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Anais com Trabalhos Completos Primeiro Encontro de Pós-Graduação do NEAM "Religiões e Visões de Mundo na Antiguidade e no Medievo" 17 e 18 de novembro de 2016

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Anais com Trabalhos Completos

Primeiro Encontro de Pós-Graduação do NEAM "Religiões e Visões de Mundo na Antiguidade e no

Medievo"

17 e 18 de novembro de 2016

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO”

Reitor

Prof. Dr. Sandro Roberto Valentini

Vice-Reitor

Prof. Dr. Sergio Roberto Nobre

FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS DE ASSIS

Diretor

Dra. Andrea Lucia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi

Vice-Diretor

Dra. Catia Inês Negrão Berlini de Andrade

Comissão Organizadora

Dra. Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho RossiProf. Dr. Ivan Esperança Rocha

Dr. Germano Miguel Favaro Esteves

Me. Isadora Buono de Oliveira

Comissão Científica

Dra. Amanda Giacon Parra

Dra. Ana Paula Magalhães

Me. Benedito Inácio Ribeiro Júnior

Dr. Guilherme Queiroz de Souza

Dra. Margarida Maria de Carvalho

Prof. Dr. Milton Carlos Costa

Dr. Nelson de Paiva Bondioli

Dr. Ronaldo Amaral

Me. Lígia Cristina Carvalho

Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho

Dra. Terezinha Oliveira

Revisão

Ms. Frederico Santiago da Silva

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Conselho Editorial

Sílvia Maria Azevedo (Presidente)

Karin Adriane H. Pobbe Ramos (Vice-presidente)

Álvaro Santos Simões Junior

André Figueiredo Rodrigues

Carlos Camargo Alberts

Carlos Eduardo Mendes Moraes

Cleide Antonia Rapucci

Danilo Saretta Veríssimo

Gustavo Henrique Dionísio

José Luis Bendicho Beired

Lúcia Helena Oliveira Silva

Márcio Roberto Pereira

Maria Luiza Carpi Semeghini

Matheus Nogueira Schwartzmann

Miriam Mendonça M. Andrade

Paulo César Gonçalves

Ronaldo Cardoso Alves

Vânia Aparecida Marques Favato

Secretário

Paulo César de Moraes

Conselho Consultivo

Adilson Odair Citelli (USP)

Antonio Castelo Filho (USP)

Carlos Alberto Gasparetto (UNICAMP)

Durval Muniz Albuquerque Jr (UFRN)

João Ernesto de Carvalho (UNICAMP)

José Luiz Fiorin (USP)

Luiz Cláudio Di Stasi (IBB – UNESP)

Oswaldo Hajime Yamamoto (UFRN)

Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ)

Sandra Margarida Nitrini (USP)

Temístocles Cézar (UFRGS)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp

E56a

Encontro de pós-graduação do NEAM (1.: 2016: Assis, SP).

Anais com trabalhos completos [do] I Encontro de Pós-graduação do

Neam [recurso eletrônico]: religiões e visões de mundo na antiguidade e no

medievo, Assis, SP, 17 e 18 de novembro de 2016 / Andrea Lúcia D. Oli-

veira Carvalho Rossi, Germano Miguel Favaro Esteves, Isadora Buono de

Oliveira (organizadores). Assis: UNESP - Campus de Assis, 2018.

169 p. : il.

Vários autores

ISBN: 978-85-66060-25-6

1. História antiga. 2. Idade Média - História. I. Rossi, Andrea Lúcia

Dorini de Oliveira Carvalho. II. Esteves, Germano Miguel Favaro. III. Oli-

veira, Isadora Buono de. IV. Título.

CDD 930

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Apresentação

Os escritos que temos o prazer de apresentar são o resultado dos debates e

trabalhos apresentados durante o Primeiro Encontro de Pós-graduação do NEAM:

“Religiões e Visões de Mundo na Antiguidade e no Medievo”, sediado na Faculdade de

Ciências e Letras – UNESP, campus de Assis, entre os dias 18 e 19 de novembro de 2016.

O NEAM/UNESP – Núcleo de Estudos Antigos e Medievais da UNESP, campi de

Assis/Franca – é um dos grupos de pesquisa mais antigos do Brasil, que conta com mais de

trinta anos de história, dedicado ao aprofundamento da formação acadêmica relativa aos

estudos do mundo antigo e medieval. Criado na Faculdade de Ciências e Letras de Assis,

teve seu nascimento no ano de 1985, por iniciativa do Prof. Dr. Carlos Roberto de Oliveira,

visando a suprir a carência de produções científicas e acadêmicas no Brasil sobre os

períodos, ideia que logrou sucesso e encontrou uma grande recepção. Na década de 1990,

deu-se início ao Ciclo de Estudos Antigos e Medievais (CEAM), evento que congregava

pesquisadores brasileiros para debaterem temas pertinentes à área. Em 2005, o CEAM foi

expandido, trazendo a nomenclatura Ciclo Internacional de Estudos Antigos e Medievais

(CIEAM), chamando a comunidade científica nacional e internacional a discutir e divulgar

suas pesquisas, e sediou, em novembro de 2016, o primeiro encontro de pós-graduados

que fizeram parte desta história de excelência.

O principal objetivo do Primeiro Encontro de Pós-graduação do NEAM foi reunir a

comunidade científica nacional para o debate acadêmico em torno dessa temática tão cara

às Ciências Humanas, além de bastante atual. O evento contou com a presença de

conferencistas e palestrantes, que abordaram os mais diferentes tópicos relativos à

Antiguidade e à Idade Média e participaram ativamente das discussões. Ademais, os

convidados membros do NEAM (mestres, doutores e docentes) ministraram minicursos que

versavam sobre assuntos variados. Os trabalhos expostos, presentes nestas páginas,

foram organizados em quatro simpósios temáticos, dedicados à Antiguidade Oriental,

Antiguidade Clássica, Antiguidade Tardia e Idade Média, e posteriormente analisados pela

comissão organizadora, conforme as relevâncias historiográficas e acadêmicas,

relacionadas à proposta do evento.

Dr. Germano Miguel Favaro Esteves

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Sumário

ALMEIDA, Danilo Queiroz de. Do sábado para o domingo - a defesa do domingo como dia do Senhor ........................................................................................................... pp. 05-13. ANJOS, Amanda Adrielli Ribeiro dos. As Representações do Purgatório na Divina Comédia de Dante Alighieri .................................................................................... pp. 14-20. BARCELOS, Matheus Melo. O Pensamento Esotérico Islâmico ........................... pp. 21-36. CASTILHO, Isabelle; ROSSI, Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho. A analise do mito do minotauro em A Batalha do Labirinto .................................................................... pp. 37-43. CRUZ, Bruna Marcelino da. As Representações da Gladiatura no mangá One Piece ................................................................................................................................... pp. 44-51. DURLO. Carlos Henrique. A presença da paisagem em Cantigas de Santa Maria ....................................................................................................................................pp. 52-66. ESTEVES, Germano Miguel Favaro. Religião, religiosidade e poder na Antiguidade Tardia ................................................................................................................................... pp. 67-77. FIOROT, Juliana Bardella. Uma Galiza mágica ....................................................... pp. 78-90. MACEDO, Jaqueline Silva de. Representações da ordem temporal e espiritual do mundo no Roman de Fauvel .............................................................................................. pp. 91-111. MELIN, Eduardo. Os Poderes dos Gládios no Século XIV ................................. pp. 112-119. NACHTIGALL, Lucas Suzigan. Os Templários e a Primeira Cruzada ................ pp. 120-127. NOGUEIRA, Abner Alexandre. Uma análise semiótica do poema Teogonia, de hesíodo, por meio das propostas de Todorov e Barthes ................................................. pp. 128-136. PASCOAL, Bruno do Prado. Santidade e Imaginário na Vita Sancti Gregori Papae ............................................................................................................................... pp. 137-144. SÃO CYRILO, Silvana Pereira; OLIVEIRA, Terezinha. Ensino e produção do conhecimento na universidade medieval ................................................................................... pp. 145-157. SILVA, João Paulo. Nag Hammadi e o Codex V - breve análise historiográfica do Apocalipse copta de Paulo ................................................................................. pp. 158-165.

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FICHA CATALOGRÁFICA

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Do sábado para o domingo - O domingo como dia do Senhor

From Saturday to Sunday - Sunday as Lord's Day

Danilo Queiroz de Almeida (UNESP – FCL Assis) Resumo: Com este trabalho pretendo levantar algumas discussões sobre os principais motivos que levou o Cristianismo romanizado a instituir o domingo como dia sagrado a exemplo do sábado judaico a partir da análise do Édito de Constantino promulgado em 07 de março de 321. Durante o Baixo Império Romano, em finais do século III, com o imperador Aureliano, em 274 d. C., o Mitraísmo se transformou na religião do Solis Invictus ou Sol Invencível, e foi estabelecido oficialmente como religião do Império. Com as invasões bárbaras, o Império perdeu parte de seus territórios, e, com a expansão do Cristianismo, o Mitraísmo foi perdendo adeptos, e o imperador Constantino I (306 d. C.) desejou estabelecer uma unidade religiosa no Império. Na tentativa de centralizar a crença do povo em torno de Apolo, deus Sol dos romanos, e Mitra, dos mitraístas, e observando o Cristianismo, desejou identificar Cristo com Apolo, tentou reunir os astrólogos, os adoradores do sol, os mitraístas e os cristãos em uma adoração comum, prestando culto ao conjunto Cristo-Apolo e Mitra. Com essa intenção, Constantino publicou em 7 de março de 321 d. C. um decreto proibindo o trabalho no venerável dia do Sol. Esse decreto, que ficou conhecido como Édito de Constantino, não era uma lei eclesiástica, mas uma lei civil. A lei ordenava que não deveria haver trabalhos comuns no dia do Sol, exceto quando fosse necessário, para evitar grandes perdas e inconveniências, especialmente com referência às atividades dos lavradores. Assim, discutirei brevemente o processo que levou à mudança do domingo – dia do deus sol – para o dia do Senhor, e as referências na escritura sagrada que a igreja cristã romanizada encontrou para justificar tal adoção. Palavras-chave: Édito de Constantino; Cristianismo Primitivo; Romanização; Idade Média. Abstract: With this work I intend to raise some discussions on the main reasons that led Romanized Christianity to institute Sunday as a sacred day as in the Jewish Sabbath from the analysis of the Edict of Constantine promulgated on March, 7th, 321. During the Low Roman Empire at the end of the third century, with Emperor Aurelian, in 274 AD, the Mithraism became the religion of Solis Invictus or Invincible Sun, and was officially established as the religion of the Empire. With the barbarian invasions, the Empire lost part of its territories and with the expansion of Christianity, Mithraism lost part of its adherents, and Emperor Constantine I (306 AD) aspired to establish a religious unity in the Empire. In an attempt to centralize people’s belief around Apollo, the Sun god of the Romans and Mitra of the Mithraists, and observing Christianity, he aspired to relate Christ to Apollo and tried to gather the astrologers, the Sun worshipers, the Mithraists and the Christians in a common worship, worshiping the entirety Christ-Apollo and Mitra. With this intent, Constantine issued on March, 7th, 321 AD a decree prohibiting work on the venerable day of the Sun. This decree, which became known as Edict of Constantine, was not an ecclesiastical law, but a civil law instead. The law ordered that there should be no ordinary work on the day of the Sun except when necessary to avoid great losses and inconveniences, especially regarding the activities of the farmers. Thus, I will briefly discuss the process that led to the shift from Sunday - the day of the Sun god - to the day of the Lord, and the references in the Holy Scriptures the Romanized Christian Church found to justify such adoption. Keywords: Edict of Constantine; Primitive Christianity; Romanization; Middle Ages. Introdução

O Cristianismo é uma religião monoteísta fundada pelos seguidores de Jesus,

também chamado Jesus de Nazaré, que nasceu entre os anos 7-2 a. C. e morreu por volta

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de 30-33 d. C., o Cristianismo e o Judaísmo messiânico consideram Jesus como o messias

aguardado no Antigo testamento e referem-se a ele como Jesus Cristo.

É senso comum no meio acadêmico contemporâneo a aceitação de que Jesus

existiu realmente, embora haja controvérsias sobre a veracidade histórica dos evangelhos e

se o Jesus bíblico realmente se parece com o Jesus histórico. A maioria dos acadêmicos

concorda que Jesus viveu na Galileia, foi um pregador judeu, batizado por João Batista e

que foi crucificado por ordem do governador romano Pôncio Pilatos.

Durante seu ministério, Jesus afirmava que os judeus não eram superiores aos

demais povos, pois tinham-se afastado das leis divinas; como se apresentava em nome de

Deus, suas doutrinas o colocaram em conflito com a tradição judaica. Ele foi por isso

perseguido, preso e condenado à morte por crucificação em Jerusalém. Seus seguidores,

não aceitaram a sua morte, alegando que ele havia ressucitado dos mortos no terceiro dia

após a sua crucificação. Os cristãos, como ficaram conhecidos, foram então perseguidos,

muitos foram mortos pelos romanos e pagãos, pois foram considerados hereges durante

mais de dois séculos. Foi somente no governo do imperador Constantino que, com o Édito

de Milão, no ano 313, decretando a liberdade religiosa em todo o território sob seu governo,

que os cristãos puderam seguir sua fé tranquilamente. O Cristianismo se alastrou de tal

forma no Império Romano que, em 391 d. C., o Imperador Teodósio I proclamou o

Cristianismo como a religião oficial do Império, institucionalizando a Igreja e proibindo

qualquer outro tipo de religião.

O Cristianismo traz em seu corpo doutrinário muitos elementos do Judaísmo, isso

porque se consideram herdeiros da promessa de Deus feita a Abraão e seus descendentes

(Romanos, 8: 17; Gálatas 3: 29), sustentam o argumento de que o povo judeu se afastou

das leis divinas, rejeitando o messias enviado por Deus e, por isso, perdeu a condição de

representante do Deus de Abraão e a condição de herdeiros de sua promessa.

Eles acreditam que Jesus Cristo é o messias enviado por Deus, prometido no

passado. Segundo os cristãos, Jesus veio para os judeus, mas o povo judeu não o

reconheceu como messias e rejeitou a sua mensagem. Rejeitado por seu povo, Jesus

estendeu assim as promessas de Deus a Abraão, para todos aqueles que independente de

serem judeus ou não, o aceitassem como o messias, o Ungido de Deus conforme

profetizado no passado.

O Profeta Isaías predisse que o messias seria descendente do rei Davi (Isaias 9: 7),

e Jesus era descendente de Davi (Mateus 1: 1, 6-7).

Como os evangelhos foram escritos pelos seguidores de Jesus Cristo, é de se supor

que em seu texto se encontrem passagens que confirmem em Jesus as profecias do

passado acerca do messias. Abaixo segue uma série de referências bíblicas sobre o

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messias prometido e seu cumprimento em Jesus, o que, segundo os cristãos, é prova

inconteste de que Jesus é o verdadeiro messias de Israel.

PROFECIAS A RESPEITO DO MESSIAS

EVENTO PROFECIA CUMPRIMENTO

Nascido na tribo de Judá Gênesis 49: 10 Lucas 3: 23-33

Nascido de uma virgem Isaías 7: 14 Mateus 1: 18-25

Descendente do Rei Davi Isaías 9: 7 Mateus 1: 1, 6-17

Jeová o declarou Seu Filho Salmo 2: 7 Mateus 3: 17

Não creram nele Isaías 53: 1 João 12: 37, 38

Entrada em Jerusalém montado num jumento Zacarias 9: 9 Mateus 21: 1-9

Traído por um associado íntimo Salmo 41: 9 João 13: 18, 21-30

Traído por 30 moedas de prata Zacarias 11: 12 Mateus 26: 14-16

Calado diante dos acusadores Isaías 53: 7 Mateus 27: 11-14

Lançadas sortes sobre sua roupa Salmo 22: 18 Mateus 27: 35

Zombaram dele quando na cruz Salmo 22: 7, 8 Mateus 27: 39-43

Nenhum osso de seu corpo foi quebrado Salmo 34: 20 João 19: 33, 36

Sepultado em uma sepultura de ricos Isaías 53: 9 Mateus 27: 57-60

Ressuscitado no terceiro dia Salmo 16: 10 Atos 2: 24, 27

Exaltado à direita de Deus Salmo 110: 1 Atos 7: 56

Para os Cristãos, através de Jesus Cristo, Deus estabeleceu uma nova aliança com

seu povo (Hebreus 8: 13 e 12: 24), e todos aqueles que acreditassem e aceitassem a Jesus

como mediador dessa nova aliança e fossem batizados em nome dEle, passariam a fazer

parte do novo povo de Deus e receberiam como herança as promessas feitas a Abraão e

seus descendentes.

Uma das bases do Cristianismo é a crença em que a observância dos mandamentos

de Deus é sinal de distinção entre o verdadeiro povo de Deus e os falsos seguidores; ao

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observar os mandamentos, o cristão prova para si e para os outros que conhece o Deus

verdadeiro e está de acordo com a sua vontade (João 14: 15, 21; João 15: 10; I João 3: 4).

Segundo o relato bíblico, foi o prórpio Deus quem esculpiu com seus dedos em tábuas de

pedra os mandamentos que seu povo deveria seguir, ele mesmo os entregou a Moisés no

monte Sinai (Êxodo 31: 18), podemos encontrá-los na Bíblia no livro de Êxodo 20: 3-17, a

obediência aos mandamentos seria o sinal. Entre os dez mandamentos, encontramos um

que estabelece para todo o povo judeu, como Sinal da Aliança entre Deus e o seu povo, um

dia especial para Adoração e Culto, como podemos ver no 4º mandamento: “Lembra-te do

dia do Sábado para o Santificar” (Êxodo 20: 8).

Embora Cristo tenha resumido os dez mandamentos em dois, conforme escrito no

evangelho de Mateus 22: 36, os cristãos, mesmo após a crucificação de Jesus, continuaram

a observar o sétimo dia como dia especial de adoração e santificação (Lucas 23: 54-56;

Atos 13: 14, 42 e 44; 16: 12 e 13; 17: 2-5; 18: 4-11). O Próprio Jesus, sendo judeu durante

toda a sua vida, observou o sétimo dia e, em uma ocasião em que discutia com alguns

judeus doutores da Lei, ele chama a atenção para o verdadeiro sentido da observância

desse dia, um dia de praticar a misericórdia e a bondade para com o próximo,

apresentando-se como o Senhor do Sábado. (Mateus 12: 8; Marcos 2: 28; Lucas 6: 5).

Durante os dois séculos seguintes em que a Igreja Cristã Primitiva, antes de se

institucionalizar, vivia escondida e perseguida, os cristãos observavam o sábado como dia

de guarda, principalmente porque, em relação ao imperador e ao Império Romano, o

Judaísmo conservava uma espécie de posição privilegiada, e, enquanto pôde viver à

sombra do Judaísmo, já que este não foi objeto de perseguição, o Cristianismo pôde-se

desenvolver sem barreiras. Sua principal característica era a de pregar uma moral de

caridade, de pureza, igualdade social.

Com as instabilidades políticas causadas pelos judeus, e devido a vários conflitos

entre judeus e romanos, o que transformou os judeus em um problema para o Império

Romano, os cristãos procuraram se diferenciar dos judeus, e uma das medidas encontradas

foi a de diferenciar seu dia de guarda, estabelecendo o domingo como dia santo, buscando

na ressureição de Jesus, que, segundo suas crenças, havia sido no domingo, primeiro dia

da semana, a justificativa aceitável que daria autoridade bíblica para a mudança. Assim

como o sábado era o selo de Deus da Aliança com o povo Judeu (Ezequiel 20: 20), o

domingo seria o novo selo da nova aliança de Deus por meio de Jesus Cristo para o seu

novo povo.

De acordo com a Igreja Romana, o domingo é o santo dia do senhor. Assim como na

antiga aliança Deus havia estabelecido o sábado como dia de guarda, separado para a

adoração e santificação, na nova aliança, com a ressureição de Jesus Cristo em um

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domingo de manhã, o dia de guarda, santificado e abençoado, tornou-se o domingo: “A

Igreja de Deus porém, as achou conveniente transferir para o domingo a solene celebração

do Sábado... em virtude da ressurreição de nosso Salvador” (Catecismo Romano, edição

1566, pág. 440, parág. 5:18).

Mas porque o domingo? Teriam os cristãos alguma razão a mais para escolher esse

dia como dia de adoração? Não era esse o dia reservado pelos romanos para a adoração

ao deus Sol?

A adoração ao Sol teve origem na Pérsia, e logo se transformou em uma religião de

mistérios nascida na época helenística, o primeiro contato dos romanos com os adoradores

do Sol se deu quando soldados lutaram no Oriente, e esse costume logo passou a ser

comum entre eles. Desde a antiguidade mais remota, as nações pagãs consideravam os

astros celestes como deuses. A semana astrológica foi adotada gradualmente pelo Império

Romano. Eles acreditavam que esses deuses inteferiam nos negócios dos homens.

Os imperadores romanos tinham grande interesse na adoração do Sol. Ao

estudarmos a história da civilização romana vemos como vários imperadores dedicavam

monumentos e atribuiam ao deus Sol seus feitos e erguiam templos e altares dedicando-lhe

presentes e adornos. O Mitraísmo foi tão difundido no Império Romano que, entre os

séculso III e IV d. C., alcançou uma grande expansão geográfica e se tornou um dos

principais concorrentes do Cristianismo. Durante o Baixo Império Romano, em finais do

século III, com o imperador Aureliano em 274 d. C., o Mitraismo se transformou na religião

do Solis Invictus, ou Sol Invencível, e foi estabelecido oficialmente como religião do Império.

Com as invasões bárbaras, o Império perdeu parte de seus territórios, e, com a

expansão do Cristianismo, o Mitraismo foi perdendo adebtos. O imperador Constantino I

(306 d. C.) desejou estabelecer uma unidade religiosa no império. Na tentativa de centralizar

a crença do povo em torno de Apolo, deus Sol dos romanos, e Mitra, dos mitraístas, e

observando o Cristianismo, desejou identificar Cristo com Apolo, tentou reunir os astrólogos,

os adoradores do Sol, os mitraístas e os cristãos em uma adoração comum, prestando culto

ao conjunto Cristo-Apolo e Mitra. Com essa intenção, Constantino publicou em, 7 de março

de 321 d. C., um decreto proibindo o trabalho no venerável dia do Sol. Esse decreto ficou

conhecido como Édito de Constantino, não era uma lei eclesiástica, mas uma lei civil. A lei

ordenava que não deveria haver trabalhos comuns no dia do Sol, exceto quando fosse

necessário, para evitar grandes perdas e incoveniências, especialmente com referência às

atividades dos lavradores. Embora convertido ao Cristianismo, Constantino nunca se batizou

e, até a sua morte, considerava o Sol como seu guia e protetor.

O Édito De Constantino

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Que todos os juízes, e todos os habitantes da cidade, e todos os mercadores e artífices descansem no venerável dia do Sol. Não obstante, atendam os lavradores com plena liberdade ao cultivo dos campos; visto acontecer amiúde que nenhum outro dia é tão adequado à semeadura do grão ou ao plantio da vinha; daí o não se dever deixar passar o tempo favorável concedido pelo céu.(Codex Justinianus, lib. 13, it. 12, §. 2)

A adoração ao Sol era uma das características da religião da Roma Imperial, e o dia

em que os pagãos usavam para a adoração ao Sol era o domingo.

Nesse contexto, os cristãos usaram o decreto de apoio à guarda do domingo como

uma estratégia para acabar de uma vez por toda a polêmica que dividia as opiniões dentro

do Cristianismo sobre a guarda do sábado ou o domingo na Igreja Cristã.

Mas, como vimos, o decreto não tem cunho religioso, é uma lei civil.

Com a adoção do domingo como dia de guarda, os cristãos facilitariam a adoção de

pagãos às fileiras do Cristianismo sem que estes precisassem mudar radicalmente seus

costumes e hábitos. Resignificando as antigas práticas pagãs, o Cristianismo se tornava

mais atraente e menos impactante na vida e práticas de novos conversos pagãos.

Esse foi um dos caminhos que o Cristianismo encontrou para sobreviver em um

império que, aos poucos, abria espaço para a sua aceitação. Cinco anos mais tarde, em 325

d. C., no primeiro Concílio de Niceia, o domingo é incorporado oficialmente como dia de

descanso cristão, e a guarda do sábado abolida definitivamente no Concílio de Laodicéia,

em 364 d. C. A partir daí, com o aumento da influência do Cristianismo e com sua elevação

a religião oficial do Império, com Teodósio I, por meio do Édito de Tessalônica, em 27 de

fevereiro de 380 d. C., os bispos de Roma usariam toda a sua influência religiosa e política

para incentivar, por meio de decretos, a guarda do domingo, estabelecendo, assim, a

autoridade da Igreja. Gaspare de Fosso, arcebispo de Reggio, por ocasião do Concílio de

Trento (1545 a 1563), diz:

A autoridade da Igreja é, pois, ilustrada mais claramente pelas Escrituras;

pois ao passo que de um lado ela [a Igreja] as recomenda, declara-as como

divinas [e] no-las oferece para serem lidas... por outro lado, os preceitos

legais das Escrituras, ensinados pelo Senhor, cessaram em virtude da

mesma autoridade [da Igreja]. O sábado, o mais glorioso dia da lei, foi

modificado para o Dia do Senhor... Estes e outros assuntos similares não

cessaram em virtude dos ensinamentos de Cristo (pois Ele declarou que

não veio para destruir a lei e sim para cumpri-la), mas foram modificados

pela autoridade da Igreja. (SDA Bible Students’ Source Book, 1962, p. 887)

O sincretismo com o paganismo facilitou o processo de cristianização de pagãos e

bárbaros. Com essa estratégia, a Igreja Romana usou de sua autoridade para transformar o

Cristianismo em uma religião muito diferente de suas raízes judaicas, se distanciando do

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problema judeu e se transformando em uma nova religião muito diferente daquela praticada

pelos cristãos primitivos, perseguidos por pagãos e imperadores, e ocupando o lugar que

antes era ocupado por seus perseguidores. O afresco de Tomasso Siciliano, no teto da sala

de Constantino no museu do Vaticano em Roma-Itália, mostra o triunfo do Cristianismo

sobre o paganismo. A obra retrata um altar que antes era ocupado por um deus pagão,

ocupado por um símbolo do Cristianismo, um enorme crucifixo, e, a seus pés, a imagem do

que seria um deus pagão esquartejado numa direta alusão ao processo de fortalecimento do

Cristianismo diante das demais religiões do Império Romano e, por fim, a sua vitória.

É incrível pensar que o Cristianismo, uma seita judaica iniciada por um carpinteiro e

seus amigos pescadores, tenha se alastrado tão profundamente pelo Império Romano. A

ideia de uma nova terra e um novo céu, onde não haveria nem mais dores nem lutas, onde

qualquer um, independentemente de sua classe social, condição financeira ou posição, teria

garantido ao lado de Deus um lugar de descanso, foi de encontro com a necessidade dos

escravos e servos do Império; uma rede de fraternidade onde o altruísmo e o amor ao

próximo eram praticados, onde a esperança de pecados perdoados e de uma vida eterna

era ensinada, levou muitos cristãos a permanecerem firmes na sua fé mesmo diante da

espada e das feras nas arenas romanas.

Um Cristianismo bem diferente do que se tornou ao se institucionalizar como Igreja,

como religião oficial do Império, batizando deuses pagãos com nomes de santos, elevando

a mãe de Jesus, Maria, à condição de deusa virgem imaculada, rainha dos céus e mãe de

Deus, incorporando elementos pagãos e atributos que a maioria dos pagãos de Éfeso havia

aplicado outrora à deusa Diana. O que antes era feito com as deusas pagãs Astarte, Cibele,

Artemisa, Diana, Ísis deu forma ao que conhecemos hoje como o culto ou veneração a

Maria. São muitos os estudos que relacionam as proximidades e os distanciamentos dos

santos cristãos católicos romanos dos deuses pagãos de Roma. Com isso, vale uma

pergunta: se os cristãos foram responsáveis por um sincretismo com os deuses pagãos, não

teriam esses deuses pagãos sobrevivido disfarçados de cristãos? Teria o Cristianismo

realmente triunfado sobre o paganismo ou se unido a ele? De qualquer forma, os cristãos

jamais admitiriam tal associação, mesmo sendo isso claro ao olharmos o passado da Igreja

e o seu processo de enriquecimento e fortalecimento de poder.

A Igreja de Roma conseguiu espalhar o Cristianismo para além das fronteiras do

conhecido Império Romano, sua marca foi impressa de tal forma nos corações e mentes dos

seres humanos que, por quase dois mil anos, seus templos e santos são respeitados e

venerados nos quatro cantos do mundo.

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Conclusão

Respondendo à pergunta feita anteriormente, se o Cristianismo triunfou sobre o

paganismo: sim. Claro que sim, e seu triunfo foi tão grande que hoje, em uma sociedade de

crenças multiétnicas, com liberdade religiosa amplamente defendida, não se vê grupos nem

movimentos reivindicando adoração aos deuses pagãos romanos. A Roma política, a Roma

dos imperadores, entrava em declínio, e a Roma cristã estabelecida como Igreja receberia

como herança o poder de instituir e destronar reis, o Bispo de Roma se tornou, ao longo do

período conhecido como Idade Média, o cargo mais poderoso e desejado por líderes

religiosos desejosos de poder. E ainda hoje exerce um poder de influência sobre a

Cristandade que ultrapassa as fronteiras de Roma, alcançando todo o mundo ocidental, e

em qualquer país do Ocidente que for, o Bispo de Roma é respeitado e venerado como

autoridade religiosa e homenageado por políticos e reis.

Não era de se estranhar a facilidade que os pagãos tinham em se unir ao

Cristianismo, uma vez que viam na nova religião todos os seus antigos deuses sendo

cultuados em forma de veneração aos santos, aos homens e mulheres que, por levarem

uma vida exemplar, segundo o Cristianismo, foram elevados à condição de santos para

ocupar o lugar vago deixado pelos deuses pagãos. Dessa forma, a elevação do domingo à

condição de dia do Senhor, dia antes dedicado à veneração ao deus sol e oficializado pela

Igreja como o dia dedicado à adoração a Jesus, o Sol da Justiça, separando para esse dia a

reunião de maior importância da Igreja Romana, a missa dominical, marca a presença de

um dia sagrado para o paganismo, incorporado ao Cristianismo. E essa influência é tão

grande que, mais de 1.500 anos depois do Édito de Constantino, em uma sociedade

extremamente consumidora e capitalista, o dia de domingo especialmente em nosso país é

preferencialmente indicado como dia de repouso semanal em Lei Federal N.605/49 que em

seu artigo 1º diz:

Todo empregado tem direito ao repouso semanal remunerado de vinte e quatro horas consecutivas, preferentemente aos domingos e, nos limites das exigências técnicas das empresas, nos feriados civis e religiosos, de acordo com a tradição local. (Lei Nº605/49).

Dessa forma vemos como a forte tradição da religião católica influenciou a escolha

dos legisladores ao indicar o domingo para o dia de descanso semanal, dando a

oportunidade aos trabalhadores que professam essa fé terem o dia livre para irem à missa,

e ficarem o resto do dia em casa com a família e os amigos.

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Referências bibliográficas BÍBLIA SAGRADA. Versão Almeida revista e corrigida, SBB. São Paulo: SBB – Sociedade Bíblica do Brasil, 2005. BURNS, E. M. A Herança Mística e Extraterrena da Pérsia. In: _______. História da Civilização Ocidental, vol. I. Rio de Janeiro Editora Globo, 1982. CHADWICK, O. A Igreja Primitiva. Lisboa: Editora Ulisseia, 1969. COUSIN, J.BLOCH R. Roma e o seu destino. Rio de Janeiro: Edições Cosmos, 1964. GRIMAL, P. A civilização Romana. Lisboa: Edições 70, 1993. OLIVEIRA, O. J. A Igreja Católica. Rio de Janeiro: Editora Ados, 2007. SOUTHERN, R. W. A igreja Medieval. Lisboa: Editora Ulisseia, 1970.

Anexo I SICILIANO, Tomasso. Triunfo do Cristianismo contra o Paganismo. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:0_Triomphe_du_christianisme_-_Sala_di_Costantino_-_Vatican.JPG. Acesso em: 15 jul. 2015.

Triomphe du christianisme sur le paganisme - Fresque (1517-1524) décorant la voute de la Chambre de Constantin (Sala di Costantino) due au peintre Tommaso Laureti Siciliano.

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As Representações do Purgatório na Divina Comédia, de Dante Alighieri

The representations of the Purgatory in Divine Comedy by Dante Alighieri

Amanda Adrielli Ribeiro dos Anjos1 Resumo: Este trabalho pretende trazer para o debate as representações do Purgatório na obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri, escrita entre 1303 e 1321, na tentativa de uma melhor compreensão acerca do tema. O autor trata o Purgatório de uma forma ampla e bem elaborada, abordando e sintetizando discussões teológicas, tanto de sua contemporaneidade quanto de teólogos da Antiguidade Tardia. Como, por exemplo, Santo Agostinho, que já pensava em um terceiro lugar para as almas que cometiam pecados veniais, mesmo não o nomeando como Purgatório. Usando como base a perspectiva oferecida pela análise do imaginário, buscamos compreender as representações desse terceiro lugar chamado de Purgatório na obra de Dante, levando em consideração sua grande importância para o momento em que a obra foi escrita. Palavras-chave: Divina Comédia; Idade Média; Dante; Purgatório. Abstract: This work has the intent to bring in discution the representations of Purgatory in the book Divine Comedy by Dante Alighieri, written between 1303 and 1321, in tryal of a better understanding of the theme. The writter treats the Purgatory in aopenly and well elaborated way, adressing and synthesizing teological discutions, in his own contemporaneity as well as of theologian of the late antiquity. As exemple, Saint Augustine, which already thought about a third place for the souls who commited venial sins, even not namingitas Purgatory. Starting from the perspective which is offered in the analisis of the imaginary, we search understanding the representations of this third place called Purgatory in the work of Dante, considering his great relevance to his historical moment and the period that his book was published. Keywords: Divine Comedy; Middle Ages; Dante; Purgatory. Introdução

A religião católica mantinha-se presente em todas as esferas da sociedade medieval

e, portanto, interferia na forma com que as pessoas deveriam viver tanto na esfera pública

quanto na privada. A ideia de que a alma era imortal, podendo descansar no paraíso ou ser

condenada ao inferno era completamente enraizada, fazendo com que essa viesse a ser

uma das principais preocupações das pessoas. Nesse contexto, nasce o Purgatório, um

lugar onde os pecados poderiam ser purificados para que posteriormente os indivíduos

pudessem ser levados ao Paraíso.

A Divina Comédia foi escrita entre 1303 e 1321 pelo poeta florentino Dante Alighieri,

que nasceu em 1265, e, além de escritor, também foi político. Utilizando-se do dialeto

toscano, Dante escreve A Divina Comédia em estrutura de poesia épica e com o caráter

1 Graduanda em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, FCL/Assis.

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teológico e didático, pois mostra e adverte os comportamentos que levam à condenação da

alma. A obra é dividida em três partes: Inferno, Purgatório e Paraíso, onde o personagem

principal, que carrega o mesmo nome do autor, faz uma passagem pelos dois primeiros

lugares até chegar ao Paraíso.

Para os fins deste trabalho, analisaremos asegunda parte da obra, o Purgatório,

onde Dante nos mostra sua genialidade ao fazer a síntese de discussões teológicas

contemporâneas e anteriores a ele e utilizar sua criatividade para desenvolver a dinâmica

desse terceiro lugar onde as almas dos falecidos poderiam habitar por um determinado

período de tempo.

Santo Agostinho, na Antiguidade Tardia, antecipa Dante e é considerado o pai do

Purgatório ao pensar em um terceiro local para as almas, mas é no século XII que há

condições necessárias para seu triunfo.

Segundo Le Goff:

[...] para esses homens e mulheres da Antiguidade Tardia, cuja esperança no além se baseava, porque sempre assim foi [...],menos na ideia confusa de salvação do que na de uma compensação, numa outra vida, das injustiças do mundo, que estas reivindicações da equidadepodiam achar-se satisfeitas pela sofisticação da justiça proporcionada pela redenção após a morte. Mas isso era um luxo. Foi porque no século XII a sociedade mudou de tal maneira que esse luxo tornou-se necessidade, que o Purgatório pôde aparecer. (LE GOFF, 1995, p. 85-86)

Para o desenvolvimento deste trabalho, teremos em mente dois conceitos-chave: o

de representação e o de imaginário. Para Hilário Franco Jr.,

Apenas há pouco tempo foi tornado objeto de estudo o fato óbvio de que o homem e, portanto, a história, é formado tanto por seus sonhos, fantasias, angústias e esperanças quanto por seu trabalho, leis e guerras. (FRANCO JÚNIOR, 2001, p. 190)

A perspectiva oferecida pela análise do imaginário nos ajuda a entender melhor o

fato de a ideia da existência de um terceiro lugar no mundo espiritual ter passado pela longa

duração e fazer tanto sentido no mundo imaterial, a ponto de modificações estruturais serem

feitas na religião, base da sociedade, vários séculos depois de sua gênese.

Segundo José Roberto Mello,

Saber como os homens viviam é importante; mas, tão ou mais importante é saber como eles pensavam, como representavam mentalmente a realidade existencial, porquanto neste quadro imaginário estão inscritos os seus sonhos, os seus ideais de vida, suas ideologias [...]. (MELLO, 1992, p. 7)

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Para Chartier2, as representações são construídas por grupos que o fazem sob sua

prática. É a forma com que cada grupo, ou até mesmo cada indivíduo, enxerga o mundo

material e imaterial. Dante não representa o Purgatório sem utilizar-se de toda uma carga

cultural de seu meio, mas também se torna original em vários pontos de sua representação,

influenciando a forma de se enxergar o Purgatório após sua obra.

Obra

Nesta parte do trabalho vamos observar como Dante constrói o Purgatório em sua obra.

Veremos como ele desenvolve esquemas espaciais e temporais e quais são os tipos de

pecado que levam ao Purgatório ao invés da condenação eterna no Inferno.

É de suma importância compreender que o Purgatório de Dante atende a um esquema

de espacialização. O personagem principal se desloca por todo o território do Purgatório,

que se encontra na superfície da terra, entre o inferno que se localiza no subsolo, abaixo da

montanha do Purgatório e o Paraíso Terrestre no topo da mesma montanha.

O território é uma interiorização do espaço organizado pelo pensamento. Existe nele uma dimensão fundamental dos indivíduos e das sociedades [...]. Organizar o espaço do além foi uma operação de grande alcance para a sociedade cristã. Quando se aguarda a ressurreição dos mortos, a geografia do outro mundo não é questão secundária. (LE GOFF, 1995, p. 18)

Dante começa sendo extremamente original já no início da segunda parte de sua

obra. Ele nos apresenta um local chamado Antepurgatório, onde algumas almas ficariam ao

pé da montanha do Purgatório durante um tempo antes de poder adentrar no mesmo.

Segundo Dante, se o indivíduo se arrependeu de seu pecado antes de seus últimos dias, ele

pode ir diretamente para o Purgatório. Isso é elucidado em algumas passagens do livro, mas

especificamente falaremos de uma onde um personagem, o poeta Guido Guinizelli de

Magnano, explica a Dante o porquê de ter ido direto sem passar primeiro pelo

Antepurgatório: “arrependi-me antes dos meus últimos dias” (XXVI, 93).

Dante aborda algo muito importante para a Cristandade naquele momento, a venda

de indulgências.

Foi na época em que Dante fez sua viagem pelo além que aconteceu uma circunstância que remove os obstáculos à porta do Purgatório e empurra para a montanha multidão de almas que esperam. São as indulgências decididas pelo Papa Bonifácio VIII por ocasião do jubileu de 1300. (LE GOFF, 1995, p. 406)

2 Em sua obra História Cultural – Entre práticas e representações, Chartier trata do conceito e das

práticas de representação, e sobre o ofício do historiador a partir dessas questões.

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Dessa forma, mostrando a desordem que a medida tomada pelo Papa causou no

mundo espiritual. No purgatório dantesco não se entra quando e como quer, ele é um local

de purificação e deve-se ter um controle. Controle esse que foi deturpado pela venda das

indulgências. Outro fato que merece a nossa atenção é que o guarda do Purgatório é Catão

de Útica, político e filósofo da Antiguidade. Dante parece colocar a sua admiração por Catão

acima do fato de ele ser pagão.

Dante é marcado em sua testa sete vezes com a letra “P”, que simboliza pecado, a

marca é feita sete vezes para simbolizar os sete círculos do Purgatório, que se localiza em

uma grande montanha. As almas pecadoras sobem a montanha, pois

Toda lógica deste purgatório montanhoso segue a lei do progresso que se consegue ao subir: A cada passo a alma progride, torna-se mais pura. É uma ascensão em sentido duplo, sentido físico e sentido espiritual. O sinal deste progresso é o aligeiramento da pena, como se a escalada se tornasse cada vez mais fácil, a montanha menos escarpada, para a alma cada vez menos carregada de pecado. (LE GOFF, 1995, p. 401)

Até, por fim, chegar ao Paraíso terrestre.

Dante demonstra preocupação com a temporalidade quando está no Purgatório,

preocupação essa que não teve no Inferno e que não pode ter no Paraíso, pois não há a

existência do tempo.

A viagem de Dante e Virgílio3 ao Purgatório dura quatro dias em tempo

pascal, o da ressurreição, da vitória sobre a morte, da promessa de salvação: um dia, o da Páscoa, no antepurgatório, dois dias, segunda e terça-feira de Páscoa no monte do Purgatório, o quarto, quarta-feira, no paraíso terrestre. Durante toda a viagem, Dante anota cuidadosamente o movimento do Sol e dos astros, que os iluminam na sua ascensão circular e simbolizam a graça de Deus que os acompanha e leva para o céu as almas do Purgatório. (LE GOFF, 1995, p. 418)

Além de abordar o tempo que a viagem durou, é importante atentar ao fato de que

Dante fala sobre o tempo que as almas poderiam habitar o Purgatório. Sendo desde sua

morte até no máximo o Juízo Final.

Mas, leitor, que esmoreças não pretendo, Nem que os bons pensamentos te faleçam, Como o pecado pune Deus sabendo. Nem os martírios nímios te pareçam; Pensa bem no porvir; pois, chegando, O Grão Juízo, em caso extremo, cessam. (X,341)

3 Poeta romano do século I a.C., a ele é atribuida a autoria do poema épico Eneida, poema este que

conta a fundação de Roma.

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Dante discorda dos teólogos acerca dos pecados que levariam ao Purgatório. A

teologia aponta que, nesse terceiro lugar, são expurgados os pecados veniais, ou seja,

pecados tidos como mais perdoáveis. Santo Agostinho já pensava em um terceiro lugar,

entre o Inferno e o Paraíso, onde os pecados menos graves seriam purificados, porém para

Dante, ao invés dos pecados veniais, os pecados expurgados eram os sete pecados

capitais: orgulho, inveja, ira, preguiça, avareza, gula e luxúria. Esses pecados são

expurgados nos sete círculos da montanha do Purgatório.

Os sete pecados capitais são, para Dante, distorções do amor. As três primeiras

cornijas são o lugar onde se expurgam os pecados mais graves: orgulho, inveja e ira,

pecados cometidos contra o próximo. Esses pecados são tidos como transformação do

amor do bem em mal. As punições nesses casos seriam para fazer com que o amor do mal

voltasse a ser bom. “No centro do sistema inscreve-se o relaxamento do amor, o amor tíbio,

o amor lento, (lento amore). É o pecado que se expia a meia altura da montanha” (LE

GOFF, 1995, p. 404).

Os pecados cometidos pela corrupção do amor, causados pelo exagero desse

sentimento, são considerados os mais leves, eles são: avareza, gula e luxúria. Esses

pecados são expiados nas últimas cornijas. Com isso, pode-se perceber que a lista de

pecados é hierárquica, os pecados mais graves vindo primeiro, as piores punições, e os

menos graves depois. Mesmo o Purgatório se localizando na superfície da Terra sob o céu

estrelado, em alguns momentos Dante se sente como no Inferno. As punições nas cornijas

são bastante severas, porém, diferentemente do Inferno, as almas do Purgatório, rezam e

cantam louvores como sinal de esperança e arrependimento. As almas que estão no

Purgatório são almas salvas, destinadas ao Paraíso, portanto, mesmo em meio ao

sofrimento das punições, a esperança prevalece. O Purgatório é uma escolha do homem,

ele precisa estar arrependido de seus pecados. “Assim Dante terá fixado a lição mais

abstrata dos escolásticos que se perguntam se a pena do purgatório é voluntária” (LE

GOFF, 1995, p. 412).

Ou no pranto ou no riso se anuncia Tão rápida a paixão, quando se acende, Que o querer nos sinceros prende e lia. (XXI,427)

Para sair do Purgatório, era de suma importância a ajuda dos vivos em forma de

sufrágios4, e as almas pecadoras sabiam, por isso muitas vezes reclamavam de seus entes

4 Neste caso, a palavra sufrágio se refere aos sufrágios pelas almas. Os entes queridos dos mortos

promoviam missas, orações e faziam doações à Igreja para ajudar suas almas a passar pelo Purgatório e ir ao Paraíso.

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queridos que acabaram por não ajudá-los no mundo dos vivos. “Agostinho foi o primeiro a

afirmar a eficácia dos sufrágios pelos mortos” (LE GOFF, 1995, p. 86).

Após passar pelo Antepurgatório e as sete cornijas, Dante chega ao Paraíso

terrestre, onde Virgílio é substituído por Beatrice (grande amor de Dante), pois ele não

poderia adentrar o Paraíso por ser da época anterior ao nascimento de Cristo e, por isso,

não ter sido batizado. Antes de adentrar o Paraíso, Dante encontra dois rios, o Letes, que

retira a memória do pecado, e o Eunoé, que traz à tona as memórias do bem que praticou

durante a vida: “É uma metamorfose definitiva da memória, também ela lavada do pecado.

O mal está esquecido, só subsistente a memória do que há de imortal no homem, o bem. A

memória, também ela, atingiu um limiar escatológico” (LE GOFF, 1995, p. 422).

Ao sair dos rios, Dante se vê pronto para adentrar o Paraíso, juntamente com

Beatrice, que irá guiá-lo em sua jornada.

Considerações finais

Compreender como o homem medieval imaginava o lugar onde sua alma iria habitar

no pós-vida não era uma questão secundária, muito pelo contrário, fazia parte

intrinsecamente da vida cotidiana. A consolidação do purgatório teve relevância não apenas

religiosa, mas social e econômica. A obra de Dante faz uma síntese das discussões

teológicas acerca do Purgatório e traz uma nova abordagem sobre o assunto, trazendo para

o imaginário um modelo organizado e espacializado do local onde as almas habitariam por

um determinado período.

Dante através de uma obra de excepção, reuniu numa sinfonia a maior parte dos temas esparsos cujo rastro segui nesta obra. Purgatório [dantesco] é uma conclusão sublime para a lenta gênese do Purgatório. É também, de entre estas imagens possíveis e por vezes concorrentes do Purgatório, que a Igreja, ao afirmar o essencial do dogma, deixara à escolha da sensibilidade e da imaginação dos cristãos a mais nobre representação do Purgatório nascida do espirito humano. (LE GOFF, 1995, p. 395)

A perspectiva oferecida pela análise do imaginário e das representações, tendo

como objeto a ser estudado uma obra literária, nos dá ferramentas para compreender

melhor a religiosidade do homem medieval do século XIV. Sabendo que a religião era parte

fundamentalmente importante de sua vida, e que o destino da alma era uma preocupação

primária, entender essas questões nos leva a compreender questões políticas, econômicas

e sociais do medievo.

Referências bibliográficas

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ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Tradução José Pedro Xavier Pinheiro. Atena Editora. 2003. CHARTIER, Roger. História Cultural – Entre práticas e representações. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1990. FRANCO JR, Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. 2ª edição revista e ampliada. São Paulo: Brasiliense, 2001. LE GOFF, Jacques. O nascimento do Purgatório. 2 ª edição: Editorial Estampa, 1995. MELLO, José Roberto. O cotidiano e o imaginário medieval. Editora Contexto, 1992.

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O pensamento esotérico islâmico. Séculos VII a XII d.C.

Islamic esoteric thought. 7th to 12th centuries A.D.

Matheus Melo Barcelos5 Resumo: O pensamento esotérico compreende a busca pela interiorização dos mistérios ou ensinamentos religiosos. No Islã, o pensamento esotérico tem sido muito forte, almejando compreender os desejos divinos expressos no Corão, colocando-os em prática. O período histórico compreendido entre os séculos VII e XII d.C., denominado Islã clássico, foi o momento de conformação das bases da religião e cultura islâmicas, entre estas, emergiram os grupos esotéricos com suas teorias e práticas. Nesse recorte, destacar-se-iam o xiismo e o sufismo, que procuravam internalizar as revelações dadas ao Profeta Muhammad e encontrar nelas os verdadeiros significados dos símbolos – corânicos ou naturais – em vista a constituir, na realidade presente, os desejos divinos de justiça e unidade dos seres humanos. Com uma diversidade de propostas e formas, esses movimentos esotéricos deram ao Islã uma dinamização especulativa, voltada tanto à ortopráxis, quanto a questões filosóficas e teológicas que não se colocaram durante o período da revelação. Palavras-chave: Islã; Pensamento Esotérico; Mística; Xiismo; Sufismo. Abstract: Esoteric thought comprises the search for the interiorization of mysteries or religious teachings. In Islam, esoteric thinking has been very strong, aiming to understand the divine desires expressed in the Koran by putting them into practice. The historical period between the 7th and 12th centuries AD, called classical Islam, was the moment of conformation of the foundations of Islamic religion and culture, among them emerged the esoteric groups with their theories and practices. In this clipping, Shiism and Sufism would be highlighted, seeking to internalize the revelations given to the Prophet Muhammad and to find in them the true meanings of the symbols - Koranic or natural - in order to constitute, in the present reality, the divine desires of justice And unity of human beings. With a diversity of proposals and forms, these esoteric movements gave Islam a speculative dynamism, focused both on orthopraxis and on philosophical and theological issues that did not arise during the period of revelation. Keywords: Islam; Esoteric Thinking; Mystical; Shia; Sufism. Introdução

Grande parte das religiões destacam em sua práxis a necessidade de momentos de

interiorização, busca pela compreensão individual ou, por uma relação de proximidade com

o sagrado. Armstrong afirmou que: “A busca espiritual é uma jornada interior [...]”(2001, p.

7), e Annemarie Schimmel apontou: “[...] la gran corriente espiritual que atraviesa todas las

religiones. En su sentido más amplio puede ser definido como la consciencia de la Realidad

Una, ya se llame Sabiduría, Luz, Amor o Nada” (2002, p. 19-20), sendo essa interiorização a

busca da realidade transcendente, que fugiria à simples prática cotidiana dos preceitos

5 Programa de Pós-Graduação em História/Mestrado. FCL-UNESP/Assis. Orientador: Prof. Dr. Ivan

Esperança Rocha.

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exteriores à religião. A essas práticas de interiorização poderíamos denominar pensamento

esotérico, ou mística.

Essa busca esotérica, ao interiorizar a reflexão ou tentar compreender os segredos

das realidades transcendentes, ou mesmo da individualidade mística do fiel, conformaria

visões de mundo e propostas de reelaboração das relações humanas, políticas, sociais e

culturais, para com isso apresentar, de forma relacional e sensível, os significados ocultos

da fé, colocando-os em prática e reelaborando-os diante de outros parâmetros e posturas

como as literalistas e dogmáticas.

No islã, religião revelada em meados do século VII d.C.6, o pensamento esotérico

tem sido extremamente importante. Como uma religião baseada na relação dos seres

humanos com os desejos divinos, o Islamismo é uma fé que tem profunda preocupação com

os aspectos históricos, dando à história o papel proeminente de lugar de ação dos planos

divinos, planos estes que já haviam sido apresentados à humanidade, mas que a revelação

corânica, dada a Muhammad7, viria reiterar e, efetivamente, colocá-la em prática na história

humana (ARMSTRONG, 2001). O processo de revelação e a interiorização dos significados

exigiriam uma busca de ensinamentos no interior do ser fiel, o coração, sede da ação divina

em sua criação. Um hadith, tradição que atribui um ensinamento não corânico a

Muhammad, afirmava que nada em toda criação pode suportar toda a essência divina, a não

ser o coração de seu fiel (SCHIMMEL, 2002).

