente e é inclusive o motor de todo o arco

final da história. Acontece que alguns anos antes, em 2003, em uma minissérie chamada Truth: red, white

and black, os autores Nick Spencer e Daniel Acuña resolvem reescrever as origens do Capitão América ao

retratar os testes feitos com o soro do super-soldado antes que ele fosse injetado em Steve Rogers.

A minissérie apresenta a história de como o soro do super-soldado foi testado em soldados negros antes

de ter sido aperfeiçoado e utilizado em Steve Rogers. A segregação no Exército é um tema amplamente

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394debatido, e os personagens frequentemente enfrentam situações de racismo e violência. Os testes do

soro imperfeito causam a morte de vários soldados negros e os que sobrevivem ficam mais fortes, mas,

em sua maioria, deformados (ver Figura 8).

Figura 8 - O pelotão de soldados negros afetados

pelo soro.

Figura 9 - Isaiah Bradley como Capitão América.

A parte final da história se passa no presente, quando Steve Rogers investiga sua própria origem e é

informado da existência de Bradley, que retornou com vida da guerra, foi preso e agora vive com a família,

embora muito debilitado. Os dois se encontram em uma cena de reconciliação com o passado (ver Figura 10).

Boa parte da trama discute o quão próximo eram os ideais de eugenia norte-americanos do início do

século e os implantados por Hitler. Até mesmo o programa do governo que criou o Capitão é apresentado

como sendo uma colaboração entre os norte-americanos e alemães antes da Segunda Guerra. Isso

reforça a narrativa inicial da origem do Capitão, deixando agora explícito o que antes ficava apenas

insinuado: ele representa o ser humano ideal do ponto de vista europeu, ariano (Hack, 2009).

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Figura 10 - O encontro de Steve Rogers

e Isaiah Bradley.

Apesar dos diversos pontos positivos, o final é pouco satisfatório, até mesmo ingênuo, apresentando

os dois lado a lado, como se fossem companheiros. Steve segue sua carreira como Capitão, mas Isaiah

fica relegado às sombras, exatamente como no início da trama. E, nesse sentido, Truth: red, white and

black parece propagar a versão de que apenas alguns poucos norte-americanos são racistas, há aqueles

bons, como Steve, que foram também manipulados e são também vítimas (Nama, 2011). Mesmo assim,

representa um passo importante ao inserir retroativamente na história de origem do Capitão toda a

complexidade do período da guerra, ajudando a tornar questionável o ideal nacionalista que inicialmente

era veiculado pelo Capitão.

5 Movimentos eugenistas eram comuns no início do século XX, que viu o surgimento do Ku Klux Klan, e mesmo entre a

população em geral cresciam sentimentos de xenofobia e racismo. Diversas leis restringiam a entrada de imigrantes, como o

Ato de Imigração Johnson-Reed, de 1924, que limitava a imigração a uma cota calculada com base na presença de cidadãos de

determinada nacionalidade no país, para manter a homogeneidade do povo americano. (Dinnerstein & Reimers, 1999)

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autoria

resumo

ANTONIO MARCOS PEREIRA

Professor Adjunto de Literatura Brasileira na Universidade Federal da Bahia – UFBA. Doutor

em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.

CONTATO: [email protected]

Vidas de Carolina Maria de Jesus

A autobiografia, ou as biografias, de Carolina Maria de Jesus devem ser consideradas processos

literários. O leitor deve estar atento a todo processo editorial relativo à publicação dessa vida

emblemática que envolve o que dizer, o que selecionar, como dizer. Além disso, deve-se lembrar

de que o caráter literário desses textos serve como advertência: biografia, ou autobiografia, é

metonímia, sempre insuficiente para a vida em questão.

PALAVRAS-CHAVE: biografia, autobiografia, lúmpen.

SUMÁRIO

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O movimento de pesquisa que tenho realizado com mais frequência nos últimos anos compreende o

manuseio das categorias “Vida” e “Obra” em articulação. Esses termos, ou noções, ou conceitos, são

oceânicos – mas não causam estranheza, seguimos tratando deles como se fossem parte da solução, e

não parte de qualquer problema. Uma certa liberalidade epistemológica geral nos estudos literários,

aliada à disseminação cada vez maior de formas híbridas nas poéticas contemporâneas, tanto na narração

quanto na poesia, e passamos tranquilamente, frequentando a Obra e, quando nos convém, virando a

esquina para fazer uma visita explicativa à Vida.

Venho estudando e escrevendo sobre a biografia literária, sobre a maneira como escrevemos

contemporaneamente as vidas dos autores e como esses processos são também processos de criação,

de invenção: há uma poética na biografia literária, que não se constitui meramente na recolha de uns

documentos que atestam um domínio factual e que, uma vez organizados, perfazem uma “vida escrita”.

