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ANAIS DO 5º S&D
ISSN 2236-9651, n. 5, v. 7
ARTE E LITERATURA EM CENÁRIOS
SOCIOJURÍDICOS
14-16 de outubro de 2015
NITERÓI: Ed. PPGSD
2015
5º SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR EM SOCIOLOGIA E DIREITO
Niterói: PPGSD-UFF, 14 a 16 de Outubro de 2015, ISSN 2236-9651, n. 5, v. 7.
II
COMISSÃO CIENTÍFICA
Adriana Ribeiro Rice Geisler (PPGPC-FIOCRUZ)
Alba Simon (PPGSD-UFF)
Alexandre Fabiano Mendes (PPGDIR-UERJ)
Ana Alice de Carli (PGTA-UFF)
Ana Cláudia Diogo Tavares (PPDH-UFRJ)
Ana Maria Motta Ribeiro (PPGSD-UFF)
Andreza Aparecida Franco Câmara (UFRRJ)
Annelise Fernandez (PPGCS– UFRRJ)
Bárbara Gomes Lupetti Baptista (PGD-UVA)
Cândido Duarte (PPGSD-UFF)
Carla Appollinario de Castro (PPGSD-UFF)
Carlos Magno Spricigo Venerio (PGDC-UFF)
Cecilia Caballero Lois (PGD-UFRJ)
Célia Barbosa Abreu (PGDC-UFF)
Clodomiro José Bannwart Júnior (PPGDN-UEL)
Delton Meirelles (PPGSD-UFF)
Eder Fernandes Monica (PPGSD-UFF)
Edson Alvisi Neves (PPGSD-UFF)
Elizabete Rosa de Mello (PGDHI-UFJF)
Elve Miguel Cenci (PGDC-UEL)
Fabiana de Cássia Rodrigues (PPGE-UNIVAS)
Fernanda Duarte (PGD-UNESA)
Gabriel Rached (PPGSD-UFF)
Gilvan Luiz Hansen (PPGSD-UFF)
Gizlene Neder (PPGSD-UFF)
Gustavo Siqueira (PGD-UERJ)
Ivan Alemão (PPGSD-UFF)
Jacqueline de Cassia Pinheiro Lima (PPGHCA-UNIGRANRIO)
Jacqueline Muniz (PPGSOC/IUPERJ)
Joaquim Leonel de Rezende Alvim (PPGSD-UFF)
Marcio Renan Hamel (PPD-UPF)
Marcus Fabiano Gonçalves (PPGSD-UFF)
Maria Celeste Simões Marques (PPDH/UFRJ)
Mônica Paraguassu Correia da Silva (PGDC-UFF)
Napoleão Miranda (PPGSD-UFF)
Ricardo Lodi Ribeiro (PGD-UERJ)
Thiago Rodrigues Pereira (PGDH-UCP)
Vivian Paes (PPGSD-UFF)
Vladimir de Carvalho Luz (PPGSD-UFF)
Wilson Madeira Filho (PPGSD-UFF)
5º SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR EM SOCIOLOGIA E DIREITO
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III
COMISSÃO ORGANIZADORA
Wilson Madeira Filho
Carolina Weiler Thibes
Emmanuel Oguri
Mara Cátia Faria
Marcelino Conti de Souza
Rodolfo B. de M. Lobato da Costa
Rogério Rocco
Tauã Lima Verdan Rangel
Thaís Maria Lutterback Saporetti Azevedo
Wagner de Oliveira Rodrigues
DIAGRAMAÇÃO
Erick Brum
Marcelo Tammela Madeira
EDIÇÃO DOS ANAIS
Eder Fernandes Monica
Tauã Lima Verdan Rangel
Wagner de Oliveira Rodrigues
Wilson Madeira Filho
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IV
APRESENTAÇÃO
Com a temática “3º Mundo Terceirizado”, a quinta edição do
Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito, organizado e promovido pelo
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal
Fluminense (PPGSD-UFF), com a participação de importantes colaborações de
Docentes e Discentes dos diversos programas de pós-graduação, vem se
consolidando como um espaço crítico-reflexivo fecundo para a promoção de um
debate plural, complexo e interdisciplinar.
Trata-se, portanto, de um espaço destinado a consolidação das
perspectivas de análises empíricas, permitindo a superação dos paradigmas
essencialmente dogmáticos, ao tempo em que se pauta no imprescindível diálogo
propiciado pela interdisciplinaridade, com foco especial para a condição do
agente catalizador da dinâmica contemporânea, capaz de impulsionar a
construção e difusão do conhecimento.
O 5ºS&D apresenta como objetivos principais: (i) fortalecer o espaço
interinstitucional para fomentar debates, pesquisas e reflexões interdisciplinares
entre o Direito e a Sociologia; (ii) promover a interlocução entre Discentes e
Docentes dos diversos Programas de Pós-Graduação e instituições de pesquisa;
(iii) incentivar e contribuir para o aperfeiçoamento do trabalho de pós-graduação
por da construção de um espaço que dialogue, de maneira plena, a pesquisa, o
ensino e a extensão.
Wilson Madeira Filho
Coordenador do 5º S&D
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V
SUMÁRIO
“QUERIDA, CHEGUEI!”: A FAMÍLIA NUCLEAR NOS SERIADOS AMERICANOS -
DIAS, Fabricio; MADEIRA FILHO, Wilson. .................................................................... p. 01-24
PERCURSO ENTRE A SUBJETIVIDADE EM “CONFISSÕES” DE SANTO
AGOSTINHO E DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU E O DIREITO MODERNO -
LUTFY, Fátima Lopes do Amaral. ..................................................................................... p. 25-40
EXISTENCIALISMO E UMA NOVA FACETA DO JUS: SUA CARACTERIZAÇÃO
COMO FRAGMENTO DO ABSURDO - BARROS GUERRA DE FARIAS, Pedro Henrique;
MARTINS TEIXEIRA, Caio Vinicius; NUNES PEREIRA, Daniel. ................................ p. 41-52
AGÊNCIA ARTÍSTICA COMO TRANSFORMAÇÃO SOCIAL: A VIDA DE
CHIQUINHA GONZAGA COMO PARADIGMA DE GÊNERO - COSTA, Lara Denise
Góes da. ................................................................................................................................ p.53-72
RECONHECIMENTO DE SABERES E PRÁTICAS CULTURAIS: O VALOR
HUMANO IDENTIFICADO COMO PREMISSA NECESSÁRIA À EDUCAÇÃO
INFORMAL - LEMOS, Fábia de Castro; MEIHY, José Carlos Sebe Bom. ..................... p.73-83
UM CRIME DELICADO: ANÁLISE DISCURSIVA DA PRÁTICA DE “JULGAR” -
TRAJANO, Raphael de Morais; GOMES, Ulisses da Silva.............................................. p.84-103
NARRATIVAS DO CÁRCERE NO CONTEMPORÂNEO - BRAIDA, Ricardo......104-122
PROFISSÃO PASSISTA: ARTE, CULTURA, TRABALHO E TRADIÇÃO - DUARTE,
Silvia Valeria Borges; SOUZA, Marcelino Conti de. ...................................................... p.123-140
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“QUERIDA, CHEGUEI!”: A FAMÍLIA NUCLEAR NOS SERIADOS AMERICANOS
DIAS, Fabricio; MADEIRA FILHO, Wilson.
1
“QUERIDA, CHEGUEI!”: A FAMÍLIA NUCLEAR NOS SERIADOS
AMERICANOS
DIAS, Fabricio
Estudante de Mestrado do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Fluminense
MADEIRA FILHO, Wilson.
Doutor pela PUC-Rio. Professor do Programa de Pós-graduação em Sociologia e
Direito da Universidade Federal Fluminense
RESUMO
Texto
Palavras-chave
ABSTRACT
Text
Key-words
Introdução
Criada e produzida por Vince Gilligan, exibida pela emissora de televisão norte-
americana AMC no período compreendido entre janeiro de 2008 e setembro de 2013, a
série Breaking Bad estabelece logo nas suas primeiras sequências o lugar de onde o
discurso narrativo será proferido: a classe média da sociedade norte-americana. Após as
cenas da introdução do episódio piloto é apresentada ao telespectador uma típica casa de
uma família classe média, localizada na cidade de Albuquerque, Texas, no oeste
americano, no árido deserto, fronteira silenciosa do capitalismo, o lugar em que Walter
White, o protagonista da série, iniciará sua transformação.
Do quarto pequeno, vemos White, o protagonista do seriado, e sua esposa,
Skyler. O primeiro acordado, insone, a segunda em sono profundo, despreocupada. A
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DIAS, Fabricio; MADEIRA FILHO, Wilson.
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câmera passeia pela casa deixando o telespectador descobrir a decoração sem qualquer
luxo, móveis sem requinte, os brinquedos de criança semiembrulhados escondidos
dentro de um armário aberto, um aparelho de exercício aeróbico no meio da sala, uma
placa na parede de onde se lê “contribuinte para a pesquisa que recebeu o prêmio
Nobel, 1985”, endereçada a Walter White.
A descrição da regular vida da classe média americana prossegue na sequência
seguinte, no café da manhã com a típica família nuclear reunida em torno da mesa;
Skyler, a mãe, dona de casa, responsável pela organização e pela administração da casa,
Walter White, o pai, provedor financeiro e Walter White Junior, o filho dependente que
possui necessidades especiais devido a uma paralisia cerebral, que se locomove com o
auxílio de muletas. Os ovos e o bacon vegetariano, o beijo protocolar da esposa em
White parecem querer denunciar uma vida confortável, mas que se mantém dentro de
severos limites financeiros; uma vida que parece estar sempre à beira do suportável,
morna feito o beijo de aniversário recebido pelo protagonista naquela manhã.
A rotina apresentada pelo diretor/autor estende seus braços, se prolongando para
a sala de aula onde White leciona química para turmas de alunos desinteressados e
entediados, incapazes de enxergar aquilo que o protagonista tem para si como a coisa
mais fascinante do mundo, algo quase sagrado. É através do exercício da docência para
turmas de alunos de uma high school que o protagonista provém sua família, que se
mantém como o patriarca, se responsabilizando diretamente pela alimentação,
segurança, proteção e felicidade dos entes familiares.
Contudo, a identidade social ocidental americana que se conecta,
tradicionalmente, ao ethos do sucesso1 se encontra apartado da realidade do
protagonista, e os valores que vão ao encontro e dão sustentabilidade ao que
historicamente se denominou de ―boa vida‖, perderam o rumo neste caso particular,
restando para White um exercício constante e inútil do seu ofício, um esforço exaurido
1 Conjunto de hábitos, síntese dos costumes da sociedade ocidental que implicam na valorização do
indivíduo, considerada a sua situação financeira e sua capacidade de consumo, conforme STEPHERSON,
Jeffrey E. O vício americano de Walter White. In: KOEPSELL, David R; ARP, Robert. Breaking Bad e a
filosofia: viver melhor com a química. São Paulo: Ed. Figurat, 2014, p. 261.
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já na sua fonte e que se mostra incapaz de alterar o quadro de frustração apresentado
pela narrativa, se constituindo, em verdade, a rotina de White, num verdadeiro trabalho
de Sísifo.
O trabalho atrelado a uma rotina cega e desgastante era, tradicionalmente, no
contexto do ideal do sonho americano, o passaporte para o sucesso financeiro e
consequentemente, o ticket para a felicidade dos indivíduos, permitindo àqueles o
ingresso no sistema de valores da sociedade de consumo que começava a estabelecer
suas bases fortes no período do pós-guerra. Mais importante, o trabalho permitia o
acesso dos integrantes da sociedade colonial do oeste bravio à cidadania, pois tal
condição passou a ser parte essencial do processo democrático de reconhecimento
daquela.
A narrativa da série Breaking Bad evidencia, de maneira subjacente; que apesar
de ser um profissional altamente qualificado, que dedicou grande parte da sua vida à sua
carreira, a seu trabalho, White falhou em alcançar o sucesso, e assim,
consequentemente, a felicidade. Daí a frustração do protagonista. Nitidamente, o sonho
americano para o personagem não deu certo e a própria consciência desta constatação
não parece assustar o protagonista, mas sim, pelo contrário, o coloca num primeiro
momento em um estado de torpor e aceitação.
E nisto, diante de todos os problemas que enfrenta, White procura a todo custo
manter a sobrevivência e unidade da família que é de sua total responsabilidade, dado o
papel social destacado historicamente para ele, o de mantedor financeiro, de patriarca.
Tal arranjo institucional e as suas respectivas motivações, assim como outras
características, explicam em grande parte a configuração quase imutável da família
nuclear, revelada através da análise de diversos seriados norte-americanos que aqui
iremos empreender.
1. A família nuclear nos seriados de televisão
Através de um pequeno apanhado histórico das produções cinematográficas e
televisivas norte-americanas, percebemos de imediato que grande parte destes produtos
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culturais constrói suas narrativas no seio da vida das famílias de classe média,
gravitando as tramas e os discursos ao redor da família nuclear, modelo padrão da
sociedade ocidental, conforme observa Hobsbawn
(...) cruzando todas as variações, a vasta maioria da humanidade partilhava
certo número de características, como a existência de casamento formal com
relações sexuais privilegiadas para os cônjuges (o ―adultério‖ é
universalmente tratado como crime); a superioridade dos maridos em relação
às esposas (―patriarcado‖) e dos pais em relação aos filhos, assim como às
gerações mais jovens; famílias consistindo em várias pessoas; e coisas assim.
Quaisquer que sejam a extensão e a complexidade da rede de parentesco e
dos direitos e obrigações mútuos dentro dela, uma família nuclear, um casal
com filhos - estava geralmente presente em alguma parte, mesmo quando o
grupo ou família co-residente ou cooperante era muito maior. 2
Séries televisivas norte-americanas como os Flintstones (1960-1966), os Jetsons
(1962-1963), os Robinsons: Perdidos no Espaço (1965-1968), os Simpsons (1989- ...) e
Família Dinossauro (1991-1994 ) têm suas tramas desenvolvidas no interior de famílias
que baseiam seus enunciados discursivos dentro do denominado American way of life, e
ali, no enredo de tais séries. São representações de famílias que apresentam uma rígida
estrutura organizacional patriarcal hierarquizada, com os papéis dos entes familiares
bem definidos e com tarefas pré-determinadas distribuídas entre pai, mãe e filhos, muito
embora, possuam singularidades que as diferenciam umas das outras, para além de
traços culturais e sociais que as inserem no modelo classe média.
Nos Flintstones, assim como na família Dinossauros3, o centro da trama das
séries é deslocado para um passado remoto; o primeiro para a Idade das Pedras e o
segundo para a Pré-história. O passado longínquo é reapresentado ao telespectador
através das lentes da percepção do tempo presente. O tempo histórico em que se
desenvolvem as narrativas das séries Flintstones e Família Dinossauros, ao serem
2 HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914 – 1991). Tradução: Marcos Santarrita.
2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 315. 3 Na série Família Dinossauros ao invés de humanos temos como personagens dinossauros
antropomorfizados que se conduzem, no geral, conforme as regras humanas, com as devidas paródias e
adaptações, excetuando alguns rituais selvagens próprios do mundo animal que são trazidos para o enredo
com a função de satirizar a figura do ser humano e sua relação com a natureza
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“QUERIDA, CHEGUEI!”: A FAMÍLIA NUCLEAR NOS SERIADOS AMERICANOS
DIAS, Fabricio; MADEIRA FILHO, Wilson.
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manuseadas com o uso do filtro e da maquiagem dos valores, concepções e padrões da
época em que foram idealizadas e realizadas tais produções culturais, acabam por
revelar a similitude das representações das características dessas famílias do passado.
O passado visto com os olhos do presente é reinventado segundo os parâmetros e
valores da atualidade, e assim, o tempo pretérito se mostra como o próprio reflexo,
ainda que maquiado, do presente. E isto, no caso dos Flinststones, é indicado logo na
abertura da série, na música-tema, que informa ao telespectadores que eles são ―a
moderna família da era da pedra, da cidade de Bedrock, são uma página tirada direto da
história‖.4
Nas séries Perdidos no Espaço e Jetsons, cujas tramas se desenrolam num futuro
nunca alcançado, observamos que os valores, as questões de gênero, as relações de
trabalho e de interação entre os personagens ainda são as mesmas dos Flintstones e
Família Dinossauros, assim como a estrutura organizacional da família classe média
representada por estas séries.
A família Simpsons há quase três décadas atualiza os clássicos Flintstones e
confirma que a estrutura familiar urbana se repete nas produções culturais norte-
americanas em todos os sentidos. Com o uso da sátira como principal instrumento
enunciativo, o seriado, que prolonga sua existência até os dias atuais, reflete em sua
narrativa os padrões culturais, sociais e estéticos da sociedade que retrata nas telas e
possibilita ao telespectador o vislumbre de uma análise crítica da sociedade em que se
encontram inseridos os personagens da série, que em verdade, é a própria representação
da sociedade vivida pelos telespectadores.
A narrativa das séries coloca os personagens nos seus devidos lugares histórico e
socialmente impostos: aos homens, cabe o sustento e as preocupações correspondentes à
manutenção financeira do lar; às mulheres, a administração do lar, observando uma
hierarquia pré-estabelecida que traz a tira-colo exigências sociais já introjetadas e que
não são facilmente percebidas. Tais exigências se deixam descobrir apenas em razão da
4 Tradução livre
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reflexividade que o sarcasmo da narrativa destas séries possibilita ao telespectador. A
ironia revela o que não se deixa facilmente enxergar.
Os padrões de consumo das famílias destas séries são, em geral, similares uns
aos outros, já que os anseios consumeristas dos personagens passeiam sempre pelos
mesmos objetos, lugares e porque não dizer, marcas. Não só a questão do consumo em
si, mas o que é consumido e o esforço empreendido pelos personagens para que os
desejos possam se concretizar, reduzem o produto do trabalho do patriarca ao
atendimento destas necessidades que se renovam constantemente.
A família de Walter White da série Breaking Bad é o eco estrutural
organizacional e comportamental das famílias de Fred Flintstone, George Jetson, Jonh
Robinson, Homer Simpson e Dino da Silva Sauro. Os lugares bem definidos de cada
ente familiar e os tipos de relações que irradiam daí se repetem na série que é o objeto
de estudo do presente trabalho. E são exatamente esses traços similares entre as famílias
destas séries que as colocam numa mesma categoria, a saber, a classe média norte-
americana: Walter White, o frustrado professor de química/caixa de lava-jato,
responsável pelos desejos de consumo permanentemente renováveis de sua família,
claramente insatisfeito com seu trabalho, com sua vida; Skyler, sua esposa, que
abandonou o emprego para cuidar do filho, que possui paralisia cerebral, e aguarda o
nascimento de sua filha, e o filho, Walter Jr., que é objeto da atenção e cuidado dos pais,
ainda com mais intensidade, em razão da condição de saúde que possui.
Conforme observa Sennet, a relevância desta distinção – de ser ou não da classe
média - é uma necessidade dos indivíduos - manifestamente uma característica da
sociedade norte americana - de abarcar os valores que os diferenciam das massas
humanas, vez que tais aglomerados de pessoas “não parecem ser dignos de nota”5,
sendo por vezes tratados com singular indiferença por aqueles que se veem inseridos
dentro da classe média. Observa, ainda, o autor, que ―a obsessão americana como o
individualismo expressa a necessidade de status nesses termos; a pessoa quer ser
5 Richard Sennet, op. cit., p. 75
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respeitada por si mesma. Classe nos Estados Unidos tende a ser interpretada como uma
questão de caráter pessoal.‖6
E por assim ser, por se apresentar como um status a ser alcançado e/ou mantido,
em razão da diferenciação que tal classificação proporciona, ser da classe média,
pertencer a este grupo, é uma confirmação de capacidade, é uma afirmação de que se é
“bom o bastante”. Esta constatação implica obrigatoriamente no modo como o próprio
indivíduo se vê e indica o lugar em que se encontra inserido no tecido social. Pertencer
à classe média aponta para as possibilidades de vida que o indivíduo irá encontrar
disponíveis ao seu alcance, na sua corrida pela felicidade norteada pelo consumo.
É exatamente nestes termos que as produções culturais materializam seus
enunciados discursivos ao redor da classe média, principalmente, no que toca à
organização estrutural da família nuclear. A necessidade de diferenciação, ligada às
questões de caráter pessoal, cria uma identidade que é compartilhada por este grupo
seleto, com características, valores e um ethos próprio e, nada mais normal, que as
produções culturais busquem suas fontes de representação nestes moldes institucionais.
O status de classe média passa a ser ele próprio um objeto de consumo, em razão da
diferenciação que proporciona ao indivíduo.
Das séries produzidas ainda na década de 1960 para a série objeto de estudo do
presente trabalho - assim como em outras mais recentes - poucas diferenças chamam a
atenção - no que toca às estruturas organizacionais familiares. Nesse sentido, tomemos,
por exemplo, os Flintstones, os Simpsons e Breaking Bad.
1.1. O presente futurista enquanto passado arcaico
A série os Flintstones teve seu debut na televisão norte-americana em 30 de
setembro de 19607, e nos três primeiros anos, a trama envolvia, principalmente, os
casais Fred e Wilma Flintstone/ Barney e Beth Rubble. Os filhos dos casais – Pedrita
Flintstone e Bambam Ruble – só seriam adicionados ao elenco em seguida. A narrativa
6 Ibidem, p. 76
7 Disponível em < http://www.warnerbros.com/tv/flintstones-season-1>. Acesso em 13 de agosto de
2015.
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se desenrola na Idade da Pedra e através desta escolha temporal combinada com o uso
da ironia como principal recurso enunciativo, salta aos olhos a satirização do padrão de
vida da família de classe média norte-americana. O inegável sucesso do seriado foi
consolidado pela aposta dos produtores na capacidade irônica da narrativa, na
comicidade desta ter sido eficaz a tal ponto de modo a permitir que os telespectadores
pudessem se enxergar de forma crítica, já que, para além do público infantil que
assistiam à série (e ainda assistem atualmente em razão das eternas reprises) por conta
do mundo de aventuras em que se encontrava inserida a família Flintstone, grande parte
da audiência era compreendida pelo público adulto, que assistia nas telas suas vidas
expostas nos seus detalhes mais constrangedores. Assim, através da provocação causada
pelo uso da ironia na narrativa da série, as pretensões de modernidade perpetuadas pelos
hábitos dos personagens quando postos sob este olhar produzem reflexividade nos
telespectadores e, consequentemente, incômodo.
A típica casa de subúrbio tem sua decoração kitsch/rústica complementada por
eletrodomésticos zoomorfizados, ilustrados por animais pré-históricos exercendo a
função de trituradores de lixo, geladeiras, abajures, chuveiros, aspiradores de pó, para
além dos carros de tronco de árvores, casca de tartaruga, rodas de pedra. Tais artefatos
se conectam com o consumismo que acena para a necessidade da conquista do conforto,
do mesmo modo que insere os personagens no estrato social onde se encontra
consolidado o lugar da classe média.
A boa vida, a felicidade destas famílias depende da capacidade de consumir
estes bens que simbolizam, por sua vez, a própria essência do padrão de vida. O
conforto traduzido por este consumo define por completo o objetivo do patriarca, do
provedor: ter dinheiro o bastante para que a família possa estar inserida no estrato social
da classe média e, assim, possa ser diferenciada das massas excluídas. As questões que
envolvem o consumo passam necessariamente pelo pertencimento a um determinado
modelo comportamental, externalizado no casal convencional a constituir um nódulo
familiar. Essa estrutura se conecta a solidariedade orgânica do mundo do trabalho, onde
os personagens masculinos exercem sua profissão.
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A própria etimologia do nome Flintstones implica em relações de consumo.
Composta por duas palavras em inglês (flint, que significa sílex, pederneira e stone, que
significa pedra, rocha) a tradução mais exata do nome para o português seria ―pedra de
isqueiro‖.
A típica família tradicional dos anos 1950 tem suas histórias conduzidas por uma
narrativa nem um pouco conservadora, que se mostra em verdade, em razão da ironia,
crítica: Fred Flintstone é o provedor, e assume satisfatoriamente o papel de ―rei da casa‖
mantendo sua família com o salário conseguido através do rotineiro trabalho na
pedreira, o grande negócio da Era da Pedra, que é representado pelas cenas iniciais de
todo episódio, onde um pterodáctilo anuncia com seu grito estridente o fim do
expediente, libertando os funcionários. A felicidade da volta para casa após um
exaustivo dia de trabalho, expressada pela abertura de cada episódio, é traduzida ma
possibilidade de poder encontrar o conforto que o dinheiro do trabalho suado pode
comprar.
O dinheiro do patriarca compra não apenas seu conforto, mas o de sua família, e
que por assim ser, os outros entes, mulher e filhos lhe são agradecidos, e se esforçam
para agradá-lo. Quando Fred Flintstone chega do trabalho e senta na sua poltrona para
ver a televisão, com o controle remoto na sua mão, a sala deve estar limpa, os filhos já
amansados e o jantar pronto para ser servido e degustado. E tudo isto se desenrola na
tela sob o manto da comicidade e da ironia, que revela ao público seus próprios reflexos
e identidades.
Vilma, assim como Betty Rubble, a vizinha, representa o papel da esfera
doméstica mesclada a uma emergente dimensão social feminina. Nesse sentido, o
seriado plasma uma cor-local dos anos 1960, com as mulheres oscilando entre a
administração da casa e o gerenciamento real da vida do casal para além da visão algo
infantilizada dos maridos.
A série antecipou, sob um olhar cômico/crítico, diversas questões que foram
trazidas à tona pelas revoluções culturais ocorridas nos anos de 1960, que combatiam
principalmente a concretude e a solidez das instituições coletivas representadas
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principalmente pelo Estado, igreja, escola, família etc., e que se mostravam anacrônicas,
já que caminhavam em descompasso aos anseios da sociedade representada pelos
produtos culturais aqui mencionados.
Decerto, a revolução cultural se mostra como o produto de um processo histórico
iniciado anteriormente, através de pequenas e insistentes revoluções continuadas que
ganhavam corpo nas rotinas dos indivíduos no mundo real. Neste sentido, temos que os
Flintstones, série realizada em momento anterior à eclosão da Revolução Cultural,
contém nos seus enunciados narrativos muitas destas demandas emancipatórias, eis que
a ironia da narrativa já implica na crítica do modelo e dos tradicionais valores classe-
média retratado nas telas. As reivindicações trazidas pela narrativa da série,
principalmente no que diz respeito às personagens femininas, são parte da pauta de
contestações da agenda das revoluções culturais da década de 1960, e se encontram nos
discursos concretizados nas ações de Vilma, Bettie, Fred e Barney e, assim, representam
a sociedade classe-média norte americana. Tais exigências acenavam para o
desabamento das rotinas que constituíam o social, a pacata vida em comunidade, o
silêncio castrador das instituições, a família, a igreja, a universidade, as ruas
impregnadas de impedimentos ao exercício da liberdade pessoal.
Nestes ―tempos interessantes‖, ganhou força um processo de reavaliação das
rotinas que nada mais eram do que senão ―o pesado legado do puritanismo do século
XVI‖. Toda essa movimentação social - que possui principalmente uma importância
simbólica, eis que as demandas, mudanças e bandeiras que compuseram o quadro
dessas revoluções culturais já faziam parte do repertório de insatisfações sociais da
modernidade - representava, segundo Hobsbawn, ―uma revolução da vida cotidiana
mediante a transformação das relações pessoais‖8, que encontraria uma grande
repercussão social.
Os anos 1960 trouxeram para o espaço da vida pública, como resultado de suas
demandas sociais e da política emancipatória, a ―promoção da democracia do domínio
8 HOBSBAWM, Eric J.. Tempos interessantes: Uma vida no século XX. Trad. Angela Noronha. 6ª Ed.
São Paulo: Companhia das Letras Editora, 2002, p. 277.
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público‖9, de modo que, se o caráter político passou a ser parte essencial e inerente do
caráter pessoal, percebemos nitidamente uma democratização da vida privada,
asseguradas deste modo ―as relações livres e iguais entre os indivíduos‖.10
Desta necessidade de relações igualitárias entre indivíduos passou a ser parte
inexorável do processo democrático a ideia de autonomia. Tratava-se de determinar
razoavelmente a capacidade de autodeterminação e autorreflexão dos indivíduos postos
em uma sociedade, que lhes conferisse oportunidades de escolhas e de vida antes não
vislumbradas, dada a rigidez das relações. A ideia de autonomia surgida do processo
trouxe um novo olhar que buscava a reconfiguração dos modos e maneiras através dos
quais os ―indivíduos podem melhor determinar e regulamentar as condições de sua
associação‖ com os outros.11
Nos Flinstones, tais demandas por autonomia são reveladas pela crítica irônica
ao papel da mulher na casa, enquanto mera administradora do lar. A sua posição
preestabelecida que não passa por qualquer questionamento direto, indica que as
personagens femininas não demonstram interesse pelas suas individualidades, sendo
movidas pelos interesses dos maridos e dos filhos, mesmo que sejam representadas
como indivíduos mais capazes. A reivindicação por autonomia esbarrava no
estabelecimento do local reservado para estas personagens, e assim, ante a natureza do
discurso narrativa de determinadas produções culturais, tais locais sofriam grande parte
das críticas que ironizavam o padrão da sociedade, expondo ao público o ridículo desta
condição.
Sobre a autonomia, esclarece Giddens que esta
não poderia ser desenvolvida enquanto os direitos e as obrigações
estivessem intimamente vinculados à tradição e a prerrogativas
estabelecidas da propriedade. Entretanto, uma vez que essas fossem
dissolvidas, um movimento em direção à autonomia tornava-se ao
mesmo tempo possível e visto como necessário.12
9 GIDDENS, Antony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades
modernas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: FUNESP Editora, 1993, p. 202. 10
Ibidem, p. 202. 11
Ibidem,p. 203 12
Ibidem, p. 203
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Nesse desejo de criação de novo espaço democrático, direitos e deveres
passariam a ser negociados constantemente, em que pese não haver desequilíbrios que
possam causar supressões indesejáveis. O princípio da autonomia assim entendido,
encontraria seus limites na autonomia do outro, vez que se apresentam como limitações
recíprocas que procuram estabelecer a igualdade entre os indivíduos, a isonomia social,
sexual e cultural.
Neste contexto, nada mais é a autonomia e a autodeterminação do que a
realização de uma condição de relacionamentos baseados na igualdade, onde as
vontades nestes relacionamentos tenham peso idêntico (em tese), sem quaisquer
distinções relacionadas a sexo, raça, condição social, e que principalmente haja respeito
no que tange às capacidades do ―outro‖, tendo como base principal o respeito mútuo à
igualdade.
Fica claro que as mudanças ocasionadas pelos movimentos sociais dos anos
1960 trouxeram novos limites para a intimidade. Aqui, se faz necessário ressaltar que
nem todas as tradições foram superadas pelas Revoluções Culturais, e ainda, que a
mitologia que envolve os anos 1960 por vezes não permite que se perceba que aquele
determinado período de tempo na história foi, para além de tudo, uma consequência, e
ainda, um marco simbólico das exigências e mudanças que já vinham ocorrendo muito
anteriormente. De qualquer modo, temos que a partir deste marco histórico notou-se
uma crescente preocupação social que confirma que a autonomia conquistada restou por
configurar os ―limites pessoais necessários à administração bem-sucedida dos
relacionamentos‖.13
O princípio da autonomia representa, portanto, a mola propulsora para que os
ideais de justiça, igualdade e participação possam ser alcançados e concretizados na
prática social e cotidiana, através da anterior implementação de ―políticas
emancipatórias‖ que são orientadas no sentido de ―libertar os grupos não-privilegiados
de sua condição negativa ou eliminar as diferenças relativas entre os grupos na
13
Ibidem, p. 206
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13
sociedade‖.14
É importante esclarecer que essas políticas emancipatórias são disputas
em torno das desigualdades de distribuição de poder e, assim, visam libertar os
indivíduos e os grupos de indivíduos de interferências que possam atingir a autonomia
que lhes é indispensável para o exercício de suas liberdades. No cenário dos
relacionamentos modernos a mutualidade é indispensável, assim como o
reconhecimento das alteridades.
No que diz respeito aos novos traços institucionais da modernidade, observa
Hobsbawn que
o velho vocabulário moral de direitos e deveres, pecado e virtude,
sacrifício, consciência, prêmios e castigos não mais podia ser
traduzido na nova linguagem de satisfação dos desejos. Uma vez que
tais práticas e instituições não eram mais aceitas como parte de um
modo de ordenar a sociedade que ligava as pessoas umas às outras, e
que assegurava a cooperação social e a reprodução, desapareceu a
maior parte de sua capacidade de estruturar a vida social humana.
Foram reduzidas simplesmente a manifestações de preferência
individuais, e reivindicações de que a lei reconhecesse a supremacia
dessa preferência.15
Enquanto Hobsbawn destaca que a Revolução Cultural ocorrida no final do
século XX trouxe o ―triunfo do indivíduo sobre a sociedade‖ assim como o
―rompimento dos fios que antes ligavam os seres humanos em texturas sociais‖,
processo que vitimizou principalmente a instituição da família tradicional ante o
processo de individualização extrema - notamos, contudo, a persistência da organização
estrutural tradicional como representação das famílias nucleares de classe média nas
produções culturais do período pós Revolução Cultural, mas que se apresenta com uma
nova dinâmica relacional.
As narrativas do seriado os Flintstones ao satirizarem a vida do cidadão norte-
americana classe-média dos anos 1950, coloca em relevo os valores daqueles
indivíduos, e assim, conforme já analisado, deste processo de reinterpretação de
14
Ibidem, p. 193 15
HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914 – 1991). Tradução: Marcos Santarrita.
2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 331-332.
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sentidos, surge a crítica bem sustentada das relações que sustentam os enunciados
discursivos que dão o tom do seriado. Assim, a família, é antes de tudo, nos Flintstones,
um projeto de críticas que atacam com força sua mesma base estrutural. A autonomia
dos indivíduos, assim como a intimidade, são pontos de reflexão crítica que surgem da
provocação causada pela narrativa irônica da série.
1.2. O espaço doméstico enquanto território possível na sociedade pós-moderna
Há nestas séries americanas do pós-Revolução Cultural uma percepção de
continuidade da tradicional organização familiar. Numa primeira análise, poderíamos
até afirmar que há nessas séries – cuja trama gira em torno de fortes núcleos familiares -
um desejo de resistência ao desmantelamento das ―velhas texturas e convenções
sociais‖ levadas a cabo no mundo contemporâneo.
Contudo, da análise da família representada na série ―Os Simpsons‖ (1989),
sentimos que a estrutura familiar se manteve intacta – já que conservados os papéis
fixos dos entes familiares - e as questões ligadas à autonomia dos membros sofreram
poucas modificações, assim como os valores que orientam a narrativa da série.
O enredo do seriado ganha corpo na cidade (fictícia?) de Springfield e a trama
dos episódios gira, quase que absolutamente, ao redor dos personagens de Homer,
Marge, Bart, Lisa e Maggie Simpson e se dirige aos jovens e adultos. O nome Simpson
é o indicador do fio condutor da narrativa do seriado, pois se liga naturalmente ao
vocábulo inglês simple (simples), dando a entender que os Simpsons seriam mais uma
simples família classe média norte-americana assim como qualquer outra, com todos os
méritos e deméritos. Os Simpsons são, com algumas poucas diferenças, a família
Flintstone reapresentada à sociedade americana, com uma outra roupagem, que em
verdade, não se mostra tão diversa assim, conforme verificaremos.
O texto ágil, inteligente e irônico do seriado, que já está no ar há quase 30 anos,
relata as aventuras e confusões da família Simpsons, composta por Homer, um
personagem inocente, ignorante, com limitada inteligência (em razão de na sua infância
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ter introduzido, voluntariamente, no seu nariz 15 gizes de cera, que causaram lesões
cerebrais permanentes), sedentário, obeso, alcoólatra, preguiçoso, explosivo, ao mesmo
que se mostra amável com os filhos e a mulher; Marge, uma dona de casa amável,
dedicada à família, perspicaz, sensata, paciente, uma mulher que cultiva uma aparência
saudável, vaidosa e que exibe uma silhueta esbelta, típica de uma dona de casa do
subúrbio norte-americano dos anos 1950; Bart, o primogênito, rebelde, desordeiro,
inconsequente, aluno medíocre, geralmente castigado na escola por causa de seu mau-
comportamento e desinteresse pelas aulas, desafiando constantemente a autoridade do
pai, que por muitas vezes acaba perdendo a cabeça e o agride, sendo recorrentes as
cenas de Homer estrangulando-o; Lisa, a filha do meio, contestadora, intelectualizada,
precoce e desafiadora, e, enfim, Maggie, a filha mais nova, silenciosa, espectadora
crítica de todos os acontecimentos de sua família.
Os enredos dos episódios passeiam por questões atuais da sociedade
contemporânea e através do uso na narrativa da ironia, da paródia, do humor nonsense e
da autocrítica, a série atinge com profundidade temas que apresentam como eixo central
a classe média padrão e ridícula que se transforma também no lugar do sonho possível
para o qual concorre a dialética dos acontecimentos. A série atualiza questões que já se
encontravam contidas nos Flintstones, assim como repete a estrutura organizacional
familiar da classe média, os sonhos, os anseios de consumo, as relações de trabalho,
entre outros temas pertinentes ao extrato social em estudo.
Assim, na família Simpsons, observamos que as tomadas de decisões são por
vezes repartidas igualmente entre os cônjuges – Homer e Marge – e as narrativas das
personagens estão influenciadas pelo individualismo decorrente da autonomia
estimulada pelos movimentos sociais dos anos 1960. As exceções a esta regra decorrem
das próprias características de Homer Simpson que, impulsionado por seus instintos,
muitas vezes incompreensíveis até para ele mesmo, age em nome da família, decidindo
sozinho questões relevantes, guiado por irracionalidades e insanidades, que garantem o
humor da série e que caracterizam seu modo de agir.
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Marge Simpson, muito embora ainda se mantenha no tradicional papel de
administradora do lar, é representada como um indivíduo autônomo, com vontades
próprias, e não mais como uma personagem retratada como um mero prolongamento da
vida do marido, Homer Simpson, o provedor da família. São inúmeros os episódios em
que a trama gira principalmente ao redor de Marge Simpson, que protagoniza um sem
número de situações que independem do marido, o que não acontece nos Flintstones.
Vilma, como personagem, se apresentava como um complemento das histórias de Fred
Flintstone, o principal protagonista do seriado. Assim como Homer, Marge é a
protagonista em diversos episódios, e daí, a personagem ganha uma vida independente
da de seu marido.
A rígida hierarquia da estrutura familiar na série os Simpsons encontra suas
forças enfraquecidas, todavia, não se pode afirmar que a estrutura não permanece a
mesma. Homer não desocupa por completo a posição autoritária, que antes lhe era
reservada pela tradição que se apresenta nos Flintstones, posição esta, que por
consequência, inferiorizava estruturalmente os outros entes, vez que submetidos aos
desejos do patriarca. A autoridade paternal de Homer Simpson se mantém, em
determinadas ocasiões, sendo constantes os entraves acerca de diversos temas que
integram as tramas da série entre os familiares, vez que nos Simpsons, todos parecem
possuir voz ativa no que diz respeito aos seus destinos.
