anais anppom 2012 epizeuxis em andré da silva gomes
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XXII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – João Pessoa – 2012
A Epizeuxis em André da Silva Gomes
Eliel Almeida Soares [email protected]
Ronaldo [email protected]
Diósnio Machado Neto [email protected]
Resumo: Neste trabalho procuraremos demonstrar a aplicação da Epizeuxis na obra de André da Silva Gomes, evidenciando que o compositor luso-brasileiro possuía um sólido arcabouço teórico fundamentado na retórica com o objetivo de criar um discurso eloquente. A metodologia utilizada consiste em análises de figuras retórico-musicais associadas aotexto sacro, além de métodos analíticos amplamente difundidos na musicologia.
Palavras-chave: Retórica, Epizeuxis, Análise Musical, André da Silva Gomes, Música Colonial Brasileira.
Epizeuxis in André da Silva Gomes
Abstract: This paper will seek to demonstrate the application of Epizeuxis in the work of André da Silva Gomes, evidencing that the Luso-Brazilian composer had a solid theoretical framework based on rhetoric in order to create an eloquent speech. The methodology used consists of analysis of musical-rhetorical figures associated with the sacred text, beyond analytical methods widespread in musicology.
Keywords: Rhetoric, Epizeuxis, Musical Analysis, André da Silva Gomes, Brazilian Colonial Music.
1. Introdução
Desde a Antiguidade, a retórica auxilia o orador para atrair a atenção do
público de forma persuasiva, através de discursos eloquentes, seja em praças públicas,
nos auditórios políticos e jurídicos, tendo por finalidade a adesão dos ouvintes à tese
apresentada (GUIMARÃES, 2004, p.145). Não obstante, na música barroca e início do
classicismo, mecanismos retóricos eram adotados pelos compositores, visando clarificar
a significação dos enunciados musicais, por meio de recursos alegóricos utilizados para
dar expressão e sentimento às palavras e música, isto é, Ethos, Pathos e Logos1, eram
representados pelas figuras retóricas.
Seguindo a mesma senda doutrinária, André da Silva Gomes (1752-1844)
revela que o compositor bem instruído deve elaborar com diligência as ideias que serão
dispostas na obra musical, tendo como base a imitação de sábios mestres, além dos
preceitos contidos nas Faculdades Retórica e Poética:
[...] não poderão avançar um dilatado terreno sem que sejam acompanhados, ajustados e socorridos pelos ótimos exemplares de insignes Mestres [...]
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Revela, pois saber manejar, define um empréstimo de ideias de pensamentos, de sentimentos e passagens dos escolhidos exemplares que nos propomos a imitar ou aproximando-os ou diferenciando-os, ou diminuindo ou aumentando, os quais preceitos, próprios da Faculdade Retórica e Poética,nos quais supomos o nosso aluno de Composição de Música bem instruído, como preparatórios desta Faculdade que tratamos; por istodeixamos aqui de os explicar [grifo nosso] (SILVA GOMES2, apud DUPRAT et al, 1998, pp.179-180).
Em outra passagem da Arte Explicada de Contraponto, André refere-se ao
compositor que, instruído como o filósofo, tem que estar apto a distinguir e a empregar
os elementos retóricos em uma obra. Ele afirma que tanto o contraponto quanto a
composição são partes permanentes da disposição do discurso retórico-musical,
“observa-se como Retórica; o Contraponto relativo à Invenção e a Composição relativa
à Disposição e Elocução, assim demonstrando quanto é preciosa ao compositor a
instrução literária” [grifo nosso] (SILVA GOMES, apud DUPRAT et al, 1998, pp.17-18).
Todo o contexto histórico, assim como a fundamentação teórica, relacionada
à construção do conhecimento retórico como disciplina, bem como a Poética Musical,
foge ao âmbito deste trabalho que se limita, tão somente, à utilização de uma única
figura de repetição e ênfase, evidenciando – mesmo em um simples recorte, a
profundidade do conhecimento retórico-musical de André da Silva Gomes. Enfim, o
compositor luso-brasileiro mostra-se possuidor de sólido arcabouço teórico, para
fundamentar o emprego de elementos retóricos em suas obras, tal como a figura da
Epizeuxis, o qual será evidenciado através de análises associadas à relação texto/música,
em algumas de suas obras.
2. Epizeuxis e suas Funções
Segundo Bartel (1997), essa figura de repetição imediata e enfática de uma
palavra, nota, motivo ou frase é também chamada Subiectio (Susenbrotus), Subjunctio
ou Adiectio, pelos teorizadores retóricos, no entanto, é dada a mesma definição em
ambas as disciplinas Retórica e Musical (BARTEL, 1997, p.263). Por sua vez, Cano
(2000) destaca que essas repetições podem ocorrer no princípio, meio e no final da
unidade ou fragmento musical (CANO, 2000, p.129).