Isso é uma coisa bem banal, sabemos disso: a mão de quem biografa está presente, há mil decisões, há o

problema do endereçamento (quem imaginamos é o leitor da biografia), da justificação (a quais questões

ambicionamos responder com essa biografia), e da figuração do autor (buscamos monumentalizar, fazer

justiça, resgatar: qual a imagem que almejamos fixar da autoria na biografia). Mas nossas expectativas com

relação ao gênero biografia tendem a minimizar a consideração a esse respeito e, uma vez que o gênero,

como qualquer outro, aliás, sobrevive inercialmente, lemos uma biografia literária como se ela desse

testemunho de um arco que, saído do nascimento apresenta peripécias sequenciadas dentre as quais a

produção da obra, introduzida em estado explicado na deriva da vida que segue até seu encerramento. O

trabalho do biógrafo – a passagem de um arquivo ajambrado a partir de caixas de documentos de origem

e importância a mais diversa, às vezes de precaríssima organização, e de documentação construída em

entrevistas, observações, estudos – tende a ser elidido no resultado, mas está lá, assim como está, sempre,

o problema de realizar essa passagem, de organizar a cacofonia em narrativa.

O que mais me chama a atenção é que percebemos pouca dificuldade em lidar com a questão vida e

obra, pois tendemos a naturalizar esse percurso: é evidente que saímos de uma coisa para engendrar

a outra. O domínio da biografia me parece dramatizar as complicações disso e sugerir uma dimensão

que é mais interessante justamente porque parece menos natural: é a complicadora inversão do fluxo

explicativo, que assume a possibilidade de uma contracorrente, de algo que sai da obra para “criar” uma

vida, vida que é, também, criada pelo biógrafo. Apenas para aludir a um ponto, a lógica da cronologia nos

faz pensar sobre a distinção entre o “quando” da existência do sujeito, de uma pessoa física, e o “quando”

da emergência de uma autoria, exercício complexo e muito idiossincrático, no qual se mesclam projetos

existenciais, empenho íntimo para a realização material da obra e sua publicação, e continuidade de

negociações que tem a ver com a manutenção desse lugar, dessa possibilidade de trabalho, a um só

tempo criativo e enraizado em procedimentos muito estruturados, a uma suposta “lógica” do mercado

e suas oportunidades e por aí vai. Para aludir a outro ponto, a suposição de um “lugar” de autoria, que

a recepção ordinária usa como âncora para conter a deriva hermenêutica típica de um tratamento

ARTICULAÇÕES ENTRE VIDA E OBRA

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400mais nuançado, mais complexo, se serve ao propósito de consagração e canonização, serve também

como limitação de leitura, anteparo para a constatação de formas avessas de desempenho pessoal,

que eventualmente causam contrariedade por reafirmarem um caráter mais ebuliente, ambivalente,

e inquieto em qualquer “vida”. E, por fim, a sugestão de Barthes, que me parece muito aguda e

particularmente oportuna aqui, inclusive por sua ressonância com a ideia de uma “identidade oculta”, um

processo de “sair do armário”, de que uma biografia é um romance que não ousa dizer seu nome.

Essas considerações aparecem puxadas por um incidente recente, em sala de aula, diretamente

conectado a nossa situação aqui. Estávamos discutindo, em uma disciplina sobre “a literatura brasileira

e a construção da nacionalidade”, um conto de Sérgio Sant’Anna (1989), Um discurso sobre o método. A

narrativa, em muitos aspectos típica de Sant’Anna, apresenta uma peculiaridade que a justifica como

matéria de exame em um curso dessa natureza: seu protagonista operário. Na estrutura do curso,

aparecia como uma instância do que comentavam Dalcastagné e Mata (2012) ao lembrarem que

A literatura é, como qualquer outro espaço social, um campo de disputas – pelo

acesso à voz, pela possibilidade de difusão de representações do mundo, pelo

reconhecimento do público e dos pares. ... Porém, o retrato da nação que emerge da

literatura é feito tanto de presenças – e de presenças hierarquizadas – quanto de

ausências. (s/p)