As personagens de Marge e Lisa Simpson são a representação do resultado das
Revoluções Culturais: enquanto a primeira mantém seu papel de administradora do lar,
em nome da tradição, e isto por decorrente de escolha legítima, vez que a personagem
se apresenta como um indivíduo autônomo, responsável pela construção da sua própria
narrativa de vida (tanto que suas escolhas são todas acatadas pelos entes familiares), a
segunda, Lisa, a filha, contestadora dos valores ocidentais, feroz opositora da ordem
hierárquica consolidada pela tradição histórica, é a encarnação da mulher moderna, é a
encarnação dos ideais das Revoluções Culturais dos anos 60.
Na série, o papel de provedor destacado para o pai também é posto em prova já
que o próprio significado do trabalho sofre mudanças representativas drásticas. Aqui
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não há mais a esperança do sonho americano, do sucesso através do trabalho. O que há é
o labor como uma forma de sobrevivência social, essencial, mas não eficaz, um esforço
domesticado de inserção na sociedade do consumo. Não existe ambição ou esperança, e
Homer Simpson é a tradução da imagem do fracasso profissional, beirando, quase à
margem da sociedade.
Assim como Fred Flintstone, o desejo de Homer Simpson enriquecer
rapidamente, de modo que não precise mais trabalhar, é componente principal de vários
episódios na série. Através de planos e ideias que beiram a insanidade, Homer envolve a
sua família em situações absurdas no intuito de se livrar da responsabilidade de ter que
trabalhar diariamente para prover sua família e realizar seus próprios desejos de
consumo, que não são poucos.
A enfadonha rotina de trabalho de Homer Simpson – agora na pedreira futurista
que é a usina nuclear - encontra refúgio na crítica velada que a narrativa da série faz aos
valores ocidentais da modernidade, tratando com sarcasmo o funcionamento das
instituições ocidentais. Há na série uma continuidade do desejo de ser classe média,
como um sonho a ser consumido, como um produto exposto no balcão, um lugar a ser
conquistado e mantido. Na série os Simpsons, a ironia do discurso narrativo deixa
revelar uma sociedade que baseia sua existência na permissividade consentida
tacitamente, na ilegalidade oculta dos recorrentes desvios comportamentais e na
hipocrisia da construção dos discursos prontos e politicamente corretos que por vezes
são o tempero do jantar da família nuclear classe média norte-americana, mas quando
revelados pela ironia, possuem um aspecto que desagrada a todos, inclusive aqueles que
se enxergam nos lugares ocupados pelos personagens na série.
2. Uma vida em branco sob o céu
Como já observado na série os Simpsons, temos que a família de Walter White
possui as mesmas características tradicionais da família Flintstones. White é o patriarca,
e Skyler, assim como Vilma Flintstone e Marge Simpson, uma dona de casa exemplar,
preocupada com bem estar de seu marido e seu filho, que sofre de paralisia cerebral.
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O episódio piloto da série Breaking Bad retrata a família de White, a estrutura
organizacional e os valores compartilhados pelo familiares, assim como deixa perceber
os conflitos e problemas que cercam o núcleo familiar, a saber, as horas extras de
trabalho de White, o aquecedor de água que se encontra quebrado há tempos, a tosse
persistente de White, a contenção de despesas, o nascimento da filha que está por
acontecer, etc.
Apesar de viver em certa harmonia com sua família, temos que White se mostra
descontente com sua vida. O tédio em que se encontra imerso, uma vida em branco sob
o céu, o protagonista é apresentado a espectador logo no café da manhã em que
descobrirmos ser seu aniversário. Após a dupla jornada na escola e no lava-jato, de onde
White provém sua renda para sustentar sua família, na volta para sua casa, o
protagonista é surpreendido por seus familiares e amigos em razão da realização de uma
festa surpresa de aniversário de 50 anos, organizada, obviamente, por Skyler, sua
esposa.
Na festa, somos apresentados ao casal Marie e Hank Schader, irmã da Skyler,
cunhado de White. Marie é uma espécie de Betty Rubble cleptomaníaca (fato que só
conheceremos com o desenrolar da série) que trabalha como técnica numa clínica de
radiografia, ressentida por não ser médica. Hank, um agente da narcóticos (DEA) se
mostra, por outro lado, como um Barney viril, rude, preconceituoso, um macho alfa às
antigas.
Hank Schrader se torna o centro da festa graças às suas histórias corriqueiras de
policial e por causa de sua pistola Glock 22, que conforme afirma ao exibi-la a todos os
convidados, sempre carrega consigo. Walter Jr, o filho de White e Skyler, encantado
com o tio, pede ao pai, Walter White, que segure a arma. Muito embora contrariado,
White pega a arma das mãos do filho e observa que a arma é pesada. Instantaneamente,
White se torna vítima do bullying de seu cunhado, que afirma que esta é a razão pela
qual a polícia só contrata homens de verdade. Finaliza debochando, dizendo que White
―parece Keith Richards com um copo de lei quente‖, como se a masculinidade pela
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posse da arma estivesse ausente em White. Seria White incapaz de prover segurança à
sua família, enfim?
Depois da brincadeira, Hank resolve fazer um discurso em homenagem à White.
Entre elogios e brincadeiras, vemos o protagonista deslocado portando com toda falta de
jeito possível a pistola de Hank. O discurso é interrompido por causa de uma matéria na
televisão em que o policial concede uma entrevista àa imprensa local sobre o ―estouro‖
de um laboratório de drogas, e a apreensão de metanfetamina, que atrai a atenção de
todos na festa, inclusive a de White, que se mostra intimamente interessado na quantia
de dinheiro apreendido nessas operações. Devido ao interesse de White, desconhecendo
suas reais motivações, Hank o convida para participar de uma operação futura.
No dia seguinte de sua festa surpresa de aniversário, White desmaia no lava-jato
onde trabalha e é levado por uma ambulância ao hospital. Após a realização de exames,
temos White sentado numa cadeira, e ouvimos um ruído agudo irritante que toma toda a
tela e a atenção do telespectador. White, hipnotizado pela mancha de mostarda no jaleco
do médico, recebe deste a notícia que possui um câncer de pulmão inoperável, e que
teria, no máximo, dois anos de vida.
Depois de se demitir do emprego no lava-jato - em razão de um descontrole
emocional inesperado, muito embora justificável, eis que ali era constante vítima de
maus tratos pelo seu empregador de sobrancelhas exageradas - vemos White solitário no
seu quintal, pensativo, encarando e jogando na piscina suja fósforos acesos. O
protagonista busca ali, no isolamento, uma idéia, uma saída que o permita manter sua
família mesmo com sua iminente morte. E assim, resolve ligar para seu cunhado e aceita
o convite para participar da próxima operação de apreensão de metanfetamina.
O interesse de White é enfim revelado aos telespectadores quando este, após a
operação policial com seu cunhado, procura o fugitivo da incursão, seu ex aluno, Jesse
Pinkman - que empreendeu fuga sob o olhar estupefato de White - para propor àquele
um negócio. White, unindo seu extenso conhecimento em química à necessidade de
arrecadar uma grande soma de dinheiro para sua família, somado ao conhecimento de
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Pinkman acerca do mundo das drogas, decide propor que formem uma sociedade para a
fabricação e venda de metanfetamina.
Para Walter White, ninguém além do patriarca poderia/deveria ser o responsável
pela sobrevivência financeira do núcleo familiar. A esposa – e isto descobrimos
conforme a série avança – já havia trabalhado em momento anterior, mas com o
nascimento de Walter Jr, através de um acordo com o marido, largou o emprego e
decidiu se dedicar exclusivamente à casa e à família. Assim, o papel que White
desempenha na sua família é a própria motivação para iniciar um negócio criminoso
(cabe ressaltar aqui, nos valendo de um curto e inofensivo spoiler, que tal motivação, a
manutenção financeira da família ante as circunstâncias apresentadas pela trama, não é a
única motivação de White). White reconhece seu papel no núcleo familiar, e assim,
mesmo com a notícia de sua iminente morte, decide buscar um modo de prover o
dinheiro necessário para o sustento confortável de sua família após sua morte, que é
dada como certa no episódio piloto.
Não custa lembrar que Skyler, a esposa de White, já havia trabalhado antes do
nascimento do filho, e não seria inusitado, tampouco surpreendente, que voltasse a
trabalhar para ajudar na renda de sua família (como efetivamente volta, mais a frente).
Todavia, ainda sim, segundo a tradição institucional que envolve a classe média norte-
americana representada na série, o produto do trabalho de Skyler serviria apenas como
complemento para a renda familiar, abastecida, necessariamente e tradicionalmente, em
sua grande parte pelo marido, vez que responsabilidade exclusiva daquele.
Não somente o sustento de sua família, que será proporcionado através do
dinheiro da produção e venda de metanfetamina, do suor do trabalho ilícito do patriarca
que envolve riscos incomensuráveis, White busca também reconquistar o controle e o
respeito de sua família, que fora perdido. Busca, enfim, ser o patriarca, em sua íntegra,
provendo saúde, conforto e segurança, mantendo as coisas nos seus devidos lugares. O
marido provém, a mulher administra, e os filhos, são o objeto da atenção e cuidados
maternos e paternos. Ou seja, a série se desenrola sob o crivo da típica tradição de uma
família classe média sulista dos Estados Unidos.
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No decorrer dos episódios, nos deparamos com a questão envolvendo o filho do
protagonista, Walter White Jr, e sua própria imagem como patriarca. O adolescente é
recorrentemente objeto de disputa entre os personagens de Walter White e o cunhado da
sua mulher, Hank Schrader. Os modelos de condutas a serem seguidas, as inibições,
restrições e proibições são constantemente postas e sobrepostas ao jovem, ora pelo tio,
ora por seu pai.
A disputa pela figura paterna da família White atinge seu clímax no episódio 10
da segunda temporada, na sequência da festa de comemoração em razão do sucesso do
tratamento de White contra o câncer, pago, aos olhos de todos ali presentes, pelos
antigos sócios, Gretchen e Elliot. Tal condição fictícia - de estar sendo ajudado
financeiramente no tratamento – causa um incômodo intenso no protagonista, já que não
pode revelar para ninguém a fonte de renda oriunda do tráfico de drogas, que paga
efetivamente seu tratamento, dinheiro proveniente do seu esforço e risco individual,
apesar dos pesares.
Em dado momento, estão os três personagens à beira da piscina ouvindo as
histórias de Hank - que constrói sua fala com um discreto enaltecimento pessoal –
quando percebemos White incomodado com a fala de Hank, perturbado com seu papel
neste cenário, eis que se resume simplesmente à tarefa de encher o copo de Hank com
tequila, enquanto o cunhado, com suas histórias e exemplos de vida, toma seu lugar no
núcleo familiar.
Inesperadamente, White resolve encher o copo do filho, e ordena que este o
beba. O filho obedece, com a concordância de Hank. Enquanto o cunhado de White
reinicia suas histórias, o copo de Junior é instantaneamente enchido de novo por White,
quando então Hank o interpela, censurando-o. Mal o segundo shot acaba de ser ingerido
pelo filho, White tenta encher novamente o copo do filho, mas é impedido pelo cunhado
sob a justificativa de que o menino seria novo demais e aquilo seria prejudicial. Apesar
da mão de Hank estar obstaculizando a pretensão do protagonista, vez que posta sobre o
copo de Junior, White dá vazão à sua vontade inicial, e enche o copo, em conflito direto
com o cunhado, que ainda aconselha o rapaz a não beber. Ato contínuo, Hank se
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levanta, carregando junto de si a garrafa, objeto da discórdia e disputa, quando White
ordena que Hank traga a garrafa de volta, recebendo um resposta negativa deste. White
se levanta e declara em tom raivoso: ―É meu filho. Minha garrafa. Minha casa.‖ A
tensão que se forma entre os personagens é dissolvida por Walter Junior que, em
decorrência da ingestão exagerada da bebida, passa mal e acaba vomitando na piscina.
A sequência em destaque aponta claramente para a principal motivação - ainda
que inicial – de Walter White para começar a produzir e traficar metanfetamina: a
necessidade do protagonista de assumir o controle de sua família, ser a efetiva figura
paterna. Assim, da criação na família de um lugar imprescindível para o
desenvolvimento da autonomia individual, observamos que tais estruturas, ainda que
modificadas, não deixaram de prescindir da referência paterna.
Freud , ao narrar a história da primeira comunidade de homens - a comunidade
―primeva‖ - estabelece como marco inicial da civilização o mito do pai da horda16
,
determinando, por fim, a importância da figura paterna na estrutura familiar.
De acordo com o autor, teria havido no início de tudo uma tribo governada por
um tirano que submetia todos os integrantes às suas vontades e desejos. Impedia o
tirano, principalmente, que os homens da tribo mantivessem relações sexuais com as
mulheres, o que, logicamente, aponta para a constatação de ser este tirano o pai de toda
a tribo. Irresignados, os filhos tentaram depor o pai, não logrando êxito na primeira
tentativa, sendo expulsos da tribo. Unidos pelo ódio ao pai, os irmãos se organizaram e
tentaram pela segunda vez, quando então, obtiveram sucesso, matando o pai, pondo fim
à horda patriarcal. Após o assassinato, os filhos devoraram o pai, realizando, conforme
observa Freud, um processo simbólico de identificação com aquele e,
consequentemente, adquirindo parte da força paterna.
Após tal sequência de acontecimentos, surge nos filhos o sentimento de culpa
pela morte do pai em razão da descoberta da existência de sentimentos antagônicos de
amor e ódio ao pai.
Destaca Freud que os filhos
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FREUD, Sigmunt. Totem e tabu e outros trabalhos e obras completas, Imago, 1968.
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Odiavam o pai, que representava um obstáculo tão formidável ao seu
anseio de poder e aos desejos sexuais; mas amavam-no e admiravam-
no também. Após terem-se livrado dele, satisfeito o ódio e posto em
prática os desejos de identificarem-se com ele, a afeição que todo esse
tempo tinha sido recalcada estava fadada a fazer-se sentir e assim o
fez sob a forma de remorso. Um sentimento de culpa surgiu, o qual,
nesse caso, coincidia com o remorso sentido por todo o grupo. O pai
morto tornou-se mais forte do que o fora vivo — pois os
acontecimentos tomaram o curso que com tanta freqüência os vemos
tomar nos assuntos humanos ainda hoje. O que até então fora interdito
por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos, de
acordo com o procedimento psicológico que nos é tão familiar nas
psicanálises, sob o nome de ‗obediência adiada‘. Anularam o próprio
ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram aos
seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora
tinham sido libertadas. Criaram assim, do sentimento de culpa filial,
os dois tabus fundamentais do totemismo, que, por essa própria razão,
corresponderam inevitavelmente aos dois desejos reprimidos do
complexo de Édipo. Quem quer que infringisse esse tabus tornava-se
culpado dos dois únicos crimes pelos quais a sociedade primitiva se
interessava17
Assim, temos que a ordem moral humana encontra seu alicerce fundamental no
assassinato do pai da horda, sendo criada tal ordem, inicialmente a partir de duas
proibições: parricídio e incesto. A partir do momento que estas duas regras - dois tabus
iniciais - são estabelecidas pela comunidade recém-formada, nasce o sistema de
repressões e desse modo, nota-se, conforme ressalta Freud, a passagem da natureza para
a civilização, do mundo animal para o humano. O ser humano, através da necessidade
de se agrupar, atento às proibições do parricídio e do incesto ensaia o projeto familiar.
Deste apanhado de conjecturas míticas nasce a família com sua estrutura baseada na
figura paterna como principal referencial moral. O totem e os tabus. O pai e as regras
morais que norteiam a sociedade fraternal.
O pai morto se torna o pai simbólico, restaurado, gerado pela culpa dos filhos e
ainda, ressuscitado em decorrência da grave possibilidade de todos se tornarem também
tiranos. A necessidade de organização comunitária faz com que surja o pai simbólico,
17
Ibidem, p. 92.
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“QUERIDA, CHEGUEI!”: A FAMÍLIA NUCLEAR NOS SERIADOS AMERICANOS
DIAS, Fabricio; MADEIRA FILHO, Wilson.
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representado pelo totem, que dita as regras sociais, atuando como o freio moral da
comunidade. É exatamente nestes termos que a organização familiar torna
imprescindível para o seu regular funcionamento a figura paterna.
Assim, na sua constante luta pela posse da figura paterna, pelo lugar reservado
historicamente para o protagonista, este não aceita qualquer ajuda, não concorda com a
existência de qualquer outra fonte que não a sua, qualquer meio que não venha do seu
próprio esforço, assim como não aceita a intervenção de qualquer outro no destino de
sua família. A motivação inicial de White para a produção e venda de metanfetamina é
o reforço da estrutura familiar tradicional, principalmente no que diz respeito ao
provimento patriarcal e a posse da figura paterna.
REFERÊNCIAS
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PERCURSO ENTRE A SUBJETIVIDADE EM “CONFISSÕES” DE SANTO AGOSTINHO E DE JEAN-JACQUES
ROUSSEAU E O DIREITO MODERNO,LUTFY, Fátima Lopes do Amaral
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PERCURSO ENTRE A SUBJETIVIDADE EM “CONFISSÕES” DE
SANTO AGOSTINHO E DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU E O
DIREITO MODERNO
LUTFY, Fátima Lopes do Amaral
Mestre em Letras pela UFF e advogada inscrita nos Quadros da OAB/ RJ
RESUMO Ao lado da própria noção de cidadania que se configura, mediante uma diferenciação social, o
individualismo contemporâneo encontra seu lar e convive com a crescente complexidade da
vida social, multiplicando as possibilidades de engajamentos e identidades, sendo os seres
humanos tomados como absolutamente homogêneos e indiferenciados, e essa individualidade,
traçada a partir de origens históricas mais longínquas como o fazemos em ―Confissões‖ de
Santo Agostinho, surge a partir de mecanismos especificamente ―modernos‖, veiculados pelo
Romantismo de Rousseau e que possibilitam aos sujeitos uma autonomia aparentemente sem
precedentes na história humana, se levarmos em consideração a revolução tecnológica na qual
vivemos com a linguagem.
Palavras-chave: cidadania, individualismo, identidade
ABSTRACT
Next to the very notion of citizenship that is shaped by a social differentiation, the
contemporary individualism finds its home and lives with the growing complexity of social life,
multiplying the possibilities for engagement and identities, and human beings taken as
absolutely homogeneous and undifferentiated and this individuality, drawn from more distant
historical origins as we do in " Confessions " of St. Augustine, arises from mechanisms
specifically "moderns", conveyed by Rousseau Romanticism and that enable individuals
unprecedented apparently autonomy in human history , if we take into account the technological
revolution in which we live with the language .
Keywords: citizenship , individualism , identity
INTRODUÇÃO
O presente estudo comparado de ―Confissões‖ de Santo Agostinho e de Jean-
Jacques Rousseau tenta relacionar Literatura e Direito e demonstrar uma trajetória entre
o que levou a sociedade da época do Estado Absolutista e às primeiras concepções da
modernidade com a ideia de subjetividade, tendo como precursor Rousseau no
Romantismo e o subjetivismo atual da pós-modernidade. Além disso, a escolha de duas
autobiografias confessionais a serem analisadas nos leva à dimensão da Internet e da
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ROUSSEAU E O DIREITO MODERNO,LUTFY, Fátima Lopes do Amaral
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mídia no universo cotidiano, uma realidade em que todos estão presentes/ ausentes,
travando pactos, formando ―comunidades‖ e ―grupos‖, em uma escrita/ leitura que se dá
ao mesmo tempo. Assim, nada mais atual do que se estudar essas duas autobiografias
que, ao considerar como um discurso que coloca o eu frente a condições com os quais o
autobiógrafo deve se justificar, a autobiografia depende da existência de um outro: eu e
tu são instâncias apartadas e parceiras que se desdobram no passado e no futuro, além
de ser democrático como inclusão do outro. Nesse sentido, a ―pós-modernidade líquida‖
se torna um espaço fragmentado, definido pela ausência de qualquer laço duradouro,
onde o ―nós‖ não é mais do que um agregado de ―eus‖ (BAUMAN, 2003, p. 78). E
justo porque o tempo é relativizado, o ―advento da modernidade arranca crescentemente o
espaço fomentando relações entre outros ―ausentes‖, localmente distantes de qualquer situação
dada ou interação face a face‖ (GIDDENS, 1991, p. 22).
Com essa necessidade de buscar uma identidade, surgem as comunidades, as
quais Bauman dizem que são grupos que se reúnem ―por encontrar um gancho onde
pendurar simultaneamente os medos de muitos indivíduos. De tempos em tempos surgem outros
ganchos...‖ (BAUMAN, 2000, p.54). A diversidade de opções e escolhas que cada
indivíduo possui na modernidade líquida é capitaneada pela utilização da imagem de
personalidades renomadas para passar credibilidade ou mesmo certa autoridade nos
produtos e serviços que estão à disposição para consumo. É o que Anthony Giddens
chama de ―reflexividade institucional", que concerne, em particular, na importância da
vida cotidiana dos sistemas de peritos – sejam eles a psicanálise, a sociologia ou aqueles
embutidos nas rotinas mais imediatas, como os supostos pelo funcionamento do trânsito
automobilístico, pela aviação, pela engenharia ou pela medicina – e na "dupla
hermenêutica" que esses sistemas mantêm com os agentes "leigos". O problema reside
no fato de que o conhecimento gerado por aqueles sistemas, em lugar de garantir
certezas, engendra cada vez mais incertezas, instabilidade e efeitos inesperados, o que
acaba por afetar os próprios sujeitos (GIDDENS, 1990, p.21-29). Essa forma de
representação de interesses é, ao mesmo tempo, legítima e perversa. É legítima porque
faz parte da lógica política do capitalismo contemporâneo que os grupos sociais se
façam representar politicamente e defendam seus interesses. É perversa porque esses
grupos, ao invés de admitir que estão defendendo interesses particulares, tendem a
identificar seus interesses particulares com o interesse público. Quando alguém ou
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algum grupo defende explicitamente seus interesses junto ao Estado, fala-se em
corporativismo.
Retornando, então, ao que se deseja com este trabalho, fundamentado pelo
próprio conceito do Romantismo que construiu a ideia de nação através da identidade, é
que se escolheu trabalhar dentro da Literatura Comparada juntamente com o Direito, a
partir da literatura confessional na medida em que Santo Agostinho e Rousseau se
propuseram a um pacto, sendo definidos como autor-narrador-personagem
comprometidos com o engajamento que nos ―confia‖ um julgamento acerca do que
confessam.
IMPORTÃNCIA DOS AUTORES
E porque tanto Santo Agostinho, doutor da Igreja, e Rousseau, um dos
fundadores do Iluminismo, se inserem no ―sistema de peritos‖ delineado por Giddens é
que se justifica este trabalho alicerçado sobre o seu conceito de confiança e fé:
Neste ponto chegamos a uma definição de confiança. A confiança
pode ser definida como crença na credibilidade de uma pessoa ou
sistema, tendo em vista um dado conjunto de resultados ou eventos,
em que essa crença expressa uma fé na probidade ou amor de um
outro, ou na correção de princípios abstratos (conhecimento técnico)
(GIDDENS, 1991, p. 36)
Em busca de identificar a verdade, mas não mais a colocando em Deus e, sim,
dentro de si, o homem é lançado no mundo da inquietude. E, então, os homens se
encontram imersos em meio a um caos de possibilidades interpretativas, como
Rousseau mesmo o demonstra, ao avaliar e reavaliar, com sentidos diferentes, os
mesmos acontecimentos relembrados, na releitura que processa em ―Confissões‖
quando, por exemplo, discorre sobre o roubo.
Em relação aos fatos que precedem o ―crime‖, dois são tidos como
determinantes para a relação que Rousseau viria a estabelecer com o roubo em ―As
Confissões‖: (1) a mudança de sua personalidade decorrente do mau convívio com seu
mestre, o Sr. Ducommun ―a tirania do mestre acabou por me tornar insuportável um
trabalho de que eu gostaria, e por me ensinar vícios que eu odiaria, como a mentira, a
vagabundagem e o roubo‖ (ROUSSEAU, 2008, p.51), como narrado no Livro Primeiro
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das Confissões e (2) o seu primeiro furto, consumado ―por uma questão de
condescendência‖, mas que ―abriu a porta a outros que não tinham fim tão louvável‖
(ROUSSEAU, 2008, p. 52). Mesmo com as privações que sofria na casa do Sr.
Ducommun, Rousseau nunca havia pensado em roubar, até o dia em que fez um acordo
com um companheiro de trabalho chamado Verrat, com quem aprendeu que ―roubar não
era tão terrível‖. Enquanto Rousseau apresenta o seu mestre e o seu companheiro Verrat
como influências indiretas, em nenhum momento ele transfere sua culpa, apenas faz uso
desses episódios para traçar uma ―linha coesa‖ que forneça os dados necessários para
que as ―testemunhas-leitores de As Confissões o inocentem‖.
Santo Agostinho relata no Livro II (―Os pecados da adolescência‖) que,
mesmo assumindo sua culpa, aponta as ―más amizades‖ como influências diretas e
indispensáveis para o ato que cometeu: ―Sozinho não o faria (...), portanto, amei também no
furto o consórcio daqueles com quem o cometi‖ (AGOSTINHO, 1999, p. 73). O ―grupo‖
torna-se uma peça fundamental no roubo das peras, pois se Agostinho tivesse sido
motivado pela fome, e não pelo prazer de fazer o ilícito, o teria feito mesmo que
sozinho; para ele, comete-se esse tipo de delito por diversão apenas na companhia de
terceiros ―completamente só, não sentiria prazer em praticar o furto‖ (AGOSTINHO,
1999, p 74). Diferente de Santo Agostinho, o roubo não é tratado por Rousseau como
um episódio isolado, mas como um exemplo dentro de um processo. Antes e depois
da narração do ato em si, fornecem-se diversos detalhes a fim de situar/esclarecer ao
leitor como se constituiu e qual é a sua visão sobre esse tipo de delito. Portanto,
também divergindo de Agostinho, Rousseau não rememora a fim de se condenar, mas
para expor, didática e minuciosamente, seus motivos e justificativas para tal feito. O
filósofo tenta de toda a forma provar a coerência de como se tornou o que é, colocando-
se nas mãos das ―testemunhas‖ para o juízo.
Agostinho, por sua introspecção psicológica e antevisão existencialista,
partilhava a crença que o pensamento filosófico começa com o sujeito humano
predestinado por Deus. A doutrina da predestinação está particularmente associada
ao Calvinismo1. Ensina que a predestinação de Deus é fruto de sua onisciência, como
1O Calvinismo, também chamado de Tradição Reformada, Fé Reformada ou Teologia
Reformada é tanto um movimento religioso protestante quanto uma ideologia sociocultural com
raízes na iniciada por João Calvino em Genebra no século XVI. Este movimento se relaciona
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presciência, e é regida de acordo com a Sua vontade e absoluta soberania, em relação às
pessoas e acontecimentos. Por outras palavras, o Calvinismo baseia a sua doutrina
dapredestinação na perspectiva de que Deus predestina prévia e absolutamente a
humanidade, escolhendo entre os homens aqueles que irão salvar-se e aqueles que vão
ser condenados. Esta doutrina fortaleceu o Absolutismo, pois tanto para o Calvinismo
quanto para o catolicismo-romano agostiniano, não há livre-arbítrio. Para ambos, a
soberania de Deus prevalece. O cristão escolhido não pode rejeitar sua eleição, pois
Deus há de curvá-lo até que ele aceite a Sua graça.
Em ―A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo‖ de Max Weber
baseando-se em Santo Agostinho, Calvino diz que não viemos ao mundo predestinados
por Deus a sermos salvos ou condenados. A doutrina de Santo Agostinho afirma que a
vontade de Deus determina que alguns sucumbam à tentação do mal, enquanto outros
não. Então, isso significa que podemos ser condenados ao castigo eterno por Deus, se
não formos virtuosos, mas que, ao mesmo tempo, o controle sobre nossa própria
vontade foi determinado por Ele anteriormente. Essa teoria da Graça deu embasamento
ao Estado Absolutista e ela ―é unicamente o produto de um poder objetivo e que de
modo algum poderia ser atribuída ao valor pessoal‖ (WEBER, 1996, p. 44).
A análise agostiniana sobre o tempo, que não é realizada apenas em termos
cosmológicos, como medida de movimento, mas também como inseparável da
interioridade psíquica, é um elemento importante para a constituição do eu ou do
sujeito, pois o eu agostiniano que começa a narrativa das confissões não é o mesmo que
conclui. O tempo é a produção da identidade e da diferença consigo mesmo, pode ser
ainda a dimensão de um sujeito que está se constituindo, pois ele exerce um papel
fundamental na consciência humana, uma vez que tempo e consciência são
indissociáveis. Agostinho entende que existe outra maneira de pensar o tempo sem ser
em termos espaciais, mas a partir de outro elemento, que é a linguagem, a fala. E por
este motivo ainda continuamos pensando o tempo, mas sem a tentativa de explicar a sua
essência. Podemos tentar apreendê-lo a partir de nossas práticas linguísticas, porque a
linguagem adquire sentido a partir do tempo. Em outras palavras, não se pode pensar
estreitamente ao capitalismo, pois Calvino de fato interessou-se vivamente por questões
econômicas e existem elementos na sua teologia que certamente contribuíram para uma nova
atitude em relação ao trabalho e aos bens materiais.
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um sem o outro, pois a linguagem articula o tempo, assim como o tempo articula a
própria linguagem.
Pensar o tempo significa, portanto, a obrigação de pensar na
linguagem que o diz e que nele se diz‖. ―É impróprio afirmar que os
tempos são três: pretérito, presente e futuro. Mas talvez fosse próprio
dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente
das presentes, presente das futuras. Existem, pois, estes três tempos na
minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das
coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança
presente das coisas futuras. (AGOSTINHO, 1996, p. 327-328)
Na descrição autobiográfica nas ―Confissões‖, Agostinho cria a noção de espaço
interior como campo da verdade essencial do homem (verdade e Deus devem ser
buscados na alma, e não no mundo exterior). Esse método "interior" será preservado na
literatura mística cristã medieval e moderna e na observação moral severa de si mesmo
levada a cabo pelos protestantes a partir do século XVI. E porque Weber constatou que
em certos países da Europa um número desproporcional de protestantes estava
envolvido com ocupações ligadas ao capital, à indústria e ao comércio, algumas regiões
de fé calvinista ou reformada estavam entre aquelas onde mais floresceu o capitalismo.
Na sua pesquisa, ele baseou-se principalmente nos puritanos e em grupos influenciados
por eles. Ao analisar os dados, Weber ( 1996, p. 31) concluiu que entre os puritanos
surgiu um ―espírito capitalista‖ que fez do lucro e do ganho um dever. Ele argumenta
que esse espírito resultou do sentido cristão de vocação dado pelos protestantes ao
trabalho e do conceito de predestinação, tido como central na teologia calvinista. Isso
gerou o individualismo e um novo tipo de ascetismo no mundo caracterizado por uma
vida disciplinada, apego ao trabalho e valorização da poupança. É nesse sentido que
citamos Richard Sennet (2006, p. 29):
O tempo está no cerne desse capitalismo social militarizado: um
tempo de longo prazo, cumulativo e sobretudo previsível. Esta
imposição burocrática afetava tanto as regulações institucionais
quanto os indivíduos. O tempo racionalizado permitia que os
indivíduos encarassem suas vidas como narrativas. Tornou-se
possível, por exemplo, definir como deveriam ser as etapas de uma
carreira, relacionar um longo percurso de prestação de serviços numa
empresa a passos específicos de acumulação de riquezas.
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E quando se fala em acumulação de riquezas, vem à mente a ideia de
igualdade de Rousseau, ou melhor aqui dizendo, desigualdade, que sendo quase nula no
estado natural, tira a própria força e o próprio incremento do desenvolvimento das
nossas faculdades e do progresso do espírito humano, tornando-se por fim, estável e
legítima para a instituição da propriedade e das leis. O princípio do Promotor Natural
aqui, por exemplo, é aquele que pressupõe que cada órgão da instituição tenha, de um
lado, as suas atribuições fixadas em lei e, de outro, que o agente, que ocupa legalmente
o cargo correspondente ao seu órgão de atuação seja aquele que irá oficiar no processo
correspondente. Todos nós temos o direito subjetivo público, também quanto ao Juiz
Natural, de índole constitucional, de sermos processados pela autoridade competente.
No direito natural, cada pessoa tem o direito de reagir quando sua liberdade
juridicamente protegida for atingida, havendo, assim a prevalência do valor justiça.
No extremo oposto, no período positivista, a unilateralidade do direito positivo
era a marca presente e unilateral da segurança jurídica2. Contudo, a unilateralidade
dessas épocas jurídicas, desligadas uma das outras, estaria então em condições de tornar
visível a multilateralidade atual da ideia de direito. Desta forma, a desigualdade moral,
autorizada apenas pelo direito positivo, é contrária ao direito natural sempre que não se
mostrar em proporção com a desigualdade física. Frente à igualdade e à liberdade,
produzem-se as desigualdades sociais e econômicas entre os homens. O fato, por
exemplo, de o contribuinte ser forçado a contribuir para o bem-estar de outrem lhe viola
os seus direitos se ninguém mais lhe fornece coisas de que necessita.
Mas como o homem que surge da desigualdade é corrompido pelo poder e
esmagado pela violência, surge a necessidade de se abdicar a própria vontade em prol
de um Estado. É com o pensamento de Rousseau que a sociedade confere a um ente (o
Estado) o poder de organizar as relações sociais. Segundo Luigi Ferrajoli,
―o Estado de Direito moderno nasce, na forma do ‗Estado legislativo
de Direito‘, no momento em que esta instância se realiza
historicamente com a exata afirmação do princípio da legalidade como
fonte exclusiva do direito válido e existente anteriormente. Graças a
esse princípio e às codificações que constituem a sua atuação, todas as
2Kelsen (1979, p. 9) foi enfático ao excluir os questionamentos sobre a justiça, afirmando que
uma norma jurídica positiva não pode ser injusta, uma vez que o autor pregava a independência
da validade da norma jurídica positiva em relação à norma de justiça.
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normas jurídicas existem e simultaneamente são válidas desde que
sejam ‗postas‘ por autoridades de competência legislativa‖... ―uma
norma existe e é válida não porque é intrinsecamente justa e ainda
menos ‗verdadeira‘, mas somente porque é proclamada em forma de
lei por sujeitos habilitados por ela‖. (FERRAJOLI, 2006, p. 423).
Enquanto Santo Agostinho escreve para se assumir culpado por seus pecados
e assim reafirmar/expor a onipotência divina com base em suas experiências, Rousseau
escreve para se defender e para culpar os outros. Para Santo Agostinho a conversação é
o ponto de partida e de chegada para falar de si; para Rousseau apresenta o ―anseio por
se justificar‖.
Sem recorrer a Deus, para Rousseau a fonte da recuperação dos homens em
sociedade, palco dos pecados, seria o encontro com o natural -- o estado de devaneio, o
mergulho numa interioridade sempre em transformação. Com Rousseau, a natureza é a
metáfora de Deus e do infinito, que se fragmenta no decurso da construção moderna dos
sentidos do mundo, e se "encarna" na ideia complexa do homem natural cindido entre o
eu solitário e o ente civil que almejava o contato com o semelhante em busca dos
valores autênticos. Se no mundo do passado, com a contribuição do cristianismo e o
processo de conversão medieval, o estado de coisas se baseava na permanência de uma
explicação divina para a vida, e o ―estar no mundo‖ era visto como mera passagem para
a verdadeira arte, com Rousseau se inaugura uma atitude diferente.
Rousseau como o primeiro dos Românticos que, com o mito do bom selvagem,
acreditava que o homem devia se desdobrar em seu estado natural para buscar as suas
origens e ter a liberdade suprema sem recorrer à representação da soberania de forma
paternalista como criticaIngeborg Maus (MAUS, 2000, p.184), é o cerne desta pesquisa
que como bem atenta Habermas ―direitos subjetivos são direitos negativos que garantem
um espaço de ação alternativo em cujos limites as pessoas do direito se veem livres de
coações externas.‖ (HABERMAS, 2007, p. 271). Todavia,
―de acordo com a concepção republicana, o status dos cidadãos não é
determinado segundo o modelo das liberdades negativas, que eles
podem reivindicar como pessoas em particular. Os direitos de
cidadania, direitos de participação e concepção política são direitos
positivos. ― (idem, p. 272)
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Esta prática, entretanto, pode se realizar através da defesa de direitos civis,
particularmente da afirmação do direito do consumidor. Através da sua defesa o
consumidor assume o caráter de cidadão.Essa distinção entre direitos individuais e
coletivos é naturalmente relativa, já que os interesses individuais só podem ser
garantidos dentro de uma sociedade em que a ação coletiva de fato ocorre, cria o Estado
e as instituições liberais e democráticas, e assim garante esses direitos, enquanto os
direitos coletivos, cuja defesa exige diretamente a ação coletiva e em última análise
solidária dos prejudicados, são também direitos de cada cidadão individualmente.Os
juristas, prudentemente, falam em interesses e não em direitos, e os qualificam como
―difusos‖. Falam também em interesses ou ―direitos coletivos‖. São direitos coletivos
quando sua titularidade se expressa coletivamente, como direito de uma classe ou
categoria de sujeitos. Mas os direitos republicanos são um direito subjetivo individual
na medida em que os cidadãos são deles detentores. Os juristas também falam em
―direitos republicanos subjetivos‖ para designar de forma ampla todos os direitos dos
indivíduos em face ao Estado: direitos que obrigam o Estado a não fazer (não atentar
contra a liberdade, principalmente) ou fazer (particularmente os direitos sociais a serem
garantidos pelo Estado). Os direitos republicanos poderiam ser incluídos nessa
categoria, mas ao definir assim direitos republicanos estaríamos ampliando
excessivamente o conceito e, afinal, invertendo o seu significado. Quando nos referimos
a direitos republicanos não nos interessam os direitos dos cidadãos contra o Estado —
estes são os direitos civis —, mas os direitos dos cidadãos reunidos no Estado contra os
indivíduos e grupos que querem capturar o patrimônio público. Philippe Nonet e Philip
Selznick em ―Direito e sociedade: a transição ao sistema jurídico responsivo‖ defende a
ideia de tornar a lei ―mais responsiva às necessidades sociais‖ (NONET & SELZNICK,
p. 121). Ainda segundo os autores
―responsabilidade gera formalismo e retraimento, torna as instituições
mais rígidas e menos aptas a lidar com novas contingências. Por outro
lado, abertura pressupõe grandes doses de discricionariedade, de modo
que a ação dos órgãos institucionais possa manter-se flexível,
adaptável e autocorretiva. Mas as responsabilidades ficam mais vagas
quando perdem precisão e surge o perigo de que os
comprometimentos se diluam à medida que aumenta a flexibilidade.