Na retórica literária, a Adiectio aparece como repetição do igual e como
acúmulo dentro de um grupo de palavras (LAUSBERG, 2004, p.165). Analogamente ao
sentido da significação da Epizeuxis, Lausberg (2004) afirma que as figuras de repetição
podem ser enfáticas, sendo as mesmas trabalhadas pelo autor, no enriquecimento não só
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para se repetir a frase, mas valorizar o que fora empregado anteriormente (LAUSBERG,
2008, p.184).
Johannes Susenbrotus (1484-1542) ressalta que a Epizeuxis destaca as
palavras, dando a elas maior veemência e amplificação. No mesmo sentido, Henry
Peacham (1576-1643) salienta que, nessa figura se podem adequar tais expressões
veementes como de alegria, tristeza, amor, ódio e admiração, conforme as
circunstâncias do texto e música. Johann Georg Ahle (1651-1706) define-a como a
mais usada pelos compositores:
Se fosse para definir seria como: se alegrar, alegra-te / alegrar no Senhor toda a terra, seria uma Epizeuxis. Assim como o sal é o tempero mais comum, da mesma forma é a Epizeuxis a figura mais comum, uma vez que é utilizada por vários compositores em praticamente todas as passagens (BARTEL, 1997, p.263).
Na mesma linha, Johann Gonfried Walther (1684-1748) descreve a
Epizeuxis como figura de retórica pela qual uma, ou mais, palavras são imediata e
enfaticamente repetidas. Por fim, Johann Mattheson (1681-1764) enfatiza fazendo a
seguinte pergunta: “O que é mais comum, por exemplo, a Epizeuxis musical ou
Subjunctio, onde a mesma nota é repetida no mesmo trecho da melodia?” (BARTEL,
1997, p.264).
Em suma, pode-se constatar que a referida figura não é somente uma
repetição pura e simples, pelo contrário, seu emprego é vital na constituição e
disposição do discurso musical, seja na reprodução das notas, motivos, expressões e
palavras, destacando-as, igualmente na condução das linhas fraseológicas da música,
por intermédio da ênfase, através das dinâmicas e suas gradações, contextualizados pelo
compositor, adequadamente em cada parte do discurso, estabelecendo relação direta
entre o afeto e a figura, como mostrado nos exemplos abaixo.
3. Exemplos de Epizeuxis em Algumas Obras de André da Silva Gomes
Observa-se o emprego da Epizeuxis na repetição imediata do primeiro
motivo rítmico do Ofertório, enfatizando a palavra Sacapulis no primeiro compasso da
introdução da Dispositio3.
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Exemplo 1: Epizeuxis no Ofertório da Missa do 1º Domingo da Quaresma de André da Silva Gomes, comp.1- Catalogação e Organização de Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p.88).
Na mesma obra, essa figura é aplicada para enfatizar a frase Scuto
circumdabit te veritas ejus (Qual escudo te envolverá a sua verdade), sustentando, dessa
forma, a atmosfera de expectativa, criada pelo autor, cujo objetivo é prender a atenção
do ouvinte através de mecanismos retóricos, motívicos e estruturais, por exemplo, a
insistência em repetir as palavras sperabis e circumbabit, no compasso 20, reforçando a
interação entre Tônica (Si bemol Maior) e Dominante (Fá Maior).
Exemplo 2: Epizeuxis no Ofertório da Missa do 1º Domingo da Quaresma de André da Silva Gomes, comp.20-23- Catalogação e Organização de Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p.90).
O Ofertório do 2º Domingo da Quaresma é concebido a partir dos versos de
um salmo sapiencial alfabético, Elogio da Lei Divina (Ps.118,47-48/ 119,47-48)4. Silva
Gomes trabalha a primeira frase do texto, Meditabor in mandatis tuis, quæ dilexi valde
(Meditarei em seus mandamentos, que muito estimo), ressaltando três vezes a palavra in
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mandatis tuis, estabelecendo, desse modo, consonância ao sentimento cristão de ler,
observar, prezar os estatutos e os mandamentos das Escrituras Sagradas.
Exemplo 3: Epizeuxis no Ofertório da Missa do 2º Domingo da Quaresma de André da Silva Gomes, comp.18-20- Catalogação e Organização de Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p.95).
Como peculiaridade da Propositio, a defesa, sob a perspectiva do autor, é
exemplificada tanto na repetição motívica quanto na ênfase das palavras Justitiae
Domini rectae (Retos são os preceitos do Senhor), por meio do emprego da Epizeuxis,
na tonalidade Sol Menor.
Exemplo 4: Epizeuxis no Ofertório da Missa do 3º Domingo da Quaresma de André da Silva Gomes, comp.11-13- Catalogação e Organização de Régis Duprat (DUPRAT, 1999, pp.100-101).
Nos compassos de 28 a 30, Silva Gomes apropria-se da figura para
comprovar a tese inicial do ofertório: os julgamentos e preceitos do Senhor são justos,
Et judicia dulciosa (Mais justos e doces).