O desejo básico da revelação divina no Corão seria a constituição de uma sociedade

justa, igualitária, sob a égide da moral tribal vigente na Península Arábica, que vigorava

duas gerações antes do Profeta e que se perdera com o desenvolvimento econômico de

Meca, a muruwah (ARMSTRONG, 2002, p. 70). Nessa moral, as tribos, as famílias viviam

em pé de igualdade, com justiça e respeito, zelando pela vida, diante de um meio ambiente

hostil. Esse ideal (muruwah), que o Corão retoma, seria o conceito base de organização da

Umma – a comunidade dos fiéis, cujo primeiro modelo foi Medina, em que se expressaria

como uma vida política cuja base se assentaria na unidade (tawhid), assim, todo o corpo

social e todas as práticas se assemelhariam a Deus, uno e sem associação, tendo por base

a mensagem igualitária do Corão (ARMSTRONG, 2001).

O desenvolvimento político da comunidade muçulmana após a morte de Muhammad

e a grande expansão de territórios sob domínio árabe islâmico, em fins do século VII d.C.,

6 A revelação corânica, desde seu início, não se coloca como uma religião nova e busca trazer a

mensagem revelada aos árabes na continuação das religiões do Livro, o judaísmo, o cristianismo e o zoroastrismo (ARMSTRONG, 2001). 7 Neste trabalho, utilizaremos o nome de Muhammad ao invés de Maomé. O nome de Maomé

carrega uma série de sentidos construídos na cultura europeia, denotando concepções pré-conceituosas (ARMSTRONG, 2002), assim o nome na forma original Muhammad estaria mais de acordo com a tradição islâmica (ARMSTRONG, 2002). Títulos atribuídos a Muhammad são diversos no islã, sendo os principais: Profeta (Nabi) e Mensageiro (Rasul).

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resultaram na conformação de um sistema centralizado (inspirando-se no governo dos

impérios vizinhos), o que gerou a oposição daqueles que almejavam a manutenção do

modelo de vida da Umma medinense, resultando em conflitos, a fitnah, guerra entre os

muçulmanos e, no surgimento de grupos reformistas, cujo modelo medinense e a liderança

de Ali, genro do Profeta e seu sucessor espiritual8, apontavam o desejo de manutenção do

ideal corânico sob a unidade de Deus. Segundo Armstrong (2001), a fitnah auxiliou na

constituição dos primeiros grupos esotéricos que se voltavam à interpretação dos reais

desejos divinos expressos em sua mensagem revelada.

Far-se-ia importante notar que a expansão posterior à morte do Profeta levou os

árabes monoteístas a um contato maior com outros grupos religiosos. O Cristianismo e o

Judaísmo já eram presentes no Hijaz em meados do século VII d.C. Durante a vida de

Muhammad, pessoas devotas, os hanifis, estavam se aproximando dos cristãos, sendo que

esses, inclusive, faziam junto com os pagãos, o haji, a peregrinação ao santuário de Meca,

ainda sob a vigência do paganismo9. Todavia, essas religiões se viam e eram vistas pelos

árabes como superiores – já que tinham um livro com preceitos dados por Deus –, ou

suspeitas, por se relacionarem com a política externa dos dois grandes impérios próximos

(Bizâncio e Pérsia sassânida). A expansão possibilitaria, assim, um contato maior com o Ahl

al-Kitab, o Povo do Livro, do qual o Corão viria reiterar a mensagem e expurgar as

novidades (associacionismo), fonte de brigas. Entre esses grupos, os fiéis islâmicos iriam

encontrar métodos e formas, reelaborando suas práticas, tendo entrado em contato com

judeus, cristão pré-calcedonianos ( jacobitas e nestorianos ), zoroastristas e sabeus

(PEREIRA, 2007). Muitas dessas relações possibilitaram a constituição de práxis esotéricas

islâmicas novas, cuja tradição remontava sempre ao Profeta.

Esse período, entre os séculos VII e XII d. C., foi apresentado pelos pesquisadores

como “Islã clássico”, em que a conformação das bases teológicas e práticas da fé estavam

se organizando, sob a possiblidade da ijtihad – a abertura para a interpretação, que

permitiria a formação de grupos e a organização da jurisprudência, bem como a constituição

dos elementos fundamentais do pensamento esotérico (PEREIRA, 2007). Esse longo

período, compreendendo seis séculos, será neste texto apresentado de forma resumida,

com focos principais nos grupos e práticas esotéricas nascentes no Islã.

No entanto, para compreender o pensamento esotérico islâmico, teríamos que

compreender a experiência de Muhammad no processo de revelação corânico. O profeta do

8 Segundo Guillaume, na tradução da obra Sirat Rasul Allah, biografia de Muhammad escrita por Ibn

Ishaq, a proeminência dada a ‘Ali se explicaria no fato desse personagem, primo e genro do Mensageiro, ter sido o segundo converso à mensagem corânica, no início d pregação do mensageiro árabe (GUILLAUME, 1998). 9 O período anterior à revelação corânica na Península Arábia (Hijaz) foi denominado por Muhammad

e seus primeiros seguidores como o Tempo da Ignorância, Jahiliyah (ARMSTRONG, 2002).

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Islã tem sido o modelo básico de todos os místicos islâmicos. Nele, as especulações

voltariam, bem como toda a cadeia de autoridade (isnad) que reporta a uma cadeia de

tradição (silsila), que possibilitava a manutenção das práticas esotéricas. O místico, sufi ou

xiita, buscaria a inspiração que Muhammad teve no 17 de Ramadã de 610 d.C., a noite de

Qadr, quando foi revelada primeira sura.

A revelação corânica como experiência esotérica do Profeta Muhammad

A revelação corânica, ou a descida do Corão, iniciou-se quando Muhammad estava

por volta dos 40 anos (PEREIRA, 2007). Ele era um comerciante mequense, da tribo dos

Hashim, grupo menos abastado dos Coraixitas (tribo governante de Meca), com fama em

sua cidade natal de ser uma pessoa sincera e piedosa (ARMSTRONG, 2002), buscando

praticar, nas crenças já existentes do paganismo árabe, os principais preceitos. Armstrong

(2002) afirmou que ele se aproximava muito dos hanif – pessoas que buscavam uma vida

religiosa distinta do paganismo e utilizavam métodos das religiões monoteístas presentes na

Península Arábica, Judaísmo ou Cristianismo em seus ramos heterodoxos10. As religiões

monoteístas eram presentes no Hejaz, no século VII d.C., e já havia um movimento de

reconhecimento da proeminência de al-Llah (O Deus), entre os mequenses e as tribos que

peregrinavam ao santuário da Caaba em meados do século VI d.C. (ARMSTRONG, 2002).

Ferrín (2009) aponta a presença de reminiscências dos debates teológicos cristãos

mediterrâneos na conformação do pensamento religioso de Muhammad.

Durante os meses sagrados dos árabes, Muhammad, isolava-se e jejuava, nas

cavernas entorno de Meca, como Monte Hira’, praticando atos superrogatórios devocionais,

distribuindo esmolas e abstendo-se das relações sexuais. Em uma dessas ocasiões, mais

precisamente no 17 do ramadã de 610 d. C.11, recebeu a primeira revelação (Sura da

Aderência), levando-o a um estado de sentimentos que, segundo seus biógrafos, tornou-se

recorrente durante todo o processo de revelação.

Os biógrafos do Profeta do Islã (sendo Ibn Ishaq o primeiro compilador, em meados

do século VIII d.C.), bem como as tradições – hadith, apontam que nos momentos dessas

revelações – que se deram ao longo de 21 anos –, ele se alterava, sentindo o “abraço do

anjo”, que o fazia desfalecer e seu coração parecia ser arrancando, para que as revelações

10

Ferrín (2009) aponta a presença de grupos heterodoxos na Península Arábica como os coliridianos. Algumas tribos do norte da Península, em meados do século VII organizaram Estados tampões e compunham parte da política beliciosa entre os Impérios Bizantino e Sassânida. Muhammad tem um interesse nessas comunidades, tanto que sua migração para Yathrib, Medina, deu-se por ser um oásis de tribos majoritariamente judaicas (Armstrong, 2001). 11

A data de 17 do Ramadã torna-se no pensamento esotérico islâmico símbolo de extrema importância, relacionando-se com diversos eventos místicos posteriores, como o assassinato de ‘Ali, a Ressureição de Alamut, ou o nascimento de Ibn ‘Arabi, demonstrando um papel de data sagrada.

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fossem inseridas nele (GUILLAUME, 1998)12. As revelações causaram no personagem um

conflito tal que, segundo as mesmas tradições, ele tentou cometer suicídio, por pensar estar

sendo possuído pelos djinns. A possessão por djinns era atributo dos kahinin, adivinhos do

Hijaz que realizavam sortilégios e adivinhações (ARMSTRONG, 2002). Diante desse temor,

Muhammad teve como amparo sua esposa Khadja, que o auxiliou na compreensão, bem

como o primo dela Waqada, um hanif cristão, que apontou a legitimidade de sua revelação.

O cerne da mensagem revelada era a busca pela organização igualitária dos árabes,

com um retorno aos preceitos morais básicos da vida tribal, bem como a transcendência da

vida humana, unidos na fé em um criador único. O homem fora criado para reconhecer seu

criador e viver unido a ele em todos os aspectos da vida, possibilitando, assim, a

concretização do que fora escrito na Tábuas Primordiais13. Deus, por meio das revelações,

estava agindo e a história era seu campo de ação. Muhammad ensinava a observar os

sinais de Deus, interiorizando os significados presentes na Natureza.

Com a migração para Medina – Hégira (Hijra)14, Muhammad vai, pela primeira vez,

pôr em prática os preceitos da mensagem revelada. Organizou uma comunidade que se

baseia no desejo divino de igualdade, como revelado no Corão, em que tudo e todos

estejam unidos ao um (tawhid), a Umma. No intuito de conformar a comunidade aos desejos

de Deus e unificar os árabes sob uma revelação, o Mensageiro de Deus foi, ao longo dos 21

anos, recebendo mensagens que possibilitassem esclarecer os rumos do novo grupo. A

cada revelação, ele se aprofundava na interiorização dos significados, buscando meios de

compreender as vicissitudes da vida, da história e da natureza (ARMSTRONG, 2002).

Toda a revelação foi transpassada por práticas, sendo, além do igualitarismo, a

presença do az-zuhd, o desapego, que qualificou Muhammad como um merecedor. Em

Medina, por mais que fosse o líder, ele vivia no pátio da mesquita construída por ele e pelos

ajudantes. Sua alegria era transpassada pelo desapego aos bens, utilizando apenas o

necessário, com a devida moderação (ARMSTRONG, 2002). Dessa práxis resulta uma

tradição que afirma, pela boca de Muhammad: “Faqr fakhri!” (A pobreza é meu orgulho),

posteriormente base para tradições ascéticas dos místicos sufis ou xiitas (SCHIMMEL,

2002). O az-zuhd – o desapego – atribuído ao Profeta, juntamente com a Revelação

12

É importante ressaltar que, segundo nos aponta Guillaume ao traduzir o texto de Ibn Ishaq, esse autor do século VIII d.C. estava próximo às posições xiitas sobre a vida de Muhammad, associando as ações do mensageiro árabe com os alides, o que comporia uma imagem distinta do Profeta (GUILLAUME, 1998). 13

As Tábuas Primordiais compõem o conjunto de desejos divinos expressos na criação e que se mantêm veladas no céu, mas que se mostra aos poucos, conforme a vontade de Deus, aos homens. Também se encontra nas realidades divinas o livro do Destino (NASR, 2005). 14

A Hégira, migração da comunidade muçulmana mequense para Medina, deu-se em 622 d.C. Sua data é marcada em 12 de Rabi al-Awwal, 24 de setembro. O Califa ʿUmar transfere a data para 16 de julho de 622 d.C., primeiro dia do Muharram. Essa data marca o início do calendário islâmico (PEREIRA, 2007).

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descida, que lhe causava estados extáticos, passou a ser a meta humana possível de

piedade aos fiéis. A figura do Profeta, como um homem místico, é a base da vida islâmica,

modelo a ser seguido e estudado e ponto de referência para a elaboração dos métodos

esotéricos (SCHIMMEL, 2007; ARMSTRONG, 2002).

Outra experiência marcante das qualidades místicas de Muhammad foi a Miraj, a

Viagem Noturna, em que foi arrebatado pelo anjo, identificado sempre como Gabriel, e

levado por um animal místico, o Buraq, para Jerusalém, onde se encontra com Moisés e

Jesus. Após esse encontro, ele sobe aos diversos céus e contempla a essência divina, ʿIsra

(ARMSTRONG, 2002). Essa viagem e as revelações confirmariam a tradição atribuída a

Aisha que afirmava que seu marido estava sempre com o semblante pacífico e um olhar

espiritual (ARMSTRONG, 2002).

Nos momentos de busca por significados, seja para acontecimentos históricos, ou

para resolução de questões práticas da comunidade medinense, Muhammad recebia as

revelações, que eram antecedidas por momentos extáticos, em que ele sentia-se como que

abraçado pelo anjo – Gabriel –, e utilizava um manto (khirqa) com o qual se cobria para se

proteger dos efeitos das mesmas revelações: o frio que sentia e o suor copioso

(ARMSTRONG, 2002). A khirqa iria se tornar um símbolo da busca esotérica e, como afirma

Schimmel (2002), passaria a significar a possibilidade de ligação com a baraqa (bênção

divina) do Mensageiro de Deus para os árabes.

A vida de Muhammad trouxera à tradição islâmica uma figura muito singular, ʿUways,

o iemita. Esse provável hanif haveria pressentido a vinda da revelação aos árabes em

Muhammad e convertera-se a distância sem nunca ter conhecido o Mensageiro islâmico.

Durante a fitnah, os conflitos surgidos após a morte de Muhammad, esse personagem lutou

junto aos companheiros de ʿAli, sendo morto e considerado um dos primeiros sahid,

testemunhas, mártir da fé (SCHIMMEL, 2002). O Iemita e sua história passariam a ser um

modelo de base aos futuros místicos, que poderiam conhecer e se beneficiar da baraqa de

Muhammad, conhecendo-o de forma sutil e esotérica.

Como herdeiros diretos do Profeta, os Ahl al-Bayt – O Povo da Casa, seus familiares

habitantes da cidade santa de Medina, colocaram-se como guardiões dessas práticas e da

pureza da mensagem, como afirma o próprio Corão (Surat al-‘Ahzab, a. 32-33). Assim que

faleceu, a Umma, passou por um processo de substituição da liderança que foi conturbado e

gerou desentendimentos. ʿAli, primo e genro do Profeta, casado com Fátima, e seus

seguidores posicionaram-se como os guardiões da práxis muhammadiana. A proximidade

de ʿAli com Muhammad e a prática virtuosa daquele personagem, quando das principais

ações do Profeta (sendo seu genro um dos primeiros convertidos) levaram alguns membros

da comunidade medinenses a vê-lo como sucessor místico dos ensinamentos e

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interpretação da mensagem pura, bem como o líder legitimo da Umma, que em tempos da

morte de Muhammad, já conseguira associar, por meio de pactos, grande número de tribos

árabes.

A revelação corânica tem sido vista no islã como um evento transcendente e

esotérico (PEREIRA, 2007). Muhammad, como homem criado, foi levado a experienciar os

desejos divinos, o que lhe causou grande medo e responsabilidade. Sua prática de

desapego e suas ações, vistas como confirmação dos desejos divinos, colocaram-no como

exemplo de homem e modelo terreno para alçar as realidades transcendentes, partindo de

seu próprio interior.

O pensamento esotérico xiita: uma aproximação aos primeiros momentos

Para compreendermos o processo de formação dos grupos esotéricos islâmicos

seria necessário apresentarmos eventos da história política no processo de expansão

islâmica. Como a mensagem corânica prezava pela constituição da comunidade justa –

Umma – foi diante das reelaborações feitas sobre esta, entre os líderes dos Exércitos de

conquista liderados pelos Omíadas e da perspectiva de uma interpretação clara dos

preceitos dados pelo Profeta islâmico quanto ao igualitarismo da moral corânica que se

distinguiriam os diversos ramos (ARMSTRONG, 2001).

Com a expansão militar e a necessidade de governar um grande território, a

liderança política dos exércitos estava nas mãos de filhos dos principais inimigos de

Muhammad durante a pregação deste, que após a conquista de Meca havia se convertido.

Os Omíadas, descendentes de Suhayl, iniciaram um processo de centralização política para

governar as regiões conquistadas, utilizando os modelos dos impérios vizinhos e, com isso,

distanciando-se dos valores igualitários da Umma e do Corão. Insurgiu, então, um conflito

armado, a fitnah, que opôs os líderes dos Omíadas e a comunidade de Medina, liderada por

ʿAli. Esse personagem foi assassinado (recebe o golpe no 17 de Ramadã e morre três dias

depois), e seus filhos, Hassan e Hussayn, continuaram como os defensores do purismo e

igualitarismo da mensagem corânica e colocaram-se como principais interpretes dessa

mesma mensagem. Nesse contexto, os ligados a ʿAli, passaram a ser denominados de

Shi’ah al-ʿAli, voltando-se para a interiorização das interpretações do Corão e da ética social

da Umma, constituindo, após o assassinato de diversos partidários e dos fatos de Karbala15,

15

Em 10 do Muharram, as tropas de Yazid, califa omíada, interceptaram um grupo liderado por Hussayn em Karbala, indo esses de encontro com os grupos que reclamavam do sistema de governo centralizador que se impunha. O cerco impossibilitou o acesso do grupo à água. O exército de Yazid, para testar Hussayn, colocou páginas do Corão na ponta de suas lanças e atacou. Hussay e setenta companheiros foram mortos. Tal evento aprofundou a divisão entre Omíadas e os Ahl al-Bayt (ARMSTRONG, 2001; TABATABAI, 1975).

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um ramo esotérico minoritário ligado aos Ahl al-Bayt, conhecido atualmente como xiismo,

em suas diversas vertentes.

A devoção a ʿAli e sua família é característico do xiismo (TABATABAI, 1975). Como

um dos primeiros conversos de Muhammad, seu primo e filho de criação, tendo depois se

casado com Fátima, ʿAli, também alcunhado de Haydar, o Leão, deu mostras de sua

devoção e piedade auxiliando o Profeta islâmico. Quando da Hijra (Hégira), migração para

Medina, uma trama dos líderes mequenses intentava assassinar Muhammad. Sendo

avisado, esse personagem conseguiu escapar e deixar seu primo em sua cama, vestido em

suas roupas, despistando os sicários (ARMSTRONG, 2002).

Em Medina e nos momentos de lutas posteriores, quando da consolidação das

alianças, a bravura de ʿAli nas batalhas o alçaram a uma proeminência na comunidade.

Com a morte de Muhammad, a sucessão parecia recair em seu genro, e pareceu a

alguns que o Profeta árabe havia dado a ele a preferência (ARMSTRONG, 2002), todavia

Abu Bakr, pai da Aisha, foi o escolhido, gerando alguma desconfiança e desconforto entre

os muçulmanos. ʿAli só conseguiria o comando da Umma após a morte do terceiro califa,

Uthman. A expansão já se fizera a vastos territórios, e os descendentes de Suhayl, os

omíadas, comandavam o exército na Síria, e almejavam construir um aparelho de controle

centralizado para governar os domínios e populações.

Na Cidade do Profeta – Medina –, via-se com pouca confiança esse comando de

recém-convertidos querendo impor algo novo que a mensagem divina não contemplava. Os

partidários de ʿAli se colocaram contra os projetos centralizadores, a Umma, governada pelo

califa, deveria seguir os preceitos e formas criadas em Medina, e a família do mesmo, em

sua descendência por meio de Fátima, deveria ter a proeminência, como já havia afirmado

uma das revelações corânicas (Sura XLII, v. 23).

Diante de uma ação menos enérgica de ʿAli contra os omíadas, um grupo radical se

separa, os khariditas, literalistas, e um membro desse grupo, no 17 de Ramadã, atenta

contra o genro do Profeta, ferindo-o, o que o levou à morte três dias depois. A liderança

passaria para seus filhos; o mais velho, Hassan, não foi tão enérgico e também morreu de

forma misteriosa. Hanafyya, outro filho de ʿAli, também desapareceria, trazendo à baila os

primeiros relatos de ocultamento (que seria recorrente no pensamento xiita). Hussayn, seu

outro filho, buscou lutar com mais afinco pela causa, o que o levou a ser martirizado,

juntamente com setenta companheiros em Karbala. Esse ato marcou a visão xiita e tornou-

se uma das principais celebrações, a Ashura, em 10 de Muharram, que, segundo Armstrong

(2001), já era comemorada no século IX d.C.16

16

Uma tradição (hadith) xiita afirma que Muhammad havia dito: “Eu estou em Hussayn, Hussayn está em mim.”

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O pensamento esotérico xiita se ampararia em alguns elementos: o principal seria a

proeminência dos Ahl al-Bayt, a Família de Muhammad, como os únicos a serem legítimos

representantes do Profeta islâmico na terra, e únicos autorizados à interpretação dos

sentidos da mensagem divina, bem como os conservadores dos valores primordiais da

comunidade medinense. Salvaguardar a haqiqa, o sentido espiritual das revelações, alçou à

divisão entre um sentido exterior (zahir) e um sentido oculto (batin) do Corão.

Diante das guerras da fitnah, e dos sucessivos assassinatos e mortes inexplicadas

entre os descendentes de Fátima, os parentes próximos do Profeta, netos e bisnetos, iriam

manter uma postura mais quietista. Os líderes desse grupo, denominados Imam (termo

árabe para líder), passaram a teorizar sobre o caráter transcendente de sua família, e com

isso surgiriam os primeiros relatos do Ocultamento, o esconder-se do Imã, líder religioso,

diante de um mundo corrupto e assassino.

Outro ponto importante é a figura do Mahdi. Esse personagem, que retornaria para

implementar a justiça no mundo, sendo seu governante único, também foi ligado à linhagem

muhammadiana e, dependendo do ramo xiita, seria identificado com diversos personagens.

Armstrong associou a presença dessa figura, que seria descendente de ʿAli, bem como os

aspectos divinos a esse personagem, com a apropriação de elementos do pensamento

cristão com que os xiitas passaram a ter contato. Afirmou a autora:

Eles viam ‘Ali como uma encarnação do divino (como Jesus), e acreditavam que os líderes xiitas que tinham sido mortos numa insurreição estavam temporariamente “ocultos” e voltariam para inaugurarem um reino utópico de Justiça e paz no Dia do Juízo Final. (2001, p. 96)

O mais importante pensador xiita, e considerado pelos dois grandes ramos do

islamismo, foi Jaffar Al-Sadiq, O Virtuoso, VI Imã. Sua teorização levou à constituição dos

principais elementos do pensamento esotérico, tanto entre os xiitas quanto entre os sunitas.

Foi um dos primeiros a tratar da compreensão do Corão sobre a égide do significado oculto,

bem como teorizou sobre a taqiya, a dissimulação para conservação da vida.

Al-Sadiq afirma:

El libro de Dios compreende 4 cosas: la expresión anunciada (ibarat), la intención alusiva (isarat), los sentimentos ocultos relativos al mundo suprasensible (lata’if) y las supremas doctrinas espirituales (haqa’iq). La expresión literal está dirigida al comum de los fieles (‘awamm); la intensión alusiva concierne a la elite (jawass); los significados ocultos corresponden a los amigos de Dios (awliya) y las supremas doctrinas espirituales a los profetas (anbiya) (AL-SADIQ apud ALCALDE, 2005, p. 59)

Com os imãs xiitas, surgiria uma busca por métodos de compreender os significados

ocultos da revelação corânica. O tawil, a busca pelos significados das palavras levaria ao

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batin, o verdadeiro sentido, que só seria acessível a poucos e apenas transmitidos pelos

descendentes de ʿAli. Como, segundo a revelação corânica, Muhammad havia fechado todo

o ciclo de profecia, desde Adão, os fiéis islâmicos passariam a viver em um período de

Walayah, momento de santidade, em que os imãs guariam, permeados por momentos de

ocultação. O título de wali, amigo sob proteção, seria atribuído a ʿAli, esse por sua piedade e

morte, teria a honra de ser um wali-Allah, Amigo de Deus, com contato direto com a

divindade, assim como todos os seus descendentes, atribuindo a esses um caráter quase

divino17.

A participação dos descendentes de ʿAli na crítica à proposição centralizada de

governo dos Omíadas levou a diversos assassinatos. Os shiatun procuravam atacar

moralmente os omíadas, asseverando seu distanciamento da mensagem corânica e do

modelo da Umma. Tal postura levou ao desenvolvimento do conceito da taqiya, a

dissimulação. Al-Sadiq, um dos defensores dessa postura, apontava que, conforme o ideal

do Corão, a vida era muito importante, e para mantê-la, poder-se-ia dissimular suas práticas

e crenças, aparentando seguir uma vida conforme os ideais pecaminosos, mas no íntimo

continuando a aprovar as ideias reformistas de retorno a Umma. O sentido oculto das

práticas, a vida interior, a interiorização dos pensamentos, valiam mais do que as formas

exteriores. Afastar-se das disputas políticas também poderia ser uma opção de taqiya,

mesmo que esse afastamento fosse dissimulado, a manutenção de condições para a oração

e continuidade da fé diante de governos perseguidores e distantes da ética básica da

revelação.

Jaffar al-Sadiq afirmou: “Nuestra causa es un secreto (sirr) dentro de outro secreto, el

secreto de algo que permanece oculto, un secreto que solo outro secreto puede desvelar; es

un secreto acerca de un secreto que se basta con un secreto”. (AL-SADIQ, apud ALCALDE,

2005, p.74). A interiorização dos significados das revelações corânicas, acessível a poucos,

estaria na base da verdadeira fé. Um grupo seleto a possuiria, e apenas os membros desse

grupo, sob a orientação dos Ahl al-Bayt, poderiam compreender os mistérios das palavras

divinas.

A sucessão de do Imã Jaffar levou a uma divisão entre os grupos do xiismo.

Segundo alguns relatos (ALCALDE, 2005; ARMSTRONG, 2001), o desejo desse imã seria

passar o imanato a seu filho Musa al-Kazim, todavia seu filho mais velho, M. Ismail ibn

Jaffar, seria o tradicional sucessor. A sucessão no imanato não parecia, segundo Alcalde

(2005), uma questão de primogenitura. Assim, os grupos se desentenderam. Os seguidores

17

Considerar alguma criatura como associada a Deus é para a fé islâmica um grande erro teológico. A concepção de hulul, consubstancialidade, não é bem vista, já que o Corão rejeita a ideia de trindade (Sura das Mulheres, IV, v. 171). Talvez, o título tradicional de Insan al-Kamil, o Homem Perfeito, dado pela tradição islâmica a Muhammad, pudesse ser atribuído a seus descendentes, assim ʿAli, Fátima e seus descendentes poderiam ter proeminência na Comunidade.

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de Musa e seus descendentes, que vão até Al-Mahdi, o Oculto, tornaram-se os itna’ ashari,

ou duodecimanos; os que viam a sucessão em Ismail, passaram a serem conhecidos por

sab’iya, setimanos ou ismailitas, seguindo uma outra cadeia genealógica.

Armstrong (2001) apontou como a divisão dos grupos levou a uma certa separação

de métodos, e assim também o afirmou Alcalde (2005). Os duodecimanos, que habitavam

principalmente Medina e a região ao sul dos rios Tigre e Eufrates, próxima a Basra,

buscaram viver a taqiya, tornaram-se quietistas e não causaram tumultos nos califados

omíadas e abássidas, participando, segundo Alcade, do jogo político de ascensão dos

últimos.

Já os ismailitas, como afirmou Armstrong (2001), talvez inspirados em Zayd, neto de

ʿAli, escolheram uma postura de ação e intensificação da crítica, propondo um retorno aos

ideais corânicos e uma busca dos sentidos ocultos dos desejos divinos. Um elemento novo

trazido pelos xiitas ismailitas, também presente nos xiitas duodecimanos, foi a instituição da

futuwwa, agremiações. Como a busca pelos sentidos ocultos demanda a ligação com um

dos imãs ou seus assessores, os dawa (plural de da’i – pregador), passou a haver uma

ligação entre mestre e aprendiz, e uma relação de dependência desses mestres

autorizados. Os dawa, pregadores populares, levaram o pensamento xiita a diversas áreas

do Dar al-Islam.

Os dawa ismailitas fizeram vários conversos entre os árabes que haviam migrado

para a Pérsia. Depois de converterem os árabes, que eram muçulmanos, passaram a pregar

aos habitantes locais. Suas palavras de justiça e transformação na terra, por via do Mahdi,

converteram um grande número de pessoas.

Outro grupo ismailita, devido a sua fuga por enfrentar o califado abássida, refugiou-

se no norte da África, onde conseguiu apoio da população berbere e, partindo dali,

conquistou o Egito, instituindo assim um califado xiita, que ficou conhecido por califado

fatímida, entre 909 e 1171 d.C. A dinastia fatímida desenvolveu no Egito uma cultura e

governo bastante significativo, sendo seus representantes os responsáveis pela constituição

da universidade na mesquita de Az-Azhar, centro de estudos do Islã, e também de onde se

enviavam dawa às diversas partes do mundo islâmico.

Todavia, os fatímidas, por participarem do grupo ismailita, mantinham-se isolados da

população, já que a maioria dos muçulmanos egípcios eram dos ahl al-hadith, ligados ao

desenvolvimento jurídico dos abássidas, que passaram a se denominar Povo da Sunna, ou

sunitas. Duas querelas sucessórias levaram ao enfraquecimento dos fatímidas, bem como

criaram mais dois grupos religiosos.

A sucessão de Al-Musta’li e o assassinato de Nizar deram origem ao grupo dos

nizari, que, saindo do Egito, radicaram-se na Síria e estabeleceram relações com os

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ismailitas do norte da Pérsia. Os métodos desse grupo foram bastante conhecidos dos

cruzados, e criaram no Ocidente uma série de lendas. Suas ações políticas, a prática da

taqiya e dos atentados contra governantes, bem como o uso de fida’im, atos de assassinato

seguidos de suicídio, e as lendas tornaram os membros desse grupo famosos e, no

Ocidente, conhecidos como assassinos. Os nizari constituíram, a partir de Alamut, no norte

do atual Irã, um sistema político que só foi desmantelado pela ocupação dos mongóis. Suas

doutrinas, em grande parte secretas, levaram à constituição de um islã introspectivo. Alguns

dos líderes, como Hussayn, em 17 do ramadã de 1166 d. C., havia declarado o fim da

necessidade da oração e sua posição de enviado divino (Mahdi), trazendo a seus fiéis a

ressureição.

Com al-Hakim, califa de c. 1020 d.C., e sua declaração contraditória, considerando-

se parte da divindade, seguido de seu ocultamento, tendo seu corpo desaparecido após

uma caminhada ao redor do Cairo, surge o grupo dos drusos. Durante certo tempo,

mantiveram sua fé em al-Hakim por meio da taqiya, mas com a ascensão dos cortesãos e

chefes do exército no governo regente da irmã de al-Hakim, os drusos migraram para as

colinas do Líbano. Suas crenças incluem a metempsicose e o caráter de ensinamento

secreto, esperando o retorno do Mahdi al-Hakim.

Outro grupo importante, do qual pouco se tem conhecimento, são os Irmãos da

Pureza. Reunidos provavelmente nas cidades xiitas do sul do atual Iraque, compilam uma

obra, a Risala Ikhwan al-Safa, a Epístola dos Irmãos da Pureza, em que organizavam o

saber filosófico e a interpretação dos sentidos ocultos. Essa obra circulou no mundo

islâmicos, também por meio dos dawa, chegando até o al-Andalus, influenciando alguns

grupos místicos e sendo base para a obra e ação de Ibn Qasi, no Algarve (MACEDO, 2008).

O sufismo

Com suas raízes na experiência do Profeta (SCHIMMEL, 2002), o sufismo

caracterizaria uma abrangência de práticas e busca interiorizante do islã de vertente sunita.

Para Armstrong (2001), a experiência do sufismo surgiu como tentativa de retornar à pureza

da Umma e da interpretação do Corão, diante da organização das escolas de jurisprudência,

do rigorismo e do literalismo estimulados pelos abássidas, na tentativa de consolidar sua

estrutura califal centralizada.

Os primeiros sufis foram assim denominados por sua busca pelo desapego material

(az-zuhd), inspirados na prática muhamadiana. O termo sufi derivaria da palavra tasawwuf,

que designava a vestimenta de lã bruta utilizada pelos mais simples (SCHIMMEL, 2002).

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Nos momentos iniciais desse movimento, uma das características básicas era a

busca pela solidão e introspecção dos sentidos da revelação divina. Os místicos desse

primeiro período tinham características críticas mais acentuadas, buscando uma relação

sensitiva maior e desprezando as bases éticas da vida social (SCHIMMEL, 2002).

Armstrong (2001) os classifica como os “ébrios”, por suas práticas extáticas que lembravam

as pessoas que se embebiam demasiado de vinho. Sua prática da ijtihad, a livre

interpretação do Corão, possibilitaram a conformação de relação distintas com a realidade

divina, tratando-a por meio do topos literário do Amado (Deus) em relação ao seu

dependente fiel (Amante).

Diversos personagens foram identificados com esses ramos do Islã. Abu Bakr e ʿAli

eram os personagens citados como origem das práticas (SCHIMMEL, 2002). Al-Qushayri,

em sua Epístola sobre o Sufismo (c. 986 d.C.), cita uma lista de 80 nomes de místicos

presentes no Khorasan, sua terra natal, região ao norte da Pérsia. Voltados à busca

transcendental, alguns foram aclamados com títulos como de “Amigo de Deus”, outros foram

perseguidos e mortos sob a acusação de novidade (bid’ah) ou associacionismo (hulul), ou

mesmo de heresia (shirk, zindq).

Entre os nomes mais famosos desses sufis “ébrios”, poderíamos citar Rabi’ah al-

Adawiya (c. 800 d.C.) e Al-Mansur Al-Hallaj (c. 900 d.C.). Rabi’ah viveu em fins do século

VIII d.C., em Basra, conhecida por estar voltada sempre ao seu Amado, Deus, buscando a

unidade com esse. Conta-se que corria pela cidade com um balde de água e uma tocha;

quando questionada, dizia levar a água para jogar no inferno e a tocha para queimar o

paraíso, para que com isso as pessoas voltassem apenas a Deus em sua essência e

unidade (SCHIMMEL, 2002; TEIXEIRA, 2004).

Al-Hallaj, o Cardador de Algodão, viveu em Bagdá. Sua fama de místico e piedoso

era grande. Buscava a união com Deus por meio do amor. Certa vez, afirmou: “Ana al-Haqq!

(Eu sou a Verdade!)”, o que lhe custou um julgamento, pelos juristas da cidade, e a

condenação à morte. Foi sentenciado e assassinado, tornando-se um sahid, mártir,

testemunha, em 26 de março de 922 d.C. (SCHIMMEL, 2002). Schimmel apontou que esses

místicos prezavam pela wara (abstinência), o desapego, a tristeza, pela distância de seu

Amado, Deus, praticando exercícios de ascese que imitariam o Profeta.

Após esse período, surgiram outros místicos, principalmente em Bagdá, ligados à

escola de Junayd, entre esses, o famoso Al-Ghazzali. Para esse místico, a filosofia e a

mística deveriam caminhar juntas, possibilitando a ascensão às realidades transcendentes.

Para esse e seus seguidores, o tempo dos andarilhos e místicos solitários havia acabado. O

estar ébrio no amor divino seria apenas a forma inicial de se acercar dos mistérios de Deus

(SCHMMEL, 2002; ARMSTRONG, 2001). A esses, Armstrong classificou como sufis

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“sóbrios”, já que privilegiavam a via intelectual da busca mística e a introspecção de um

conhecimento intelectual para alçar às realidades transcendentes.

Esses filósofos místicos, estavam ligados ao conhecimento das obras de Aristóteles

e Platão, traduzidas durante o período abássida (PEREIRA, 2007). Nesse contexto, surgem

os grupos dos mutazilitas, que viam a necessidade do estudo das ciências e a utilização da

razão para compreender as revelações divinas, bem como da defesa do livre arbítrio e da

participação do homem em sua salvação. Obtiveram grande sucesso em meados do século

X d.C., mas foram logo perseguidos pelos juristas ligados às Quatro Escolas de

Jurisprudência Corânica e pelos abássidas (PEREIRA, 2007).

Posterior a al-Ghazzali, o sufismo iria tornar-se popular, seus livros, em alguns casos

passariam a manuais de devoção, simples, e apontariam a presença dos grupos místicos

espalhados por todo o Dar al-Islam. Muitos poetas sugiram, expressando sua busca das

realidades interiores. Existiram grandes nomes desde o Oriente, com representante no

Khorassan, no Irã, de onde sugiram ʿAttar, com sua poesia, e Sohrawardi, com sua teologia

sincrética da Luz (CORBIN, 1993). No Ocidente, existiram grandes nomes como Abu

Madyan, Ibn Massara e Ibn ʿArabi, que conglomeram e teorizaram sobre as práticas

místicas e o pensamento esotéricos, iniciando escolas no Al-Ándalus (Ibn Massara e a

Escola de Almeria), associando-se em torno desses personagens grupos de buscadores

místicos, intentando compreender as revelações corânicas (ASÍN PALACIOS, 1919, 1930;

SCHIMMEL, 2002).

Apontamentos Finais

Com o intuito de fazer uma breve apresentação da conformação do pensamento

esotérico islâmico no período denominado de clássico, em que as bases da religião e cultura

islâmicas estão-se formando, talvez tenhamos passado muito rapidamente por diversos

aspectos importantes, e também, alijado deste texto alguns nomes importantíssimos do

pensamento esotérico no início do Islã.

No entanto, a tentativa deste texto seria apenas lançar alguns pontos básicos para

percebermos a diversidade e multiplicidade de proposições, práxis e teorização sobre a

busca interior (batin) dos significados ocultos da revelação divina e o papel desses

significados na constituição dos desejos divinos expressos no Corão.

Por mais que a busca pela interiorização, no pensamento esotérico islâmico, tenha

caminhado para teorizações complexas, como Sohrawardi e Ibn ‘Arabi, o intuito dessa

busca estava em conformar os homens aos preceitos e desejos da divindade, expressos em

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sua revelação, constituindo no mundo o ideal corânico de uma humanidade igualitária com

justiça, unificada na adoração de seu único criador e origem.

Como demonstra Armstrong:

Pelo mundo todo, em toda tradição religiosa importante, homens e mulheres

que têm inclinação para esse tipo de viagem interior desenvolveram certas

técnicas que lhes possibilitam entrar na mente inconsciente e experimentar

o que se assemelha a uma presença nas profundezas do ser. (2001, p. 122)

Profundezas essas que levariam a uma diversidade de interpretações e práticas do

Islã e da mensagem histórica corânica, construindo um mundo de justiça e igualdade, que

gerariam obras de beleza inestimável, em prosa e poesia (Rumi, Ibn ʿArabi). Uma

diversidade que, segundo Armstrong (2001), daria vida a um Islã sempre em dinâmicas

reformulações.

Referências bibliogáficas Abu ‘l-Qasim AL-QUSHAYRI. Epistle on Sufism. Trad.: Alexandre D. Knush. Reading (UK)/ Beirut: Garnet Publishin Limited & Southern Court, 2007. ALCALDE, Juan J. Shía. Herejia y Revolución en Islam. Madri: s/e, 2005. PDF. http://pendientedemigracion.ucm.es/info/eurotheo/e_books/jjalcalde/. Acesso em 15/09/2016. ARMSTRONG, Karen. Maomé. Uma biografia do Profeta. São Paulo: Cia. Das Letras, 2002. _______. O Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. ASÍN PALACIOS, Miguel. El islam cristianizado. Estudio del “sufismo” a través de las obras de Abenarabi de Murcia. Madrid: Editorial Plutarco, 1931. _______. Abenmassarra y su escuela. Orígenes de la fisolofía hispano-musulmana. Madrid: Imprenta Ibérica, 1914. _______. La escatologia muçulmana en la Divina Comédia. Madrid: Imprensa de Estanislao Maestre, 1919. COSTA, A. G; ANGUITA, G. L. Historia del sufismo en Al-Ándalus. Maestros sufíes de al-Ándalus y el Magreb. Córdoba. Almuzara, 2009. CORBIN, Henry. La imaginación creadora em el sufismo de Ibn ‘Arabi. Barcelona: Ediciones Destino, 1º ed. 1993. _______. Alone with The Alone. Creative Imagination in the sufismo of Ibn ‘Arabi. Princenton. Princeton University Press, 1997. _______. The man of light in Iranian Sufism. New Lebanon: Ômega Publications, 1971.

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A análise do mito do minotauro em a Batalha do Labirinto

The analysis of the minotaur myth in The Battle of the Labyrinth

Isabelle Castilho18 Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi19

Resumo: O tema central desta publicação é demonstrar a dinamicidade da mitologia grega, com autores Paul Veyne e Jean-Pierre Vernant, por meio da história, utilizando o mito do Minotauro no livro A Batalha do Labirinto da saga Percy Jackson e os Olimpianos. Palavras-chave: História Antiga; Mitologia Grega; Labirinto; Literatura; Percy Jackson; Rick Riordan. Abstract: The central theme of this publication is demonstrate the myth’s dynamicity, with the authors Paul Veyne and Jean-Pierre Vernant, through history, using of Minotaur myth in The Battle of the Labyrinth in the Percy Jackson & the Olympians series. Keyworlds: Ancient History; Greek Mythology; Labyrinth; Literature; Percy Jackson; Rick Riordan.

O termo “história” vem do grego clássico ἱστορία [historía] que significa “investigar”,

logo o papel do historiador antigo era coletar os fatos do passado. Para Heródoto, colocá-los

à disposição para que o leitor escolhesse sua versão. Já Tucídides buscava acontecimentos

para apoiar seus discursos, enquanto verdade e, portanto, já havia um início de crítica.

A Escola dos Annales, fundada por Marc Bloch e Lucien Febvre no início do século

XX, vem propor ao historiador uma investigação mais crítica da história a partir do presente,

18

Graduanda em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras – Assis. 19

Docente de História Antiga do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP. Graduada em História (UNESP-Assis), Pedagogia (IEDA-Assis) e Direito (FEMA-Assis), Mestrado e Doutorado pela UNESP-Assis e Pós-Doutorado pela UNICAMP. Suas linhas de pesquisa incluem Política: ações e representações; Religião e Visões de Mundo; com especialidade em Império Romano, Período Helenístico e área da Educação.

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utilizando o passado como ferramenta de entendimento crítica do presente. Busca-se não

recontar ou apresentar a História enquanto verdade acabada, já que o objeto da história

“não é o passado: ‘A própria noção segundo a qual o passado enquanto tal possa ser objeto

de ciência é absurda’. Seu objeto é ‘o homem’, ou melhor, ‘os homens’, e mais precisamente

‘homens no tempo’” (LE GOFF, 2001, p. 24). A saída para esta análise é tratar o documento

de modo bruto, e não pronto, dado e acabado. Sendo necessário refiná-lo com técnicas

historiográficas e das ciências auxiliares à História; e alargar o conceito de fonte, analisando

outras que não são as “oficiais”. Dentro do novo conceito de fonte, os livros de literatura

ficcional, tornam-se uma fonte importante para a análise da História.

Pensando nisso, o trabalho apresentado faz parte de uma pretensão à Iniciação

Científica que busca analisar a representação, releitura e recepção do mito do Minotauro no

livro quatro da saga Percy Jackson e Os Olimpianos: A Batalha do Labirinto, de Rick

Riordan, lançado originalmente nos Estados Unidos em 2008 e, posteriormente, no Brasil

em 2012. A seleção da obra se deu por sua aceitação pelo público juvenil, sendo hoje um

best-seller, estando por 379 semanas na New York Times Children's Series Best Seller List

e vendendo mais de 15 milhões de cópias pelo mundo todo. O objetivo desta pesquisa é

analisar as representações do mito do Minotauro, com foco no Labirinto do Minos, o rei de

Creta, e a relação de Dédalo, criador do labirinto, enquanto lugar mitológico em contrastes e

comparações com as representações da obra de Plutarco, historiador grego com cidadania

romana, Vidas Paralelas: Teseu e Rômulo; trabalhar a releitura de Rick Riordan como

sujeito criador de uma ressignificação dos mitos gregos; e, por fim, como se deu a recepção

dos mitos pelo escritor e pelo público. O projeto visa a contribuir com os estudos acerca dos

diálogos da literatura moderna com os clássicos greco-latinos para o público juvenil e as

interações e relações dos leitores contemporâneos com o mundo antigo, já que a

apresentação de uma obra clássica de modo direto, como, por exemplo, a já citada de

Plutarco, Vidas Paralelas, utilizando do capítulo A Vida de Teseu, pode ser menos

interessante e de difícil entendimento para o público infanto-juvenil. Nesta apresentação

será abordado um dos aspectos do projeto: a dinamicidade do mito.

O conceito de mito terá sua discussão como base os estudos de Vernant (2006,

2010) e Veyne (2014), focando os questionamentos do que seria o mito, a sua importância

na Grécia Antiga e como a dinamicidade na atualidade e, mais especificamente, do mito do

Minotauro está contida em A Batalha do Labirinto.

A mitologia grega sempre foi um assunto que despertou grandes inspirações,

principalmente na época do Renascimento, cujas artes foram grandemente influenciadas

pela mitologia greco-romana, como, por exemplo, Os Lusíadas de Camões com seu prefácio

invocando as musas. Contudo, a principal questão é como essa mitologia interferia na vida

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cotidiana da Grécia Antiga. O que seria o mito? Como Paul Veyne escreve em seu livro Os

Gregos Acreditavam em Seus Mitos?,

[...] a mitologia grega, cuja ligação com a religião era das mais tênues, no

fundo foi apenas um gênero literário muito popular, uma parte vasta da

literatura, sobretudo a oral, se é que a palavra literatura já convém, antes da

distinção da realidade e da ficção, quando o elemento lendário ainda é

tranquilamente aceito. (VEYNE, 2014, p.35-36)

Assim para os gregos, ele era uma verdade incontestável, que mostrava a distância

entre o passado (Idade dos heróis) e o presente, separando o sobrenatural contado pelos

poetas (aedos), através da inspiração pelas Musas. A verdade depende do referencial,

daqueles que nela acreditam, ou seja, se um individuo acreditava que o Oráculo de Delfos

podia conversar com os deuses e prever seu futuro ou dar conselhos, porque ele tinha uma

bênção divina de Apolo, o deus do Sol, aquilo era uma verdade. Um exemplo na atualidade

seria que, para crianças que acreditam na fada do dente, essa personagem, será uma

verdade. Portanto, o mito era uma informação verdadeira para os gregos, pois esses

acreditavam fielmente nele. Como Veyne escreve, se alguém afirmasse que Afrodite tinha

traído Hefesto com outro deus ou cidadão, as pessoas acreditariam nisso, assim como no

seu nascimento vindo do gozo de Urano lançado ao mar.

O historiador Jean-Pierre Vernant trabalha como o pensamento grego foi-se

fundamentando até o nascimento da Filosofia, em As Origens do Pensamento Grego. A

separação do Sagrado e do Profano se dá, porque

Os homens já tomaram consciência de um passado separado do presente,

diferente dele (a Idade de Bronze, Idade dos Heróis, contrasta com os

tempos novos voltados ao ferro); o mundo dos mortos distanciou-se,

separado do mundo dos vivos (a cremação partiu o liame do cadáver com a

terra); uma distância insuperável se estabeleceu entre os homens e os

deuses (o personagem do rei divino desapareceu). (VERNANT, 2010, p. 42)

A questão entre o religioso e o profano se liga ao próprio pensar do que seria o mito.

O mito é relacionado principalmente com o aspecto religioso do mundo grego. A

Grécia Antiga não tinha uma religião, ou seja, “sem casta sacerdotal, sem clero

especializado, sem Igreja, a religião grega não conhece livro sagrado no qual a verdade

estivesse definitivamente depositada num texto” (VERNANT, 2006, p.13-14). Se não existia

religião grega, onde os mitos estariam inseridos? A mitologia grega está contida na

religiosidade, ou seja, nas práticas de como vivenciar o sobrenatural. A religiosidade grega

se manifestava não somente pela tradição oral dos mitos, mas também pela sua crença e

cultos aos deuses. O mito era a base para a religiosidade grega, porém não a única forma

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de manifestação: Haveriam neles “as narrativas secretas, as fórmulas ocultas se despojam

de seu mistério e seu poder religioso para se tornarem as ‘verdades’ que os Sábios vão

debater” (VERNANT, 2010, p. 59).

O mito é dinâmico, sofrendo alterações de acordo com o local de onde ele é contado,

e vivo, alterando-se para corresponder às novas realidades que porventura surgissem. O

conhecimento atual da mitologia grega se dá através da literatura grega que registrou e

reuniu estas “informações” míticas, porém sem a finalidade de institucionalizá-las em um

sistema religioso. Como citado, o Renascimento trouxe os mitos para sua época com uma

nova interpretação destes. Isso mostra como a dinamicidade não se limitou ao período da

Grécia Antiga, nem ao período cit e sim que perpetuou até os dias de hoje, o que será

discutido se utilizando de Percy Jackson.

A atual civilização ocidental herdou essa tradição do resgate e da dinamicidade.

Releituras são realizadas para a manutenção dessa dinamicidade. A releitura é uma forma

de posicionamento do autor diante da obra artística mantendo sua essência, no caso do

livro, obedecendo sempre ao texto original e seus personagens. Diversas releituras de obras

literárias facilitam a leitura da essência do texto original e trazem histórias de forma

diferente, seja mudando seu formato (de prosa para quadrinhos, por exemplo), seja a

reescrita, com as ideias do novo autor. Em Percy Jackson e Os Olimpianos, uma série de

livros do escritor americano Richard Russell Riordan Jr., há uma nova dinâmica que insere a

mitologia grega na vida cotidiana atual dos Estado Unidos.

No quarto livro da saga Percy Jackson e Os Olimpianos, A Batalha do Labirinto,

Percy Jackson, um garoto estadunidense entre 14 e 15 anos, semideus filho de Poseidon,

rei dos mares, tem a missão de se aventurar junto com Annabeth, semideusa filha de Atena,

Grove, um sátiro, e Tyson, o ciclope meio irmão de Percy, pelo Labirinto de Dédalo para

impedir que Cronos, o “Senhor Titã” do tempo, destrua o Acampamento Meio-Sangue, um

acampamento de férias para semideuses com o objetivo de treiná-los para defender os

deuses do Olimpo. O livro tem como base mitológica o Mito de Teseu, porém se

concentrando em Dédalo e sua relação com seu labirinto.

Algumas variações do mito de Teseu são as de Plutarco, em Vidas Paralelas, no

capítulo dedicado ao herói, A Vida de Teseu, e de Diodoro Sículo na sua única obra,

Biblioteca Histórica. Com a leitura do livro Mitologia Grega de Junito de Souza Brandão,

volume 3, pode-se fazer um resumo do Mito do Minotauro: o monstro nasce da relação

sexual da esposa do rei Minos, Pasífae, com um touro mandado por Poseidon. O rei manda

Dédalo construir um Labirinto subterrâneo para aprisionar a criatura. Teseu, após a Guerra

entre Creta e Atenas, vai para Creta como um dos sete escolhidos de Minos para adentrar o

Labirinto como tributo. O rei de Creta prometeu que quem derrotasse o Minotauro e saísse

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com vida, poderia retornar a Atenas. Teseu resolve lutar contra a tirania do rei Minos, ou

seja, matar o monstro e, para isso, ele recebe a ajuda de Ariadne, filha de do rei, que tece

um fio guiando o herói pelo Labirinto. Teseu vence o Minotauro e desposa Ariadne.

Tendo como base a versão de Brandão, que faz o uso do estudo de Paul Diel, Le

Symbolisme dans la Mythologie Grecque, será analisado o livro de Riordan em relação a

esse mito. Como dito, no mito do Minotauro, Dédalo é uma peça-chave, pois ele inventa a

vaca para Pasífae copular com Poseidon, em forma de touro, e desenha o Labirinto onde

será aprisionado o monstro fruto dessa relação. Em A Batalha do Labirinto, Dédalo é um

importante personagem, tanto que a primeira missão de Percy ao entrar no Labirinto é

encontrar sua oficina com a esperança de encontrá-lo vivo para poder impedir que Cronos

consiga se locomover por ele. No mito, Dédalo seria quem fez Minos perder sua “proverbial

sabedoria”, gerando sua “dominação perversa”, o Minotauro. Assim, outra variação entre o

livro e o mito é a falta do Minotauro. Esse ser mitológico aparece no primeiro livro da saga,

O Ladrão de Raios, perseguindo Percy Jackson e sendo morto pelo próprio. A “dominação

perversa” de Minos está morta em Percy Jackson, porém não sua sede por vingança contra

Dédalo pela construção da vaca, que será trabalhada mais à frente, quando for ser tratado

sobre Minos.