Em conseqüência, a abertura degenera em oportunismo, quer dizer, na
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adaptação incontrolada a acontecimentos e pressões‖. (NONET &
SELZINICK, 2010, p. 125)
No século vinte, surgiu, então, uma nova forma institucionalizada de apropriação
privada da coisa pública: o corporativismo. Enquanto no patrimonialismo se confunde o
patrimônio público com o da família, no corporativismo o patrimônio público é
confundido com o patrimônio do grupo de interesses ou corporação. É o que os autores
acima mencionados dizem: ―um agregado impreciso de Corporações Públicas, cada uma com
sua própria missão de seu próprio público‖ (idem, p. 157). Daí a importância crescente dos
movimentos sociais para a construção da cidadania através da afirmação de direitos
sociais a fim de combater essa apropriação. A proposta é uma nova institucionalização
do Estado que será chamado Estado Plurinacional, baseado em novas autonomias, no
pluralismo jurídico em um novo regime político calcado na Democracia Intercultural
em novas individualidades particulares e coletivas.
Assim, o presente artigo traz à lume uma perspectiva comparada, realizada mediante
análise textual e indutiva, em que se consulta obras pertinentes não só à Ciência
Jurídica, mas a outros ramos das ciências humanas e sociais. Desta forma, buscou-se
pontos de interseção entre Literatura, Ciência Jurídica, Sociologia e Ciência Política.
Metodologia:
Trata-se de estudo comparado, realizado mediante análise textual e indutiva,
em que se consultam obras pertinentes não só à Ciência Jurídica, mas em outros ramos
das ciências humanas e sociais. O material bibliográfico é constituído de livros, artigos
científicos, teses e revistas especializadas. Para a escolha do referencial teórico
adequado, buscou-se pontos de interseção entre a Literatura, a Ciência Jurídica, a
Sociologia e a Ciência Política, trabalhando-se com pressupostos básicos do pluralismo
jurídico.
Assume-se a necessidade de o Direito abrir-se ao diálogo com as
demais ciências. Assim, a multidisciplinaridade é pressuposto essencial para o
desenvolvimento desta pesquisa. Nesta linha, o presente estudo leva em conta algumas
categorias conceituais caras à Filosofia e à Sociologia, como identidade, diferenças e
multiculturalismo. O estudo jurídico puramente tecnicista, sem diálogo com as
múltiplas realidades sociais, tende a contribuir para a manutenção do status quo.
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A própria concepção de Direito, em um viés liberal, tende a centrar em
excesso suas atenções na atividade judiciária, que atua na ponta final da cadeia como
uma espécie de ―bombeiro‖, de forma corretiva. A construção do Direito é reservada a
uma elite intelectual, havendo pouco espaço para a participação popular e para projetos
que enfatizem uma formação para cidadania. Acaba sendo privilegiada a análise
do Direito apenas como remediador de conflitos, deixando de lado seu papel preventivo
e de formação de cidadania. Em sentido inverso, o presente estudo procura
apresentar perspectivas alternativas a esta visão.
Ressalte-se, ainda, que ter o fenômeno da globalização como pano de
fundo para análises teóricas e para as correlações entre a teoria e a práxis permite a
ampliação do horizonte de discussões envolvendo o Direito, dentro do ambiente
interdisciplinar acima mencionado.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Para relacionar Santo Agostinho e Jean Jacques Rousseau, apresentamos uma breve
biografia seguida do corpus teórico:
Santo Agostinho (354-430), ou Aurelio Agostinho, nasceu em Tagaste, mas
morou, estudou, lecionou e tornou-se Bispo em Hipona, onde hoje fica a Argélia. Da
Idade Média, ele entra na História da Filosofia. É um cânone da Filosofia como o
sujeito que descobre o fundamento subjetivo da certeza, não só como fundamento
cognitivo, mas também como fundamento moral. E nesse sentido seu pensamento tem
peso filosófico até aos dias de hoje.
O genebrino Rousseau (1712-1778) foi um verdadeiro cidadão do mundo,
uma vez que se aventurou por diversos pontos da Europa, exercendo funções de
relojoeiro, lacaio, copista, professor, preceptor, secretário, musicista, compositor,
intérprete. Voltaire, Diderot, d´Alembert e Hume são nomes associados a sua biografia.
Em virtude de perseguições que sofre e da censura que paira sobre os seus escritos,
surge a oportunidade de escrever sobre sua própria vida, até para defender os seus
trabalhos intelectuais.
Deste modo, para traçar uma correspondência entre esses dois autores, os
aproximamos dos autores mencionados e elencamos os teóricos a seguir:
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Para Anthony Giddens em ―As Consequências da Modernidade‖, uma
situação de "desencaixes" acentuados – conceito fundamental para sua explicação da
especificidade da individualidade moderna e de seu aprofundamento contemporâneo –
em que "sistemas" abstratos, fichas simbólicas – como o dinheiro e "sistemas de
peritos" – tornam-se centrais na organização da vida social, as certezas dos modos de
vida pré-modernos são solapadas e o indivíduo, arrancado dos contextos tradicionais,
locais e relativamente estáveis de existência, deu lugar à radicalização da modernidade.
Segundo Jürgen Habermas, em A inclusão do Outro: estudos de teoria
política‖ há três modelos de democracia. A concepção republicana, a concepção liberal,
a concepção de democracia deliberativa. Para a primeira, ao lado do poder
administrativo e dos interesses próprios, surge a solidariedade como terceira fonte de
integração social. Já a segunda é determinada pelo status dos cidadãos conforme a
medida dos direitos individuais de que eles dispõem em face do Estado e dos demais
cidadãos. E por fim, aquela que o autor sugere baseia-se nas condições de comunicação
sob as quais o processo político supõe-se capaz de alcançar resultados racionais
justamente por cumprir-se, em todo seu alcance, de modo deliberativo.
Dando continuidade ao pensamento do autor anteriormente citado,
Philippe Nonet e Philip Selzinick, ao falarem sobre estados básicos do direito na
sociedade, distinguem três (3) modalidades: o direito como servidor do poder
repressivo; o direito como instituição diferenciada capaz de controlar a repressão e
proteger sua própria integridade (direito autônomo); e o direito como facilitador do
atendimento às necessidades e aspirações sociais, que é o direito responsivo.
Ingeborg Maus discute em que medida a atividade de controle normativo judicial teria
contribuído para a perda da racionalidade jurídica ou mesmo para racionalizações
autoritárias.
De acordo com Luigi Ferrajoli, há um condicionamento do princípio da
legalidade formal à validade da norma e faz uma crítica às constituições rígidas. Mas
esses dois modelos de Estado estão em crise devido ao fim do Estado Nacional como
monopólio da produção jurídica.
Max Weber apresenta sua definição de "Espírito do capitalismo" a partir das máximas
de Benjamin Franklin. Nestas regras ele vê a manifestação de um certo espírito moral
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ou ethos: a ideia da profissão como dever e da necessidade de se dedicar ao trabalho
produtivo como fim em si mesmo.
Richard Sennet faz uma distinção entre as relações de trabalho nos anos 60
ao caracterizar a ideia de reengenharia nas empresas com as relações atuais. Com a era
da globalização, esses postos perdem essa organização, são flexíveis e cada vez mais o
trabalhador deve produzir ao máximo sob pena de não ter mais espaço no mercado de
trabalho. Assim, esses são alguns dos teóricos estudados, sendo possível a abertura a
outros que forem sugeridos ao longo do curso.
Dando continuidade ao pensamento do autor anteriormente citado, Philippe Nonet e
Philip Selzinick, ao falarem sobre estados básicos do direito na sociedade, distinguem
três (3) modalidades: o direito como servidor do poder repressivo; o direito como
instituição diferenciada capaz de controlar a repressão e proteger sua própria integridade
(direito autônomo); e o direito como facilitador do atendimento às necessidades e
aspirações sociais, que é o direito responsivo.
RESULTADOS ALCANÇADOS
A pesquisa ainda incipiente pode ser bastante profícua como uma eventual tese de
Doutorado e para tanto apresentamos alguns trabalhos já desenvolvidos a respeito de
Santo Agostinho e Jean-Jacques Rousseau.
O artigo científico A história da infância: de Santo Agostinho à Rousseau,
de Bárbara Carvalho Marques Toledo Lima Mestranda do Programa de Pós- Graduação
em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas e Heloisa Helena de
Oliveira Azevedo, Doutora em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba,
aborda uma discussão teórica que problematiza o conceito de infância no bojo da
história e do pensamento filosófico, a partir de uma revisão crítica da literatura, em que
a criança que projetamos hoje é fruto das transformações da nossa sociedade e a cada
mudança na forma de pensar, agir, na cultura, a criança ganha uma nova imagem, e
como essas transformações não acontecem de maneira isolada, são as representações da
infância, que nos interessam como fato social.
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Pierre Lejeune, professor e crítico, em O pacto autobiográfico: de
Rousseau à Internet parte de estudos autobiográficos no domínio literário e caminha
para uma abertura de perspectivas. Para ele, a autobiografia passa a ser considerada
como partes de variadas manifestações do ―eu‖. A noção de ―pacto‖ para o autor tem
estreita ligação com o gênero e, então, segundo ele, trata-se de uma declaração aberta de
fidelidade irrestrita aos fatos narrados e de identificação entre autor e narrador, sendo
construído numa justaposição constante de desejo de identificação e movimento de
ruptura.
Entre outras teses em que o trabalho de pesquisa não cessa, citamos Ana
Amélia Barros Coelho Pace em Lendo e escrevendo sobre o pacto autobiográfico de
Philippe Lejeune, na qual a examinanda disserta não só sobre Rousseau a partir de
Pierre Lejeune, mas também a partir de outros textos literários com os quais trabalha e
que dão suporte para a compreensão de Lejeune e de Rousseau, e Sergio Ricardo
Strefing em A atualidade das Confissões de Santo Agostinho, trabalho sobre Teologia,
que abarca também outros domínios com uma análise sobre Literatura e, sem dúvida,
Sociologia. Para ele, ainda que muitas obras pretendam merecer o título de ser a
primeira obra literária ―moderna‖, as ―Confissões‖ embasam seu direito a esse título
pelo fato de ser a primeira obra que explora extensamente os estados interiores da mente
humana e a relação mútua existente entre a graça e a liberdade, que são temas
dominantes na história da filosofia e da teologia ocidentais.
CONCLUSÕES
Com a análise weberiana sobre a teoria da Graça, a qual determinava que a vontade de
Deus que alguns sucumbissem à tentação do mal, enquanto outros não, essa teoria é
unicamente o produto de um poder objetivo e que modo algum poderia ser atribuída ao
valor pessoal, tendo como contraponto a questão da igualdade, o Estado de Natureza de
Rousseau que tomará outras formas com o Contrato Social, originando a desigualdade,
e por conseguinte, o anseio por direitos subjetivos, cuja prática se realiza através da
defesa de direitos civis.
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EXISTENCIALISMO E UMA NOVA FACETA DO JUS: SUA CARACTERIZAÇÃO COMO FRAGMENTO DO ABSURDO,
BARROS GUERRA DE FARIAS, Pedro Henrique, MARTINS TEIXEIRA, Caio Vinicius, NUNES PEREIRA, Daniel
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EXISTENCIALISMO E UMA NOVA FACETA DO JUS: SUA
CARACTERIZAÇÃO COMO FRAGMENTO DO ABSURDO
BARROS GUERRA DE FARIAS, Pedro Henrique
Graduando em Direito da Universidade Veiga de Almeida. Graduando em Filosofia da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
MARTINS TEIXEIRA, Caio Vinicius
Graduando em Direito da Universidade Estácio de Sá
NUNES PEREIRA, Daniel
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD/UFF), Mestre em
Ciências Sociais e Jurídicas (PPGSD/UFF), Mestre em Ciência Política (PPGCP/UFF), Especialista em
História Européia (Universiteit Utrecht), Bacharel em Direito (UFF-Niterói-RJ). Professor do Curso de
Direito da Universidade Veiga de Almeida. Professor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença. [email protected]
RESUMO
A fundamentação do Direito a partir de um viés Existencialista desobstruiu uma nova rota acerca da
enorme problemática jurídica concernente à dualidade ontológica do jus; a disfunção interpretativa que
advém de uma falsa síntese entre o Sein e o Sollen apenas corrobora uma visão do Direito aliado ao
campo da utopia. Deste modo, faz-se mister observar melhor essa relação ontológica, pois é algo
completamente inconcebível que a partir do nosso plano existencial se deduza algo totalmente distinto
da sua natureza, como o fazem por meio de conceituações do campo do Ser. Mediante tal pesquisa, foi
possível relacionar o Direito, inusitadamente, à corrente Existencialista, tendo como principal pilar o
Absurdismo de Albert Camus; mapear uma nova faceta do jus, ou seja, voltado ao plano existencial,
como um fragmento do Absurdo, demonstrando, outrossim, um viés jurídico mais próximo da realidade,
o que facilita a interpretação das maiores contradições acopladas a essa Ciência social Aplicada.
Palavras-chave: Existencialismo. Ontologia jurídica. Absurdismo
ABSTRACT The basis for the law from an Existentialist bias has cleared a new route on the significant legal issues
concerning the ontological duality of justice; interpretive dysfunction that comes from a false synthesis
between Sein and Sollen only supports a vision of law allied to the field of utopia. Thus, it is mister better
observe this ontological relationship, it is something completely inconceivable that from our existential
plan to deduct something totally distinct from nature, as they do through concepts of Being of the field.
Through this research, was possible to relate the law, unusually, the current Existentialist, the main pillar
of the Absurdism of Albert Camus; map a new facet of justice, that is, facing the existential plane, as a
fragment of the Absurd, demonstrating, instead, a legal bias closer to reality, which facilitates the
interpretation of the biggest contradictions attached to this social Applied Science.
Key-words: Existentialism. Legal ontology. Absurdism
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INTRODUÇÃO
A problemática jurídica face ao dualismo ontológico suscita diversificados transtornos
in concreto; o Direito como máxima expressão da emancipação humana sobrecarrega-se de
influências finalistas, cuja origem, de certa forma, pode-se atribuir à René Descartes1. Id est, há
a tendência incessante de tornar absolutamente proeminente às soluções- ou possíveis- em
detrimento do próprio problema, objeto de estudo, ocorrendo, por si só, a ausência de
consciência do mesmo2. Fazendo uma leitura Existencialista da categoria do plano da
consciência humana, é possível perceber, tanto em Kierkegaard quanto em Camus, que o
homem se encontra no limite do entendimento de sua existência enquanto categoria
Finito-Infinito. É natural ao homem a percepção- o que fora definido por desespero- de uma
carência de infinito como pathos para uma síntese do eu, o qual deve ser analisado sob uma
categoria do espírito enquanto consciência. Quando perquirido a noção do Absurdismo,
torna-se permitido a dedução, em vista de uma carência do infinito, da contínua necessidade
humana de todo um aformoseamento fantasioso a respeito de nossa existência, o que torna
compreensível a ideia da vida sem um fim em si mesma, a partir de uma peculiar e incompleta
síntese, que somente irá se preencher, ao se juntar com o infinito no plano da consciência
humana. Tal junção é impossível, frise-se. O salto do homem para além do Absurdo existencial,
cuja compreensão alcança a noção da imperfeição humana, é intangível. O homem não deve
dar o salto, não pode compreender a ausência de algo infinito, conquanto haja essa necessidade
natural. O homem é imperfeito, e é a sua imperfeição que o torna perfeito, não por haver uma
necessidade de completar sua imperfeição, com uma perfeição superior, mas sim, porque sua
imperfeição é o que o define como homem e o insere na categoria da consciência do eu.
1Quando analisamos o apogeu filosófico atribuído ao autor em sua obra intitulada O Discurso do Método,
interpretamos o sentido da frase: “O segundo, dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas
parcelas possíveis e que fossem necessárias para melhor resolvê-las” (DESCARTES, 2013:54), como um
distanciamento, mesmo que involuntário, de quaisquer complexidades relativas ao objeto(s) de estudo. Essa
questão também será analisada, a qual se desdobrará no exame da fragmentação do Direito.
2“(...) Cuando se habla de nuestra actividad cognoscitiva o teorética se define muy justamente como la operacíon
mental que va desde la conciencia de un problema al logro de su solución. Lo malo es que se tende a no considerar
como importante en esa operación sino su última parte: el tratamiento y solución del problema” (GASSET,
1983:321).
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1. FRAGMENTAÇÃO E FUGA
O atual século é marcado por uma decadente tendência jurídico-política em situar o
Direito como fruto de uma mera racionalização, sob alicerces finalísticos, valendo-se, portanto,
de “necessárias” técnicas a posteriori, o que corrobora um verdadeiro abandono filosófico
hermenêutico em prol da solutio mais “adequada” ao caso concreto. Eis a fragmentação, ou
seja, um Direito representativo de apenas medidas tomadas a posteriori do problema, aliás, a
partir dos resultados pejorativos já verificados. Outro problema que assola a ordem jurídica é o
depósito esperançoso em um sistema axiológico utópico, no qual se consubstancia todo um
compêndio de valores criado a partir do telos do Jus. Esta problemática em si consiste não
somente em toda abstratividade deste campo ontológico, mas no ornamento deste em prol dos
mais diversificados interesses.
“Num mundo em que tudo é dado e nada é explicado, a fecundidade de um valor ou de
uma metafísica é uma noção vazia do sentido” (CAMUS, 2013:155). Naturalmente o homem
recorre ao eterno, imutável, haja vista a tentativa de libertar-se do seu próprio eu, para se tornar
um eu da sua própria invenção (KIERKEGAARD, 1979). A fuga consiste nessa capacidade que
cada indivíduo dispõe para evitar as mazelas inerentes à natureza humana, o que fundamenta a
criação de um sistema que suprima o desespero de viver em uma vida, cuja impossibilidade é
latente de interligar o Finito (Dever-ser) ao Infinito (Ser). Frise-se, não é proposto, neste
diapasão, o esquecimento de todos os valores que moldam a sociedade como um todo, mas sim,
a retomada de consciência, caracterizada pela permanência da razão em um plano existencial,
ou se quiserem, como propôs Albert Camus, um Suicídio filosófico, marcado por uma atitude
existencial. “O que importa não é a vida eterna”, já dizia Nietzsche, “é a eterna vivacidade”
(CAMUS, 2013:96). Destarte, face aos problemas que cercam a humanidade, o Homem
Absurdo se sobressai, cujo fator justificante está exposto no Mito de Sísifo:
"'Meu campo'' diz Goethe ''é o tempo''. Eis propriamente o enunciado absurdo.
O que é, de fato, o homem absurdo? Aquele que, sem negá-lo, nada faz pelo
eterno. Não que a nostalgia lhe seja alheia. Mas prefere a ela sua coragem e
seu raciocínio. A primeira lhe ensina a viver sem apelo e a satisfazer-se com o
que tem, o segundo lhe ensina seus limites. Seguro de sua liberdade com prazo
determinado, de sua revolta sem futuro e de sua consciência perecível,
prossegue sua aventura no tempo de sua vida. Este é seu campo, lá está sua
ação, que ele subtrai todo juízo exceto próprio. Uma vida maior não pode
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EXISTENCIALISMO E UMA NOVA FACETA DO JUS: SUA CARACTERIZAÇÃO COMO FRAGMENTO DO ABSURDO,
BARROS GUERRA DE FARIAS, Pedro Henrique, MARTINS TEIXEIRA, Caio Vinicius, NUNES PEREIRA, Daniel
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significar para ele uma outra vida. Seria desonesto. Nem mesmo falo aqui
desta eternidade ridícula que chamam de posterioridade. Madame Roland é
indiferente à posteridade” (CAMUS, 2013:79).
Sintetizando de forma cabal à questão da fugacidade, demonstramos que toda criação
axiológica em sua forma pura- totalmente adstrito ao campo do Ser- é impossível. Isto posto, a
ideia de um Direito construído sobre um complexo de valores universais é apenas uma falácia,
considerando-se a impossibilidade de transportar qualquer axiologia, plenamente, ao campo
concreto. Isso quer simplesmente dizer que o homem acaba, mesmo que involuntariamente,
enumerando as aparências e sentindo, na medida do possível, o clima proporcionado por esses
valores (CAMUS, 2013), sobressaindo assim à maior contradição desta "égide" do Direito, isto
é, a intersubjetividade do entendimento de cara valor puro acaba se tornando um instrumento
em prol do interesse das mais variadas classes e indivíduos.
Não se deve entender exatamente sob uma perspectiva Kantiana, a questão da
fragmentação, i.e, extrai-se do termo latino referência à experiência, não estritamente científica
ou lógica- como o trabalhado por Ernst Tugendhat e Ursula Wolf, em sua “Propedêutica
Lógico-semântica”- mas aquela aglutinada à experiência dos fatos, termo fundamental exposto
por Friedrich Carl Von Savigny, corifeu da Escola Histórica do Direito. A experiência dos
fatos, não em um sentido positivo do termo- anterior ao acontecimento-, mas negativamente
falando, somente corrobora o nosso pensamento de que o Direito foi deixado de lado como o
principal incremento da emancipação humana. Ou seja, como fruto de toda problemática
jurídica, esta ciência acaba sendo extirpada do campo da prevenção, sendo voltada, outrossim, à
seara da imediatidade, a partir de medidas tomadas, muitas vezes, sem o menor estudo prévio,
através de aprovações ligeiras de leis e mais leis. Quando não violadoras dos princípios mais
básicos do jus, acabam que, em vista ainda de todos os defeitos- seja orgânico, formal ou
substancial- são, quando não acatados ingenuamente no seio social, coercitivamente aplicados,
havendo resistência ou não.
2. DESFRAGMENTAÇÃO DA FUGA
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EXISTENCIALISMO E UMA NOVA FACETA DO JUS: SUA CARACTERIZAÇÃO COMO FRAGMENTO DO ABSURDO,
BARROS GUERRA DE FARIAS, Pedro Henrique, MARTINS TEIXEIRA, Caio Vinicius, NUNES PEREIRA, Daniel
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No que concerne à axiologia do Direito, é importante frisar que devemos sempre olhar
pela ótica do direito positivo, pois em categoria epistemológica, um conceito de verdade
universal seria problemática, suas averbações e conceituações sobre uma lei da moralidade,
uma justiça superior que regeria todo o ordenamento valorativo do homem, ou então a liberdade
como máxima do Direito, como propôs Kant em seu imperativo categórico3
, é pura
ingenuidade. Tomemos um tempo para analizar o que Nietzsche, nos fala acerca de qualquer
universalidade de valores:
Agora mais uma palavra contra Kant enquanto moralista. Uma virtude deve
ser uma invenção nossa: deve brotar de nossa defesa e necessidade pessoal.
Em qualquer outro sentido, ela é uma fonte de perigo. O que quer que não
pertença à vida é uma ameaça para ela: uma virtude que se origina meramente
no respeito ao conceito de “‟virtude”, como Kant a desejava, é perniciosa. A
virtude, o dever, o bem em si mesmo, o bem baseado na impessoalidade ou na
noção de validade universal – são todas quimeras, e nelas encontra-se apenas a
expressão da decadência, a exaustão final da vida, o espirito chinês de
Königsberg (NIETZSCHE, 2012: 32).
Toda virtude que tem em sua base conceitual uma emancipação superior infinita que
remete à um caminho gnosiológico que o ser humano acaba percorrendo em sua caminhada a
compreensão de sua categoria no plano axiológico do conhecimento, é viciosa, pois o homem
precisa compreender que ele é o seu próprio fim. Quando o homem não é capaz de enxergar no
Direito a sua finalidade e acaba apenas o visualizando como mero instrumento do meio,
alheia-se ao abismo existencial, aonde todo sistema moral que rege sua subjetividade é apenas
fruto de algo "virtual". Qualquer axiologia só deve existir quando estiver relacionada aos
limites do plano existencial; toda conceituação do juízo valorativo quando analisado pelos anais
da Ciência Social Jurídica deve ser atrelado ao conceito do idealismo emancipador, pois o
3 Imperativo categórico é a máxima na qual o autor apresentou sua lei moral da razão emancipando a subjetividade
do indivíduo em uma universalidade de valores, na qual encontramos em sua conceituação, a seguinte fórmula:
“Aja apenas segundo uma máxima tal que possa ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT,
1993, p. 30).
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julgamento axiológico que não estiver sobre a tutela do ordenamento jurídico acabará se
tornando pura condição falaciosa de uma aparência4, e não sua real face.
O Direito face ao abismo existencial nos revela uma característica da natureza humana
muito verossímil ao objeto teórico tratado anteriormente. O homem desde sua emancipação
racional se encontra numa posição de desperatio exsistentialis, que o impede de dar um salto
gnosiológico a noção do absurdo5. Os interpretes jurídicos ao fragmentar o direito, colocam
uma ínfima diferenciação entre o sein e o sollen, o que corrobora a visão de um Direito reduzido
apenas à pura normatividade jurídica. Essa problemática, mesmo que estudada e formulada por
diversos autores, também deve ser jogada no fosso do abismo existencial; a série de
diferenciações subjetivas e objetivas no que concerne à dialética ontológica jurídica, fica bem
esclarecida na famosa passagem do Tratado da Natureza Humana:
“Em todos sistemas morais com os quais até hoje me deparei pude notar
que o respectivo autor procede durante algum tempo com o uso do
raciocínio ordinário e, assim, estabelece a existência de um Deus, ou faz
observações acerca das relações humanas; De repente sou surpreendido
em encontrar, ao invés da usual copulação de proposições do tipo “é” e
“não é”, não outra coisa que não uma proposição conectada a um
“dever-ser” ou um “não-dever-ser”. Esta mudança é imperceptível, mas,
entretanto, de grandes consequências. Pois este “dever-ser” ou
“não-dever-ser” expressa uma nova relação ou afirmação que necessita
ser melhor observada e explicada; ao mesmo tempo uma razão deve ser
dada para aquilo que nos parece completamente inconcebível: será
necessário que nos expliquem como esta nova relação pode ser uma
dedução a partir de outras que são inteiramente diferentes dela.
Entretanto, como os autores comumente não tomam tal precaução,
presumo ter de recomendá-la aos leitores; assim estou persuadido de que
esta pequena atenção poderá subverter todos os vulgares sistemas de
moralidade, e deixar-nos ver, que a distinção entre virtude e vício não é
fundamentada em relações entre objetos, nem é percebida pela razão‟‟
(HUME, 1738:469).
O argumento Humeano da impossibilidade da derivação do Ser pelo Dever-Ser - cuja
recíproca é verdadeira - citada anteriormente, toma forças quando Hans Kelsen elabora sua
4 “[...] fica claro assim que defino um método. Mas também fica claro que esse método é de análise e não de
conhecimento. [...]. Assim, as últimas páginas de um livro já estão na primeira. Este nó é inevitável. O método aqui
definido confessa a sensação de que todo conhecimento verdadeiro é impossível. Só se pode enumerar as
aparências e apresentar o ambiente‟‟ (CAMUS, 2013, p. 26).
5O sentimento do absurdo não é, portanto, a noção do absurdo. Ele a funda, simplesmente. Não se resume a ela,
exceto no breve instante em que aponta seu juízo em direção ao universo. (CAMUS,2013: 43).
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premissa do que se tornaria posteriormente em sua Teoria Pura Do Direito. O autor, fortemente
inspirado por Hobbes e David Hume, nos traz uma nova concepção positivista acerca do
idealismo jurídico como emancipador da conduta humana. Quando Kelsen afirma que o direito
é um ordenamento coercitivo (KELSEN, 1990: 27,190), quer dizer que é composto por normas
que regulam a coação. Este assim reduziria, segundo crítica de Bobbio, o direito às normas
secundárias, que podem ser definidas como aquelas que regulam o modo e a medida em que
devem ser aplicadas as sanções. Porém, a limitação em sua crítica é puramente uma falaciosa
interpretação da concepção Kelseniana do ordenamento jurídico, cujo em hipótese nenhuma,
pode ser reduzido a qualquer tipo de instrumento que o tenha como meio. Deste modo, como o
homem é o seu próprio fim e, sobretudo uma incompleta síntese do eu Finito-Infinito que
Kierkegaard tratava em O Desespero Humano6, o Direito também o é. No que concerne à
axiologia jurídica, “ele é como ele deve ser”, não podendo se limitar a qualquer redução
epistemológica de sua existência ou a mera fragmentação de objetos distintos da
intersubjetividade ontológica. O Direito Positivo - pautado nos seus limites - é o idealismo que
emancipa a natureza humana, pois o homem precisa ser o início e o telos do ordenamento
jurídico, sem que isso implique sair do nosso abismo existencial, por mais que acabe
caracterizando esta Ciência Social Aplicada como Fragmento do Absurdo.
3. O DIREITO COMO FRAGMENTO DO ABSURDO
O errôneo uso da hermenêutica sobre a conceituação gnosiológica da axiologia no
Direito e suas complexidades tende a criar um ciclo vicioso, na qual se nos atentarmos ao
conceito de sua subjetividade, percebemos que nossa sociedade é regida através do que
popularmente chamamos de: "verdade pela unanimidade". Essa interpretação apriorística que
comumente tomamos como cunho o conceito da Ética, caminha para uma tendência de
aplicações subjetivas-objetivas que trazem discussões sobre qual moral deve sobrepor a outra,
6 Quando fazemos uma análise crítica da obra de Kierkegaard acerca do desespero humano e colocamos seu
conceito de existência incompleta da natureza humana sobreposta à emancipação divina, percebemos, que o
homem, no qual o autor se refere em seu objeto de estudo é aquele cujo tentamos desvincular em nossa Teoria do
Direito Ideal. O homem que nega sua racionalidade a espera de uma completude divina, é um homem no qual não
enxerga o Direito como sua emancipação, apenas o vê como mero “instrumento necessário”.
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percorrendo um caminho até o viés das mazelas do nosso ordenamento jurídico. Essa fuga da
razão para a criação de um juízo valorativo, é uma característica de nossas barreiras
epistemológicas que afastam o Direito do absurdo existencial. O juízo analítico de nossa base
conceitual é aquele que tenta unir tanto a razão, quanto a moral, que juntas devem moldar a
estrutura normativa de nossa sociedade. Ao adentrarmos ao grande problema sobe qual seria a
forma ideal da estrutura normativa que estamos construindo em nossos estudos
teórico-metodológicos, avistamos então a barreira epistemológica que nos impõe a dualidade
intersubjetiva entre a justiça e a norma. Utilizamos então como base a conceituação normativa
elaborada por Kelsen em sua obra intitulada o problema da justiça:
“A justiça é uma qualidade ou atributo que pode ser afirmado de diferentes
objetos. Em primeiro lugar, de um indivíduo. Diz-se que um indivíduo,
especialmente um legislador ou um juiz, é justo ou injusto. Neste sentido, a
justiça é representada como uma virtude dos indivíduos. Como todas as
virtudes, também a virtude da justiça é uma qualidade moral; e, nessa medida,
a justiça pertence ao domínio da moral. Mas a qualidade ou a virtude da
justiça atribuída a um indivíduo exterioriza-se na sua conduta: na sua conduta
em face dos outros indivíduos, isto é, na sua conduta social. A conduta social
de um indivíduo é justa quando corresponde a uma norma que prescreve essa
conduta, isto é, que a põe como devida e, assim, constitui o valor justiça. A
conduta social de um indivíduo é injusta quando contraria uma norma que
prescreve uma determinada conduta. A justiça de um indivíduo é a justiça da
sua conduta social; e a justiça da sua conduta social consiste em ela
corresponder a uma norma que constitui o valor justiça e, neste sentido, ser
justa. Podemos designar esta norma como norma da justiça. Como as normas
da moral são normas sociais, isto é, normas que regulam a conduta de
indivíduos em face de outros indivíduos, a norma da justiça é uma norma
moral; e, assim, também sob este aspecto o conceito da justiça se enquadra no
conceito da moral” (KELSEN, 2011:3-5).
Quando tratamos da axiologia jurídica em face do sentimento do absurdo, é possível
verificar uma tendência natural do ser humano em moldar uma aparência do eterno, haja vista a
dificuldade da compreensão da noção do absurdo. Sua inevitabilidade, enquanto aparência de
um valor que corrobora a diretriz da conduta humana produz um entendimento falacioso, i.e,
originam-se exorbitantemente variadas interpretações subjetivas concernentes ao campo
valorativo do Direito, cujo alicerce é fundado em uma mera ilusão, na qual cada indivíduo
propaga a sua como sendo verdadeira, pois, acertadamente, as convicções são inimigas mais
perigosas da verdade que as próprias mentiras (NIETZSCHE, 2013). Dificilmente é transmitido
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ou adquirido pelo ser humano o reconhecimento da existência de nosso abismo existencial, fato
que justifica a rejeição convicta- fundamental à consubstanciação de uma angustia
Kierkegaardiana- da própria realidade por certa parte dos indivíduos, ou seja, acata-se algo
completamente alheio ao campo do Dever-Ser, circunstância que evidencia a preponderância
de escolhas aliadas à "estabilidade", cujo verdadeiro propósito, apesar de legítimo e até,
passível de apreciação - firmado como um poderoso meio de persuasão- ser, lamentavelmente,
tão utópico quanto falacioso aos olhos do Homem Absurdo. A mudança de perspectiva
proporcionada pelo Absurdismo Camusiano, só ratifica que:
“Sim, o homem é o seu próprio e o seu único fim. Se quer ser qualquer coisa,
tem que ser nesta vida. Agora sei, aliás, que embora conquistadores falem
algumas vezes de vencer e de exceder, o que eles querem dizer é
„excederem-se‟. Suponho que sabem o que isto quer dizer. Em certos
momentos, todos os homens se sentem iguais a um deus. É assim, pelo menos,
que se diz. Mas isto vem do fato de eles terem sentido, num instante, a
espantosa grandeza do espírito humano” (CAMUS, 2013:85-86).
Para fim de um total entendimento e compreensão a respeito do verdadeiro caminho
natural da norma e seu real objetivo para com a conduta do ser humano, temos que enxergar
Direito como fragmento do absurdo, e entender que seu principal objetivo desde a sua criação é
simplesmente garantir a tutela individual do homem enquanto sociedade, cumprindo assim os
fatores que corroboram os interesses e deveres dos indivíduos e a soberania do poder Estatal
que rege a conduta humana juntamente com o ordenamento jurídico.
Partindo de um pressuposto de que a instabilidade não é exatamente instável7 e, a
contrario sensu, a estabilidade não trás nenhuma garantia de estabilidade correspondente à
qualquer sistema valorativo, o Homem Absurdo, não mais ofuscado por toda tentativa falha de
síntese Finito-Infinito, marca o advento de uma nova era, ou seja, um autentico suicídio
filosófico, abstraindo qualquer epistemologia transcendental do campo jurídico normativo,
pois, infelizmente, “todos esos grandes idealistas y portentosos se comportan como lãs mujeres:
toman los sentimientos sublimes por argumentos” (NIETZSCHE, 2013:33), cujo afastamento
7 Nesse jogo de palavras, quando se menciona a palavra instabilidade, quer-se dizer que, o usualmente considerado
instável é simplesmente a medida possível- existencial-, o que demonstra o fito do presente trabalho, i.e, a busca
por um melhor aparelhamento jurídico conforme as possibilidades humanas, presentes no campo da imanência.
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deve materializar a supervalorização da imanência, realocar o Direito à esfera do Absurdo.
Destarte, ao contrário dos que acreditam em uma ideia de Imperativo Categórico tão propagada
por Kant a partir do século XVIII ou por uma Norma Fundamental propugnada por Hans
Kelsen , a visão jurídica e social respaldada em absoluto na corrente Existencialista fulmina
toda sistemática de deveres absolutos ou relativas ao campo transcendental ainda disseminadas
no mundo jurídico, cuja adequação fundamenta algo terminantemente favorecedor à harmonia
social. Outrossim, conquanto esses homens, em virtude de uma lei suprema ou universal,
possam personalizar a si mesmos e sobretudo sua própria crença, tornando-os também
absolutos a priori, são sepultados por uma pequena "dose" da teoria Existencialista/ Absurdista.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ideia de fragmentação e fuga no Direito, aquela sob a esfera da imediatidade e a esta
adjunta aos fatores valorativos existentes em qualquer relação sócio-jurídica faz perceptível a
necessidade de evoluções teóricas no que tange à ciência do Direito, considerado tamanho
esgotamento causado pela condição humana, cujo fardo mostra-se intangivelmente penoso
diante da pluralidade conflitante de ideologias, o que por fim acaba por recorrer às mais
inacreditáveis e irrazoáveis possíveis "soluções". Diante das exposições, a partir da concepção
Existencialista, torna-se crível o vislumbre de um novo horizonte jus-filosófico diante da
problemática axiológica resultante de abismos gnosiológicos inerentes da não singularização de
valores - de modo a enxergar, acima de tudo, não mais o homem comum, mas principalmente o
Homem Absurdo-, cuja inteligência em tempos de vicissitudes, reconhece a imprescindível
necessidade de renovação da consciência sobre o Real, isto é, vê-se na realidade não mais
aquela pura fantasia, que a tornava demasiadamente utópica, pois, verdadeiramente, o que se
pretende é não mais refugiar-se para além do nosso abismo existencial, repleto de sabores e
dissabores. Este, que renovadamente pensado não contagia toda a humanidade com esperanças
ínfimas de visualizar uma eterna e "iminente" felicidade, pairando, assim, fora dos problemas
reais é capaz quebrar os paradigmas que rodeiam o seio social, pois, neste instante: um valor
absoluto apenas pode ser admitido com base numa crença religiosa na autoridade absoluta e
transcendente de uma divindade (KELSEN, 2012). Outrossim, por uma percepção razoável,
materializa-se no campo teórico a impossibilidade de regular qualquer tipo de relação humana
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somente com base em conceituações provenientes do campo do Ser. Com isto, faz-se mister
depositar as esperanças no que se tem existencialmente, isto é, dentro da impossibilidade de
sintetizar o Finito-Infinito. O Homem Absurdo adotará uma nova postura, a qual
consubstanciar-se-á no entendimento do Direito como meio capaz de tornar cada indivíduo o
seu próprio telos, de modo que a sua imperfeição não será mais vista como algo asqueroso e
indigno de apreciação das dogmáticas morais, pois é justamente a imperfeição humana que o
torna perfeito (CAMUS, 2013). Contudo, não se pretende dizer que os valores são totalmente
falaciosos pelo fato de que, pelo menos parcialmente, é possível entendê-los. Sob a égide da
corrente Existencialista, o Direito Positivo - pautado nos seus limites - é o idealismo que
emancipa a natureza humana, tendo em vista que o homem precisa ser o início e o telos do
ordenamento jurídico, sem que isso implique a sua saída do abismo existencial, devendo o jus,
diante disto, caracterizar-se como o fragmento do Absurdo.
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AGÊNCIA ARTÍSTICA COMO TRANSFORMAÇÃO SOCIAL: A VIDA DE CHIQUINHA GONZAGA COMO
PARADIGMA DE GÊNERO.COSTA, Lara Denise Góes da
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AGÊNCIA ARTÍSTICA COMO TRANSFORMAÇÃO SOCIAL: A
VIDA DE CHIQUINHA GONZAGA COMO PARADIGMA DE
GÊNERO.