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Exemplo 5: Epizeuxis no Ofertório da Missa do 3º Domingo da Quaresma de André da Silva Gomes, comp.28-30- Catalogação e Organização de Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p.103).
Nesse excerto, o salmista faz um encômio ao Senhor por seus atributos, em
outras palavras, há um louvor direcionado à magnificência, bondade, poder e justiça de
Deus para com seus servos, Omnia quae voluit Dominus, fecit in caelo et in terra (O
que apraz ao Senhor ele o faz, no céu e na terra). Enfim, por intermédio da Epizeuxis,
Silva Gomes, de maneira incisiva, confirma essa proposição.
Exemplo 6: Epizeuxis no Ofertório da Missa do 4º Domingo da Quaresma de André da Silva Gomes, comp.56-59- Catalogação e Organização de Régis Duprat (DUPRAT, 1999, pp.124-125).
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Na conclusão do Ofertório da Missa de Quarta-feira de Cinzas, o
compositor luso-brasileiro dá a essa figura retórica três funções: de enfatizar, destacar e,
por último afirmar, o enunciado Et sanasti (Me sarou), como das dinâmicas forte para
pianíssimo, compasso 32, resultando numa Cadência Autêntica Perfeita, na tonalidade
Sol Maior.
Exemplo 7: Epizeuxis no Ofertório da Missa de Quarta- feira de Cinzas de André da Silva Gomes, comp.28-33- Catalogação e Organização de Régis Duprat (DUPRAT, 1999, p.178).
4. Considerações Finais
O elemento emocional é fator crucial na edificação do discurso retórico. O
orador tem por objetivo mover os afetos do ouvinte a fim de torná-lo favorável à sua
tese. Nesse sentido, fundamenta seus argumentos não unicamente na lógica, mas em
artifícios retóricos e alegóricos, a fim de envolver e comover. Desde a Antiguidade,
filósofos e estudiosos imputam à música o poder de influenciar a conduta humana.
Durante os séculos XVI a XVIII, diversos pensadores, compositores e tratadistas
teorizaram e sistematizaram o discurso musical fundamentados na retórica.
Detentor de vasto conhecimento literário e musical, mestre de contraponto e
gramática latina, André da Silva Gomes deixa transparecer em sua obra sólido
arcabouço teórico acerca da retórica musical. Fato verificável na análise de seus
Ofertórios. A amplitude de sua erudição acerca do assunto transcende os limites deste
trabalho, o qual se fixou apenas na figura da Epizeuxis como elemento retórico de
ênfase, empregado pelo compositor na elaboração de seu discurso eloquente e
persuasivo.
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Referências:
BARTEL, Dietrich. Música Poética: Musical-Rhetorical Figures in Germany Baroque Music. Lincoln: University of Nebraska Press, 1997.
CANO, Rubén López. Música y Retórica en el Barroco. México, D.F: Gráfica da Universidade Nacional Autônoma do México, 2000, vol.1. 207 p. Disponível: http://www.geocties.com/lopezcano/Articulos/MRB/02.PrimeiraParte.pdf Acessado em: 17 de Março de 2012.
DUPRAT, Régis. Música Sacra Paulista. Marília (SP): Editora Empresa Unimar, 1999.
DUPRAT, Régis et al. A Arte Explicada de Contraponto de André da Silva Gomes. São Paulo: Arte & Ciência, 1998.
GUIMARÃES, Elisa. Figuras e Retórica e Argumentação. In: MOSCA, Lineide do Lago Salvador. Retóricas de Ontem e de Hoje. 3ª Edição. São Paulo: Associação Editorial Humanistas, 2004. pp. 145-160.
LAUSBERG Heinrich. Elementos de Retórica Literária. 5ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbernkian, 2004.
Notas
1 Ethos é a maneira que o orador deve assumir para inspirar confiança no auditório. Phatos é o conjunto de emoções, paixões e sentimentos que o orador deve provocar o auditório com seu discurso. Logosremete à racionalidade, isto é, à argumentação.2 Segundo Régis Duprat o tratado de André da Silva Gomes é apresentado em cópia escrita de 1830 por Jerônimo Pinto Rodrigues, sem referência precisa da data do exemplar original. (DUPRAT et al, 1998, p.9).3 Onde são distribuídas e ordenadas as ideias e argumentos encontrados na Inventio. Essa disposição é distribuída em seis seções. Exordium- Inicio e introdução do discurso; Narratio- Declaração dos fatos ou dados; Divisio – ou Propositio- Exemplificação e defesa a perspectiva do orador; Confutatio- Refutação dos argumentos expostos, ou seja, uma oposição ao tema inicial ou principal; Confirmatio- Provas para confirmar a tese inicial; Perotatio- Conclusão.4 Salmos 118,47-48 seriam o número e versículo na bíblia católica, já na bíblia protestante o texto está escrito no número 119 versículos 47 e 48.
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