Assim, a ambição ao utilizar o conto de Sant’Anna era convidar a uma pausa na consideração sobre o jogo

de representações do pobre, do operário, na ficção brasileira contemporânea, incidindo particularmente

sobre algumas manobras do conto, como a maneira como o protagonismo é conferido ao personagem

central apenas por força da possível espetacularização de sua morte e a passagem em que se aventa

uma especulação psicanalítica sobre os destinos possíveis ao personagem. Puxado por uma discussão

que enfatiza esses aspectos, costumo, então, introduzir o seguinte trecho, que me parece se encaixar

com muita felicidade didática à ideia de que “o retrato da nação que emerge da literatura é feito tanto

de presenças – e de presenças hierarquizadas – quanto de ausências”. É quando o narrador diz que “Ele

não era um sonho, mas uma alegoria social. Social, política, psicológica e o que mais se quiser. Aos que

condenam tal procedimento metafórico, é preciso lembrar que a classe trabalhadora, principalmente o

seu segmento a que chamam de lúmpen, ainda está longe do dia em que poderá falar, literariamente, com

a própria voz” (Sant’anna, 1989, p. 8).

No processo de comentar esse trecho, enfatizei bastante a ideia de que “a classe trabalhadora,

principalmente o seu segmento a que chamam de lúmpen, ainda está longe do dia em que poderá falar,

literariamente, com a própria voz” e aludi, então, à obra de Carolina Maria de Jesus como contraponto,

como resposta a essa observação do narrador do conto de Sant’Anna. E nesse momento uma aluna – uma

CAROLINA, FAVELADA?

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401presença muito flutuante e eventual na sala de aula, pois se fosse mais frequente e presente já saberia

de que se trata, inclusive por ser leitura constante do programa, mas privada de má vontade, pois se

manifestava inquirindo genuinamente – pergunta “Quem, professor?” E eu retruco, imediatamente,

repetindo o nome próprio e esclarecendo: “Carolina Maria de Jesus, uma mulher, negra, favelada, que

escreveu um diário que fez muito sucesso nos anos sessenta”.

Observando esse incidente, mínimo, agora, o que mais me salta aos olhos é o caráter peremptório da

resposta pronta, e seu mascaramento de vários problemas. Claro, posso justificar parcela da coisa

dizendo que estamos num jogo pedagógico, e que o manejo de certa ordem de caricatura é parte da

entrada numa determinada tópica que, ao ser explorada devidamente, fornecerá os recursos para a

crítica apropriada à caracterização introdutória, propedêutica. Mas quando examino o incidente, é a

ideia de que a biografia compacta apresentada explica a pergunta pela autoria. Explica? Onde estava/

estou com a cabeça? Carolina Maria de Jesus, lúmpen? Lembro aqui de Bom Meihy (2015) sugerindo, por

exemplo, que alguma ordem de relativização ao adjetivo “favelada” fosse aplicada ao caso de Carolina

Maria de Jesus:

Comecemos o retraço crítico pelo subtítulo do Quarto de despejo: diário de uma

favelada. Favelada? Favelada simplesmente porque morou em uma favela? ... Ela

nunca, jamais se ajustou à vida favelada, não compactuava em nada com a crônica

“cultura da pobreza”. Era estranha e estranhava seus vizinhos. ... Era-lhe incômodo

o convívio comunitário e toda sua luta se matizou pela vontade de sair de lá.

Favelada?!… (p. 260)

Bom Meihy (2015) segue apontando que “Carolina apenas pode ser taxada de favelada a partir de visão

externa, estreita, comercial” e sei que compactuava com essa visão, fixada em uma espécie de verbete de

wikipédia que trago na cabeça para acesso imediato e função de resposta: sua disponibilidade é também

o que me permite acoplar Carolina Maria de Jesus ao conto de Sant’Anna, pois como pano de fundo

estou dizendo: “É aqui, na narrativa de Carolina Maria de Jesus, que vamos encontrar o lúmpen falando

literariamente com a própria voz.” E, ao dizer isso, passo ao largo do problema maior – o da vinculação

identitária da autora, o de como encaixá-la em um regime de “referências identitárias” que permitam,

como diz Bom Meihy, “iluminar a narrativa de Carolina de forma mais consequente e lógica”. Pois ao

observar o cotidiano revelado em Quarto de despejo, pareço estar diante de uma população fronteiriça,

situada de maneira tão periclitante no jogo social que sua destituição ultrapassa a de recursos materiais,

e passa pela privação de consciência de si. Se é isso, quem observa e retrata isso está fora, no próprio

momento da retratação: está, como dizem, no mundo, mas não é do mundo. Ou é, já, sempre, de outro

mundo, de outra comunidade.