COSTA,Lara Denise Góes da
Doutora em Ciências Sociais pela PUC-Rio e doutoranda em Filosofia pela UFRJ, bolsista
CNPq
Três biografias. Um site. Acervo com cerca de 2000 composições. Mais de 70
peças de teatro. Uma minissérie. Milhares de partituras reproduzidas por ano nos
conservatórios de música. Músicas tocadas a cada semana em rodas de chorinho pela
cidade. Não é pouco para uma mulher do segundo reinado. Se Chiquinha Gonzaga
estivesse vivendo nesta época, seria talvez, apenas mais uma compositora, mas não. Ela
foi a primeira compositora brasileira. Produziu incansavelmente até a sua morte aos 87
anos. Mas também não é só isso. Participou do movimento abolicionista, enfrentou a
família conservadora e com isso arcou com as consequências de querer ser “a mulher-
homem”, isto é, de participar ativamente na sociedade e poder ter liberdade de ação,
coisa que só homens podiam.
Aparte as biografias, a escassa documentação a seu respeito, deixou muitas
lacunas interpretativas que tiveram de ser preenchidas a partir de inferências feitas pelas
poucas informações suas, como certidões de nascimentos dos filhos, pais, algumas
entrevistas feitas a ela mesma, comentários a seu respeito em jornais da época e
algumas poucas pessoas que conviveram com ela na época. Foquei inicialmente no
modo como ela mesma se descreveu e comentou sua vida. A partir daí a análise dos
dados biográficos foi somada a alguns comentários sobre sua personalidade. Apesar
desta tese não ter como foco a análise de suas motivações, interpretar suas razões foi
importante para compreender como se deu sua agência. Que Chiquinha era uma pessoa
querida em seu meio não há dúvidas: musicistas e jornalistas da época teciam inúmeros
elogios, em especial após sua volta de Portugal em 1906. Em todos os jornais e
panfletos disponíveis, não faltam elogios e cartas saudosas de amigos, cartões postais de
amigos franceses e documentos de seu reconhecimento e consagração em Portugal,
além de composições traduzidas para o alemão e o francês.
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AGÊNCIA ARTÍSTICA COMO TRANSFORMAÇÃO SOCIAL: A VIDA DE CHIQUINHA GONZAGA COMO
PARADIGMA DE GÊNERO.COSTA, Lara Denise Góes da
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Chiquinha Gonzaga nasceu em família de classe média no Rio de Janeiro em
outubro de 1847. Filha de um militar que tinha o anseio de garantir sua posição na
corporação, não teve o apoio de sua família para a inclusão de Rosa, pobre, mestiça,1
escrava alforriada pela Lei do Ventre Livre e mãe de Chiquinha, no seio da família.
Impossibilitado de casar oficialmente com Rosa, José Basileu se casa ocultamente
diante de sua gravidez. Consta que esta teria sido a terceira gravidez de Rosa, mas a
única que vingou. Chiquinha foi educada e alfabetizada pelo Cônego Trindade que foi
seu professor de literatura, cálculo e alguns idiomas. Também estudou piano com o
Maestro Elias Álvares Lobo, que produziu diversas operetas e óperas sacras, assim
como modinhas. Também foi aluna de piano de Arthur Napoleão, criança prodígio que
deu seu primeiro recital aos sete anos, posteriormente tocou pela Europa e se
estabeleceu no Rio de Janeiro onde se tornou editor de partituras e músicas. Chiquinha
foi criada, portanto, com acesso aos livros e à música e aos 11 anos compôs sua
primeira música, um ato de natal. Não faltam relatos de seu temperamento em cartas e
depoimentos: “trigueira, danada, o diabo!” Durante sua juventude dedicou-se ao piano
clássico, mas o interesse pelos ritmos africanos e pelas músicas dos escravos foi o
leitmotif para sua dedicação à composição musical. O casamento contudo, era o projeto
de vida planejado para Chiquinha por seus pais e estava de acordo com os parâmetros
da sociedade conservadora da época.
Casar significava mais do que a constituição de uma família aos moldes
tradicionais, expressava o cumprimento do dever filial da mulher e a realização da
função familiar que era atribuída ao papel de mãe e dona de casa. Pelas narrativas da
época, Chiquinha era considerada uma moça muito bonita e charmosa, o que lhe trouxe
muitos pretendentes. Coube ao seu pai, entretanto, a escolha de seu marido e Chiquinha
se casa aos dezesseis anos com Jacinto Ribeiro do Amaral, vinte e quatro anos, de
família carioca, proprietária de terras. Jacinto por sua vez era considerado um bom
partido, bonito, responsável e rico e queria em troca uma esposa como Chiquinha que
para sua felicidade seria uma jovem muito bonita e inteligente, além de ter sido educada
na música e nas prendas femininas o que faria dela também uma excelente esposa.
1Consta em sua certidão de batismo “parda
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AGÊNCIA ARTÍSTICA COMO TRANSFORMAÇÃO SOCIAL: A VIDA DE CHIQUINHA GONZAGA COMO
PARADIGMA DE GÊNERO.COSTA, Lara Denise Góes da
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O piano, instrumento típico das classes mais abastadas da época, para
Chiquinha, entretanto, era mais que um instrumento de lazer. A música era a forma de
expressar sua autonomia e temperamento e seu marido ao perceber isso se enciumava e
a reprimia no intuito de transformá-la naquele ideal de esposa abnegada, voltada apenas
para a família. Embora tenha inicialmente engravidado e dado à luz a dois filhos,
Chiquinha continuava se dedicando ao piano, o que agravou a crise no seu casamento e
fez o marido lhe transportar para as viagens da Guerra do Paraguai. Segundo narra seu
último companheiro, presenciar a forma como os escravos alforriados eram tratados,
com violência e crueldade, assim como sua própria situação de submissão, presa em um
navio no front de batalha foi para Chiquinha causa de muito sofrimento e com isso
queria a separação do marido. Tentou se socorrer com a família que recusa hospedá-la.
Chiquinha permanece mais quatro anos com o marido e ao descobrir-se
novamente grávida e diante do ultimato do marido para escolher entre ele ou a música,
Chiquinha, obstinada, opta pela segunda. Sua família recusa apoio novamente e logo
depois de ter seu terceiro filho, Hilário, e lhe dar os primeiros cuidados, Chiquinha
resolve de vez largar o marido e vai morar com João Batista de Carvalho.
Provavelmente, Chiquinha já conhecia João Batista para que pudesse ir morar com ele,
mas não há registros de que se conheciam antes de 1875. Também não há registro de
composições suas antes de 1877, mas diante da dedicação de Joaquim Callado ainda no
ano de 1870 é de se esperar que ela convivesse, mesmo casada ainda com Jacinto com
os grupos musicais da época. João Batista era do ambiente boêmio, gostava de música e
dança, como Chiquinha, porém, era considerado mulherengo e provocava muitos
ciúmes em Chiquinha, que se sente humilhada diante do comportamento do amante.
Chiquinha engravida novamente, desta vez de Alice e com isso vai viver por um tempo
na fazenda de João Batista em Minas Gerais. Descobre, enfim, que não havia
realmente nascido para ser a mulher conforme os padrões da época e decide abandonar
João Batista e sua filha Alice com ele.
Sem dinheiro e sem o apoio dos pais, Chiquinha se instala em uma casa de porta
e janela em São Cristóvão e deve ter recorrido aos seus amigos, como Joaquim Callado
para conseguir se manter. Consegue um piano e o transforma em instrumento de
trabalho. Costurava suas próprias roupas e contava com a insegurança que os artistas em
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AGÊNCIA ARTÍSTICA COMO TRANSFORMAÇÃO SOCIAL: A VIDA DE CHIQUINHA GONZAGA COMO
PARADIGMA DE GÊNERO.COSTA, Lara Denise Góes da
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geral contam: a gangorra da renda. Sem renda fixa, Chiquinha trabalhava doze a quinze
horas por dia e permaneceu assim, mesmo idosa e já com certa estabilidade, trabalhando
sem cessar. Obstinada, Chiquinha se lança a dar aulas de todas as matérias e piano, ao
mesmo tempo em que é lançada com compositora por Callado. Em 7 de fevereiro, na
casa do Maestro e Professor do Conservatório de Música Henrique Alves de Mesquita,
Chiquinha improvisa uma música que é seguida pelos compositores presentes, flautistas
e violinistas. Está lançada “Atraente”, batizada pelos amigos e publicada rapidamente às
vésperas do carnaval, o que lhe rendeu algum dinheiro, mas não o suficiente. Vendo que
Chiquinha conseguia improvisar, Callado achou interessante colocar um piano em seu
Choro Carioca e ela atendeu a isso, com apresentações noturnas semanais.
Chiquinha se torna, então, a primeira “chorona”, tocando em bailes e saraus.
Seu filho aprendeu a clarineta e também a acompanhava. A renda noturna somava às
escassas aulas que lecionava, visto que os pais não apreciavam que seus filhos tivessem
aula com uma mulher solteira. Em contraste, sua “Atraente” em seis meses chega à 15ª
edição e seu nome ainda no fim do ano começava a se tornar conhecido. Segundo o
jornalista Barros Vidal:
Chiquinha era um tipo bem brasileiro: morena, cabelos negros
ligeiramente ondulados, uma mulher irresistível. Em seu redor havia
sempre um grande número de admiradores. Cortejavam-na onde quer
que ela aparecesse.2
Adotada pela boemia popular da cidade, em especial pelo flautista Joaquim
Callado, que dedica uma música em sua homenagem, “Querida por todos” passou a
fazer parte do quarteto musical como “pianeira” de choros, Chiquinha passa a ser
comentada em toda cidade. Algumas cartas ressaltam o que se pensava acerca dela na
época: sedutora, faceira, sensual, insinuante e parece que Chiquinha soube usar estas
características a seu favor. Uma mulher sem família naquela situação de liberdade,
frequentadora de rodas boêmias, compositora de títulos provocadores3, era impensável e
um péssimo exemplo para a sociedade conservadora carioca. Muitas caricaturas e
2Revista da Semana, 16.01.1940
3 “Atraente”, “Sedutor”, “Harmonias do coração”, “Catita”, “Desejos”, “Manhã de amor”, são alguns
títulos de composições de Chiquinha que causavam furor à época.
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comentários faziam comparação entre os títulos das obras e seus próprios atributos e
talvez Chiquinha os tenha feito propositalmente. Ter fama, nesse caso era uma faca de
dois gumes: poderia vender mais músicas, mas poderia não conseguir alunos. Seu
primeiro biógrafo, em 1939 justifica o comportamento de Chiquinha, de que ela embora
de ambiente boêmio, “não resvalou pela estrada do vício4.”
O período de maior hostilidade, como apontamos anteriormente foi durante sua
transição entre a vida no sobrado e compositora de músicas, ao trabalho como
maestrina. Até o fim do século as críticas eram maiores, posteriormente ela se firmou e
conseguiu mais respeito. Em 1877, seu nome era cantarolado com comentários
maldosos e satíricos. Soma-se a isso o fato de que Jacinto coloca Maria, sua filha, em
um internato para evitar que Chiquinha conseguisse vê-la, diante da insistência de
contato com a filha. Com a internação, Chiquinha nunca mais a viu, até um encontro no
bonde quando a filha, aos dezoito anos, acompanhada da avó, seguia para a rua do
ouvidor. Chiquinha ao ver a filha vai até ela e ao perguntar se ela não lhe tomaria a
benção, avó e neta descem do bonde e Chiquinha novamente só veria a filha quando
esta fica viúva.
A mulher que se atrevesse a trabalhar estava condenada à perda de status social,
à desmoralização e à maledicência. O fato de ser uma mulher criativa, inteligente e
talentosa também gerava inveja por parte de músicos homens, afinal Chiquinha não era
apenas a primeira mulher a frequentar o ambiente boêmio era também excelente
musicista. Para frequentar este ambiente na época, tinha se de possuir um talento
admirável ou ao menos “superar” aqueles já consolidados e Chiquinha satisfazia este
quesito, embora fosse mulher. A hostilidade que sofreu, portanto, combinava o fato de
ser mulher, autônoma e musicalmente superior, o que era inconcebível em muitos
aspectos para o androcentrismo e honra masculinas da época.
Para Chiquinha, seu trabalho nada tinha de feminino nem de culto, mesmo por
que se dedicava às camadas mais populares. Seu comportamento não era alvo de
atenção apenas por que era considerado desviante ou perturbador da ordem social, mas
também por que seus ideais eram conforme a camada popular, compreendida como vida
errante. Sua família continuou a lhe hostilizar, rasgando-lhes as partituras quando as
4 BOSCOLI,Sem ano.
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via. Entretanto, Chiquinha teve que se manter firme, certa de que embora não a
reconhecessem como pessoa, não poderiam deixar de lhes reconhecer o talento e
originalidade. Dava aulas de todas as matérias e suas composições faziam agora
enorme sucesso, sua fama aumentava drasticamente.
A marginalização que sofria a excluía da classe dominante, mas abria as portas
para a música popular do país. A música popular desta época, no entanto, deve ser
compreendida como uma música das classes intermediárias e não no sentido de música
de grandes massas, o que não havia no século XIX. Chiquinha se interessou desde cedo
pelo popular, brasileiro e pelo povo. Suas composições tinham um caráter nacional e
tinham tanta qualidade musical que se duvidava que as composições fossem suas.
Mario de Andrade coloca bem a fase de transição em que Chiquinha se situava:
(...)vivendo no segundo Império e nos primeiros decênios da
República, Francisca Gonzaga teve contra si a fase musical muito
ingrata em que compôs; fase de transição, em que características
raciais ainda lutam com os elementos da importação. E, ainda mais
que Ernesto Nazareth, ela representa esta fase. A gente surpreende nas
suas obras os elementos dessa luta como em nenhum compositor
nacional. Parece que sua fragilidade feminina captou com maior
aceitação e maior agudeza o sentido dos muitos caminhos e que se
extraviava a nossa música então5.
Chiquinha não queria ser apenas intérprete do lundu e do maxixe, Chiquinha
compôs tangos brasileiros, modinhas, batuques e pequenas operetas. Um total de duas
mil composições constam em seu acervo.
Suas composições tinham o caráter eminentemente nacional. Escreveu para o
Teatro, o que facilitava a divulgação de suas músicas e devido ao caráter nacional, fazia
frente aos gêneros de importação criticados por nacionalistas mais radicais. Sua
primeira opereta, “A corte na Roça”, foi uma peça de costumes musicada por
Chiquinha. Inicialmente foi negada por ser de uma mulher, depois foi aceita para estrear
no Teatro Príncipe (depois Teatro São José), mas os empresários queriam colocar um
pseudônimo masculino. Chiquinha não aceitou e disse que retiraria sua peça caso não
5 Mario de Andrade dedicou vários comentários à Chiquinha Gonzaga e a analisa pormenorizadamente
em “Música, Doce Música”.
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aceitasse com seu nome, diante desta “ridícula imposição”. Estreou como ela quis em
1885 e sem escândalo: o comentarista Luiz de Castro do Jornal do Commercio
ironizava: “e a vitória de Chiquinha Gonzaga ainda seria maior se a compositora tivesse
arranjado um pseudônimo francês...6”
Depois deste sucesso, Chiquinha passou a ser procurada por empresários e
autores. Estreou posteriormente no Teatro Recreio Dramático ainda em 1885, com a
peça “A filha do Guedes”, com sua partitura integral. Em 1886, passou a nova
empreitada: reabilitar os violões que eram menosprezados. Organizou então um
concerto de 100 violões para ressaltar a beleza da música brasileira. Compôs 70 peças
teatrais e colaborou em outras centenas de Arthur Azevedo, Viriato Correa, Carlos
Bittencourt, Raul Pederneiras, entre outros. Com sua popularidade, muitas a imitavam
enquanto outras a criticavam. ,
Na propaganda abolicionista participou de campanhas e criou uma cançoneta
intitulada – “Aperte o botão” que quase causou sua prisão; uma de suas partituras –
Caramuru – composta em 1888 em homenagem à Princesa Isabel, foi vendida por ela
própria pessoalmente para comprar a libertação do músico José Flauta. A música
“Faceira” também foi da campanha do vintém e Chiquinha a dedicou a Lopes Trovão.
De cidade vazia, sem pessoas nas ruas, passa-se à construção de uma cidade
voltada para o lazer do imperador. A partir daí, temos o desenvolvimento de duas
“culturas7” paralelas: uma da sociedade de corte e outra popular. No segundo capítulo
desenvolverei um pouco dos contrastes e identidade entre estas duas camadas sociais,
que conviviam inicialmente em diferentes realidades e posteriormente passam a falar a
“mesma língua” com o avento do nacionalismo brasileiro e com os debates sobre a
escravidão e o republicanismo. Estes dois primeiros capítulos, portanto, tem como
objetivo traçar o momento cultural no qual Chiquinha nasce e se torna adulta, esposa e
mãe. As duas últimas características – esposa e mãe – eram aquelas que se esperava
dela. A primeira – adulta- foi a que prevaleceu em sua cabeça. Com isso, no terceiro
capítulo, discorrerei sobre o simbolismo acerca da mulher, a influência católica
fortemente defendida pela ala conservadora da nação frente a qualquer mulher que se
6Jornais acervo - IMS
7O termo cultura por ora utilizado apenas no sentido de vivências diferentes e com isso gostos musicais
divergentes. O termo será desenvolvido com mais clareza no capítulo 2.
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insurgisse contra o status quo patriarcal e as consequências que eram sofridas pelas
mulheres consideradas “perdidas”, isto é, aquelas que não eram incluídas em nenhum
segmento.
Chiquinha era mulher, o que já lhe criava dificuldades, mas ser artista popular
era ir diretamente contra a sociedade de corte. Chiquinha, portanto, não rejeitou apenas
sua classe social, mas seu conteúdo simbólico. “Profanou” o piano, compôs polcas,
maxixes e modinhas, musicou peças teatrais de “teatrinhos”, enfim, subverteu a ordem
então estabelecida e teve o reconhecimento de seu talento. Ela mesma nunca foi
reconhecida pelo menos não moralmente, mas seu talento ninguém pôde negar.
A falta de reconhecimento ou o reconhecimento apenas tardio de sua obra e de
si mesma lhe causava grande tristeza e amargura. Reclamava que se dedicara ao Brasil,
com amor e nacionalismo e que o Brasil, ao contrário reconhecia o “bom” pelo
estrangeiro. Este caráter melancólico ajudou a compor a personagem e a compreender
suas razões, assim como confirmar algumas hipóteses a seu respeito
Chiquinha era uma nacionalista, fazia parte do movimento romântico de resgate
às fontes primitivistas para a consolidação da identidade nacional e era contra o gosto
europeizado que as elites ajudavam a promover. No que se refere ao Brasil, defende:
“Que mágoa eu tive quando vi João Caetano inaugurado por uma companhia
estrangeira.” Embora fosse nacionalista, Chiquinha sabia que diante do gosto vinculado
ao estrangeiro ter um caráter legitimador do que é considerado bom, poderia usufruir
disso ao provar a eles seu trabalho. Neste sentido, conseguiu que seu nome fosse
publicado na França e em Portugal ao compor músicas em homenagem aos “Geraldos”
portugueses, grupo de teatro popular lusitano e fazer uma homenagem aos soldados
franceses atracados no Rio no Navio Duquesne: O Jornal Du Bresil8parabeniza
Chiquinha, “d’une inspirations a la fois elevee et gracieuse.”
Ao ser descoberta como compositora de sucessos, Chiquinha foi convidada a
integrar o repertório musical do Navio Duquesne. Tocou além de seus sucessos, várias
homenagens aos oficiais. Passou a frequentar os almoços e bailes e recebeu das mãos do
8O estado do recorte de jornal não permitiu ver o nome do jornal e seus dados.
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comandante, em nome do governo francês, uma medalha e o título de “alma cantante do
Brasil9. Foram dois meses de festas e homenagens.
Chiquinha recebeu muitas cartas de amigos e cartões postais dos filhos e
familiares. Entretanto não costumava receber visitas. Chiquinha protegia tanto a sua
privacidade que muitas pessoas achavam que João Batista fosse filho dela, adotado ou
de um de seus maridos, ou que tivesse engravidado em Portugal. Chiquinha passa a se
apresentar com João Batista como mãe e filho de forma a se conformar com a moral da
época. A relação “secreta” com João Gonzaga, talvez a constrangesse. Chiquinha de
qualquer maneira era obstinada em preservar sua privacidade e não dividia sua vida
pessoal com ninguém, além de não dar margem para perguntas indiscretas ou
comentários sobre sua vida.
A partir de 1920 já era conhecida e aceita de modo geral. Amigos franceses e o
reconhecimento em Portugal podem ter ajudado a sua consolidação e respeito nacional.
Aos 42 anos de idade Chiquinha torna-se avó. Seu filho Gualberto se casa e suas duas
netas recebem os nomes de suas valsas mais famosas – Valquíria e Iara.
Com a imprensa libertina da época, muitos poemas eram publicados parodiando
os fatos corriqueiros, como o desembarque de muitos estrangeiros, prostitutas e a
preocupação médica que ocorria neste caso. Uma paródia do Navio Negreiro de Castro
Alves – chamada esculhambações, foi conservada por Chiquinha em seu acervo pessoal,
em que Chiquinha é associada à prostituta Suzana de Castera:
(...) Putaria fatal, que a porra esmaga!
Engalica de vez o cono imundo
Daquelas que Suzana mais afaga
Por lhe meter a língua mais no fundo...
...Mas é infâmia demais! Chica Gonzaga!
Faze dançar as almas do outro mundo...
Deiró! Arranca o teu perdão colosso!
Suzana! Fecha-o dentro do teu poço!
Chiquinha representava a dança e Suzana a prostituição. Chiquinha
9Em uma foto Chiquinha aparece com a medalha.
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(...) faria dançar as próprias árvores se a autora quisesse, um dia,
transformar a floresta num salão de baile. Era Irrequieta, diabinha,
capaz de seduzir uma dúzia de cardeais se for chorada em regra, à
meia-noite por três seresteiros matriculados defronte do Vaticano10
.
Considerada uma mulher bonita e que despertava grandes paixões, não foi difícil
para ela conseguir protetores e amigos que se colocavam à disposição. Nas reuniões do
SBAT, Chiquinha já idosa se vestia sobriamente, de preto, coque arrumado na cabeça,
sempre séria, como se vê em algumas das fotos da época. Mas em sua juventude usava
os vestidos que ela mesma costurava e sempre estava atrás de um novo projeto.
Quem visse aquela morena faceira, cheia de vida e de entusiasmo,
animando as festas do povo, metida nos teatros, discutindo como um
homem e vivendo a vida a seu modo, pensaria, por certo, que tal
criatura tivesse uma origem baixa e vulgar11
.
Embora Joaquim Callado tenha sido retratado como amigo e parceiro musical,
ele pode ter sido mais do que um mentor e protetor. Houve, contudo, uma tentativa de
moralizar a relação entre eles, mas os descendentes de Callado afirmaram que houve
queixas de sua esposa, Feliciana, com acusações à Chiquinha e declarações de ciúmes.
Não há como saber se eles tiveram algum relacionamento além da identidade musical e
amizade. Das casas particulares e sociedades onde se ia assistir a saraus musicais, o
teatro foi na verdade o grande meio de divulgação da música popular. Chiquinha
começou a se tornar famosa quando conseguiu que sua música, da peça A corte na Roça
de Palhares Ribeiro fosse tocada no Teatro Príncipe Imperial. A partir daí, seu nome
seguirá pelos jornais, não sem críticas.
10
Avelino Andrade, p. 93, Boletim SBAT de 1925. Chiquinha, inclusive teria sido parabenizada por D.
Pedro II. 11
Iglezias, “Patronos do conselho deliberativo – Francisca Gonzaga – Boletim Sbat, 216.
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Ante-hontem representou-se no Príncipe Imperial a opereta “A corte
na Roça”, letra de Palhares Ribeiro e música de Sra. D. Francisca
Gonzaga. A concorrência foi regular, o desempenho dos artistas
deixou a desejar, mas a música alegre e inspirada da Sra. Francisca
Gonzaga arrancou dos espectadores aplausos merecidos e que jamais
devem ser regateados a uma senhora de talento.
Em 1899, Chiquinha escreve uma pequena música para o Cordão Rosa de Ouro
que se tornará somente anos mais tardes uma marchinha de carnaval como conhecemos
hoje. Ô- Abre-alas como canção carnavalesca ainda não existia. Ficou restrito ao cordão
até o seu reconhecimento em 1904, como maxixe e posteriormente como canção de
carnaval. Mario de Andrade afirmou certa vez: “Quem quiser conhecer a evolução das
nossas danças urbanas terá sempre que estudar muito atentamente as obras dela”
Chiquinha teve o reconhecimento de seu mérito, mas com a chegada do samba e
do rádio, suas músicas se tornaram obsoletas e embora ainda produzisse, seus últimos
anos foram de ostracismo artístico. Em 16 de janeiro de 1920, Chiquinha escreve uma
carta a seus filhos, no qual narra que sentia que sua morte estava próxima e que havia
pedidos a fazer a eles, dentre alguns, o de não fazerem por luto para ela, por que “tenho
horror ao luto e à hipocrisia”, e ao invés de fazerem missa, eles deveriam dar o dinheiro
“em uma Igreja Pobre, “aospobres”. Solicita ainda que conste um emblema com o dizer
“Sofri e chorei” e pede que Deus perdoe aqueles que a fizeram sofrer tantas injustiças.
Termina a carta com o seguinte dizer: “Amanhã faz 35 anos que luto com a minha triste
vida de trabalho e injustiça. Adeus!”
Meu bom amigo, o meu nome é pequeno, mas quem o fez, fui eu,
cheia de coragem e trabalhando sempre para honrar a minha pátria, fui
eu só a mulher que escreveu para o teatro, e neste mês no dia 17 faz
41 anos que estreei a minha peça “A Corte na Roça” – e eu só, sem ter
ido estudar na Europa, sem amparo de Governos, só e com a minha
força de vontade, me instruindo, até hoje já representei 72 peças e
tenho 5 para serem representadas! E quantas polcas, valsas,
cançonetas...(...) bem sabe que os brasileiros não se incomodam com
os seus!! E...entretanto... no mundo... só há o Brasil!!!(...)
O ressentimento por não ser mais valorizada como musicista ou por não ter mais
como produzir o que era “da moda” musical, fazia Chiquinha se sentir menosprezada.
Sentia que havia contribuído para a música popular e sem dúvida nenhuma contribuiu,
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mas isso não era suficiente. João, seu companheiro fazia-lhe todas as vontades e
Chiquinha teve um padrão de vida que não condizia com o que ela podia ter. Eles
almoçavam diariamente nos restaurantes próximos e vivam em um edifício de
apartamentos luxuoso.
Segundo o depoimento de suas netas, Chiquinha teria sido “uma péssima mãe”,
que “ao avistar pela gelosia da porta a filha, mandava dizer que não estava”. Este retrato
da “mãe Chiquinha” mostra o caráter pouco afeito que ela possuía a exercer o papel de
mãe. Maria, contudo jamais procurou Chiquinha depois de adulta, pelo contrário, como
seu primeiro noivo a rejeitou ao saber que era filha de Chiquinha Gonzaga, Maria quis
manter distância. Só procurou Chiquinha quando achou que a mãe estava em boas
condições de vida. Além disso, Maria esperava que Chiquinha a recebesse para morar
com ela, no apartamento de luxo, pois queria que suas “filhas casassem bem” e para isso
não podiam morar na “Zona Norte”. Esta situação de status que Maria busca para as
filhas é exatamente o que Chiquinha mais repudiava e o oposto do que Chiquinha fez.
“Casar bem” para Chiquinha representava o caráter classista de seus pais, da sociedade
que a condenava e criticava e o conservadorismo monárquico, em posição ao
republicanismo que defendia. Questionada uma vez se havia empregada na sua casa, ela
responde: Ué, mas a escravidão já não acabou? Ainda assim, Chiquinha já idosa se
culpa ao mesmo tempo que se vitimiza. Foi condenada, sim, mas pede perdão. Talvez
ao final de sua vida se sentisse pecadora. Descumprir o papel de mãe era pecado nos
moldes religiosos e culturais da época, além disso, desobedeceu a família e não obteve o
perdão de seu pai.
“Condenada a vida inteira!...
A cruciante tormento,
A minh’alma em desalento
Pede a ti Senhor – Perdão!!!...12
Chiquinha vendia suas músicas de porta em porta e participava de festivais
artísticos no intuito de conseguir a compra de alforrias. Como ativista, Chiquinha serviu
às campanhas libertadoras e condenava o atraso social brasileiro. O reconhecimento de
12
Verso de Chiquinha em seu arquivo pessoal.
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sua obra e não dela mesma começa a crescer. Seu talento era o passe para ingresso num
mundo de homens compositores brasileiros que começavam a surgir. Vendendo suas
músicas e dando aula de piano, consegue comprar a liberdade de um escravo músico e
arrecadar fundos para encaminhá-los à Confederação Libertadora de compras de
alforrias13
.
Com a abolição, Chiquinha foi reconhecida pela sua participação como
abolicionista ao lado de José do patrocínio, que justifica a participação de Chiquinha:
(...)por que os fados, no casamento lhe haviam sido adversos, tivera de
remar contra a maré, fazendo-se professora...isso contudo não lhe
abatera o ânimo forte nem a afastara do grande movimento popular,
formara destemerosamente ao lado dos abolicionistas14
.”
Dedicou-se a partir daí à causa republicana e se tornou companheira de Lopes
Trovão, um inflamado orador republicano, figura popular na cidade. Com o fim do
Segundo Reinado, e o nascimento da República, alguns militares se revoltam e é
decretado estado de sítio. Ao compor uma música para tal evento, Chiquinha tem ordem
de prisão decretada e suas músicas são rasgadas. Embora Chiquinha nada tenha sofrido
por conta do seu parentesco com pessoas ilustres, suas músicas sobre tal evento foram
inutilizadas.
Chiquinha Gonzaga convivia diariamente com jornalistas e fez dois de seus
melhores amigos, Raul Pederneiras e Viriato Correia com quem posteriormente fundaria
a SBAT. A preocupação com os direitos autorais sempre foi decisiva na vida de
Chiquinha, até por quê, como mulher teve dificuldades de se provar como musicista.
Alguns maestros e editores haviam sugerido colocar o nome de um homem ao invés do
seu, mas Chiquinha jamais aceitou esta hipótese. Além disso, muitos duvidavam que
suas músicas fossem suas devido a qualidade, que seria de se esperar, fosse de um
homem, como Nazareth, por exemplo.
13
Sociedade Brasileira contra a escravidão fundada por Joaquim Nabuco e José do Patrocínio em 7 de
setembro de 1880. (PATROCÍNIO, 1996). 14
Idem.
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O convívio com jornalistas se deu sobretudo em consequência do fato de que
muitos era também escritores, teatrólogos e críticos das peças de teatro e dos
espetáculos que ocorriam na cidade. Com a proliferação dos pianos e a recuperação dos
violões, a música será componente necessário dos teatros que também se proliferam no
Rio de Janeiro. Raul Paranhos Pederneiras escrevia para O Tagarela, O Malho e Fon
Fon e Viriato Correia foi membro da Academia Brasileira de Letras, com várias peças
para o teatro de costumes ao lado de Martins Pena. Produziu a comédia “Juriti” com
Chiquinha Gonzaga, assim como crônicas e contos.
O ambiente artístico caminhava em conjunto com o literário e o jornalístico,
formando uma rede de divulgação e legitimação das obras produzidas e influenciando o
gosto popular e mais tarde o conservador. Em 1914, a primeira dama Nair de Tefé
convocou o poeta Catulo da Paixão para acompanhá-la em uma apresentação de “ O
corta-jaca” de Chiquinha Gonzaga no Palácio do Catete. A primeira dama considerava
essa a música mais brasileira e causou um alvoroço por tocá-la, primeiro por que foi
usado um violão, instrumento reabilitado por Chiquinha e segundo por ser um maxixe,
gênero considerado indecente. As críticas no Congresso Nacional ecoaram pelo
auditório, como “a mais chula, a mais baixa e grosseira de todas as danças selvagens”.15
O século XIX viu nascer as dezenas de periódicos semanais, os jornais de
notícias e as editoras de livros e partituras. As editoras musicais no Rio de Janeiro,
como a Lyra d’Apolo de Thiago Henrique Canongia e posteriormente Viúva Canongia
ou a Casa Arthur Napoleão e Miguez e posteriormente a Irmãos Vitale foram as editoras
do século XIX nas quais Chiquinha pode publicar suas músicas. Thiago e Emília foram
portugueses que se estabeleceram no Brasil como comerciantes. Thiago era músico e
publicou suas próprias músicas. Thiago fundou a Lyra d’Apolo, famosa por publicar
partituras de músicos populares. A casa de Canongia inicialmente era direcionada por
seu marido, Thiago que falece em 1872, o que leva sua esposa, viúva, Emília Canongia
a leva o negócio adiante. Chiquinha foi a primeira mulher a publicar suas partituras
nesta casa, gerida por uma mulher. Talvez este fato tenha facilitado sua publicação,
ainda mais com os nomes que assinavam embaixo a popularidade de Chiquinha nos
15
O discurso proferido por Ruy Barbosa foi seguido por alguns mas também recebeu críticas de outros
políticos que apoiavam o estilo como eminentemente nacional.
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teatros. O estabelecimento musical criado pelos afinadores de piano Eduardo e
Francisco Buschmann em 1873, e tendo como sócio, a partir de 1881, Manoel Antônio
Gomes Guimarães, também comerciante com loja de música foi um dos grandes
publicadores e editores da obra de Chiquinha Gonzaga.
Posteriormente, Chiquinha passa a publicar na Casa Arthur Napoleão de
impressões musicais. Chiquinha havia sido aluna de Arthur Napoleão e já em 1880,
quando passa a publicar nesta casa, goza de fama e de múltiplas reedições de suas
partituras. Até meados dos anos 20 Chiquinha publicará nesta casa até publicar pela
Irmãos Vitale. As editoras musicais no Rio de Janeiro foram resultado da ascensão do
piano como instrumento que se popularizou para todas as classes. Músicos que se
estabeleciam no país abriam comércio diante da demanda por publicações de músicas
que faziam sucesso no momento.
A ampliação das editoras e tipografias fez surgir frente ao jornalismo oficial16
,
revistas que fizeram face ao jornalismo empresarial, com o objetivo de retratar o
cotidiano com imagens chamativas, coloridas que cativavam os leitores17
. O Tagarela,
A Comédia Social, A carapuça, foram revistas satíricas dos costumes tradicionais,
enquanto Fon Fon, O malho, Selecta e Para Todos foram algumas das revistas que
valorizavam o “moderno”, o “ser brasileiro”, assim como divulgavam o trabalho e o
comércio de artistas, editoras e teatros. O modernismo no Rio começou com os
simbolistas que, como críticos da razão moderna, buscavam o inconsciente, e com isso
contestavam a tradição nacionalista e positivista brasileira. Assim como o ambiente
musical prescindia de reuniões em cafés ou confeitarias, os jornalistas também se
encontravam e essas associações se devem em grande parte por conta da recente
urbanização, principalmente com o surgimento do bonde e da Gazeta. A circulação na
cidade se tornou possível com os bondes e a gazeta “veio no encalço” como afirmou
Machado de Assis18
.Muitos críticos dos pasquins denunciavam seus ataques pelo
objetivo venal, que só queriam vender, causar alvoroço e com isso vender mais.
Ninguém também admitia que lia os pasquins, mas a curiosidade era tanta pata saber se
16
Frente ao jornalismo oficial, a imprensa pasquineira e posteriormente a imprensa carnavalesca será a
concentração de homens pobres pouco escolarizados que através do sensacionalismo procurará mobilizar
o homem comum. 17
LINS, 2010. 18
A semana, crônica na qual Machado afirma que o bonde surge em 1868.
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o próprio nome estava lá estampado com alguma “mentira”, que muitos corriam para
comprar no fim da tarde escondido para ler em casa. Os leitores de oposição ao governo
liam para o povo que assim ficava sabendo o que diziam as gazetas. Os meios de
comunicação dirigidos especificamente a um determinado público, como uma faixa
etária ou sexo podem ser interpretados como estratégia mercadológica ou como objetivo
do jornalista, mas as funções básicas no geral, são informar, persuadir, divertir ou
ensinar.
As músicas de Chiquinha Gonzaga eram reescritas e reinauguradas com novos
ritmos e estilos. A cada polca escrita, um choro podia ser adaptado ou um maxixe. De
um tango para uma peça cômica, uma canção para outro instrumento. Uma mesma
música podia ser choro, polca, tango ou valsa. O estilo variava conforme as mudanças
de gosto. A capacidade de adaptação de Chiquinha aos diversos estilos musicais
populares fez com que produzisse um conjunto de 2000 obras. A genialidade de
Chiquinha não estava na complexidade, mas em seu poder de adaptação, de ler a
sociedade e a cultura e transformar esta leitura em música.
Contudo, a interpretação do objeto como obra de arte tem de coincidir com a
interpretação do próprio artista, por que o objeto da obra de arte só o é em relação a uma
interpretação, isto é, é dependente da identificação artística. Assim, há um limite de
interpretações, na medida em que as interpretações possíveis são limitadas pela posição
do artista no mundo, pelo local e momento em que viveu e pelas experiências que
vivenciou. Assim, há tanto uma verdade no que diz respeito às obras de arte como
também há um leque de interpretações possíveis o que não as torna de forma nenhuma,
relativas.
Assim, se o gosto pela arte for compreendido de acordo com sua produção
social, a estética deverá partir da análise das condições sociais em que se produz o
artístico. Diante disso, teríamos três dificuldades clássicas da sociologia da arte: a
disposição humanista tradicional dos estudos artísticos, o caráter complexo e singular
do fenômeno estético e as limitações da estrutura cientifica da sociologia para encarar o
campo das artes. Sob o segundo aspecto, o caráter complexo do fenômeno estético,
temos a conjugação das formas econômicas às artísticas e a dependência uma da outra
para análise das possibilidades agenciais dos artistas.
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A determinação da estrutura sobre a superestrutura se dá de duas maneiras:
primeiro as formas de organização econômica determinam em última instância as
formas de organização das outras áreas. Segundo, as relações sociais de produção
determinam as representações, o sistema de ideias e as imagens geradas na mesma
sociedade. À necessidade de analisar as manifestações artísticas em seu contexto
histórico, soma-se, através das ciências sociais aos modelos para a compreensão da arte
que as estéticas profissionais de especulações metafísicas não podem oferecer.
O artista do século XIX, produtor da arte pública não é mais apenas um
espectador da vida social, ele se torna agente ativo, que expõe contradições torna-se
sujeito produtor, dilacera tensões, conecta fragmentos descontínuos.