O Labirinto no mito se localiza no subterrâneo do palácio de Minos, em Cnossos, já

no livro ele está no subterrâneo de todo os Estados Unidos, ou seja, sua dimensão é

grande. O Labirinto seria o inconsciente de Minos, onde o Minotauro, sua “dominação

perversa”, está aprisionado.

No labirinto do inconsciente a dominação perversa de Minos, o Touro de

Minos, continua a viver. O rei, no entanto, é incessantemente obrigado a

opor-se à sua sabedoria, a "nutrir" sua atitude monstruosa com base em

motivos falsos e a "alimentar" seu remorso obsedante, seu arrependimento

não confessado, por um raciocínio ilusório, o que o torna incapaz de

reconhecer seu erro e renunciar às condições infligidas aos atenienses.

(DIEL apud BRANDÃO, 1987, p. 161)

Para o livro, o Labirinto seria o problema para o acampamento Meio-Sangue, pois

uma de suas saídas daria para o coração do acampamento, levando o exército de Cronos a

destruir os defensores do Olimpo, os semideuses. Outro ponto importante é como Percy

Jackson toma o espaço de vários heróis mitológicos. Em toda a saga, Percy assume o papel

de Teseu, com relação à morte do Minotauro, Hércules, com a limpeza do currais dos

cavalos, Perseu, com o possuir um Pégaso, e Ulisses, em sua viagem de fuga da ilha de

Circe. Na fonte estudada, Percy seria Teseu, e sua tarefa seria impedir mais sacrifícios,

como os tributos de Atenas para Creta, ou seja, a morte de seus amigos semideuses do

Acampamento Meio-Sangue. Também tem um personagem importante para a história,

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Rachel Elizabeth Dare, que, nesse livro, coloca-se como Ariadne guiando Percy e seus

amigos através do Labirinto. Diferente do mito, Percy não é apaixonado por Rachel, como

Teseu era apaixonado por Ariadne. Diel afirma que Teseu

Explorou o amor de Ariadne para atingir seus objetivos e logo depois a traiu.

Ora, o "fio de Ariadne" deveria conduzi-lo não apenas para fora do dédalo

inconsciente de Minos, mas igualmente para fora do labirinto de seu próprio

inconsciente. (DIEL apud BRANDÃO, 1987, p. 165)

Essa visão se faz clara em Percy Jackson, já que, apesar de ser uma amiga do

protagonista, ela só guia a todos pelo Labirinto e sai de cena o mais rápido possível.

O livro traz passagens que unem partes do mito do Minotauro, como o do mito de

Ícaro. Dédalo, após ter sido descoberto como o inventor da vaca que ajudou na traição de

Pasífae, tenta fugir da fúria de Minos com seu filho Ícaro, pois estavam aprisionados dentro

do Labirinto e onde ficou para desenvolver projetos, trajando uma de suas invenções, um

par de asas feitas de cera de mel de abelha e penas de gaivota. No livro, essa passagem é

mostrada com a descrição da oficina quando encontrada no capítulo quinze. Por fim, temos

a dinamicidade do mito também quando, em A Batalha do Labirinto, o “Rei Espectral”, Minos

em forma de fantasma, que acompanha o personagem Nico Di Angelo, semideus filho de

Hades, revela sua verdadeira missão: caçar Dédalo, que estaria vivo desde a Grécia Antiga,

como autômato, para levá-lo ao julgamento do Submundo, sendo que Minos seria um dos

três juízes de lá. Outro pequeno detalhe interessante é que as passagens para o Labirinto

distribuídas pelos Estados Unidos tem um delta ( marcando-as, o que seria, para o livro, a

marca de Dédalo, e só poderiam ser abertas por semideuses. A escolha da letra seria

devido a ela ser correspondente ao “d” maiúsculo no alfabeto latino.

Logo, é possível notar a mistura do mito em um estilo literário próprio levando em

conta a questão da releitura realizada por Riordan, uma releitura dos mitos gregos, ou seja,

os mitos recontados de uma forma inovadora, um produto novo. Ao realizar essa releitura,

ele realiza uma ressignificação do mito em sintonia com a sociedade que o circunda. Essa

ação é intuitiva e subjetiva, ou seja, baseia-se em uma escolha do escritor em transformar

um mito, com um significado específico para a sociedade grega antiga, contendo um novo

significado, sempre levando em consideração a sociedade mundial globalizada, e a

estadunidense. A estrutura dessa sociedade é baseada no seu ideal de autonomia, logo,

quanto mais cedo se ensina ao adolescente que ele terá que crescer e viver sua vida,

melhor. Logo, o fato de as crianças estadunidenses, em geral, irem a acampamentos de

férias, tenta trazer essa autonomia de forma simplificada.

A apresentação deste trabalho conclui que a herança da dinamicidade do mito pode

ser encontrada em A Batalha do Labirinto, porém ainda há muitos aspectos a serem

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trabalhados, já que o projeto ainda está em curso. Ainda será estudada teoria da Literatura e

o conceito de representação para uma análise mais profunda das permanências mitológicas

nessa fonte literária e suas alterações correspondentes à sociedade estadunidense

contemporânea, assim como a recepção desses mitos nos dias de hoje. Contudo, é

importante ressaltar que neste estudo foi feita uma comparação se utilizando da fonte de

Brandão para com o livro de Riordan.

Referências bibliográficas: BRANDÃO, Junito de Souza. O Mito de Teseu. In: _______. Mitologia Grega. V. III. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 159-165. LE GOFF, Jacques. Prefácio, In: BLOCH, Marc. Apologia da história ou O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. RIORDAN, Rick. A Batalha do Labirinto. Tradução por Raquel Zampil. Ed.1. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2010. VERNANT, Jean-Pierre. Mito, Ritual, Imagens dos Deuses. In: VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. São Paulo: MWF Martins Fontes, 2006, p. 13-28. VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego. 19. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2010. VEYNE, Paul. Pluralidade e Analogia dos Mundos de Verdade. In: _______. Os Gregos Acreditavam em Seus Mitos? Ensaio Sobre a Imaginação Constituinte. São Paulo: Unesp, 2014, p. 35-52.

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As representações da gladiatura no mangá One Piece

The gladiature representations in the One Piece manga

Bruna Marcelino da Cruz20 Andrea Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi21

Resumo: Herança ocidental que se expandiu para o mundo, a cultura greco-romana faz-se presente no cotidiano constantemente, até mesmo de forma imperceptível, perante os olhos e ouvidos, ao alcance das mãos. Os meios de comunicação de massa não são isentos, trazem em si referências explícitas ou implícitas, sendo até mesmo a base de muitas destas, sejam filmes, músicas, livros ou mesmo história em quadrinhos. Por meio da perspectiva de representação apresentada por Roger Chartier, pretende-se debater como os gladiadores e tudo que os envolve é apresentado no mangá One Piece, de Eiichiro Oda. Esse ensaio procura avaliar como a gladiatura é vista e apresentada por um meio de massa que não se prende completamente à herança romana, mas que dela se utiliza e por ela é influenciado. Palavras-chave: Mangá; Representação; Gladiatura. Abstract: Western heritage that expanded to the world, Greco-Roman culture is constant in daily life, even imperceptibly, in front of eyes, ears and reaching hands. The mass media are not exempt, they carry explicit or implicit references, the Roman world acts as the basis of many of them, even if they are movies, music, books or comic books. From the perspective of Representation presented by Roger Chartier, it is intended to discuss how the gladiators and the universe that surrounds them is presented in the manga "One Piece" by Eiichiro Oda. This essay intends to evaluate how the gladiators are seen and presented by a mass

20

Graduanda de História na Faculdade de Ciências e Letras de Assis da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. 21

Docente de História Antiga do Departamento de História da faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP. Graduada em História (UNESP- Assis), Pedagogia (IEDA-Assis) e Direito (FEMA-Assis), Mestrado e Doutorado pela UNESP-Assis e Pós-Doutorado pela UNICAMP. Suas linhas de pesquisa incluem Política: ações e representações; Religião e Visões de Mundo; com especialidade em Império Romano, Período Helenístico e área da Educação.

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communication media that does not completely cling to the Roman heritage but that uses it and is influenced by it at the same time. Keywords: Manga; Representation; Gladiators.

Esta proposta de um estudo da gladiatura romana através de um dos meios de

comunicação de massa, a história em quadrinhos, provém de um projeto de iniciação

científica ainda em desenvolvimento. Procura-se, nesse primeiro momento, focar um dos

componentes da mesma, as representações, conversando com a própria visão romana de

todo um universo ligado aos espetáculos e seus atores, em que se analisará o mangá One

Piece, de Eiichiro Oda.

São denominados mangás todas as histórias em quadrinhos de origem japonesa.

Essas produções possuem um processo narrativo que se assemelha a uma novela,

possuindo começo, meio e fim bem definidos, e personagens não maniqueístas, que

abrangem a dualidade, diferindo das publicações de super-heróis norte-americanos nas

quais há um processo de constante revitalização do tempo-espaço.

A maneira de se ler um mangá também possui contrastes marcantes para com

obras ocidentais, captando-se da direita para a esquerda e de cima para baixo. A arte

presente em mangás traz consigo toda uma definição de identidade desse tipo de produção,

a presença dos olhos grandes, a composição em preto e branco e o gerenciamento do olhar

pelos quadros, através de técnicas que buscam reproduzir ou simular a linguagem

cinematográfica (até mesmo com a utilização de zooms) e visuais realistas, além de uma

separação de públicos extremamente perceptível que integram um vasto mercado editorial.

Importante ressaltar que o estilo de mangá atual começou a se desenvolver em

1950, com Osamu Tezuka, que desenvolveu o padrão de desenho da figura humana que o

caracteriza, possuindo influência de produções norte-americanas, em especial de Walt

Disney. Para a melhor compreensão do mangá como estilo literário, deve-se saber que há

uma valorização da imagem em relação ao texto. Ambos são importantes, contudo, o

primeiro se sobressai, evidentemente pela utilização das onomatopeias como componentes

da arte e da ideia que o autor tenta transmitir.

A história do mangá mistura-se com uma história mundial, inúmeros países criaram

seus estilos na arte sequencial de quadros desenhados, porém o processo formativo se

desenvolveu de maneiras distintas em todos. No cenário japonês, a inspiração para as

histórias em quadrinhos foram os Teatros da Sombra (Oricom Shohatsu), ainda no período

feudal, no qual lendas eram desenhadas e contadas em uma espécie de carro de mão e

com os Papéis de Rolagem (Ê–Makimono), rolos ilustrados que traziam cenas que se

completavam em um enredo (RAMOS, 2012, p.19).

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Assim, o período de maior expansão dos mangás foi posterior à Segunda Guerra.

Com o Plano Marshall, havia uma constante falta de atrações para a população, e os

quadrinhos se apresentaram como uma diversão barata e acessível. Surgiu, nesse

momento, o considerado “deus” do mangá Osamu Tezuka, responsável pelas estruturas do

mangá moderno, como dito anteriormente.

Após a compreensão do mangá como um todo, devem-se conhecer melhor autor,

obra e arco a serem trabalhados. A obra é de autoria de Eiichiro Oda, um japonês nascido

na cidade de Kumamoto em 1º de janeiro de 1975, e o One Piece (figura 1) é sua primeira

obra como profissional, sendo lançado em 1997 e ainda em produção com capítulo

semanal. O mangá tem como público alvo meninos e jovens, que são atraídos pelo gênero

aventura e pela forte temática de amizade e superação.

O enredo de One Piece conta as aventuras de um grupo de bucaneiros, nomeados a

tripulação do Chapéu de Palha, liderados por Monkey D’Luffy em busca do tesouro do rei

dos piratas, o One Piece, e, seguindo esse objetivo, eles passam por diferentes ilhas e

mares, sendo Grand Line o principal, e confrontam outros navios, a Marinha e corsários. O

arco trabalhado é o de Dressrosa, sendo o vigésimo sétimo da saga, que abrange dos

capítulos 700 ao 801, no qual se apresenta uma ilha que traz fortes influências espanholas e

a Gladiatura como um dos elementos principais. Tal arco no mangá começou a ser

publicado em 2013 e se encerrou em 2016.

Figura 1- One Piece, nº 1. Fonte: http://www.guiadosquadrinhos.com/edicao/one-piece-n-1/on011100/94330

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Na gladiatura dentro do One Piece, nos capítulos selecionados para a pesquisa,

ilustram-se a convivência de grupos distintos de gladiadores antes de um grande evento de

combates, a relação com os armamentos e vestimentas, a visão dos gladiadores mais

velhos, os mais poderosos e as lendas dentro do meio. Confrontam-se os combates em si,

apresentam-se situações de luta contra feras22 e a visualização da plateia perante a ação

dos mais diversos combatentes, a torcida pelos favoritos e o desprezo pelos perdedores e

não favorecidos, além do destino dos feridos.

A análise do mangá se dará em dois âmbitos, um será dentro da narrativa, das falas

das personagens, e o outro, do meio imagético, e, posteriormente, das relações de ambas.

Dos capítulos selecionados, todos os quadros, as composições serão analisadas,

primeiramente, de forma individual, ligando-se posteriormente ao conjunto de quadros aos

quais pertence e gerando uma visão total das análises das representações da gladiatura.

Por ser uma pesquisa ainda em desenvolvimento, vislumbram-se apenas algumas

passagens, três quadros distintos escolhidos cuidadosamente em algumas páginas distintas

do capítulo 70323, que ilustrarão em um primeiro momento o que pretende-se fazer.

Antes das considerações sobre o mangá, deve-se situar melhor a respeito da

interpretação e da sedimentação o conceito de Representação utilizado. Apresentada por

Roger Chartier em seu livro a História Cultural: entre práticas e representações, essa

concepção define as configurações sociais e conceituais próprias de um tempo, um espaço,

de um corpo cultural. Ou melhor, em nosso caso, como o autor retratou o macrocosmo dos

munera, nomenclatura do universo simbólico e social da gladiatura, tanto dentro do enredo,

pelo processo artístico e até na psique das personagens.

Para melhor compreender-se a excursão pela visão da gladiatura a partir de Oda,

deve-se, mesmo que rapidamente, passar pelas representações dos contemporâneos dos

espetáculos, na qual se atravessa um pouco sobre a arquitetura e a figura do gladiador.

Importante retomar o conceito de gladiatura, não apenas como a profissão do gladiador ou a

arte de gladiar, de lutar, e sim como um processo repleto de simbologia tanto religiosa

quanto social. Dentro das diferentes versões das origens desse processo está, em grande

parte, presente a homenagem aos antepassados, que se liga em algum ponto ao dever de

um cidadão. O “controle que o Imperador e os cidadãos de posse tinham sobres os

combates” (GARRAFFONI, 2004), demonstram também a importância da organização e

apresentação de um bom espetáculo para o status daquele que o oferecia.

22

As uenationes, caçadas, não correspondem à gladiatura em si, mas como parte dos espetáculos fez-se importante ressaltar. 23

Primeiro capítulo dentro da saga que traz de forma mais concreta e perceptível as representações do âmbito arquitetônico e início das aparições dos gladiadores.

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O espaço da gladiatura, as arenas, é distinto tanto em funções quanto em formas,

variadas em tipos de construção, sejam suas bases de madeira ou pedra. A presença desse

tipo de edifício por toda extensão do Império nomeia toda a importância dos espetáculos,

claro que não nos restringindo aos espetáculos de combate, mas ressaltando, ligeiramente,

as caçadas, as execuções, apresentações, corridas e até mesmo naumaquias como

encontrado no De Spectorum Liber de Marcial quando dedica versos ao Amphiteatrum

Flavium.

Em outras palavras, acreditamos que há uma estreita relação entre arquitetura dos anfiteatros, seu contexto histórico, social e simbólico, expressando, inclusive, formas de comunicação não verbal entre aqueles que os frequentavam. Essa perspectiva possibilita, em nossa opinião, uma interpretação mais dinâmica da construção da paisagem urbana e a interação com as diferentes camadas da sociedade romana, pois nos permite conceber a arquitetura como materialização das cosmovisões e, portanto, como ativa e produtora de significados. (GARRAFFONI, 2004, p.121)

Quanto à figura do gladiador, utilizando-se de Garraffoni, percebemos a

representação romana destes. Em esculturas trabalhadas, como frisos funerários, há a

representação de um grande número de gladiadores, que formam um corpo de combatentes

distinguíveis apenas pela composição de roupas e equipamentos, ao contrário de grafites,

Garraffoni analisou os presentes na cidade de Pompeia, há a individualização dos

gladiadores e poucos componentes, instrumentos também variados, porém simplificados.

As armas nos grafites, mais que impressionar o passante na sua beleza e diversidade, possuem funções especificas para destacar a vitória, a habilidade, identificar a categoria do gladiador, enfim fazem parte da narrativa sulcada na parede. (GARRAFFONI, 2004, p. 202).

Para analisar as páginas, os quadros escolhidos, utilizam-se as ideias de Martine

Joly para compreensão da imagem como linguagem, da arte sequencial, em sua mistura de

escrita e imagem e como esta se ilustra como fonte de saber histórico perante os olhos.

Assim, a arte sequencial apresenta que a

complementaridade das imagens e das palavras também reside no fato de que se alimentam uma das outras. Não há qualquer necessidade de uma copresença da imagem e do texto para que o fenômeno exista. As imagens engendram as palavras que engendram as imagens em um movimento sem fim. (JOLY, 2012, p.121).

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Figura 2- p. 12, cap. 703, One Piece Fonte: http://centraldemangas.org/capitulos/703

Adentrando, enfim, a narrativa de Oda, nos deparamos com o Coliseu Corrida, que é

a representação de anfiteatro dentro da obra. Perceptível pelo nome, a inspiração veio

completamente do Amphiteatrum Flavium, e a ilustração se mostra uma bela reprodução da

construção. Além de ser a mais conhecida das arenas, a imagem do Coliseu traz para o

mangá uma ideia de grandeza, força e ordem, mas principalmente de diversão para a

população, como apresentado pela expressão tanto facial quanto corporal de alguns

“figurantes”24.

Dentro do capítulo 703, Sala de Espera, especificamente na página 12 (figura 2),

temos a segunda aparição do anfiteatro dentro do mangá, mas que marca a primeira vez

24

Termo normalmente utilizado para meios cinematográficos, mas que foi usado de mesma maneira neste. A massa de personagens compõe o impacto da narrativa visual, recebendo atenção especial do autor que não relega o trabalho de compô-los aos ajudantes.

Figura 2- p. 16, cap. 703, One Piece Fonte: Idem

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que a construção é contemplada pelo protagonista. A representação sugere esplendor e

imposição com a redução do protagonista (em primeiro plano) em detrimento da grandeza

que se busca ressaltar da edificação, tanto que até mesmo o posicionamente da arte

onomatopaica sugere deslumbramento pelo exterior do edificio.

Posteriormente, nesse mesmo capitulo na página 16 (figura 3), há a representação

do interior do Coliseu Corrida, na qual se apresenta uma ampla sala com um grande grupo

de combatentes. Há a representação ideológica de poder da construção por meio do

desenho e a própria ilustração como conceito de anfiateatro que utiliza do estilo

arquitetônico para comprovar o lugar como importante e central.

A figura de um gladiador na visão do artista também deve ser comentada. Um

obstáculo do protagonista nesse capítulo, presente na página 18 (figura 4), apresenta-se

como um famoso gladiador do Coliseu Corrida, vencedor de vários combates, gladiador

esse chamado Spartan, numa clara alusão a Espartacus25.

A representação física do que seria um poderoso gladiador em Oda através de

Spartan, dá-se por um homem grandioso tanto em altura como em musculatura, detentor de

uma carranca, que se veste de maneira simples. A psique da personagem é interessante,

ele representa todo um orgulho de combatente, duvidando do protagonista e buscando

afastá-lo dos combates por considerá-lo fraco e indigno do local, parece uma ideia de

sacralização do local, apresentado-se extremamente enfurecido, violento e tomado por uma

confiança excessiva em sua força, tanto que não foi representado com nenhuma proteção,

que resultou em uma derrota vergonhosa.

25

Figura do escravo que liderou uma rebelião contra o império, possui representação não apenas em filmes, mas seriados, peças de teatro e outros.

Figura 3- p. 18, cap. 703, One Piece Fonte: Idem

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Neste pequeno estudo primevo, buscou-se representar toda uma ideia de

representação presente em uma produção que se insere em grandes publicações em um

nível mundial, compreeendendo como ocorre, e as utilizações do mesmo para a pesquisa

histórica, utilizando, de maneira extremamente sucinta neste, a gladiatura como

representação em seu próprio contexto histórico.

Referências bibliográficas Fonte ODA, Eiichiro. One Piece. Disponível em: http://mangaop.info/. Acesso em: 01 dez. 2015. Obras de referência CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. -: Tipografia Guerra, 1988.

GARRAFFONI, Renata Senna. Técnica e destreza nas arenas romanas: Uma leitura da gladiatura no apogeu do Império. 2004. 232 f. Tese (Doutorado) - Curso de História. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004. JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Tradução: Marina Appenzellier; revisão técnica: Rolf de Luna Fonseca. – 14ª Ed. – Campinas, SP: Papirus, 2012 (Série Ofício de Arte e Forma). RAMOS, Josias Silva. Mangá - história, conceito e caracterização do personagem. 2012. 56 f. TCC (Graduação) - Curso de Artes Visuais - Bacharelado, Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma, 2012.

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A presença da paisagem em Cantigas de Santa Maria: texto e imagem

The presence of the landscape in Cantigas de Santa Maria: text and image

Carlos Henrique Durlo (CNPq/UEM – PR)26 Resumo: O rei D. Afonso aparece inscrito no horizonte literário medieval como uma figura relevante, cuja obra profícua abarca campos diversos como a história, a jurisprudência, a astronomia, a astrologia, espaço/paisagem e, de modo especial, a poesia de caráter pessoal escrita em galego-português. Borges Filho (2007, p. 13) afirma que a literatura é o ato investigativo das relações entre o homem e o mundo. Dentre as indagações do autor sobre a realidade do espaço, interessa-nos a primeira, a realidade física ou teológica, que concebe o espaço como lugar. O espaço é visto como condição do mundo ou como um atributo de Deus. Já a segunda indagação do autor teoriza sobre a subjetividade do espaço – espaço como a imagem da coisa feita pelo sujeito imaginante, isto é, a realidade depende de quem a interpreta. A presença do espaço ocupa um lugar de destaque nas composições medievais. As Cantigas de Santa Maria representam o espaço sagrado. Com a função de mediação entre os homens e as divindades celestes, o espaço registrado nos textos poéticos e inserido nas imagens constitui-se importante instrumento da intermediação entre os fiéis e a Virgem Maria, principalmente, os locais de culto, como os mosteiros e as igrejas. Nas Cantigas de Santa Maria, o ilustrador deixa-se levar pela estética e intercala as cenas e os espaços que não aparecem na escrita. Algumas cantigas apresentam uma iconografia que responde à fidelidade das imagens em relação aos textos, juntamente com os documentos históricos. A nossa proposta de comunicação é apresentar o espaço no texto poético e nas iluminuras em duas Cantigas de Milagre, de Dom Afonso X, o Sábio. Palavras-chave: Paisagem; Cantigas de Santa Maria; Imagem. Abstract: King D. Alfonso appears inscribed in the medieval literary horizon as a relevant figure, whose prolific work covers diverse fields such as history, jurisprudence, astronomy, astrology, space/landscape and, especially, personal poetry written in Galician-Portuguese. Borges Filho (2007: 13) affirms that literature is the investigative act of the relations between man and the world. Among the author's inquiries about the reality of space, we are interested in the first, the physical or theological reality, which conceives of space as place. Space is seen as a condition of the world or as an attribute of God. The author's second inquiry theorizes about the subjectivity of space – space as the image of the thing done by the subject who imagine, that is, reality depends on who interprets it. The presence of space occupies a prominent place in medieval compositions. The Cantigas de Santa Maria represent the sacred space. With the function of mediation between men and celestial deities, the space recorded in poetic texts and inserted in the images constitutes an important instrument of intermediation between the faithful and the Virgin Mary, especially places of worship such as monasteries and Churches. In Cantigas de Santa Maria, the illustrator gets carried away by the aesthetic and interweaves the scenes and spaces that do not appear in the writing. Some songs present an iconography that responds to the fidelity of the images in relation to the texts, along with the historical documents. Our proposal of communication is to present the space in the poetic text and in the illuminations in two Cantigas de Milagre, of D. Alfonso X, the Sage. Keywords: Landscape; Cantigas de Santa Maria; Image.

26

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá (PLE-UEM). Área de Concentração: Estudos Literários. Linha de Pesquisa: Literatura e Historicidade. É bolsista pelo CNPq e graduado em Letras-Português pela Universidade Estadual de Maringá.

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Introdução

A religiosidade do povo medieval, observada por meio das cantigas de romaria,

originárias do Ocidente da Península, revela a grande influência religiosa, política e

econômica da Igreja Católica sobre o povo da época, bem como no culto que era

consagrado à Virgem Maria nos santuários a ela dedicados, em especial no de Santa Maria

de Terena, no Alentejo, onde nos são revelados milagres atribuídos a Virgem de Terena.

A Idade Média é uma época em que a religião tem relevante importância. Deste

modo, em todas as manifestações artísticas e filosóficas, é possível observar a presença do

mote religioso, tema principal, revelado nas Cantigas de Santa Maria. Assim, o espaço

religioso, em especial os Santuários à Virgem dedicados, por meio do culto à Virgem Maria,

é muito importante, pois, como afirma Borges Filho (2007), “a literatura nada mais é que a

investigação do homem e suas relações com o mundo”.

Nesse sentido, o espaço poético tem a função de situar a personagem/eu-lírico,

revelando-a ao leitor, e a sua significação, que se dá no gênero narrativo e poético. Santos e

Oliveira (2001, p. 74) pontuam essa diferença ao afirmarem que:

Nas narrativas literárias, o espaço tende a estar associado a referências internas ao plano ficcional mesmo que a partir desse plano sejam estabelecidas relações com espaços extratextuais. [...] O texto poético pode eleger a própria palavra como um espaço. O signo verbal não é apenas decodificado intelectualmente, mas também sentido em sua concretude. Sobretudo, é possível explorar na poesia escrita, a visualidade da palavra: o signo verbal como imagem.

Santos e Oliveira (2001), no entanto, atentam para a problemática existente com a

similaridade estabelecida entre o objeto em si e sua imagem. Para os autores, a poesia

estaria inserida na perspectiva de que o objeto é criado pela imagem, sendo que a palavra

reproduz alguma característica do objeto em si.

Blanchot (1987), ao refletir sobre o espaço poético, parte de uma visão mais geral do

que a estudada pelos autores acima citados, na medida em que não toma o espaço do

vocábulo como base do seu estudo, mas se volta, inicialmente, para o espaço que a

literatura constrói, pois ela é solitária e exige certa solidão do leitor. A respeito disso

Blanchot (1987, p. 12) afirma:

A obra não é acabada nem inacabada: ela é. [...]. Aquele que vive na dependência da obra, seja para escrevê-la, seja para lê-la, pertence à solidão do que só a palavra ser exprime: palavra que a linguagem abriga

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dissimulando-a ou faz aparecer quando se oculta no vazio silencioso da obra.

Blanchot (1987) reconhece, assim, que a escrita tem um papel relevante, porque faz

eco ao que não se pode calar. O escritor torna-se sensível e se cala para que a linguagem

se converta em imagem e resulte num profundo significado ao leitor. É interessante notar

que Santos e Oliveira (2001) compartilham com Blanchot (1987) a ideia de que o texto

poético gera imagens.

O poeta seria aquele que ao ouvir a fala da obra torna-se seu intérprete, mas não

consegue fazer brotar o sentido real da palavra. Por isso, é necessário que a obra se torne

íntima não só do seu escritor, mas também do seu leitor para que seja considerada uma

obra de fato: “o poeta é aquele que ouve uma linguagem sem entendimento” (BLANCHOT,

1987, p. 45).

Com relação à fala poética, Blanchot (1987, p. 35) postula:

A fala poética deixa de ser fala de uma pessoa: nela, ninguém fala e o que fala não é ninguém, mas parece que somente a fala “se fala”. A linguagem assume então a sua importância; torna-se essencial; [...] e é por isso que a fala confiada ao poeta pode ser qualificada de fala essencial.

O espaço poético estudado no período medieval liga-se à intensa religiosidade de

um povo caracterizado pelo teocentrismo, ou seja, Deus era o centro de todas as coisas. O

homem medieval estava sempre à procura de Deus e vivia a sua fé nos ritos e nas

manifestações de forte carga emocional que o aproximava de um mundo divino. Ferreira

(1988) esclarece que a religiosidade das populações se traduz nas romarias, nas

numerosas capelas das pequenas localidades, nos santuários e também nas cidades

maiores, como Santiago de Compostela, Lisboa, Alentejo, Faro, entre outras.

De acordo com Baschet (2006), há vários motivos que levam o homem medieval às

promessas e esperanças de cura. Os espaços sagrados são estabelecidos desde a Alta

Idade Média pela existência de túmulos nas igrejas e pela difusão das relíquias dos santos.

Jerusalém, Roma e Santiago de Compostela são os espaços mais importantes de

peregrinação na Idade Média. A peregrinação a Santiago de Compostela foi favorecida

pelos soberanos hispânicos, reforçou os reinos e manifestou a unidade da cristandade

simbolicamente convocada para fazer face aos mulçumanos, existindo, portanto, um vínculo

entre a peregrinação nos espaços sagrados e a reconquista do território (BASCHET, 2006).

De acordo com Maleval (1999, p. 23), o Caminho a Santiago permitira a interação

entre os trovadores occitanos, mestres na arte de trovar, e a tradição poética autóctone, ao

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que certamente se filiam os peculiares “cantos de mulher” desse noroeste da Península

Ibérica.

O estudo do espaço sagrado medieval e do culto à Virgem apresenta-se como uma

inestimável contribuição à história religiosa de Portugal no século XIII. Além do espaço

religioso, um estudo sobre a posição que a mulher ocupa nas cantigas e nas iluminuras que

as acompanham é fundamental para traçar um paralelo entre a mulher religiosa e a mulher

comum, bem como a observação do culto mariano, que, nos mais diversos santuários à

Virgem dedicados, rompeu os limites geográficos e temporais, propiciando, na atualidade, o

nosso estudo.

Configurando o estudo do espaço sagrado nas Cantigas de Santa Maria,

acentuadamente religiosas, tomamos como exemplo as cantigas 103 e 228.

Cantiga 103 – Como Santa Maria feze estar o monge trezentos anos ao canto da

passarinna, porque lle pedia que lle mostrasse qual éra o bem que avían os que éran

en Paraíso

Cantiga composta por treze estrofes de três versos cada e de dois dísticos de refrão,

que se repetem ao fim de cada estrofe, completando-a, apresenta como protagonista um

passarinho (passarinna), cuja origem não é revelada, mas que durante a narrativa poética

aparece e desaparece misteriosamente.

As cantigas alfonsinas sempre apresentam no argumento inicial o motivo pelo qual

se trovará a cantiga. Nesse caso, a cantiga narra como Santa Maria fez estar um monge

durante trezentos anos ouvindo o canto de um passarinho, no jardim do mosteiro, pois ele

pedia incessantemente à Virgem que lhe mostrasse qual era o bem que tinham aqueles que

habitavam no paraíso: Como Santa Maria feze estar o monge trezentos anos ao canto da

passarinna, porque lle pedia que lle mostrasse qual éra o ben que avian os que éran en

Paraíso (CSM 103). Observa-se por meio do refrão que o Paraíso será dado a todos

aqueles que bem servem à Virgem Maria: “Quen a Virgen ben servirá / o Paraíso irá” (CSM

103).

Na primeira estrofe da cantiga, o trovador anuncia que contará um grande milagre

que fizera a Virgem a um monge, o qual rogava incessantemente para que lhe fosse

mostrado o bem que há no Paraíso, retomando, assim, aquilo que já havia sido expresso no

argumento inicial da cantiga, pois quem a Virgem bem serve, o Paraíso lhe será dado:

E daquest’ un gran miragre / vos quér’ éu óra contar, que fezo Santa Maria / por um monge, que rogar ll’ía sempre que lle mostrasse / qual ben en Paraís’á Quena Virgen ben servirá

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a Paraíso irá. (CSM 103)

Além do desejo de saber do bem que havia no Paraíso às pessoas que lá habitavam,

na segunda estrofe observa-se que o Monge pede à Virgem que pudesse ver o que há no

Paraíso antes que morresse. E a Virgem, atendendo ao pedido do Monge, faz com que ele

adentre o jardim do convento, no qual muitas vezes já estivera:

E que o viss’ en sa vida / ante que fosse morrer. E porend’ a Grorïosa / vedes que lle foi fazer: fez-lo entrar en üa órta / en que muitas vezes já Quena Virgen ben servirá a Paraíso irá. (CSM 103)

Entrando no jardim, conforme narram a terceira e a quarta estrofes, o monge

encontrou uma fonte de água muito clara e formosa. Sentou-se ao lado da fonte, lavou bem

as mãos e interrogou a Virgem, perguntando-lhe se veria o bem que há no Paraíso, antes

que dali saísse:

Entrara; mais aquel día / fez que ũa font' achou mui crara e mui fremosa, / e cab’ ela s’ assentou. E pois lavou mui ben sas mãos, / diss’: “Aí, Virgen, que será Quena Virgen ben servirá a Paraíso irá.

Se verei do Paraíso, / o que ch’ éu muito pidí, algún pouco de séu viço / ante que sáia daqui, e que sábia do que ben obra / que galardôn averá?” Quena Virgen ben servirá a Paraíso irá. (CSM 103)

Ao encerrar a oração que elevava à Mãe de Deus, ouviu, conforme narra a quinta

estrofe, o cantar de um pássaro (oiu ua passarinna). De acordo com o trovador, o canto era

tão belo que o monge se esquecera de tudo, interessando-se apenas pelo som mavioso do

pássaro: “Tan tóste que acabada / ouv’ o monj’ a oraçôn, / Oiu ua passarinna / cantar lógu’

en tan bon son, / que se escaeceu sendo / e cantando sempr’ alá” [...] (CSM 103). Após

ouvir o cantar do passarinho, de acordo com a sexta estrofe, o monge, por meio da Virgem

Maria, permaneceu naquele local por longos trezentos anos, apesar de pensar que ali não

estivera por tanto tempo: “Atán gran sabor avía / daquel cant’ e daquel lais, / que grandes

trezentos anos / estevo assí, ou mais, / cuidando que non estevéra / senôn pouco, com’

está” [...] (CSM 103).

Depois de tal fato, na sétima estrofe, o passarinho parte daquele local, deixando o

monge muito pesaroso, levando-o a perceber que dali também devia partir, desejando voltar

ao convento para alimentar-se, pois chegara a hora da refeição: “Des i foi-s’ a passarina, /

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de que foi a el mui gréu, / e diz: “éu daquí ir-me quéro, / ca oi mais comer querrá [...]” (CSM

103). Partindo logo dali, conforme se observa na oitava estrofe, chegando à entrada do

mosteiro, encontrou um grande portal que nunca vira. Ao deparar-se com aquela situação,

pede à Virgem Maria que o salve, pois aquele não era o seu mosteiro e indaga qual seria o

seu fim a partir de então: “[...] E foi-se logo / e achou un gran portal / que nunca vira, e disse:

/ ‘Ai, Santa María, val! Non é est’ o méu mõesteiro, / pois de mi que se fará?’ [...]” (CSM

103).

Afastando-se do local, conforme revela a nona estrofe, o monge adentra uma igreja.

Quando os monges que ali habitavam o viram, tiveram grande pavor, encaminhando-o ao

prior do mosteiro para interrogá-lo, de acordo com a décima estrofe. Nesse diálogo, o

monge narra o que havia acontecido naquele dia quando visitou o jardim do convento, no

qual permaneceu trezentos anos:

Des i entrou na eigreja, / e ouverón gran pavor os monges quando o viron, / e demandou-ll’ o prior, / dizend’: “Amigo, vós quen sodes / ou que buscardes acá?” [...]

Diss’ el: “Busco méu abade, / que agor’ aquí leixei, e o prior e os frades, / de que mi agora quitei quando fui a aquela órta; / u séen quen mio dirá?” [...] (CSM 103)

Os monges, na décima primeira estrofe, ao ouvirem o seu relato, concluíram que ele

talvez estivesse louco (“Quand’ est’ oiu o abade, / teve-o por de mal sen [...]”). Ao

perceberem o que realmente havia acontecido e o milagre da Virgem Mãe de Deus,

maravilharam-se com o fato e com o que Deus havia realizado em sua vida. Louvaram a

Virgem Maria, não somente pelo feito realizado, mas por tudo aquilo que pedimos a Deus

por meio de sua intercessão, conforme registro até a décima terceira estrofe, que encerra a

narrativa:

[...] mais des que soubéron ben / de como fora este feito, / disséron: “Quen oïrá [...] Nunca tan gran maravilla / como Déus por este fez polo rogo de sa Madre, / Virgen santa de gran prez! e por aquesto a loemos; / mais quena non loará [...] Mais d’outra cousa que seja? / Ca, par Déus, gran dereit’é, pois quanto nós lle pedimos / nos dá séu Fill’, a la fé, por ela, e aqui nos mostra / o que nos depois dará”. [...] (CSM 103)

De acordo com Leão (2007, p. 73):

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Dentre as cantigas de animais da coletânea afonsina talvez essa seja a mais especial, pois a passarinha que o monge contempla e ouve não é um animal deste mundo [...]. O monge se acha num jardim, onde muitas vezes já estivera. Ele não sai da terra. Ao contrário, é o paraíso que vem até ele, através do canto da passarinha, que o desliga do tempo humano. Seria essa passarinha apenas uma enviada da Virgem ou simbolizaria a própria Virgem, que, tomando a forma de uma ave, trazia sua resposta às indagações do monge? O uso do feminino, passarinha, raro com esse sentido na língua corrente, torna mais provável essa analogia.

Nesse sentido, observa-se que, apesar da presença de elementos da natureza,

como a água da fonte, o jardim, as árvores, nada é mais impressionante e eloquente quanto

a presença do pássaro (passarinha), que, vindo de outro mundo, parece ser, como afirma

Leão (2007, p. 74), “o instrumento de que se serve a Virgem para atender ao pedido de seu

devoto, ao desejo de conhecer, em vida, o bem de que se goza no Paraíso, ou seja, na

Eternidade”.

Portanto, ao analisar as Cantigas de Santa Maria, em cuja narração dos milagres se

observa a presença de animais, sejam eles terrestres ou sobrenaturais, como é o caso da

cantiga 103, percebe-se que Dom Alfonso X faz interagirem homens e animais, mostrando

que essas criaturas são criadas para o bem e para o anúncio dos feitos realizados por Deus

em prol da criatura humana. Os animais, assim como o homem, são criaturas de Deus e não

podem, nesse sentido, ser separadas do ponto de vista da criação. Dessa forma, vejamos

como ocorrem os feitos da Virgem Maria na Cantiga 228.

Cantiga 228 – Como um ome bõo avia un muu tolleito de todos-los pees, e o ome bõo

mandava-o esfolar a um seu mancebo, e mentre que o mancebo se guisava, levantou-

[s]’ o muu são e foi pera a eigreja.27

Composta por 9 estrofes com 3 versos monorrimos, mais um verso de rima igual à

do estribilho, a cantiga descreve a compaixão e a bondade da Virgem que não despreza

nenhuma de suas criaturas, revelando sua piedade na cura de um burro que caminha até a

sua igreja e lá, de joelhos, é curado pela Mãe de Deus. Nessa cantiga, a Virgem Maria de

Terena opera um milagre na vida do burro aleijado de todas as patas. Diante do sofrimento

do animal que há muito tempo estava preso no estábulo, o dono, diante da sua inutilidade,

mandara o criado esfolá-lo, provavelmente, até a morte.

Parece-nos estranho o relato da cura de um animal, mas se observa que a intenção

do eu lírico é ressaltar a relação entre a criatura e o criador, além da humildade com que as

criaturas se colocam diante da Virgem e do seu criador. Tal sentimento de humildade é

27

A análise da cantiga 228, bem como a análise da iluminura que a acompanha, foi apresentada na Revista Medievalis, vol. 3, n. 2, 2014 – pp. 46-66.

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perceptível na nona estrofe, quando descreve a forma como o burro ajoelhou-se diante da

Virgem, atribuindo ao animal características humanas: “[...] mostrando grand’ omildades. E

ben ant’ o altar logo / ouv’ os geollos ficados, [...]”.

A terceira estrofe da cantiga nos revela o sentimento de dor que o animal aleijado

causava ao “ome bõo” (homem bom). O homem, vendo a situação do animal e para livrar-se

dele, pede ao seu criado que o esfole, mas o burro, mesmo sofrendo com sua enfermidade,

levanta-se e vai caminhando em direção à Virgem Maria, no Santuário de Terena:

Quand’ aquesto viu seu dono, / atan muito lle pesava Que por delivrar-sse dele / log’ esfolar-o mandava a um seu om’. E enquanto / o manceb’ ant’ emorçava foi-ss’ o muu levantando / con sua enfermidade. (CSM, 228)

Como bem observa Monteiro de Castro (2006), toda a natureza foi feita por Deus

para os homens e para o trabalho humano, e não é sem objetivos que o autor relata a cura

de um burro.

Observamos, na sétima estrofe, que todos os que souberam da cura do burro,

dirigiram-se à Terena para vê-lo e, reconhecendo-o apenas pela cor, imediatamente

compreenderam o milagre realizado pela Virgem Maria:

[...] E logo foron vee-lo / todos quantos y estavan, e adur o connoscian, / pero o muito catavan, senon pola coor dele / em que sse bem acordavan; mas sacó-os desta dulta / a Virgen por caridade. (CSM, 228)

Ao encerrar a cantiga, retoma-se o estribilho que reafirma a bondade e a piedade da

Virgem por ser possuidora de compaixão divina ao ponto de jamais se esquecer de

nenhuma criatura: “Tant’ é grand’ a as mercee / da Virgen e as bondade, / que sequer nas

be[s] chás mudas / demostra as piadade (CSM, 228)”

Essa cantiga aborda a temática da cura, mas não a cura de um ser humano, mas de

um animal que provavelmente era a ferramenta de trabalho de uma família, mas, por ser

improdutivo, causava sofrimento no contexto familiar do século XIII. Por mais que pareça

estranho ao leitor contemporâneo o relato dessa cura, fica evidente que também os animais

sejam instrumentos de milagres e de louvor à Virgem Maria. A narração está de pleno

acordo com a realidade da época, demonstrando que o encanto que a natureza e os

animais provocavam no homem medieval, levavam-no a sentir a presença de Deus e à

contemplação do divino.

As Cantigas de Santa Maria e iluminuras: relação entre texto e imagem

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Desde os fins da Era Antiga até o século XIII, grande parte da arte visual na

Europa, de acordo com Shapiro (1998, p. 9), representa temas que são tomados de

textos escritos. Domíngues e Gajardo (2007, p. 28) assinalam que a função das

miniaturas, além de representar os temas citados no texto, era delimitar o início dos

capítulos e separar as suas distintas partes. Nesse sentido, percebe-se a

preocupação de Afonso X, nas Cantigas de Santa Maria, em representar, por meio

das belíssimas ilustrações, aquilo que o texto narra, para aqueles que desejassem

compreender os textos não só pelo entendimento, mas também e mais facilmente

pela visão, ou seja, pela contemplação das miniaturas: “Et fizo las [partes del libro]

otrossi figurar por que los que esto quisiessen daprender lo podiessen mas de ligero

saber non tan solamente por entendimento mas aun por vista” (AFONSO X apud

DOMÍNGUEZ; GAJARDO, 2007, p. 28).

Na compilação das Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, as imagens cumprem

função estética, evocando a magnificência da obra e de seu autor. Serrano (1987, p. 40)

afirma que a miniatura alfonsina pertence aos exemplares artísticos mais suntuosos e com

uma técnica ímpar, de expressiva beleza e conteúdo, sobressaindo algumas peculiaridades

que atestam sua unidade e as tornam únicas, frente às demais miniaturas europeias do

século XIII. Dentre elas, destacamos o caráter cortesão do rei diante da Virgem Maria, o

qual realça a efetiva e íntima participação do Sábio na produção literária por ele encabeçada

(DOMÍNGUES; GAJARDO, 2007, P. 167).

As miniaturas afonsinas demonstram o auge e o esplendor do culto religioso

mariano, cuja representação gráfica, bela e artística, expressa a completude da vida

medieval, seja em tempos de paz ou de guerra, na cidade ou campo, na cura de males do

corpo ou da alma, na instauração da justiça ou mesmo na cura de um animal. Desse modo,

como afirma Silveira (2009, p. 97), “essas miniaturas constituem também importantes

documentos para os estudos da poética espanhola medieval”, na qual a obra religiosa de

Afonso X se insere.

As Cantigas de Santa Maria, por reunirem, em uma única obra, texto e imagem que

registram a mentalidade e os costumes de uma época, são consideradas uma das mais

completas obras de Afonso X, deixando-nos registros de uma cultura de forma real, rica e

complexa, com seus ritos, valores e expressões artísticas. Como afirmam Domínguez e

Gajardo (2007, p. 48), a obra de Afonso X expressa uma concepção de livro como conjunto,

como objeto artístico total, sendo destinado à exposição em lugar de destaque e honra,

oferecendo ao olhar do espectador, de maneira simultânea, texto e imagem. Nesse sentido,

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considerando a importância que tem a relação entre texto e imagem, apresentaremos, a

seguir, uma leitura comparada dessa importante relação.

As iluminuras extraídas do Códice de Florença constituem uma forma não verbal de

se conceber a leitura das narrativas de Afonso X. Sua autoria é anônima, considerando que,

no seu scriptorium, o trabalho era feito em conjunto e atribuído aos colaboradores do Rei

Sábio. As iluminuras e as miniaturas possuem uma relação intrínseca ao texto verbal e

revelam a leitura e a interpretação do artista/miniaturista, além de revelar o modo de pensar

e agir, assim como as crenças do povo do século XIII. Nesse sentido, apresentaremos a

análise das iluminuras que acompanham as cantigas 103 e 228.

A primeira iluminura analisada é a da cantiga 103, figura 1, CSM: 228 F148v, Como

Santa Maria feze estar o monge trezentos anos ao canto da passarina, porque lle pedia que

lle mostrasse qual éra o ben que avían os que éran en Paraíso.

Figura 1

Composta por treze estrofes, a cantiga ilustrada pela iluminura é constituída de seis

vinhetas sequenciais, detalhando de forma rica os acontecimentos narrados pela cantiga. A

primeira vinheta ilustra um monge, no interior do mosteiro, suplicando, diante do altar da

Virgem Maria, conforme narra a primeira estrofe da cantiga, que lhe mostrasse o bem que

há no Paraíso (“[...] que lle mostrasse / qual bem em Paraís’á [...]”). Observa-se ao fundo do

mosteiro a presença da cidade. A capela do mosteiro, de estilo românico, apresenta uma

torre, tendo ao alto o sino e a porta da entrada na capela. Ao alto do monge, prostrado

diante da Virgem, observa-se um turíbulo preso ao teto e amarrado na coluna, permitindo

que o mesmo fique elevado.

A segunda vinheta, cuja correspondência literária se vê expressa na segunda estrofe

da cantiga, observamos o monge que adentra o jardim (“[...] fez-lo entrar en ua órta / en que

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muitas vezes já”). Nessa cena, contempla-se a presença de árvores frondosas e flores que

ilustram o fato narrado na terceira estrofe: o monge encontra uma fonte muito clara e

formosa, antes nunca vista, senta-se ao lado dela, lavando as mãos (“[...] mais aquel día /

fez que ua font’ achou / mui crara e mui fremosa, / e cab’ ela s’ assentou”). Observa-se um

indício de transformação do lugar, ou seja, o jardim torna-se um local sagrado, sem a

presença da cidade ao fundo, cuja fonte que jorra água clara e formosa, é protegida do Sol

pelas árvores frondosas do jardim e rodeada pelas rosas que ali se encontram e que são

retratadas pelo iluminador.

Na terceira vinheta, o monge está sentado ao lado da fonte, ouvindo atentamente o

cantar do passarinho (passarinha), conforme narra a quinta estrofe, voltando seus olhos

para o céu: oiu ua passarinna. O monge encontra-se no jardim, sendo representado dentro

do quadro, enquanto a ave (passarinha) é representada fora do quadro, conferindo-lhe um

caráter extraterreno, sobrenatural. Tal perspectiva contorna a vinheta, ou seja, a

representação do passarinho (passarinha) é feita de forma a compor a moldura, o contorno

da terceira vinheta. Outro detalhe pertinente dessa vinheta é a representação do portal do

mosteiro com elementos da arte românica: faixas lombardas acima do portal e arco

completo em formato redondo sem a apresentação de cores, o que será observado na

quarta vinheta.

Na quarta vinheta, observamos a passagem do tempo (“grandes trezentos anos”),

permanecendo o monge envolto pelo cantar do pássaro. Tal passagem de tempo é

representada pelas cores e pela modificação arquitetônica do portal do mosteiro. Enquanto

o portal, na vinheta anterior não apresentava cores, nessa há uma ornamentação gótica,

carregada de cores e formas, com o acréscimo de uma torre paralela à entrada, mostrando

a ampliação do espaço em decorrência dos anos que se passaram. Desse modo, o arco do

portal, que anteriormente apresentava as formas românicas, agora apresenta estilo gótico,

com formato quebrado, ogivado e tribolado, sustentado por capitéis ornados com flores.

Na quinta vinheta, após o monge retornar para o interior do convento, não

reconhecendo mais o local onde anteriormente habitava, cuja modificação se deu com o

passar dos anos, observa-se o monge narrando, conforme se lê a partir da décima estrofe

da cantiga, o que ocorrera antes de retornar para o interior do mosteiro. Visualizamos, nessa

vinheta, o mosteiro modificado pelo tempo, sinalizando a passagem da arte românica para a

gótica; a saída do jardim e o retorno para o interior do mosteiro, ressaltando, novamente ao

fundo, a presença da cidade.

Na sexta e última vinheta, assim como na narrativa da cantiga, observa-se os

monges todos adorando e louvando à Virgem Maria, após terem entendido os feitos por ela

realizados: “e por aquesto a loemos”. Ao centro, visualizamos Maria, o instrumento poderoso

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de fé, tendo ao colo o Menino Jesus. A capela também apresenta alguns sinais de

modificação, ocasionados pelo tempo: o turíbulo está com novo formato e é preso do lado

esquerdo da vinheta, diferentemente da primeira vinheta que o apresentava preso do lado

direito. Por fim, há a presença de contornos no local onde se encontra o sino, na torre.

A imagem é ilustrada com riqueza de detalhes. Há o predomínio recorrente do azul,

do verde e do laranja, e as iluminuras que contornam as vinhetas apresentam os símbolos

do reinado de Afonso X: o leão e o castelo, representando os reinos de Leão e Castela,

além de crucifixos nas cores azul e laranja, entremeados pela cor verde. Ao fundo da

primeira, quinta e sexta vinhetas, observa-se a presença de telhado das casas, compondo o

cenário. Na segunda, terceira e quarta vinhetas, observamos o jardim em que ocorre o

milagre operado pela Virgem Maria, por meio da presença simbólica do passarinho

(passarinha), cuja representação é vista apenas na terceira vinheta, compondo a moldura da

ilustração. Simbolizando, assim, a presença sobrenatural do animal divino na cantiga.

Na primeira e sexta vinhetas, bem ao centro, observa-se a presença do turíbulo e,

em destaque, da imagem da Virgem Maria, tendo ao colo o Menino Jesus, entre as colunas

de tom marrom de influência da cultura árabe. O tom das vestes varia entre o azul e o

laranja. A cor escura é utilizada pelo ilustrador para retratar o interior ou as portas de acesso

aos ambientes. Repetem-se as cores azul e laranja representando a santidade, o poder e a

bondade da Virgem Maria que demonstra a sua piedade a todas as criaturas. A

representatividade das cores das vestes da Virgem Maria é observada também na

representação do passarinho que, como afirma Leão (2007, p. 73), pode ser a simbolização

ou personificação da própria Virgem Maria ao apresentar ao monge o bem que há no

Paraíso, conforme ele mesmo havia suplicado.

Passemos à leitura da iluminura da cantiga 228, figura 2, CSM: 228 F112r. Essa

cantiga não narra o milagre realizado em favor de seres humanos, mas retrata a narrativa

acerca da cura de um animal, um burro aleijado das quatro patas: Tanto é grande a

compaixão da Virgem e sua bondade que ainda que a animais aleijados demonstra piedade

(CSM 228 – tradução nossa).