Estou aqui tentando apalpar um problema de interpretação central para mim, para a maneira como

leio e valoriza o trabalho de Carolina Maria de Jesus. Por um lado, há uma matéria de pobreza que me

diz: Eis aqui a voz silenciada de muitos, falando em mim: sou ao mesmo tempo metonímia e porta-voz,

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402e compreender o silenciamento da história literária a meu respeito (no limite, alcançando o tedioso e

infinito tema de sua negação à história literária) é compreender essa literatura e esse país. Por outro lado,

há uma matéria antagônica e sempre presente que me diz: A minha disposição diante da pobreza é seu

repúdio e sua recusa; não sou isso, não desejo ser isso, desejo ser Outra, a que realmente sou, e que está

aqui, nessa escrita, manifestando seu desejo de se ausentar desse jogo da privação.

Essa polarização só precisa ser resolvida para fins de aproveitamento estratégico: me parece bastante

razoável abrigar ambas como potência de leitura, e acolher essa ambivalência fundante como algo

que é parte do pacote que nomeamos “literatura”. Assim, se há uma ordem de valorização dessa obra,

ela não deve se dar às expensas da valorização dos seus vários avessos: as facetas alternativas que,

na obra, falam contra a apreensão automática de seu valor; aquilo que, na vida, contraria a recepção

estruturada da obra, e outros tantos aspectos nos quais se celebra o dissenso e se incomoda a harmonia

entre a acomodação crítica e o controle da literatura. Dito de outra maneira, a obra, e a autora, nos

interessariam, continuam nos interessando e nos levando a dedicar mais atenção e meticulosidade à sua

leitura, precisamente porque são ambivalentes e paradoxais, tanto vida quanto obra sendo marcadas por

tensões e pela óbvia dificuldade de resolução programática, que reaparece pois é parcela do processo de

inserção da obra em parte de um paideuma, sua transformação em um conteúdo de formação que solicita

seu amansamento didático. Assim, ao declarar o resumão de Carolina Maria de Jesus à minha aluna, estou

ao mesmo tempo correto (é oportuno o que digo; não minto etc.) e equivocado (é a recepção cristalizada

e vulgar a que digo; falta com a verdade, pois essa reclama a nuance e a problematização, etc.).

Mencionei em meu auxílio o trabalho de Bom Meihy mas, do ponto de vista do que ele sugere nesse seu

ensaio de “despedida”, Ditos e interditos: ensaio de despedida de Carolina Maria de Jesus, poderia recorrer

a trabalhos formidáveis, como os de Perpétua (2014) e Rosito (2015), que avançaram enormemente

para alterar o que o próprio Bom Meihy afirmava na biografia de Carolina Maria de Jesus que produziu

em parceria com Levine (Cinderela Negra: a saga de Carolina Maria de Jesus, 1994), “um apagamento

de sua memória no Brasil”. O quadro se modificou, por n razões, e um evento como esse verifica, em

certa medida, essa correção, na medida em que aqui se introduz mais uma moedinha no mealheiro da

canonização de Carolina Maria de Jesus.

Gostaria, assim, de percorrer com um pouco mais de vagar essa biografia de Bom Meihy e Levine, pois

me parece que apesar de seus mais de vinte anos de existência e da óbvia possibilidade de crítica de

algumas de suas características, o saldo ainda hoje pende para o positivo, no sentido da adequação do

método utilizado a uma espécie de ordem subliminar de sucesso na retratação, que termina por ressaltar

ambivalência e um caráter fugidio de sua protagonista que, tendo sido pessoa difícil na vida, aparece de

maneira isomórfica nesse esboço de vida e obra que temos na biografia.

CAROLINA, PARA ALÉM DOS BIOGRAFEMAS

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403Ao anotar que vejo sucesso na biografia, seria talvez o caso de ponderar que registro como sucesso aquilo

que gera satisfação ao constatar que, se há ordem de romanesco atendida por essa biografia, ela aparece

como um romanesco contemporâneo, polifônico, plural. A metodologia da história oral que encaminhou

essa produção gera um efeito semelhante ao de assistirmos ao filme Rashomon, de Akira Kurosawa, no

qual há várias narrativas concorrentes em torno de um incidente, sem qualquer apelo a uma harmonia

necessária ou juízo final. Aqui, também, estamos diante de um agregado de depoimentos que nunca

disfarçam seu caráter situado, seu posicionamento peculiar diante da biografada, cuja “vida” é ao mesmo

tempo o campo no qual essas narrativas se constroem e a força que sabota qualquer intuito totalizador.