A mudança radical que o artista proporcionaria se baseia na própria estrutura
psíquica dos indivíduos. O indivíduo emerge do emaranhado das relações de troca e dos
valores de troca, no caso, os valores da sociedade burguesa e entra a partir daí numa
dimensão diferente: a da própria subjetividade. A tese que Marcuse defende é a de que
as qualidades radicais da arte e do seu potencial de libertação baseiam-se precisamente
nas dimensões em que a arte transcende a sua determinação social e se emancipa a partir
do universo real do discurso e do comportamento.
Como lembra a antropóloga Santuza Cambraia Naves (2010), os artistas
populares, em especial os compositores tinham um papel importante na formação da
opinião pública, desde que passaram a comentar todos os aspectos da vida, do cultural
ao político: “O artista moderno se tornou crítico da cultura e participador do cenário
político e cultural19
”. O compositor popular passou a operar criticamente no processo de
composição fazendo uso da metalinguagem, da intertextualidade, como a paródia e o
pastiche, e com isso se tornou um pensador da cultura.
Neste sentido, o artista possui um senso de self prioritário como afirmou
Archer,que é anterior a nossa socialidade. Entretanto, este senso contínuo de self é
constantemente praticado e com ele desenvolvemos o self social. A emergência deste
self social ocorre assim na interface entre estrutura e agência, por isso é necessariamente
relacional. O artista teria assim um senso de self que não necessariamente estaria
19
NAVES, 2010.
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condizente com uma concepção de self presente como expectativa social para si mesmo.
Embora, como afirmou Archer haja uma tendência nas teorias sociais em diluir o senso
de self na concepção de self, o primeiro surge antes temporalmente para depois
internalizar as obrigações sociais e com isso uma concepção de self.
Embora a sociedade carioca do século XIX possuísse uma concepção de self
atribuída à mulher, o senso de self da compositora-artista Chiquinha Gonzaga
possibilitou sua agência e com isso a transformação da concepção de self originária. Na
mesma medida em que a identidade pessoal depende da emergência do self social, o
senso de self possibilita a aquisição de uma concepção de self disponível na
estrutura.Neste processo, a agência leva à estrutura e à cultura mas também é construída
no processo, através de novas práticas sociais.
Chiquinha inaugurou um modo de vida inexistente para mulheres na medida em
que foi morar sozinha e se sustentar sem ajuda da família. Segundo, ela viveu a boêmia
da cidade, frequentava bailes e saraus noturnos, o que não era permitido à mulher após
às cinco horas da tarde. Compôs, o que nenhuma mulher ainda havia feito e compôs
músicas populares no piano, instrumento até então espelho da música europeia, símbolo
de status. Estes engajamentos foram fruto de algumas características pessoais, que
como vimos provinham de uma personalidade forte, voluntariosa e obstinada.
A arte teve o papel determinante em sua ação. Ser artista no século XIX era ser
considerado um “doidivanas” ou alguém que não era de família, entretanto, artistas que
seguiam a sociedade de corte eram reconhecidos socialmente, desde que seguissem o
modelo europeu renovado e reproduzido aqui, como Villa-Lobos ou Ernesto Nazareth.
Mas creio que isso não tenha sido suficiente para ela. A arte a libertou, foi meio e fim na
sua vida, e sendo artista, Chiquinha pode exercer sua agência, pôde se capacitar para
transformar a estrutura, ou pelo menos colocá-la em xeque. Neste sentido, foi preciso
pensar sobre os conceitos de agência e estrutura que na sociologia vem sendo
repensados por Margaret Archer e seu debate com Anthony Giddens e Sztompka. Estes
três autores se articularam para compreender a dinâmica da capacidade de
transformação social e as estruturas simbólicas que constituem nossas instituições
sociais.
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Chiquinha Gonzaga não é mencionada por sua agência. A ação da Chiquinha é
ignorada por não ser considerada uma feminista no sentido ideológico, embora por seus
atos, tenha transgredido e favorecido fortemente este movimento. A reflexividade, o
senso de self ou a capacidade avaliativa, conceitos que caracterizam a agência social
podem ser aqui uma âncora teórica para análise de Chiquinha, na medida em que o
artista, acima de tudo, é um crítico do status quo e para isso possui um papel reflexivo
perante a sociedade em que vive. Chiquinha considerava-se indivíduo antes que
estivesse disponível a ela esta possibilidade. A visão de mundo individualista de que
fala Weber e Dumont transitava a passos lentos por aqui, mas Chiquinha absorveu os
ideais românticos estéticos e morais que “passeavam” por aqui nos entre os
republicanos. Se pensarmos em uma concepção de agencia segundo os modelos
apresentados acima, a primazia do tempo e do espaço se consolidaram como
paradigmas interpretativos, mas creio que uma análise a partir das concepções morais
que estruturam as ações pode oferecer uma possibilidade de interpretação.
É neste cenário que Chiquinha Gonzaga viveu. Filha do segundo reinado e mãe
da República, Chiquinha viu as transformações na sua cidade e participou de algumas.
Era mulher, talvez adúltera, talvez vítima de violência doméstica. Possuía meios para
trabalhar, afinal havia sido educada e com isso pôde lecionar. Recebeu críticas e
elogios, mas Chiquinha possuía amigos jornalistas e artistas que saíam em sua defesa.
Em pouco tempo, Chiquinha se consagrou uma maestrina, compondo partituras
populares que se identificavam com o gosto popular. A partir de 1885, Chiquinha
gozará de estabilidade, sucesso e respeito pelo seu talento e trabalho.
Chiquinha gozou da fama e notoriedade assim como o respeito como maestrina
a partir de 1925. Mantinha contato com seu filho e parentes mandavam cartões postais.
Consta que nunca os recebia. Participava nos meios artísticos, boêmios e políticos e
opinava com firmeza, exibia personalidade forte e voluntariosa. Ela pode ser
considerada uma inconformista com sua condição original, visto que não se sujeitou às
normas tradicionais e uma agente artística na medida em que soube utilizar dos poucos
meios disponíveis para uma mulher do século XIX para transformar seu ambiente
social.
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DANTO, Arthur. O descredenciamento filosófico da arte, Ed. Autêntica, 2005.
TINHORÃO, J. R. As origens da canção urbana. Ed. 34, 2011.
ZOLBERG, V. Constructing a sociology of the arts. Nova York, Cambridge University
Press. 1990.
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RECONHECIMENTO DE SABERES E PRÁTICAS CULTURAIS: O VALOR HUMANO IDENTIFICADO COMO PREMISSA
NECESSÁRIA À EDUCAÇÃO INFORMAL, LEMOS, Fábia de Castro. MEIHY, José Carlos Sebe Bom .
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RECONHECIMENTO DE SABERES E PRÁTICAS CULTURAIS: O
VALOR HUMANO IDENTIFICADO COMO PREMISSA NECESSÁRIA À
EDUCAÇÃO INFORMAL LEMOS, Fábia de Castro
Doutoranda Programa de Pós-Graduação em
Humanidades, Cultura e artes Unigranrio [email protected]
MEIHY, José Carlos Sebe Bom
Professor Programa de Pós-Graduação em
Humanidades, Cultura e artes Unigranrio
RESUMO O presente trabalho se relaciona diretamente com projetos sociais ofertados em algumas Comunidades de
Rocha Miranda (RJ), tendo como objeto o reconhecimento dos saberes e práticas culturais locais do
conhecimento produzidos na favela, cotejando a hipótese de reconhecimento do arcabouço cultural do
indivíduo que é composto de experiências e práticas particularizadas e ao mesmo tempo coletivizadas
com o condão de incentivar os sujeitos a uma ordem de potencialização humana e criativa, onde pudemos
considerar que, o reconhecimento do conjunto de elementos que consolida a educação informal pode por
princípio não só apoiar as redes de educação formal, o trabalho, como notadamente sustentar um
empoderamento de ordem ontológica, em todas as dimensões humanas, o valor humano identificado
consolidado através das experiências e motivações do grupo de jovens pode constituir uma premissa
pragmática às transformações pessoais e sociais, a educação informal vem se desvelando como mediadora
do processo de emancipação dos sujeitos.
Palavras-chave: Valor Humano. Saberes. Educação Informal.
ABSTRACT This work is directly related to social projects offered in some Miranda Rocha Communities (RJ), having
as object the recognition of local knowledge and cultural practices of knowledge produced in the slum,
comparing the recognition hypothesis of the individual's cultural framework that consists experiences and
individualized practices while collectivized with the power to encourage the subject to an order of human
and creative empowerment, where we consider that the recognition of the set of elements that
consolidates the informal education can in principle not only support networks formal education, work,
and especially sustain an ontological order empowerment in all human dimensions, the human value
identified consolidated through experience and youth group of motivations may be a pragmatic premise
of personal and social transformation, the education informal is unfolding as a mediator of the process of
emancipation of the subjects.
Key-words: Human Value. Knowledge. Informal education.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho se relaciona diretamente com projetos sociais em implementação na
comunidade na zona norte do Rio de Janeiro, tendo como objeto de pesquisa o reconhecimento
dos saberes e práticas culturais locais do conhecimento produzido na favela, mantendo a hipótese
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RECONHECIMENTO DE SABERES E PRÁTICAS CULTURAIS: O VALOR HUMANO IDENTIFICADO COMO PREMISSA
NECESSÁRIA À EDUCAÇÃO INFORMAL, LEMOS, Fábia de Castro. MEIHY, José Carlos Sebe Bom .
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de que o reconhecimento do arcabouço cultural do indivíduo que é composto de experiências e
práticas particularizadas e ao mesmo tempo coletivizadas, as quais nem sempre encontra espaço
de reconhecimento social, tem o condão de incentivar os sujeitos a uma ordem de
potencialização humana e criativa.
O reconhecimento do conjunto de elementos que consolida a educação informal pode por
princípio não só apoiar as redes de educação formal, intermediar o interesse na produção do
trabalho e sua formação, como notadamente sustentar um empoderamento de ordem ontológica,
em todas as dimensões humanas, o valor humano identificado consolidado através das
experiências e motivações do grupo de jovens pode constituir uma premissa pragmática à
educação informal.
A Pesquisa, de natureza qualitativa, estruturada sob a ótica do estudo de campo,
utilizando o método de observação participativa com estudo em grupo focal com moradores
jovens entre 18 a 29 anos, articulando e sensibilizando o grupo com oficinas, a partir de suas
contribuições, com vistas à promoção para o empoderamento mediante a emancipação humana e
social dos sujeitos e sua integração social, em todos os seus aspectos.
O procedimento para coleta das narrativas leva em conta a concepção da história oral
como suporte principiológico e ao mesmo tempo procedimental para o reconhecimento de
saberes e práticas do grupo, onde buscamos identificar o valor humano agregado as experiências
individuais que compõe o conjunto educativo informal dos sujeitos, desenvolvendo as
potencialidades e os demais elementos criativos a ela elencados.
A partir da observação da produção do conhecimento em espaços informais, como na
favela, analisamos suas contribuições para as múltiplas formas de concepção da educação, o que
representa não só uma ruptura com as formas de produção do conhecimento estritamente
institucionalizada, mas também agregando meios significativos de compreensão do indivíduo e
sua interação com o meio social.
É nesta vertente que o presente artigo busca analisar os meios de produção do
conhecimento e criação em espaço urbano a partir dos trabalhos já realizados em uma
comunidade na zona norte do Rio de Janeiro, a partir da narrativa de jovens moradores
identificando como essas experiências narradas mobilizam o grupo e seu diálogo com o espaço,
onde proporemos uma reflexões que possam contribuir para a compreensão do processo de
identidade e empoderamento dos sujeitos a partir da educação informal, para além da concepção
marginalizada que marca o espaço, e essas formas de expressão, a qual desqualifica, desmotiva,
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RECONHECIMENTO DE SABERES E PRÁTICAS CULTURAIS: O VALOR HUMANO IDENTIFICADO COMO PREMISSA
NECESSÁRIA À EDUCAÇÃO INFORMAL, LEMOS, Fábia de Castro. MEIHY, José Carlos Sebe Bom .
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desvaloriza e desumaniza os jovens, desta forma, tomamos por base as digressões as quais
compreendem a educação informal utilizando a favela como meio de formação desses sujeitos.
Considerando todo o arcabouço das narrativas, e as possibilidades de construção que
emerge delas propomos a reflexão da necessidade de compreensão das formas de manifestação
dos jovens para valorização humana e de saberes e práticas no processo de conhecimento
aquilatando a cultura urbana de periferia nas favelas abarcando assim o reconhecimento de
identidade dos jovens em condição vulnerável, o que possivelmente possibilitará humanização
desses espaços e a inclusão cultural desses jovens e da própria favela como espaço urbano
criativamente emancipado.
Assim, estruturamos o artigo em quatro momentos, inaugurando com a favela como
espaço de produção humanístico, em seguida, com narrativas dos jovens, onde pudemos
analisar, através das experiências compartilhadas nas falas questões de diversidade cultural e
identidade social, no segundo momento, buscamos compreender as formas de construção do
conhecimento produzido no espaço da favela e suas motivações e inferências, e finalmente,
buscaremos refletir como as experiências cotidianas, podem promover a educação informal, se
consolidam uma empiria social, que considere todo o arcabouço de formação do sujeito, capaz
de suportar a (re) produção de novas práticas e conhecimento mobilizados, que possam mediar o
processo de identificação do valor humano sob o fundamento da auto construção-produção
contínua dos sujeitos.
RECONHECENDO A FAVELA COMO ESPAÇO DE (RE) PRODUÇÃO
HISTORICAMENTE HUMANÍSTICO
“A favela surge no fim do século XX, devido à desterritorialização dos negros
alforriados por terem combatido na Guerra do Paraguai (1865-1870), que não
tinham para onde ir nem para onde voltar e passaram a residir nos morros; à
autorização dada aos praças que combaterem no conflito de Canudos em 1897
para que ocupassem provisoriamente os morros da Providência e de Santo
Antônio; ou à destruição do cortiço Cabeça de Porco, em 1894, quando o
prefeito Barata Ribeiro permitiu que os aproximadamente 4 mil moradores
retirassem as madeiras do cortiço para que fossem aproveitadas em outras
construções.” (ROCHA 2010, p.10).
Analisar a favela, para além da representação de sua categoria, demanda uma
retrospectiva de todo o processo de colonização, das tensões e embates produzidos na República,
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de assentamento de ex-escravos e ex-combatentes de guerra, notadamente no Rio de Janeiro,
Capital Federal do Brasil (1891-1960), fomentado por um paradoxo que encontrou por um lado,
na Política de extinção e destruição dos cortiços visando modelar a cidade com características
européias, e por outro acionando um gatilho irreversível para a proliferação e crescimento
desordenado dos morros e áreas de várzeas da então capital colimado na pobreza desenfreada.
O incentivo governamental, na segunda metade do século XIX, para trazer trabalhadores
aptos a substituir os escravos em prol do desenvolvimento industrial e econômico consolidou o
Rio de Janeiro como a “Meca” das oportunidades, onde o movimento de migração e imigração
protagonizado em boa parte pelos europeus (que germinaram as primeiras idéias de socialismo e
anarquia) contribuiu para o aumento populacional do território formado, constituindo favelas,
que ganha sua representação na irregularidade (área de habitações irregulares) e, portanto, sem
condições sanitárias condizentes com a necessidade da população, daí a idéia de ser marcada
como “lugar sujo” e depois no estranhamento do senso comum (asfalto x morro), consolidando a
compreensão de que a favela é ruim, estranha, perigosa gerando a idéia de um inimigo oculto
que necessita ser combatido e erradicado.
A noção de que a favela era habitada por “vagabundos e perigosos” ganha contornos com
as atenções que o morro da Providência, primeira favela no Rio de Janeiro, atraía das autoridades
que sempre faziam incursões e prendiam inúmeros moradores sob o fundamento de vadiagem e
crimes1, o que fica claro em uma narrativa através de carta enviada ao Chefe de Polícia de uma
dessas diligências:
“(...) ontem me dirigiu relativamente a um local do Jornal do Brasil, que diz
estar o morro da Providência infestado de vagabundos e criminosos que são o
sobressalto das famílias no local designado (...) é ali impossível ser feito
policiamento porquanto nesse local, foco de desertores, ladrões, praças de
Exército, não há ruas, os casebres são constituídos de madeira e cobertos de
zinco e não existe no morro um só bico de gás, de modo que para a completa
extinção dos malfeitores apontados se torna necessário um grande cerco, que
para produzir resultado, precisa de pelo menos um auxílio de 80 praças
completamente armados.” (ZALUAR, 1998, p. 10).
Ao longo dos anos, as estratégias públicas sejam voltadas para a educação, ou para
urbanização, encontrou na cultura meio ideal de “intervenção” como ocorre atualmente em
algumas favelas, que consiste em levar para a favela um “script” de atividades do que deve ser
replicado, de tudo o que se espera desses moradores, promovendo uma inclusão social que
1 Fonte: Arquivo Nacional, RJ, documento Oficio nº. 7071 de 04 de novembro de 1900. Carta do delegado da 10ª Circunscrição ao Chefe de
Polícia do Rio de Janeiro, Dr. Enéas Galvão.
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reproduz valores pré-concebidos, na dinâmica de movimento de fora pra dentro, sem se cotejar
as produções historicamente delineadas, a matriz étnica e cultural afetas e construídas no espaço
(BENCHIMOL, 1990).
“(...) a composição dos habitantes em termos étnicos culturais, econômicos, as
formas de moradia e condições de vida das favelas variaram muito em um
século de existência, completado em 1997, mantendo seu potencial de
alteridade sempre alto. Por isso a utilização da favela como espelho invertido na
construção de uma identidade urbana civilizada tomou várias formas...”
(ZALUAR, 1998, p. 15).
O movimento de descentralização dos olhares das cidades, para a favela, na busca de
expressões significativas encontrou a princípio na capoeira e no samba uma “escola” que
emergiu valores que desceram para o “asfalto”, possibilitando a compreensão de uma realidade
desconhecida narrada nas músicas e cantada nas rodas de capoeira, convergindo para outras
manifestações culturais atuais como o funk, o pagode, e o rap (rhythm and poetry / ritmo e
poesia), onde cada uma das manifestações se compõe de outras espécies diferenciadas umas das
outras.
A compreensão dessas manifestações artísticas possibilita a projeção da comunidade e
com isso transforma o estigma do espaço marginalizado, demonstrando as produções as quais
tem o condão de reconhecer identidades e desconstruir a imagética da marginalização dessas
produções, promovendo redes sociais e dimensionamento das produções da comunidade, ante ao
reconhecimento de uma cultura peculiar, que dialoga com seu materialismo histórico.
NARRATIVAS E SEU ESPAÇO DE PRODUÇÃO: TENSÕES DE PERTENCIMENTO E
EXCLUSÃO
A possibilidade que carreia a valorização das experiências através das narrativas no
contexto do espaço informal, na promoção do processo de conhecimento, a partir de experiências
individuais, permite o reconhecimento do arcabouço de saberes e práticas angariados pelo
indivíduo, as quais não são cotejadas no espaço formal da escola, porém tão relevantes ou
precedentes ao conhecimento produzido nos espaços formais (SANTOS, 2000).
Neste aspecto o esquecimento do “eu” imposto pelas condições precárias encontrada em
algumas favelas do Rio de Janeiro, dá espaço a uma riqueza que permeia a produção de um
espaço culturalmente heterogêneo que reconhecido, pode emergir conhecimentos diferenciados e
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RECONHECIMENTO DE SABERES E PRÁTICAS CULTURAIS: O VALOR HUMANO IDENTIFICADO COMO PREMISSA
NECESSÁRIA À EDUCAÇÃO INFORMAL, LEMOS, Fábia de Castro. MEIHY, José Carlos Sebe Bom .
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valorização do sujeito. As narrativas assumem papel fundamental no reconhecimento local,
melhores narrativas escritas são as contadas pelos inúmeros narradores anônimos”
(BENJAMIN, 1996, p. 198).
o narrador figura entre os mestres e os sábios. Ele sabe dar conselhos: não para
alguns casos, como o provérbio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois
pode recorrer ao acervo de toda uma vida. (...) seu dom é poder contar sua vida;
sua dignidade é contá-la interia. O narrador é o homem que poderia deixar luz
tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida.
(BENJAMIN, 1996, p. 209).
As relações entre as experiências pessoais, sociais e no trabalho, emergem um mote
enriquecido de possibilidades que surgem na compreensão das narrativas, à medida que são
levadas em conta para entender melhor o meio social constituído da favela, os modos de vida e
produção, consolidam importante função na rede do processo de conhecimento, é assim que a
apreensão da narrativa como marca de todo arcabouço intelectual e cognitivo dos sujeitos,
possibilita a construção de formas de práticas e saberes as quais convoquem os indivíduos
estabelecendo novos diálogos com a comunidade, potencializando o processo de conhecimento
do local e da comunidade ampliada, abrindo espaço para programas e políticas públicas ou ainda
para atividades que convoquem a organização social civil, integrando as diversidades (MEIHY,
2011).
CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO NAS DETERMINANTES DA FAVELA
As análises que buscam compreensão das formas de conhecimento nas favelas não pode
ser considerada tarefa fácil, depende do entendimento de variáveis sejam elas urbanísticas,
humanas, políticas, sociais, econômicas e até culturais, as quais permeiam a historicidade, bem
como da diversidade de espaço que a priori se consolida nas bases da marginalização na tentativa
de seguir ao lado do processo de desenvolvimento urbano, consolidando espaços como
quilombos, favela e periferia, no sentido de uma ocupação as margens das regras ordinárias
determinadas pelos embates das lutas de classe.
Um espaço concebido socialmente como marginal, historicamente acolheu pessoas que se
identificando ou não com o meio, refletiram a imagética do lugar, restando um legado marginal
imposto ao espaço, a pessoas e de tudo então atinente a esses grupos que por sua vez encontrou
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RECONHECIMENTO DE SABERES E PRÁTICAS CULTURAIS: O VALOR HUMANO IDENTIFICADO COMO PREMISSA
NECESSÁRIA À EDUCAÇÃO INFORMAL, LEMOS, Fábia de Castro. MEIHY, José Carlos Sebe Bom .
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nessas restrições sociais meios de produção próprios, seja na música, seja nos grafites ou
pichações (emotivas ou não), sejam na dança, desenhos, em expressões que cada vez mais
traduzem o pensamento, as posições, transmitem mensagens de pertencimento as quais integram
o processo de sensibilização do cognitivo seja do indivíduo seja do grupo.
A consolidação deste “ethos” social, que atravessa o processo de conhecimento está
relacionada à própria evolução do indivíduo em seu aspecto bio- cultural, tendo na emoção o
núcleo que determina a “deriva cultural”. A partir da compreensão do outro, no acolhimento
notadamente de narrativas é que se viabiliza recorrências de encontros, e aceitação do outro
como legítimo outro, delineando contornos à convivência social, emergindo o arcabouço de
práticas, costumes, culturas e saberes, o que nos torna humanos” (MATURANA, 1997)
As experiências vivenciadas pelo grupo na comunidade geram predisposição e motivação
para aprendizado diferenciado, consolidado no espaço informal comunitário, possibilita a
apreensão de valores culturais emergentes, o que contribui para o estabelecimento de vias que
adéquam o conteúdo e a capacidade de aquisição do grupo otimizando essa capacidade, onde o
conhecimento se consolida fundamentado nos experimentos produzidos no e pelo espaço,
permeado pelos sujeitos da comunidade, e mobilizado em conjunto com as relações do meio
social escoando e se (re) produzindo no grupo.
“imagino que todo conhecimento seja fundado no sentido e derive, em última
instância, dele ou de algo análogo, que pode ser chamado sensação, produzido
pelos sentidos em contato com objetos particulares que nos fornecem idéias
simples ou imagens de coisas” (LOCKE, 2013, p. 7).
É desta forma que o meio, o espaço da favela se demonstra como agente sensibilizador,
formador do processo cognitivo que encadeará experiências e vivências, produzindo diversidades
historicamente constituídas e socialmente refutadas, colimando verdadeiros embates de
reconhecimento das produções, as quais precedem de compreensão pela sociedade ampliada, na
identidade dos sujeitos produzidos, garantindo assim a diversidade que emerge na democracia
das expressões culturais comunitárias, onde o processo de construção do conhecimento encontra
nas narrativas um subproduto das experiências que integram e ao mesmo tempo interage com os
sujeitos.
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EXPERIENCIAS COTIDIANDA E EDUCAÇÃO INFORMAL: CAMINHOS DE UMA
EMPIRIA SOCIAL?
A crise no paradigma da educação e de outros tantos paradigmas epistemológicos os
quais norteiam o processo de conhecimento, reclama novos espaços de reflexão para apreensão
de práticas e saberes os quais possam re-dimensionar o conhecimento, mediado através da
educação, seja em ambientes formais da escola, ou informais das comunidades, sendo este
último, o nosso campo de análise.
O saber narrativo apresenta-se como caminho possível na concepção da produção de
conhecimento a partir das experiências humanas e do encadeamento delas, é criação subjetiva
onde as experiências são rememoradas, transmitidas e compartilhadas, impactando a rigidez
epistemológica do conhecimento cientifico, que permeado pela busca da verdade absoluta
desqualifica o papel das narrativas, direcionando a validade do processo de produção do
conhecimento ao campo da objetividade, impingindo a crise e mudança no paradigma do
processo cognitivo, que tenciona toda a subjetividade humana com a objetividade do resultado
pretendido (KUHN, 2001).
“(...) paradigmas são princípios ocultos que governam nossa visão das coisas e
do mundo sem que tenhamos consciência disso (...)” (MORIN, 2012, p. 10).
A coexistência entre a necessidade da produção do conhecimento objetivo e a
subjetividade inerente ao humano, emerge novas formas de compreensão epistemológica,
carreado na objetividade relativa ou na objetividade subjetiva, onde as narrativas se mostram
instrumento hígido na produção do conhecimento subjetivo, que bem compreendidas e
encadeadas, possibilitam a produção de instrumentos objetivos de conhecimento.
Assim, se a partir das narrativas houver a compreensão dos meios de produção do
conhecimento e do indivíduo na comunidade, certamente possível será delinear programas e
políticas voltadas a potencialização dessas produções, o que viabilizará a proposta de indicadores
de qualidade e desempenho das políticas ou programas implantados, ou seja, a partir da
compreensão do subjetivo humano, é possível cotejar aspectos de ordem objetiva na consecução
de ações que partem da fala dos sujeitos. Esse processo cíclico demanda valorização das
narrativas, do narrador, das experiências pessoais de saberes e práticas não consignadas
formalmente, do espaço, compartilhamento das narrativas, encadeamento das mesmas, o que
conseqüentemente enseja a necessidade de reconhecimento da identidade dos sujeitos e seu valor
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na produção social, daí a hipótese de que as narrativas podem emancipar os sujeitos e aprimorar
o potencial humano e social.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Para a sistematização do presente trabalho, utilizamos a conjugação de alguns
referenciais teóricos, alinhando a produção da História Oral, como critérios de acolhimento e
observação das narrativas MEIHY (2011), com a perspectiva de abordagem etnográfica
analisando o cenário da favela e suas produções humanas GEERTZ (1998) onde buscaremos
compreender a construção do conhecimento produzido na comunidade através das relações na
favela enquanto espaço historicamente constituído em ZALUAR (1998) e as experiências
cotidianas que consolidam a Educação Informal como elas podem promover a produção de
novas práticas e conhecimentos, compreendendo esse arcabouço de vivências como prática
social empiricamente mediadora no processo de identificação do valor humano, em GOHN
(2010) e MORIN (2012), na capacidade humana da auto construção-produção contínua em sua
autopoiese MATURANA (1997) entre outros autores referenciados.
3. RESULTADOS ESPERADOS
O resgate do sentimento de valorização, mas isso só pode ser alcançado gradativamente
sendo portanto um resultado a longo prazo, podendo ser identificado preliminarmente uma
mudança no comportamento do grupo, que, a partir de suas narrativas de experiências
vivenciadas na comunidade e na sociedade, incentiva a adesão à convocação desses sujeitos na
construção de projetos que retornem para a comunidade o potencial criativo desses jovens, seja
na arte, na cultura, na música, em poesias, no grafite.
No entanto, percebemos uma maior integração e interesse pela preservação do espaço
ambiental e social, o que gera certa evidencia de engajamento do grupo nas questões locais da
comunidade, jovens demonstrando motivação para a re-criação do próprio espaço,
transformando-o, o que possibilita ao indivíduo a auto-valorização, de rejeição dos preconceitos
que lhe são dirigidos em decorrência do espaço e da condição social dos sujeitos.
Em outra perspectiva, pudemos observar que o reconhecimento das práticas pessoais,
incentiva a adesão em oficinas e projetos sociais, o que conflui na preparação do indivíduo para a
vida, para o trabalho (como foi o resultado de algumas oficinas) e para as adversidades, gerando
reações positivas em situações de negatividade, sendo certo que o resultado mais evidente se
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consolida na materialização documental da História Oral de vida de alguns jovens da
comunidade (RJ), e o retorno dessas em prol da comunidade em forma de ações que tem
revitalizado a cidadania dos jovens pelo engajamento social, possibilitando desvelar relações
com o espaço e a apreensão do conhecimento, viabilizando para esses jovens o contato com a
cultura e produção social de si mesmo, numa perspectiva de inclusão e aprendizado, franqueando
na educação informal uma mediadora e elemento permanente à disposição dos sujeitos com
vistas ao trabalho criativo, instrumentalizando o processo de empoderamento pessoal-urbano-
social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa emerge como uma proposta a novas reflexões acerca da ampliação e
o compromisso social ao (re) conhecimento de identidades de grupos sociais emergentes e seu
empoderamento, o que não é tarefa preponderantemente teorizada, mas demanda antes de mais
nada o reconhecimento de práticas, experiências e valorização de saberes singularizados, na
construção do conhecimento cotejado sob perspectiva de validade de um instrumento
empiricamente social.
A análise nos leva a considerações de que a educação informal vem se demonstrando
como fonte principiológica ao reconhecimento desse arcabouço cultural presente no cotidiano do
grupo social, emergindo daí a necessidade do (re)conhecimento dessas identidades para o
devenir, ao estímulo do potencial de criação humano.
O (re) conhecimento dessas identidades, por outro lado, pode contribuir de forma
significativa à emancipação, ao empoderamento numa perspectiva de apropriação e
aperfeiçoamento pessoal, ou coletivo, seja voltado a produções e criações reconhecidamente
econômica e/ou fundamentalmente pessoais, proporcionando ao grupo um aperfeiçoamento na
leitura, na concepção e integração com o mundo, humanizando as relações.
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REFERENCIAS
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GOHN, Maria da Glória. (2010) Educação não formal e o educador social. Atuação no
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Janeiro:Bertrand Brasil.
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experiência. São Paulo: Cortez.
ZALUAR, Alba. ALVITO, Marcos (Org). (1998) Um século de favela. Rio de Janeiro: Editora
FGV.
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UM CRIME DELICADO: ANÁLISE DISCURSIVA DA PRÁTICA DE JULGAR
TRAJANO, Raphael de Morais; GOMES, Ulisses da Silva
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UM CRIME DELICADO: ANÁLISE DISCURSIVA DA PRÁTICA DE
“JULGAR”
TRAJANO, Raphael de Morais
Doutorando em Estudos de Linguagem -UFF/CAPES
Mestre em Letras-UERJ
GOMES, Ulisses da Silva
Mestre em Estudos da Linguagem-UFF
RESUMO Este artigo propõe uma análisedos possíveis sentidos de "julgar" a partir de uma leitura discursiva do
romance Um crime delicado, de Sérgio Sant'Anna, tomando como fundamentação o aparato teórico
metodológico da escola francesa de Análise do Discurso (PÊCHEUX, 1969). Observando as
significações possíveis para "julgar" enquanto prática, investimos na compreensão dos direcionamentos
de sentido que se materializam em uma obra literária constituída sob o efeito de coesão/coerência entre
exterior (capa/contracapa) e interior (narrativa). Desse modo, propomos um gesto de interpretação com
base no qual pudemos concluir (provisoriamente) que a obra se constrói através do estabelecimento de
categorias que fazem que o sujeito se reconheça no lugar de julgador, esquecendo-se da interpelação
ideológica e de sua afetação pelo inconsciente. Apostamos, outrossim, em que esta análise ofereça pistas
sobre os sentidos de julgar na sociedade atual.
Palavras-chave:Um crime delicado. Análise do Discurso. Julgar.
ABSTRACT This article proposes an analysis of the possible meanings of "to judge" from a discursive reading of
Sérgio Sant'Anna‟s novel Um crime delicado. The French School of Discourse Analysis grounds this
article theoretically and methodologically. Regarding the possible meanings of "to judge" as a practice,
we invest in understanding the directions of meaning materialized into a literary work made under the
influence of cohesion/coherence between external (cover/back) and inside (narrative). Thus, the gesture
of interpretation that we purpose makes it possible to conclude (provisionally) that the novel is
constructed by establishing categories that lead the subject to recognize himself in the place of the judge,
forgetting the ideological interpellation and their allocation by unconscious. We bet, moreover, that this
analysis offers clues about the meanings of “to judge” in the present society.
Key-words: Um crime delicado. Discourse Analysis. To judge.
INTRODUÇÃO
Com este trabalho, buscamos trazer uma discussão acerca dos possíveis sentidos de
"julgar", apresentando uma leitura discursiva do romance Um crime delicado (SANT'ANNA,
1997). Que significações estão previstas em julgar, enquanto prática que se desenvolve nas
relações sociais? O que pode vir a significar julgar uma produção artística, um trabalho, as
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particularidades e atitudes dos sujeitos, decidindo-se e direcionando-se sentidos para o “belo”,
o “feio”, o “bem”, o “mal”, o “certo”, o “errado”?
Tomar o julgamento como uma prática - especificamente, uma prática discursiva - é um
gesto que empreendemos a partir de nossa filiação à perspectiva teórico-metodológica da
Análise do Discurso francesa (PÊCHEUX, 2009[1969]). Tal inscrição teórica permite um olhar
sobre textos jurídicos e literários que põe em questão a relação entre objetos empíricos (como
um romance, um panfleto, um manual), a fim de abordá-los enquanto objetos discursivos, em
cujas materialidades, nos termos de Pêcheux (2009[1975]), estão presentes as marcas das
contradições ideológicas.
E é isto o que pretendemos em nossa análise, uma análise entre outras possíveis.
Assumindo uma intepretação com margens, tomamos posição a partir de um movimento que
questiona interpretações em que “o intérprete se coloca como um ponto absoluto”, encarando
este posicionamento como “uma questão de ética e política: uma questão de responsabilidade”
(PÊCHEUX, 2012[1983], p. 57).
1. O DISCURSO. UMA ANÁLISE
A Análise do Discurso a qual nos filiamos é uma disciplina fundada na França por um
grupo de pesquisadores em torno de Pêcheux (2009[1969]), e reterritorializada no Brasil por
Orlandi (1984). Filósofo de formação, Pêcheux dedicou-se a refletir sobre a materialidade do
discurso e, propondo uma teorização sobre a relação sujeito-linguagem-historicidade, seguiu na
contramão de um Estruturalismo que atingiu seu ápice em meados do século XX.
1.1. A noção de sujeito para a Análise do Discurso
Dentre os pressupostos fundamentais desta teoria está o reconhecimento de que o sujeito
é efeito de linguagem, não havendo como escapar de ser significado e da injunção a dar sentido.
Em outros termos, o sujeito se constitui quando de sua entrada no simbólico e está, pois,
“condenado a significar" (ORLANDI, 1996, p. 38). Assim sendo, "diante de qualquer objeto
simbólico 'x' somos instados a interpretar o que 'x' quer dizer" (ORLANDI, 1994, p. 57).
A noção de sujeito é formulada por meio de uma ruptura em relação à proeminência de
um sujeito intencional do idealismo filosófico. Na Análise do Discurso, ele é descentrado, isto
é, não está na origem do dizer, tendo em vista que é duplamente constituído, tanto pelo
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inconsciente quanto pela ideologia. Portanto, diferentemente de a existência do sujeito estar
para uma essência, nesta teoria materialista dos processos semânticos, é a ideologia que
promove a ilusão de essencialidade e intencionalidade (PÊCHEUX, 2009[1975]).
Citando Althusser (1980), Pêcheux (2009[1975]) dirá que a interpelação do indivíduo
como sujeito tem a função de fazê-lo submeter-se livremente à ideologia, para, também
livremente, aceitar tal submissão. Por conseguinte, este sujeito "não pode ser pensado como
uma evidência ou como unidade, reflexo de uma interioridade" (MARIANI, 2002, p. 108).
O discurso é definido por Pêcheux como efeito de sentido entre locutores (PÊCHEUX,
2009[1969]), o que faz urgente conceber a linguagem como não transparente, questionando-se
a literalidade de um objeto simbólico, seja ele um texto, uma pintura, uma música etc.
(ORLANDI, 1996). Esta noção de efeito supõe uma relação de interlocução na construção de
sentidos, os quais não são considerados enquanto propriedades privadas do autor nem do leitor,
mas "efeitos de troca de linguagem que não nascem nem se extinguem no momento em que se
fala" (ORLANDI, 2008, p. 103). A língua/linguagem é base de sustentação ou, nos termos de
Pêcheux (2009[1975]), de materialização de processos discursivos ideológicos. Assim,
Diante de um objeto simbólico, o homem tem necessidade de interpretar. Ele
não pode não interpretar. Esta é uma injunção. E o homem interpreta por
filiação, ou seja, filiando-se a este ou aquele sentido, em um processo que é
um processo de identificação: ao fazer sentido, o sujeito se reconhece em seu
gesto de interpretação (ORLANDI, 1998, p.19).
Trabalhando a articulação entre o Materialismo Histórico, a Linguística e a Teoria do
Discurso, atravessados por uma teoria do sujeito de base psicanalítica, a Análise do Discurso
consolida-se como crítica ideológica que não perde de vista a eminência de uma a intervenção
política, relacionando o campo da língua e o campo da sociedade apreendida pela história
(PÊCHEUX, 2009[1975]). Pensar o sujeito, segundo esta perspectiva teórica, significa incluí-lo
e, do mesmo modo, descentrá-lo, ou seja, admitir que ele não é responsável absoluto dos
sentidos que produz.
Nossos corpos são atravessados pela linguagem antes de tudo, e o sujeito é,
simultaneamente, sujeito da ideologia e do desejo inconsciente (HENRY, 1992). Logo, todo
dizer inscreve marcas de subjetividade que assinalam traços de um duplo atravessamento (pelos
registros do inconsciente e do assujeitamento ideológico) (MARIANI; MAGALHÃES, 2011).
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O sujeito significa e se significa filiando-se a redes de sentido: um processo histórico que não
lhe é transparente (MARIANI, 2002). Por isso, todo enunciado é “suscetível de tornar-se outro,
diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro”
(PÊCHEUX, 2012[1983], p. 53).