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Figura 2

Composta por nove estrofes, a cantiga ilustrada pela iluminura é constituída de seis

vinhetas sequenciais, que detalham de forma rica os acontecimentos narrados pela cantiga.

A primeira vinheta ilustra o animal deitado no estábulo de seu dono, pois não

conseguia ficar em pé, e dois homens conversando. A segunda vinheta retrata a imagem do

criado e do burro, correspondendo ao conteúdo expresso na narrativa da cantiga que relata

a ordem do patrão ao criado para esfolar o animal. Percebendo a ordem de seu dono, o

burro se levanta e dirige-se à Igreja: “foi-ss’ o muu levantando [...] indo fraqu’ e mui

canssado [...]”.

Na terceira vinheta, observa-se o burro diante da igreja de Terena, em destaque no

centro da vinheta, apresentando detalhes de expressiva riqueza como a cúpula, a torre,

portas e rosácea. A quarta vinheta, no entanto, apresenta o burro, reconhecido pela cor,

diante da igreja de Terena e o povo que para lá acorrera, admirando o animal que até então

era aleijado como narra a cantiga, livre da paralisia que não mais o identificava: “[...] vej’ ora

são / andar e muit’ escorreito; [...]”.

Na quinta e mais expressiva vinheta, observamos o burro prostrado diante do altar

da Virgem Maria (“E ben ant’ o antar logo / ouv’ os geolhos ficados”) e junto ao animal o

povo que para lá acorrera, louvando e agradecendo à Virgem pelo milagre realizado. Na

última vinheta, encontra-se o povo, sem a presença do burro, prostrado diante da Virgem,

apresentando suas orações e louvores à Santa Maria: “e muitos loores dados foron a Santa

Maria, comprida de santidade”.

Observam-se na ilustração uma riqueza de detalhes, o predomínio forte do azul e do

laranja no contorno das vinhetas, há crucifixos pintados de azul e laranja. Ao fundo da

primeira, segunda, quinta e sexta vinhetas, observa-se a presença dos telhados das casas,

compondo o cenário. Na terceira e quarta vinhetas, destaca-se a parte externa do Santuário

de Terena, ao centro, servindo de panorama ao burro em destaque no centro da ilustração,

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pois é ele o personagem que recebe o milagre da Virgem Maria. Na quinta e na sexta

vinheta, retrata-se o interior do Santuário, em cujo centro se posiciona o turíbulo e, em

destaque, a imagem da Virgem Maria com o Menino Jesus ao colo. O tom das vestes varia

entre o azul e o laranja, a cor escura é utilizada pelo ilustrador para representar o interior ou

as portas de acesso aos ambientes. Repetem-se as cores, cuja simbologia remete à

santidade, ao poder e à bondade da Virgem Maria, cuja piedade se estende a todas as

criaturas.

Considerações finais

Ao analisarmos as Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, observamos a figura de

Maria representada no cerne da questão do amor-cortês, que, como afirma Ferreira (1988,

p.11), não tem por objetivo a realização humana, mas se trata de um “sentimento

convencional e platônico, que consiste fundamentalmente no culto da mulher, considerada

modelo de beleza e virtude”. No período trovadoresco, o trovador prostrava-se aos pés da

senhora da mais alta linhagem do mesmo modo que o cristão reverenciava a Virgem,

suplicando-lhe o dom da cura das doenças e o livramento do mal provocado pelo demônio,

considerado o autor e causa de todo mal e pecado. A Virgem concede a todos os fiéis

devotos a mediação entre o céu e a terra e, por recompensa, a vida e a felicidade eternas.

Em todos os textos dedicados à Virgem, mesmo naqueles que apresentam a cura de

animais (cantiga 228) ou a personificação da Virgem por meio de um animal (cantiga 103),

constatamos que o fiel que se depara com a figura de Maria e o seu poder benéfico de cura

e salvação experimenta um momento de transcendência desprovido de crítica ou

julgamentos. Nas cantigas, os personagens (homens e animais) reconhecem-se na sua

figura, expressando sentimentos sinceros que brotam da fé. Ela é exaltada e divinizada por

suas virtudes inigualáveis que demonstram sensibilidade diante das dores e dos sofrimentos

dos fiéis do século XIII que nela viam a solução de sua infelicidade terrena. Desde a Idade

Média, Maria é uma personalidade religiosa feminina reconhecida que perdoa, cura e luta

pelos seus fiéis seguidores.

A ideia do espaço religioso era o local por excelência da resolução dos problemas e

desajustes sociais causados pelo pecado e pela injustiça. As Cantigas de Santa Maria,

acentuadamente religiosas, configuram a ideia do espaço sagrado, conforme observamos

nas duas cantigas analisadas. O estudo do espaço sagrado nas Cantigas de Santa Maria se

justifica, portanto, pelo fato de que o espaço é uma importante categoria literária na narrativa

e na poesia. A religiosidade, a peregrinação, os costumes religiosos e a influência da Igreja

na vida do povo são retratados nessas cantigas e na cultura popular dos séculos XIII e XIV.

Figura 4 CSM: 275 F103v

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Quanto às iluminuras, concluímos que elas concretizam nas vinhetas os fatos

revelados nos textos poéticos. Muitas vezes, há mais informações nas imagens que

propriamente no texto, nas expressões fisionômicas, no movimento das personagens, no

cenário referente às cidades que se iniciavam na época e na presença da natureza, dos

animais, dos rios, das flores e das árvores. A imagem da Virgem Maria esteve presente nas

iluminuras pesquisadas, o que comprova sua divindade e a representação da fé de um povo

sempre carente do livramento de doenças comuns da época, da cura dos pecados e da

presença dos animais sempre em função de um milagre realizado pela intervenção e

intercessão da Virgem Maria.

O vermelho e o azul se repetem, simbolizando sempre a soberania e o poder da

Igreja, bem como a santidade e a pureza de Maria, seu manto azul e sua expressão suave e

serena. Texto e imagem se completam, numa relação intrínseca, conduzindo o leitor de

todas as épocas a um entendimento único, profundo e completo.

Referências bibliográficas BASCHET, Jerônimo. A civilização feudal: do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. BORGES FILHO, Ozíris. A questão da fronteira na construção do espaço do obra literária. TriceVersa, Assis, v.2, n.1, maio-out. 2008. Disponível em: <http://www2.assis.unesp.br/cilbelc/triceversa/publicacao/ed3/ozirisborgesfilho.pdf> DURLO, Carlos; CORTEZ, Clarice. Os milagres da Virgem em Cantigas de Santa Maria dedicadas ao Santuário de Santa Maria de Terena: Estudo do texto e das ilustrações. Medievalis, v.3, n.2, 2014. ISSN: 2316-5442. DURLO, Carlos Henrique; CORTEZ, Clarice Zamonaro. A presença de Animais em Cantigas de Santa Maria. In: Representação Animal na Literatura. Rio de Janeiro: Oficina de Leitura, 2015. FERREIRA, Maria Ema Tarracha. Poesia e prosa medievais. Lisboa: Ulisséia, 1988. FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 1990. LAPA, Manuel Rodrigues. Lições de literatura portuguesa – época medieval. 8ª ed. Coimbra: Coimbra Editora Ltda., 1973. LEÃO, Ângela Vaz. Cantigas de Afonso X a Santa Maria: antologia, tradução e comentários. Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2011. MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Peregrinação e Poesia. Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 1999.

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Religião, religiosidade e poder na Antiguidade Tardia: a Vita Desiderii de Sisebuto de

Toledo

Religion, religiosity and power in Late Antiquity: the Vita Desiderii of Sisebut of Toledo

Germano Miguel Favaro Esteves28

Resumo: A partir de estudos relativos à formação do reino católico de Toledo (fins do

século VI e século VII), nosso olhar se volta à compreensão da complexa imbricação entre

religião, religiosidade e poder no período, mais especificamente, dentro do Reino Visigodo.

Dessa forma, propomos a análise de algumas passagens da Vita Desiderii (Vida e Martírio

de São Desidério), obra hagiográfica redigida por volta do ano de 615, pelo monarca

visigodo Sisebuto, que reinou de 612 a 621. Essa hagiografia conta a vida de São Desidério

de Vienne, santo que por sua vez não pertencia ao Reino Visigodo, tampouco à tradição de

santos de terras hispânicas. Nessa fonte, podemos vislumbrar as relações de poder

presentes dentro do Reino Visigodo, que havia sido recentemente convertido ao

Catolicismo, o reflexo da religiosidade de um rei que teria sido amigo de uma das figuras

religiosas mais importantes do período, Isidoro de Sevilha, e a tentativa bem sucedida de

legitimar o próprio poder como monarca, bem como a estratégia de apaziguar tensões com

os reinos vizinhos.

Palavras-chave: Poder; Religião; Religiosidade; Hagiografia.

Abstract: Based on studies about the formation of the Catholic kingdom of Toledo (late sixth

and seventh century), our attention is on the complex relationship between religion, religiosity

and power in the period, more specifically within the Visigothic Kingdom. In this way, we

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Doutor pela Universidade Estadual Paulista (Unesp/Assis), pós-doutorando pelo Programa de Pós- Graduação em História da FCL-UNESP/Assis.

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propose the analysis of some passages of the Vita Desiderii (Life and Martyrdom of St.

Desiderius), a hagiographical work written about 615, by the Visigoth monarch Sisebuto, who

reigned from 612 to 621. This hagiography show us the life of St. Desiderius of Vienne, saint

who did not belong to the Visigothic Kingdom, nor to the tradition of saints of Hispanic lands.

In this source, we can sight the relations of power present within the Visigothic Kingdom,

which had recently been converted to Catholicism, the reflection of the religiosity of a king

who would have been friends with one of the most important religious figures of the period,

Isidore of Seville. A successful attempt to legitimize his own power as a monarch, as well as

the strategy of appeasing tensions with the neighboring kingdoms.

Keywords: Power; Religion; Religiosity; Hagiography.

Introdução

A Antiguidade Tardia, período que se estende desde o chamado “Baixo Império

Romano” até meados do século VIII, tem sido alvo de um constante revisionismo por parte

dos historiadores que buscam entender a passagem da Antiguidade para a Idade Média sob

o prisma de constantes mudanças. A partir de estudos sobre a criação e permanência do

reino visigodo na Hispânia, séculos V a VII, voltamos nossa atenção para um dos grandes

grupos de fontes existentes para o estudo da história da sociedade hispano-visigoda

descritos por Garcia Moreno, as fontes consideradas literárias (MORENO,s/d, p 11). Estas

se constituem como obras de caráter narrativo, poético, legal e diplomático (Idem, p. 11) e,

dentro desta miscelânea, o nosso olhar se volta especialmente às narrativas, com o enfoque

sobre um gênero de enorme importância e significação, sobretudo cultural: a hagiografia.

Como fonte principal deste trabalho, faremos algumas considerações acerca da

produção da Vida e Martírio de São Desidério (SISEBUTO,1997, pp.1-14) escrita pelo

monarca que governou a Hispânia entre os anos de 612 e 621, o rei Sisebuto. Vemos nesta

fonte um testemunho das relações de poder político em sua imbricação com o sagrado, ou

seja, com o Cristianismo, e sobretudo por meio das vicissitudes de um monarca que,

utilizando-se da santidade, apánagio então de alguns homens piedosos, dentre eles

Desidério, a requereu mais para si e para suas circunstâncias ideológicas e políticas do que

para o santo mesmo, tornando-se este último, e sua santidade, mais um coadjuvante que

um protagonista.

Religiosidade e monarquia na Antiguidade Tardia

Para começar a tratar da fonte principal do trabalho e para elucidar o estudo que se

fará neste breve artigo, nosso olhar recairá, primeiramente, sobre o papel e uso das

hagiografias e, posteriormente, sobre a relação entre hagiógrafo e hagiografado, tratando

consequentemente sobre o contexto em que nossa fonte se encontra inserida.

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Cabe assim destacar que o termo “hagiografia” não é contemporâneo à produção

das obras. Esta terminologia é utilizada desde o século XVII, quando se iniciou o estudo

sistemático sobre os santos, sua história e culto, para designar tanto este novo ramo do

conhecimento, como o conjunto de textos que tratam de santos com objetivos religiosos

(DELEHAYE,1973, p. 24).

No entanto, apesar de o termo ter nascido algum tempo mais tarde, a literatura

hagiográfica cristã teve início ainda na Igreja Primitiva quando, a partir de documentos

oficiais romanos ou de relatos de testemunhas oculares, eram registrados os suplícios dos

mártires.

Sua produção começa a partir do século II, em textos que tratam, em certos casos,

de testemunhos diretos, às vezes autobiográficos, dos martírios de santos e da veneração

que surgiu em uma ou outra comunidade de língua latina ou grega. Tais obras possuíam

caráter privado e foram redigidas principalmente por eclesiásticos. Num primeiro momento,

foi utilizada para sua redação a língua latina, já que era a língua dos cultos e da Igreja

Ocidental.

Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva nos apresenta uma clara explanação que

tomaremos por base. A autora coloca que são as hagiografias

[...] obras voltadas, fundamentalmente, para a propaganda de centros de

peregrinação e a edificação de fiéis, por visarem o grande público e serem,

na grande maioria dos casos, redigidas por homens cultos e ligados à Igreja

[...]. Ao mesmo tempo em que transmitem os pontos de vista e

ensinamentos elaborados por intelectuais, tais obras incorporam elementos

do cotidiano das pessoas para que suas mensagens se tornem mais

adequadas e compreensíveis. (FRAZÃO DA SILVA, 2001, p.135-172)

A autora ainda completa, em outra passagem, que era também o objetivo da obra:

[...] propagar os feitos de um determinado santo, atraindo, assim ofertas e

doações para os Templos e Mosteiros que os tinham como patronos;

produzir textos para o uso litúrgico, tanto nas missas como nos ofícios

monásticos; para a leitura privada ou nos textos de escola; instruir e edificar

os cristãos na fé; divulgar os ensinamentos oficiais da Igreja, etc. (Idem,

p.167 )

Verificamos assim que essas obras, atendendo a uma intenção e função social, eram

voltadas fundamentalmente para propagação de concepções teológicas, modelos de

comportamento, padrões morais e valores. Essas características eram postas por meio da

narração dos feitos de um homem que é tido como santo e dos elementos que estão

vivamente inseridos na sua vida ou à sua margem. Para completar, essas vidas de santos

oferecem para o historiador dados de enorme interesse. Refletem quadros do ambiente

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social a sua volta com grande vivacidade e brilho, permitindo desta forma uma entrada mais

segura e direta nas condições reais de existência da sociedade que outros tipos de fontes,

tais como as legais (MORENO,s/d, p 12).

Sobre a figura na qual se desdobra a narrativa do texto hagiográfico, o homem santo,

André Vauchez mostra o perfil deste como uma figura que estabelecia o contato entre

o céu e a terra, e que encarnava a maior realização do homem na Idade Média. O

interessante a se notar em relação aos santos é a busca que estes empreenderam

a fim de encarnar em sua pessoa os sofrimentos de Cristo ou os milagres análogos

por ele realizados (Imago Christi), com isto obtendo dentre a população em si um

grande sucesso graças a sua eficácia. É, não obstante, um morto excêntrico, cujo

culto se aplica em torno do seu corpo, do seu túmulo e de suas relíquias; colocava o

seu poder sobrenatural mediador a serviço dos homens e, em primeiro lugar, dos

menos brindados pela sorte, como doentes e presos; o santo apresenta-se como o

homem das mediações bem-sucedidas (LE GOFF, 1989, p. 24 ). O santo é oriundo,

na maior parte das vezes, de grupos aristocráticos e proprietários de terras, goza de

um patrimônio de conhecimentos e relações que pode colocar utilmente a serviço

dos humildes, quer se trate de obter do poder civil a redução de pesados encargos

ou a libertação de prisioneiros injustamente detidos (VAUCHEZ,1987, p. 291).

Os pedidos que são dirigidos ao homem santo em geral pelas comunidades vão

desde a libertação dos males de que são afligidos (a doença, a miséria, a guerra) até o

apaziguamento das tensões existentes no seio dos grupos e entre os clãs. E é neste

domínio que o santo é induzido a empenhar-se nos mais duros combates, que o colocam

em conflito direto com os demônios, ou seja, com aqueles que destruíam a relação

harmoniosa existente precedentemente entre o homem e seu ambiente (Ibidem). A eficácia

da sua ação basta para manifestar a vitória de Deus sobre o Mal. Representa uma

possibilidade de salvação. O pecador oprimido pelo remorso está seguro em encontrar no

homem de Deus o perdão de seus pecados, e vice-versa. Os grandes santos atraem para si

um grande número de aleijados, penitentes ávidos de perdão, consolo espiritual. No mais,

Vauchez completa: “[...] os fiéis não esperam do homem santo nem um discurso nem a

transmissão de um saber: querem milagres” (Idem, p. 292).

Tendo em vista esses aspectos, é dito que a figura do santo contou com uma grande

popularidade sócio-religiosa ao longo da Antiguidade Tardia tanto nos reinos romano-

germânicos ocidentais como no Oriente bizantino. Sua busca incessante pela santidade e

pela perfeição evangélica fazia do homem santo um modelo ideal para populações

localizadas a sua volta que o viam como autêntico sucessor dos antigos deuses e heróis

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locais pagãos (BROWN, 1981, p 5). Essa imagem do homem santo aparece muito bem

representada em boa parte das fontes hagiográficas do Ocidente tardo-antigo (FRIGUETTO,

2000, p. 35 ).

O relato hagiográfico ainda pode nos apresentar uma importante fonte para

contemplar diferentes esferas sociais da vida quotidiana em seu contexto. A obra literária

medieval, na qual se enquadra o relato hagiográfico, é, como nos mostra Fernando Baños

Vallejo, “um conjunto de significações que remetem a códigos de uma natureza muito

diversa (linguísticos), relacionados com a literatura latina, ideológicos, filosóficos, teológicos

e sociais)” (BAÑOS VALLEJO, 1989, p 15). Assim, vemos que a vida de um santo se torna

um campo aberto para apontamentos ideológicos e políticos de um monarca, no nosso

caso, Sisebuto.

Vemos que a época de produção da Vida e Martírio de São Desidério enquadra-se

no chamado Período Visigodo, que se estende do século V até o começo do século VIII.

Dentro deste recorte, o foco recai, como foi dito acima, sobre a monarquia visigoda católica

e, mais especificamente, sobre o período conturbado que compreende o reinado de

Sisebuto (612-621), como momento em que se produziu o relato hagiográfico, e sobre os

elementos que permeiam a época do monarca, fatos históricos que se encontram

interligados e explícitos na hagiografia.

Com o abandono oficial do Arianismo por Recaredo (586-601), em fins do século VI,

a fé católica transformou-se como fundamento ideológico da sociedade do reino visigodo.

George Duby nos fala que, de fato, enquanto ideologia o Cristianismo não se apresentava

como um mero reflexo do que era vivido, mas como “um projeto de ação sobre ele” (DUBY,

1979, p. 17).

Ruy de Oliveira Andrade Filho nos mostra que é clara a intenção estabilizadora das

palavras do III Concílio de Toledo, de 589, quando diz que Deus incumbira a monarquia do

“Fardo” do reino em “proveito dos Povos”(ANDRADE FILHO, 2002, p. 82). Para tanto,

completa Andrade Filho, o projeto de ação sobre essa realidade passa pela “verdadeira fé”,

mediante os cuidados do rei (Ibidem). A composição do reino passava a ser entendida como

o conjunto de nações que não era mais o Império, mas a Igreja, unidas pela fé (Idem, p. 84).

Desde então, procurou-se levar a cabo o trabalho de elaboração de uma teoria política, que

buscava garantir a monarquia através de um sistema teológico, em que ganham destaque

especialmente as ideias de Isidoro de Sevilha. (Ibidem, p 84). Essa aproximação entre

governo laico e Igreja se torna especialmente essencial para a monarquia, uma vez que o

caráter eletivo da realeza contribuía para sua instabilidade, visto que o reino visigodo de

Toledo é pleno de deposições e revoltas (Ibidem, p 84). Mas até onde poderia chegar essa

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aproximação? E até onde a instabilidade referente ao caráter eletivo da realeza pode

chegar? Que meios podem ser usados para reduzir ou reverter tal quadro?

Sisebuto, o autor da fonte que nosso trabalho pretende abordar, sobe ao trono

visigodo em fevereiro de 612, após a morte de Gundemaro, por eleição dos grupos

nobiliárquicos que estavam no poder. A personalidade do novo rei, como veremos abaixo, é

uma das mais interessantes da larga gama de monarcas visigodos. A primeira realização

política de Sisebuto foi estabilizar sua relação com os Francos. Conseguindo isso, voltou-se

contra os Bizantinos, em que planificou uma amplíssima operação ofensiva que em poucas

campanhas o levaria à conquista de uma boa parte da província bizantina na Hispânia.

Sua importante formação literária com conhecimento tanto das letras sagradas como

das letras profanas, são quase não observáveis em um estadista romano-germano do

século VII, como nos mostra Garcia Moreno (MORENO, s/d, p. 147). Diferentemente de

seus predecessores, Sisebuto havia sido educado mais como romano que como godo.

Falava e escrevia em latim e tinha fama de bom católico, piedoso e também erudito. O

monarca mantinha uma estreita relação de amizade e colaboração, pelo menos na primeira

parte de seu reinado, com o cada vez mais influente prelado hispalense, o bispo Isidoro de

Sevilha (Idem, p.148). Estaria Sisebuto entrando no sistema das concepções cristãs ao

redigir a Vita Desiderii?

Vemos na figura de Sisebuto um homem culto, refinado, que mostrava grande

interesse pelas artes, preocupando-se em cultivá-las e fomentá-las. Mostrou-se um bom

escritor, como demonstra a fonte aqui tratada, assunto que ainda mais ligou a sua

personalidade à de Isidoro. Foi a Sisebuto que Isidoro de Sevilha dedicou a primeira versão

de sua enciclopédia chamada Etymologiarum (Etimologias), e seu tratado De Natura Rerum

(COLLINS, 2005, p. 74), obra que tratava de aspectos físicos e cosmográficos. O monarca

correspondeu à homenagem feita pelo bispo com um poema de sua autoria que falava

sobre eclipses (FONTAINE, 1960, pp. 1-19; 151-161).

Ao abordar o contexto histórico contido no texto hagiográfico, voltaremos nossa

atenção à história dos Burgúndios, povo de origem escandinava que no final do Baixo

Império Romano instalou-se na Gália e na Germânia. Dentro da trajetória deste povo, o

período que mais nos interessa são os anos que permeiam o reinado de Theodorico II e sua

avó Brunhilda e, mais precisamente, os anos entre 596 e 607, o episcopado de São

Desidério em Viena, que tem importância primordial dentro da narrativa hagiográfica

(MARTIN IGLESIAS apud MINERVA, 1995, p. 165). Elencamos este específico recorte

temporal, pois, como podemos ver no relato, Dedisério entra em um choque direto contra

Theodorico e Brunhilda, monarcas burgúndios que querem ver o santo destituído do seu

cargo no bispado de Viena.

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A partir da leitura da bibliografia aqui trabalhada, vemos que o rei Sisebuto, como

outros monarcas do período, estabeleceu uma relação muito amigável com um dos grandes

sábios e influente bispo da época, Isidoro de Sevilha. Tal relação pode ser interpretada

como o culminar de um processo, no qual o Cristianismo, em termos políticos, tornou-se o

elemento unificador e sacralizador que visava a fortalecer o poder monárquico. Vemos

assim a construção de uma concepção ideológica segundo o imperator tornou-se o

autêntico defensor christianitatis que busca pela unidade religiosa, também integrada na luta

contra as práticas religiosas adversas ao Cristianismo, como o paganismo, as heresias e o

Judaísmo, que poderiam ameaçar a integridade do próprio princeps (FRIGUETTO, 2000, p.

52). O caráter do rei cristão é sem dúvida o aspecto mais novo e de grande importância.

Seu fundamento ideológico último deve residir na passagem do politeísmo antigo ao

monoteísmo. O rei é a imagem de Deus: rex imago Dei (LE GOFF, 2002, p. 396).

A partir da conversão e da elaboração da monarquia cristã, supôs-se a composição

do reino visigodo de Toledo como um corpo unitário, coeso por uma fé e regido por uma

cabeça, cuja autoridade vinha do próprio Deus (ANDRADE FILHO, 2005, pp. 359-371). A

conversão dos visigodos ao Catolicismo também abriu caminho a uma intensa intervenção

dos monarcas na vida da Igreja hispânica. A interferência dos monarcas católicos nas

nomeações episcopais não é mais do que uma das facetas que revestiram sua ação sobre a

vida eclesiástica hispânica (ORLANDIS, 1976, p. 90). Vemos então que o papel do rei tanto

na história medieval quanto, mais especificamente, na monarquia visigoda ocupava um

lugar de grandioso destaque. O poder régio via-se presente em muitas esferas e contando

com outros poderes que o legitimavam, como o eclesiástico, o que mostra a sua importância

dentro do tema trabalhado.

A vita Desiderii

Ao tratar pontualmente da obra, vemos em primeiro plano que se trata de um relato

escrito por um rei, configurando-se assim como a única hagiografia escrita por um monarca

em toda trajetória visigoda. Em segundo plano, mas não menos importante, que o santo, o

homem das mediações perfeitas, também se configura como aquele que se opôs aos planos

de dois personagens fortemente presentes neste relato, o rei Theodorico e sua avó

Brunhilda, da Burgúndia.

É neste ponto, ao olhar para o contexto e os fatos presentes no relato hagiográfico,

que fazemos as seguintes indagações: por que um rei visigodo de Toledo escolhera celebrar

a fatídica morte de um bispo da cidade de Viena, assunto dos Merovíngios da Burgúndia?

Por que Sisebuto veio a ignorar os gloriosos mártires cujo culto era tão vigoroso na

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Espanha, como Santa Eulália, São Vicente ou Santa Leocádia de Toledo, em cuja honra o

próprio rei magnificamente reconstruiu a basílica?

A nosso ver, o rei visigodo não desprendeu suas habilidades para escrever sobre

uma querela de tão grande interesse somente pelo prazer de demonstrar sua aptidão pela

escrita que se apresenta sinonimamente como a de uma figura de extrema importância no

momento, o bispo Isidoro de Sevilha. Na análise do corpo hagiográfico vemos que Desidério

se configura como um mero coadjuvante, se confrontado com os dois outros personagens

em quem o relato é mais concentrado, o jovem rei Theodorico da Burgúndia e sua avó

Brunhilda.

Ao retornarmos à pergunta sobre o porquê de Sisebuto ter relatado a vida de um

bispo de Viena e para quem se direcionava o conteúdo da Vita, deparamos-nos com três

fatos que merecem ser esclarecidos: Brunhilda foi rainha do reino burgúndio, mas visigoda

de nascimento, filha do rei visigodo Atanagildo; seu neto, Theodorico, tem o poder sobre

apenas um terço do particionado reino franco; e ambos estavam mortos no momento em

que Sisebuto escreveu a obra em foco.

Outro ponto de extrema importância nesta análise nos leva a vislumbrar que os fatos

narrados dentro do corpo hagiográfico se encontram entre os anos de 603 a 613,

compreendendo um espaço de tempo em que a relação entre os reinos franco e visigodo

era tempestuosa.

É dentro deste panorama, da monarquia visigoda, poder régio, poder eclesiástico e

influência das letras, que nosso trabalho se inscreve. E dentro desta gama de características

é que ressaltamos o papel da hagiografia acima abordada como constituinte de um

poderoso meio de propagação que estaria a serviço de finalidades políticas muito concretas

(MORENO, s/d, p. 12).

A hagiografia da Vida e Martírio de São Desidério enquadra-se neste contexto; ainda

mais, mostra-nos uma forte ligação e interesse do hagiógrafo com a religião, o Cristianismo

niceano, e com a produção literária que se encontrava a cargo do influente bispo de Sevilha,

Isidoro. Tendo isso em vista, sua atividade literária não pode ser dissociada da ideia de que

o monarca tem uma dupla missão, uma missão política e religiosa, como um rei cristão e

como um católico cristão (FONTAINE, 1960, p. 97). Como Recaredo, o novo Constantino,

Sisebuto sentiu-se ser o herdeiro do primeiro imperador cristão e entendeu sua missão de

tal modo que seus elementos morais, religiosos e políticos estão inextrincavelmente ligados.

Ele é, assim, um ativo colaborador na Renascença Isidoriana, que tem em seu intuito nada

menos que a reconstrução da vida civil e religiosa na Hispânia visigoda (Ibidem).

Sobre o ponto de vista do “Renascimento Isidoriano”, que tem como preceitos a

elevação da moral, da religiosidade e a construção de uma nova política real, a Vita

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Desiderii torna-se um pouco mais inteligível. Desta maneira, as palavras do monarca podem

ser entendidas juntamente com a unidade de todo o projeto: propor e secretamente impor,

por meio de uma história exemplar, certos valores morais, religiosos e políticos que definem,

para os leitores ou ouvintes dentro ou fora do reino, a ideologia cristã dos “Reis Católicos”

de Toledo (Idem, p. 98).

Como citado acima, as relações entre o reino franco e o visigodo nos anos que

antecedem o reinado de Sisebuto foram de grande hostilidade. Talvez, isto tenha

influenciado o pensamento do monarca a tratar sobre este assunto, pontuando e punindo os

reis francos da época ou expondo as reais intenções e o posicionamento que tinha sobre o

período tratado na obra.

A estratégia pode ser vista também como a preservação da autoridade e prestígio

dos monarcas visigodos que sobrevivem apoiados em seus valores, tanto religiosos quanto

os ligados à nobreza, e que, ao mesmo tempo, questionam a legitimidade dos reis vizinhos.

Tendo esta breve explanação em vista, a análise sobre o corpo da fonte hagiográfica

aqui tratada nos revela uma abordagem direcionada à compreensão de diversos aspectos

que circundavam o reinado e as aspirações do rei Sisebuto, que estão descritas no texto

hagiográfico. A abordagem da fonte aqui tratada, a hagiografia da Vida e Martírio de São

Desidério, privilegia as relações da monarquia e sua legitimidade de poder com a santidade,

expressa na figura de Desidério.

Considerações Finais

Como podemos asseverar, a Vita Sancti Desiderii, escrita por Sisebuto, é uma fonte

privilegiada para o estudo das relações entre poder e religião no contexto da Antiguidade

Tardia. Complementando tal raciocínio, atentemos ao que nos sugere Aline Coutrot,

tratando do tema Religião e Política: “as forças religiosas são levadas em consideração

como fator de explicação política em numerosos domínios. Elas fazem parte do tecido

político, relativizando a intransigência das explicações baseadas nos fatores sócio-

econômicos” (COUTROUT, 1996, p. 331). Assim, ao elencarmos a categoria de “imaginação

social”, nos moldes propostos por Eveline Patlagean (1978), vemos que o imáginario social,

no campo político, nos mostra a questão da legitimidade do poder. Segundo a autora, é no

próprio centro do imáginário social que se encontra o problema do poder legítimo, ou

melhor, o problema da legitimação do poder (PATLAGEAN, p. 310). Em nosso caso, trata-se

de pensar a legitimação do poder monarquico. Portanto, o imaginário social a que nos

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referimos nesse estudo é entendido como uma dimensão do pensamento político, de modo

que, a questão da legitimidade de poder precisa encontrar respaldo, necessariamente, em

símbolos de poder inteligíveis para a sociedade, no nosso caso, a hagiografia.

Para tanto, Michel De Certeau nos diz que “a vida de santo se inscreve na vida de

um grupo, igreja ou comunidade. Ela supõe que o grupo já tenha existência. Mas representa

a consciência que ele tem de si mesmo, associando uma imagem a um lugar” (DE

CERTEAU, 1982, p. 269). E mais especificamente sobre a tipologia que usamos, o martírio,

em uma relação entre grupos: “o martírio predomina lá onde a comunidade é marginal,

confrontada com uma ameaça de morte, enquanto a virtude representa uma igreja

estabelecida, epifania da ordem social na qual se inscreve” (Ibidem).

Acreditamos, portanto, que a hagiografia, documento literário, pode-nos informar

sobre os dados históricos mais factíveis da vida material e mental da sociedade que a

produziu. A obra literária e suas circunstâncias se fazem especialmente servíveis e

pertinentes ao historiador quando, de algum modo, nos informam sobre as sociedades para

além do texto em si, ainda que dele partindo e por ele perpassando

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Uma Galiza mágica: A religiosidade manifesta nos cultos, deuses e superstições (séc. VI)

A magic Galiza:

The religiosity present in the cults, gods and superstitions (6th century)

Juliana Bardela Fiorot29

Resumo: Neste trabalho apresentaremos as principais formas de religiosidade praticadas na Galiza do século VI demonstrando a diversidade de cultos, deuses e superstições que possuíam estreita vinculação com os elementos naturais e garantiam a manutenção da ordem cotidiana. Nossa análise estará assentada no sermão De correctione rusticorum, escrito no século VI por Martinho, bispo de Braga, que condena várias práticas religiosas cultuadas pelos galegos, permitindo-nos empreender um estudo mais detalhado destas crenças, bem como sua funcionalidade social. Tal obra está inserida no contexto de organização da Igreja Católica no território galego, portanto o bispo preocupou-se em produzir um escrito voltado a instrução pastoral que o auxiliasse em sua tarefa evangelizadora. Todavia, o sagrado impregnado na paisagem não será suplantado pelas ações do Catolicismo, obrigando este último a adaptar-se a estas crenças para ser melhor aceito entre os galegos.

29

Mestre em História Medieval pela Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista. E-mail: [email protected].

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Palavras-chave: Religiosidade; Galiza; Sermão; Martinho de Braga. Abstract: In this paper we present the main forms of religiosity practiced in the Galiza in the sixth century, demonstrating the diversity of cults, gods and superstitions that had close ties with the natural elements and guaranteed the maintenance of the daily order. Our analysis will be based in the sermon De correctione rusticorum, wrote in the sixth century by Martinho, bishop of Braga, which condemns various religious pratices worshiped by Galicians, allowing us to undertake a more detailed study of these beliefs, as well as their social functionality. This work is inserted in the context of organization of the Catholic Church in the Galician territory, so the bishop was concerned to produce a document aimed at pastoral instruction to assist him in his task of evangelization. However, the sacred impregnated in the landscape will not be supplanted by the actions of Catholicism, forcing the latter to adapt to these beliefs to be better accept among the Galicians. Keywords: Religiosity; Galiza; Sermon; Martín of Braga.

Contexto histórico e fonte

Nossa pesquisa abrange o panorama da Galiza governada sobre a égide da

Monarquia sueva entre os anos de 409-585. Durante este período, as esferas política e

eclesiástica lutavam por legitimarem seu poder na região. Para tanto, aliaram-se efetuando

ações que contribuiriam mutuamente para a realização de seus objetivos. Neste cenário,

voltaremos nossa atenção especificamente ao século VI, no qual destacamos a figura de

Martinho de Braga (525-585), bispo reconhecido por sua atuação no processo de

reorganização do clero galego e pela íntima relação estabelecida com os monarcas suevos,

promovendo, inclusive, a conversão do reino a fé católica (559), fato que contribuiria para

que a Igreja desenvolvesse seu projeto evangelizador na região.

Para propagar a doutrina cristã em uma sociedade permeada por crenças de origens

variadas (celta, romanas, gregas etc) praticadas desde tempos pré-históricos, Martinho

escreve um sermão intitulado De correctione rusticorum (Da correção dos rústicos). Tal obra

foi elaborada a pedido de outro clérigo (Polêmio, bispo de Astorga) que teria solicitado a

Martinho instruções sobre como empreender a evangelização. Consideramos que as

preocupações de Polêmio retratavam a situação geral do clero galego que deveria iniciar tal

tarefa, mas não sabia como fazê-lo. Não era somente o peso do sagrado que impedia a

evangelização, mas a falta de conhecimento acerca do Catolicismo pelo próprio clero que

também era praticante de tais formas de religiosidade. Caberia a Martinho, como principal

membro da Igreja galega, oferecer um manual contendo instruções para a feitura deste

árduo trabalho.

O De correctione rusticorum foi escrito tendo por influência obras de outros

eclesiásticos, como os sermões de Cesário de Arles (sermão 13) e Máximo de Torino

(Sermo CVII) existindo, portanto, características comuns entre essas obras, dentre as quais

podemos citar: utilização de passagens bíblicas a fim de dar veracidade ao que está sendo

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dito, descrição de práticas religiosas cultuadas pelos ditos “rústicos”, ideia de danação

eterna ou de arrependimento e salvação e inserção de figuras bíblicas como Lúcifer, Adão e

Eva, Noé, Jesus. Verificamos, portanto, que Martinho apoia-se em escritos anteriores

utilizados com o mesmo propósito para compor seu sermão. Todavia, especificamente no

De correctione rusticorum, nos deparamos com algumas características peculiares. O

primeiro fato a ser notado é a linguagem utilizada pelo bispo. No início da obra, Martinho

utiliza-se do latim clássico, pois suas palavras estão sendo dirigidas especificamente a outro

religioso (Polêmio). Todavia, após os cumprimentos iniciais, o bispo de Braga deixa claro

que mudará a linguagem do sermão, passando a escrever em latim vulgar, pois segundo

ele, é necessário “[...] temperar o alimento para os rústicos com a fala rústica” (MARTINHO

DE BRAGA, 1990, pág.01). Tal opção facilitaria o entendimento da obra para seu público-

alvo, que eram os próprios clérigos também praticantes da religiosidade. Era necessário

fornecer as informações básicas acerca da doutrina cristã a fim de que a missão da Igreja se

efetivasse. Estes religiosos, que eram alfabetizados (mesmo que superficialmente)

entenderiam as orientações básicas e as repassariam ao restante da população, dando

prosseguimento a tarefa evangelizadora.

Especificamente no De correctione rusticorum o objetivo geral de Martinho era frisar

que o paganismo estava sob o patronato do Mal cujo maior alvo era a ignorância humana

cultivada pelos chamados “rústicos”. As crenças praticadas nunca seriam capazes de

proporcionar aos seus adeptos a salvação eterna pregada pela Igreja, sendo esta a única

que possuiria o verdadeiro credo. O esquema argumentativo do bispo está assentado sobre

trechos das Sagradas Escrituras que focam a questão da criação do mundo e dos homens

que foram selecionados com o propósito de difundir informações relevantes para o

Catolicismo, porém de uma maneira resumida. A partir destas passagens, o bispo

desenvolve seus ensinamentos, sempre opondo o bem e o mal em um maniqueísmo

presente em todas as linhas do sermão. Era necessário que os leitores do De correctione

rusticorum entendessem que o sistema religioso do qual faziam parte era uma enganação.

As crenças praticadas trariam resultados danosos aos seus adeptos, pois eram fruto da

inveja de Satã caracterizado no sermão como o anjo caído, artífice de toda a maldade

presente no mundo:

Então, o Diabo e seus ministros, os demônios, que foram expulsos do Paraíso, vendo a ignorância do homem... vagando atrás de criaturas, começaram a mostrar-se em diferentes formas para os homens e falar com eles, dizendo que deveriam oferecer sacrifícios em altas montanhas e bosques sombrios e adorá-los como se fossem Deus. Eles tomaram para si nomes de homens malignos que passaram suas vidas cometendo todos os crimes e feitos vis. (MARTÍN DE BRAGA, 1990, pág.07)

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Ao longo das linhas que se seguem, Martinho procura esclarecer, didaticamente, que

todas as crenças ditas pagãs constituem um sistema religioso falso que leva seus

praticantes a perdição. Todas as críticas tecidas pelo bispo acerca da religiosidade estão

interligadas com a narrativa da História da Criação. O relato de tais acontecimentos teve

como um dos seus objetivos principais demonstrar as origens do mal e seu espaço de

atuação, caracterizado pelo bispo como ilimitado. Contudo, tal sequência nos deixa, ainda,

uma outra mensagem: Martinho coloca Deus como o criador dos céus, da terra e de todos

os elementos que a compõe, sendo assim, o fato dos galegos cultuarem criações divinas é

errôneo. Estas foram feitas para benefício do homem, e, por um equívoco (ignorância)

somado a influência do diabo, são tratadas como divindades. O que o bispo de Braga quer

deixar claro aos leitores é a falsidade de sua religião. Durante o processo de criação do

mundo a crença monoteísta, centralizada na figura de Deus, era a única e verdadeira

religião e é esta mensagem que Martinho deseja que os galegos entendam. Assim,

preocupado em reverter muitas ideias, cultos e rituais já consolidados, o bispo apresenta

uma nova versão, baseada na doutrina cristã, sobre a verdadeira origem de algumas

crenças. Ao fornecer suas explicações, Martinho acaba condenando as crenças praticadas,

mencionando inúmeros cultos, deuses e superstições adorados pelos galegos. Desta forma,

pudemos empreender um estudo acerca das principais formas de religiosidade, analisando

suas funções e importância social na Galiza.

Uma Galiza mágica

No De correctione rusticorum, são inúmeras as formas de religiosidade mencionadas

pelo bispo de Braga, isso nos mostra que o clérigo em questão detinha um certo

conhecimento sobre as práticas cultuadas, haja vista que o próprio clero também as

praticava. No entanto, o fato de mencionar tais formas de religiosidade fornece

embasamento para que o bispo as condene em sua obra através de infindáveis argumentos.

Para cada prática mencionada, o bispo insere a História da Criação, procurando mostrar que

Deus é o criador do Universo e de seus elementos.

As formas de religiosidade descritas no sermão são: as festas em comemoração as

Calendas (início do ano), paganalia (menção a ratos, traças e gafanhotos), rituais e

homenagens a deuses e ninfas do panteão romano, celta e suevo, culto às águas, árvores,

pedras e montes, superstições com fins diversos e a astrologia de forma geral. Neste

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trabalho citaremos apenas alguns exemplos relacionados as condenações de Martinho e

outros cultos vinculados a tais temáticas.

a) A religiosidade galega expressa nas águas, pedras, montes e árvores

Os mananciais, poços, rios ou até mesmo o mar eram conhecidos por suas inúmeras

funções. As pessoas recorriam as águas em busca de suas propriedades terapêuticas

capazes de amenizar ou até curar doenças, porém destacamos que estes locais também

serviam para rituais adivinhatórios, tendo como foco as questões sentimentais e,

principalmente, amorosas. Acreditava-se que tais qualidades funcionariam em sua máxima

potência se os lugares de adoração fossem visitados em determinados dias e horas. As

águas dos mananciais e poços se recolhidas no primeiro dia do ano, por exemplo, eram

consideradas especiais.

Muitos desses espaços de veneração eram vistos como estando sobre o patronato

de espíritos, ninfas ou deusas. Em seu sermão, Martinho de Braga condena tais cultos

referindo-se aos mesmos como influenciados pelas forças malignas, representadas pelos

deuses pagãos: “Além disso, muitos demônios, expulsos do paraíso, também residem nos

mares, nos rios, nas nascentes ou nas florestas; homens ignorantes de Deus também os

adoravam como deuses e faziam sacrifícios em seus nomes” (MARTINHO DE BRAGA,

1990, 08). Com relação às águas, os sacrifícios aos quais Martinho refere-se, eram

realizados visando o controle desta força natural, principalmente nas temporadas de chuva

que poderiam ameaçar as plantações ou a vida dos aldeões. Alberro nos informa sobre um

rio galego cuja adoração estava ligada ao deus Tameobrigus:

Na antiga Gallaecia, Tameobrigus era um deus que foi consagrado nos cursos de água pela confluência dos rios Duero e Támega. O nome deste deus, com seu sufixo celta en-brigus é da mesma raiz do nome do rio, tam. Desta forma, Tameobrigus significaria o “maior” espírito protetor deste rio. Um altar a este deus foi erguido em Marco de Canaveses, nas margens deste mesmo rio, onde seus habitantes, desde tempos imemoriais, tem por costume sacrificar uma galinha para oferecer ao rio quando este ameaçava transbordar na estação de chuvas. (ALBERRO, 2002, p. 24)

Verificamos que são abundantes os exemplos de deuses ou ninfas relacionados ao

culto às águas. Todavia, gostaríamos de nos ater a outro exemplo que demonstra não só a

adoração em torno da deusa Coventina, mas também o seu processo de adaptação por

outros povos que ajudaram a disseminar esta simbologia em muitas localidades da Europa

no período. Originalmente Coventina era a principal deusa aquática entre os celtas da Grã-

Bretanha. Tal crença estava fundamentada na ideia de que esta deusa fornecia a cura para

seus devotos mais pela ação psicológica do que pelo contato físico com as águas dos

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mananciais aos quais acreditava-se que ela vivia. Com o tempo, os mananciais dedicados a

Coventina receberam uma capela cristã, tática que foi utilizada pela Igreja diversas vezes a

fim de marcar o Catolicismo na paisagem, principalmente nos lugares de culto mais

populares.

Com relação às águas do mar, a simbologia da nona onda era a mais apropriada

para a efetivação dos pedidos. Os galegos acreditavam que a nona onda era a mais potente

e carregava propriedades curativas além de interceder pelas mulheres estéreis. Trata-se do

ritual pela fertilidade, quando mulheres que são estéreis ou tem dificuldade para engravidar,

ficam submersas esperando a nona onda.

Sobre as pedras, citamos Marta Plaza Beltrán, que explica que o homem primitivo as

via como símbolos atrelados a ideia do eterno capazes de despertar a unidade, energia e

força nos seres humanos. O território galego apresenta uma variedade de tipos de pedras

que acabaram sendo divididas de acordo com seu formato e tamanho, servindo a

simbologias diferenciadas. Pedras grandes, pequenas, com um buraco ao centro ou

empilhadas umas sobre as outras eram procuradas por inúmeras razões vinculadas a

assuntos de vida e morte. Nas próximas linhas trabalharemos com alguns tipos de

megalíticos caracterizados por sua forma peculiar.

Primeiramente vamos nos referir as pedras oscilantes, também conhecidas por

pedras de abalar ou adivinhatórias cuja simbologia advém dos povos celtas. Estas

caracterizavam-se como estando umas sobre as outras de modo que sua configuração

fosse utilizada a fim de fornecer respostas a alguns tipos de assunto ora vinculados a

acontecimentos futuros, ora a problemas judiciais. Nos dois casos a propriedade de

movimentação da pedra era considerada como uma resposta positiva ou negativa, por

exemplo: a inocência de um acusado era comprovada quando este fizesse a pedra oscilar

ao subir em cima da mesma. Se a pedra não se movimentasse isto seria um sinal de

culpabilidade. Acreditava-se também que tais elementos eram dotados de poderes

curativos, podendo auxiliar em diversos tipos de enfermidades, ou ainda poderiam ajudar

mulheres estéreis ou com dificuldade para engravidar.

Entre outras pedras que se destacam por suas características peculiares, podemos

citar aquelas que apresentam algum tipo de formato conhecido, seja objeto ou ser vivo. Pela

ação do vento ou da água, muitas rochas são moldadas, e algumas acabam apresentando

uma forma que as identifique com algo, abrindo a possibilidade para a criação de inúmeras

lendas. Como exemplo Maria Plaza Beltrán descreve uma conhecida rocha com formato de

vela, cuja adoração estava ligada as propriedades curativas da mesma:

[...] Na Galiza temos a Pedra de Os Cadrís (Santo André de Teixido, A Coruña) com forma de vela, que a tradição cristã diz que é a vela da

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embarcação na qual apareceu a Virgem no local; por isso atribui-se a ela poderes curativos para todos aqueles que passam pelo buraco abaixo da mesma. (BELTRÁN, 2010, p. 14)

No trecho acima verificamos a flexibilidade da Igreja em aproveitar a funcionalidade

de um local sagrado aos seus propósitos. Tendo em vista as situações nas quais o ritual se

desenrolava e a importância do mesmo, o Catolicismo utiliza-se da popularidade do referido

culto e adota o local revertendo-o aos preceitos católicos através da invenção de uma

história que se encaixasse ao formato da rocha.

Nas categorias de pedras com características especiais, destacamos ainda aquelas

que apresentam algum tipo de orifício. Assim como as demais pedras que abordamos

acima, estes elementos “perfurados” também eram conhecidos na Galiza entre os pagãos

por suas propriedades curativas. O Rito do Passo em Santo André de Teixido (A Coruña) e

a Pedra de Os Cadrís (Muxía) são visitados até hoje por peregrinos que atravessam seus

orifícios em busca de proteção ou cura, principalmente a doenças relacionadas à artrite.

Por detrás do culto a essas grandes pedras, os galegos questionavam-se sobre suas

origens. Como era costume no culto pagão, estes elementos também traziam junto de si

histórias que englobavam divindades ou espíritos. Entre os galegos a figura das mouras

(grandes mulheres) teriam sido as responsáveis pela colocação destes megalíticos na

paisagem. Estas eram conhecidas por sua força física, sendo donas de grandes riquezas e

responsáveis pelo transporte e colocação destas pedras no ambiente. Segundo a tradição

celta que se estendeu em outras regiões da Europa, as pedras (provenientes do céu) eram

transportadas sobre a cabeça das mouras, que as colocavam em lugares estratégicos na

paisagem. Uma vez que estas estivessem em seu devido lugar, as mouras atribuíam a cada

uma delas aspectos que as diferenciassem, explicação que complementa a divisão de cultos

para tipos de pedras com formatos variados que abordamos anteriormente.

Por fim, nos remeteremos aos cultos vinculados as árvores e montes. Assim como as

águas e pedras, estes elementos naturais reforçavam a intensa relação estabelecida entre

homem e ambiente através dos tempos. Quando em contato com a natureza, o ser humano

sentia-se como uma extensão daquele ambiente e o reverenciava em sinal de respeito. A

natureza era a responsável por fornecer o sustento e a garantia de continuidade da vida

humana. Para estes povos, os locais abertos cercados por árvores ou até mesmo os

bosques densos eram extremamente significativos. A árvore representava aquilo que o

pagão sentia, ou seja, um “estar plantado” na sua terra.

Muitas eram as espécies de árvores adoradas por seus poderes, tais como o

espinheiro, teixo e o amieiro, contudo, em nossas leituras, o exemplo do carvalho é o mais

comumente citado nos rituais de origem celta. James Frazer (1996, p.191) explica que a

presença de uma divindade dentro dos carvalhos foi uma crença difundida entre muitos

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povos indo-europeus, sendo esta árvore e sua simbologia uma das principais entre o

panteão de divindades do período.

b) Os deuses e animais sagrados

Na Galiza a proximidade da morte era anunciada por seres sobrenaturais. A figura da

Rolda ou da Estaderia provocavam pavor entre os habitantes que esperavam o fatídico

acontecimento. A Rolda possui correspondências com uma divindade muito famosa na

Irlanda, denominada de Banshee. Esta geralmente aparecia sobre a forma de uma bela

mulher que penteava seus cabelos ruivos com um pente de ouro. Quando um adulto se

deparasse com esta criatura sua melhor defesa era traçar um círculo no solo e colocar-se

dentro do mesmo, evitando, assim, sua morte. Com relação a Estaderia, trata-se de um ser

solitário que rondava as casas quando as pessoas estavam morrendo. Este ser proferia

lamentações, chorava e gemia, mas seu espírito também poderia ser visto ao longo dos

caminhos.

Nesta categoria de seres aparece ainda na Galiza a velha Orcabella, antiga deusa

celta capaz de destruir os seres humanos com sua visão ou toque. Segundo a tradição, esta

poderia tornar-se invisível quando bem desejasse, além de mostrar um grande apetite

sexual apesar da idade avançada.

Como vimos, alguns seres sobrenaturais alimentavam as histórias em torno dos

momentos fúnebres. Contudo, a morte também era encarada como uma festa. O ritual

galego da abelha representava o ápice do velório, sendo realizado após um grande

banquete regado a comida e bebida. Este inseto era venerado principalmente pelos

camponeses que atribuíam ao mesmo o transporte das almas. Fernando Alonso Romero

nos descreve este curioso ritual:

[...] depois de terminados as tradicionais rezas dos velórios, as lamentações repetidas e as exclamações exageradas de dor pela morte do ser querido, todos os presentes participavam de uma espécie de banquete fúnebre no qual comiam sardinhas com pão e bebiam aguardente em abundância. Com o passar das horas, o ambiente entristecido do princípio ia sendo apaziguado pelo efeito do álcool e os mais jovens se entretiam com piadas insinuantes e jogos com prendas, nos quais as moças perdedoras deviam beijar o defunto. Mais tarde, durante a madrugada, quando o sono e o cansaço começavam a serem notados, todos colocavam-se em pé para começar o rito funerário conhecido pelo nome de “abelhão” [...]. Os familiares e amigos do defunto iam até a casa em que estava o cadáver e formavam um círculo em torno do mesmo, davam-se as mãos e sem dizer uma só palavra começavam a dar voltas e voltas ao redor do morto, aumentando progressivamente a velocidade dos giros sem deixar de imitar com a boca o zumbido da abelha. Durante o tempo que durava esta estranha cerimônia não se podia deixar de dar voltas e tampouco falar, pois

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aquele que o fizesse corria o risco de ser o próximo a morrer. (ALONSO ROMERO, 2000, p. 75-76).