Me estendendo um pouco sobre esse aspecto em particular, creio que a estrutura de “coral”, com vozes

seriadas em solos (como num trabalho de Helen Cardiff), e a evitação de um amálgama coordenador

de narrativa (que, aqui, necessariamente vai ao plural, é plural) serve muito mal a um propósito de

canonização. Uma vez que seu resultado é trafegar na ambivalência, e o aproveitamento escolar

demanda a redução da ambivalência em benefício da eleição de uma imagem a ser celebrada, e fixada

em seu alojamento próprio na história literária, a biografia de Bom Meihy e Levine me parece melhor

justamente por criar problemas para aqueles que, como eu na resposta dada à minha aluna, querem

encontrar aqui alguma forma de solução do problema da presença da voz minoritária na literatura

brasileira, e não sua continuidade por outros meios.

Mas, saindo da ideia de que o único propósito de uma biografia seria dar mais um passo em uma trajetória

de consagração (colateralmente, observem o momento em que surge uma segunda biografia de Lima

Barreto, por exemplo, quando a de Assis Barbosa data de 1952), há um ganho considerável no mosaico

apresentado por Bom Meihy e Levine, pois a ordem de retratação que me parece favorecer é a de uma

vida compreendida como uma espécie de força, um magma que não é exatamente da ordem de uma

“pessoa física” mas uma matéria mais misteriosa, um dinamismo de fronteiras porosas. Há toda uma

consideração deleuziana a esse respeito que me importa menos elaborar: basta, aqui, aludir a essa

possibilidade de compreender essa noção, de “vida”, retirando-a do repouso quieto do documento e

devolvendo-a a uma instabilidade e complexidade que me parecem mais apropriadas como artifício de

retratação. Nas palavras do crítico argentino Alberto Giordano (2013),

A vida que provoca a escritura e a precipita nos domínios fascinantes do ambíguo …

atua com mais força se a vida que se escreve é menos a vida de alguém, uma soma

de atributos subjetivos certos ou falsificados, que uma vida impessoal, um processo

intransitivo que desapropria o autor de sua identidade e seu estatuto porque o

submete à experiência da alteridade radical, a distância íntima que guarda com

relação a si mesmo.

É esse processo que me parece vir à tona nos interstícios de um sem número de cenas, minúsculas

aparições do não-apreendido, do que repele uma coerência narrativa ordinária para a “subjetividade” da

autora ao mesmo tempo que aponta para uma consistência de outra ordem – qual, penso? Qual outra

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404pode ser senão a do “Humano, demasiado humano”? Por exemplo, aparece quando lemos da célebre cena

do apedrejamento à saída da favela, espécie de narrativa mística de celebração às avessas: é um rito de

passagem, uma imolação da mártir, uma prática justiceira? Aparece também nas várias movimentações

da biografada em torno do livro, em particular em sua concepção de que um livro de sua lavra tem força

enquanto instrumento de defesa pessoal. Um livro vindouro, o livro que está ainda sendo escrito, o livro

que vai ser escrito a vingará – isso está na narrativa do encontro entre ela e Audálio Dantas, e retorna

com relação ao próprio Dantas, nesse segundo momento ele mesmo o alvo do livro-vindicação. Está na

imponderável biblioteca da biografada, aparente no registro de uma repórter que, talvez com má-fé,

anota alguns itens da “pasta com cópias bem velhas de livros como Os miseráveis, Quincas Borba, e Os

sertões” e no depoimento de Vera Eunice, que diz que sua mãe “leu até enciclopédia em Parelheiros”. Está

também na sua exigência à representação de si mesma, à performance de si mesma (à maneira do filme de

Kiarostami, Close Up, no qual os atores são os sujeitos representando a si mesmos em episódios passados

de suas vidas) na adaptação teatral de Quarto de despejo, recusando o que vê da audiência (“Durante a

apresentação, minha mãe gritava da platéia: Não é nada disso! Está errado!”, diz Vera Eunice: o que está

errado, como está errado, em que a colagem autora/ atriz reduziria o erro, promoveria o acerto?). Está

na carta – Cômica? Trágica? Tola? – na qual pleiteia ao presidente o direito de habitação entre os índios,

no mistério de sua vida no circo, no disco de “sambas” que teimou em gravar malgrado as admoestações

de Dantas, que “não queria deixar ela gravar o disco, nem fazer nada que não fosse coerente com o

diário”. Está na declaração de Vera Eunice de que nunca conseguiu ler mais de uma página do Quarto, no

favoritismo dedicado ao filho José Carlos, que diz que “Ser filho de escritora é uma maldição para mim.

Sempre lembrado por causa do mérito de outra pessoa...”.

Essas anotações são desordem, disparos que tem como único eixo a sua propriedade de resgatar uma

vida: não Carolina Maria de Jesus morta, disciplinada e disciplinar, mas uma entidade cuja ordem está na

indisciplina, na negação, nas tantas formas particulares de recusa que esses biografemas celebram sem

nunca ser exata metonímia da pessoa que os propiciou.

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