1.2. Um sujeito do inconsciente, interpelado ideologicamente
Pêcheux elabora esta teorização explicando acerca de dois tipos de esquecimentos que
constroem a unidade subjetiva. O primeiro deles é definido enquanto processo inconsciente e
ideológico, que produz a ilusão para o sujeito de que ele estaria na origem do discurso. Dessa
maneira, mantém-se recalcada a determinação ideológica. Já o segundo esquecimento é o que
torna evidente para o sujeito, no momento em que privilegia dadas palavras ou enunciados -
deixando de dizer outras - que o que ele diz só o pode ser de uma maneira. Vale ressaltar que
o termo esquecimento não está designando aqui a perda de alguma coisa que
se tenha um dia sabido, como quando se fala de “perda de memória”, mas o
acobertamento da causa do sujeito no próprio interior de seu efeito
(PÊCHEUX, 2009 [1975], p.183).
Justamente pelo fato de tal articulação entre inconsciente e ideologia ser inacessível é
que ela se configura como lugar de constituição da subjetividade (PÊCHEUX, 1990[1969]). A
obviedade que há em se pensar que somos sempre-já sujeitos e a evidência de transparência e de
literalidade dos sentidos apagam o funcionamento do processo significante na constituição da
subjetividade. Trata-se de dois movimentos que se imbricam materialmente: i) a entrada na
linguagem é condição para tornar-se sujeito; ii) é na linguagem que o indivíduo é interpelado
em sujeito, constituindo-se como assujeitado ideologicamente e como desejante.
Isto pode ser resumido da seguinte maneira: inscrevem-se, no dizer, marcas da
constituição do sujeito que assinalam aspectos do registro inconsciente e do assujeitamento
ideológico. No entanto, a alienação do sujeito no seu dizer faz com que não se perceba
constituído por uma rede de significantes, mas como origem de suas palavras. Quando da
interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia, apaga-se que os sentidos não estão no
sujeito nem na língua, que a língua se inscreve na história para poder significar. Assim se
constitui o efeito de evidência do sentido e do sujeito como senhor de si e fonte do seu dizer.
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1.3. Uma língua(gem) equívoca
Do ponto de vista da Análise do Discurso, a linguagem é opaca, não transparente, e os
sentidos não possuem uma existência em si, mas são determinados pelas posições em relação
no processo sócio-histórico em que toda palavra é produzida (PÊCHEUX, 2009[1975]). A
língua é estruturalmente passível de produzir equívoco (PÊCHEUX, 1983). Se os sentidos são
históricos, um mesmo enunciado pode significar diferentemente para diferentes sujeitos, o que
torna sentidos e sujeitos passíveis de deslizamento, de deslocamento, uma vez que, "na
multiplicidade de sentidos possíveis atribuíveis a um texto [...], há uma determinação histórica
que faz com que só alguns sentidos sejam „lidos‟ e outros não" (ORLANDI, 2008, p. 12).
Conforme Mariani (1998), não se deve conceber a linguagem como se ela fosse um
instrumento que serve meramente para comunicar. Ela não é uma ferramenta, simplesmente
funcional e eficiente, que o sujeito maneja como bem entende. A própria existência e o que se
costuma tomar como "realidade" constituem-se na relação linguagem/história: “[...] os sentidos
só se produzem porque são históricos, e a história, por sua vez, só existe como tal porque faz
sentido. Língua e história são processos inseparáveis" (MARIANI, 1998, p. 28).
Todavia, o sujeito segue imerso no efeito ilusório de que a linguagem é transparente e de
que língua é dotada de total clareza e exatidão. Certos sentidos tornam-se, não raro,
inquestionáveis. Ao ler um texto, um analista do discurso sabe que uma palavra ou enunciado
não significam previamente. Analisar um texto, seja uma canção, uma lei ou um romance
(como é o caso da análise que ora propomos) exige compreender que não há sentido de
antemão, que o analista não procura revirar o texto para encontrar um sentido "atrás" dele
(ORLANDI, 2012).
Se um texto não é fechado, ou seja, se cada sujeito pode construir diferentes sentidos,
isto se deve a algo da linguagem que a constitui, a saber, sua incompletude (Ibid.). Da mesma
forma, o sujeito também é incompleto, havendo para ele a possibilidade de se deslocar de uma
posição e assumir outra(s) no processo de significação. A incompletude é, afinal, a condição
para o movimento e a transformação tanto dos sentidos quanto dos sujeitos. Para Orlandi,
Pela natureza incompleta do sujeito, dos sentidos, da linguagem (do
simbólico), ainda que todo sentido se filie a uma rede de constituição, ele pode
ser um deslocamento nessa rede. Entretanto, há também injunções à
estabilização, bloqueando o movimento significante. Nesse caso, o sentido
não flui e o sujeito não se desloca. Ao invés de se fazer um lugar para fazer
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sentido, ele é pego pelos lugares (dizeres) já estabelecidos, num imaginário
em que sua memória não reverbera. Estaciona. Só repete. (ORLANDI, 2012,
p. 54).
É importante não confundir determinação histórica com determinismo. O sujeito não
está fadado a significar sempre da mesma maneira, mas nada impede que o sentido seja
administrado, que haja tentativas de controle dos sentidos por meio de rituais repetidos
insistentemente nas instituições que compõe dada formação social.
2. A PROPOSTA DE UMA LEITURA DISCURSIVA DE UM TEXTO LITERÁRIO
Fundamentar-se em uma abordagem discursiva significa tomar posição como analista
do lugar de um campo teórico que reflete sobre as relações sociais enquanto conjuntos de
práticas constituídas a partir de afetações que têm profundidade subjetiva, política e histórica.
Destarte, há um questionamento e um deslocamento do pesquisador do lugar que neutraliza as
interpretações, do espaço lógico estabilizado que universaliza os sentidos. Dentre as premissas
que decorrem desta postulação, destaca-se a de que não é possível assumir posições de
neutralidade em face de quaisquer questões, sejam as inerentes à vida cotidiana, aos
(pre)conceitos, ou até mesmo as intrínsecas ao trabalho científico, às decisões judiciais etc.
Sob este ponto de vista, a narrativa de um procedimento judicial, presente em um
romance ficcional, pode ser tratada como tomada de posição de um sujeito, em determinadas
condições de produção, frente às instituições e seus ritos (ideologicamente atravessados). Em
resumo, a não ser sob a ilusão de evidência dos sentidos e de transparência da linguagem,
nenhuma prática pode ser imparcial, estando apartada de uma afetação histórica que determina
o que pode e deve ser dito, priorizando-se certos sentidos em detrimento de outros.
A evidência ideológica apaga a política e a historicidade, o que dá a entender que as
palavras têm um sentido imanente, não havendo o que deva ser
questionado/polemizado/relativizado. Todavia, não há uma verdade atrás do texto, mas gestos
de interpretação que o constituem e que o analista deve buscar compreender, tendo sempre
como base uma crítica à afirmação do óbvio (PÊCHEUX, 2009[1975]).
Na interface dos estudos do discurso com a Psicanálise, refletimos com Žižek (2010
[2006]) sobre a dimensão performativa da ordem simbólica, já que, “[a] comunicação humana é
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caracterizada por uma reflexividade irredutível: cada ato de comunicação simboliza
simultaneamente o fato da comunicação” (Ibid., p. 20-21). Cada declaração não transmite
somente um conteúdo, mas o modo como o sujeito se relaciona com ele.
2.1. Um método (necessário) de análise
Em termos metodológicos, a análise do romance se dará através do recorte de
sequências discursivas e da submissão destas sequências ao batimento descrição/interpretação
que compreende um trabalho discursivo. Expliquemos a seguir como se definem as noções de
recorte e sequência discursiva em uma teoria materialista dos processos semânticos.
Sequências discursivas (SD) são "sequências orais ou escritas de dimensão superior à frase"
(COURTINE, 1981).
Consideramos também as sequências imagéticas, tomando-se a imagem como algo que
se constitui como texto e remete a outros textos que a constituem, em sua relação com a história.
Não tratamos o romance Um crime delicado, assim sendo, como um amontoado de enunciados,
mas como “conjunto sem fronteira”, atravessado de sentidos históricos (MAZIÈRE, 2007, p.
59-60), uma vez que há outros discursos que falam no mesmo (ORLANDI, 1981).
Diante da incumbência de analisar um objeto simbólico, o analista do discurso recorta
sequências discursivas que se articulam às questões e objetivos de uma análise. Tal análise não
se concentra na decifração do que um texto quer dizer, como se houvesse um sentido a
descortinar, mas na conversão do texto em discurso. Dessa maneira, torna-se possível
compreender como funcionam os processos ideológicos envolvidos na atualização de
determinados sentidos e, consequentemente, no apagamento de outros.
Esta leitura nos permite analisar o processo de produção de sentidos relacionado a
determinadas práticas e procedimentos; uma análise que não se prende a textos e que nos
possibilita, portanto, a leitura sintomática do discurso em qualquer materialidade. No caso deste
trabalho, uma leitura sintomática do romance Um crime delicado, enquanto objeto discursivo
com espessura histórica.
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Niterói: PPGSD-UFF, 14 a 16 de Outubro de 2015, ISSN 2236-9651, n.5, v.7
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TRAJANO, Raphael de Morais; GOMES, Ulisses da Silva
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3. UMA ANÁLISE POSSÍVEL
O romance Um crime delicado, escrito por Sérgio Sant‟anna, recebeu muitos elogios da
crítica e dos leitores, motivo suficiente para levar à premiação com o Jabuti de melhor romance
em 1998. A obra tem uma trama peculiar composta pelo envolvimento de personagens e
objetos de tal maneira inusitada que nos instigou a apresentar uma proposta de leitura do sentido
de julgar fundamentada nos procedimentos da Análise do Discurso. Nossa leitura, estabelecida
nos limites da Literatura e do Direito, procura compreender o processo de significação de julgar
nas atuais condições de produção, e analisar as marcas de tais processos no texto.
Discursivamente, tais marcas de significação estão presentes já no exterior do romance, em sua
capa, e, no seu texto, apresenta-se na trama que envolve o protagonista, no movimento de
passagem da sua condição de crítico à de réu em um processo judicial.
O livro traz em sua capa uma imagem do quadro Pigmalião e Galateia, de Jean-Leon
Gêrome. Na cena retratada, ao beijo do escultor, a escultura ganha vida, transmutando-se do
branco frio do marfim ao rubor e viço da pele de uma jovem mulher. Tal cena carrega-se de uma
memória discursiva, dotada de historicidade, uma vez que já inspirou vários artistas que a
representaram em diversas materialidades e trata do mito de Pigmalião, narrado por Ovídio em
Metamorfoses. De acordo com o mito, Pigmalião, por não encontrar a sua volta uma mulher
perfeita, decide por esculpi-la. Esculpe em marfim uma mulher de beleza ímpar e enamora-se
dela, pedindo que os deuses lhe concedam esposa com imagem semelhante. Diante do seu
pedido, a escultura ganha vida ao toque do artista, que a batiza Galateia.
A capa do livro é ainda ilustrada com uma imagem do quadro As meninas, do pintor
espanhol Diego Velázquez. A pintura, por si só, desperta curiosidade, e os debates acerca de
seus mistérios não se restringem aos profissionais da arte, instigando também filósofos,
psicanalistas e pensadores que se prestam a interpretar a obra, produzindo leituras distintas.
No quadro, é retratada uma cena que se passa em um aposento real. Leituras já
produzidas sobre a obra destacam a figura da infanta, primogênita dos reis de Espanha. A
menina é cercada por um séquito de servos da Coroa. À esquerda, de costas para o espectador,
encontra-se uma tela na qual trabalha o próprio Velázquez, autorretratado (autor retratado) no
quadro. Ao fundo, pendurado na parede do aposento, há um espelho que reflete a figura de um
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casal. Ao lado do espelho, o vão de uma porta aberta que leva a uma escada e no qual figura um
homem.
Foucault (1999) propõe uma leitura deste quadro no primeiro capítulo de As palavras e
as coisas. O filósofo francês, ao descrever a cena, trata de algumas das questões que o quadro
suscita e que decorrem principalmente da presença do autor na obra que, ao lançar para fora do
quadro seu olhar, marca o lugar do espectador - constrangido a entrar na cena -, o lugar do
modelo e o lugar do quadro sobre o qual trabalha e do qual o espectador só tem a visão do verso.
Foucault (1999) trata da invisibilidade do quadro que, na cena, é pintado por Velázquez e tem
as costas voltadas para o espectador. Trata também da “visibilidade sem olhar”, imposta pelo
espelho no fundo do aposento, já que não reflete nada do que está representado na cena e
também não é objeto do olhar de nenhum dos seus personagens.
Os elementos do quadro marcam a relação de presença e de ausência, de representação e
imagem, dicotomias que se estabelecem tanto por uma realidade criada pelo pintor na obra,
quanto por uma realidade material criada pelo imaginário de quem vê (e julga) a obra. O
filósofo trata da representação artística, mas também da representação por palavras, que é da
ordem da irredutibilidade. Segundo o autor:
por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz,
e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas,
comparações, o lugar de onde estas resplandecem não é aquele que os olhos
descortinam, mas aqueles que as sucessões da sintaxe definem (ib., p. 11).
Ao narrar a cena, descrever seus personagens e objetos, ao falar sobre o quadro,
Foucault o faz por palavras. Fala do espelho, da janela, da luz, do interior e do exterior e
também sobre olhares, imagens, representação, visibilidade e invisibilidade, presença e
ausência. Falar sobre é discursivizar (MARIANI, 1996) e, discursivamente, importam-nos os
efeitos da pintura sobre o espectador e as leituras desses efeitos em distintas condições de
produção.
Não obstante todas as questões e discussões sobre os quadros e que já enlevam
pensadores e público, na capa do romance Um crime delicado, as imagens das obras são
violadas: na parede de fundo do ateliê de Pigamalião, é posta a imagem de As meninas. À cena
de Velázquez, por sua vez, é incorporada uma imagem do quadro de Gêrome, no lugar do
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espelho original. Além disso, uma etiqueta é colada sobre a imagem do quadro com a finalidade
de classificá-lo. Mácula. Violação. Nela, consta não só o nome do livro, mas também sua
classificação: “romance”. A obra é nomeada e categorizada.
A capa do romance já fala sobre a narrativa, já dá pistas da obra: a linha imaginária
entre ficção e realidade, entre a imagem e representação, entre autor e obra. E, na leitura
discursiva que propomos, a violação e o julgamento.
Figura 1 – Um crime delicado. Capa (SD1)
Há, pois, em entrelaçamento exterior/interior que se relacionam a partir de um fio,
compondo uma malha discursiva que confere ao romance um efeito de coesão (como uma
totalidade de partes interligadas) e de coerência, ao passo que os sentidos materializados na
capa do romance tendem a estabelecer uma relação de composição com a narrativa. Se falamos
em “efeito de” e não em suposta transparência da relação exterior-interior, é porque
consideramos a abertura do processo de significação (PÊCHEUX, 2009[1975]) e, assim sendo,
a impossibilidade fechamento/engessamento da interpretação (a não ser por ilusão).
3.1. Da narrativa
A narrativa ambienta-se no Rio de Janeiro. Antônio Martins, personagem principal, é
um crítico de teatro de meia-idade que, solitário, vive romances casuais. O roteiro de sua vida
começa a mudar quando, em um bar no bairro de Botafogo, conhece a jovem Inês, com quem
vive um romance. A primeira imagem que Antônio tem de Inês é o seu reflexo em um espelho
pendurado no bar. Trata-se de uma imagem emoldurada na parede, o que aproxima a figura da
moça da de uma obra de arte, uma representação.
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SD2 [...] na primeira vez que a vi, ela estava sentada à mesa do Café e eu não
podia observá-la de corpo inteiro [...] (SANT‟ANNA, 1997, p. 9); [...] as
paredes e colunas do Café são espelhadas. E foi através desses espelhos, que
refletem uns aos outros, que minha observação se deu, bastante discreta e
oblíqua (Ibid., p. 10).
A partir da nossa leitura, que considera que o romance analisado esfumaça os limites
entre realidade e representação, e considerando o fato de o seu personagem principal ser um
crítico de teatro, a nossa proposta percorre o seguinte percurso: a definição de categorias a
partir da identificação com uma posição assumida pelo sujeito, a relação do julgar com as
categorias e com a falta: “eu não podia observá-la de corpo inteiro”. Antônio Martins
identifica-se com o lugar de crítico, posição marcada no texto pelo próprio personagem, quando
lhe dá voz o autor do romance.
SD3 - Sou crítico. (Ibid., p. 17, grifo nosso).
SD4 – [...] Terá todo mundo de escrever?, concluía eu. [...] Bem, em alguns
casos, como o meu, receio que sim (Ibid., p. 22, grifo nosso); Escrever.
Fragmentos dispersos, frases soltas, olhares, visões reais ou subjetivas, eis,
possivelmente, como se deveria escrever sobre um encontro em que se ficou
bêbado, apesar de ter havido, a princípio, uma certa ordem, reproduzível em
diálogos quase banais. (Ibid., p. 23, grifos nossos); [...] O eventual leitor desta
narrativa já estará percebendo, a esta altura, que o que escrevo – e escrevi
para o jornal – está e estava inteiramente vinculado às perturbações que eu
próprio vivia [...] (Ibid, p. 67, grifos nossos).
Ao dizer de si e de sua prática (criticar, escrever), o personagem se identifica com os
lugares de crítico e de escritor, reconhecendo e tomando para si a as atribuições desta posição
discursiva. Uma das questões que se coloca é sua tentativa frustrada de ver puramente técnicos
os textos de suas críticas, isentos de interferência ou motivação de caráter pessoal, já que a
"vinculação da crítica às perturbações pessoais do crítico" é uma violação de sua atribuição:
SD5 – [...] ser crítico é um exercício da razão diante de uma emotividade
aliciadora, ou de uma tentativa de envolvimento estético que devemos
decompor, para não dizer denunciar, na medida do possível com elegância. O
que não significa que estejamos imunizados contra a sedução das
emoções (Ibid., p. 18, grifos nossos).
SD6 – [...] o crítico é um tipo muito especial de artista, que não produz
obras mas vai apertando o cerco em torno daqueles que o fazem,
espremendo-os, para que eles exijam de si sempre mais e mais, na
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perseguição daquela obra imaginária, mítica, impossível, da qual o
crítico seria co-autor (Ibid., p. 28, grifos nossos).
No início do romance, então, o leitor conhece o crítico, aquele que julga. A ancoragem
na perspectiva teórica da Análise do Discurso impõe problematizar a impessoalidade de
qualquer prática, em que se inclui a crítica, o julgamento, enquanto práticas empreendidas por
sujeitos históricos. Sujeitos que, como tal, tomam a palavra sempre a partir de posições
ideologicamente determinadas. No texto, o narrador, imerso na ilusão de controle do seu dizer
(materializado como crítica, julgamento, narração), supõe a possibilidade de negociação entre
razão e emoção, em relação de tensão nas práticas que se incumbe de exercer. No entanto, o que
se destaca como impossibilidade de imunização diante das emoções faz escapar, isto é,
denuncia o caráter heterogêneo e contraditório de qualquer prática entendida como discursiva.
Julgar é, pois, produzir sentidos identificados a uma rede de filiação (e não outra), mas que, por
meio de esquecimentos constitutivos de sua entrada no simbólico, na linguagem, lhes vêm
como transparentes, evidentes, de modo que o sujeito se reconhece como dono de seu dizer (e
de sua suposta imparcialidade).
Na perspectiva da Análise do Discurso, que reconhece a determinação histórica dos
sentidos e a interpelação ideológica do sujeito do inconsciente, a relação deste sujeito com os
nomes e com o mundo é posta em questão. De acordo com Pêcheux,
O sujeito pragmático – isto é, cada um de nós, os “simples particulares” face
às diversas urgências de sua vida – tem por si mesmo uma imperiosa
necessidade de homogeneidade lógica: isto se marca pela existência dessa
multiplicidade de pequenos sistemas lógicos portáteis que vão da gestão
cotidiana da existência (por exemplo, em nossa civilização, o porta-notas, as
chaves, a agenda, os papeis, etc) até as “grandes decisões” da vida social e
afetiva (eu decido fazer isto e não aquilo, de responder X e não a Y, etc…)
passando por todo o contexto sócio-técnico dos „aparelhos domésticos‟ (isto é,
a série dos objetos que adquirimos e que aprendemos a fazer funcionar, que
jogamos e que perdemos, que quebramos, que consertamos e que
substituímos)… (PÊCHEUX, 2002[1988], p. 33).
Mais adiante, Pêcheux também põe em questão a evidência de que esta necessidade de
homogeneidade lógica, ou de um “mundo semanticamente normal” seja decorrente
exclusivamente das relações sociais do sujeito ou de sua relação com o Estado. Tal necessidade
marca o processo de constituição do sujeito, que se inicia com o modo como o infans reage ao
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que Freud (1905, 1915, 1930) denominou “Trieb” (pulsões, estímulos pulsionais). Em linhas
gerais, portanto, a constituição do aparelho psíquico do sujeito se inicia com a repulsa e/ou
prazer do infans na sua relação com o alimento e com o excremento. Discursivamente, essa
questão é posta por Pêcheux como a primeira marca da constituição de um sujeito pragmático,
dominado pela urgência à significação.
Entendemos que a noção de categorização introduzida por Pêcheux pode, em
determinadas condições, ser lida como categoria discursiva (GOMES, 2015). Processo pelo
qual o desejo de significação que marca o sujeito imiscui-se nas atribuições daquilo que se
denominou Estado e, assim, há uma tentativa (imaginária) de estabilização de sentidos por meio
de normas gramaticais e dicionários. Esse processo de categorização passa por outras
instituições do Estado que, por meio das leis, das decisões judiciais, buscam tal estabilização de
sentidos que, uma vez institucionalizados, podem ser impostos coercitivamente e, diante do
desvio do padrão, justificam a retificação. Trata-se da categorização jurídica. As categorias,
portanto, são um processo de denominação (MARIANI, 1996) qualificado, já que determinado
pelo Estado e, no caso da categorização jurídica, podem ser impostas coercitivamente pelos
aparelhos de Estado e legitimar a punição dos que desviem da norma.
Como crítico de teatro, Antônio é posto no lugar de “detentor do saber” (PÊCHEUX,
2002[1988]) e legitimado a julgar peças de teatro categorizando-as como “boas” ou “ruins”, o
que dialoga com a narrativa inteira em sua mobilização de formas verbais como “julgo”,
“penso”, “acho”. O crítico avalia de acordo com padrões previamente estabelecidos e que,
muitas vezes sob aspecto de objetividade, de ciência, determinam os atributos de “correção”,
“técnica”, “beleza”, “subversão”, “inovação”, como se pode conferir na sequência que segue.
SD7 - [...] enfim, uma brecha de liberdade através da qual a atriz penetrava,
num trabalho digno de nota por sua contenção ativa, dando vida a uma
personagem que escapava da vigilância do dramaturgo, talvez numa feliz
conspiração da intérprete e do cenógrafo contra a tirania autoral.
(SANT‟ANNA, 1997, p. 21, grifos nossos).
Como escritor, Antônio se vê legitimado a narrar fatos, descrever objetos e, quando se
envolve em uma situação ambígua com Inês, na qual se encontrava bêbado, ainda que a única
coisa que lhe restasse fossem algumas poucas memórias, deve narrar. E o faz lançando mão de
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seu estado de embriaguez, da posição de um crítico que coloca os sentidos em suspenso, em
meio a uma avaliação, desta vez, vacilante em termos de objetividade:
SD8 [...] era preciso rastrear o final da noite para verificar se meus tremores
eram mais justificados do que a euforia. Quanto a esta última, devia-se não
somente aos resíduos de álcool em meu sangue, como à quase-certeza de que
eu penetrara de alguma forma a intimidade de Inês. [...] havia, dentro de mim,
além da apreensão, culpa, o que não significava, necessariamente, que eu
tivesse praticado alguma ação condenável, querendo dizer com isso algum
ato contra a vontade de Inês. [...] Mas o álcool costuma romper minha
timidez, levando-me a certos ímpetos de audácia [...] (Ibid., p. 24, grifos
nossos).
SD9 Estaria eu fantasiando tudo isso de conformidade a um desejo agora
tão intenso que fazia uma determinada parte do meu corpo reagir virilmente à
água fria do chuveiro, sob o qual eu me refugiava procurando recompor-me?;
[...] faltava-me uma memória viva, sem a qual os acontecimentos não
existem, o que reforçava a hipótese de que eu falhara. (Ibid., p. 25, grifos
nossos)
SD10 Não tenho a pretensão de rastrear, reproduzir, aqui, a consciência,
a memória, em seu fluxo veloz e descontínuo. [...] Então é preciso organizar
esse fluxo, como o tenho feito, para que eu próprio possa segui-lo, dominá-lo
ao menos nestas páginas, estas frases que se encadeiam, como se elas, sim,
criassem a verdadeira realidade (Ibid., p.30, grifos nossos).
Nas sequências 8, 9 e 10 percebemos que o estado de torpor afasta as ditas “certezas” e
põe o narrador novamente no lugar da falta de sentidos. Ansioso por significar, o sujeito
pragmático busca então construir uma narrativa costurando traços de sua memória dos fatos
com discursos outros, já-ditos que retornam e que permitem a construção de uma narrativa com
os atributos de coesão e coerência. A construção desta narrativa, no entanto, é feita com de
modo que a suposta prática de “julgar”/“avaliar” aparece como sinônimo de “achar”, “pensar”,
“crer”, “imaginar”, marcando a incerteza, a imprecisão, a ausência de sentido, a qual leva o
sujeito a buscar significar, como sendo da ordem uma injunção.
Retomando Foucault (1999, p. 11), ratificamos que “por mais que se diga o que se vê, o
que se vê não se aloja jamais no que se diz”. Premissa que comparece na fala de Antônio
Martins e que se marca na sequência abaixo, recortada de afirmação do personagem sobre um
processo de escrita, ratificando-se o caráter aberto e heterogêneo da linguagem:
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SD11 Ao escrevê-lo, percebo como é difícil quando não se tem os
“pré-textos”, ou espetáculos, que servem de apoio, bengala, a esses seres
cautelosos que são os críticos. Percebo como a escrita nos distancia, quase
sempre, das coisas reais,se é que existe uma realidade humana que não
seja a sua representação, ainda quando apenas pelo pensamento, como numa
peça teatral a que não se deu a devida ordem, aliás inexistente na realidade
(SANT‟ANNA, 1997, p. 50, grifos nossos).
Comparece também nesta sequência a imagem da bengala (muleta, apoio), a categoria
que serve como paradigma àquele que julga. O que serve para buscar uma suposta completude
àquilo que falta.
Antônio começa a se envolver com Inês seduzido pelos mistérios que envolvem a moça,
pela sua beleza. Na verdade, ele é atraído pelo tanto que desloca Inês de um padrão de beleza,
ele é atraído pelo fato de Inês ser manca, uma marca, uma falta que se coloca para o
narrador-personagem como ponto de atração, uma atração por penetrar o mistério, tanto quanto
aquilo que falta, que manca, o que verificamos em:
SD12 Uma cena quase subliminar em minhas recordações, mas
suficientemente materializada para incluir uma perna atrofiada,
contrastando com a outra sadia, forte e, por que não dizer?, bela (Ibid., p.
25, grifo nosso).
SD13 [...] beleza peculiar de Inês, seus olhos negros, seus dentes de criança,
a pele claríssima [...] Uma beleza que aquela imperfeição só realçava (Ibid.,
p. 31-32, grifos nossos).
SD14 [...] sendo a ereção um comando irracional do cérebro a um feixe de
vasos sanguíneos e nervos, Maria Luísa era para mim inexpugnável: não
havia nela, em sua perfeição – despida dos véus do pecado ou qualquer
outro figurino ou adereço –, nenhuma brecha por onde eu pudesse
penetrar (Ibid., p. 67, grifo nosso).
Para o Antônio homem, o defeito físico de Inês significa como uma peça teatral ruim
para o Antônio crítico. São as faltas, as brechas, que permitem a penetração. Categorizar Inês
como manca é reconhecer que lhe faltam atributos que a afastam de uma mulher categorizada
como “normal” de acordo com um sentido de normalidade que se constitui historicamente.
Da mesma forma, categorizar uma peça teatral como “ruim” é possível porque um
crítico de teatro, posto no lugar de um detentor de saber e, portanto, conhecedor dos atributos de
um padrão de “correção”, julga aquilo que falta na obra para que ela se identifique ao
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paradigma da categoria, naquela já dita busca imaginária de estabilização de sentidos, busca de
completude, “inteireza”:
SD15 Daquele que a quer, inteira, [...] (Ibid., p. 111, grifos nossos).
A falta, questão muito cara à Psicanálise, tomada como constitutiva do sujeito, pode ser
analisada discursivamente como o silêncio (ORLANDI, 1997), interpretado como
materialidade discursiva. Silêncio fundador, falta que permite a movimentação de sujeitos e de
sentidos, já que, para se dizer x é necessário não dizer y, e política de silenciamento,
impedimento à circulação de certos sentidos ou imposição, obrigar que se diga o que se quer
ouvir. É a falta, o silêncio, o que permite significar.
Dessa forma, Antônio julga Inês a partir de um padrão estético que a define como
“manca”, no limite do que a afasta do paradigma do “belo”, do perfeito. Na posição de crítico,
julga uma peça de teatro descrevendo aquilo que falta à peça para que se aproxime de um dito
paradigma de perfeição ideologicamente determinado. Na posição de escritor, narra aquilo
quejulga ser a realidade e que produz efeito de mais uma realidade.
No romance, em decorrência da tempestuosa relação com Inês, Antônio passa à posição
de objeto de julgamento, quando se vê envolvido em um processo judicial, acusado da prática
de um ato de violência sexual. No Tribunal, são postas em oposição pelo menos duas narrativas,
a de Antônio, juridicamente categorizado como acusado e a de Inês, categorizada como vítima.
Institucionalmente, as narrativas não são postas pelos personagens do fato, mas por seus
representantes, que as submetem ao julgamento de uma autoridade que ocupa o lugar de
detentor do saber jurídico. As narrativas, buscando acercar-se de uma “objetividade”, que as
aproximariam mais ou menos “da verdade”, trazem elementos científicos, exames, análises.
Assim, ao final, uma das narrativas é julgada vencedora, de acordo com critérios que a
aproximam de um paradigma de verdade: disputa de sentidos em que um é sagrado vencedor,
dominante. E, de acordo com este julgamento e com as normas de valor em circulação em
determinadas condições de produção, o julgador é autorizado a categorizar os indivíduos e a
lhes impor sanções.
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UM MERO EFEITO DE CONCLUSÃO
“Julgar” não se limita, portanto, àquele que ocupa o lugar de crítico, de julgador,
legitimado institucionalmente a emitir julgamento de valor. Em Um crime delicado, o narrador
concorre com o crítico, aquele que julga. O romance põe em questão a prática discursiva de
julgar, o trabalho do crítico e a sua relação com a arte, inscrito na condição humana de
significar, de dar nomes aos objetos e organizá-los em categorias de acordo com atributos
historicamente definidos.
Inês, a mulher por quem Antônio se apaixona – que se posiciona no texto como uma
peça em uma grande instalação, uma parte de uma obra de arte – é manca. E isso não é sem
sentido. Mancar é estar fora do prumo, em falta de simetria, em desarmonia, e quem se coloca na
posição de julgador aponta as dissimetrias, as desarmonias, estabelece uma categoria de "belo",
de "correto", ao comparar aquilo que julga a um “padrão” ou “regra” (imaginários). Antônio
Martins é atraído pela imperfeição. É o que falta, o que destoa que permite as brechas que serão
por ele penetradas (SANT'ANNA, 1997, p.74). A perfeição, a beleza escancarada, ao contrário,
por não permitirem ser penetradas, afastam o olhar do crítico, intimidam-no (Ibid., p. 76).
A pele branca de Inês, assim como uma tela (Ibid., p. 32) ou uma folha de papel em
branco, configura-se como silêncio que pode ser preenchido por tintas ou palavras, dispostas
pelo artista, imaginariamente da maneira que bem lhe aprouver, mas discursivamente a partir de
uma posição assumida enquanto sujeito histórico. Com a “matéria-prima” nas mãos,
confundem-se o artista, o leitor/espectador e o crítico/julgador, assim como no estado de torpor,
de embriaguez, sob o lusco-fusco, as fronteiras não estão bem definidas, sonho e realidade se
confundem (Ibid., p. 23).
A imperfeição, a falta de limites e precisão não impedem a construção ou fabricação de
uma narrativa (Ibid, p. 30), na verdade, as palavras dão ordem ao caos, constituindo uma
realidade. Por isso, dispor das coisas como queremos não é mentir (Ibid., p. 106). A história
narrada por Antônio Martins é uma reconstrução ou fabricação de fragmentos de sua memória
que, concatenados, constituem uma narrativa que escreve e descreve pessoas e objetos, narra
fatos definindo-lhe limites que a razão insiste em determinar e que a arte, por outro lado,
bagunça outra vez.
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Se sabemos com Mariani (1996) que falar sobre é discursivizar, a narrativa é somente
mais uma representação, e julgar é uma prática discursiva, a construção de uma narrativa que
busca dar sentidos onde eles faltam, onde eles se afastam de padrões determinados
socio-historicamente e que justificam não só o julgamento, mas, em certas condições, também o
controle, a punição, a censura. Sentidos são barrados em nome de uma ordem, de um padrão.
Antônio Martins vê-se em um círculo, é narrador, escreve (Ibid., p. 23) ao buscar
desenvolver uma narrativa com frações de memória; como leitor da própria narração,
modifica-se como espectador e transforma personagens em outros (Ibid., p.104). Abre caminho
para o crítico e, penetrando nas falhas, julga a obra onde ela é “manca” (Ibid., p. 17).
E, para pôr fim a tudo isso, o narrador se vê envolvido em um processo judicial
decorrente de uma acusação de estupro feita por Inês. Cercado de procedimentos ritualísticos e
científicos que procuram aproximar ao máximo a narrativa de uma realidade apontada como a
verdade, o processo não é nada mais do que uma outra narrativa ou, no máximo, a disputa de
várias na qual uma, ao final, sai vencedora, tudo isso sob a aparência de certeza, objetividade.
Julgar é emitir opinião sobre algo ou alguém. Aquele que julga se reconhece na posição
de julgador, faça ou não parte de uma instituição que garanta e legitime seu lugar de suposto
“detentor do saber” (PÊCHEUX, 2009 [1995]). Seja qual for a posição de quem julga, a prática
de julgar se dá no esquecimento da interpelação ideológica de um sujeito pragmático dominado
pela ilusão de completude que o leva a considerar um imaginário de “correção”, “beleza”,
“verdade”, “bem”, “justiça”. Em face daquele ideal, constituem-se categorias - jurídicas,
discursivas - (GOMES, 2015) ao se julgar o outro como “errado”, “feio”, “falso”, “Mal”, na
medida em que ele se afasta do paradigma imaginário. A leitura discursiva do romance nos
permite perceber, no texto, marcas da significação de “julgar” que são objeto de nossa análise.
Em nossa leitura discursiva do texto, concluímos que o sentido de julgar é construído a
partir do esquecimento da interpelação ideológica que constitui o sujeito. Nós, sujeitos
pragmáticos, impelidos por uma injunção à completude e à significação, estabelecemos
categorias que, em algum momento, passam a constituir um paradigma imaginário a partir do
qual aquele que se reconhece no lugar de julgador julga o outro.
O gesto de leitura que produzimos de Um crime delicado nos permite encontrar pistas
dos sentidos de "julgar" na sociedade atual, constituído, portanto, nos meandros do imaginário,
da ideologia, da falta e da ilusão de completude. Cabe também pôr em questão os sentidos de
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UM CRIME DELICADO: ANÁLISE DISCURSIVA DA PRÁTICA DE JULGAR
TRAJANO, Raphael de Morais; GOMES, Ulisses da Silva
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"belo" e "feio", "certo" e "errado", dentre tantas outras dicotomias estabelecidas a partir da
prática do julgar, o que procuramos apresentar como resultados (reflexões) possíveis, a partir
desta proposta de discussão, assumindo o que nela venha a faltar, falhar, mancar, abrindo
brechas para outros sentidos e interpretações possíveis.
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NARRATIVAS DO CÁRCERE NO CONTEMPORÂNEO
BRAIDA, Ricardo
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NARRATIVAS DO CÁRCERE NO CONTEMPORÂNEO
BRAIDA, Ricardo
Professor do Programa de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e da Faculdade
Presidente Antônio Carlos (FUPAC) de Ubá, MG. Mestre em Estudos Literários pela Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF).
RESUMO O artigo propõe investigar o silêncio e o discurso da produção literária no vigente sistema penal
democrático brasileiro. Porém, ao invés de partir de dados estatísticos, de concretudes matemáticas, este
trabalho adotou como método de pesquisa o empirismo, se debruçando sobre a produção e a repercussão
da Literatura de Cárcere no contemporâneo, para então se aprofundar e traçar algumas reflexões sociais
e políticas, como o massivo aumento da população carcerária na última década e a flagrante seletividade
penal. A Literatura de Cárcere é um conjunto de narrativas que partem de perspectivas individuais sobre
o sistema prisional. Seu enunciado está indissoluvelmente ligado a um indivíduo e suas condições de
comunicação que, por sua vez, estão ligadas às estruturas sociais. É a partir do exercício da linguagem
individual e social que o objeto-cárcere produz uma representação ideológica de uma imagem
artístico-simbólica na Literatura capaz de refletir em uma análise social.
Palavras-chave: Literatura. Cárcere. Contemporâneo
ABSTRACT The paper proposes to investigate the silence and the discourse of literary production in the current
Brazilian democratic penal system. However, instead of using statistical data, mathematical
concreteness, this study adopted as a research method the empiricism, looking for the production and the
impact of Prison Literature in the contemporary, to then deepen and draw some social and political
reflections, like the massive increase in the prison population in the last decade and the criminal
selectivity. The Prison Literature is a collection of narratives that depart from individual perspectives on
the prison system. His enunciation is inextricably linked to an individual and their communication
conditions of communication, in turn, are linked to social structures. Through the exercise of individual
and social language, that prison-object produces an ideological representation of an artistic-symbolic
image in Literature able to reflect on a social analysis.
Key-words: Literature. Prison. Contemporary
INTRODUÇÃO
Em uma perspectiva cronológica e de âmbito nacional, o presente estudo propõe
analisar um corpus literário composto pelas narrativas do cárcere no Brasil com um corpus
analítico de múltiplos pensadores como Michel Foucault, Walter Benjamin, Mikhail Bakhtin,
Giorgio Agamben, Hannah Arendt, Alfredo Bosi, Márcio Seligmann-Silva, Antonio Candido,
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dentre muitos outros que surgirão ao longo do trabalho. O possível conflito entre verdade e
ficção, que eventualmente poderá ser suscitado, deve ser minimizado pela análise conjunta de
diversas obras sobre o cárcere que narram vários aspectos em comum, apesar das
idiossincrasias que cada texto carrega em si. Como preleciona o professor Marcio
Seligmann-Silva sobre este conflito, “as fronteiras entre gêneros ditos „sérios‟/„factuais‟ e os
fictícios há tempos não podem ser mais traçadas. Nessa literatura carcerária o simbólico
aparece esmagado sob o peso do real e determina um redimensionamento dessas fronteiras”
(2004, p. 6). Ainda nesse sentido, de acordo com o filósofo do Direito Ronald Dworkin, a
literatura e a arte devem ser usufruídas em suas amplitudes de interpretações, expandindo as
possibilidades de discussão do campo jurídico.