A simbologia do galo também se faz presente no território galego. As noites eram

muito temidas devido ao perigo que apresentavam, principalmente no âmbito espiritual

quando criaturas malignas vagavam à solta. Assim, Giordano (1983, p. 68) nos conta que o

canto do galo ao raiar do dia parecia conter uma virtude libertadora, como se fosse dotada

de um poder exorcista. Não era seguro sair de casa antes do galo se manifestar, afinal este

poderia apaziguar ou eliminar as possíveis atitudes maléficas dos espíritos. O mesmo

sentimento era partilhado durante os eclipses, quando os gritos das pessoas e o canto do

galo voltariam a trazer a luz solar. A Igreja tratou de extirpar tal costume estabelecendo nos

livros penitenciais castigos de dez dias a pão e água para aqueles que acreditavam nas

virtudes mágicas deste animal, entretanto atestamos novamente a ineficiência da Igreja em

combater costumes tão enraizados. A solução foi adaptar tal crença ao arcabouço simbólico

do Catolicismo que afirmava ser a ave a personificação de Jesus que a cada alvorecer

anunciava sua ressurreição, possibilitando ao homem o regresso as suas atividades já que a

noite e seus perigos haviam sido vencidos mais uma vez. Como nos mostra Mário Jorge da

Motta Bastos: “Concessor da graça e vencedor do pecado, seria Cristo quem, por intermédio

do canto do galo, dissiparia o sono e destruiria as armadilhas da noite” (BASTOS, 2013,

p.171).

No caso do De correctione rusticorum, os animais citados por Martinho claramente

fazem referência a preocupação do homem camponês com seu sustento diário. Analisemos

os detalhes desta crença nas palavras críticas tecidas pelo bispo:

Agora, o que pode ser lamentavelmente dito do erro tolo pelo qual [rústicos] observam os ‘dias’ de mariposas e camundongos e um cristão (se é que pode ser chamado assim) que venera ratos e mariposas em vez de Deus? Pois se o pão ou o tecido não é guardado em um baú ou caixa, de modo algum eles os pouparão por causa de banquetes especiais a eles oferecidos. Mas em vão homens miseráveis fazem predições do futuro, como se estando, no início do ano, alimentado e feliz de todas as maneiras, assim será por todo o ano. Todas essas observâncias de pagãos são engendradas por artifícios dos demônios. Mas ai do homem que não tenha Deus como seu amigo e que não tenha recebido dEle saciedade do pão e segurança de vida! Vejam como vocês realizam essas superstições vãs, seja em segredo ou abertamente, e nunca cessam de fazer sacrifícios a demônios. Por que eles não os sustentam, de modo que estejam sempre alimentados, seguros e felizes? Por que, quando Deus se irrita, os vãos sacrifícios não os defendem dos gafanhotos, ratos e muitas outras atribulações que Deus envia em Sua ira? (MARTÍN DE BRAGA, 1990, pág.11)

No fragmento acima podemos observar a estreita vinculação dos ratos, traças e

mariposas como seres que poderiam poupar ou arruinar as colheitas, bem como o estoque

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de alimentos. Portanto, era necessário realizar festividades em homenagem a essas

criaturas adorando-as como se fossem próprios deuses. Os dias de culto direcionados a

esses animais, que geralmente eram realizados em janeiro e recebiam o nome de

paganalia, davam confiança ao camponês de que seu sustento estaria assegurado por todo

ano.

c) Astrologia e superstições

A lua também era a protagonista de importantes rituais festivos na Galiza. José Maria

Blázquez (1977, p. 453) narra um antigo culto galego em homenagem a lua cujos traços

ainda se fazem presentes em algumas localidades. O autor diz que, nas noites de lua cheia,

os aldeões saiam de suas casas para aproveitar a luz fornecida pelo satélite. O

acontecimento era tão popular que festas e homenagens à lua eram realizadas enquanto

esta fase se prolongasse. Homens e mulheres dançavam e cantavam ao som de

instrumentos musicais, sendo que, ao término de cada canção, as pessoas reverenciavam a

Lua com uma genuflexão e gritos. As homenagens estendiam-se pela noite e geralmente

eram regadas a muita bebida. As adorações a este elemento natural não se limitavam

apenas às festividades. Nas situações em que a Lua era acometida por um eclipse, os

galegos tão logo se dispunham a ajudá-la, interpretando seu escurecimento como um

ataque de monstros misteriosos ou algum sofrimento vivenciado pelo astro. Giordano (1983,

p. 65) nos conta que as pessoas se dirigiam às praças ou estradas tocando instrumentos ou

materiais que gerassem um som alto; os gritos também se faziam presentes e até mesmo

flechas eram disparadas contra a lua a fim de afugentar o motivo que provocava a alteração

de seu estado normal. Esta proteção e reverência estão relacionadas não somente ao fato

deste elemento ser entendido como mágico por possuir propriedades benéficas em diversas

situações, mas pelo medo coletivo em relação as noites. Como retratamos anteriormente, as

pessoas acreditavam que os maus espíritos vagavam a noite fazendo vítimas, e a luz da

Lua era uma garantia de claridade e segurança diante dos perigos eminentes.

Os cultos direcionados ao Sol eram mais frequentemente praticados no centro da

Península, portanto encontramos raras referências a ele em nossas leituras mais

direcionadas a porção setentrional. Excetuando estas informações, Jesús Rodríguez López

(1948, p.172) nos conta que após os eclipses solares na Galiza os camponeses

desprezavam o leite fresco recolhido no dia e evitavam colher verduras por acreditarem que

as mesmas seriam prejudiciais ao ser humano após o fenômeno. Outra importante

informação acerca dos cultos solares é esclarecida por Giordano (1983, p. 65), que comenta

brevemente sobre uma adaptação efetuada pelo Catolicismo. O autor explica que o vinte e

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cinco de dezembro representava, entre os povos pagãos, o nascimento do deus Sol

(solstício de inverno). Assim, a simbologia da luz e a popularidade em torno desta

festividade acabou sendo aproveitada para a fixação da data do nascimento de Cristo neste

mesmo dia, facilitando a integração entre cristãos e não cristãos que se reuniriam para

celebrar datas com equivalente importância religiosa.

As superstições eram largamente praticadas na sociedade galega. Cotidianamente,

estas eram empregadas para diferentes funções, mas que geralmente atuavam no auxílio

de problemas que afligiam o ser humano e seu entorno. Muitas delas são praticadas na

Galiza atualmente, estando presentes também em nossa sociedade. A preparação das

festas das Calendas, que marcavam o início do ano, é um claro exemplo de festividade

envolta em uma atmosfera mágica permeado por inúmeras superstições que se estendiam

desde a véspera do ano novo até a noite do primeiro dia de janeiro. Atualmente ainda

adornamos nossas mesas para a ceia com fartura de comidas e bebidas, assim como os

galegos de outrora faziam. Tal costume estava ligado a superstição de que uma mesa farta

no início do ano era garantia de boas colheitas e provimentos ao longo dos meses, onde a

carestia não encontraria espaço.

Na manhã do primeiro dia do ano, os ritos supersticiosos continuavam. Os galegos

saiam de suas casas ao amanhecer para adorná-las com ramos de laurel. Este costume

estendia-se entre os comerciantes e artesãos, que enfeitavam seus respectivos locais de

trabalho a fim de trazer prosperidade a suas vidas e seu negócio, eliminando de suas casas

qualquer vestígio de agouro. Neste mesmo dia, era costume a observação do voo das aves

ou o comportamento de outros animais com o intuito de reconhecer algum sinal que

revelasse acontecimentos bons ou ruins ao longo do ano que se iniciava.

Outro tipo de superstição ainda praticado por nós consiste na crença de que o lado

direito estaria relacionado a sorte, ao contrário do esquerdo. Esse último estava atrelado às

forças malignas, sendo que seu uso em determinadas ocasiões deveria ser evitado. Jesús

Rodríguez López (1948, p. 172) afirma que os galegos acreditavam que, ao sair de casa

para qualquer tipo de afazer, era preciso tomar o cuidado em colocar primeiro o pé direito

fora do umbral e não o esquerdo, evitando alguma desgraça ao longo do dia. A superstição

relacionada a essas direções estendia-se aos assuntos relativos a gravidez: se uma mulher

nessas condições tivesse o costume de começar a andar com o pé direito era um claro

indício de que sua criança seria do sexo masculino, já aquelas que utilizavam primeiramente

o pé esquerdo para andar estariam grávidas de uma menina.

Os dias da semana também eram utilizados para o cumprimento de algumas

superstições. Martinho de Braga (1990, pág.16) aponta o fato dos galegos escolherem dias

específicos para viajar ou até mesmo casar. Os matrimônios ocorriam geralmente às sextas-

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feiras, pois este dia era dedicado a Vênus. Rosário Jove Clols (1981, p. 73) nos informa que

tal costume não persistiu na Galiza dos dias atuais. Em uma tentativa de extirpar esta

crença pagã, a Igreja passou a proibir a feitura das cerimônias às sextas-feiras atribuindo

este dia ao agouro, enfraquecendo, assim, o culto a Vênus. Acreditava-se ainda que os

matrimônios realizados às terças revelavam uma união indesejada.

Assim como os dias da semana, alguns números eram objetos de superstição.

Vimos anteriormente a crença sobre o número nove quando analisamos as águas do mar,

todavia o poder deste numeral estendia-se as casas. Para curar qualquer tipo de

enfermidade o doente deveria tomar nove banhos. Já o número treze, que é visto por muitos

como sinal de sorte, era interpretado na Galiza como responsável por acontecimentos ruins.

Era comum evitar situações em que este número estivesse presente.

Jesús Rodríguez López (1948, p.115) enumera outras superstições galegas

praticadas até os dias atuais, cujas funções seriam responsáveis pela resolução de

inúmeros problemas: para a cura da epilepsia, por exemplo, o enfermo deveria beber as

cinzas de sua camisa que fora queimada. Já nos partos, era comum posicionar um dente de

porco entre os seios da mulher para que o bebê nascesse sem dificuldades ou ainda se

colocava a chave de casa embaixo da almofada utilizada pela futura mãe. Se uma criança

desenvolvesse raquitismo bastava queimar uma mecha de seu cabelo em uma encruzilhada

durante a lua cheia. Já para os casos de raiva ocasionada pela mordida de cães, bastava

recorrer a bezoares, pedras encontradas nos intestinos de animais. Sobre a menstruação,

as moças neste estado não deveriam entrar em adegas, pois corria-se o risco de o vinho

ficar amargo.

Conclusões

O problema do paganismo ainda vai perdurar por um longo período no medievo.

Apesar da intensa relação entre a monarquia sueva e a Igreja em busca da unidade, tais

crenças continuariam a ser praticadas com intensidade não somente na Galiza, mas em

muitas partes da Europa. Assim, este fato constituiu-se como o grande desafio enfrentado

pela Igreja no período e nem a interferência ou o exemplo dos monarcas suevos contribuiria

de maneira considerável para que este problema fosse sanado de forma completa. A

continuidade destas crenças revela a íntima relação estabelecida entre homem e ambiente

desde tempos pré-históricos. A natureza, que garante a sobrevivência, torna-se palco de

inúmeros cultos com finalidades diversas, o que atesta a identidade do homem com os

espaços considerados por ele como sagrados.

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O estranhamento que o Catolicismo causava, com seu cerimonial e preceitos

diferenciados, não despertava interesse entre os novos crentes já batizados e tampouco

para os fiéis em potencial. Parece-nos que um obstáculo instransponível estava situado

entre o ordo clericorum e o ordo laicorum que ocupavam lugares distintos dentro das igrejas.

Não havia a proximidade que os cultos de outrora proporcionavam; a sociabilidade era

restrita, e a alegria de muitas festividades pagãs foi substituída. A visão de mundo que o

Catolicismo buscou disseminar excluía por completo a simbologia cultivada pelos “rústicos”

até então. Deus aparecia como o grande criador do Universo, cabendo exclusivamente a ele

o controle sobre suas invenções. Tal fato configurou-se como um problema para os pagãos,

pois muitos rituais antigos promoviam uma ação direta dos homens com a natureza, a fim de

controlar fenômenos como pragas, temporais, secas etc. Deus não só condenava as

crenças, mas tirava também a autonomia de seus praticantes. No Catolicismo as cerimônias

não promovem a participação direta do crente a todo momento, como acontecia na antiga

religiosidade, o que relega a este algumas funções que permitem uma ínfima atuação na

Igreja, tais como repetir preces, ficar sentado ou fazer silêncio. Era preciso lembrar aos

novos fiéis que o protagonista da religião era Deus, e seguir as etapas do cerimonial os

aproximaria desta divindade suprema. Vemos, portanto, que não existia entre a antiga

religiosidade e o Catolicismo pontos de identificação que pudessem deixar os adeptos

destas antigas crenças mais confortáveis perante a nova religião que tentava-se impor. O

projeto da Igreja objetivava ser dominante, enquanto a religiosidade só pretendia ser útil aos

seus seguidores, fornecendo a espiritualidade necessária para viverem em harmonia com

eles mesmos e com a natureza, provedora de seu sustento.

Referências bibliográficas Fontes CESAIRE D’ARLES. Sermons au Peuple. Ed. bilíngue (latim-francês) Introduction, traduction et notes per Maria José Delage. Sources Cherétinnes. Paris: Les Éditions du Cerf, 3v.,1971-1978-1986. MARTÍN DE BRAGA: Obras completas. Edición castellana de Ursicino Dominguez del Val. Madrid: Fundación Universitaria Española, 1990. MÁXIMO DE TORINO, Sermo CVII. In: HILLGARTH, J. N. Cristianismo e Paganismo 350-750. A Conversão da Europa Ocidental. São Paulo: Editora Madras, 2004, p. 69-71. Bibliografia Sumária ALBERRO, Manuel. El água, los árboles, los montes y las piedras en el culto, creencias y mitologia de Galicia y las regiones célticas del noroeste atlântico europeo. Anuario Brigantino, n. 25, p. 11-38, 2002.

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Representações da ordem temporal e espiritual do mundo no Roman de Fauvel

Representations of the world’s temporal and spiritual order in the Roman de Fauvel

Jaqueline Silva de Macedo 30

30

Discente do Programa de Pós-Graduação em História da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). E-mail: [email protected].

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Diex, le roy de toute puissance,

Qui tout a sa cognoissance,

Quant il fist au commenchement

Le monde gloriosement,

Ordena toute créature 31

Resumo: Entre os anos de 1310 e 1314, foi escrito na França o Roman de Fauvel. A obra composta por dois livros em poema satírico explora em alegoria a sociedade vista como corrompida por seus maus comportamentos. Este trabalho busca apresentar as representações da ordem natural do mundo no plano temporal e espiritual no roman segundo algumas alegorias presentes no texto. Serão consideradas a teoria dos astros desenvolvida por Inocêncio III (1198-1216) na decretal Sicut universitatis conditor e sua relação com o personagem principal da sátira, Fauvel. Tal análise nos será útil para melhor compreendermos a percepção medieval face ao pensamento teológico-filosófico em voga na França por meio das alegorias com as próprias disputas que ocorreram no momento entre o rei Filipe IV, o Belo (1285-1314) e os pontífices Bonifácio VIII (1294-1303) e Clemente V (1305-1314) em conjunto com suas ações políticas. Palavras-chave: França Medieval; Esferas de poder; Alegoria; Roman de Fauvel. Abstract: Between the years 1310 and 1314, the Roman de Fauvel was written in France. The work composed by two books in satirical poem explores in allegory the society seen as corrupted by its bad behaviors. This work tries to present the representations of the natural order of the world in the temporal and spiritual plane in the roman according to some allegories present in the text. It will be considered the theory of the stars developed by Innocent III (1198-1216) in the decretal Sicut universitatis conditor, and his relationship with the main character of the satire, Fauvel. Such an analysis will be useful for us to better understand the medieval imaginary in its relation with theological-philosophical thinking in vogue in France through allegories with the own disputes that occurred at the moment between King Philip IV, the Fair (1285-1314) and the pontiffs Boniface VIII (1294-1303) and Clement V (1305-1314) in conjunction with its political actions. Keywords: Medieval France; Spheres of power; Allegory; Roman de Fauvel.

Introdução

Buscamos neste trabalho analisar os argumentos propostos no Roman de Fauvel

para protestar contra os comportamentos de todas as camadas sociais do reino de França

em relação a Deus e à Igreja levando em conta valores cristãos e institucionais oficialmente

propostos pela Igreja. Pretendemos demonstrar que estes comportamentos para o autor do

poema soavam como inversão da ordem natural do cosmos criada por Deus, e a salvação

da humanidade seria possível apenas se houvesse um retorno à humildade material e

espiritual.32 Este texto é fruto de nossa pesquisa empreendida pelo Programa de Pós-

31

Deus, o rei de todo o poder/Que tudo tem seu conhecimento/Quando fez no começo/O mundo gloriosamente/Ordenou toda criatura. Le roman de Fauvel. Édition, traduction et présentation par Armand Strubel. Le livre de poche, 2012.(vv. 309-314). 32

Não discutiremos neste trabalho sobre o termo autor que será utilizado aqui como sinônimo de poeta ou autor da Antiguidade latina ou grega, encarregado de escrever um poema. Mas evidenciamos que a noção para a Idade Média se confundia com o ator que interpretava a poesia e o músico que a acompanhava com instrumentos até meados do século XII, por isso o grande número de poesias anônimas (ZUMTHOR, 1993; 1997). Durante o século XIII e XIV a noção de autor ainda poderia se referir ao intérprete dos romans, mas não ao músico, visto que o roman desse período não

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Graduação em História da Universidade Federal de São Paulo intitulada O conflito do rei

Filipe IV e a Igreja (1296-1314) entre a lógica e a sátira: a Disputatio inter clericum et militem

e o Roman de Fauvel.

Com o intuito de não apenas denunciar, mas também exortar o presumível

destinatário do roman,33 o autor Gervais de Bus recorrerá a algumas alegorias conhecidas

pela sociedade medieval. Selecionamos do primeiro livro que compõe o roman34 a teoria dos

astros desenvolvida por Inocêncio III (1198-1216) na decretal Sicut universitatis conditor,

que atuou como explicação da sociedade medieval e foi explorada no poema para a

legitimação das esferas de poder temporal e espiritual, comparando-a com os

acontecimentos envolvendo o rei Filipe, o Belo (1285-1314), e os papas Bonifácio VIII (1294-

1303) e Clemente V (1305-1314)35.

Consideraremos ainda o cavalo Fauvel, personagem principal da narrativa e visto

como o núcleo simbólico de todos os vícios presentes no ser humano36, e sua relação com a

alegoria do anticristo prenunciado nas Escrituras.37 Podemos, dessa forma, ressaltar a

era cantado. Consideramos o termo autor/intérprete referindo-nos ao compositor do poema, mas também ao narrador que se torna cúmplice da ideia do poeta, nos atendo ao poema em primeiro plano e a mensagem intencionada. 33

Não está claro no poema para quem ele foi escrito. Para Armand Strubel, tradutor e editor mais recente do roman (2012), depende de como o documento é considerado, se um “panfleto circunstancial”, um admonitio (conselho) ao rei ou um regimen principiis (princípios do governo) de caráter geral (STRUBEL, 2012, p. 25). Segundo Strubel, o roman poderia ser o destinatário "natural" da mensagem política [...], mas o manuscrito não corresponde às coleções reais que apareceram a partir do século XVI (STRUBEL, 2012, p. 25). 34

Optamos por preservar a grafia original roman, pois este vocábulo traduz não somente um gênero literário como os romances modernos que conhecemos, mas um sentido anterior, linguístico, adotado para a escrita desse tipo de poema. O roman era o nome da língua proveniente do latim falado que os livros eram escritos, o romanice. De língua vernácula e desprezada, o roman passou à língua oficial, o francês moderno. Há ainda a expressão mettre en roman que nada mais era do que esclarecer para o destinatário do livro o conteúdo que se propusera a tratar em língua vulgar (ZUMTHOR,1993). 35

O segundo livro do Roman de Fauvel se concentra na descrição do palácio, da corte e do conselho de Fauvel e em um longo diálogo que o anti-herói desenvolve com Fortuna, deusa que ele quer esposar a fim de controlar suas rodas e consequentemente o mundo. No diálogo, Fauvel se esforça em enganar Fortuna que responde com argumentos teológicos e filosóficos acerca de sua divindade e poder. No final do livro Fauvel casa com a irmã de Fortuna, Vã Glória com quem tem muitos filhos que continuam a corromper o reino de França. 36

Já que os reis são mentirosos, e ricos homens aduladores/Prelados cheios de vãs graças/E os cavaleiros odeiam a Igreja/Clérigo é exemplo de vícios/Religiosos cheios de delícias/Ricos homens sem caridade/e comerciantes sem verdade/Lavradores sem lealdade/Hospitaleiros cheios de crueldade/Governadores e juiz sem piedade/e pais sem verdadeira amizade/os vizinhos mendicantes cheios de inveja ⁄as jovens crianças cheias de malícia, e são apenas uma ninhada de falsos e injustos. [...] Pois em sua pessoa e em seu rosto/Nós vemos com o retrato e a figuração/De toda espécie de falsidade e adulação, /E de idolatria generalizada. (vv. 1137-1151, 1193-1196, trad. nossa). 37

Também, estou persuadido que o anticristo veio... (v. 1181, trad. nossa). Na Bíblia o Anticristo aparecerá na Terra antes da segunda vinda de Jesus, efetuando sinais para enganar a humanidade e se opondo a toda noção de Deus para que acreditem que o melhor provém do Anticristo que na verdade é enviado pelo Diabo. Cf. II Tessalonicenses: 2: 1-17.

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importância dada no medievo para a construção de alegorias no intuito de legitimar

determinadas representações de poder como interpretação da própria História.

Muito se tem estudado acerca do Roman de Fauvel pela perspectiva musical e

artística presentes no manuscrito elaborado por Chaillou de Pestain em 1317,

posteriormente à publicação da narrativa poética de Gervais de Bus em 1314.38 Entre os

pesquisadores voltados a este tema podemos recordar Emma Dillon (2002) e sua

preocupação com a História da Música através das interpolações musicais de Pestain,39 e

no mesmo sentido Hansel TanShen-Wei (2010) em sua tese de doutoramento, em que

analisa a Ars Nova, gênero musical do século XIV.40 Outros trabalhos relacionados ao

roman buscam analisar suas características literárias e artísticas, como a sátira explorada

por Jean-Claude Mühlethaler no artigo Le dévoilement satirique: Texte et image dans le

Roman de Fauvel (2006).41 Analisaremos, no entanto, a edição bilingue do roman publicado

em 2012 por Armand Strubel, por versarmos sobre o conteúdo e não sua materialidade

como manuscrito ou as imagens que o compõem.42

No que concerne ao pensamento político-religioso, entretanto, o Roman de Fauvel

não tem chamado muito a atenção, salvo sua relação com as profecias apocalípticas.

Demonstraremos que as interpretações literárias não estão de modo algum descoladas dos

fenômenos históricos, antes, são reelaborados por meio do pensamento alegórico.

Filipe IV, assumiu o trono francês em 1285 no lugar de seu irmão mais velho falecido

em 1276 (FAVIER, 1978, p. 10). Ainda na sombra do avô Luis IX (1226-1270), o rei se

mostrava cada vez mais um monarca zeloso pela fé cristã, a ponto deste zelo se

transformar, nas palavras do historiador Julien Théry, em uma “pontificalização” do poder

real e uma redefinição das funções a ele delegadas e das responsabilidades pontifícias.43

38

O manuscrito conhecido por Bnf Fr 146 e destinado ao futuro rei Filipe V é luxuosamente decorado com 78 miniaturas dos personagens da narrativa, além de 3000 versos suplementares e 167 interpolações musicais (MÜHLETHALER, 2006, p. 165). 39

DILLON, Emma. Medieval Music-Making and the Roman de Fauvel. New Perspectives in Music History and Criticism. Cambridge and New York: Cambridge University Press, 2002. 40

SHEN-WEI, T.H. Musical “Beastliness” in the Roman de Fauvel (BN fr. 146): Chaillou’s “addicions” and Sensory Danger. 2010. 233p. Tese (Doutorado em Música). The Honors College, Wesleyan University, 2010. 41

MÜHLETHALER, J-C. Le dévoilement satirique. Texte et image dans le Roman de Fauvel. Poétique 2006/2 (n° 146), p. 165-179. Disponível em<http://www.cairn.info/revue-poetique-2006-2-page-165.htm>. Acesso em: 03/nov/2015. 42

Na edição apresentada por Strubel, as interpolações inseridas posteriormente foram incluídas, pois o livro pretende ser fiel ao manuscrito Bnf Fr 146; nós optamos por examinarmos em nossas pesquisas apenas o poema escrito em 1310-1314. Le roman de Fauvel. Édition, traduction et présentation par Armand Strubel. Le livre de poche, 2012. 43

Partindo da discussão sobre "pontificalismo" de Ernest Kantorowicz em relação "aos fundamentos religiosos do absolutismo real no fim da Idade Média e nos tempos modernos", Théry traz essa noção ao caso francês chamando-a de "'pontificalização 'real extraordinariamente explícita" (THÉRY, 2012, p. 197, trad. nossa).

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Durante o seu reinado, Filipe o Belo acumulou intervenções em assuntos

eclesiásticos, e as consequências de suas decisões aumentaram em importância à medida

que os anos passaram. Apoiado por seus juristas e conselheiros que produziram tratados e

presidiram assembleias o rei ampliou sua jurisdição ultrapassando as prerrogativas tanto do

papa Bonifácio VIII quanto do papa Clemente V, ao mesmo tempo em que travava guerra

com a Inglaterra.44 Voltaremos a respeito destas intervenções no decorrer da análise.

Devemos, por enquanto, retroceder no tempo como Braudel orienta, se quisermos

compreender o que há de singular no texto do Roman e o que há de tradição compartilhada

pela sociedade dos séculos XIII e XIV, pois a sociedade medieval mantinha em seu rol

letrado um conjunto de autoridades que a auxiliava na compreensão da realidade. Seja nas

sete artes liberais ensinadas nas universidades,45 seja nos documentos oficiais, tais

autoridades eram vistas como uma espécie de porta-voz da verdade. A teoria dos astros

desenvolvida por Inocêncio III (1198-1216) se tornou mais uma dessas autoridades

respeitadas pela sociedade cristã do Ocidente medieval para a explicação da hierarquia

social e da História.

A alegoria dos astros no pensamento hierocrático de Inocêncio III

As relações de poder entre a Igreja e Império e/ou Reino e a busca da primazia de

cada instituição no decorrer dos séculos medievais foram sustentadas geralmente pelas

Escrituras Sagradas cristãs para em seguida serem ligadas a um pensamento filosófico e

jurídico. As resoluções dos conflitos protagonizados por elas nunca foram obtidas

facilmente, seja pelo debate teológico, seja pelo embate jurídico, menos ainda sua

interpretação. Abordaremos em nosso trabalho a interpretação teológica dessa tensa

relação.

A partir das passagens bíblicas, imperadores e papas durante a Alta Idade Média

elaboraram teorias que se sustentariam por todo o medievo, ganhando por sua vez, novos

contornos conforme o momento político vivido. Dá-se o nome deste pensamento

eclesiológico-político da Igreja de hierocracia construído por meio de conflitos entre

pontífices e imperadores. Os maiores expoentes da hierocracia foram Gregório VII (1073-

44

A Guerra entre a França e Inglaterra foi fruto de conflitos feudais, econômicos e territoriais desde 1289, tomando maiores proporções em 1292 após a intervenção direta do rei Eduardo em território francês para proteger seus súditos dos homens de Filipe o Belo. Como Eduardo era vassalo do rei francês em um ducado, ele deveria comparecer por ordem do rei à corte para esclarecimentos acerca de sua intervenção militar, o que não ocorreu. Eduardo I enviou seu irmão para o representar perante o rei. Filipe IV, não tolerando o que seria uma afronta à sua autoridade, decide pela guerra (FAVIER, 1978, p. 206-249). 45

As sete artes liberais compreendiam o trivium (Gramática, Retórica e Lógica Dialética) e o quadrivium (Aritmética, Geometria, Astronomia e Música).

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1085), Inocêncio III (1198-1216) e Bonifácio VIII (1294-1303) (BARBOSA; SOUZA, 1997).

Entretanto, outros pontífices como Leão Magno (440-461) e Gelásio I (492-496) foram

fundamentais para a construção dos alicerces da Igreja medieval que visava não apenas

sua organização interna, mas seu papel como guia das almas no mundo para a salvação

eterna no céu, atuando diretamente na sociedade exercendo poderes de administração real

(PACAUT, 1976, p. 132).

Uma das passagens bíblicas mais importantes utilizadas como sustentáculo do

pensamento imperial a partir do século XI e de que os reis também se valerão nos séculos

posteriores, embora com suas especificidades históricas, é a registrada na primeira epístola

do apóstolo Pedro 2: 13-14, em que se defende a obediência às autoridades que foram

constituídas por Deus, sendo portanto, divinas: "Sujeitai-vos, pois, à toda ordenação

humana por amor do Senhor; quer ao rei, como superior; quer aos governadores, como por

ele enviados para castigos dos malfeitores e para louvor dos que fazem o bem".46 O

imperador bizantino Aleixo III (1195-1203) tomará de empréstimo essa passagem para

impor a superioridade do poder temporal sobre o espiritual numa carta endereçada ao papa

Inocêncio III (BARBOSA; SOUZA, 1997, p.88).

Por seu turno, a Igreja, e sobretudo o Papa, estabelecerá sua posição como

liderança espiritual com autoridade também em questões relacionadas a assuntos temporais

quando necessária e recorrerá teologicamente para tal empreendimento a duas passagens

também do Novo Testamento.47 A primeira, encontrada no evangelho de Mateus 16: 18-19,

na qual Jesus teria se dirigido a Pedro dizendo:

Pois também eu te digo que tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. E eu te darei as chaves do Reino dos céus, e tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus.

48

46

"subiecties tote omni humanae creaturae propter Dominum sive regi quasi praecellenti sive ducibustam quam abeomissis ad vindictam male factorum laudem vero bonorum". As passagens citadas foram extraídas da Nova Vulgata Bibliorum Sacrorum Editio. Disponível em

<http://www.vatican.va/archive/bible/nova_vulgata/documents/nova-vulgata_index_lt.html> Acesso em: 29/jul/2016. 47

Os embates entre a Igreja e o império e mais tarde entre a Igreja e os reis ultrapassam o campo teórico. A título de exemplo, basta citar a chamada reforma gregoriana em que o programa de reestruturação da Igreja passava inquestionavelmente pela reforma da própria sociedade por meio de uma cristianização mais profunda pela ortodoxia, mas também pela liberdade da Igreja sem interferência do laicado em investiduras do papa, tribunais eclesiásticos, tomada de bens, etc. No entanto, a reforma se efetivava na medida em que as decisões eram tomadas e posteriormente colocadas por escrito, como a Dictatus Papae de Gregório VII (PACAUT, 1976, p. 127-133). 48

"et ego dico tibi quia tu es Petrus et super hanc petra ma edificabo ecclesiam meam et portae inferi non praevalebunt adversu meam et tibi dabo claves regni caelorum et quod cum que ligaveris super terram erit ligatum in caelis et quod cum que solveris super terram erit solutum in caelis".

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Referindo à pedra (petra-ae) que o nome Pedro (Petrus-i) significa, Jesus teria dado

o controle da Igreja ao apóstolo, independentemente dos levantes contra sua autoridade. A

segunda passagem é de caráter pastoral e identificada no evangelho de João 21: 17:

“Disse-lhe terceira vez: Simão,49 filho de Jonas, amas-me? Simão entristece-se por lhe ter

dito terceira vez: Amas-me? E disse-lhe: Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que eu te amo.

Jesus disse-lhe: Apascenta as minhas ovelhas”, 50 ou seja, o papa como vigário de Pedro

tem o poder confiado em suas mãos para a salvação de todas as almas representadas aqui

por ovelhas.

As cruzadas empreendidas no decorrer do século XII, o renascimento do comércio e

das cidades medievais e o aparecimento das universidades contribuíram também para a

reflexão sobre a autoridade, seja ela pontifícia, régia ou senhorial (VERGER, 1999). É neste

século ainda que a Igreja ganhará um novo instrumento para a legitimação de seu poder

sobre a sociedade, o Direito Canônico, em que se reuniram os cânones mais importantes da

Igreja até o momento (LOPES, 2011).51 No entanto, embora ganhasse caráter jurídico, o

Direito Canônico sustentará a veracidade de suas leis sobretudo pelas Escrituras Sagradas.

No fim do século XII, Inocêncio III aproveitará não somente esses textos tão

conhecidos na argumentação teológica,52 mas buscará também no Antigo Testamento a

fundamentação para a compreensão do governo da Igreja e do mundo, como os padres da

Igreja o fizeram,53 o que possibilitará a seus escritos, como a muitas de suas bulas, serem

incorporados ao Direito Canônico.

A inovação de Inocêncio III será a mudança da expressão vigário de Pedro para

vigário de Cristo, assumindo neste sentido, um poder vindo direto de Jesus Cristo como

Pedro havia recebido (BARBOSA; SOUZA, 1997, p. 12, 94). Seus textos também

influenciarão o papa Bonifácio VIII, como na Bula Unam Sanctam (1302), em que a Igreja é

vista como um corpo, cuja a cabeça é Jesus Cristo, e por efeito o papa, não admitindo

dessa forma uma segunda cabeça como um monstro da maneira que o rei Filipe, o Belo,

pretendia com suas ações (BARBOSA; SOUZA, 1997, p. 155).

Um dos escritos de Inocêncio III que se destacará está presente na decretal Sicut

Universitatis conditor endereçada ao cônsul Acerbus de Florença em 1198:

49

O nome do apóstolo era Simão Pedro. 50

"dicit ei tertio Simon Iohannis amas me contristatus est Petrus quia dixit ei tertio amas me et dicit ei Domine tu omniascis tu scisquia amo te dicit ei pasce oves meas". 51

A redação e comentários dos cânones (cerca de 3.800 textos) feitos por Graciano por volta de 1140, chamados Concordia discordantium canonum, se tornou autoridade nos meios eclesiásticos e universitários a partir do século XII (LOPES, 2011, p. 79) 52

Inocêncio III também contribuiu para o Decreto a partir de suas decretais e de acordo com Lopes, foi responsável por racionalizar o processo de hegemonia dos canonistas (LOPES, 2011, p. 80). 53

Trataremos a respeito da maneira singular de interpretação dos padres da Igreja adiante (p. 15).

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Do mesmo modo que Deus, criador do universo, colocou duas grandes luminárias no firmamento do céu, a maior para que ilumine o dia, a menor para que ilumine a noite, assim também, ele estabeleceu no firmamento da Igreja universal que é chamada "céu" duas grandes dignidades; uma maior para que, como para o dia, ela ilumine [governe] as almas, e uma menor para que, como para as noites, ela ilumine [governe] os corpos, e são a autoridade pontifícia e o poder real. Além disso, assim como a lua recebe a luz do sol, e que em verdade ela é menor que ele também tanto em sua grandeza quanto em sua qualidade, assim como em sua situação e em efeito, igualmente o poder real recebe da autoridade pontifícia o esplendor de sua dignidade, e quanto mais se aproxima o olhar, mais é realçado de uma grande luz, e quanto mais ele afasta seu olhar, mais ele perde de seu esplendor.

54

Inocêncio III resgatou do primeiro livro da Bíblia a imagem necessária para ilustrar o

poder da Igreja frente ao poder temporal. No primeiro capítulo de Gênesis lemos:

E fez Deus os dois grandes luminares: o luminar maior para governar o dia, e o luminar menor para a noite; e fez as estrelas. E Deus os pôs na expansão dos céus para alumiar a terra, e para governar o dia e a noite, e para fazer separação entre a luz e as trevas. E viu Deus que era bom. (Gn 1: 16-18)

55

A teoria do sol e da lua, portanto, não nasce de um pensamento original do papa; o

que pode ser tomado como “original” – noção problemática para o medievo – é a utilização

de uma passagem bíblica estritamente descritiva sobre a fundação do mundo para o

entendimento da fundação da Igreja e do Império em um período em que os estudos acerca

da Natureza respondiam à ideia de “manifestação de Deus”.

Jan Gerard Joseph Ter Reegen lembra que até o século XII a natureza é vista como

um “instrumento na mão de Deus” (REEGEN, 2008, p. 295), ou seja, “o Deus da Idade

Média”, para retomarmos a expressão de Le Goff,56 é um Ser pessoal que possui o domínio

da natureza e que ordena o universo. Deus e natureza não são a mesma coisa, a natureza

está subordinada aos desígnios divinos, ainda que para conhecer Deus se tome a natureza

54

“Sicut universitatis conditor Deus duo magna luminaria in firmamento caeli constituit, luminare maius, ut praeesset diei, et luminare minus, ut praeesset nocti, sic ad firmamentum universalis Ecclesiae, quae caeli nomine nuncupatur, duas magnas instituit dignitates: maiorem, quae quasi diebus animabus praeesset, et minorem, quae quasi noctibus praeesset corporibus, quae sunt pontificalis auctoritas et regalis potestas. Porro sicut lunalumen suum a sole sortitur, quae revera minor est illo quantitate simul et qualitate, situ pariter et effectu, sic regalis potestas ab auctoritate pontificali suae sortitur dignitatis splendorem; cuius conspectui quanto magisinhaeret, tanto maior ilumine decoratur, et quo plusabeiuse longatur aspecto, eo plus deficit (al. vitiose: proficit) in splendore”. INOCÊNCIO III BulaSicut Universitatis conditor (1198). Disponível em <http://catho.org/9.php?d=bxv#bn5>. Acesso em: 28/jul/2016. No mesmo ano, o papa Inocêncio III enviou uma carta respondendo ao imperador bizantino Aleixo III contendo a mesma argumentação da Sicut universitatis conditor, no entanto, de forma não detalhada. 55

“fecit que Deus duo magna luminaria luminare maius ut praeesset diei et luminare minus ut praeesset nocti et stellas et posuiteas in firmamento caeli ut lucerent super terram et praeessent diei ac nocti et dividerent lucem ac tenebras et vidit Deus quod esset bonum”. 56

LE GOFF, J; POUTHIER, J-C. O Deus da Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

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como modelo: “[...] Se tu, então, queres ver Deus, olha para o sol, dirige teus olhos para o

percurso da lua, considera a ordenação das estrelas” (Corpus Hermeticum apud REEGEN,

2008, p. 299). 57

Neste sentido, Inocêncio III, assim como seus antecessores, traz para a questão

social uma ordenação que não está de forma alguma dissociada da sobrenatural. No

momento em que ele concebe a fundação do mundo como fundação também das relações

sociais na terra, ele está não apenas reiterando os textos bíblicos bastante interiorizados,

mas reforça uma imagem alegórica que se fixará na sociedade e se tornará uma das

principais defesas da Igreja e do papa para seu lugar na hierarquia social. Pois, se o poder

imperial é grande para conduzir a humanidade durante seu tempo na terra ao bem comum,

tanto mais a Igreja que guia as almas para o bem eterno usufruído no céu.

Com a redescoberta de Aristóteles no século XIII e sua physis, isto é, a física

naturalista, não obstante os protestos das autoridades eclesiásticas, a natureza será

revisitada graças ao crescimento das universidades não mais como “linguagem de Deus”,

mas como “lei” que cabe a cada criatura com uma função determinada cumpri-la (REEGEN,

2008, p. 297, 303).

Neste período na literatura medieval para além dos bestiários e fábulas, o roman

também recorrerá à natureza como lugar-comum para o desenvolvimento da narrativa, seja

na ambientação do jardim (vergier) cortês, seja na interpretação da hierarquia social como a

série de romans de renard em que as ordens mendicantes são alvos de críticas.58 O Roman

de Fauvel seguiu este critério e buscou entre vários lugares-comuns da literatura a

alegorização animal, a personificação de vícios e virtudes e a ordenação do mundo e da

sociedade para a interpretação do presente e da própria História.

Resta-nos compreender como se deu o emprego da teoria dos astros no Roman e

sua relação com a função e natureza do personagem na sociedade.59

Fauvel – besta hipócrita, besta simbólica

57

Vale ressaltar que o Corpus Hermeticum faz parte de um pensamento religioso não-cristão que une filosofia ocultista e magia associado à deidades gregas e egípcias que, no entanto, traz a mesma ideia presente no cristianismo do período. 58

O Roman de Renart tem como personagem principal a raposa, símbolo da astúcia e do engano.Foi explorada como representação das ordens dos franciscanos e dominicanos que teriam abandonados a vida humilde e de evangelização pelo luxo e desprezo à vida cristã. Os romans de renard mais conhecido na Idade Média foram os elaborados por Rutebeuf no século XIII, como Renard le bestourné e Le couronnement de Renard. 59

A teoria do sol e da lua também está presente em outro panfleto publicado durante o reinado de Filipe o Belo, a Quaestio in utramque partem.

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Antes de adentrarmos o terreno dessa alegoria no Roman de Fauvel, devemos

atentar à análise de Paul Zumthor no que concerne à relação do roman com a realidade.

Para ele,

O texto é reflexo, mas não de maneira passiva; ele se inscreve na dialética de uma transformação. A linguagem poética não é projeção do real, nem sua descrição, nem sua repetição, nem mesmo seu comentário. Ele está separado, e no entanto sua mediação é o único meio que nós temos de extrair da fugacidade temporal alguma coisa do mundo em que estamos mergulhados. (ZUMTHOR, 1972, p. 115, trad. nossa)

A partir dessa afirmação podemos manter a cautela ao analisarmos a literatura

medieval – e qualquer outra literatura – com a realidade que a cerca para não projetarmos o

reflexo passivo, mas não devemos deixar de lado um aspecto importante do medievo. O

sobrenatural, o inexplicável, o fantástico está inserido na sociedade; desde os seres bíblicos

aos monstros marítimos e de terras longínquas às fábulas moralizantes. O Roman de Fauvel

se esforça por inserir o maravilhoso no real, tornando seus versos verdade moral, ainda que

claramente seja uma obra fictícia.

Não há discordâncias entre os medievalistas quanto ao surgimento do roman.

Entretanto, apontaremos apenas algumas características para a compreensão da fonte,

visto que não há no roman um “modelo” estático literário que o enquadre por todos os lados.

Oscilando entre 1160-1170, o roman surge segundo Paul Zumthor “da junção da oralidade e

da escritura” (ZUMTHOR, 1993, p. 266), o que significa que o roman difere da tradição das

canções de gesta contadas e recontadas oralmente, transpondo para a escrita uma nova

maneira de se fazer poesia.

Com isso, vale ressaltar, não é apenas um deslocamento da poesia oral para a

escrita, mas é um novo arranjo que envolve novas estruturas linguísticas com atenção,

cálculo e precisão no número de sílabas, versos e ritmos e nova mensagem para o ouvinte,

mas nunca se isolando da tradição que lhe dá autenticidade quando recorre aos textos

antigos – gregos e latinos – como discurso verídico (ZUMTHOR, 1972).

Outra característica perceptível nos romans medievais e já objeto de estudo de

Zumthor, é a preferência pelos monólogos, diálogos e discursos diretos em detrimento de

uma narratio historiae em terceira pessoa (ZUMTHOR, 1993, p. 271). Essa estratégia

possibilita uma outra que é a descrição, seja de objetos, pessoas ou lugares. Dessa forma,

diálogo e descrição ocupam a maior parte do poema, o que contribui para a teatralização do

narrador, já que o roman, ao contrário das outras manifestações poéticas medievais, não

era cantado. A performance, dependendo do poema, se realizava em um espaço restrito aos

nobres na corte, como o manuscrito Bnf 146 e suas cópias encomendadas por príncipes.

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O Roman de Fauvel segue tais características: é uma narrativa em versos

octossilábicos satíricos em rima plana,60 escrito em langue d'oil e dialetos do norte da

França, diferindo dos romans produzidos no sul do reino escritos em langue d'oc 61 que se

destacam por motivos do amor cortês como os lais de Marie de France.62 A história do

primeiro livro produzido por Gervais de Bus, um clérigo e notário da chancelaria real de

Filipe IV em 1310, 63 gira em torno do cavalo Fauvel, que, com desejo de ter boa comida,

sai do estábulo onde vivia e usa como artifício sua natureza moral, a falsidade, para

ascender ao trono da França. Dessa forma, Fauvel consegue enganar a todos que também

desejavam obter alguma coisa em troca por escovar e alisar os seus pelos. De simples

cavalo, passa a ser rei e governar os homens e as mulheres de todas as classes sociais.

Deste pequeno resumo acerca do roman, podemos levantar algumas questões que

nos levarão à discussão sobre a ordem natural do mundo de acordo com essa coordenada

recorrente ao longo da Idade Média. Primeiramente, por que a obra tem como personagem

principal um cavalo? E seria possível um animal ser moralmente responsável por seus atos?

O nome Fauvel teria algum significado que possa relacionar a obra com a percepção da

sociedade em que o autor do texto está inserido? De que forma o roman demonstra uma

ordem natural do cosmos?

É necessário que se atente a tais detalhes como o nome do cavalo, pois para o

medievo tanto uma imagem quanto um vocábulo eram de extrema importância na

compreensão de determinada representação ou significado de uma ideia ou objeto: “é

provavelmente através das palavras que o símbolo medieval se deixa mais facilmente definir

e caracterizar [...]. Para um bom número de autores anteriores ao século XIV, a verdade dos

seres e das coisas está nas palavras (PASTOUREAUX, 2004, p. 14). O próprio Roman

ressalta esta importância.

Pastoureaux salienta que o símbolo está longe de qualquer generalização e

simplificação conceitual (PASTOUREAUX, 2004, p. 12), ele não se reduz às palavras e

60

O primeiro livro é composto por 1226 versos e o segundo livro por 2054, num total de 3280 versos. 61

Além do latim, língua oficial dos documentos pontifícios e reais, a França utilizava a langue d'oil no norte e a langue d'oc no sul, além de dialetos vários. A partir do século XIII a langue d'oil ganhou maior importância por esforço régio e passou a estar presente também em documentos oficiais, o que permitiu seu estabelecimento como língua oficial do reino e das relações internacionais nos séculos posteriores (ALMEIDA; CARVALHO, 2014, p. 458). 62

Cf: CARVALHO, Lígia Cristina. O amor cortês e os lais de Maria de França: um olhar historiográfico. 2009. 186 p. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Ciências Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2009. 63

Muito já se discutiu a respeito da autoria dos dois livros que compõem a narrativa, visto que apenas no segundo é possível saber o nome do autor a partir de um anagrama que forma o nome Gervès de Bus, em francês moderno: Gervais de Bus. Entretanto, é comumente aceito Gervais como o único autor.

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textos,64 podendo ser traduzido por imagens como nos vitrais das catedrais, por objetos

como a cruz ou a flor de lis, gestos, rituais, crenças e comportamentos como o poder de

cura dos reis ou a sociedade vista como um corpo mítico.65

Assim também o cavalo que na Idade Média carrega consigo uma complexidade

simbólica transitando do positivo ao negativo, sobretudo a partir do século XIII, no que

concerne à imagem religiosa apreendida, por exemplo, através dos quatro cavalos

apocalípticos.66 Porém, o interesse no cavalo como animal portador de características

próprias que o diferenciava de outros animais, como o boi, mais presente no cotidiano do

trabalhador e menos ligado com o ser humano é notável desde a Antiguidade também com

a preocupação de concebê-lo como animal mítico.

A imagem é quase obsessiva: de Virgilio a Plínio, o cavalo nascido do vento parece retornar em todos os lugares, como se o animal real se apagasse na frente de um objeto mítico, cavalo de Castor ou de Apolo, cavalo maravilhoso de populaças longínquas ou marcas tangíveis de uma supremacia social ou atlética, portador em todo caso de um estatuto superlativo que aproxima seu possuidor da perfeição, exatamente como o cavalo se aproxima da humanidade. (HUÉ, 1992, p. 5, grifo nosso, trad nossa)

Denis Hué ao afirmar uma aproximação do cavalo com o ser humano se refere por

exemplo à fidelidade do animal a ponto de morrer de tristeza pela morte do cavaleiro e por

ser amado pelas mulheres, tratado por Plínio (HUÉ, 1992, p.4). Mas devemos considerar

que a aproximação do cavalo com o ser humano não o torna propriamente humano. E é

nessa linha tênue entre o que define o ser humano e o animal que os intelectuais medievais

produzirão tratados e obras inteiras.67 Uma das questões mais exploradas será a

possibilidade ou impossibilidade de o animal ser responsável por seus atos e se ele possui

ou não alma. Neste sentido, algumas comunidades organizarão julgamentos a animais

64

No entanto, a palavra símbolo poderia também significar alegoria (HANSEN, 1986; AUERBACH, 1997, ECO, 2010). 65

Marc Bloch e Kantorowicz já abordaram aspectos da simbologia sacra em relação ao rei medieval. BLOCH, M. Os reis taumaturgos. O caráter sobrenatural do poder régio. França e Inglaterra. Tradução: Júlia Mainardi. 1

areimp. São Paulo: Companhia das letras,1993. KANTAROWICZ, E. H.

Os Dois Corpos do Rei: um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Cia. das Letras, 1993. 66

No livro de Apocalipse são descritos quatro cavalos cada qual com uma cor: branco, vermelho, preto e amarelo. Cada cavalo simboliza um castigo para a humanidade no fim dos tempos; de crise econômica à guerras, fome, pestes e morte. Cf. Apocalipse, cap. 6 vers. 2-8. 67

Compartilhamos da noção "intelectual" empregada por Gomes (1997), ao defini-la como "os especialistas na produção de bens simbólicos tanto ideológicos, em geral, quanto religiosos, em particular". A noção se aproxima ao conceito de intelectual dado por Le Goff. Para ele, assim como para Gomes, o intelectual - que pode pertencer a grupos distintos - atua na sociedade buscando oferecer respostas às situações específicas do presente por meio do discurso simbólico (LE GOFF, 2003, p. 77; GOMES, 1997, p. 4).

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“assassinos”, como porcos acusados de comerem crianças.68 Em todo o caso, o animal

“real” foi isento de possuir alma e responsabilidade, mas sua dimensão simbólica

permaneceu.

A partir da segunda metade do século XIII, conforme Hué nos aponta, o cavalo terá

conotação negativa de forma mais acentuada ligada principalmente às “obras polêmicas e

moralizantes” como o Roman de Fauvel (HUÉ, 1992, p. 11) que é visto como um cavalo

particular, sua cor e seu nome o denunciam.

No início do primeiro livro, Gervais de Bus faz uma descrição moral e etimológica

deste cavalo singular:

Fauvel é besta apropriada Por semelhança ordenada À significar coisa vã, Desordem e falsidade mundana. Também por etimologia Podes saber o que significa Fauvel é de falso e de véu Composto pois ele tem sua rebelião Sentada sob falsidade velada E sob trapaça misturada. (vv. 233-242, trad. nossa)

69

O autor recorre à cor fauve que nos dicionários latinos significa a cor amarelada, nem

marrom, nem preto, denotando imperfeição e caráter doente ou diabólico assim como

qualquer coisa “misturada” no pensamento medieval. A cor, aliás, é mais um dos pontos a

serem destacados assim como Michel Pastoureaux evidencia:

O fato mesmo de mencionar ou de não mencionar a cor de um objeto é uma escolha fortemente significante, refletindo nas questões econômicas, políticas, sociais ou simbólicas, se inscrevendo em um contexto preciso. Como é igualmente significante a escolha da palavra que, sob a pluma de um escriba ou de notário, é escolhida de preferência a esta ou à outra para enunciar a natureza, a qualidade e a função desta cor. (PASTOUREAUX, 2004, p. 119, trad. nossa)

Função da cor notada pelo nome fauve que também significa hipocrisia, falsidade,

mentira (VAN DAELE, 1939, p. 192). Pastoureaux ressalta que “é provavelmente através

das palavras que o símbolo medieval se deixa mais facilmente definir e caracterizar”

(PASTOUREAUX, 2004, p. 14). Desta falsidade coberta por um véu de sinceridade, o cavalo

neste roman remete ainda ao que há de pior no ser humano, o amor às coisas mundanas e

68

Michel Pastoureaux explica que tais processos contra animais eram em certa medida raros, no entanto todo o teatro do julgamento que ocorria servia mais para exortação dos humanos para cuidarem melhor de seus animais do que propriamente justiça contra os "acusados" (PASTOUREAUX, 2004, p. 29, 45). 69

Fauvel est beste appropriée/Per similitude ordenee/A signifier chose vaine, /Barat et fauseté mondaine. /Ausi par ethimologie/Pues savoir ce qu'il senefie :/Fauvel est de faus et de vel/Compost, quer il a son revel /Assis sus fauseté velee/ Et sus tricherie meslee.

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passageiras, motivo tão explorado nos tratados filosóficos medievais como o De

consolatione philosophiae (Livro II, p. 27).70 No entanto, o autor recorre a outro instrumento

retórico, apresentando Fauvel a partir das iniciais do nome como o conjunto dos principais

vícios que podem governar o homem e que o levam ao interesse dos bens terrenos:

De Fauvel declina Lisonja, Que do mundo tem a senhoria, E depois declina Avareza, Que de estrilar Fauvel não é ignorante Vileza e Inconstância, E depois Inveja e Covardia. (vv. 245-250, grifo nosso, trad. nossa)

71

Chama-nos a atenção além do que dissemos anteriormente acerca do nome Fauvel

e da própria personificação dos vícios já presentes no Roman de la Rose, 72 o que poderia

ter acontecido para que os vícios detivessem o controle do mundo e a qual mundo o autor

se refere, se a terra ou todo o cosmos.

O narrador se preocupa em descrever o atual estado de submissão em que a

sociedade se encontra frente a esta criatura, em que todas as nações e de todas as

condições (vv. 29-30) (ordens religiosas, nobres, pobres e ricos) em busca de favores

bajulam Fauvel, inclusive o papa, que deveria ser o líder espiritual do reino se rebaixou aos

prazeres mundanos e ao desprezo por Deus e também está bajulando Fauvel (vv. 51-53),73

sendo responsável pela ascensão da criatura, o que o faz tornar-se, assim como toda

humanidade, em animais.

O cavalo assume o trono como um humano, este por sua vez se bestializa, se torna

animal, invertendo a ordem estabelecida por Deus na terra. A Igreja que deveria fazer a

ligação com Deus e que foi estabelecida para guiar a cristandade à salvação da alma tem

sua importância rebaixada em relação aos assuntos temporais, passageiros. Neste sentido,

o autor vai esclarecer ao ouvinte do roman como Deus estabeleceu o poder temporal, isto é,

70

BOETHIUS. The consolation of philosophy. Trad. David R. Slavitt. Cambridge, Massachusetts. London, England: Havard University Press , 2008. 71

De Fauvel descent Flaterie, /Qui du monde a la seignorie, /Et puis en descent Avarice, /Qui de torchier Fauvel n'est nice,/Vilanie et Variété, /Et puis Envie et Lascheté.. Flatterie (Lisonja), Avarice (Avareza), Vilenie (Vileza), Variété (Inconstância), Envie (Inveja), Lâcheté (Covardia). A letra U corresponde à letra V. 72

O Roman de la Rose foi uma das obras mais lidas na Idade Média. Composta por duas partes, a primeira, contendo 4058 versos, foi escrita por Guillaume de Lorris (1200-1260) em 1225-1235; a segunda, escrita entre 1268 e 1285, por Jean de Meun (1240-1304) possui 17.724 versos, ambas as partes em versos octossilábicos. Os personagens do Roman de la Rose também são personificação de vícios e virtudes como a Razão, o Amor, o Ciúme e a Inveja, porém o motivo narrativo da primeira parte é lírica, enquanto a segunda, de autoria de Jean de Meun é satírica (ANDRADE FILHO, 2014, p. 264). 73

Alguns dos prazeres passageiros desta sociedade corrompida, inclusive dos eclesiásticos, seriam o amor ao dinheiro, a glutonaria, a embriaguez, a inveja, a crueldade, a luxúria e a ganância.

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o governo do rei e o poder espiritual exercido pelo papa, através da apropriação da teoria

dos astros de Inocêncio III.74

Ora entenda, tu que Fauvel bajulas. Deus fez no início duas grandes tochas, Cheias de forte e grande luz, Mas é por diversa matéria. Uma nomeou sol, a outra lua Claridade de dia nos dá uma. É o sol que ilumina o dia, A lua de noite sem estadia. Mas o sol, se Deus me ama, Esteve muito mais alto no firmamento Que a lua, que está sem dúvida, Nem ela de claridade gosta Que o sol nem lhe envia. Mas Fauvel, que tudo desvia, Tanto fez que esta luminária Está toda invertida e ao contrário. [...] Os sábios que se fundam sob razão Fazem semelhante comparação Ao sol do céu o sacerdócio E à lua colocada abaixo Comparam o império temporal A causa do que te quero dizer. [...] Assim deve a temporalidade Obedecer em humildade À santa Igreja, que é dama, Que pode ligar corpo e alma.

75

Notamos desde o início do poema que o autor constrói sua narrativa por meio não

somente de alegorias como o cavalo e as cores que o definem física e moralmente, mas por

determinados sentidos alegóricos.

Tipologia alegórica

74

Mühlethaler ressalta que a alegoria na Idade Média tanto na pintura quanto no texto causa no leitor ou no ouvinte da história o receio do divertimento puro e simples, pois está sempre carregado por um duplo sentido, o da graça e o da instrução. (MÜHLETHALER, 2006, p. 166-167). 75

Orentent, tu qui Fauvel torches : /Diex fist au premier .II grans torches, /Plaines de moût très grant lumière, /Mes c'est par diverse manière. /L'une a non soleil, l'autre lune, /Clarté de jour nous donne l'une : /C'est le solail qui luist de jour, /La lune de nuit sans séjour. Mes le solail, se Diex m'ament,/ Est tropplushaut eu firmament/Que n'est lalune, c'estsansdoute, /Ne elle n'a de clarteigoûte/Que lesolail ne li envoie. /Mes Fauvel, qui tres tout desvoie, /A tant fait que cestl uminare/Est tout berstorneiau contraire.[...] Li sage fondé sus reson/Font semblable compareson/Au solail du ciel de prestrise, / Et a la lune au dessous mise/Comparent temporel empire ; /La cause de ce te vuil dire. [...] Einsi doit temporalitei/Obeïr en humilitei/A sainte Eglise, qui est dame, /Qui peut lier et corps et ame (vv. 401-416, 423- 428, 463-466, trad. nossa). O argumento bíblico de “ligar e desligar” já estava presente na Dictatus Papae de Gregório VII (PACAUT, 1976, p. 133).

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Ao apresentar o anti-herói da poesia busca-se a alegoria personificação, isto é, a

personificação dos estados de espírito como a inveja e a falsidade, dando a eles nome

próprio: Inveja, Falsidade (VANDENDORPE, 1999, p. 4-5). Mas também a alegoria clássica

definida por Vanderdorpe como

a vinculação, sobre o modo analógico, de duas isotopias mais ou menos detalhadas. Sua leitura não impõe a fusão de dois sentidos, mas o reconhecimento após uma vez numa segunda direção sob o primeiro sentido, suscetível de uma adequação global ou, no melhor dos casos, de uma correspondência termo a termo. (VANDERDORPE, 1999, p. 4, trad. nossa)

Ou seja, a alegoria clássica produz dois planos de leitura num mesmo discurso que

não se confundem, se explicam, são esclarecidos sempre no final pelo próprio discurso.

Com isso, o ouvinte – ou o leitor – recebe do intérprete/autor uma descrição conhecida que

poderia ser tratada isoladamente, mas que explicada logo em seguida por outra que produz

um novo significado paralelo. É o que observamos na teoria dos astros de Inocêncio III que

embora deslocada no tempo e no espaço para o roman do notário francês, produz o mesmo

efeito analógico e explicativo.

Preferimos, no entanto, relacionarmos a alegoria clássica com a tipologia alegórica

de Auerbach tratada na sua obra Figura (1997) quando analisamos especificamente a teoria

dos astros de Inocêncio III tanto na decretal Sicut universitatis conditor quanto na recriação

no Roman de Fauvel. A tipologia alegórica também chamada de allegoria in factis (alegoria

nas ações, nas coisas) ou “alegoria dos teólogos” é fundamentalmente cristã e possui suas

bases no Novo Testamento, como nas cartas de Paulo aos coríntios, ao trazer à memória

religiosa os feitos divinos em favor dos judeus que atravessaram o Mar Vermelho, descritos

no Antigo Testamento: “E estas coisas foram nos feitas figura, para que não cobicemos as

coisas más, como eles cobiçaram. [...] Ora, tudo isso lhes sobreveio como figuras, e estão

escritas para aviso nosso, para quem já são chegados os fins dos séculos” (I Co 10: 6, 11,

grifo nosso).76

Figura é a tradução latina do grego typo (AUERBACH, 1997, p. 15), daí o termo

tipologia alegórica77. A tipologia pressupõe uma concordância entre Antigo e Novo

Testamento, onde todos os acontecimentos do Antigo prefiguram os eventos do Novo. Dito

de outro modo, o tipo é o equivalente a uma profecia que inevitavelmente terá seu

76

“haec autem in figura facta sunt nostri ut non simus concupiscentes malorum sicut et illi concupierunt. [...] haec autem omnia in figura contingebant illis scripta sunt autem ad correptionem nostram in quos fines saeculorum devenerunt”. 77

A tipologia para a interpretação bíblica possui quatro sentidos, a literal (histórica), a alegórica (eclesiológica), a tropológica (moral) e a anagógica (escatológica). Assim, Jerusalém é a cidade histórica para os judeus, é a Igreja de Cristo de acordo com as Escrituras, é a alma do homem e a Cidade de Deus descrita em Apocalipse.

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cumprimento (o antítipo).78 Um dos exemplos de tipo e antítipo é encontrado no livro Levítico

(Antigo Testamento) em que são detalhados os ritos sacrificais para o perdão de cada

pecado ou oferta do povo judeu a Deus. O holocausto era o sacrifício diário de animais sem

mancha na pelagem ou anormalidade física, em que seu sangue era derramado sobre o

altar do tabernáculo. Jesus em todos os escritos do Novo Testamento é chamado o cordeiro

que se entregou para tirar o pecado do mundo.79 Da mesma forma, Isaque era o sacrifício,

mas que foi substituído no último momento por um cordeiro, Jesus por sua vez, é chamado

de cordeiro de Deus. Outro tipo é Adão, primeiro homem, que Paulo descreve como “figura

daquele que havia de vir”, isto é, o messias Jesus, chamado de “o último Adão em espírito

vivificante” (I Co 15: 45).80 Nesse sentido, a prefiguração ou a tipologia alegórica não se

reduz a uma analogia apenas nas palavras, mas nos próprios eventos e nas próprias

pessoas. Portanto, a alegoria é tomada como real e não como mera imagem comparativa.

Daí que a criação do sol e da lua por Deus para governar dia e noite, por exemplo, seja um

fato histórico e seu sentido espiritual esteja na comparação com o Reino e a Igreja como

cumprimento na terra do que foi criado anteriormente no céu.

Para o autor do Roman, a ordem que Deus criou no universo reflete na comparação

feita pelos sábios, isto é, as autoridades versadas na Verdade teológica e em que podemos

incluir o pontífice Inocêncio III.81 As duas potências são fortes em seu domínio, desde que

não ultrapassem o limite de sua atuação. Entretanto, pela grandeza e poder, uma delas é

maior e sua jurisdição vai além das causas terrenas, pois é ela quem faz a ligação com o

sobrenatural (vv. 468). Por isso, a esfera temporal deve obedecer à esfera espiritual, devido

a sua função ser de maior responsabilidade.82

A argumentação acerca da maior importância da Igreja em relação ao reino no que

concerne à salvação das almas já havia sido explorada na bula Unam Sanctam, de

Bonifácio VIII, dirigida indiretamente ao rei Filipe IV:

78

Na carta aos colossenses Paulo ao tratar acerca da dieta dos judeus em comparação com os cristãos teria escrito: “Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festas, ou da lua nova, ou dos sábados, que são sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo” (Col 2:16-17). 79

Cf: Levítico 1, Mateus 27: 35-36, João 1: 29, Hebreus 7: 26, 9:14, Apocalipse 5: 8-9, 12-13. 80

“factus est primus homo Adam in animam viventem novissimus Adam in spiritum vivificantem”. Os tipos e antítipos em sua maioria, mas não em totalidade, referem-se ao próprio Jesus como ser ou ações que a ele dizem respeito. Sobre esta maneira de interpretação ver: AUERBACH, E. Figura. São Paulo: Ática, 1997, p. 26-31. 81

Embora pareça óbvio, o autor diz em seguida, que o sábio fez “comparação”. Assim, ele inicia a descrição com a criação que Deus fez e termina pela comparação que os sábios fazem da criação do mundo com a ordenação social. 82

Pois Deus lhe confiou autoridade (a Jesus) / Para levar a luz ao mundo/ De modo por ela ele eleva seu coração e sua cabeça / Para conhecer o caminho reto / Que conduz à felicidade eterna. [...]/ Mas ao poder temporal / Deus não atribuiu nenhuma senhoria / Querendo ao contrário que ele fosse submisso aos sacerdotes / Para servir de braço à santa Igreja, / De tal sorte que ele só teve a capacidade de fazer / O que deve agradar a Igreja (vv. 434-438, 443-448, trad. nossa).

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Porque, segundo atesta a Verdade [as Escrituras], a potestade espiritual tem que instituir a temporal e julgá-la se não for boa... Logo, se a potestade terrena se desvia será julgada pela potestade espiritual, se se desvia a potestade espiritual menor, por sua superior será julgada, mas se a potestade suprema, por Deus somente, não pelo homem, poderá ser julgada. (BONIFACIO VIII: BULA Unam Sanctam (1302), apud. ARTOLA, 1985, p. 128, trad. nossa)

83

Infelizmente, no entanto, Fauvel com sua capacidade de distorção moral inverteu a

ordem no âmbito social, sobrepujando o poder temporal a Igreja. Fica nítida essa

perspectiva de inversão quando observamos algumas das ações do rei Filipe, o Belo, em

assuntos eclesiásticos até a data de publicação do primeiro livro do roman.

Dentre os conflitos internos que Filipe IV protagonizou podemos apresentar por

ordem cronológica as mais marcantes. A partir de 1292, o monarca francês não teve

descanso. Defendendo o conde de Foix na região de Pamier protegida pela Igreja, Filipe

iniciou uma disputa jurisdicional com o bispo Bernard Saisset, protegido do papa Bonifácio

VIII, que se transformou num longo processo contra o bispo acusado de traição e heresia

entre os anos de 1301 e 1309 e do próprio pontífice em 1303, sendo este último o único com

direito de organizar um processo contra clérigos desde a reforma gregoriana. Pelo lado do

papa, foi convocada uma assembleia para a excomunhão do rei que acabou não ocorrendo

devido à morte do pontífice (THÉRY, 2004, p. 14-17).

Em 1294, assim como o rei da Inglaterra, Filipe, o Belo, cobrou taxas dos judeus,

dos lombardos e, da Igreja em 1296, chamadas de “dízimos”, no intuito de cobrir as

despesas da guerra em curso (FAVIER, 1978, p. 212). Após o papa Bonifácio VIII publicar a

bula Clericis laico (1296) repreendendo qualquer pessoa ou instituição por cobrar taxas à

Igreja sob pena de excomunhão, o rei Eduardo I da Inglaterra (1272-1307) acatou a

decisão. Filipe, por outro lado, intensificou o conflito com o papa tomando medidas que

prejudicaram diretamente a circulação monetária e o próprio papa no território do reino de

França.

Em 1306 o rei, sem o consentimento do mestre da Ordem do Templo 84 em Paris,

subtraiu dinheiro do tesouro da Ordem para custear a guerra, mesmo ano, aliás, em que

83

"Porque, segúna testigua la Verdad, la potestad espiritual tiene que instituir a la temporal, y juzgarla si no fuere buena... Luego si la potestad terrena se desvía, será juzgada por la potestad espiritual; si se desvíala espiritual menor, por su superior; mas si la suprema, por Dios solo, no por el hombre, podrá ser juzgada". 84

A Ordem dos Pobres Cavaleiros do Templo de Salomão (Pauperes Comilitones Christi Templique Solomonoci), também chamada de Ordem do Templo e seus membros templários, foi fundada no século XII em Jerusalém após a tomada da cidade pelos europeus denominados cruzados pelo chamado do papa Urbano II em 1095. Os templários tinham como missão proteger e expandir os caminhos que levavam os cristãos ocidentais aos lugares considerados sagrados pelo Cristianismo. No fim do século XIII, no entanto, suas funções ampliaram-se mais nos assuntos burocráticos deixando a manutenção e conquista de territórios sempre como uma possibilidade futura. Cf.

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expulsou os judeus do reino para a obtenção de recursos financeiros. Com a deposição do

tesoureiro Jean de la Tour, o rei interferiu também junto ao mestre do Templo para a

restituição de seu ofício. Em 1307 todos os membros do Templo tiveram prisão decretada

pelo rei, ocasião em que foram interrogados sob tortura, acusados de diversos crimes contra

a fé católica; ainda que a Ordem respondesse segundo sua Regra apenas ao papa. Em

1309 o senescal de Carcasonne foi preso e no ano seguinte cinquenta e quatro templários

foram condenados à fogueira (THÉRY, 2012).

Dessa forma, é difícil não associar o personagem Fauvel com o rei Filipe IV se o

leitor não tiver conhecimento de todo o conteúdo do livro. Entretanto, Gervais de Bus,

elogiará o rei por sua decisão de condenar os Templários (vv. 993-1004), pois se deixaram

enganar por Fauvel assim como o próprio papa. Alguns críticos, no entanto, associam o

personagem com Enguerrand de Marigny, oficial da corte que será de extrema importância

na segunda fase do reinado de Filipe, o Belo, e que será condenado à morte logo após o

falecimento do rei (MÜHLETHALER, 2006, p. 176). Estamos inclinados a admitir o

personagem Fauvel, para além de uma associação com o ministro ou o próprio rei, antes,

como a personificação de todos os vícios e que sua imagem como rei funciona como

advertência a todos que se inclinam aos vícios corrompendo sua própria natureza e se

tornando súditos de tudo que se relaciona ao mal. Quem se submete às vontades de

Fauvel no intuito de obter algo torna-se, por sua vez, servo do pecado e consequentemente

de Fauvel (vv. 537) e do próprio Diabo.85 Essa inversão de valores é um aviso sobre o futuro

da humanidade que vive sua última fase antes do julgamento final.86

O Roman buscou em uma explicação de cunho espiritual e imbricada de autoridade

a explicação para o funcionamento da sociedade hierarquizada, mas que poderia estar

sofrendo mudanças negativas influenciadas pelo anticristo figurado por Fauvel que inverteu

a ordem, como os Templários, sendo até então a ordem militar-religiosa mais honrada pela

Igreja e que a traiu pela idolatria, heresia, simonia e sodomia ou como o papa que permitia a

extorsão por parte do laicado.

Considerações finais

DEMURGER, A. Os cavaleiros de Cristo. Templários, Teutônicos, Hospitalários e outras ordens Militares na Idade Média. Zahar, 2002, 348p. 85

“respondit eis Iesus amen amen dico vobis quia omnis qui facit peccatum servus est peccati”. “Eis que Jesus respondeu: em verdade, em verdade vos digo que todo aquele que comete pecado é servo do pecado” (João 8: 34). 86

Esta personificação que o personagem carrega está intrinsecamente ligada à sua natureza diabólica citada no primeiro livro (vv. 1170-1181) .

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A Idade Média foi um período rico para o desenvolvimento do pensamento político-

religioso e filosófico, mas também foi um período de grande criatividade instrutiva. O

historiador do político medieval que intenta investigar essa duração deve estar aberto às

possibilidades que as diversas áreas do conhecimento lhe proporcionam, não se limitando

às fontes das práticas do governo. É fundamental a interdisciplinaridade não somente como

justificativa de pesquisa, mas no fazer historiográfico.

Buscamos demonstrar neste trabalho tal interdisciplinaridade metodológica no

tratamento das fontes, ao examinarmos a própria interpretação da História e da sociedade

medieval francesa por meio de algumas alegorias presentes no Roman de Fauvel que se

comportavam como verdadeiros lugares-comuns presentes na abordagens de bestiários,

tratados filosóficos e teológicos.

Inocêncio III buscou auxílio nas Escrituras em que pode traçar uma comparação

direta entre os maiores astros – o sol e a lua – criados por Deus no cosmos com sua criação

na terra, a Igreja e o poder temporal. Com ela, a Igreja terá uma forte ferramenta bastante

utilizada por seus representantes para reivindicar maior autoridade sobre as decisões do

imperador e do rei e defender suas próprias decisões por meio do discurso alegórico,

chamando pela autoridade divina, Bonifácio VIII compreendeu essa lição. Para o medievo

Deus criou o universo e determinou o lugar de cada pessoa e de cada instituição, cabe à

sua criação obediência a ele e às dignidades por ele instituídas, sobretudo à Igreja

representada pelo papa, pois ele é responsável por levar as almas à salvação.

No fim do século XIII e início do XIV, o autor do Roman de Fauvel evoca uma

argumentação teológica e oficial em uma literatura vulgar para divertir e ao mesmo tempo

questionar a sociedade francesa, mas se apropriando ainda de um imaginário fantástico que

possibilitou um jogo dialógico entre fé, razão e imaginação. Neste sentido, interpretam-se as

decisões nas dimensões políticas, econômicas e religiosas no reino de França durante o

reinado de Filipe, o Belo, como parte deste futuro já conhecido por Deus que deixa para as

pessoas escolherem os bens passageiros ou a vida eterna, de acordo com um modo

particular de interpretar a História, a tipologia alegórica.

Tanto as escolhas do papa e dos membros da Igreja que causaram escândalos e

facilitaram a atuação do anticristo como os templários, quanto as sentenças ora boas, ora

ruins do rei já estão prescritas nas Escrituras. A “maldade” (Fauvel) se estenderá por um

tempo limitado até que chegue o julgamento divino. O poema trouxe, dessa forma, para um

estilo literário a discussão da natureza moral do ser humano e a ordenação do mundo a

partir da analogia. Cores, cavalo, vocabulário (bíblico, filosófico e teológico), vícios,

natureza; tudo no roman possui uma verdade escondida, assim como o véu do nome Fauvel

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esconde a natureza do cavalo do poema. Não se isola ainda das discussões anteriores

sobre mobilidade social e escolhas morais.

Vemos, assim, na teoria dos astros evocada no Roman de Fauvel uma relação e

uma disputa de forças pela manutenção e legitimação do próprio poder na organização

social que nos permite não considerarmos o poema como simples reflexo da realidade, mas

ora uma tensão entre a mentira que o roman produz através da imaginação de personagens

e a verdade revelada pelas Escrituras e pelos autores antigos, ora um diálogo entre essas

duas dimensões como parte de um mesmo sistema de crenças que atribui autoridade a um

texto vulgar.

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Os poderes dos gládios no século XIV

The powers of the glaives in the 14th century

Eduardo Melin87 Resumo: O presente trabalho, em suma, refere-se às disputas entre a hierocracia papal e a teocracia régia na aurora do século XIV. A teoria dos dois gládios foi por muito utilizada pelos pontífices e imperadores para afirmarem seus poderes nas esferas temporais e espirituais. Assim, serão discutidas a evolução do conflito que remete à posição e sobreposição desses gládios, no decorrer da Baixa Idade Média, e as argumentações de cada lado em relação à concepção de poder entendida pelas autoridades do período. Diante das circunstâncias, a teoria dos gládios passou ao combate direto, o que revelará o norte das mutações sofridas pela Cristandade e a emersão de novos representantes do poder na Europa medieval. Palavras-chave: Hierocracia; Papa; Monarquias; Poder; Gládios. Abstract: This work in short refers to disputes between the papal hierocracy and royal theocracy in the beginning of 14th century. The theory of the two glaives was long used by popes and emperors to assert their power in the temporal and spiritual spheres. Thus, the evolution of the conflict that brings the position and overlapping of these swords during the late Middle Ages and the arguments of each side regarding the concept of power understood by authorities of that period will be discussed. Under the circumstances, the theory of glaives drives to a direct combat, which will reveal the north of the changing shape of Christianity and the emergence of new representatives of power in Medieval Europe. Keywords: Hierocracy; Pope; Monarchies; Power; Glaives.

Disputas entre o poder temporal e espiritual são tão antigas quanto a própria história

da Igreja cristã, no entanto durante a Alta Idade Média esses conflitos ocorriam sempre

87

Mestrando em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, UNESP (2016). Graduado pelo Instituto Educacional do Estado de São Paulo (2012). Tem experiência na área de História, com ênfase em História Medieval, atuando principalmente nos seguintes temas: Hierocracia e Teocracia, Ordem dos Templários, Cruzadas, Cristandade e Monarquia Francesa.

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dentro da Cristandade, ou seja entre reinos e impérios que partilhavam de um mesmo plano

de fundo ideológico cristão e teleológico. A convivência entre ambas as instâncias partilhava

de momentos de conivências e litígios, todavia o poder clerical compartilhava dos ânimos

impostos pelo poder secular, até porque o primeiro reconhecia o segundo como necessário

à consolidação da ordem vigente em uma época de fragmentação do poder.

Logo, tanto os reis considerados personagens religiosos tinham uma profunda

influência nos assuntos da Igreja, como os papas representantes do apóstolo Pedro fizeram

importante papel como conselheiros e administradores dos principados, assim ambos eram

profundamente interligados no período anterior ao século XI (STRAYER, 1986).

A mudança nesse quadro se faz visível, quando as reformas eclesiásticas que

prosperam com a fundação do mosteiro de Cluny (910) na Borgonha e as constantes

intervenções que os senhores laicos deixaram de aceitar, a Igreja percebeu que somente

sua independência da autoridade secular é que resultaria na centralização do poder

espiritual que exercesse suprema soberania sob a égide dos dirigentes da Cristandade.

Nesse rol de imposições derivadas da reforma eclesiástica, em que se destaca um

dos primeiros passos para um controle episcopal sobre o secular e que desencadearia mais

tarde, devido à dificuldade de executar as primeiras ideias na Trégua de Deus do século XI,

eram comuns proibições e controle sob ameaça de excomunhão acerca do comportamento

da elite laica (FRANCO JÚNIOR, 2001).

Dentro desse período, porém, no século XII, surge ao que estudiosos conferem sua

origem a “teoria dos gládios” levantada por Bernardo de Claraval (1091-1153), no entanto

contida no evangelho de Lucas88, alegoria que, mais tarde, alguns dos hierocratas irão

utilizar para atribuir ao Papa o direito de uso de ambos, “reservando para si o uso do

espiritual e igualmente a competência para instituir e destituir os governantes seculares”

(SOUZA; BARBOSA, 1997, p. 58).

O fortalecimento do poder papal diante de uma Cristandade fragmentada afastou os

poderes que anteriormente se mantinham interligados: senhores seculares passaram a

encontrar meios para evitar a participação de clérigos em assuntos temporais; a Europa se

modificava, e as relações políticas também seguiam um rumo mais amplo; a utilização das

leis aplicadas a instituições que se formavam, como os Tribunais Judiciais e o Tesouro,

forçou a especialização de funcionários conhecedores das regras do jogo; as Universidades

tiveram ampla participação na formação do meio burocrático89. Desse modo, o poder secular

passa a utilizar de meios práticos e leis que destaquem seu papel como líder em seu reino,

esse reconhecimento legal concedeu mais poderes aos reis e não só ampliou a distância

88

Lc 22, 38 – “Disseram eles: Senhor, eis aqui duas espadas. Ele respondeu: É suficiente!”. 89

Ver STRAYER, Joseph R. As Origens Medievais do Estado Moderno. Lisboa. Gradiva, 1986.

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entre o poder temporal e espiritual, mas também forjou o cerco para uma contenda mais

intelectualizada entre os gládios que moldaria os rumos da Cristandade.

O avanço dos discípulos de Cluny, alguns agora elevados à condição de papas com

intensões monárquicas dentro da Cristandade, só confirmou a condição bipolar dessa

“sociedade bicéfala” (LE GOFF, 2005, p. 267). Representantes de duas ordens dominantes

no cenário europeu – o conflito entre o sacerdos e o rex é mais evidente do que considerar

que o Império seja o maior inimigo do movimento reformista, conhecida sua situação

dispersa diante dos laços de poder e de autoridade malogradamente desenvolvida (LE

GOFF, 2007, p. 102) –, os reinos monárquicos do Ocidente se encaixam com mais

veemência nas querelas entre hierocracia e teocracia.

O desejo de cisão entre clérigos e leigos que marca os anos entre 1040 e 1059

(JOHNSON, 2001, p. 232) aumenta cada vez mais ao passo que, com a promulgação do

documento Dictatus Papae (1074-1075), confirma uma reação imensamente autoritária por

parte do Sumo Pontífice Gregório VII (1073-1085) diante das ações seculares. Segundo Le

Goff, essa atitude da Reforma Gregoriana (1050-1150), “não só libertou, e com ela começou

a libertar a Igreja de certo servilismo perante a ordem feudal laica” (2005, p. 273).

No entanto, a reação dos príncipes do Ocidente diante do avanço pontifício

gradualmente pode ser notada, não apenas no Império como na conhecida “Querela das

Investiduras”, entre Gregório VII e o imperador Henrique IV (1084-1105), mas também no

reino francês, como quando Luís IX (1226-1270) passa a não aceitar clérigos estrangeiros e

manifestar seu repúdio à excomunhão de Frederico II (1220-1250) por Inocêncio IV (1243-

1254) (FAVIER, 1978, p. 252).

É necessário compreender que, durante o século XI, o aparato governamental e a

disponibilidade de potencial humano letrado no meio clerical eram mais sofisticados que

qualquer outra na alçada do mundo secular, ainda mais num momento em que o suserano

maior não dispunha de poder suficiente para angariar uma autoridade forte em seu reino,

pois, apesar de Strayer afirmar que “o reino franco dos século VIII e IX atingiu um nível

ligeiramente superior” (1986, p. 19), a estrutura econômica e social e a ausência de uma

burocracia ampla minaram o exercício desse governo diante de disputas locais em que o

poder se baseava na dimensão territorial.

Apesar de seu caráter sacro, a monarquia capetíngia passa a desenvolver certo

avanço nos meios governamentais, com incursões fora de seus domínios situados na Île de

France, por meio das investidas de Luís VII (1137-1180) contra os territórios pertencentes

aos plantagenetas (1154-1485) e de seu sucessor Felipe Augusto (1180-1223), além da

implementação de instituições legais pautadas no direito civil e cobranças de impostos.

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Logo, é perceptível que nos últimos anos do século XII o “rei era um imperador em

seu reino90” e “os limites territoriais do poder dos monarcas franceses se baseava na lei

romana” (ULLMANN, 1983, p. 188). Agregada a esse fator secular e prático, havia uma

questão acerca da sujeição dentro do reino francês, em que, ao mesmo que reconhecia a

autoridade papal como “vigário de Cristo” na terra, a imagem e a concepção diante do

monarca também se pautavam no caráter transcendental no qual os reis capetíngios “eram

considerados seres divinos” (BLOCH, 1993, p. 71).

Diante desse quadro, os monarcas franceses passaram a controlar o avanço da

Igreja, sobretudo do clero francês, e se arvoraram diante de uma disputa que colocava em

jogo a soberania e o caráter divino dos reis diante das pretensões universalistas do papado.

O resultado foi que, após o século XII, era raro que mesmo os mais sérios e dedicados

monarcas devotassem grande parte de suas energias à reforma da Igreja (JOHNSON, 2001,

p. 251), pelo contrário, “os dois gládios permaneceram em mãos separadas” (LE GOFF,

2005, p. 276).

Contudo, não só na França as pretensões teocráticas eram visíveis. Está claro que

aos reis franceses, assim como aos ingleses, eram atribuídos poderes curativos, e essa

característica concedia maior glória diante dos súditos. Outro lado de ambições teocráticas

se encontrou por muito tempo no Império Ocidental, este disputava com o papado o caráter

de ser o primeiro representante de Deus na terra, de possuir o gládio secular e o poder de

fato, porém algo que ambas as tentativas teocráticas não perceberam é que sempre se

pautavam na mesma fonte de argumentos que os hierocratas. Essas rusgas contra os

conhecedores das sagradas escrituras não teriam fim, pois, além de se basearem em

respostas de tempos passados ou no direito canônico no caso dos clérigos, os argumentos

seriam somados, e a balança sempre penderia para quem tem, segundo os hierocratas, o

poder espiritual, excelso diante do secular, e que era como a alegoria da anima e do corpus,

em que a alma controla e guia para o bem os desvios do corpo.

O Papa recorreu, por exemplo, à conhecida alegoria e analogia entre a anima e o corpus, retomando a doutrina tradicional da preeminência da primeira sobre o segundo, e, em consequência e por extensão, os sacerdotes e principalmente o Pontífice Supremo, enquanto responsáveis pela salvação eterna das almas, tinham de exercer uma supremacia sobre os imperadores e os reis, cuja tarefa que desempenhavam era ancilar e secundária àquela outra. (SOUZA, 1997, p. 99)

O problema da soberania de ambos os gládios terá seu ápice de desenvolvimento de

ideias, com pensadores renomados, na virada do século XIII para o século XIV, quando a

90

Fórmula “rex in regno suo imperator”, muito atribuída a Felipe Augusto, enunciada por canonistas no final do século XII e imediatamente reproduzida pelos juristas régios franceses em favor das pretensões do rei da França no século XIII (ULLMANN, 1983).

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disputa com o rei de França Felipe IV (1285-1314) passa a ser questionada diante de sua

tributação sobre o clero francês que, inconformado com tal fato e conhecedor das regras do

IV Concílio de Latrão (1215), sabia da impossibilidade ou proibição que cabia aos senhores

seculares de cobrar impostos dos clérigos, pois esses eram isentos dentro do reino. Óbvio

que havia suas exceções quanto ao reino passar por um perigo e ter que angariar fundos

para fortalecê-lo, ainda assim o alto clero apela ao papa Bonifácio VIII (1294-1303) uma

resposta ao problema.

Devido a reclamações de clérigos locais, o papa Bonifácio VIII, informado de

tamanha ocorrência, logo formula a Bula Clericis Laicos (1296), na qual expõe de

uma maneira temerosa, a gravidade do problema, deixando a impressão de que as

autoridades do poder Pontifício estão sendo encobertas pelos seculares, assim

ameaça de excomunhão qualquer clérigo que venha a servir de tributos seus

monarcas.

Ordenamos, outrossim, severamente, a todos os prelados e pessoas eclesiásticas acima referidas, em virtude da obediência e sob pena de destituição do cargo que exercem, que, de ora em diante, não consintam em tais requisições sem a permissão expressa da Sé Apostólica, nem paguem nada sob a alegação de promessa, de obrigação ou de compromisso assumido ou feito antes de receberem esta constituição, preceito e proibição. Nem os leigos receberão tais pagamentos. E, se os primeiros pagarem e os segundos receberem algo, incorrerão automaticamente na sentença de excomunhão. (BONIFÁCIO VIII apud SOUZA, 1997, p. 151-152)

Em contraste com a Bula Claricis Laicos, foi redigido anonimamente o opúsculo

Disputatio inter clericum et militem (1296-1303), que, pressupõe-se, provinha dos

companheiros formados em Direito Romano pelos quais Felipe IV era assessorado, juristas

como Pedro Flotte, Guilherme Plaisians, Enguerrando de Marigny e Guilherme Nogaret

(SOUZA, 1997, p. 127). Esse texto trata-se de um diálogo entre um soldado que se

assegura ao defender a autoridade monárquica diante de um clérigo, sendo que esse último

o autor ironiza e demonstra sua pretensão, sendo que ainda que conheça sobre leis, faz-se

acreditar que pode justificar o poder pontifício.

Pressupondo que a relevância do texto que decorre da importância das discussões

hierárquicas emana desses particulares do rei, é possível notar a colaboração recíproca

entre Felipe, o Belo, e seus juristas, a proximidade do que seriam os parâmetros da

Monarquia Absoluta, visto que esses intelectuais (laicos) eram também burgueses em

ascensão, que precisavam da autoridade monárquica a fim de deslocar aqueles (clérigos,

nobres, entre outros) que soterravam as ambições de suas atividades financeiras. Dessa

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forma, o rei supostamente utilizaria de suas riquezas, para manter fortalecidos seus

exércitos e consolidar sua autoridade centralizada.

Não obstante a situação difícil de Bonifácio VIII diante dos cardeais Colonna, que há

muito viam-se ameaçados pelo desprestígio papal e condenavam suas práticas de

nepotismo, o pontífice é prestigiado por Egídio Romano (1243-1316), íntimo amigo nomeado

arcebispo de Bourges, que acompanha de perto a disputa entre o pontífice e a Monarquia

francesa. Egídio defende os direitos papais quando prescreve sua obra De ecclesiastica

potestate entre o final de 1301 e 1302, na qual argumenta baseando-se em ensinamentos

teológicos, que há dois poderes que deveriam servir a Deus, porém um se submetendo ao

outro; no caso, o temporal seria inferior ao espiritual, e, dessa forma, a hierocracia manteria

as forças em harmonia.

Daí, quanto ao que só referia no começo deste capítulo, que o Sumo Pontífice não tem senão um dos gládios, dizemos que o poder terreno só tem o gládio material, mas o gládio espiritual de modo algum o tem, nem para o uso, nem à sua disposição; já o poder eclesiástico tem ambos os gládios: o espiritual para uso, e o material à disposição. Pois também os discípulos do Senhor, aos quais os prelados eclesiásticos sucedem, confessaram que tinham dois gládios, como diz Lc 22, 38: Eis aqui dois gládios, e pelos dois gládios entendem-se os dois poderes: o espiritual e o terreno. Logo, os discípulos tinham ambos os gládios e a Igreja também os têm. (ROMANO, 1989, p. 90)

Percebe-se que a teoria dos gládios sobrepostos se estende por todos esses séculos

como argumentos ainda válidos, pensadores como Egídio Romano ou Thiago de Viterbo

saíram da universidade de Paris formados em teologia, ambos próximos à cúria de Bonifácio

VIII e defensores da hierocracia. O problema para o avanço da hierocracia do início do

século XIV é que, diante das disputas entre os poderes universalistas na Europa, cresciam,

aos poucos, reinos como o da França, que se destacavam em força e soberania. Tais reinos

desenvolveram bem a ligação entre monarca e a burguesia emergente e utilizaram da

ambição dessa última em ampliar direitos diante dos feudos e empecilhos das fronteiras e

senhores feudais, para servirem de apoiadores e conhecedores do direito romano, formados

na Universidade de Paris e que também desenvolviam diante dos súditos uma aproximação

de devoção maior diante do poder universal do papa, alguns diriam que um sinal de

nacionalismo era perceptível na França, os intelectuais franceses defendiam a total

soberania do monarca em todos os sentidos, seja administrativo, legislativo, judicialmente,

pois com um monarca forte seus negócios quando se tratava de burgueses seriam cada vez

mais prósperos.

Contudo, diante dos intelectuais franceses, alguns bebiam na fonte de Tomás de

Aquino (1225-1274) e seus estudos sobre Aristóteles e o direito natural. Um desses

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conhecedores foi João Quidort ou João de Paris (1270-1306), que, diante da literatura

hierocrática ou teocrática, desenvolve uma que não se encaixa em nenhuma dessas, mas

que tende a criticá-las e resolver o problema da disputa entre Bonifácio VIII e Felipe IV. É

certo que João de Paris seria parcial por se aproximar do círculo burocrático francês, porém

sua teoria se divide sobre a existência da autonomia dos dois poderes, não se pautando

mais nas sagradas escrituras e até mesmo criticando as obras de Tiago de Viterbo (1250-

1308) e Egídio Romano.

Apesar de não mencionar os nomes do papa e do rei, Johannes analisa as controvérsias entre ambos os poderes, a dualidade movida por interesses das ordens monásticas desse período comprometida tanto com Roma quando com os principados e versa sobre a utilização do Direito Romano como meio de resolução diante das intervenções papais em assuntos laicos. (PIEREZAN, 2008)

A obra de João de Paris intitulada Sobre o poder régio e papal, baseada em estudos

de Ética e Política, de Aristóteles, era tanto inovadora como polêmica, o que lhe conferiu a

saída da Universidade, diante de julgamentos realizados pelos mesmos hierocratas que

criticava. O desenvolvimento de sua obra encontra sentido prático quando retoma doutrinas

relativas à separação entre os poderes seculares e espirituais, ressaltando suas

características próprias de atuação, seguindo de maneira lógica e fundamentada na razão

de que ambos não teriam o direito de imiscuírem na esfera de poder do outro.

Não é tão fácil a um só dominar todo o mundo nas coisas temporais, assim como um só é suficiente para dominar nas espirituais. O poder espiritual pode facilmente transmitir a todos, próximos e distantes, as suas penas, por serem elas verbais. Já o poder temporal não pode fazer que com facilidade o peso de seu gládio, por ser manual, possa ser sentido nos que estão distantes. De fato, é mais fácil à palavra que à mão atuar à distância. (QUIDORT, 1989, p. 49-50)

É certo de que após esse embate, o reino monárquico havia subjugado o sumo

pontífice num episódio que os historiadores conhecem como “Crise de Avignon”, dando

início ao cognominado “Segundo Cativeiro Babilônico dos Papas” (1309-1377). Mas, ao

analisarmos tais acontecimentos, percebemos que as teorias eclesiásticas permanecem

inertes, e o papado não nota as transformações que percorrem a Europa dos príncipes e, se

assim o faz, só reconhece o perigo de perder sua hegemonia. Da mesma forma, as teorias

teocráticas seguem contrapondo os argumentos hierocráticos sobre a mesma base.

Entretanto, diante da obra de João Quidort e da crescente autonomia emergente da

monarquia francesa, é possível dizer que, embora as ideologias e disputas continuem, “a

hierocracia tinha os seus dias contados, muito embora a sua história se prolongue durante o

século XIV” (SOUZA, 1997, p. 150), diante de novos tratados e obras que, agora inspiradas

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em Quidort e na releitura de aristotélicos e tomistas, formularam o decorrer do pensamento

político sob o crepúsculo do período medieval.

Referências bibliográficas 1. Fontes impressas BONIFÁCIO VIII. “Bula Clericis Laicos”. In: SOUZA, José Antônio C. R. de & BARBOSA, João Morais. O reino de deus e o reino dos homens: as relações entre os poderes espiritual e temporal na Baixa Idade Média (da Reforma Gregoriana a João Quidort). Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. QUIDORT, Johannes. Sobre o poder régio e papal. Petrópolis: Vozes, 1989. ROMANO, Egídio. Sobre o poder eclesiástico. Petrópolis: Vozes, 1989. 2. Obras de referência SOUZA, José Antônio C. R. de & BARBOSA, João Morais. O reino de deus e o reino dos homens: as relações entre os poderes espiritual e temporal na Baixa Idade Média (da Reforma Gregoriana a João Quidort). Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos. O caráter sobrenatural do poder régio França e Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. DUBY, Georges. A Idade Média na França (987-1460): De Hugo Capeto a Joana D’Arc. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. FAVIER, Jean. Philippe, Le Bel. Paris: Fayard, 1978. FRANCO JUNIOR, Hilário. A Idade Média: Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001. JOHNSON, Paul. História do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 2001. KANTAROWICS, Ernst. H. Os dois corpos do rei. São Paulo: Companhia Das Letras, 1998. LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente medieval. Bauru: EDUSC, 2005. LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Petrópolis: Vozes, 2007. PIEREZAN, Alexandre. De regia potestate et papali, o equilíbrio de poderes segundo Johannes Quidort (1270-1306). Niterói. Tese de Doutorado em História Social, UFF, 2008. STRAYER, Joseph R. As Origens Medievais do Estado Moderno. Lisboa. Gradiva, 1986. ULLMANN, Walter. Historia del pensamiento político en la Edad Media. Barcelona: Ariel, 1983.

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Os templários e as Cruzadas: visões de mundo, imaginário e representações da Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão no século XII

The Templars and the Crusades: worldviews, imaginary and representations of the

Poor Fellow-soldiers of Christ and of the Temple of Solomon in the 12th century

Lucas Suzigan Nachtigall91 Resumo: A presente comunicação teve como objetivo apresentar as perspectivas iniciais de meu projeto de doutorado, cujo objetivo é tentar entender as visões de mundo e representações dos templários e, a partir delas, tentar compreender os elementos que compunham seu imaginário, intimamente ligado aos movimentos militares e religiosos das cruzadas e à ocupação cristã no Oriente Próximo. O foco da apresentação foi esboçar a proposta de pesquisa para o doutoramento, centrada nos cavaleiros templários no primeiro século desde sua formação. A partir da Regra Latina, escrita para a ordem pelo abade Bernardo de Claraval e pelo primeiro Grão-Mestre da Ordem, Hugo de Payens, do Elogio da Nova Cavalaria do abade e de algumas fontes da época, tem-se por objetivo tentar entender como se constituíam as visões de mundo dos templários e como se interligavam os elementos que compunham seu imaginário. Palavras-chave: Cruzadas; Templários; Imaginário. Abstract: This communication aimed to present the initial perspectives of my doctoral project, whose objective is to try to understand the worldviews and representations of the Templars and, from these, to try to understand the elements that made up their imaginary, closely linked to the military movements and to the Christian occupation of the Middle East. The focus of the presentation was to outline the research proposal for the doctorate, centered on the Knights Templar in the first century since its formation. Starting from the

91

Licenciado em História e Mestre em História pela UNESP/Assis.

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Latin Rule, written for the order by the abbot Bernard of Clairvaux and by the first Grand Master of the Order, Hugo de Payens, from the Praise of the New Knighthood of the abbot and of some other sources of the time, the research project aimed to understand how the Templars' worldviews were constituted and how the elements that made up their imaginary were interconnected. Keywords: Crusades; Templars; Imaginary.

Movimento das cruzadas

Nessa apresentação, optou-se fazer um recorte da temática abordada no projeto de

pesquisa, que enfatizará a formação da Ordem Templária dentro do movimento das

cruzadas.

Iniciadas a partir do Concílio de Clermont92, onde o papa Urbano convocou toda a

cristandade para defender a fé cristã e libertar a Terra Santa e conter o avanço do islamismo

no mediterrâneo oriental, as cruzadas, como foram conhecidas posteriormente, foram uma

série de campanhas militares que visaram conquistar a Terra Santa e proximidades, que

estavam sob domínio muçulmano. Duraram pelo menos até o século XIII, e inspiraram

outras campanhas militares com objetivos similares, como a Reconquista, na Península

Ibérica, ou as Cruzadas do Norte, nos países bálticos. Foram formadas como peregrinações

religiosas armadas, cujos soldados eram pecadores penitentes, buscando o perdão aos

seus pecados por meio do trabalho na obra de Deus, libertando a Terra Santa das mãos dos

infiéis, e devolvendo-lhe à legítima representante de Deus, a Igreja de Roma.

Além das motivações religiosas, de relevância central no discurso da pregação das

cruzadas, outros fatores foram importantes motivadores das cruzadas contra os chamados

infiéis, como a necessidade da Igreja de unificar a cristandade ocidental por meio da Paz e

Trégua de Deus, direcionando os sentimentos de beligerância da nobreza europeia contra

um adversário externo, a necessidade de se lidar com o aumento populacional do período e

de expandir a influência comercial dos mercadores europeus (como genoveses e

venezianos). Criaram, como consequências mais diretas e imediatas, um abismo entre a

cristandade e o Islamismo, acirrando as relações entre as duas religiões, bem como, pelas

ações dos cruzados contra os bizantinos, consolidaram o afastamento entre as Igrejas do

Ocidente (Católica) e do Oriente (Ortodoxa).

No exame de seus elementos constituintes, nas palavras do Dr. Hilário Franco

Júnior, o espírito das cruzadas acabou por constituir uma síntese da mentalidade feudal

(FRANCO JÚNIOR, 1999, p. 26-29). O autor, em seu livro As Cruzadas: Guerra Santa entre

o Ocidente e Oriente, analisa os elementos dessa mentalidade feudal, tanto religiosos

quanto políticos, sociais e econômicos e constata que o movimento das cruzadas foi uma

92

Cf. por exemplo, O Concílio de Clermont: Urbano II (1095). in: PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média: Textos e testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000, p. 83.

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consequência e síntese do que se constituía na Europa daquele período. Apesar de

aparentemente contraditórios, de acordo com Hilário Franco Júnior, os movimentos da Paz e

Trégua de Deus eram complementares à noção da Guerra Santa que estava sendo pregada

e realizada contra os muçulmanos (e, posteriormente, contra pagãos e grupos tidos como

heréticos, como os cátaros), tentando fortalecer uma paz interna na cristandade,

direcionando conflitos internos contra um inimigo externo por meio da sacralização da

guerra dentro da obra de Deus.

O papel desempenhado pelo cruzado nesse movimento era, simultaneamente, o de

um peregrino religioso marchando em direção aos locais santos de sua fé, ocupados por

infiéis, e o de um soldado que combatia por sua fé esses mesmos infiéis, trabalhando ativa e

fielmente pela obra de Deus. Porém, o contingente não era constante, sendo que os

cruzados europeus, bem como boa parte dos nobres envolvidos, mantinham-se na

campanha apenas por um tempo determinado, retornando às suas terras natais após esse

período, dificultando a ocupação dos territórios conquistados e a manutenção de um

exército permanente para a continuidade do esforço de guerra cruzado. Os europeus

estabeleceram Estados cruzados pela Palestina e proximidades, como o Reino de

Jerusalém, os Condados de Edessa e Trípoli, o Principado de Antioquia e o Reino da

Armênia Menor. Porém, esses reinos não tinham as mesmas condições materiais dos

europeus para sustentarem por longos períodos o esforço de guerra contra os muçulmanos,

que tentavam reconquistar os territórios tomados pelos europeus (RUNCIMAN, 2002;

SEWARD, 1995). E nesse contexto tornou-se de vital importância a atuação das ordens

militares na Terra Santa (SEWARD, 1995).

Ordens militares

As ordens militares foram organizações militares religiosas estabelecidas,

primeiramente na Terra Santa e depois por toda a Cristandade Ocidental, com o propósito

de protegê-la, bem como auxiliar no combate contra “infiéis” (muçulmanos na Terra Santa e

na Península Ibérica, pagãos na região do Báltico). Criadas originalmente a partir das

ordens monásticas, especialmente os cistercienses e beneditinos, as ordens militares

cumpriram a função de fornecer ao esforço de guerra cruzado tropas permanentes, de forma

a mantê-lo contínuo entre as partidas e chegadas de novas levas de europeus para servirem

como cruzados na Terra Santa, bem como atuarem em condições que muitas tropas

seculares não queriam ou podiam, e se mostraram como a organização ideal para a

manutenção das cruzadas (URBAN, 2011, p. 20-22). e da própria continuidade dos Estados

Cruzados no Levante.

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Entre as mais notáveis, é possível destacar os Templários, os Hospitalários e os

Teutônicos na Terra Santa (com os Teutônicos posteriormente migrando para o Báltico) e as

ordens de Calatrava, Santiago e Aviz na Península Ibérica, embora diversas outras ordens

menores, como a do Santo Sepulcro, a de São Tomás de Acre e a de São Lázaro tenham

surgido durante e após as cruzadas.

A vivência cotidiana dessas ordens foi inspirada nas ordens monásticas. Apesar de

existirem diferenças entre elas, alguns pontos comuns podem ser destacados: no geral, os

irmãos (como eram chamados os membros dessas ordens) seguiam votos de obediência,

pobreza e castidade. Assim, estavam submetidos a uma rígida hierarquia dentro da própria

ordem e impossibilitados de contraírem matrimônio ou possuírem bens materiais além dos

necessários para o cumprimento de sua função (armas, armaduras, vestes, montaria). Seus

membros (cavaleiros) eram recrutados, normalmente, da nobreza, enquanto as tropas

regulares das ordens (soldados, sargentos) vinham dos camponeses (sendo que os

turcópolos eram recrutados a partir das populações locais da Terra Santa). Viviam uma vida

militar e religiosa, mantendo uma disciplina marcial rígida, bem como atendendo aos

deveres religiosos de uma ordem católica, como missas, cultos e leituras de textos

religiosos.