Seria bom que os juristas estudassem a interpretação literária e outras formas
de interpretação artística. Isso pode parecer um mau conselho (escolher entre
o fogo e a frigideira), pois os próprios críticos estão completamente divididos
sobre o que é a interpretação literária, e a situação não é melhor nas outras
artes. Mas é exatamente por isso que os juristas deveriam estudar esses
debates. Nem todas as discussões na crítica literária são edificantes ou mesmo
compreensíveis, mas na literatura foram defendidas muito mais teorias que
contestam a distinção categórica entre descrição e valoração que debilitou a
teoria jurídica (DWORKIN, 2000, p. 221).
Para tanto, ao invés de partir de dados estatísticos, de concretudes matemáticas, este
trabalho adotou como método de pesquisa o empirismo em uma abordagem qualitativa, se
debruçando sobre a produção e a repercussão da Literatura de Cárcere no Brasil, para então
destacar reflexões sociais sob uma nova ótica, como o massivo aumento da população
carcerária da última década e a flagrante seletividade penal.
A Literatura de Cárcere (seja biográfica ou ficcional; seja em cartas, em romances,
contos, poesias ou histórias em quadrinhos) é um conjunto de narrativas que partem de
perspectivas individuais sobre o sistema prisional. Sua apresentação se dará no primeiro
capítulo. No capítulo seguinte será apresentado alguns exemplos de Literaturas de Cárcere em
tempos de autoritarismo. E por terceiro, o estudo se direciona para a produção da Literatura de
Cárcere no contemporâneo.
Portanto, instaurado o objeto de estudo, nada mais resta a expor nestas considerações
inicias. Que a Literatura de Cárcere venha à tona.
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1. A LITERATURA DE CÁRCERE
Para iniciar uma análise crítica sobre a Literatura de Cárcere, faz-se imprescindível o
óbvio, ou seja, delimitar o que é a Literatura de Cárcere para os fins desta pesquisa: seja em
verso ou prosa; ficção ou autobiografia, a Literatura de Cárcere é a manifestação de uma
narrativa isolada sobre um sistema prisional, compondo em um conjunto de narrativas um
discurso literário. O enunciado está indissoluvelmente ligado a um indivíduo e suas condições
de comunicação que, por sua vez, estão ligadas às estruturas sociais. É a partir do exercício da
linguagem individual e social que o objeto-cárcere produz uma representação ideológica de
uma imagem artístico-simbólica na Literatura.
Deve-se ressaltar que o presente estudo não tem a pretensão de construir um dogma
sobre a Literatura de Cárcere, pelo contrário, afirma a existência de uma repetida manifestação
literária, que se identifica pelo vínculo das ciências humanas e sociais, erigindo-se sobre
alicerces que se complementam, mas que não são taxativos.
[...] é também entrar em contato com as consequências que vai provocando em
termos dos estudos da linguagem, em termos dos estudos da enunciação, em
termos de estudos do discurso que, centralizados na Linguística e também na
Teoria Literária, alçam voo e ganham espaço nas diferentes Ciências
Humanas e Sociais (BRAIT, 2012, p. 21).
Assim, aprofundando o estudo da filosofia da linguagem pode-se conceber a
consciência individual da Literatura de Cárcere como um fato socioideológico. De acordo com
Bakhtin: “Realizando-se no processo da relação social, todo signo ideológico e, portanto,
também signo linguístico, vê-se marcado pelo horizonte social de uma época e de um grupo
social determinados” (2009, p. 45). A valoração interindividual do objeto (prisão) pelas
narrativas constitui o sentido vivencial que cada obra estabelece a partir do contexto em que foi
criada. Em todas as representações, o signo se torna uma arena onde se desenvolve a luta de
classes contra os limites de uma ideologia dominante (2009, p. 48). Mariana Yaguello explica
este confronto proposto por Bakhtin a partir do seguinte raciocínio: “A comunicação verbal,
inseparável das outras formas de comunicação, implica conflitos, relações de dominação e de
resistência, adaptação ou resistência à hierarquia, utilização da língua pela classe dominante
para reforçar seu poder, etc.” (in BAKHTIN, 2009, p. 14). Inserida nessa relação de poder e
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comunicação, a Literatura de Cárcere em seu conjunto pode revelar aspectos sociais por um
outro prisma. Ainda com Bakhtin: “Os enunciados e seus tipos, isto é, gêneros discursivos, são
correias de transmissão entre história da sociedade e a história da linguagem” (BAKHTIN,
2011, p. 268).
A cadeia não é um “brinquedo literário”, como certa feita escreveu o escritor Graciliano
Ramos ao amigo José Lins do Rego. E é a partir desta sentença que este estudo pretende ir além.
2. LITERATURA DE CÁRCERE EM PERÍODOS NÃO DEMOCRÁTICOS:
Nessa etapa, o estudo se direciona para pontuais Literaturas de Cárcere produzidas em
períodos de poder autoritário, mais precisamente o Brasil Colônia (1500 – 1822); a era Vargas
(1930 – 1945); e a Ditadura Militar (1964 – 1985).
2.1. Marília de Dirceu e o Brasil Colônia:
No século XVIII, durante o Brasil colônia, o escritor luso-brasileiro Tomás Antônio
Gonzaga (1744 – 1810?), “homem de letras jurídicas e de alta burocracia que escreveu, ainda
jovem, um cauteloso Tratado de Direito Natural” (BOSI, 2012, p. 75), foi preso junto com
Alvarenga Peixoto (1744 – 1792) e Silva Alvarenga (1749 – 1814)1, após serem delatados de
participação na Inconfidência Mineira. O lema Libertas quæ sera tamem, hoje presente na
bandeira mineira, foi abafado e Gonzaga passou três anos preso aguardando o julgamento da
sua pena de degredo para o Moçambique (BOSI, 2012, p. 75). Enquanto esteve encerrado na
masmorra, o escritor compôs sua obra de maior destaque: Marília de Dirceu (1800), um canto
árcade em saudação a sua amada impossível, Marília.
Que diversas que são, Marília, as horas,
Que passo na masmorra imunda, e feia,
Dessas horas felizes, já passadas
Na tua pátria aldeia!
(GONZAGA, 1998, p. 82).
1Alvarenga Peixoto sofreu a mesma pena que Gonzaga, já Silva Alvarenga, pouco mais jovem, sofreu apenas três
anos de cárcere, sem a pena de desterro (BOSI, 2012, p. 74-75).
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Depois de degredado, Tomás Antônio Gonzaga viveu em Moçambique até a morte,
onde recebeu cargos e riquezas (PROENÇA in GONZAGA, 1998, p. 6).
2.2. Romance social e a Era Vargas:
Adiantando alguns séculos na investigação, mais precisamente em 1930, houve a
explosão do romance social nordestino. A produção de uma literatura social encaminhou a
prosa para o que Alfredo Bosi denominou de “realismo bruto” (2012, p. 411), estilo onde a
Literatura de Cárcere encontrou caminhos amplos para a sua representação. O primeiro
exemplo é João Miguel (1932) da escritora Rachel de Queiroz (1910 – 2003), uma ficção
psicológica sobre a vida em uma cadeia no interior do Nordeste e suas condições de
sobrevivência. Narra Rachel de Queiroz: “Empurraram João Miguel até a célula, donde vinha
um cheiro mau de morcego, de dejetos podres; o deixaram lá dentro, como um bicho
encurralado” (QUEIROZ, 2000, p. 8).
A obra da intelectual cearense mistura um pouco de fatalismo, de acaso (VILLAÇA in
QUEIROZ, 2000) para criar a atmosfera de um sistema injusto, mas depois encontrar certo
alento para a tensão de sua condição. Obra espacialmente carcerária, Rachel realizou em sua
literatura a representação do homem preso e sua peculiar sobrevivência.
Outro escritor foi José Lins do Rego (1901 – 1957), que surge representando a região
canavieira da Paraíba e de Pernambuco em um período de transição do engenho para a usina,
construindo o que denominou de “ciclo da cana-de-açúcar” (BOSI, 2012, p. 424). A
representação da prisão nesta temática regional construiu-se em Usina (1936), último livro
deste ciclo que retoma o protagonismo do personagem Ricardo após a experiência de O
Moleque Ricardo (1935).
A construção de um Ricardo migrante, estrangeiro, é também fruto da identificação do
personagem com o espaço carcerário da ilha-presídio que, por fatores alheios à sua vontade, se
tornou o lugar de identidade da nova fase do antigo moleque. Contudo, Usina é o fim de um
ciclo muito maior e que também se utilizou da prisão como ferramenta para a construção da
tensão crítica recorrente à sua geração (BOSI, 2012, p. 419).
Mas é com o escritor alagoano Graciliano Ramos (1892 – 1953) que o cárcere encontra
o laço marcante entre experiência e literatura dessa época. Primeiro vamos aos fatos: Graciliano
Ramos foi preso em Maceió, no dia 3 de março de 1936, e foi liberado de Ilha Grande, no estado
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da Guanabara, somente no dia 13 de janeiro de 1937. De maneira kafkiana embarcaram-no
primeiro para Recife e depois seguiu no porão do navio Manaus, para o Rio de Janeiro.
Permaneceu na Casa de Detenção junto a presos políticos e na Ilha Grande junto a presos
comuns, até ser libertado (MIRANDA in RAMOS, 2008, p. 681). Era uma das mais
importantes figuras presas pelo Regime Vargas, e fora encarcerado sem nunca receber uma
denúncia formal, supondo-se que seria por sua forte identificação com o pensamento
comunista, o que na época representava motivo suficiente para vigiar e punir um cidadão sem
grande consideração aos princípios jurídicos vigentes (FAUSTO, 2010, p. 362). Durante o
período em que esteve preso, Graciliano chegou a fazer apontamentos obtidos em largos dias e
meses de observação, mas num momento de aperto foi obrigado a atirá-los na água (RAMOS,
2008, p. 14).
“Isto nos leva a pensar numa das suas qualidades fundamentais: respeito pela
observação e amor à verdade. Como escritor, era compelido por força
invencível a registrar os frutos da observação segundo os princípios da
verdade. Apesar de toda a severidade para com a própria obra e pavor vaidoso
de lança-la à publicidade, não pôde deixar de escrever, estilizar ou, mais tarde,
registrar o que via. No tremendo porão do navio, na cela, na colônia
correcional, quando o horror ou o tédio da situação o levavam ao jejum, à
repulsa do mundo, vai anotando a sua experiência febrilmente, sem parar. Era
uma vocação imperiosa, vencendo peia, timidez, pudor, desconfiança,
tornando-o um „servidor da vida‟, no sentido de que esta o estimulava e
perturbava, nele e fora dele, obrigando-o a lhe dar categoria de arte.”
(CANDIDO, 2006, p. 81-82).
Somente depois de passados dez anos da experiência de ter sido preso é que Graciliano
retomou a questão, com o distanciamento necessário para que a representação da memória
pudesse construir “uma verdade convencional e aparente, uma verdade expressa de relance nas
fisionomias” (RAMOS, 2008, p. 15). O resultado dessa lembrança é a obra póstuma e
incompleta Memórias do cárcere (1953), de extensão peculiar para o sintético escritor. O livro,
narrado a desgosto em primeira pessoa (RAMOS, 2008, p. 15), utiliza de malabarismos para
que o autor se identifique em "uma fala emudecida que se vê postulada como linguagem do
outro” (MIRANDA, 2000, p. 50), permitindo que a representação seja construída sem que
precise corresponder com a percepção real do vivenciado (BAKHTIN, 2011, p. 35). A escrita
de testemunho de Graciliano Ramos, desenvolvida a partir do seu mergulho nos subterrâneos
sociais, relativiza a realidade objetiva, situando-se na interseção de memória e engajamento;
ficção e historiografia (BOSI, 2008, p. 221). Ademais, antes mesmo da publicação de suas
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memórias sobre a experiência na prisão, o escritor alagoano já havia revivido de algum modo a
experiência de ser jogado para as trevas do cárcere (RAMOS, 2000, p. 30) em Vidas Secas
(1938), quando narra a prisão do personagem Fabiano no capítulo Cadeia. O cárcere, para
Graciliano, era um dos pontos chave da tensão que a escrita criava entre sociedade e indivíduo.
2.3. Censura e Regime Militar
Durante o período do regime militar brasileiro (1964 – 1985), órgãos de censura foram
instalados e uma repressão contra ideias revolucionárias virou ordem no país. Até mesmo
universidades, como a UNE, “criada com propósitos renovadores” (FAUSTO, 2010, p. 647),
foram consideradas subversivas pelos militares.
Nessa época houve o exílio de grande parte da intelectualidade política e artística do
Brasil. Fora do país, Chico, Caetano, Ferreira Gullar, dentre outros, escreveram suas canções e
poesias sobre os desalentos da vida de estrangeiro. Não podendo ser diferente, a Literatura de
Cárcere também encontrou seus vozes em meio a esta repressão generalizada. Livres do
silêncio da censura militar, os intelectuais da época produziram textos que ajudaram a delatar as
estratégias de tortura empregadas nos anos de chumbo. Livros como Cartas da prisão (1971) de
Frei Betto (1944), Igreja no cárcere: diário e reflexões de um sacerdote nos porões do DOPS
do padre José Eduardo Augusti e O que é isso companheiro? (1984) de Fernando Gabeira
(1941) são alguns dos diversos exemplos de obras que discorrem, no todo ou em capítulos, as
experiências nos porões dos presídios controlados pelo governo da época. Nesse sentido,
Gabeira intitula o capítulo que narra os tempos de cadeia como o lugar “onde filho chora e a
mãe não ouve”.
3. A LITERATURA DE CÁRCERE NO CONTEMPORÂNEO
Partindo das etapas anteriores, este estudo se prende agora a alguns questionamentos:
Por onde caminha a Literatura de Cárcere no cenário nacional? Por que este discurso
marginalizou-se justo no atual período democrático? Seria o cárcere um tema contemporâneo?
Sabendo da importância e da fugacidade de um momento histórico, o contemporâneo
precisa ser encontrado entre o passado que o precede e o passado que se tornará. O seu presente
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é a chave para a busca. Nesse sentido, iniciemos o conceito pela busca vernacular: o dicionário
Aurélio define o contemporâneo como: “Que é do mesmo tempo, que vive na mesma época
(particularmente da época em que vivemos); [...] “indivíduo do mesmo tempo ou do nosso
tempo” (1993, p. 142). A partir deste sentido pode-se destacar o contemporâneo como um
momento que existe em relação a um marco referencial de um determinado espaço e tempo.
Partindo de uma delimitação histórico-política, o contemporâneo deste ensaio é definido a
partir da atualidade democrática brasileira, entendida entre a promulgação da Constituição
Federal de 1988 e o corrente ano de 2015.
A democracia é uma forma de governo representativo que tem um “efeito tonificante da
liberdade”, de acordo com o filósofo John Stuart Mill (apud MACKENZIE, 2011, p. 118), ou
seja, uma forma que estimula a liberdade de opinião e a representação política perante a
sociedade. A origem da palavra democracia é grega: “Demos”, que significa povo, e “Kratos”,
que significa poder. Portanto, o governo “pelo povo”, e não somente “do povo”, para que não
haja uma versão distorcida do que é “melhor para o povo” (MACKENZIE, 2011, p. 111). Com
o advento da atual era democrática criou-se a ilusão da liberdade de expressão, Direito este
normatizado na Constituição Federal de 19882
, como se o princípio fosse pleno. O
constitucionalista Pinto Ferreira faz uma análise jurídica desta garantia:
“O Estado democrático defende o conteúdo essencial da manifestação da
liberdade, que é assegurado tanto sob o aspecto positivo, ou seja, proteção da
exteriorização da opinião, como sob o aspecto negativo, referente à proibição
da censura” (apud MORAES, 2008, p. 45).
Entretanto, conceder a liberdade de exteriorizar opiniões não significa que estas
opiniões terão uma projeção democrática3. A Literatura de Cárcere brasileira encontra-se
emudecida nesta forma de governo que, em teoria, possibilitaria a liberdade e a participação
popular. Há uma produção literária de pouca repercussão que traduz o atual sistema prisional
por quem viveu a experiência, como as obras de Luiz Alberto Mendes, Hosmany Ramos e
André du Rap, autores à margem das publicações destacadas. Érica Peçanha do Nascimento,
em sua obra intitulada Vozes marginais na literatura, define marginal:
2 A chamada Liberdade de pensamento está prevista no art. 5º, inciso IV, e art. 220, § 2º, da Constituição da
República Federativa do Brasil. 3 Dados investigados pelo grupo Wikileaks demonstram que 70% dos meios de comunicação no Brasil estão
concentrados nas mãos de apenas seis famílias. Para maiores informações ver: http://blogs.estadao.com.br/jamil-chade/2013/02/02/entrevista-com-assange-e-bom-que-os-governos-tenham-me
do-das-pessoas/?doing_wp_cron=1360170683.4785699844360351562500. Acessado em 1º de agosto de 2014.
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[...] marginal adjetiva aqueles que estão em condição de marginalidade em
relação à lei ou à sociedade e possui, portanto, sentido ambivalente: assim
como se refere, juridicamente, ao indivíduo delinquente, indolente ou
perigoso, ligado ao mundo do crime e da violência; aplica-se
sociologicamente, aos sujeitos vitimados por processos de marginalização
social, como pobres, desempregados, migrantes ou membros de minorias
étnicas e raciais, e tem como sinônimo o adjetivo marginalizado (2009, p. 36).
O cárcere já é um objeto marginal por si próprio. A estranheza desta condição na
democracia contemporânea se deve à sua nova forma de isolamento. Calado em um mundo
subterrâneo, a pena de prisão tornou-se uma arte de punir incontestável na atual política. Para
Foucault, em Vigiar e punir, “a generalidade carcerária, funcionando em toda a amplitude do
corpo social e misturando incessantemente a arte de retificar com o direito de punir, baixa o
nível a partir do qual se torna natural e aceitável ser punido” (2009, p. 287).
É sintomático constatar que a Literatura de Cárcere de maior relevância no cenário
nacional dos últimos anos é Estação Carandiru do médico Drauzio Varella, narrativa
construída a partir da visão de um profissional da saúde sobre o sistema penitenciário de São
Paulo, mas que nunca sofreu no corpo o castigo de um condenado. Para que o discurso do
cárcere se tornasse um produto de consumo era preciso sofrer um deslocamento: sair das mãos
dos condenados e passar ao domínio de um escritor que atende aos requisitos exigidos pela
indústria cultural da atualidade.
Max Horkheimer e Theodor Adorno na obra A indústria cultural (1947), propuseram
que a indústria cultural é um instrumento dopante e conformista utilizado pelos meios de
comunicação. O controle exercido por esta indústria é promovido por programas de
entretenimento (ou amusements, como denominavam os filósofos) que, de maneira
sub-reptícia, validam suas opiniões através da alienação das massas. Um discurso que prega aos
espectadores uma condição de vida ascética e de rápido consumo, propagadora da ideia de que
uma existência desumana pode ser tolerada (ADORNO, 2000, p. 200). Adaptar-se a esta nova
relação não se torna uma questão de escolha, mas de imposição para a inclusão social. “Quem
não se adapta é massacrado pela impotência econômica que se prolonga na impotência
espiritual do isolado. Excluído da indústria é fácil convencê-lo de sua insuficiência”
(ADORNO, 2000, p. 181).
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Esta perspectiva deixa evidente o deslocamento do objeto-cárcere para a marginalidade
neste processo de alienação violenta ou de violência alienante proposto pelo amusement.
Horkheimer e Adorno vão além:
O prazer congela-se no enfado, pois que, para permanecer prazer, não deve
exigir esforço algum, daí que deva caminhar estritamente no âmbito das
associações habituais. O espectador não deve trabalhar com a própria cabeça
[...]. Toda conexão lógica que exija alento intelectual é escrupulosamente
evitada (2000, p. 185).
A explosão de banalidades democráticas no entretenimento operante reflete a
impossibilidade do surgimento de vaga-lumes, imagem proposta por Didi-Huberman em sua
leitura sobre a obra Pasolini, no estudo Sobrevivência dos vaga-lumes. Em consonância a esta
imagem, o excesso de claridade dos meios de comunicação ofuscam tanto a escuridão quanto os
vaga-lumes, tornando-os incapazes de iluminar e revelar as trevas esquecidas pelo superficial
divertimento. Esta é a condição imposta pela “ofuscante claridade dos „ferozes‟ projetores:
projetores dos mirantes, dos shows dos políticos, dos estádios de futebol, dos palcos de
televisão” (2011, p. 30).
O protesto de Pasolini, em seu texto sobre os vaga-lumes, mistura
inextricavelmente os aspectos estéticos, políticos e até mesmo econômicos
desse „vazio do poder‟ que ele observa na sociedade contemporânea, esse
poder superexposto do vazio e da indiferença transformados em mercadoria
(2011, p. 31).
No entanto, diferentemente da presente realidade de indiferença da população sobre o
sistema penal, houve épocas de explosões da Literatura de Cárcere, como nos períodos citados
no capítulo anterior 4 . A curiosidade ao apontar estas produções literárias de períodos
autoritários distintos – seja no Brasil Colônia, na Era Vargas, ou na Ditadura Militar – reside no
fato de que os escritores que produziram este gênero do discurso literário eram sempre advindos
de uma elite cultural, uma elite capaz de expressar e reverberar suas experiências através dos
meios de comunicação de suas respectivas épocas. Mais do que isso, estes artistas contavam
com uma identificação econômico-social da crítica especializada e das classes sociais elevadas.
Mas, com o declínio da Ditadura Militar (1979), os últimos presos considerados “políticos”
4 Em tempo, cabe aqui elucidar que o presente trabalho não pretende comparar a qualidade ou a estética das
Literaturas do passado com as escritas do presente. Trata-se de perceber que, em tempos democráticos, não
interessa mais a experiência do preso, não é pertinente o discurso do encarcerado.
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receberam a justa anistia, porém condenando a Literatura de Cárcere a um silêncio de anos.
Com o fim dos delitos políticos, toda uma classe intelectual deixou as celas, restando apenas a
população carcerária constituída pelos popularmente apelidados de “criminosos comuns”.
Destituído o governo das Forças Armadas e conquistada a tão esperada liberdade de expressão,
a política brasileira, enfim, realizou-se como uma República democrática, apesar da crônica
desigualdade social estimulada pela consagração do capitalismo com a queda do muro de
Berlim (1989). O novo governo brasileiro, que se apoiou na globalização e no liberalismo
econômico da década de noventa, se viu diante de um crônico cenário de miséria e de uma
dívida internacional impagável, como em toda a América Latina dominada pelas ditaduras que
se mantinham no poder através de apoios financeiros internacionais. Meio a esta transformação
social e econômica, foi preciso adotar uma estratégia de controle para a gestão da miséria
interna: “punir os pobres” para regular-se economicamente. O sociólogo francês Loïc
Wacquant elucida esta política:
[...] desenvolver o Estado penal para responder às desordens suscitadas pela
desregulamentação da economia, pela dessocialização do trabalho assalariado
e pela pauperização relativa e absoluta de amplos contingentes do proletariado
urbano, aumentando os meios, a amplitude e a intensidade da intervenção do
aparelho policial e judiciário, equivale a (r)estabelecer uma verdadeira
“ditadura sobre os pobres” (2001, p. 10).
A penalização da pobreza não é fato novo na era moderna. De acordo com os penalistas
alemães Rusche e Kirchheimer, na obra Punição e estrutura social, publicada na Alemanha de
1939, os métodos de punição sofreram uma mudança gradual e profunda em fins do século
XVI, que “não resultaram de considerações humanitárias, mas de um certo desenvolvimento
econômico que revelava o valor potencial de uma massa de material humano completamente à
disposição das autoridades” (2004, p. 43). O surgimento de grandes centros urbanos criou uma
demanda crescente por bens de consumo. A necessidade de mão-de-obra para a produtividade
do trabalho obrigou as classes proprietárias a apelarem ao Estado para garantir o capital e a
ordem social. Apoiada na “Ética protestante e o „espírito‟ do capitalismo”, como escreveu Max
Weber, a burguesia empresarial se viu amparada por deus para seguir com seus interesses
pecuniários e transformar a mendicância em delito, fazendo com que as prisões se tornassem
uma reserva de material humano para o crescente mercado. Neste jogo de poder, as autoridades
financiavam a construção de novas prisões com impostos e doações, instaurando sua “punição e
estrutura social” no sistema capitalista moderno (RUSCHE e KIRCHHEIMER, 2004, p. 43 –
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82). De acordo com Michel Foucault, “nessa linha, Rusche e Kirchheimer estabeleceram a
relação entre os vários regimes punitivos e os sistemas de produção em que se efetuam” (2009,
p. 28).
Reconduzindo deste ponto de vista histórico ao presente momento, a penalização da
pobreza na democracia contemporânea surge como solução política para que esta forma de
governo pudesse ser plenamente realizada, desta vez sem a incômoda presença de presos
advindos das elites culturais que já haviam conquistado sua liberdade. Apoiada pelo discurso
democrático, a vigente República Federativa do Brasil conseguiu, finalmente, transformar a
prisão em uma ferramenta inquestionável de punição. Com a aprovação popular e um consenso
sobre a periculosidade dos crimes, os presos foram isolados em um vazio de vozes
ensurdecedor. Esta posição fundamental é demonstrada por Foucault: “Levado pela
onipresença dos dispositivos de disciplina, apoiando-se em todas as aparelhagens carcerárias,
este poder se tornou uma das funções mais importantes de nossa sociedade” (2009, p. 288). Em
suma, a democracia contemporânea conseguiu o paradoxo de pregar liberdades e igualdades e
alcançar, com este disfarce, um estratégico consenso da opinião popular. Essa grande
organização carcerária reúne todos os dispositivos disciplinares que funcionam disseminados
na sociedade (FOUCAULT, 2009, p. 283). Mesmo sem viver em uma democracia, o iluminista
Cesare Beccaria já havia denunciando no ano de 1764, em sua obra Dos delitos e das penas,
esta estratégia de convencimento:
[...] em alguns governos que têm toda a aparência de liberdade, a tirania se
esconde ou se introduz, despercebida, em algum canto descuidado pelo
legislador, ali tomando força e engrandecendo. Os homens erguem, na
maioria das vezes, os diques mais sólidos à tirania aberta, mas não enxergam o
inseto imperceptível que os corrói, abrindo ao rio avassalador um caminho
tanto mais seguro quanto mais oculto (2005, p. 81 – 82).
O corrosivo progresso desta incontestável política criminal se multiplicou com o passar
dos anos, gerando superpopulações carcerárias em verdadeiras “cidades penitenciárias”, como
descreve o livro Estação Carandiru do médico Drauzio Varella:
A detenção tem mais gente do que muita cidade. São mais de 7 mil homens, o
dobro ou o triplo do número previsto nos anos 50, quando foram construídos
os pavilhões. Nas piores fases, o presídio chegou a conter 9 mil homens
(VARELLA, 1999, p. 16).
Ou como diz a poesia de Jocenir:
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Aqui tem mano de Osasco, do Jardim D'Abril, Parelheiros, Mogi, Jardim
Brasil, Bela Vista, Jardim Ângela,
Heliópolis, Itapevi, Paraisópolis.
Ladrão sangue bom tem moral na quebrada.
Mas pro Estado é só um número, mais nada.
Nove pavilhões, sete mil homens (JOCENIR, 2001)
Para que a argumentação torne-se palpável, alguns números se tornam imperiosos: de
acordo com dados do corrente ano de 2014 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a população
carcerária no Brasil alcançou a marca de 715.655 presos para 210 mil vagas no sistema. Se for
levado em consideração os mandados de prisão que estão em aberto, a cifra chega a 1.089.646
de pessoas. Estes números demonstram que hoje o Brasil ocupa a terceira posição no ranking de
países com maior população carcerária, atrás apenas dos Estados Unidos (1º) e China (2º)5.
Aprofundando esta análise, de acordo com dados do DEPEN (Departamento Penitenciário
Nacional) e do InfoPen (Sistema Integrado de Informações Penitenciárias) recolhidos no ano de
2012, cerca de 63% dos presos possuem, no máximo, Ensino Fundamental incompleto. Além
disso, 57,47% dos encarcerados são negros ou pardos, enquanto brancos representam um total
de 33,76%6.
No cenário contemporâneo restaram os excluídos de sempre, como precisamente define
o título da série americana, Orange is the new black7 (2013), ou como escreveu Marcelo Yuka
em uma de suas várias letras políticas, “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”
(1994). A atual política criminal nacional, aprendendo inevitavelmente com os erros do
passado, opera em mundo capitalista-globalizado que se legitima através de um perigoso e
incontestável discurso democrático que pune somente os descendentes sociais do passado
histórico de exploração no país. Ao refinar sua seletividade, o sistema penal coage, com seu
aparato policial e jurídico, uma classe sem voz, em uma reprodução particular da política
estadunidense de punição liberal-democrática. Loïc Wacquant reflete:
A penalização da pobreza relembra assim, a todos e enfaticamente, que, pelo
simples fato de existir, a pobreza já constitui um atentado intolerável contra
este “estado forte e definido de consciência coletiva” nacional, que concebe a
5 Ver a página
http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=28746%3Acnj-divulga-dados-sobre-no
va-populacao-carceraria-brasileira&catid=223%3Acnj&Itemid=4640. Acessado em 1º de agosto de 2014. 6 Para maiores informações consultar o site http://ghlb.files.wordpress.com/2013/04/c2a0estastc3adsticas.pdf.
Acessado em 1º de agosto de 2014. 7 A cor laranja é uma referência aos uniformes usados pelos detentos nos Estados Unidos.
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América como uma sociedade afluente e que oferece “oportunidade para
todos” (2007, p. 42).
O Brasil democrático inverte valores, satisfazendo-se com a tentação positivista
representada pelo aumento nas estatísticas de presos e “autos de resistência” em operações
policiais. Esta postura de indiferença aos princípios da dignidade da pessoa humana é
estimulada pelo autoritarismo dos meios de comunicação e o seu devido espaço publicitário,
que transmitem uma possibilidade de consumo rápido e alienação confortável. Em consonância
demonstra Zaffaroni, revelando a alienação estimulada pelas publicidades superficiais:
Este novo autoritarismo [...] se propaga a partir de um aparato publicitário que
se move por si mesmo, que ganhou autonomia e se tornou autista, impondo
uma propaganda puramente emocional que proíbe denunciar e que, ademais –
e fundamentalmente -, só pode ser caracterizado pela expressão que esses
mesmos meios difundem e que indica, entre os mais jovens, o superficial, o
que está na moda e se usa displicentemente: é cool. É cool porque não é
assumido como uma convicção profunda, mas sim como uma moda, à qual é
preciso aderir para não ser estigmatizado como antiquado ou fora de lugar e
para não perder espaço publicitário (2007, p. 69).
A alienação política e intelectual somada aos discursos de poder das últimas décadas
disfarçaram a propagação fascista em propagandas democráticas, reinventando seu exercício
punitivo. Em Sobrevivência dos vaga-lumes, Georges Didi-Huberman, sobre a obra de
Pasolini, destaca a insurgência de um “fascismo radicalmente, totalmente e imprevisivelmente
novo” (2011, p. 26), em um processo de “violência” e “genocídio cultural”, como descritos
abaixo:
I – A violência:
“A primeira fase do processo foi marcada pela „violência policial (e) o desprezo pela
constituição‟, tudo isso mergulhado num „atroz, estúpido e repressivo conformismo de
Estado‟” (HUBERMAN, 2011, p. 26). A violência se torna uma prática natural, amparada por
discursos de exclusão que elegem inimigos públicos sem contestações. O preso tem o seu
devido lugar na sociedade de liberdades. É como se a condição de condenado fosse uma escolha
entre tantas outras oportunidades. O jurista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni coaduna com a
ideia de que o amálgama de conformismo e ilusão anestesiou a sensibilidade do homem à
alteridade.
[...] vende-se a ilusão de que se obterá mais segurança urbana contra o delito
comum sancionando leis que reprimam acima de qualquer medida os raros
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vulneráveis e marginalizados tomados individualmente (amiúde são débeis
mentais) e aumentando a arbitrariedade policial, legitimando direta ou
indiretamente todo gênero de violência, inclusive contra quem contesta o
discurso publicitário (ZAFFARONI, 2007, p. 75).
II – O genocídio cultural:
Para que o processo se torne completo faz-se necessário o “genocídio cultural”. Nas
próprias palavras de Pasolini:
O verdadeiro fascismo [...] é aquele que tem por alvo os valores, as almas, as
linguagens, os gestos, os corpos do povo. É aquele que „conduz, sem carrascos
nem execuções em massa, à supressões de grandes porções da própria
sociedade, e é por isso que é preciso chamar de genocídio „essa assimilação
(total) ao modo e à qualidade de vida da burguesia (apud HUBERMAN, 2011,
p. 29).
O atual fascismo, potencializado pelos meios de comunicação, suprimiu a vontade
política dos cidadãos com a virtual possibilidade de uma plena vida burguesa. Para o filósofo
alemão Walter Benjamin, no ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”
(1935/1936), “sua autoalienação atingiu o ponto que lhe permite viver sua própria destruição
como um prazer estético de primeira ordem. Eis a estetização da política, como a pratica o
fascismo” (2012, p. 212). E segue em sua reflexão:
O fascismo tenta organizar as massas proletárias recém-surgidas sem alterar
as relações de produção e propriedade que tais massas tendem a abolir. Ele vê
sua salvação no fato de permitir às massas a expressão de sua natureza, mas
certamente não a dos seus direitos (2012, p. 209).
Na obra Punição e estrutura social, os criminalistas Georg Rusche e Otto Kirchheimer
revelam uma política penal fascista de sua época (1939) que se reproduz nos discursos da
atualidade:
Um dado significativo da atual política econômica alemã é a necessidade de
manter baixo o nível de vida das camadas subalternas, para facilitar a
aceitação desse programa para as massas, faz-se um esforço considerável para
cultivar a distinção moral entre aqueles que são pobres, mas honestos, e o
extrato que se torna criminoso. Às massas são oferecidos os infortúnios de
alguns em contrapartida a uma melhora geral em suas condições materiais e
felicidades para todos (2004, p. 247).
A violência e o genocídio cultural impossibilitaram o aparecimento de novos
criminosos políticos como nos períodos ditatoriais. A democracia criminalizou o preso de outro
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modo, como um comum que não revela o instinto político de sua ação. O criminoso como um
revolucionário em potencial foi soterrado por uma maioria democrática. É como se os
condenados do contemporâneo não questionassem a propriedade privada, não reclamassem por
igualdade, não resistissem pela escrita. Assim, pode-se perceber que se há diferença entre os
presos de hoje e os dos tempos ditatoriais talvez esta diferença esteja enraizada em uma
estratégia política de exclusão. A atual produção literária mergulha no espaço, no tempo e na
memória para resistir e sobreviver à sua época, como fez Graciliano Ramos ou Tomás Antônio
Gonzaga em seus tempos.
Esgarçando a proposta inaugural do conceito de contemporâneo pode-se ler a Literatura
de Cárcere da atualidade como contemporânea às Literaturas de Cárcere do passado, como
propõe Giorgio Agamben no ensaio O que é contemporâneo? “Pertence verdadeiramente ao
seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este,
nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual” (AGAMBEN, 2009,
p. 58). O filósofo italiano propõe uma redefiniçao do contemporâneo a partir de
questionamentos inicias: “De quem e do que somos contemporâneos? E, antes de tudo, o que
significa ser contemporâneo? ” (2009, p. 57). Para ele, ser contemporâneo não se define apenas
no agora, mas também em um “rechamamento”, uma revitalização daquilo que tinha até mesmo
declarado morto. Utilizando da estratégia de dissociação com seu tempo, sem com isso negá-lo,
o escritor pode tornar seu texto contemporâneo para além do presente:
A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com o próprio tempo,
que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais precisamente,
essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e um
anacronismo (AGAMBEN, 2010, p. 59).
Para Agamben, como significa a palavra russa vek, a relação temporal é reflexo de uma
época ou século (AGAMBEN, 2009, p. 59). E é na fratura da vértebra do tempo ou dos séculos,
de modo a não coincidir plenamente com eles, em uma identificação anacrônica, que se pode
olhar nos olhos do contemporâneo, como diz o poema O século de Osip Mandel‟stӑm, citado
por Agamben. Ainda com Agamben: “O poeta, enquanto contemporâneo, é essa fratura, é
aquilo que impede o tempo de compor-se e, ao mesmo tempo, o sangue que deve suturar a
quebra” (AGAMBEN, 2010, p. 61). Escrever sobre o cárcere da atualidade é ser um vaga-lume
entre seus contemporâneos deste gênero do discurso que sutura a história das prisões ao longo
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dos séculos. O homem encarcerado é desafiado a enxergar luzes furtivas em um facho de trevas
que provém do seu tempo:
[...] contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele
perceber não as luzes, mas o escuro. [...] Contemporâneo é, justamente, aquele
que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena
nas trevas do presente (AGAMBEN, 2010, p. 62-63).
Neste emaranhado de um tempo vivo, irrecuperável, o contemporâneo pode representar
uma perspectiva autônoma em relação ao discurso histórico oficial. A perspectiva literária é
fundamental para a transformação. Para Agamben:
[...] é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de
transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de
modo inédito a história, de citá-la segundo uma necessidade que não provém
de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ela não
pode responder (2010, p. 72).
Assim, deslocar as narrativas das prisões na atualidade para outros tempos históricos
significa enlaçar os emaranhados deste ensaio: toda escrita sobre as prisões é contemporânea.
Pois não importa o lugar, não importa o tempo ou o crime, narrar o cárcere através da palavra
escrita é construir uma Literatura política.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A estrutura do trabalho em uma cronologia de âmbito nacional serviu para demonstrar
os diversos registros da Literatura de Cárcere pelo passar dos séculos e dos sistemas políticos,
fornecendo uma coleção de obras que compõem um discurso literário de características
profundamente marcantes. As obras emprestadas a este estudo revelaram que a potência ou
ausência de obras em um determinado período pode revelar estratégias de poder para o controle
social.
De tudo, nada mais resta a concluir. Resta apenas encerrar estas linhas e deixar o
caminho aberto para novas leituras. A ideia do estudo foi somente a exposição de um ponto de
vista sobre um periscópio de possiblidades de entradas nesta Literatura tão profunda. A
conclusão deste trabalho não é o encerramento de um objeto que se pretende livre. O estudo se
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fecha, mas o discurso não se tranca, é amplo e deve ser objeto de variadas interpretações para
que seu passado histórico não silencie, sua arte não se apague, seu protesto não seja vão.