Com a continuidade das cruzadas, as ordens militares que forneciam apoio a ela

sofreram mudanças perceptíveis até o fim dos Estados cristãos no Levante: os cavaleiros de

boa parte das ordens perderam suas sedes na tomada de Jerusalém, transferindo-se para a

cidade de Acre, no norte do Reino de Jerusalém; as ordens ganharam mais propriedades

estabelecidas na Europa, ofertadas por nobres para o sustento das mesmas; os teutônicos

lentamente retiraram sua presença militar na Terra Santa, passando a combater os pagãos

no norte da Europa. Mas foi com a queda do Reino de Jerusalém, com a tomada de Acre

em 1291, que as ordens militares que atuavam na região sofreram o maior revés (SEWARD,

1995, p. 91).

Culpadas pela perda do reino cristão na Terra Santa (SEWARD, 1995, p. 205-206),

as ordens militares passaram por um duro período para se reajustarem diante da inevitável

realidade de que, ao menos nos períodos que se seguiriam, a cristandade não financiaria

novamente uma cruzada para a conquista da Terra Santa (SEWARD, 1995, p. 205-206).

Apesar disso, elas ainda eram instituições com relativo poder político no continente, pois

suas propriedades e força militar permaneciam (SEWARD, 1995, p. 205-206). No século

XIV, as ordens que lutavam na Terra Santa reajustaram-se às novas realidades: os

hospitalários se mudaram para Rodes, posteriormente Malta, e passaram a defender os

mares em torno da ilha de ataques de navios muçulmanos (especialmente os turcos),

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formando uma força naval considerável; e os templários fortaleceram sua posição na área

financeira, emprestando dinheiro a nobres europeus.

Seus membros muitas vezes vinham das famílias nobres da Europa, especialmente

aqueles que, por não serem os primogênitos de suas famílias, tinham poucas perspectivas

de conseguirem herança. Formavam, se devidamente investidos como cavaleiros e

equipados como tal, a espinha dorsal da força militar das ordens militares, atuando

militarmente como a cavalaria pesada que caracterizava essas ordens. Ao lado dos

cavaleiros estavam os sargentos, oriundos normalmente das camadas livres da sociedade,

como habitantes das cidades; forças nativas, como os turcópolos, recrutadas localmente,

atuando normalmente como cavalaria leve; infantaria e demais forças auxiliares, bem como

um grande contingente não militar (serventes, agricultores e especialistas diversos, como

arquitetos, artesãos, comerciantes, administradores ou mesmo, como foi o caso dos

templários, banqueiros) de origens diversas (nobres, homens livres das cidades e servos,

ligados às terras pertencidas a essas ordens), tornando-as muito mais complexas do que

aparentam à primeira vista.

As cruzadas (ou melhor, movimentos análogos a elas) continuariam a ocorrer em

outras frentes, como na Península Ibérica (Reconquista), nos países bálticos (as Cruzadas

do Norte), ou mesmo movimentos internos à cristandade (como a Cruzada dos Albigenses,

na região do Languedoc), pelo menos até o fim do século XV. E as ordens militares tiveram

papel essencial nessas guerras religiosas. E no final da Idade Média, com as últimas

cruzadas convocadas pelo papado contra os infiéis chegando ao fim, as ordens militares

que outrora as sustentaram começam a perder o seu sentido original, uma vez que as

guerras santas estavam com os dias contatos. Para Desmond Seward, a última cruzada

deu-se entre a Ordem de Malta (como a Ordem Hospitalária passou a ser conhecida ao se

estabelecer em Malta, após a perda de Rodes) e os turcos, pelo controle daquela região do

Mediterrâneo, entre os anos de 1523 e 1571 (SEWARD, 1995 p. 269-290.), quando os

cavaleiros, agora já uma força naval e terrestre, resistiram ao avanço de forças turcas

substancialmente maiores que as suas.

É possível perceber, dessa forma, a importância do papel exercido por essas ordens

na manutenção dos Estados francos que se estabeleceram no Levante após a Primeira

Cruzada, bem como na Reconquista Ibérica ou no Norte, na região do Báltico, ou mesmo no

Mediterrâneo após o fim das cruzadas no Oriente Próximo. Durante a existência desses

Estados, as ordens militares se mantiveram como essenciais em sua defesa.

Ordem templária

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126

Das principais ordens militares criadas, a primeira foi a Ordem dos Pobres Cavaleiros

de Cristo e do Templo de Salomão (Pauperes commilitones Christi Templique Salomonici), e

foi abordada nessa apresentação. Conhecida popularmente como Ordem dos Templários,

ela foi estabelecida no ano de 1119, no processo de organização do Reino de Jerusalém

após a conquista de Jerusalém pelos cruzados em 1099. Sediada na Mesquita de Al-Aqsa,

adjacente ao Domo da Rocha (edificações muçulmanas construídas originalmente onde

teria sido outrora o Templo de Salomão e que, após a captura da cidade, foram

reformuladas pelos cruzados como construções cristãs) a atuação da ordem foi fundamental

para o esforço de guerra cruzado nas cruzadas e na defesa do Reino de Jerusalém.

Com o apoio de Bernardo de Claraval, abade cisterciense fundador da Abadia de

Claraval, a ordem recebeu suporte da Igreja, constituindo-se em uma ordem de monges-

guerreiros, protetores dos peregrinos cristãos e da própria cristandade na Terra Santa. O

abade, amigo do fundador e primeiro grão-mestre templário, Hugo de Payens, escreveu

uma apologia à cavalaria cristã em seu Elogio da Nova Cavalaria, onde apontou a

necessidade da existência de uma milícia (ou cavalaria) cristã, que defendesse os lugares

santos da cristandade e os peregrinos de ataques de muçulmanos em sua viagem religiosa.

Escreveu também, com a ajuda de Hugo de Payens, a Regra Primitiva dos Templários,

também conhecida como Regra Latina, que foi a primeira regra de uma ordem de militar,

vindo inspirar as regras das ordens que sucederam. Tornou-se uma ordem militar de muita

importância na defesa da cristandade na Terra Santa, sendo protetora ativa e constante dos

Estados cristãos do Levante até a queda final de Acre, em 1291, e sua dissolução, em 1312,

em um conflito que envolveu o papa Clemente V e Filipe IV, quando a ordem foi acusada de

heresia em um julgamento um tanto controverso (DEMURGER, p. 190-194), e suprimida

“por provisão”, tendo muitos de seus líderes sido queimados na fogueira.

A ordem, como se poderia supor, recebia recrutas vindos especialmente das

pequenas famílias nobres europeias, já ordenados cavaleiros, que eram treinados nas

preceptorias e enviados para a Terra Santa. Formou, ao lado das outras ordens militares

(como os hospitalários e os teutônicos), um exército permanente na região, diferente dos

cruzados europeus, que chegavam, cumpriam seus votos e regressavam, raramente

permanecendo por mais tempo em um dos Estados Cruzados da região do Levante,

tornando-se peça chave na defesa da Terra Santa.

Apresentação e projeto de pesquisa

O foco da apresentação foi, como dito anteriormente, esboçar a proposta de

pesquisa para o doutoramento, cujo objetivo central é estudar os primeiros anos de

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existência da Ordem Templária, desde sua formação nas primeiras décadas do século XII

até o fim do século, quando a ordem já se encontrava muito bem estabelecida, tanto na

Terra Santa quanto, por meio de suas preceptorias e terras recebidas em doações, na

Europa Continental. Dentro desse recorte temporal, o projeto objetiva tentar compreender, a

partir das representações de sua época, a constituição das visões de mundo templárias.

Como fontes primárias, pretende-se utilizar, em primeiro lugar, a Regra Primitiva dos

Templários, também conhecida como Regra Latina, escrita para ordem pelo monge

Bernardo de Claraval e pelo primeiro mestre da ordem, Hugo de Payens, bem como o

Elogio da Nova Cavalaria, também escrito pelo abade. Em segundo lugar, outras fontes da

época, como as presentes nos livros Letters from the East (BARBER; BATE, 2013), em The

Templars: Selected Sources (BARBER; BATE, 2002) e também no Cartulaire général de

l’ordre du Temple (D’ALBON, 1913), cujos textos poderão oferecer uma visão mais

abrangente e detida dos momentos que sucederam a formação da Ordem Templária. A

partir dessas fontes, o objetivo do projeto, originalmente, era buscar uma compreensão mais

profunda das representações que os cavaleiros faziam de si mesmos e, com essa

compreensão, entender como se constituíam as visões de mundo dos templários e, assim,

entender como se relacionavam os elementos que compunham seu imaginário.

Apesar de o projeto ainda estar em fases iniciais, considerando que a pesquisa ainda

não foi efetivamente iniciada, a proposta já se encontra bastante adiantada, e pôde se

beneficiar das discussões promovidas no evento, possibilitando o amadurecimento da

proposta inicial da pesquisa. E, desse amadurecimento, algumas mudanças já foram

incorporadas ao projeto original.

Entre as principais mudanças, está a retração do recorte temporal, para permitir uma

análise mais profunda e detida da documentação. Apesar de uma documentação acessível,

não seria possível fazer uma análise tão detida dela dado o grande recorte temporal

proposto inicialmente. Para sanar essa questão, o recorte foi reduzido.

Do primeiro século, a pesquisa limitou seu recorte aos anos que se seguiram à

fundação e organização, tanto na Terra Santa quanto na Europa. Para isso, o período sob o

comando dos dois primeiros mestres da Ordem, Hugo de Payens (ca.1118-1136) e Robert

de Craon (1136-1146) foi escolhido, havendo a possibilidade de, dependendo dos

resultados da pesquisa, ser gradual e lentamente estendido para os anos seguintes. Foi

escolhido esse recorte pela atuação e esforço dos dois primeiros mestres da Ordem em

estabelecê-la e organizá-la, bem como pela novidade que a noção de uma ordem de

monges-cavaleiros causou até sua assimilação no Ocidente.

Reduzindo o recorte, reduz-se a documentação a ser analisada, permitindo uma

análise mais profunda, focada no estabelecimento e organização da Ordem. No final do

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período em que Robert de Craon comandou a Ordem, ela já se encontrava bastante

estabelecida, motivando a pesquisa a se concentrar na documentação desses anos.

Outros acréscimos e alterações menores (referenciais teóricos e metodológicos, por

exemplo) foram possíveis a partir das discussões realizadas no evento, que proporcionaram

um bom amadurecimento para o projeto original. E isso permitirá uma reestruturação

sistemática do projeto de pesquisa e, dessa forma, efetivamente finalizá-lo.

Referências bibliográficas

BARBER, Malcolm; BATE, Keith. Letters from the East (Crusade Texts in Translation). Ashgate, 2013 BARBER, Malcolm; BATE, Keith. The Templars: Selected Sources. Manchester: Manchester University Press; 1 edition, 2002 CLAIRVAUX, Bernard of. In Praise of the New Knighthood: A Treatise on the Knights Templar and the Holy Places of Jerusalem. Cistercian Publications, 2000. D’ALBON, Marquis. Cartulaire général de l’ordre du Temple: 1119-1150. Paris: Librairie Ancienne, Honoré Champion, Éditeur, 1913. DEMURGER, Alain. Os cavaleiros de Cristo: templários, teutônicos hospitalários e outras ordens militares na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p. 190-194. FRANCO JÚNIOR, Hilário. As Cruzadas: Guerra Santa Entre Ocidente e Oriente. São Paulo: Moderna, 1999, p. 26-29. PEDRERO-SÁNCHEZ, Maria Guadalupe. História da Idade Média: Textos e testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000, p. 83. RUNCIMAN, Steven. História das Cruzadas. Volume II: O Reino de Jerusalém e o Oriente Franco, 1100-1187. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2002. SEWARD, Desmond. The Monks of War: The Military Religious Orders. Londres: Penguin Books, 1995 (1972). UPTON-WARD, Judith. The Rule of the Templars. Woodbridge: The Boydell Press, 1992.

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Uma análise semiótica do poema Teogonia, de Hesíodo, por meio das propostas de Todorov e Barthes

A semiotic analysis of the poem Theogony of Hesiod through Todorov and Barthes'

proposals

Abner Alexandre Nogueira93

Resumo: As teorias semiológicas de Roland Barthes e Tzvetan Todorov foram usadas como meio de análise do poema Teogonia. Para Barthes, o mito é uma fala, um sistema de comunicação, significativo. Significação que recorre à semiologia. Desse modo, buscamos a significação do mito grego nesse poema, através da historicidade dos termos nos significados denotativo e conotativo, dentro da narração mitológica inserida em um sistema de pensamento grego antigo. Todorov no livro A Conquista da América analisa dois sujeitos, Cortéz e Montezuma, e, por meio do comportamento semiótico desses, descreve a conquista do Império Asteca pelos espanhóis. Por analogia do uso semiótico em análise desse momento histórico, buscam-se os significados na obra Teogonia para compreender o sistema mitológico grego, que não é fixo ou imutável, mas flexível e em constante mudança.

93

Licenciado em História pela UNESP-Assis, aluno-especial no mestrado da Pós-Graduação pela mesma. Membro do NEAM (Núcleo de Estudos Antigos e Medievais) desde 2010. Contato: [email protected].

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Palavras-chave: Grécia Clássica; Mitologia grega; Hesíodo; Semiótica; Roland Barthes; Tzvetan Todorov. Abstract: The semiological theories of Roland Barthes and Tzvetan Todorov were used as a way of analysis of the poem Theogony. For Barthes, myth is a speech, a system of communication, meaningful. Meaning that refers to semiology. In this way we seek the meaning of Greek myth in this poem, through its historicity of terms in denotative and connotative meanings, within the mythological narration inserted in an ancient Greek thought system. Todorov in the book The Conquest of America analyzes two subjects, Cortéz and Montezuma and, through their semiotic behavior, describes the conquest of the Aztec empire by the Spanish. By analogy of the semiotic use in analysis of this historical moment, the meanings in the work Theogony are sought to understand the Greek mythological system, where it is not fixed or immutable, but flexible and in constant change. Keywords: Classical Greece; Greek mythology; Hesiod; Semiotcs; Roland Barthes; Tzvetan Todorov.

Considerações acerca do mito

Os mitos, desde os filósofos pré-socráticos, a partir do século VI a.C., vêm

recebendo a significação de história falsa, mentirosa, ou com o evemerismo, século IV a.C.

que desmitifica os mitos ao buscar, nas personagens humanas ancestrais divinizados. Tal

tradição perdurou durante séculos, e a verdadeira acepção de mito ficou oculta. Do grego

mythos, literalmente, “palavra” ou “o que se diz”, derivada de dois verbos, mytheyo (contar

ou narrar para alguém) e mytheo (conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Portanto,

Mircea Eliade define-o como verdadeiro e de caráter sagrado, e é mais do que uma história

de tempos longínquos, mas inaugura algo e, por isso, nomeia, designa a origem (seja do

mundo, mitos cosmogônicos, das instituições como Zeus representando o líder da Polis).

Para tanto, Eliade concebe o conceito de Hierofania (manifestação do sagrado), por

meio desse, o Illudi Tempus, o tempo primordial, saturado de sagrado, da presença divina,

que irrompe o quotidiano e o profano, colocando-o em contato com o sacro.

O passado assim revelado [pelas musas] é mais que o antecedente do presente: é a sua fonte. Ao remontar a ele, a rememoração procura não situar os eventos num quadro temporal, mas atingir as profundezas do ser, descobrir o original. (VERNANT, 1959, p. 7 apud ELIADE, 1972, p. 120)

O que torna a mitologia o próprio passado dos gregos, sua memória que, ao narrar

os mitos, revive o sagrado, e por ela se têm as ideias de verdadeiro, realidade e

significação, tornando o passado (mítico), presente, por meio da repetição ou rememoração

para enfrentar os desafios. Logo, além de ser uma narrativa verdadeira que liga a memória

coletiva e ancestral ao presente, esta, ao se ligar a um novo tempo, sofre alterações para

entrar em conformidade, ou seja, o mito é vivo e dinâmico, se alterando no tempo e no

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espaço, sofrendo e gerando influências de outros (seja internamente, entre os gregos, ou de

outros povos).

No mundo de um homem religioso, como o grego94, há a necessidade da busca pelo

sagrado, a busca pela legitimação, em sentido religioso, das atitudes, das práticas

quotidianas. O que era possível pela presença dos poetas (ou Aedos) que, oralmente,

contavam os mitos, ou pela memória familiar, que reatualiza o mundo sagrado no mundo

profano (imago mundi – imagem do mundo, reflexo do sagrado, do cosmo95, existente no

sacro e refletido no profano). E por isso mesmo, a separação entre sagrado e profano é

inexistente aos gregos, eles vivenciavam essa mistura. Um exemplo análogo é o

pensamento do filósofo da Physis, Heráclito de Éfeso (sec. VI-V a.C.) “Tudo é um”, dizia ele

em um fragmento, a existência dos contrários se dão mutuamente, não existe Caos sem

Cosmo, nem Cosmo sem Caos, eles se interdependem e se autogeram. Por exemplo: um

homem é saudável por não estar doente.

Outro ponto a ser destacado é que a mitologia grega insere o indivíduo no coletivo,

uma vez que para os povos antigos em geral, a coletividade sobressaia ao sujeito:

As cerimônias tribais de nascimento, iniciação, casamento, funeral, instalação, etc., servem para traduzir as crises e ações da vida do indivíduo em formas clássicas e impessoais. Elas mostram o indivíduo a si mesmo. Como a guerreira, a noiva, a viúva, o sacerdote, o chefe, ao mesmo tempo, representam, diante dos demais membros da comunidade a velha lição dos arquetípicos. (CAMPBELL, 2007, p. 368-369)

Por meio dos estudiosos Everaldo Rocha, Mircea Eliade, Werner Jaeger, Moses

Finley e outros, Andrea Rossi irá adotar como um sistema linguístico, em que o mito é uma

fala, uma narrativa que se especifica em suas características. Adentrando na memória

social-individual e social-coletiva “já que é o indivíduo que faz o seu registro e a acumula e é

o coletivo que a recupera” (ROSSI, 2007, p. 38) e, como observado por Pierre Nora e

Maurice Halbwachs, toda memória é coletiva e suscetível de ser esquecida ou lembrada.

A história da Grécia Antiga se subdivide em quatro períodos principais:96 Período

Pré-Homérico, com predominância minoica (3000-1400 a.C.) e micênica (1600-1200 a.C.),

94

Observe que os gregos, como defendido por Jean-Pierre Vernant em suas diversas obras, não possuía uma religião (carência de um sistema de regras, de um livro sagrado e de uma casta religiosa – estes determinando as práticas religiosas) e sim uma religiosidade, isto é, as práticas religiosas, dadas principalmente pela tradição (memória coletiva, principalmente pelos mitos) ou por influências externas. 95

Cosmo para os gregos difere de Universo em seu sentido físico, mas significa o mundo organizado que se opõe ao Caos. O Universo é de tal maneira perfeito, harmônico que se insere na totalidade, o microcosmo da família se insere no cosmo-Polis, que por sua vez no cosmo-Magna Grécia e por fim no macrocosmo que é o Universo. 96

Tal periodicidade é extremamente questionada, principalmente na Nova Escola Cultural, por priorizar os acontecimentos políticos, econômicos, contudo, tendo-se uma perspectiva cultural, novas

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marcada pela invasão dórica que ocasiona a ruralização, perda da escrita e, nessa época,

se constituem as obras Homéricas, nomeando o Período Homérico. Ambos os períodos são

difíceis de serem estudados pela carência de fontes, sendo em sua maioria arqueológicas

(algumas línguas do período Pré-Homérico não foram decifradas até hoje). Focando-se os

Período Arcaico e Período Clássico, balizados pelos jogos Olímpicos (776 a.C.), dividindo-

se pela Batalha de Salamina (480 a.C.), com a vitória grega sobre os persas, comandados

por Xerxes, e marcado pelas disputas, posteriores, entre Atenas e Esparta, culminando em

uma “guerra-civil” que facilitaria a dominação macedônica em 338 a.C., inaugurando o

período Helenístico e, posteriormente, (146 a.C.) Romano.

Focando os períodos Arcaico e Clássico, Finley defende que, nesses períodos, a

mitologia torna-se mestre dos gregos, ditando a moral, conduta, virtudes, cultura, política e

questões de civilidade/barbárie. Sendo, portanto, veículo de informações encarregadas da

manutenção do status quo grego (na formação do cidadão grego e no imaginário da Polis).

Objetivando conhecer a sociedade grega, utiliza-se uma contra-análise das fontes,

oferecendo novas leituras possíveis, através dos exemplos dos estudos pós-coloniais,

feministas ou de gênero, que, utilizando as leituras dos dominantes, protagonizadas por

homens, sob o ideal de masculinidade. Dessa forma, por meio dos arquétipos inseridos nos

textos mitológicos, busca-se o coletivo, mas também as representações dos outros, das

minorias, dos sujeitos.

Barthes, a semiologia francesa

Roland Barthes, nasceu em Cherbourg, norte da França no departamento Mancha,

em 12/11/1915 e faleceu em Paris a 26/03/1980. Formado em Letras Clássicas em 1939 e

certificado em Gramática e Filosofia Clássicas em 1943, ambas pela Universidade de Paris,

tornou-se diretor de estudos da VI Sessão (1962) e catedrático de semiologia do Collège de

France entre 1977 e 1980. Suas principais obras são97: O Grau Zero da Escrita (1953),

Mitologias (1957, reeditado em 2010), O Prazer do Texto (1973), O Neutro (2002), Aventura

Semiológica (1985), além de diversas obras nas áreas de literatura e linguística, com ênfase

na semiologia.

divisões são necessárias. Utilizam-se os períodos tradicionalmente aceitos para fins elucidativos e didáticos. 97

Os anos das obras em parênteses equivalem ao original francês publicado.

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Muito se discutiu durante o século XX sobre as diferenças entre semiótica e

semiologia; se seriam duas ciências ou se uma se subordinaria a outra, entre outras.

Contudo,

Por sugestão de Roman Jakobson e com o apoio de Roland Barthes, Emile Benveniste, A. J. Greimas, Claude Lévi-Strauss e Thomas A. Sebeok, o comitê fundador da Associação Internacional de Estudos Semióticos, em 1969, decidiu que, a partir de então, o conceito semiótico seria empregado como conceito geral para definir esse campo, anteriormente designado como semiologia ou semiótica. (NÖTH, 2006, on-line)

Tais campos se separavam pelas linhas teóricas referências, enquanto a semiologia se

destacava pela linguística estruturalista de Ferdinand de Saussure, que influenciou,

principalmente os franceses. Já a semiótica remonta tradições clássicas, medievais,

modernas, desenvolvendo-se nos Estados Unidos, com Charles Sanders Peirce ou na

Escola Russa. Contudo, ambas designam o estudo dos signos, sendo, portanto, uma

mesma ciência com referenciais teóricos distintos.

Barthes no livro Mitologias (2009) define o mito como algo muito mais complexo e

vivo do que uma história verdadeira que visava explicar os costumes de determinado povo;

“o mito é uma linguagem” e mais que isso, é um sistema de comunicação e, para tanto,

possui uma significação, uma forma, um sistema de funcionamento para que ocorra a

transmissão ao receptor, que recebe e significa.

Ou seja, compreender os mitos é postular significações, o que, na visão do autor, é

recorrer à semiologia, a ciência que estuda o signo e, simultaneamente faz parte da História

enquanto ideológica. Nessa temática, Mikhail Bakhtin, com o conceito de polifonia, defende

que os discursos possuem diversas vozes, além da dominante (que caracterizaria uma

monologia). Através da compreensão das diversas vozes, pode-se atingir grupos sociais e

culturais, fora do representado, de maneira dominante. Bakhtin defende o estudo das

ideologias a partir das vozes diversas presentes no discurso a fim de, pelo contexto,

compreender os grupos que representa cada uma dessas vozes.

De uma maneira contraditória, mas dialética, ou seja, interdependente, “O sentido [do

mito] já está completo, postula um saber, um passado, uma memória, uma ordem

comparativa de fatos, de ideais, de decisões” (BARTHES, 2009, p. 208), contudo, “[...] pode-

se dizer que a característica fundamental do conceito mítico é a de ser apropriado [...]”.

Adentrando no mito enquanto vivo e dinâmico, ele possui uma significação que remete ao

passado, à memória, mas é apropriado por diversos grupos em diversas localidades e

tempos, por exemplo, o significado mítico dos conceitos ateniense ou tebano, ou ainda

clássico e helenístico.

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Sendo sistemas de símbolos que são transmitidos através da memória coletiva e

inseridos em nossa sociedade, eles são fundadores ou, ao menos, sustentadores, de

tradições e comportamentos ancestrais e, assim, são sistemas que distorcem a percepção

da realidade, para justificar certos comportamentos, costumes, padrões etc.

Isso posto, o sistema mítico é um sistema duplo “[...] que alterna o sentido do

significante [conceito] e a sua forma, uma linguagem-objeto e uma metalinguagem, uma

consciência puramente significante e uma consciência puramente representativa”, de forma

que ambas as análises são necessárias para um estudo total, não em sentido pleno, real ou

verdadeiro, mas próximo do contexto histórico, no caso, grego, que abarca a sociedade

integralmente. Apesar da ênfase cultural e religiosa, não há como se distanciar da

economia, política etc. O mito possui compromisso de transmitir um conceito, intencional de

modo simbólico, que é recebido como verdadeiro, e não necessariamente real.98

Através da diacronia, do estudo de mitologia comparada, pode-se compreender

melhor formas de analisar uma mitologia em sua singularidade que são sincrônicas aos

mitos diversos daquela sociedade (Barthes exemplifica com o mito da burguesia, o mito do

imperialismo, o mito do nacionalismo, que estão interligados).

Correlativamente à disputa entre o objetivismo da história e o subjetivismo, Barthes

se insere em uma perspectiva subjetivista. Adam Schaff defende que os positivistas

acreditavam na possibilidade de alcançar a Verdade Histórica, em um extremo objetivista: a

ciência positiva guiará a busca da história para a verdade inelutável. Tese contrária aos

subjetivistas, para quem, utilizando o conceito de historicidade, cada objeto, cada sujeito

histórico possui seu contexto próprio e, portanto, único, subjetivo. Ao mesmo tempo, o

próprio historiador está inserido no seu tempo e, somado com suas escolhas teórico-

metodológicas, construirá determinada história. Tal concepção acarretará o extremo: a

impossibilidade de se atingir a verdade, já que cada historiador irá delinear sua própria

história. Assim, Roland Barthes defende que o mitólogo “ou [irá] estabelecer a existência de

um real inteiramente permeável à história, e ‘ideologizar’; ou, pelo contrário, [irá] estabelecer

a existência de um real finalmente impenetrável, irredutível, e, nesse caso, poetizar”

(BARTHES, 2009, p. 251). Ou, pelo subjetivismo, tece-se a mitologia com as agulhas

ideológicas (por escolhas conscientes, teóricas, ou inconscientes que circundam a todos),

de modo que difere da mitologia “pura, verdadeira”, ou, pela liberdade poética, seleciona-se

uma verdade solidamente acabada, objetivando-a, ignorando a dinamicidade e vivacidade

dos mitos.

98

Barthes, na primeira parte do livro citado, irá descrever diversos mitos da França de sua época (década de 1950), contudo, utilizar a teoria semiológica de Barthes não é um anacronismo, pois se faz um estudo comparativo do sistema comunicativo, mitológico, com as devidas modificações contextuais.

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Dessa bifurcação sem saída, propõe-se uma síntese: sim, há a subjetividade, tanto

do historiador quanto do seu objeto do estudo (ou do semiólogo e da mitologia); todavia, há

também a objetividade científica que, apesar de não atingir a Verdade, o que de fato

aconteceu, pode buscar as tendências que não são A Verdade, mas uma de tantas

verdades possíveis e existentes (HOBSBAWM, 1998).

Todorov, semiótica histórica

Tzvetan Todorov nasceu em Sófia em março de 1939 e falecido recentemente em

07/02/2017. Filósofo, historiador, semiótico e crítico literário, foi aluno dos cursos de

Filosofia da Linguagem de Roland Barthes e diretor do Centre de Recherces sur les arts et

le langage do CNRS – Centre national de la recherce scientifique. Marcado pelas traduções

dos formalistas russos (1965), contribui para a poesia e literatura contemporânea com

diversas obras e estudos históricos, A Conquista da América (1982) e diversos trabalhos de

antropólogos, sociólogos e artistas diversos.

Em A Conquista da América, Todorov a partir do conceito de alteridade (eu

interdependente do outro). A parte analisada nesta pesquisa é II – Conquistar (p. 51-120),

que, em síntese, busca, através da relação dos astecas com os signos (naturais, sociais e

culturais pelo choque entre as culturas), como Cortéz possibilita a conquista por uma

relação diferenciada.

Todorov inicia a discussão com o postulado da diferença, que leva facilmente à

superioridade, e o postulado da igualdade, culminando na indiferença. Desse modo,

devemos transitar entre esses dois postulados, evitando cair em suas consequências, nesse

caso, os gregos antigos e a sociedade contemporânea ocidental são diferentes e, ao mesmo

tempo iguais. Diferentes, pois ambas possuem sua historicidade, seus lugares geográficos

(reais e imaginários) distintos e, principalmente, uma mentalidade, sociocultural própria, que

Torrano irá chamar de arcaica, não em sentido pejorativo ou de inferioridade, mas no

sentido de antiga, ou anterior a própria Antiguidade. Tal mentalidade encara sua realidade

de formas completamente diversas das que a mentalidade atual encara. Assim,

simplesmente diferente e não melhor ou pior, superior ou inferior, com suas

permanências/continuidades e seus rompimentos/oposições, somando ainda, apropriações

e releituras que transformam o passado em perspectiva do presente para cada sociedade

posterior.

Busca-se compreender as relações presentes em cada época, como cada momento

histórico único, e como cada sociedade compreende as relações entre si e com os outros;

e, com seu passado-presente-futuro, mas, como alertado por Prost, procurando avaliar

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quanto se aproxima ou se distancia de um quadro ideal que representa um sistema

conceitual, buscando, na nossa concepção, qual é o sistema interpretativo daquele

momento estudado, não em um sistema conceitual fechado, já que, como Prost irá nos

alertar, os conceitos são generalizações excessivas para facilitar a compreensão, ele traça

um quadro ideal que na prática não existe, cabendo aos historiadores avaliar quão próximo

e distante está desse quadro.

Uma das características distintas é o caráter da coletividade. O indivíduo não é

completo em si, como quer nossa sociedade, para o grego antigo, o indivíduo faz parte de

outra realidade, o coletivo. E qual coletivo? Podem-se distinguir dois momentos principais

entre os gregos, o grego cidadão da Pólis onde a importância reside em ser ateniense ou

espartano ou de Tebas, antes de uma coletividade nacional, que inexistia, o pertencimento

se dava pela cidade em que se nascia e vivia. Porém, há um sentimento coletivo que integra

essas diversas Polis, o ateniense e o espartano falam a mesma língua, possuem os

mesmos deuses (apesar de cada região cultuar um deus com diferentes sub-títulos e às

vezes qualidades distintas), e, assim, há um sentimento de superioridade em relação ao

outro, que é visto como bárbaro. Said irá demonstrar a importância do outro na constituição

da sua própria imagem, o outro é tão necessário quanto a si mesmo para se autoafirmar, e

vemos esse processo de se colocar superior, detentor da civilidade, e o outro como

estranho, desde o princípio bárbaro-grego até o europeu e o oriental ou o senhor branco e o

negro escravo.

A sociedade asteca vê o mundo e todas as coisas com caráter simbólico distinto do

nosso. Enquanto os astecas se prezam muito pelo passado, através da memória, assim

como foi para os gregos que, na época arcaica por meio dos poetas ou aedos, cantavam,

sustentados pelas Musas, por Zeus e pela Memória, os detentores da memória do povo

grego e transmitem-na de acordo as divindades, que dá caráter de verdade sagrada.

Em suma, Todorov pondera acerca das questões de como os astecas encaravam os

símbolos, em processo semiótico de significante, significado, significação. E, através dessa

relação, permite analisar historicamente a derrota frente os espanhóis, liderados por Cortéz

que inova ao compreender a perspectiva simbólica asteca, conforme adentrava em território

desconhecido, com a ajuda de intérpretes (Maliche e outros indígenas de suma

importância), e propagar significações já presentes e dominar tanto os signos para os

astecas quanto os signos para os espanhóis de modo a ficarem favoráveis a ele.

Alguns trechos da Teogonia, postos às teorias semiológicas

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No trecho 36-115, narram-se as origens das Musas, que inspiram Hesíodo a contar a

história genealógica dos deuses. Destacando alguns pontos a serem desenvolvidos em

futuras análises, percebe-se o protagonismo de Zeus, uma vez que o poema em si busca

relacionar as origens cosmológicas e genealógicas divinas que culminam em Zeus, deus

dos deuses, e sua soberania. Qual a importância do soberano para os gregos, conceito que

difere do nosso, e quais as relações entre o líder tirânico, eleito ou hereditário?

Ao longo de todo o poema, temos diversos epítetos, por exemplo, para Zeus:

Cronida, Olímpio, pai, tonítruo etc. Tais títulos diversos lembram de forma análoga os da

Virgem Maria para os católicos, muitos derivados das localidades em que apareceu

(Lourdes, Fátima), pelos milagres por que intercedeu (da Rosa Mística, das Graças, do

Rosário) ou ainda por momentos marcantes: Desterro, Candeias, Virgem. Diante de tal

semelhança, respeitando as diversidades temporais, locais, religiosas etc. pode-se entender

que os títulos atribuídos a Zeus e às outras divindades tinham a questão de serem. Analisá-

las pode fornecer pistas da diversidade mitológica de uma mesma figura que, quando

reunida em um sistema mítico, parece contraditória, porém, compreendendo a dinamicidade

mítica (local e temporal), logo não há contradição, mas diversas narrativas que juntas

formam o imaginário dos gregos.

Referências bibliográficas BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. Rita Buongermino, Pedro de Souza, Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. CAMPBELL, Joseph. O herói de Mil Faces. Trad. Adail Ubirajara Sobral. São Paulo: Pensamento, 2007. ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Trad. Pola Civelli. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. NÖTH, Winfried. Semiótica e Semiologia: os conceitos e as tradições. Com Ciência: Revista Eletrônica de Jornalismo Científico. 2006. (on-line) Disponível em <http://www.comciencia.br/comciencia//handler.php?section=8&edicao=11&id=82&tipo=1>. Acessado em 20/02/2017. SCHAFF, Adam. História e verdade. Trad. Maria Paula Duarte. São Paulo: Martins Fontes, 1978. TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ROSSI, Andrea D. de O. C. Mitologia: abordagem metodológica para o Historiador da Antiguidade Clássica. História, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 36-52, 2007. Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/his/v26n1/a04v26n1.pdf>. Acesso em 02/12/2016.

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Santidade e Imaginário na Vita Sancti Gregori Papae

Holiness and Imaginary in Vita Sancti Gregorii Papae

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Bruno do Prado Pascoal99 Resumo: Este trabalho, tendo por base à hagiografia The Earliest Life of Gregory the Great by a Monk or nun at Whitby, A.D. 713 como fonte principal, propõe um estudo para melhor compreender o imaginário ligado à fé, religiosidade e tradições que permeiam a sociedade onde viveu Gregório Magno. Aclamado para se tornar papa e, depois de sua morte, aclamado novamente para se tornar santo, a vida de Gregório Magno é objeto de estudo de muitos historiadores e teólogos, graças a uma quantidade considerável de fontes, incluindo suas próprias homilias e livros. Nosso recorte se dará a partir do imaginário. Com isso, busca-se explorar os aspectos da santidade de Gregório Magno. Contudo, a escolha de se utilizar hagiografia em vez de outro tipo de fonte histórica, como exemplo, uma biografia, é de encontrar o reflexo do imaginário da época. O imaginário poderá nos demonstrar diversos aspectos culturais categoricamente, pois está intimamente ligado à vida cotidiana, que, no caso da fonte utilizada, é permeada por fé, valores, crenças, religiosidade. Ressalta-se que o objetivo deste trabalho não é desvendar somente o individuo singular, sua vida de forma unilateral, mas também proporcionar interpretações do coletivo, de emoções, de hábitos e costumes que encarnam não só na pessoa da Vita, mas primordialmente no hagiógrafo e naquela sociedade que é o objeto de nosso estudo. Palavras-chave: Imaginário; Hagiografia; Cotidiano; Santidade; Gregório Magno. Abstract: This essay, based on the hagiography The Earliest Life of Gregory the Great by Monk or nun at Whitby, A.D. 713 as the main source, propose a study for a better understanding the imaginary linked to faith, religiousness and traditions that permeate the society where Gregory the Great lived. Gregory the Great was acclaimed to become Pope, and after his death, acclaimed again to become a saint, his life is the object of study of many historians and theologians, because of the considerable amount of sources, including his own homilies and books. Our focus will be on the imaginary. We seek to explore the aspects of the holiness of Gregory the Great. However, the choice of using hagiography instead of another type of historical source like biography is to find the reflection of the imaginary of that time. The imaginary can show us, categorically, various cultural aspects because it is deeply connected to daily life, which in the case of the source used is permeated by faith, values, beliefs, religiousness. It is emphasized that the purpose of this essay is not only to unveil a singular man, only his life, but also to provide interpretations of the collective, of emotions, habits and customs that embody not only the person from the Vita but, primarily, the hagiographer and the society that is the object of our study. Keywords: Imaginary; Hagiography; Daily life; Holiness; Gregory the Great.

Introdução

O estudo da vida de um santo, utilizando-se de hagiografias como fonte histórica, é

um método muito perspicaz, pois, segundo Certeau (1982, p. 242), o estilo hagiográfico está

na extremidade da historiografia, onde privilegia os agentes do sagrado (santos) como

também sua representação como modelo de exemplaridade cristã, uma referência a ser

seguida. E, graças ao prisma do imaginário, nos proporcionará uma visão privilegiada de

mundo, uma vez que irá nos oferecer um produto com rica interpretação de símbolos,

crenças e fé da sociedade (AMARAL, 2013, p. 35). Le Goff (1994, p. 16) nos provoca

dizendo que o imaginário alimenta o homem e fá-lo agir. 99 É graduando de Licenciatura em História pela UNESP – Universidade Estadual Paulista na Faculdade de Ciências e Letras de Assis. E-mail: [email protected]

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Cabe trazer à tona para este estudo que não se deve tentar buscar uma “realidade

tangível” quando estudamos hagiografias pelo imaginário, ou seja, não se deve selecionar

fatos correlatos advindos de estruturas materiais, pois assim a santidade só seria alcançada

de forma histórica se estivessem ligadas com estas estruturas (AMARAL, 2013, p. 44).

Para elucidar esta discussão ressalvo que é através do imaginário que

conseguiremos de forma mais precisa e clara compreender os sentimentos, os credos, as

necessidades, que se apresentam de diferentes formas, de maneira abundante, nos

personagens hagiográficos e seus semelhantes. Assim, esta posição nos permite enxergar e

conceber o santo e aqueles que o creem, de modo que suas existências transbordem

tradição e religiosidade, os fundamentando como personagens históricos (AMARAL, 2013,

p. 45).

A Vita escolhida para análise e estudo foi escrita por um monge desconhecido na

Abadia Anglo-Saxã beneditina de Whitby que detém o nome de The Earliest Life of Gregory

the Great by a Monk or nun at Whitby, A.D. 713. Onde seu manuscrito original pode ser

acessado on-line em alta definição100. Contudo, neste trabalho será utilizada uma tradução

feita diretamente do manuscrito original pela professora emérita de História Medieval da

universidade do Colorado, Julia Bolton Holloway, que também se encontra disponível on-

line101.

Santidade e Imaginário na Vita Sancti Gregorii Papae

A escolha por se usar a hagiografia de Whitby foi devido alguns fatores, que são

eles: Gregório Magno ter construído com seu próprio dinheiro seis mosteiros na Sicília e de

ter se retirado para um sétimo (LE GOFF, 2010, p. 35); ter sido o primeiro monge eleito

como papa; a influência de Gregório Magno na cristianização dos Anglo-Saxões; sua obra

Diálogos102, ao todo quatro livros, sendo o segundo dedicado a São Bento.

Ademais, é importante citar sua obstinação na cristianização do maior número de

povos possíveis para enfrentar o juízo final, pois Gregório temia um fim do mundo próximo,

assim necessitava organizar uma luta material e espiritual contra o flagelo que há de vir (LE

GOFF, 2010, p. 35).

Sem dúvidas, Gregório Magno é um personagem grandioso para a história da Igreja,

pois suas múltiplas obras somadas às suas ações como papa influenciaram em larga escala

muitos aspectos daquela sociedade onde viveu. Com isso, há de se notar sua importância

100 Disponível em: http://www.e-codices.unifr.ch/en/csg/0567/1/0/Sequence-595

101 Disponível em: http://www.umilta.net/gregory.html 102 Em sua obra Diálogos, Gregório Magno descreve milagres, curas, intervenções de homens santos.

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direta na ordem monástica e posteriormente na elaboração de sua hagiografia por um

monge beneditino, graças a sua vida ser ligada à ordem monástica beneditina.

É pertinente propor um entendimento a respeito da elaboração desta Vita, mais

precisamente sobre o hagiógrafo, que pelo que se sabe é um monge beneditino

desconhecido. A obra reflete a visão e a influência que o hagiógrafo recebe do hagiografado

e o seu mundo, assim como a influência de seu próprio tempo. Novamente, não buscamos

aqui uma dita “imparcialidade factual” ou o “imaginário” como propõe Baczko:

O imaginário social é cada vez menos considerado como uma espécie de

ornamento de uma vida material considerada como a única ‘real’. Em

contrapartida, as ciências humanas tendem cada vez mais a considerar que

os sistemas de imaginários sociais só são ‘irreais’ quando, precisamente,

colocados entre aspas. (BACZKO, 1985, p. 298)

Pelo contrário, buscamos exatamente estas influências diretas no processo de

criação, pois são produtos diretos da criatividade e do maravilhoso, ou seja, do imaginário,

que proporcionarão o entendimento dos aspectos de santidade que desejamos encontrar e

interpretar. Assim:

Por se tratar de uma hagiografia, interessaria menos o homem que o santo, e menos o santo que a santidade, obedecendo esta última, não obstante, as aspirações e os imperativos de seu autor, ou seus autores, e as necessárias adequações deste modelo de santidade, sempre tomadas de exemplos anteriores, com o meio mais imediato que o justificaria e o requereria. (AMARAL, 2013, p. 35)

Para Gajano, devemos entender um dos aspectos da santidade como fenômeno

multifacetado de relação híbrida entra o real e o sobrenatural: quando fenômeno espiritual,

ela é à busca do divino; quando fenômeno teológico, ela é a manifestação de Deus no

mundo; quando fenômeno social, ela é um fator de coesão e identificação de grupos

(GAJANO, 2002, p. 445).

Já pela perspectiva antropológica, temos a santidade como um prisma privilegiado

na observação para melhor compreender percepções individuais ou coletivas acerca da

fronteira entre o natural e o sobrenatural que se trespassam constantemente.

Gajano (2002, p. 449) afirma que construção da santidade cristã se dá pela

percepção e pelo reconhecimento do caráter excepcional de um homem ou uma mulher,

podemos dizer que ela é construída pelas escolhas que estes homens e mulheres fazem em

vida, como práticas de certas virtudes, inspirando um modelo de vida e um ideal cristão.

Percebemos o processo de construção dos aspectos de santidade do Papa Gregório

I devido aos seus grandes feitos realizados, também é pertinente citar sua comoção e

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devoção para com os pobres. Tomemos por nota um dos feitos de Gregório narrado pelo

monge, andando por um mercado de Roma antes de se tornar Papa, Gregório Magno se

impressiona com escravos loiros a venda e se dirige para o vendedor:

Portanto, para contar a verdade, isso aconteceu antes de seu pontificado, quando alguns homens de cabelo loiro de nossa nação vieram para Roma. Aqueles que ele ouviu dizer que tinham vindo, agora os viu e se deleitou em vê-los. Perguntou: de que país são esses jovens. Quando eles responderam: “Nós somos aqueles que são chamados de Anglos”, então ele (Gregório) disse, “Vocês são anjos de Deus”. E então disse: “Qual é o nome do rei dessas pessoas?”. E eles disseram: Aelle, e ele disse: "Aleluia, porque Deus deve agora ser louvado. “Qual é o nome da tribo a que você pertence?” E eles disseram: Deira. E ele disse: "Eles fugirão da irá de Deus (De ira) para a fé”. (HOLLOWAY, 2016)

Gregório queria por ele mesmo ir em missão evangelizadora dos Anglo-Saxões, mas

foi impedido por uma revolta popular em Roma, mais tarde quando se tornou Papa, enviou o

monge Agostinho em seu lugar para a cristianização daqueles povos.

Podemos dizer que uma das qualidades da santidade é a benevolência, esta que

Gregório demonstra ao se sentir profundamente tocado pela situação de não serem

evangelizados os homens loiros Anglo-Saxões e também de serem escravos. Deseja

imediatamente que este povo receba a palavra de Deus para serem salvos e livrados de

todo o mal que existe em uma vida que não seja a em cristo. É notável o jogo de linguagem

utilizado neste trecho da Vita, relacionando Anglos a Anjos e Aelle (nome do rei) com

Aleluia103.

Assim, a missão evangelizadora daquela ilha vem à tona, o monge Agostinho prega

ao rei pagão e a sua mulher cristã. Vejamos as palavras do monge hagiógrafo: “Através

disto, o primeiro rei de todos os Anglos, o rei Ethelbert de Kent, foi levado à fé cristã e foi

batizado com toda a sua nação”. (HOLLOWAY, 2016)

Outro aspecto intrigante para o estudo da santidade e imaginário é a realização de

milagres por parte de um santo. O milagre caracteriza-se por uma manifestação divina

direta, uma incursão sagrada em meio à vida profana (ELIADE, 1992, p. 12). Um dos

mistérios mais profundos e significativos para os católicos é o processo de

transubstanciação, quando o pão e o vinho, na hora da comunhão, se transformam

respectivamente no corpo e no sangue de Cristo, a Eucaristia representa grande simbologia

e importância para o imaginário cristão.

Invocamos mais uma vez a voz de nosso monge hagiógrafo que elucida o rito de

comunhão, quando nos primeiros anos da Igreja Medieval aqueles que comungam levavam

seu próprio pão:

103 Angels and Angles, Aelle and Alleluia.

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E quando ela veio para comungar diretamente da mão do homem de Deus,

ouvi-lo dizer, "O Corpo de nosso Senhor Jesus preserva sua alma". Ela

Sorriu. O qual, o homem do senhor vendo isto colocou a mão sobre sua

boca não desejando lhe dar o santo corpo do Senhor. Colocou-o sobre o

altar... Terminada a Missa, chamando-a, perguntou-lhe por que tinha sorrido

quando devia ter comungado. Ela responde dizendo: Esse mesmo pão que

fiz com minhas próprias mãos, e você disse que era o corpo do Senhor. A

fim de desfazer sua incredulidade, ele orou e mostrou-lhe o pão que ele

colocara sobre o altar, que estava sangrando, citando a João 6.54 e 57, e,

depois que toda a congregação orou por sua fé, ele deu a comunhão para a

mulher. (HOLLOWAY, 2016)

Aqui fica nítido a intercessão de Gregório para a comunhão da mulher,

transformando literalmente o pão no corpo de Cristo. O caráter maravilhoso da narrativa

contém exemplos claros para identificarmos nosso objeto de estudo.

Assim, a identidade do santo vai se construindo conforme a narrativa hagiográfica

avança, de modo que fica cada vez mais evidente o impacto do imaginário na construção

literária. O hagiógrafo narra os feitos do santo, sejam eles coletivos e/ou individuais, de

modo que busca escrever a sua verdade, aquilo em que acredita veementemente,

atentando aos aspectos sobrenaturais ligados à fé, e religiosidade e ao seu modelo ideal de

santidade.

Outra demonstração da santidade na Vita é a passagem que trata de um imperador

de Roma chamado Trajano. Sabe-se que Trajano promulgou um decreto que praticamente

cessava a perseguição aos cristãos no Império Romano, contanto que estes não fossem

descobertos. Dessa maneira, o monge hagiógrafo descreve o resgate da alma de Trajano

do inferno:

E aqui narremos um pouco das lágrimas de São Gregório romano restaurando a alma do imperador Trajano e batizando-a, o que é maravilhoso de dizer e ouvir... Agora um dia quando ele estava passando pelo Fórum de Trajano... Pensou no trabalho de misericórdia que o pagão realizara, o que lhe parecia mais cristão do que pagão. Pois, enquanto guiava o seu exército para lutar contra o inimigo, era amolecido pela voz de uma viúva implorando misericórdia, detendo o imperador do mundo inteiro. Pois ela disse: "Senhor Trajano, aqui estão os homens que mataram meu filho, que não me fará justiça". Ele respondeu: 'Quando eu voltar, fale comigo, e eu lhe farei justiça'. E ela, 'Senhor, e se você não voltar, não há ninguém para me ajudar'. Então ele concordou com o juízo, e do meio da armadura de bronze reuniu o dinheiro que era devido. Assim, concluiu São Gregório, aquele que não conhecia a passagem, julgou o órfão e defendeu a viúva e veio a raciocinar juntos, disse o Senhor (Isaías 1,16-17), o tinha feito. E chorando, ele entrou em São Pedro… (HOLLOWAY, 2016)

Esta passagem merece uma atenção especial devido ao caráter maravilhoso da

narrativa. Aqui, percebemos toda a bondade e benevolência de Gregório Magno para com o

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pagão Trajano, retirando-lhe toda a dor de estar no abismo eterno, o batiza e salva-lhe a

alma, enviando-a para o paraíso.

O hagiógrafo, que assim como Gregório também é um monge, conduz sua narrativa

de uma forma a elucidar não só os feitos maravilhosos, como milagres e atos de bondade

fundamentais para a concepção de um santo, mas também procura demonstrar todo um

modelo de vida a ser seguido. Tanto o hagiógrafo como aquela sociedade onde viveu nosso

santo veem neste modelo de santidade um exemplo de cristão ideal, uma luz de esperança

em um mundo negro e decaído, onde mesmo em meio de tanta dor e sofrimento há uma

possibilidade de salvação, já que agora com um ideal a ser seguido, os guiará para o

caminho do bem. Contudo, pode haver momentos que desviem deste caminho ideal, para

isso temos o nosso santo, que será o intercessor para chegar até Deus.

Quanto mais para a “vida” de santos que, por sua natureza mesma, narram a vida de

personalidades que já não são essencialmente homens, uma vez que transcenderam a

condição e as estruturas da existência secular, mais palpáveis e concretas; esses são agora

heróis da fé, homens espirituais, supra-humanos, são santos (BROWN apud AMARAL,

2013, p. 37).

Estes são os novos heróis da fé, que substituiriam os heróis da Antiguidade pagã,

correspondendo ao modelo de vida em Cristo. No início da cristianização, os primeiros

santos davam sua vida para o seu Deus, morriam por sua causa, os mártires. Entretanto,

com o progresso do cristianismo, os mártires são cada vez menos numerosos e os cristãos

mais notáveis são confessores (que é o caso de Gregório Magno), sendo estes cada vez

mais chamados de santos (LE GOFF, 2010, p. 41).

O paraíso aguarda estes novos santos assim que morrerem, mas em vida terrena

acabaram por tornando-se objeto de veneração e até de um culto salvador. Pela Ortodoxia,

só Deus faz milagres, e os santos são um caminho para chegar até Deus, contudo a crença

popular atribui os milagres aos santos. Esses milagres ocorrem em lugares específicos,

particularmente na sepultura dos santos (LE GOFF, 2010, p. 42). Assim, há peregrinação

para suas sepulturas, para obter graças, curas e milagres.

Conclusão

Nosso hagiografado, Gregório Magno, percorreu um longo caminho até se tornar

Santo (por aclamação popular). Foi um monge exemplar, realizando missões a pedido do

Papa Pelágio II, também foi prefeito de Roma, lidando com revoltas e epidemias da peste,

foi um ativo cuidador dos pobres e desfavorecidos. Foi eleito papa por aclamação,

recusando o título por não se achar capaz. Enfrentou os Lombardos em 592 agindo como

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chefe político. Contribuiu com a evangelização de diversos povos bárbaros. Escreveu

diversas obras, um número grande de homilias e livros onde se destaca a obra Líber regulae

Patoralis, onde Gregório contrasta o papel dos bispos como pastores de seus rebanhos com

a posição deles como nobres da igreja, e o livro Diálogos, ao todo quatro livros, sendo o

segundo dedicado a São Bento, os livros abordam milagres, sinais, maravilhas e curas

realizadas por homens santos (MUCENIECKS, 2013, p. 9). É venerado como santo por

católicos, ortodoxos, anglicanos e alguns luteranos. João Calvino declarou que ele era o

último bom papa. Também reformou os cantos litúrgicos, levando posteriormente o seu

nome “Canto Gregoriano”.

Enfim, a santidade de Gregório Magno foi edificada ao longo de sua vida, se

tornando um ideal para a vida cristã, tanto para nosso hagiógrafo, o monge desconhecido da

abadia de Whitby, quanto para a sociedade que o venera.

Vauchez (1989, p. 211) nos diz que esta representação de uma vida ideal e pura

deriva do conceito de perfeição cristã – mártir, virgens, confessores etc. –, a vida exemplar

destes santos e suas coletâneas de milagres, mas também remetem a figura de Cristo. Com

isso, não é de se espantar que todos se assemelhem a esse ideal tal como seus milagres

parecem ter sido tirados diretamente do evangelho.

Daí decorre toda a importância destes mortos ilustres (santos e santas) para a

maioria dos homens medievais (sobretudo antes do século XIII), cultuar o seu corpo morto é

uma maneira de estar perto de Cristo, ou então uma maneira intercessora de se chegar até

o seu salvador. Mesmo quando perseguidos por temíveis pagãos, ou mutilados por terríveis

carrascos, seus corpos mantêm uma integridade plena, prova de uma eleição divina

(VAUCHEZ, 1989, p. 211). O seu corpo e posteriormente o local de seu túmulo são o único

ponto de contato entre os santos e os fiéis que o veneravam, e isto apresenta relevância

para o desenvolvimento dos cultos e das lendas.

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Ensino e produção do conhecimento na universidade medieval: um estudo acerca do

método e da filosofia Escolástica presentes na questão do respeito em Tomás de Aquino

Teaching and knowledge production in the medieval university: a study about the

method and philosophy of Scholasticism present in the question of respect in Thomas Aquinas

Silvana Pereira São Cyrilo104

Terezinha Oliveira105 Resumo: Este artigo tem como propósito tecer considerações acerca da filosofia escolástica desenvolvida no interior do espaço citadino medieval no decorrer do século XIII, a partir de duas questões. A primeira trata do ressurgimento das cidades como espaço de produção e de conservação de saberes. Em um segundo momento, apresentaremos aspectos relevantes da Escolástica, principalmente o método de ensino escolástico desenvolvido nas universidades do século XIII, ressaltando a questão da Obediência (Questão 104-II-II) contida na obra de Tomás de Aquino (1224/25-1274), a Suma Teológica, uma vez que ela reflete, ao mesmo tempo, o método e a filosofia da Escolástica. Nossa análise ampara-se em alguns autores que se ocuparam dos estudos relativos às cidades medievais e ao surgimento das universidades na Idade Média, como Verger, Rüegg, Le Goff e Oliveira. Consideramos que a recuperação da origem e organização das instituições universitárias da Idade Média possibilita-nos refletir e compreender a importância e o papel das universidades contemporâneas, tendo em vista que elas se constituem em espaço de produção do conhecimento. Palavras-chave: Universidade Medieval; Escolástica; Tomás de Aquino; Obediência. Abstract: The purpose of this article is to make considerations about the scholastic philosophy developed in the interior of the medieval city space during the thirteenth century, based on two questions. The first deals with the resurgence of cities as a space for the production and conservation of knowledge. In a second moment, we will present relevant aspects of Scholasticism, especially the method of scholastic teaching developed in the universities of the thirteenth century, highlighting the question of Obedience (Question 104-II-II) contained in the work of Thomas Aquinas (1224 / 25-1274 ), The Summa Theologica, since it reflects at the same time the method and philosophy of Scholasticism. Our analysis is based on some authors who deal with the studies related to medieval cities and the emergence of universities in the Middle Ages, such as Verger, Rüegg, Le Goff and Oliveira. We believe that the recovery of the origin and organization of university institutions of the Middle Ages enables us to reflect and understand the importance and role of contemporary universities, since they constitute a space for the production of knowledge. Keywords: Medieval University; Scholasticism; Thomas Aquinas; Obedience.

Introdução

104

Graduada em Pedagogia pela Universidade Estadual de Maringá. Especialista em Neuropedagogia na Educação pelo Instituto RHEMA. Mestranda em Educação pela Universidade Estadual de Maringá. E-mail: [email protected]. 105

Graduada em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (1986). Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (1991) e doutora em História pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Possui pós-doutorado em História e Filosofia da Educação na Faculdade de Educação da USP. E-mail: [email protected].

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A realização de um estudo acerca da história das universidades na Idade Média e o

método da Escolástica não é uma tarefa simples. Trata-se de um tema extremamente

amplo, e, por isso, corremos o risco da generalização ou, então, de tratá-lo dentro de um

recorte particular que não permita uma compreensão adequada. Por essas razões,

elegemos analisar o método de ensino escolástico desenvolvido no interior do espaço

citadino medieval no decorrer do século XIII, a partir de duas questões. A primeira trata do

ressurgimento das cidades como espaço de produção e de conservação de saberes.

Acreditamos não ser possível a compreensão do desenvolvimento da filosofia e do método

da escolástica se a deslocarmos de seu contexto, ou seja, vinculada à forma de os homens

pensarem e agirem no medievo. Em função disso, partiremos da emergência da existência

do ambiente citadino e seus novos modos de organização social para, sem seguida,

examinarmos o surgimento das universidades.

Segundo Guizot (2005), os séculos XI, XII, XIII e XIV foram marcados por diversas

mudanças resultantes, principalmente, da consolidação do sistema feudal e dos

renascimentos urbano e comercial.

No momento em que a feudalidade já estava bem estabelecida, quando cada homem tomou seu lugar, fixando-se na terra, quando a vida errante cessou, ao final de um certo tempo, as cidades recomeçaram a adquirir alguma importância, desenvolvendo-se nelas, novamente, alguma atividade. Como vocês sabem, dá-se com a atividade humana algo semelhante ao que ocorre com a fecundidade da terra: cessada a desordem, tudo volta a germinar e a florir. Basta o menor clarão de ordem e paz e o homem retoma a esperança, e com a esperança o trabalho. É isso que ocorreu nas cidades; desde que o regime feudal se assentara um pouco, surgiram, entre os possuidores de feudos, novas necessidades, um certo gosto pelo progresso, pelo melhoramento. Para satisfazê-las, um pouco de comércio e de indústria reapareceu nas cidades localizadas nos domínios desses senhores; a riqueza, a população, nelas reaparecem. (GUIZOT, 2005, p. 34-35)

Com o processo de reurbanização na sociedade feudal, o fortalecimento do comércio

e o surgimento da burguesia, muitas pessoas começaram a deixar o campo em busca de

melhores condições de vida nas cidades. Novas atividades econômicas surgem e se

expandem com o comércio, possibilitando o surgimento de novas profissões, organizadas

em corporações de ofício. Essas novas formas de relações, interesses e valores fizeram

com que os comerciantes necessitassem de uma nova formação (PIRENNE, 1964;

ROSSIAUD, 1981; LE GOFF, 1993, 2007; VERGER, 2001; OLIVEIRA, 2012).

Oliveira (2012), na obra O ambiente citadino e universitário do século XIII: lócus de

conflitos e de novos saberes, ao analisar o trabalho dos intelectuais anexo ao

desenvolvimento das cidades medievais, aponta que o ressurgimento das cidades possibilita

aos homens lidar com diferentes interesses e intenções: “Assim, a vida urbana cria

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concomitante um ambiente diversificado de pessoas e atividades. Mas gera, também, a

exigência de uma unidade social, não mais pautada pelas relações pessoais, mas em

instrumentos jurídicos gerais” (OLIVEIRA, 2012, p. 230).

É nesse contexto que surge a demanda da criação de instituições que atendam à

necessidade dos homens citadinos de aprenderem os princípios de formação humana e os

elementos básicos de leitura e escrita para o exercício das atividades comerciais. De acordo

com Oliveira (2012):

Também o ambiente citadino propicia a criação de escolas para as crianças, para lhes ensinar não somente preceitos religiosos, mas hábitos e condutas comuns ao ambiente citadino. Com isso, assiste-se à difusão de escolas laicas, voltadas mais para os filhos dos burgueses. (OLIVEIRA, 2012, p. 94)

Essas novas necessidades também são apontadas por Pirenne (1964, p.180-181),

quando destaca que “[...] o ensino cessa de repartir exclusivamente os seus benefícios

pelos noviços dos mosteiros e pelos futuros padres das paróquias. Sendo o conhecimento

da leitura e da escrita indispensável à prática do comércio [...]”. A instrução, antes restrita

aos homens do clero e da nobreza, passa a ser imprescindível para o desenvolvimento das

atividades comerciais.

Desse modo, o surgimento da Universidade não pode ser compreendido

isoladamente das histórias das cidades, uma vez que é nesse espaço que os mestres se

organizam em corporações. Seu ofício era transmitir aquilo que sabia, logo era um trabalho.

Cumpre destacar que as universidades surgem no contexto de disputa de poder

entre o papado e a realeza. Eles viam as universidades como importantes pontos de apoio

político e cultural, para o reforço do domínio que usufruíam. Diante disso, criaram leis e

bulas para sua institucionalização, a fim de intervirem tanto no ensino como nas relações

entre os estudantes e mestres (OLIVEIRA, 2007).

A Universidade medieval só passou a existir e se expandir graças aos professores

independentes no século XII e à luta dos estudantes, que ao terem consciência do seu

estatuto passaram a requerer o reconhecimento de seus direitos e privilégios. Segundo

Rüegg (1992, p. 11), “a nova instituição social, a universidade, apenas poderia ter surgido

nas circunstâncias econômicas, políticas e sociais particulares de certas cidades europeias

no inicio da Idade Média”. Logo, a Universidade medieval é produto das necessidades

sociais do tempo e espaço em que está inserida.

Em um segundo momento, apresentaremos alguns aspectos relevantes da

Escolástica, principalmente o método de ensino desenvolvido nas universidades do século

XIII. Elegemos para subsidiar nossos estudos a principal obra de Tomás de Aquino

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(1224/25-1274), a Suma Teológica, uma vez que ela reflete, ao mesmo tempo, o método e a

filosofia da Escolástica.

Segundo Nunes (1979), Tomás de Aquino foi o principal nome da Escolástica,

contribuindo para que ela alcançasse o equilíbrio entre razão e fé. Cumpre observar que,

ainda que as ideias de Tomás de Aquino tenham sido formuladas para atender às

aspirações de seu contexto, suas contribuições para o entendimento da importância do

conhecimento, e do ensino, e o entendimento das mudanças e permanências históricas

ultrapassam as barreiras do tempo e do espaço.

Nossa análise ampara-se em alguns autores que se ocuparam dos estudos relativos

às cidades medievais e ao surgimento das universidades na Idade Média, como Verger

(1990, 2001), Rüegg (1992), Le Goff (1993, 2007) e Oliveira (2005, 2007, 2012).

Consideramos que a recuperação da origem e organização das instituições universitárias da

Idade Média possibilita-nos a refletir e compreender a importância e o papel das

universidades contemporâneas, tendo em vista que elas se constituem em espaço de

produção do conhecimento.

O ambiente citadino e a origem da universidade no século XIII

No final do século XI e no decorrer dos séculos XII e XIII, com o início das

construções e habitações dos homens no espaço urbano, novas formas de existência social

foram criadas. Novos hábitos e costumes tiveram que ser desenvolvidos para suprir as

necessidades imediatas, possibilitando ao citadino medieval aprender a criar mecanismos

de sobrevivência e de sociabilidade.

A existência de um espaço público exigia dos homens um processo de criação de

instrumentos, linguagens e culturas próprias condizentes com o convívio coletivo. Era

necessária a criação de leis, por parte dos magistrados, para regular os direitos civis, em

detrimento dos interesses individuais.

Rossiaud (1981), ao tratar da cidade medieval, nos chama a atenção para o fato de

que ela não é apenas um espaço circunscrito à muralha, mas se constitui como espaço de

complexas relações, que abordam desde a prática laboriosa e criadora do trabalho e a

circulação de pessoas e riquezas até um organismo social e político.

A cidade medieval é, em primeiro lugar, uma sociedade abundante, concentrada no pequeno espaço no meio de vastas extensões fracamente povoadas. Em seguida, é um lugar de produção e de trocas, onde se misturam o artesanato e o comércio alimentados por uma economia monetária. É também o centro de um sistema de valores particular de onde emergem a prática laboriosa e criadora do trabalho, o gosto pelo negócio e pelo dinheiro, o pendor para o luxo, o sentido da beleza. É ainda um sistema de organização de um espaço fechado entre muralhas onde se

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penetra por portas e se caminha por ruas e praças e que está eriçado de torres. Mas é também um organismo social e político baseado na vizinhança, onde os mais ricos não se constituem em hierarquia, mas formam um grupo de iguais — sentados lado a lado — governando uma massa unânime e solidária. Frente ao tempo tradicional, enquadrado e escondido pelos sinos regulares da igreja, essa sociedade leiga urbana conquistou um tempo comunitário, que sinos leigos marcam a irregularidade dos chamados à revolta, à defesa, à ajuda. (ROSSIAUD, 1981, p. 155-156)

O renascimento das cidades, o desenvolvimento do comércio, os embates entre os

dois poderes, Igreja e Estado, o surgimento das corporações de ofício exigem também

novas relações humanas. Além de mudanças no mundo material, suas influências também

modificavam o homem medieval. De acordo com Pirenne:

Em nenhuma civilização a vida urbana se desenvolveu independentemente do comércio e da indústria. A diversidade dos climas, dos povos ou das regiões é tão indiferente a este facto como a das épocas. [...]. A sua universalidade explica-se pela necessidade. Um aglomerado urbano, com efeito, só pode subsistir pela importação de gêneros alimentícios [...] O comércio e a indústria são indispensáveis para a manutenção desta recíproca dependência: sem a importação que assegura o reabastecimento, sem a exportação que a compense com objetos de troca, a cidade morrerá. (PIRENNE, 1989, p. 109)

Para o desenvolvimento das novas relações de produção e de trabalho, o

comerciante precisava aprender a ler, escrever e falar outras línguas, atividades

imprescindíveis para a atividade de mercador, uma vez que os acordos comerciais eram

redigidos em latim.

Para Le Goff, essas transformações exigiam uma educação condizente com seus

interesses, ou seja, um ensino que permitisse a formação dos homens de negócio. Desse

modo, recorriam, em primeira instância, à Igreja, logo, com o desenvolvimento das

atividades comerciais, os mercadores criam as escolas laicas ou contratam professores

particulares. Entre os vários ofícios existentes, encontra-se a figura do professor ou

intelectual. Ao tratar da figura do intelectual, Le Goff (2010, p. 30) o descreve como “Um

homem cujo ofício é escrever ou ensinar, e de preferência as duas coisas a um só tempo,

um homem que, profissionalmente, tem uma atividade de professor e de erudito, em

resumo, um intelectual – esse homem só aparecerá com as cidades”

O mestre universitário acumulara, assim, um trabalho de reflexão e de escrita, que chamaríamos hoje de pesquisa, e um trabalho de ensino. Para muitos, a sua reputação, suas intervenções em debates sociais e políticos (por exemplo, a mendicância dos religiosos, os poderes reais, a fiscalidade pontifícia) acrescentavam a sua função um papel que, desde o século XIX, foi em geral reconhecido aos intelectuais. Este é o motivo por que chamei esses universitários de “os intelectuais da Idade Média”. (LE GOFF, 2007, p. 174)

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É nesse espaço citadino que surge e se consolida a Universidade. Segundo Le Goff

(1993), essa instituição é criada como resposta às necessidades e demandas geradas pelo

desenvolvimento da urbanidade e as formas de produção mercantil e o comércio. Ele

destaca que,

Resta a esses artesãos do espírito, engendrados no desenvolvimento urbano do século XII, organizarem-se dentro de um grande movimento corporativo, coroado pelo movimento comunal. Essas corporações de mestres e estudantes serão, no sentido estrito da palavra, as universidades. Esta será a obra do século XIII. (LE GOFF, 1993, p. 58)

Contudo, o conhecimento de qual seria primeira universidade criada ainda é bastante

divergente. Walter Rüegg, em Uma História da Universidade na Europa, obra publicada em

1992, destaca que a origem das primeiras universidades é um processo complexo. Segundo

o autor, podemos considerar Bolonha ou Paris como as universidades mais antigas,

dependendo dos elementos a serem observados.

Nos finais do século XII, em Bolonha, estudantes estrangeiros se agruparam em uma

forma organizacional básica, própria das universidades medievais, mas em 1208, em Paris,

já ocorria a associação de professores e estudantes de várias disciplinas em uma

corporação. Ainda que não saibamos qual de fato foi a primeira Universidade criada,

podemos afirmar que ambas as associações de professores e estudantes lançaram as

primeiras bases da formação do ensino superior. Verger (2001, p. 189-190) afirma que

O surgimento das primeiras universidades, na virada dos séculos XII e XIII, é um momento capital da história cultural do Ocidente medieval [...]. Pode-se compreender que ela comportou, em relação à época precedente, elementos de continuidade e elementos de ruptura. Os primeiros devem ser buscados na localização urbana, no conteúdo dos ensinamentos, no papel social atribuído aos homens de saber. Os elementos de ruptura foram inicialmente de ordem institucional. Mesmo que se imponham aproximações entre o sistema universitário e outras formas contemporâneas de vida associativa e comunitária (confrarias, profissões, comunas), este sistema era, no entanto, no domínio das instituições educativas, totalmente novo e original, [...] o agrupamento dos mestres e/ou dos estudantes em comunidades autônomas reconhecidas e protegidas pelas mais altas autoridades leigas e religiosas daquele tempo, permitiu tanto progressos consideráveis no domínio dos métodos de trabalho intelectual e da difusão dos conhecimentos quanto uma inserção muito mais eficiente das pessoas de saber na sociedade da época.

Mas o que, de fato, foram essas universidades? Rüegg (1992) destaca que o termo

mais utilizado em textos no século XIII era universitas, que do latim clássico significa

totalidade ou o todo. Esse termo também foi acrescido pelas pessoas a quem se referia, tal

como ‘a universidade dos mestres’ ou ‘a universidade dos mestres e estudantes’. Isso

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significava salientar que as universidades eram então, um local de comunidade, de um

grupo. Cumpre destacar que a universidade constituiu-se como espaço de conflitos políticos

entre os poderes laico e eclesiástico, que esperavam obter apoio e reforço para o domínio

que usufruíam.

O surgimento dessa instituição trouxe benefícios para os estudantes e professores,

visto que o fato de pertencer a uma universidade conferia vários privilégios econômicos e

legais. Os estudantes esperavam que seus estudos lhes proporcionassem melhores

qualificações. Os professores universitários, organizados em corporações de ofícios, por

possuírem um corpus de conhecimento que os distinguiam, eram detentores de um elevado

grau de prestígio. Rüegg (1992, p. 21) salienta que “[...] em fins da Idade Média e graças às

universidades, a educação acadêmica tornou-se uma marca de distinção social e o grau de

doutor reclamava quase tanta deferência como um título de nobreza”.

A concessão do grau acadêmico a um professor implicava também responsabilidade

pelo ensino. Segundo Rüegg (1992), eles possuíam a obrigação de ensinar os

conhecimentos adquiridos, sendo responsáveis pela avaliação da capacidade de ensinar.

Os alunos ingressavam no curso das artes liberais, por volta dos 12 e 15 anos,

iniciando os estudos com as disciplinas do trivium e o quadrivium. As disciplinas do trivium,

ou ciência da palavra, dividiam-se em gramática latina, retórica e dialética. Já o quadrivium,

ou ciência das coisas, dividia-se no ensino da aritmética, geometria, astronomia e música

(RÜEGG, 1992).

Conforme as contribuições de alguns autores, tais como Verger (1990, 2001), Rüegg

(1992) e Oliveira (2005, 2012), é notória a importância do século XIII do medievo ocidental

para nossa atualidade, uma vez que muitas das instituições e tradições hoje estabelecidas

em nossa sociedade foram criadas em seu seio.

A Escolástica como método de ensino

A Idade Média, ainda hoje, é vista por alguns estudiosos, que primam por estudos

mais recentes, de uma perspectiva depreciativa, considerando-a como a “idade das trevas”

ou “da escuridão”. Contudo, como observamos anteriormente, foi no seio desse período que

surgiram e se expandiram as instituições escolares e a Universidade, com o

desenvolvimento da corporação universitária e com ela o método de ensino, tornando o

conhecimento mais livre e acessível. Esses espaços possibilitaram os primeiros avanços do

desenvolvimento do pensamento científico.

Assim, partiremos para a análise do método escolástico presente na obra da Suma

Teológica de Tomás de Aquino, ressaltando as contribuições desse teórico para o campo

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educacional. Cumpre observar que, ao analisarmos o método da Escolástica, devemos

compreendê-lo como correspondente às exigências colocadas pela sociedade em sua

época, partícipe das relações sociais dos homens medievais, para não corrermos o risco de

criticá-la como mera “memorização”.

Ao verificarmos os métodos de ensino adotados pelas universidades da Idade Média,

podemos observar que existia uma tradição comum no ensino: a Escolástica. Notamos a

primazia de dois cursos básicos de exercício em todas as universidades: a lição e a disputa.

Essa forma de ensino requeria dos estudantes alguns conhecimentos essenciais: como o da

Gramática e da Dialética, para a compreensão dos textos e argumentação, a importância da

escrita e da palavra oral, para as disputas, e da memorização e repetição.

Conforme Oliveira (2005), a prática da memorização era elemento essencial para a

preservação do conhecimento dos estudantes nos séculos XII e XIII, tendo em vista que não

havia os meios de comunicação de que hoje dispomos e que permitem o armazenamento

de um grande número de informações, logo a memorização era o único recurso disponível

para a conservação do conhecimento adquirido. De acordo com a autora (2005):

[...] a Escolástica não foi apenas um método ou aspecto intelectual isolado, que provém da criatividade de alguns teóricos medievais, mas sim a maneira como os homens medievais realizavam suas ações. Trata-se de uma nova forma de pensar da sociedade, desde o mais humilde até o soberano. Caracteriza-se por ser a forma dos medievais pensarem e responderem “as questões humanas de sua época”. [...] Com efeito, em sua essência, a Escolástica busca explicar o homem em sua fé e em sua natureza humana. Por isso [...] antes de tudo, devemos considerá-la como uma forma de explicar a essência do ser humano e da natureza em uma dada época histórica. (OLIVEIRA, 2005, p. 10)

Desse modo, podemos observar que a Escolástica era muito mais do que um

método isolado desenvolvido por intelectuais, mas se configurava como resposta às novas

formas de pensar e agir dos homens medievais, ou seja, ela atendia às necessidades

daquela sociedade. Segundo Le Goff,

A experimentação, no século XII, de um novo método de reflexão e de ensino foi o prólogo do método propriamente escolástico das universidades. Trata-se, primeiro, de construir um problema, de apresentar uma quaestio, e essa quaestio era discutida (é a disputatio) entre o mestre e os alunos. Enfim, o mestre dá a solução do problema após essa discussão, é a determinatio. No século XII, no programa das universidades apareceram, duas vezes no ano, dois exercícios em que se manifestava o talento intelectual dos mestres, as questões quodlibetais, em que os estudantes punham ao mestre uma questão acerca de qualquer problema, à sua escolha. A reputação dos mestres muitas vezes se fazia em cima de sua capacidade de responder a essas questões. (LE GOFF, 2007, p. 185-186)

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A Escolástica, método presente na Idade Média, está explícita na principal obra de

Tomás de Aquino: a Suma Teológica. Segundo Le Goff (1995), Tomás de Aquino foi um

importante mestre universitário. Assim, em seu ensino, o mestre primeiramente apresenta a

proposição de um tema, por meio de uma indagação, a seguir apresentando uma ideia

contrária e outra favorável, pautadas na Escritura e em filósofos da Antiguidade, como

Aristóteles, e posteriormente expõe a sua posição.

Depois da lectio, que consistia no comentário de um texto, fosse ele a Bíblia ou as

Sentenças, a quaestio surgiu como a elaboração mais extensa de um tema, por meio de

objeções e respostas sobre um tema dado. As quaestiones disputatae ou simplesmente, as

disputatio (disputa/ discussão) surgem como aperfeiçoamento das quaestio, significando a

recuperação do debate oral entre dois ou mais participantes em um espaço público.

Ao se dedicar à Suma Teológica, Tomás de Aquino buscava fornecer à teologia

moral uma base dogmática, ensinando não apenas os mais adiantados, mas também os

iniciantes. Desse modo, suas escritas eram organizadas em uma síntese orgânica e suas

Questões são redigidas com base nas práticas da disputatio, ou seja, obedecendo à

estrutura formal de um debate universitário daquela época.

Por ser mestre, Tomás pensava nas dificuldades que os noviços poderiam encontrar

ao se depararem com uma sequência de questões justapostas. Ao comentar as Sentenças,

os teólogos medievais tinham consciência dos conflitos de opiniões entre as autoridades,

logo apostavam na razão para a solução desses conflitos.

Tomás de Aquino dividira sua obra em três grandes partes, onde se encontram 512

questões, mas hoje a encontramos organizada em quatro volumes. Num primeiro momento

(primeira parte da obra), Tomás estuda os atos humanos e as paixões da alma, em seguida,

apresenta os hábitos, vícios e virtudes humanas.

Em um segundo momento, o mestre retoma algumas de suas afirmações acerca das

virtudes teologais, fé, esperança, caridade, e das virtudes cardeias, prudência, justiça, força,

temperança, obediência. E encerra seus estudos com os carismas e estados de vida. Ao

tratar das virtudes sociais necessárias ao estabelecimento dos comportamentos que os

homens deveriam praticar no convívio citadino, no século XIII, Tomás de Aquino, mestre

dominicano, aborda, entre as dez questões da Suma Teológica, a questão da Obediência.

Essa questão é composta por seis artigos, são eles: Art. 1 – Se um homem está

obrigado a obedecer a outro, Art. 2 – Se a obediência é uma virtude especial, Art. 3 – Se a

obediência é a máxima das virtudes, Art. 4 – Se em tudo devemos obedecer a Deus, Art. 5 –

Se os súditos estão obrigados a obedecer em tudo aos superiores e Art. 6 – Se estão

obrigados os cristãos a obedecer ao poder secular.

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Diante desse cenário da urbis, mestre Tomás mostrou às pessoas que não existia

mais uma única forma de relacionamento, mas múltiplas e, em cada uma delas, exigiam-se

daqueles que as estabeleciam, compreensões e atitudes diferenciadas (OLIVEIRA, 2012).

Ao discutir a primeira objeção: se o homem deve obedecer a outros homens, Tomás

afirma que:

Deus deixou o homem na mão do seu conselho, não para lhe ser lícito fazer o que quiser, mas como não estando obrigado, por necessidade de natureza, a fazer o seu dever, como as criaturas irracionais, mas, por livre eleição procedente do seu conselho próprio. E assim como, para agir, em geral, deve se apoiar no seu conselho próprio, assim também o deve, quando se trata de obedecer aos superiores; pois como diz Gregório, sujeitando-nos humildemente às ordens de outrem, elevamo-nos aos nossos próprios olhos. (TOMÁS DE AQUINO, ST, II – II, q. 104, a. 1)

O primeiro aspecto a ser observado nesse artigo é a possibilidade do homem, por

ser livre, de escolher, e é essa capacidade que lhe permite fazer algo ou não, logo, quando

um homem escolhe obedecer, não significa que ele não usou essa capacidade. A prática da

obediência deve estar pautada na racionalidade, na compreensão de por que está

realizando a ação. Desse modo, não propõe, portanto, ações que conduzam à sujeição ou à

servidão dos homens. As palavras do mestre demonstram que ele entende que a sociedade

é regida pelas diferenças e que elas fazem parte da vida cotidiana dos indivíduos. O que

Tomás de Aquino evidencia é a necessidade de as ações humanas produzirem um bem

viver na comunidade.

Quando Tomás de Aquino argumenta se o Respeito é uma virtude especial e distinta

das demais, ele destaca que vida em sociedade apresenta às pessoas níveis desiguais de

relacionamentos e que cada um deles exige âmbitos distintos de comportamento. Em

virtude disso, o mestre apresenta as diferenças existentes entre o respeito que um filho

devota ao pai e o respeito com o qual um súdito se dirige ao seu governante e, ainda, a

diferença do respeito que um fiel devota à religião e a Deus.

Seguem as respostas para a terceira e quarta objeções, que afirmam

respectivamente que:

RESPONDO: A obediência, como qualquer virtude, infunde-nos na vontade uma inclinação pronta para o seu objeto e não para o que lhe repugna. Ora, o objeto próprio da obediência é uma ordem procedente da vontade de outrem. Por isso ela nos torna a vontade pronta em cumprir a ordem de quem nos manda. Mas, se o que nos mandam já por nós mesmos o queremos, mesmo independentemente da ordem, como no caso do que nos favorece, então por nossa vontade própria nós o buscamos, cumprindo voluntariamente a ordem e não por nô-la ser imposta. Mas, quando o que nos mandam de nenhum modo está de acordo com a nossa vontade, antes, em si mesmo considerado, lhe repugna a ela, como no caso do que nos contraria, então é absolutamente claro que não o fazemos senão por ordem.

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Por isso, Gregório diz que quando a obediência segue a sua inclinação no que nos favorece, ela é nula ou diminuta, pois, nesse caso, a nossa vontade própria não busca principalmente o cumprimento da ordem, mas, alcançar o objeto querido. Porém, no que nos repugna ou é difícil, ela é maior, porque não busca nenhuma outra cousa a não ser a obediência à ordem. O que deve entender-se segundo as aparências externas. Mas, segundo o juízo de Deus, que lê nos corações, pode acontecer que, mesmo nos casos que nos favorecem, a obediência, seguindo a sua inclinação própria, nem por isso seja menos louvável, por tender não menos prontamente a vontade ao cumprimento da ordem. RESPONDO. – O respeito atende diretamente à excelência da pessoa; por isso as suas espécies variam conforme a natureza da excelência. Ao passo que a obediência respeita à ordem de uma pessoa excelente e por isso tem uma só natureza. Mas, como pelo respeito a quem manda é que devemos obedecer-lhe à ordem, consequentemente toda obediência é da mesma espécie, embora procedente de causas diversas. (TOMÁS DE AQUINO, ST, II – II, q. 104, a. 2)

Assim, ainda que o respeito esteja presente nos três níveis de relacionamento

(governante e súdito; pais e filhos, relacionamento entre as pessoas), a forma de se praticar

esse respeito é peculiar, em virtude dos “lugares” que as pessoas ocupam nas relações

sociais.

Considerações finais

Objetivamos demonstrar ao longo do texto a estreita relação entre a existência do

ambiente citadino e a criação e expansão da Universidade no medievo, bem como a

importância desse espaço como locus de produção de conflitos e novos saberes.

Verificamos que a consolidação do sistema feudal e o renascimento urbano possibilitaram o

surgimento de novas atividades comerciais e a organização dos homens em corporações de

ofício exigiam uma educação condizente com seus interesses, ou seja, um ensino que

permitisse a formação dos homens de negócio. Desse modo, os mercadores criaram as

escolas laicas ou contrataram professores particulares.

É nesse espaço citadino que surgem os intelectuais, também organizados em

corporação de ofício, e se consolida a Universidade, novo espaço de estruturação e

preservação do saber que estava interligado com os interesses da comunidade e os

poderes laicos e eclesiásticos.

Destacamos, em nossas análises, que a Escolástica desenvolvida no seio da

sociedade medieval não se configurava apenas como um método de ensino presente nas

universidades, mas se tratava, antes, de uma filosofia, ou seja, ela surge como resposta às

novas formas de pensar e agir dos homens medievais. Cumpre observar, ainda, que os

intelectuais do século XIII voltavam-se para a solução dos problemas cotidianos da

sociedade.

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Isso é perceptível nas disputas e questões defendidas pelos intelectuais do período,

dentre eles, Tomás de Aquino, mestre dominicano que, ao elaborar sua obra Suma

Teológica, objetivava retomar a formação dos frades, para a conversão dos homens das

cidades, pois, como afirmara Le Goff, os homens e mulheres se urbanizaram sem melhorar.

A cidade era pagã, o que ameaçava o Cristianismo. Logo, era preciso um novo apostolado

para convertê-la.

Ao refletir sobre as virtudes sociais, e a obediência, (Q. 105 – II – II) na Suma

Teológica, o Aquinate se refere aos comportamentos que os homens deveriam ter para

conviver no ambiente citadino. De acordo com suas formulações, a obediência às leis e aos

governantes era essencialmente necessária para a existência de uma vida em comum.

Entretanto, destaca que os homens, diferentemente dos animais irracionais, escolhem o que

querem ou não fazer, logo é essa capacidade de escolha que os permite decidir se

obedecerão ou não, tornando-os livres. A obediência é, portanto, uma decisão, e não

subserviência.

Entretanto, o mestre defende que, por uma escolha virtuosa, os inferiores obedeçam

a seus superiores para que a harmonia da sociedade seja estabelecida. Nesse sentido, o

estudo sobre o método da Escolástica, desenvolvido por Tomás de Aquino na Suma, bem

como a questão da obediência, nos dias de hoje, é fundamental, pois nos possibilita pensar

nos problemas de nosso tempo, uma vez que suas formulações são condizentes com as

necessidades de seu tempo histórico. Ele inaugura uma nova concepção sobre o saber e o

ensino, delegando aos homens a responsabilidade de seus atos, mas principalmente do uso

da razão e do intelecto como condições dos homens de se tornarem livres.

Referências bibliográficas GILSON, Étienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995. GUIZOT, François. Sétima lição. In: OLIVEIRA, T.; MENDES, C. M. M. Formação do Terceiro Estado as comunas: coletânea de textos de François Guizot, Augustin Thierry, Prosper de Barante. Trad. Terezinha Oliveira & Claudinei Magno Magre Mendes. Maringá: Eduem, 2005. p. 27-48. LE GOFF, Jacques. As raízes medievais da Europa. Petrópolis: Vozes, 2007. _______. Os Intelectuais na Idade Média. Brasiliense, 1993. _______. Os Intelectuais na Idade Média. 3ª ed. Trad. Marcos de Castro. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. NUNES, Ruy. História da Educação da Idade Média. São Paulo: Edusp, 1979. OLIVEIRA, Terezinha. As Universidades na Idade Média (séc. XIII). São Paulo: Mandruvá, 2005.

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Nag Hammadi e o Codex V: breve análise historiográfica do Apocalipse copta de Paulo

Nag Hammadi and the Codex V: a brief analysis of the coptic Apocalypse of Paul

João Paulo da Silva106

Resumo: No ano de 1945, na cidade de Nag Hammadi, no Alto Egito, foi encontrada uma coleção de manuscritos coptas antigos, abrangendo textos de cunho teológico e filosófico, sendo em sua maioria cristãos, e uma parte deles gnósticos. Ficou conhecida como Biblioteca Copta de Nag Hammadi. Essa descoberta deu início a uma nova era no que tange à pesquisa de manifestações do Cristianismo Primitivo, por conter tratados de teologia sistemática, obras exegéticas, epístolas, apocalipses, entre outros escritos e ideologias antigas. O Codex V dessa coleção é o único com uma unidade linguística e literária: a apocalíptica. Um dos textos desse Codex, o Apocalipse de Paulo, é cerne desta discussão, que versará não somente sobre os aspectos históricos desse texto, mas também acerca da problemática de sua interpretação e as características que o tornam integrante da Literatura Judaico-Apocalíptica, bem como sua relevância para os estudos do Cristianismo Primitivo. Palavras-chave: Nag Hammadi; Apocalíptica; Cristianismo; Gnosticismo. Abstract: In the year 1945, in the city of Nag Hammadi in Upper Egypt, a collection of ancient Coptic manuscripts was found, covering theological and philosophical texts, most of them Christians, and a part of them Gnostics. It became known as the Coptic Library of Nag Hammadi. This discovery ushered in a new era in the search for manifestations of early Christianity, as it contained treatises on systematic theology, exegetical works, epistles, apocalypses, among other ancient writings and ideologies. The Codex V of this collection is the only one with a linguistic and literary unit: the apocalyptic. One of the texts of this Codex, the Apocalypse of Paul, is at the core of this discussion, which will deal not only with the historical aspects of this text, but also with the problematic of its interpretation and the characteristics that make it an integral part of the Jewish-Apocalyptic Literature and its relevance to the studies of Primitive Christianity. Keywords: Nag Hammadi; Apocalyptic; Christianity; Gnosticism.

Introdução

106

Graduação em História (UENP). Pós-Graduação em História, Cultura e Sociedade (UENP). Pós-Graduação em Docência no Ensino Superior Instituição (UNIVALE). Mestrando em História e Sociedade (UNESP-Assis). E-mail: [email protected].

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Quando nos deparamos com questões diversas no que diz respeito à forma como

se constituía determinado pensamento ou como refletia determinado comportamento dentro

do meio social, a gênese de um dogma religioso por exemplo, procuramos entender de que

forma se deu cada partícula de seu contexto. Nesse sentido, compreender tais valores,

práticas exercidas por grupos variados, é compreender identidades religiosas e sociais. É

possível perceber sentimentos de pertencimento e historicidade que dão sustentação aos

grupos religiosos. É também observar produtos os quais são constituintes de patrimônios

materiais e imateriais da cultura religiosa.

A discussão proposta aqui é balizada a princípio por um achado de extrema

relevância para a compreensão de determinados segmentos acerca do Cristianismo,

pensando em seu início, quando o mesmo se despontava de forma marginal, sendo mesmo

considerado em determinados momentos como uma seita herética. O ano de 1945, quando

a Segunda Grande Guerra se findava, foi o mesmo ano em que, próximo à cidade de Nag

Hammadi, no sul do Egito, fora encontrada uma coleção de códices, treze ao todo, contendo

um corpus documental excepcional acerca de manifestações do Cristianismo Primitivo, pois

os mesmos continham tratados de teologia sistemática, obras exegéticas, epístolas,

apocalipses, entre outros escritos e ideologias antigas.

Tais escritos, no momento mesmo de sua descoberta e por fatores que serão

elencados a seguir, não tiveram a devida importância, visto que os olhares estavam voltados

para a devastação que a guerra havia causado no mundo todo. Quando, anos mais tarde,

foram avaliados e iniciados os estudos acerca do teor contido nos mesmos, pôde-se

perceber a quantidade significativa de informações nunca antes concentradas daquela

forma e mesmo no estado em que se encontravam.

A descoberta e seus desdobramentos

No que diz respeito à temática abordada, a priori, entender o contexto em que

houve a descoberta desses textos fará total diferença para a compreensão geral. Para isso,

entender a Antiguidade Tardia dentro de seu próprio contexto é um exercício importante

para o trabalho.

A discussão acerca da Antiguidade Tardia é relevante para o entendimento da

proposta. A mesma implica determinada perspectiva no que se refere aos destinos do

Império Romano Ocidental após a chegada e estabelecimento de populações estrangeiras

(bárbaras) no interior das áreas sob a autoridade romana (SILVEIRA, 2011). Haja vista tal

termo não ser unânime na Academia, visto que uma porção significativa de historiadores

não o sustentam.

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Segundo Oliveira:

O conceito de Antiguidade Tardia foi formulado originalmente no final do século XIX e no início do XX, nos campos da História da Arte e da História das Religiões, em oposição à ideia renascentista e iluminista de uma decadência multissecular da civilização romana. (OLIVEIRA, 2008, p. 124)

A proposta deste trabalho abarcará tal período temporal, que é também paralelo ao

escrito apócrifo analisado. Como já supracitado, no ano de1945, próximo à cidade de Nag

Hammadi, foi encontrada uma coleção de manuscritos coptas antigos, contendo treze

códices, feitos de papiro e revestidos com couro. Tal coleção abrange textos de cunho

teológico e filosófico, sendo sua maioria cristãos, e uma parte deles gnósticos e ficou

conhecida como Biblioteca Copta de Nag Hammadi.

Os acontecimentos envolvidos nessa descoberta envolvem desde tramas de

assassinato até mesmo venda de documentos no mercado negro. O que se percebe é um

grande jogo até a publicação e interpretações acerca do teor dos textos.

O Apocalipse de Paulo de Nag Hammadi, como os outros textos dessa coleção, é

hoje considerado pela maioria dos especialistas como um texto gnóstico, mais precisamente

valentiniano, sendo essa última categoria entendida como um tipo específico de

gnosticismo. Contudo, não é objetivo deste trabalho delimitar detalhadamente as

características do valentianismo ou do gnosticismo em geral, nem discutir acerca das

origens do gnosticismo.

O texto tem seu início com o encontro de Paulo e um menino quando então se

dirigia a Jerusalém. O menino faz um interrogatório a Paulo e o leva a uma viagem pelos

céus, precisamente até o décimo céu. Sua passagem pelos três primeiros céus é apenas

citada, passando posteriormente a descrever a passagem e visões do apóstolo nos céus

posteriores. Paulo presencia nesse “arrebatamento” o julgamento das almas que acontece

no quarto céu e também anjos levando almas a serem julgadas no quinto céu. O sexto céu é

totalmente iluminado por uma luz que vem do alto, e, quando chega ao sétimo céu, depara-

se com a figura de um homem velho assentado num trono resplandecente que o tenta

impedir sua ascensão aos demais níveis celestes. Mesmo assim, Paulo continua sua

ascensão, até chegar ao décimo, onde vem a se transformar em espírito e cumprimenta

seus companheiros espíritos. Durante a ascensão, Paulo tem contato com os seus

companheiros apóstolos, que parecem acompanhá-lo na jornada. (CHAVES, 2005).

Urge dizer também que esse contexto expõe a gênese de uma então seita judaica

que, nesse momento, despontava para o que se conhece como Cristianismo e, dessa forma,

a importância da figura de Jesus Cristo.

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A língua original desses códices, o copta, é originalmente formada por caracteres

gregos e alguns advindos do demótico antigo. Surge uma questão aqui: a ideia de utilizar

uma língua que não era falada pelos egípcios. Essa proposta vem corroborar a possibilidade

de legitimar tal princípio dogmático convertendo seus textos numa língua que pudesse

disseminar o Cristianismo por todas as partes.

Entre os estudiosos, há um determinado consenso acerca da ideia de que o

Apocalipse de Paulo faz alusão a algumas passagens do Novo Testamento canônico, como

em 2 Co 12, 2-4107 e a Gl 1,13-17108. Em 2 Co, o apóstolo fala acerca de uma suposta

experiência no que diz respeito à ascensão aos céus. Já na segunda passagem, diz que

não foi a Jerusalém encontrar os apóstolos. Nesse contexto, Paulo está se dirigindo à

Jerusalém, quando no caminho é abordado por uma criança que o leva e o acompanha no

processo de ascensão.

Datar a precisão desse texto é tarefa árdua e difícil. Provavelmente, a cópia de Nag

Hammadi advém do século IV. Segundo Chaves,

É quase certo que seja uma tradução em cóptico de um original grego composto em algum momento do séc. II, também difícil de ser precisado. O estado de conservação do texto é relativamente bom, existem, porém, algumas lacunas. O texto encontra-se no Codex V da biblioteca de Nag Hammadi, conhecido como o “Codex dos Apocalipses”, haja vista existirem ainda mais três apocalipses neste mesmo volume11. O gênero literário do Apocalipse de Paulo pode ser definido como apocalíptico, mesmo não existindo consenso sobre as peculiaridades dos textos definidos como apocalipses em Nag Hammadi. (CHAVES, 2005, p. 61)

O problema da datação torna difícil o trabalho com essa fonte, porém é possível

elencar determinadas características que muito auxiliam no trabalho de análise. Segundo

Kaler e Rosenstiehl e proposto por Chaves, tais características podem ser expressas da

seguinte forma:

Pseudonímia;109

Um fundamento bíblico como pretexto; 107

2 Conheço um homem em Cristo que há catorze anos (se no corpo, não sei, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) foi arrebatado ao terceiro céu. 3 E sei que o tal homem (se no corpo, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) 4 Foi arrebatado ao paraíso; e ouviu palavras inefáveis, que ao homem não é lícito falar. 108

Porque já ouvistes qual foi antigamente a minha conduta no judaísmo, como sobremaneira perseguia a igreja de Deus e a assolava. E na minha nação excedia em judaísmo a muitos da minha idade, sendo extremamente zeloso das tradições de meus pais. Mas, quando aprouve a Deus, que desde o ventre de minha mãe me separou, e me chamou pela sua graça, Revelar seu Filho em mim, para que o pregasse entre os gentios, não consultei a carne nem o sangue, Nem tornei a Jerusalém, a ter com os que já antes de mim eram apóstolos, mas parti para a Arábia, e voltei outra vez a Damasco. 109

Ato de atribuir a outro, de maior importância, a escrita de um texto por exemplo, com o intuito de firmá-lo como sendo deste último, portanto legitimando o teor da publicação. Era prática muito comum na antiguidade.

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Incerteza por parte do visionário em relação à experiência – se ela teria

ocorrido corporeamente ou fora do corpo;

A presença de um emissário ou mediador divino;

A viagem a vários céus e o retorno do visionário a terra após ter-lhe sido

designada uma missão especial.110

As características expostas acima denotam alguns valores nos quais o documento

se enquadra. Nesse sentido, devemos ter em mente que há uma intencionalidade racional

para atrelar o texto ao apóstolo Paulo. Seu vulto figurava como um dos mais importantes e

respeitados da época, dentro da vertente do que se tornaria o Cristianismo.

Mais ainda, há a questão do título do texto: Apocalipse. Os textos judaicos não

definem em seu título que sejam apocalipses, porém esse texto específico de Nag Hammadi

traz a palavra Apocalipse como título.

Sobre a literatura judaica

No que diz respeito à literatura judaica, é possível, a princípio, apontar alguns

autores que elucidam tal ramo, bem como auxiliam na função de estabelecer sentido entre

as partes nesse estudo. Russell (1997) aponta que, entre o período de aproximadamente

250 a. C. e o primeiro século da Era Cristã, os judeus tiveram uma fecunda e brilhante

literatura que narra de forma dramática esse período. Israel, nesse período elevava seus

esforços e sua fé na vinda do Messias; os escritores advertiam o povo contra a negligência

e o admoestava a persistir tenazmente, resistindo com paciência e coragem o sofrimento

causado pelo domínio estrangeiro que tentava anular a sua fé e subverter a sua cultura.

(COSTA, 2009). Alguns elementos podem ser definidos como geradores dessa literatura:

uma intensa dedicação à lei e ao culto a Jeová. Nas palavras de Mayer:

Conforme demonstra a teologia do Talmude, o farisaísmo, baseado no Antigo Testamento, tornou-se a totalidade de Israel imune às influências danificantes da cultura helênica anti-judaica, dando-lhe uma autoconsciência que providenciou-lhe a capacidade de sobreviver como comunidade durante milhares de anos, no meio do ódio e da perseguição de um meio ambiente hostil. (MAYER, 1982, p. 460).

Sem deixar de apontar a perseguição de nações pagãs, o que despontava para o

sofrimento do povo judeu que insistia em não se deixar envolver pela mortalha da

desesperança que jaz à porta. O caráter dessa literatura explanava algumas

particularidades: de acordo com Costa (2009, p. 4), a história para os judeus tinha um valor

110

CHAVES, 2005, p. 63.

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puramente instrumental. Quando os escritores descreviam os fatos de forma relativamente

minuciosa, eles objetivavam revelar a ação de Deus por intermédio do povo judeu. Dessa

forma, a história servia como meio de demonstração do poder de Deus por meio de seu

povo escolhido. Havia ainda a questão da ficção. Os escritores usavam da ficção a fim de

ensinar lições religiosas, patrióticas e éticas, mostrando, entre outras coisas, que Deus

protege, dirige e abençoa o Seu povo de acordo com a fidelidade do povo, em guardar e

obedecer aos seus estatutos. De caráter sapiencial, podem-se evidenciar alguns tópicos, a

saber: Eclesiástico (190-170 a. C.); Testamento dos Doze Patriarcas (140-110 a. C.);

Sabedoria de Salomão (100-50 a. C.); Livro dos Jubileus (II séc. a. C.); Oráculos Sibilinos

(300 a. C.-150 d. C.); IV Macabeus (1º séc. a. C.); Salmos de Salomão (50 a. C.), entre

outros. E, obviamente, o que é cerne deste estudo, a Literatura Judaico-Apocalíptica.

Propõe-se para essa última citada que uma das características da literatura judaica

é o apocalipticismo. Laad (1985, p. 50) vem a definir o apocalipse como “um livro que

contém revelações verdadeiras ou fraudulentas de segredos celestiais ou de

acontecimentos que ocorrerão no fim do mundo e na inauguração do reino de Deus”.

Para que se possa entender com mais amplitude essa literatura, torna-se

necessário conhecer a situação do povo no que se refere às suas relações com Deus e com

os homens. E isso pode ser encontrado sinteticamente em Birdsall:

Após os profetas pós-exílicos, nenhum outro profeta apareceu em Israel. A inspiração profética cessara; Deus não continuou a falar por meio de uma voz viva. Além disso, os tempos eram maus. A prometida salvação messiânica não aparecia. Em lugar do reino de Deus, uma sucessão de reis pagãos governava o povo de Deus; e nos dias de Antíoco Epifânio (168 a. C.) a fé judaica foi proibida e os judeus fiéis sofreram tremenda perseguição. Para preencher esse vácuo, os escritores apocalípticos apareceram, entre 200 a. C. e 100 d. C., os quais se propunham a apresentar revelações da parte de Deus explicando o motivo da prevalência do mal, desvendando os segredos celestes e prometendo a vinda iminente do seu reino e da salvação aos aflitos. (BIRDSALL, 1966, p. 89-90)

Sobre a questão das profecias e do devir, Barclay apontava que:

A era presente é totalmente má; não tem esperança; não pode reformar-se; para ela não há outro futuro que a destruição total. Os judeus, portanto, esperavam o fim das coisas tais como eram. A idade por vir seria totalmente santa e justa; seria a idade dourada de Deus; nela haveria paz, prosperidade e justiça; nela, por fim, o povo eleito de Deus seria vindicado e receberia o lugar que lhe correspondia por direito. (BARCLAY, 1975, p. 11)

Dentro da proposta acima surge então, segundo Dodd, (1977, p. 95), um

“Messianismo Militante”, que teria um desdobramento singular dentro do povo judeu. Em

suma, segundo Moule, (1979, p. 121), o apocalipse (literatura apocalíptica) é o

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“levantamento antecipado da cortina para mostrar a cena final, é um modo pictórico e

simbólico de comunicar a convicção da vitória de Deus”.

Considerações finais

O escopo deste trabalho foi elucidar questões teóricas e históricas acerca da

Biblioteca Copta de Nag Hammadi, no Egito. Os textos que compõem sua coleção são de

alto teor filosófico, religioso e gnóstico. Mostram em seu âmago como direcionaram o

pensamento dos primeiros cristãos. Foram mesmo tidos como heréticos, porém

permaneceram com suas características originais, formando diversas vertentes do

pensamento cristão antigo.

O Codex V traz como sua característica principal sua identidade textual. Trata-se de

um códice de cunho especificamente apocalíptico e que traz consigo o texto em questão, o

Apocalipse Copta de Paulo. Como é perceptível, a utilização de Paulo como autor do texto

propiciou uma disseminação singular da proposta do fim dos tempos, tendo como baliza a

ascensão ao Criador. As características gerais desse texto propiciam o reconhecimento

dessa singularidade, vista sua relação com a própria escritura sagrada. Mais ainda, deixa

em evidência a trajetória, assim como os outros textos, a relevância dos mesmos para o

entendimento de determinados segmentos que foram se transformando com o tempo.

Sinteticamente, o trabalho chega a seu objetivo, quando deixa em evidência as

possibilidades propostas no início e apresenta um panorama histórico e conceitual sobre as

pesquisas realizadas até o momento para o entendimento da gênese do Cristianismo.

Referências bibliográficas BARCLAY, W. El Nuevo Testamento Comentado: Apocalipsis. Vol. 16. Buenos Aires: La Aurora, 1975. BIRDSALL, J. N. Apocalíptica: In: DOUGLAS, J. D. O Novo Dicionário da Bíblia. Vol. 1. São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, p. 89-91. CHAVES, Júlio Cesar. O apocalipse cóptico de Paulo e sua relação com a literatura apocalíptica judaica. Oracula: São Bernardo do Campo, v. 1, n. 2, 2005. COSTA, H. M. P. Literatura, Fé e Esperança: uma introdução à Apocalíptica Judaica. Disponível em: http://www.abhr.org.br/wp-content/uploads/2013/01/art_COSTA_literatura_judaismo.pdf. Acesso em 15 dez. 2016. DODD, C. H. O Fundador do Cristianismo. 2ª ed., São Paulo: Paulinas, 1977. MAYER, R. Israel. In: BROWN, Colin. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. Vol. 2. São Paulo: Vida Nova, 1982, p. 455-467.

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