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Niterói: PPGSD-UFF, 14 a 16 de Outubro de 2015, ISSN 2236-9651, n.5, v.7
PROFISSÃO PASSISTA: ARTE, CULTURA, TRABALHO E TRADIÇÃO.DUARTE, Silvia Valeria Borges,SOUZA,
Marcelino Conti de
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PROFISSÃO PASSISTA: ARTE, CULTURA, TRABALHO E
TRADIÇÃO.
DUARTE, Silvia Valeria Borges
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade
Federal Fluminense
SOUZA, Marcelino Conti de
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Fluminense
RESUMO Este artigo aborda algumas mudanças verificadas na atuação dos passistas de escola de samba a
partir do fenômeno midiático da espetacularização do carnaval. Em meio a uma grave
econômica enfrentada pelo país, tal fenômeno oportunizou o desenvolvimento de uma carreira
artístico- profissional. Num instável mercado de trabalho, atuam, ora como bailarinos,ora como
coreógrafos, coordenadores de alas e até promotores de eventos. Entretanto, persiste um dilema
entre a tradição e a profissionalização, tanto no atuar como naforma de transmitir o
conhecimento dessa dança. Pretendo tratar neste artigo sobre quem são os passistas na
organização dos grêmios recreativos carnavalescos, como se transmite o conhecimento da dança
do samba, como se dá a formação de um passista e quais as possíveis formas de atuação
profissional desse sambista.
Palavras-chave: Escola de samba – Arte – Profissionalização
INTRODUÇÃO
Duranteséculos a acepção do trabalho foi de sofrimento,sua etimologia remete ao termo
em latim tripaliare, que quer dizer “martirizar com o tripalium”, um instrumento
detortura. Anossa percepção atual do mundo do trabalhose apresenta distintodesua
origem, apesar de encontramos váriassituaçõesem que o étimo ainda prevalece.
No último século assistimos mudanças significativas nas relações laborais,na
intervençãoestatal nestas relações,quesaiu da omissão total passando poruma
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regulamentação forte deproteção ao trabalhador, paraagorarelativizar o seu papelnessa
relação, permitindo mudanças da legislação trabalhista.
A intersecção entre o“mundo do samba” e o “mundo do trabalho”sempre
apresentou uma conjectura de menor intervenção do Estado no que se refere às relações
laborais,contribuindo para isso as profissõesnão regulamentadas eos regimes
decontratação de mão de obra precarizados, o que antecipou desta forma a “arte de
fazer”1 de uma recente flexibilização do Direito do Trabalho.
Ter trabalho no mundo do samba significa ter dedesempenhar inúmeras funções
em diversos postos nos bastidores do espetáculo carnaval. Se o ápice desteshow se dá
no momento do desfile, para o sambista de verdade o carnaval dura o ano inteiro.
Nos barracões das escolas de samba, profissões como ferreiro, carpinteiro e costureira,
aderecistas e decoradores, são conhecidas e seus postos de trabalhos “permanentes”; em
contrapartida, outras atividades não são,ainda, plenamente reconhecidas como
profissões, como no caso dosritmistas,passista e até recentemente mestre sala e porta
bandeira.
Neste artigotrataremos sobre quem são, como se transmite o conhecimento da
dança do samba, como se dá a formação de um passista e quais as possíveis formas de
atuação profissional desse sambista, como foram alcançados pela flexibilização dos
direitos do trabalho,aplicada neste trabalho como as mudanças da legislação trabalhista
que tem como base a discricionariedade dos atores sociais sob a aplicação dos
dispositivos legais, relativizando o seu significado e a consequente redução de sua
aplicação.
Considerando o passista como agente de uma pratica cultural com grande diversidade de
conhecimentos, proponho pensar as questões que aqui abordarei a partir de uma
perspectiva epistemológica plural e dinâmica, como é o próprio samba, trazendo à roda2
1 Michel Certeau chama de “artes de fazer”, “astúcias sutis”, “táticas de resistência” que vão alterando os
objetos e os códigos, e estabelecendo uma (re)apropriação do espaço e do uso ao jeito de cada um. Ele
acredita nas possibilidades de a multidão anônima abrir o próprio caminho no uso dos produtos impostos
pelas políticas culturais, numa liberdade em que cada um procura viver, do melhor modo possível, a
ordem social e a violência das coisas. 2 Roda se samba, roda de passista, ritual de encontro de sambistas para fazer o samba em suas diferentes
formas de expressão artística, cultural e religiosa. Forma comum presente nas culturas da diáspora
africana, lugar de criatividade e improviso.
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o conhecimento dos passistas, de pesquisadores e de autores dos campos das ciências
sociais e jurídicas.
Escolhemos passistas do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, Grêmio
Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira e Grêmio Recreativo
Escola de Samba Acadêmicos do Grande Rio por já terem sido essas escolas locais de
observação para pesquisas anteriores e por serem os entrevistados sambistas
importantes nessas escolas e no mundo samba.
Nilce Fran e Valci Pelé são professores de dança do samba e fundadores do Instituto de
Cultura e Cidadania Primeiro Passo (ICCPP), coordenam a ala de passistas do GRES
Portela, promovem eventos eatuam como passistas-show;Almir Romeroé professor de
dança do samba e passista-show, vive há dezoito anos em Londres; Fábio Batista é
dançarino e coreógrafo; Celyho Show é passista-show, promotor de eventos e
recepcionista do Clube de Oficiais da Aeronáutica; Serginho Sambista é passista-show.
Pensar a arte como ação coletiva é um caminho teórico por nós escolhido para a
compreensão das tensões entre a genialidade criativa e individual de cada passista,sua
inserção e existência no grupo maior que é ala e sua circulação no mundo
profissional/artístico de múltiplas rotas das escolas de samba (BACKER,1997).
Na década de 1980, autores como Lopes (1981) e Rodrigues (1984) viram na
informalidade dessas carreiras, o resultado da apropriação cultural por elementos
estranhos a cultura do samba que vieram a ocupar posição de dirigentes e diretores das
agremiações. Atualmente, pensar a profissionalização do passista requer a compreensão
de uma singular rede de cooperação que visa constituir o mundo carnavalesco da arte,
especifico das escolas de samba, mas não restrito a elas; e para essa melhor
compreensão, lancei mão das pesquisas de Santos (2009) e Gonçalves (2010),
respectivamente, sobre carnavalescos e casais de mestres-salas e porta-bandeiras. Esses
autores destacam a mediação e as redes de sociabilidade como fatores favoráveis a
profissionalização do sambista.
“O abre alas (no mundo do trabalho) que eu quero passar”.
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Magano (1991) atribui ao Direito do Trabalhouma definição mista: “conjunto de
princípios, normas e instituições, aplicáveis à relação de trabalho e situações
equiparáveis, tendo em vista a melhoria da condição social do trabalhador, através de
medidas protetoras e da modificação das estruturas sociais” .
Em particular odireito do trabalhobrasileironasceu em uma época de
prosperidade econômica ede estabilidade das relações jurídicas,permitindoa elaboração
de umalegislação exaustiva edetalhada dascondições de trabalhoa fim de contemplar
asolução dos conflitosregulamentando asrelações de trabalho com forte intervenção do
Estado.
O período pós abolição até a década de 30, considerado o primeiro período do
Direito do Trabalho no Brasil, caracterizou-se por relações trabalhistas incipientes com
relevante uso de mão de obra de imigrantes assalariados no setor agrícola ena emergente
industrilização do eixoRio-São Paulo. Após essa época, dá-se início ao período
principal de institucionalização do Direito do Trabalho, o estadopassa a intervir nas
relações trabalhistascom o intuito de darum equilíbrio nas relações laborais,a
política“populista”de Getulio Vargas justificavaasações paternalistas do Estado por se
considerar o empregado a parte frágil e menos favorecida e hipossuficiente na relação
de trabalho.
Nos dias atuais, estemodelo de Direito do Trabalho que garantia atutela dos
trabalhadores, tem sido apontado pelos economistas como umdos motivos para que o
mercado de trabalho venha diminuindo a cada ano, por causa de sua rigidez e seus
altos custos nas relações de trabalho. A legislação protetiva tem nos diasde hoje um
efeito colateral depromovero desemprego.
Váriossão os fatores que promovem o desemprego, o uso denovas tecnologias, a
globalização e os mercados livres promovem aextinção depostos de empregos,
promovendo o desemprego estrutural. As crises econômicasem suaface mais cruel é o
desemprego,e nestesmomentos, surgem com força a ideologia dominante do
liberalismo, propondo a desregulamentação do Direito Trabalhistacom suas
flexibilizações, terceirizações, racionalização de custos, competitividade, que numa
visão mais profunda potencializa a criseno mundo do trabalho.
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Os elementos caracterizadores da relação de trabalho - pessoalidade,
habitualidade, subordinação e onerosidade - estão presentes na atuação do passista de
escola de samba, sendo este último o mais inconsistente de todos. A palavra
flexibilização, definida como ato ou efeito de flexibilizar, tornar flexível, no campo do
Direito, além deste sentido etimológico,"flecto, flectis, flectere, flexi, flectum" (curvar,
dobrar, fletir), ganha um sentido, figurado: mudar de curso, mudar de posição, mudar
a situação(SILVA, 2002). “È o afastamento da rigidez de algumas leis para permitir,
diante de situações que o exijam, maior dispositividade das partes para alterar ou reduzir
os seus comandos” (NASCIMENTO, 2003).
No Direito do Trabalhoessaflexibilizaçãotem buscado aampliação da jornada
de trabalho, bem como a mobilidade interna dos empregados na distribuição dos
serviços; no âmbito salarial, visa a redução dos salários, determinados livremente pelo
nível de mercado; e, ainda, no âmbito da formalização do emprego, a estratégia de
viabilizar a demissão sem custos e a implementação da contratação por prazo fixo e da
subcontratação.
Tema Legislação Observações
Flexibilização
da alocação
do trabalho
Trabalho por tempo
determinado
Lei 9601/1998 Desvincula o contrato por prazo
determinado da natureza dos
serviços prestados
Denuncia da
convenção 158 da
OIT
Decreto
2100/1996
Elimina mecanismo de inibição de
demissão imotivada e reafirma a
possibilidade de demissão por justa
cauda
Cooperativas
profissionais ou de
prestação de serviços
Lei
8949/1994
Possibilita que trabalhadores se
organizem em cooperativa de
prestação de serviços, executem o
trabalho dentro de uma empresa,
sem caracterização de vinculo em
pregatício
Trabalho em tempo
parcial
MP 1709/1998 Jornada de até 25h semanais,
salários e outros direitos em
conformidade com a duração da
jornada, não prevê a participação do
sindicato na negociação
Suspensão do
contrato de trabalho
MP 1726/ 1998 Jornada de até 25h semanais,
salários e outros direitos em
conformidade com a duração da
jornada, não prevê a participação do
sindicato na negociação
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Trabalho temporário Portaria 2/1996 Amplia a possibilidade de
utulização da lei 6019/1974 de
contrato temporário
Setor público
demissão
Lei 9801/1999
e lei
complementar
96/1999
Disciplina limites das despesas com
pessoal e estabele o prazo de dois
anos pás as demissões por excesso
de pessoa. Regulamenta a demissão
de servidores públicos estáveis por
excesso de pessoal
Contrato
aprendizagem
Lei10097/2000 Permite a intermediação da Mao de
obra aprendiz
Trabalho estagio MP2164/1999
LEI 6494/1977
Amplia hipótesesdfe utilização do
estágio desvinculada da formação
acadêmica e profissionalizante
Flexibilização
da
remuneração
Participação nos
lucros e resultados
MP1029/1994
., Lei 10101 a
partir de
09/12/200, que
reproduza
MP198277/200
Viabiliza direito de trabalhadores
participarem de lucros e resultados,
através de nedociação,determinaque o
valor da remuneração em PLRnão
incide sobre encargos trabalhistas e não
e incorporado ao salário, introduz a
possibilidade de mediação e
arbitragem publica ou privada, define
periodicidade minima de 6 meses na
distribuição dos benefícios da PLR,
focaliza a negociação na empresa, retira
o foco da mobilização por salário
real/produtividade, introduz terras da
agenda empresa na negociação
Politicasalarial(plano
real)
MP 1053/94 Elimina a política de reajuste
salarial através do estado, proíbe as
clausulas de reajuste automático de
salario e procura induzzir a livre
negociação, com controle para não
haver reajustes real nem nas
negociações nem no judiciario
Salário Minimo MP1906/97 Acaba com o índice de reajuste
oficial de correção do salário
mínimo, sendo seu valor definido
pelo poder executivo, sob
apreciação do congresso
Flexibilização
do tempo de
trabalho
Banco de horas Lei 9061/98 e
MP 1709/98
Possibilita que a jornada seja
organizada anualmente conforme as
flutuações da produção ou serviço e
amplia para um ano o prazo de
compensação das jornadas semanais
estraordinarias de trabalho através
de acordo ou convenção coletiva
Liberação dos
trabalhos aos
Domingos
MP 1878-
64/99
Autoriza apartir de 9 de novenbro
de 1997, o trabalho aos domingos
no comercio varejista de geral sem a
previsão de passar por negociação
coletiva.
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“O abre alas (no mundo do samba) que eu quero passar”.
Há diferentes ciências e saberes envolvidosno “fazer” carnaval. Uma expressiva
diversidade de profissionais das áreas técnica e artística se movimentam neste dinâmico
mundo das escolas de samba. Não é de hoje que se discutempossíveis caminhos de
profissionalização para o sambista. A presença de profissionais tecnicamente
especializados em certas atividades nos carnavais da cidade do Rio de Janeiro “já
acontecia antes do início do século XX”, como nos informa Santos (2009) em pesquisa
sobre carnavalescos no Rio de Janeiro, uma das categorias que primeiro
profissionalizou-seno carnaval carioca.
Se para alguns segmentos da escola de sambaa profissionalização é algo recente, o
mesmo não podemos dizer sobre os passistas, cujas atuações profissionais começaram
nos palcos do Teatro de Revista, no final dos anos 50. Sambistas como Dona Chininha3,
expresidente do GRESEP Mangueira, filha de Dona Neuma e neta de Saturnino
Gonçalves, personalidades importantes da fundação da escola, confirma essa
informação dizendoque não se ouvia falar em passista antes dos anos 50.
Ganharam visibilidade empalcos fora da escola da escola de samba, com Carlos
Machado – o Rei da Noite, que em 1958 recrutou sambistas oriundos de Mangueira,
Império Serrano, Salgueiro e Portela para participarem do musical “MillionDolar,
Baby” que seria apresentado na Night end Day,a mais luxuosa casa de espetáculos da
capital Federal. Diante da falta de aparatos técnicos e da dificuldade em adequar a
performance dos sambistas ao reduzido espaço, se comparado aos terreiros das escolas
de samba com os quais estavam habituados a se apresentarem, decidiu convocar Tijolo,
considerado um dos mais expressivos solistas da dança do samba da época
(REGO/1996). Acredita-se que os passistas se estabelecem nas escolas de samba a partir
desta época.
Mas nesta época a qual nos referimos (anos 50/60),as escolas maiores desfilavam
com, no máximo, trezentos componentes, e destes, apenas uns dez eram passistas que
desfilavam em quase todas as escolas. Era um pequeno grupo que confeccionava sua
3Dona Chininha, cujo nome de batismo é Eli Gonçalves, é filha de Tia Neuma, a primeira pastora do
GRESEP Mangueira e neta de Saturnino Gonçalves, fundador do bloco dos Arengueiros (1923) que mais
tarde originou a escola.
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própria roupa, desconectada do enredo, em cores admissíveis em qualquer escola, como
branco, prata e dourado, e vinham sambando e brincando nos desfiles.
O surgimento das escolas de samba acontece num momento em que o Brasil busca
construir sua identidade nacional, valendo-se do modelo europeu de industrialização e
comercio de diversão:
O desenvolvimento do entretenimento e do turismo no país fora
pautado pelo esforço das elites em instalar uma "Europa possível" nos
trópicos, caracterizando os empreendimentos na área como parte de
uma modernização redentora. Ao longo desse processo, sob impacto
de cruzamentos políticos que centralizam a cultura como base da
aliança entre Estado e povo, o folclore e a paisagem tropical passam a
ser ressaltados como símbolos nacionais, sendo, então, deslocados
para compor o círculo desse novo mercado cultural. A combinação do
tema da nacionalidade com as ideias de território exuberante e povo
culturalmente singular forjara a conjunção da imagem de Brasil com a
sistemática cultural e de diversão, contribuindo para a
institucionalização do entretenimento-turismo, com posição central na
formação da nação. Ao longo do desenvolvimento desse mercado da
diversão centralizado no Rio, o carnaval desponta como peça-chave na
atração de turistas. Logo o Estado incorpora a folia ao patrimônio
simbólico da nação e ao seu "cardápio" turístico, investindo no
gerenciamento e publicidade da festa. Sua consagração como período
de satisfação também favorece as práticas mercantis de consumo, o
que instaura uma forte aliança com os empreendimentos comerciais. A
festa ganha grande dimensão, adquirindo status de marca registrada da
cidade e do país, o que demonstra o significado da cultura da diversão
para a sociedade nacional (FARIAS,2001).
Atualmente as escolas desfilam com até cinco mil componentes e destes, pelo
menos cem são passistas, tornando a oferta muito maior que a procura destes
sambistas/artistas. Entretanto, o engate entre economia, cultura e turismo faz parte dessa
nova trama social que existe num mercado expandido. A grandiosidade dos desfiles de
carnaval está diretamente conectada às transformações estruturais da sociedade pautada
do consumo de bens culturais como opção de lazer.
Poucos são os sambistas profissionais remunerados emescolas de samba. Passistas
profissionais podem atuar como dançarinos, em shows dentro e fora da escola; podem
ser coordenadores de alas, coreógrafos, promotores de eventos e professores de dança
do samba.
Considerando o passista como agente de uma pratica cultural com grande diversidade de
conhecimentos, proponho pensar as questões que aqui abordarei a partir de uma
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perspectiva epistemológica plural e dinâmica, como é o próprio samba, trazendo à roda4
o conhecimento dos passistas, de pesquisadores e de autores dos campos das ciências
sociais e jurídicas.
Escolhemos passistas do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, Grêmio
Recreativo Escola de SambaEstação Primeira de Mangueira e Grêmio Recreativo
Escola de Samba Acadêmicos do Grande Rio por já terem sido essas escolas locais de
observação para pesquisas anteriores e por serem os entrevistados sambistas
importantes nessas escolas e no mundo samba.
Nilce Fran e Valci Pelé são professores de dança do samba e fundadores do Instituto de
Cultura e Cidadania Primeiro Passo (ICCPP), coordenam a ala de passistas do GRES
Portela, promovem eventos eatuam como passistas-show;Almir Romeroé professor de
dança do samba e passista-show, vive há dezoito anos em Londres; Fábio Batista é
dançarino e coreógrafo; Celyho Show é passista-show, promotor de eventos e
recepcionista do Clube de Oficiais da Aeronáutica; Serginho Sambista é passista-show.
Pensar a arte como ação coletiva é um caminho teórico por nós escolhido para a
compreensão das tensões entre a genialidade criativa e individual de cada passista, sua
inserção e existência no grupo maior que é ala e sua circulação no mundo
profissional/artístico de múltiplas rotas das escolas de samba (BACKER,1997).
Na década de 1980, autores como Lopes (1981) e Rodrigues (1984) viram na
informalidade dessas carreiras, o resultado da apropriação cultural por elementos
estranhos a cultura do samba que vieram a ocupar posição de dirigentes e diretores das
agremiações. Atualmente, pensar a profissionalização do passista requer a compreensão
de uma singular rede de cooperação que visa constituir o mundo carnavalesco da arte,
especifico das escolas de samba, mas não restrito a elas; e para essa melhor
compreensão, lancei mão das pesquisas de Santos (2009) e Gonçalves (2010),
respectivamente, sobre carnavalescos e casais de mestres-salas e porta-bandeiras. Esses
autores destacam a mediação e as redes de sociabilidade como fatores favoráveis a
profissionalização do sambista.
4 Roda se samba, roda de passista, ritual de encontro de sambistas para fazer o samba em suas diferentes
formas de expressão artística, cultural e religiosa. Forma comum presente nas culturas da diáspora
africana, lugar de criatividade e improviso.
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A carreira do passista
Havia uma idéia com grande aceitação entre os sambistas de que o bom passista “já
nasce feito”, “tá no sangue”, ou “vem de berço”, uma evocação ao talento e a
genialidade inata. Em escolas de samba consideradas mais “tradicionais” os projetos de
formação de passistas ainda é visto por alguns com certa desconfiança. Nas culturas
afro-diaspórica, privilegia-se a transmissão oral. Ensinos sistematizados ainda
encontram certa resistência por parte dos mais antigos, defensores da “autenticidade” e
do “improviso”.
Atualmente, no Rio de Janeiro, pelo menos quatro escolas de samba do grupo
especial possui uma escola de formação de passista em seus bairros.5No bairro de
Madureira há o Instituto de Cultura e Cidadania Primeiro Passo, que privilegia o ensino
da dança do samba. Essas escolas preparam o passista para apresentações em quadra,
avenida de desfiles e palcos.
Com exceção da Portela, não há nas escolas de samba aulas commétodo
pedagógico estruturado para o ensino da dança do samba. Embora o instrutor ou
professor acabe impondo sua marca, cabe ao aluno, enquanto adquire o conhecimento
da dança, buscar seu próprio estilo, e assim diferenciar-se o que aumentará suas chances
no mercado de trabalho.
Para que um passista consiga ter algum reconhecimento e possibilidades de
atuação profissional, além de atingir o patamar técnico exigido, deverá criar e se manter
no “mundo do samba”. Ser passista não significa apenas saber dançar o samba, mas
introjetar, vivenciar outros conhecimentos carregados de símbolos e tradições
importantes para a comunidade daquela determinada escola. Ensaiar, conviver, ser
capaz de interagir, se articular, se apropriar desse universo e seus valores é o que os
qualificará para a função.
Todas formas de arte que conhecemos depende de uma rede de colaboração. Angariar a
simpatia de colaboradores é de suma importância para que as portas de trabalho se
abram. O passista depende da escola de samba para projetá-lo no mundo artístico -
porque o passista só existe atrelado à escola de samba -, e dos “elementos de apoio”
5 Portela, Salgueiro, Beija Flor de Nilópolis e Imperatriz Leopoldinense.
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como costureiras, sapateiros, manicures e cabeleireiros. O passista trabalha no centro de
uma ampla rede de profissionais colaboradores, cujo trabalho é essencial para o
resultado final (BACKER, 1997).
Em regra, é curta a carreira do passista, especialmente das mulheres. Sua atuação
depende totalmente de sua performance, e esta, por sua vez depende do vigor físico
individual. O auge da carreira do passista é na juventude, declinando conforme o
avançar da idade e o conseqüente envelhecimento. Não há uma consagração absoluta e
definitiva na carreira do passista, por isso até os mais premiados em suas escolas, são
submetidos a testes a cada ano. Como bem disse Toji “é „no pé‟ que quem samba deve
provar o que é capaz”, o que explica o fato do passista passar toda sua trajetória
buscando o reconhecimento do público e de seus pares.
Passistas de carteirinha
Nilce Fran e Valci Pelé são o que podemos chamar de passistas de carteirinha, assinada.
São empregados do GRES Portela. O trabalho deles consiste em coordenar os passistas
da escola, preparando-os para as apresentações, dentro e fora da escola, ao longo da
temporada de ensaios, que vão desde o mês de agosto até o carnaval e, principalmente,
para o grande dia do desfile oficial.
Ela está na Portela desde criança, seu pai foi um dos fundadores da Portela. Ele
chegou à escola no final da adolescência trazido por Nega Pelé, uma conhecida passista
da época. Ambos dedicam-se exclusivamente ao samba e ao carnaval, fazendo disso um
diferencial profissional em relação a outros coordenadores. Vivem do samba e para o
samba. Durante o ano fazem shows, organizam workshops, dão aulas em academias,
organizam eventos como, por exemplo, as famosas feijoadas comemorativas. A
dedicação é tão grande que segunda ela “não sobra tempo nem prá beijar na boca”.
Numa reunião marcada para após o termino do ensaio técnico, Nilce Fran advertiu que
excluiria da ala os faltosos e completou: “Passista não vai a casamento, batizado,
aniversário de mãe, de pai, de tio, primo, se cair em dia de ensaio [...] Eu não consigo
nem ter homem por causa disso, passista é compromisso, é comprometimento”.
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Até o final da década de 90 os responsáveis pelas alas de passistas (ainda não chamados
de coordenadores) tinham poucas atribuições. Selecionavam os passistas, cuidavam de
medidas de fantasia, controlavam a frequência e mais nada. Não havia coordenação
direta e constante como atualmente, no sentido de instruir, ensinar ou aprimorar a forma
de sambar de cada passista. O poder do coordenador limitava-se a selecionar, dentre os
candidatos, aqueles considerados bons passistas.
Hoje todas as escolas possuem, no mínimo, um coordenador, com diversas
atribuições: convoca, inscreve, identifica, ensina, coreografa, cuida da produção e
execução de pelo menos dois figurinos anuais para apresentações dentro e fora da
quadra, elaboraram escala de presença aos ensaios e demais eventos, aconselham
pessoal e profissionalmente, além de intermediarem trabalhos para a escola e para os
passistas.
Em regraos coordenadores nada recebem pelo trabalho que realizam, considerado
ainda, “mero exercício de atividade espiritual ou liberal” (NASCIMENTO, 2003),e os
que excetuam essa regra contam com uma “ajuda de custo”, cujo valor nenhum deles
revelou.
Se a remuneração para coordenadores é rara, para os passistas é simbólica. A
contraprestação que o passista recebe da escola é a fantasia e o direito de desfilar no
carnaval. Embora a estrutura organizacional das escolas de samba muito se assemelhe
ao mundo empresarial e do trabalho – cobra-se freqüência, horários, uniformes, e
controla-se condutas, como por exemplo, proibindo ingestão de bebida alcoólica durante
os ensaios – no que tange a remuneração de alguns grupos há praticamente um interdito
fundamentado na lógica do “amor a bandeira”, o amor devoto a escola de samba.
Em 2014,a poucas semanas do carnaval, Nilce Fran afastadado cargo de
coordenadora por ter faltado a um ensaio na Portela (sua escola empregadora) e ter sido
vista no ensaio de uma escola coirmã, pela qual tem grande simpatia, evidenciando que
a relação empregatícia numa escola de samba exige ainda exclusividade efidelidade,
valores oriundodas tradições de pertencimento e territorialidade.6
6 Nilce Fran foi vista, filmada e fotografada no ensaio técnico do GRESEP de Mangueira, onde desfilou
como “destaque de chão” (desfilante que ocupa um lugar privilegiado entre uma ala e outra) naquele ano.
Os Tribunais do Trabalho não consideram a exclusividade como elemento caracterizador da relação de
trabalho, entretanto, tal fator tem grande apelo e relevância no ambiente sócio-afetivo das escolas de
samba.
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Após a saída de Nilce Fran, Valci Pelé seguiu sozinho com o trabalho naquele ano.
Poucos meses após o carnaval,ela foi readmitida pelo Presidente da Escola, sensível ao
clamorde muitos pelo seu retorno, e reconhecendo também seu trabalho e dedicação.
Durante a feitura deste artigo,a dupla de coordenadores foi convocada para uma
viagem à França, por dez dias, a trabalho, com outros representantes da Portela para um
encontro de artes em Lille e Nice, evento chamado “Trem do Samba”.7
Outra trajetóriaprofissional interessante é a de Fábio Batista, trinta e cinco
anos,participa dos desfiles de escolas de samba desde os seis,iniciou no Clube
Carnavalesco Escola de Samba Flor da Mina do Andaraí, passando depois pelo GRES
Unidos da Tijuca, Grêmio Recreativo Cultural Alegria da Passarela e Grêmio
Recreativo Cultural Aprendizes do Salgueiro. Desfilou em ala, depois como ritmista até
ganhar o concurso de Rei do Carnaval Mirim da Cidade do Rio de Janeiro e tornar-se
um passista. Saiu do chão dos terreiros e das quadras para os palcos.
Fábio acredita que percebeu o carnaval e a escola de samba como uma atividade
profissional ainda criança,quando ganhou o concurso para Rei Momo, organizadopela
Prefeitura do Rio de Janeiro, aos treze anos. Cumpria uma agenda rígida com reuniões,
ensaios, apresentações, entrevistas, e idas ao figurinista. Terminado seu tempo na corte
mirim do carnaval carioca, desfilou nas alas de passistas do GRES Portela, GRES
Unidos do Viradouro,GRES Caprichosos de Pilares, GRES Beija Flor de Nilópolis e
aos dezessete anos retorna ao GRES Acadêmicos do Salgueiro onde permaneceu até os
trinta e um anos.
A oportunidade de viajar para outros países é um aspecto muito positivo na carreira do
passista, através da escola de samba Fábio Batista conheceu algumas cidades do
México, Argentina, Chile Rússia e Ilhas Maurício. Buscando mais credibilidade no
mercado, vinculou-se ao Sindicato dos Profissionais da Dança do Rio Janeiro8 e
contribui autonomamente para o sistema previdenciário. Diz que sempre viveu da dança
e seus shows fora do país sempre foram através de contratos escritos. Atualmente
7http://blogs.oglobo.globo.com/saideira/post/trem-do-samba-desembarca-na-franca.html
8O Sindicato dos Profissionais da Dança do Estado do Rio de Janeiro (SPDRJ), fundado no dia 17 de
maio de 1985.
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trabalha no SESI9 gerenciando uma biblioteca comunitária. Criou o Projeto Social no
Andaraí chamado "PoDe-C!" Andaraí (Polo de Desenvolvimento Cultural do Andaraí),
a Escola Carioca de Danças Negras e a Cia de Dança Clanm.
Percebe-se que é uma carreira com diferentes desmembramentos. Sobre isso ele
nos diz:
Acho que o mercado abriu possibilidades, nas academias, projetos
sociais, as próprias escolas de samba, shows nacionais e
internacionais, mas somos muitos e somos bons, quase todos os
passistas são muito bons, então temos escassez de demanda e por isso
acho o passista deve procurar outros recursos artísticos.
A Escola de Samba é um empreendimento cultural sem fins lucrativos, mas tem um
arrecadamento financeiro como resultado de sua atuação na área do lazer, cultura e
turismo, entretanto esses recursos não são compartilhados entre os sambistas/artistas.
A busca do passista por um lugar ao sol no mercado de trabalho das artes através
do samba não é de hoje. Nas décadas de 70/80 alguns acreditavam que o samba havia
definitivamente se tornado um bem de consumo e que isso traria a ascensão social do
sambista através da remuneração dos que efetivamente fazem o espetáculo. Outros
consideravam utópica essa possibilidade. A opinião de Lopes (1981) parece-nos bem
atual. O que parece ter ocorrido foi um crescimento de representatividade, uma maior
visibilidade das escolas de samba dentro dos espaços sociais antes inacessíveis, porém
incapaz ainda de dividir seus lucros com os componentes que dominam saberes
especializados, comoritmistas epassistas.
Opinião recorrente entre os passistas é que no exterior é possível viver de samba.
Muitos acreditam que a Europa é um mercado promissor para o passista. Almir Romero,
conhecido como Romero da Mangueira, deixou o Brasil há dezoito anos após aderir ao
plano de demissão de voluntária da Embraer, privatizada em 1994, no governo do então
presidente Fernando Henrique Cardoso. Desempregado, desejoso de incrementar os
estudos da língua inglesa, aceitou um convite inusitado: organizar uma escola de samba
em Londres, sem garantia de emprego ou salário fixo.
Há um fluxo constante de informações entre passistas que estão ou estiveram no
exterior e os que estão no Brasil, desejosos de novas e melhores oportunidades de
9 SESI: Serviço Social da Indústria.
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trabalho através da dança do samba. Sem emprego e com o dinheiro da verba
indenizatória, decidiu tentar a sorte em Londres.
Quando recebi o convite para preparar a Comunidade da London Schoolof
Samba para o carnaval de Notting Hill, meu primeiro pensamento foi
realizar um sonho de criança: falar inglês britânico. Londres é, no meu ponto
de vista, uma das cidades mais caras de toda a Europa e não se tem shows
todos os dias. Fui dançar em NightsClubs, dar aulas de samba para pequenos
grupos, fazer Workshops em outros países vizinhos, em Escolas Primárias,
mostrando um pouco da cultura brasileira, dançar em festivais que
aconteciam no Verão Londrino, participei de vídeos clip de Bandas que
estavam em evidência na época como o S Club Seven, Marc Almond e
outros mais... Hoje dou aula em academias de ginástica, Pubs e Centros
Culturais. [...] Ah! Esqueci de dizer que além de dar aulas também faço
faxinas em residências e escritórios, trabalho como secretário particular de
uma francesa, as vezes viro babá de cachorro (risos), trabalho como garçom,
cozinheiro, pintor de paredes. Ah! minha lindinha, aqui vou me virando e
usando toda a versatilidade que Deus me deu, pois viver só de Arte é
complicado em qualquer lugar do mundo, sendo assim me viro nos trinta.
AlomaWorrelt, quarenta e sete anos,vive há vinte e um em Essen, na Alemanha. Era
uma dançarina de samba com uma agenda de shows movimentada no Brasil e no
exterior. Acostumada às temporadas internacionais que inicialmente duravam de quatro
a oito meses, decidiu estabelecer sua vida por lá.
Durante muito tempo eu ganhei muito dinheiro. Mas também gastava
muito. Sempre fui muito gastona. Muita roupa de marca, bolsas,
sapatos. Usava um pouco uma roupa e quando ia pro Brasil já levava
pra dar. Mandava dinheiro pra minha família também. Mas depois me
casei aqui, tive um filho, me separei, fiquei com problemas de saúde e
engordei. Engordei muito. Mas hj vejo que foi o agir de Deus na
minha vida [...]Peguei o final da época das Mulatas. Viviam de shows
de samba turísticos, trabalhavamtambém nas casas de shows como
plataforma, Scala e Oba Oba. Acho que não me acostumo mais no
Brasil. Agora eu trabalho em casas de família daqui e sou missionária
também.
A experiência de Romero e Aloma mostra que a carreira internacional de um passista
pode ser bem mais difícil e efêmera do que muitos dos que estão aqui imaginam.
A carreira do passista existe na fresta entre o mundo formal do trabalho e o
mundo informal do samba. Muitos passistas colecionam histórias de demissões por
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perderem noites de sono em ensaios ou seguirem em viagens para apresentações com a
escola de samba. Para alguns é possível conciliar carreiras, como vem fazendo Celynho
Show, passista da Mangueira, depois de ter perdido várias empregos por sua dedicação
a carreira de passista:
Tava num emprego uma época aí, meus filhos ainda eram pequenos,
quando surgiu minha primeira oportunidade de sair do Brasil com a
Imperatriz Leopoldinense pra uma temporada na Europa. Ah! Não
pensei duas vezes e fui! O dinheiro não foi muito não, e eu ainda
gastei quase um terço só com fotos, que naquela época era caro, tinha
que comprar filme e revelar depois (risos). Perdi o emprego, mas foi
uma experiência maravilhosa, faria tudo novamente!
Atualmente com quarenta e cinco anos, Celynho Show trabalha como
recepcionista no Clube dos Oficiais da Aeronáutica há dez anos, numa escala de
12hx36h. Nas folgas atua como passista show e promotor de eventos. O samba é uma
renda complementar. Em 2010 idealizou e produziu o “Cabaré do Malandro” um evento
bimestral, pensado para os passistas, mas que reúne sambistas de um modo geral. A
partir desta experiência bem sucedida do Cabaré, com edições em diferentes bares da
Lapa, região boêmia do Rio de Janeiro, Celynho Show tem se consagrado como um
promissor promoter sambista.
Serginho Sambista é passista da Grande Rio e trabalha apenas como passista
fazendo em média quinze shows por mês. Durante a Copa, chegou a fazer até dois
shows por dia. Deixou o trabalho formal quando percebeu que estava fazendo dupla
jornada, saindo do emprego e indo direto para shows. Escolheu o que lhe dá mais
prazer: o samba. Os cachês variam de oitenta a trezentos e cinqüentareais. Reclama do
excesso de informalidade nas relações de trabalhistas: demora no pagamento dos cachês
(as vezes demoram até quinze dias após o show para serem pagos), mudanças contratais
sem anuência das partes, falta de assistência mínima necessária, como local adequado
para a troca de roupas, um lanche ou uma água após o show, etc.).
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CONCLUSÃO
A carreira do passista existe e se desenvolve na tensão entre o mundo do trabalho e o
mundo do samba com toda sua inconstância e efemeridade.A desregulamentação e a
flexibilização surgem como novas formas de pensar sobre os comportamentos dos
tomadores e prestadores de serviços. Alegislação flexibilizada, permiteencaixar arelação
detrabalhoentre os passistasesuas agremiações,como empregadosou prestadores de
serviços.
Nenhum passista consegue ainda, viver exclusivamente desta atividade artística ante a
insegurança financeira que a caracteriza. Embora presentes as condições básicas
caracterizadoras da relação de trabalho – pessoalidade, habitualidade, subordinação e
onerosidade – esta última é a que apresenta maior inconsistência e precariedade. Não há
para o passista uma remuneração regular, periódica, advinda da escola, salvo raríssima
exceção, para alguns coordenadores. O que o passista recebe da escola de samba é a
fantasia para o dia do desfile e a possibilidade de eventualmente, ser escolhido para
participar de algunsshows remunerados.
Na organização do desfile oficial, alguns segmentos tornaram-se quesitos obrigatórios
como Mestres-Sala, Porta-Bandeiras e Bateria, conferindo-lhes maior valor diante da
agremiação, entretanto os passistas não foram assim contemplados.
Enquanto o mundo do trabalho se caracteriza por uma prévia educação formal e
provisão econômica; o mundo do samba se pauta num saber informal e na capacidade
de se expressar e se manter nele através de redes de relacionamentos. Podemos afirmar
que embora sejam formas de carreiras distintas, elas se entrecruzam propiciando ao
passista ocupar posições como as de professor de dança, coreógrafo, coordenador,
promotor de eventos, modelos, figurantes, etc.
A carreira de passista não é apenas de cunho econômico ou político, mas antes é
uma carreira moral e até espiritual no sentido místico para alguns. É uma carreira que
estabelece diálogos com diferentes agentes da sociedade envolvidos na área das artes,
do turismo e da cultura.
Se por um lado a autonomia verificada nas tratativas de trabalho deste grupo
profissional é vista como positiva, por outro, os deixa vulneráveis a empregadores de
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má-fé e até criminosos. A prostituição é um tema velado no meio dos passistas. Há
notícias de mulatas/passistas vítimas de trafico internacional de pessoas, cujos processos
tramitaram na Espanha. Mas sobre isso, trataremos numa outra oportunidade.
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escola de samba estação primeira de Mangueira. Dissertação de mestrado apresentada
aoPrograma de Pós-Graduação em Sociologia eAntropologia, Instituto de Filosofia e
CiênciasSociais da Universidade Federal do Rio deJaneiro. Orientadora: Maria Laura
Cavalcanti, 2006.